summaryrefslogtreecommitdiff
diff options
context:
space:
mode:
authornfenwick <nfenwick@pglaf.org>2025-01-23 04:04:19 -0800
committernfenwick <nfenwick@pglaf.org>2025-01-23 04:04:19 -0800
commit1c77b445b7ac8b354a5838c2ec505d7b1212abc8 (patch)
tree26bca4c72fcc4b9b389d0618f1fd667997b0b40a
parentbb34aa1662b36cbe8bf78f5a86a379bc1bc0c4e8 (diff)
NormalizeHEADmain
-rw-r--r--.gitattributes4
-rw-r--r--LICENSE.txt11
-rw-r--r--README.md2
-rw-r--r--old/65021-0.txt9095
-rw-r--r--old/65021-0.zipbin181216 -> 0 bytes
-rw-r--r--old/65021-h.zipbin260033 -> 0 bytes
-rw-r--r--old/65021-h/65021-h.htm11912
-rw-r--r--old/65021-h/images/cover.jpgbin63111 -> 0 bytes
8 files changed, 17 insertions, 21007 deletions
diff --git a/.gitattributes b/.gitattributes
new file mode 100644
index 0000000..d7b82bc
--- /dev/null
+++ b/.gitattributes
@@ -0,0 +1,4 @@
+*.txt text eol=lf
+*.htm text eol=lf
+*.html text eol=lf
+*.md text eol=lf
diff --git a/LICENSE.txt b/LICENSE.txt
new file mode 100644
index 0000000..6312041
--- /dev/null
+++ b/LICENSE.txt
@@ -0,0 +1,11 @@
+This eBook, including all associated images, markup, improvements,
+metadata, and any other content or labor, has been confirmed to be
+in the PUBLIC DOMAIN IN THE UNITED STATES.
+
+Procedures for determining public domain status are described in
+the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org.
+
+No investigation has been made concerning possible copyrights in
+jurisdictions other than the United States. Anyone seeking to utilize
+this eBook outside of the United States should confirm copyright
+status under the laws that apply to them.
diff --git a/README.md b/README.md
new file mode 100644
index 0000000..0c96513
--- /dev/null
+++ b/README.md
@@ -0,0 +1,2 @@
+Project Gutenberg (https://www.gutenberg.org) public repository for
+eBook #65021 (https://www.gutenberg.org/ebooks/65021)
diff --git a/old/65021-0.txt b/old/65021-0.txt
deleted file mode 100644
index e5cf86f..0000000
--- a/old/65021-0.txt
+++ /dev/null
@@ -1,9095 +0,0 @@
-The Project Gutenberg eBook of A Primavera, by Antonio Feliciano de
-Castilho
-
-This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and
-most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions
-whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms
-of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at
-www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you
-will have to check the laws of the country where you are located before
-using this eBook.
-
-Title: A Primavera
-
-Author: Antonio Feliciano de Castilho
-
-Release Date: April 07, 2021 [eBook #65021]
-
-Language: Portuguese
-
-Character set encoding: UTF-8
-
-Produced by: Rita Farinha, Alberto Manuel Brandão Simões and the Online
- Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This
- book was produced from scanned images of public domain
- material from the Google Books project.)
-
-*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A PRIMAVERA ***
-
-
-
-
-
-OBRAS
-
-DE
-
-Antonio Feliciano de Castilho
-
-
-_Constando-me ter havido quem reimprimisse em França, sem licença minha,
-dois volumes de minhas Obras, e sendo isto sobre iniquidade, manifesto
-roubo, declaro que perseguirei em juizo com acção de furto, em quanto a
-nossa Lei sobre imprensa não estabelecer outra propria para taes casos,
-a quem quer que, sem minha expressa licença, reimprimir esta ou outra
-qualquer Obra minha, ou impressas fóra as introduzir e vender neste
-reino._
-
- _A. F. de Castilho._
-
-
-
-
- A PRIMAVERA
-
- POR
-
- _Antonio Feliciano de Castilho_,
-
- _Bacharel Formado em Direito, Socio da Academia
- das Sciencias de Lisboa, da Sociedade
- Juridica e da dos Amigos das Letras da
- mesma Cidade, da Sociedade Literaria Portuense,
- do Instituto Historico de Paris, da
- Academia Real das Sciencias e Bellas Letras
- de Roão._
-
- _Mais correcta, emendada, e copiosissimamente accrescentada._
-
- Lisboa.
- NA TYPOGRAFIA DE A.I.S DE BULHÕES.
- _Rua do Soccorro de Cima N.º 39. 1.º andar._
- 1837.
-
-
-
-
- _Stet quicumque volet potens_
- _Aulœ culmine lubrico:_
- _Me dulcis saturet quies;_
- _Obscuro positus loco_
- _Leni perfruar otio;_
- _Nullis nota Quiritibus_
- _Ætas per tacitum flua_
- _Sic cum transierint mei_
- _Nullo cum strepitu dies,_
- _Plebeius moriar senex._
- _Illi mors gravis incubat,_
- _Qui notus nimis omnibus,_
- _Ignotus moritur sibi._
-
- _Sen. Thyest. Act. 11._
-
-
-
-
-ANTE-PROLOGO.
-
-
-Bem será para alguns motivo de maravilha, e de riso para muitos, a
-declaração por onde me agrada começar este Ante Prologo; e he, que o
-estou principiando, e querendo Deos o levarei ao cabo, antes de conhecer
-a Obra para que vai feito. Quatorze annos, e não poucos d’elles bem
-estirados, são hoje discorridos depois de impressa, e por tanto segundo
-meu costume aposentada e esquecida, a minha _Primavera_. N’estes quatorze
-annos, começados a contar aos vinte e dois da minha vida, não só se
-encerrou, e desvaneceo aquella melhor, mais florída e derramada parte
-d’ella, que tanto discrimina, e afasta o periodo seguinte do anterior,
-senão que ahi se desatou tão desfeito temporal de successos estranhos,
-de terrores e calamidades publicas; tantas certezas saírão vãs,
-realisarão-se tantos impossiveis; por tal arte se transtornou e renovou
-ora em bem ora em mal a face do nosso Portugal; tão fracas e tenues
-reliquias de um passado, que ainda nós os moços alcançámos, subsistem
-já agora quer nas pessoas, quer nas cousas e costumes, e emfim por tudo
-isto nos petreficámos, e envelhecemos em tanta maneira, que por mim digo,
-n’estes quatorze annos me parece ter a Fortuna desbaratado cabedal de
-seculos, e o Tempo uma larga idade do mundo. Tantos e taes annos que da
-minha Obra me separão, não custará muito a crer ma tenhão tornado ao cabo
-tão alhea, como se d’ella só mui por longe me houvera susurrado uma leve
-noticia. Esta idea confusa, mas suave e suavissima como apagado retrato
-de antigos amores, como lua de estio contemplada em fundo de ermo, ou
-como vista de remotas velas ao coração do que alem-mar definha desterrado
-entre asperezas, esta idea toda mansa, toda rosada, toda primavera, mais
-temo perdê-la do que todas as minhas outras illusões, se por ventura já
-hoje alguma tenho. Talvez receie, e se receio talvez me não falte rasão,
-que ao reler estes Poemettos, nem ache n’elles as côres que os longes
-me figuravão, nem os gostos com que os hia não compondo, mas para assim
-dizer colhendo e enramalhetando pelas varzeas e valles do Mondego: tanta
-foi a metamorphose que de mim fizerão os livros, as couzas, e a idade!
-Como que tenho uma dolorosa certeza de que me acontecerá com isto o que
-ja me succedeo visitando, depois de espaçosissima ausencia, as cazas
-onde a minha primeira infancia fôra brincada, amada e perdida: tudo
-achei mesquinho, solitario e quasi mudo, tudo me dizia muita saudade
-e nenhum prazer; cada pedra tinha sua historia, mas todas me clamavão
-outros tantos desenganos. Grande differença esta entre as nossas
-proprias antigalhas e as do mundo! as do mundo pelo seu mesmo misterio
-nos deleitão, são a primeira pagina de um romanse para a imaginação;
-as nossas pela sua certeza nos contristão, e são a pagina ultima de uma
-historia que assaz nos corria formosissima.
-
-Apraz-me por tanto boiar ainda por algumas horas ao de cima d’estas
-fantasias, e antes de se me apagarem, se já he que isso tem de ser,
-alegrar com o seu reflexo estas paginas, que mal poderáõ ser muitas:
-sempre he cedo para lançar pelas janellas fóra os brinquedos de nossa
-puericia; e mal haja quem o faz sem que todo o coração se lhe aperte
-dentro no peito.
-
-Por isto que digo, entenderáõ meus leitores o porque, exhausta logo
-no primeiro anno a primeira impressão da _Primavera_, tantos se tem
-devolvido sem que jamais me deliberasse a reimprimi-la. Pelos fins de
-todos os invernos e começos da melhor estação, me era ella de todos
-meus livreiros requerida; por mais de uma vez me senti abalado, mas a
-lembrança do meu desencantamento me era sempre esquiva, e repugnava-me,
-como uma certa simonia, o arriscar-me a por alguns cruzados malbaratar
-uma dilicia do sanctuario de meu animo. N’esta parte não me entenderáõ
-todos, mas os meus intimos confirmarião com juramento o que digo.
-Agora porem que até a minha pobre bibliotheca já se ahi vai rareando
-e desfazendo vendida, e me importa pôr entre mim e a terra do meu
-nascimento muita outra terra de permeio, e Deos sabe para quanto tempo,
-obedeço aos desejos de muitos dos que ainda lem, ao conselho dos amigos,
-e á lei da necessidade. Reverei para a impressão, e perderei para mim
-este livro de saudades, livro que só fechado eu poderia ler como me
-convinha. E por quanto, depois de sua leitura talvez me desamparasse
-a vontade de aventurar algumas reflexões sobre este genero de poemas,
-fa-las-hei antes, e já aqui; deixando para o Prologo as que ácerca da
-Obra me forem por ella mesma suggeridas.
-
-A Poesia campesina, ou segundo vulgarmente lhe dão nome, pastoril, com
-ser de todas a mais antiga, nunca em nenhuma parte se perdeo, dado em
-muitas decaisse não raro do seu credito e lustre; e segundo todas as
-mostras, deitará ainda até ao fim das idades literarias. Sempre moça
-como a terra sua mãi, mansa como os arroios seus irmãos, formosa como
-as flores que lhe guarnecem o chapeo de palha, livre e leve como os
-zefiros pela assomada dos montes, alegre, namorada e innocente como as
-aves na madrugada do anno, he de ver qual se vai sozinha e vivissima por
-entre tantas couzas mais fortes que morrem; com o seu cajado de pastora,
-segura entre tantos inimigos; girando todo o orbe, e por todo elle bem
-vinda; vingando e vencendo todos os seculos; dando a alguns d’elles de
-mais amoravel indole a sua propria fórma; e relevando-lhe, ainda os mais
-ferozes e guerreiros, que lhes ella misture com a sua frauta do serão os
-himnos da guerra, lhes entreteça maliciosa violetas com os louros, e os
-campos que elles a ferro e fogo devastarão os repovoe ella de imaginadas
-verdura, flores e felicidade.
-
-Hum curioso reparo poderáõ ter feito os que os fazem no ler poetas, e
-he, que apenas haverá algum dos chamados Epicos, para quem o campo e sua
-vivenda não fosse deleitoso assumpto. Compraz-se Homero de travar com
-as façanhas dos heroes toques e pinturas do viver natural e primitivo;
-Virgilio, que ja primeiro que se abalançasse ás armas e guerras tinha
-cantado os pastores, e doutrinado os lavradores, particularmente se
-recreia quando no meio das batalhas pode a uns e outros mandar algumas
-saudades; nos dois Orlandos e em todos os livros de cavallaria, vai igual
-mistura; o mesmo na Jerusalem, cujo autor havia escrito o Amintas: e
-d’entre os nossos, para por todos citar um, mas um que por todos valha,
-Camoẽs, não só afamou os Portuguezes sujeitadores de elementos e homens,
-mas todo se deleita em conversar os pegureiros e campos da nossa graciosa
-Lusitania, terra cujos filhos, se me não engano, são por indole dotados
-destes dois extremos, de brandura e de valor, de amor ao obscuro rusticar
-e ao glorioso correr de aventuras e perigos: por onde entendo que para
-muito mais do que são os fizera Deos, assim como fizera para muito mais
-do que he o grandioso torrãozinho que habitão.
-
-Disse engenho subtil, e bons juizos crêrão, que o desejo, ancia e
-esperança de bem que todos temos innatamente, era claro argumento de
-uma vida futura, ja que nesta se nos não deparava contentamento: assim
-tambem dissera eu, que este natural e universal gosto á poesia amena he
-um indicio de que, se jamais o homem foi homem e ditoso, la nos campos
-o foi; que as plantas d’onde nos brotão sustento e recreação, exhalão
-secretamente amor para os seus vizinhos, e que pelos saudosos valles
-das idades patriarchaes, em quanto os bosques não caírão para em sua
-vez se levantarem as muralhas, as bençãos do ceo orvalhavão muito mais
-amiude. Alguma couza farão para aqui palavras do meu Florian, que porque
-d’elle são as verterei de muito boa mente—“Oh se nós podessemos ler em
-seu original texto os bons autores d’essa Allemanha, enlevar-nos-hia a
-tanta singeleza, a tanta doçura por onde de todas as outras se estremão
-suas obras! Em conhecer a natureza, e especialmente a natureza campezina,
-levão-nos elles uma infinita vantagem: amão-na mais deveras, retratão-na
-com tintas mais fieis. Todos nossos poemas pastoris nada tem que ver com
-as meras traducções de Gessner. Ninguem jamais fecha a Morte de Abel,
-os Idyllios ou Daphnis, sem ja se sentir mais soffrido, mais terno,
-mais mavioso, e porque tudo diga, mais virtuoso que antes da lição.
-Não respira senão moral pura e facil, e virtude d’aquella que logo
-vem trazendo bemaventuranças. Fosse eu parocho de aldea, que sempre á
-estação da missa havia de ler e reler Gessner aos meus fregueses: e por
-certissimo tenho que todos meus aldeões se farião probos, todas minhas
-parochianas castas, e ninguem me havia de ao sermão adormecer.”—
-
-Isto dizia de Gessner Florian, digno de o louvar pelo mui bem que o sabia
-comprehender e seguir. Isto não escrevia eu nem o dizia, mas amplamente
-o sentia n’esse bom tempo que ja la vai. Gessner não era para mim um
-nome, senão um individuo presente, um suavissimo contubernal; nem ja
-suas obras me erão livros, mas realidade, vida e mundo.—Sei que se
-não leva a bem o muito fallar um individuo de si proprio, mormente em
-publico, e mormente ainda quando esse individuo he tão mesquinho sujeito
-como eu: mas de que outra couza posso eu escrever? dos outros? não os
-conheço; erudito, não o sou; descubrimentos não os fiz, nem ja agora os
-farei: fólgo de espraiar conversa com os meus patricios, na falta de
-melhor assunto, fallo-lhes de mim e de meus gostos.—O mais selecto de
-todos elles era pois Gessner, no qual e na escolha de Poesias Allemãs
-por Huber, andou por alguns annos cifrada toda minha leitura, porque
-de quantos autores patrios meus conhecidos havião escrito e poetado de
-couzas rusticas, nenhum havia que ou por sobejidão de engenho e argucia,
-ou por mal cabida escuridade, ou pelo trivial do pensamento e dicção, ou
-pelo desageitado do metro, ou pelo urbano artificio do que lhes parecia
-singeleza, ou emfim por um não sei que de mais ou de menos, lhe não
-lançasse lodo e arêa no jardim que bem ao meio da alma me havia sido por
-Gessner plantado.[1] Muito aproveitei em tão boa escola: como poeta não,
-que bem o sabem meus leitores; como homem sim, que disso tive mui cabal e
-experimentada certeza. Minhas nativas propensões beneficas se arraigarão;
-minha interior aspereza, que todos de si a tem, se amolleceo; sentia-me
-palpitar no peito um coração da idade de ouro; esvoaçava-me na cabeça
-uma alma inteira de Arcade; compunha todo o meu economico futuro de uma
-choupana, um pomarinho, e pombas mui brancas e cordeiros mui nedios; em
-summa, se Florian fosse meu parocho, propor-mehia nas suas homilias como
-um santo da sua bemaventurança. Assim, e por esse tempo, foi a minha
-_Primavera_ improvisada, e como ella as _Flores_ e as _Quatro Partes do
-Dia_, Poemas que brevemente sairáõ estampados, e inteirão com o presente
-volume o fragil monumentinho dos annos, em que fui tal, qual desejava
-permanecer toda a vida.
-
-Passe ainda adeante a sinceridade: com vergonha não só minha, mas do
-tempo em que vivo, confesso que d’essa ingenua bondade, pela qual eu
-mesmo a mim me comprazia, o de mais (como espirito que era subtilissimo)
-se evaporou; parte se azedou no vaso com as más sementes de odio que
-de fóra lhe lançavão; o resto se recozeo e estragou ao fogo das civis
-dissensões: procuro-me e não me acho, ou se me acho não me amo. Ainda a
-minha antiga choupana, os cordeiros nedios e as pombas alvissimas se me
-fazem lembrados por uma noite de estio, mas riem menos, e não me acenão
-senão fracamente. Tanto vi e vejo de alhêas maldades, tanto tem procurado
-os entes mais abjetos e vis amargurar-me, que nem quasi na virtude
-acredito, nem na possibilidade de ser feliz: e este estado, se não he
-de todos o mais antipoetico, se na escola romantica pode até lograr os
-foros do _bello ideal_ e ultimo sublime, pelo menos he o mais avêsso á
-filosofia e mansidão Gessnerica. Oh quando poderáõ os dois monstros, em
-cujas garras inexpertamente caí, quando poderáõ Politica e Romantismo
-dar-me um longe, uma sombra dos interiores commodos que me lá ficarão com
-a poesia natural e singela? E igual pergunta dolorosa poderia fazer o
-mundo, a ter um coração e uma voz. Ja quanto á Politica me calo, que esse
-voto fiz eu; mas quando será que o Romantismo exclusivo e tiranno qual
-se presenta, se gabe de perfumar entendimentos para o amor, de reclinar
-o amor como filho nos braços da virtude, e de transformar o templo da
-virtude em caza do contentamento? Quando será que outro homem, da laia e
-costumes dos nossos velhos, possa dizer na sinceridade da sua alma:—“Se
-eu fosse parocho, leria Byron ou Schiller á estação da missa, para tornar
-castas e probas as minhas ovelhas”? Mas todas estas reflexões de nado
-valem: a torrente vai funda e rapida, ninguem, e muito menos eu lhe poria
-dique. E até (que tão pouco dou pela minha filosofia) talvez que tudo o
-que por ahi vai, que certamente: parece bem triste e bem máo, seja bem
-necessario ao concerto e melhoria do mundo. Não digo eu o que as couzas
-são, sim o que se me ellas figurão: não as sentencêo sem appellação; na
-minha primeira instancia as julgo, e o que moralmente me parecem isso
-assento com afoita liberdade. Perde ou ganha a humana especie em cada
-vez mais se apartar por obra, por palavra, e por pensamento, do rural e
-simples theor de seu primitivo ser? por minha experiencia affirmaria que
-perde, mas os sabios que o decidão, e a mim seja-me licito pôr duvidas.
-
-Não me intrometterei com o que vai por outros reinos; esse uso de
-qualquer contrabandista literario de nunca chegar ás couzas patrias sem
-primeiro haver tocado nas de França e Inglaterra, não me quadra a mim,
-que ao menos tenho a sufficiente consciencia e pejo para não citar o que
-mal conheço: em Portugal me limito. Somos nós mais felizes ou melhores
-que nossos avós? Certo que não; e tanto, que se esses bons e honrados
-velhos podessem ter adivinhado quaes seriamos nós, nós herdeiros de
-seus nomes, escarnecedores de seus exemplos, e deshonradores de seus
-castos e amigaveis costumes; nós que ao seu velho fallar e escrever de
-_deveres_, substituimos o nosso novo fallar e escrever de _direitos_, e
-á moda de ter palavra, a moda de ter palavras, ter-se-hião horrorisado
-como de abominação, do pensamento de gerar. Acordai do sepulchro um
-d’esses anciãos, que depois de pagar inteira a divida a pai e mãi,
-viveo todo para a mulher, matou-se pelos filhos, guardou a palavra como
-religião, a religião como necessidade, e cada paschoa de flores, bem
-com Deos, contentissimo comsigo, se ufanava de sentar ao melhor lugar
-de sua mesa o parocho, e todos os seus vizinhos de envolta com seus
-filhos. Mostrai-lhe todos os nossos progressos, que em sós algumas
-vantagens materiaes e corporaes se resumem: alardeai-lhe o que esperamos,
-mas não lhe escondaes o que destruimos: lede-lhe a primeira pagina do
-primeiro Jornal que topardes d’esse mesmo dia, raza de impudencia,
-empapada com fel, estillando lagrimas, revendo sangue, suando calumnias
-e desavergonhamentos, respirando e soprando odios de nação contra nação,
-de cidade contra cidade, de familia contra familia, de irmão contra
-irmão, de povos contra reis, de reis contra povos, e dos homens contra
-a Providencia. Supponde que Deos lhe offerece renovação da vida, e
-offerecei-lhe vós todas as blazonadissimas excellencias do nosso viver
-e do nosso esperar: repellir-vos-ha com aquelle braço que antigamente
-defendia e não apunhalava a Patria; tapará com o resto da mortalha o
-rosto que só depois de cadaver córa pela primeira vez; e cerrando rijo os
-olhos contra a luz, e deixando-se recair pezadamente, de vós não pedirá
-mais do que um favor, o de lhe restituirdes a sua lagea.[2]
-
-Emquanto assim vai o presente avesso do preterito pelo que toca á moral
-e á felicidade, fallo da verdadeira felicidade, d’aquella em que a
-moral entra como elemento, e não da fizica e corporal, da de fazenda
-e honras, como hoje se entende; vejamos a que ponto subirão com o
-_movimento_ e _progresso_ as nossas letras. Entrai as typografias, e
-dizei-me porque assim amotinão com o seu noturno e diurno lavor a
-vizinhança? perguntei-lhes porque assim gemem e se afadigão? em quaes
-livros nos estão preparando mananciaes de doutrina, ou de costumes, ou
-de suave, honesto e ja tão precizo desenfadamento? Dissereis que nossos
-laboriosos maiores as deixarão esfalfadas com os copiosos frutos de
-suas lucubrações: o mais com que se atrevem, são ridiculos farrapos de
-bestiaes torpezas. Seguem-se os mezes aos mezes e os annos aos annos,
-sem outras literarias novidades. Terra he que ja deo optimas searas e
-vinhas abundosas; agora descultivada e baldia, e á lei da natureza bruta,
-desata toda sua força e substancia em cardos, em ortigas, em venenos
-e serpentes. Quantos livros, e quantos bons livros, que nós outros
-nem conhecemos nem ja valemos a sopesar, saíão dos nossos prelos, nos
-tempos em que a probidade, e a mansidão, e a concordia tinhão seu preço.
-Um só reinado, e ainda bem chegado a nós, e de rei que por bom se não
-cita, com tanta copia de literarios monumentos nos deixou avergadas as
-bibliothecas, que dez centos de annos como o presente não produziráõ
-a decima parte. São os nossos typógrafos de hoje, se com aquelles os
-comparamos, como os nossos cutileiros de punhaes, comparados com os bons
-armeiros que forjavão espadas como as de nossos heroes de boa data, que
-só com sua pezada presença nos maravilhão, a nós, que por nossa verbosa
-sabedoria, acabaremos de desbaratar tantas e tão longes terras, como nos
-ellas ganharão esgremindo-se.
-
-Tal vai pois o estado literario como o social; e nem menos podia ser,
-porque estas duas couzas, como alma e corpo, se pertencem inseparaveis:
-Mão de Deos que ao corpo politico quizesse restituir a saude, por ahi
-lhe fortaleceria não menos o espirito; Sopro de Deos que ao espirito
-restituisse a luz, por ahi lhe ordenaria e vigoraria todos os movimentos.
-Por tanto, conhecendo e confessando que nem facil he nem possivel torcer
-a carreira desenfreada que o nosso mundo leva não sei para onde, todavia
-para mim tenho, se na cabeça está isto, se no coração, não o direi, mas
-tenho para mim, que mui bem fará, e muito amado será dos rectos juizos
-quem nos fizer volver olhos de saudade para a vida que ja se viveo, o
-que ainda um ou outro, aqui ou acolá poderá inteira, ou quando mais
-não fôr, em partes, em amostras reviver. E pois será isto uma illusão
-minha? Se o geral da gente vai por entre dores para uma couza que se
-chama perfeição, não pode um individuo em particular deixar-se ficar
-atraz, despir essas suadas armas de milicia conquistadora, e recolher-se,
-honrado desertor, lá onde viva seguro com Deos, comsigo, com poucos
-vizinhos, logrando-se da natureza, e desfrutando em variados prazeres
-todos as estações; prezentes que Deos enviou para todos os homens, mas
-de que os das cidades só pela folhinha tem noticia! Por quão feliz se
-não devêra dar o escritor desambicioso, se aos puros sons de sua lira
-afinada nos bosques, lograsse, não como Anfião fundar e povoar cidades,
-não como Orfeo arrancar as feras dos arvoredos e domestica-las; mas
-arrancar d’entre feras humanas homens inda não corrutos, e assenta-los,
-para sempre feriados do reboliço dos grandes povos, no divino remanso de
-uma campestre solidão! De mui leves cousas e tenuissimos momentos pende
-ás vezes o destino de toda uma vida: assim como de um encontro fortuito
-resulta uma affeição amorosa, que logo produz um consorcio e um sisthema
-completo de existir, assim de uma palavra em uma conversa casual, da
-substancia de uma pagina lida em certa hora, do aspéto de um painel,
-podem nascer, e mil vezes terão nascido, determinações, vocação, e fados
-de individuos. E para vir a um exemplo recente e meu, aquelle bom livro
-das _Prisões_ de Silvio Péllico (todo imbuido, releve-se-me a expressão,
-de uma christã e filosofica filosofia, que a maior parte das assim
-chamadas nem uma nem outra couza tem) aquelle bom livro, ja principiou e
-talvez acabará de me curar o animo: não lhe restituirá a muita harmonia
-com que o de Gessner mo temperára, porque a mocidade das illusões passa
-e não volta; mas deixar-mo-ha provavelmente assaz alto e forte, que
-ainda no meio das maiores tempestades repouze e abençoe tudo. E não he
-isto maravilha, que a alguns outros que o lerão ja eu ouvi iguaes, senão
-maiores encarecimentos de sua medicinal virtude.[3]
-
-Este desvio, por onde me agora deixava ir, levar-me-hia longe, que assim
-he accomodado a meus gostos; mas porque he desvio o largo, e retomo o
-caminho que hia seguindo. A poesia amavel, a que nas mãos e seio nos
-vinha offerecendo ramalhetes, e frutos no regaço, e amores nos olhos,
-e nas fallas consolações, afastou-se d’entre nós, onde ainda a alguns
-poderia aproveitar, e assim como outras muitas boas artes e prendas, foi
-reclinar-se á espera na beira da torrente dos dias, d’onde não volverá,
-sem que primeiro se restaurem muitas optimas couzas e todas suas, que
-o mundo velho tinha produzido. Mas d’onde viráõ estas couzas? Do mesmo
-mundo velho? mal o creio, que o novo quebrou a ponte que os juntava,
-e rio de ufania vendo abismar-se fábrica que assim parecia eterna.
-Renasceráõ por tanto da propria natureza da terra, da indole da alma
-humana que ja uma vez as produzio, ou do sopro do ceo: renasceráõ tarde;
-renasceráõ quando nós ja não formos; renasceráõ, talvez diversas, mas
-renasceráõ. E quaes são estas couzas do mundo passado, cuja perda tanto
-dóe ás Musas e á Virtude? são as formosuras e magnificencias da religião,
-o respeito aos finados e a seus sepulchros, ás lições da experiencia, ás
-obras dos antigos homens, a veneração ás cãs, o quasi culto ás mulheres,
-a benevolencia e sociabilidade, o aferro aos usos e modas patrias, o
-amor do estudo, que nós dissipámos com as leituras efemeras, e o amor do
-torrão natal, nobre fecundissimo sentimento, mas impossivel onde se vive
-sem muita brandura e sem firme certeza de permanecer. Tudo isto se perdeo
-para nós, e não sei que bens haja em seu lugar posto a _Filosofia_. A que
-verdadeiramente o he, ainda que esse nome se não dê, a que realmente faz
-homens livres e felizes, não he Furia que destrua tão venerandos objetos;
-ama-os, defende-os, reforma-os quando o tempo os viciou, concerta-os que
-se amparem mutuamente, pede-lhes frutos, e com seus frutos se fortalece.
-
-Quando de espaço me dou a escavar estas verdades, nada me assombra a
-nossa crassa e desdenhosa ignorancia, mãi ou filha, e certamente socia
-da nossa immoralidade. Esta mal agoirada ignorancia e esta immoralidade
-cresceráõ; ja nossos filhos apenas saberáõ ler, e se o turbilhão que a
-roda leva não houver quem o suspenda, brutos e ferozes sairáõ os netos.
-Applicai todos os vossos sentidos ao coração da nossa Cidade: se a vida
-he movimento, ahi trabalha vida; se porem a vida ha-de ter um perfume,
-uma harmonia, ahi não ha senão morte, e aquelle movimento he de cadaver
-que fermenta para se dissolver. Poesia, verdadeira poesia ja n’este
-Reino, onde em todos os tempos pullullava espontanea, posto que raro
-amadurecesse, ja por consequencia acabou: quanto desde hoje se poetar
-nas enamoradas doçuras da vida aldeã, mais não será que recordações sem
-germen de futuro. D’entre a memoria e o espirito, não da experimental
-convicção do poeta, nasceráõ esses versos, como lagrimas de balsamo,
-que não de dentro da arvore, mas d’entre a casca e o libro vem raras
-gotejando, para cairem e se perderem no terreno bravio da solidão. Oh
-Liberdade, Liberdade! quão mal te comprehendem os que te separão do
-bello! quão mal te servem os que te malquistão com os homens de bem!
-como involuntariamente te levão á morte os que só te pedem como summa
-felicidade, o direito de nada respeitar, estradas de ferro, navios de
-vapor, um himno, e punhaes ou carceres contra quem quer que não beber ás
-suas mesas! Pobre Liberdade, não he este ainda o teu dia: não és tu idolo
-de selvagens, mas Divindade benefica de homens prudentes.
-
-Eis-me outra vez com a Politica, e o meu voto quebrado. Ja vejo que a
-minha cura não está tão adeantada como o eu suppunha: não ha remedio,
-amanhã releremos Silvio Péllico, e por hoje voltemo-nos com toda a
-diligencia a rematar, como quer que seja, este escrito.
-
-Sáe pois o presente livro por todos os modos extemporaneo, ja porque a
-estação nem he d’elles nem para elles, ja porque lhe fallecêrão dias
-para amadurecer e sasoar, e ja porque dos que lhe tomarem o sabor, uns
-o taxaráõ de temporão, outros de serodio, sendo que uma e outra couza
-he elle, e demais a mais pêco, segundo a planta de que se creou. Uma só
-lembrança me consola, e he, que assim mesmo ja deveo ser peor, quando
-da primeira vez appareceo, e mais lhe não faltárão gostadores; tanto he
-assim que nunca faltaráõ simpathias ao que de sua origem he bom, ainda
-quando desbotado e estragado pela impericia de quem o tratou. Melhor he
-hoje do que então era; não porque o eu tornasse á forja e á bigorna, ou
-o recorresse e lustrasse com esmerada lima, senão porque havendo hoje
-menos dados á lição dos livros, e em especial d’este genero, tambem ja
-não ha criticos, senão he para as acções da vida publica e domestica; por
-onde as obras escritas podem passar a seu salvo, sem que suas pobrezas
-e vergonhas sejão vistas e apupadas na praça. Desconsolada consolação
-he esta de se poder desafinar cantando, por se cantar entre surdos:
-mas esse mal, se o he, só a mim me toca, e para o descontar me sobra
-a lembrança, de que alguns caladamente me agradeceráõ o diverti-los
-do publico espetaculo. Para estes em boa hora sáia e sai o livrinho
-fallador de campos e amores: suave appareça como a violeta sozinha
-encontrada no passeio de inverno: suave e não estranhado como o raio de
-sol por cima de campo de batalha apoz uma noite de geada; nada aproveita
-elle aos cadaveres, mas alegra e consola como esperança aos que mal
-feridos jazião, e a quem o regelado lentor das trevas coalhava o sangue,
-desesperava as dores, tranzia os ossos, e os descoroçoava da providencia.
-
-Ramalhete he de flores silvestres que a meus amigos deixo na hora do
-apartamento, que ao menos em quanto durar lhes recordará que os amei.
-Terra de Portugal e outr’ora de Portuguezes, terra namorada do mais
-formoso ceo, terra sombreada de larangeiras e murtas, acobertada de verde
-e bordada alcatifa, amorosamente abraçada do Oceano, talhada e regada de
-tão espelhados rios, terra de tanta poesia e de tanto amor, eu te deixo!
-E para que ja nunca onde quer que a fortuna me detenha, me cuides de ti
-esquecido, terra do meu Portugal lembre-te que o meu ultimo pensamento ao
-sair das tuas praias foi o da tua Primavera e o da minha Mocidade.
-
- _Lisboa: 1 de Dezembro 1836._
-
-
-
-
-PROLOGO.
-
-
-Não erão vãos os meus receios; acabo de visitar a _Primavera_, não ainda
-para lhe emendar as miudezas, mas para a conhecer por alto, e podê-la
-sentenciar no todo. Reconheci-a, mas demudada, mui outra da que a tinha
-deixado na graça, geito e amores; trocarão-ma os annos, trocando-me.
-Desama-la ainda não, mas ama-la tambem ja não! Se lhe não quero mal, he
-só porque lhe quiz muito bem, e foi minha; mas como ja me risquei de seu
-namorado, não hei de chamar-lhe formosa, que o não he, nem dissimular que
-sejão defeitos, muitos que em bom tempo ja talvez lhe tive por perfeições
-e primores. Não ha remedio, prometti-me seu juiz, passará por onde
-houvéra de passar, se de inimigo fôra. Se ella perder do seu preço, e eu
-do meu, consolemo-nos ambos d’esse pouco damno; ella por não receber de
-mim injustiça, eu com ter obedecido á consciencia, que tambem em letras a
-ha. Antes porem que entremos a contas e lhe formemos o summario, releva
-anticipar uma dúvida não leve, que se me pode pôr, e desfazer um reparo,
-que deixado a si pareceria de fôrça.
-
-He o reparo e a dúvida; que pois he o Livro inamavel por defeitos a
-seu proprio autor, não havia porque de novo o semear em público, antes
-importava pôr todos os meios para que o nunca mais vissem, nem d’elle se
-fizesse menção; que o contrario he faltar a toda a reverencia, que aos
-leitores se deve, dando-os por broncos para conhecer o máo; ou á caridade
-natural comsigo proprio, expondo-se sem fôrça de obrigação a menoscabos,
-se não injurias.
-
-Não quero responder que em dar o que ha quando ou emquanto não ha melhor,
-ja o que o faz se ha de haver por desempenhado; nem que, para reo que sem
-tratos e sôlto confessa os delitos, sempre por bom direito se usou de
-misericordia; melhores me parecem do que estes, os meus fundamentos: e
-ei-los aqui.
-
-Primeiro: que andando a _Primavera_ ja impressa e corrente por muitas
-mãos, e não podendo ser recolhê-la eu de novo, e desluzi-la da memoria
-de muitos que a bem agazalharão, melhor arbitrio he, pois que tem de
-se conservar no mundo, renascer n’elle expurgada de muitos vicios da
-primeira impressão, e se a paciencia me acudir com o preciso valor,
-retocada no que pertence ao literario.
-
-Segundo: que havendo talvez ainda, e podendo vir a haver, moços que se
-dem a poetar, acontecerá que entre os mais livros portuguezes que ás
-mãos lhes cheguem, vão de envolta os meus (assim mo promette sua boa
-fortuna, que os livros a tem como os homens, e ás vezes os mais ruins
-muito melhor do que os bons): mãos de principiantes não sabem escolher,
-os amores, amenidades e branduras da _Primavera_ cáem muito a gente moça,
-ir-se-hião traz o gosto, e beberião muitos defeitos; do que seria minha a
-culpa, se eu não procurasse agora arrancar boa parte d’elles, e contra os
-demais os não precavesse com honestas advertencias.
-
-Terceiro, finalmente: que eu pretendo antes ser bem conhecido pelo que
-fui, sou, e hei de ser, do que só pelo que sou; porque nascendo-nos o
-presente do passado, ainda que diverso, e produzindo-nos ainda que tambem
-diverso, o futuro, o sermos só conhecidos pelo que somos não he sermos
-conhecidos. He pensamento que merece ser entendido. Alexandre Dumas o
-explicará. Sem pedir venia traduzo o passo, com quanto seja longo, certo
-de que o não parecerá.
-
-—“A maior desgraça da crítica, ainda quando se não sae com ignorancias
-e velhacarias (diz elle no prologo da _Catharina Howard_) consiste em
-sentenciar uma Obra nova desmembrada do feixe literario cuja he parte:
-ahi está porque nunca se póde avaliar um livro com exacção antes da
-morte do autor; e mais ainda he preciso que Deos lhe haja concedido
-desde o primeiro até o ultimo, os dias, que para acabar seu edificio se
-lhe fazião mister; por quanto, se antes de tempo morreo, o monumento
-que traçára tem de ficar incompleto para sempre como a Sé de Colonia,
-e os homens mal justos para com elle ainda para alem da sepultura,
-lançar-lhe-hão á conta de humana fraqueza o ter-lhe ficado certo vão por
-tapar, quando a morte de invejosa e apressada lhe veio atar as mãos, e
-ja talvez para se arrematar mais não faltava que uma só pedra: ora por
-aquelle vão, he que a crítica se mette e entra, quer o autor esteja vivo,
-quer defunto.”
-
-“De trez idades se compoem a vida de quem nasceo fadado a dar de si
-produções, e em trez periodos se desparte: como couza alta e nobre que
-he, tem primeiramente sua base por onde se começa; depois um cume onde
-se chega; ultimamente la por dentro um motivo, tenção e fim particular
-para onde se torna a descer. Pelo que, he necessario que o homem tenha
-vivido todas estas trez idades e que o seu talento haja cursado estes
-trez periodos, para se poder avaliar aquelle talento no seu todo, aquelle
-homem na sua produção.”
-
-“Primeira idade, quando a fantasia prevalece á rasão. A esta idade de
-viço pertencem as horas que tão despedidas voão dos vinte e cinco aos
-trinta e cinco. He o periodo para dever inventar _Hamlet_ quem se chamar
-Shakespeare, o _Cid_ quem tiver nome de Corneille, os _Salteadores_ quem
-for Schiller.”
-
-“Segunda idade, em que a fantasia e a rasão se embalanção, ajudando-se
-mutuamente, e vindo a formar das suas duas uma só força neutra. A esta
-idade vigorosa pertencem os dias que vão correndo dos trinta e cinco aos
-quarenta e cinco. He o periodo em que os mesmos trez sujeitos produzem _O
-Rei Lear_, _Cinna_, _Wallenstein_.”
-
-“Terceira idade, em que a rasão prevalece á imaginação. A esta idade de
-reflexão pertencem os annos que descem dos quarenta e cinco aos cincoenta
-e cinco. He o periodo em que elles compoem _Ricardo III_, _Polyeuctes_,
-_Guilherme Tell_.”
-
-“Ora pergunto, ficarião completos Schiller sem _Wallenstein_ e _Guilherme
-Tell_, Corneille sem _Cinna_ e _Polyeuctes_, e Shakespeare sem _O Rei
-Lear_ e _Ricardo III_?”
-
-“Parece-me portanto que nunca devêra a crítica requerer de um poeta,
-senão as obras de sua idade; e bem sabemos nós como o faz ella sempre
-ao revez, sendo as obras que mais se empenha em querer extorquir de um
-engenho as dos annos que ainda não vingou, ou as dos outros annos que ja
-deixou transpostos. Pelo que toca a uma obra que vem condizendo com o
-periodo d’onde dimana, nunca a impertinencia dos juizes a dá por cabal:
-são uns Aristarchos sem paciencia, que acodem logo com a crítica a cada
-pedra de per si, ao passo que ainda se está guindando, sem advertirem
-que aquella pedra só assente e junta com as outras pedras he que ha de
-dar prova da traça e desenho geral do architéto: são como uns pomareiros
-esquipaticos, que não tomando em conta o inalteravel fio das quadras do
-anno, pedem fruta madura á primavera, frutos verdes ao verão, e ao outono
-flores.”—
-
-Bem haja Alexandre Dumas, que tão artificiosa e claramente me decifrou, e
-me ajudou a pôr em limpo uma verdade, cujos ares muito ha que eu tomava
-de longe; uma verdade que eu andava adivinhando como por entre nevoas.
-
-Ora pois, dos trez apontados motivos de determinação, foi este ultimo o
-de maior momento: quiz dar completo o meu retrato, menos o intellectual
-do que o moral, a quem desejasse conhecer-me: não podia omittir como
-feição o que eu havia sido, e ainda antes d’aquella primeira idade, que
-dos vinte e cinco decorre até os trinta e cinco annos. A _Primavera_,
-escrita aos vinte e dois, tinha por tanto de entrar encorporada na
-collecção das minhas Obras. Se a refundisse pelo meu gôsto de hoje
-em dia, não sei se ficára melhor, mas sei que ficára outra, e por
-conseguinte falsa como feição. Tudo quanto era seu geito, seu pensar,
-seu ser proprio passará intato; e n’isso, se se hão de perdoar gabos
-a quem sem disfarces nem dó se disciplina deante do Povo por peccados
-poeticos, n’isso digo, alguma couza ha de bom, sem o que não tivera
-agradado a tanta gente. O por onde a lima pode e deve correr afoita e sem
-dó, são—_as numerosas faltas de boa falla portugueza—desleixo de frase—e
-estiramento de períodos_.
-
-Quero-me explicar, não para os Mestres, sim para os novéis no officio
-de escrever, com os quaes particularmente converso nos meus prologos;
-e porque não havia eu repartir do fruto de minha tanta ou quanta
-experiencia com quem não a póde ainda ter, nem suppri-la com seguir
-cursos de Bellas-letras que entre nós se não ensinão? Um dos maiores
-delitos literarios, e em que mais usualmente cáem os moços, he o
-_desprezo de lingua e corréção_; delito que per si basta para descontar
-muitos meritos intrinsecos de escritura. Sem bem saber sua lingua, diz
-Boileau, o autor mais divino nunca passará, por muito que faça, de máo
-escritor. He ella a ferramenta para este genero de lavor da alma; e quem
-poem as mãos na obra sem primeiro ajuntar, conhecer, escolher e apontar
-bem os instrumentos de que se ha de valer, nem se pode mostrar bom
-artífice, nem merecer desculpa de o não ser.
-
-Toda a Musa em creança padece dispepsia de versos, diabetes disséra quem
-se menos prezára de cortez com Divindades. Na primeira idade he costume,
-e por muitas rasões, das quaes não será a mais fraca a aversão ao
-trabalho, presumir-se antes de facilidade e presteza no escrever, do que
-de corréção e primor: coração e fantasia tudo anda ligeiro, querem que a
-penna lhes obedeça, como se ella podesse; forção-na, e dahi resulta que
-pensamento ou afféto que lá dentro era soberbo, apparece cá fora frio,
-mesquinho, desengraçado; e maravilha-se o escrevedor quando a mesma couza
-que valentemente o agitava, em quanto em si a revolvia, depois de passada
-para o papel adormenta os ouvintes, e a elle proprio o desconsola. De
-todos os defeitos de autor, talvez se podesse affirmar que só este he
-verdadeiro, real e absoluto defeito; porque, se os pensamentos e affetos
-de cada idade são della, e dessoão e descontentão a todas as outras, tem
-por si o serem d’ella, e como taes se defendem por conterem verdade e
-pintarem o homem; não assim a lingua, que em todas as idades he ou deve
-ser uma, não provando outra couza o faltar-se a ella, senão que se quer
-fallar antes de se ter aprendido. Sou experimentado, e por bem do proximo
-direi com vergonha minha, que no que me ficou escrito d’essa quasi
-infancia poetica, as couzas nem me espantão nem me offendem, ainda quando
-as desapprovo, mas a linguagem e o dizer me fazem de continuo caír as
-faces; e por isso que he escolho em que naufraguei tão desastradamente,
-o assignalo com tanta miudeza e teima; nem cançarei de o assignalar e
-accender-lhe em cima boa luz de farol, em quanto vir, como vejo, outros,
-que nem por idade se absolvem, esbarrar n’elle e perder-se a todas as
-horas. Mancebos, (se os ha ahi que se dem ás letras) vós que encetaes a
-mui ardua e perigosa vereda que pelas letras conduz á fama, seja qual
-fôr o genero de poesia para onde propendais, seja qual fôr o vosso não
-vulgar engenho, sejão quaes forem os louvores que os velhos na arte vos
-concedão, e os applausos com que as sociedades vos afoutem, não vos deis
-pressa de apparecer: os conselhos que Horacio vos deu, durão com toda a
-fôrça que a natureza e a pratica lhe bafejarão. Deve-se compor de espaço,
-consultar os bons e peritos, guardar por nove annos, chamar, e tornar a
-chamar dez vezes á unha a obra ja perfeita. O amor proprio nos persuade
-e impelle a apparecermos cedo, devia elle, se não fôra cego, ter-nos mão
-para nos não sairmos senão a horas;
-
- _A melhor fruta colhe-se mais tarde._
-
- (_F. R. Lobo._)
-
-Muito mais vale começar jornada com dia claro, do que, para adeantar
-horas, largar a pouzada pelo escuro da noite, em que os tropeços são
-faceis, perigosas as quedas, e quasi certo o extravio, que a final
-lançadas as contas nos farão chegar mais tarde e menos gostosos ao lugar
-que demandâmos. Repetirei, porque nunca o repeti-lo será de sóbra, o
-que ja por semelhante occasião disse em outro meu livrinho, contra
-esta enfermidade que se tornou praga, e nos traz a todos lastimosamente
-gafados; não ha mais remedio senão soccorrermo-nos aos livros mestres
-de nossa lingua. A aversão que vós outros, gente moça, lhes tendes, bem
-sei d’onde nasce, que tambem eu por ahi passei: correm para vós como
-rio caudal os livros d’essa França, todos especiosos e doirados, todos
-galhardos e louçãos, arrebicados e argutos no dizer, promettedores de
-maravilhas nos titulos e indices, conversando comvosco paixões fortes
-e brandos affetos, uns vomitando republica por todas as folhas, outros
-por todos os poros exhalando commodissima incredulidade, e todos á uma
-embebidos do presente, afinados pelo vosso ponto, e se o posso dizer,
-mancebos como vós mesmos. Não ja assim os nossos patrios autores: estes
-não vos sáem ao caminho; pouzão, antes jazem, pela escuridão êrma das
-bibliothecas, mal envoltos na grosseira capa de seu tempo, enterrados
-no pó, meio devorados dos bichos; se os olhais por fóra, parece-vos que
-a vida vos não daria para um só volume: se os consultais por dentro ja
-os titulos vos não namorão, os indices vos descoroçoão: folheai-los por
-alto, vem os milagres incriveis, a historia encarecida ou chã, a poesia
-enleada e escura, o estilo incorreto e desflorido, o amor grave e sizudo,
-os costumes castos, a moral severa, a fé religiosa e inconcussa: cada
-pagina na sua simplicidade apregoa Deos, revem por cada poro o cheiro
-do mundo velho: mas esforçai, affazei-vos por alguns dias a soffrê-los
-e comsenti-los; continuá-los-heis sem tedio, logo com gôsto, com ancia,
-reconhecendo a final quanto as primeiras mostras vos havião mentido, como
-pelo meio e fundo d’aquelle enganoso dissabor andavão sumidas galas,
-joias, riquezas, maravilhas, que vos enchem os olhos, vos cativão a
-vontade, e fazem que vos peze do tempo que os não conhecestes. Assaz nos
-divertimos do caminho, rasão he que a elle nos tornemos.
-
-O segundo defeito geral que me occorreo n’esta leitura, foi o que eu
-chamei _desleixo de frase_. He este muito menos grave que a impureza da
-lingua, sendo-o todavia assaz que mereça quanta reformação lhe eu possa
-fazer. Quando quem não cura da pureza de sua lingua, cura ao menos de
-lhe não deitar remendo de panno estranho ou novo que não seja vistoso
-e garrido, quando o que se não preza de dizer limpa e castamente, ao
-menos timbra no exprimir com viveza não vulgar, com certo matiz, com
-certa novidade, algum passo mais se lhe póde conceder. Procurei se ao
-menos teria eu posto algum pouco d’isto, e achei um desconsolado não. A
-locução não me pareceo tão poeticameme figurada como convinha em poesia,
-ainda pastoril; os epíthetos erão tão sem succo e bastos como a caruma no
-mato. Uma e outra couza requerião, em quem as quizesse bem emendar, muita
-paciencia, e muitissima mais da que eu tenho. De ambas, mormente dos
-epíthetos, procurarei limpar a maior; todos não he possivel: tanto e por
-tal geito estão com toda a Obra cozidos e enraizados, que lhes vale o que
-ás ervas parasítas em parede velha mas necessaria; foução-se-lhe algumas
-demazias, perdoa-se ao resto, com o medo que em faltando, se esboroe a
-parede, e venha ao chão toda delida.
-
-Tambem me queixei de _estiramento de períodos_. He defeito portuguez,
-peninsular, meridional. Dava-me agora na vontade tornar a culpa ao
-sol, que n’estas suas terras faz que tudo se desaperte, e derrame, e
-desate em viço e sobejidão: mas fiquem esses milagres do sol para os
-esquadrinhadores metafisicos, a quem inda assim, não quero mal; e eu,
-melhor que a nenhuma outra causa, lançarei aquella minha diffusão ás
-costas dos annos em que escrevia, com o que sempre fico de bom partido,
-por das minhas a tirar. O que he grandemente verdade, he ser este defeito
-para muitissimos leitores, principalmente mancebos ou hospedes nas regras
-de escrever, virtude, e a virtude contrária vicio. Saírão a _Noite do
-Castello_ e _Ciumes do Bardo_ muito mais contraídos e apanhados em couzas
-e palavras, do que estes Poemettos e as _Cartas de Echo_: pois comtudo
-muitos houve e ha, que por isso mesmo ficárão preferindo aos novos os
-antigos e até velhos opusculos. A cada hora me diz um que me torne ao
-meu primeiro caminho; outro que não desampare o novo: uns, que estas
-ultimas obras se não lem senão de escaço numero; outros que as passadas
-não occupão meia hora os olhos dos homens graves e bons juizes. Oh!
-quem reconheceo nunca a verdade da fabula do velho, do rapaz e do burro
-como o triste, que para expiação talvez d’algum grande peccado, entrega
-e desampara a público os partos do seu tinteiro! Pois que não póde
-ser contentar a todos, ir-me-hei como e por onde o meu juizo, gôsto e
-natureza me levarem.
-
-A poesia substancial e severamente escrupulosa, he o mais das vezes
-descontada por uma certa desharmonia: a muita harmonia, ainda quando mais
-apoucada de ideas, ja entretem suavemente: qualquer leitor se entende
-com taes escritos, ninguem com elles se cança; são um genero de musica
-facil, que ainda quando não exprime affetos, se ouve com gosto; são
-como um deslizar de barco por uma agoa mansa: por isto he que os livros
-do _Porto_ e _Tristezas_ de Ovidio se lem de um cabo a outro com muita
-deleitação.—_Inter utrumque_: nem tanto apêrto como Almeno na chamada
-tradução de Ovidio; nem tanta soltura como o seu amigo, e outr’ora meu
-mestre, Elpino Duriense[4] nas poesias originaes; nem tanto pospor a
-harmonia e clareza á brevidade como Filinto; nem tanto sacrificar o
-entendimento ao ouvido como Elmano. Isto foi o que me pareceo lograr
-na _Noite do Castello_, e _Ciumes do Bardo_, e não me arrependo se por
-ventura o consegui.
-
-Tanto não, mas alguma couza d’isto fôra o que eu quizera na _Primavera_:
-alguma couza, para poder com ella reconciliar os severos; tudo não, por
-não dessimilhar em demazia esta parte do retrato.
-
-Até aqui descubrimos defeitos que importa emendar, agora os vamos ver
-do outro genero, em que me não he licito bolir, por serem essencia do
-livro: erão aquelles no tocante á lingua, estilo, e metro, que ainda que
-importantes, não passão de accidentes da obra; estes são da alma, vida, e
-pensamento da mesma obra. Entremos pelo descritivo (não será portugueza
-a voz, mas o uso e necessidade lhe valeráõ.) Descritivos se chamão em
-geral todos os poemas deste genero, e como a taes, parece que tudo quanto
-for pintar dentro do quadro do seu painel, lhes compete e convem. Não
-he comtudo bem assim, porque as descrições, por mui formosa e naturaes
-que se ostentem, tambem canção a imaginativa de quem lê, quando umas
-ás outras se vem succedendo perennemente e sem um bom entremeio de
-narração, ou outro valente interesse, que por um modo verosimil as reuna,
-separando-as ao mesmo tempo, para que se não confundão, nem se afrontem,
-nem esmoreção. Não o advertio Delílle, e d’ahi procedeo não bastar seu
-altissimo engenho para livrar seus poemas de enfadosos. Ora este livro
-he quasi um embrechado massiço de descrições; e assim, se o posso dizer,
-mais para ou olhos da alma do que para o seu entendimento. Mas serão ao
-menos estas pinturas, consideradas uma por uma, de algum preço por fineza
-de tintas, ou pontualidade de desenho? autos são em que me não compete
-dar sentença. O Padre Kinsey, ou o Portuguez que em seu nome escreveo,
-disse que eu não pintava bem a natureza; talvez que outro tanto, e
-ainda peór, se devesse dizer da mór parte de nossos poetas; mas não he
-contra elles, senão contra mim só que eu enfeixei varas no princípio
-d’este prologo: como os applicados noviços se não enganem comigo por
-minha culpa, que se desvairem e percão com os outros, paciencia! Aqui
-está comtudo o que me parece; este descritivo he desbotado e de côres
-pouco vivas e proprias se com o de Gessner ou Kleist se compara, mas
-he o melhor que eu soube; eu que nem podia ir-me pelos campos fazendo,
-como de si dizia Kleist, caçadas poeticas de imagens, nem discorrê-los
-como Gessner, de lapis na mão. Ja póde ser que o Padre Kinsey, ou o seu
-ponto, não houvessem de se me avantajar muito, se lhes coubesse tirar ás
-escuras, ou quasi, o retrato da natureza: muito mais faz quem atravessa o
-Tejo a nado, do que hum Almirante Inglez que em segura e bem apercebida
-náo rodêa a esfera; poderá este trazer mais riquezas e informações, mas á
-fé que não prova mais fôrças e esfôrço que o desconhecido nadador de uma
-só corrente.
-
-Passemos ávante, e das descrições entremos nos affetos. N’esta parte
-direi pouco, porque sem embargo de que o desabrimento com que me castigo
-onde entendo merecê-lo, me podia deixar alguma licença para tambem me
-louvar pelo que em mim visse de bom, melhor he que nos louvores, em que
-mais facilmente nos podêmos enganar, nos contentemos de ser ouvintes.
-Ainda assim, não acabo eu de dizer tão pouco, que muito bem se não
-entenda ja que no tocante a affetos não quero muito mal á minha Obra:
-fallo dos affetos em geral, porque passos ha n’ella a cujo affeto não sei
-ja hoje querer mal nem bem; honesto, formoso, e macio me parece, sei que
-n’esse tempo devia ser meu, porque eu não compunha, tirava do coração,
-mas ja o não posso entender cabalmente, e avaliar. Esses passos, apezar
-de tudo e de mim, hão de passar intatos, que em assunto de branduras o
-eu de hoje respeita religiosamente ao eu de algum dia; e porque tudo
-diga, ainda que quizera emendar, não saberia. Sim me inclino a que haverá
-(e ja de alguns m’o boquejarão) excesso, redundancia, languidez em
-tantas suavidades, caricias e extremos de bem querer a tudo, e a todos.
-Inclino-me e talvez o creio: mas que havia de cortar? a que havia de
-perdoar, se assim como o eu antigo valia tanto mais que o eu presente,
-póde ser que o melhor se me figurasse agora peór, e o peór melhor?
-
-Digamos duas palavras da Mithologia. Ja não sou tão emperrado pagão como
-n’outro tempo; desconsola-me ver o desmedido uso que d’ella fiz. Não se
-entenda por isto que me alistasse debaixo das bandeiras triunfaes dos
-modernos espanca-numes, nem que tiro vãgloria de botar pelo mundo pregáõ,
-como Beranger, que os Deuzes ja saírão do meu credo. Todo o excesso
-em crer ou não crer, em admittir, ou recusar me parece hoje em dia um
-disparate, de que sempre, mais por aqui mais por ali, vem a resultar
-contras e arrependimentos. Enjoa-me a fabula dos Lusiadas, e muita, e
-muita, e muita outra: aborrece-me quasi todo o emprego que dos Romanos
-para cá se tem feito d’ella, _incredulus odi_. Só consinto na fabula
-parca, explicavel, e só a amo quando soberbamente poetada. Alumiarei
-com um exemplo: quero-a assim como a derrama ás mãos chêas por suas tão
-poeticas prozas o christianissimo Chateaubriand, esse mesmo que de longe
-visto, assim parece guerrea-la. Nada d’isto acho eu pelo commum no meu
-livro: de cada canto me surde uma Divindade; a boa parte d’ellas não
-responde verdade, e se alguma couza ahi vierão fazer, certo que não foi
-inspirar-me um só rasgo poetico. Porque pois as deixarei? porque não
-substancia do livro, e n’elle tem posse velha e apozentadoria.
-
-Dêmos a derradeira parte do prologo, que em prologos deve ser sempre
-esta a de vantagem, a algum poucachinho dizer sobre a moral. Moral
-hoje, moral em livro de poeta, grande novidade e grande estranheza! Sim
-hoje, que ainda ha muito quem se preze de viver honesto, virtuoso e
-pela antiga: sim em livro de poeta, e por isso mesmo; visto como tudo
-quanto era contra ella o tem a proza a si tomado, não será muito que lhe
-abra sua porta a poesia, e lhe dê guarida em um pobre cantinho térreo
-de sua pousada, como he este: inda mal, que até cá, no fundo de tamanha
-escuridão e penuria, por todas as fendas e agulheiros do mal reparado
-edificio poetico lhe chegaráõ as risadas sem alma nem sal de seus
-inimigos, e contra essas não ha valer-lhe. Ha pois do titulo d’este livro
-a dentro, dado se não prometta senão primavera, um como ar de bondade e
-saude para o animo, de socego e bemaventurança para a vida: e por isso
-he que, a despeito da todas suas manchas, me parece bem, como ja no
-Ante-Prologo deixei tocado, atira-lo, como sementinha de erva medicinal,
-ao baldio sáfaro e corruto d’esta idade. Bem estou eu antevendo quantos
-de mim hão de haver lástima, por me assentar no meio de tão ferida e
-accesa batalha, por cantar entre tantas vozerias de odios. Paciencia!
-tambem sei que homem sentado não sóbe, nem a trôco de cantigas se comprão
-riquezas e valimentos: mas cada qual tem sua estrella, e a minha, que
-outra vez descobrio depois de largo eclipse, esta foi, e esta ha de ser;
-oxalá que para sempre! Com o bom de Archimedes me pareço n’isto, o qual
-na hora que a cidade estava sendo entrada do inimigo, e alagada das
-torrentes de ferro e fogo, nem tinha ouvidos para o estrondo, nem deixava
-de proseguir na composição da lustrosissima esfera celeste, unicos amores
-que no canto calado de sua casa o desvelavão. Havia ahi uma não sei que
-magnanimidade; e a ninguem deixa de doer a cutilada do soldado feroz que
-despede tal cabeça para cima de tal obra. Mas quando me ólho, e me vejo
-a brincar com flores e cordeiros, ao tempo que em redor de mim estão no
-chôco tão grandes destinos do mundo, não me lastimo, porem rio-me, e
-cuido estar vendo em mim proprio um menino, que por um dia de tempestade,
-enthesoura conchas e forma lagoazinhas na praia, emquanto andão á vista
-galeões alterosos á luta com os elementos, e na mesma praia uns pasmão,
-outros se aterrão, outros suspirão pelo instante do naufragio para se
-arremessarem aos despojos, apenas o mar os cuspir.—Fugindo me hião agora
-outra vez os pés pela antiga ladeira abaixo: e a moral, esquecida até
-por quem lhe deo couto! Com ella sou, e com ella determino acabar.
-
-He a moral na maior parte d’estes poemas pura, facil e amavel; e se não
-tão efficaz como a de Gessner, não he porque o eu dezejasse menos, he
-porque podia menos atavia-la, e aformozea-la do que elle, e atavios e
-formozuras até servem para fazer do bom optimo. Todos os amores de que
-se urde e tece a domestica felicidade, se achão aqui representados por
-um modo que se recommendão, e d’elles se imbue de mui bom grado o animo;
-o amor filial, o paterno, o materno, o conjugal, a amizade, até o affeto
-aos animaes, arvores, flores, e mais creaturas de Deos, companheiras
-nossas n’este mundo, aqui vem de envolta com a recreação. Porque tudo
-diga, pelo gostador ou gostadora d’este livro daria eu mais, e mais
-quizera viver com elle debaixo do mesmo telhado, e tratar quer negocios
-quer passatempos, do que, se dizê-lo ouro, com gostadores e pregoadores
-d’outros livros que estamos vendo rebentar de muito mais avultados
-engenhos. Se eu tivesse filhos e filhas a quem dar criação, sei que
-emquanto não podessem ler Gessner, e seus bons imitadores estrangeiros,
-lhes daria a _Primavera_; e ja não digo o mesmo das _Cartas de Echo_, e
-muito menos da _Noite do Castello_, e _Ciumes do Bardo_. Mas, acudirá
-algum prudente, couzas se deparão na _Primavera_ que mais são para ser
-defendidas a donzellas, e resguardadas de fantasias ainda verdes, do que
-para se aconselharem por doutrina. Sim as ha, e todas essas paginas que
-para idades encorpadas e apercebidas de experiencia bem podem não ser
-damnosas e parar em mero deleite, todas rasgára e déra ao fogo antes de
-lhes entregar a obra para lição: e porei exemplos; na _Festa de Maio_,
-os fins dos episodios de Galatea e Ignez de Castro, no mesmo poema boa
-parte da republica de Chipre, como o culto religioso da Natureza, os
-bens em communidade, a nudez, o divorcio, o cazamento de um com muitas
-_et cetera_. Antes de passar adeante, trasladarei, que alguma couza fará
-para aqui, parte de uma Nota que ácerca da republica de Chipre se lia na
-primeira edição, a pag. 169.
-
-—“Note-se que este poema está muito longe de dever ser considerado como
-didático; que toda esta republica de Chipre he meramente um Dithirambo,
-aonde a licença do poeta he muito mais ampla do que em outro qualquer
-genero de poesia; que esta sociedade de que se ha de formar a republica,
-he de poetas, homens de quem vulgarmente se diz que mais dão ao prazer do
-que á rasão; e que em boca de poeta se poem a arenga recitada no templo.
-Para os avisados escusada fôra a nota, mas para os fanaticos, que ignorão
-ter a Musa do Dithirambo licença para nos seus delirios arremetter contra
-tudo, he indispensavel.”
-
-Era este arrasondo o melhor que o caso admittia, porem melhor houvéra
-sido não carecer d’elle; e se ainda por elle se pode perdoar á republica
-de Chipre, não assim ás demais desenvolturas, como as dos dois ja
-apontados episodios. Porque as puz umas e outras? vá mais penitencia. Puz
-as pinturas amorosas em quasi nudez, porque estava n’aquella sazão da
-vida e do anno, em que todos nos deliciamos nas fantasias sensuaes, e se
-somos poetas, cuidamos morrer abrazados e afrontados em não desabafando.
-Porque não expurguei d’ellas esta segunda edição? pelo mesmo motivo do
-retrato, e não outro. Quanto ao culto da Natureza, e á gente nua, e aos
-maridos de muitas mulheres, são necedades taes, que não merecem que
-nos detenhâmos em as refutar: são d’aquellas demencias, cujo aggregado
-dá o que entre moços que esfolheão livrinhos bem doirados e térsos, se
-denomina filosofia, e que só dura emquanto a experiencia e o tempo nos
-não desmamão da presunção; pelo que, e pela rasão geral, ja muitas vezes
-apontada, de querer mostrar-me qual fui, vivão, durem e passem, que
-depois d’isto ja a ninguem farão mal.
-
-Eis aqui por alto, mas com toda a lealdade, o juizo que da _Primavera_
-formei; he primavera por matos de serra, com mais flores do que graças,
-com mais ares saudaveis do que ervas medicinaes, mui tibia de fragrancias
-mimosas, mui nua em muita parte de terreno, mas com seus longes de campos
-e cazaes felizes, e muitas saudades lá pelos extremos confusos do seu
-horizonte. Quem se d’estas cousas contenta, fico se recreie com ella;
-e quem com ella se recrear, para amigo o quero, que esse saberá, como
-eu, amar muito os homens, fugindo-os; e enfadado, como eu, das terras
-onde não ha ver passaros senão em gaiola, nem verdura fóra de gigas,
-nem arvoredo que não seja pintado, nem pastores e innocencia senão na
-opera e trajados de seda e veludo, nem felicidade senão em promessas de
-políticos, irá procurar-se, achar-se, e lograr-se de Deos, de si, e dos
-penhores de sua alma no seio e entranhas da vida campestre. Oh, se assim
-fosse!... e se Deos a um tal me désse ainda por vizinho!...
-
- _Lisboa 4 de Dezembro de 1836._
-
-
-
-
-_Post Scriptum._
-
-
-_Lisboa 29 de Março de 1837._
-
-Quando todo estava no trabalho de desempenhar minha palavra, e fazer
-ainda mais do que no Prologo deixára promettido, revendo cuidadosamente,
-afeiçoando, podando e enxertando de novo este volume, sobreveio-me aos
-2 de Fevereiro passado, o maior infortunio de minha vida, uma perda de
-que em nenhum tempo se me poderá o coração consolar. Quebrarão-se-me
-as forças para continuar no trabalho, bem como se esvairão muitos,
-antes todos, meus projetos. Ja não arrancarei (e para que?) este pouco
-e inutil resto de mim mesmo da terra que encobre a minha melhor metade:
-aqui procurarei, se tanto podér ainda, pagar com uma pouca fama e muitas
-lagrimas, a quem a mim me deo até á sua ultima hora seus olhos, seu amor,
-toda sua alma. Qual ficou este livro tal sae, e muito inferior ao que eu
-promettia, podia e devia fazer. Se algum de meus leitores entende por
-experiencia o que seja padecer n’uma viuvez uma completa orfandade, esse
-passará com indulgencia, e ainda suspirando, pelos muitos defeitos que
-na leitura lhe occorrerem. Aos sem alma não tenho que dizer: se quizerem
-castigar o espirito meio morto, porque não pôde mais, fação-no, que dôres
-d’essas não acharáõ ja em mim lugar nenhum.
-
-
-
-
-EPISTOLA Á PRIMAVERA
-
-
-_Vai a Epistola em tudo outra da que fôra na primeira Edição: conserva
-a invenção e os pensamentos, mas emendou-se a linguagem, apertou-se o
-estilo, deu-se alguma côr mais ás imagens, explicarão-se melhor alguns
-pensamentos, reformarão-se e afinarão-se quasi todos os versos._
-
-
-
-
-DEDICATORIA A MINHA IRMÃ.
-
-
-_Eu mandei o meu Genio campestre apanhar flores por entre os gelos do
-inverno. Formosas não saírão, bem o sei, porem n’esta estação do anno não
-mas dá melhores o estreito jardimzinho que me as Musas doarão nas fraldas
-do Parnaso. A ti, minha Irmã, me ordena o coração que as offereça.
-Felicidade será para mim, se quando para o teu lado me tornar, tu me
-disseres abraçando-me:—“Eu amo as flores que tu me enviaste, no meu seio
-as guardo: as da primavera menos me contentão do que estas, que o teu
-Genio campestre colhe no teu jardim, por entre os gelos do inverno.”_
-
-
-
-
-DUAS PALAVRAS DE INTRODUÇÃO
-
-
-Fôra o inverno de 1821 para 22 dos mais desabridos e temerosos de que
-entre os vivos se faz memoria. Na Beira, onde me então achava, vião-se
-arrancados e espedaçados bosques, olivaes e pomares, sementeiras
-afogadas, pontes demolidas, e os rios sem margens. Dos 25 de Dezembro
-até os 9 de Janeiro, que me demorei em uma aldeinha, uma legua desviada
-de Coimbra, saboreando no trato cordeal de alguns amigos e parentes
-as férias, então mui festivas, de meus estudos, foi sempre tão atada
-e rigorosa a porfia das invernadas, que nos falseou quasi de todo a
-recreação mais apetecida dos que fartos da cidade, vão alguma hora ao
-campo desenfadar-se. De não passear nos vingavamos o melhor que o tempo
-e lugar no-lo consentião: práticas desaffrontadas de constrangimento,
-temperadas de bom sal, e muitas vezes substanciaes; a voltas d’ellas,
-leituras accommodadas ao mais dos gostos, poesia, e improvisos de
-_charadas_ e adivinhações nos enchião as horas não contadas. As
-espaçosas noites e boa parte dos dias, se levavão n’estes e semelhantes
-passatempos, em de redor de uma farta fogueira, segundo he costume
-d’aquellas terras. Por alguma rara tarde, quando o sol descobria, e o ar
-um pouco mitigado nos consentia saír, nos hiamos, ora pelo jardim onde
-se explanava um soberbo lago, outr’ora pela orla mais assoalhada dos
-laranjaes, que mui corpulentos e viçosos, acenavão de seus ramos com
-frutos e flores, pondo a vista, o cheiro e o gôsto em doce competencia
-de delicias. Era ainda aquillo, ou ja era, umas lembranças, uns longes
-de primavera no coração do inverno, saíamos da prisão dos lares,
-aproveitavão-se com sofreguidão: talvez nenhum dia de perfeita primavera
-na longa cadêa d’elles me pareceo nunca melhor e mais ledo, do que estas
-pobres tardes sonegadas ao mez do Natal. A fantasia enganada do sol, toda
-se me desatava em poeticas flores, o que n’esses tempos só por maravilha
-me acontecia fóra da primavera, e luares do verão. Quando vinha a noite,
-acceita ao meu coração, (que sempre de si o conheci, não sei porque,
-amigo de com ella suspirar saudades), e ja todos ao conchego do nosso
-lume fiel nos tornavamos alvoraçados, comigo só me hia pouzar a um canto,
-colhendo, concertando e accrescentando com mui entranhado contentamento,
-quantas florinhas me havia brotado a fantasia. De saudades da primavera
-me parece ainda agora que nascião todas; o que certo sei, he que ahi, e
-n’um imaginar d’estes meus, me veio a lembrança e desejo de escrever á
-Primavera uma Epistola. Se n’isto abusei ou não da licença tão concedida
-a poetas, não o sei; sei que no ditar estes versos para se escreverem, e
-no conceber-lhes o assunto a passear ou a seroar, gozei prazeres que ja a
-crítica me não póde tirar. Se contra o bom juizo pequei, todo o meu pezar
-he não poder outra vez peccar pelo mesmo modo, nem outra vez namorar-me
-da Primavera: os annos que a trazem ás arvores no-la levão a nós, e ja la
-vão quinze, (quinze annos!) sôbre o tempo em que eu brincava com estas
-innocencias.
-
- _Lisboa: 9 de Dezembro de 1836._
-
-
-
-
-EPISTOLA
-
-_Á PRIMAVERA_.
-
-
- Corre a Noite, jaz muda a natureza;
- Os campos solitarios esmorecem;
- Mal se ouve ao longe o estrondo da corrente:
- De quando em quando a lua desmaiada
- Mergulha em nuvens, surde, outra vez morre;
- E das planicies a extensão geosa
- Ora resae e alveja, ora se apaga.
-
- N’esta cabana de grosseiros troncos,
- Tecido vime e colmo, onde sereno,
- Vento, e cuidados não coárão nunca,
- N’esta onde habita perennal fogueira,
- E onde he Penate o Genio da hospedagem,
- Venho entre amigos deslembrar tristezas:
- Do frio lá de fóra o ultimo resto
- Ja o atirei á chama tragadora.
- Em ti, Amores meus, em ti só fallo
- Ó Primavera minha; em ti só cuido;
- A ti quero escrever: inda ha bem pouco
- Em meu passeio a flor das larangeiras,
- E do sol que hia a pôr-se o extremo raio,
- Cá me derão de ti saudades tristes.
-
- Desde que ao scetro do raivoso Junho
- Tu doce com teus Zéfiros fugiste,
- Meu dia estendo em languidos suspiros.
- A noite em vagos sonhos me afigura
- Ver-te, cantar-te, desfrutar teus mimos:
- Mal desponta a manhã, mal foge o sono,
- Desespero-me, lido entre amarguras;
- Peço aos bosques sem folha, aos ermos campos,
- Aos rochedos de neve, ás turvas fontes,
- Ao ceo toldado, aos ares tempestosos,
- E a toda a natureza, a minha Amada.
-
- “Primavera, onde estás?” do outeiro exclamo;
- De valle em valle, de um cabêço em outro,
- “Primavera, onde estás?” responde o echo:
- No prado o guardador, no monte o Fauno,
- Pelo arvoredo as Dríades á escuta,
- “Primavera, onde estás?” depois exclamão.
- Emquanto assim fiel, por ti ó Deosa
- Me desentranho em ais, onde te escondes,
- Perguiçosa gentil? onde vagueas
- Bella inconstante que estes ais não ouves?
- Algum Deos namorado, em plaga estranha,
- Encheria de amor teus olhos livres?
- Esquecer-te-hião, (Ceos!) promessas tantas?
- Sim: que te importa o definhar de um vate?
- Do vate que te amou, te adora ausente?
- Tu folgas e elle gema; elle delire,
- Tu a prados sorris vestindo prados,
- Revês-te, amante nova, em novas flores:
- Fontes ha tambem lá, que importão éstas?
- De fonte ao claro espelho te engrinaldas;
- E ufana de encantar sensiveis peitos,
- Tambem, como entre nós, por lá dardejas
- Fogo de amor aos entes insensiveis.
-
- Volta, volta, ó cruel, aos campos nossos.
- Qual paiz no universo, a não ser Pafos,
- He mais digno de ti? ¿por onde achaste
- Para o cortejo teu, Ninfas, pastoras,
- Como éstas que entre a murta o ceo nos cria?
- Amantes mais fieis? florestas, rios
- Namorar-se, mais frescas, mais formosos?
- Mais doces flautas quando amor entoão,
- Aves mais doces quando amor gorgêão?
- ¿A tua Cintra, Elisio dos desejos,
- Nobre jardim do Oceano, onde folgavas
- Contemplar na alta noite em mista dança
- Ninfas das ondas, Ninfas das florestas,
- Assim te descaío? ja não proteges
- Os córos virginaes que ali passêão
- Sorrindo ao ver seu nome em bosque e bosque?
- ¿Por toda a parte as Graças que espairecem;
- Do aligero esquadrão travêssos brincos,
- Frechas doiradas em contínuo vôo
- Aqui e ali aos peitos descuidados,
- E se errão corações, ferindo os bosques,
- Porque os bosques ali tambem suspirão,
- Tudo pois te esqueceo? Volve, ó Querida;
- Cede, não sejas dura, a amor, aos versos.
-
- Desde que te ausentaste ahi pende a lira
- Nos braços nus de um álamo sem folhas,
- A minha lira ao vento abandonada!
- A lira d’oiro, onde entoei teu Nome,
- Onde a minha paixão soou mil vezes
- Na linguagem dos ceos a teus ouvidos,
- Ei-la sem honra; os ventos lhe roubárão
- Dos antigos festões o escaço resto!
- Ao passar com seu gado, e vendo-a muda,
- Diz suspirando a turba dos pastores:
- “E’sta a que dava alento ás nossas festas:
- Mal haja quem a trouxe a tal desterro!”
- Dríades ternas, que meu canto ouvião
- Não talvez sem prazer, dizem passando:
- “O vate emmudeceo longe da Amada!”
- Mas apenas teus Silfos precursores,
- C’roados de violetas assomarem
- Na ethérea região de nossos climas;
- Apenas este ceo pezado e turvo
- Mandar á terra os ultimos chuveiros;
- Apenas rebentando as novas folhas
- Se remoçar esse álamo tristonho,
- E entre a nova ramage, emtorno á lira,
- Cançada de seguir-te andar pouzando
- A rolinha estrangeira, e sócia tua,
- Á lira despirei do inverno o musgo;
- E n’ella, de aureas cordas melhorada,
- Só de ti chêo, na presença tua,
- Brotarei versos, como brotas flores.
-
- Oh voa, acode a consolar Cibele,
- Cibele a térrea mãi da especie humana,
- Cibele, amores teus, qual tu Deidade!
- Se ora a visses! ... do carro verdejante
- Os rebeldes tufões a derrubarão:
- Co’a trança descomposta, o manto em rios,
- A altiva c’roa em parte destruida,
- Nua jaz á vergonha, ao vento, á neve.
- Seu tanto desamparo he mágoa aos filhos:
- Mas para dar-lhe a mão, torna-la a Nume,
- Poder, qual em ti ha, não ha nos homens:
- Do fundo do teu lodo a ti só chama,
- Ai, leve-te algum vento as queixas d’ella!
-
- As torrentes sem freio divagando
- Contra marmóreas pontes indignadas,
- Investem, chocão, despedação, rojão
- Ruinas em montoẽs aos fundos mares.
- As Dríades, teu povo e tua gloria,
- Tremem, oh dor! ao furioso assalto
- D’Euros, e Notos, e Africos em guerra:
- A seu brutal furor nenhuma escapa:
- Crer-se-hia que as prisões da Eolia furna
- Para sempre arrazára a mão de Jove.
- Dríades nobres de arvores antigas,
- Refugio outr’ora das calmosas séstas;
- Dríades bellas de arvores vaidosas
- Co’a idade juvenil, verdura e fôrças,
- Tem a seus pés quaes vítimas caído.
- Co’os negros frutos oliveira amiga
- Baqueou; não lhe valeo celeste guarda;
- E Minerva prantêa o estrago enorme:
- Cáe o pinheiro amedrontando os valles,
- E Pan, sentado nos troncados restos,
- Triste espera por ti co’a flauta muda.
-
- ¿D’esta cabana a rustica fogueira
- Sabes quem a sustenta? ah! corre, vôa:
- Cedro, que eu te sagrei, caío por terra,
- E onde brincou favonio estalão chamas.
- Mui tarde chegarás se não-te apressas;
- Do colono e pastor os ais te invocão,
- A mesma natureza he morta quasi!
-
- Que fragor, que trovão! piedade ó Numes!...
- Este deu raio, e pérto.—Outro rebrama!...
- O Olimpo sobre nós desaba em fogo!
- Chlóe, e Amarilis trémulas, gritando,
- Desfeita a rubra côr em côr da morte,
- Enchem de seu terror esta cabana.
- O’ innocentes, miseras pastoras,
- Não griteis, não tremais; vereis em breve
- Dissipado este horror nos longes ares;
- Contra o crime orgulhoso os Deoses troão,
- Não fere o raio a rusticos alvergues.
- Não, não me engano, ouvís como se afasta?
- Como la vai ja longe? o mais do estrondo
- Ja he toada vã no vão dos bosques.
- Chuva propícia em caudalosa enchente
- Desce na escuridão; resoa o této
- Com o crebro saltitar das frias gotas:
- Sibila o vento na vizinha serra.
- Chlóe a porta fechou: nós apertâmos
- O cerco estreito em deredor do fogo.
- Cantou o gallo esperto: he meia noite!
- E eu vélo ainda, e velarei saudoso
- As horas todas que á manhã precedem!
- Horas, horas de paz no horror das trevas;
- Horas de estro, misterio, omnipotencia
- Ao que nasceo das Musas bafejado!
- Sonhe a ambição com purpuras, e scetros;
- Torpe avareza com os inuteis cofres;
- A vingança, fatal a si e aos outros,
- Cogite embora nas traições, no engano,
- Nos agudos punhaes, no sangue em jorros;
- Vulgar amante afine, esmere astucias,
- Com que succumba a tímida innocencia,
- E aos laços venha destramente armados:
- Eu dando a amor o que se deve ao sono,
- Em chama pura, porque he tua, ardendo,
- Alégro com teu Nome a horrenda noite,
- A saudade em saudades apascento,
- E inda ausente, comtigo ausente fallo.
- Como o perdido em temeroso escuro,
- Que ao mais leve rumor trémulo pára,
- Assacinos agoura em cada tronco,
- Não ouza resfolgar, prosegue a medo,
- Aqui lhe surde a silva, alem penedos,
- E lhe abrem fauces mil os precepicios,
- Só tem na aurora esp’rança, e mal que ao longe
- Annuncios d’ella vê, canta e renasce;
- Serei mais que feliz pois vas ser minha,
- Mal te sonhar ao longe, ó Primavera.
-
- Sim: eu te amo inda mais que a vide ao tronco,
- Mais do que o touro em maio ama a novilha;
- Quero-te mais que o Deos de amor ás trevas,
- Mais do que Flora ao Zéfiro inconstante.
- Eu suspiro por ti, como suspira
- Murchada planta por sereno orvalho,
- E ardente ceifador por fresca fonte:
- Es-me tão cara como a bella esposa
- A seu amante de chorar cançado,
- Quando no dia d’hirneneo se abração:
- Tão doce emfim como o primeiro beijo,
- Que uma terna pastora, a medo e a furto,
- Consente ao seu pastor levar-lhe aos labios.
- Qual dos amores, que no mundo girão,
- He mais grato que o meu? Este em delícias
- Excede tanto aos mais, como tu vences,
- Tu belleza do ceo, do mundo as bellas:
- Eu amo e para amar não me recato,
- Ao mundo inteiro meu ardor confesso,
- Tenho rivaes e do ciume zombo,
- Gozo-te, e nem pudor nem leis mo estorvão.
-
- Inda me está lembrando (hora doirada!)
- Quando longe do mundo, e a sós comtigo,
- Pela primeira vez te disse “Eu te amo!”
- Abria a Aurora o roxo mez das flores:
- Juntas em córos no arvoredo as aves,
- De ramo em ramo aos ranchos adejando,
- Em nunca ouvidos sons a luz saudavão:
- Inda do puro rio a opaca nevoa
- Bem não era desfeita ao sol nascido;
- Inda das folhas concavas pendião
- Trémulas gotas de luzente orvalho,
- Que depois leva o brincador Favonio;
- Quando (ai memoria doce!) eu dei comtigo
- Inda meia a dormir na fofa relva.
- N’alguns louros de roda entretecida
- Hera tenaz um toldo te formava:
- O melro grave, o rouxinol cadente,
- Para encantar-te os sonhos, diffundião
- Entre uns rosaes a musica dos prados;
- Enchia aroma puro os puros ares.
- Ligeiras, bellas Sílfides, velando
- Invisiveis teu placido retiro,
- Impedião que um Fauno petulante
- Ou rustico pastor pozessem olhos
- Em teu corpo sem véo, cheio de encantos.
- Alí me conduzio propicio acazo:
- Não mo impedirão Sílfides zelosas,
- A natureza inteira he franca ao vate.
- Ridente sono, da innocencia imagem,
- Cerrava ainda os olhos teus ao dia:
- Todo brandura o juvenil semblante,
- Até sem o saber, até dormindo,
- Faria suspirar homens e feras.
- Entre a face mimosa e a fria relva
- Tinhas meio curvado o braço lindo:
- Como ao desdem, na esquerda seguravas
- A cornucopia, a não poder com flores:
- Halito doce de fragancia amena
- Sáe do seio, que túrgido se eleva;
- Dos roseos labios, da pequena boca
- Vem tão doce, vem tal, que um peito humano
- Bafejado por elle, excede os numes,
- E a alma, em vez de pensar, delicias volve.
-
- Tal eras, tal fiquei ó Primavera!
- Espertaste de todo; e toda risos,
- E todos luz e amor os olhos verdes,
- O que era ja sem termo accrescentaste,
- Dobrou-se a graça ao mundo, o fogo aos peitos.
- Um mar de deleitosas fantasias
- Me soçobrou, confesso, e tempo largo
- Jazi com o ledo mundo em braços da alma.
- Depois tornando em mim, ví-te ja prestes
- Para baixar do outeiro aos amplos valles:
- Quão mais louçã, e em galas mais garrida!
- ¿Que muito, se a mais nova das trez Graças,
- De tuas mil Oréades servida,
- Pozera as proprias mãos ao vago enfeite?
- Erão-te manto ondado, e roupas simples,
- Quanto verde ha na terra, e flor nas plantas;
- Mas triunfava a rosa! aos botões d’ella,
- Nem ja todos botões, nem flores todos,
- Fôra o tépido seio em throno dado,
- E em vez de o embellezar, se ornavão d’elle:
- Erão raios do Sol a c’roa tua!...
- Parei de embevecido! e quem no mundo
- Te vio jamais como te vio teu vate?
- Em teu seio amoroso um Cupidinho,
- Qual borboleta d’oiro, esvoaçava
- De botões a botões, na escolha incerto.
- Vio-me; e curto farpáõ, doirado, agudo,
- Curto farpáõ que os olhos não percebem,
- Me arrojou, me sumio dentro no peito.
- Graças ao tiro do mimoso Alado!
- Na profundez da f’rida, e gôstos d’ella,
- Contente reconheço, adoro um Nome.
-
- Amante, desde então, ditoso amante,
- De dia a dia te encontrei mais terna.
- Incenso, que antes dava a falsas Musas,
- Off’reci-te, acceitaste, e foste a minha.
- Abriste-me a Aganippe em cada arroio,
- Cada monte foi Pindo, e Tempo os valles:
- E tu em cada valle, em cada monte,
- Ante a lua, ante o sol, me estavas sempre
- Musa do coração, presente aos olhos.
- De poetas foi sonho a voz das outras,
- A tua graciosa ciciava,
- De toda a parte vinha em tom macio,
- Que filtra inspirações, e a amor contenta.
-
- Se os de ambições miserrimos forçados
- Que ás cidades dão vida, e a si a roubão,
- Podessem vir um dia onde tu reinas!
- Se a mente que as paixões lhes anuvião,
- E olhos em que os cuidados, seus verdugos,
- Atárão com trez nós perpétua venda,
- Podessem ver-te a luz deliciosa,
- O manso da alegria, os gostos puros!...
- Deixando sem adeos tumulto e pompas,
- Mais de um, mais de um, salvando a tempo os filhos,
- Co’as pouzadas dos bons unirra a sua.
- E a quem darás tu nunca o riso cheio,
- Como o déras a este, que trocasse
- Oiro a virtude, e marmores a flores?
- ¿Que ja sôlto de si e a si tornado,
- Viesse pôr, para os livrar de queda
- E adora-los em ocio, os seus penates
- Á beira de uma límpida corrente,
- Que de um bosque atravéz susurra e foge.
- Víra os Genios da terra o anno inteiro
- A lhe aprestar a mesa; aqui brotando a
- No pomar curvo, ali na horta regada,
- Lá no chão da seara, alem na vinha
- Que o recôsto do outeiro alastra e enreda,
- Mais longe nos cabeços verdejantes
- Onde o gado em socego os leites cria.
- Não lhe ameaçára o raio o této humilde:
- As manhãs, d’entre as ramas espreitando
- Pela aberta janella, o acordarião,
- Por lhe alargar a vida: os passarinhos
- Lhe dirão nas frescas alvoradas
- “Bem vindo, alegre amigo, ás nossas casas!
- Nós cantamos teu Deos, somos felizes,
- Tu louva o nosso, e goza d’este mundo.”
- Se algum cuidado a vespera deixasse,
- Levar-lho-hia na vêa murmurante
- A correntinha onde lavasse o rosto.
- Vê zagalas fieis, vê perigrinas
- De formosura e joias não compradas,
- (Que uma da-lha a saude, outras o prado);
- Com ellas espairece a fantasia,
- E se inda o coração quer mais ventura,
- Ama; ao ceo que ja tinha, um Deos lhe accresce!
- Quanto via e pasmava em mortos quadros,
- Onde astuto pincel prodigios obra,
- Sombras vãs, cujo preço he rios d’oiro,
- Tudo agora real, vivo, mais bello,
- De mais subida mão pintura immensa,
- De graça lhe cercára o lar e a vida.
- Mas ah! porque me sólto em vãs ideas!
- Embora o preço teu não saiba o mundo,
- Primavera, eu te adoro e tu me afagas:
- Caro co’a lira vezes mil teu nome,
- E tu me infloras magamente a lira:
- Em longo mútuo abraço almas trocâmos;
- A minha he mansidão, frescor, perfume,
- Toda a tua, poesia, amor, extremos.
- Lanças-me em teu regaço, e quando a noite
- A lira e cornucopia aos dois nos furta,
- Das-me dormir co’a fronte no teu seio,
- D’onde me vem coando uns sonhos leves,
- Todos teus, todos candidos, na fórma
- De flores, de aves, de amorinhos, de auras.
- Assim, me queres teu até no sono!
- E porque sombras más o não perturbem,
- Mo ficas a velar á luz dos astros,
- O semblante pacífico ao sereno,
- Os olhos no ceo da alva, e o peito amores.
-
- Mas tu ... porque não vens?—Não não me engano,
- Inda agora os trovões rijo batalhão.
- Talvez rola n’esta hora a tempestade
- Pelo oceano de Atlante ondas sobre ondas;
- Rugindo estoira o mar em crespas serras:
- Possança de baixeis, esfôrço, industria
- Não vale a contrastar-lhe a valentia;
- De toda a parte a morte esvoaça, ruge
- Na horrenda cerração com sons do averno;
- O náufrago abraçado a sôlto lenho,
- De toda a parte a vê, a ouve, a sorve;
- Vai a abismos e a ceos repulso d’ambos,
- E perde, antes da vida, a luz e a mente.
- Sumio-se o ultimo audaz de sôbre as aguas!
- De nuvens atro veo submerge a lua;
- Não luz na escuridade alguma estrella;
- He o luto do Homem forte! Ó Mar és livre!
- Triunfaste, adormece.—Ah que de vezes
- Taes scenas, tal horror, maior, mais negro,
- Nos tem de si brotado a umbrosa quadra!
- Ó tu contrária sua, o tu dos homens
- Sempre invocada amiga, ethéreo Nume,
- A quem ceo, terra e mar dão vassallagem,
- Onde estás, que não vens com um leve assopro
- Trazer serenidade aos elementos?
- Se inda és a mesma, e súpplicas te movem,
- Sobe ao carro da aurora, os ares fende,
- E acode ao Luso clima, onde te invocão.
-
- ¿Lembra-te a gruta, a gruta onde Amarilis
- De seu ja quasi esposo Umbrano, o astuto,
- Acceitou, de sincera, a grave aposta?
- Qual era, que o pastor lhe não podia
- Dar n’uma tarde tantos beijos, tantos,
- Como as folhas do plátano vizinho,
- Sendo o premio da aposta inda outro beijo?
- ¿Aquella gruta, onde ambos consumirão
- Um dia teu, a adivinhar a ponto
- Todas as graças do primeiro filho;
- E só no sexo os votos discordavão,
- Porque Umbrano pintava outra Amarilis,
- E Amarilis raivosa um novo Umbrano?
- Pois n’essa, n’essa gruta os meus amigos
- Para hospedar-te um grão festejo tração.
- Pôr-se-ha do cedro á sombra altar gramíneo
- Com seus flóreos listões, onde c’roados
- Te libem vinho annoso e leite puro,
- Concertando himnos teus com lira e flautas.
- O lavrador da proxima campina,
- A estirada cantiga aos bois tardios
- Parando calará, para escutar-nos.
-
- Então, então começa o tempo d’oiro,
- Folgão no campo os naturaes prazeres,
- E a rustica alegria apraz aos deoses.
- Aqui, apoz as candidas ovelhas,
- Vai trigueira, descalça pastorinha
- Aos echos do arredor cantando amores;
- Ali galhudo Sátiro se esconde
- Para colher alguma Ninfa errante;
- Alem com ledos sons retine o bosque,
- O riso ferve, as flautas se misturão;
- Mais longe, aos pés de mal fingida ingrata,
- Se exhalão rogos apiedando as selvas.
- Um favonio subtil encrespa as ágoas,
- E enfada a Ninfa, que estudava uns geitos
- De se enfadar com quem de amor lhe falle.
- Priapo brincador gira saltando
- Nos jardins, nos vergeis, e nos pomares,
- Ramos bate, alvorota o plúmeo bando,
- Que foge, mas de Amor não foge ás settas.
- Amor e seus irmãos, com o facho em punho,
- Lanção tacito fogo a quanto existe.
- Junto da verde faia susurrando
- Se ouve outra faia um não sei que, tão doce,
- Que aos amantes apraz o seu murmúrio.
- Do rebanho o marido entre o rebanho
- Bala amoroso, e todas lhe respondem:
- Pela novilha se enfurece o toiro,
- Accomette o rival, goza o triunfo.
- Côr de neve, innocentes cordeirinhos
- Ja balão na verdura, ja recresce
- Maravilhando a serra, a grei profusa
- Das erradias cabras saltadoras:
- A nova creação corre exultando;
- Aquelle foge, os outros o perseguem,
- Voltão, saltão, empinão-se, discorrem
- Por toda a parte n’um momento o prado;
- Cresce o leite, e o pastor a quem ja faltão
- Cinchos para o queijar, tarros que o levem,
- Lédo se enraiva com riquezas tantas.
- Todo o arredor da aldea he movimento,
- Contente lida, esp’rança, amenidade.
-
- Porque se hão de calar da infancia os brincos?
- A infancia he primavera, he mundozinho
- Florente, de que nasce um grande mundo.
- Menino á espreita e mudo entre as silveiras,
- Apoz o som do grillo o vai buscando;
- Outro os ramos envisca, as redes arma;
- Prêzo de longo fio ao pé mimoso
- Passarinho pelo ar chirla e revoa,
- E crendo-se de novo o rei do espaço,
- De inconstante creança um dedo o rege.
- Um mais travêsso, ás árvores trepado,
- Nos ramos se embalança, ou furta os ninhos;
- Outro mais atrevido, emvão forceja
- Por montar no carneiro, que se escapa,
- Fazendo ao longe retinir os bosques
- Co’ o crebro som da aguda campainha.
- Tenra menina um malmequer desfolha,
- E pelo amor da mãi á flor pergunta;
- Em quanto seus irmãos vão na corrente
- Pôr de cortiça um concavo barquinho.
- Na luta, na carreira apostas fervem.
- Oh! da infancia do mundo amaveis scenas!
- Se inda as virtudes sôbre a terra existem,
- Se inda existe o prazer, o socio d’ellas,
- He no campo, no campo; e a quadra tua
- Nos mostra, ó Primavera, este prodigio.
-
- Mas da fogueira as chamas enfraquecem!
- Ja os gallos das proximas cabanas
- Vão começando a annunciar-me o dia:
- Que som grato! que enlêvo estar sentindo
- Por um sereno albor, estes vizinhos
- Nuncios da aurora, a cuja voz respondem
- Outros aqui e alem, com voz diversa!
- Sim, o dia começa: a luz nascente
- Pelas fendas do této está brilhando.
- Eis-me só junto ao lar! quem sabe ha quanto
- Se irião meus bons hospedes ao colmo:
- Agora em doce paz lá estão dormindo.
- Que breve noite! e he finda; ah toda he finda!
- Da fresta, onde cheguei, contemplo os ares,
- E claro vejo o ceo, de nuvens limpo:
- Mal brilha no horizonte a estrella d’alva.
- E os olhos meus (oh dor!) só descobrirem
- Como por um véo denso a natureza!
- Os montes que longissimo se alcanção
- De vinhas e arvoredo entresachados,
- O rio ao longe a fulgurar co’as ondas,
- Os remotos cazaes da gente humilde
- Pelas verdes campinas alvejando,
- Não vê-los eu! não ver!... Mas que murmúrio
- Sólta a folhagem do loureiro antigo,
- Que defronte de mim remonta aos ares?
- O Favonio acordou, que hontem de tarde,
- Cançado de girar, adormecêra
- Junto á cascata no pomar sombrio.
- Vai subito partir: em curtas horas
- Será comtigo, e te dirá meus versos.
-
- Meus Amores, adeos! adeos meu Nume!
- Da Epistola a resposta a vinda seja.
-
-
-
-
-O DIA DA PRIMAVERA
-
-POEMETTO EM DOIS CANTOS
-
-
-_Em dois Cantos se divide agora este Poema, para commodo de quem lê.
-Entendi em apertar melhor que da primeira vez, este feixe de flores, se o
-he: algumas deitei fóra sem fazerem mingoa; as demais forão refrescadas,
-e se me não engano mais algum viço ganharão. Puz-lhe com tão boa vontade
-as mãos como na Epistola: pelo que, sem deixar de ser o mesmo, he outro;
-he o mesmo no essencial e intrinseco, todo outro no lustre e na toada._
-
-
-
-
-DEDICATORIA A MINHA MÃI.
-
-
-_Á maneira das arvores, que acordando do sono do inverno ao bafo
-omnipotente da primavera, como que ressuscitão com o riso e vida nos
-primeiros olhos e flores, o meu engenho começa a matizar-se das suas,
-com a tornada d’estes dias puros e deleitosos aos amigos do campo. As
-primicias, que d’ellas pude colher, forão para a grinalda que apresentei
-na Festa da Primavera celebrada com os meus amigos. Depois de a haver
-tirado do altar da Deosa que governa a mocidade do anno, a quem senão a
-ti, ó minha Mãi, devêra offerecer esta grinalda? sim: outrem qualquer
-a engeitára por de nenhum preço; de ti sei eu certo que lhe acharás
-uma graça especial, mais finas côres, e fragrancias mais suaves: emfim
-me atrevo esperar que póstos amorosamente os olhos na minha Obra,
-entenderás, sem o dizer, como eu sinto todo o amoroso da gratidão, ao
-cuidar em quem me deo alem do ser, a educação, e todos os mais carinhosos
-desvelos: alguns suspiros e lagrimas, para cúmulo da minha felicidade,
-serão talvez por ti, ó minha Mãi, espalhados na minha ausencia._
-
-
-
-
-HISTORIA DA FESTA DA _PRIMAVERA_.
-
-
-Remontando a vêa do Mondego até obra de um quarto de legua para cima da
-Cidade, encontra-se na margem do poente um gracioso retiro, selvatico
-sem aspereza, e como que enfeitado sem arte: dissereis que em hora
-de contentamento o fizera a Natureza, para algum dia hospedar no
-regalo d’aquellas suas sombras um ajuntamento de poetas seus. De _Lapa
-dos Esteios_ pozerão nome ao sítio em dias remotos, segundo soa, os
-vinhateiros e pomareiros que de umas e outras varzeas do rio costumavão
-acudir ali por paos, com que estear suas parreiras e arvores derreadas
-com o pezo da fruta. Ainda permanece o nome, porem ja o arvoredo se não
-desbarata pelos vizinhos, e a Lapa, de tão solitaria e amena que he,
-parece a appetecida estancia do Genio da liberdade.
-
-Entra-se por um breve cáes ornado de cinco alterosas arvores, das quaes
-uma torcendo-se toda para o rio, se debruça para saudar e cobrir com
-a sua sombra os bateis que chegão. No tôpo do cáes, e fronteira a quem
-desembarca, se alevanta um genero de muralha nativa de rochedo, rôto em
-muitos seios. Esta penedia, até aos nove ou dez palmos de altura, sóbe
-nua e só ornada de sua mesma aspereza; d’ahi para cima, como envergonhada
-de sua dura condição, se esconde toda com um frontal de heras, que ora
-resaem como cabeços pendurados, ora se recolhem para fantasiarem la
-por dentro suas grutazinhas e labirinthos, d’onde ás vezes se estão
-vendo saír por um cabo e por outro os passaros, que depois de beber e
-se banharem na vêa da agoa, se empoleirão pelos lamegueiros vizinhos,
-namorando e cantando a suavidade e fresquidão de suas habitações. Pelo
-lado direito d’esta aprazivel scena, sóbe uma cerrada espessura de bosque
-pequeno, onde os olhos se enleão na confusão de troncos e folhagem:
-pelo esquerdo abre-se para cima uma escada rustica mas commoda, de doze
-degraos. Tecem-lhe estendido toldo dois lamegueiros velhos, e outras
-arvores mais pequenas se abração por ali, travadas com mil voltas de
-hera. Dá esta subida em uma planura sôbre o comprido com seus assentos
-de ambas as bandas, isto he da terra e do rio, o qual por entre um basto
-arvoredo, que d’ahi por uma especie de promontorio, vai descendo até
-lhe metter os pés na corrente, se está vendo a furto transparecer: das
-primeiras cabeças d’este arvoredo cáe para os assentos uma boa a vedada
-sombra. O puro e perfumado dos ares, a vária presença da terra e aguas,
-o susurrar dos ramos abanados da viração, as melodiosas querellas das
-aves, em summa o natureza enfeitada só de suas mãos, e paz e descanço
-de deserto, são a fonte perenne dos encantamentos d’este sítio. Uma
-ladeira suave opposta á escada, e ainda mais sombreada, despede em outro
-cáes com seus degraos nativos de rocha até á agua. He este menos bem
-assombrado que o primeiro: não tem relva, nem arvore, nem verdura afóra
-ada muralha no tôpo, toda velada de musgos, matizados com seus tufos de
-fetos silvestres, congossas e um sem numero de outras plantas e ervas,
-sobresaindo a espaços alguns ramos solitarios de figueira brava: mas o
-que de interior graça lhe fallece, lho compensa a larga vista que para
-fóra desfruta.
-
-Era chegado o primeiro dia de primavera. Tratado e assentado estava de
-ha muito entre mim e meus amigos, como iriamos passa-lo juntos, em uma
-romaria e festa poetica á honra d’aquella mais formosa parte do anno. Não
-faltavão á volta da Cidade muitos sitios accommodados ao intento, antes
-não creio que possa haver no mundo outra verdadeira Arcadia, que em tão
-pequeno espaço resuma tantos: mas d’entre todos coube á Lapa dos Esteios
-a palma da competencia. De doze se compunha o rancho, todos amigos,
-poetas e academicos.
-
-Por volta de meio dia, pouco mais, nos ajuntámos com muita alegria e
-abraços, e todos com as nossos ramalhetes de primavera nas mãos, nos
-pozemos alvoraçadamente em caminho para o rio, onde ja o barco nos
-aguardava. O ar estava puro: contra o sol que ardia rijo, nos acudia com
-refrigerio um pouco vento, que ao mesmo tempo nos fazia mui boa feição
-para contrastar a corrente. Saltámos e partimos.—Em quanto alguns por
-um e outro bordo ajudavão o favor do ar com o trabalho de suas varas,
-repellindo o álveo, e fazendo-nos resvalar mais prestes á medida de
-nossos desejos, os demais amotinavão ao longe ambas as ribeiras com suas
-cantigas de amores, entoadas em chusma. A cada momento porem se quebrava
-por si o canto, para se contemplar e encarecer o muito que a natureza
-e o artificio podérão e soubérão crear para enlevo de olhos, por ambas
-aquellas dilatadas margens e campos: pradaria verde e florída, outeiros
-risonhos, cazaes branqueados, grangearia e recreação de quintas, pomares,
-hortas, jardins, e mil arbustos curvos por entre choupos e salgueiros até
-beijarem a agua, esse era o painel em que meus amigos se hião enlevando,
-e que a mim, que pelo longe que era posto, o não podia nem por nevoas
-enxergar, me desentranhou algum suspiro, dando-me a sentir no meio da
-geral alegria alguns momentos magoados, recostado na borda da embarcaçaõ.
-
-Mil couzas pequenas, e por ventura vãs (mas quaes ha que sejão taes para
-gente moça em dia de júbilo?) matizarão toda esta viagem: taes como a
-grita que de subito alevantámos ao passar por baixo do arco grande da
-ponte, aonde as vozes, refletindo do massiço da cantaria, nos ressortião
-para os ouvidos com uma estranha soada, como que por aquella porta e
-esteiro estivessemos entrando um mar nunca d’antes descoberto; despedidas
-á Cidade que de nós se alongava, branca e assentada em seu monte, até que
-desapparecia, e ás margens que para nós arremettião correndo com seus
-estendaes, lavradores e rebanhos, para logo nos passarem alem, fugir-nos
-e perderem-se; a vista de um bando immenso de pombas, que levantando-se
-espavoridas com a nossa passagem, de um ilheo de arêa onde se estavão
-a beber e banhar-se, nos atravessarão pela proa e forão derramar-se
-todas queixosas pela ribanceira vizinha; o ceo a espelhar-se inteiro
-nas aguas ufanas de retratarem multiplicado o sol da primavera com toda
-sua magnificencia: semelhantes nadas produzião em somma um genero de
-felicidade a estes moços Anacreontes viajando, á qual, para de todo o
-ser, só faltava poder durar.
-
-De instante para instante importunavamos os barqueiros, perguntando
-insoffridos quanto nos restava do caminho. Cuidava-se ver a Lapa dos
-Esteios em quantas soledades apraziveis nos apparecião ao longe. Emfim
-a apontárão com o dedo; levantão-se todos, todos com clamor unísono a
-saudão. Saltámos logo no primeiro cáes, deixando o nosso barco amarrado
-a uma arvorezinha, que se algum curioso vier visitar aquelle sitio,
-he a terceira da parte esquerda. Uns de outros derramados, nos fomos
-prestesmente por onde o acaso ou a fantasia nos levavão, correndo e
-devassando toda aquella solidão, que por algumas horas vinhamos povoar:
-e tornando-nos a ajuntar no alto, onde tão commodos assentos se nos
-deparavão. “Esta Lapa disse um, para estancia e habitação das Musas
-parece feita; por aqui as heras pendem de toda a parte!” Sobre o que, se
-procedeo logo á lição dos poemas que todos levavamos. Aqui usarão meus
-amigos para comigo de huma cortezia, de que por mais que fiz me não foi
-possivel defender-me, ordenando-me com seus rogos que os meus versos,
-para os quaes o ultimo lugar em tal companhia podéra ainda ser de muita
-honra, rompessem antes de outros aquelle acto. Estes, a que eu pozera o
-titulo que ainda tem _O Dia da Primavera_, ja primeiro que o sitio fosse
-escolhido se achavão feitos, rasão porque não ha que procurar n’elles a
-pintura d’elle. Concebêra eu um dia de Primavera levado pelos campos em
-contentamento com aquelles companheiros; tomei de minha livre imaginação
-o que me pareceo bastaria para o encher; e poetei-o sem me obrigar a
-nenhuma outra verdade.
-
-_Elmiro_ (que todos havião arcadicamente tomado para si nomes de
-pastores) assim como a leitura foi rematada, veio para mim com um listão
-de heras nas mãos, e mo lançou, a todo o poder que eu pude para me
-escusar, do hombro direito ao lado esquerdo.—Seguio-se _Anfrizo_, o qual
-em pé junto de mim, e com uma coroa em punho, recitou uma formosa Ode,
-toda floreada dos louvores que a amisade lhe figurava poderem-me bem
-assentar; e chegado que foi á ultima estrofe, me coroou abraçando-me.
-Tambem a esta honra me foi forçado ceder, com quanto claramente em mim
-sentisse o muito que vinha mal empregada: a amisade ordenava, o dia era
-seu, rendi-me. Era a grinalda de artificiosissimo lavor, mui fresca, e
-tecido de louros, heras e cópia de flores naturaes; guardei-a com ufania
-e como joia; quizera conserva-la para sempre, mas representava gloria, e
-minha, murchou, desfez se, largos annos ha que he pó, e pó disperso.
-
-Dado que ja então fosse tal o meu triunfo, qual nem em sonhos de ambição
-o podéra antever, _Josino_, a cuja feiticeira Musa ja eu era, muito
-havia, devedor, inda o subio de ponto, lendo antes de um poema, pequeno
-em extensão mas grande e grandissimo em merecimento, um elogio a mim em
-tão delicados versos, que não posso menos de perdoar-lhe a lisonja.
-
-_Aulizo_[5] leo um longo poema intitulado _A Primavera_, que todo
-respirava amor aos campos e á virtude, ataviado de mui mimosas galas
-poeticas, e de mui particular doçura e sabor para os ouvidos: nem se
-cuide que sangue ou amisade ou vãgloria me fazem fôrça para o dizer,
-que antes o dissimulára eu, se o ser irmão e amigo fossem partes para,
-quando a todos os mais vou distribuindo seu preço, lho sonegar a elle; e
-ainda assim talvez o não ousára, se tão boas testemunhas não valessem a
-confirma-lo.
-
-Foi esta leitura interrompida de uns sons de flauta, que por cima
-das cabeças, e de mui perto nos vinhão: era o meu caro amigo,
-Horacio portuguez, José Fernandes de Oliveira Leitão de Gouvea, que
-alvoraçando-nos e alvoraçado, nos apparecia ao cimo da curta escada que
-da Lapa sobe para a _Quinta das Canas_, que lhe fica sobranceira. Forão
-tudo clamores de alegria, recebendo entre nós, poetas todos verdes, o
-nosso decano e patriarcha; cercámo-lo com abraços, das mãos lhe furtarão
-a flauta, foi levado de repente a todos os recantos do nosso Parnaso,
-contando-lhe todos á uma o que até ali se passára, que vezes se fallára
-n’elle, e se desconfiára de sua promettida vinda. Este homem amavel,
-jovial, incapaz de estudadas gravidades, dado e corrente com todos, bom
-sem merecimento de esfôrço, filosofo sem o cuidar, coração que ainda não
-saío nem ja agora sairá da infancia, homem só comsigo parecido, que a
-ninguem imitou nunca, nem de outrem será nunca imitado, e cuja vida, se
-alguem soubesse escrevê-la, sairia tão original e unica como elle mesmo,
-este digo, nascido para ser alma de qualquer ajuntamento moço e alegre,
-tomou para logo seu quinhão na Festa. Deu-se fim ao poema interrompido
-com a chegada do novo socio, que muitas outras vezes o tornou a
-interromper com applaudir e abraçar o poeta. _Josino_, que assim como o
-ouvia fôra entrançando uma coroa de hora da arvore mais chegada, mal que
-o ultimo verso expirou, se foi com ella, por entre as palmas de todos,
-premiar a fronte do cantor.
-
-_Elmiro_, que de apoz se seguio, nos cativou as attenções com um poema
-de muita invenção e belleza, aonde outra vez a amizade me brindou com
-perfumes seus, para os não dizer da lizonja. Igualmente o coroámos; e
-outro tanto se foi fazendo aos demais, que recitarão poemas mais breves
-ou traduções.
-
-_Salicio_[6] repetio uma mimosissima tradução livre de uma parte da
-_Primavera_ de Thompson: _Albano_, uma tradução em lindas quadras do
-Idillio Primavera de Gessner: _Francilio_, uma tradução em proza de Utz,
-que leo de pé com o copo em punho, e rematou com um brinde: _Franzino_
-uma versão da _Primavera_ de Cramer: cerrando-se finalmente este rico
-banquete poetico com mais de quatrocentos versos de um poema de meu irmão
-José Feliciano de Castilho, que pelo muito menino que ainda áquelle tempo
-era, não foi dos menos vitoriados.
-
-Todos estavamos coroados, e o rancho se espalhou. “Ja la vai o sol
-abaixo; os seus raios apenas tocão ja os cumes dos outeiros d’alem:
-aproveitar o tempo!” bradarão alguns amigos da borda de uma eira que
-dominava a Lapa: e todos sentimos que a tarde nos hia insensivelmente
-escapando. Então ao som da flauta do nosso Horacio, começarão todos
-de dançar e saltar, e as aves incitadas da musica, levantarão mais
-alto os gorgeios da tarde. As folhas das heras, que por ali guarnecião
-todas as arvores, e algumas flores voavão ás mãos chêas como em chuva,
-de uns contra os outros. De quando em quando se alevantava alguma voz
-inculcando, porque o fossem todos ver, algum particular gracioso e ainda
-não observado d’aquelle sítio. Chamando _Aulizo_ pelos outros, lhes
-fez notar do cáes mais arido, o como o rio d’ali visto, á conta de sua
-curvidade se afigurava lago cercado de collinas desiguaes, coroadas e
-semeadas de larangeiras, oliveiras e pinheiros, e cazaes alvejando,
-enxergando-se mais a longe, e por entre estes, outros outeiros, quasi a
-se desvanecer na distancia e sombra da tarde. Debuxava eu no animo toda
-aquella scena saudosa; saía-me o quadro maravilhoso, mas era por ventura
-verdadeiro? não o sei.
-
-Uma merenda saborosa nos appareceo de repente e como por encanto:
-_Elmiro_ fôra o magico providente. Toalhas brancas de neve estendidas no
-cáes do desembarque, forão povoadas de primorosos manjares, garrafas ja
-de dias, e copos coroados de verdura: uns rolos de arvores estendidos
-em quadro nos valerão de assentos: dois meninos gémeos, vestidinhos da
-branco, erão os Ganimedes do nosso banquete folgazão. Parte assentados,
-parte reclinados em diversas posturas, outros por entre estes girando com
-os copos e pratos na mão, boas descaídas, descuidos a tempo, apontadas
-graciosidades e risos do íntimo, brindes com o copo alto na direita,
-enviados a mui longes e mui diversas terras (que não havia um só que da
-sua não padecesse ausencia e se não finasse com saudades), outras saudes
-ora mais ora menos sumidas, a objetos nomeados umas vezes e outras não,
-mas mui bons de adivinhar pelos suspiros e geito do saudador, a voltas
-e proposito d’isso narrativas e contos para folgar, musicas alegres de
-flauta mil vezes começadas e outras tantas interrompidas, e outros muitos
-nadas com que a penna se não atreve, convinhão em aprazivel mistura para
-encantar a ultima hora da Festa da Primavera.
-
-Posto era o sol, mas o ceo ainda não carregado de noite: havia-se de
-partir, faltava o animo para o fazer; instavão os barqueiros, crescião
-n’elles a rasão e o importunar, acabárão comnosco que nos rendessemos.
-Despedidos os amorosamente da Lapa ja áquella hora entranhada de
-escuridão temerosa; com os pés ja postos na beira da agua, nenhum queria
-ser primeiro que trocasse terra de tanta festa, por um barco que nos
-hía tornar para onde vida de proza e cuidados nos aguardava: senão
-quando, levantando o bom Gouvea a voz, com ella suave e chêa que se hía
-por aquellas margens alem, começa de cantar _A minha Lilia morreo_;
-improviso seu, chêo de uma branda tristeza, que aos cançados e não fartos
-de gozar costuma ser segundo gozo. Assim hia elle até n’isto imitando
-o seu Horacio, que nos poeticos festins que dava ao Genio da alegria,
-nunca se esquecia com seu quinhão de pensamento para a morte. Profundo
-era o silencio que de toda a parte cercava o nosso cantor; só se ouvia o
-murmurio baixinho da corrente.
-
-Não havia quem nos apartasse: por derradeira vez nos tornámos ainda á
-Lapa, travou-se uma dança por despedida, e fez-se uma saude geral ao
-lugar e ás trez Graças que ali costumão a vir muitas vezes[7], até que
-emfim nos embarcámos, com as nossas coroas na cabeça. Foi aos barqueiros
-defendido usar de vara, antes se lhes encommendou que nos deixassem
-embora ir, tão mansa e perguiçosamente como á vêa mal desperta do rio
-parecesse, e ainda n’aquelle pouco descer das aguas houvéramos nós tido
-mão, se podessemos.
-
-Pareceo bem, para atalhar a confusão de tantas vozes como as que ali
-fervião juntas, nomear á maneira do Rei do vinho nos festins dos antigos,
-um que nos governasse. Este foi Gouvea por acclamação unanime. Lembrou
-um que d’ahi ao deante nos ficassemos uns aos outros dando o tratamento
-de confiança, que a boa amizade consente e requer: approvou-se. “E
-quemquer que a esta lei desobedeça, haja-se por expulso da _Sociedade
-dos Amigos da Primavera_.” Approvou-se com alvoroço; levantarão-se todos
-abraçando-se, apertando-se entre si as mãos, e dando-se entre risos o
-tratamento novo tão amiudado para lhe quebrar a estranheza, que ninguem
-se entendia.—“Todos os Socios (gritou outro, e de novo se fez silencio)
-hão de conservar até que o tempo as destrua, estas suas coroas, se não
-monumentos de gloria, penhores certo que mais vale, de horas felizes:”
-approvou-se por lei o que ja todos levavão no coração bem votado.
-Suscitou-se depois que recitasse cada um segundo a ordem dos assentos,
-alguma sua poesia breve, e que mais lhe parecesse accommodada á occasião.
-Não faltárão aqui seus debates, lembrando uns como apoz tanto recitar,
-tinha a cantoria muito melhor cabida do que os versos nus, outros
-affirmando que a flauta melhor que nenhuma outra cousa diria com a hora,
-sítio, e calada grande do rio: até que um veio conciliar a diversidade
-dos pareceres, dizendo que umas couzas não tolhião as outras, antes
-podião ir todas a revezes tendo seu lugar: o que assim se cumprio.
-
-A serenidade da noite junta com as saudades do dia, nos fez achar
-inefavel doçura nos sons da flauta, que parecião modulados pela
-melancolia, e se esvaíão ao longe nos ares. Se ás vezes o acaso nos
-levava mais para uma das margens, uns frouxos echos chêos de doçura a
-tristeza se comprazião de repetir a musica e as palmas com que a nós
-applaudiamos. Emquanto um só cantava em meia voz, e nós o ouviamos
-calados, a face na mão, e meio reclinados contra o rio, suave nos era
-escutar como as quasi insensiveis ondas, com som muito mais baixo nos
-vinhão beijar os lados do batel, d’onde, se fugião partindo, com um
-murmurinho saudoso.
-
-Descemos em terra, e abraçando-nos repassados de igual amizade, e das
-mesmas lembranças, votámos logo ali nova Festa em honra do primeiro dia
-de Maio, a qual se veio a fazer, como ao deante o declarará o volume: e
-todo esse meio tempo de uma até á outra, foi tecido de doces memorias,
-fantasias poeticas, tenções e esperanças de prazer.
-
-Assim se podia e sabia ainda então passar dias mansos, innocentes e
-bemaventurados!
-
- _Lisboa: 2 de Janeiro de 1837._
-
-
-
-
-O DIA DA PRIMAVERA.
-
-CANTO I.
-
-_A Manhã_
-
-
- Ei-la que chega a amante Primavera!
- Logo ao romper do dia susurrando
- Vós, Favonios azues, a annunciaveis.
- Chega ... chegou! as aves a festejão
- Desatinadas, doidas; ja com verdes
- Braços lhe acena o bosque; estão-se os rios
- A retrata-la; as fontes a murmurão;
- Traz gala o monte; os valles se alcatifão;
- Ri-lhe o ceo todo, a Natureza he d’ella!
-
- Mais cedo ao leito do marido annoso
- Hoje a Aurora fugio; tomou regaço
- De orientaes aljofares mais rico,
- Mais cópia em seio e mãos de ethéreas flores.
- Aos umbraes inda escuros do horisonte
- Quem a aguardava, quem? os meus Amores
- Que encontro! que abraçar-se!... O Zefirinho
- Que ja por entre nós passou trez vezes,
- Trez vezes ao passar mo ha segredado:
- Vio tudo, tudo ouvio, que era elle proprio
- Um dos que pelo ar vinhão soprando
- O matizado pavilhão de nuvens,
- Em que ás terras baixava o Par celeste.
- Rosto a rosto inclinado; as mãos unidas;
- Mago riso um só riso em bocas duas;
- Absortos em luz mutua os mutuos olhos;
- Duas Gémeas do ceo, duas Virtudes
- N’uma Virtude só, se afiguravão.
- —“Ó minha Irmã (dizia a Primavera)
- “Quem nos ha de estremar? tu es do dia
- “A Primavera, eu sou do anno Aurora”—
- —“Filha como eu do Sol (acode rindo
- “A Aurora), ó doce Irmã, vérte-te o Fado,
- “Não q eu to inveje, os bens de urna mais ampla:
- “Deu-te folgar sem mim, deu-te a alegria
- “Dos dias que eu só abro, e os tão gabados
- “Prazeres que eu não vi, não verei nunca,
- “Prazeres do sol pôsto, e de alvas noites.
- “A mim lida perenne, a mim rigores
- “De oppostas estações, reinar de instantes,
- “Contínua fuga, e os odios dos ditosos,
- “E as maldições de Amor comtigo affavel.
- “Eis porque a meu pezar, já por costume,
- “De olhos que espargem luz se orvalhão choros.
- “Perdôa-mos teu jubilo mos sécca.
- “Desce, eu parto, urge o Tempo, e ja me acena
- “Co’a mão rugosa para novos climas.
- “Fica-te em nossa amada Lusitania,
- “Inda pouco ha tão triste. Observa os cumes
- “Contra o nosso nascente; ahi vês á espera
- “A turba toda dos campestres Deozes,
- “Flora, Cibele, Dríades, Napéas,
- “Hamadríades, Náiades, Silvano,
- “A caçadora Cinthia, Amores, Graças,
- “Os ledos Risos, a amorosa Venus;
- “E Pan ha muito tempo em nova flauta,
- “No verde cume do apartado monte,
- “Lá onde canas trémulas susurrão,
- “Para a tua chegada estuda um hino,
- “A cujo estrondo os Sátiros voltêem.”—
- Diz: olha para traz, vê o Sol, desmaia,
- Beija a Amiga, e fugindo a entrega ao dia.
-
- Desfez-se a névoa eis Sol! Joelho em terra,
- Amigos meus; he o Sol da Primavera!
- “Ó Sol das flores, Salve! Ó Sol de amantes,
- “Salve! E trez vezes Salve! ó Sol dos vates!”
- Vêde-o doirando do arvoredo os cumes;
- Vêde nas aguas límpidas fervendo
- De reflexos de luz áureo cardume.
- Corramos n’um momento os campos todos!
- Como esta luz do Ceo, que a toda a parte
- Desce, rompe, insinua-se, alvoroça;
- Como esta luz do Ceo, vates mancebos,
- Devassemos a terra: uma só gruta
- Não fique, um arvoredo, ou valle, ou fonte,
- Por onde não mergulhe a vista, o estro.
-
- Esta, que ora seguimos, tortuosa
- Concava senda, ha pouco estreito rio
- Co’as grossas chuvas da vizinha serra,
- Parece de um jardim curiosa rua!
- De um lado e d’outro os còmaros pendentes
- Ja não são montes de crueis espinhos,
- Montes são de verdura, e roxas flores,
- Onde n’outra estação viráõ c’os cestos
- Colher nevadas mãos negras amoras:
- Recende o legacão, e a madresilva.
- De madresilva ornemo-nos as frontes ...
- Mas não: fique-se em paz a flor nevada;
- Quer-se antes a violeta, eu sei outeiro
- Onde ella mora, he flor da Primavera;
- D’esta eu fiz elleição não quero d’outra,
- Vós, se outra preferís, apanhai d’essa.
-
- Por aqui vai a encosta desfarçada:
- Como que ja de cór meus pés a sabem.
- Ja vós de cá vereis, la quasi ao cimo,
- Um ramalhete espesso de aveleiras,
- E de dentro luzindo uma apparencia
- De alvo lirio entre verde, um cazalinho;
- Pois essa he a casa de Egle. E mais avante,
- No alto; não voltêão solitarias
- As pandas velas de veloz moinho?
- Tambem ja la pouzei n’uma afrontada
- Tarde do estio, e lhe dormi á sombra.
- Tudo isto me conhece! Esta ladeira
- De rusticos degráos, que ahi desce á dextra,
- De perenne verdor acobertada,
- Cáe na fonte da aldea. (Ahi vão por agua
- Com seus vermelhos cantaros as moças.
- Outras cá vem, com passo mais tardio,
- Sobindo ja, com os potes á cabeça
- Lustrosos, vacillando e sempre firmes)
- Não presumis quanto he social a boa
- Da fontinha aldeã! não ha formosa
- Que ali se não detenha e não se enfeite;
- Não ha pastor cortez, que ao fim da tarde,
- Ja recolhido o gado, ali não desça
- Para ajudar a encher; inda não houve
- Na vizinhança amor, cantiga nova,
- Ou fallado successo, que cem vezes
- Do fundo de seu antro os não ouvisse
- A Náiade anciã; nem bôda alguma,
- Sem se enramar o portico musgoso.
-
- Á esquerda, pela varzea anda rebanho;
- Que ouvi balar, e ainda ouço a cantilena
- De pegureira voz. Dizei-me á pressa,
- Que scena off’rece a varzea? a relva molle
- De alvas boninas trémulas brincada,
- Onde o calor nascente o orvalho enxuga,
- O sombrear das arvores dispersas,
- Bellos não são de ver? he vasto o bando
- Das ovelhas pacíficas? he linda
- A guardadora sua? está sozinha
- Em pé volvendo o fuso e olhando o pasto,
- Ou com algum pastor sentada em ocio?
- Traz disperso o cabello ou prezo em rosas?
- Que donoso cantar! que peregrina
- Poesia que esperdiça aquella moça
- Com broncas solidões e ovelhas rudes!
- Couza que assim namore a fantasia
- Não quero que haja, não: virgem formosa
- Sozinha sob o ceo; velando em brutos
- A que era de velar como um thesouro;
- A graça envolta em lãs, contente e rica;
- E annos verdes, sem pena aqui florindo,
- Longe de olhos e amor, jogos e esp’ranças!
-
- Detende-vos: o aroma he de violetas.
- Ei-las! irei tecendo a c’roa minha
- Com estas, que escondidas, pudibundas,
- Como a pastora, em paz desabrocharão,
- O ar, como a pastora, em roda encantão.
-
- Ja percebo o rugir das aveleiras;
- Não vejo inda o cazal estancia d’Egle,
- Mas perto, oh perto vem: todo esse rôlo
- De espesso fumo que serpêa aos ares,
- He da interna fogueira que amanhece,
- Cuidadosa do almoço, aos moradores.
-
- Entremos no pomar. Ja Primavera
- Copiosa o bafejou, de agradecida
- Ás pomareiras mãos que lho aprestárão.
- Inda folhas não ha, mas tudo he flores!
- Vede como ante o sol tremúla e brilha
- O pecegueiro co’o vermelho ornato:
- Vede alem da pereira a branca véste,
- Da cerejeira, do abrunheiro a cópa:
- Vede como uma vide em cada tronco
- Tenaz se enlêa em tortuoso abraço;
- Ja seus pequenos pampanos rebentão,
- Verdejantes festões ja vão formando:
- Do cheiroso morango a planta humilde
- Aqui e ali no verde chão rasteja.
- Arvores, plantas d’Egle, a nomeada
- Em todo este arredor pelas delicias
- Dos ricos frutos seus, não se numérão,
- Nem sei louvor que lhes não ceda, e muito.
- O porque sejão taes, fique em segredo
- Quando vo-lo eu disser. — Aqui Vertumno
- Veio uma tarde do passado outono,
- Mudado em rouxinol, cantar nos ramos,
- D’onde, mais bella que a gentil Pomona,
- Egle andava colhendo a rica fruta.
- Julgou ver sua Deoza o terno amante,
- E tão doce cantou por entre os frutos,
- Tão queixoso gemeo, gemeo tão meigo
- Cercou-a tanto com chorosos pios,
- Tantas vezes pouzou na mão de neve,
- Na trança negra, no virgineo seio,
- Que Egle o metteo no candido regaço,
- O levou toda ufana ao lar paterno,
- E em pintada gaiola inda hoje o guarda,
- Que o Deos não quer fugir do cativeiro.
- Quando a sente acordar pela alta noite,
- Acalenta-a com languidos requebros:
- Ao romper da manhã, quando no bosque
- Ouve perto cantando as outras aves,
- Logo a acorda com vividos gorgeios:
- Mas quando a vê surgir, qual Venus da agua,
- Sem mais vestido que a esparsida coma ...
- Ahi he o pipillar, o esvoaçar-se,
- O encrespar de plumage, o dar sem tino
- Contra os duros varões co’ o peito brando:
- Ahi o abrir do bico a pedir beijos,
- E o revelar calado o amor e o nume.
- Por isso he que ao pomar onde foi prezo
- Fadou, quanta vos prende, infinda graça.
-
- Como he puro este ceo do campo d’Egle!
- Como he doce este Zéfiro que folga
- Entre as arvores d’Egle! este he ditoso!
- Ei-la que sáe de seu campestre alvergue.
- Calados se podeis, entre estes verdes
- Porque vos não descubra, olhai-a um pouco.
- Quereis ver como a ponto lhe adivinho
- Os passos, e o que faz, e os pensamentos?
- Sim, Egle he sempre aquella, he sempre a mesma;
- Arvore sem enxerto he sua vida,
- Dá sempre a flor igual, iguaes os frutos.
- Mas silencio, Vertumnos insoffridos,
- Ja vo-la pinto, e me direis se eu érro.
- Do braço nu e candido lhe pende
- De louro milho o próvido cestinho.
- Chama as pombas, lá vão pouzar no alpendre;
- Á eira arroja os grãos, lá são na eira,
- Arrulhão, comem sofregas, refogem;
- Ahi vai novo punhado, ahi vem de novo.
- Uma d’ellas, mais alva do que o leite,
- Vai pouzar no cestinho ao lado d’Egle,
- E mansa come na formosa dextra;
- Furtão côres com o sol o collo, as azas.
- Egle lhe chama filha; affirmarieis
- Que o brutinho a entendeo, salta-lhe ao seio,
- Espaneja-se: agora lhe promette
- O pombo mais fiel para consorte,
- E um ninho todo fôfo, e muito afago
- Aos pequeninos seus; mas quer em paga
- Um beijo, e um beijo pede: a face inclina,
- O bico a vem libar; alonga os labios
- Unidos em botão, corre o biquinho,
- E ao centro do botão lhe leva o beijo.
-
- Agora vem ao tanque, aos rubros peixes
- Trazer segundo almoço: oh!—providencia
- Não ha mais desvelada, ou mais formosa!
- Mal que o choveo nas aguas transparentes,
- Por entre os crebros circulos assoma
- De vivos olhos purpurina turba,
- Tragão-no, e fogem requebrando as caudas:
- Ermo o lago outra vez ficou dormindo.
-
- Que dizeis? volve a casa? em manhã d’estas
- Egle volve ao cazal! tornará logo.
- Mas vós não ficareis, que o não consinto;
- Hoje he só Divindade a Primavera.
- Emquanto a hora da Festa inda vem longe,
- Irmos correndo á sôlta, irmos folgando
- He o nosso dever, foi jura nossa.
-
- ¿Mas que risadas d’esta parte sôão
- Entre os salgueiros, do regato á borda?
- Rasgado o cinto, desgrenhada a trança,
- Uma Ninfa gentil é quem sozinha,
- Se ouve rir no pacífico arvoredo!
- La vai na vêa d’agua bracejando,
- E a soltar de afflição piedosos gritos
- Um Sátiro infeliz! ja muito longe
- A corrente lhe leva o odre e a flauta.
- Agora á flôr das agoas apparece,
- Some-se agora no lodoso fundo.
- Em vez de o soccorrer, o apupão rindo
- Da opposta varzea os rusticos pastores.
- —“Dize, bom guardador das vaccas nedeas
- “Que successo foi este?”—“Eu vo-lo conto.
- “A Ninfa hia correndo, antes voando,
- “Ao longo d’esta margem que verdeja,
- “Quando eu dei fé; suava-lhe no alcance
- “O mofino do Sátiro ... (Que vejo!
- “Inda poude aferrar ... Más horas leve
- “A agua que o não tragou! Pois ja não larga
- “Os vimes que aferrou co’a mão pelluda.
- “La trepa ... Vê-lo em cima! Oh como o bruto
- “Se estira ao sol e arqueja!) Hia no alcance
- “Da pobre Ninfa o Sátiro; umas silvas
- “A prendêrão, travando-lhe do cinto.
- “Carpia-se a coitada entre alaridos,
- “Como passaro prezo; esta novilha
- “Não muge com mais ancia em vendo os lobos.
- “Bate as palmas o fero, e mais ligeiro
- “Atropella a carreira, e vai clamando
- —“Venci-te—Avida mão ja lhe lançava,
- “Senão quando (tomado está dos vinhos)
- “O pé caprino na orvalhada relva
- “Resvala: vê-lo vai de tombo em tombo
- “Medindo a ribanceira, e dá no rio!
- “Logo ao caír, fugíra-lhe dos hombros
- “O odre do vinho, e a flauta d’entre os dedos.
- “Mal poude resfolgar—Ó flauta! ó odre!—
- “Disse trez vezes, e esqueceo-lhe a Ninfa”—
- —“Bem hajas, guardador das nedeas vaccas:
- “Mais feliz sejas tu com teus amores,
- “E menos apressada a que seguires.”
-
- Socios, que mais ha ahi? Que vos demora
- Em de redor de um choupo? Letras, versos
- Entalhados no tronco! uma grinalda
- A abraça-lo, outras mil por toda a cópa,
- Que parece um rosal! na terra mirtos!
- Lede-me esse letreiro: algum queixume
- De infeliz namorado. Oh! ceos, he crivel?
- LEI DE AMOR tem por titulo? se fosse
- Da propria mão do Nume aqui gravada!
-
- _Amar, amar! viver d’amores!_
- _Que o tempo off’rece e nunca espera;_
- _Aos corações bem como ás flores_
- _Não se renova a Primavera._
-
- Oh Lei, porta de Elisio antes da morte!
- Sim, sim, de Amor tu es; vós sois das Graças
- Coroas que a ufanaes, a encheis de aroma.
- Socios, ministros das Piérias Deozas,
- Erguei mão não profana ás flores sacras,
- Privilegio he do estro, ouzai colhê-las:
- Levará cadaqual no peito a sua
- Bem sobre o coração, tão perto d’elle
- Que ouvindo-o palpitar lhe falle amores.
-
- Pois he lei quero amar: sim. Porém onde
- Onde estará da Primavera a Deoza?
- Por toda a parte os seus vestigios nóto,
- Mas não a posso achar. Ah! vós que rides,
- A insólita paixão julgaes chimera.
- Existe, existe a Virgem graciosa,
- Dos Ceos a Filha occulta anda na terra:
- Não são sem divindade estes prodigios.
- Quem faz tão branda murmurar a fonte?
- Quem abre a rosa na materna planta?
- Quem dá cheiro á violeta, e côr ao lirio,
- Ao ar fresco o regalo e verde aos campos?
- Quem poesia de amor ensina ás aves?
- Quem é que influe no coração dos homens
- Tanto amor, tanta paz, doçura tanta?
- Existe, existe a Virgem graciosa,
- A minha doce Amante, a minha Amada,
- Dos Ceos a Filha occulta anda na terra.
- Sinaes de sua mão, pizadas suas,
- Fragrancias que espirou, por toda a parte
- Me envolvem, me arrebatão, me endoidecem;
- Mas busco-a e não se mostra; exclamo, he surda!
- O dia he fallador, he distraído,
- Deidade virginal recêa o dia,
- Casta, só quer talvez ás castas sombras
- Revelar seu misterio, abrir seu peito.
- Oh quem me dera que baixasse a noite!
- Da noite no pacífico silencio
- Côa pelo ar vazio o som mais leve:
- Por isso a Filomela a quiz por sua,
- E o mocho lhe confia as longas queixas:
- Quem me ja déra que baixasse a noite!
- Irei clamar do cume dos outeiros
- “Ó Primavera, ó minha Primavera!”
- E depois que trez vezes repetirem,
- Ao longe os echos meu tristonho grito,
- Attento escutarei se me responde.
- Se nada ouvir, prostrando-me, e cobrindo
- De igneos beijos a terra (os igneos beijos
- Tem valor de conjurio entre amadores)
- Com maior devoção, dobrada fôrça,
- Clamarei “Primavera, ó Primavera!”
- E os campos todos correrei bradando.
- Na solitaria gruta alguma Ninfa
- Ha de acordar, e á parte do oriente
- Lançar a vista, procurando a aurora:
- A aurora não virá, e eu longo tempo
- Andarei pelas trevas suspirando.
- Se trez vezes o sol descer ás ondas,
- Sem que possa encontrar a minha Amada,
- E sem que algum mortal dê novas d’ella,
- Apagarei no peito o incendio inutil,
- Pensando que era ingrata, ou que por sonhos
- Somente a víra em extases do estro.
-
- Mas viver sem amar, sem ser amado?
- Vida entre gelos equivale á morte,
- No pasto ao coração mantem-se a vida;
- Sois brandas affeições, a essencia d’ella.
- Confessar-me da Lei que abrange a todos,
- O primeiro infrátor? Ó Chlóe, ó bella,
- Serás tu d’entre mil, o preferido
- Emprego aos versos meus e aos meus excessos.
- Ja tens da Primavera o genio, as graças,
- Sua fama terás, terás seus hinos.
- Quando com teu rebanho para o rio
- O bosque ao fim da tarde atravessares,
- De longe me verás na flórea margem
- Sobre um penedo a celebrar teu nome.
- Quando o quente redil ao gado abrires
- No frescor da manhã, dir-te-ha meu rosto
- Que entre as da tua porta arvores caras
- Não fui amanhecer, mas toda a noite
- De amor andei cercando o teu descanço,
- Sentindo-te o respiro, ou crendo ouvi-lo.
- Quando na sésta, á sombra da oliveira
- Tiveres descuidosa adormecido,
- Em sons de flauta escutarás por sonhos
- O cantar novo que te mais recreie.
-
- Mas vede como leve escapa o tempo!
- Ja alto e rijo o sol encurta as sombras.
- Largo se ha divagado! Hora purpúrea,
- A mais social, mais folgazã das horas,
- Chamando está por nós co’a mesa agreste.
- Onde a iremos tomar? n’algum tugurio
- De solitaria Baucis? nem de feno
- Pobres tétos consente o sacro Dia.
- Ali temos o outeiro alcatifado,
- Rico montáõ de flores! Que mui frescos
- Pela assomada os louros se entrelação!
- Mas sobre tudo que aprazivel gruta!
- Por fóra he de hera um tufo luzidio,
- Dentro um fôrro de musgo. Alvitre novo
- Ó Socios escutai. Esta collina
- Desde hoje para nós fique Parnaso.
- Eis a gruta de Cirrha, onde costuma
- Febo sonhar magníficas imagens!
- Esses louros são delle! Aquella fonte
- (Ceos nada falta!) he fonte de Castalia!
- No remanso diáfano boiando
- Niveos ganços as azas empavezão;
- Fingi-lhes doce a voz, chamai-lhes cisnes:
- Lindas pastoras nossas Musas sejão.
- Respiremos o estro! Ó lá de Cirrha
- Virações, acudi-nos contra a calma:
- E vós louros selvaticos, ó louros,
- Velai com vossa abobada frondente
- Os vates e o banquete, o rir e os versos.
- A primeira saude a Bacho e Ceres,
- A Palles e Pomona, ora presentes
- Do banquete á rural simplicidade.
- Para dias iguaes, plantar-lhes voto
- Cá bem no viso do sagrado outeiro,
- Densa cabana de perpetua folha:
- Para aqui, de canceiras feriados,
- Viremos amiude abrir os peitos
- Ao bachico folguedo, a Amor e aos cantos,
- Co’a alegria assombrar, e co’a amizade
- Do loureiral as Dríades vizinhas.
-
- Na venturosa paz d’este retiro,
- Não virá perturbar nossa humildade
- Com seus trovões, com seus _coriscos horridos_
- Turba sublime de soturnos vates.
- Alçando o collo, enfaticos praguejem
- Contra os _tirannos_, contra os _monstros barbaros_;
- Pintem de rôjo os _prepotentes déspotas_,
- Fulminem os _perversos aristócratas_,
- E fujão por estudo á natureza.
- Não lhes invejo, não, a bronsea tuba,
- Que despede trovões e rasga ouvidos.
- De nosso humilde genio estou contente:
- Nada mais temos que uma agreste flauta;
- Com ella muda, ás vezes longas horas,
- Da natureza os quadros estudâmos.
- Socios dos rouxinoes, só diffundimos
- Depois de meditar, nossos gorgeios;
- Em quanto o mocho a luz aborrecendo,
- Nos amenos vergeis nunca discorre;
- Dorme o formoso dia em cava furna,
- E sólta pela noite horrendos guinchos,
- Pouzado junto ao ceo, mas entre horrores.
-
- Elmiro, ó tu que, tanto como odêo,
- Odêas as sonoras bagatelas,
- E ris, como eu, dos estrondosos nadas;
- Nunca te afastes da florída róta,
- Por onde a Natureza o Genio chama.
- Da madrugada nos mimosos sonhos,
- Costumas ver de murtas coroada,
- A amavel Sombra do risonho Géssner.
- Oh! quando aos campos teus um dia voltes,
- Á sombra do teu cedro será doce
- Ouvir-te prantear perdida amante!
- Entre as folhas cheirosas susurrando,
- Qual favonio indeciso, os Manes d’ella,
- Mansa tristeza ao coração te enviem.
- Emquanto no escarceo da grão Cidade
- Eu misero, eu saudoso andar lutando,
- La no fertil torrão verás contente
- Por ceos de teu jardim nascer a aurora:
- Regarás pela fresca as flores tuas
- Junto da terna Mãi, que este só gôsto
- Na morte conservou do esposo amado;
- Triste e formosa qual viuva rôla.
- Outras vezes as pombas que sustentas,
- Terno irás vizitar co’as Irmãs bellas,
- Qual entre as Graças passeára Adonis
- Nos arvoredos da ociosa Chipre.
- Elmiro, ¿e alguma vez tambem meus versos
- Serão do teu retiro um passatempo?
- Quando eu tos enviar, vós reunidos
- Junto do fogo nos serões do inverno,
- Contentes os lereis; e tu, girando
- Co’a vaga idea nos passados tempos,
- Dirás a suspirar “He meu amigo”.
-
-FIM DO CANTO PRIMEIRO.
-
-
-
-
-O DIA DA PRIMAVERA.
-
-CANTO II.
-
-_A Tarde._
-
-
- Ja dos louros as grimpas se embalanção:
- Surgir, surgir da relva sonolenta!
- Ja fresca viração consola os ares:
- Que zoada que vai por toda a selva!
- Estrépito de rio impetuoso
- Na calada da noite a crê mil vezes
- O viandante perdido. Hora da Festa,
- Bem te ouvimos anciosa estar chamando.
- ¡Da Primavera á Festa, á gruta, ó Socios,
- De Amarilis e Umbrano á vasta gruta!
- Ja agora o bom de Anfrizo ha de ter pronto
- De sua déstra mão o altar gramíneo,
- Arqueado em docel do cedro a cópa,
- E do cedro no pé com flórea tarja
- Da nossa Primavera aberto o nome,
- Se he que amor lhe não fez gravar _Dorinda_;
- Dorinda, cujos magicos encantos
- Na lira do amador gerão milagres;
- Cujos olhos, tão negros como a noite,
- São como a noite ao Deos de amor tão caros.
-
- Sim, vamos — Vedes vós o pequenino
- Que la vem amontado em verde cana?
- Quão guapo agita as redeas côr de rosa,
- E açouta co’a varinha a brava fera!
- Ouvis-lhe a doce voz que por mim chama?
- —“Salve, menino! e adeos, que hoje não posso.
- “Outro dia virei, toda uma tarde,
- “Trabalhar nas flautinhas, que arremedem
- “Cantar de rouxinol soprando-as n’agua.
- “Amanhã me procura aqui no outeiro,
- “Verás, verás que historias te não conto.”—
-
- Partio: como galopa afervorado!
- Ja vai conta-lo á mãi. Este menino
- He da aldea a doudice, e os meus amores.
- He dote de seus annos a innocencia,
- Como do botãozinho he dote a graça:
- Mas aqui ha melhor, he botãozinho
- Ja fragrante, he virtude antes do sizo.
- N’aquella sésta do abafado agosto,
- Quando fostes nadar, eu passeava
- Sozinho a espairecer pela frescura;
- Eis para mim correndo este menino,
- Vergonhoso me diz:—“Queres atar-me
- “Este cordel nas pontas do meu arco,
- “Bem seguro, bem forte, que não quebre?”—
- —“Sim, amavel menino (eu lhe respondo)
- “Sim quero atar-to bem seguro e forte”—
- E emquanto lho fazia, assim lhe disse:
- —“Vais caçar borboletas? ou mordeo-te
- “Alguma abelha, e queres castiga-la?”—
- —“Não, não: vou dar em minha mãi um tiro”—
- —“Um tiro em tua mãi!”—“Sim n’outro dia
- “Deo-me tanto nas mãos, que me ficarão
- “A doer, tão vermelhas como as rosas”—
- —“E porque assim te deo, que te ficassem
- “As mãozinhas vermelhas como as rosas?”—
- —“Eu tinha (acudio elle) um melro novo:
- “Era meu, apanhou-o a minha rede.
- “Sempre estava a cantar; era tão lindo!
- “E quando assobiava? os outros melros
- “Punhão-se la do bosque a responder-lhe,
- “Queria tanto á nossa Mirtilinha!
- “(A nossa Mirtilinha he a mais pequena
- “Das minhas trez irmãs): e ella tratava-o,
- “Quando eu hia á seara ás cegarregas.
- “No outro dia esqueceo nos a gaiola
- “Ao sol toda a manhã: quando fui vê-lo,
- “Não se podia ter, abria o bico
- “E não tomava nada. Um pequenito
- “Me disse que era calma: agarro n’elle,
- “Vou-me ao tanque, e mergulho-o cinco vezes.
- “Ficou muito peór: punha-o direito,
- “E elle sempre a caír, fechava os olhos,
- “E estremecia todo. Aquietou-se:
- “Cuidei eu que dormia e disse, Dorme,
- “Veio um velho, abanou-o, e disse, He morto.
- “Fui com elle na mão chorando, e em gritos, ta,
- “Procurar minha mãi. Ficou pasmada
- “Quando o vio, e eu lhe disse—Ahi está, não can-
- “Nem ja faz festa á nossa Mirtilinha—
- “Poz-se a ralhar por isto, e castigou me”—
- “Cruel menino (lhe volvi severo),
- “Cruel menino, e em tua mãi pretendes
- “Ir com setas vingar-te?”—“Oh! não (me torna),
- “Não lhe hei de fazer mal. Se tu soubesses
- “O que uma seta faz!...”—“Não te percebo,
- “E pois que faz? explica-te, saibamos”—
- —“Na cabana de Silvio (me responde)
- “Ha um cópo de páo todo pintado,
- “Que elle ja prometteo que me daria
- “Se eu lhe levasse a fita, com que ás vezes
- “A minha irmã Glicera ata os cabellos.
- “Por fóra do tal cópo está com um arco,
- “Para atirar a uma pastora linda,
- “Um menino como eu, com os olhos negros
- “Voltados para mim, e sempre a rir-se.
- “Anda nuzinho ao frio, e tem nos hombros
- “Azas, que lhe não ganha a borboleta.
- “Silvio disse-me o nome que lhe davão,
- “Porem ... ja me esqueceo: tambem me disse
- “Que elle costuma á gente descuidada
- “Atirar muita vez d’aquellas setas.
- “Eu cuidava que as setas matarião,
- “Tinhão-mo dito um dia os caçadores,
- “Mas Silvio me jurou que não matavão,
- “E contou-mo sem rir; Silvio não mente.
- “Aquellas setas vem, entrão no peito
- “Sem ferida nem sangue, e até sem dores.
- “Se obrigão a chorar e a ficar triste,
- “Como ás vezes succede ao meu bom Silvio,
- “Em toda esta tristeza ha tanto gôsto,
- “Que he mais doce gemer, que estar alegre.
- “Eu d’isto nada entendo, porem Silvio
- “Me disse que algum tempo o entenderia.
- “Lembra-me agora! o tal menino d’azas (certo
- “Chama-se _Amor_; não he verdade?”—“He
- (Lhe respondo, apertando-o nos meus braços),
- “Chama-se Amor, e he como tu formoso.”—
- —“E seus tiros não fazem que fiquemos
- “Tão amigos de alguem, como o cordeiro
- “Que anda a brincar com seu irmão no prado?”—
- —“Sim he verdade”—“Então venha o meu arco,
- “Ja tenho em casa muitas setas prontas,
- “Vou ferir minha mãi.”—“Louco! o teu arco
- “Como o d’elle não he (lhe brado rindo):
- “Lança-te ao collo seu, perdão lhe pede,
- “Beija-a, conta-lhe tudo, e eu te prometto
- “Por cada beijo teu, mil beijos d’ella”—
- Não me ouvio mais, correo: e de caminho
- Colheo para offertar-lhe algumas flores.
-
- Mas eis-no; ja no suspirado sitio!
- Essa a gruta: este o cedro annoso e immenso,
- Condigno pavilhão do altar votivo.
- Inda as c’roas vos faltão, ela ó Socios,
- Rompei demoras, ide ás flores, ide,
- E volvei logo a dar princípio á Festa.
-
- Só fiquei: se eu podesse aqui no prado
- Por meus olhos tambem colher algumas!
- (Que as violetas que hei posto andão ja murchas.)
- —“Ó pastorinha de formoso gado,
- “Se podes, nem te peza alguns momentos
- “Perder comigo, apanha-me violetas,
- “Ensinar-te-hei por prémio outros cantares.
- “Teu rafeiro no emtanto o gado vele.”
- Partio, deixando ao lado meu, na relva
- O cordeiro que tinha em seu regaço,
- Tão alvo, tão pequeno como um lirio.
- Pobre innocente! nos meus dedos busca
- Da mãi, que ao longe bala, a doce têta!
- Se comer ja soubesse, eu lhe daria
- D’estas papoulas, d’esta fina grama.
-
- Que silencio! mal ouço uma fontinha;
- Serena viração de quando em quando;
- O crepitar miudo dos raminhos,
- Que a leve cabra arranca do espinheiro;
- A voz d’um lavrador aos bois tardios;
- E o cançado gemer de um carro ao longe.
-
- Cá volve a minha Flora! estou c’roado:
- “Graças ó doce e rustica Belleza!
- Sempre emtorno de ti rebentem flores
- Que o teu rebanho cobiçoso pasça;
- Nunca te falte pelo estio a sombra:
- E amor te volte em fruto as esperanças,
- Se esperanças de amor no peito nutres.
- Vês tu aquelle altar? foi obra nossa,
- Foi por nós consagrado á Primavera,
- E vamos festeja-la. Altar sem Nume
- Faz menos devoção; se tu quizesses,
- Bem o podias ser. Anda, mimosa
- E amavel pastorinha; enflora á pressa
- A trança, o collo, o seio, e no regaço
- Lança flores quaesquer, qualquer verdura:
- Oh! da-me este prazer. Do cedro ao tronco
- Vai-te encostar do modo que te digo,
- Co’a mão na face, e com o sorrir nos labios[8].
- Direi aos socios meus, quando voltarem:
- “Invoquei tanto e tanto os meus Amores
- (Nome he que á Deoza dou, não tenhas susto
- “Nem me furtos a mão) e he tão benigna,
- “Tão docil, tão cortez a Primavera,
- “Que saío do seu bosque, e apraz-lhe ouvir-nos.”
- Folgaremos de os ver caír no engano,
- Ajoelhar-se á fingida Primavera,
- E mais de coração cantar-lhe os hinos.
- De que te ris, singela rapariga?
- Porque foges de mim? Se não consentes,
- Cedo iremos buscar-te nos teus montes,
- Chamar-te Deoza, em dôbro envergonhar-te.”
-
- Que he isto! ja volveis? mostrai-me as c’roas.
- Como escolheste bem, terno Josino,
- Meigo no coração, na voz mavioso!
- Goivos com mirtos para ti cazaste,
- Com o suave condiz a suavidade.
- Se nos campos do ceo, reino do Genio,
- Eu podesse colher miudos astros,
- Dos versos onde alçaste ao ceo meu nome
- C’roa de ethérea luz seria prémio.
- Dou-te o que posso, gravarei teu nome
- Em bosque, onde Hamadríades o leão:
- Decoraráõ com o verso os teus louvores,
- E alguma em si dirá: “Quem me ora désse
- Em minhas solidões este Josino,
- Por ver se he no cantar, qual dizem, meigo.”
-
- Vejamos meu Irmão[9] a tua escolha.
- Eis-te como eu cingido de violetas;
- Ah quanto são iguaes os gostos nossos!
- Abraça-me cantor da natureza,
- Um a outro, um pelo outro aqui juremos
- Juntar sempre em busca-la a industria nossa.
- Abraça-me outra vez: nossa amizade,
- Nossa terna amizade, e nosso estudo
- Aperte mais e mais do sangue os laços.
- Se jamais fado atroz nos separasse ...
- Longe do pensamento esse impossivel!
- Duas vidas irmãs que medrão juntas
- Tem uma só raiz; dão flor, dão fruto
- Nas mesmas estações, e ás horas mesmas.
- Quer benção mande o ceo, quer sôpro de ira,
- Um só bem, um só mal abrange as duas,
- Emquanto uma existir persiste a sócia.
- Vai para o nosso altar, um só momento
- Me prende, o meu lugar tu la conserva
- Entre ti e o das Musas ja mimoso
- Nosso irmão, que no berço achou a flauta:
- Menino, a quem cingistes de alvas rosas,
- Como elle emblemas da innocencia breve.
-
- Elmiro, o teu diadema he bello e simples;
- Mirto e teixo pregões de amor e mágoa.
- Não são menos de ver, nem menos proprias
- As vossas, bom Franzino, alegre Albano.
- Do amor perfeito as flores melindrosas
- Tecem, Franzino, a tua, e tem por joia
- Uma saudade a tremular na fronte.
- De teus suspiros o ditoso emprego
- Longe está, bem o sei, mas não suspires:
- Tua amada fiel na ausencia chora,
- Sua imaginação durante o dia
- Voa a buscar-te aos campos do Mondego;
- Dos campos do Mondego aos braços d’ella
- Sua imaginação te leva em sonhos.
- Albano, a ti o amor foi mais propício:
- Vês amiude os olhos que te inflammão
- E o sorrir facil que te muda em louco.
- Não muito abertas, incendidas rosas
- Cercando as tuas fontes, me afigurão
- A imagem ver de envergonhados beijos.
-
- Vem meu Anfrizo: a tua d’entre todas
- He por certo a mais funebre grinalda;
- Um ramo de cipreste e alguns suspiros.
- Ah tua mãi tão cedo abandonar-te!
- Orfão triste, perdoa ao vate amigo,
- Que em chaga inda tão fresca a mão te ha pôsto.
- Se para ella ha balsamo no mundo,
- Só Amor sabe d’elle, e mãos de neve
- Tem para to applicar virtude innata.
- Sim, Dorinda gentil como que busca
- Esse ermo de tua alma encher de affetos,
- E no vão do teu peito insinuar-se.
- Mas a saudade maternal he muito;
- Todo o mundo, a amizade, e até Dorinda
- Só poderáõ na angustia confortar-te.
- Teu mal sustido chôro eis recomeça!
- Só a dor te contenta, á dor sirvamos:
- Narrar-te quero a historia do cipreste,
- Que dos ramos feraes partio comtigo.
-
- Prêzo das graças da opulenta Silvia
- Titiro guardador de pobre armento,
- Com seus ais estes montes abalava.
- A bella desdenhosa, muitas vezes
- Quando o sentia a modular ternura
- Ao som da flauta n’um sombrio valle,
- Torcia, por não ve-lo, o seu caminho.
- Ah se o visse, estendido entre o rebanho,
- O pranto a borbulhar nos fitos olhos,
- E ao som da flauta, em baixa voz unidos
- De quando em quando um ai, e o nome d’ella!
- Rigores virginaes, desdens de rica
- A amor, á compaixão talvez cedessem,
- E ficasse mais bella, a ser piedosa.
- Por só consolação de seus desgostos,
- Co’a pèga que ja foi da ingrata Silvia
- Folgava repetir de Silvia o nome.
- Nunca a avezinha ao misero deixava,
- Que assim a havião prêza os novos mimos.
- Só ás vezes aos lares revoando
- Da formosa cruel, de la trazia
- Furtada alguma prenda ao pobre dono;
- Sem querer lhe atiçava o fogo inutil.
- Era triste, mas doce, ouvir de noite
- Pelos bosques bradar “Ó Silvia, ó Silvia”
- O terno amante; e acompanha-lo a pêga,
- Ja pouzada em seu hombro, ou ja gritando
- La de cima de um tronco “Ó Silvia, ó Silvia!”
- Longos tempos assim pelas florestas
- Vagar se ouvirão solitarios ambos;
- Té que o loquaz brutinho de cançado
- Veio um dia caír entre as mãos d’elle,
- Bateo as azas, terminou seus dias.
- Á fiel companheira ultimas honras
- Deo como poude Titiro: sagrou-lhe
- Um pequenino tumulo de barro,
- E um ciprestinho de anno, que por novo
- Inda estudava o geito de ser triste.
- Aos Numes implorou que o não crescessem:
- Mas pouco e pouco o tronco foi subindo,
- E com elle de Titiro a saudade.
- Bem póde ser que o tumulo não visses,
- Que ervas espessas de redor o afogão
- Ah desde que o pastor tambem jaz morto,
- Morto ás mãos da saudade, e em terra alhêa!
-
- Tempo he da Festa. Á Festa!—Ahi estão as flautas
- Ja silvando rebate ás alegrias!
- Travai dança, alta dança ruidosa,
- Quaes em seu monte os Sátiros a saltão!
- Venhão de apoz os hinos: logo Bacho
- Nos acuda co’as taças, menineiro
- No aspéto e no palrar, no resto annoso,
- De cãs a reluzir por entre as parras.
- Ser-lhe-ha boa salva o retinir dos cópos
- E os das saudes misturados gritos.
- Do altar meu canto agora ascenda ao Nume!
-
- Vem ó Dona das Graças e Flores,
- Volve á terra teu mago calor;
- Aos que fogem de amor gera amores,
- Nos que a amores se dão cria amor.
-
- Tu és Venus, a Grecia delira
- Crendo-a Filha do túrbido mar,
- Tu és Venus e Musa da lira,
- Cumpre á lira teu Nume exaltar.
-
- Tu és Dríade, e Náiade, e Flora,
- Mocidade e Saude e Prazer,
- Com mil nomes o mundo te adora,
- Mil poderes compoem teu poder.
-
- Do Ceo puro és a noiva córada,
- És só d’elle como elle he só teu;
- Rica em trajos, de aromas banhada
- A seus beijos te off’rece Himeneo.
-
- Feliz extase, abraço jocundo
- Do consorcio completa as prizões,
- Primavera, em teu seio fecundo
- Ja pullullão mais trez estações.
-
- Á voz tua amorosa e macia,
- A teu mago e perpetuo sorrir
- Tudo cede, e te adora á porfia,
- Como te ha de o mortal resistir?
-
- Léda brinca a feliz meninice,
- Léda a ninfa em seus dons se revê,
- Lédo o velho desruga a velhice,
- Tudo he lédo, e não sabe o porque.
-
- Onde assomas o mato florece,
- Desatina a avezinha a cantar,
- Côr d’esp’ranças a terra amanhece,
- Arde o peixe nas brenhas do mar.
-
- Perde as iras a rábida fera,
- E se estranha de ter coração.
- Primavera, que és tu Primavera?
- Vida, fôrça, virtude, união.
-
- Desde que abre ao carneiro doirado
- Hora alegre o celeste redil,
- E das sombras e gelo espalhado
- Despe as terras Favonio subtíl;
-
- Despe a mente por ti bafejada
- Suas neves e escuro invernal,
- Ressuscita de flores toucada,
- Enche a lira, nem sôa mortal.
-
- Pois tu és quem me acorda e me inflamma,
- A ti, Deoza, os meus versos serão.
- Mas debalde o meu estro te chama,
- Os meus olhos jamais te verão!
-
- Amigos, baixo he o Sol, findem-se os hinos:
- Ponde silencio aos copos falladores;
- Assaz he tempo. O dia era dos campos,
- Ás aguas toca a noite; a noite grave,
- Recolhida, saudosa, ama pascer-se
- No murmurinho de deserto rio:
- Tambem o coração tem dia e noite,
- E precisa dos bens desenfadar-se.
- Largo dista a corrente; o passo aperte
- Quem sabe quanto he grato á luz de estrellas
- Ouvir palrar as Náias a deshoras.
- Vamos tomando o gôsto aos fins da tarde;
- E emquanto mais ligeiro o bom Josino
- Corre a aprestar a barca, entreteremos
- O caminhar, colhendo rosmaninho
- Para o colchão nóturno. ¡Que delicias,
- Ir-se acamado em flores aboiando
- Á luz modesta da nascente lua!
- Ama o rio os cantares de saudade;
- Cantares de saudade atiraremos
- Até ao mar pelas sombrias margens.
- Logo que o não rogado, amigo sono,
- De papoulas toucado perguiçosas,
- Lá nos for procurar, e manso e manso
- Forem caindo os sons e pensamentos,
- Iremos amarrar na margem muda
- A qualquer tronco a barca flutuante:
- Lançaremos por cima o branco toldo,
- Bastante abrigo do nóturno orvalho:
- E estendidos macio, e conversando
- Em voz baixa, embalados cederemos
- Ao começado sono os restos da alma.
- Quando alta noite algum de nós acorde
- A um leve crepitar do linho undaute,
- Cuidará que uma Náiade surgíra
- Fóra da agua a cabeça curiosa,
- E inclina o seio ao bôrdo; e nos espreitas
- Assim como alvoreça, a luz da aurora,
- E vós, madrugadoras andorinhas,
- Para o campo acordado heis de acordar-nos.
- Correremos as candidas cortinas,
- E veremos de subito, encantados,
- Sobre nós a verdura estar pendente,
- Do pranto da manhã ja rociada.
-
- Não tarda o Sol momentos em sumir-se;
- No mais vivo escarlate ensopa os campos,
- Tinge a folhage, os rostos nos accende,
- Por montes e olivaes dos ceos oppostos
- Começa a desdobrar seu manto a noite.
- Busca o rustico azilo o boi tardio;
- Por toda a parte os gados vão passando.
- Sustenhamos o halito, escutemos
- Esta distante musica toada
- Que assim transporta os animos em gôstos:
- He toda feminil, toda feitiços,
- Vem toda ao coração; oh se a conheço!
- Pastoras são, que ao longe no arvoredo,
- Vão para a aldea recolhendo em chusma
- O tropel dos rebanhos misturados.
- Cantão, porque he sazão de primavera,
- E peito de mulher, como avezinha,
- Desfaz-se em canto e amor em vendo flores:
- Cantão, porque de um dia assim formoso
- Serão formoso as toma, e o fuso leve
- Que andou por solidões um dia inteiro,
- Vai girar no conchego da fogueira;
- E cantão, porque flautas de pastores
- Que vão na companhia, as desafião.
- Mas tantos sons confunde-os a distancia,
- Figura-se uma voz de tantas vozes;
- Como que uma só boca a manda aos ares,
- Exprime um só afféto, um só deseja.
- Oh Natureza! oh Tarde! oh Primavera!...
- Lagrimas de prazer vertem meus olhos!
- Somos em bosques de propícias Fadas?
- Ou vaguêo ja Sombra, e vós comigo,
- Na semi-vida e semi-luz do Elisio?
-
- Ja tudo se esvaío, tudo he silencio:
- Por campo e campo ao largo impera a Noite.
- Erguida a lua nova o horror lhe troca
- Em saudosa tristeza, e o mocho alerta
- La do alto a ajuda com o piar carpido:
- Ja ouço o estrepitar das frescas aguas.
- Vem barquinha da noite, perguiçosa,
- Vem, toma o rosmaninho, e a nós recebe,
- Oh que ameno he pousar passada a lida,
- Em meio de aguas tantas, rodeado
- De amigos bons, e triste, não de proprias
- Tristezas, sim das mansas do Universo!
- Ouvi, amigos meus, os meus dezejos,
- Quaes mos ora no seio estão brotando
- A hora, o sítio, a lua, aquelles pios;
- Relevai que ao folgar vos furte instantes.
-
- Seios Deozes minhas supplicas ouvissem,
- Um torrão fertil, rústica vivenda,
- Houvérão de abrigar-me a vida pura:
- La minhas ambições se fartarião
- De nobre, de quieta obscuridade.
- Mas pois que de outra sorte aprouve aos Deozes,
- E o fio, não de lã grosseira e nívea,
- Me torcem, mas de ferro as trez do Averno,
- Guardai vós na memoria o meu dezejo.
-
- Depois que entre os abraços delirantes
- De todos os que amei, findar meus dias,
- Sepultai-me n’um valle ignoto e fertil[10].
- Para marcar da sepultura o sítio,
- Sôbre o cadaver, que vos foi tão caro,
- Mangeronas plantai, cuja verdura
- Em roda fechem variados lirios.
- Na raiz funda de soberba olaia
- Pouze a minha cabeça, e o tronco amigo
- Sobre mim curve a cópa florecente.
- Mil piteiras unidas, ostentando
- Na hastea vaidosa as flores amarellas,
- Em quadrado não grande me defendão
- Das incursões das cabras roedoras.
- Em meu tronco se escreva este epitafio:
-
- _Foi poeta amador da Natureza:_
- _D’entre as sombras ancioso a procurava,_
- _Qual terno amante a bella fugitiva._
-
- Sôbre isto pendurai sonora flauta,
- Que se revolva á discrição do vento.
- Não cerque os ossos meus, não mos ensombre
- Nem teixo nem cipreste; arvores quatro
- Quizéra só no meu jardim de morte.
- N’um canto a larangeira graciosa,
- Que mescla util e doce, a flor e o fruto:
- N’outro a figueira sob as amplas folhas
- Modesta occulte seus nectareos mimos:
- Defronte um pecegueiro em frutos mostre
- Que amavel he pudor, quando enche faces
- De penugem subtil inda cobertas:
- No ultimo canto ... (a escolha me confunde)
- Plantai no ultimo canto uma ginjeira,
- He a arvore da infancia, até na altura;
- D’esta por sua mão colhe um menino
- A mui ridente baga, e ri de ufano.
- Alguns tempos depois que a fria terra
- Meus restos encerrar, á minha olaia
- Vós, meus amigos, vós dareis meu nome,
- Pois de mim se nutrio, e eu serei n’ella.
-
- Dos guerreiros nos tumulos afiem
- Faminta espada os barbaros guerreiros:
- No sepulchro do sabio o sabio estude;
- E dos reis nos marmoreos monumentos
- Vá sonhar a ambição, grandeza e pompas:
- Vós soltos de freneticas loucuras
- Aqui vireis mil vezes vizitar-me,
- Na amizade pensar que nos uníra,
- E unir-nos deverá transposto o Lethes.
- Porque me interrompeis com taes suspiros?
- Ah! deixai-me acabar. Quando sentados
- Emtorno a mim na flórida alcatifa,
- Guardardes meditando alto silencio,
- Se d’entre as mangeronas que me cobrem,
- Saír acaso a borboleta errante,
- ¿Não vereis n’ella o espirito do amigo
- Que vem gozar do sol a claridade?
- Quando o suave rouxinol de noite
- Da minha olaia gorgear nos ramos,
- Não pensareis, de santo horror tranzidos,
- Que feito rouxinol, meus cantos sólto?
- Sim pensareis, e erguendo-se inspirado
- Algum lhe ha de bradar “Ó meu Amigo!”
- Responderáõ “Ó meu Amigo” os bosques;
- E vós direis que o meu fantasma errante
- Da argentea lua á muda claridade,
- Á conhecida voz d’alem responde,
- E em tudo encontrareis a imagem minha.
-
- Se inda então meus costumes vos lembrarem,
- Se vos lembrar meu coração piedoso,
- Velai que em meu retiro as bellas aves
- De caçador cruel cantem seguras:
- Amor, o leve Amor, com arco d’oiro,
- Só elle e mais ninguem, logre atirar-lhes;
- Careço de amorosa melodia
- Que me poetize o sono derrabeiro:
- Morto que nada tem preciza d’estas
- Pobres delicias rusticas, se folga
- Que a namorada moça, o terno amante
- Juntos ou sós, a vizitá-lo acudão.
- Então ao som de languidos suspiros,
- De alegres cantos, de amorosos versos,
- De ternas queixas, de perdões suaves,
- Muitas vezes contente a minha Sombra;
- Formando ao pôr do sol vermelha nuvem,
- Girará n’estes ares, revolvendo
- Da passada existencia almas lembranças.
-
-FIM DO POEMETTO
-
-
-
-
-NOTAS AO POEMETTO ANTECEDENTE.
-
-
-
-
-_Pag. 109. verso 10._
-
- Com seus trovões, com seus coriscos _horridos_.
-
-
-Trazia este verso na primeira edição a seguinte Nota—_Eis àhi os
-primeiros esdruxolos que fiz em minha vida, e espero que sejão os
-ultimos, ainda que por isso que fique excluido da communhão de certa
-Seita moderna._—Supprimi-a, e no declarar o porque, vou dar não equivoca
-prova da minha candura. Prezar-se um escritor de mais amigo da verdade
-que de Platão e de Aristoteles, alguma couza he; mostrar porem que mais
-do que a si proprio a ama, certo que não he vulgar o exemplo, e esse
-tenho eu dado, e não raro, ja fallando ja escrevendo limpa e rasgadamente
-o que de minhas Obras me parece. He um bom propozito que eu fiz em meu
-interior, e espero não quebrantar nunca, não só porque de si he honesto
-e nobre, senão que por este meio, o qual não custa mais do que algum
-suspiro á nossa vaidade que sempre se torce e confrange de ser mostrada
-nua, me estremarei da manada dos charlatães literarios, de quem nem
-o estomago me consente fallar. E porque chegue por direito caminho á
-questão dos esdruxolos, recordarei com vénia e boa paz dos leitores, o
-que ja no Prologo da terceira Edição das minhas _Cartas de Echo_ deixei
-tocado; com a differença, que d’esta vez o farei mais explicitamente.
-
-No tempo em que eu cursava meus estudos na Universidade de Coimbra,
-florecia ella com muitos e bons engenhos de mancebos dados ás
-Bellas-letras. E porque ainda então se não tinhão accendido os
-desastradissimos odios das parcialidades políticas, a Hobbesiana
-propensão de guerrear se exercia nas letras. Duas seitas de escrever
-se contavão; a cada uma das quaes não faltavão admiradores, apostolos
-e evangelistas, assim como por isso mesmo inimigos, escarnecedores e
-parodiadores. Os Livros em que uma juramentava os seus adeptos, erão
-Gessner e Bocage; Filinto era o Alcorão da outra. Gessner quanto ás
-couzas e affétos, e Bocage quanto ao térso e lustroso de estilo e metro,
-erão os idolos de uma; os da outra erão, quanto a couzas e affétos
-Filinto, quanto a estilo e metro Filinto, e Filinto quanto a tudo em
-que Filinto podesse bem ou mal ser imitado. Tinha cada uma d’ellas suas
-vantagens e seus descontos, como agora claramente diviso, quando as
-considero com animo livro e desassombrado de preoccupações. Não fallarei
-aqui de Gessner, porque ja no Prologo o fiz; confrontarei somente, e de
-corrida, Elmano e Filinto.
-
-A ambos dotára natureza de talentos, bem que entre si diversissimos,
-assaz fortes todavia que podessem cunhar á sua feição a poesia do seus
-tempos. Elmano, que talvez em seu genero nos ficará sendo unico, de
-fôrça devia deslumbrar e encantar pelo caudal inexhaurivel, brilhante e
-estrepitoso de sua vêa, que eu appellidarei, e ria quem rir, um Niagara
-de talento: e assim como, os que pasmão deante d’essa grande catarata de
-puro embevecidos em sua cópia e magnificencia, não tem olhos para notar
-o esteril do seu curso, o assolador do seu ímpeto, e os penedos que rója
-envoltos e desfarçados com suas aguas, assim os que presentes assistirão
-ao poetar de Bocage, ou da tradição o receberão, fascinados com os seus
-estrondos, espumas e iris, mal se podem lembrar de lhe desejar afféto,
-sizo, e exatidão, que muitas vezes lhe fallecem.
-
-Cinco couzas, pelo menos, para o bom poeta se requerem: _faculdade
-inventiva_—_faculdade sensitiva_—_sciencia_—_lingua_—_e ouvido_; e ainda
-com estas cinco outra, que talvez resultará rempre de sua união, e sem a
-qual todas as mais seráõ baldadas; fallo d’aquelle discernimento pronto,
-que a muitos erradamente pafeceo instinto, e a que se costuma dar nome
-de _gôsto_. Em raros sujeitos concorrem tantos predicados; por isso só
-de longe a longe apparecem os maximos poetas, e ja se dão por grandes
-aquelles a quem menos faltou d’estes requisitos. —
-
-_Faculdade inventiva_ ou não a tinha, ou apenas a tinha Manoel
-Maria; a sua queda para tradutor bastaria para indicio, se de
-indicios te carecesse aonde claras reluzem as provas: um _Fado_, um
-_Jove_, _Eternidade_, _Natureza_, _Sóes_ e _Caos_ são o _index rerum
-notabilium_ da maior parte de seus escritos; e tanto abunda n’estes
-bordões sustedores e disfarçadores de sua fraqueza, como Ferreira (e
-quem descobrirá os meus?) na cançada repetição do _esprito_, Jorge de
-Montemayor na de _hermoso_ e _hermosura_, Pina e Mello na de _alento_
-e _impulso_, Alfeno Cynthio na de _santo_ (epítheto, que por mais não
-ter onde o pegue, até o poem, se bem me lembro, como arrebique na cara
-de suas pastoras e namoradas): com a differença que os particulares
-bordões d’estes poetas, e ainda outros de outros muitos, não são em suas
-Obras senão meras circunstancias e accidentes, e os de Bocage menos são
-estribilhos do que fundo o substancia de inteiros e repetidos periodos.
-
-De _faculdade sensitiva_ talvez o houvesse menos escaçamente dotado a
-natureza, mas outras qualidades que lhe ella mesma deo em maior auge,
-taes como volubilidade de fantasia, aspereza de condição, espirito
-sobranceiro e satírico, e coração, como elle mesmo confessa.
-
-_Mais propenso ao furor do que á ternura,_ lhe entibiarão os affétos
-benignos, de que sé a longes distancias lhe sáe, como a descuido, algum
-reflexo. A estes máos e naturaes elementos accrescêrão desvarios da
-fortuna ou do acaso, bem valentes para de todo lhe seccarem a fonte das
-branduras. Vida mal preparada de educação, nua dos amoraveis habitos
-domesticos, desalumiada de doutrina e estudo, aturdida de applausos
-contínuos e encarecidos, amargurada amiude de pobreza, vagabunda entre
-amigos não amados e por terras não suas, vida, porque tudo diga, corrida
-á ventura e sem norte conhecido, desenfreada de todas as leis, sôlta por
-todos os vicios, cínica por timbre, e por indole silvestre e bravia,
-como podia ser que lhe não tisnasse no germen os affétos maviosos? Isso
-foi, e isso conhece quem bem attento o ler e meditar. Mas em desconto,
-as paixões fortes como o ciume, a colera, a vingança, sente-as e
-pinta-as vigoroso, assim como todos os objétos grandiosos, remontados,
-encarecidos, ou terriveis. Não vos debuxará um mendigo, avergado de
-annos, estendido n’umas palhas esquecidas, junto do cão seu ultimo
-companheiro, e orando no desamparo da noute, por quem, sem o convidar
-para a sua fogueira do inverno, lhe deo fóra da porta meia fatia de pão;
-nem ainda as carícias de uma mãi a seu filho: mas dir-vos-ha, rico e
-altisono, os impetos de uma tempestade, a sanha de uma batalha, as iras
-de uma madrasta, ou as furias de um infeliz que pragueja sua má ventura.
-
-Os affétos e a invenção póde a _sciencia_ por álgum modo suppri-los,
-opulentando-nos com os affétos e invenção de melhores autores, uma
-vez que por nós tenhamos a arte de bem escolher, bem digerir, e bem
-converter esses literarios alimentos em substancia nossa, em nosso
-proprio ser: ainda mui boa estrella he essa, e não poucos dos afamados
-desde Virgilio até ós nossos dias, só á sciencia, e a essa arte de a
-aproveitar, haverão devido a melhor parte do seu credito. He o saber,
-princípio e fonte de bem escrever, dizia o Mestre dos poetas; e dizia o
-dos oradores, que uns e outros era mister entenderem de tudo. E se ja
-isso foi nos tempos antigos conselho e quasi preceito, preceito absoluto
-se tornou, e necessidade, para quem escreve n’estes tempos, em que a luz
-se derramou mais ampla, em que as sciencias, cançadas de viver sobre
-si, se congregarão como boas irmãs em uma só familia, juntarão os seus
-patrimonios em commum, e cada uma ajudando a todas as outras, vem a por
-todas ellas receber um infinito accrescimo em seu peculio. Limitadissima
-era a instrução de Bocage: o latim e o francez, na primeira de cujas
-linguas mormente era primoroso sabedor, segundo referem, podérão ter-lha
-dado copiosissima: mas nem a viveza de seu animo, os prazeres e os
-divertimentos que em seu cerrado círculo o trazião como enfeitiçado, lhe
-permittião estudos, nem são elles facil couza para pobres e viciosos,
-nem o que era saudado por divino, como quer que _desatasse na voz o
-acceso turbilhão_ de suas ideas, carecia de ir excavar em livros o suado
-cabedal, com que outros negocêão veneração.
-
-Quanto á _linguagem_, não será pêjo dizer, que a usava limpa e sã, não
-se podendo taxar a sua de mendiga e remendada, como a ja muitos de seus
-contemporaneos vinha acontecendo, nem encarecer de rica e ambiciosa:
-pouco tinha lido do portuguez, mas esse pouco com aproveitamento: só
-d’isso ajudado, e do latim la se foi remindo e esteando a sua Musa
-sem emprestimos do francez; e este carecer de vicios ja então era
-grande virtude. Para lhe darem, como a texto, cabimento em nosso
-Diccionario[11], não vejo eu razão sufficiente, assim como a não ha para
-o desprezo e esquecimento, em que os havidos por puritanos o deixárão
-cair. Uma couza he porem verdade irrefragavel, e he, que em nenhum
-escritor, antigo nem moderno, apparece a lingua portugueza mais senhoril
-e polida, mais igual e ao meio entre o usual e o sublime, entre a penuria
-e a prodigalidade.
-
-Somos chegados á _harmonia_, o mais eminente merito de Bocage, e no qual
-nem antecessor teve, nem ainda até hoje successor. De todas as partes
-que em Bocage concorrião para poeta, nenhuma havia tão delicada, e em
-que tanto se houvesse a natureza esmerado como o ouvido. A verdadeira
-musica dos nossos metros, particularmente do hendecassíllabo, não só
-a desempenhou e ensinou elle, senão que a inventou; e com felicidade
-tão rara, que não cuido se possa a pontar hespanhol, e nem por ventura
-italiano que o iguale, e mais he o italiano pela abundancia de suas
-brandas e variadas vogaes, pelo moderado e macio de suas consoantes,
-pelas licenças e elasticidade de seus vocabulos, muito mais pronto e
-domavel para todo o uso métrico do que o portuguez. Poucos estafárão
-tanto os consoantes como Bocage (e ainda ahi he grande o seu louvor, que
-não he dado rimar mais primorosamente); mas a ninguem erão os consoantes
-mais escuzados: são esses para o verso uns arrebiques e sinaes com que
-os mal assombrados se disfarção, para poderem apparecer, mas de que os
-graciosos e bellos não carecem, nem os devem consentir, por não parecerem
-menos do que são. Porque não ouzarei eu dizer, que mais são os seus
-versos poeticos, do que era poeta elle proprio? Como simples cantilena
-agradão, agradão ainda quando por vãos os engeita o juizo e o coração
-por frios: um estrangeiro que ignorante d’esta lingua os ouvisse bem
-e devidamente ler, recrear-se-hia como com a toada de um bem tangido
-instrumento. Grande excellencia por certo he esta, á qual principalmente
-deveo levar traz si suspensos e encantados os animos, e por onde logrou
-ser, sem o cuidar, fundador de uma escola, que se me não engano, ainda
-de todo não passou. Toda a gloria de engenho he oiro em que nunca
-faltão fezes: o produzir pela mágica de sua versificação uma seita de
-versificadores, por honroso se podéra haver, se aos discipulos podesse
-ter transmittido, juntamente com as normas, o talento, a fôrça, a graça e
-o gôsto com que as produzia e aperfeiçoava: porem quiz algum Genio máo,
-para lhe humilhar a vaidade e descontar a vitoria, que a maior parte
-de seus sectarios menos lhe tomassem a melodia do que os escarcéos, as
-empollas, os trocadilhos, as apóstrofes, as redundancias, e os versos que
-ja se hoje chamão de dobrar,
-
- _Seu mais doce penhor, seu bem mais doce.—_
- _Vio n’ella os risos, vio as graças n’ella.—_
- _Um Deos não he perjuro, um Deos não mente._
- _Que não paga de um Deos, de um Ceo não paga,_
- _Ouzaste pregoar mais Ceos, mais Deozes.—_
-
-versos, que parcamente lançados, como nas Obras de Virgilio, tem graça;
-semeados a frouxo são affeites e desdoiros do estilo.
-
-Do seu _gôsto_ ja me julgo dispensado de fallar, porque me parece que
-o que d’isso podéra dizer por si mesmo está nascendo do que fica dito.
-Concluamos: o que de Bocage digo em geral, com suas exceções se ha
-de entender, porque por uma parte muitas paginas ha suas, mormente
-em algumas traduções do francez, onde parece lhe esqueceo pôr o tal
-verniz de dicção e sons que para si inventára, e de que a ninguem
-deixou a verdadeira receita: e por outra parte tambem, obras ternos
-suas, mormente sonetos e traduções latinas, cabaes e redondissimamente
-perfeitas.—Passemo-nos já a tomar iguaes contas a Filinto.
-
-Muito mais melindroso he este processo, até porque ja o querer tomar-lhas
-será para seus apaniguados um crime de leso Apollo, e primeira cabeça.
-Valha-me porem a declaração que faço, de que em tudo quanto disser, não
-seguirei outras partes que as de minha razão, declarando previamente
-que muito pouco dou eu mesmo por ella; mais são consultas que faço
-que sentenças que profiro, e antes exercicios de imparcialidade do
-que acintei de inimigo: de ninguem o sou, quanto mais de poetas, de
-perseguidos, de velhos, de mortos. Foi tempo em que eu, obscuro poetastre
-do Mondego, ria e vazava epigrammas contra o tradutor dos _Martyres_:
-hoje se me afigure muito mais valioso. He elle o mesmo, mudei eu; Deos
-sabe quantas vezes mudarei ainda com os annos: do mudar não he nossa a
-culpa; nossa he porem, e feíssima a de persistir no erro conhecido; se
-a republica literaria tivesse inquisidores, por heresia e contumacia
-que não havião relaxar ao braço secular. Ha por ahi muito homem do meu
-officio que possa dizer de si outro tanto? Mas deixemos esses que estão
-vivos, e vamo-nos a Filinto.
-
-Se he ou não _creador_, ja vi ser renhida questão entre ociosos: para
-mim tenho que semelhante titulo mal lhe pode caber. O frequente verter
-ha pouco disse eu que denunciava esterilidade; e podéra accrescentar uma
-sentença ainda mais desabrida, que ha muito encontrei, cuido que nas
-Lições literarias do Doutor inglez Blair, e que muito me caío; a saber,
-que o costume de traduzir, bem que olhado pela rama pareça dever ser
-frutífero, sempre ao cabo vem a desgastar-nos a faculdade inventiva.
-Compara-lo hei com o linho, que apezar de tão precizo no mundo e de
-tão agradavel aos lavradores depois de colhido, por isto só desgosta a
-muitos d’elles, que a terra onde se criou fica magra, e como elles dizem
-queimada para outras novidades. Muito mais de metade dos tomos de Filinto
-trazem no titulo os nomes de autores estranhos, devendo-se ainda lançar a
-este rol por boa restituição, bastantes Obras, que talvez por descuido,
-imprimio sem nenhuma menção de serem, como erão, vertidas. As imitações
-são no merito e inconvenientes meias traduções, e as do nosso poeta são
-numerosissimas, disfarçadas umas, outras manhosamente dissimuladas. No
-resto que he de sua lavra, apenas se nos depara couza que abone talento
-original e produtivo a: são os chamados lugares communs de poesia
-filosofica, que ja por safados custão a passar, e as tão esfalfadas
-visões e apparecimentos de Apollos, de Musas, de Amores, de Pégasos, e
-de outros mil defuntos, a quem o tempo ja comeo o balsamo, e que todavia
-são ainda a unica povoação de quasi todos seus poemas, tanto jocosos como
-sérios. Algumas vezes me vem desconfianças de que n’aquelle passo da
-Sátira do _Bilhar_, em que o nosso Tolentino parece rir de certas Odes,
-contra Filinto hia tirada a seta de sua crítica:
-
- _Co’as verdes mãos o serpeado Tejo_
- _Alça o trilingue, mádido tridente;_
- _Mas que Górgona filtra? eu vejo, eu vejo ..._
- Em dizendo isto he Ode certamente.
-
-Em _affétos_ porem sobreleva a Bocage, e não abunda. A espaços lhe
-vislumbrão assomos d’aquella sismadora melancolia, que mais ou menos
-respira em todos os bons poetas. As amarguras e saudades, que em tão
-larga vida e desterro lhe não faltárão, alguma, e não rara vez, lhe
-soprárão versos amoraveis, e deliciosos de tristeza. He este de todos
-os dotes de poeta o mais caramente comprado; sendo assim que Deos sabe
-quantas vezes em applaudir um verso que nos toca, batemos por ventura
-palmas a calados infortunios de quem no-lo escreveo. Não nos assuntos
-ditos _sentimentaes_ se conhece tanto o verdadeiro sentimento, como
-nos de indole mais fria e izenta; porque, se n’estes ultimos apparece
-inesperada uma palavra maviosa, n’uma flor de festa uma nôdoa de lagrima
-a descuido, ahi vem o infallivel documento de ternura e suavidade: e
-d’estas sombras de lagrimas, d’estas palavras, maviosas achamo-las em
-Filinto.
-
-Na _sciencia_ he que elle mais notoriamente leva a palma ao seu
-contendor. Que muito? com o dôbro de vida, com precizáõ de estudar para
-se divertir das mágoas e ganhar pão, com o ar e tráfico de Paris onde
-todos inspirão e expirão letras, e com tão espaçosa velhice, pingue
-quadra em que as paixões quietando nos deixão todo o silencio, remanso
-e curiosidade necessarios para o estudo! Tornarão-se-lhe familiares
-os classicos portuguezes e latinos, de uns e outros dos quaes talvez
-Bocage não tivesse acabado dois ou trez volumes; familiares os classicos
-francezes, hespanhoes e italianos, e ainda as versões dos inglezes e
-allemães. Á roda d’elle chovião de dia a dia, e de hora a hora, os frutos
-novos de todos os ramos das Sciencias, de que he impossivel a quem por lá
-vive não provar, até sem querer, e ao cabo não se nutrir e fortificar.
-Entretanto repararia eu, se o ousasse, que para quem logrou concurso de
-tão favoraveis circunstancias, como as que a sua má estrella lhe deparou,
-não saío Filinto o que se podéra esperar de noticioso e culto; e ou
-desaproveitou o maná que ás mãos do espirito lhe chovia, ou se o tomou
-lhe não luzio. Á primeira d’estas duas conjéturas me inclino, porque
-segundo o que de seu natural alcanço por suas Obras, parece-me que na
-lição das estranhas mais se hia á caça de vocabulos e frases curiosas,
-insolentes e atrevidas, do que de doutrinas e filosofia. A sua era meã
-e usual: cançados louvores á Liberdade, á Amisade e á sã Virtude, ao
-estudo, ao descanço e ao deleite, alguns arremeços de encontro aos Bonzos
-e Naires, eis ahi sondado até ao lastro o seu poço de saber moral: alguma
-historia não rara antiga e moderna, eis todo o seu saber positivo; e todo
-o seu saber natural, alguns dos principios geraes e diarios das Sciencias
-fisicas. E certo, que se mais avultados fossem estes seus cabedaes, e vêa
-mais fecunda lhe consentisse anciar mais altas couzas do que palavras
-e frases, não se deixára ficar tanto atraz no meio de um seculo novo
-e alado de poesia; não se contentára o seu estro abstémio com a agua
-do Parnaso até á ultima hora da vida; e não nos deixára seus volumes
-pejados quasi só de fabula, como armarios de muzeu antiquario, onde se
-não vai procurar qual he o mundo em que vivemos, mas deduzir de troncados
-e desluzidos fragmentos, o que em tal ou tal parte da terra houve lá
-n’outros tempos, com os quaes e com a qual só pouco ou nada temos. Diz um
-Escritor insigne[12], que a poesia assim como ontr’ora viveo de fabula,
-revive hoje e se apascenta de verdade. Melhor dissera que de verdade
-viveo em todos os tempos a nobre poesia, pois que o que para nós se
-descubrio fabula, era nos dias em que appareceo e florio, verdade de
-factos, ou capa allegórica de verdades, mui crida e sincera.—Resumamos;
-Filinto soube mais que Bocage, menos do que podéra, e diverso do que
-devêra saber.
-
-A _linguagem_, de que pela ordem se me segue fallar, mais requeria n’este
-caso um tratado, do que uma nota de fugida. Algum dia o tentarei, quando
-me achar mais de assento e sobre mão do que agora, que as justas raias
-d’este escrito me estão tolhendo. He a linguagem e elocução a principal
-feição caraterística de Francisco Manoel, como de Manoel Maria o he a
-harmoniosa elegancia.
-
-A torrente das hipérboles e conceitos hia arrazando e engolindo todo o
-nosso Parnaso, quando para lhe pôr a ella diques, e a elle salva-lo,
-e repovoa-lo de natureza, appareceo a Arcadia. Detençosa e ardua se
-representava a obra, como aquella em que a razão nua tinha de lutar com a
-imaginação delirante. Para anteparar ímpetos de vêa tão engrossada com as
-contínuas nascentes e tão copiosas de Italia, Hespanha e Portugal, ja tão
-senhora do leito e dominadora das margens, era mister que braços fortes
-lhe levantassem muralhas solidas de grossa e pezada cantaria. Virão os
-Arcades como lhes estavão á mão as obras, não todas primorosas, mas
-quasi todas massiças dos nossos quinhentistas e dos romanos classieos:
-erão accommodadas ao intento, dizião com seu gôsto e costume; valerão-se
-d’ellas, accrescentarão-lhes as suas proprias, levantarão o muro; bramio,
-quebrou e escoou-se a inundação. Raro he o bem, que só porque o he, não
-traga outros comsigo: dos trabalhos, que havião tido por fim acabar com
-os nojos e puerilidades do falso engenho, nasceo um conhecimento mais
-profundo da linguagem, mais extremoso amor á sua pureza, e o comêço do
-encarniçado e ainda não findo pleito, entre a puridade e o gallicismo.
-Verdade he que n’este segundo campo se não guerreou com tão favoravel
-marte como no primeiro, porque se as maravilhas da _Fenix Renascida_
-passárão, os gallicismos fôrão em successivo crescimento, sendo ja hoje
-tão caudaes e trasbordados, que princípio a desconfiar não haverá remedio
-senão rendermo-nos, encruzar os braços, e deicharmo-nos ir ao fundo:
-tanto estou convencido de que nem a propria razão he poderosa contra o
-espirito de um povo: e a final de contas, Deos sabe, até n’isto, o que he
-razão!
-
-Era Filinto, por sua amizade e commercio íntimo com os sujeitos de maior
-credito na Arcadia, e por motivos de sua propria conveniencia, homem que
-de necessidade devia entrar na pendencia, e sustenta-la até á ultima:
-n’isso assentou, e o cumprio mui pontualmente. Entendeu desde todo o
-princípio, como aquelle a quem não fallecia bom juizo, em se prover das
-armas seguras e bem temperadas, sem que lhe não conviria arriscar-se
-no combate: e se as defensivas que vestio lhe podessem ter saído tão
-impenetraveis ás setas do ridiculo como as offensivas que meneou erão
-fortes e penetrantes, guapissimo Cavalleiro houvéra apparecido, e
-invencivel. Do antigo portuguez e do latim instituio concertar toda sua
-armadura: com diurna e nóturna mão versou pois os monumentos de ambas
-estas linguas; e quanto do portuguez ja feito se podia enthezourar, ou
-se lhe podia accrescentar por derivação, por composição, por analogia,
-por translação, ou por qualquer outra licença poetica, sem embargo
-de desenvolta e extrema, tudo ouzou com ardimento verdadeiramente
-admiravel. Fez estranheza a novidade, offenderão-se os mimosos com o
-escabroso e difficil de tal estilo, arripiarão-se os pusillanimes com o
-arrôjo, os ignorantes e priguiçosos com a immensa fadiga que bem vião
-seria necessaria para entender, não só imitar e seguir, quem tão por
-fóra caminhava das veredas batidas e vulgares. Todos estes, e com elles
-os invejosos, saírão em campo, combaterão, e apuparão, e quanto mais
-apupavão e combatião, mais recrescia em Filinto o acintoso proposito de
-se não descer do começado, antes encarecê-lo sempre até o ultimo ponto.
-Outra causa havia que para isto lhe fazia fôrça, e era conhecer como
-sem estes bordados, recamos e relêvos de frase, o cabedal de suas galas
-poeticas appareceria, qual em realidade era, grosso, commum e de mui
-baixa valia. Mas quer o movesse esta causa bem perdoavel, quer fosse
-generosidade com que se offerecia aos motejos, e desapreço de muitos, com
-o só intuito de restaurar, e avantajado, o edificio do idioma portuguez,
-sempre fica certo que n’este particular mereceo mui bem de sua patria,
-e a deixou muito mais medrada do que a achára. Oxalá que dois ou trez
-mais, dotados de igual credito, pozessem como elle peito á empreza; e
-muito embora demaziassem como elle: cunhassem a flux tudo quanto dão
-as minas portugueza e romana; ainda muito oiro puro de dicção viria
-enriquecer-nos, e facilitar-nos o tracto; pôsto que tambem como elle lá
-cunhassem á mistura oiro enfezado, não de lei, nem de receber: o juizo
-público estremaria umas de outras moedas, e as engeitadas a ninguem
-farião mal, se não fosse ao credito de seu autor. Assim crescêra cabedal,
-que ainda mingoa para as obras do engenho patrio. Nossa lingua, qual por
-ora a temos, e até restituindo-lhe todos seus fóros caídos, todas suas
-joias enterradas, não supre as hodiernas precizões do espirito. Quando
-a esfera do saber, sentir e pensar se está de hora para hora dilatando
-no mundo, do qual nós outros (ainda que o não pareçâmos) somos tambem
-parte, forçado hé que a esféra da expressão ao mesmo compasso se dilate,
-e engrandeça. Repôr ao idioma quanto ja teve será louvavel consciencia,
-porem não bastará, se apoz isso se lhe não dér com mão liberal, mas
-prudente, quanta substancia nova elle possa receber e commutar, para que
-na apostada carreira que os entendimentos das nações agora levão para o
-infinito desconhecido, o da nossa, por fraco e sem azas, se não deixe
-ficar atraz.
-
-Uma reflexão quero eu aqui fazer, mais que a taxem de digressão; não será
-nova para os que escrevem, mas servirá para que os que lem se abstenhão
-mais de acoimar pobrezas em nossos poetas. Ja das palavras se averiguou
-serem ellas fio e arrimo de que a mente se vale para melhor ir seguindo
-por suas ideas sem queda nem tropêço. Pois se as palavras, que não passão
-de reflexos e retratos do pensamento, tem virtude para o fecundar,
-menos ainda se duvidará precizar a imaginação poetica de uma abundante
-linguagem, para se manifestar por obras, assim como o pintor de finas e
-variadas tintas para seus paineis, e o musico de instrumento pronto e
-copiosamente registado, para enlevar os animos. O poeta francez, porque
-tem uma lingua que á fôrça de bem cultivada por muitos e differentes
-engenhos, se accommoda préstes e serviçal aos pensamentos mais subtis
-e novos, e aos affétos mais delicados e passageiros, d’ella se ajuda
-para inventar, e com ella exprime completamente o que inventou. Não
-assim nós, que em pertendendo alçar-nos por cima das communs ideas do
-nosso paiz, nos achâmos, sem o cuidar, pensando em francez; e se isso,
-que bem ou mal nos apparece na alma, tentâmos passa-lo para o papel,
-suâmos, bramimos, aqui nos faltão de todo as expressões, ali só tibias
-nos acodem, outras mal determinadas e mal entendidas, outras estiradas
-em perífrases. Dai-me o proprio Lamartine nascido nas margens do Tejo,
-e pedi-lhe uma só _Meditação_, uma só epocha de _Jocelyn_; grande será
-o acêrto se as conceber, quasi impossivel que as escreva. Ponderou
-Condillac mui avizadamente, que a razão porque apparecião em certo povo
-e tempo maior numero de varões abalisados em letras, era o ponto de
-crescimento e sufficiencia abastada a que chegou n’esse tempo a lingua
-d’esse povo. Melhor será que o deixemos por sua boca doutrinar-nos, que
-bom missionario he em couzas d’estas.
-
-“Acontece com as linguas (diz elle) o mesmo que com os algarismos dos
-geómetras: quanto mais perfeitas são, mais vistas novas nos offerecem, e
-mais nos dilatão o espirito. Os bons acertos de Newton de antemão havião
-sido preparados pela escolha dos sinaes que antes d’elle se fizera, e
-pelos methodos de calculo ja imaginados. Se mais cedo nascesse, podéra
-ter sido homem grande para o seu seculo, mas não fôra agora maravilha
-d’este nosso. Outro tanto vai pelos demais generos. A boa fortuna dos
-engenhos mais bem aparelhados inteiramente depende dos progressos da
-lingua no seculo em que vivem, porque os vocabulos correspondem aos
-algarismos dos geómetras, e o modo de empregar os vocabulos corresponde
-aos methodos do calculo. Por tanto, em uma lingua aonde ha penuria de
-palavras ou de construções bem azadas, ha os mesmos obstaculos em que a
-geometria topava antes do invento da algebra. O idioma francez foi por
-largo discurso de tempo tão pouco ageitado aos progressos do espirito,
-que se imaginarmos Corneille em cada um dos seculos ascendentes da
-monarchia franceza, quanto mais ao remontar nos fôrmos afastando do em
-que viveo, tanto mais, e gradualmente, irá mingoando o seu engenho, e
-chegar-se-hia por ultimo a um Corneille que nenhuma prova poderia dar de
-talento.”
-
-Voltemos a Filinto. Não decedirei se houve ou não bom fundamento
-para o allegarem por autor e texto, como o fizerão na quarta edição
-do Diccionario de Moraes: nem ouzaria eu pôr mão no fogo pela
-infallibilidade de sua pureza, porque (mas a medo e sommisso vai o dito,
-que por dito e não sentença merece vénia) aqui ou acolá se me figura
-enxergar por suas paginas algumas nódoas d’aquella mesma côr a que nunca
-perdoou odio. Mas se as ha, são manchas, no passo que o geral de sua
-escritura he recheado de muitas preciosidades para quem poz peito a bem
-escrever esta lingua. Por toda a parte lhe estão pullullando lusitanismos
-em vocabulos, frases, collocação, inversões, geito e feição de períodos,
-que se houver gôsto em quem lê para os joeirar e limpar de alguma mistura
-chôcha ou sédiça, farão muito bom sustento para poetas e prozadores. Se
-houver gôsto, puz eu, e muito que o puz de indústria, porque, os que
-d’elle carecerem, lição tal só os fará mais ridiculos; os que ainda o não
-houverem formado, e se metterem por esses onze e mais volumes sem bom e
-constante Mentor, não sei se em linguagem e em poesia viráõ nunca a dar
-fruto que bem saiba e se abençoe.
-
-Em summa, Francisco Manoel do Nascimento foi um martyr da religião de
-nossa lingua: para lhe lançar mais gloria cerceou a sua propria: com o
-excessivo das joias com que a arreou, deixou-a affétada, e menos matrona
-grave do que bailarina de corda; sim habilidosa e leve, mas dengosa
-e presumida: mostrou-lhe o como e por onde devia subir á perfeição,
-a que por outros, porem tarde e mui tarde, será levada: foi, porque
-tudo diga, um destemperado despertador, que nos poz a pé para o dia
-das letras.—Quero repetir, fez serviço talvez maior que nenhum dos
-classicos, mas he de todos o menos para seguir ás cegas. Bem haja elle
-que tocou a alvorada para nos acordar, mas mal haja quem quizer ficar com
-trombeta tão rouca e dissonante a tocar alvoradas todo o dia: ja estamos
-acordados, cabe agora aproveitar o tempo, como gente de juizo.
-
-Se da lingua passâmos em Filinto á _harmonia métrica_, damos maior salto
-que o de Léucade, e como cumprindo igual oraculo, ou nos afogamos em
-um mar bravo, ou de lá surdimos curados de todo o amor a tal poeta.
-Em nenhuma das quatro ou cinco partes do globo, e em nenhuma era se
-metrificou jamais lão dura, desleixada e insolentemente. Se alguma vez
-se esquece com dois ou trez versos bons, logo se vinga com duas ou trez
-duzias, que se os reduzissem a linhas iguaes, não serião mais nem menos
-que desaceiada proza. E ainda he para agradecer quando só lhe falta
-melodia, porque algumas vezes nos dispara versos, em que as pauzas vem
-todas desconjuntadas, e outros, em que sobejão síllabas, por mais que a
-maço as procuremos entalar e embeber umas por outras.—A sua rima he por
-via de regra desnatural a pobre: os seus sonetos e toda sua lírica de
-consoantes, enxabimentos ou arripíos. Bem se alcança como erão arrufos
-de maltratado, as injurias que em muitas partes vomitou contra a rima, e
-não como as de Boileau, vozes só de um juizo rigoroso, que de dentro das
-letras as media. Nos defeitos de versificador fez de idade para idade
-successivos enotados progressos, sendo assim que ou por desleixo, ou por
-certa petulancia, em que engenhos grandes muitas vezes cáem, tomando
-por timbre o escarnecer do Publico, quanto mais hia usando do officio,
-tanto mais desprimoroso se foi mostrando, até ganhar tão duro callo na
-consciencia, que nem a deliciosa harmonia dos versos de Racine lhe podia
-ja ao cabo inspirar, um só verso toleravel de tradução.
-
-Do muito que só deixo apontado se deduz a idea que para mim tenho do seu
-_gôsto_; melhor será do que só deixa-la deduzir, declara-la. Parece-me
-pois ser o seu gôsto pouco e máo; e n’isto estribo o parecer: 1.º que
-para suas Obras originaes costumava de escolher fracos sujeitos—2.º
-que as pejava de taes invenções que ja em tempo de Romanos o não
-erão—3.º que por vida se repete, e por costume redunda—4.º que na ordem
-desordenadissima em que seus escritos pôz, anda o peor tão travado com
-o melhor, e as puerilidades vergonhosas com as Odes que lhe lucrárão
-nome, que sem que o lustre do bom disfarce o máo, o esqualor e nojo
-d’este deturpa e estraga aquelle—5.º que se para traduzir elegeo ás vezes
-bons originaes, taes como o Oberon e os Martyres, outras os escolheo
-desenganadamente incapazes, taes como a triste historia em verso da
-Guerra Púnica: outras vezes, escolhendo originaes optimos, nem antevio,
-nem pelo discurso do trabalho conheceo, nem sequer sentio depois de
-findo (porque talvez se o sentisse nos houvéra poupado a ler a versão),
-que havia n’essas Obras exclusivos e essencialidades, quer da lingua em
-que estavão feitas, quer do engenho que as fizera; haja vista ás tão
-graciosas e admiraveis fabulas de Lafontaine, que em Filinto parecem
-tanto as mesmas, como a estampa de Bertoldo se podéra julgar retrato do
-Apollo de Belveder. etc. etc. etc. etc.
-
-Taes são hoje para mim Filinto e Bocage: mui outros dos que ja me
-parecêrão, e talvez dos que me hão de parecer quando novos livros,
-novas couzas, e o rodear dos annos me houverem feito sou ordinario e
-incontrastavel officio. N’aquellas eras pois, que ja eras antigas se me
-representão aquelles meus tempos, caía todo com o meu Gessner em braços,
-para a parte de Bocage, mancebo e lustrozo; e se me figurava que se
-lograsse trava-los, fundi-los em um, faria obra de se me agradecer. Os
-partidarios de Filinto, que não sei porque, trazião guerra declarada com
-Bocage, vierão saindo de seus montes escarpados, empeçados e tenebrosos,
-para dar váias e tirar remêssos de epigrammas ao nosso bando: cerrámo-nos
-com a bandeira, démos sobre elles com iguaes armas, foi batalha campal,
-rôta e sem misericordia: não houve mórtos nem cativos, poucos transfugas,
-feridos muitos. Recolhidos nas trincheiras, cantámos uns e outros,
-como he costume, o _Te deum_ da vitoria; dobrámos a altura aos vallos,
-e profundez aos fossos que nos estremavão; jurámos não acceitar nunca
-pazes, quanto menos commette-las, nem consentir em alguma couza que ás
-dos inimigos se parecesse. Eu que fôra dos mal feridos e ainda palpava
-as costuras, como havia de faltar a nenhum ponto da conjuração? Muitos
-d’elles merecerião tratados, mas porque não fazem para o fim d’esta Nota,
-venho aos esdruxolos, e só libarei a materia.
-
-Da natureza, como quer que seja, nos vem sempre o gôsto; mas sendo que
-a moda, que muitas vezes se gera de um acaso, introduz o uso, e este
-chega a mudar ou alterar a natureza, vem a ser o gôsto em muitos casos
-enleada materia e muito esquiva para questão, abonando-se talvez por ahi
-o proverbio, que sobre gôstos prohibe disputar. Dir-me-hão, que nada
-tem a natureza com os métros, que só a moda a seu talante os cria e os
-acaba: he e não he verdade; mas tambem isso deixaremos de parte, por
-pedir digressão larga e mui sobida filosofia. Em breve, parece-me que a
-fantasia ou o acaso inventa os métros, a moda os espalha e rege, a nossa
-natureza se lhes affaz, mas deve quanto podér afeiçoa-los e conchega-los
-comsigo. Das dez, onze ou doze síllabas de que pode constar o nosso verso
-heroico, quiz a moda que o numero de onze fosse em Portugal, Hespanha
-e Italia o usual e corrente; moda que estribou no ser d’estas linguas,
-em que a quantia de vozes graves excede á das agudas e dactílicas.
-Costumou-se o ouvido com a igualdade da queda, criou uma certa natureza,
-e todas as vezes que inopinadamente o obrigão a outra queda maior ou
-menor, como que se espanta e sobresalta: porei exemplo nos que sobem ou
-descem ás escuras e ja pelo tino uma escada; se lhes falta no subir um
-degráo com que ainda contavão, o pé que no ar pôz firmeza cáe em falso,
-e comsigo leva todo o corpo estremecido; se lhes sobeja um no descer, o
-pé que ja se dava por assente, não desce mas atropella e traspoem. Por
-tanto, regra geral, o verso grave, que he o da moda e tambem o da nossa
-natureza, he o de que nos deveremos servir: como porem entre as couzas
-sujeitas á poesia, se nos deparem algumas, cuja indole póde ser esse
-mesmo estremeçáõ, ou atropellamento, razão será que em taes casos bem
-averiguados e por via de excéção, acudamos á idea com o verso que melhor
-lhe condiz: os exemplos são faceis de colher nos autores, não gastaremos
-com elles papel. Ora para se consentir n’esta excéção, não deixa de haver
-outro motivo de algum momento, e verdadeiramente he elle o mesmo em que
-a regra geral se fundou; porque as estranhezas, que por desagradaveis
-persuadírão á regra, por uteis nos conformão com a excéção, sendo que
-tem virtude para nos espertarem, quando o embalar da monotonia nos vai
-adormecendo. Não por outra causa, vierão os melhores metrificadores
-latinos em variar, ainda que rarissima vez, os seus hexámetros perfeitos
-com o espondaico ou com um monosíllabo final: ambos nos abalão; os
-primeiros em certo modo como os esdruxolos, os segundos como os agudos;
-e abalando-nos a propozito, por exemplo para sentirmos a queda do animal
-no famoso _procumbit humi bos_, deixão-nos afiados para proseguir com
-attenção, e melhor tomar o gôsto ao caminho, que outra vez continúa lizo
-e macio, passado o tropêço.
-
-Assentámos o princípio, vejamos se o uso lhe tem sido conforme. A Italia,
-attenta a prontidão, e musica de sua lingua, devêra ser d’estes trez
-povos do sul o mais aprimorado em toda a qualidade de metrificação, e
-todavia he o contrario no hendecasíllabo sôlto, podendo dizer por si o
-que o seu Ovidio poz na boca de Narciso, que a sua riqueza a fez pobre:
-os seus poetas, ainda os modernissimos, sôbre não curarem dos sons
-que recheão o verso, e quantas vezes nem das pauzas, sôbre estirarem
-desmesuradamente os seus períodos, consentindo que os versos se travem e
-encadêem de contínuo, misturão sem nenhum motivo de effeito, os versos
-agudos e esdrúxolos com os graves, segundo o acaso lhos vai deparando.
-He o mesmo que succede a quem possue terra de sobejo fertil e facil:
-ella que supra por si ás primeiras precizões; trabalhe-se o necessario
-para que não falte, o resto, que bastaria para a fazer paraizo, dê-se á
-priguiça. Os francezes, que tão menos poetica lingua tinhão, obrigados
-por essa mesma pobreza a cultiva-la, esmerados e incançaveis, ¡quanto a
-não levão ja por arte, adeante do que por natureza podéra ser a italiana!
-são n’uma parte os paúes de Hollanda a produzir; na outra, terras pingues
-e dobradas de Otaiti a regalar com pão e frutos espontaneos aos semi-nus
-e ociosos naturaes. D’este versejar de italianos, me dizia uma vez José
-Agostinho de Macedo, que a maior parte de taes poesias lhe dava a lembrar
-as récuas de mulos de almocreve, que enfiados e prezos uns a outros, ao
-som dos chocalhos enfadosos, la se vão, ora tropeçando ora erguendo-se,
-continuando o caminho, e sempre chegão com a carga onde tem de ir.
-Quando assim fallo, quero que se entenda que me não refiro a todos sem
-excéção, mas só ao geral d’aquelles poetas. Bem pode ser que os haja
-agora primorosissimos que eu não conheça, e dos conheçidos alguns ha com
-quem não serei tão severo taes como Monti na tradução da Illiada, Fóscolo
-se me não engana a lembrança que d’elle me ficou, Alexandre Manzoni, e
-Felice Romani.
-
-Em Portugal, pois que a lingua era tambem préstes e serviçal, e os que
-n’ella poeta vão se comprazião de se irem sempre na pista dos Toscanos,
-sente-se nos poetas antigos o mesmo desmazelo. La andão com os versos
-graves os esdruxolos inuteis, ainda que não frequentes e os agudos aos
-cardumes. Camões, que de todos elles foi por ventura o de mais delicado
-ouvido, rimando hendecasíllabos, até na epopea não duvidou em os pôr,
-quando acaso lhe apparecião, e sem nenhuma intenção ou fito poetico; o
-que a Vasco Mauzinho de Quebedo seu inferior em poesia, mas superior, se
-he lícito dizê-lo, em metrificar, por tal arte desagradou, que em todo
-o poema de Affonso Africano nunca interpolou com elles versos graves, e
-d’isso faz alarde em seu prologo.
-
-N’esta incerteza correo a couza até os nossos tempos, em que dois
-homens de fôrça, dois athletas da poesia, representando cada um uma das
-encontradas opiniões, devião ter perante os olhos publicos um calado
-e rijo certame, para decisão ultima da contenda. Foi Bocage o mancebo,
-cavalleiro da metrificação liza e uniforme; o velho Filinto da mista
-e libérrima. Todo o empenho de Bocage era a harmonia constante, todos
-os seus versos forão graves, e de compasso batido. Nascimento queria
-por cima de todas as outras couzas dar todas suas ideas, boas ou más,
-graudas ou miudas, mui bem pintadas e repintadas, que ainda quando
-insignificantes, não deixassem de ferir na vista. Servia Bocage ao metro
-como a senhor: Nascimento, como de escravo se servia d’elle, trazia-o
-rôto, contrafeito, demudado, e por todas as ilhargas estalando com o
-pezo da carga. Se he lícito comparar estes dois poetas com outros dois
-romanos, de muito mais subidos quilates, digo, que são na metrificação
-hendecasíllaba, o que nos dístichos elegíacos eróticos forão Ovidio e
-Propercio. O dísticho de Ovidio he sempre torneado por medida, nada
-lhe falta nem sóbra, reluz de polido, e algumas vezes pouco péza: nos
-de Propercio ha sempre mais succo de couzas (bastante espremeo d’elles
-Ovidio para seu remedio); mas o hexámetro sáe amiude desalinhado, o
-pentámetro dissonante da sua usual toada, acabando não em dissíllabo,
-como para bem o requer o geito de tal metro, mas em trissílabos e
-quadrissíllabos á moda de Catullo; partem-se menos apuradamente os
-hemistíchios, embebe-se e embrulha-se em demazia o pentámetro no
-hexámetro, e, o que mais rijo he, o hexámetro de um dísticho no
-pentámetro do anterior; o que não tira ser Propercio, em meu conceito, um
-poeta de mui alta valia (e não sei se diga que o unico amante apaixonado
-dos antigos, com licença dos grammaticos e dos priguiçosos que o engeitão
-por escuro), e Ovidio um dos mais bem assombrados engenhos do mundo.
-
-Do que levo ponderado, se he exáto como cuido que he, segue-se que nem
-Bocage, nem Filinto erão para modellos absolutos, e que tão desacordado
-andava quem não consentia em verso que grave não fosse, como quem
-esdruxolava por vida e fóra d’aquelles casos em que o esdruxolar traz
-em si mesmo a desculpa e o louvor. Entendi que ja por acinte o fazião,
-e por acinte contra acinte escrevi essa Nota da primeira edição, que
-atraz deixo trasladada. Fôra o voto pueril, conheci-o assim como o sangue
-alvoraçado da batalha me esfriou, mas tão sobre maneira se oppunha a
-vergonha a uma retratação, que permaneci até hoje sem um esdruxolo em
-tantos versos soltos como tenho impresso, e tantos mais que ainda não
-saírão á luz. Quantas vezes, compondo a _Noite do Castello_ e o _Bardo_,
-não senti tentações e ímpetos de romper e acabar por uma vez com uma
-prizão imaginária, que a olhos vistos me estava tolhendo mui bons
-effeitos poeticos; e comtudo confrangia-me, esquivava-me, escrupuleava,
-e não podia acabar comigo que me resolvesse, podendo dizer como aquelle
-rei de França _La se vai tudo, menos a honra_. Os passos d’esses poemas
-em que tal me acontecia, por si se estão indo agora denunciando, póstos
-os dactílicos imitativos nos lugares, que abaixo do final se podem
-reputar pelos mais autorizados e distintos do verso, que são o ponto do
-hemistíchio ou pauza do meio verso, e o comêço do seguinte, quando fica
-bem cortado e estremado. — D’este livro ao deante me dou por desobrigado
-do voto; e eis aqui, me parece, o como lã para os outros me hei de haver:
-nunca porer só por pôr ou por me forrar trabalho, verso dactílico; nunca
-o engeitarei quando a fôrça, graça ou qualquer outra vantagem da poesia
-o requererem. Bem quizera dizer outro tanto dos agudos, mas ahi ainda
-o meu antojo he forte; sei que a razão não está menos por elles, e não
-ouzo segui-la: veremos o que o tempo, grande causador de mudanças, poderá
-trazer comsigo.
-
-
-
-
-NOTA
-
-_de Augusto Frederico de Castilho._
-
-_Pag. 118. verso 6._
-
- Vejamos, meu Irmão, a tua escolha. &c.
-
-
-Quando um autor, para publicar os seus pensamentos se entrega á nossa boa
-fé o lealdade, os nossos olhos e mãos para logo mudão de dono, ficão
-seus; tem de vigiar e selar o depósito confiado, para que nada se lhe
-accrescente nem cercêe: qualquer palavra, qualquer vírgula de mais ou de
-menos, por muito que as pareção estar pedindo este ou aquelle passo do
-texto, são mais que violação de testamento, porque ideas são propriedade
-mais real e sagrada do que bens da fortuna. Assim he, mas cumpre que não
-seja assim na presente occasião: faltarei ao direito do autor e á minha
-obrigação de secretario, para cumprir com outra mais santa lei, a do amor
-fraterno, alliviando aqui, e em mais de uma maneira, o meu coração, ás
-escondidas do mesmo autor, para quem serão grande novidade estas linhas,
-quando de alguem (que não de mim) as chegar a ouvir ler.
-
-Direi em primeiro lugar, que na Festa da Primavera, cujas honras forão
-na maior parte a meu Irmão, os versos a que esta Nota vai lançada
-tanto abalo fizerão em mim, que pela primeira vez os lia, que eu me vi
-necessitado a interrompê-los coberto de lagrimas e afogado em soluços,
-para me ir lançar no seio d’elle, protestando-lhe assim, com um silencio
-que eu não tive palavras para romper, que os seus dezejos de vivermos
-para sempre unidos, ja em mim erão necessidade, e que o pensamento de
-separação se me representava tão _atroz_ e _impossivel_ como a elle.
-Eu o vi profundamente commovido entre os meus braços, e foi esta a
-primeira vez em que nos-fizemos uma declaração tão expressa e amor,
-nós que semelhantes aos _Dois amigos_ de Gessner, sempre tinhamos
-vivido e contávamos com viver um para o outro, sem ainda uma só vez nos
-havermos dado o nome de amigos. O meu voto, ufano-me de o dizer, tem
-sido santamente cumprido: ja la vão quinze annos, e eis-me aqui ao lado
-d’elle, eis-me tão inseparavel como tinha sido desde menino até áquella
-hora! que digo? ainda mais, porque para reparar a perda horrivel que elle
-acaba de experimentar; eu carecia de ter agora em mim, em vez de um, dois
-ou mais corações para lhe offerecer.
-
-Agora cumpre-me preencher o principal fim d’esta Nota, transcrevendo
-para aqui alguns versos parallelos a estes, de um meu Poemetto, que
-com o titulo de _Primavera_ recitei n’aquelle mesmo Dia. Os elogios
-que o leitor vai achar, não mos inspirou só a amizade fraternal, mas a
-convicção em que ainda hoje estou, e hoje muito mais, do subido mérito do
-elogiado. Aqui era o lugar de desmentir um grande numero, talvez a maior
-parte das sentenças, que sôbre a valia d’estes poemas a sua modestia (em
-tudo excessiva) lhe dictou no Ante-Prologo, e principalmente no Prologo
-d’este Livro: mas não cuido que a minha licença possa chegar tanto
-adeante: calar-me-hei, bastando-me agora ter desabafado, por algum modo,
-nos versos que se vão ler.
-
- E tu, meu caro Irmão, tu me arrabatas,
- Quando magico attráes aos sons da lira,
- As Musas da Danubio á foz do Tejo.
- Oh dize-me onde has visto a Natureza,
- Virgem tão bella para ti sorrindo?
- La na idade infantil, quando teus olhos
- Inda na luz formosos se espraiavão,
- ¿Veio ella mesma perfumar-te o berço,
- Tingir-te em rósea côr dos ceos o espaço,
- Encher-te o ar de ignotas harmonias,
- De affétos orvalhar-te o brando seio,
- E com magas visões doirar teus sonhos?
- Sim veio; e quaes na mente que as afaga
- As maternas feições impressas ficão,
- Taes seu olhar, e voz, e graça, e tudo
- Te vivem, te reluzem pela mente,
- Doirão-te a escuridão, compõem-te um mundo,
- Em silencio te admiro ha longo tempo;
- E até (que fui tão louco) ouzei co’as tuas
- Minhas fôrças medir, tentar-te a gloria.
- Não somos nós irmãos, me disse eu mesmo?
- Não corremos iguaes no longo estudo?
- Pois ha de a lira d’elle ousar prodigios,
- Sem que, para a imitar, desperte a minha?
- Mas que vale o dezejo, o sangue, o estudo!
- Tu sabes remontar-te aos ceos n’um vôo:
- Eu tento, eu me debato, ergo-me, cáio,
- No inglorio chão cançado me adormeço:
- Será pois d’elle só a eternidade.
- Só d’elle? a sua gloria aos dois nos basta;
- Qual nossos corações amor vincula,
- Tal has de unir, ó fama, os nomes d’ambos.
- Com todo o eterno sôpro enchendo a tuba,
- “Este o maior, dirás dos lusos vates!”
- Dirás depois mais baixo: “Este com os olhos
- “Leo e estudou do Irmão, do terno amigo.”
-
-
-
-
-OS CANTOS DE ABRIL IDILLIO.
-
-
-_O mais deslavado e insôsso Poemetto na primeira edição, erão Os
-Cantos de Abril. Só a invenção fôra boa; na execução e estilo revia um
-tão contínuo desprimor, que me foi necessario demolir e reedificar.
-Por tanto, com o mesmo titulo he obra diversa, muito melhor, mas não
-perfeita, porque ja para a emenda da emenda não chegou a paciencia._
-
-
-
-
-DEDICATORIA A MEU PAI.
-
-
-_He a educação o maior prezente que de homem se pode haver. Vós, meu Pai,
-fizestes mais do que educar-me: superior a uma preoccupação tão geral
-quão perniciosa, vistes nascer o meu engenho poetico e não o destruistes,
-viste-lo crescer e não o contrastastes, senão que antes lhe déstes
-amparo, bafo e desvelos. Eis aqui por tanto um reconhecimento da minha
-gratidão._
-
-_Oxalá possão estes versos, que me afouto a vos offerecer, agradar-vos
-tanto, como os Cantos de Abril, no silencio da noite e debaixo do
-parreiral da cabana, agradárão ao bom Menalca._
-
-
-
-
-ADVERTENCIA.
-
-
-Notar-se-ha que por todos os Poemettos d’este livro se dão sempre versos
-á infancia, e n’este Idillio tem ella não uma parte, nem a principal,
-senão o todo: se o porque, pode importar a alguem, agora lho direi
-brevemente.
-
-Parece-me um Menino, de todas as couzas graciosas que Deos fez u
-graciosissima. Aquelle ajuntamento e consonancia de tantos dotes;
-formosura, d’elle proprio nem buscada nem sabida; graças que lhe ninguem
-ensinou; singeleza e candura; alegria, fraqueza, innocencia; e muito
-afféto, e muito mostra-lo; e total descuido do porvir; e não o temer
-nada; e a poesia particular do seu dizer; e a sua grammaticazinha natural
-que a nó nos faz rir, couzas são estas que apoz si me levão esquecido
-e encantado. No trato d’estes botões da humanidade, que vem abrindo,
-parece-me, e ja pareceo a muitos, poderem-se lucrar boas vantagens:
-ja não fallo em seu bondoso contentamento que talvez se pega, e na
-felicidade de recobrarmos horas de meninice, imitando-os, sem saber, a
-elles, como elles nos imitão a nós; fallo porem no muito que o nosso
-espirito se acostuma então a estremar o bom do máo, e a joeirar cá
-dentro o puro do impuro, para nem por sonhos profanar o que das mãos da
-natureza saío e se conserva santo. E demais, um Menino não sabe nada,
-quer saber tudo, e por tudo nos pergunta: ¿não he isso estar-nos pondo
-a caminho de muitos descobrimentos de verdades e relações das couzas,
-que nunca aliás por nossa preguiça ou descuido fariamos?—Muitas pessoas
-vejo, e faz-me pena, desamarem as creanças, despreza-las, havê-las por
-menos de gente, tolher-lhes as fallas, as obras de sua idade, e Deos sabe
-se tambem o entendimento: eu por mim, quero-lhes muito, porque entendo
-que excedem em valia aos seus desprezadores, e sinto que a mim me levão
-grande vantagem em bondade e ventura. De um ajuntamento esplendido mil
-vezes tenho fugido para elles: no campo, melhor que em nenhuma outra
-parte, saboreio esta doçura a meu contento. Todos os pequenos das aldeas
-em que tenho estado me conhecem, e sei que são meus amigos: apinhão-se-me
-ao redor em me vendo; invento jogos, historias ou conversas para elles;
-divirto-os, divertem-me; uns com outros, e uns de outros aprendemos.
-
-Erão horas bem doiradas essas de minha vida, como as ja tivéra João
-Jaques, como as terão tido muitos, e como as poderáõ ter quantos as
-dezejarem.
-
- _Lisboa: 7 de Janeiro de 1837._
-
-
-
-
-OS CANTOS DE ABRIL IDILLIO.
-
-
- Por um serão de Abril suave e ameno,
- Menalca, a bella Dafne, e seus trez filhos,
- Estavão-se a folgar ante a cabana.
- Por entre as parras do sonoro alpendre
- A mansa lua chêa se enlevava,
- Espreitando esta rústica familia.
- Menalca erà ja velho: os justos Deozes,
- Querendo premiar lhe a larga vida
- Passada em os amar e amar aos homens,
- De Citheréa ao Filho havião dito:
- “Filho de Citheréa, entrega Dafne
- Por esposa na Menalca, a fim que o velho
- Remoce, vendo ao lar a mocidade,
- E a virtude que tem o alegre em outrem.”
- Amor nem sempre aos Deozes obedece,
- Porem amava a Dafne; entrançou logo
- A florente cadêa, e vendo-os prezos,
- Tanto a si mesmo do que fez se aprouve,
- Que ficou sempre entre elles na cabana.
-
- “Filho de Citheréa, accrescentárão
- Depois os Deozes, da-lhe o teu retrato
- Em filhos, e uma filha irmã das Graças,
- A fim que em seu crepúsculo da tarde.
- O velho inda se alegre, e abrace esp’ranças:
- Da-lhe prole, o fada-la a nós pertence.”
- E Amor lhe déra prole, dois meninos
- Seu retrato, e uma filha irmã das Graças.
- Ja rosas de abril decimo florecem
- No semblante de Silvia; um anno a vence
- Titiro; e vence a este um anno Alexis.
-
- Menalca, em juncos molles estendido,
- Tem da esposa no candido regaço
- Como em ninho amoroso a branca fronte:
- Pelas feições transpira-lhe bondade;
- O mistico luar o diviniza.
- Dafne o contempla muda, e niveos dedos
- De afagar umas cãs sentem vaidade.
- Elle a querida mão colhe entre as suas,
- Beijada a achêga ao rosto, os fracos olhos
- Derrama pelos céos alumiados,
- E fitando-os na lua “Olhai, meus filhos,
- Olhai, disse elle, como brilha a lua!
- Que suavidade e paz não côa ao largo
- O astro das noites! como attráe da terra
- Nosso espirito humilde a pensamentos
- De outro mundo melhor, mansão de Deozes!
- Que esp’ranças, de saudades misturadas,
- Não traz a pura noite ás almas puras!
- Dias que em vão suspiro, amenos dias
- Da minha mocidade...! agora jazo
- Como arvore das folhas despedida,
- Que mais não florirá, porque o machado
- Ja lhe abrio marca para se ir ao fogo.
- Então era eu cantor chamado ás festas,
- E afamado por longe entre os cantores
- Na frauta e no rabil, porque os meus cantos
- Erão sempre á Virtude e á Natureza.
- Por uns serões assim, como acodião
- Todos a ouvir-me! As Ninfas era fama
- Que descião do bosque, e pelas sarças
- Vinhão pôr mais de perto o ouvido á escuta:
- E os ventos se detinhão, recostados
- Aos duros troncos, sem bolir co’os ramos.
- Té dizião que a frauta, em que eu tangia,
- O benevolo Pan ma déra em sonhos.
- E ora jaz, annos ha, de pó coberta!
- Em tôrno ao meu fogão ja não se apinhão
- Os pegureiros a aprender-me os cantos,
- Meu cabello nevou, nevou minha alma.
- Ah! se não fosseis vós, Dafne, meus filhos,
- Vivido tenho assaz, pedíra aos Numes
- Tornar a ver meus pais n’outras cabanas,
- Onde he perpetua a luz, e a eternidade
- Uma estação de musicas e flores.
- Quando eu la renascer á vossa espera,
- Á tua espera ó Dafne, á vossa ó filhos,
- Resurgirá comigo a minha frauta;
- E com ella enganando aquella ausencia,
- Penosa até no Elisio, em versos novos
- Louvando os Immortaes, e eterno eu mesmo,
- Pedir-lhes-hei comtudo que só tarde
- Vos levem para mim; que vos derramem
- De virtudes e bens copiosas bençãos
- Sempre n’esta cabana, onde hei nascido;
- E que no meu sepulchro o passageiro
- Diga parando—Ó bom pastor Menales,
- Leve te seja a terra, e tu contente
- Porque os teus filhos te excedêrão todos.”
-
- Aqui sentio caír na fronte calva
- Uma calada lagrima, e doeo-lhe
- Ter nublado o prazer de seus Penates.
- Senta-se, alegra o rosto, enchuga os olhos;
- E unindo ao seio a esposa “Ouvi meus filhos:”
- O cantar diz co’a noite, agrada á lua,
- Contenta á vossa mãi. Cantai louvores
- D’este suave Abril; nunca em meus versos
- Deixei de o celebrar, quando era moço.
- Os pastores de outr’ora Abril sagrarão
- A Venus, graciosa Mãi de tudo.
- Vede-a n’aquella estrella estar sorrindo;
- As glorias do seu mez são glorias d’ella.
- Alexis, principia, eu te acompanho
- Co’a tua mesma frauta; os sons da frauta
- Dão como vida ás solidões da noite.
- Seja a toada a que inventei (quão lédo!)
- No dia que nasceste, e a nossos olhos
- Se doirou de alegria esta cabana:
- Bem a sabes, começa, e Pan te ajude.
-
- ALEXIS.
-
- Eu amo o verde Abril, porque he formoso,
- Todo está chêo de arvores vestidas.
-
- TITIRO.
-
- Eu amo o alegre Abril, porque he sonoro;
- Vem cantado por bandos de avesinhas.
-
- SILVIA.
-
- Eu amo o rico Abril porque he cheiroso,
- Espalha em cada prado um mar de flores.
-
- ALEXIS.
-
- A folhagem traz sombra, as sombras trazem:
- Seus folgares da sésta á gente grande,
- E a nós para brincar franca licença.
-
- TITIRO.
-
- As aves são dos ares alegria;
- Chamão na madrugada os preguiçosos,
- E divertem na lida aos lavradores.
-
- SILVIA.
-
- Flores dão côr á terra, e cheiro ás auras;
- Flores são mãis da fruta; os Deozes rindo
- As crearão, e rindo acceitão flores.
-
- ALEXIS.
-
- O Pan que está na gruta do arvoredo
- Não pára senão lá, por mais que o mudem;
- Sinal que um bosque e a sombra apraz aos Deozes.
- Tudo ali he formoso á maravilha!
- Por baixo a fresquidão, por cima o verde;
- A terra de reflexos variada;
- O této sonoroso e movediço;
- Mais alto, o ceo azul, dado ás amostras.
- E que direis do rio entre arvoredos?
- ¿Como se pintão na agua aquellas folhas,
- E o vento que as revolve, e as pombas alvas
- Pelos ramos, e um sol desfeito em muitos?
- Parece que no fundo do remanso
- Tem Pan outro arvoredo, igual em tudo.
- Quando hoje eu lá passava, a Pan dei graças,
- Porque achei que um tal sítio encantaria
- Ó meu Pai, teus passeios solitarios.
-
- TITIRO.
-
- Fonte como a das Náiades nenhuma:
- Cantão-lhe em volta passaros sem conto;
- Sinal que o bando alado apraz ás Ninfas.
- Por ali me regala ir espreitando
- Tantos ninhos por entre tantas folhas.
- Admiro a perfeição d’aquelles berços,
- E o tino com que os pobres de uns brutinhos
- Os souberão livrar a soes e a chuvas:
- Aqui uma avezinha inda sem pennas,
- Outra a romper da casca; alem uns ovos
- Branquejão d’entre o musgo, e ja palpitão;
- Se os tóco, sinto dentro o passarinho,
- E fujo com temor que a mãi o engeite.
- ¡Ver as mãis vir do pasto alvoraçadas,
- Darem o almoço aos filhos que pipilão,
- E co’as azas e peito agazalha-los!
- E ver logo os maridos tão contentes
- A gorgear-lhe á roda! o porque o fazem
- Mal sabeis vós; cuidais que he diverti-las!
- Oh que não: he ja dar lições e exemplos
- De canto aos filhos seus: não de outra sorte
- O nosso pai nos ensinou seus versos.
-
- SILVIA.
-
- C’roas frescas de rosas cada dia
- De Citheréa ás portas amanhecem;
- Sinal que a Citheréa aprazem flores.
- Todo o anno era Abril se eu fôra a Deoza!
- Nunca no meu altar e ás minhas portas
- Faltarião montões de flores frescas.
- Todas só para ti as cobiçava,
- Ó minha mãi: com ellas te enfeitára
- Cada hora do dia; cada noite
- As renovára ao leito onde tu dormes;
- Não porias teus pés senão em flores.
- Se o passageiro ás vezes me pergunta,
- Quando me encontra á borda do caminho,
- “Quem he a tua mãi?” eu lhe respondo
- Chêa de gloria “A minha mãi he Dafne!”
- Hontem de tarde o graciosa Amintas,
- O pobre guardador das duas cabras,
- Quando o meu pão lhe dei pedio-me um beijo,
- Chamou-me bella, e disse que o meu rosto
- Era como o de Dafne, ou como as rosas.
- Sendo assim, bella sou, que outra pastora
- Igual a minha mãi não ha na aldea,
- Nem flor em todo o mundo irmã da rosa.
-
- ALEXIS.
-
- O vizinho Milão, que hoje he tão rico,
- Não tinha mais que uma arvore, e de terra
- Só quanto aquella sombra lhe cobria.
- “Corta-a Milão, dizião-lhe os pastores,
- Alegras teu campinho, e terás lenha
- Para aquecer a choça um meio inverno”—
- —“Eu? respondia o triste, eu pôr machado
- Na boa da minha arvore? primeiro
- Me falte lume alheio o inverno todo,
- Que eu mate a que a meu pai ja dava séstas;
- A que de meu avô me foi mandada,
- Que a não poz para si; e a que nos braços
- Me embalou tanta vez sendo menino.
- Os Deozes a existencia lhe dilatem,
- Que assim lhe quero eu muito, e o meu campinho
- Produza o que podér, que eu sou contente.”—
- Sorrião-se os pastores; o carvalho
- Cada vez mais as sombras estendia,
- E Milão de anno em anno hia a mais pobre.
- Lembrou-lhe um dia, em bem, que uma videira
- Plantada a par com o tronco, o enfeitaria,
- E os cachos pendurados pela cópa
- Lhe darião tambem sua vindima:
- E eis que ao abrir a cova, acha um thesouro!
- Desde então ficou rico, e diz-me sempre,
- Que os Deozes immortaes lhe hão dado em prémio
- Por amar suas arvores. He elle
- Quem mas ensina a amar, são d’elle os versos,
- Com que ao bosque de Pan cantei louvores.
-
- TITIRO
-
- Deozes, tocai o peito de Mirtilo
- Porque não sáia máu quando fôr grande.
- Hoje, entrando na mata, o vi la dentro
- Andar armando aos passaros. Que pena,
- Disse em mim; não ser passaro um momento;
- Não poder ir correndo o bosque aos pios,
- E dizendo em cada arvore “Cautella
- Meus irmãozinhos do ar; vejo inimigo;
- Não saiaes; o inimigo anda no bosque...!”
- Paciencia, assim mesmo hei de acudir-lhes.
- Vou-me por entre as moutas rastejando
- Até ao ouco e immenso castanheiro,
- Que abre em seu tronco uma portada de heras,
- E se nomêa a casa de Silvano.
- Trepo, e dentro me escondo: os meus vizinhos
- Lá por cima na cópa papeavão,
- Cuido que adivinhando o que eu faria.
- Encósto a boca á fresta carcomida,
- Que está fronteira ao portico da entrada,
- E clamo em rouca voz “Pára Mirtilo.”
- Parou, ergueo-se, e poz-se a olhar em roda;
- Vendo tudo em socego ás redes torna.
- Com voz mais estrondosa e mais horrenda,
- Torno-lhe eu a bradar “Mirtilo pára.”
- Não esperou terceira: arroja tudo,
- Salta, vôa; oh que riso! uns echos fêos
- Lhe hião gritando apoz “Mirtilo pára.”
- Somio-se; á terra pulo, espreito o mato,
- Acho as redes, os presos sólto, os mortos
- Levo-os onde ôlho de ave os não descubra:
- Encho-as de pedras, na torrente as lanço,
- E corro a procura-lo—“Oh tu não sabes,
- Lhe digo, de que morte escapo agora!
- Não te engano, era um Deos, vi-o eu, rangia
- Os dentes, bracejava uma alta fouce,
- Vinha a saír das sombras do arvoredo;
- Vio-me e gritou me “Pára” eu páro e chóro.
- —“Es tu que andas armando ás minhas aves?
- Pois eu vou dar-te o ensino; as tuas redes
- Ja te lá vão por esse rio abaixo,
- E agora has de ir tu morto á caça d’ellas.”—
- E então vem para mim, co’a fouce aos lanços
- Cortando pelo ar—“Bom Deos, perdoa,
- Lhe grito a soluçar co’as mãos erguidas,
- Eu sou Titiro, o filho de Menalca,
- As tuas aves amo, e temo os Deozes:
- Eu redes, eu caçar!”—“Estou perdido!
- Disseste que eu ... Mirtilo me interrompe.”
- —“Não, Mirtilo, socega, eu não lho disse,
- Nem sabia que tu ... fallemos baixo
- Que nos não ouça o Deos. Olha, este p’rigo
- Passou, mas outra vez não te aventures,
- Que eu bem sei como o vi, não te perdoa.
- Deixa ás pobres das aves innocentes
- Divertir-te e cantar; nada mais querem;
- Não tens razão, não teus de as perseguires.
- Quanto ás redes, eu quero consolar-te:
- Ouve Mirtilo, acceita este cestinho
- De cana entretecida em juncos verdes,
- E este meu cajadinho em boa altura
- Liso, airoso, e sem nós.”—Assim dizendo,
- Enfiei-lhe no braço o meu cestinho
- De cana entretecida em verdes juncos,
- E entreguei-lhe o cajado. Então Mirtilo
- Me abraçou, e saltando de contente,
- Jurou-me nunca mais armar ás aves.
-
- SILVIA.
-
- Glicera por vaidosa he que ama as flôres:
- Apanha-as para si não para os Deozes,
- Não lhas merece a Mãi e alcança-as Mopso.
- Quando em nosso jardim vejo Glicera,
- Ja me eu ponho a tremer: corta as melhores,
- He seu costume; enfado-me, sorri-se;
- Chóro, ri-se; e enfeixando-as, me repete:
- “Que te servem por ora estas floritas?
- Deixa passar mais cinco primaveras,
- E então sim, nem mais uma hei de furtar-te;
- Pois sei te hão de servir quaes me hoje servem.”
- Coitado de quem he como eu menina,
- Que se manda esperar por primaveras!
- Que podia eu fazer? queixei-me ás Ninfas.
- Hontem, ja pôsto o sol, quando erão horas
- De logo vir Glicera, a presumida,
- Que furta e vai cantando; ajoelhei-me
- Co’as mãos póstas por entre as minhas flôres.
- E disse: “Como as arvores tem ninfas,
- Que lhes morão la dentro e as aviventão,
- Ha ninfazinhas a velar nas flores.
- Ninfazinhas das flores, escutai-me:
- Se a rega, com que as folhas aquecidas
- Vos refresquei ha pouco, vos foi grata,
- Olhai por vós, fazei com que Glicera,
- Como eu vos vi e ouvi, vos veja e ouça;
- Apparecei-lhe como a mim, por sonhos,
- Vestidas de mil côres, perfumadas,
- Pequenas, mui mimosas, e só outras
- Em não mostrar-lhe a ella um ar festivo.
- Dizei-lhe como os Deozes vos crearão
- Para amores de zefiros, recreio
- De borboletas e olhos, e formosas
- Copeiras do formoso mel doirado:
- Dizei-lhe que tão bella e curta vida
- Não se deve encurtar, que as deshumanas
- Tem máo fim, que apezar de passageiras,
- Ninfas sois, e o Destino ha de vingar-vos:
- Que se tornar sacrílega a colher-vos,
- Vossos fragrantes ultimos suspiros
- Seráõ de queixa aos ceos, e antes de tempo
- As rosas no seu rôsto hão de murchar-se.”
- Como eu isto dizia, entrou Glicera:
- Murchas trazia as rosas de seu rôsto,
- Não rio, nem colheo nada, e suspiráva.
- Penada de a assim ver, beijei-a, e disse:
- “Se alguma d’estas flores te contenta,
- Eu mesma a vou cortar.”—“Não (me responde)
- Ja não quero mais flores, Mopso ingrato
- As que ultimas lhe dei deo-as a outrem:
- Como as flores me engeita hei de engeita-lo.”
- Ao que eu logo acudi—“Vês tu, Glicera,
- Fallei verdade ou não? nascem as flores
- Só para as nossas mãis, e para os Deozes,
- Da-lhas tu, e verás se hão de engeitar-tas.”
-
- MENALCA.
-
- Basta meus filhos, basta; não ha sombras
- Tão gratas no verão, cheiro de flores
- Tão suave, ou tão ledo canto de aves,
- Que me recrêem como os vossos versos.
- Vinde, vinde, abracemo-nos, ó filhos:
- Dei-vos eu a doutrina; engenho os Fados;
- Mas os Deozes virtude: alcatifais-me
- De bem viçosa esp’rança o meu declivio:
- Dais-me o que nem pedir ouzava aos Deozes.
- Antevejo a florir-me a sepultura ...
-
- DAFNE.
-
- Entremos na cabana: aquella nuvem
- Quer encobrir a lua; ergueo-se o vento,
- Não tarda muito algum ligeiro orvalho.
-
-
-
-
-NOTA AO IDILLIO.
-
-
-Na muita rama que ao Idillio decotei para esta segunda edição, ninguem,
-por mais que a cate, poderá achar fruto, nem sequer uma triste flôr,
-se a não he o passo que para aqui traslado, da falla de Alexis pag. 96
-na primeira edição; ácerca do qual e de tudo o mais quanto supprimi ou
-accrescentei, releva reclamar pela maior indulgencia dos leitores. Não ma
-negará quem ja alguma vez houver experimentado como de todas as couzas,
-que parecendo tenues, são agras e laboriosas, a mais agra, laboriosa, e
-não sei se diga impossivel, he poetar e metrificar as fallas da infancia:
-caminho he esse que estreitissimo corre por entre precipicios, sendo
-maravilha que ahi os maiores engenhos se tenhão, e sigão sem caír ou para
-a direita ou para a esquerda. O primeiro e melhor juiz do homem candido
-he a sua consciencia: a minha me diz que os trez filhos de Menalca nem
-sempre, antes poucas vezes, fallão como conviria: de sobejo são poetas
-para meninos e rusticos; e tanto, que se não fôra a resalva, que logo
-do comêço lhes vai lançada, de serem filhos de improvizador, e por elle
-doutrinados no canto, não haveria perdão que de ridiculos os salvasse.
-
-Segue-se o excerpto, com todos seus defeitos e aleijões de nascença:
-
- O MENINO ALEXIS.
-
- Ver-me no bosque de prazer me enchia;
- Quando Amintas, chamando-me da gruta,
- Aonde estão de musgo revestidas
- As imagens das Náiades da fonte,
- Assim me disse, dando-me uma rosa:
- —“Eu te darei uma pequena ovelha,
- Toda branca, na testa só malhada,
- Se fores ter com Egle, e lhe entregares
- A rosa, que te dou, se lhe disseres
- “Egle, Amintas por ti morre de amores.”
- Beija-a depois na face, e continúa;
- “Egle, este beijo é do extremoso Amintas.”
- ¿Não a vês la ao longe entre os salgueiros,
- Apascentando as candidas novilhas?
- Corre; e não tardes a buscar a ovelha.”—
- Eu fui correndo a ella, dei-lhe a rosa,
- Beijei-lhe a face, e disse-lhe: “Este beijo,
- Egle, este beijo é do extremoso Amintas.”
- Nada me respondeo, sorrio-se, e as faces
- Como a rosa encarnadas lhe ficárão.
- Abraçando-a depois, lhe disse alegre,
- “Egle, Amintas por ti morre de amores.”
- Rio-se outra vez, e dando-me na face,
- “Oh como tu és máo! vai-te, me-disse,
- Não posso ... não, não quero acreditar-te.”
- Nada lhe respondi, voltei á gruta,
- Onde o Pastor contente e alvoraçado
- Me deo sem custo uma pequena ovelha
- Toda branca, na testa só malhada.
- ¡Como a minha ovelhinha é bella, e mansa!
- Andei com ella todo o dia ao pasto
- Pela relva do bosque, etc.
-
-
-
-
-A FESTA DE MAIO
-
-POEMETTO EM DOIS CANTOS.
-
-
-_Se nos trez Poemettos precedentes pude fazer muito mais do promettido
-no Prologo, n’este último fica a minha palavra empenhada. Pouquissimos
-de seus defeitos mais palpaveis cheguei a apagar, e esses quasi só de
-linguagem. Receoso de me vir a faltar o tempo ou o animo, se desde a
-primeira pagina do Livro me começasse a esmerar seguidamente, fôra minha
-primeira occupação ir por todo elle despontando, á ventura e sem ordem, o
-que me apparecia pessimo, justamente como no Prologo deixára promettido.
-Conheci logo que este trabalho era insufficiente: entrei no outro mais
-miudo e ordenado; refundi a cito_ a Epistola, o Dia da Primavera, os
-Cantos de Abril, _nenhuma das quaes Obras cheguei com tudo a lustrar. A_
-Festa de Maio, _por ser a derradeira, quasi ficou, e até nova edição (se
-algum dia se fizer) ficará, como era. O maior bem que lhe pude fazer, foi
-abri-la em dois Cantos, para que o leitor achasse marco onde descançar em
-tão enfadonha e comprida estrada._
-
-
-
-
-DEDICATORIA ÁS SENHORAS DA LAPA DOS ESTEIOS.
-
-
-SENHORAS,
-
-_A segunda tarde, que passámos em Festa na vossa Lapa, não tem jamais
-de nos esquecer. O vosso gracioso e cortez descer a ouvir-nos, as
-carícias com que amimastes o nosso Maiozinho, dando-lhe entre vós
-assento, detendo-o nos regaços, beijando-o, ¿como he que nos não havião
-de cativar, a nós, que o cingíramos de suas galas, o sentáramos em
-throno, pôsto que menos para apetecer, e o levantáramos por Divindade em
-nossos Cantos? Finalmente aquelle vosso generoso trocar de nome á Lapa,
-querendo que por nosso respeito se ficasse chamando_ dos Poetas, _em
-tamanhos obrigações nos pozerão, que as Musas nos acodiráõ para um dia
-vos provarmos que nós, Sacerdotes seus, não somos ingratos. A minha, de
-mais atrevida que he, me envia adeante, a tributar-vos este Poema, que
-pois o approvastes, ja não he de vós indigno. He prezente de uma Deoza do
-Parnaso, não podem as trez Graças rejeita-lo._
-
-
-
-
-HISTORIA DA FESTA DE MAIO.
-
-
-Pelas trez horas da tarde do primeiro dia de Maio de 1822 ja nós, a
-Sociedade dos poetas _Amigos da Primavera_, nos achávamos á sombra das
-arvores, pelo Encanamento do Mondego, esperando anciosamente o batel, que
-nos havia de tornar á Lapa dos Esteios, para celebrarmos a Festa de Maio:
-de tantos que lá fôramos no Dia da Primavera, só faltava _Anfrizo_, em
-cuja vez recebêramos _Antíono_, mancebo mui dado a bons estudos, versado
-na lingua e poesia allemã, e autor ja então de Anacreonticas e Idillios
-de muito preço.
-
-O suspirado batel acudio cedo á nossa ancia: todo toldado, alcatifado e
-cingido com mui curiosas invenções de verdes e flores, vinha parecendo
-o naviozinho do _Primeiro Navegante_. Abica, saltâmos-lhe dentro todos
-juntos; larga, vogâmos contentes e cantando. Quem bem quizesse pintar com
-a penna affétos do coração, não achára bastante um volume para historiar
-esta só tarde. Dezejára eu muito convidar cortezmente meus leitores a nos
-acompanharem, tomando seu quinhão em nosso folgar; mas não o posso, e
-ainda mal, que o de maior valia fica-lo-hão perdendo. Hiamos todos tão
-unidos em vontade, conformes em gôsto, feriados de cuidados, crentes na
-ventura, chêos e cercados de poesia, e namorados da natureza, que os
-todos só parecião um, um só moço, transportado em bemaventurança.
-
-Ora cantando, ora encarecendo, quasi adorando as varias gentilezas
-que a perto e a longe, e por toda a parte se presentavão e renovavão
-de contínuo, aportámos apoz uma hora, na formosa Lapa dos Esteios.
-Erguemo-nos, vozeâmos, voão do barco para o ceo foguetes que todo o ar
-estrugem, e para a margem os hinos de uma orchestra que comnosco hia. Diz
-a musica muito com todos os affétos da alma, mas do contentamento, onde o
-ha, faz alvorôço, que muitas vezes prorompe em lagrimas. D’esta maneira
-triunfal saltámos para o cáes, voámos ao alto da Lapa. Conhecia-nos o
-sítio pelos mesmos, desconheciamo-lo nós por melhorado: obrados erão
-sobre a natureza milagres de Maio. Ja as arvores alardeavão ás virações
-montes de folhagem, que pelo ar se embalavão ao sol; era agora o rio
-ainda mais puro, os ares mais temperados e benignos. ¿Quereis haver
-alguma idea da habitação das almas felizes? quereis pintar os lugares
-onde as Ninfas, os Faunos e Pan apparecião aos pastores innocentes na
-idade de oiro? entrai a Lapa dos Esteios pelos graciosos dias de Maio.
-He a Primavera nos princípios uma linda menina; mas não sabe firmar o
-passo, balbucia, tudo teme, não se decide em nada, suas graças ja se
-annuncião claramente mas ainda se não desenvolverão; em Maio he moça toda
-viçosa de mocidade, a quem ledos cortejão Amores e Prazeres, cujo sorrir
-endoidece o pensamento, e vai entender com os corações. Tinha a Natureza
-dado a segunda mão e ultima ao lugar; mas a Arte quizera entrar com ella
-á competencia, sem comtudo lhe desacatar a primazia: tudo estava varrido
-e puro e concertado de um sem numero de vasos de muitas, e finissimas
-flores.
-
-No alto assentámos o altar do Deozinho Maio: todo elle era verdura; duas
-colunas, artificiosamente fabricadas de flores, e rematadas em umas
-maçanêtas de igual marmore, se alevantavão dos dois cantos da frente, e
-communicando-se no cimo por um semicirculo, que na materia e primor não
-desdizia do resto, ajudavão a formar um genero de portico bem vistoso e
-engraçado; os lados, fundo e abobada do recinto erão de ramos verdes de
-todas as qualidades, bem entrelaçados e bordados de frescas e vermelhas
-rosas; no meio estava um assento pequeno, á feição de poial rústico,
-tecido de lustrosas heras, onde se via recostado o Maio em acto mui
-gentil, e com um geito todo seu. Era um Menino de cinco annos, louro como
-o sol, e alvo como a neve, cabellos crespos e annelados, caídos por um e
-outro hombro: de roupagem, não tinha outra de seu que um aventalinho,
-que debaixo dos peitos lhe descia aos joelhos; o qual, assim como os
-listões que de cima dos hombros lho vinhão tomar encruzando-se por
-deante e pelas costas, estava recamado de cedro e buxo, com sua orla mui
-accesa de flores de romeira, cravos, e rosas: calçava cothurnos de seda
-escarlate; na cabeça ostentava corôa de verdura, e do braço esquerdo como
-que acenava ás vontades com um cabazinho, farto dos frutos do seu tempo;
-e tudo por modo tal, que a bôca se não sabia determinar se o diria nu
-ou vestido, nem a fantasia dos poetas se o quereria simples Menino, ou
-verdadeira Divindade.
-
-Mandámos por dois dos nossos vizitar e convidar para a Festa as amaveis
-Senhoras, cuja he a Lapa, as quaes na quinta que por cima fica tem seu
-perpétuo domicilio. Não tardarão: recebemo-las como convinha, nós com
-a festa dos nossos musicos, e com muitos seus abraços as Senhoras, que
-abaladas dos annuncios de tão bôa tarde, nos tinhão feito a honra de
-acudir ao sítio. Ja era crescido o auditorio, e muito para contentar
-e accender engenhos: fomo-nos uns a outros seguindo com os poemas que
-levavamos, os quaes em fórma de rito religioso, se recitavão em pé
-deante do altar, fazendo a nossa orchestra uma harmoniosa ráia de poema
-a poema, que para tudo as tardes de Maio deixão tempo. Poz-se-lhe remate
-com os vinhos e saudes d’uma saborosa merenda, como á primeira tarde da
-Primavera se havia feito. Passou-se o serão parte pelas salas, outra
-parte pelo jardim das nossas hospedeiras.
-
-A noite era uma das mais bellas de tal mez: a lua brilhantissima despedia
-até os horisontes um clarão quasi diurno, não se enxergando nuvem por
-todo o descampado do seu céo; refletia-se, e desenrolava sua alcatifa de
-movediça prata ao longo d’esse Mondego tão digno de seus amores; o ar era
-tão manso e quêdo, que as luzes, curiosamente distribuidas por entre os
-vasos de flores, nem de leve estremecião; suave era de ver sair por toda
-a parte d’entre planta e planta uns reflexos verdejantes mui amigos dos
-olhos, muito mais da fantasia de poetas.
-
-Prazeres que o coração estriou por uma noite assim enfeitiçada, não são
-para se poderem pintar. Pouco tardou que a sociedade, como acontece, se
-não soltasse e dispartisse em ranchos pequenos: a musica errante e fóra
-dos olhos, umas vezes folgando, suspirando outras, e outras como quem
-sismava algumas amorosas mágoas, hia-se ja pelos arvoredos da quinta,
-ja ribeiras do rio acima e abaixo, tão grata, que ainda não sei couza
-que mais quizesse. Muitos e muitas baillavão arcadicamente sob a abobada
-do céo, em quanto nós outros, os que das Musas só fôramos fadados para
-versos, os estudavamos e repetiamos á porfia. Algumas semelhantes horas
-devia ter passado o primeiro que escreveo Elisios.
-
-Era a noite crescida para muito alem do meio, quando nos despedimos; e
-la foi caír na eternidade um dia, que ainda agora me persegue saudoso, e
-apoz o qual nenhum outro veio semelhante.
-
-
-
-
-A FESTA DE MAIO.
-
-POEMETTO
-
-CANTO I.
-
-
- Eia, amigos, ao campo! ha ja trez horas,
- Que os Tindáreos Irmãos no aéreo espaço
- Vírão do meio dia o rôsto ardente:
- Eia, amigos, ao campo! as horas vôão,
- E o Maio alegre ás féstas nos convida:
- Os Zéfiros ligeiros, embalando
- Do parreiral a trémula folhagem,
- Ao rio, ao barco estão chamando a turba.
- ¿O Deos Menino, o gracioso Maio
- Não vamos celebrar na fresca Lapa?
- Pois que se tarda? os Numes não consentem
- No culto seu ministros preguiçosos.
- Chamai á pressa as pastorís Camenas,
- Tomai as flautas, coroai as frontes
- Co’as grinaldas, que em premio vos cingírão
- Da Primavera no primeira tarde.
- Como! o tempo ... (ai da flor da mocidade!)
- O tempo as destruio! de graças tantas
- Que existe pois? um pó. Jazem desfeitas,
- Sem perfume, sem côr as lindas flores,
- E as verdes folhas se enrolárão murchas!
- Ah! corramos; o pezo, que as esmaga,
- Róla tambem sôbre a existencia nossa:
- Nossas grinaldas nos festins vivêrão,
- Morrêrão no prazer; e nós, como ellas,
- Devemos esperar, brincando, a morte.
-
- Cedo nos hombros do nervoso Atlante
- O eixo voluvel em perpétuo giro
- Ha de erguer ante o Sol novas esferas:
- O Touro ja fugio: Castor, e Pollux
- Succedêrão-lhe agora: hão de apoz elles
- Os astros scintillar, que nos conduzão
- Da estiva calma os importunos tempos.
- Então fenecem pelo campo as flores,
- Tépidas correm na planicie as fontes,
- Calão-se as aves nos cavados troncos,
- E fallece a frescura ás proprias noites.
- Vamos, emquanto as flores não perecem,
- Emquanto soprão lisongeiras auras,
- Emquanto um doce frio as ondas levão,
- Emquanto as aves pelos ares cantão,
- E as claras noites co’a frescura aprazem;
- Vamos correndo: de vergonha córe
- Quem último chegar do rio á margem.
-
- ¡Graças aos ceos, que a suspirada arêa
- Ja pizâmos emfim! mas pelas faces
- Abrazado suor me está caindo.
- Inda o barco não chega: eia, sentai-vos.
- D’esta aura carinhosa ao fresco sôpro
- Quanto he doce voltar o rosto ardente,
- E ora uma face, ora outra offerecer-lhe!
- Ella as beija brincando, e espalha em ondas
- Os escuros anneis, que lhas roubavão.
-
- Verde canavial, salve trez vezes!
- Co’as boliçosas, arqueadas folhas
- Nos escondes a rir de Febo aos olhos.
- Ninfa adorada pelo Deos da Arcadia,
- (Deos dos pastores, inventor da flauta)
- Sacrilego furor não nos incita:
- Não te offendas se agora as nossas dextras
- De tuas canas adornadas vires:
- Sua altiveza airosa nos agrada,
- Vates somos, os trémulos seus cumes
- Ondulando, os lascivos seus abraços
- A cada viração que vai fugindo,
- Tudo isso nos namora, e diz poesia.
- Não te offendas ó Ninfa, ei-las colhidas!
- Gravai com ellas n’esta arêa os nomes
- Das vossas bellas, imprimi-lhe um beijo,
- E partamos, que o barco ahi fere a margem.
- Bem: eu lancei da Primavera o nome
- Em caratéres taes, que ao longe possa
- Lê-los o pescador no fim da tarde.
-
- Eis-nos emfim nas transparentes ondas!
- Agora cumpre diligencia, esfôrço,
- Para vencer as fugitivas aguas.
- Ferva o trabalho, as varas não descancem;
- No fundo leito redobrai os golpes,
- E suavisai com musica a fadiga.
- Eu deitado na pôpa, eu dicto os versos;
- Cantai, e o echo em baixa voz aprenda.
-
- Ouvi Ninfas do placido Mondego,
- Ouvi com ledo rôsto as preces nossas.
-
- Saí correndo das limosas grutas:
- Occultas no cristal do patrio rio,
- Vós podeis impellir co’as mãos de neve,
- E fazer que o batel, qual aguia, vôe.
- Bellas Filhas do lúcido Mondego,
- Vamos passar a tarde á grata sombra,
- Das lindas Graças na famosa Lapa.
- Ali, se acaso não me illude o estro,
- Vós, Ninfas, vós com ellas muitas vezes
- As noites do luar passais em danças:
- Sôbre um tronco musgoso Amor sentado,
- Para acertar as rápidas choréas
- Com saudosa flauta a Noite acorda,
- E Venus compassiva lhe desata
- Dos olhos entretanto a escura venda.
- Mil Amorinhos sem farpões, sem facho,
- (Nem onde vós estais carecem d’elles)
- Vôão aqui e ali por entre os ramos.
-
- Ouvi Ninfas do placido Mondego,
- Ouvi com ledo rôsto as preces nossas.
-
- Dai-nos breve chegar, sereis cantadas;
- E iremos outro dia erguer altares
- De cada vosso chôpo á sombra amiga,
- Pondo-lhe em roda uma vistosa grade
- D’aureas canas com murtas revestidas:
- Em vossas ondas lançaremos rosas,
- E puro leite, e saboroso vinho.
- Porque tardais, ó Náiades esquivas?
- Turba innocente de mancebos rindo
- Bem merece o favor dos sacros Numes.
- Nós não vamos em lenhos alterosos,
- Roçando as nuvens com soberbas velas,
- C’o ferro a lampejar nas bravas dextras,
- Levar da guerra a furia aos outros povos,
- Lançar em fogo os bosques, e as cidades,
- Para voltar aos mares tormentosos
- Co’um pouco do metal, que gera os crimes:
- Nós vamos procurar vizinha praia
- Para rir, e beber de Maio em honra;
- Vamos c’roar-nos de verdura, e lirios,
- Cantar ao som da flauta a Natureza,
- Dançar no meio de innocentes gostos,
- E longe dos mortaes, viver ditosos,
- Poucas horas sequer, na paz dos campos.
-
- Ouvi, Ninfas do placido Mondego,
- Ouvi com ledo rôsto as preces nossas.
-
- Terra, terra: éstas árvores das margens,
- Que ora nos vão passando sôbre as frontes,
- Convidão a colher sua folhagem:
- Saltai, colhei os mais viçosos ramos,
- Teça-se um tôldo, que nos roube á calma.
-
- Ávante! adeos, ó Driades, ficai-vos
- Em doce paz; o orvalho vos fecunde;
- Ache vossa raiz no estio as aguas
- Tão abundantes, como as tendes hoje.
- Nós vamos celebrar o mez das flores,
- Quando voltarmos vos daremos graças.
- Ávante! não cesseis, alegres nautas!
- Cantai: eu voas ensino um canto novo.
-
- Das Filhas de Nereo a mais formosa
- Foi Galatéa candida, e rosada.
- Por seus olhos azues morreo de inveja
- Aglaia, irmã de Amor; a curta boca
- Ciumes acendeo no peito d’Egle,
- Bem que da boca d’Egle um doce beijo
- O scetro pagaria ao rei dos Numes;
- E Eufrosina, entre os Deozes celebrada
- Pelos aureos anneis da longa trança,
- De Galatéa a trança cobiçava.
- E o seio! o seio túrgido e nevado,
- Mais nevado que a espuma em que se tornão
- Na frente de um cachopo as crespas vagas,
- O seio era melhor que o teu, ó Cípria!
- Treze vezes floríra a primavera,
- Depois que aura vital gozava a Ninfa,
- E ja no mar, no ceo, no mundo inteiro
- Das bellas todas triunfava a bella,
- E ais e louvores a seguião sempre.
- Nereo, chamando-a á funda gruta um-dia,
- Assentou-a nos trémulos joelhos,
- Ao hombro lhe lançou paterna dextra,
- E beijando-a lhe diz.—“Assaz he tempo,
- “Filha, de rematar da infancia os brincos.
- “Tu conheces teu rôsto, ¿e não conheces
- “Que he preciso fugir á turba insana,
- “Que te rodêa, que te chama bella?
- “Crê tu nas cãs de um pai, de um pai no afféto;
- “Quanto mais suas fallas te agradarem,
- “E mais seus modos lisongeiros vires,
- “Mais pérfidos serão. Cabe a meus annos
- “Dar prudente conselho á tenra idade;
- “Perdoa-me, acautello-te a innocencia.
- “De meus delfias o lúbrico rebanho,
- “Desde hoje apascentar he teu cuidado:
- “Não convem á belleza ociosa vida.”—
- Disse, e poz-lhe na mão, como a pastora,
- Cajado de coral com ponta d’oiro;
- Entregou-lhe a rebanho, e conduzindo-a
- De seus mares a um placido retivo,
- —“Fica, pastora, aqui, lhe-disse o Velho,
- “Vir-te-hei vêr muita vez.”—Rio-se, e deixou-a.
-
- Alguns dias ali viveo contente
- Com seu rebanho a equorea pegureira.
- Ora entre as moutas dos coraes ramosos
- O levava a pascer os brandos limos,
- Ora ao marinho cão deixando-o entregue,
- Hia colher das perolas as conchas.
-
- Uma tarde de Maio, quando aos braços
- De Thetis vio que o sol hia descendo,
- Ouzou sair do fundo, e foi sentar-se
- A gozar do espétaculo dos bosques
- Na alegre entrada de uma verde gruta.
- Nas ondas por acaso então nadava
- Acis gentil de encantadores olhos:
- Vio-o, e visto, calou seu canto alegre;
- Sólta um suspiro, e se perturba, e córa.
- Do paternal preceito inda lembrada,
- Quer na gruta esconder-se até que parta
- Das ondas o mancebo: eis se arrepende,
- Ja não quer occultar-se, e quer que a veja.
- D’entre o verde do mar o níveo corpo,
- Que os olhos cega, e o coração cativa,
- As proporções, a ligeireza, a graça,
- Com que agora se occulta, agora assoma,
- E em modos mil as posições varía,
- Tudo, tudo a detem. De quando em quando,
- Sem conhecer que o faz, se lhe aproxima;
- As tranças, que trazia ao vento sôltas,
- Sem saber o porque, reparte e lança
- Sôbre os hombros de neve, e cobre o seio:
- Consulta no mar lizo a propria imagem;
- Quer mais bella tornar-se, e mais não póde.
-
- Cançado de banhar-se o Moço emtanto
- Vinha a praia ganhando: ella assustada
- Corre á gruta; ali cora, ali desmaia,
- Quando o mancebo, quando o pai lhe lembra.
- O bello nadador não tarda muito,
- Entra na gruta, onde largára as vestes ...
-
- Amigos, vós parais como esquecidos?
- Deixais que o lenho na corrente desça?
- Ah! voltai ao trabalho; e por castigo
- Não ouvirèis do alegre canto o resto.
-
- Novo me inspira agora esse murmúrio,
- Com que a Fonte das lagrimas se lança
- Da serpeada varzea ao rio aberto.
-
- Junto á fresca matriz d’este ribeiro,
- Onde gozou em seculo remoto
- O mais ditoso par de amor os mimos,
- Meu estro agora placido voltêa
- Por entre os cedros, e os feraes ciprestes;
- E ora ao lago pacífico se arroja,
- Ora da fonte nos penedos pouza.
- Comvosco não existe o vosso amigo;
- Gira fóra d’aqui no sítio umbroso,
- La conversa co’a Musa, aprende, e canta
- Gratas histórias dos passados tempos.
-
- Uma noite de Maio Inez formosa,
- Ao pallido clarão da argentea lua,
- Com seu Pedro fiel aqui vagava.
- De seu candido amor primeiro fruto,
- Lindo, qual dos Amores o mais lindo,
- Um tenro filho, que a fallar começa,
- Co’a pequenina mão á mãi seguro,
- A passos desiguaes a acompanhava.
- No dextro braço do gentil consorte
- O alvo braço despido entrelaçando,
- Languidamente a bella se apoiava.
- Traja da côr da neve, ornão-lhe as tranças
- Rúbidas rosas que reveste o musgo:
- Sob um véo raro e sôlto arfão dois peitos,
- Que estrema, que matiza, e que perfuma
- A flor, que he d’entre mil só digna d’elles,
- O amor perfeito em fresco ramalhete.
- Pelo silencio, e paz da noite amiga,
- Nos extasis de amor arrebatados,
- Ebrios ambos do nectar da ternura,
- Vagueando em seu ermo, respiravão
- Todo quanto prazer nas almas cabe.
- —“Inez, dizia Pedro, olha estes cedros,
- “Que doce murmurando agita o vento!
- “Olha as aguas do tanque, onde tão clara
- “Se está dos Ceos a Lua retratando!
- “Ouve o rumor das ondas transparentes,
- “Que vem brotando da cavada penha!
- “Cara Inez ... ah! calemo-nos; escuta
- “O amante rouxinol como gorgeia!
- “Não o sentes mui proximo? quem sabe!
- “Talvez que em teu jardim celébre agora
- “Ao lado de uma esposa os seus prazeres:
- “Se assim he, refinai perfume, ó flores,
- “E vós levai-lho, zefiros da noite,
- “No instante em que Himeneo tem de ajuntal-los.
- “Ó minha Inez, não ser inda possivel
- “Confiarmos á luz nossa ventura,
- “E eu dizer, sou de Inez!...”—N’isto o mancebo,
- Apertando a seu peito o braço d’ella,
- De beijos lhe inundava a mão mimosa.
- Em silencio e cuidosa a linda Castro
- Parava contemplando os ceos, o esposo,
- E unindo a regia dextra ao seio oppresso,
- Dava a resposta n’um fiel suspiro.
- —“Oh! (dizia depois) que Deos contrário
- “Ao terno amor, á candída innocencia,
- “Poz peito, ó doce encanto, a separar-nos?
- “Quão melhor fôra haver nascido em choças!
- “La, tendo por imperio um só rebanho,
- “Lãs por purpura, e flores por diadema,
- “Pedro fôra pastor e Inez pastora.
- “Teu solio quantas lagrimas nos custa!
- “Mas se fosse teu solio um manso outeiro,
- “Docel um parreiral firme em colunas
- “Das que dão fruto e flor, saude, e agrados,
- “Não cortíra em meus sonhos o remorso,
- “Teu coração ninguem mo disputára,
- “Não se encobríra o meu amor ...”—“Oh cessa,
- “Cessa (Pedro lhe diz interrompendo-a):
- “De que servem, querida, essas lembranças!
- “Se te adoro, que temes? se me adoras,
- “Que posso eu mais querer! Virtudes tantas,
- “Raros dons quaes os ceos em ti resumem,
- “Não são para jazer na escuridade;
- “Dos reis, de teus avós te poem no estrada,
- “Para luzires nos corrutos dias,
- “Como astro de bondade entre os humanos.
- “Gozemos do prazer. Olha esta noite
- “Como he formosa, minha Inez; não tornes,
- “Eu to peço por mim, por ti, por esse
- “Fruto do nosso amor que te he tão caro,
- “Não tornes a acordar taes pensamentos.
- “Queres tu, minha amada, á curta noite
- “Dar emprego melhor, mais proprio d’ella?
- “O assento ao pé da fonte nos convida,
- “Vem-me outra vez cantar os magos versos,
- “Onde quasi exprimiste o enlevo d’ambos,
- “Quando a primeira vez nos vimos juntos
- “Tambem de noite, e n’este sítio mesmo.”
-
- Disse, e Inez imprimindo-lhe nos labios
- Co’a meiga curta boca um longo beijo,
- —“Vamos, responde, apraz-me esse meu canto,
- “E agradar-te, inda mais; partamos logo.”—
- Diz, e ja leva ao collo o seu filhinho.
- Forceja o pai furtar-lhe o doce pezo,
- Ella a ninguem o cede:—“O meu menino
- “He meu, lhe diz; quando eu tiver meninas,
- “Dar-tas-hei, desde ja chama-lhe tuas;
- “Pertence o filho á mãi, e ao pai a filha.”—
- Sorrindo com ternura o ledo Amante,
- —“Ser-me-ha dado, lhe diz, que de teu filho
- “Ao menos colha uns beijos que me deve,
- “Ou hei de só com os teus ficar contente”?—
- —“Se tos deve meu filho, eu vou pagar-tos”
- Inez responde, e lhe pagou mil beijos.
-
- Chegados são aos bancos do rochedo.
- —“Ja do sol o calor morreo na pedra;
- “Para assento, he mister ser estufada.
- “Não rias, o brocado hão de ser ramos;
- “Para a pastora Inez, nenhum mais proprio”—
- Voa ao proximo cedro, os ramos corta,
- Alastra-os sobre o marmore, e reclina
- O infantinho, que pósta a loira fronte
- No maternal joelho, eis adormece.
-
- Absorto no painel delicioso,
- Não podendo parar nem desviar-se,
- Como homem, que formosa feiticeira
- Prende e agita n’um círculo encantado,
- Vaga o Principe á luz voluptuosa
- De lua por entre arvores. Desponta
- No ermo silencio o canto namorado!
- O suave da voz, o doce estilo,
- A musica tocante, a frase meiga
- Alhêão-no de si, todo elle he fogo:
- Não conhece onde está, quem he não sabe:
- No cahos do prazer, em que se abisma,
- Só vê brilhar Inez, Inez só ouve;
- E qual se nunca em braços a apertára,
- E virgem melindrosa o ceo benigno
- Lha houvéra ali chovido aquella noite,
- Arde e delira em sofregos dezejos.
- Já não sabe conter-se, o fim do canto
- Já não póde esperar; “Ó minha, exclama,
- “Ó minha ...” e sem findar, pois não encontra
- Nome que exprima o que lhe ferve na alma,
- Voa a abraça-la sem poder fallar-lhe;
- A voz com loucos beijos lhe interrompe,
- Quer dos labios sorver-lhe os sons divinos;
- Mas ella rindo, e a boca desviando,
- Que a deixe terminar lhe pede a custo.
- —“Sim, acaba (responde), Inez, acaba”—
- E emtanto hia beijando o collo, o seio.
- Depois, como ante Nume, ajoelhando,
- Suspenso a contemplava espaço longo;
- E depois no regaço o rôsto acceso
- Lhe punha, como em ninho de delicias,
- E no certo esperar crescia o fogo.
- Só vós caladas arvores no emtanto
- A canção namorada ouvindo estaveis
- Da mui ditosa Inez! Como expirava
- A derradeira nota, estremecendo
- Acorda o moço, alvoraçado surge,
- E tomando á cantora a mão submissa,
- —“Vamos, lhe diz, a lua vai descendo,
- “O tácito poente a chama ao sono:
- “Oh quão leve entre nós foge esta noite!
- “As auras pela relva estão dormindo,
- “Pendem com sono as arvores seus cumes,
- “Do largo tanque as aguas nem se encrespão.
- “O rouxinol que ha pouco gorgeava ...
- “Ja tambem se calou: sabes a causa?”—
- —“Talvez lhe empeça a voz, responde a bella,
- “Teimoso furto de continuos beijos.”—
- —“Não, não, responde o amante, agora occulto
- “Co’a docil companheira em quente abrigo,
- “Aperta o rouxinol de amor os laços.
- “E nós Inez? ah toma o teu menino,
- “Talvez não tarde a aurora, ao leito vamos,
- “E do fresco da noite ali zombemos.”
-
- Emfim chegámos! c’o ligeiro impulso
- Bate a proa no cáes, o lenho treme,
- Tremem com elle de seu tôldo as folhas.
- Salve ameno lugar, que as Graças pizão!
- Glória ao sacro arvoredo, que diffunde
- Sôbre a calma do vate a sombra fria!
- Glória ás auras, que prêzas n’este sítio,
- Das Dríades por mão aos troncos d’ellas,
- Agitão com susurro a massa enorme
- Da folhagem suspensa! honra aos que brincão
- Puros raios do sol sôbre o terreno,
- Mal que um favonio lhes descobre a entrada!
- Eterno amor ás aves, que em seus ramos
- A vinda nossa a gorgear celebrão!
- Paz ao dezerto, onde comnosco as Musas,
- Esquecidas de Pimpla, se contentão
- De encher de alegres canticos os ares!
-
- Á festa, á festa! Reuni-vos todos,
- Vinde colhêr as fugitivas horas:
- Como vaga que passa, ou flôr que murcha,
- Para mais não voltar, se escoa o tempo.
- Á festa, amigos! Oh! n’esta eminencia
- Eis ja pronto um altar! ei-lo cingido
- Com largas fitas de pintadas flores!
- Ante elle o rosmaninho, a murta, as rosas
- Té não curta distancia o chão tapizão;
- Heras, e lirios candidos o toldão:
- De heras e lirios adornai as frontes.
- Ajoelhai: lá sobe a Divindade!
- Silencio! paz!... Retumbe pelos echos,
- Sem mistura de voz, o som das flautas.
- No coração, no espirito me chovem
- D’estro divino eléctricas centelhas.
- Ja me sinto mudado em branco cisne!
- Cercai-me: eu vou cantar; calam-se os ventos!
-
- Voa invisivel das Hemonias serras,
- Tu que no Xantho as aureas tranças lavas:
- E se he tua, qual Roma suppozera,
- Ésta a melhor porção da florea quadra,
- Do cantor de teu mez protege a audacia.
-
- D’entre os filhos da immensa eternidade,
- D’entre esses doze Irmãos, que repartido
- Tem por sua influencia o anho inteiro,
- Maio foi sempre o mais gentil de todos:
- Qual dos cachos o Deos, e o Deos das setas,
- Goza brincando eterna mocidade.
- As Graças infantis, e a Formosura
- O creárão nos ceos com o proprio leite.
- Mal que o mundo surgio do horrendo cáhos,
- Veio formar-lhe os seus primeiros dias,
- E Maio foi da terra a fresca aurora.
- Em mimos escondendo a magestade,
- He Maio o pai, e o rei da Natureza:
- Qual em soberbo paço, anda nos bosques;
- Ou, qual em solio, nos outeiros verdes
- Se assenta, ao lado da risonha Flora.
- Compõe-lhe o seu cortejo Auras, Favonios,
- Que das plumas azues fragrancia espargem
- Furtada ha pouco ás pudibundas rosas.
- Em seu reinado insolita doçura
- Exhala o canto dos volateis bandos,
- E canoro parece o bosque inteiro.
- Em seu reinado os prados florecentes
- Só curão de ostentar perfume e cores:
- E a Ninfa ás vezes longas horas fica
- A meditar na escolha dos ornatos.
-
- Co’a folhagem densissima susurra
- O bosque annoso a celebrar-te, ó Maio;
- Susurra a celebrar-te o rio, a fonte.
- Com serena alegria o sol derrama
- Vasto oceano de luz no aereo espaço.
- A pompa da manhã, da tarde o brilho
- Tem não visto matiz d’oiro e de rosas,
- E côr de fogo sôbre um ceo de leite.
- Toda patente a abobada de estrellas,
- Toda brilhante a prateada lua,
- Te dão, como as do Elisio, alegres noites,
- De importuno calor desafrontadas,
- Chêias de encanto, da saudade amigas,
- Gratas a um tempo ao coração, e ao estro.
- Aqui, e ali os rouxinoes se escutão
- Longas horas c’os echos porfiando.
- Gira, vaguêa pelas fracas trevas
- Dos pirilampos o lustroso bando:
- Resoa em cada aldêa alguma frauta,
- E emtôrno d’ella as camponezas danção:
- Bala no aprisco impaciente o gado
- As poucas horas, que á manhã precedem.
-
- Como he doce o teu mez, benigno Maio!
- Alegra-se o viandante ao ver nos campos
- Do verde trigo as trémulas searas
- Iguaes a um vasto lago, onde os favonios,
- Nascidos inda ha pouco entre as florestas,
- Aprendem a encrespar as verdes aguas.
- Aqui a par de um campo, onde começa
- O milho a despontar, desprega aos ares
- Com vaidosa soberba altas bandeiras
- De outros milhos o exército infinito.
- Ostentando riqueza alem menêão,
- Entre a argentea folhagem pendurados
- Cachos de flor, os olivaes fecundos.
- Os pomares de frutos se carregão,
- Que ja sem medo aos furacões, e ás chuvas,
- Com áncia a côr, e a madureza esperão.
- As aves da manhã, quando revôão
- Com longo canto pela immensa altura,
- Se aprazem de os olhar; e ás vezes descem,
- E vem pouzar nos encurvados ramos,
- O futuro sustento ali festejão:
- Tal de annos onze uma pequena virgem
- De adoradores mil se vê cercada;
- Bem que á sua belleza inda lhe faltem
- Terno expressivo olhar, globos de neve,
- Voluptuoso dezejo entre suspiros,
- Buscado enfeite, graciosas fallas,
- Rodêão-na comtudo, adivinhando
- Pelo botáõ fechado a flor aberta.
-
- Mas, ó Maio, o teu mez não brilha esteril!
- La se ergue o laranjal c’os frutos d’oiro;
- Doces limões, e saborosas limas,
- D’entre a larga folhagem descobrindo
- A amarellada tez e o forte aroma,
- Prendem sentidos convidando ao furto;
- Ri-se entre as mais a alegre cerejeira,
- Que ainda que no gôsto a muitas cede,
- Mais que todas seduz co’as vivas bagas;
- A ginjeira com ella aposta encantos,
- Mas apenas gostada, a palma he sua;
- Iguaes a um coração em côr, em fórma
- Os suaves morangos ja maduros,
- Contentes da humildade, estão dormindo
- No fresco seio da materna planta:
- D’ali, se vem um zefiro acorda-los,
- Olhão em roda as pampinosas vinhas;
- E vendo como os pequeninos cachos,
- Que a fronte cingem do celeste Bromio,
- E um dia gratos brilharáõ nas mezas
- Mudados no licor, que gera os risos,
- Do nativo terreno apenas se erguem,
- Zombando riem da vaidosa audacia,
- Com que somem no ceo pomposo cume
- Árvores tantas menos uteis que elles.
- Por toda a parte as desveladas hortas
- C’o verde alegre das crescidas plantas
- O suor do colono estão pagando;
- Seu terreno sulcado está coberto
- De immensas produções, que vão nas mesas
- Ser preciso sustento, ou grato mimo,
- E ora entrar na choupana, ora nos Paços.
-
- Em teus dias, ó Maio, as vélas sólta
- Sem medo o nauta pelo vasto oceano,
- E olhando puro o ceo, de leite as ondas,
- A cujas furias escapou nadando,
- Sobre a pôpa da náo regendo o leme,
- Pensa na esposa, nos filhinhos pensa;
- Prometteu-lhes voltar; nem ja receia,
- Maio, fiado em ti, ser-lhes perjuro:
- Sobre a cana do leme encosta os braços,
- E ou sólta em grande voz grosseiros versos,
- Ou costumada musica assobia
- Olhando a estrada de alvejante espuma,
- Que d’um e d’outro lado á prôa foge.
- Brinca nas aguas, e ou se esconde, ou salta
- De vagos peixes prateada turba;
- Na verde superficie as Ninfas danção,
- Da tarda noite nas caladas horas,
- Das estrellas á doce claridade.
-
- Mas eu quero soltar mais altos vôos,
- Trazer ao mundo incognitas verdades.
- Em teus dias, ó Maio, os Páfios bosques
- Vírão nascer os trêfegos Amores!
- N’um valle opaco, onde buscando o fresco
- Costumavas dormir entre mil flores,
- La teve a Deoza o seu fecundo parto.
- Apenas sobre a attonita verdura
- Cípria depunha um pequenino alado,
- Logo o via nos ceos voar, sumir-se:
- Tal dos Amores o soberbo genio!
- Quando cançados de brincar nos ares,
- Um passatempo á terna Mãi pedião,
- Tu lhes foste ensinar pelas florestas
- A formar arcos de flexiveis ramos,
- E despedir, sem nunca errar, seus golpes.
- Tu lhes mostraste os rezinosos troncos,
- De que havião formar brilhantes fachos.
- Tu mesmo entre elles companheiro e mestre,
- Pelos campos as flores procuravas,
- Com que doces prizões tecer devião.
-
- Tudo em teus dias no universo adora;
- O sexo, a idade, as condições não livrão.
- Entre o rebanho, que amoroso bala,
- Amoroso pastor canta ou suspira;
- Ternas gorgêão no arvoredo as aves;
- Ragem ardendo de dezejo as feras;
- Suspiros ouço ás arvores, e aos ventos;
- Abrem o seio as virgemzinhas flores,
- E Venus as fecunda, e mãis se tornão.
- Em cada gruta, em cada bosque ás Ninfas
- Uma emboscada os Sátiros aprestão.
- Em bellezas mortaes embevecido,
- Canta em rustica voz novos amores
- C’roado de pinheiro o Deos da Arcadia,
- E ante a Ninfa gentil mudada em canas
- Pelas canas da flauta os sons varía
- Com ar alegre, que perjuro o torna.
- Sensivel para o Sol se volta Clície;
- O Sol na terra outras bellezas busca,
- E outras acha, que o peito lhe cativão,
- E fazem que mais tarde a Thetis desça.
- Entre os astros as Pléiades luzentes
- Com saudade seus thalamos recordão:
- Junto d’ellas o Touro inda parece
- Mugir lembrado da formosa Europa.
- Mais placida refulge a Cípria estrella;
- Dissereis que saudosa indaga os sitios,
- Onde comtigo, venturoso Adonis,
- Passava as noites do formoso Maio:
- E quando foge, a Aurora se envergonha,
- E cora por voltar tão cedo ao mundo;
- Pois quem ha que não saiba os seus segredos?
- Quem de Céfalo a história não repete?
- Em cada tronco um dísticho de amores,
- Ou dois nomes se lem, como enlaçados.
- Uma sombra, uma só não ha nos campos,
- Onde Amor não recorde, ou não prepare,
- Ou não veja presente uma vitoria.
- Foi, Maio, foi teu mez que ao Rei das sombras
- Fez que deixasse o sempiterno cáhos,
- Para roubar a encantadora esquiva,
- Do flóreo campo de Enna ornato, e Deoza.
- Foi, Maio, foi teu mez que ouviu primeiro
- Diana a suspirar, arrepender-se
- De ser das virgens tutelar Deidade.
-
- Graças ao teu poder, e ao teu influxo!
- És tu que a rir convidas gracioso
- Minerva um pouco a abandonar seus livros[13].
- Quem póde resistir-te? emfim te cede,
- Toma-te pela mão, para que a leves
- A divagar em teus vistosos campos;
- O ar de meditação troca em agrados,
- E vê contente abandonar-lhe a côrte
- De seus alunos juvenil caterva,
- Que alvoraçada aos patrios lares vôa.
- Sim, Maio, eu voarei aos patrios lares!
- Mas cuidas que jamais distancia ou tempo
- D’este dia a memoria hão de apagar-me?
- Não: onde quer que os fados me conduzão
- Sempre te hei de cantar, sempre c’roado
- De teus altares me verás ministro:
- Mas d’esta sociedade, e d’estes brincos,
- Em quanto a noite se adornar de estrellas,
- Nunca a lembrança volverei sem mágoa.
-
- De generoso vinho enchei-me o copo,
- Que de mírtea grinalda ornado quero.
- Imitai-me tambem. Por este, ó Maio,
- Suavissimo licor, pai da alegria,
- Por este, digo, cuja taça empunho,
- Juro ante o ceo, de teu altar em frente,
- Que um anno só não deixará meu estro
- De exaltar tua glória, e a minha amada,
- A Deoza tua mãi, a Primavera.
- Reformai-me outra vez a funda taça.
- Em honra a vós, formosas moradoras
- D’este ameno lugar, esta se esgote.
-
- Aguardai, cabe agora o sacrificio;
- Vou-me a buscar a vítima, que a trouxe
- Occulta e prêza do batel na pôpa.
- Eis-me, abri-me caminho! eu volto ás aras:
- Para a santa ablução trazei-me um vaso.
- Silencio! fallo ao Deos!—“Sejão-te acceitos
- A vida, e leve espirito do prezo
- Que vem n’esta gaiola, o qual eu vate
- Por todos nós agora te dedico,
- E dedicado entrego ás livres Parcas.
- Digna he de ti formoso ave formosa
- Como esta; pintasilgo ativo em canto,
- Garrido em côres, no brincar esperto,
- Mestre em tirar do cristalino poço
- Com o balde de avelã sua bebida:
- Outro melhor nunca girou nos bosques.
- D’esta estação n’um dos primeiros dias,
- Segundo o meu costume antes da aurora
- Saí a espairecer nos campos verdes,
- Ouvir das aves os primeiros cantos,
- E aquecer-me sentado sobre a relva
- Ao primeiro calor do sol nascente.
- Banhei o rôsto n’um remanso puro,
- Colhi as flores inda ha pouco abertas;
- E co’a mente serena, e possuido
- Do amor do campo, e dos campestres gostos,
- Voltei de novo ao lar. Junto á janella
- Por onde largo sol ja vinha entrando,
- Fui sentar-me a pascer em vãs delicias.
- Eu sonhava acordado! ah nos meus sonhos
- Não via mais que bosques e pastores,
- Rebanhos, fontes, rusticas choupanas!
- Dono me cria d’um torrão pequeno
- Mas pingue, de uma choça pequenina
- Mas alva, entre nogueiras, rodeada
- De alvos cordeiros nédeos e alvas pombas.
- Eis que afoitando um vôo, esta avezinha
- Me entra por casa; ao seu gorgeio acórdo,
- Pois junto a mim pouzava gorgeando.
- Ouves, Maio, este som, com que parece
- Approvar adejando o que te conto?
- Ouves? repara bem: tal modulava
- Quando amoroso a vizitar-me veio.
- Ganhando confiança a pouco e pouco,
- Saltou-me para o hombro, e de improvizo
- Prêzo se vio na minha mão fechado.
- Quiz debater-se, emvão; piou, carpio-se,
- O bom coraçãozinho lhe batia.
- Beijei-o, puz-lhe mesa; o sem ventura
- Nada acceitava, anciando só fugir-me.
- “Conheces-me bem mal, pobre innocente,
- Lhe digo; essa gaiola he teu palacio
- Não carcere, eu teu servo e não tirano.
- Servo e palacio um dia de experiencia
- Talvez tos faça amar: se não, prometto
- Abrir-te a porta e libertar-te os vôos.”
- Á janella da minha a estancia d’elle
- Penduro; os aureos grãos e a clara linfa,
- Cama fôfa entre ramos florecentes,
- Vista de campo e céo por toda a parte,
- Mas livres um de açôr, outro do tiros,
- Manso, mansinho ás grades o affizerão:
- Comeo, bebeo, cantou. “Pois que tu cantas,
- Vatezinho silvestre, em nossa casa,
- Juntos e amigos ficaremos sempre.
- Tu serás de meus dias a harmonia,
- Eu tua providencia; a fonte e a messe
- Te viráõ procurar, dar-te-hei florestas
- La dentro em teus penates de cortiça,
- E porque logres tudo, uma consorte
- Virgem, bella, fagueira, e cujos filhos
- Seráõ só teus, e como tu formosos.”
- Desde então ledo vive, e tanto aos mimos
- Se acostumou domesticos, e tanto
- A amizade entendeo, que lhe abro a grade
- Fronteira aos ceos da aurora, aos bosques amplos,
- E nem bosques nem ceos lhe dizem—foge.—
- Da liberdade que lhe acena á porta
- Se despede cantando, e empoleirado,
- Reizinho em casa sua, a mim e a ella
- Nos compara, e lhe diz: “Aquelle humano
- Deos foi que para mim creou taes ocios!”
-
- “He esta, ó Maio, a vítima que trago
- Ao sacrificio teu! perco um amigo!”
- Com esta mimosissima grinalda
- De sensitiva lhe circundo o collo,
- Para sinal da dor que me comprime.
- Vamos, venha o punhal, que eu limpo o pranto.
- Ó ceos!... quanto me custa! He sacrilegio
- Qualquer demora mais: ânimo agora,
- Saudoso coração!... Venceste, ó Maio!
- Venceste! consumou-se o sacrificio!
- O fio prêzo ao pé cortei de um golpe,
- Lancei-o ao ar; voou; nem ja o ouvimos.
- Foi rever seus antigos companheiros,
- Sua amada, seu bosque, e o seu alvergue.
- Oh! como será doce emtôrno ao sócio
- Que julgárão perdido, apinhoada
- Papear parabens a alada tribu!
- Oh tu lhes dize então do amigo o nome,
- Que vezes te beijei de madrugada
- Por me acordares co’o suave canto,
- Para trocar o leito pelo grato
- Passeio da manhã, d’onde trazia
- Pera a tua gaiola hastes de flores.
- Ouvirá leda a esposa a leda historia,
- E a contará depois aos tenros filhos.
- Talvez que em meu passeio inda algum dia,
- A festejar-me, emtôrno a mim se junte
- Chêa de gratidão toda a familia,
- Tu meu amigo, a tua esposa, e prole.
-
- Dispersai-vos, bebei, cantai, amigos,
- Ride, e dançai, porque invejoso o tempo,
- Co’as cãs na fronte, e o coração gelado,
- As horas do prazer furta aos mancebos.
- Mas ai de nós, que o perfido voando
- Ja nos fugio co’a encantadora tarde!
-
- Desçamos ao batel: adeos ó Lapa,
- Adeos, fica-te em paz; e cedo espera
- Ver de novo juntar-se á sombra tua
- Da Natureza os candidos Amigos.
- Deixai as varas, gracejemos antes,
- Não cumpre trabalhar, para fugirmos
- De um bosque sacro a Maio, e sacro ás Musas.
-
-FIM DO CANTO PRIMEIRO.
-
-
-
-
-A FESTA DE MAIO.
-
-POEMETTO
-
-CANTO II.
-
-
- D’essa garrafa de cristal doirado
- Duas taças me enchei. Venha a primeira:
- Esta se esgote da amizade em honra.
- Ó divino licor! se o puro nectar,
- Que Hebes formosa a Jove ministrava,
- Comtigo competir podesse ao menos,
- Jove lhe perdoára o seu descuido,
- Nem dos bosques Ideos arrebatado
- Ganimedes gentil voára aos Numes.
-
- Dai-me, dai-me a segunda. Em honra agora
- Do celeste prazer, que nos encende,
- Este liquido fogo ao peito envio.
- Graças ás mãos, que á terra afortunada
- Derão em hora boa éstas videiras!
- Graças a Baccho, ao protétor, que tanto
- Desvelo lhes prestou! Graças á turba
- De alegres raparigas, que levárão
- Os cachos ao lagar em largos cestos!
- A vós mancebos rusticos e alegres,
- Que aos pés calcastes as cheirosas uvas!
- E a ti, lenho feliz, em cujo seio
- Os sagrados toneis se transportárão
- Desde os campos de Chipre aos campos nossos!
- Do celeste perfume ébrias as Ninfas
- Te acompanhárão na veloz carreira;
- Continuamente as velas te enfunárão
- Com halito propício os frescos ventos,
- Que lá brincavão pelas ferteis vinhas,
- Faceis criando, e colorindo as uvas:
- E o mesmo Baccho (eu não vos minto, amigos:
- Ah! dai-me a taça, os labios se me seccão);
- Baccho em pessoa, o vencedor das Indias,
- Invisivel na pôpa revirava
- O leme dirétor co’a mão divina.
- Dai-me á pressa outro copo: outro: mais cinco:
- Mais um que eu vote a Febo, e nove ás Musas.
- Sinto o meu coração desfeito em gôsto!
- Ah! por piedade rodeai-me todos;
- Quando entre amigos bebo, um só não basta
- Para me encher atropelados copos.
- A cada qual de vós uma saude
- Quero fazer; mais uma a cada Ninfa;
- Aos Numes todos, que na terra habitão,
- Aos Numes todos, que dos ceos nos olhão,
- A todos que no Elisio nos esperão;
- Farei uma saude a cada vaga,
- Que desde a Herminea Serra[14] aos mares corre,
- Álua, a cada estrella, a quanto existe.
- Do mais vivo prazer me volvo em braços!
- Rio, e respiro magicas delicias!
-
- Gelos, que em serras coroais as fontes,
- D’onde as urnas as Náiades inclinão
- Para mandar-nos de tão longe as aguas,
- Derretei-vos em subitas correntes:
- Brami de roda dos Hermineos lagos,
- Ventos da tempestade; as átras nuvens
- Reuní, condensai: retumbe ao longe
- O ronco do trovão pelas florestas,
- E o monte enorme em seus abismos trema.
- Todo em chuveiros se desate o polo:
- E cedo (oh! praza aos ceos!) e cedo o rio
- Vença o leito, e com impeto revolva
- Tropel ruidoso de espumosas vagas.
- Sem poder contrastar-lhe a furia immensa,
- Perto da margem sem poder ganha-la,
- No escuro turbilhão de rôjo iremos.
- Quando a aurora assomar, ja muito longe
- Nos verá pelo Atlantico engolfados.
- Do enfeitado batel voltando a prôa
- Contra as vagas austraes, candidas velas
- Presentaremos ao ligeiro Boreas.
- Em dia bonançoso, e mar de rosas
- Iremos sem temor, chêos de assombro,
- Gozando entre as equoreas Divindades
- Scenas de Maio no ceruleo campo.
- Cedo veremos verdejando e rindo
- O alto Cabo surgir na extrema ponta
- Da Lusitana terra: erguendo aos astros
- A nautica celeuma, alvoraçados.
- Poremos no occidente o vago leme
- Para afrontarmos as Titóneas plagas.
- Entre o Barbaro solo, e o solo Hispano
- Passaremos cantando o Estreito, aonde
- As Colunas ergueo famoso Alcides.
- Pelos ventos Hesperios ajudados,
- Movendo assombro ás cérulas Nereidas,
- Cortaremos, voando, em curtos dias,
- Mediterraneo, tua longa estrada.
-
- Nossos astros serão por entre as ondas
- O astro de Venus luminoso, e claro,
- Ariadne, a esposa do contente Bromio,
- E os Tindáreos Irmãos, cuja concordia,
- Cuja amizade nos será de exemplo.
- Eolo prenderá com mil cadêas
- Euro o nosso contrario: as verdes ondas,
- Ouvindo de Tritão troar o buzio,
- Sem furia, sem fragor do barco emtôrno,
- Chêas por cima de alvejante espuma,
- Saltaráõ quaes no prado os cordeirinhos.
- Que, meus amigos! receais procellas?
- Procellas contra nós! Assáz os Numes
- Nas almas sabem ler; nós demandâmos
- Chipre, votada aos candidos prazeres:
- Do vinho a Deoza, a Deoza dos amores,
- Os Numes da amizade, eis nossos astros;
- Que havemos de temer? Não, não me importa
- Que o ar, que o pégo em furias se revolva:
- Por entre a serração, por entre a morte,
- Voaremos a rir de Chipre aos campos,
- Quaes na barca da Estige um dia iremos
- Dos lagos avernaes ao grato Elisio.
-
- Não ha que recear. Dai-me outro copo;
- Outro bebei, e ouvi-me. Amigos fados
- Da Ilha encantadora ao melhor sítio
- Nos hão de conduzir: ja cuido vê-la!
- Um cáes em meia lua, um cáes não grande,
- Ja nos hospeda na conchosa arêa:
- Unidas penhas de elegante aspéto
- O anfitheatro deleitoso fórmão:
- Todas se vestem de verdura, e flores,
- Todas tem fria gruta, ou doce fonte.
- D’estas fontes, que emtôrno enchem os ares
- De um desigual, suavissimo murmúrio,
- Umas descem chovendo entre os penedos,
- Outras em larga enchente se arremeção,
- Sem o musgo occultar, de rocha em rocha,
- Té que ás bacias espumosas saltão.
- Aqui um mirto, alem uma roseira
- Coroa a entrada das pequenas grutas,
- Ou lhes fórma seu tôldo, ou quasi as cobre.
- Por toda a parte melindrosos ninhos
- Se ouvem piar; por toda a parte adejão
- Co’o sustento no bico as ternas aves.
- D’esta folhagem se levanta o melro,
- E vai pouzar na proxima folhagem:
- Queixa-se n’uma gruta Filomela
- Quando Progne sentida eleva o canto.
- Prezos aos troncos Zéfiros murmurão;
- Auras, dos valles proximos correndo,
- Das invisiveis azas nos derramão
- Almos efluvios de cheirosas flores.
- Vede assentos, que a mão da Natureza
- Nos rochedos abrio, que a mão do Tempo
- Cobrio, amaciou com verde estofo;
- Aqui se tem as Ninfas assentado
- Pelas tardes de Maio muitas vezes,
- Para gozar os brincos dos Amores,
- Que ora lutão na arêa, ora apostando,
- Se arrojão de mergulho aos verdes mares,
- E apparecem depois nadando e rindo.
-
- Vamos: por esta parte o cáes nos deixa
- Na Ilha penetrar: commoda entrada
- Nos off’rece este portico de murtas.
- Deozes! que vamos vêr! Salve cem vezes,
- Bosque sombrio, magestoso, immenso!
- Do desmedido Atlante a espadoa enorme
- Não, não he quem sustem o eterno Olimpo,
- És tu, sagrado bosque; a vista humana
- Chegar não póde a teus soberbos cumes!
- Serras, diluvios de ondeantes folhas
- Sôbre colunas mil, que o raio assustão,
- Se agitão sôbre nós. Longe, ó profanos!
- Vates, erremos pelas frescas trevas!
- Alem, se não me engano, o sol penetra.
- Corramos. Oh prazer! oh maravilha!
- Eis um retiro aos Numes consagrado,
- Incognito aos mortaes, de encantos fertil!
- Tu que vizitas cada dia o mundo,
- Ó Sol, ¿que outro lugar no mundo encontras,
- Onde com mais prazer teus raios lances?
- Vede este prado, cujo fundo escondem
- De Hibleas flores animadas nuvens:
- Olhai sem guardador pingues rebanhos
- Livres saltando nos outeiros verdes:
- Vêde encostas de pampanos cobertas;
- Fontes á sombra de arvores sagradas;
- Jardins fechados de cheirosos muros
- De altos lilazes, de azareiro e cedro;
- Tanques no meio, onde em repuxo aos ares
- Voão do bico de marmoreos cisnes
- Argenteas linfas, que no ar se cruzão,
- Mil arcos, mil abobadas formando,
- E em fresca chuva vem mover os lagos!
-
- Que ditoso paiz! não sei que sinto
- No meio agora d’estes sons campestres,
- Respirando balsamicos vapores,
- Em sacra habitação, entre os amigos,
- Longe dos homens, da innocencia ao lado!
- Abraçemo-nos. Sim: desde hoje unidos,
- Seremos d’este sítio os habitantes.
-
- D’esse ribeiro na fecunda varzea,
- Ali, onde hospedagem graciosa
- Presta ás aves do ceo pequena selva;
- Ali, onde estendidos pela grama
- Junto ás novilhas candidas, repouzão,
- Co’a cornígera fronte entre as papoulas,
- Mansos touros, que o jugo inda não vírão,
- Ali se vos apraz, se apraz aos Deozes,
- Vamos pois construir nossas moradas.
-
- Do Genio do lugar primeiro em honra
- Cumpre fazer as libações, e os votos;
- Venerar, depois d’isto, a turba agreste
- Das Ninfas do paiz; e culto, e nome
- Dar ás fontes, aos campos, e ás collinas
- D’estas gentis, incognitas paragens.
-
- Vede faias aqui, pinheiros, chôpos;
- Abatei-os, tecei nossas cabanas.
- Formemos uma aldêa: a cada alvergue
- Juntemos um jardim, que ao fundo banhem
- Do claro rio as fugitivas aguas.
-
- Não falte o culto ás sacras Divindades.
- Á obra, á obra! o templo se levante
- Nobre, proprio de nós, digno dos Deozes,
- Com paredes de cedro á luz vedadas.
- Deixamos á vaidade altas colunas,
- Cúpulas d’oiro, abobadas suspensas
- Em meia altura da extensão dos ares;
- De trémula parreira um této basta.
-
- Ponde no tôpo o altar da Natureza,
- De nossa adoração primeiro objéto:
- Firmada sôbre um globo, como o nosso,
- Uma estatua gentil figure a Deoza,
- Virgem, bella, risonha, affavel, nua,
- Guardando-lhe o pudor sendal ligeiro:
- Colar de flores lhe atavie o collo,
- C’roa de frutos lhe circunde a fronte,
- Diversos ramos as madeixas ornem:
- Tenha n’uma das mãos celeste chama;
- Penda da outra, e por seguro fio,
- O Genio do prazer, que as azas bata
- Para voar-lhe ao cobiçado seio:
- Cerquem-lhe o pedestal em turba immensa
- Homens, feras, volateis, nadadores,
- E quanto emfim por seu influxo existe:
- Vejão-se á volta os poderosos Genios,
- Que a seu sabor os elementos movem,
- Salamandras, Ondins, Silfos, e Gnomos.
- D’esta ara ao lado se verão pendentes
- As flautas nossas, pois lhe são votadas.
-
- Sôbre outro altar a Deoza de Cithéra,
- Não de marfim, nem marmore talhada,
- Mas de alva cera das abelhas nossas,
- Feita por nossas mãos encante a vista.
- Quero-a nua de todo: ao seio amime
- Entre os braços de neve o filho alado;
- E co’a ternura languida nos olhos,
- Como para o beijar lhe estenda os labios,
- Curta tornando, como a d’elle, a boca.
- As trez Irmãs de Amor pequenas, bellas,
- Como invejando do menino a sorte,
- Forcejem por trepar da Mãi ao collo,
- Emquanto o Irmão travêsso a rir pretende
- Co’as delicadas mãos lança-las fôra.
- Duas turbas de Amores apinhados
- Se ergão d’aqui d’ali: tenhão por terra
- Os arcos, e os farpões; na dextra empunhem
- Fachos, que hão de brilhar nos festos dias,
- Por nossas mãos com sacro lume accesos.
-
- Defronte d’esta, na parede opposta,
- Outro brilhe votado á Primavera.
- Ali se mostre a Deoza, cuja veste
- Um manto seja de tecidas flores;
- De flores o toucado; a planta nua
- Sôbre floreo torráõ firmada alveje:
- Durma a seus pés o aurígero carneiro;
- O Maio, filho seu, tenha em seus braços,
- Igual em perfeições á Mãi formosa,
- Alado como os Zéfiros e Amores,
- Que os Amores, que os Zéfiros mais lindo.
- Tenha na dextra um ramo florecente,
- Onde pouzem pintadas borboletas:
- No esquerdo braço um cabazinho grave,
- C’os doces frutos, que em seu mez se colhem,
- E a rir pareça á Deoza appresenta-los;
- Mas a Deoza, estendendo a mão de neve,
- Como que busque o grávido cestinho
- Tirar de sôbre o seio, onde elle o punha.
- De Favonios um bando se reparta
- Aos dois lados do altar, em cujas dextras
- Ponhamos bem fingidas cornucopias
- Chêas d’agua, onde flores se conservam.
-
- Atrio cercado de sombrios louros
- Haja na frente do sagrado alcaçar.
- Por trez frondosos porticos se passe
- Do templo ao atrio: emtôrno d’elle avultem,
- Dos loureiros á sombra, as Deozas nove,
- E o Nume protétor do equorea Delos.
-
- Um de nós cada mez será por sorte
- Da sacra estancia o sacerdote, e o guarda.
- Ficaráõ a seu cargo os festos dias,
- Dos altares o culto, os hinos sacros,
- E a protéção dos ninhos melindrosos,
- Que as aves formaráõ do této em volta;
- Para que nunca violados sejão,
- Santa hospitalidade, os teus direitos.
-
- Da nossa aldêa ás proximas campinas
- Daremos de cultura uteis desvelos.
- Vertumno, e Ceres, e Pomona, e Flora
- Hão de favonear trabalhos nossos,
- E em sustento pagar nossas fadigas.
-
- Ricas hortas, dulcissimos pomares,
- Doiradas messes, pampinosas vinhas
- O celleiro commum nos terão chêo.
- Da ociosidade vã não será filha
- Nossa innocente e solida riqueza.
- Algum de nós ao trato dos rebanhos
- Seus cuidados dará: que importa o mundo?
- Vida de nossos pais! vida dos campos!
- Quem te nomeia humilde, e vergonhosa?
- Vive o pastor no seio da innocencia;
- No meio da pobreza he rico, e folga.
- Emquanto os grandes entre escravos gemem,
- Canta o pastor entre o rebanho, ou dorme,
- Fiado em seu amigo, em seu rafeiro:
- Nem ao menos que ha leis sabe nos campos.
- São seus dias cadêas de prazeres,
- E seus prazeres innocencia todos.
- Não cala seu amor, canta-o nos bosques
- Em alta voz, ou goza-lhe as delicias.
- Ao transmontar do sol volta a seus lares;
- Conta á porta o rebanho, e junto ao fogo
- Vai co’a cêa frugal entre os amigos
- Restaurar o vigor para o trabalho.
- Repouza em paz sobre o macio feno
- Emquanto alguma luz no ceo não raia:
- Não ha cuidado, que lhe rompa o sono;
- Se acaso sonha, os sonhos não lhe pezão,
- Pintão passados bens, ou bens futuros,
- E volta ao mesmo quando nasce a aurora.
- Vergonhosa ésta vida! ó desgraçados,
- Corai no meio das grandezas vossas:
- Se o pastor conhecesse o vosso estado,
- Nem de olhar-vos sequer nem se dignava.
-
- No regaço feliz da natureza,
- Ao lado da ventura, os dias nossos
- Serão a imagem dos doirados dias.
- Como os primeiros pais da especie humana,
- Viveremos frugaes entre a abundancia,
- Ricos sem pompa, sem vaidade sabios,
- Socegados sem leis, sem armas fortes.
- Hão de mil vezes os campestres Numes,
- E o sacro Povo, morador do Olimpo,
- Compràzer-se de olhar a nossa aldêa.
- Ao romper da manhã, ser-lhes-ha doce
- Ver-nos todos sair dos proprios lares
- Co’a alegria na face: uns diligentes
- C’os instrumentos rusticos nas dextras,
- Ou seguindo seus bois, tornar-se aos campos;
- Outros guiando para os ferteis pastos
- Longa tropa lanígera balante.
- Ser-lhes-ha doce o ver como trabalhão
- Todos no bem commum, sem que se escutem
- Do _meu_ e _teu_ os nomes perigosos.
-
- Quando o gallo doméstico no aldêa
- Soltar ao meiodia o canto agodo,
- Correremos á mesa: unidos todos
- De um bosque á sombra nos calmosos tempos
- E junto ao fogo quando reine o frio,
- Não veremos deante a rica prata
- Com vivo resplendor cegando os olhos;
- Nem dourados cristaes, nem porcelanas,
- Cuja louca ambição furiosa arrasta
- Tantos loucos mortaes, dignos de pranto,
- D’entre os braços dos seus aos torvos mares,
- E em fragil pinho, que rodêa a morte,
- De longinquo paiz os leva aos portos.
- De facil construção vermelho barro
- Fará nossa baixella; e cavos troncos
- Fundos, polidos, de jasmins c’roados,
- Servir-nos hão de o rúbido falerno.
-
- De nossas hortas vegetaes gostosos,
- Os teus dons, ó Pomona, e os teus, ó Ceres,
- O mel puro e doirado, e o branco leite
- Bastão assaz da Natureza aos filhos.
-
- E que? algum de nós contra o que vive
- Ouzaria vibrar da morte a fouce!
- O touro soffredor, cuja fereza
- Para servir-nos se abateo ao jugo,
- O touro, o nosso amigo, e o nosso escravo,
- Que sem ter parte alguma em nossos gostos
- Tomava parte nas fadigas nossas;
- Que armado pelas mãos da Natureza
- Podia, se quizesse, oppôr-se aos fracos,
- Que a paz, que a liberdade ouzão roubar-lhe,
- Depois de longo, aviltador serviço
- Deve ... (oh pejo! oh furor! oh sacrilegio!)
- Caír ás mãos do barbaro assassino,
- Para quem só viveo! por quem mil vezes
- Coberto de suor, chêo de espuma,
- Co’a fronte baixa, sem mugir ao menos,
- Queimado pelo sol, até soffria
- Duro, ferreo aguilhão se fraquejava!
- Qual ouzaria ensanguentar a dextra
- Na mansa ovelha, da innocencia imagem;
- Que incapaz de offender, nunca rebelde
- Aos brados do pastor, seu proprio leite
- Entre seus filhos e elle repartia,
- E até para cobri-lo as lãs lhe dava!
- Lindos filhos do ar, ternos cantores,
- Que innocentes voais pelas florestas,
- Nos prazeres, no Amor gastando a vida,
- Filhos do ceo, modelos, que adorâmos,
- Não temais habitar nos campos nossos.
- Se o açor, se o falcão por estes sítios
- Passar alguma vez, vinde, eu vos peço,
- Vinde-vos esconder em nossos lares,
- De vossa timidez sacra guarida:
- Se nos virdes passar nos sitios, onde
- Entre os ramos, á sombra vos agrada
- Divertir gorgeando a terna esposa,
- Que muda, e carinhosa esconde, e aquece
- Entre as azas seus filhos pipilando,
- Se nos virdes passar ... oh! por piedade
- Não fujais, prosegui vossas cantigas;
- Sois como nós da Natureza filhos;
- A Mãi commum vos deo a liberdade,
- Sustenta-vos, bem como nos sustenta:
- Sois fracos, tanta basta; e nós não somos
- Nem tiranos, nem perfidos, nem baixos
- Para abusar da fôrça: he jus terrivel!
- Se para vos matar compete ao homem,
- Para o homem matar compete ao tigre.
- Não: vivei entre nós, como entre amigos:
- Somos todos irmãos: arcos, e setas,
- Redes, e visco, passatempos torpes,
- Não usa quem adora a Natureza:
- Serião entre nós nefandos crimes.
-
- Se um dia á caça algum de nós (os Deozes
- Affastem para longe o agouro horrendo),
- Se um dia á caça algum de nós corresse;
- Coberto de suor, de sede extinto
- Praza aos ceos que discorra os duros campos;
- Curve-o das armas o terrivel pezo;
- Não ache onde empregar da morte as furias;
- Seus proprios cães os membros lhe lacerem
- Té que as entranhas vis ao sol descubrão,
- E rôto arqueje o coração perverso:
- Semivivo, rugindo, ardendo em raiva,
- Entre penedos se revolva, e espume,
- C’os olhos ja sem luz, chêos da morte,
- Pallido o rosto, ensanguentada a coma;
- Té que, mugindo em subita voragem,
- Se rasgue a terra ao detestavel pezo,
- E ao fundo o arroje dos sulfureos lagos.
- E se o malvado consummar seu crime,
- Se as mãos tingir no sangue do innocente,
- O rio onde correr para banha-las
- As ondas atropelle, e volte á fonte,
- Fique attonito o monstro, e o leito sêcco;
- E quando sôbre o fogo os miseraveis
- Membros pozer, que o sangue inda gotejão,
- Que inda tem no tremor de vida um resto,
- Chêas de horror e de piedade as chamas,
- Deixando intáto o funebre cadaver,
- Com medonho estampido abandonando
- N’um momento seu lar, se ergão aos ares
- Para chover no algoz, torna-lo em cinzas.
-
- Mas vá longe de nós o quadro infame!
- Somos frugaes, e simplices; e basta
- Olhar-nos para ver nossa virtude.
- Sim: que a lavrada seda, o oiro, as telas,
- E dos insanos cortezãos a pompa
- Não nos ha de cubrir. No inverno algente,
- Contra os rigores da estação nublosa
- Usaremos da lã que nos revista,
- Sem que do artista a dextra insultadora
- Lhe desfigure a côr, lhe mude o aspéto:
- Se no outono reinar do inverno o frio
- Voltaremos á lã: na primavera
- Basta o candido linho: emfim no estio,
- (Deixe-me em paz, ou seus ouvidos serre
- Quem no corruto coração fomenta
- De prejuizos vãos caterva impura!)
- No estio, amigos meus, com vosco fallo,
- Seremos todos nus: rião-se embora
- Os perversos, que ao vício costumados,
- Até na natureza encontrão vício.
- Sim, andaremos nus; nus se mostrárão
- Os pais, e as mãis do mundo em tempos d’oiro,
- Nos vaguêão da America nos bosques
- Da Natureza não corrutos filhos,
- Nem os tinge o rubor, a côr do pejo,
- Que o pejo nasce se a innocencia morre:
- A Innocencia, a Verdade, as Graças bellas
- Pintão-se nuas: nuas pelos bosques
- Errão as Ninfas: d’entre as ondas nua
- Venus saío de encantos rodeada:
- Seu Filho, qual nasceo, se mostra ainda:
- E todos nós, dizei, como nascemos?
- Quando, depois de trabalhosas dores,
- Nos cingem nossas mãis aos ternos peitos,
- Tecidas vestes sobre nós encontrão?
- Não: se o tempo o exigir cubra-se o corpo;
- Se o tempo o não requer, porque insensatos,
- Vãos, inuteis incommodos buscâmos?
-
- Prazeres me pédis, dou-vos prazeres:
- A musica suave, a dança, os versos,
- Dos bons ditos o sal, carreiras, lutas,
- Tecer grinaldas de campestres flores,
- Fresco, e murmúrio de favonios, e aguas,
- Os ternos sons de aligeros cantores,
- Da natureza o estudo, as graças d’ella,
- As formosas manhãs, as bellas tardes.
- Iremos navegar pelo ribeiro
- N’este mesmo batel; a branca lua
- Deante nos irá para guiar-nos:
- Os ventos dormiráõ pelos outeiros:
- De um, d’outro lado as arvores ao longo
- Das socegadas margens, docemente
- Se ouviráõ susurar de quando em quando:
- O astro da noite ledo e scintillante
- Se verá na corrente em longa estrada:
- Echos repetiráõ nossas cantigas:
- D’entre um canavial a Filomela
- Se ouvirá gorgeando convidar-nos:
- Com mil olhos de luz o ceo da noite
- De ver nossa alegria ha de alegrar-se.
- Algum campestre Fauno, que aturdindo
- Com voz immensa a silenciosa margem,
- Seus amores contar da fonte ás Ninfas,
- O canto estrugidor alguns momentos
- Suspenderá, de assombro arrebatado.
- Se tivermos calor volta-se a proa
- Sobre uma ilhota de vermelha arêa,
- E encalhando o batel salta-se ás ondas:
- N’uma noite encalmada um banho fresco
- Nos consola, e refaz: ali se julga
- Acima estar da natureza o homem;
- Vive em novo elemento, em cujo seio
- Revestido se crê de essencia nova.
- Ao brando frio os membros pouco a pouco
- Se conformão, se affazem, se contentão;
- Dissipa-se o tremor, e a voz anciada
- Um momento depois se resserena.
- Todo o vivo prazer então começa:
- Ora apraz o nadar contra a corrente,
- Ora girar nas aguas escondido,
- Ou c’os olhos na lua ir descançado
- Em parte occulto, em parte descoberto,
- De costas, ao som d’agua, escorregando.
- De quando em quando um toma pé no fundo,
- Assemelhando o busto de uma estatua
- De marmore polido, que se eleva
- Fronteira á lua, e solitaria brilha;
- Os companheiros de redor o cercão,
- E com muito clamor sobre elle atirão
- Co’as plantas, e co’as mãos ondas sobre ondas.
- Elle grita, elle ri, jura, e promette
- De os punir, de vingar-se; então se arroja
- Ás ondas outra vez, e os segue, e os urge,
- Chove sobre elles desmedidas vagas.
- C’o festival combate o rio ferve,
- Perturba-se a corrente, os echos bradão
- Oh como he doce um banho entre mancebos!
- Um ri contando uma engraçada história,
- Outro grita, outro canta, e todos folgão.
- No fundo desigual talvez se encontre
- Dormindo alguma Náiade entre as conchas.
- Sois mortaes? e que importa? humano he Páris,
- He Páris um pastor, goza entretanto
- Ternos abraços de immortal Enone,
- Que deixa por goza-lo a propria fonte,
- E vem sentar-se entre um rebanho humilde;
- E ai de vós, se das Ninfas não moverdes
- Os puros corações para a ternura!
- Mulheres não as ha nos campos nossos,
- E vazia de amor a vida he nada.
- Redobrai a attenção, pois devo agora
- Fallar em baixa voz, porque receio
- Que as formosas Mondágides me escutem.
-
- O mesmo coração, dezejos, gostos,
- Que tem nossas mortaes no peito occultos,
- Tem as Ninfas tambem: de exemplos quantos
- Se não póde cingir ésta verdade!
- Sobre as aras de Amor todas off’recem:
- Os ais do adorador nenhuma offendem,
- Comprazem-se de ouvir que as chamão bellas,
- E a gloria prezão de enxugar o pranto,
- O pranto que ellas sós nos arrancárão.
- Se nos ouvem crueis, se esquivas fogem,
- He porque insana lei de atroz costume
- Lhes ordena o fugir, lhes insinua
- Que he delito em seu sexo a natureza:
- Mas contra a natureza em vão combatem
- De cega educação fataes abúsos!
- A mãi universal ou cedo ou tarde
- Vence, triunfa, e no triunfo leva
- O sexo encantador ja maniatado.
- Todas oppõe sabida resistencia,
- Mas cumpre não ceder: por nós combatem
- Seu mesmo coração e a natureza,
- Que auxilio inefficaz jamais nos farão.
- ¿E não sabeis que emquanto desdenhosas
- De nossos ais parecem offendidas,
- Quaes se as mordesse venenosa serpe,
- Tremem, recêão que ao temor cedamos,
- E frouxa timidez nos furte as armas?
- Inda que ostentem ríspida esquivança,
- Agrada-lhes a guerra, e occultos votos
- Fazem a Amor para ficar vencidas.
- Implorar-lhes perdão he ultraja-las;
- Contra ellas ser audaz he ser-lhes caro,
- He dar-lhes bens, poupando-lhe a vergonha.
- Mas a regra primeira, a grande, o tudo
- Entre as regras de amor, he o artificio.
- He vasta a gradação de sentimentos
- Da innocencia á ternura. Em cume altivo
- De alta montanha, cujo aspéto assombra,
- Tem seu templo a Ternura, onde cercada
- Das Graças, dos Prazeres, dos Amores,
- Encanta os corações benigna Venus:
- He forçoso galgar toda a montanha,
- Subir de rocha em rocha, e p’rigo em p’rigo
- Para se entrar no deleitoso alcaçar.
- Quem pretender poupar um passo ao menos,
- Quem saltar pretender, perde o ja ganho,
- Para mais não surgir baquêa em terra.
- Amor azas não tem, como se pinta;
- A curtos passos, devagar só anda.
-
- Começaremos offertando ás Ninfas
- Sôbre altares campestres, levantados
- Das arvores á sombra, ao pé das fontes,
- Ou nas grutas do fresco, ou sôbre outeiros,
- Festões, grinaldas, passarinhos, frutos,
- E capellas de búzios e de conchas,
- Mais brilhantes, mais bellas do que o Iris.
- Formaremos cantigas, em que aos echos
- Dos campos entre a lida repitamos
- As perfeições, os méritos, os nomes
- Das Napéas, das Dríades formosas,
- Hamadríades, Náiades, e quantas
- Filhas da Natureza a terra habitão,
- Para formar com dextra occulta e sábia
- Do rústico o prazer, do vate o encanto.
- Isto, e a nossa virtude, e a vida nossa
- Laboriosa, honrada, alegre, e quasi
- Igual á vida dos campestres Deozes,
- Disporáõ para nós seu terno peito.
- Talvez qué pouco a pouco minorado
- O custo susto de encontrar humanos,
- Não fujão de mostrar-se a seus cantores.
- Se eu descançar junto de um cedro antigo,
- Ou de uma faia, ou reclinar a fronte
- Sôbre a raiz em parte descoberta
- De uma oliveira, ou castanheiro antigo,
- Darei graças á Dríade, que habita
- No tronco bemfeitor, que me faz sombra;
- E d’elle a amavel Dríade saindo
- Virá sentar-se ao lado meu na relva.
-
- Depois que pouco e pouco transformado
- Se houver em confiança o pejo, o susto,
- Mudaremos de estilo: em nossos versos,
- E só, e de contínuo a formosura
- Em fogo nos porá do estro as azas.
- Hão de sorrir-se e comprazer-se, e muitas
- Suspenderáõ em seu caminho os passos.
- He lei sem excéção; domina em todas
- A sêde, a gloria de chamar-se bellas.
- Mas bellas tão somente heis de chama-las,
- Sem falar-lhes de amar: depois de affeitas
- A ouvir a narração de seus encantos,
- Dizei-lhes que por certo as rochas mesmas,
- Os troncos, e o cristal das frias aguas
- Ardem cativos de bellezas tantas;
- Que o sol com mais prazer detem seus olhos
- Nos campos d’ellas, só por ver seus rostos.
- Se virdes que um sorriso gracioso
- Vos recompensa o canto, audacia, amigos!
- Avante um passo, e n’este passo cumpre
- O segredo buscar. Desde esse instante
- Não lhes falleis deante das mais Ninfas;
- Buscai até que os socios vos não oução.
-
- Suppõe tu, caro Antíeno, encontrar-te
- (Esta supposição perdoe Alcippe)
- N’um bosque solitario, onde vaguêa
- Quem te faz delirar em novo incendio.
- Se ella está pensativa, “Oh venturoso
- O objéto, lhe dirás, em que se occupa
- Tua imaginação, formosa Ninfa!
- Se eu o fosse!... ai de mim! porque revolve
- Loucas esp’ranças, se chorar só devo?”
- Se a vires sôbre o espelho do cascata
- Com brancas rosas concertando as tranças,
- Qual sôbre o teu ribeiro o faz Alcippe,
- “Feliz rainha das mimosas flores,
- Feliz rosa, dirás, inda que perdes
- Ao pé das graças d’ella as graças tuas!”
- Se pozer sôbre o seio as melindrosas
- Roxas flores de amor, dirás: “Que inveja!
- Por ser vós um momento eu dera a vida!”
- Mas isto em meia voz, para que julgue
- Que não he por te ouvir que assim fallaste.
- Não se irritou? prosegue, e de mais perto,
- “Permitte-me, (dirás com ar ingenuo,
- Chêo de timidez) permitte, ó Ninfa,
- Que eu te torne mais bella, e te componha
- Essas flores, que um pouco se desmandão.”
- Se ella o permitte, a occasião não percas:
- Se ella hesita e se cala, não recusa;
- Compõe-lhe o ornato no formoso seio,
- E sorrindo, lhe dize: “Alguem no mundo
- Existe que não ame as proprias obras?
- E’sta obra, que findei, me agrada tanto!...”
- N’isto beija-lhe o seio, e deixa as flores.
- D’aqui avante o mar he ja tranquillo,
- Propício o vento, e mui vizinho o porto:
- Ja de piloto o lenho não carece;
- Quanto offerece amor tudo he ja vosso.
-
- Ja vejo sôbre os ceos dos nossos campos
- Todo o dia brincando em roseo coche
- Pelas pombas tirada a amavel Cípria:
- Coroado de louro, ei-la contente
- Entre palmas, que sombra lhe derramão!
- Ei-la por toda a parte sacodindo
- Do misterioso cinto encantos, gostos,
- Delicias, tudo emfim que obriga a Jove
- Mudado em branco cisne, ou chuva d’oiro,
- A trocar pela terra o sacro Olimpo!
- Desde então mais ditosa he nossa aldêa,
- Mais risonhos seus bellos arrabaldes:
- Ha misterios de amor em qualquer gruta,
- Em qualquer solidão brincão prazeres.
-
- Eis os frutos de amor, que desabrochão!
- Ja os vejo das bellas entre os braços,
- Qual pequeno botáõ nascido apenas
- Da rosa ja perfeita ao lado brilha.
- Ei-las co’o proprio leite a sustenta-los;
- Taes como descreveo nos magos versos
- Francilia; Musa de meu patrio rio,
- A doce amiga sustentando o filho,
- _Igual a Venus com Amor nos braços._
- Eu as vejo, depois de afagos ternos,
- Soltar de si os cintos azulados,
- Em dois troncos prender as pontas ambas,
- Abri-los, deitar dentro entre mil flores,
- Depois de o ter beijado, o tenro infante,
- Para ser dos favonios embalado.
- Eu as vejo nos troncos encostar-se
- Co’as mãos na face, e os olhos no innocente,
- Juntando aos sons das aves em seu ninho
- Ternos cantos, que os filhos adormeção.
-
- Ja co’a turba infantil recresce a aldêa:
- Succedem ao silencio alegres brincos,
- Gostosos passatempos se preparão,
- De nossos bens o número se aumenta.
- Vai crescendo em razão, crescendo em fôrça
- Ésta prole feliz, que os Cíprios valles
- Como os Amores, como as Graças, honra.
- Creados longe do tropel das côrtes,
- Puros no coração, que ninguem busca
- Semear de illusões, de prejuizos,
- Educados na paz, sem ver tiranos,
- Sem ouvir discorrer pedantes sabios,
- Té das Sciencias ignorando os nomes,
- Terão destinos, que excedendo os nossos,
- Não hajão que invejar os puros dias,
- Que cegamente se nomêão d’oiro.
- D’oiro! ai d’elles se o oiro então se visse!
- Mais nocivo que o ferro, a bemfazeja
- Terra o sumio nas maternaes entranhas,
- Sôbre leitos de pallido veneno.
- Quando o Genio do mal o trouxe ao dia,
- Chêas de assombro, de tropel correndo,
- Fugírão co’a Justiça almas Virtudes;
- E pelas fundas minas, que o guardavão,
- Surgio do patrio inferno a perseguir-nos
- Chusma de Vicios, e raivosas Furias,
- Que os Vicios inspirando, os Vicios punem.
- Se alguma vez os descendentes nossos,
- Quando a terra pacificos romperem,
- Encontraram com oiro, um grito soltem;
- A aldêa se reuna ardendo em raiva,
- Qual se dos bosques férvido saisse,
- Igual ao raio, o bruto d’Erimantho;
- E o pallido fulgor da massa infesta
- Vão longe sepultar nos verdes mares.
- “Monstro contrário a nós, sê devorado
- Pelo monstro do mar, que em furia vences”
- Dirão todos em chusma; e socegados
- Tornaráõ a lavrar seus ferteis campos.
-
- Que idea pelo espirito me adeja
- Chêa de luz, de encantos rodeada!
- Ja vejo pelos ares scintillando
- Os fachos de Himeneo. Ja pelas ruas
- Vestidos de alvo linho, e coroados
- De fresca mangerona os moços correm,
- “Ó Himeneo! Vem Himeneo!” gritando.
- “Ó Himeneo! Vem Himeneo!” respondem
- Os campos d’echo em echo; e pelas casas,
- Chêas de gôsto, e de esperança as virgens
- “Vem Himeneo, ó Himeneo!” repetem.
- As ruas de verdura estão juncadas,
- Listões de flores coroando as portas
- Enchem os ares de composto cheiro:
- E os meninos, que as causas não percebem
- Do confuso prazer, vão transportados
- Correndo em chusmas, e batendo as palmas,
- Gritando, “Ó Himeneo!” La desce, e pouza
- O Nume sôbre o altar da Cípria Deoza!
- O venturoso par la vai sobindo
- Por entre a multidão, que attenta o mede.
- La chega ao sítio destinado aos votos.
- Sacerdotes não ha: da aldêa os velhos
- Os cercão de redor. La se abraçárão!...
- He curto o voto seu. “Juro adorar-te
- Emquanto o doce amor tiver no peito.”
- Unindo o seio ao seio, e face á face,
- Depois se beijaráõ por largo tempo;
- E o Nume da alliança, o carinhoso
- Filho de Urania os cingirá dos mirtos,
- Que de Venus, e Amor as frontes ornão.
- Depois algum de nós se erga c’roado,
- Para fallar d’ésta maneira ao povo.
-
- “Nasceo Amor para encantar os homens,
- Não para ser dos corações tirano.
- Menino ama o brincar, e quer ser livre.
- Cura o tempo as feridas que elle fórma:
- Depois de alto clarão, que cega os olhos,
- Seu facho, pouco e pouco enfraquecendo,
- Vem por fim a apagar-se: a Natureza,
- Nada produz que não succumba á morte.
- Os animaes, as flores, os arbustos
- Tem curta duração: vai manso, e manso
- O tempo destruindo altas montanhas,
- Gasta-se o escolho c’o bater das ondas;
- Succede a lua ao sol, á noite o dia,
- Uma estação perece, outra renasce:
- Tudo he mortal na terra, e mais que tudo
- As humanas paixões insulta a morte:
- Succede ao riso o pranto; á dor prazeres;
- Ao odio amor; ao terno amor a raiva.
- Eu vi moraes affétos n’um só dia
- Nascer e terminar, qual nasce e murcha
- N’um só dia de abril a rubra rosa.
- Ditoso par! amai-vos extremosos
- Emquanto a natureza vos consinta,
- E oxalá que o consinta em largos annos!
- E oxalá que de vós o que entre os mortos
- Primeiro descançar, sinta regadas
- Pelos olhos do sócio as mudas cinzas.
- Feliz quem n’um só fogo arde constante;
- Feliz, mas raro como os negros cisnes!
- E ha loucos, e ha perversos, que ante as aras
- Jurem guardar uma constancia eterna?
- Cegos, que a natureza desconhecem,
- Ou zombão d’ella escarnecendo os votos.
- Jurão-se amar sem fim, e ou tarde ou cedo,
- Sem fim, e sem remorsos se detestão!
- Jurão-se amar sem fim! Mal que resoa
- Debaixo das abobadas o voto,
- Calcando o arco aos pés com ar maligno
- O pobre Amor retira-se chorando
- D’ésta afronta cruel; pois sua glória,
- Seu prazer, e seu timbre he ser voluvel.
- Crepitando em faiscas derradeiras
- Se apaga o facho, que debalde agita,
- E emtôrno espalha venenoso fumo,
- Fumo, que obriga a lágrimas eternas.
- Entre pios e agouros desgraçados,
- Ao leito nupcial os acompanha
- Entre alegre e assustada a meiga Venus.
- Co’as serpes do cabello desgrenhadas,
- Mas inda sem silvar, detraz os segue
- Impaciente a rabida Discordia.
- De flores se coroa a lauta mesa,
- Voão-lhe em roda as graças, e o falerno,
- E riso, e confusão de encantos chêa.
- Mas ah! cedo os pezares, e os suspiros,
- A desesperação, e as vãs querellas,
- E a desordem, e as lágrimas rodêão
- Os lares do prazer; a scena infausta
- Não rara vez negro punhal termina,
- A viuvez, o luto envolve o leito!
- Mas vós, ditoso par, vós, cujos labios
- Não proferírão temerario voto,
- Folgai, vivei, nos braços da ternura,
- Melindrosa ternura, que não morre
- Se lhe não lanção vergonhoso jugo.
- Para amar-vos fieis por largo tempo
- Sede amaveis, ou sede virtuosos
- Porque a doce virtude he sempre amavel.
- Se o fogo se acabar, voltai ao templo,
- A prender novo objéto em novos laços.”
-
- Ouvindo este discurso o povo inteiro
- O applaude em baixa voz, e á Mãi das Graças
- Se canta o hino, que remata a festa.
- O resto d’este dia he dado aos jogos,
- Gasta-se a noite á roda das fogueiras
- Em musicas e em danças variadas.
-
- Engano-me, ou queixosa a Natureza
- Escuto suspirar? não, não me engano!
- Ella suspira, e pede-nos vingança
- D’outra injustiça, que lhe faz o mundo.
- Ouvi, e concordai: sabeis que muito
- Em número nos vence o amavel sexo.
- Se a Mãi universal não gera um ente,
- Que não consagre a amor; e a lei sagrada,
- Que obriga a propagar a propria especie,
- He lei universal, que abrange a todos,
- ¿Com que jus, por que horrenda tirania
- Privadas d’Himeneo suspirão tantas?
- Não: cada esposo esposas enumere,
- Té que uma só sem thalamo não fique;
- Todas d’est’arte viveráõ contentes;
- A honra de ser mãi pertence a todas:
- Cresce a aldêa, não brada a Natureza;
- Infamadas não são as que procurão
- Os prazeres de amar, de ser amadas:
- Não se ouvirá que um barbaro veneno
- Dera a mãi a seu filho inda no ventre;
- Ou que um férreo punhal, ou laço infame
- Logo ao nascer lhe terminára os dias:
- Nem Venus corará vendo offertar-se
- De ternura venal corsutos mimos.
-
- Quão bellos correráõ nossos momentos,
- Longo, e tão longe dos polidos povos!
- Quasi Numes na vida encantadora,
- Até na duração quasi seremos
- Rivaes do povo habitador do Elisio.
- O fio d’oiro da existencia nossa
- Inteiro volveráõ no fuso as Parcas.
- Com pé tardío a inevitavel Deoza,
- Que o Mundo despovoa, e bebe o pranto,
- E acompanha a saudade entre os ciprestes,
- Sem terror, e sem fouce, e até sorrindo,
- Sem que a precedão seus fataes ministros,
- Nos levará de manso e a curtos passos,
- Coroados do cãs para o sepulcro.
- Mas, amigos, quem sabe! as Cíprias Ninfas,
- Se o fado o não tolher, talvez nos mostrem
- A verde planta, que ao cerúleo reino
- Deo mais um Nume, transformando a Glauco.
- Semideozes então, nos tornaremos
- De nossa aldêa os sacros protétores!
- Mas não: a lei da morte he lei terrivel,
- Que rara vez os Numes quebrantárão.
-
- He forçoso morrer!... Longe os temores!
- He forçoso morrer, morra-se embora.
- Não faltaráõ dulcissimos transportes,
- Prazeres e ternura ao lance extremo!
- Sôbre o funereo leito o moribundo,
- Ja sem côr, ja sem fôrça, e quasi extinta
- Em seus olhos a luz, e a voz nos labios,
- Erguendo a fraca dextra acena, e chama
- Cadaum junto a si; vai despedir-se
- Para o sono sem fim! Sôbre as heranças
- Que ha de recommendar se não tem nada?
- Nada excéto a virtude, e os instrumentos
- Com que a terra lavrou. Sua cabana
- Vai ter outro senhor; as flores suas
- Implorão no jardim desde este instante
- D’outro cultor a próvida tutella:
- D’outro, sim; cuja mão todos os dias
- Irá de madrugada aos sacros manes,
- Pendurar sôbre o tumulo orvalhado
- Uma grinalda de orvalhadas flores.
-
- Elle abre inda uma vez seus frouxos olhos,
- Onde começa a derramar-se a noite,
- E de seus labios tremulos, por onde
- Ja põe a occulta morte a mão gelada,
- Sólta chêo de afféto a voz, que expira,
- E seus amigos, e seus filhos chama:
- Os seus amigos mudamente o cercão,
- E não mostrar-lhe as lágrimas procurão:
- Áluz da tibia alampada contemplão
- Quanto a hora fatal ja se aproxima.
- E seus pobres filhinhos entretanto
- N’um canto da cabana estão sentados;
- Dos amigos no gesto, e nas maneiras
- Ler seu destino impacientes buscão,
- E attonitos, e tristes nem se atrevem
- A fallar, a fazer qualquer pergunta,
- Porque os não lancem d’este sítio fóra:
- Mas olhão-se entre si co’um ar tão meigo,
- Lastimoso, innocente, que podéra
- Desfazer de piedade a propria morte,
- Se o fado não contasse os nossos dias.
- Seu Pai, que os adorou, quer inda vê-los,
- Lançar-lhes a sagrada, última benção,
- Ver seu pranto, gozar dos seus afagos,
- Quer chama-los. A voz faltou de todo!
- E deixando caír de lado o rôsto,
- Soltou da vida o derradeiro arranco.
-
- Ao profundo silencio altos clamores
- Succedem n’um momento; e o pranto, e os gritos
- Por toda a parte na cabana sôão.
- Os meninos confusos se levantão,
- Ouvem a nova, attentão no cadaver:
- Ouriçado o cabello, o sangue frio,
- Pallido o rosto, e vacillante o passo,
- Fogem para o jardim, por onde os segue
- A imagem de seu Pai, no susto envolta.
- Qual o vírão ha pouco, o tem comsigo!
- Dos parreiraes as sombras os perturbão,
- Vem nos troncos das árvores fantasmas.
- Vão buscar o luar do rio á borda;
- Mas lembrão-se que ali todas as noites
- Passeavão com elle: ésta lembrança
- Os torna a perseguir; e em tudo encontrão
- De um Pai tão caro o aspéto, que os assusta,
-
- Pela aldêa se espalha a infausta nova,
- E parece que a morte em cada casa
- Arvorára um trofeo! Domina em todos
- A dor, que se desfaz em pranto e gritos!
- Dir-se-hia que furioso, insuperavel,
- Hia de této em této um vasto incendio.
- Depois que um pouco em lúgubres transportes
- A dor se evaporou, por toda a parte
- Sôão louvores do chorado amigo.
- Cadaum lhe encarece uma virtude,
- E de cada virtude exemplos contão.
-
- O Justo dorme em paz: mas entretanto
- Ninguem dorme na aldêa. Ouvio-se o gallo
- Cantar, quando expirou da noite em meio:
- Torna o gallo a cantar na madrugada;
- E em contínua vigilia discorrêrão
- As longas horas, que á manhã precedem!
- Torna o gallo a cantar na madrugada,
- A aurora quer nascer; enchem-se os ares
- De uma luz, que ao luar excede um pouco.
- Do ninho suspendido em nossos tétos
- A andorinha ja sáe; vôa cantando
- Defronte agora das janellas nossas
- Para nos saudar, pois entra o dia.
- Ja dos ceos pelos flúidos espaços
- Circula a cotovía, que não cança
- No longo canto, ou desmedido vôo:
- Ja o rumor das arvores e fontes,
- Que da noite na paz costuma ouvir-se,
- Vai fugindo com as trémulas estrellas;
- Torna a alegria ao mundo, e ao campo as cores:
- Mas a alegria d’entre nós he longe,
- Os campos todos para nós tem luto.
- Ja se ouvem resoar da aldêa as portas;
- Ja sáe, ja se reune o povo inteiro.
- O ar de meditação domina em todos,
- Todos trazem de pranto rociadas
- As recentes grinaldas, que tecêrão.
-
- Em plantas aromaticas envolto,
- Do alvergue, ha pouco seu, la vem saindo
- O deplorado amigo: ao caro pêzo
- Submettem quatro os hombros vigorosos.
- Bençãos, bençãos ao Justo, em cujo aspéto
- Por entre a pallidez inda ressumbrão
- Mansa innocencia, affétos generosos!
- A lenta marcha á turba consternada
- Rompem com baixo tom sonoras flautas,
- Que de triste alverôço o peito agitão.
- Apôz ellas, o funebre cadaver
- Dos Anciãos vai precedendo á chusma.
- Estes, fronte inclinada, olhos em terra,
- Vão suspirando, e a vista lacrimosa
- Lanção de quando em quando ao doce amigo,
- Que os precedeo na regiáõ da morte.
- Em seguida, modestos se confundem
- Os mancebos, de teixo coroados,
- Co’as bellas raparigas, que parecem
- Mais formosas co’a languida tristeza:
- Elles cantão em côro aos longos echos
- O como a quanto existe abrange a morte;
- Ellas em tom mais doce a voz levantão,
- Para mostrar como a existencia curta
- De prazeres doirar-se ao menos deve.
- Vão depois os meninos innocentes
- De ambos os sexos em confuso bando:
- Levão em suas mãos para o sepulcro
- Pequenas oblações; pomos, e flores,
- Taças de leite e mel, de vinho e d’agua
- Tomada em fonte viva antes da aurora,
- E de barro thuribulos não grandes.
-
- Ja se chega ao lugar sagrado á morte:
- He um valle sombrio, onde se abração
- Mil arvores diversas, onde habitão
- Meigas filhas do ceo, canoras aves:
- Reveste fresca relva a terra fria,
- Pallido musgo os carcomidos troncos.
- Aqui frescos favonios adejando
- Pelas folhudas grimpas, docemente
- Só se ouvem suspirar: aqui mais terna
- Derrama a aurora o pranto matutino;
- Mais terna geme e rôla; e mais delirios
- Na alma gera o luar por estes campos.
- He fechado o lugar de mil rochedos,
- Por onde algumas fontes se derivão
- Com tacito rumor, que inspira os sonos:
- Pelas profundas, tenebrosas grutas,
- E sôbre os agudissimos rochedos
- Crê-se ver e escutar sagrados manes,
- Em frouxa voz, que as auras assemelha,
- Cantando os gostos da passada vida.
- La não geme a coruja, ou pia o mocho:
- Reina em vez do terror branda saudade,
- Terna melancolia, encanto, enlêvo
- Dos corações, das almas bem nascidas.
-
- Que estrondo he este pelo chão de morte?
- São as férreas enchadas, que se alternão
- Para formar do eterno sono o leito.
- Agora cresce a dor na despedida.
- La chega, la se arroja, la se esconde
- Da Mãi universal no seio um filho!
- “Paz ao homem de bem!” dizem de roda
- Os velhos, e retirão-se chorando.
- “Leve te seja a terra!” os moços gritão,
- E partem derramando-lhe folhagem.
- Chega a turba infantil, seus dons off’rece,
- E vai juntar-se á multidão, que torna
- Aos trabalhos de novo á sua aldêa.
-
- Mas ah! qual d’entre nós terá primeiro,
- Caros amigos, de fechar seus dias?
- Quaes choraráõ no tumulo silvestre!
- Talvez eu vos preceda, e vá saudoso
- Ver na Tenárea porta o Cão trifauce,
- Na Estige nebulosa a barca horrenda,
- E do Elisio paiz os gratos campos,
- La onde os vates do universo inteiro,
- Ja Numes, em republica se unírão.
-
- Mas não pensemos n’isto: he Maio agora
- Que devemos cantar: nós o jurámos.
- Recomponde na fronte as vossas c’roas;
- Ergamo-nos, enchei de vinho as taças;
- E ante o Ceo, ante a Lua, que nos ouve,
- Entre os Favonios, e as formosas Ninfas,
- Que escondidas nas ondas nos rodêão,
- Saudemos novamente o alegre Maio,
- Jurando que desde hoje em nossas liras
- Ha de escutar cada anno os seus louvores.
-
- Ó Maio, eu fallo; escuta-me. “Por este
- Licor de Bassareo, que me arrebata;
- Pelos Filhos gentís da branca Leda,
- Que pela mão a nós te conduzírão;
- Por tuas flores, com que estou soberbo;
- Por tuas fontes, zéfiros e bosques;
- Por teu ceo graciosa; e por ti mesmo;
- E pela tua amiga, a minha Musa,
- Juro de consagrar emquanto viva,
- Todo o teu mez ao teu louvor, e ás festas.”
-
-FIM DA FESTA DE MAIO.
-
-
-
-
-NOTAS Á FESTA DE MAIO.
-
-
-
-
-CANTO I.
-
-_Pag. 204. verso 4.º_
-
- Das Filhas de Nereo a mais formosa
- Foi Galatéa candida e rosada.
-
-
-Como das bagatelas que forçadamente tenho semeado por alguns d’esses
-Jornaes, que he o mesmo que escrever em folhas e atira-las ao ar, algumas
-haja que não mereção de todo perder-se, estas me pareceo i-las recolhendo
-a meus livros, por qualquer modo que fossem achando cabida, para não ser
-como a Sibilla de Cumas, que em uma vez se lhe desmandando com os ventos
-as folhas que tinha escritas, ja para sempre tirava d’ellas o sentido:
-_neo ponere in ordine curat_. Por isso traslado do Num. 3 do _Jornal dos
-Amigos das Letras_, todo o seguinte Artigo[15].
-
- _Antonii Feliciani de Castilho_,
-
- GALATEA: CARMEN.
-
- ADVERTENCIA PRELIMINAR
-
- O fragmento latino que se vos offerece, sob o titulo de
- Galatea, he huma tentativa e nada mais: e quem mo quisesse
- haver a ostentação, não só mostrára quam pouco me conhece,
- mas ainda com atrocissima injúria me aggravaria. Discorridos
- são hoje mais de dez annos, depois que, desejoso de refrescar
- lembranças de conhecido com as Romanas Musas companheiras e
- alegria de minha infancia, me dei ao passatempo de metrificar
- em latim, ja os pensamentos que primeiros me occorrião, ja
- algum episodio de minhas proprias obrinhas; sendo assim,
- que esta fabula de Galatea a trasladei do Poema da _Festa
- de Maio_, no meu livro da _Primavera_. Sei bem que não ha
- hoje, e especialmente por cá, leitores para o latim, sendo a
- final chegado o prazo de, com razão e sem o mínimo escrupulo,
- se poder chamar tal lingua morta e enterrada: sei mais que,
- inda mal, não respondem estes meus versos ao que eu anciára
- que elles fossem, e nem valem mais que uma boa parte dos ahi
- impressos na custosa Coléção de Poetas do nosso Padre Reis;
- e com tudo, a despeito d’estas duas tão fortes razões, e tão
- valentes para me deverem dissuadir, convim em que tão pobre
- couza se désse á estampa. Será, segundo muitas vezes se escreve
- em Prologos, para incitar engenhos a fazerem melhor? não. Pois
- será, como tambem em Prologos se usa de escrever, para que
- os Aristarchos me ensinem o que, o como, e o por onde devo
- corrigir e melhorar? menos; que não sei eu de um só que se hoje
- occupe com semelhantes vaidades. Como por tanto me livrarei da
- desmerecida taxa de presunçoso? confessando, como tambem em
- Prologos se costuma, mas d’esta vez com verdade, que o faço por
- obedecer a dezejos de pessoa, com quem muito me importa estar
- em tudo bem.
-
- GALATEA
-
- _Carmen, ex Lusitano Latine redditum._
-
- Assiduis, juvenes, proscindite flumina remis,
- Dum vacat et picto lœtos juvat ire phaselo;
- Intereaque meo vestrum fallente laborem
- Carmine, Romanas percurram pollice chordas.
-
- Nereidas inter quondam pulcherrima Nymphas
- Nympha fuit Galatea maris: cui lilia mixtis
- Ore rosis, flavæque comæ, roseique labelli,
- Cæruleoque oculi placido fulgore micantes,
- Et sinus albenti in scopulis albentior unda,
- Qualem nec Paphiis habuit quæ regnat in arvis.
-
- Tertia postdecimam vernantia tempora brumam
- Floruerant, postquam vitali vescitur aura
- Nympha; nec in terris, aut cœlo, aut æquore toto
- Est quæ formosis ausit contendere formis.
- Multi illam juvenes, multi petiere deorum,
- Undique blanditiis et laudibus insidiantes,
- Nulli illi juvenes, nulli placuere deorum.
-
- Hanc pater undisono sub gurgite in antra vocavit,
- Amplexumque dedit, tremulisque sedere coegit
- In genibus, tales fundens post oscula voces:
- “Filia, tempus adest pueriles linquere ludos.
- “Non te pulchra latet, qua subjicis omnia, forma;
- “Tene latet quantis fugiendi viribus, instant
- “Qui toties, laudesque ferunt, gressusque sequuntur?
- “Crede patris canis et amori crede paterno;
- “Quò plus obsequiis, quò plus sermone placebunt
- “(Parce seni juvenem patri non grata monenti)
- “Hóc magis incautæ protendent retia formæ.
- “Filia, tempus adest pueriles linquere ludos:
- “Sit tibi cura meos posthac delphinas in undis
- “Pascere, perque salum deformes ducere phocas;
- “Non bene pigra tuis ignavia convenit annis.”
-
- Dixit: et e patrio discerpta coralia ponto,
- Cuspide inaurata, pastoria munera, virgam
- Tradidit, atque pecus natæ commisit habendum.
- Est virides inter, Nereus quibus imperat, undas
- Valle locus tuta, nec divo pervius ulli,
- “Hic maneas, dixit, te sæpe deinde revisam.”
- Arrisit, natamque pater sine teste reliquit.
-
- Haud semel ignifero radiarant lumine currus,
- Phæbe tui, dum lœta pecus Galatea marinum,
- Gurgitis inter opes, viridanti paverat alga.
- Interdum æquoreis linquens armenta molossis
- Ibat, et in calathos modo tinctas murice conchas,
- Et modo lucentes baccas contenta legebat.
- Ver erat, et pictos zephyris mulcentibus agros,
- Mense renidebat tellus lætissima Majo;
- Aureus in liquidæ Sol brachia Thetidos ibat.
- Deserere ima maris, solum conscendere littus
- Ausa fuit virgo, non sic reditura sub undas.
- Summa petens scopuli viridi sub rupe recessit,
- Unde fretum, terrasque lubens circumspicit omnes.
- Hic sedet, et pascens animos novitate locorum,
- Miratur, facilesque oculos fert omnia circum.
- Ut mediis vidit formosum fluctibus Acin
- Æquora jactatis tranantem cana lacertis,
- Versibus abstinuit, versus nam forte canebat;
- Erubuit, turbata silet, suspiria ducit;
- Nunc subeunt jussus, subeunt hortamina patris;
- Jam cupiat tutis fugiendo immergier undis,
- Nec potis est cupiens, et littore perdita inhæret:
- Nunc libet et tacito cautæ latuisse sub antro,
- Donec arenoso mutarit littore fluctus
- Discedensque puer securam liquerit oram;
- Pænitet inde fugæ, sistit, mavultque videri.
- Corpora, cæruleas inter candentia lymphas,
- Quam numeris perfecta suis! quam fortia pulsis
- Devectantur aquis! quam multa est gratia nanti!
- Quam bene suffuso sua membra liquore teguntur,
- Quam bene disperso nudantur eburnea ponto!
- Cuncta tenent oculos, in cunctis Nympha moratur.
- Interdum propius sensim vestigia ponit,
- Nec propiora tamen fieri vestigia sentit.
- Queisque prins sparsis volitaverat aura capillis,
- Nescia cur fingat, vel collo dividat apte,
- Dividit illa tamen, studioque indulget inani.
- Hinc littus petit, ac vultus speculatur in unda,
- Et quanquam ipsa sibi pulcherruma tota videtur,
- Pulchrior exoptat fieri, frustraque laborat.
-
- Interea juvenis, jam fessus nasse, redibat,
- Et prope jam fulvas manibus tangebat arenas:
- Illa fugit, trepidatque, et rupe reconditur ima.
- Hic latet, et votis contraria vota rependens,
- Nunc patris hortatus, et nunc reminiscitur Acin,
- Et rubet, et pallet, nec vultibus hæret in isdem.
-
- Haud mora: nudus adest, antrumque Simethius intrat
- Acis, ut abjectas repetat sub tegmine vestes.
-
- Quid remi cecidere, quid ó cessatis amici?
- Nonne retro refugisse ratem, dumque ora tenetis,
- Aversam in portus sentitis abire relictos?
- Instaurate opus, ac totis incumbite remis:
- Quó pœnas detis, dictis nihil amplius addam.
-
-
-
-
-CANTO II.
-
-_Pag. 237. versos 15 e 16._
-
- E que? algum de nós contra o que vive
-
-
-A questão, se sim ou não se ha de o homem alimentar de substancias
-animaes, tem sido muitas vezes, e com oppostas sentenças, debatida por
-filosofos, poetas, naturalistas e medicos. A affirmação e a negação
-achárão para argumentos ja uso e consenso de povos em todos os tempos,
-ja razões intrinsecas tiradas de nossa propria conveniencia. He assunto
-que requeria larga escritura, e em que a qualquer seria facil dissertar
-eruditamente. Voar-lhe-hei pelas summidades.
-
-Aquella vaga tradição, que em toda a parte permanece, de uma primitiva
-idade do mundo innocente e felicissima, entre as couzas de que reza,
-aponta sempre o não se comer de animal algum, senão só de frutas, hervas,
-leite e mel. De outro modo se não podião sustentar, conforme parece
-pelo ancianíssimo Genesis, os moradores do Paraizo, não só homens,
-porem todos os viventes. Quadrava o preceito e toava o uso pelo menos
-á humana natureza, que ainda agora, se a bem espreitarmos na infancia,
-ou antes de alterada por contrarios habitos, se afflige e revolve com
-o aspéto do sangue e morte. Verdade he, que depois da queda de nossos
-primeiros pais, nem o Testamento velho nem o novo, tornão a prohibir as
-carnes; mas toques da mesma nativa compaixão para com os animaes não
-lhes faltão, dos quaes pelo menos se deduz por bom discurso, que se os
-tivermos de comer, ainda ahi nos devemos haver com a possivel mansidão,
-poupando cruezas escuzadas, como são, e se costuma, atormenta-los na
-agonia por lhes refinar o sabor, caçar, montear e pescar por passatempo
-e pelo mero gôsto de malfazer. Lê-se nos Proverbios, segundo as versão
-dos Setenta: _Justus miseretur animas jumentorum suorum; viscera autem
-impiorum crudelia._—O que justo fôr ha de se apiedar da condição dos seus
-brutos; mas as entranhas dos impios não se apiedão da nenhuma couza.—No
-Exodo: _Non coques hædum in lacte matris suæ._—Não cozas o cabrito no
-leite de sua mãi.—He dito para ser ruminado, pelo mimoso do afféto que
-recende. No Deuteronomio: _Si ambulans per viam, in arbore vel in terra
-nidum avis inveneris, et matrem pullis vel ovis desuper incubantem, non
-tenebis eam cum filiis sed abire palicris, ut bene sit tibi, et longo
-vivas tempore._—Se o acaso te deparar no caminho, quer em arvore quer no
-chão, um ninho de ave, e a mãi estiver a agazalhar os filhos ou os ovos,
-não a tomes com os filhos, senão que em boa hora a deixes ir, para que
-boa estrêa te venha, e vivas largos annos.—
-
-Entre os Santos Padres, que são os depositarios e dispenseiros do
-espirito christão, alguma couza se podéra citar que autorizasse este
-genero de piedade. Sabida he a de que usou S. Anselmo, uma vez para
-com uma lebre, outra para com um passarinho. Tertulliano se maravilha
-de que entre christãos, os haja que se accommodem a ser carniceiros:
-_nescio an dolendum an erubescendumn sit_;—não sei, diz elle, se mais he
-para se haver lástima, se vergonha. S. João Chrisosthomo escreva, que
-se não podia ser santo sem uma estremada suavidade de affétos, e muita
-vehemencia de bem querer, não só aos nossos, mas ainda aos estranhos, em
-tanta maneira que até aos brutos animaes abranja essa mansidão. (_Homil.
-29. na Epist. ad Rom._) E dizia bem, que nas vidas de não poucos santos
-resplandecem as provas. S. Francisco de Assiz resgatava os cordeiros
-que hião para o córte, pagava e soltava as redadas dos peixes e os
-viveiros das aves. Mas não apontemos mais, por não enjoar filosofos,
-digo filosofos de nossa terra, dos que nos assoalhão filosofia de torna
-viagem, porque os lá de fóra ja deixarão muito para traz a impiedade.
-
-Não he porem necessario ser christão, senão que basta ser homem,
-para repartir com os brutos do thesouro da charidade, de que muitos
-d’elles usão a seu modo, não só para com os seus, mas para comnosco.
-Sendo assim que onde os não maltratão, são elles de indole muito mais
-benigna: em Inglaterra, segundo se diz, nem ha cão que ladre, nem besta
-que escoucinhe: em não sei que ilha dezerta, acharão os primeiros
-descobridores, em aportando, (segundo encontrei na Escolha de Viagens
-por John Adams) serem tão cortezes as aves de que toda era chêa, que
-não fogião dos novos hospedes, antes os festejavão e se deixavão pôr a
-mão; semelhantemente ao que da ilha das Garças aponta João de Barros
-_Dec. 1 Liv. 1 Cap. 7_, aonde “como não erão traquejadas de gente (as
-garças e outras aves), ás mãos tomarão (os marinheiros de Nuno Tristão)
-tanta quantidade d’ellas, que ficou por refresco ao navio.” Dos leões he
-corrente entre os naturalistas não perseguirem, mas esquivarem-se dos
-perseguidores, embrenhando-se cada vez mais pelos seus sertões adentro,
-sendo alias mui leves de domesticar, e folgando de acompanhar, como
-rafeiros innocentes, a trôco de qualquer esmola de pão, por largo espaço
-de leguas. Muitas são em toda a parte, mormente em Africa, as serpentes,
-que namoradas do bom gazalhado, trocão seus matos pelas pouzadas humanas,
-e n’ellas se hão como boas comadres da familia. O cavallo do Arabe he o
-contubernal e primeiro amigo de seu dono: um bom Arabe na morte do seu
-cavallo deveria de se expressar pouco mais ou menos como Millevoye o
-suppoem na Elegia. Muitos prezos tem logrado domesticar aranhas e ratos,
-até o ponto de, no meio das asperezas de um segredo, se poderem esquecer
-por muitas horas do seu desamparo, crueldades e injustiças humanas. No
-páteo da rezidencia parochial de S. Mamede da Castanheira do Vouga,
-todos os dias a horas certas viamos acudir ao almoço e cêa que ás nossas
-pombas desparriamos, todos os passarinhos da vizinhança, que ja traziamos
-tão correntes, que nos vinhão comer aos pés, por saberem (porque os
-brutinhos sabem muito mais do que nós outros cuidâmos) que n’aquella
-cazinha da solidão moravão amigos seus, e nunca terem ouvido tiro, nem
-enxergado rede no pequeno arredor do templo e passaes solitarios.[16] Se
-a tudo isto e a muitos outros exemplos se lançar conta, alguma verdade se
-achará no affirmarem poetas, que no discaír da idade de oiro, ao mesmo
-tempo que se os homens corromperão degenerando em crueis, se forão as
-feras tornando bravias e desabridas.
-
-Em todos os tempos, e até por fóra e mui longe d’esta religião charidosa,
-houve quem bem entendesse como entes nossos conterraneos n’este
-orbe, irmãos nossos em viver, sentir, padecer e acabar, com sangue e
-coração como nós, com amor, prazeres e filhos como nós, bebendo como
-nós no immenso vaso do pai commum o mesmo ar, a mesma luz, as mesmas
-aguas, e comendo comnosco á mesma mesa do universal banquete, poderião
-quando muito servir-nos de pasto; mas fóra d’ahi, qualquer injúria
-que se lhes accrescentasse, seria hortorosa profanação e violação da
-natureza. Plutarcho e Quintiliano referem, que os Athenienses castigarão
-severamente algumas sevicias commettidas contra animaes. O Alcorão
-espalhou por todos os povos, que largamente senhorea, muita d’esta
-benignidade: raro Mahometano deixará de matar a fome ao cão de seu
-inimigo. Na China passa esta beneficencia muito adeante. Que no-lo diga
-em seu estilo chão o nosso Fernão Mendes, ou talvez o Jesuita que em seu
-nome, e por um modo tão rijo de crer, compilou tantas e tão preciosas
-noticias do Oriente, mui desacreditadas em tempo, ja hoje em parte mui
-abonadas de verdadeiras. Padre ou marinheiro, diz assim: (falla de uma
-feira que no rio de Batampina, em caminho de Nanquim para Pequim, se faz
-com mais da duas mil ruas de barcaças, nas quaes ha para vender tudo a
-que no mundo se pode pôr nome.) “Ha tambem outras embarcações em que os
-homens trazem grande soma de gayolas com passarinhos viuos e tangendo com
-instrumentos musicos dizem em voz alta á gente que os ouve, que libertem
-aquelles cativos que são criaturas de Deos, a que muita gente acede a
-lhes dar esmola com que resgata daquelles cativos os que cada um quer e
-os lança logo a avoar, e toda a gente dando hũa grande grita lhe diz,
-_pichau pitanel catão vocaxi_, que quer dizer, _dize lá a Deos como cá
-o servimos_. Ha outros homens que noutras embarcações trazem grandes
-panellas cheyas de agoa, em que trazem muitos peixinhos viuos que tomão
-nos rios nũas redes de malha muyto miudas, tambem pela mesma maneira
-vem bradando que libertem aquelles cativos por seruiço de Deos que são
-innocentes que nunca peccarão, a que tambem a gente dando sua esmola,
-comprão daquelles peixinhos os que querem e os tornão logo a lançar no
-rio, dizendo, _vayte embora, e lá dize de mym este bem que te fiz por
-seruiço de Deos_. E estas embarcações em que estas cousas se trazem a
-vender não se hão de contar por menos soma que de cento e duzentas para
-cima.”
-
-Na India são n’esta virtude extremosissimos. Alguns viajantes tanto
-encarecem a couza, que chegão a affirmar haverem por lá, ainda no seculo
-passado, hospitaes para as mais asquerosas sevandijas, como piolhos,
-pulgas e persovejos.
-
-Pôsto que tudo quanto até aqui tenho trazido, possa parecer uma diversão
-do principal propozito, não o he, por quanto d’estes misericordiosos
-affétos he que se tem em parte derivado a abstinencia de carnes,
-observada por muitas pessoas, communidades, seitas e povos: em parte
-digo, porque em outros diversos fundamentos tem tambem estribado, como
-veremos.
-
-E pois que a ultima que tocámos foi a India, a ella tornemos, levando por
-explorador e lingua, não algum estrangeiro, de que outros se contentão
-mais, mas um patricio nosso, dos varios que para tal officio se podérão
-tomar: he Duarte Barbosa, e diz:
-
-“Ha neste regno (de Guzarate) outra sorte de Gentios, que chamaom
-Bramanes, estes nom comem carne, nem pescado, nem nenhũa cousa que
-mora, nem mataom, nem menos querem uer matar, por asy lho defender sua
-idolatria; e guardaom isto em tamanho estremo que he cousa espantosa,
-porque muytas uezes acontece leuarem-lhe hos Mouros bichos, e pasarinhos
-uiuos, e fazerem que hos querem matar perante eles, e estes Bramanes lhos
-compraom e resgataom, dando-lhe por eles muyto mais do que ualem, por
-lhe saluarem has uidas, e soltalos. Se tambem El Rey, ou ho gouernador
-da tera, tem algũu homem, porculpas que cometese, julgado ha morte;
-ajuntamse eles, e compramno ha justiça, se lho quer uender, pera que nom
-mora; e tambem algũus Mouros pedintes, quando querem auer esmola destes,
-tomaom muy grandes pedras, e daom com elas emsima dos ombros e barigas,
-como que se querem matar perante eles, e porque ho nom façaom, lhe daom
-muytas esmolas, e que se uaom em pas; outros trazem faquas, e daom-se
-cõelas cutiladas pelos braços e pernas, e pera se nom matarem lhes daom
-muytas esmolas; outros lhe uem has portas ha querer lhe degolar ratos e
-cobras, ha hos quaes eles daom muyto dinheiro por ho nom fazerem, e desta
-maneira saom dos Mouros muy apreciados: estes Bramanes se achaom no
-caminho algũu golpe de formiguas, aredam-se buscando por honde pasem sem
-bas pisarem. E em suas casas de dia çeaom; de dia nem de noyte acendem
-candea, per caso de algũs mosquitos nom irem morer no lume da candea; e
-se todauia tem grande necesidade de acenderem de noyte, tem hũa alenterna
-de papel ou de pano agomado, pera cousa nenhũa uiua poder ir morer dentro
-no fogo; se estes criaom muytos piolhos, nom hos mataom, e quando hos
-muyto aqueixaom mandaom chamar hũs homeins que antre eles uiuem, que
-tambem saom gentios, e eles hos haom por de santa uida, e saom come
-irmytães, uiuendo em muyta abstinença por reuerencia dos seus Deoses;
-estes hos cataom, e quantos piolhos lhe tiraom poemnos em suas cabeças,
-e hos criaom com suas carnes, em que dizem fazerem muy grande seruiço ha
-seu Idolo, e asy guardaom hũus e outros com muyta temperança ha ley de
-nom matarem: estes Gentios saom muy delicados e temperados em seu comer;
-seus manjares saom leites, manteiga, açuquar, e aros, e muytas conseruas
-de diuersas maneiras; seruem-se muyto de cousas de fruyta e ortaliça, e
-deruas de campo pera seus manjares; honde quer que uiuem tem muytas ortas
-e pomares.”
-
-Na _Historia de Mysore_, lê-se que em Bengala, quando a violencia da fome
-a devastou em 1774, consumindo-lhe obra de trez milhões d’almas, forão
-em muito grande numero os Indios que antes quizerão deixar-se morrer á
-mingoa, do que acabar comsigo comer carne de animaes.
-
-Frequente e antigo he na India este antojo, e tão notorio, que não ha
-porque afogar o discurso com mais exemplos. Bem podia proceder isso em
-parte da vegetavel abundancia e espantosa cultura d’aquellas terras,
-e de alguma especial compleição do clima, ou natureza ou costumes
-dos moradores, ou algumas outras circunstancias, segundo as quaes os
-corpos se dessem melhor com os pastos leves e frugaes: viria depois a
-religião consagrar por dogmas seus os conselhos da higiene, como com
-vinho, toucinho e abluções aconteceo em muito oriente á conta da lepra:
-para melhor incutir o preceito, cerca-lo-hia de fabulas amigas da
-imaginação do vulgo, como a encarnação dos Deozes em corpos de brutos, e
-a transmigração das almas humanas por differentes sortes de viventes até
-parar na vacca; materias estas de que as historias e perigrinações fazem
-larga menção. Dos Indios podérão tomar por mão a crença os Egipcios, os
-quaes, sendo moradores de solo não menos liberal, devião tambem perdoar
-grandemente aos animaes, em quem reverenciavão suas Divindades, ou
-santuarios ambulantes que d’ellas forão: e confirma-me na suspeita a
-conveniencia, que ja de alguem deverá ter sido notada, do boi Apis do
-Egito com a vacca ainda hoje sagrada dos Indios. Do Egito provavelmente
-trouxe Pithagoras para a Italia, em tempos de Numa ou Servio Tullio, a
-sua metempsícosa com a defensão do uso das carnes. Não pegou a invenção,
-se não foi em alguns escolares fanaticos de tamanho mestre; e nem
-filosofos pelo tempo adeante a sustentarão, nem poetas se valerão d’ella,
-afóra Ovidio nas metamorfoses, e só como narrador; e mais não deixava de
-ser fecunda e bem assombrada crença para poesias. Não pegou, porque não
-vinha propria á indole do solo ou ao temperamento dos Italos, ou, o que
-he mais certo, porque encontrava os antiquissimos usos de umas gentes,
-que primeiro tinhão sido pastoras e depois guerreiras.
-
-Na Ilha da Palma, acharão os nossos, quando descobrião, conquistavão e
-amansavão aquelle archipelago, (senhorio traspassado depois em Castella,
-mas padrão glorioso do nosso Infante D. Henrique) serem mantimento dos
-moradores hervas, leite e mel.—Com este particular exemplo me acóde a
-memoria, mas alguns outros semelhantes de outras ilhas me parece ter
-achado pelas historias, de que me não ficou nem fiz a lembrança preciza.
-
-Com a propagação da fé christã renasceo religiosa a abstinencia na
-Europa, por motivo não de brandura, mas de mortificação. Apparecerão
-Ordens numerosas de religiosos, primeiro só de homens, logo tambem
-de mulheres, que renunciando todos os carnaes deleites para melhor
-apurarem os do espirito, tomando o exemplo dos primitivos eremitas que
-se abastavão com as hervas, raizes, frutas silvestres, e aguas dos
-montes, não só cortarão pelas demazias na quantidade do sustento, não só
-o estreitarão com regra de jejuns, mas em varios de seus institutos o
-expurgarão de todo animal terrestre ou volatil, não consentindo, quando
-muito, senão em algum marisco secco e fraco, para regalo das festas. E he
-para notar como ainda os mais rígidos observantes logravão saude inteira
-e robusta, e chegavão ao ultimo fio da velhice: _mens sana in corpore
-sano_.
-
-Annos ha que me recordo de ter achado em uma Gazeta de Lisboa, estar-se
-creando em Manchester uma seita, que por filosofica defendia tomar
-qualquer sustento animal. Era noticia de Gazeta, não affirmarei que
-tivesse pé, e se o teve, não sei em que parou.
-
-Ja que estamos com Inglezes, fallemos de Franklin. Este homem, a quem a
-probidade e o juizo fizerão filosofo e liberal, e não a devassidão e o
-estouvamento, tendo lido, di-lo elle, o livro em que Tryon recommenda
-a dieta vegetal, determinou-se em a observar. Pô-lo por obra, e
-limitando-se em arroz e batatas, e ás vezes ainda em menos, como passas,
-bolaxa ou pão, com uma gota de agua, não só forrou do seu salario (era
-ainda então compositor de imprensa) com que poder comprar livros, mas
-do seu tempo acerescentou para estudos o que as refeições e digestões
-lhe podérão consumir: fez progressos proporcionados á clareza de ideas e
-fortaleza de percepção, que são o fruto da temperança no comer e beber.
-Seguio constante por algum tempo, não pouco, até que chega á ilha de
-Block, assiste a uma pesca, revolvem-se-lhe nas entranhas as maximas do
-seu Tryon, dá por genero de assassinio aquelle matar viventes, que nem
-tinhão feito nem erão capazes de fazer o mínimo mal. Poem-se os mortos ao
-lume, recende o guizado; o filosofo no seu tempo gostára apaixonadamente
-de peixe; entra pelo nariz a tentação, estremece a filosofia, e em boa
-hora lhe acode com uma bulla de composição, lembrando-lhe como ao abrir e
-limpar d’aquelles peixes, lhes víra dentro do buxo outros peixinhos mais
-pequenos. “Pois que he isto, diz elle entre si, se vós uns a outros vos
-comeis, porque não hei de eu tambem comer-vos a vós?” N’essa hora e com
-esta palavra se lhe quebrou o fadario; o que muito bem prova, acrescenta
-o bom homem, sermos nós _animaes racionaes_, sabendo, como sabemos, achar
-pretextos plausiveis para quanto nos póde dar gôsto.
-
-Outro autor muito afamado de nossos dias, Raynal, era igualmente sobrio.
-A Senhora Marqueza d’Alorna, que muitas vezes o teve a jantar, me contou,
-que nunca o víra comer mais que algumas poucas hervas e fruta, nem beber
-senão agua. Era, observava ella, como um conviva das Ninfas, custando a
-crer como com aquellas refeições de idillio se podessem sustentar tantos
-nervos d’alma e de pensamento.
-
-Se depois de autores de livros se póde citar quem não sabe ler, em Grada,
-lugarejo da Bairrada, vivia um moço que eu conheci, o qual nunca provára
-vacca. Perguntado a causa, não era religião, nem filosofia, nem tedio
-natural, mas effeito de um vehementissimo e entranhado amor que tinha
-aos bois, com quem se creára, com quem vivia, lavrava, e dormia paredes
-meias. Rústico era, e sem o cuidar discorria e fallava como o Sabio de
-Cheronea, quando dizia, que por tudo quanto o mundo tinha, não venderia
-nunca o boi que em seu serviço envelhecêra.
-
-Afóra os monges, filosofos e amigos dos bois, ha ainda uma grande quantia
-de homens, puro comedores de vegetaes em quasi todo o anno: são os
-moradores das serras e aldêas pobres, a quem a estreiteza de sua fortuna
-mal dá licença para chegarem á carne por entrudo e paschoa, e poucas
-mais vezes e só escassissimamente, ao pescado, vizita mui rara em terras
-mesquinhas do sertão. De choupanas sei eu, e quasi de inteiros lugares,
-pelas abas da Serra do Caramulo, onde oito annos vivi, que de pouco mais
-se sustentão que do pão de centeio e milho, batatas e alguns legumes: e
-estes asperissimos banquetes, em que até pelo demais fallece o agro vinho
-verde de seus montes, trazem-os comtudo mais rijos e sãos no trabalho,
-do que as grandes ucharias aos mimosos das cidades.
-
-Acabarei estes exemplos com o que melhor conheço, que he o meu. Quando
-eu compuz estes versos da _Festa de Maio_, era como ja no Ante-Prologo
-disse, todo Gessnérico: trazia a alma toda a nadar no coração empapado
-com os mais brandos affétos do mundo, como rosa a boiar em vaso de leite:
-amava as plantas e tratava com ellas como com entes sensitivos; todos
-os entes sensitivos amava-os como amigos e companheiros: tinha fantasia
-pronta, que muito ajuda em todo o genero de bem querer; esta me revelava
-de contínuo e me ataviava de suas fabulas e côres a particular vida e
-cheíssimo mundo de cada inséto; e porque esse seu mundo e vida dizia
-tanto com o meu, e o commum de seus substanciaes interesses com o commum
-dos substanciaes interesses dos homens, acontecia que imaginando-me ora
-grilo, ora passaro, ora borboleta, tinha aprendido uma perfeita, e se
-dizè-lo posso, egoista charidade para com todos elles. Ouvi debater a
-questão do uso das carnes: as razões affirmativas podião ter mais fôrça,
-mas as negativas dizião com o meu gôsto; he meia persuasão; caírão-me
-tão bem, que logo me dei, se não por convencido, por persuadido: e como
-persuadido e convencido escrevi os versos, que por isso aos indifferentes
-se de contrária sentença, devem parecer, como em verdade são, sobejos,
-exagerados e declamatorios.
-
-Era o escrito fruto de minha opinião; mas esta, como accontece, se
-roborou por elle, e até tal ponto se confirmou, que do que até alí não
-passára de poetica theoria, instituí fazer prática minha em toda a vida,
-renunciando qualquer genero de alimento animal. Por duas vias se fazia de
-mal o tenta-lo, ja porque em couza tão excetuada do geral não deixarias
-de caír estranhezas e zombarias, ja porque tanta sobriedade entre quem
-a não usava, era genero de martirio continuamente renovado. Mas contra
-estes dois contrastes prevalecião outros dois argumentos: primeiro, minha
-consciencia, que repugnava banquetes de sangue: segundo, o presuposto em
-que estava, de que as faculdades da alma se havião de adelgaçar e crescer
-onde o corpo fosse favorecido da parcimonia. Metti-me Pithagorico aos
-vinte e trez d’Agosto do anno de 1822, tendo sido gastos os mezes, que
-desde a feitura do poema decorrerão até esse, em acabar de me resolver e
-aparelhar para tão grande façanha; e permaneci na observancia do voto até
-vinte e trez d’Agosto do seguinte anno. Acabei o noviciado, e em lugar de
-professar, despedi-me. Tive minhas razões; e ainda que pouco se me havia
-de dar agora do que se podesse dizer ácerca de um indivíduo, que n’esse
-tempo tinha o nome que eu hoje tenho, e do qual, segundo as theorias dos
-medicos, não conservo hoje uma só particula, sendo eu um, vivo e junto;
-elle outro, morto e disperso por todo esse mundo: todavia, porque ainda
-temos commum um leve som, que he o nome, quero lançar pontualmente na
-balança do juizo dos meus leitores os seus porques; e bons ou máos, forão
-estes.—Primeiro: que a abstinencia de uma só pessoa não poupava uma unica
-existencia de animal. Segundo: que era presunção ridicula o desquitar-se
-um sujeito, por alguns argumentos, de uma opinião e uso quasi universal,
-sendo assim que todos os homens, guerreando-se entre si por crenças
-religiosas, por sisthemas filosoficos, por principios de política e
-sciencias, por modas e gostos, todos se conformavão no comer das carnes.
-Terceiro: que realmente era obstinação o desconhecer como a natureza nos
-não aparelhára só para comer e digerir vegetaes. Quarto: estar-nos ella
-dando nos proprios animaes, que uns de outros se sustentão, uma prova
-de ser menos escrupulosa do que Pithagoras e a poesia. Quinto: que ella
-propria os multiplica á proporção do que uns a outros devem tragar.
-Sexto: que se ella faz com que cada passada, cada pedra que movemos, cada
-gota de agua que engolimos, cada fruto ou folha que aproveitamos, cada
-sôpro que inspiramos ou expiramos, cada movimento emfim que fazemos,
-ainda dos mais indispensaveis para a vida, a destrua a milhões e milhões
-de entes conhecidos, e a numero talvez ainda maior de desconhecidos,
-não ha porque nos tenha a grande peccado, o aumentar-mos por nosso
-bem a lista com mais algumas unidades. Setimo: que o adelgaçamento e
-crescimento de minhas faculdades intelletuaes que eu esperára d’aquella
-mais leve nutrição, não só se não tinha verificado, mas antes o contrário
-succedêra, pôsto que de diversas causas podésse pender o successo:
-e por muito tempo me ficou o costume de, quando via versos fracos e
-desengraçados, dizer: Devião estes de ser compostos por quem não comia
-senão hervas. Outavo, ultimo, e não leve motivo: que ainda que pouco dado
-ás delicias da gula, o cheiro e presença de melhores iguarias do que as
-minhas, de dia em dia me tentava mais, e quando succedia achar-me entre
-gente alegre e em mesa de festa, as ondas de tentação, que eu forcejava
-dissimular o melhor que podia, crescião e redobravão com os motejos dos
-circunstantes, que bem poderião ter sal, mas não que adubasse as minhas
-insôssas hervas.
-
-De todos os varios antecedentes deduzo, que sem embargo das objeções,
-autoridades e exemplos, o uso das carnes se ha de ter por licito, e por
-dithirambico o que lá fica no texto: mas que fóra do caso de necessidade
-ou clara utilidade, e alem do ponto em que essa necessidade ou utilidade
-pararem, toda a sevicia contra viventes he immoral, injusta, insensata, e
-digna de muito grande castigo.
-
-E tanto isto assim he, que, porque todo o carniceiro de officio contrahe
-na alma e nos modos alguma couza de cruento e de tigre, em muitas partes
-se tem por infame. Em Portugal, nenhum mechanico honrado e de conta
-acceitaria um tal para sogro ou genro, ainda com grosso cabedal de
-renda; nem de boca plebea pode saír mais afrontosa injúria que o nome
-de magarefe. Em Inglaterra não os admittem jurados em causa crime. Na
-principal ilha das Canarias encontrárão seus descobridores, que os
-naturaes, com viverem á lei de sua rudeza silvestre, “havião por couza
-mui torpe esfolar alguem gado, e n’este mister de magarefes lhes servião
-os cativos que tomavão; e quando lhe estes falecião, buscavão homens dos
-mais baixos do povo para este officio, os quaes vivião apartados da outra
-gente e não os communicavão em aquelle mister” (_Barr. Dec. 1. L. 1. C.
-12._)—Bem hajão os inglezes, que formão sociedades para proteger animaes,
-e abençoado seja o inglez Deputado Martin, que para lhes fazer bem, se
-arrosta com os escarneos dos praguentos. Bem hajão os allemães, que em
-seus campos não perdoão multa municipal aos que, no levar rezes pelos
-caminhos, as atravessão deante de si na albardadura, ou tolhidamente as
-apinhoão dentro em carros. E bem haja a nossa Camara, quando conseguir
-desterrar o escandalo do afrontoso trato que nossos carreiros dão a seus
-bois, como ja desterrou a atroz e immoral matança dos porcos perante os
-olhos do povo.
-
-Quero rematar com uma reflexão, que ja acima podéra ter cabido, mas que
-por dezejar da-la por conselho, e pô-la onde melhor se recommendasse,
-muito de industria deixei para o fecho. Vai o dito a pais e educadores,
-a quem toca. Nada importa mais, do que affazer cedo os meninos a uma
-grande suavidade de costumes: assim foi creado o bom Montaigne. Se os
-eu tivesse, parece-me que tambem assim os crearia, e bem bons frutos
-lhes havia de colher na minha velhice. Primeiro que tudo, parece-me que
-me conformaria com Rousseau em os não alimentar desde o leite senão com
-vegetaes, por entender como elle, serem estes mais accommodados a suas
-naturezas, e mais proprios para fisicamente os suavizar e humanar. Mas
-não quero agora averiguar isto que pertence a medicos; outro he o meu
-alvo. Não consentíra jamais que presenceassem espetaculos de atrocidades
-ou injustiça; e quando a minha má estrella lhos presentasse, procuraria
-afea-los com boas razões, mais de affétos e lagrimas que de raciocinios.
-As urbanas corridas de touros e as aldeanas festas de alanceamento de
-pombos, frangos e patos, como couzas antiquissimas e nacional feição,
-as respeito; mas não levára la os meus tenrinhos, que são mui branda
-cera para qualquer bom ou máo cunho. Se de alguem lhes fosse insinuada a
-correntissima abusão de nossos provincianos, de que em casa que devasta
-ou maltrata os ninhos do seu beirado, tudo vai para traz e de fôrça se ha
-de aguardar por enterramento, calára-me, porque acho razão a Fontenelle
-em dizer, que se na mão tivesse fechadas todas as verdades do mundo, Deos
-o defendesse de a abrir.
-
- _Magnànima menzogna, or quando è il vero_
- _Si bello, che si possa a te preporre?_
-
-Dar-lhes-hia, da Historia natural poetizada, tanta luz, quanta bastasse
-para levarem grande interesse nos fados de cada individuozinho que
-respira: um raio de tal luz póde bastar para pôr fim a muita dureza que
-provenha de cegueira. Conheci e tratei com um parocho de fóra da terra,
-que desgostoso de que uma sua fregueza, rapariga nova, não pozesse reparo
-em maltratar animaes, a chamou brandamente, explicou-lhe como tudo
-que era nascido devia ter algum entendimento, capacidade para dores e
-prazeres, parentes, amigos e affeições. Com isto só a fez outra, e tão
-outra desde essa hora, que onde depois se lhe fazia de mister dar morte
-a uma pomba ou gallinha, ainda que em seu páteo não forão creadas, ja o
-coração se lhe confrangia, tremião-lhe os pulsos, e chegada á execução,
-não corria mais sangue da ferida, que mal acertava, do que lagrimas de
-seus olhos.—De mim mesmo me parece agora, que se escrevi os versos a que
-me refiro, e em commenta-los me alargo tanto, e uma e outra couza de tão
-boa mente, de tudo deve ter sido raiz a creação, em tudo excellente e
-n’esta parte bem empregada, que meu pai se esmerou em dar a todos seus
-filhos.
-
-Outra couza fizera eu principalmente; era commetter-lhes o trato e
-tutela de alguns animaes caseiros, a quem podessem chamar seus. N’este
-exercicio aprenderião a ser observadores, vigilantes, serviçaes; tomarião
-com o gôsto da propriedade o amor do trabalho, havendo-se ja por algum
-modo como pais de familias; costumar-se-hião a acautelar, previnir e
-amar; tomarião para toda a vida o geito de amparar fracos e desvalidos,
-e de não ver um qualquer indivíduo, sem logo compor na imaginação a
-historia completa do seu viver, do seu padecer, do seu precizar.
-
-Da efficacia de tal methodo, e tão simples, e tão formoso, tenho eu uma
-muito amavel prova de minhas portas a dentro. Uma mulher, toda boa, toda
-extremosa, tomou unicamente a peito o vingar-me da natureza; cerca-me
-de contínuo, como um anjo, de amor e de luz; empresta-me olhos para eu
-ver o mundo e as obras dos seculos; tira deante dos meus passos todos
-os espinhos no caminho da vida; inventa-me um encantamento novo para
-cada minuto; diz-me e faz-me entender como a verdadeira felicidade se
-não compoem de grandes pedaços, mas sim de atomozinhos que de longe se
-não podem perceber; repete-me e persuade-me que nasci para as Musas
-e para o amor, e não para a política, nem para os odios, serve-me,
-vela-me e defende-me como a filho, ama-me como a esposo, zela o meu nome
-como o de irmão; lançou a sua vida na minha vida, o seu pensamento no
-meu pensamento; existe pelo meu amor, morreria se lhe elle faltasse.
-Quem lhe ensinou tão generosa, tão nova benevolencia? quem lhe deo
-tantos segredos de fazer feliz? as suas aves e pombas, a sua amiga, e
-alguns livros, unica sociedade da cella, onde desde seus annos verdes a
-Providencia ma estava guardando e aperfeiçoando[17].
-
-
-
-
-_Pag. 243. verso 18 e seguintes_
-
- O mesmo coração, dezejos, gostos,
- Que tem nossas mortaes no peito occultos,
- Tem as Ninfas tambem &c.
-
-
-Por estes versos começa uma torrente caudal de couzas vãs e doidas ácerca
-das mulheres, e relações dos dois sexos, que ora mais, ora menos turva,
-se vai alongando até pag. 254. A pezar de se devolver por leito de quasi
-proza, e por entre margens para meu gôsto mal assombradas, bom seria que
-por ellas nos podéramos ir detendo a pescar, e a examinar algumas das
-couzas mais graúdas que vão na chêa: serião questões apraziveis de ociosa
-filosofia, mas prometti no prologo despreza-las; perdoar-lhes-hemos,
-deixa-las ir seu caminho. Passem a seu salvo as regras de namorar á
-antiga; a arte não de amar mas de enredar e colher, como o são quantas
-com titulo de amar se tem escrito; a poligamia, menos de Mahometano do
-que de Tupinamba; o divorcio e ulteriores nupcias dos divorciados e
-divorciadas; a botecuda nudez dos sexos &c. La se avenhão como poderem
-todas essas puerilidades com seus inimigos, que se de minha Musa
-nascêrão, muito ha que eu e ella as desherdámos. O meu ponto agora he
-assentar boas pazes para sempre com as damas. Todas minhas Obras, não
-só esta, _Cartas de Echo_, _Amor e Melancolia_, _Noite do Castello_,
-_Ciumes do Bardo_, me devem ter perante ellas representado cavalleiro
-descortez de desleal poesia. Tempo he de mudar de cores, abjurar o erro,
-e para merecer o perdão, que ellas de puro boas concedem antes de pedido,
-romper lanças em favor de sua fama, não só contra inimigos, se os podem
-ter, mas contra mim proprio, pelas ter aggravado. He uma Nota estreita
-arena para tão singular duello: mas embora, que para outro dia e campo
-desafiado fica o eu mancebo desatinado e altivo d’outro tempo por mim
-grave, reflexivo e respeitoso; o eu versejador por mim pensador; o eu
-academico e solteiro por mim cazado e recolhido: emfim por mim conhecedor
-do terreno do combate o eu ignorante d’elle, a cuja face ja n’esta hora
-arremésso a luva, e lhe digo “Mentiste, e mercê de Deos e de minha Dama,
-provar-to-hei.” Mas pois que he forçado ficar para outro dia a pendencia,
-aqui não farei mais do que um pouco ensaiar-me para ella, campeando
-soltamente e esgremindo nos ares.
-
-Nenhuma couza tem sido mais experimentada no mundo e mais vezes definida
-que o amor, nenhuma ha tão mal e imperfeitamente comprehendida como o
-amor. Fallo do amor dos homens, unico de que os homens podem fallar: o
-das mulheres he ainda mais incomprehensivel, e certamente muito mais
-espantoso, quando verdadeiro. O que pretende dar regras de amar, como
-alguns outros fizerão antes de mim, e como eu proprio supponho que
-pretendi, assemelha-se ao astronomo, que tendo endoidecido á força de
-ter velado as noites a observar os astros, presumisse, riscando órbitas
-com o lapis, constrangê-los a segui-las: as esferas e os affétos saem do
-nada ao sôpro de Deos, resplandecem com a sua luz propria e misteriosa,
-vão-se ora afastando ora aproximando de seus centros pelo caminho que
-sua natureza lhes ordena, eclipsão-se na hora prescrita, desappareceráõ
-quando Deos fôr servido; sem que em tudo isso haja querer, escolha,
-presciencia, ou conhecimento de nossa parte. Amamos uma mulher, e certa
-mulher; porque temos de a amar; porque he necessidade sua e nossa que
-a amemos; amamo-la pelo modo que a natureza quer e não outro, não he
-uma acção mas uma paixão: se a premião o premio he gratuito, se a punem
-he injusto o castigo, porque não recáem sôbre um effeito de eleição.
-Ama-se uma mulher, repito, sem o procurar, sem o cuidar, sem arbitrio, a
-despeito da razão, da vontade e dos votos, como á rosa, como á lua, como
-á harmonia, como aos sabores dos frutos deliciosos. Para ellas se vai
-como os rios dos montes para os valles, como a chamma para o ceo, como
-a pedra do ar para a terra, como o menino para os peitos da ama, como o
-coração para o prazer. N’estas occasioẽs todo em nós he extraordinario,
-e se o posso dizer, sobre-natural: sentimo-nos fôrças que não possuiamos
-para querer, seguir, abraçar e reter: o pensamento se torna infinito,
-porque o objéto que procurâmos, como uma metade nossa que nos foge,
-nos apparece infinito. Por dentro d’aquellas graças fisicas, de que
-os sentidos se namorão, imagina-se um mundo estranho e illimitado de
-perfeições, de que se namora a alma: ahi se dezeja tudo quanto he capaz
-de embellezar a vida; o dezejo he logo esperança, a esperança certeza,
-a certeza delirio, e novamente dezejos; e quem porá limites a dezejos,
-a delirios, a esperanças? O abrangimento do infinito da Divindade em um
-corpo humano não he misterio que o amor não saiba muito bem entender. He
-aqui o lugar de confessar que a este sobre-humano conceito, que da mulher
-amada se faz, mil vezes corresponde plenissima realidade.
-
-Por mais que a natureza se aprimore em modelar, tornear, corar, amaciar,
-brunir, bafejar e endeozar o fisico da mulher, as suas graças, o seu
-merito, o seu ser de mulher não são esses dotes, sujeitos ao tempo e
-dependentes de um ar, assim como nas flores não são mel as pétalas
-vistosas e coradas, o cheiro suave e attrátivo, que o sol e o vento
-attenuão e desbaratão. Diz-se que as feiticeiras tem o seu encantamento
-em um novêlo; o novêlo do feitiço das mulheres está no seu coração e no
-seu espirito, que n’ellas he tambem coração. O coração da mulher não
-mora descançadamente reclinado no peito como o nosso, por toda sua alma
-esvoaça perdido de amor, gemendo de amor, como uma ave mãi e feliz por
-todos os ramos de um bosque de primavera: sente-se-lhe o frémito das
-azas, ouve-se-lhe a harmonia em tudo quanto diz, em tudo quanto cala,
-no que faz como no que deixa de fazer, no que pensa, recorda ou espera,
-nas lagrimas e no riso, no enfado e no contentamento, na vigilia e no
-sono. O coração lhe está á porta interior de cada sentido recebendo as
-impressões; para elle e por elle veẽm, para elle e por elle ouvem, para
-elle e por elle presencêão a natureza, communicão com ella e comnosco. Um
-sôpro divino formou a alma do homem, a da mulher de um beijo delicioso
-deveo ser formada.
-
-Este afféto, esta doçura, esta, quero eu dizê-lo, feminidade da mulher
-são de tão alta natureza, tão estremes de liga, tão independentes do fim
-mesmo para que a providencia a destinou, que me parece ainda despojada de
-sentidos, poderia amar vehementemente como os espiritos angelicos. Que
-será quando os sentidos confluem, para atear com sua materia inflammavel
-este fogo celeste? ¿quando a Vestal, afrontando todo o futuro, deixa
-apagar no altar da Deoza de sua infancia a luz virginal que velou por
-tantos dias e noites? ¿quando na turbação insólita d’estas trevas
-desconhecidas, se entregou toda e com todo seu futuro ao ente que a
-implorou como Divindade, e que ella sabe e sente em si tornará feliz
-por cima de todas as felicidades? ¿quando uma vez encetou prazeres,
-cujo maior encanto para ella se da-los recebendo-os, e não os receber
-sem ao mesmo tempo consummar mais de um doloroso sacrificio? Oh então
-he o amar do amar! o afféto, que ja em profundeza não podia crescer,
-cresce em superficie, e trasborda todo e para toda a parte, como um
-perfume abundante; então he que sem voz pronunciou o _sempre_; que sentio
-apertar-se-lhe nas entranhas a indissolubilidade do consorcio, porque o
-amor de fantasia se fez realidade, de dezejo destino, de suspiro occulto
-gloria; a tudo tem ja direito porque ja deo tudo, não póde dezejar ser
-de outrem porque a outrem não teria tanto que dar. E he esta a grande
-differença da mulher ao homem, e do amor ao amor: o d’ella tem um abono
-e côr de eternidade, o nosso um elemento e uma côr de tempo. Podéra
-ser emblema do nosso, uma náo alterosa e possante, surta em uma bahia
-aprazivel, mercadejando e folgando com a terra, empavezando ufania
-de flammulas e galhardetes, aferrada ao fundo do mar com uma unha de
-ferro, mas podendo de uma hora para outra arranca-la ou picar a amarra,
-desfraldar as velas que sempre estão prestes, e vogar atravez de todas
-as ondas, por cima de todos os abismos, a mercadejar e folgar no extremo
-opposto do mundo: emquanto a feminil affeição, como barquinha contente e
-desambiciosa, feita para os ocios de sua enseada, coroada a pôpa ora de
-flores abertas ora de esperançosos verdes, sem deitar nenhuma ancora, não
-foge nunca d’entre aquellas margens conhecidas; por entre ellas vai e vem
-avoejando de contínuo, levando e trazendo sempre commodos e alegrias, sem
-curar que de sua barra em fóra haja outros mares, n’esses mares outras
-bahias; delicia-se na sua, onde tudo a festeja e saúda por seu nome, onde
-se entende com todos os ventos, todos os refugios conhece para o dia
-da tempestade. O amor do homem, com os sentidos satisfeitos muita vez
-se satisfaz e adormece; como o frizão dos Jogos Olímpicos, que chegado
-apoz violenta carreira a tocar na meta, surdo até ás vozes da gloria que
-esporeou, se estirava para repouzar ou para morrer. O amor da mulher,
-satisfeitos os sentidos, se restaura, resurge mais puro e extremoso,
-mais vivaz e promettedor; semelhante ás plantas, quando desfallecidas
-nos afrontamentos do verão se dessedentão com a chuva de uma nuvem que
-passsou, e viçosas reverdecem para embalsamar os ares de seu valle.
-Uma de muitas razões que para esta differença podem concorrer, he que
-n’essa hora adquirio a mulher direitos, o homem contrahio obrigações; as
-obrigações pezão, os direitos agradão, as obrigações limitão e apoucão,
-os direitos accrescentão e engrandecem. Trocarão-se os papeis na scena,
-o seguidor esquiva-se, a perseguida segue. O amor do homem he só amor,
-o amor da mulher he amor e amizade: elle, porque pertence ao mundo, á
-gloria e a tantas outras paixões, só tem meio coração, meia vontade,
-meio tempo para dar á sua companheira; esta, separada do mundo pelo
-mesmo mundo e pela natureza, por isso mesmo mais raramente accessivel a
-outras paixões, dá ao seu amigo todo o coração, toda a vontade e toda
-a vida; dar-lhe-hia se podesse mais vida, e mais coração, mas não mais
-vontade: com elle, por elle, e para elle existe, na propria ausencia o
-tem presente; e quando cessa de abraça-lo, he para se gozar de o ter
-abraçado, e cuidar como logo o abraçará de novo, e volverá a ser d’elle
-amado, fazendo-o feliz.
-
-Tal he o theor da natureza: tem excéções e numerosas. Corações ha de
-homens, que sem ser effeminados, não desdirião n’um peito feminino;
-e corações de mulheres, que talvez bem nascidos e bem fadados, mas
-torcidos depois pela educação, quebrados pela sociedade, corrutos pelos
-exemplos, merecem as satiras, demaziadamente geraes, com que os autores
-de sua degeneração todos os dias lhe poem ferrete: mas essas, mais
-infelizes do que culpadas, os desgraçados que as pintem e condenem, eu
-pinto a mulher amante, a mulher perfeita, a mulher mulher, a mulher
-como a concebi, como a conheço, como a adoro. Foi esta a que Deos fez e
-temperou de poesia e harmonia lá na origem do mundo, quando vio que não
-era bom que o homem vivesse só. Esta he a que depois de nos dar a vida,
-no-la suaviza e apura; no-la multiplica em entes novos; no-la adoça nos
-momentos derradeiros; nos ama ainda, quando ja não somos; dá seus beijos
-amorosos a uma pedra, porque do nosso nome lhe conserva uma letra; e
-consummando o seu destino de amar, felicitar, sacrificar-se, ajoelhada na
-terra, nos vizita no mundo das sombras; estreitando o seu commercio com
-os ceos que a esperão, para nós só os invoca, e depois de no-los ter dado
-em amostra no tempo á fôrça de amor, á fôrça de amor no-los grangêa na
-eternidade.
-
-Custa a crer como um ente, que he metade da nossa especie, que das duas
-he a mais amavel metade, a mais carinhosa, em tantas couzas nosso igual
-para nos attraír, mas com tantas differenças de nós para se nos unir
-ainda mais, que se tem defeitos de nós os recebe, e nos dá em troca,
-sem o cuidar, tantas das virtudes que possuimos, custa, digo, a crer
-como um talento, a quem sua propria fraqueza devêra tornar inviolavel,
-pôde ver-se em todos os tempos, e provavelmente continuará a ser até ao
-fim dos seculos, alvo e emprego das críticas mais desabridas, e mais
-grosseiras calúnias. Divindade extraordinaria, a quem seus proprios
-ministros e sacrificadores insultão adorando-a, e que de cima de seu
-altar, fragil mas eterno, inalteravel em sua mansidão, derrama sôbre bons
-e máos a felicidade! Que a filosofia as injuriasse não espantára. La
-Bruyere foi cruel para com ellas, Larochefoucault furioso, nenhum d’elles
-justo, nem sequer francez: a filosofia não anda sem os filosofos, e todos
-sabem como os dados a esse triste officio, são pelo demais almas seccas
-e incapazes de avaliar branduras, entendimentos sem olhos de imaginação,
-unicos proprios para julgar da verdadeira belleza; homens emfim
-eremiticos, rusticos e ignorantes no meio da sociedade; e para remate de
-suspeição, ja alongados pelo inverno da vida: da-se á filosofia o que as
-mulheres ja não querem.
-
-A poesia não tem sido menos descomedida: a poesia, que d’ellas e para
-ellas nasceo, cujas Divindades forão com razão pelos antigos fabuladas em
-fórma feminil, como as Graças, como os Genios de tudo quanto ha amavel na
-natureza, a poesia, a seu máo grado, lhes tem sido rebelde todas quantas
-vezes os poetas, por de sobejo amantes e zelosos, precizárão desabafar
-desgraças verdadeiras ou fantásticas: a lira acostumada a lhes entoar
-seraficamente não louvores senão hinos, resoou execrações, ás quaes
-respondêrão numerosos echos; porque onde o numero dos ingratos e indignos
-era grande, não podia o dos maltratados e queixosos ser pequeno: e d’ahi
-nascêrão essas civis guerras da literatura a favor e contra o sexo,
-guerras batalhadas nas salas e saráos, nos passeios em romagens, nas
-merendas das comadres e nas academias, desde o Japão até Portugal, desde
-os serões da arca diluviana até os nossos dias, em que o amor cedeo á
-política, e as questões das mulheres ás questões dos ministerios: _Factus
-est repente de cœlo sonus, tamquam advenientis spiritus vehementer_....
-Ahi vinha ja querendo-se intrometter o meu demonio meridiano: ápage!
-
-Para as grandes pelejas de que fallava, se despejárão todos os arsenaes
-da mística theologia, da methafísica, da historia sagrada e profana, das
-fabulas e anecdotas, da fisiologia e novellas. Ficou largamente juncado o
-campo de cadaveres em folio, em quarto, em outavo, em doze, em dezeseis,
-em trinta e dois, em sessenta e quatro; de pergaminho, de marroquim, de
-seda, de taboa, de papelão, de carneira, de papel: defuntos quasi todos
-sem amenta, e cujos nomes, se os houvesse de compilar, encherião maior
-livro do que este. Depois do derramamento de tantos rios de tinta, ainda
-pende a mesma questão; ainda até ao fim do mundo se tem de trazer para
-ella couzas que pareção novas; e as cinzas de Lucrecia, Dido, Phryne,
-Sapho, Aspasia, Arria, Cornelia, Osmia, Heloiza; Christina, Catharina,
-Maria Thereza; as cinzas das que habitárão cazaes, harens, palacios,
-mosteiros; as cinzas de Ninivitas, Gomorritas, Babilonicas, Espartanas,
-Atticas, Romanas, Africanas, Botecudas, Amazonas bellicosas, Indicas
-Bailladeiras, Viuvas Indostanicas, continuárão a ser revolvidas, pizadas
-e adoradas por modos sempre differentes, e quasi sempre cegamente, até
-á consummação dos seculos. A mulher fisica principia a ser conhecida, a
-mulher intellétual sê-lo-ha, a mulher moral he o infinito.
-
-A mocidade, quadra da vida em que reinão os mais encontrados ventos, em
-obras a maior vassalla e tributária do sexo, he, fallando, escrevendo,
-e talvez pensando, a sua maior detrátora. Uma conversação de mancebos,
-embora amantes, não se detem senão em rebaixar o merito das mulheres:
-nascidos os disséreis das pedras de Deucalião e criados ás tetas das
-lobas. Qual pode ser a causa d’esta mais que montezinha ferocidade?
-Será inveja á superioridade modesta? será despeito de vencidos? não;
-essas vitorias, e ainda essas superioridades em virtudes, que não são
-as distintivas do nosso sexo, facilmente se perdoão. He a causa o mesmo
-natural instinto, que faz que os soldados em tempo de guerra, seroando
-entre as armas á fogueira ociosa do seu rancho, encareção as derrotas
-do inimigo, e lhe assaquem fraquezas que não tem, para a si proprios
-accrescentarem animos e determinação para as futuras pelejas.
-
-Facil he carecer das loucuras da idade que ja não temos, ou que ainda
-não temos; blazona-se d’isso, mas não he virtude: carecer porem dos
-vicios proprios dos nossos annos seria virtude, mas tão rara he, que o
-despossui-la deve merecer vénia dos sizudos. Era eu em toda a fôrça de
-minha adolescencia, quando entre coetâneos e a seu contento, cantava em
-meus versos destinados os fracos e imperfeições de algumas mulheres,
-como fracos e imperfeições de todas ou da maior parte. Da falsidade
-que n’isso havia me corro, mas muito mais do pouco delicado tom do meu
-cantar, porque se me figura agora delito ainda muito mais grave, do
-que attribuir-lhes defeitos, o pintar-lhos inamavelmente: a graça he
-o seu primeiro mérito, injuria-las graciosamente ainda não he de todo
-injuria-las. De muita nuvem se desaffronta, e de mui grande carga respira
-um coração confessando suas culpas, mormente quando pelas confessar
-se torna a entrar absolto e regenerado na estima e benevolencia das
-dominadoras do mundo: quasi se folga, como me está succedendo, de ter
-tido a culpa, para merecer a vénia e saborear a reconciliação.
-
-Transfuga dos arraiaes dos levantados, ás trincheiras d’ellas me
-recolho, não só com as armas com que as guerriei, para as defender, mas
-com uma bandeira para chamamento e reunião de outros. Ressuscitaria,
-se podesse, para o meu novo campo todos os bem nascidos espiritos das
-idades cavalleiras e cortezes, para procurarmos salvar da ultima ruina
-o feminil imperio, que de dia para dia vai sendo entrado, talado e
-engolido da Política; fero monstro em que tão mal assenta feminino! E se
-o conseguissemos, se os moços que deixárão os affétos pelos debates, as
-sociedades pelos _clubs_, os versos e cartas apaixonadas pelos jornaes
-frios e praguentos, quizessem volver a seu natural officio de amar, de
-agradar e divertir-se, ¡como se não amaciaria esta bruteza quasi, cínica
-de nosso tempo illuminado, em que se não sabe ler! A propria Liberdade
-lucraria, porque os seus nervos e verdadeiros espiritos vitaes não são
-outros senão as virtudes e as bondades: ¿e quem como as mulheres, nos
-poderia ainda attrair da praça onde se briga, odêa e persegue, para a
-casa onde se quer bem e se folga, para a cosa onde até á ultima velhice
-nos educâmos, para a casa onde de bondades e virtudes nos dão ellas a
-todos os momentos exemplos vivos e formosissimos? _Tellus, et domus, et
-placens uxor!_ Oh se eu podesse mostrar este meu pensamento, como me
-está florejando na alma! dizer com palavras a mulher como a sei no meu
-coração!... mas feminina he a mão com que escrevo, ¿como dezenharia ella
-o seu retrato?
-
-
-
-
-_Pag. 261._
-
-FIM DA FESTA DE MAIO.
-
-
-Se o fim de qualquer obra he a sua coroa, custará a achar obra tão mal
-coroada como esta _Primavera_. Dos quatro Poemas he a _Festa de Maio_
-o ínfimo, não contribuindo pouco para isso o seu estirado comprimento:
-e da _Festa de Maio_ a ínfima parte he sem nenhuma dúvida a segunda e
-última. Boa e mui fertil era a idea primitiva, na qual, mas só na qual,
-mui casualmente me encontrára com o allemão Gerstenberg no dithirambo
-que traz titulo _Chipre_. Desenvolveo elle a sua, pôsto que em prosa,
-como poeta mui valente: derramei eu, e enfraqueci a minha em pobrissimos
-versos (era tempo que na maior parte dos dias compunha trezentos e mais)
-que bem podérão, sem detrimento de pensamentos, ser reduzidos ao terço
-do seu numero. Ja poderei parecer importuno com tanto repetir confissão
-das minhas faltas; mas antes isso, do que se diga que eu as córo ou
-tapo, ou com tantos annos ainda não caí em as conhecer cabalmente. Quem
-a este meu cortar pelas proprias roupas chamasse affétação, muito se
-enganára comigo: censuro-me, não para atalhar alhêas censuras; menos
-para provocar defezas aos que sempre folgão, quer em bem quer em mal,
-de encontrar as opiniões dos que escrevem; mas censuro-me e em todas
-minhas couzas marco seu preço, para que os agora principiantes lá ao
-deante se não queixem de mim, como eu podéra agora queixar-me de outros,
-com cujos livros me criei. Consciencia e Verdade, ainda em mesquinhas
-letras, devem de ser escrupulosamente servidas: tem uma e outra alguma
-couza de tão divinas, que por mais dolorosos sacrificios que de nós
-lhes façamos, no-los pagão com íntima satisfação. Certo he que fazendo
-o que eu faço, se corre perigo de vir a um grande dissabor, como he,
-depois de sinceramente confessados os defeitos, saírem os nescios na
-arte de criticar, e que nunca uma só linha escrevêrão, aproveitarem-se
-cobardemente de taes revelações, vozea-las como descobrimentos seus, e
-vingando-se de sua propria esterilidade, triunfar miseravelmente dos
-descuidos, sem nenhuma menção das boas partes. Ja isso por mim passou
-depois que dissertei ácerca da invenção da _Noite do Castello_. Onde tal
-se escreveo, quem o escreveo, e como o escreveo não o direi, que não
-quero em livros meus andar carreando dementes para a posteridade, se he
-que meus livros tem de la chegar, como cá chegárão alguns bem ruins dos
-tempos atraz. E a final, que valem semelhantes pregoẽs e taes pregoeiros,
-comparados com as suas duas maiores inimigas que são a verdade e a
-consciencia? podéra accrescentar a vergonha. Em meu conceito nada. Por
-tanto sigão elles por seu caminho, onde se afogão em lodo, e todos lhes
-cospem na face; e eu, que nem sequer os tenho em assaz de conta para os
-odiar, continue o dar documentos do unico merito de que me prézo, que he
-a candura. Para dar culto á Verdade e á Consciencia, não sacrificarei
-alhêas famas, que me não pertencem, mas pela minha rasgarei afoito:
-far-lhes-hei de meu sujeito intellétual, o que de seus corpos diz Fernão
-Mendes que fazião la em Tinagoogoo certos penitentes, que em procissões
-públicas se hião espedaçando ante os carros triunfaes dos seus idolos,
-e por fim se arremessavão por deante das rodas, para serem talhados e
-esmagados: _a que toda a gente_, como refere o bom perigrino, _com uma
-grande grita dezia: pachiloo a furão; que quer dizer: a minha alma com a
-tua. E decendo logo de cima do carro um sacerdote ... se chegava áquelles
-bemaventurados ou malaventurados ... e ajuntando os pedaços e as cabeças
-... os mostravão ao povo de cima do mais alto sobrado do carro onde hia
-o idolo, dezendo n’um tom muito sentido:_ “_Rogai peccadores todos a
-Deos, que vos faça dignos de serdes santos como este que agora morreo em
-sacrificio de cheiro suave._”
-
-FIM.
-
-
-
-
-MAIS PRIMAVERA.
-
-
-
-
-ADVERTENCIA.
-
-
-Os trez seguintes Artigos vem, _mutatis mutandis_, trasladados da _Guarda
-Avançada_, Jornal campeão da CARTA e da RAINHA, como todos os d’esse
-tempo, sem excétuar um unico; Jornal exagerado, e muitas vezes injusto
-sem querer, como o serão sempre os redigidos por almas novas e ardentes,
-sinceras e poeticas, inexpertas e temerarias, que presumem que uma
-revolução póde realizar os filantrópicos sonhos de um solitario; Jornal
-emfim de que eu fui collaborador, quando vivia para a política, ainda que
-não da política, e do qual perante minha consciencia me recordo com pezar
-mas sem peijo, porque talvez fez males e grandes males, não aspirando
-senão ao bem. Tanto he verdade, que só a moderação he capaz de dar frutos
-abençoados! Relêa-se o meu Prologo do _Tributo Portuguez_. Aqui não quero
-accrescentar mais nada sobre materias, sim importantissimas, mas que eu
-ja dou todas por um malmequerzinho dos campos. — Sáem pois os Artigos
-substancialmente os mesmos. Pena será, se passado agora tanto tempo
-depois de escritos, os que por la estão espectadores das couzas públicas
-os acharem muito mais applicaveis aos presentes dias; e ainda maior
-lástima, se para o deante não vierem a perder boa parte de sua verdade.
-
-Remato com o louvor, que no Prologo deixei promettido, de meu mestre e
-amigo o Snr. Antonio Ribeiro dos Santos: fragmento copiado do _Num. 2_ do
-_Jornal dos Amigos das Letras_. Se a alguem parecer que não cáe este sob
-o titulo de _Primavera_, paciencia; recebão-no como Nota, agazalhem-no
-como filho de gratidão. Para mim recende elle muita primavera de
-puericia, e de um jardim das Musas.
-
-
-
-
-MARÇO
-
-(PRINCÍPIO DA PRIMAVERA)
-
-
-Eis aqui os primeiros dias da graciosa estação. Das flores lhe chamárão
-os poetas; melhor podérão chamar-lhe flor do anno. A terra, como viuva
-ainda verde que se enfeita para novas bodas, a terra pelo sol repassada
-de amorosa quentura, vendo-o volver a afaga-la, depois de lhe haver por
-tanto tempo fugido, arrêa-se de todas suas galas, esperançosa sorrí por
-entre a sua grinalda florída, embebe-se em perfumes, acerca-se de musicas
-voluptuosas, e suspira brandamente dentro nos arvoredos recem vestidos,
-nos valles alcatifados, pelas margens dos rios outra vez serenos. Com
-razão foi a Primavera consagrada dos antigos ás Musas e Graças: com razão
-se escolhião as suas vésperas para o Pontifice Maximo accender o novo
-fogo, que devia durar todo o anno: com razão os pais de nossa lingua
-derão a esta parte do anno um nome feminino, e os pintores apparencias
-de formosa moça; emquanto Estio, Outono e Inverno pela aspereza, pela
-fôrça, pela gravidade, pertencião a outro sexo. Cada fonte se aliza em
-um espelho; cada pedra se veste em assento aveludado; cada haste nua se
-desaperta n’um ramalhete: tornão-se os bosques outras tantas republicas
-populosas, cujos cidadãos, livres como as virações, voão, cantão,
-brincão, acaricião-se, desposão-se, educão a sua prole bafejada do ceo,
-e parecem não respirar senão o prazer da independencia, da ternura e da
-melodia. A natureza revoca á vida innumeraveis especies de animaes de que
-o Inverno só continha o germen; ás outras infunde, como aos passaros,
-um contentamento, uma ligeireza, uma attráção, que o Inverno lhes havia
-roubado ou amortecido. Do ceo chove fecundidade sôbre tudo que he vivo;
-e tudo o que he vivo sáe trajado de festa, e por toda a parte encontra
-mesa que Deos lhe assoalha, carregada de sua abundancia com luxo,
-magnificencia e formusura.
-
-A humana especie não podia em tão geral favor ser esquecida, antes foi
-o seu quinhão de todos o mais largo. O amor, que para nós não tem uma
-estação exclusiva, n’esta entretanto se nos desenvolve com recrescida
-atividade: he porque o proprio ar, empregnado de elementos vitaes, nos
-está coando aos peitos uma extraordinaria energia: he porque tudo em
-de redor exemplos são que nos cativão: he porque o alvoroço e festa do
-universo convidão o coração a gozar: he porque ao florir da rosa dos
-jardins, muita e muita rosa esmorecida se reanima nas faces da belleza:
-he porque a voz da mulher então sáe, não sei como, ainda mais doce; e
-tanto ellas mesmas sem o saber o sentem, que em toda a parte em que as
-horas e circunstancias do seu canto não andão assentadas nas tarifas da
-moda, insensivelmente se achão a cantar, e este novo attrátivo parece
-n’ellas uma necessidade, como he nas aves da primavera. Dir-se-hia que
-a natureza nos manda as flores nos dias em que o amor nos instiga a
-offerecê-las.
-
-Mas os feitiços da Primavera não se limitão nos da recreação e amor.
-Um medico vos dirá que he ella a estação da saude; um sabio a do vigor
-mental; um navegante a do princípio de confiança nos seus mares: o
-artífice a saúda como a que abre a porta a longos dias; o pastor como a
-mãi da abundancia; o agrícola vê as esperanças do anno desparzidas por
-suas terras, por suas vinhas, por seus pomares. Ah! só os homens das
-cidades, tristemente condenados á fadiga e ao luxo, quasi não encontrão a
-primavera no seu anno! Para esses reduz-se a mais algumas horas de luz,
-e a uma pouca mais serenidade em um ceo sem horizontes. Se ao menos se
-podesse esta serenidade reflétir nas nossas almas!... mas os redemoinhos
-das novidades, os raios das intrigas ambiciosas, o frio do desalento
-e carregadas nuvens ao longe esterilizão tudo, e se uma ou outra flor
-de esperança nos desabrocha a medo, lá está logo a reflexão, filha do
-conhecimento dos homens, que a faz com um sôpro desapparecer. O anno dos
-nossos destinos teve um inverno bem longo e rigoroso: n’elle sulcámos
-a terra para semear liberdade e ventura, adubámo-la com o nosso sangue
-e corpos de nossos irmãos, regámo-la com o nosso suor e lágrimas; e
-agora que nós e nossos filhos esperavamos ao menos a florescencia que
-nos augurasse frutos para o futuro, a Deos approuve de outro modo, e uma
-torrente de iniquidades, que não quer parar, continúa a assolar a terra
-de nossos avós.
-
-
-
-
-ABRIL
-
-
-Este mez, assim chamado por abrir o seio da terra á fecundidade;
-consagrado desde a infancia de Roma á Deoza da formosura, á Mãi das
-Graças, Amores, e Jogos, he o primeiro que ouza, por debaixo ainda das
-últimas nuvens chuvosas do inverno, sair e folgar com seu manto verde, e
-bordado de flores. O dia da sua entrada era para os nossos antepassados
-uma festa popular, menos estrepitosa que o Carnaval, de que parecia
-imitação, mas tambem mais innocente e serena. Ignoro se esse costume
-o herdárão elles de nações mais antigas, com quanto dos Romanos o não
-houvessem, de quem tantos outros lhes vierão. Tão pouco me recordo de
-haver lido alguma origem historica aos brinquedos rituaes do primeiro de
-Abril; mas sabido he que elles existírão em nossa terra, e inda hoje se
-lhes conservão os restos, mormente pelas Provincias. O dinheiro pregado
-nas ruas, as cartas, e prezentes de lôgro, a pedra que chamavão das
-agulhas, a fôrca de Judas, e outras quejandas bagatelas para rir, estão
-entretendo n’esta hora bastantes dos nossos aldeões do norte.
-
-As lembranças velhas tem para mim muito grande saudade, e doçura; doe-me
-o coração quando vejo ir-se perdendo estas seculares tradições que a
-ninguem fazião mal, ainda que nascidas em berço de superstição, e que
-de bom tinhão o transportar-nos a tempos sabidos, e remotos, ou a tempos
-mais remotos ainda, e ignorados. E que he o que as apaga, e fica em seu
-lugar? odios, pobreza, e desgraças. Oh! aonde estará um poeta amigo dos
-serões e da innocencia, que se apresse em nos escrever os Fastos do
-nosso bom Portugal? No meio da confusão desconsolada do presente, nós
-beijariamos essa obra como santa reliquia em terra de infieis: veriamos
-um iris vão mas brilhante, entre nuvens de tormenta. Para excitar
-algum bom engenho a no-lo dar, he que eu coméço, e continuarei sempre
-a recordar nos seus dias proprios as nossas antiguãlhas: o que farei
-com muita avidez, porque d’aqui a alguns annos, o investiga-las será
-ja tarde. Assim os pintores Italianos se deleitão copiando os restos
-amortecidos das pinturas a fresco que sobre-vivem ao grande Imperio,
-e os antiquarios trasladão avidamente os enrolados livros das cidades
-soterradas, antes que de todo se desfação em pó.
-
-
-
-
-MAIO.
-
-
-He a apparição d’este mez uma festa da natureza, em que sempre os homens
-se alegrárão: quizeramos poder tributar-lhe algumas flores pelas tantas
-que nos elle concede. Não teçamos o seu encomio d’aquillo que sendo
-sensivel a todos não carece de ser descrito. Zéfiros e rosas, rolas e
-rouxinoes, abelhas e borboletas, a terra toda verde, o ceo todo azul, as
-noites começando a fugir como envergonhadas de esconder as alegrias da
-natureza, objétos são que ainda que desde a origem do mundo se apresentem
-sempre novos, já se tornárão lugares communs nas descrições da poesia.
-Voltemo-nos para as recordações; embalemos e adormeçamos com ellas por
-um pouco o espirito martirisado dos absurdos e crueldades d’estes máos
-tempos, em que ja se não crião fabulas risonhas e innocentes, coloridas
-pela imaginação, animadas pelo amor.
-
-Forão os homens antigos os que idolatras da concordia, para melhor a
-insinuarem á terra, collocárão nos astros a sua imagem brilhante, e ao
-signo de Maio chamarão o signo dos Gémeos. Elles forão os que sensiveis
-aos encantos das Artes, consagrarão este mez a um Deos, que vivificando
-a natureza pela luz e calor, presidia com a Lira na mão aos prestigiosos
-artificios que a embellezão. Almas petrificadas ha ahi, para quem estas
-saudades do mundo antigo são frivolas, comparadas com um artigo de
-gazeta; para nós he delicioso andar mergulhando pelo oceano dos seculos,
-e não voltar a assentar-nos na nossa Ilhota escabrosa e esteril, senão
-carregados dos coraes, das pérolas, das riquezas formosissimas, que se cá
-não produzem. O fundador de Roma dedicou aos mancebos (_Juvenes_) o mez
-de Junho; era essa a idade que lhe fazia ganhar vitorias, mas ja primeiro
-havia consagrado o Maio aos velhos (_Majores_), porque feroz como era,
-Romulo experimentava o afféto que nos attráe para com o antigo. Passemos
-por alto Festas misteriosas da Deoza Bona, celebradas pelas Romanas no
-primeiro de Maio, em todo o segredo dos Penates e sem testemunha de
-varão; visitas das Vestaes ao Pontifice Maximo e principaes Magistrados
-da Republica; contemplemos a expiação dos Lémures, pois que usos nossos
-me parecem ter d’ahi recebido origem.
-
-Á meia noite levantava-se o pai de familias, hia-se descalço, calado, e
-chêo de terror santo, á fonte, dando por todo o caminho amiudados estalos
-com os dedos para afugentar os genios máos. Lavava trez vezes as mãos,
-e tornando-se para casa, vinha atirando uma a uma, por cima da cabeça e
-para traz de si, favas negras, de que trazia chêa a boca, e articulando
-taes palavras—_com estas favas me resgato a mim e aos meus_:—o que por
-nove vezes repetia, sem olhar para traz, para não espantar o espétro
-que vinha apanhando as favas negras. Tomava agua por uma ou duas vezes,
-batia n’um vaso de bronze, e para conjurar a sombra a lhe largar a casa,
-por nove vezes repetia—_Sahi, ó manes paternos_.—Eis provavelmente
-d’onde provierão estes sustos vagos que ainda se dão a sentir aos homens
-rusticos no princípio de Maio; este uso de se repartirem e comerem
-castanhas seccas para evitar que o Maio se apodere de nós. A imaginação
-do bom povo perdeo de vista essas larvas, mas o medo que ellas produzírão
-lhe ficou: he uma especie de moeda, que safada como está de passar de
-mãos em mãos, ainda conserva a sua valia.
-
-Outros costumes de Maio tem o nosso Portugal, a que folgáramos que
-alguem escavasse e descobrisse a raiz, sendo certo que na historia a
-devem ter. O Maio pequenino, que seguido de todas as crianças do bairro,
-corre enfeitado de flores, as ruas da cidade, ao som de um cantar antigo
-e uniforme; aquellas mimosas Maias tão arraiadas e donosas, que á orla
-dos caminhos se encontrão comprimentando os passageiros; aquell’outro
-estilo, ja talvez hoje passado, de se deitarem n’um mesmo leito um casal
-de creanças innocentes, para se lhes cantar em roda um como epithalamio,
-ou trova de suas bodas; os descantes amorosos dados com a viola n’esta
-occasião pelos aldeões ás suas escolhidas; não provirá tudo isto de
-alguma ja perdida lembrança de cultos da Deoza Maia? E a usança de
-ornar com flores Maias as portas e interior das casas, não será reflexo
-distante dos festejos Romanos á Deoza Bona?
-
-A religião, que para si tomou ornato de tantas joias ao Paganismo, não
-se desdenhou tambem de perfilhar este mez. Em muitas freguezias, pelas
-nossas provincias do norte, o bom Parocho vai benzer no princípio de Maio
-a bandeja de rosas que entre os devotos se distribuem e se commungão,
-porque esta flor abençoada traz felicidade.—Vem depois aquellas tão
-esperançosas, tão cantadas e tão sabidas Ladainhas de Maio.—Hoje os
-camponezes de França vão plantar o seu Maio á porta das pessoas honradas
-da sua freguezia: os Inglezes renovão de certo modo as antigas _Vigilias
-de Venus_: os Gregos, como se os seus poetas d’outro tempo os inspirassem
-ainda, e a era das Elegias tornasse a reviver, vão descantar amores e
-pendurar grinaldas aos umbraes das suas inclinações: e os moradores de
-Roma, segundo nos foi dito por quem lá foi a essa terra de saudades,
-ainda agora se reunem na fonte de Egeria a respirar as delicias da
-natureza, debaixo d’aquelle ceo de tanto amor, que não a pensar em Numa e
-na grandeza antiga dos Romanos, de que a elles só veio em herança a terra
-coberta de muitas ruinas.
-
-¿Para que servem todas estas memorias, nos estão perguntando os
-insaciaveis de Politica? e nós não lhes sabemos responder senão que
-a nós estes pensamentos nos fazem muito bem, e que aos amigos de
-passatempos innocentes se não ha de prohibir o que a ninguem faz mal.
-Deixai-nos ser algum dia do anno semi-pagãos. São as superstições da
-Politica ambiciosa as que empecem á felicidade, mas estes graciosos
-prejuisos de nossos pais a nenhuma couza do mundo danão. E de mais,
-se havemos de dizer toda a verdade, a fé, que a estes pobres erros
-acompanha, costuma trazer comsigo muita piedade religiosa, e n’ella
-alguma doçura moral, que nem sempre vai por onde vai a desenganada
-Filosofia. Ditoso d’aquelle engenho que podesse trazer outra vez ao
-mundo a innocencia que nos lá ficou no paiz das fabulas! mas interromper
-um sonho de poesia quando se julga que a felicidade vem apoz os nossos
-passos, voltarmo-nos, como Orfeo, para a abraçar, e vermo-la fugir e
-desapparecer n’um ai, e um mundo de realidades dolorosas estender-se
-immenso deante de nós, oh! isto he muito triste!
-
-
-
-
-_ÁCERCA DA PESSOA DO Sr. Antonio Ribeiro dos Santos._
-
-
-Pôsto que o escrever de Varão tão conhecido dentro e fóra d’este
-Reino, qual foi o Sr. Antonio Ribeiro dos Santos, já possa a muitos
-parecer escusado, o deixar de o fazer, mais que seja por alto, nem
-a opportunidade da occasião mo consente, nem menos mo consentiria o
-gôsto, que sempre do refrescar essas memorias me resulta; por quanto na
-primavera de minha vida, e primeira manhã de minha poesia, foi que a boa
-de minha fortuna me deu conhecer este Nestor de nossa Literatura, que
-já então, ao cabo da sua longa e proveitosa carreira, ornado de muitos
-méritos de sciencias e virtudes, respeitado e apontado de longe, pouzava
-sereno e magestoso, aguardando pela sua hora, á beira da eternidade.
-
-Que fosse nascido nas terras do Douro, d’onde lhe prouve tomar nome
-de Elpino Duriense; que fizesse com bons mestres seus estudos; que se
-tornasse, lendo na Universidade de Coimbra, um de seus mais lustrosos
-luminares; que na Igreja e no Estado occupasse mui subidos empregos; que
-fosse o amigo e centro de quantos bons engenhos em seu tempo florecerão,
-não faltará quem o escreva entre seus outros muitos louvores. Tão
-pouco me deterei dispartindo entre a Jurisprudencia, a Historia, as
-Antiguidades, a Literatura, e a Poesia o opulentissimo cathalogo de suas
-Obras, cuja maxima, e por ventura optima parte, ainda até agora não viu
-a luz. Não hão de ser mãos tão debeis como as minhas as que revolvão
-tamanhos trofeos, nem em tão pequeno espaço como este coubéra retratar
-completo Homem que abrangeu duas idades, bem fazendo-lhes mutuamente a
-uma pela outra; anticipando em meio do seculo passado o gôsto, o apuro,
-a filosofia d’este nosso; transplantando para o presente o estudo, a
-boa fé, o saber do passado; e legando ao futuro thesouros que andou
-desencantando das antiguidades remotissimas. Menos arremessados são meus
-dezejos, e mais seguros, que só quero levar meus leitores a com este bom
-velho encetarem conhecimento.
-
-Corre a primavera do anno de 1814 ou 15, que eu certo o não sei. A
-morada de Elpino, que em um dos mais desafrontados altos de Lisboa está
-formosamente situada, longe do bolicio, como bem cabia á sua indole
-pacifica e genio estudioso, he um templo de Musas, religiosamente vedado
-aos olhos e vozes de profanos, isto he dos máos e ignorantes, unicos
-de todos os entes para quem sua porta e animo não erão hospedeiros.
-Por aquellas salas, gravemente ataviadas á laia dos nossos antigos, de
-sedas e arrazes, alcatifas, tremós, espaldares e soberbos quadros dos
-mais perigrinos pintores, reina o silencio, e uma lembrança dos antigos
-e abundosos tempos de nossos avós, que tanto conforma com os nobres e
-portuguezes pensamentos de suas poesias, as quaes se raras vezes voão
-sublimes, nunca, nem por sombras, desmentem da boa moral e sã filosofia.
-Aqui o bom Elpino nos recebe cordialmente, a meus irmãos e a mim; os
-filhos do seu amigo são seus amigos, os estudiosos das Musas portuguezas
-e romanas são os seus amores. O ancião, que ainda entre sabios podéra
-ser ouvido como oraculo, remoça-se conversando com meninos, apouca-se
-para que o melhor comprehendão, orna-lhes a moral e o estudo com quantas
-flores sabe; do centro da gloria lhes ensina por onde se abre o caminho
-que para lá conduz; e pelo grande espirito e persuasão com que falla,
-talvez consegue crear algumas vehementes vocações literarias. Outras
-vezes nos convida para a bibliotheca, suas delicias, e nos acompanha
-com a alegria na boca. Os seus olhos, como que ao fim de tanto lêr ja
-quizessem descançar para sempre, não lhe alumião o caminho; e semilhante
-áquelle grande Bardo Ossian, a quem velho e cego, piedosa conduzia a
-moça Malvina para os logares usados de sua inspiração, no hombro de uma
-menina, sua afilhada e leitora, segurava o bom de Elpino uma das mãos,
-emquanto com a outra arrimada a um bordão, palpava o caminho, e se
-ajudava em seu quebrado andar.
-
-Era a bibliotheca o íntimo retiro d’este ermitão do Parnaso, fugida para
-longe das casas, pôsto que tão quietas, e frescamente assentada em meio
-de muitas sombras, verduras e aromas de seu jardim, hortas e pomares.
-Grandissima cópia de livros, longamente procurados e custosamente juntos,
-e entre os quaes se estremavão no numero e riqueza os Gregos, os Romanos,
-e os antigos Portuguezes, alí estavão juntos, entre o susurro estudioso
-das ramas e os cantares descuidosos dos passaros. Um Apollo de marmore
-com a sua lira em punho, parecia estar-se mui bem cabido e contente no
-meio d’aquelle seu alcaçar, cercado de tantos seus cultores, servido por
-tão venerando Sacerdote. Lembranças são estas que trago colhidas de minha
-infancia, e que transplanto para aqui, por não querer que se percão.
-
-Áquelle Homem, n’aquellas tardes, e debaixo d’aquelle této, devo a grande
-veneração que ainda hoje consagro aos meus livros latinos, não poucos
-dos quaes mos deu elle proprio; e tocados de suas mãos poeticas, me
-inspirão ainda agora poesia e virtude, até cerrados, e n’elles confio que
-me hajão de servir de pranchas, com que n’este pélago de freneticas e
-descompostas innovações, me não deixe, como tantos que mais valião do que
-eu, totalmente sossobrar. Nos seus ouvidos indulgentes lançava não só as
-primicias dos meus versos, mas ainda as traças e esperanças de obras que
-borbulhavão de uma seiba virgem de quatorze annos. Escutava elle tudo com
-desvellada benevolencia, umas vezes apontando-me melhores caminhos ou
-mais faceis, outras desviando-me de commettimentos maiores que meus annos
-e forças; agora revelando-me regras, logo insinuando-mas com exemplos,
-com que sempre fiel e muito a ponto lhe acudia a memoria. Não he verdade
-que ha em tudo isto um não sei que, por onde o que o pratíca não póde
-menos ser de um grande homem? Oxalá meus esforços melhor houvessem
-respondido a suas diligencias, ou me não houvesse elle desamparado no
-começo da carreira, para a qual apenas me aparelhou! Sim, porque embora
-me hajão a vaidade, a gratidão péde que eu publique, foi este Pontifice
-das Musas que me iniciou no seu culto, e no seu paternal enthusiasmo
-me disse—Tu serás poeta.—Scena digna de um pincel eloquente: um ancião
-coroado de louros, e cego como Homero, sagrando ao culto da mais bella
-das Artes, um menino cego como elle!
-
-
-
-
-NOTAS
-
-
-[1] Alguma vez publicarei o que acerca d’isto disputamos por Cartas,
-de Lisboa para Coimbra, o Padre José Agostinho de Macedo e eu. Negava
-aquelle escriptor, de incontrastavel talento, que a Poesia Allemã e
-Suissa mais fosse do que a nossa rica em graças naturaes, e amena
-frescura, antes affirmava que a nossa a excedia grandemente. Ou não
-escrevia elle deveras, ou se convenceo do erro, como será de ver das
-Cartas, quando ellas aparecerem. O motivo porque até hoje as tenho dos
-publicos olhos resguardadas, outro não foi senão recêo de que se me
-attribuisse a vãgloria a publicação de uma disputa em que tamanho sujeito
-me cedeo, principalmente sendo notorio que o favor que em seus escritos
-deu ás minhas primeiras tentativas poeticas e infantis, jamais o denegou
-com o andar do tempo, antes o reforçou com mui graciosos louvores.
-
-[2] Conceder-lha-heis, se ja não tiverdes determinado emprega-la em outro
-uso, ou fundar nesse sitio alguma caza de Commissão que nada faça, ou
-algum quartel de guarda que legisle sobre os destinos publicos.
-
-[3] O Livro _Le mie Prigione_, quanto á utilidade prática leva, me
-parece, a palma á _Imitação_ de Kempis. Em Kempis apparece a descrição
-da caridade e piedade, em Silvio a applicação d’ellas aos successos da
-vida. Kempis aconselha, Silvio ensina a perdoar, a amar, e a ser feliz,
-em despeito da fortuna: dá o exemplo d’isso, he elle proprio o exemplo.
-
-[4] Quem bem reparar na justiça rigorosa (de cruel a taxaráõ alguns)
-com que eu proprio trato a minha Musa, perdoar-me-ha quando por amor ás
-nossas letras, aponto um defeito em meu mestre e amigo o Snr. Antonio
-Ribeiro dos Santos. Inda assim, porque me não fique remordendo a
-consciencia, como expiação, e mui suave, porei no fim do volume um penhor
-do meu respeito e grato animo a tão grande varão; capitulo ja impresso no
-_Jornal dos Amigos das Letras_, mas por isso mesmo apenas conhecido.
-
-[5] Meu irmão Augusto Frederico de Castilho.
-
-[6] Meu irmão Adriano Ernesto de Castilho.
-
-[7] As Senhoras Mellos, a quem pertence a Lapa e a Quinta das Canas.
-
-[8] Na _Primavera_ de meu Irmão Augusto Frederico de Castilho ha um lugar
-parallelo, não quanto á expressão, mas quanto ao pensamento principal.
-Releva porem que em duas couzas se advirta: a uma, que nenhum de nós
-foi plagiario, nem o podiamos ser, porque todos compunhamos em segredo;
-a outra, que o passo do poema, em que elle descreve Nize a figurar de
-Primavera, leva grande vantagem de valia a estes versos!
-
-[9] Augusto Frederico de Castilho.
-
-[10] O meu amigo Jose Vitorino Freire Cardozo da Fonseca (_Etmiro_) tinha
-começado em uma sua quinta na Beira um jardim, tal como o descrevo aos
-seguintes versos, e que pretendia consagrar á minha memoria. Mal haja
-aquelle, a quem semelhante penhor de amizade não enternece!
-
-[11] Veja-se a Quarta Edição do Diccionario chamado de Moraes.
-
-[12] Lamartine no Prologo de _Jocelyn_
-
-[13] Em Maio se poem o ponto aos Estudos da Universidade, que eu
-n’aquelles tempos cursava. Só os que por ahi tem passado, podem entender
-o alvoroço com que he recebido.
-
-[14] Antigo nome da Serra de Estrella d’onde nasce o Mondego.
-
-[15] Por esta occazião me importa fazer um annuncio ao Publico. Ei-lo:
-declaro que se esse Jornal inexperadamente acabou, não foi minha a culpa,
-assim como de nenhum dos sócios, mas somente dos acontecimentos, assim
-publicos como privados da Sociedade: com elle nunca tive outras algumas
-relações senão as onerosas e de trabalho, que eu tomava comtudo com muito
-gôsto. Todos os sócios o sabem, mas interessa-me que o saiba toda a
-gente, para me salvar de quaesquer desasizadas reclamações.
-
-[16] Em podendo ser, publicarei um volume de poesias, que lá compuz
-acerca d’aquella bemaventurada solidão, onde annos vivi ignorado e
-contente, na residencia de meu Irmão Augusto Frederico.
-
-[17] Tudo isto, que eu julgava para sempre meu, passou! Aprouve a Deos
-mostrar-me só de relance a felicidade! Pouco mais de dois annos a
-illustre e digna sobrinha de Nicolau Tolentino de Almeida, a Senhora
-D. Maria Izabel de Baenna Coimbra Portugal, se sacrificou toda a
-felicitar-me: o Pai de todo o amor e de toda a virtude a chamou logo
-para o seu seio: era aquelle um Anjo que faltava no ceo. Esta Nota ao
-poema, vai como se achava feita quando ella ja me não escrevia, senão
-a espaços, mas ainda se comprazia de me ouvir dictar. Quando o seu fim
-era ja inevitavel, todos o sabião e talvez ella mesma, e eu contava
-ainda com largos annos de fortuna. O mesmo advirto quanto ás mais Notas
-e accrescentamentos d’este Livro, que tudo estava pronto (faltando só
-algumas poucas notas que não fiz nem ja farei) antes do fatal dia um
-de Fevereiro passado: dois se imprimio erradamente no Post Scriptum do
-Prologo. Se outrem não tivesse conservado essa data, e me não advertisse
-da inexatidão em que mal informado caí, ainda agora a podéra eu ignorar:
-esse dia, as vesperas e os seguintes não tiverão para mim nenhuma ráia
-nem de luz, nem do sôno, nem de alguma outra das couzas que estremão os
-dias.—_12 de Maio de 1837._
-
-
-
-
-INDEX.
-
-
- Pag.
-
- Ante-Prologo 5
-
- Prologo 25
-
- _Post-Scriptum_ 47
-
- Epistola á Primavera 49
-
- Dedicatoria a minha Irmã 51
-
- Duas Palavras de Introdução 53
-
- Epistola 57
-
- O Dia da Primavera Poemetto 75
-
- Dedicatoria a minha Mãi 77
-
- Historia da Festa da Primavera 79
-
- O Dia da Primavera Canto I
- _A Manhã_ 95
-
- O Dia da Primavera Canto II
- _A Tarde_ 111
-
- Notas ao Poemetto antecedente 131
-
- Nota 1.ª (_Elmano e Filinto—versificação
- esdruxola e aguda_ &c.) 131
-
- Nota 2.ª de Augusto Frederico de Castilho 162
-
- Os Cantos de Abril Idillio 167
-
- Dedicatoria a meu Pai 169
-
- Advertencia 171
-
- Os Cantos de Abril 173
-
- Nota ao Idillio (_Excerpto de alguns
- versos da primeira Edição do Idillio,
- rejeitados n’esta segunda_) 186
-
- A Festa de Maio Poemetto 189
-
- Dedicatoria ás Senhoras da Lapa dos
- Esteios 191
-
- Historia da Festa de Maio 193
-
- A Festa de Maio Canto I 199
-
- —— Canto II 225
-
- Notas á Festa de Maio 263
-
- Nota 1.ª (_Com a tradução para latim
- dos amores de Galatea no Cant. 1 da
- Festa de Maio_) 263
-
- Nota 2.ª (_Piedade para com os animaes—alimento
- animal_ &c.) 269
-
- Nota 3.ª (_Em desaggravo das mulheres_) 291
-
- Nota 4.ª (_Sôbre o 2.º Canto da Festa
- de Maio_) 305
-
- Mais Primavera 309
-
- Advertencia 311
-
- Março (_Princípio da Primavera_) 313
-
- Abril 317
-
- Maio 319
-
- Ácerca da Pessoa do Sr. Antonio Ribeiro
- dos Santos 324
-
-FIM
-
-
-
-
-Lista de Assignantes.
-
-
- S. M. F. A RAINHA D. MARIA II.
- S. M. I. A DUQUEZA DE BRAGANÇA.
- S. A. R. O PRINCIPE D. FERNANDO AUGUSTO.
-
- A. A. A. Moreira.
- Ab. M.ᵃ J. Paiva Manso.
- Abrahão Weelhause.
- A. Carneiro.
- Achilles de Pereira.
- A. Eustaquio da Silva.
- Ag.ᵗᵒ de Castro da Gama Lobo.
- —— José Pereira.
- —— Roïz da F. Soares.
- A. J. R. Leitão.
- Albino F. de Figueiredo.
- Conselh.ᵒ Alexandre Alb. de Serpa Pinto. _4 Ex._
- Alexandre Lahmeyer.
- D. Alvaro.
- Amaro Coutinho Pereira.
- Anacleto José da Silva.
- André Joaquim Ramalho.
- —— Perez.
- A. Neves de Sequeira.
- Angelo Augusto Martins.
- D. Anna C. Guimarães.
- —— Ifig. do Valle de S. e Menezes.
- —— Lucinda Mont.ʳᵒ
- —— Ludovina.
- —— Margar.ᵈᵃ Fructuoso de Ar.ᵒ
- —— Victoria da Rocha Torres.
- Anonimo. _2 Exempl._
- Anselmo J.ᵉ Braamcamp.
- Ant.ᵒ Adolfo Ferr.ᵃ Sarmento. _15 Exempl._
- —— Adriano da Mata P.ᵗᵃ
- —— Ag.ᵒ Per.ᵃ Lacerda.
- —— Alves Souto.
- —— Aluisio Jervis d’Atouguia.
- —— Augusto Gonsalves.
- —— B. de Brito e Cunha.
- —— Cardoso e Silva.
- —— C. da Costa e Sousa.
- —— Coelho Bragante.
- —— da Costa Paiva. 130 _Exempl._
- —— Dias d’Azevedo.
- —— —— Monteiro.
- —— —— Rodão.
- —— Diniz Couto Valente
- —— Ezequiel d’Aguiar.
- —— F. Mag.ᵃᵉˢ Coutᵒ
- —— F. Mendonça Arraes.
- —— Frz. Alves Fortuna.
- —— Florencio Reixa.
- —— Fr. Alv. Guimarães.
- —— Freire Castello Br.ᶜᵒ
- —— de Freitas.
- —— Gaud. S.ᵃ Monteiro.
- —— G. Barreto de Pina.
- —— Gomes Lima.
- —— Glz. d’Alm.ᵈᵃ Rino.
- —— Gueifão Bello Per.ᵃ
- —— Guilherme da Costa.
- —— Henriques Doria.
- —— Jacinto Santarem.
- —— Joaquim de Abreu.
- —— Cons.ᵒ Antᵒ Joaq.ᵐ da Costa Carv.ᵒ 6 _Ex._
- —— Joaq.ᵐ Reis Junior.
- —— —— da Silva.
- —— —— Teix.ᵃ S.ᵃ
- —— J. d’Oliveira Lima.
- —— José d’Avila.
- —— J.ᵉ Bot.ᵒ da Cunha.
- —— —— Ferr.ᵃ de Sousa.
- —— —— Glz. Basto.
- —— —— —— Duarte.
- —— —— de Oliveira.
- —— J.ᵉ de Oliveira e S.ᵃ
- —— —— R. Guim.ᵃᵉˢ 3 _Ex._
- —— —— de Sá Camello.
- —— —— da S.ᵃ Milheiros.
- —— —— de Sousa Martins.
- —— —— Teixeira Leal.
- —— —— de Vasc.ᵒˢ 20 _Ex._
- —— Leite Pereira Lobo.
- —— Lopes de C. Alm.ᵈᵃ
- —— Lour. Coelho. 5 Ex.
- —— Luiz Nogᵃ e Freitas.
- —— M.ᵉˡ R. Abranches.
- —— —— Vargas.
- —— M.ᵃ d’Almeida e S.ᵃ
- —— —— de Campos.
- —— —— Ferreira.
- —— —— L. M. Queiroz.
- —— —— Machado.
- —— —— Thovar Lemos.
- —— Martins dos Santos.
- —— de Mello Breyner.
- —— N. Roïz. Cancella.
- —— Nunes dos Reis.
- —— Pedro de Carvalho.
- —— P. X. O. B. Leite.
- —— Pereira de Faria.
- —— Porfirio de Freitas.
- —— Ramos Azev.ᵒ Maia.
- —— Rib. Azev.ᵒ Bastos.
- —— Ribeiro de Faria.
- —— Sald.ᵃ R. Albuq.ᵉ
- —— Samp. X. Casqueiro.
- —— dos Santos Monteiro.
- —— de Sá Per.ᵃ Samp.
- —— da Silva Bastos.
- —— da Silva Leitão.
- —— S.ᵃ Monteiro. 2 _Ex._
- —— Sotero Sz.ᵃ Falcão.
- —— Thomaz Aquino S.ᵃ
- —— Vicente de Sousa.
- —— Vieira de Carvalho.
- A. P. Ardisson.
- A. P. B. de Saldanha.
- A. R. Sealy.
- Assemblea Lisbonense.
- —— Portuense.
- Associação Civilisadora.
- Augusto.
- —— Frederico Ferr.ᵃ
- Dr. Augusto Lavit. 2 _Ex._
- Augusto Maria Dermott.
- —— Victor Sabbo.
- Aureliano J.ᵉ de Moraes.
- Ayres Sá Nogueira. 3 _Ex._
- —— da Silva Coelho.
-
- Balthesar Lopes do Calheiros e Menezes.
- Bandeira—Ex-Governador do Castello. 4 _Ex._
- Barão d’Argamaça.
- —— de Ruivoz.
- Barnabé F. Paula Ataide.
- Bartholomeu dos Martires.
- Bento Alão.
- —— de Almeida.
- —— G. Brito Taborda.
- —— Guilherme Klingleofer. 3 _Exempl._
- —— J.ᵉ Teixeira Penna.
- —— de Moura Portugal.
- —— Pereira.
- Bernardino J.ᵉ dos Santos.
- Bernardo José de Miranda.
- Busch.
-
- Dr. Cabral Teix.ᵃ Moraes.
- Caet.ᵒ Alberto Orlandi.
- —— J.ᵉ Alves d’Araujo.
- —— José M.ᵃ de Sena.
- —— Xavier Diniz.
- C. Almeida.
- Camillo da Silva Ferraz.
- Candido José Roïz Vieira.
- Cap.ᵃᵒ Engenheiro Carv.ᵒ
- Carlos Augusto Poppe.
- —— Gould. 5 _Exempl._
- —— de Sá.
- —— Vieira da Silva.
- Carneiro.
- Castro Almeida.
- C. F. Altavilla.
- Christovão M.ᵃ dos Santos.
- Cipriano A. Rib. Freire.
- Cipriano Dom. Vianna.
- C. Lagrange.
- D. Clara Clorinda Lopes Pereira de Vasconcellos.
- Clem.ᵉ A. O. M. Alm.ᵈᵃ
- —— Augusto Bolonha.
- D. Clementina Adelaide da Silva Monteiro.
- C. Massa.
- C. M. Caula.
- Conde da Cunha.
- —— de Lumiares.
- —— de Mello. 6 _Ex._
- —— de Villa Real.
- Condeça de Belmonte D. Jeronima.
- —— de Mello. 2 _Ex._
- —— de Villa Real.
- Cosme José Dias. 10 _Ex._
-
- Daniel Cesar S.ᵃ Ferraz.
- —— Sotero Caio dos S.ᵗᵒˢ
- D. A. R. Varella.
- David Ubaldo S.ᵃ Leitão.
- Diogo Ant.ᵒ de Sequeira.
- —— Aug. C. Constancio.
- —— P. Mtr.ᵒ Bandeira.
- Domingo Garcia Peres.
- Domingos Fr. Santos Lim.
- —— Monteiro de Albuquerque e Amaral.
- —— Ribeiro de Faria.
- —— —— dos S.ᵗᵒˢ
- Duque da Terceira.
- Duqueza da Terceira.
-
- C.ᵉˡ E. C. C. F. Furtado.
- Eduardo Frederico Lour.ᵒ
- Emilia C. de Figueiredo.
- D. Emilia Martinini.
- Epifanio Fr. de Miranda.
- Ernesto Adolfo de Freitas.
- —— M. V. Montenegro.
- —— José Ferreira.
-
- D. Faustina M.ᵃ das Dominações Simões.
- F. C. de M.
- Feliciano Alm.ᵈᵃ Vidal.
- Fernando Affonso Giraldes de Mello e Sampaio.
- Fernando Theod. Arnaut.
- F. L. Bettencourt.
- Figueiredo. 13 _Exempl._
- Filippe Folque.
- Fortunato José Barreiros.
- —— —— N. M. e Mello.
- D. Francisca de Noronha.
- Fran.ᶜᵒ Abrantes.
- —— Adrião Pereira.
- —— Affonso da Costa Chaves e Mello. 12 _Ex._
- —— Alves Souto.
- —— —— Alm.ᵈᵃ Reixa.
- —— Ant.ᵒ de Pinho.
- —— —— Cerqueira S.ᵃ
- —— —— F. S.ᵃ Ferrão.
- —— —— dos Santos.
- —— de Assis Almeida.
- —— —— —— Alm.ᵈᵃ C.ᵗᵉ Real.
- P. Francisco d’Assis Biga.
- Fran.ᶜᵒ Brito P. Almeida.
- —— Candido Mend.ᵃ
- —— de Castro Freire.
- —— C. Judice Samora.
- —— da Conc.ᵃᵒ Soares.
- —— Dias Brandão.
- —— Eduardo Andrade.
- —— Fabião de Mend.ᶜᵃ
- —— Gaspar Lahmeyer.
- —— Gomes Loureiro.
- —— Joaq.ᵐ da Cunha Travassos Cast.ᵒ Branco.
- —— —— da Fonseca.
- —— —— dos Santos.
- —— J.ᵉ de Freitas.
- —— J.ᵉ de Sousa Nunes.
- —— —— Tavares Junior.
- —— Luiz de Sousa.
- —— da Mãi dos Homens Annes de Carvalho.
- —— M.ᵉˡ C. Pimenta.
- —— —— de Negreiros.
- —— M. Silvr.ᵃ Menezes.
- —— —— de S.ˢᵃ Brandão.
- —— —— de Maris Coelho.
- —— M. Walsh. 4 _Ex._
- —— Nunes da Silva.
- —— Paula Costa Feio.
- —— —— Seg. Lemos.
- —— —— S.ˢᵃ V. Boas.
- —— —— V. Campos.
- —— —— Zuzarte.
- —— P. Taboada Junior.
- —— P.ᵗᵒ de Magalhães.
- —— Raim. d’Andrade.
- —— da Silva Falcão.
- —— Vieira S. Barradas.
- Frederico Aug.ᵗᵒ Martha.
- Fructuoso Dias Mendes.
- —— —— de Paiva Card.ᵒ
- F. Z. Fer.ᵃ d’Ar.ᵒ 5 _Ex._
-
- Dr. G. Centazzi.
- Gabriel Fran.ᶜᵒ Ribeiro.
- —— Lopes de Lima.
- G. A. Pereira de Sousa.
- Gaspar dos Reis e Sousa.
- —— Schindler.
- D. Genoveva Victoria da Rocha Farinho.
- D. Gervasia Joaquina de Sousa Falcão.
- Greg.ᵒ Mag.ᵃᵉˢ Collaço.
- Guilherme Ignacio Basto.
-
- H. D. Wems.
- Henriq. J. Passos Chaves.
- Hermano Estanisláo Orlandi.
- H. Hodgson. 10 _Exempl._
- H. J. Moser.
- H. O. Maya. 2 _Exempl._
- Honorio Ces. Mendonça.
-
- Ignacio Cabral Arez da Silveira Barros.
- Vice Almirante Ignacio da Costa Quintella.
- —— José de Sá.
- —— P. Qt.ᵃ Emaus.
- D. Ignez Raim. Prado.
- D. Ildefonso Olheiro.
- Isidoro H. C. Semmedo.
- Izidro Costa.
-
- Jacinto de Freitas Oliv.ʳᵃ
- —— José de Mattos.
- —— José de Sá Lima.
- —— de Sousa Falcão.
- —— —— —— —— 2 _Exempl._
- Jacomo Pereira de Carv.ᵒ
- J. Bento Pereira.
- J. B. Massa.
- J. B. S. L. de Almeida Garrett.
- J. C. Bastos.
- Jeronimo José da Silva.
- —— Perᵃ Vasconc.ᵒˢ
- —— —— da S.ᵃ Cardoso.
- J. F. Danin.
- J. F. Passos.
- J. F. R. S. de Azevedo.
- J. F. Thomaz.
- J. G. Toussaint.
- J. J. A. Redondo.
- J. J. da C. J.
- J. J. Loureiro.
- J. J. Manitti.
- J. M. Chaves.
- J. M. F. Dias.
- J. M. S. Freire.
- João A. de S.ˢᵃ Queiroga.
- —— A. Lobo de Moira.
- —— Anastacio Simões.
- —— Antonio Biga Nunes.
- —— —— Colasso da S.ᵃ 2 _Exempl._
- —— —— Marques.
- —— —— Pereira.
- —— Bap.ᵗᵃ da Costa.
- —— —— da Cunha Fer.ᵃ
- —— —— e Mafaos.
- —— —— Sabo Junior.
- P.ᵉ João Baptista da S.ᵃ
- João Bpt.ᵃ S.ᵃ Malafaia.
- —— Bento da Costa.
- —— Bonifacio Guimarães.
- D. João da Camara.
- João Coelho de Gibraltar.
- —— —— da Silva.
- —— Dias X. do Loureiro.
- —— Ferr.ᵃ Azev.ᵈᵒ Junior.
- —— —— Camp. 10 _Ex._
- —— —— dos S.ᵗᵒˢ S.ᵃ J.
- P. João Franc.ᵒ B. Lança.
- João Gomes Roldão.
- —— —— dos Santos.
- Dr. João Gonç. Miranda.
- Dr. João Gonç. M. Robalo.
- João Guilherme Caldeira.
- —— Ignacio Curvo.
- —— Januario V. Rezende.
- —— José da Assumpção.
- —— —— Ferr.ᵃ de Sousa.
- —— —— Freitas Aragão.
- —— —— Machado Ferr.ᵃ
- —— Lameira M. V. Lobos.
- —— Lourenço Ferr.ᵃ Braga. 4 _Exempl._
- —— Luiz de Sousa Falcão.
- —— —— Talone.
- —— Manoel de Aral.
- P.ᵉ João Maria Cardeira.
- João Maria Feijó.
- D. João Martins Falcão.
- João da Matta e Silva.
- —— Mend. A. Barbarino.
- —— Neves Gomes Eliseu.
- —— Nogueira Gandra.
- —— Nunes da Silva.
- —— Pedro Coelho.
- —— —— Heitor Alcant.ᵃ
- —— —— Nol. Cunha.
- —— Per.ᵃ Queiroz Basto. 20 _Exempl._
- —— Silva Fonseca.
- —— Procopio Tavares.
- —— Saecadura Botte Corte Real. 2 _Exempl._
- —— da Silva Falcão.
- D. João Silva Pessanha.
- João da Silva Serrão.
- —— de Sousa Falcão.
- —— Vic.ᵗᵉ P.ᵗᵉˡ Mald.ᵈᵒ
- —— de V.ˡᵃ N.ᵛᵃ de Vasc.ˡᵒˢ Correia de Barros.
- Joaq.ᵐ Xavier da Maia.
- —— Ant.ᵒ Aguiar. 5 _Ex._
- —— —— Barbosa Torres.
- —— —— da Costa.
- —— —— da Fonseca.
- —— —— Tenreiro.
- —— —— Vidal da Gama.
- —— Augusto Burlamaqui Marecos.
- —— Barreto de Castilho.
- —— Corrêa Moreira.
- —— Felix Moreira 6 _Ex._
- —— Francisco Danim.
- —— G.ᵐᵉˢ V.ʳᵃ Gaio.
- —— José Bernardes.
- —— —— Costa Macedo.
- —— —— Costa Portugal.
- —— —— da Cunha.
- —— —— Dias Lopes de Vasconcellos. 3 _Exemp._
- —— —— Figueira.
- —— —— Gião.
- —— —— Lobo.
- —— —— Marques Cald.ᵃ
- —— Julio da S.ᵛᵃ Ferraz.
- Cons.ʳᵒ Joaq. Larcher.
- Joaq. Lucio Arbues M.ʳᵃ
- —— das Neves Franco.
- —— Pedro Abreu Lima.
- —— Romão Lob.ᵗᵒ Pires.
- —— da Silva Cordeiro.
- —— da Silva Machado.
- —— Torquato Alvares Ribeiro. _6 Exemp._
- —— Victor S.ᵃ Gosmão.
- —— Urbano de Sampaio.
- D. Joaq.ⁿᵃ Carlota Fons.ᶜᵃ
- Jorge Oom.
- José Anastasio Pereira.
- —— Antonio de Almeida.
- —— —— de Castro.
- —— —— Cob.ʳᵒ d’Azevedo Gentil.
- —— —— Mello Ar.ʲᵒ
- —— —— da Silveira.
- —— —— Soares M.ᵈᵉˢ
- —— d’Ar.ʲᵒ Coutinho V.ⁿᵃ
- —— —— Machado.
- —— Aug.ᵗᵒ Correa Leal.
- —— Bernardino Frazão.
- —— de Brito.
- —— Caetano Rebello.
- —— Candido Alz. Torres Barata Araujo e Lima.
- —— Carlos Cerveira Val.ᵗᵉ
- —— —— da Costa P.ʳᵃ
- —— —— Guimarães.
- B.ᵉˡ José Cesar da Silveira.
- José C. M.
- —— do Coração de Jesus.
- —— Crispim da Cunha.
- —— Ricardo P.ʳᵃ Cabral.
- —— Roïz. da S.ᵃ Vianna.
- —— dos Santos Nazareth.
- —— Servulo Costa e S.ᵃˢ
- —— Silverio da Fonseca.
- —— Silvestre de Andrade.
- —— Sousa Falcão Senior.
- —— —— —— Junior.
- —— Tello Mag.ᵃᵉˢ Collaço.
- —— Vaz Araujo Veiga.
- José Victorino Freire da Fonseca Cardoso.
- —— —— Zuzarte Coelho da Silveira.
- Jovencio Pedroso Oliv.ʳᵃ
- J. Paulo da Silva.
- J. P. N. X. de L. Brito.
- J. P. R. G.
- J. R. Blanco.
- J. R. Manco.
- J. R. Pinto.
-
- K. Pinto.
-
- L. A. M. Brandão.
- L. J. de Gouvea.
- Leandro Capistrano d’Almeida Figueiredo.
- Lourenço de Almeida.
- —— Justiniano Lima.
- —— M. Telles Mattos.
- L. T. H. de Brederode.
- Luciano S. Carv.ᵒ para si e seus amigos 40 _Ex._
- Luiza Mathey.
- Luiz A. Bello Reis Junior.
- —— Antonio de Freitas.
- —— B. Ribeiro Vianna.
- —— Caet.ᵒ Guerra Santos.
- —— C. Alm.ᵈᵃ Botelho.
- —— da Costa Pereira.
- —— —— —— Pinto.
- —— Joaquim de Sampaio.
- —— José da Silva.
- D. Luiz M.ᵃ da Camara.
- Luiz de Mello Breyner.
- —— —— —— Corrêa.
- —— Miguel d’Azevedo.
- —— O. da Costa.
-
- M.ᵉˡ Alves do Rio Junior.
- —— Antonio Rodrigues.
- —— —— Vianna.
- —— Bento Rodrigues.
- D. Manoel da Camara.
- M.ᵉˡ de Castro Pereira.
- —— —— —— e Silva.
- —— Coelho Bragante.
- —— Felix Oliv. Pinheiro.
- —— Ferreira Borges.
- —— Francisco Dias.
- —— —— —— das Neves.
- —— Gonçalves Pombo.
- —— I. Cunha Menezes.
- —— I. Moreira Freire.
- —— Joaq.ᵐ Cardoso Castello Branco. 2 _Ex._
- —— —— Fortes.
- —— —— Freire.
- —— —— Moreira.
- —— —— Pereira Silva.
- —— —— Santiago.
- —— José Cordeiro Galão.
- —— —— Esteves Campos.
- —— —— da Motta.
- —— Maria da Rocha.
- D. M.ᵉˡ M. Sousa Falcão.
- M.ᵉˡ Per.ᵃ Lima Tavares.
- —— Ramos.
- —— Roïz Costa Salgado.
- —— dos Santos.
- —— Thomaz S.ˢᵃ Menezes.
- —— de Vasconcellos.
- —— Urbano.
- Marcellino Ant.ᵒ Moraes.
- D. M.ᵃ B. C. Vilella.
- —— —— C. S.ˢᵃ Falcão.
- —— —— Carlota Vidal Gama Lobo.
- —— —— Carmo Guimarães.
- —— —— C. Guimarães.
- —— —— Clara Braamcamp.
- —— —— F. Paes de Mattos.
- —— —— H. Sousa Falcão.
- —— —— José Ozorio.
- —— —— J. Sanches Brito.
- —— —— Luiza d’Albuquerque. 2 _Exempl._
- —— —— Magdalena Sousa.
- —— —— Manoel Vidal da Gama Lobo.
- —— —— M. Silva Falcão.
- —— —— R. Sousa Falcão Ferreri.
- —— —— Vicencia de Mello.
- —— —— Xavier Falcão.
- D. Margarida Silva Machado Figueiredo.
- D. Marianna C. Ribeiro.
- —— —— G. Pereira de Beça.
- —— —— Noronha.
- —— —— da Silva Machado Figueiredo.
- Marquez de Fronteira.
- —— de Saldanha.
- M. F. da Costa.
- Miguel Ferreira da Costa.
- —— Fran.ᶜᵒ Saldanha.
- —— João Coelho.
- —— Joaquim Pires.
- —— J.ᵉ Okeeffe. 2 _Ex._
- —— M.ᵃ Gomes de Andrade e Leiros.
- M. J. M. Dantas. 2 _Ex._
- M. T. H. de Brederode.
-
- N. H. Klingelhoufer. 3 _Exempl._
- D. Nicasio Canete y Moral.
- Nicoláo Maria Nobre.
- Nicoláo C. P.ᵗᵒ Queiros.
- —— S. James.
- Nuno José Gonçalves.
-
- Pedro A. N. Domingues.
- D. Pedro Cunha Menezes.
- Pedro Jacome de Calheiros e Menezes.
- —— José de Oliveira.
- —— M.ᵃ Costa Almeida.
- —— Paulo Ferr.ᵃ Sousa.
- —— —— Vasconcellos.
- —— P.ᵗᵒ Moraes Sarm.ᵗᵒ
- Bacharel Pedro dos Santos Freire.
- Pedro da Silva Ferraz.
- —— de Sousa Cardoso.
- P. G. Toussaint.
- P. M. Lagan. 4 _Exempl._
- Prior da Magdalena.
- —— de Marv.ᵃ de Sant.ᵉᵐ
- —— do Milagre de Sant.ᵉᵐ
-
- Quintino Teixeira Carv.ᵒ
- D. Quiteria da Silva Machado Figueiredo.
-
- Rafael Antonio de Brito Pimenta d’Almeida.
- —— Archanjo de Carv.ᵒ
- Reis e Irmão.
- Roberto Wanzeller.
- Rodrigo de Azevedo Sousa da Camara.
- —— José Dias Lopes de Vasconcellos.
- —— Limpo Rav.ᶜᵒ Pereira de Lacerda.
- Rosa Coelho de Gibraltar.
- D. Rosa Dioguina Lopes Pereira de Vasconcellos.
-
- Sebastião André Xavier.
- —— Casqueiro Vieira Gago.
- —— de Gargamala.
- —— J. Villaça Gama.
- —— Xavier Botelho.
- Servulo M.ᵃ de Carvalho.
- S. J. de Gouvea.
- Silencio Christão Barros.
- Simplicio Moura Mach.ᵈᵒ
-
- Tertuliano Turibio Lobato Pinto Ferreira.
- D. Ther.ᵃ Hedeviges Leite de Moraes Castilho.
- —— —— Maria Botelho.
- —— —— Miquelina Alves de Sousa.
- —— —— Theodora da Soledade Martins.
- —— —— Xavier Botelho.
- Thomaz Aq.ᵒ S.ˢᵃ 2 _Ex._
- —— Pinto Saavedra.
- —— Rufino Monteiro.
- Thomé A. Frnz. Roxo.
- Torcato Francisco Carn.ʳᵒ
-
- D. Vasco Guterre Cunha.
- Vicente Altavilla.
- —— Pires da Gama.
- D. Vic.ᵗᵉ Segur. Menezes.
- Victorino José Gomes.
- —— Manoel de Oliveira Mascarenhas.
- Visconde do Porto Covo. 2 _Exempl._
- Vital Jorge Maia Canhão.
-
-*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A PRIMAVERA ***
-
-Updated editions will replace the previous one--the old editions will
-be renamed.
-
-Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright
-law means that no one owns a United States copyright in these works,
-so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the
-United States without permission and without paying copyright
-royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part
-of this license, apply to copying and distributing Project
-Gutenberg-tm electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG-tm
-concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark,
-and may not be used if you charge for an eBook, except by following
-the terms of the trademark license, including paying royalties for use
-of the Project Gutenberg trademark. If you do not charge anything for
-copies of this eBook, complying with the trademark license is very
-easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation
-of derivative works, reports, performances and research. Project
-Gutenberg eBooks may be modified and printed and given away--you may
-do practically ANYTHING in the United States with eBooks not protected
-by U.S. copyright law. Redistribution is subject to the trademark
-license, especially commercial redistribution.
-
-START: FULL LICENSE
-
-THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE
-PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK
-
-To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free
-distribution of electronic works, by using or distributing this work
-(or any other work associated in any way with the phrase "Project
-Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full
-Project Gutenberg-tm License available with this file or online at
-www.gutenberg.org/license.
-
-Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project
-Gutenberg-tm electronic works
-
-1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm
-electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to
-and accept all the terms of this license and intellectual property
-(trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all
-the terms of this agreement, you must cease using and return or
-destroy all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your
-possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a
-Project Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound
-by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the
-person or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph
-1.E.8.
-
-1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be
-used on or associated in any way with an electronic work by people who
-agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few
-things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
-even without complying with the full terms of this agreement. See
-paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project
-Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this
-agreement and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm
-electronic works. See paragraph 1.E below.
-
-1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the
-Foundation" or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection
-of Project Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual
-works in the collection are in the public domain in the United
-States. If an individual work is unprotected by copyright law in the
-United States and you are located in the United States, we do not
-claim a right to prevent you from copying, distributing, performing,
-displaying or creating derivative works based on the work as long as
-all references to Project Gutenberg are removed. Of course, we hope
-that you will support the Project Gutenberg-tm mission of promoting
-free access to electronic works by freely sharing Project Gutenberg-tm
-works in compliance with the terms of this agreement for keeping the
-Project Gutenberg-tm name associated with the work. You can easily
-comply with the terms of this agreement by keeping this work in the
-same format with its attached full Project Gutenberg-tm License when
-you share it without charge with others.
-
-1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern
-what you can do with this work. Copyright laws in most countries are
-in a constant state of change. If you are outside the United States,
-check the laws of your country in addition to the terms of this
-agreement before downloading, copying, displaying, performing,
-distributing or creating derivative works based on this work or any
-other Project Gutenberg-tm work. The Foundation makes no
-representations concerning the copyright status of any work in any
-country other than the United States.
-
-1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg:
-
-1.E.1. The following sentence, with active links to, or other
-immediate access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear
-prominently whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work
-on which the phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the
-phrase "Project Gutenberg" is associated) is accessed, displayed,
-performed, viewed, copied or distributed:
-
- This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and
- most other parts of the world at no cost and with almost no
- restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it
- under the terms of the Project Gutenberg License included with this
- eBook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the
- United States, you will have to check the laws of the country where
- you are located before using this eBook.
-
-1.E.2. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is
-derived from texts not protected by U.S. copyright law (does not
-contain a notice indicating that it is posted with permission of the
-copyright holder), the work can be copied and distributed to anyone in
-the United States without paying any fees or charges. If you are
-redistributing or providing access to a work with the phrase "Project
-Gutenberg" associated with or appearing on the work, you must comply
-either with the requirements of paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 or
-obtain permission for the use of the work and the Project Gutenberg-tm
-trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or 1.E.9.
-
-1.E.3. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted
-with the permission of the copyright holder, your use and distribution
-must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any
-additional terms imposed by the copyright holder. Additional terms
-will be linked to the Project Gutenberg-tm License for all works
-posted with the permission of the copyright holder found at the
-beginning of this work.
-
-1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm
-License terms from this work, or any files containing a part of this
-work or any other work associated with Project Gutenberg-tm.
-
-1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this
-electronic work, or any part of this electronic work, without
-prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
-active links or immediate access to the full terms of the Project
-Gutenberg-tm License.
-
-1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary,
-compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including
-any word processing or hypertext form. However, if you provide access
-to or distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format
-other than "Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official
-version posted on the official Project Gutenberg-tm website
-(www.gutenberg.org), you must, at no additional cost, fee or expense
-to the user, provide a copy, a means of exporting a copy, or a means
-of obtaining a copy upon request, of the work in its original "Plain
-Vanilla ASCII" or other form. Any alternate format must include the
-full Project Gutenberg-tm License as specified in paragraph 1.E.1.
-
-1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
-performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works
-unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.
-
-1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing
-access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works
-provided that:
-
-* You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
- the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
- you already use to calculate your applicable taxes. The fee is owed
- to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he has
- agreed to donate royalties under this paragraph to the Project
- Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments must be paid
- within 60 days following each date on which you prepare (or are
- legally required to prepare) your periodic tax returns. Royalty
- payments should be clearly marked as such and sent to the Project
- Gutenberg Literary Archive Foundation at the address specified in
- Section 4, "Information about donations to the Project Gutenberg
- Literary Archive Foundation."
-
-* You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
- you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
- does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
- License. You must require such a user to return or destroy all
- copies of the works possessed in a physical medium and discontinue
- all use of and all access to other copies of Project Gutenberg-tm
- works.
-
-* You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of
- any money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
- electronic work is discovered and reported to you within 90 days of
- receipt of the work.
-
-* You comply with all other terms of this agreement for free
- distribution of Project Gutenberg-tm works.
-
-1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project
-Gutenberg-tm electronic work or group of works on different terms than
-are set forth in this agreement, you must obtain permission in writing
-from the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the manager of
-the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the Foundation as set
-forth in Section 3 below.
-
-1.F.
-
-1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
-effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
-works not protected by U.S. copyright law in creating the Project
-Gutenberg-tm collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm
-electronic works, and the medium on which they may be stored, may
-contain "Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate
-or corrupt data, transcription errors, a copyright or other
-intellectual property infringement, a defective or damaged disk or
-other medium, a computer virus, or computer codes that damage or
-cannot be read by your equipment.
-
-1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
-of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
-Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
-Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
-Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
-liability to you for damages, costs and expenses, including legal
-fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
-LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
-PROVIDED IN PARAGRAPH 1.F.3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
-TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
-LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
-INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
-DAMAGE.
-
-1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a
-defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can
-receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
-written explanation to the person you received the work from. If you
-received the work on a physical medium, you must return the medium
-with your written explanation. The person or entity that provided you
-with the defective work may elect to provide a replacement copy in
-lieu of a refund. If you received the work electronically, the person
-or entity providing it to you may choose to give you a second
-opportunity to receive the work electronically in lieu of a refund. If
-the second copy is also defective, you may demand a refund in writing
-without further opportunities to fix the problem.
-
-1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth
-in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS', WITH NO
-OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT
-LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.
-
-1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied
-warranties or the exclusion or limitation of certain types of
-damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement
-violates the law of the state applicable to this agreement, the
-agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or
-limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or
-unenforceability of any provision of this agreement shall not void the
-remaining provisions.
-
-1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
-trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
-providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in
-accordance with this agreement, and any volunteers associated with the
-production, promotion and distribution of Project Gutenberg-tm
-electronic works, harmless from all liability, costs and expenses,
-including legal fees, that arise directly or indirectly from any of
-the following which you do or cause to occur: (a) distribution of this
-or any Project Gutenberg-tm work, (b) alteration, modification, or
-additions or deletions to any Project Gutenberg-tm work, and (c) any
-Defect you cause.
-
-Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm
-
-Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
-electronic works in formats readable by the widest variety of
-computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It
-exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations
-from people in all walks of life.
-
-Volunteers and financial support to provide volunteers with the
-assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
-goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
-remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
-Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
-and permanent future for Project Gutenberg-tm and future
-generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary
-Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see
-Sections 3 and 4 and the Foundation information page at
-www.gutenberg.org
-
-Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary
-Archive Foundation
-
-The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit
-501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
-state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
-Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
-number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary
-Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by
-U.S. federal laws and your state's laws.
-
-The Foundation's business office is located at 809 North 1500 West,
-Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up
-to date contact information can be found at the Foundation's website
-and official page at www.gutenberg.org/contact
-
-Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
-Literary Archive Foundation
-
-Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without
-widespread public support and donations to carry out its mission of
-increasing the number of public domain and licensed works that can be
-freely distributed in machine-readable form accessible by the widest
-array of equipment including outdated equipment. Many small donations
-($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
-status with the IRS.
-
-The Foundation is committed to complying with the laws regulating
-charities and charitable donations in all 50 states of the United
-States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
-considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
-with these requirements. We do not solicit donations in locations
-where we have not received written confirmation of compliance. To SEND
-DONATIONS or determine the status of compliance for any particular
-state visit www.gutenberg.org/donate
-
-While we cannot and do not solicit contributions from states where we
-have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
-against accepting unsolicited donations from donors in such states who
-approach us with offers to donate.
-
-International donations are gratefully accepted, but we cannot make
-any statements concerning tax treatment of donations received from
-outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
-
-Please check the Project Gutenberg web pages for current donation
-methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
-ways including checks, online payments and credit card donations. To
-donate, please visit: www.gutenberg.org/donate
-
-Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic works
-
-Professor Michael S. Hart was the originator of the Project
-Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be
-freely shared with anyone. For forty years, he produced and
-distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of
-volunteer support.
-
-Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
-editions, all of which are confirmed as not protected by copyright in
-the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not
-necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper
-edition.
-
-Most people start at our website which has the main PG search
-facility: www.gutenberg.org
-
-This website includes information about Project Gutenberg-tm,
-including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
-Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
-subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
diff --git a/old/65021-0.zip b/old/65021-0.zip
deleted file mode 100644
index 7eadc95..0000000
--- a/old/65021-0.zip
+++ /dev/null
Binary files differ
diff --git a/old/65021-h.zip b/old/65021-h.zip
deleted file mode 100644
index a01accc..0000000
--- a/old/65021-h.zip
+++ /dev/null
Binary files differ
diff --git a/old/65021-h/65021-h.htm b/old/65021-h/65021-h.htm
deleted file mode 100644
index ed1fcfa..0000000
--- a/old/65021-h/65021-h.htm
+++ /dev/null
@@ -1,11912 +0,0 @@
-<!DOCTYPE html PUBLIC "-//W3C//DTD XHTML 1.0 Strict//EN"
- "http://www.w3.org/TR/xhtml1/DTD/xhtml1-strict.dtd">
-<html xmlns="http://www.w3.org/1999/xhtml" xml:lang="pt" lang="pt">
- <head>
- <meta http-equiv="Content-Type" content="text/html;charset=utf-8" />
- <meta http-equiv="Content-Style-Type" content="text/css" />
- <title>
- The Project Gutenberg eBook of A Primavera, by Antonio Feliciano de Castilho.
- </title>
-
- <link rel="coverpage" href="images/cover.jpg" />
-
-<style type="text/css">
-
-a {
- text-decoration: none;
-}
-
-body {
- margin-left: 10%;
- margin-right: 10%;
-}
-
-h1,h2,h3,h4 {
- text-align: center;
- clear: both;
-}
-
-.nobreak {
- page-break-before: avoid;
-}
-
-hr.chap {
- margin-top: 2em;
- margin-bottom: 2em;
- clear: both;
- width: 65%;
- margin-left: 17.5%;
- margin-right: 17.5%;
-}
-
-div.chapter {
- page-break-before: always;
-}
-
-ul {
- list-style-type: none;
-}
-
-li {
- margin-top: .5em;
- padding-left: 2em;
- text-indent: -2em;
-}
-
-p {
- margin-top: 0.5em;
- text-align: justify;
- margin-bottom: 0.5em;
- text-indent: 1em;
-}
-
-table {
- margin: 1em auto 1em auto;
- max-width: 35em;
- border-collapse: collapse;
-}
-
-td {
- padding-left: 2.25em;
- padding-right: 0.25em;
- vertical-align: top;
- text-indent: -2em;
-}
-
-.tdl1 {
- padding-left: 4.25em;
-}
-
-.tdl2 {
- padding-left: 6.25em;
-}
-
-.tdpg {
- vertical-align: bottom;
- text-align: right;
-}
-
-.blockquote {
- margin: 1.5em 10%;
-}
-
-.center {
- text-align: center;
- text-indent: 0em;
-}
-
-.footnotes {
- margin-top: 1em;
- border: dashed 1px;
-}
-
-.footnote {
- margin-left: 10%;
- margin-right: 10%;
- font-size: 0.9em;
-}
-
-.footnote .label {
- position: absolute;
- right: 84%;
- text-align: right;
-}
-
-.fnanchor {
- vertical-align: super;
- font-size: .8em;
- text-decoration: none;
-}
-
-.gothic {
- font-family: 'Old English Text MT', 'Old English', serif;
-}
-
-.hanging {
- padding-left: 2em;
- text-indent: -2em;
-}
-
-.larger {
- font-size: 150%;
-}
-
-.noindent {
- text-indent: 0em;
-}
-
-.pagenum {
- position: absolute;
- right: 4%;
- font-size: smaller;
- text-align: right;
- font-style: normal;
-}
-
-.poetry-container {
- text-align: center;
- margin: 1em;
-}
-
-.poetry {
- display: inline-block;
- text-align: left;
-}
-
-.poetry .stanza {
- margin: 1em 0em 1em 0em;
-}
-
-.poetry .verse {
- padding-left: 3em;
-}
-
-.poetry .indent0 {
- text-indent: -3em;
-}
-
-.poetry .indent2 {
- text-indent: -2em;
-}
-
-.poetry .indent4 {
- text-indent: -1em;
-}
-
-.right {
- text-align: right;
-}
-
-.smaller {
- font-size: 80%;
-}
-
-.smcap {
- font-variant: small-caps;
- font-style: normal;
-}
-
-.titlepage {
- text-align: center;
- margin-top: 3em;
- text-indent: 0em;
-}
-
-@media handheld {
-
-.poetry {
- display: block;
- margin-left: 1.5em;
-}
-
-.blockquote {
- margin: 1.5em 5%;
-}
-}
-
- </style>
- </head>
-<body>
-
-<div style='text-align:center; font-size:1.2em; font-weight:bold'>The Project Gutenberg eBook of A Primavera, by Antonio Feliciano de Castilho</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and
-most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions
-whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms
-of the Project Gutenberg License included with this eBook or online
-at <a href="https://www.gutenberg.org">www.gutenberg.org</a>. If you
-are not located in the United States, you will have to check the laws of the
-country where you are located before using this eBook.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin-top:1em; margin-bottom:1em; margin-left:2em; text-indent:-2em'>Title: A Primavera</div>
-
-<div style='display:block; margin-top:1em; margin-bottom:1em; margin-left:2em; text-indent:-2em'>Author: Antonio Feliciano de Castilho</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>Release Date: April 07, 2021 [eBook #65021]</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>Language: Portuguese</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>Character set encoding: UTF-8</div>
-
-<div style='display:block; margin-left:2em; text-indent:-2em'>Produced by: Rita Farinha, Alberto Manuel Brandão Simões and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Books project.)</div>
-
-<div style='margin-top:2em; margin-bottom:4em'>*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A PRIMAVERA ***</div>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_1"></a>[1]</span></p>
-
-<p class="titlepage larger">OBRAS<br />
-<span class="smaller">DE</span><br />
-Antonio Feliciano de Castilho</p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_2"></a>[2]</span></p>
-
-<p><i>Constando-me ter havido quem reimprimisse
-em França, sem licença minha, dois volumes de
-minhas Obras, e sendo isto sobre iniquidade,
-manifesto roubo, declaro que perseguirei em juizo
-com acção de furto, em quanto a nossa Lei
-sobre imprensa não estabelecer outra propria
-para taes casos, a quem quer que, sem minha
-expressa licença, reimprimir esta ou outra qualquer
-Obra minha, ou impressas fóra as introduzir
-e vender neste reino.</i></p>
-
-<p class="right"><i>A. F. de Castilho.</i></p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_3"></a>[3]</span></p>
-
-<h1>A PRIMAVERA</h1>
-
-<p class="center">POR</p>
-
-<p class="center larger"><i>Antonio Feliciano de Castilho</i>,</p>
-
-<p class="hanging"><i>Bacharel Formado em Direito, Socio da Academia
-das Sciencias de Lisboa, da Sociedade
-Juridica e da dos Amigos das Letras da
-mesma Cidade, da Sociedade Literaria Portuense,
-do Instituto Historico de Paris, da
-Academia Real das Sciencias e Bellas Letras
-de Roão.</i></p>
-
-<p class="titlepage"><i>Mais correcta, emendada, e copiosissimamente accrescentada.</i></p>
-
-<p class="titlepage"><span class="gothic">Lisboa.</span><br />
-<span class="smcap">Na Typografia de A.I.S de Bulhões.</span><br />
-<i>Rua do Soccorro de Cima N.º 39. 1.º andar.</i><br />
-1837.</p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_4"></a>[4]</span></p>
-
-<div class="poetry-container">
-<div class="poetry">
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0"><i>Stet quicumque volet potens</i></div>
- <div class="verse indent0"><i>Aulœ culmine lubrico:</i></div>
- <div class="verse indent0"><i>Me dulcis saturet quies;</i></div>
- <div class="verse indent0"><i>Obscuro positus loco</i></div>
- <div class="verse indent0"><i>Leni perfruar otio;</i></div>
- <div class="verse indent0"><i>Nullis nota Quiritibus</i></div>
- <div class="verse indent0"><i>Ætas per tacitum flua</i></div>
- <div class="verse indent0"><i>Sic cum transierint mei</i></div>
- <div class="verse indent0"><i>Nullo cum strepitu dies,</i></div>
- <div class="verse indent0"><i>Plebeius moriar senex.</i></div>
- <div class="verse indent0"><i>Illi mors gravis incubat,</i></div>
- <div class="verse indent0"><i>Qui notus nimis omnibus,</i></div>
- <div class="verse indent0"><i>Ignotus moritur sibi.</i></div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse right"><i>Sen. Thyest. Act. 11.</i></div>
- </div>
-</div>
-</div>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_5"></a>[5]</span></p>
-
-<h2 class="nobreak" id="ANTE-PROLOGO">ANTE-PROLOGO.</h2>
-
-</div>
-
-<p>Bem será para alguns motivo de maravilha,
-e de riso para muitos, a declaração por onde
-me agrada começar este Ante Prologo; e he, que o
-estou principiando, e querendo Deos o levarei
-ao cabo, antes de conhecer a Obra para que
-vai feito. Quatorze annos, e não poucos d’elles
-bem estirados, são hoje discorridos depois de
-impressa, e por tanto segundo meu costume
-aposentada e esquecida, a minha <i>Primavera</i>.
-N’estes quatorze annos, começados a contar
-aos vinte e dois da minha vida, não só se encerrou,
-e desvaneceo aquella melhor, mais
-florída e derramada parte d’ella, que tanto
-discrimina, e afasta o periodo seguinte do anterior,
-senão que ahi se desatou tão desfeito temporal
-de successos estranhos, de terrores e
-calamidades publicas; tantas certezas saírão
-vãs, realisarão-se tantos impossiveis; por tal
-arte se transtornou e renovou ora em bem ora
-em mal a face do nosso Portugal; tão fracas e
-tenues reliquias de um passado, que ainda nós
-os moços alcançámos, subsistem já agora quer
-nas pessoas, quer nas cousas e costumes, e
-emfim por tudo isto nos petreficámos, e envelhecemos
-em tanta maneira, que por mim digo,
-n’estes quatorze annos me parece ter a Fortuna
-desbaratado cabedal de seculos, e o Tempo<span class="pagenum"><a id="Page_6"></a>[6]</span>
-uma larga idade do mundo. Tantos e taes
-annos que da minha Obra me separão, não
-custará muito a crer ma tenhão tornado ao
-cabo tão alhea, como se d’ella só mui por
-longe me houvera susurrado uma leve noticia.
-Esta idea confusa, mas suave e suavissima
-como apagado retrato de antigos amores, como
-lua de estio contemplada em fundo de ermo,
-ou como vista de remotas velas ao coração do
-que alem-mar definha desterrado entre asperezas,
-esta idea toda mansa, toda rosada, toda
-primavera, mais temo perdê-la do que todas as
-minhas outras illusões, se por ventura já hoje
-alguma tenho. Talvez receie, e se receio talvez
-me não falte rasão, que ao reler estes Poemettos,
-nem ache n’elles as côres que os longes
-me figuravão, nem os gostos com que
-os hia não compondo, mas para assim dizer
-colhendo e enramalhetando pelas varzeas e valles
-do Mondego: tanta foi a metamorphose
-que de mim fizerão os livros, as couzas, e a
-idade! Como que tenho uma dolorosa certeza
-de que me acontecerá com isto o que ja me
-succedeo visitando, depois de espaçosissima ausencia,
-as cazas onde a minha primeira infancia
-fôra brincada, amada e perdida: tudo
-achei mesquinho, solitario e quasi mudo, tudo
-me dizia muita saudade e nenhum prazer; cada
-pedra tinha sua historia, mas todas me clamavão
-outros tantos desenganos. Grande differença
-esta entre as nossas proprias antigalhas
-e as do mundo! as do mundo pelo seu mesmo
-misterio nos deleitão, são a primeira pagina<span class="pagenum"><a id="Page_7"></a>[7]</span>
-de um romanse para a imaginação; as nossas pela
-sua certeza nos contristão, e são a pagina ultima
-de uma historia que assaz nos corria formosissima.</p>
-
-<p>Apraz-me por tanto boiar ainda por algumas
-horas ao de cima d’estas fantasias, e antes de
-se me apagarem, se já he que isso tem de
-ser, alegrar com o seu reflexo estas paginas,
-que mal poderáõ ser muitas: sempre he
-cedo para lançar pelas janellas fóra os brinquedos
-de nossa puericia; e mal haja quem o
-faz sem que todo o coração se lhe aperte dentro
-no peito.</p>
-
-<p>Por isto que digo, entenderáõ meus leitores
-o porque, exhausta logo no primeiro anno a
-primeira impressão da <i>Primavera</i>, tantos se
-tem devolvido sem que jamais me deliberasse
-a reimprimi-la. Pelos fins de todos os invernos
-e começos da melhor estação, me era ella de
-todos meus livreiros requerida; por mais de
-uma vez me senti abalado, mas a lembrança
-do meu desencantamento me era sempre esquiva,
-e repugnava-me, como uma certa simonia,
-o arriscar-me a por alguns cruzados
-malbaratar uma dilicia do sanctuario de meu
-animo. N’esta parte não me entenderáõ todos,
-mas os meus intimos confirmarião com juramento
-o que digo. Agora porem que até a
-minha pobre bibliotheca já se ahi vai rareando
-e desfazendo vendida, e me importa pôr entre
-mim e a terra do meu nascimento muita outra<span class="pagenum"><a id="Page_8"></a>[8]</span>
-terra de permeio, e Deos sabe para quanto
-tempo, obedeço aos desejos de muitos dos que
-ainda lem, ao conselho dos amigos, e á lei da
-necessidade. Reverei para a impressão, e perderei
-para mim este livro de saudades, livro
-que só fechado eu poderia ler como me convinha.
-E por quanto, depois de sua leitura talvez
-me desamparasse a vontade de aventurar
-algumas reflexões sobre este genero de poemas,
-fa-las-hei antes, e já aqui; deixando para o
-Prologo as que ácerca da Obra me forem
-por ella mesma suggeridas.</p>
-
-<p>A Poesia campesina, ou segundo vulgarmente
-lhe dão nome, pastoril, com ser de todas
-a mais antiga, nunca em nenhuma parte
-se perdeo, dado em muitas decaisse não raro
-do seu credito e lustre; e segundo todas as
-mostras, deitará ainda até ao fim das idades
-literarias. Sempre moça como a terra sua mãi,
-mansa como os arroios seus irmãos, formosa
-como as flores que lhe guarnecem o chapeo de
-palha, livre e leve como os zefiros pela assomada
-dos montes, alegre, namorada e innocente
-como as aves na madrugada do anno, he de
-ver qual se vai sozinha e vivissima por entre
-tantas couzas mais fortes que morrem; com o
-seu cajado de pastora, segura entre tantos
-inimigos; girando todo o orbe, e por todo elle
-bem vinda; vingando e vencendo todos os seculos;
-dando a alguns d’elles de mais amoravel
-indole a sua propria fórma; e relevando-lhe,
-ainda os mais ferozes e guerreiros,<span class="pagenum"><a id="Page_9"></a>[9]</span>
-que lhes ella misture com a sua frauta
-do serão os himnos da guerra, lhes entreteça
-maliciosa violetas com os louros, e os campos
-que elles a ferro e fogo devastarão os repovoe
-ella de imaginadas verdura, flores e felicidade.</p>
-
-<p>Hum curioso reparo poderáõ ter feito os que
-os fazem no ler poetas, e he, que apenas haverá
-algum dos chamados Epicos, para quem o
-campo e sua vivenda não fosse deleitoso assumpto.
-Compraz-se Homero de travar com
-as façanhas dos heroes toques e pinturas do
-viver natural e primitivo; Virgilio, que ja primeiro
-que se abalançasse ás armas e guerras
-tinha cantado os pastores, e doutrinado os lavradores,
-particularmente se recreia quando no
-meio das batalhas pode a uns e outros mandar
-algumas saudades; nos dois Orlandos e
-em todos os livros de cavallaria, vai igual mistura;
-o mesmo na Jerusalem, cujo autor havia
-escrito o Amintas: e d’entre os nossos,
-para por todos citar um, mas um que por todos
-valha, Camoẽs, não só afamou os Portuguezes
-sujeitadores de elementos e homens, mas
-todo se deleita em conversar os pegureiros e
-campos da nossa graciosa Lusitania, terra cujos
-filhos, se me não engano, são por indole dotados
-destes dois extremos, de brandura e de
-valor, de amor ao obscuro rusticar e ao glorioso
-correr de aventuras e perigos: por onde
-entendo que para muito mais do que são os
-fizera Deos, assim como fizera para muito
-mais do que he o grandioso torrãozinho que
-habitão.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_10"></a>[10]</span></p>
-
-<p>Disse engenho subtil, e bons juizos crêrão,
-que o desejo, ancia e esperança de bem que
-todos temos innatamente, era claro argumento
-de uma vida futura, ja que nesta se nos não
-deparava contentamento: assim tambem dissera
-eu, que este natural e universal gosto á
-poesia amena he um indicio de que, se jamais
-o homem foi homem e ditoso, la nos campos
-o foi; que as plantas d’onde nos brotão sustento
-e recreação, exhalão secretamente
-amor para os seus vizinhos, e que pelos saudosos
-valles das idades patriarchaes, em quanto
-os bosques não caírão para em sua vez se levantarem
-as muralhas, as bençãos do ceo orvalhavão
-muito mais amiude. Alguma couza
-farão para aqui palavras do meu Florian, que
-porque d’elle são as verterei de muito boa mente—“Oh
-se nós podessemos ler em seu original
-texto os bons autores d’essa Allemanha,
-enlevar-nos-hia a tanta singeleza, a
-tanta doçura por onde de todas as outras
-se estremão suas obras! Em conhecer a
-natureza, e especialmente a natureza campezina,
-levão-nos elles uma infinita vantagem:
-amão-na mais deveras, retratão-na
-com tintas mais fieis. Todos nossos poemas
-pastoris nada tem que ver com as meras
-traducções de Gessner. Ninguem jamais
-fecha a Morte de Abel, os Idyllios ou Daphnis,
-sem ja se sentir mais soffrido, mais
-terno, mais mavioso, e porque tudo diga,
-mais virtuoso que antes da lição. Não respira
-senão moral pura e facil, e virtude<span class="pagenum"><a id="Page_11"></a>[11]</span>
-d’aquella que logo vem trazendo bemaventuranças.
-Fosse eu parocho de aldea,
-que sempre á estação da missa havia de ler
-e reler Gessner aos meus fregueses: e por
-certissimo tenho que todos meus aldeões se
-farião probos, todas minhas parochianas
-castas, e ninguem me havia de ao sermão
-adormecer.”—</p>
-
-<p>Isto dizia de Gessner Florian, digno de o
-louvar pelo mui bem que o sabia comprehender
-e seguir. Isto não escrevia eu nem o dizia,
-mas amplamente o sentia n’esse bom tempo
-que ja la vai. Gessner não era para mim um
-nome, senão um individuo presente, um suavissimo
-contubernal; nem ja suas obras me
-erão livros, mas realidade, vida e mundo.—Sei
-que se não leva a bem o muito fallar um individuo
-de si proprio, mormente em publico,
-e mormente ainda quando esse individuo
-he tão mesquinho sujeito como eu: mas de
-que outra couza posso eu escrever? dos outros?
-não os conheço; erudito, não o sou; descubrimentos
-não os fiz, nem ja agora os farei:
-fólgo de espraiar conversa com os meus patricios,
-na falta de melhor assunto, fallo-lhes
-de mim e de meus gostos.—O mais selecto de
-todos elles era pois Gessner, no qual e na escolha
-de Poesias Allemãs por Huber, andou
-por alguns annos cifrada toda minha leitura,
-porque de quantos autores patrios meus conhecidos
-havião escrito e poetado de couzas rusticas,
-nenhum havia que ou por sobejidão de<span class="pagenum"><a id="Page_12"></a>[12]</span>
-engenho e argucia, ou por mal cabida escuridade,
-ou pelo trivial do pensamento e dicção,
-ou pelo desageitado do metro, ou pelo urbano
-artificio do que lhes parecia singeleza, ou
-emfim por um não sei que de mais ou de menos,
-lhe não lançasse lodo e arêa no jardim
-que bem ao meio da alma me havia sido por
-Gessner plantado.<a id="FNanchor_1" href="#Footnote_1" class="fnanchor">[1]</a> Muito aproveitei em tão
-boa escola: como poeta não, que bem o sabem
-meus leitores; como homem sim, que
-disso tive mui cabal e experimentada certeza.
-Minhas nativas propensões beneficas se arraigarão;
-minha interior aspereza, que todos de
-si a tem, se amolleceo; sentia-me palpitar no
-peito um coração da idade de ouro; esvoaçava-me
-na cabeça uma alma inteira de Arcade;
-compunha todo o meu economico futuro de
-uma choupana, um pomarinho, e pombas
-mui brancas e cordeiros mui nedios; em summa,
-se Florian fosse meu parocho, propor-mehia<span class="pagenum"><a id="Page_13"></a>[13]</span>
-nas suas homilias como um santo da sua
-bemaventurança. Assim, e por esse tempo,
-foi a minha <i>Primavera</i> improvisada, e como
-ella as <i>Flores</i> e as <i>Quatro Partes do Dia</i>, Poemas
-que brevemente sairáõ estampados, e
-inteirão com o presente volume o fragil monumentinho
-dos annos, em que fui tal, qual desejava
-permanecer toda a vida.</p>
-
-<p>Passe ainda adeante a sinceridade: com
-vergonha não só minha, mas do tempo em
-que vivo, confesso que d’essa ingenua bondade,
-pela qual eu mesmo a mim me comprazia, o
-de mais (como espirito que era subtilissimo) se
-evaporou; parte se azedou no vaso com as más
-sementes de odio que de fóra lhe lançavão; o
-resto se recozeo e estragou ao fogo das civis
-dissensões: procuro-me e não me acho, ou se
-me acho não me amo. Ainda a minha antiga
-choupana, os cordeiros nedios e as pombas alvissimas
-se me fazem lembrados por uma noite
-de estio, mas riem menos, e não me acenão
-senão fracamente. Tanto vi e vejo de alhêas
-maldades, tanto tem procurado os entes mais
-abjetos e vis amargurar-me, que nem quasi
-na virtude acredito, nem na possibilidade
-de ser feliz: e este estado, se não he de todos
-o mais antipoetico, se na escola romantica pode
-até lograr os foros do <i>bello ideal</i> e ultimo
-sublime, pelo menos he o mais avêsso á filosofia
-e mansidão Gessnerica. Oh quando poderáõ
-os dois monstros, em cujas garras inexpertamente
-caí, quando poderáõ Politica e<span class="pagenum"><a id="Page_14"></a>[14]</span>
-Romantismo dar-me um longe, uma sombra
-dos interiores commodos que me lá ficarão
-com a poesia natural e singela? E igual pergunta
-dolorosa poderia fazer o mundo, a ter
-um coração e uma voz. Ja quanto á Politica
-me calo, que esse voto fiz eu; mas quando
-será que o Romantismo exclusivo e tiranno
-qual se presenta, se gabe de perfumar entendimentos
-para o amor, de reclinar o amor como
-filho nos braços da virtude, e de transformar
-o templo da virtude em caza do contentamento?
-Quando será que outro homem, da
-laia e costumes dos nossos velhos, possa dizer
-na sinceridade da sua alma:—“Se eu fosse
-parocho, leria Byron ou Schiller á estação da
-missa, para tornar castas e probas as minhas
-ovelhas”? Mas todas estas reflexões de nado valem:
-a torrente vai funda e rapida, ninguem,
-e muito menos eu lhe poria dique. E até (que
-tão pouco dou pela minha filosofia) talvez
-que tudo o que por ahi vai, que certamente:
-parece bem triste e bem máo, seja bem necessario
-ao concerto e melhoria do mundo. Não
-digo eu o que as couzas são, sim o que se me
-ellas figurão: não as sentencêo sem appellação;
-na minha primeira instancia as julgo, e
-o que moralmente me parecem isso assento
-com afoita liberdade. Perde ou ganha a humana
-especie em cada vez mais se apartar por
-obra, por palavra, e por pensamento, do rural
-e simples theor de seu primitivo ser? por
-minha experiencia affirmaria que perde, mas
-os sabios que o decidão, e a mim seja-me licito
-pôr duvidas.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_15"></a>[15]</span></p>
-
-<p>Não me intrometterei com o que vai por
-outros reinos; esse uso de qualquer contrabandista
-literario de nunca chegar ás couzas patrias
-sem primeiro haver tocado nas de França
-e Inglaterra, não me quadra a mim, que
-ao menos tenho a sufficiente consciencia e pejo
-para não citar o que mal conheço: em Portugal
-me limito. Somos nós mais felizes ou melhores
-que nossos avós? Certo que não; e tanto,
-que se esses bons e honrados velhos podessem
-ter adivinhado quaes seriamos nós, nós herdeiros
-de seus nomes, escarnecedores de seus
-exemplos, e deshonradores de seus castos e amigaveis
-costumes; nós que ao seu velho fallar e
-escrever de <i>deveres</i>, substituimos o nosso novo
-fallar e escrever de <i>direitos</i>, e á moda de ter
-palavra, a moda de ter palavras, ter-se-hião
-horrorisado como de abominação, do pensamento
-de gerar. Acordai do sepulchro um d’esses
-anciãos, que depois de pagar inteira a divida a
-pai e mãi, viveo todo para a mulher, matou-se
-pelos filhos, guardou a palavra como religião,
-a religião como necessidade, e cada
-paschoa de flores, bem com Deos, contentissimo
-comsigo, se ufanava de sentar ao melhor
-lugar de sua mesa o parocho, e todos os seus
-vizinhos de envolta com seus filhos. Mostrai-lhe
-todos os nossos progressos, que em sós algumas
-vantagens materiaes e corporaes se resumem:
-alardeai-lhe o que esperamos, mas
-não lhe escondaes o que destruimos: lede-lhe
-a primeira pagina do primeiro Jornal que topardes
-d’esse mesmo dia, raza de impudencia,<span class="pagenum"><a id="Page_16"></a>[16]</span>
-empapada com fel, estillando lagrimas, revendo
-sangue, suando calumnias e desavergonhamentos,
-respirando e soprando odios de nação contra
-nação, de cidade contra cidade, de familia
-contra familia, de irmão contra irmão, de
-povos contra reis, de reis contra povos, e dos
-homens contra a Providencia. Supponde que
-Deos lhe offerece renovação da vida, e offerecei-lhe
-vós todas as blazonadissimas excellencias
-do nosso viver e do nosso esperar: repellir-vos-ha
-com aquelle braço que antigamente
-defendia e não apunhalava a Patria; tapará
-com o resto da mortalha o rosto que só depois
-de cadaver córa pela primeira vez; e cerrando
-rijo os olhos contra a luz, e deixando-se
-recair pezadamente, de vós não pedirá
-mais do que um favor, o de lhe restituirdes a
-sua lagea.<a id="FNanchor_2" href="#Footnote_2" class="fnanchor">[2]</a></p>
-
-<p>Emquanto assim vai o presente avesso do
-preterito pelo que toca á moral e á felicidade,
-fallo da verdadeira felicidade, d’aquella em
-que a moral entra como elemento, e não da
-fizica e corporal, da de fazenda e honras,
-como hoje se entende; vejamos a que ponto
-subirão com o <i>movimento</i> e <i>progresso</i> as nossas
-letras. Entrai as typografias, e dizei-me porque
-assim amotinão com o seu noturno<span class="pagenum"><a id="Page_17"></a>[17]</span>
-e diurno lavor a vizinhança? perguntei-lhes
-porque assim gemem e se afadigão? em quaes
-livros nos estão preparando mananciaes de
-doutrina, ou de costumes, ou de suave, honesto
-e ja tão precizo desenfadamento? Dissereis
-que nossos laboriosos maiores as deixarão
-esfalfadas com os copiosos frutos de suas lucubrações:
-o mais com que se atrevem, são
-ridiculos farrapos de bestiaes torpezas. Seguem-se
-os mezes aos mezes e os annos aos annos,
-sem outras literarias novidades. Terra he que
-ja deo optimas searas e vinhas abundosas;
-agora descultivada e baldia, e á lei da natureza
-bruta, desata toda sua força e substancia
-em cardos, em ortigas, em venenos e serpentes.
-Quantos livros, e quantos bons livros, que nós outros
-nem conhecemos nem ja valemos a sopesar,
-saíão dos nossos prelos, nos tempos em que a
-probidade, e a mansidão, e a concordia tinhão
-seu preço. Um só reinado, e ainda bem chegado
-a nós, e de rei que por bom se não cita,
-com tanta copia de literarios monumentos
-nos deixou avergadas as bibliothecas, que dez
-centos de annos como o presente não produziráõ
-a decima parte. São os nossos typógrafos
-de hoje, se com aquelles os comparamos,
-como os nossos cutileiros de punhaes, comparados
-com os bons armeiros que forjavão espadas
-como as de nossos heroes de boa data,
-que só com sua pezada presença nos maravilhão,
-a nós, que por nossa verbosa sabedoria,
-acabaremos de desbaratar tantas e tão longes
-terras, como nos ellas ganharão esgremindo-se.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_18"></a>[18]</span></p>
-
-<p>Tal vai pois o estado literario como o social;
-e nem menos podia ser, porque estas
-duas couzas, como alma e corpo, se pertencem
-inseparaveis: Mão de Deos que ao corpo
-politico quizesse restituir a saude, por ahi lhe
-fortaleceria não menos o espirito; Sopro de
-Deos que ao espirito restituisse a luz, por ahi
-lhe ordenaria e vigoraria todos os movimentos.
-Por tanto, conhecendo e confessando que nem
-facil he nem possivel torcer a carreira desenfreada
-que o nosso mundo leva não sei para
-onde, todavia para mim tenho, se na cabeça
-está isto, se no coração, não o direi, mas tenho
-para mim, que mui bem fará, e muito amado
-será dos rectos juizos quem nos fizer volver
-olhos de saudade para a vida que ja se viveo,
-o que ainda um ou outro, aqui ou acolá poderá
-inteira, ou quando mais não fôr, em partes,
-em amostras reviver. E pois será isto uma
-illusão minha? Se o geral da gente vai por
-entre dores para uma couza que se chama perfeição,
-não pode um individuo em particular
-deixar-se ficar atraz, despir essas suadas
-armas de milicia conquistadora, e recolher-se,
-honrado desertor, lá onde viva seguro com Deos,
-comsigo, com poucos vizinhos, logrando-se
-da natureza, e desfrutando em variados prazeres
-todos as estações; prezentes que Deos enviou
-para todos os homens, mas de que os das
-cidades só pela folhinha tem noticia! Por quão
-feliz se não devêra dar o escritor desambicioso,
-se aos puros sons de sua lira afinada
-nos bosques, lograsse, não como Anfião fundar<span class="pagenum"><a id="Page_19"></a>[19]</span>
-e povoar cidades, não como Orfeo arrancar
-as feras dos arvoredos e domestica-las; mas
-arrancar d’entre feras humanas homens inda não
-corrutos, e assenta-los, para sempre feriados
-do reboliço dos grandes povos, no divino
-remanso de uma campestre solidão! De mui
-leves cousas e tenuissimos momentos pende
-ás vezes o destino de toda uma vida: assim
-como de um encontro fortuito resulta uma
-affeição amorosa, que logo produz um consorcio
-e um sisthema completo de existir,
-assim de uma palavra em uma conversa casual,
-da substancia de uma pagina lida em certa
-hora, do aspéto de um painel, podem
-nascer, e mil vezes terão nascido, determinações,
-vocação, e fados de individuos. E para vir
-a um exemplo recente e meu, aquelle bom livro
-das <i>Prisões</i> de Silvio Péllico (todo imbuido,
-releve-se-me a expressão, de uma christã
-e filosofica filosofia, que a maior parte das assim
-chamadas nem uma nem outra couza tem)
-aquelle bom livro, ja principiou e talvez acabará
-de me curar o animo: não lhe restituirá
-a muita harmonia com que o de Gessner mo
-temperára, porque a mocidade das illusões passa
-e não volta; mas deixar-mo-ha provavelmente
-assaz alto e forte, que ainda no meio das maiores
-tempestades repouze e abençoe tudo. E
-não he isto maravilha, que a alguns outros
-que o lerão ja eu ouvi iguaes, senão maiores
-encarecimentos de sua medicinal virtude.<a id="FNanchor_3" href="#Footnote_3" class="fnanchor">[3]</a></p>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_20"></a>[20]</span></p>
-
-<p>Este desvio, por onde me agora deixava ir,
-levar-me-hia longe, que assim he accomodado
-a meus gostos; mas porque he desvio o largo,
-e retomo o caminho que hia seguindo.
-A poesia amavel, a que nas mãos e seio nos
-vinha offerecendo ramalhetes, e frutos no regaço,
-e amores nos olhos, e nas fallas consolações,
-afastou-se d’entre nós, onde ainda a
-alguns poderia aproveitar, e assim como outras
-muitas boas artes e prendas, foi reclinar-se
-á espera na beira da torrente dos dias, d’onde
-não volverá, sem que primeiro se restaurem
-muitas optimas couzas e todas suas, que o
-mundo velho tinha produzido. Mas d’onde
-viráõ estas couzas? Do mesmo mundo velho?
-mal o creio, que o novo quebrou a ponte que
-os juntava, e rio de ufania vendo abismar-se
-fábrica que assim parecia eterna. Renasceráõ
-por tanto da propria natureza da terra,
-da indole da alma humana que ja uma vez as
-produzio, ou do sopro do ceo: renasceráõ tarde;
-renasceráõ quando nós ja não formos; renasceráõ,
-talvez diversas, mas renasceráõ. E quaes
-são estas couzas do mundo passado, cuja perda
-tanto dóe ás Musas e á Virtude? são as
-formosuras e magnificencias da religião, o
-respeito aos finados e a seus sepulchros, ás lições
-da experiencia, ás obras dos antigos homens,
-a veneração ás cãs, o quasi culto ás mulheres,<span class="pagenum"><a id="Page_21"></a>[21]</span>
-a benevolencia e sociabilidade, o aferro
-aos usos e modas patrias, o amor do estudo, que
-nós dissipámos com as leituras efemeras, e o amor
-do torrão natal, nobre fecundissimo sentimento,
-mas impossivel onde se vive sem muita
-brandura e sem firme certeza de permanecer.
-Tudo isto se perdeo para nós, e não sei que
-bens haja em seu lugar posto a <i>Filosofia</i>. A
-que verdadeiramente o he, ainda que esse nome
-se não dê, a que realmente faz homens livres
-e felizes, não he Furia que destrua tão
-venerandos objetos; ama-os, defende-os, reforma-os
-quando o tempo os viciou, concerta-os
-que se amparem mutuamente, pede-lhes
-frutos, e com seus frutos se fortalece.</p>
-
-<p>Quando de espaço me dou a escavar estas
-verdades, nada me assombra a nossa crassa
-e desdenhosa ignorancia, mãi ou filha, e certamente
-socia da nossa immoralidade. Esta mal
-agoirada ignorancia e esta immoralidade cresceráõ;
-ja nossos filhos apenas saberáõ ler, e
-se o turbilhão que a roda leva não houver
-quem o suspenda, brutos e ferozes sairáõ os
-netos. Applicai todos os vossos sentidos ao
-coração da nossa Cidade: se a vida he movimento,
-ahi trabalha vida; se porem a vida ha-de
-ter um perfume, uma harmonia, ahi não
-ha senão morte, e aquelle movimento he de
-cadaver que fermenta para se dissolver. Poesia,
-verdadeira poesia ja n’este Reino, onde em todos
-os tempos pullullava espontanea, posto que
-raro amadurecesse, ja por consequencia acabou:
-quanto desde hoje se poetar nas enamoradas<span class="pagenum"><a id="Page_22"></a>[22]</span>
-doçuras da vida aldeã, mais não será
-que recordações sem germen de futuro. D’entre
-a memoria e o espirito, não da experimental
-convicção do poeta, nasceráõ esses versos,
-como lagrimas de balsamo, que não de dentro da
-arvore, mas d’entre a casca e o libro vem raras
-gotejando, para cairem e se perderem no
-terreno bravio da solidão. Oh Liberdade, Liberdade!
-quão mal te comprehendem os que
-te separão do bello! quão mal te servem os
-que te malquistão com os homens de bem!
-como involuntariamente te levão á morte os
-que só te pedem como summa felicidade, o
-direito de nada respeitar, estradas de ferro,
-navios de vapor, um himno, e punhaes ou
-carceres contra quem quer que não beber ás
-suas mesas! Pobre Liberdade, não he este
-ainda o teu dia: não és tu idolo de selvagens,
-mas Divindade benefica de homens prudentes.</p>
-
-<p>Eis-me outra vez com a Politica, e o meu
-voto quebrado. Ja vejo que a minha cura não
-está tão adeantada como o eu suppunha: não
-ha remedio, amanhã releremos Silvio Péllico,
-e por hoje voltemo-nos com toda a diligencia a
-rematar, como quer que seja, este escrito.</p>
-
-<p>Sáe pois o presente livro por todos os modos
-extemporaneo, ja porque a estação nem he
-d’elles nem para elles, ja porque lhe fallecêrão
-dias para amadurecer e sasoar, e ja porque
-dos que lhe tomarem o sabor, uns o taxaráõ
-de temporão, outros de serodio, sendo<span class="pagenum"><a id="Page_23"></a>[23]</span>
-que uma e outra couza he elle, e demais a
-mais pêco, segundo a planta de que se creou.
-Uma só lembrança me consola, e he, que assim
-mesmo ja deveo ser peor, quando da primeira
-vez appareceo, e mais lhe não faltárão
-gostadores; tanto he assim que nunca faltaráõ
-simpathias ao que de sua origem he bom, ainda
-quando desbotado e estragado pela impericia
-de quem o tratou. Melhor he hoje do
-que então era; não porque o eu tornasse á forja
-e á bigorna, ou o recorresse e lustrasse com
-esmerada lima, senão porque havendo hoje
-menos dados á lição dos livros, e em especial
-d’este genero, tambem ja não ha criticos, senão
-he para as acções da vida publica e domestica;
-por onde as obras escritas podem passar
-a seu salvo, sem que suas pobrezas e vergonhas
-sejão vistas e apupadas na praça. Desconsolada
-consolação he esta de se poder desafinar
-cantando, por se cantar entre surdos:
-mas esse mal, se o he, só a mim me toca, e
-para o descontar me sobra a lembrança, de
-que alguns caladamente me agradeceráõ o diverti-los
-do publico espetaculo. Para estes
-em boa hora sáia e sai o livrinho fallador de
-campos e amores: suave appareça como a
-violeta sozinha encontrada no passeio de inverno:
-suave e não estranhado como o raio de
-sol por cima de campo de batalha apoz uma
-noite de geada; nada aproveita elle aos cadaveres,
-mas alegra e consola como esperança aos
-que mal feridos jazião, e a quem o regelado lentor
-das trevas coalhava o sangue, desesperava<span class="pagenum"><a id="Page_24"></a>[24]</span>
-as dores, tranzia os ossos, e os descoroçoava
-da providencia.</p>
-
-<p>Ramalhete he de flores silvestres que a meus
-amigos deixo na hora do apartamento, que ao
-menos em quanto durar lhes recordará que os
-amei. Terra de Portugal e outr’ora de Portuguezes,
-terra namorada do mais formoso ceo,
-terra sombreada de larangeiras e murtas, acobertada
-de verde e bordada alcatifa, amorosamente
-abraçada do Oceano, talhada e regada
-de tão espelhados rios, terra de tanta poesia
-e de tanto amor, eu te deixo! E para que
-ja nunca onde quer que a fortuna me detenha,
-me cuides de ti esquecido, terra do meu Portugal
-lembre-te que o meu ultimo pensamento
-ao sair das tuas praias foi o da tua Primavera
-e o da minha Mocidade.</p>
-
-<p class="right"><i>Lisboa: 1 de Dezembro 1836.</i></p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_25"></a>[25]</span></p>
-
-<h2 class="nobreak" id="PROLOGO">PROLOGO.</h2>
-
-</div>
-
-<p>Não erão vãos os meus receios; acabo de
-visitar a <i>Primavera</i>, não ainda para lhe emendar
-as miudezas, mas para a conhecer por
-alto, e podê-la sentenciar no todo. Reconheci-a,
-mas demudada, mui outra da que a tinha deixado
-na graça, geito e amores; trocarão-ma
-os annos, trocando-me. Desama-la ainda não,
-mas ama-la tambem ja não! Se lhe não quero
-mal, he só porque lhe quiz muito bem, e foi
-minha; mas como ja me risquei de seu namorado,
-não hei de chamar-lhe formosa, que o
-não he, nem dissimular que sejão defeitos,
-muitos que em bom tempo ja talvez lhe tive
-por perfeições e primores. Não ha remedio,
-prometti-me seu juiz, passará por onde houvéra
-de passar, se de inimigo fôra. Se ella perder
-do seu preço, e eu do meu, consolemo-nos
-ambos d’esse pouco damno; ella por não receber
-de mim injustiça, eu com ter obedecido á
-consciencia, que tambem em letras a ha. Antes
-porem que entremos a contas e lhe formemos
-o summario, releva anticipar uma dúvida
-não leve, que se me pode pôr, e desfazer
-um reparo, que deixado a si pareceria de fôrça.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_26"></a>[26]</span></p>
-
-<p>He o reparo e a dúvida; que pois he o Livro
-inamavel por defeitos a seu proprio autor,
-não havia porque de novo o semear em público,
-antes importava pôr todos os meios para
-que o nunca mais vissem, nem d’elle se fizesse
-menção; que o contrario he faltar a toda
-a reverencia, que aos leitores se deve, dando-os
-por broncos para conhecer o máo; ou
-á caridade natural comsigo proprio, expondo-se
-sem fôrça de obrigação a menoscabos, se
-não injurias.</p>
-
-<p>Não quero responder que em dar o que
-ha quando ou emquanto não ha melhor, ja
-o que o faz se ha de haver por desempenhado;
-nem que, para reo que sem tratos e sôlto confessa
-os delitos, sempre por bom direito se
-usou de misericordia; melhores me parecem do
-que estes, os meus fundamentos: e ei-los aqui.</p>
-
-<p>Primeiro: que andando a <i>Primavera</i> ja impressa
-e corrente por muitas mãos, e não podendo
-ser recolhê-la eu de novo, e desluzi-la
-da memoria de muitos que a bem agazalharão,
-melhor arbitrio he, pois que tem de se
-conservar no mundo, renascer n’elle expurgada
-de muitos vicios da primeira impressão, e
-se a paciencia me acudir com o preciso valor,
-retocada no que pertence ao literario.</p>
-
-<p>Segundo: que havendo talvez ainda, e podendo
-vir a haver, moços que se dem a poetar,
-acontecerá que entre os mais livros portuguezes<span class="pagenum"><a id="Page_27"></a>[27]</span>
-que ás mãos lhes cheguem, vão de
-envolta os meus (assim mo promette sua boa
-fortuna, que os livros a tem como os homens,
-e ás vezes os mais ruins muito melhor do que os
-bons): mãos de principiantes não sabem escolher,
-os amores, amenidades e branduras da
-<i>Primavera</i> cáem muito a gente moça, ir-se-hião
-traz o gosto, e beberião muitos defeitos;
-do que seria minha a culpa, se eu não procurasse
-agora arrancar boa parte d’elles, e contra
-os demais os não precavesse com honestas
-advertencias.</p>
-
-<p>Terceiro, finalmente: que eu pretendo antes
-ser bem conhecido pelo que fui, sou, e
-hei de ser, do que só pelo que sou; porque
-nascendo-nos o presente do passado, ainda
-que diverso, e produzindo-nos ainda que tambem
-diverso, o futuro, o sermos só conhecidos
-pelo que somos não he sermos conhecidos.
-He pensamento que merece ser entendido. Alexandre
-Dumas o explicará. Sem pedir venia
-traduzo o passo, com quanto seja longo, certo
-de que o não parecerá.</p>
-
-<p>—“A maior desgraça da crítica, ainda
-quando se não sae com ignorancias e velhacarias
-(diz elle no prologo da <i>Catharina Howard</i>)
-consiste em sentenciar uma Obra nova desmembrada
-do feixe literario cuja he parte:
-ahi está porque nunca se póde avaliar um livro
-com exacção antes da morte do autor; e
-mais ainda he preciso que Deos lhe haja concedido<span class="pagenum"><a id="Page_28"></a>[28]</span>
-desde o primeiro até o ultimo, os dias,
-que para acabar seu edificio se lhe fazião mister;
-por quanto, se antes de tempo morreo,
-o monumento que traçára tem de ficar incompleto
-para sempre como a Sé de Colonia, e
-os homens mal justos para com elle ainda
-para alem da sepultura, lançar-lhe-hão á conta
-de humana fraqueza o ter-lhe ficado certo
-vão por tapar, quando a morte de invejosa e
-apressada lhe veio atar as mãos, e ja talvez
-para se arrematar mais não faltava que uma
-só pedra: ora por aquelle vão, he que a crítica
-se mette e entra, quer o autor esteja vivo,
-quer defunto.”</p>
-
-<p>“De trez idades se compoem a vida de
-quem nasceo fadado a dar de si produções, e
-em trez periodos se desparte: como couza alta
-e nobre que he, tem primeiramente sua base
-por onde se começa; depois um cume onde se
-chega; ultimamente la por dentro um motivo,
-tenção e fim particular para onde se torna a
-descer. Pelo que, he necessario que o homem
-tenha vivido todas estas trez idades e que o seu
-talento haja cursado estes trez periodos, para
-se poder avaliar aquelle talento no seu todo,
-aquelle homem na sua produção.”</p>
-
-<p>“Primeira idade, quando a fantasia prevalece
-á rasão. A esta idade de viço pertencem
-as horas que tão despedidas voão dos vinte e
-cinco aos trinta e cinco. He o periodo para
-dever inventar <i>Hamlet</i> quem se chamar Shakespeare,<span class="pagenum"><a id="Page_29"></a>[29]</span>
-o <i>Cid</i> quem tiver nome de Corneille,
-os <i>Salteadores</i> quem for Schiller.”</p>
-
-<p>“Segunda idade, em que a fantasia e a
-rasão se embalanção, ajudando-se mutuamente,
-e vindo a formar das suas duas uma só
-força neutra. A esta idade vigorosa pertencem
-os dias que vão correndo dos trinta e cinco aos
-quarenta e cinco. He o periodo em que os
-mesmos trez sujeitos produzem <i>O Rei Lear</i>,
-<i>Cinna</i>, <i>Wallenstein</i>.”</p>
-
-<p>“Terceira idade, em que a rasão prevalece
-á imaginação. A esta idade de reflexão pertencem
-os annos que descem dos quarenta e
-cinco aos cincoenta e cinco. He o periodo em
-que elles compoem <i>Ricardo III</i>, <i>Polyeuctes</i>,
-<i>Guilherme Tell</i>.”</p>
-
-<p>“Ora pergunto, ficarião completos Schiller
-sem <i>Wallenstein</i> e <i>Guilherme Tell</i>, Corneille sem
-<i>Cinna</i> e <i>Polyeuctes</i>, e Shakespeare
-sem <i>O Rei Lear</i> e <i>Ricardo III</i>?”</p>
-
-<p>“Parece-me portanto que nunca devêra a
-crítica requerer de um poeta, senão as obras
-de sua idade; e bem sabemos nós como o faz
-ella sempre ao revez, sendo as obras que mais
-se empenha em querer extorquir de um engenho
-as dos annos que ainda não vingou, ou
-as dos outros annos que ja deixou transpostos.
-Pelo que toca a uma obra que vem condizendo
-com o periodo d’onde dimana, nunca a<span class="pagenum"><a id="Page_30"></a>[30]</span>
-impertinencia dos juizes a dá por cabal: são
-uns Aristarchos sem paciencia, que acodem
-logo com a crítica a cada pedra de per si, ao
-passo que ainda se está guindando, sem advertirem
-que aquella pedra só assente e junta
-com as outras pedras he que ha de dar prova
-da traça e desenho geral do architéto: são como
-uns pomareiros esquipaticos, que não tomando
-em conta o inalteravel fio das quadras
-do anno, pedem fruta madura á primavera,
-frutos verdes ao verão, e ao outono flores.”—</p>
-
-<p>Bem haja Alexandre Dumas, que tão artificiosa
-e claramente me decifrou, e me ajudou
-a pôr em limpo uma verdade, cujos ares muito
-ha que eu tomava de longe; uma verdade que
-eu andava adivinhando como por entre nevoas.</p>
-
-<p>Ora pois, dos trez apontados motivos de
-determinação, foi este ultimo o de maior momento:
-quiz dar completo o meu retrato, menos
-o intellectual do que o moral, a quem desejasse
-conhecer-me: não podia omittir como feição
-o que eu havia sido, e ainda antes d’aquella
-primeira idade, que dos vinte e cinco decorre
-até os trinta e cinco annos. A <i>Primavera</i>,
-escrita aos vinte e dois, tinha por tanto de
-entrar encorporada na collecção das minhas
-Obras. Se a refundisse pelo meu gôsto de hoje
-em dia, não sei se ficára melhor, mas sei que
-ficára outra, e por conseguinte falsa como feição.
-Tudo quanto era seu geito, seu pensar,<span class="pagenum"><a id="Page_31"></a>[31]</span>
-seu ser proprio passará intato; e n’isso, se se
-hão de perdoar gabos a quem sem disfarces nem
-dó se disciplina deante do Povo por peccados
-poeticos, n’isso digo, alguma couza ha de
-bom, sem o que não tivera agradado a tanta
-gente. O por onde a lima pode e deve correr
-afoita e sem dó, são—<i>as numerosas faltas de
-boa falla portugueza—desleixo de frase—e
-estiramento de períodos</i>.</p>
-
-<p>Quero-me explicar, não para os Mestres,
-sim para os novéis no officio de escrever, com
-os quaes particularmente converso nos meus
-prologos; e porque não havia eu repartir do
-fruto de minha tanta ou quanta experiencia
-com quem não a póde ainda ter, nem suppri-la
-com seguir cursos de Bellas-letras que entre
-nós se não ensinão? Um dos maiores delitos
-literarios, e em que mais usualmente cáem os
-moços, he o <i>desprezo de lingua e corréção</i>;
-delito que per si basta para descontar muitos
-meritos intrinsecos de escritura. Sem bem saber
-sua lingua, diz Boileau, o autor mais
-divino nunca passará, por muito que faça, de
-máo escritor. He ella a ferramenta para este
-genero de lavor da alma; e quem poem as
-mãos na obra sem primeiro ajuntar, conhecer,
-escolher e apontar bem os instrumentos de que
-se ha de valer, nem se pode mostrar bom artífice,
-nem merecer desculpa de o não ser.</p>
-
-<p>Toda a Musa em creança padece dispepsia de
-versos, diabetes disséra quem se menos prezára<span class="pagenum"><a id="Page_32"></a>[32]</span>
-de cortez com Divindades. Na primeira
-idade he costume, e por muitas rasões,
-das quaes não será a mais fraca a aversão
-ao trabalho, presumir-se antes de facilidade
-e presteza no escrever, do que de corréção
-e primor: coração e fantasia tudo anda ligeiro,
-querem que a penna lhes obedeça, como se
-ella podesse; forção-na, e dahi resulta que
-pensamento ou afféto que lá dentro era soberbo,
-apparece cá fora frio, mesquinho, desengraçado;
-e maravilha-se o escrevedor quando
-a mesma couza que valentemente o agitava, em
-quanto em si a revolvia, depois de passada
-para o papel adormenta os ouvintes, e a elle
-proprio o desconsola. De todos os defeitos de
-autor, talvez se podesse affirmar que só este
-he verdadeiro, real e absoluto defeito; porque,
-se os pensamentos e affetos de cada idade são
-della, e dessoão e descontentão a todas as outras,
-tem por si o serem d’ella, e como taes
-se defendem por conterem verdade e pintarem
-o homem; não assim a lingua, que em todas
-as idades he ou deve ser uma, não provando
-outra couza o faltar-se a ella, senão que se quer
-fallar antes de se ter aprendido. Sou experimentado,
-e por bem do proximo direi com
-vergonha minha, que no que me ficou escrito
-d’essa quasi infancia poetica, as couzas nem me
-espantão nem me offendem, ainda quando as
-desapprovo, mas a linguagem e o dizer me fazem
-de continuo caír as faces; e por isso que
-he escolho em que naufraguei tão desastradamente,
-o assignalo com tanta miudeza e teima;<span class="pagenum"><a id="Page_33"></a>[33]</span>
-nem cançarei de o assignalar e accender-lhe
-em cima boa luz de farol, em quanto vir,
-como vejo, outros, que nem por idade se absolvem,
-esbarrar n’elle e perder-se a todas as
-horas. Mancebos, (se os ha ahi que se dem
-ás letras) vós que encetaes a mui ardua e perigosa
-vereda que pelas letras conduz á fama,
-seja qual fôr o genero de poesia para onde
-propendais, seja qual fôr o vosso não vulgar
-engenho, sejão quaes forem os louvores que os
-velhos na arte vos concedão, e os applausos
-com que as sociedades vos afoutem, não vos
-deis pressa de apparecer: os conselhos que Horacio
-vos deu, durão com toda a fôrça que a
-natureza e a pratica lhe bafejarão. Deve-se
-compor de espaço, consultar os bons e peritos,
-guardar por nove annos, chamar, e tornar a
-chamar dez vezes á unha a obra ja perfeita.
-O amor proprio nos persuade e impelle a apparecermos
-cedo, devia elle, se não fôra cego,
-ter-nos mão para nos não sairmos senão a horas;</p>
-
-<div class="poetry-container">
-<div class="poetry">
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0"><i>A melhor fruta colhe-se mais tarde.</i></div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse right">(<i>F. R. Lobo.</i>)</div>
- </div>
-</div>
-</div>
-
-<p>Muito mais vale começar jornada com dia claro,
-do que, para adeantar horas, largar a
-pouzada pelo escuro da noite, em que os tropeços
-são faceis, perigosas as quedas, e quasi
-certo o extravio, que a final lançadas as
-contas nos farão chegar mais tarde e menos
-gostosos ao lugar que demandâmos. Repetirei,
-porque nunca o repeti-lo será de sóbra, o que
-ja por semelhante occasião disse em outro meu<span class="pagenum"><a id="Page_34"></a>[34]</span>
-livrinho, contra esta enfermidade que se tornou
-praga, e nos traz a todos lastimosamente gafados;
-não ha mais remedio senão soccorrermo-nos
-aos livros mestres de nossa lingua.
-A aversão que vós outros, gente moça, lhes
-tendes, bem sei d’onde nasce, que tambem eu
-por ahi passei: correm para vós como rio caudal
-os livros d’essa França, todos especiosos e
-doirados, todos galhardos e louçãos, arrebicados
-e argutos no dizer, promettedores de maravilhas
-nos titulos e indices, conversando comvosco
-paixões fortes e brandos affetos, uns vomitando
-republica por todas as folhas, outros
-por todos os poros exhalando commodissima incredulidade,
-e todos á uma embebidos do
-presente, afinados pelo vosso ponto, e se o
-posso dizer, mancebos como vós mesmos. Não
-ja assim os nossos patrios autores: estes não
-vos sáem ao caminho; pouzão, antes jazem,
-pela escuridão êrma das bibliothecas, mal envoltos
-na grosseira capa de seu tempo, enterrados
-no pó, meio devorados dos bichos; se
-os olhais por fóra, parece-vos que a vida vos
-não daria para um só volume: se os consultais
-por dentro ja os titulos vos não namorão,
-os indices vos descoroçoão: folheai-los por alto,
-vem os milagres incriveis, a historia encarecida
-ou chã, a poesia enleada e escura,
-o estilo incorreto e desflorido, o amor grave e
-sizudo, os costumes castos, a moral severa, a
-fé religiosa e inconcussa: cada pagina na sua
-simplicidade apregoa Deos, revem por cada
-poro o cheiro do mundo velho: mas esforçai,<span class="pagenum"><a id="Page_35"></a>[35]</span>
-affazei-vos por alguns dias a soffrê-los e comsenti-los;
-continuá-los-heis sem tedio, logo com
-gôsto, com ancia, reconhecendo a final quanto
-as primeiras mostras vos havião mentido,
-como pelo meio e fundo d’aquelle enganoso dissabor
-andavão sumidas galas, joias, riquezas,
-maravilhas, que vos enchem os olhos, vos cativão
-a vontade, e fazem que vos peze do tempo
-que os não conhecestes. Assaz nos divertimos
-do caminho, rasão he que a elle nos tornemos.</p>
-
-<p>O segundo defeito geral que me occorreo
-n’esta leitura, foi o que eu chamei <i>desleixo de
-frase</i>. He este muito menos grave que a impureza
-da lingua, sendo-o todavia assaz que
-mereça quanta reformação lhe eu possa fazer.
-Quando quem não cura da pureza de sua lingua,
-cura ao menos de lhe não deitar
-remendo de panno estranho ou novo que
-não seja vistoso e garrido, quando o que se
-não preza de dizer limpa e castamente, ao
-menos timbra no exprimir com viveza não vulgar,
-com certo matiz, com certa novidade,
-algum passo mais se lhe póde conceder.
-Procurei se ao menos teria eu posto algum pouco
-d’isto, e achei um desconsolado não. A
-locução não me pareceo tão poeticameme figurada
-como convinha em poesia, ainda
-pastoril; os epíthetos erão tão sem succo e bastos
-como a caruma no mato. Uma e outra
-couza requerião, em quem as quizesse bem
-emendar, muita paciencia, e muitissima mais<span class="pagenum"><a id="Page_36"></a>[36]</span>
-da que eu tenho. De ambas, mormente dos
-epíthetos, procurarei limpar a maior; todos
-não he possivel: tanto e por tal geito estão
-com toda a Obra cozidos e enraizados, que
-lhes vale o que ás ervas parasítas em parede
-velha mas necessaria; foução-se-lhe algumas demazias,
-perdoa-se ao resto, com o medo que em
-faltando, se esboroe a parede, e venha ao chão
-toda delida.</p>
-
-<p>Tambem me queixei de <i>estiramento de períodos</i>.
-He defeito portuguez, peninsular, meridional.
-Dava-me agora na vontade tornar a
-culpa ao sol, que n’estas suas terras faz que
-tudo se desaperte, e derrame, e desate em viço
-e sobejidão: mas fiquem esses milagres do sol
-para os esquadrinhadores metafisicos, a quem
-inda assim, não quero mal; e eu, melhor
-que a nenhuma outra causa, lançarei aquella
-minha diffusão ás costas dos annos em que escrevia,
-com o que sempre fico de bom partido,
-por das minhas a tirar. O que he grandemente
-verdade, he ser este defeito para muitissimos
-leitores, principalmente mancebos ou
-hospedes nas regras de escrever, virtude, e a
-virtude contrária vicio. Saírão a <i>Noite do Castello</i>
-e <i>Ciumes do Bardo</i> muito mais contraídos
-e apanhados em couzas e palavras, do que
-estes Poemettos e as <i>Cartas de Echo</i>: pois comtudo
-muitos houve e ha, que por isso mesmo
-ficárão preferindo aos novos os antigos e até
-velhos opusculos. A cada hora me diz um que
-me torne ao meu primeiro caminho; outro<span class="pagenum"><a id="Page_37"></a>[37]</span>
-que não desampare o novo: uns, que estas ultimas
-obras se não lem senão de escaço numero;
-outros que as passadas não occupão meia
-hora os olhos dos homens graves e bons juizes.
-Oh! quem reconheceo nunca a verdade da fabula
-do velho, do rapaz e do burro como o
-triste, que para expiação talvez d’algum grande
-peccado, entrega e desampara a público
-os partos do seu tinteiro! Pois que não póde
-ser contentar a todos, ir-me-hei como e por
-onde o meu juizo, gôsto e natureza me levarem.</p>
-
-<p>A poesia substancial e severamente escrupulosa,
-he o mais das vezes descontada por uma
-certa desharmonia: a muita harmonia, ainda
-quando mais apoucada de ideas, ja entretem
-suavemente: qualquer leitor se entende com
-taes escritos, ninguem com elles se cança;
-são um genero de musica facil, que ainda
-quando não exprime affetos, se ouve com gosto;
-são como um deslizar de barco por uma
-agoa mansa: por isto he que os livros do <i>Porto</i>
-e <i>Tristezas</i> de Ovidio se lem de um cabo a
-outro com muita deleitação.—<i>Inter utrumque</i>:
-nem tanto apêrto como Almeno na chamada
-tradução de Ovidio; nem tanta soltura
-como o seu amigo, e outr’ora meu mestre,
-Elpino Duriense<a id="FNanchor_4" href="#Footnote_4" class="fnanchor">[4]</a> nas poesias originaes;<span class="pagenum"><a id="Page_38"></a>[38]</span>
-nem tanto pospor a harmonia e clareza á brevidade
-como Filinto; nem tanto sacrificar o
-entendimento ao ouvido como Elmano. Isto
-foi o que me pareceo lograr na <i>Noite do Castello</i>,
-e <i>Ciumes do Bardo</i>, e não me arrependo
-se por ventura o consegui.</p>
-
-<p>Tanto não, mas alguma couza d’isto fôra
-o que eu quizera na <i>Primavera</i>: alguma couza,
-para poder com ella reconciliar os severos;
-tudo não, por não dessimilhar em demazia
-esta parte do retrato.</p>
-
-<p>Até aqui descubrimos defeitos que importa
-emendar, agora os vamos ver do outro genero,
-em que me não he licito bolir, por serem
-essencia do livro: erão aquelles no tocante á
-lingua, estilo, e metro, que ainda que importantes,
-não passão de accidentes da obra; estes
-são da alma, vida, e pensamento da mesma
-obra. Entremos pelo descritivo (não será portugueza
-a voz, mas o uso e necessidade lhe
-valeráõ.) Descritivos se chamão em geral todos
-os poemas deste genero, e como a taes,
-parece que tudo quanto for pintar dentro do
-quadro do seu painel, lhes compete e convem.
-Não he comtudo bem assim, porque as<span class="pagenum"><a id="Page_39"></a>[39]</span>
-descrições, por mui formosa e naturaes que
-se ostentem, tambem canção a imaginativa
-de quem lê, quando umas ás outras se vem succedendo
-perennemente e sem um bom entremeio
-de narração, ou outro valente interesse,
-que por um modo verosimil as reuna, separando-as
-ao mesmo tempo, para que se não
-confundão, nem se afrontem, nem esmoreção.
-Não o advertio Delílle, e d’ahi procedeo não
-bastar seu altissimo engenho para livrar seus
-poemas de enfadosos. Ora este livro he quasi
-um embrechado massiço de descrições; e assim,
-se o posso dizer, mais para ou olhos da alma
-do que para o seu entendimento. Mas serão ao
-menos estas pinturas, consideradas uma por
-uma, de algum preço por fineza de tintas, ou
-pontualidade de desenho? autos são em que
-me não compete dar sentença. O Padre Kinsey,
-ou o Portuguez que em seu nome escreveo,
-disse que eu não pintava bem a natureza;
-talvez que outro tanto, e ainda peór, se
-devesse dizer da mór parte de nossos poetas;
-mas não he contra elles, senão contra mim só
-que eu enfeixei varas no princípio d’este prologo:
-como os applicados noviços se não enganem
-comigo por minha culpa, que se desvairem
-e percão com os outros, paciencia!
-Aqui está comtudo o que me parece; este descritivo
-he desbotado e de côres pouco vivas e
-proprias se com o de Gessner ou Kleist se
-compara, mas he o melhor que eu soube; eu
-que nem podia ir-me pelos campos fazendo,
-como de si dizia Kleist, caçadas poeticas de<span class="pagenum"><a id="Page_40"></a>[40]</span>
-imagens, nem discorrê-los como Gessner, de
-lapis na mão. Ja póde ser que o Padre Kinsey,
-ou o seu ponto, não houvessem de se me
-avantajar muito, se lhes coubesse tirar ás escuras,
-ou quasi, o retrato da natureza: muito
-mais faz quem atravessa o Tejo a nado,
-do que hum Almirante Inglez que em segura
-e bem apercebida náo rodêa a esfera; poderá
-este trazer mais riquezas e informações, mas á
-fé que não prova mais fôrças e esfôrço que o
-desconhecido nadador de uma só corrente.</p>
-
-<p>Passemos ávante, e das descrições entremos
-nos affetos. N’esta parte direi pouco, porque
-sem embargo de que o desabrimento com que
-me castigo onde entendo merecê-lo, me podia
-deixar alguma licença para tambem me louvar
-pelo que em mim visse de bom, melhor
-he que nos louvores, em que mais facilmente
-nos podêmos enganar, nos contentemos de ser
-ouvintes. Ainda assim, não acabo eu de dizer
-tão pouco, que muito bem se não entenda ja
-que no tocante a affetos não quero muito
-mal á minha Obra: fallo dos affetos em geral,
-porque passos ha n’ella a cujo affeto não
-sei ja hoje querer mal nem bem; honesto,
-formoso, e macio me parece, sei que n’esse
-tempo devia ser meu, porque eu não compunha,
-tirava do coração, mas ja o não posso
-entender cabalmente, e avaliar. Esses passos,
-apezar de tudo e de mim, hão de passar intatos,
-que em assunto de branduras o eu de
-hoje respeita religiosamente ao eu de algum<span class="pagenum"><a id="Page_41"></a>[41]</span>
-dia; e porque tudo diga, ainda que quizera
-emendar, não saberia. Sim me inclino a que
-haverá (e ja de alguns m’o boquejarão) excesso,
-redundancia, languidez em tantas
-suavidades, caricias e extremos de bem querer
-a tudo, e a todos. Inclino-me e talvez o creio:
-mas que havia de cortar? a que havia de perdoar,
-se assim como o eu antigo valia tanto
-mais que o eu presente, póde ser que o melhor
-se me figurasse agora peór, e o peór melhor?</p>
-
-<p>Digamos duas palavras da Mithologia. Ja
-não sou tão emperrado pagão como n’outro
-tempo; desconsola-me ver o desmedido uso
-que d’ella fiz. Não se entenda por isto que me
-alistasse debaixo das bandeiras triunfaes dos
-modernos espanca-numes, nem que tiro vãgloria
-de botar pelo mundo pregáõ, como Beranger,
-que os Deuzes ja saírão do meu credo.
-Todo o excesso em crer ou não crer, em admittir,
-ou recusar me parece hoje em dia um disparate,
-de que sempre, mais por aqui mais por
-ali, vem a resultar contras e arrependimentos.
-Enjoa-me a fabula dos Lusiadas, e muita, e
-muita, e muita outra: aborrece-me quasi todo
-o emprego que dos Romanos para cá se tem
-feito d’ella, <i>incredulus odi</i>. Só consinto na
-fabula parca, explicavel, e só a amo quando
-soberbamente poetada. Alumiarei com um
-exemplo: quero-a assim como a derrama ás
-mãos chêas por suas tão poeticas prozas o christianissimo
-Chateaubriand, esse mesmo que de
-longe visto, assim parece guerrea-la. Nada d’isto<span class="pagenum"><a id="Page_42"></a>[42]</span>
-acho eu pelo commum no meu livro: de cada canto
-me surde uma Divindade; a boa parte d’ellas
-não responde verdade, e se alguma couza ahi vierão
-fazer, certo que não foi inspirar-me um
-só rasgo poetico. Porque pois as deixarei?
-porque não substancia do livro, e n’elle tem
-posse velha e apozentadoria.</p>
-
-<p>Dêmos a derradeira parte do prologo, que
-em prologos deve ser sempre esta a de vantagem,
-a algum poucachinho dizer sobre a moral.
-Moral hoje, moral em livro de poeta,
-grande novidade e grande estranheza! Sim
-hoje, que ainda ha muito quem se preze de
-viver honesto, virtuoso e pela antiga: sim em
-livro de poeta, e por isso mesmo; visto como
-tudo quanto era contra ella o tem a proza a
-si tomado, não será muito que lhe abra sua
-porta a poesia, e lhe dê guarida em um pobre
-cantinho térreo de sua pousada, como he
-este: inda mal, que até cá, no fundo de tamanha
-escuridão e penuria, por todas as fendas
-e agulheiros do mal reparado edificio poetico
-lhe chegaráõ as risadas sem alma nem sal
-de seus inimigos, e contra essas não ha valer-lhe.
-Ha pois do titulo d’este livro a dentro,
-dado se não prometta senão primavera, um
-como ar de bondade e saude para o animo,
-de socego e bemaventurança para a vida: e
-por isso he que, a despeito da todas suas manchas,
-me parece bem, como ja no Ante-Prologo
-deixei tocado, atira-lo, como sementinha
-de erva medicinal, ao baldio sáfaro e corruto<span class="pagenum"><a id="Page_43"></a>[43]</span>
-d’esta idade. Bem estou eu antevendo
-quantos de mim hão de haver lástima, por
-me assentar no meio de tão ferida e accesa
-batalha, por cantar entre tantas vozerias de
-odios. Paciencia! tambem sei que homem sentado
-não sóbe, nem a trôco de cantigas se
-comprão riquezas e valimentos: mas cada qual
-tem sua estrella, e a minha, que outra vez descobrio
-depois de largo eclipse, esta foi, e
-esta ha de ser; oxalá que para sempre! Com
-o bom de Archimedes me pareço n’isto, o
-qual na hora que a cidade estava sendo entrada
-do inimigo, e alagada das torrentes de
-ferro e fogo, nem tinha ouvidos para o estrondo,
-nem deixava de proseguir na composição
-da lustrosissima esfera celeste, unicos amores
-que no canto calado de sua casa o desvelavão.
-Havia ahi uma não sei que magnanimidade;
-e a ninguem deixa de doer a cutilada do soldado
-feroz que despede tal cabeça para cima
-de tal obra. Mas quando me ólho, e me vejo
-a brincar com flores e cordeiros, ao tempo
-que em redor de mim estão no chôco tão grandes
-destinos do mundo, não me lastimo, porem
-rio-me, e cuido estar vendo em mim proprio
-um menino, que por um dia de tempestade,
-enthesoura conchas e forma lagoazinhas
-na praia, emquanto andão á vista galeões
-alterosos á luta com os elementos, e na mesma
-praia uns pasmão, outros se aterrão, outros
-suspirão pelo instante do naufragio para se arremessarem
-aos despojos, apenas o mar os
-cuspir.—Fugindo me hião agora outra vez<span class="pagenum"><a id="Page_44"></a>[44]</span>
-os pés pela antiga ladeira abaixo: e a moral,
-esquecida até por quem lhe deo couto! Com
-ella sou, e com ella determino acabar.</p>
-
-<p>He a moral na maior parte d’estes poemas
-pura, facil e amavel; e se não tão efficaz
-como a de Gessner, não he porque o eu dezejasse
-menos, he porque podia menos atavia-la,
-e aformozea-la do que elle, e atavios e
-formozuras até servem para fazer do bom optimo.
-Todos os amores de que se urde e tece a
-domestica felicidade, se achão aqui representados
-por um modo que se recommendão, e
-d’elles se imbue de mui bom grado o animo;
-o amor filial, o paterno, o materno, o conjugal,
-a amizade, até o affeto aos animaes,
-arvores, flores, e mais creaturas de Deos,
-companheiras nossas n’este mundo, aqui vem
-de envolta com a recreação. Porque tudo diga,
-pelo gostador ou gostadora d’este livro daria
-eu mais, e mais quizera viver com elle debaixo
-do mesmo telhado, e tratar quer negocios
-quer passatempos, do que, se dizê-lo ouro,
-com gostadores e pregoadores d’outros livros
-que estamos vendo rebentar de muito mais
-avultados engenhos. Se eu tivesse filhos e filhas
-a quem dar criação, sei que emquanto não
-podessem ler Gessner, e seus bons imitadores estrangeiros,
-lhes daria a <i>Primavera</i>; e ja não digo o
-mesmo das <i>Cartas de Echo</i>, e muito menos da
-<i>Noite do Castello</i>, e <i>Ciumes do Bardo</i>. Mas,
-acudirá algum prudente, couzas se deparão na
-<i>Primavera</i> que mais são para ser defendidas a<span class="pagenum"><a id="Page_45"></a>[45]</span>
-donzellas, e resguardadas de fantasias ainda
-verdes, do que para se aconselharem por doutrina.
-Sim as ha, e todas essas paginas que
-para idades encorpadas e apercebidas de experiencia
-bem podem não ser damnosas e parar
-em mero deleite, todas rasgára e déra ao fogo
-antes de lhes entregar a obra para lição: e
-porei exemplos; na <i>Festa de Maio</i>, os fins dos episodios
-de Galatea e Ignez de Castro, no mesmo
-poema boa parte da republica de Chipre, como
-o culto religioso da Natureza, os bens em
-communidade, a nudez, o divorcio, o cazamento
-de um com muitas <i>et cetera</i>. Antes de
-passar adeante, trasladarei, que alguma couza
-fará para aqui, parte de uma Nota que ácerca
-da republica de Chipre se lia na primeira
-edição, a pag. 169.</p>
-
-<p>—“Note-se que este poema está muito
-longe de dever ser considerado como didático;
-que toda esta republica de Chipre he meramente
-um Dithirambo, aonde a licença do
-poeta he muito mais ampla do que em outro
-qualquer genero de poesia; que esta sociedade
-de que se ha de formar a republica, he de
-poetas, homens de quem vulgarmente se diz
-que mais dão ao prazer do que á rasão; e que
-em boca de poeta se poem a arenga recitada
-no templo. Para os avisados escusada fôra a nota,
-mas para os fanaticos, que ignorão ter a Musa do
-Dithirambo licença para nos seus delirios arremetter
-contra tudo, he indispensavel.”</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_46"></a>[46]</span></p>
-
-<p>Era este arrasondo o melhor que o caso admittia,
-porem melhor houvéra sido não carecer
-d’elle; e se ainda por elle se pode perdoar á
-republica de Chipre, não assim ás demais desenvolturas,
-como as dos dois ja apontados
-episodios. Porque as puz umas e outras? vá
-mais penitencia. Puz as pinturas amorosas em
-quasi nudez, porque estava n’aquella sazão da
-vida e do anno, em que todos nos deliciamos
-nas fantasias sensuaes, e se somos poetas, cuidamos
-morrer abrazados e afrontados em não
-desabafando. Porque não expurguei d’ellas
-esta segunda edição? pelo mesmo motivo do
-retrato, e não outro. Quanto ao culto da Natureza,
-e á gente nua, e aos maridos de muitas
-mulheres, são necedades taes, que não merecem
-que nos detenhâmos em as refutar: são
-d’aquellas demencias, cujo aggregado dá o que
-entre moços que esfolheão livrinhos bem doirados
-e térsos, se denomina filosofia, e que só
-dura emquanto a experiencia e o tempo nos
-não desmamão da presunção; pelo que, e pela rasão
-geral, ja muitas vezes apontada, de querer
-mostrar-me qual fui, vivão, durem e passem,
-que depois d’isto ja a ninguem farão mal.</p>
-
-<p>Eis aqui por alto, mas com toda a lealdade,
-o juizo que da <i>Primavera</i> formei; he primavera
-por matos de serra, com mais flores
-do que graças, com mais ares saudaveis do que
-ervas medicinaes, mui tibia de fragrancias mimosas,
-mui nua em muita parte de terreno,
-mas com seus longes de campos e cazaes felizes,<span class="pagenum"><a id="Page_47"></a>[47]</span>
-e muitas saudades lá pelos extremos confusos
-do seu horizonte. Quem se d’estas cousas contenta,
-fico se recreie com ella; e quem com
-ella se recrear, para amigo o quero, que esse
-saberá, como eu, amar muito os homens, fugindo-os;
-e enfadado, como eu, das terras onde
-não ha ver passaros senão em gaiola, nem
-verdura fóra de gigas, nem arvoredo que não
-seja pintado, nem pastores e innocencia senão
-na opera e trajados de seda e veludo, nem
-felicidade senão em promessas de políticos,
-irá procurar-se, achar-se, e lograr-se de Deos,
-de si, e dos penhores de sua alma no seio e
-entranhas da vida campestre. Oh, se assim
-fosse!... e se Deos a um tal me désse ainda
-por vizinho!...</p>
-
-<p class="right"><i>Lisboa 4 de Dezembro de 1836.</i></p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<h2 class="nobreak" id="Post_Scriptum"><i>Post Scriptum.</i></h2>
-
-</div>
-
-<p class="center"><i>Lisboa 29 de Março de 1837.</i></p>
-
-<p>Quando todo estava no trabalho de desempenhar
-minha palavra, e fazer ainda mais do
-que no Prologo deixára promettido, revendo
-cuidadosamente, afeiçoando, podando e enxertando
-de novo este volume, sobreveio-me aos
-2 de Fevereiro passado, o maior infortunio de
-minha vida, uma perda de que em nenhum tempo<span class="pagenum"><a id="Page_48"></a>[48]</span>
-se me poderá o coração consolar. Quebrarão-se-me
-as forças para continuar no trabalho,
-bem como se esvairão muitos, antes todos, meus
-projetos. Ja não arrancarei (e para que?)
-este pouco e inutil resto de mim mesmo da
-terra que encobre a minha melhor metade:
-aqui procurarei, se tanto podér ainda, pagar
-com uma pouca fama e muitas lagrimas, a quem
-a mim me deo até á sua ultima hora seus
-olhos, seu amor, toda sua alma. Qual ficou
-este livro tal sae, e muito inferior ao que eu
-promettia, podia e devia fazer. Se algum de
-meus leitores entende por experiencia o que seja
-padecer n’uma viuvez uma completa orfandade,
-esse passará com indulgencia, e ainda
-suspirando, pelos muitos defeitos que na leitura
-lhe occorrerem. Aos sem alma não tenho
-que dizer: se quizerem castigar o espirito meio
-morto, porque não pôde mais, fação-no, que
-dôres d’essas não acharáõ ja em mim lugar nenhum.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_49"></a>[49]</span></p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_50"></a>[50]</span></p>
-
-<h2 class="nobreak" id="EPISTOLA_A_PRIMAVERA">EPISTOLA<br />
-Á<br />
-PRIMAVERA</h2>
-
-</div>
-
-<p><i>Vai a Epistola em tudo outra da que fôra
-na primeira Edição: conserva a invenção e os
-pensamentos, mas emendou-se a linguagem,
-apertou-se o estilo, deu-se alguma côr mais ás imagens,
-explicarão-se melhor alguns pensamentos,
-reformarão-se e afinarão-se quasi todos os versos.</i></p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_51"></a>[51]</span></p>
-
-<h3 class="nobreak" id="EPISTOLA_DEDICATORIA">DEDICATORIA<br />
-A MINHA IRMÃ.</h3>
-
-</div>
-
-<p><i>Eu mandei o meu Genio campestre apanhar
-flores por entre os gelos do inverno. Formosas
-não saírão, bem o sei, porem n’esta estação do
-anno não mas dá melhores o estreito jardimzinho
-que me as Musas doarão nas fraldas do
-Parnaso. A ti, minha Irmã, me ordena o coração
-que as offereça. Felicidade será para mim,
-se quando para o teu lado me tornar, tu me
-disseres abraçando-me:—“Eu amo as flores
-que tu me enviaste, no meu seio as guardo:
-as da primavera menos me contentão do
-que estas, que o teu Genio campestre colhe
-no teu jardim, por entre os gelos do inverno.”</i></p>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_52"></a>[52]</span></p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_53"></a>[53]</span></p>
-
-<h3 class="nobreak" id="EPISTOLA_INTRODUCAO">DUAS PALAVRAS DE INTRODUÇÃO</h3>
-
-</div>
-
-<p>Fôra o inverno de 1821 para 22 dos mais
-desabridos e temerosos de que entre os vivos se
-faz memoria. Na Beira, onde me então achava,
-vião-se arrancados e espedaçados bosques,
-olivaes e pomares, sementeiras afogadas, pontes
-demolidas, e os rios sem margens. Dos 25
-de Dezembro até os 9 de Janeiro, que me demorei
-em uma aldeinha, uma legua desviada
-de Coimbra, saboreando no trato cordeal de
-alguns amigos e parentes as férias, então mui
-festivas, de meus estudos, foi sempre tão atada
-e rigorosa a porfia das invernadas, que nos
-falseou quasi de todo a recreação mais apetecida
-dos que fartos da cidade, vão alguma hora
-ao campo desenfadar-se. De não passear
-nos vingavamos o melhor que o tempo e lugar
-no-lo consentião: práticas desaffrontadas
-de constrangimento, temperadas de bom sal,
-e muitas vezes substanciaes; a voltas d’ellas,
-leituras accommodadas ao mais dos gostos, poesia,
-e improvisos de <i>charadas</i> e adivinhações
-nos enchião as horas não contadas. As espaçosas
-noites e boa parte dos dias, se levavão n’estes
-e semelhantes passatempos, em de redor
-de uma farta fogueira, segundo he costume
-d’aquellas terras. Por alguma rara tarde, quando
-o sol descobria, e o ar um pouco mitigado
-nos consentia saír, nos hiamos, ora pelo
-jardim onde se explanava um soberbo lago,
-outr’ora pela orla mais assoalhada dos laranjaes,<span class="pagenum"><a id="Page_54"></a>[54]</span>
-que mui corpulentos e viçosos, acenavão
-de seus ramos com frutos e flores, pondo a
-vista, o cheiro e o gôsto em doce competencia
-de delicias. Era ainda aquillo, ou ja era,
-umas lembranças, uns longes de primavera no
-coração do inverno, saíamos da prisão dos lares,
-aproveitavão-se com sofreguidão: talvez
-nenhum dia de perfeita primavera na longa
-cadêa d’elles me pareceo nunca melhor e mais
-ledo, do que estas pobres tardes sonegadas ao
-mez do Natal. A fantasia enganada do sol,
-toda se me desatava em poeticas flores, o que
-n’esses tempos só por maravilha me acontecia
-fóra da primavera, e luares do verão. Quando
-vinha a noite, acceita ao meu coração,
-(que sempre de si o conheci, não sei porque,
-amigo de com ella suspirar saudades), e ja todos
-ao conchego do nosso lume fiel nos tornavamos
-alvoraçados, comigo só me hia pouzar
-a um canto, colhendo, concertando e accrescentando
-com mui entranhado contentamento,
-quantas florinhas me havia brotado a fantasia.
-De saudades da primavera me parece ainda
-agora que nascião todas; o que certo sei, he
-que ahi, e n’um imaginar d’estes meus, me veio
-a lembrança e desejo de escrever á Primavera
-uma Epistola. Se n’isto abusei ou não da licença
-tão concedida a poetas, não o sei; sei
-que no ditar estes versos para se escreverem,
-e no conceber-lhes o assunto a passear ou a
-seroar, gozei prazeres que ja a crítica me não
-póde tirar. Se contra o bom juizo pequei, todo
-o meu pezar he não poder outra vez peccar<span class="pagenum"><a id="Page_55"></a>[55]</span>
-pelo mesmo modo, nem outra vez namorar-me
-da Primavera: os annos que a trazem
-ás arvores no-la levão a nós, e ja la vão quinze,
-(quinze annos!) sôbre o tempo em que eu
-brincava com estas innocencias.</p>
-
-<p class="right"><i>Lisboa: 9 de Dezembro de 1836.</i></p>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_56"></a>[56]</span></p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_57"></a>[57]</span></p>
-
-<h3 class="nobreak" id="EPISTOLA">EPISTOLA<br />
-<i>Á PRIMAVERA</i>.</h3>
-
-</div>
-
-<div class="poetry-container">
-<div class="poetry">
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0">Corre a Noite, jaz muda a natureza;</div>
- <div class="verse indent0">Os campos solitarios esmorecem;</div>
- <div class="verse indent0">Mal se ouve ao longe o estrondo da corrente:</div>
- <div class="verse indent0">De quando em quando a lua desmaiada</div>
- <div class="verse indent0">Mergulha em nuvens, surde, outra vez morre;</div>
- <div class="verse indent0">E das planicies a extensão geosa</div>
- <div class="verse indent0">Ora resae e alveja, ora se apaga.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">N’esta cabana de grosseiros troncos,</div>
- <div class="verse indent0">Tecido vime e colmo, onde sereno,</div>
- <div class="verse indent0">Vento, e cuidados não coárão nunca,</div>
- <div class="verse indent0">N’esta onde habita perennal fogueira,</div>
- <div class="verse indent0">E onde he Penate o Genio da hospedagem,</div>
- <div class="verse indent0">Venho entre amigos deslembrar tristezas:</div>
- <div class="verse indent0">Do frio lá de fóra o ultimo resto</div>
- <div class="verse indent0">Ja o atirei á chama tragadora.</div>
- <div class="verse indent0">Em ti, Amores meus, em ti só fallo</div>
- <div class="verse indent0">Ó Primavera minha; em ti só cuido;</div>
- <div class="verse indent0">A ti quero escrever: inda ha bem pouco</div>
- <div class="verse indent0">Em meu passeio a flor das larangeiras,</div>
- <div class="verse indent0">E do sol que hia a pôr-se o extremo raio,</div>
- <div class="verse indent0">Cá me derão de ti saudades tristes.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Desde que ao scetro do raivoso Junho</div>
- <div class="verse indent0">Tu doce com teus Zéfiros fugiste,</div><span class="pagenum"><a id="Page_58"></a>[58]</span>
- <div class="verse indent0">Meu dia estendo em languidos suspiros.</div>
- <div class="verse indent0">A noite em vagos sonhos me afigura</div>
- <div class="verse indent0">Ver-te, cantar-te, desfrutar teus mimos:</div>
- <div class="verse indent0">Mal desponta a manhã, mal foge o sono,</div>
- <div class="verse indent0">Desespero-me, lido entre amarguras;</div>
- <div class="verse indent0">Peço aos bosques sem folha, aos ermos campos,</div>
- <div class="verse indent0">Aos rochedos de neve, ás turvas fontes,</div>
- <div class="verse indent0">Ao ceo toldado, aos ares tempestosos,</div>
- <div class="verse indent0">E a toda a natureza, a minha Amada.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">“Primavera, onde estás?” do outeiro exclamo;</div>
- <div class="verse indent0">De valle em valle, de um cabêço em outro,</div>
- <div class="verse indent0">“Primavera, onde estás?” responde o echo:</div>
- <div class="verse indent0">No prado o guardador, no monte o Fauno,</div>
- <div class="verse indent0">Pelo arvoredo as Dríades á escuta,</div>
- <div class="verse indent0">“Primavera, onde estás?” depois exclamão.</div>
- <div class="verse indent0">Emquanto assim fiel, por ti ó Deosa</div>
- <div class="verse indent0">Me desentranho em ais, onde te escondes,</div>
- <div class="verse indent0">Perguiçosa gentil? onde vagueas</div>
- <div class="verse indent0">Bella inconstante que estes ais não ouves?</div>
- <div class="verse indent0">Algum Deos namorado, em plaga estranha,</div>
- <div class="verse indent0">Encheria de amor teus olhos livres?</div>
- <div class="verse indent0">Esquecer-te-hião, (Ceos!) promessas tantas?</div>
- <div class="verse indent0">Sim: que te importa o definhar de um vate?</div>
- <div class="verse indent0">Do vate que te amou, te adora ausente?</div>
- <div class="verse indent0">Tu folgas e elle gema; elle delire,</div>
- <div class="verse indent0">Tu a prados sorris vestindo prados,</div>
- <div class="verse indent0">Revês-te, amante nova, em novas flores:</div>
- <div class="verse indent0">Fontes ha tambem lá, que importão éstas?</div>
- <div class="verse indent0">De fonte ao claro espelho te engrinaldas;</div>
- <div class="verse indent0">E ufana de encantar sensiveis peitos,</div>
- <div class="verse indent0">Tambem, como entre nós, por lá dardejas</div>
- <div class="verse indent0">Fogo de amor aos entes insensiveis.</div><span class="pagenum"><a id="Page_59"></a>[59]</span>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Volta, volta, ó cruel, aos campos nossos.</div>
- <div class="verse indent0">Qual paiz no universo, a não ser Pafos,</div>
- <div class="verse indent0">He mais digno de ti? ¿por onde achaste</div>
- <div class="verse indent0">Para o cortejo teu, Ninfas, pastoras,</div>
- <div class="verse indent0">Como éstas que entre a murta o ceo nos cria?</div>
- <div class="verse indent0">Amantes mais fieis? florestas, rios</div>
- <div class="verse indent0">Namorar-se, mais frescas, mais formosos?</div>
- <div class="verse indent0">Mais doces flautas quando amor entoão,</div>
- <div class="verse indent0">Aves mais doces quando amor gorgêão?</div>
- <div class="verse indent0">¿A tua Cintra, Elisio dos desejos,</div>
- <div class="verse indent0">Nobre jardim do Oceano, onde folgavas</div>
- <div class="verse indent0">Contemplar na alta noite em mista dança</div>
- <div class="verse indent0">Ninfas das ondas, Ninfas das florestas,</div>
- <div class="verse indent0">Assim te descaío? ja não proteges</div>
- <div class="verse indent0">Os córos virginaes que ali passêão</div>
- <div class="verse indent0">Sorrindo ao ver seu nome em bosque e bosque?</div>
- <div class="verse indent0">¿Por toda a parte as Graças que espairecem;</div>
- <div class="verse indent0">Do aligero esquadrão travêssos brincos,</div>
- <div class="verse indent0">Frechas doiradas em contínuo vôo</div>
- <div class="verse indent0">Aqui e ali aos peitos descuidados,</div>
- <div class="verse indent0">E se errão corações, ferindo os bosques,</div>
- <div class="verse indent0">Porque os bosques ali tambem suspirão,</div>
- <div class="verse indent0">Tudo pois te esqueceo? Volve, ó Querida;</div>
- <div class="verse indent0">Cede, não sejas dura, a amor, aos versos.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Desde que te ausentaste ahi pende a lira</div>
- <div class="verse indent0">Nos braços nus de um álamo sem folhas,</div>
- <div class="verse indent0">A minha lira ao vento abandonada!</div>
- <div class="verse indent0">A lira d’oiro, onde entoei teu Nome,</div>
- <div class="verse indent0">Onde a minha paixão soou mil vezes</div>
- <div class="verse indent0">Na linguagem dos ceos a teus ouvidos,</div>
- <div class="verse indent0">Ei-la sem honra; os ventos lhe roubárão</div>
- <div class="verse indent0">Dos antigos festões o escaço resto!</div><span class="pagenum"><a id="Page_60"></a>[60]</span>
- <div class="verse indent0">Ao passar com seu gado, e vendo-a muda,</div>
- <div class="verse indent0">Diz suspirando a turba dos pastores:</div>
- <div class="verse indent0">“E’sta a que dava alento ás nossas festas:</div>
- <div class="verse indent0">Mal haja quem a trouxe a tal desterro!”</div>
- <div class="verse indent0">Dríades ternas, que meu canto ouvião</div>
- <div class="verse indent0">Não talvez sem prazer, dizem passando:</div>
- <div class="verse indent0">“O vate emmudeceo longe da Amada!”</div>
- <div class="verse indent0">Mas apenas teus Silfos precursores,</div>
- <div class="verse indent0">C’roados de violetas assomarem</div>
- <div class="verse indent0">Na ethérea região de nossos climas;</div>
- <div class="verse indent0">Apenas este ceo pezado e turvo</div>
- <div class="verse indent0">Mandar á terra os ultimos chuveiros;</div>
- <div class="verse indent0">Apenas rebentando as novas folhas</div>
- <div class="verse indent0">Se remoçar esse álamo tristonho,</div>
- <div class="verse indent0">E entre a nova ramage, emtorno á lira,</div>
- <div class="verse indent0">Cançada de seguir-te andar pouzando</div>
- <div class="verse indent0">A rolinha estrangeira, e sócia tua,</div>
- <div class="verse indent0">Á lira despirei do inverno o musgo;</div>
- <div class="verse indent0">E n’ella, de aureas cordas melhorada,</div>
- <div class="verse indent0">Só de ti chêo, na presença tua,</div>
- <div class="verse indent0">Brotarei versos, como brotas flores.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Oh voa, acode a consolar Cibele,</div>
- <div class="verse indent0">Cibele a térrea mãi da especie humana,</div>
- <div class="verse indent0">Cibele, amores teus, qual tu Deidade!</div>
- <div class="verse indent0">Se ora a visses! ... do carro verdejante</div>
- <div class="verse indent0">Os rebeldes tufões a derrubarão:</div>
- <div class="verse indent0">Co’a trança descomposta, o manto em rios,</div>
- <div class="verse indent0">A altiva c’roa em parte destruida,</div>
- <div class="verse indent0">Nua jaz á vergonha, ao vento, á neve.</div>
- <div class="verse indent0">Seu tanto desamparo he mágoa aos filhos:</div>
- <div class="verse indent0">Mas para dar-lhe a mão, torna-la a Nume,</div>
- <div class="verse indent0">Poder, qual em ti ha, não ha nos homens:</div><span class="pagenum"><a id="Page_61"></a>[61]</span>
- <div class="verse indent0">Do fundo do teu lodo a ti só chama,</div>
- <div class="verse indent0">Ai, leve-te algum vento as queixas d’ella!</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">As torrentes sem freio divagando</div>
- <div class="verse indent0">Contra marmóreas pontes indignadas,</div>
- <div class="verse indent0">Investem, chocão, despedação, rojão</div>
- <div class="verse indent0">Ruinas em montoẽs aos fundos mares.</div>
- <div class="verse indent0">As Dríades, teu povo e tua gloria,</div>
- <div class="verse indent0">Tremem, oh dor! ao furioso assalto</div>
- <div class="verse indent0">D’Euros, e Notos, e Africos em guerra:</div>
- <div class="verse indent0">A seu brutal furor nenhuma escapa:</div>
- <div class="verse indent0">Crer-se-hia que as prisões da Eolia furna</div>
- <div class="verse indent0">Para sempre arrazára a mão de Jove.</div>
- <div class="verse indent0">Dríades nobres de arvores antigas,</div>
- <div class="verse indent0">Refugio outr’ora das calmosas séstas;</div>
- <div class="verse indent0">Dríades bellas de arvores vaidosas</div>
- <div class="verse indent0">Co’a idade juvenil, verdura e fôrças,</div>
- <div class="verse indent0">Tem a seus pés quaes vítimas caído.</div>
- <div class="verse indent0">Co’os negros frutos oliveira amiga</div>
- <div class="verse indent0">Baqueou; não lhe valeo celeste guarda;</div>
- <div class="verse indent0">E Minerva prantêa o estrago enorme:</div>
- <div class="verse indent0">Cáe o pinheiro amedrontando os valles,</div>
- <div class="verse indent0">E Pan, sentado nos troncados restos,</div>
- <div class="verse indent0">Triste espera por ti co’a flauta muda.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">¿D’esta cabana a rustica fogueira</div>
- <div class="verse indent0">Sabes quem a sustenta? ah! corre, vôa:</div>
- <div class="verse indent0">Cedro, que eu te sagrei, caío por terra,</div>
- <div class="verse indent0">E onde brincou favonio estalão chamas.</div>
- <div class="verse indent0">Mui tarde chegarás se não-te apressas;</div>
- <div class="verse indent0">Do colono e pastor os ais te invocão,</div>
- <div class="verse indent0">A mesma natureza he morta quasi!</div><span class="pagenum"><a id="Page_62"></a>[62]</span>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Que fragor, que trovão! piedade ó Numes!...</div>
- <div class="verse indent0">Este deu raio, e pérto.—Outro rebrama!...</div>
- <div class="verse indent0">O Olimpo sobre nós desaba em fogo!</div>
- <div class="verse indent0">Chlóe, e Amarilis trémulas, gritando,</div>
- <div class="verse indent0">Desfeita a rubra côr em côr da morte,</div>
- <div class="verse indent0">Enchem de seu terror esta cabana.</div>
- <div class="verse indent0">O’ innocentes, miseras pastoras,</div>
- <div class="verse indent0">Não griteis, não tremais; vereis em breve</div>
- <div class="verse indent0">Dissipado este horror nos longes ares;</div>
- <div class="verse indent0">Contra o crime orgulhoso os Deoses troão,</div>
- <div class="verse indent0">Não fere o raio a rusticos alvergues.</div>
- <div class="verse indent0">Não, não me engano, ouvís como se afasta?</div>
- <div class="verse indent0">Como la vai ja longe? o mais do estrondo</div>
- <div class="verse indent0">Ja he toada vã no vão dos bosques.</div>
- <div class="verse indent0">Chuva propícia em caudalosa enchente</div>
- <div class="verse indent0">Desce na escuridão; resoa o této</div>
- <div class="verse indent0">Com o crebro saltitar das frias gotas:</div>
- <div class="verse indent0">Sibila o vento na vizinha serra.</div>
- <div class="verse indent0">Chlóe a porta fechou: nós apertâmos</div>
- <div class="verse indent0">O cerco estreito em deredor do fogo.</div>
- <div class="verse indent0">Cantou o gallo esperto: he meia noite!</div>
- <div class="verse indent0">E eu vélo ainda, e velarei saudoso</div>
- <div class="verse indent0">As horas todas que á manhã precedem!</div>
- <div class="verse indent0">Horas, horas de paz no horror das trevas;</div>
- <div class="verse indent0">Horas de estro, misterio, omnipotencia</div>
- <div class="verse indent0">Ao que nasceo das Musas bafejado!</div>
- <div class="verse indent0">Sonhe a ambição com purpuras, e scetros;</div>
- <div class="verse indent0">Torpe avareza com os inuteis cofres;</div>
- <div class="verse indent0">A vingança, fatal a si e aos outros,</div>
- <div class="verse indent0">Cogite embora nas traições, no engano,</div>
- <div class="verse indent0">Nos agudos punhaes, no sangue em jorros;</div>
- <div class="verse indent0">Vulgar amante afine, esmere astucias,</div>
- <div class="verse indent0">Com que succumba a tímida innocencia,</div><span class="pagenum"><a id="Page_63"></a>[63]</span>
- <div class="verse indent0">E aos laços venha destramente armados:</div>
- <div class="verse indent0">Eu dando a amor o que se deve ao sono,</div>
- <div class="verse indent0">Em chama pura, porque he tua, ardendo,</div>
- <div class="verse indent0">Alégro com teu Nome a horrenda noite,</div>
- <div class="verse indent0">A saudade em saudades apascento,</div>
- <div class="verse indent0">E inda ausente, comtigo ausente fallo.</div>
- <div class="verse indent0">Como o perdido em temeroso escuro,</div>
- <div class="verse indent0">Que ao mais leve rumor trémulo pára,</div>
- <div class="verse indent0">Assacinos agoura em cada tronco,</div>
- <div class="verse indent0">Não ouza resfolgar, prosegue a medo,</div>
- <div class="verse indent0">Aqui lhe surde a silva, alem penedos,</div>
- <div class="verse indent0">E lhe abrem fauces mil os precepicios,</div>
- <div class="verse indent0">Só tem na aurora esp’rança, e mal que ao longe</div>
- <div class="verse indent0">Annuncios d’ella vê, canta e renasce;</div>
- <div class="verse indent0">Serei mais que feliz pois vas ser minha,</div>
- <div class="verse indent0">Mal te sonhar ao longe, ó Primavera.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Sim: eu te amo inda mais que a vide ao tronco,</div>
- <div class="verse indent0">Mais do que o touro em maio ama a novilha;</div>
- <div class="verse indent0">Quero-te mais que o Deos de amor ás trevas,</div>
- <div class="verse indent0">Mais do que Flora ao Zéfiro inconstante.</div>
- <div class="verse indent0">Eu suspiro por ti, como suspira</div>
- <div class="verse indent0">Murchada planta por sereno orvalho,</div>
- <div class="verse indent0">E ardente ceifador por fresca fonte:</div>
- <div class="verse indent0">Es-me tão cara como a bella esposa</div>
- <div class="verse indent0">A seu amante de chorar cançado,</div>
- <div class="verse indent0">Quando no dia d’hirneneo se abração:</div>
- <div class="verse indent0">Tão doce emfim como o primeiro beijo,</div>
- <div class="verse indent0">Que uma terna pastora, a medo e a furto,</div>
- <div class="verse indent0">Consente ao seu pastor levar-lhe aos labios.</div>
- <div class="verse indent0">Qual dos amores, que no mundo girão,</div>
- <div class="verse indent0">He mais grato que o meu? Este em delícias</div>
- <div class="verse indent0">Excede tanto aos mais, como tu vences,</div><span class="pagenum"><a id="Page_64"></a>[64]</span>
- <div class="verse indent0">Tu belleza do ceo, do mundo as bellas:</div>
- <div class="verse indent0">Eu amo e para amar não me recato,</div>
- <div class="verse indent0">Ao mundo inteiro meu ardor confesso,</div>
- <div class="verse indent0">Tenho rivaes e do ciume zombo,</div>
- <div class="verse indent0">Gozo-te, e nem pudor nem leis mo estorvão.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Inda me está lembrando (hora doirada!)</div>
- <div class="verse indent0">Quando longe do mundo, e a sós comtigo,</div>
- <div class="verse indent0">Pela primeira vez te disse “Eu te amo!”</div>
- <div class="verse indent0">Abria a Aurora o roxo mez das flores:</div>
- <div class="verse indent0">Juntas em córos no arvoredo as aves,</div>
- <div class="verse indent0">De ramo em ramo aos ranchos adejando,</div>
- <div class="verse indent0">Em nunca ouvidos sons a luz saudavão:</div>
- <div class="verse indent0">Inda do puro rio a opaca nevoa</div>
- <div class="verse indent0">Bem não era desfeita ao sol nascido;</div>
- <div class="verse indent0">Inda das folhas concavas pendião</div>
- <div class="verse indent0">Trémulas gotas de luzente orvalho,</div>
- <div class="verse indent0">Que depois leva o brincador Favonio;</div>
- <div class="verse indent0">Quando (ai memoria doce!) eu dei comtigo</div>
- <div class="verse indent0">Inda meia a dormir na fofa relva.</div>
- <div class="verse indent0">N’alguns louros de roda entretecida</div>
- <div class="verse indent0">Hera tenaz um toldo te formava:</div>
- <div class="verse indent0">O melro grave, o rouxinol cadente,</div>
- <div class="verse indent0">Para encantar-te os sonhos, diffundião</div>
- <div class="verse indent0">Entre uns rosaes a musica dos prados;</div>
- <div class="verse indent0">Enchia aroma puro os puros ares.</div>
- <div class="verse indent0">Ligeiras, bellas Sílfides, velando</div>
- <div class="verse indent0">Invisiveis teu placido retiro,</div>
- <div class="verse indent0">Impedião que um Fauno petulante</div>
- <div class="verse indent0">Ou rustico pastor pozessem olhos</div>
- <div class="verse indent0">Em teu corpo sem véo, cheio de encantos.</div>
- <div class="verse indent0">Alí me conduzio propicio acazo:</div>
- <div class="verse indent0">Não mo impedirão Sílfides zelosas,</div><span class="pagenum"><a id="Page_65"></a>[65]</span>
- <div class="verse indent0">A natureza inteira he franca ao vate.</div>
- <div class="verse indent2">Ridente sono, da innocencia imagem,</div>
- <div class="verse indent0">Cerrava ainda os olhos teus ao dia:</div>
- <div class="verse indent0">Todo brandura o juvenil semblante,</div>
- <div class="verse indent0">Até sem o saber, até dormindo,</div>
- <div class="verse indent0">Faria suspirar homens e feras.</div>
- <div class="verse indent0">Entre a face mimosa e a fria relva</div>
- <div class="verse indent0">Tinhas meio curvado o braço lindo:</div>
- <div class="verse indent0">Como ao desdem, na esquerda seguravas</div>
- <div class="verse indent0">A cornucopia, a não poder com flores:</div>
- <div class="verse indent0">Halito doce de fragancia amena</div>
- <div class="verse indent0">Sáe do seio, que túrgido se eleva;</div>
- <div class="verse indent0">Dos roseos labios, da pequena boca</div>
- <div class="verse indent0">Vem tão doce, vem tal, que um peito humano</div>
- <div class="verse indent0">Bafejado por elle, excede os numes,</div>
- <div class="verse indent0">E a alma, em vez de pensar, delicias volve.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Tal eras, tal fiquei ó Primavera!</div>
- <div class="verse indent0">Espertaste de todo; e toda risos,</div>
- <div class="verse indent0">E todos luz e amor os olhos verdes,</div>
- <div class="verse indent0">O que era ja sem termo accrescentaste,</div>
- <div class="verse indent0">Dobrou-se a graça ao mundo, o fogo aos peitos.</div>
- <div class="verse indent0">Um mar de deleitosas fantasias</div>
- <div class="verse indent0">Me soçobrou, confesso, e tempo largo</div>
- <div class="verse indent0">Jazi com o ledo mundo em braços da alma.</div>
- <div class="verse indent0">Depois tornando em mim, ví-te ja prestes</div>
- <div class="verse indent0">Para baixar do outeiro aos amplos valles:</div>
- <div class="verse indent0">Quão mais louçã, e em galas mais garrida!</div>
- <div class="verse indent0">¿Que muito, se a mais nova das trez Graças,</div>
- <div class="verse indent0">De tuas mil Oréades servida,</div>
- <div class="verse indent0">Pozera as proprias mãos ao vago enfeite?</div>
- <div class="verse indent0">Erão-te manto ondado, e roupas simples,</div>
- <div class="verse indent0">Quanto verde ha na terra, e flor nas plantas;</div><span class="pagenum"><a id="Page_66"></a>[66]</span>
- <div class="verse indent0">Mas triunfava a rosa! aos botões d’ella,</div>
- <div class="verse indent0">Nem ja todos botões, nem flores todos,</div>
- <div class="verse indent0">Fôra o tépido seio em throno dado,</div>
- <div class="verse indent0">E em vez de o embellezar, se ornavão d’elle:</div>
- <div class="verse indent0">Erão raios do Sol a c’roa tua!...</div>
- <div class="verse indent0">Parei de embevecido! e quem no mundo</div>
- <div class="verse indent0">Te vio jamais como te vio teu vate?</div>
- <div class="verse indent0">Em teu seio amoroso um Cupidinho,</div>
- <div class="verse indent0">Qual borboleta d’oiro, esvoaçava</div>
- <div class="verse indent0">De botões a botões, na escolha incerto.</div>
- <div class="verse indent0">Vio-me; e curto farpáõ, doirado, agudo,</div>
- <div class="verse indent0">Curto farpáõ que os olhos não percebem,</div>
- <div class="verse indent0">Me arrojou, me sumio dentro no peito.</div>
- <div class="verse indent0">Graças ao tiro do mimoso Alado!</div>
- <div class="verse indent0">Na profundez da f’rida, e gôstos d’ella,</div>
- <div class="verse indent0">Contente reconheço, adoro um Nome.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Amante, desde então, ditoso amante,</div>
- <div class="verse indent0">De dia a dia te encontrei mais terna.</div>
- <div class="verse indent0">Incenso, que antes dava a falsas Musas,</div>
- <div class="verse indent0">Off’reci-te, acceitaste, e foste a minha.</div>
- <div class="verse indent0">Abriste-me a Aganippe em cada arroio,</div>
- <div class="verse indent0">Cada monte foi Pindo, e Tempo os valles:</div>
- <div class="verse indent0">E tu em cada valle, em cada monte,</div>
- <div class="verse indent0">Ante a lua, ante o sol, me estavas sempre</div>
- <div class="verse indent0">Musa do coração, presente aos olhos.</div>
- <div class="verse indent0">De poetas foi sonho a voz das outras,</div>
- <div class="verse indent0">A tua graciosa ciciava,</div>
- <div class="verse indent0">De toda a parte vinha em tom macio,</div>
- <div class="verse indent0">Que filtra inspirações, e a amor contenta.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Se os de ambições miserrimos forçados</div>
- <div class="verse indent0">Que ás cidades dão vida, e a si a roubão,</div><span class="pagenum"><a id="Page_67"></a>[67]</span>
- <div class="verse indent0">Podessem vir um dia onde tu reinas!</div>
- <div class="verse indent0">Se a mente que as paixões lhes anuvião,</div>
- <div class="verse indent0">E olhos em que os cuidados, seus verdugos,</div>
- <div class="verse indent0">Atárão com trez nós perpétua venda,</div>
- <div class="verse indent0">Podessem ver-te a luz deliciosa,</div>
- <div class="verse indent0">O manso da alegria, os gostos puros!...</div>
- <div class="verse indent0">Deixando sem adeos tumulto e pompas,</div>
- <div class="verse indent0">Mais de um, mais de um, salvando a tempo os filhos,</div>
- <div class="verse indent0">Co’as pouzadas dos bons unirra a sua.</div>
- <div class="verse indent0">E a quem darás tu nunca o riso cheio,</div>
- <div class="verse indent0">Como o déras a este, que trocasse</div>
- <div class="verse indent0">Oiro a virtude, e marmores a flores?</div>
- <div class="verse indent0">¿Que ja sôlto de si e a si tornado,</div>
- <div class="verse indent0">Viesse pôr, para os livrar de queda</div>
- <div class="verse indent0">E adora-los em ocio, os seus penates</div>
- <div class="verse indent0">Á beira de uma límpida corrente,</div>
- <div class="verse indent0">Que de um bosque atravéz susurra e foge.</div>
- <div class="verse indent0">Víra os Genios da terra o anno inteiro</div>
- <div class="verse indent0">A lhe aprestar a mesa; aqui brotando a</div>
- <div class="verse indent0">No pomar curvo, ali na horta regada,</div>
- <div class="verse indent0">Lá no chão da seara, alem na vinha</div>
- <div class="verse indent0">Que o recôsto do outeiro alastra e enreda,</div>
- <div class="verse indent0">Mais longe nos cabeços verdejantes</div>
- <div class="verse indent0">Onde o gado em socego os leites cria.</div>
- <div class="verse indent0">Não lhe ameaçára o raio o této humilde:</div>
- <div class="verse indent0">As manhãs, d’entre as ramas espreitando</div>
- <div class="verse indent0">Pela aberta janella, o acordarião,</div>
- <div class="verse indent0">Por lhe alargar a vida: os passarinhos</div>
- <div class="verse indent0">Lhe dirão nas frescas alvoradas</div>
- <div class="verse indent0">“Bem vindo, alegre amigo, ás nossas casas!</div>
- <div class="verse indent0">Nós cantamos teu Deos, somos felizes,</div>
- <div class="verse indent0">Tu louva o nosso, e goza d’este mundo.”</div>
- <div class="verse indent0">Se algum cuidado a vespera deixasse,</div><span class="pagenum"><a id="Page_68"></a>[68]</span>
- <div class="verse indent0">Levar-lho-hia na vêa murmurante</div>
- <div class="verse indent0">A correntinha onde lavasse o rosto.</div>
- <div class="verse indent0">Vê zagalas fieis, vê perigrinas</div>
- <div class="verse indent0">De formosura e joias não compradas,</div>
- <div class="verse indent0">(Que uma da-lha a saude, outras o prado);</div>
- <div class="verse indent0">Com ellas espairece a fantasia,</div>
- <div class="verse indent0">E se inda o coração quer mais ventura,</div>
- <div class="verse indent0">Ama; ao ceo que ja tinha, um Deos lhe accresce!</div>
- <div class="verse indent0">Quanto via e pasmava em mortos quadros,</div>
- <div class="verse indent0">Onde astuto pincel prodigios obra,</div>
- <div class="verse indent0">Sombras vãs, cujo preço he rios d’oiro,</div>
- <div class="verse indent0">Tudo agora real, vivo, mais bello,</div>
- <div class="verse indent0">De mais subida mão pintura immensa,</div>
- <div class="verse indent0">De graça lhe cercára o lar e a vida.</div>
- <div class="verse indent0">Mas ah! porque me sólto em vãs ideas!</div>
- <div class="verse indent0">Embora o preço teu não saiba o mundo,</div>
- <div class="verse indent0">Primavera, eu te adoro e tu me afagas:</div>
- <div class="verse indent0">Caro co’a lira vezes mil teu nome,</div>
- <div class="verse indent0">E tu me infloras magamente a lira:</div>
- <div class="verse indent0">Em longo mútuo abraço almas trocâmos;</div>
- <div class="verse indent0">A minha he mansidão, frescor, perfume,</div>
- <div class="verse indent0">Toda a tua, poesia, amor, extremos.</div>
- <div class="verse indent0">Lanças-me em teu regaço, e quando a noite</div>
- <div class="verse indent0">A lira e cornucopia aos dois nos furta,</div>
- <div class="verse indent0">Das-me dormir co’a fronte no teu seio,</div>
- <div class="verse indent0">D’onde me vem coando uns sonhos leves,</div>
- <div class="verse indent0">Todos teus, todos candidos, na fórma</div>
- <div class="verse indent0">De flores, de aves, de amorinhos, de auras.</div>
- <div class="verse indent0">Assim, me queres teu até no sono!</div>
- <div class="verse indent0">E porque sombras más o não perturbem,</div>
- <div class="verse indent0">Mo ficas a velar á luz dos astros,</div>
- <div class="verse indent0">O semblante pacífico ao sereno,</div>
- <div class="verse indent0">Os olhos no ceo da alva, e o peito amores.</div><span class="pagenum"><a id="Page_69"></a>[69]</span>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Mas tu ... porque não vens?—Não não me engano,</div>
- <div class="verse indent0">Inda agora os trovões rijo batalhão.</div>
- <div class="verse indent0">Talvez rola n’esta hora a tempestade</div>
- <div class="verse indent0">Pelo oceano de Atlante ondas sobre ondas;</div>
- <div class="verse indent0">Rugindo estoira o mar em crespas serras:</div>
- <div class="verse indent0">Possança de baixeis, esfôrço, industria</div>
- <div class="verse indent0">Não vale a contrastar-lhe a valentia;</div>
- <div class="verse indent0">De toda a parte a morte esvoaça, ruge</div>
- <div class="verse indent0">Na horrenda cerração com sons do averno;</div>
- <div class="verse indent0">O náufrago abraçado a sôlto lenho,</div>
- <div class="verse indent0">De toda a parte a vê, a ouve, a sorve;</div>
- <div class="verse indent0">Vai a abismos e a ceos repulso d’ambos,</div>
- <div class="verse indent0">E perde, antes da vida, a luz e a mente.</div>
- <div class="verse indent0">Sumio-se o ultimo audaz de sôbre as aguas!</div>
- <div class="verse indent0">De nuvens atro veo submerge a lua;</div>
- <div class="verse indent0">Não luz na escuridade alguma estrella;</div>
- <div class="verse indent0">He o luto do Homem forte! Ó Mar és livre!</div>
- <div class="verse indent0">Triunfaste, adormece.—Ah que de vezes</div>
- <div class="verse indent0">Taes scenas, tal horror, maior, mais negro,</div>
- <div class="verse indent0">Nos tem de si brotado a umbrosa quadra!</div>
- <div class="verse indent0">Ó tu contrária sua, o tu dos homens</div>
- <div class="verse indent0">Sempre invocada amiga, ethéreo Nume,</div>
- <div class="verse indent0">A quem ceo, terra e mar dão vassallagem,</div>
- <div class="verse indent0">Onde estás, que não vens com um leve assopro</div>
- <div class="verse indent0">Trazer serenidade aos elementos?</div>
- <div class="verse indent0">Se inda és a mesma, e súpplicas te movem,</div>
- <div class="verse indent0">Sobe ao carro da aurora, os ares fende,</div>
- <div class="verse indent0">E acode ao Luso clima, onde te invocão.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">¿Lembra-te a gruta, a gruta onde Amarilis</div>
- <div class="verse indent0">De seu ja quasi esposo Umbrano, o astuto,</div>
- <div class="verse indent0">Acceitou, de sincera, a grave aposta?</div>
- <div class="verse indent0">Qual era, que o pastor lhe não podia</div><span class="pagenum"><a id="Page_70"></a>[70]</span>
- <div class="verse indent0">Dar n’uma tarde tantos beijos, tantos,</div>
- <div class="verse indent0">Como as folhas do plátano vizinho,</div>
- <div class="verse indent0">Sendo o premio da aposta inda outro beijo?</div>
- <div class="verse indent0">¿Aquella gruta, onde ambos consumirão</div>
- <div class="verse indent0">Um dia teu, a adivinhar a ponto</div>
- <div class="verse indent0">Todas as graças do primeiro filho;</div>
- <div class="verse indent0">E só no sexo os votos discordavão,</div>
- <div class="verse indent0">Porque Umbrano pintava outra Amarilis,</div>
- <div class="verse indent0">E Amarilis raivosa um novo Umbrano?</div>
- <div class="verse indent0">Pois n’essa, n’essa gruta os meus amigos</div>
- <div class="verse indent0">Para hospedar-te um grão festejo tração.</div>
- <div class="verse indent0">Pôr-se-ha do cedro á sombra altar gramíneo</div>
- <div class="verse indent0">Com seus flóreos listões, onde c’roados</div>
- <div class="verse indent0">Te libem vinho annoso e leite puro,</div>
- <div class="verse indent0">Concertando himnos teus com lira e flautas.</div>
- <div class="verse indent0">O lavrador da proxima campina,</div>
- <div class="verse indent0">A estirada cantiga aos bois tardios</div>
- <div class="verse indent0">Parando calará, para escutar-nos.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Então, então começa o tempo d’oiro,</div>
- <div class="verse indent0">Folgão no campo os naturaes prazeres,</div>
- <div class="verse indent0">E a rustica alegria apraz aos deoses.</div>
- <div class="verse indent0">Aqui, apoz as candidas ovelhas,</div>
- <div class="verse indent0">Vai trigueira, descalça pastorinha</div>
- <div class="verse indent0">Aos echos do arredor cantando amores;</div>
- <div class="verse indent0">Ali galhudo Sátiro se esconde</div>
- <div class="verse indent0">Para colher alguma Ninfa errante;</div>
- <div class="verse indent0">Alem com ledos sons retine o bosque,</div>
- <div class="verse indent0">O riso ferve, as flautas se misturão;</div>
- <div class="verse indent0">Mais longe, aos pés de mal fingida ingrata,</div>
- <div class="verse indent0">Se exhalão rogos apiedando as selvas.</div>
- <div class="verse indent0">Um favonio subtil encrespa as ágoas,</div>
- <div class="verse indent0">E enfada a Ninfa, que estudava uns geitos</div><span class="pagenum"><a id="Page_71"></a>[71]</span>
- <div class="verse indent0">De se enfadar com quem de amor lhe falle.</div>
- <div class="verse indent0">Priapo brincador gira saltando</div>
- <div class="verse indent0">Nos jardins, nos vergeis, e nos pomares,</div>
- <div class="verse indent0">Ramos bate, alvorota o plúmeo bando,</div>
- <div class="verse indent0">Que foge, mas de Amor não foge ás settas.</div>
- <div class="verse indent0">Amor e seus irmãos, com o facho em punho,</div>
- <div class="verse indent0">Lanção tacito fogo a quanto existe.</div>
- <div class="verse indent0">Junto da verde faia susurrando</div>
- <div class="verse indent0">Se ouve outra faia um não sei que, tão doce,</div>
- <div class="verse indent0">Que aos amantes apraz o seu murmúrio.</div>
- <div class="verse indent0">Do rebanho o marido entre o rebanho</div>
- <div class="verse indent0">Bala amoroso, e todas lhe respondem:</div>
- <div class="verse indent0">Pela novilha se enfurece o toiro,</div>
- <div class="verse indent0">Accomette o rival, goza o triunfo.</div>
- <div class="verse indent0">Côr de neve, innocentes cordeirinhos</div>
- <div class="verse indent0">Ja balão na verdura, ja recresce</div>
- <div class="verse indent0">Maravilhando a serra, a grei profusa</div>
- <div class="verse indent0">Das erradias cabras saltadoras:</div>
- <div class="verse indent0">A nova creação corre exultando;</div>
- <div class="verse indent0">Aquelle foge, os outros o perseguem,</div>
- <div class="verse indent0">Voltão, saltão, empinão-se, discorrem</div>
- <div class="verse indent0">Por toda a parte n’um momento o prado;</div>
- <div class="verse indent0">Cresce o leite, e o pastor a quem ja faltão</div>
- <div class="verse indent0">Cinchos para o queijar, tarros que o levem,</div>
- <div class="verse indent0">Lédo se enraiva com riquezas tantas.</div>
- <div class="verse indent0">Todo o arredor da aldea he movimento,</div>
- <div class="verse indent0">Contente lida, esp’rança, amenidade.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Porque se hão de calar da infancia os brincos?</div>
- <div class="verse indent0">A infancia he primavera, he mundozinho</div>
- <div class="verse indent0">Florente, de que nasce um grande mundo.</div>
- <div class="verse indent0">Menino á espreita e mudo entre as silveiras,</div>
- <div class="verse indent0">Apoz o som do grillo o vai buscando;</div><span class="pagenum"><a id="Page_72"></a>[72]</span>
- <div class="verse indent0">Outro os ramos envisca, as redes arma;</div>
- <div class="verse indent0">Prêzo de longo fio ao pé mimoso</div>
- <div class="verse indent0">Passarinho pelo ar chirla e revoa,</div>
- <div class="verse indent0">E crendo-se de novo o rei do espaço,</div>
- <div class="verse indent0">De inconstante creança um dedo o rege.</div>
- <div class="verse indent0">Um mais travêsso, ás árvores trepado,</div>
- <div class="verse indent0">Nos ramos se embalança, ou furta os ninhos;</div>
- <div class="verse indent0">Outro mais atrevido, emvão forceja</div>
- <div class="verse indent0">Por montar no carneiro, que se escapa,</div>
- <div class="verse indent0">Fazendo ao longe retinir os bosques</div>
- <div class="verse indent0">Co’ o crebro som da aguda campainha.</div>
- <div class="verse indent0">Tenra menina um malmequer desfolha,</div>
- <div class="verse indent0">E pelo amor da mãi á flor pergunta;</div>
- <div class="verse indent0">Em quanto seus irmãos vão na corrente</div>
- <div class="verse indent0">Pôr de cortiça um concavo barquinho.</div>
- <div class="verse indent0">Na luta, na carreira apostas fervem.</div>
- <div class="verse indent0">Oh! da infancia do mundo amaveis scenas!</div>
- <div class="verse indent0">Se inda as virtudes sôbre a terra existem,</div>
- <div class="verse indent0">Se inda existe o prazer, o socio d’ellas,</div>
- <div class="verse indent0">He no campo, no campo; e a quadra tua</div>
- <div class="verse indent0">Nos mostra, ó Primavera, este prodigio.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0">Mas da fogueira as chamas enfraquecem!</div>
- <div class="verse indent0">Ja os gallos das proximas cabanas</div>
- <div class="verse indent0">Vão começando a annunciar-me o dia:</div>
- <div class="verse indent0">Que som grato! que enlêvo estar sentindo</div>
- <div class="verse indent0">Por um sereno albor, estes vizinhos</div>
- <div class="verse indent0">Nuncios da aurora, a cuja voz respondem</div>
- <div class="verse indent0">Outros aqui e alem, com voz diversa!</div>
- <div class="verse indent0">Sim, o dia começa: a luz nascente</div>
- <div class="verse indent0">Pelas fendas do této está brilhando.</div>
- <div class="verse indent0">Eis-me só junto ao lar! quem sabe ha quanto</div>
- <div class="verse indent0">Se irião meus bons hospedes ao colmo:</div><span class="pagenum"><a id="Page_73"></a>[73]</span>
- <div class="verse indent0">Agora em doce paz lá estão dormindo.</div>
- <div class="verse indent0">Que breve noite! e he finda; ah toda he finda!</div>
- <div class="verse indent0">Da fresta, onde cheguei, contemplo os ares,</div>
- <div class="verse indent0">E claro vejo o ceo, de nuvens limpo:</div>
- <div class="verse indent0">Mal brilha no horizonte a estrella d’alva.</div>
- <div class="verse indent0">E os olhos meus (oh dor!) só descobrirem</div>
- <div class="verse indent0">Como por um véo denso a natureza!</div>
- <div class="verse indent0">Os montes que longissimo se alcanção</div>
- <div class="verse indent0">De vinhas e arvoredo entresachados,</div>
- <div class="verse indent0">O rio ao longe a fulgurar co’as ondas,</div>
- <div class="verse indent0">Os remotos cazaes da gente humilde</div>
- <div class="verse indent0">Pelas verdes campinas alvejando,</div>
- <div class="verse indent0">Não vê-los eu! não ver!... Mas que murmúrio</div>
- <div class="verse indent0">Sólta a folhagem do loureiro antigo,</div>
- <div class="verse indent0">Que defronte de mim remonta aos ares?</div>
- <div class="verse indent0">O Favonio acordou, que hontem de tarde,</div>
- <div class="verse indent0">Cançado de girar, adormecêra</div>
- <div class="verse indent0">Junto á cascata no pomar sombrio.</div>
- <div class="verse indent0">Vai subito partir: em curtas horas</div>
- <div class="verse indent0">Será comtigo, e te dirá meus versos.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0">Meus Amores, adeos! adeos meu Nume!</div>
- <div class="verse indent0">Da Epistola a resposta a vinda seja.</div>
- </div>
-</div>
-</div>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_74"></a>[74]</span></p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_75"></a>[75]</span></p>
-
-<h2 class="nobreak" id="O_DIA_DA_PRIMAVERA">O DIA DA<br />
-PRIMAVERA<br />
-POEMETTO EM DOIS CANTOS</h2>
-
-</div>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_76"></a>[76]</span></p>
-
-<p><i>Em dois Cantos se divide agora este Poema,
-para commodo de quem lê. Entendi em apertar
-melhor que da primeira vez, este feixe de
-flores, se o he: algumas deitei fóra sem fazerem
-mingoa; as demais forão refrescadas, e se
-me não engano mais algum viço ganharão.
-Puz-lhe com tão boa vontade as mãos como na
-Epistola: pelo que, sem deixar de ser o
-mesmo, he outro; he o mesmo no essencial e
-intrinseco, todo outro no lustre e na toada.</i></p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_77"></a>[77]</span></p>
-
-<h3 class="nobreak" id="DIA_DEDICATORIA">DEDICATORIA<br />
-A MINHA MÃI.</h3>
-
-</div>
-
-<p><i>Á maneira das arvores, que acordando do
-sono do inverno ao bafo omnipotente da primavera,
-como que ressuscitão com o riso e vida
-nos primeiros olhos e flores, o meu engenho
-começa a matizar-se das suas, com a tornada
-d’estes dias puros e deleitosos aos amigos do
-campo. As primicias, que d’ellas pude colher,
-forão para a grinalda que apresentei na Festa
-da Primavera celebrada com os meus amigos.
-Depois de a haver tirado do altar da Deosa
-que governa a mocidade do anno, a quem senão
-a ti, ó minha Mãi, devêra offerecer esta
-grinalda? sim: outrem qualquer a engeitára
-por de nenhum preço; de ti sei eu certo que
-lhe acharás uma graça especial, mais finas côres,
-e fragrancias mais suaves: emfim me atrevo
-esperar que póstos amorosamente os olhos na
-minha Obra, entenderás, sem o dizer, como eu
-sinto todo o amoroso da gratidão, ao cuidar em
-quem me deo alem do ser, a educação, e todos
-os mais carinhosos desvelos: alguns suspiros e
-lagrimas, para cúmulo da minha felicidade, serão
-talvez por ti, ó minha Mãi, espalhados na
-minha ausencia.</i></p>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_78"></a>[78]</span></p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_79"></a>[79]</span></p>
-
-<h3 class="nobreak" id="DIA_HISTORIA">HISTORIA DA FESTA<br />
-DA<br />
-<i>PRIMAVERA</i>.</h3>
-
-</div>
-
-<p>Remontando a vêa do Mondego até obra de
-um quarto de legua para cima da Cidade, encontra-se
-na margem do poente um gracioso
-retiro, selvatico sem aspereza, e como que enfeitado
-sem arte: dissereis que em hora de contentamento
-o fizera a Natureza, para algum
-dia hospedar no regalo d’aquellas suas sombras
-um ajuntamento de poetas seus. De <i>Lapa dos
-Esteios</i> pozerão nome ao sítio em dias remotos,
-segundo soa, os vinhateiros e pomareiros
-que de umas e outras varzeas do rio costumavão
-acudir ali por paos, com que estear suas
-parreiras e arvores derreadas com o pezo da
-fruta. Ainda permanece o nome, porem ja
-o arvoredo se não desbarata pelos vizinhos, e
-a Lapa, de tão solitaria e amena que he, parece
-a appetecida estancia do Genio da liberdade.</p>
-
-<p>Entra-se por um breve cáes ornado de cinco
-alterosas arvores, das quaes uma torcendo-se
-toda para o rio, se debruça para saudar e cobrir<span class="pagenum"><a id="Page_80"></a>[80]</span>
-com a sua sombra os bateis que chegão.
-No tôpo do cáes, e fronteira a quem desembarca,
-se alevanta um genero de muralha nativa
-de rochedo, rôto em muitos seios. Esta penedia,
-até aos nove ou dez palmos de altura,
-sóbe nua e só ornada de sua mesma aspereza;
-d’ahi para cima, como envergonhada
-de sua dura condição, se esconde toda com um
-frontal de heras, que ora resaem como cabeços
-pendurados, ora se recolhem para fantasiarem
-la por dentro suas grutazinhas e labirinthos,
-d’onde ás vezes se estão vendo saír por um cabo
-e por outro os passaros, que depois de beber
-e se banharem na vêa da agoa, se empoleirão
-pelos lamegueiros vizinhos, namorando e
-cantando a suavidade e fresquidão de suas habitações.
-Pelo lado direito d’esta aprazivel scena,
-sóbe uma cerrada espessura de bosque pequeno,
-onde os olhos se enleão na confusão de
-troncos e folhagem: pelo esquerdo abre-se para
-cima uma escada rustica mas commoda, de
-doze degraos. Tecem-lhe estendido toldo dois
-lamegueiros velhos, e outras arvores mais pequenas
-se abração por ali, travadas com mil
-voltas de hera. Dá esta subida em uma planura
-sôbre o comprido com seus assentos de
-ambas as bandas, isto he da terra e do rio,
-o qual por entre um basto arvoredo, que d’ahi
-por uma especie de promontorio, vai descendo
-até lhe metter os pés na corrente, se está vendo
-a furto transparecer: das primeiras cabeças
-d’este arvoredo cáe para os assentos uma boa
-a vedada sombra. O puro e perfumado dos<span class="pagenum"><a id="Page_81"></a>[81]</span>
-ares, a vária presença da terra e aguas, o
-susurrar dos ramos abanados da viração, as
-melodiosas querellas das aves, em summa o
-natureza enfeitada só de suas mãos, e paz e
-descanço de deserto, são a fonte perenne dos
-encantamentos d’este sítio. Uma ladeira suave
-opposta á escada, e ainda mais sombreada,
-despede em outro cáes com seus degraos nativos
-de rocha até á agua. He este menos bem
-assombrado que o primeiro: não tem relva,
-nem arvore, nem verdura afóra ada muralha
-no tôpo, toda velada de musgos, matizados com
-seus tufos de fetos silvestres, congossas e um
-sem numero de outras plantas e ervas, sobresaindo
-a espaços alguns ramos solitarios de
-figueira brava: mas o que de interior graça
-lhe fallece, lho compensa a larga vista que para
-fóra desfruta.</p>
-
-<p>Era chegado o primeiro dia de primavera.
-Tratado e assentado estava de ha muito entre
-mim e meus amigos, como iriamos passa-lo
-juntos, em uma romaria e festa poetica á
-honra d’aquella mais formosa parte do anno.
-Não faltavão á volta da Cidade muitos sitios
-accommodados ao intento, antes não creio que
-possa haver no mundo outra verdadeira Arcadia,
-que em tão pequeno espaço resuma tantos:
-mas d’entre todos coube á Lapa dos Esteios
-a palma da competencia. De doze se
-compunha o rancho, todos amigos, poetas e
-academicos.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_82"></a>[82]</span></p>
-
-<p>Por volta de meio dia, pouco mais, nos
-ajuntámos com muita alegria e abraços, e todos
-com as nossos ramalhetes de primavera
-nas mãos, nos pozemos alvoraçadamente em
-caminho para o rio, onde ja o barco nos
-aguardava. O ar estava puro: contra o sol
-que ardia rijo, nos acudia com refrigerio
-um pouco vento, que ao mesmo tempo nos
-fazia mui boa feição para contrastar a corrente.
-Saltámos e partimos.—Em quanto alguns
-por um e outro bordo ajudavão o favor do
-ar com o trabalho de suas varas, repellindo o
-álveo, e fazendo-nos resvalar mais prestes á
-medida de nossos desejos, os demais amotinavão
-ao longe ambas as ribeiras com suas cantigas
-de amores, entoadas em chusma. A cada
-momento porem se quebrava por si o canto,
-para se contemplar e encarecer o muito que a
-natureza e o artificio podérão e soubérão crear
-para enlevo de olhos, por ambas aquellas dilatadas
-margens e campos: pradaria verde e florída,
-outeiros risonhos, cazaes branqueados,
-grangearia e recreação de quintas, pomares,
-hortas, jardins, e mil arbustos curvos por entre
-choupos e salgueiros até beijarem a agua, esse
-era o painel em que meus amigos se hião enlevando,
-e que a mim, que pelo longe que era
-posto, o não podia nem por nevoas enxergar,
-me desentranhou algum suspiro, dando-me
-a sentir no meio da geral alegria alguns momentos
-magoados, recostado na borda da embarcaçaõ.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_83"></a>[83]</span></p>
-
-<p>Mil couzas pequenas, e por ventura vãs (mas
-quaes ha que sejão taes para gente moça em
-dia de júbilo?) matizarão toda esta viagem: taes
-como a grita que de subito alevantámos ao
-passar por baixo do arco grande da ponte,
-aonde as vozes, refletindo do massiço da cantaria,
-nos ressortião para os ouvidos com uma
-estranha soada, como que por aquella porta
-e esteiro estivessemos entrando um mar nunca
-d’antes descoberto; despedidas á Cidade que
-de nós se alongava, branca e assentada em seu
-monte, até que desapparecia, e ás margens que
-para nós arremettião correndo com seus estendaes,
-lavradores e rebanhos, para logo nos
-passarem alem, fugir-nos e perderem-se; a
-vista de um bando immenso de pombas, que
-levantando-se espavoridas com a nossa passagem,
-de um ilheo de arêa onde se estavão a
-beber e banhar-se, nos atravessarão pela proa
-e forão derramar-se todas queixosas pela ribanceira
-vizinha; o ceo a espelhar-se inteiro
-nas aguas ufanas de retratarem multiplicado
-o sol da primavera com toda sua magnificencia:
-semelhantes nadas produzião em somma
-um genero de felicidade a estes moços Anacreontes
-viajando, á qual, para de todo o ser, só
-faltava poder durar.</p>
-
-<p>De instante para instante importunavamos
-os barqueiros, perguntando insoffridos quanto
-nos restava do caminho. Cuidava-se ver a Lapa
-dos Esteios em quantas soledades apraziveis
-nos apparecião ao longe. Emfim a apontárão<span class="pagenum"><a id="Page_84"></a>[84]</span>
-com o dedo; levantão-se todos, todos com
-clamor unísono a saudão. Saltámos logo no
-primeiro cáes, deixando o nosso barco amarrado
-a uma arvorezinha, que se algum curioso
-vier visitar aquelle sitio, he a terceira da
-parte esquerda. Uns de outros derramados,
-nos fomos prestesmente por onde o acaso ou a
-fantasia nos levavão, correndo e devassando
-toda aquella solidão, que por algumas horas
-vinhamos povoar: e tornando-nos a ajuntar no
-alto, onde tão commodos assentos se nos deparavão.
-“Esta Lapa disse um, para estancia
-e habitação das Musas parece feita; por
-aqui as heras pendem de toda a parte!”
-Sobre o que, se procedeo logo á lição dos poemas
-que todos levavamos. Aqui usarão meus
-amigos para comigo de huma cortezia, de que
-por mais que fiz me não foi possivel defender-me,
-ordenando-me com seus rogos que os
-meus versos, para os quaes o ultimo lugar em
-tal companhia podéra ainda ser de muita honra,
-rompessem antes de outros aquelle acto.
-Estes, a que eu pozera o titulo que ainda tem
-<i>O Dia da Primavera</i>, ja primeiro que o sitio
-fosse escolhido se achavão feitos, rasão porque
-não ha que procurar n’elles a pintura d’elle.
-Concebêra eu um dia de Primavera levado pelos
-campos em contentamento com aquelles companheiros;
-tomei de minha livre imaginação o
-que me pareceo bastaria para o encher; e poetei-o
-sem me obrigar a nenhuma outra verdade.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_85"></a>[85]</span></p>
-
-<p><i>Elmiro</i> (que todos havião arcadicamente tomado
-para si nomes de pastores) assim como
-a leitura foi rematada, veio para mim com
-um listão de heras nas mãos, e mo lançou,
-a todo o poder que eu pude para me escusar,
-do hombro direito ao lado esquerdo.—Seguio-se
-<i>Anfrizo</i>, o qual em pé junto de mim, e
-com uma coroa em punho, recitou uma formosa
-Ode, toda floreada dos louvores que a
-amisade lhe figurava poderem-me bem assentar;
-e chegado que foi á ultima estrofe, me coroou
-abraçando-me. Tambem a esta honra me
-foi forçado ceder, com quanto claramente em
-mim sentisse o muito que vinha mal empregada:
-a amisade ordenava, o dia era seu, rendi-me.
-Era a grinalda de artificiosissimo lavor,
-mui fresca, e tecido de louros, heras e
-cópia de flores naturaes; guardei-a com ufania
-e como joia; quizera conserva-la para sempre,
-mas representava gloria, e minha, murchou,
-desfez se, largos annos ha que he pó,
-e pó disperso.</p>
-
-<p>Dado que ja então fosse tal o meu triunfo,
-qual nem em sonhos de ambição o podéra antever,
-<i>Josino</i>, a cuja feiticeira Musa ja eu era,
-muito havia, devedor, inda o subio de ponto,
-lendo antes de um poema, pequeno em extensão
-mas grande e grandissimo em merecimento,
-um elogio a mim em tão delicados versos,
-que não posso menos de perdoar-lhe a lisonja.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_86"></a>[86]</span></p>
-
-<p><i>Aulizo</i><a id="FNanchor_5" href="#Footnote_5" class="fnanchor">[5]</a> leo um longo poema intitulado
-<i>A Primavera</i>, que todo respirava amor aos campos
-e á virtude, ataviado de mui mimosas galas
-poeticas, e de mui particular doçura e sabor
-para os ouvidos: nem se cuide que sangue ou
-amisade ou vãgloria me fazem fôrça para o
-dizer, que antes o dissimulára eu, se o ser irmão
-e amigo fossem partes para, quando a
-todos os mais vou distribuindo seu preço, lho
-sonegar a elle; e ainda assim talvez o não
-ousára, se tão boas testemunhas não valessem
-a confirma-lo.</p>
-
-<p>Foi esta leitura interrompida de uns sons de
-flauta, que por cima das cabeças, e de mui
-perto nos vinhão: era o meu caro amigo, Horacio
-portuguez, José Fernandes de Oliveira
-Leitão de Gouvea, que alvoraçando-nos e alvoraçado,
-nos apparecia ao cimo da curta escada
-que da Lapa sobe para a <i>Quinta das Canas</i>,
-que lhe fica sobranceira. Forão tudo clamores
-de alegria, recebendo entre nós, poetas
-todos verdes, o nosso decano e patriarcha;
-cercámo-lo com abraços, das mãos lhe furtarão
-a flauta, foi levado de repente a todos os
-recantos do nosso Parnaso, contando-lhe todos
-á uma o que até ali se passára, que vezes
-se fallára n’elle, e se desconfiára de sua promettida
-vinda. Este homem amavel, jovial,
-incapaz de estudadas gravidades, dado e corrente
-com todos, bom sem merecimento de esfôrço,<span class="pagenum"><a id="Page_87"></a>[87]</span>
-filosofo sem o cuidar, coração que ainda
-não saío nem ja agora sairá da infancia,
-homem só comsigo parecido, que a ninguem
-imitou nunca, nem de outrem será nunca imitado,
-e cuja vida, se alguem soubesse escrevê-la,
-sairia tão original e unica como elle mesmo,
-este digo, nascido para ser alma de qualquer
-ajuntamento moço e alegre, tomou para
-logo seu quinhão na Festa. Deu-se fim ao poema
-interrompido com a chegada do novo socio,
-que muitas outras vezes o tornou a interromper
-com applaudir e abraçar o poeta. <i>Josino</i>,
-que assim como o ouvia fôra entrançando
-uma coroa de hora da arvore mais chegada, mal
-que o ultimo verso expirou, se foi com ella,
-por entre as palmas de todos, premiar a fronte
-do cantor.</p>
-
-<p><i>Elmiro</i>, que de apoz se seguio, nos cativou
-as attenções com um poema de muita invenção
-e belleza, aonde outra vez a amizade me
-brindou com perfumes seus, para os não dizer
-da lizonja. Igualmente o coroámos; e outro
-tanto se foi fazendo aos demais, que recitarão
-poemas mais breves ou traduções.</p>
-
-<p><i>Salicio</i><a id="FNanchor_6" href="#Footnote_6" class="fnanchor">[6]</a> repetio uma mimosissima tradução
-livre de uma parte da <i>Primavera</i> de Thompson:
-<i>Albano</i>, uma tradução em lindas quadras
-do Idillio Primavera de Gessner: <i>Francilio</i>,
-uma tradução em proza de Utz, que<span class="pagenum"><a id="Page_88"></a>[88]</span>
-leo de pé com o copo em punho, e rematou
-com um brinde: <i>Franzino</i> uma versão da <i>Primavera</i>
-de Cramer: cerrando-se finalmente este
-rico banquete poetico com mais de quatrocentos
-versos de um poema de meu irmão José
-Feliciano de Castilho, que pelo muito menino
-que ainda áquelle tempo era, não foi
-dos menos vitoriados.</p>
-
-<p>Todos estavamos coroados, e o rancho se
-espalhou. “Ja la vai o sol abaixo; os seus
-raios apenas tocão ja os cumes dos outeiros
-d’alem: aproveitar o tempo!” bradarão
-alguns amigos da borda de uma eira que dominava
-a Lapa: e todos sentimos que a tarde
-nos hia insensivelmente escapando. Então ao
-som da flauta do nosso Horacio, começarão
-todos de dançar e saltar, e as aves incitadas
-da musica, levantarão mais alto os gorgeios
-da tarde. As folhas das heras, que por ali
-guarnecião todas as arvores, e algumas flores
-voavão ás mãos chêas como em chuva, de uns
-contra os outros. De quando em quando se
-alevantava alguma voz inculcando, porque o
-fossem todos ver, algum particular gracioso e
-ainda não observado d’aquelle sítio. Chamando
-<i>Aulizo</i> pelos outros, lhes fez notar do cáes
-mais arido, o como o rio d’ali visto,
-á conta de sua curvidade se afigurava lago cercado
-de collinas desiguaes, coroadas e semeadas
-de larangeiras, oliveiras e pinheiros, e cazaes
-alvejando, enxergando-se mais a longe, e por
-entre estes, outros outeiros, quasi a se desvanecer<span class="pagenum"><a id="Page_89"></a>[89]</span>
-na distancia e sombra da tarde. Debuxava
-eu no animo toda aquella scena saudosa;
-saía-me o quadro maravilhoso, mas era por
-ventura verdadeiro? não o sei.</p>
-
-<p>Uma merenda saborosa nos appareceo de repente
-e como por encanto: <i>Elmiro</i> fôra o magico
-providente. Toalhas brancas de neve estendidas
-no cáes do desembarque, forão povoadas
-de primorosos manjares, garrafas ja de
-dias, e copos coroados de verdura: uns rolos
-de arvores estendidos em quadro nos valerão de
-assentos: dois meninos gémeos, vestidinhos da
-branco, erão os Ganimedes do nosso banquete
-folgazão. Parte assentados, parte reclinados
-em diversas posturas, outros por entre estes girando
-com os copos e pratos na mão, boas
-descaídas, descuidos a tempo, apontadas graciosidades
-e risos do íntimo, brindes com o copo
-alto na direita, enviados a mui longes e
-mui diversas terras (que não havia um só que
-da sua não padecesse ausencia e se não finasse
-com saudades), outras saudes ora mais ora
-menos sumidas, a objetos nomeados umas vezes
-e outras não, mas mui bons de adivinhar pelos
-suspiros e geito do saudador, a voltas e
-proposito d’isso narrativas e contos para folgar,
-musicas alegres de flauta mil vezes começadas
-e outras tantas interrompidas, e outros
-muitos nadas com que a penna se não atreve,
-convinhão em aprazivel mistura para encantar
-a ultima hora da Festa da Primavera.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_90"></a>[90]</span></p>
-
-<p>Posto era o sol, mas o ceo ainda não carregado
-de noite: havia-se de partir, faltava
-o animo para o fazer; instavão os barqueiros,
-crescião n’elles a rasão e o importunar, acabárão
-comnosco que nos rendessemos. Despedidos
-os amorosamente da Lapa ja áquella hora
-entranhada de escuridão temerosa; com os pés
-ja postos na beira da agua, nenhum queria ser
-primeiro que trocasse terra de tanta festa, por
-um barco que nos hía tornar para onde vida
-de proza e cuidados nos aguardava: senão
-quando, levantando o bom Gouvea a voz,
-com ella suave e chêa que se hía por aquellas
-margens alem, começa de cantar <i>A minha Lilia
-morreo</i>; improviso seu, chêo de uma branda
-tristeza, que aos cançados e não fartos de
-gozar costuma ser segundo gozo. Assim hia
-elle até n’isto imitando o seu Horacio, que
-nos poeticos festins que dava ao Genio da alegria,
-nunca se esquecia com seu quinhão de pensamento
-para a morte. Profundo era o silencio
-que de toda a parte cercava o nosso cantor;
-só se ouvia o murmurio baixinho da corrente.</p>
-
-<p>Não havia quem nos apartasse: por derradeira
-vez nos tornámos ainda á Lapa, travou-se
-uma dança por despedida, e fez-se uma
-saude geral ao lugar e ás trez Graças que ali
-costumão a vir muitas vezes<a id="FNanchor_7" href="#Footnote_7" class="fnanchor">[7]</a>, até que emfim<span class="pagenum"><a id="Page_91"></a>[91]</span>
-nos embarcámos, com as nossas coroas na
-cabeça. Foi aos barqueiros defendido usar de
-vara, antes se lhes encommendou que nos deixassem
-embora ir, tão mansa e perguiçosamente
-como á vêa mal desperta do rio parecesse,
-e ainda n’aquelle pouco descer das aguas houvéramos
-nós tido mão, se podessemos.</p>
-
-<p>Pareceo bem, para atalhar a confusão de
-tantas vozes como as que ali fervião juntas,
-nomear á maneira do Rei do vinho nos festins
-dos antigos, um que nos governasse. Este
-foi Gouvea por acclamação unanime. Lembrou
-um que d’ahi ao deante nos ficassemos uns aos
-outros dando o tratamento de confiança, que
-a boa amizade consente e requer: approvou-se.
-“E quemquer que a esta lei desobedeça, haja-se
-por expulso da <i>Sociedade dos Amigos
-da Primavera</i>.” Approvou-se com alvoroço;
-levantarão-se todos abraçando-se, apertando-se
-entre si as mãos, e dando-se entre risos
-o tratamento novo tão amiudado para lhe quebrar
-a estranheza, que ninguem se entendia.—“Todos
-os Socios (gritou outro, e de novo se
-fez silencio) hão de conservar até que o
-tempo as destrua, estas suas coroas, se não
-monumentos de gloria, penhores certo que
-mais vale, de horas felizes:” approvou-se
-por lei o que ja todos levavão no coração bem
-votado. Suscitou-se depois que recitasse cada
-um segundo a ordem dos assentos, alguma sua
-poesia breve, e que mais lhe parecesse accommodada
-á occasião. Não faltárão aqui seus debates,<span class="pagenum"><a id="Page_92"></a>[92]</span>
-lembrando uns como apoz tanto recitar,
-tinha a cantoria muito melhor cabida do que
-os versos nus, outros affirmando que a flauta
-melhor que nenhuma outra cousa diria com a
-hora, sítio, e calada grande do rio: até que
-um veio conciliar a diversidade dos pareceres,
-dizendo que umas couzas não tolhião as outras,
-antes podião ir todas a revezes tendo seu lugar:
-o que assim se cumprio.</p>
-
-<p>A serenidade da noite junta com as saudades
-do dia, nos fez achar inefavel doçura nos
-sons da flauta, que parecião modulados pela
-melancolia, e se esvaíão ao longe nos ares. Se
-ás vezes o acaso nos levava mais para uma das
-margens, uns frouxos echos chêos de doçura a
-tristeza se comprazião de repetir a musica e as
-palmas com que a nós applaudiamos. Emquanto
-um só cantava em meia voz, e nós o ouviamos
-calados, a face na mão, e meio reclinados
-contra o rio, suave nos era escutar como
-as quasi insensiveis ondas, com som muito
-mais baixo nos vinhão beijar os lados do batel,
-d’onde, se fugião partindo, com um murmurinho
-saudoso.</p>
-
-<p>Descemos em terra, e abraçando-nos repassados
-de igual amizade, e das mesmas lembranças,
-votámos logo ali nova Festa em honra
-do primeiro dia de Maio, a qual se veio a fazer,
-como ao deante o declarará o volume: e
-todo esse meio tempo de uma até á outra, foi
-tecido de doces memorias, fantasias poeticas,
-tenções e esperanças de prazer.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_93"></a>[93]</span></p>
-
-<p>Assim se podia e sabia ainda então passar
-dias mansos, innocentes e bemaventurados!</p>
-
-<p class="right"><i>Lisboa: 2 de Janeiro de 1837.</i></p>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_94"></a>[94]</span></p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_95"></a>[95]</span></p>
-
-<h3 class="nobreak" id="DIA_CANTO_I">O DIA<br />
-DA<br />
-PRIMAVERA.</h3>
-
-<h4>CANTO I.<br />
-<i>A Manhã</i></h4>
-
-</div>
-
-<div class="poetry-container">
-<div class="poetry">
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Ei-la que chega a amante Primavera!</div>
- <div class="verse indent0">Logo ao romper do dia susurrando</div>
- <div class="verse indent0">Vós, Favonios azues, a annunciaveis.</div>
- <div class="verse indent0">Chega ... chegou! as aves a festejão</div>
- <div class="verse indent0">Desatinadas, doidas; ja com verdes</div>
- <div class="verse indent0">Braços lhe acena o bosque; estão-se os rios</div>
- <div class="verse indent0">A retrata-la; as fontes a murmurão;</div>
- <div class="verse indent0">Traz gala o monte; os valles se alcatifão;</div>
- <div class="verse indent0">Ri-lhe o ceo todo, a Natureza he d’ella!</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Mais cedo ao leito do marido annoso</div>
- <div class="verse indent0">Hoje a Aurora fugio; tomou regaço</div>
- <div class="verse indent0">De orientaes aljofares mais rico,</div>
- <div class="verse indent0">Mais cópia em seio e mãos de ethéreas flores.</div>
- <div class="verse indent0">Aos umbraes inda escuros do horisonte</div><span class="pagenum"><a id="Page_96"></a>[96]</span>
- <div class="verse indent0">Quem a aguardava, quem? os meus Amores</div>
- <div class="verse indent0">Que encontro! que abraçar-se!... O Zefirinho</div>
- <div class="verse indent0">Que ja por entre nós passou trez vezes,</div>
- <div class="verse indent0">Trez vezes ao passar mo ha segredado:</div>
- <div class="verse indent0">Vio tudo, tudo ouvio, que era elle proprio</div>
- <div class="verse indent0">Um dos que pelo ar vinhão soprando</div>
- <div class="verse indent0">O matizado pavilhão de nuvens,</div>
- <div class="verse indent0">Em que ás terras baixava o Par celeste.</div>
- <div class="verse indent0">Rosto a rosto inclinado; as mãos unidas;</div>
- <div class="verse indent0">Mago riso um só riso em bocas duas;</div>
- <div class="verse indent0">Absortos em luz mutua os mutuos olhos;</div>
- <div class="verse indent0">Duas Gémeas do ceo, duas Virtudes</div>
- <div class="verse indent0">N’uma Virtude só, se afiguravão.</div>
- <div class="verse indent0">—“Ó minha Irmã (dizia a Primavera)</div>
- <div class="verse indent0">“Quem nos ha de estremar? tu es do dia</div>
- <div class="verse indent0">“A Primavera, eu sou do anno Aurora”—</div>
- <div class="verse indent0">—“Filha como eu do Sol (acode rindo</div>
- <div class="verse indent0">“A Aurora), ó doce Irmã, vérte-te o Fado,</div>
- <div class="verse indent0">“Não q eu to inveje, os bens de urna mais ampla:</div>
- <div class="verse indent0">“Deu-te folgar sem mim, deu-te a alegria</div>
- <div class="verse indent0">“Dos dias que eu só abro, e os tão gabados</div>
- <div class="verse indent0">“Prazeres que eu não vi, não verei nunca,</div>
- <div class="verse indent0">“Prazeres do sol pôsto, e de alvas noites.</div>
- <div class="verse indent0">“A mim lida perenne, a mim rigores</div>
- <div class="verse indent0">“De oppostas estações, reinar de instantes,</div>
- <div class="verse indent0">“Contínua fuga, e os odios dos ditosos,</div>
- <div class="verse indent0">“E as maldições de Amor comtigo affavel.</div>
- <div class="verse indent0">“Eis porque a meu pezar, já por costume,</div>
- <div class="verse indent0">“De olhos que espargem luz se orvalhão choros.</div>
- <div class="verse indent0">“Perdôa-mos teu jubilo mos sécca.</div>
- <div class="verse indent0">“Desce, eu parto, urge o Tempo, e ja me acena</div>
- <div class="verse indent0">“Co’a mão rugosa para novos climas.</div>
- <div class="verse indent0">“Fica-te em nossa amada Lusitania,</div><span class="pagenum"><a id="Page_97"></a>[97]</span>
- <div class="verse indent0">“Inda pouco ha tão triste. Observa os cumes</div>
- <div class="verse indent0">“Contra o nosso nascente; ahi vês á espera</div>
- <div class="verse indent0">“A turba toda dos campestres Deozes,</div>
- <div class="verse indent0">“Flora, Cibele, Dríades, Napéas,</div>
- <div class="verse indent0">“Hamadríades, Náiades, Silvano,</div>
- <div class="verse indent0">“A caçadora Cinthia, Amores, Graças,</div>
- <div class="verse indent0">“Os ledos Risos, a amorosa Venus;</div>
- <div class="verse indent0">“E Pan ha muito tempo em nova flauta,</div>
- <div class="verse indent0">“No verde cume do apartado monte,</div>
- <div class="verse indent0">“Lá onde canas trémulas susurrão,</div>
- <div class="verse indent0">“Para a tua chegada estuda um hino,</div>
- <div class="verse indent0">“A cujo estrondo os Sátiros voltêem.”—</div>
- <div class="verse indent0">Diz: olha para traz, vê o Sol, desmaia,</div>
- <div class="verse indent0">Beija a Amiga, e fugindo a entrega ao dia.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Desfez-se a névoa eis Sol! Joelho em terra,</div>
- <div class="verse indent0">Amigos meus; he o Sol da Primavera!</div>
- <div class="verse indent0">“Ó Sol das flores, Salve! Ó Sol de amantes,</div>
- <div class="verse indent0">“Salve! E trez vezes Salve! ó Sol dos vates!”</div>
- <div class="verse indent0">Vêde-o doirando do arvoredo os cumes;</div>
- <div class="verse indent0">Vêde nas aguas límpidas fervendo</div>
- <div class="verse indent0">De reflexos de luz áureo cardume.</div>
- <div class="verse indent0">Corramos n’um momento os campos todos!</div>
- <div class="verse indent0">Como esta luz do Ceo, que a toda a parte</div>
- <div class="verse indent0">Desce, rompe, insinua-se, alvoroça;</div>
- <div class="verse indent0">Como esta luz do Ceo, vates mancebos,</div>
- <div class="verse indent0">Devassemos a terra: uma só gruta</div>
- <div class="verse indent0">Não fique, um arvoredo, ou valle, ou fonte,</div>
- <div class="verse indent0">Por onde não mergulhe a vista, o estro.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Esta, que ora seguimos, tortuosa</div>
- <div class="verse indent0">Concava senda, ha pouco estreito rio</div>
- <div class="verse indent0">Co’as grossas chuvas da vizinha serra,</div><span class="pagenum"><a id="Page_98"></a>[98]</span>
- <div class="verse indent0">Parece de um jardim curiosa rua!</div>
- <div class="verse indent0">De um lado e d’outro os còmaros pendentes</div>
- <div class="verse indent0">Ja não são montes de crueis espinhos,</div>
- <div class="verse indent0">Montes são de verdura, e roxas flores,</div>
- <div class="verse indent0">Onde n’outra estação viráõ c’os cestos</div>
- <div class="verse indent0">Colher nevadas mãos negras amoras:</div>
- <div class="verse indent0">Recende o legacão, e a madresilva.</div>
- <div class="verse indent0">De madresilva ornemo-nos as frontes ...</div>
- <div class="verse indent0">Mas não: fique-se em paz a flor nevada;</div>
- <div class="verse indent0">Quer-se antes a violeta, eu sei outeiro</div>
- <div class="verse indent0">Onde ella mora, he flor da Primavera;</div>
- <div class="verse indent0">D’esta eu fiz elleição não quero d’outra,</div>
- <div class="verse indent0">Vós, se outra preferís, apanhai d’essa.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Por aqui vai a encosta desfarçada:</div>
- <div class="verse indent0">Como que ja de cór meus pés a sabem.</div>
- <div class="verse indent0">Ja vós de cá vereis, la quasi ao cimo,</div>
- <div class="verse indent0">Um ramalhete espesso de aveleiras,</div>
- <div class="verse indent0">E de dentro luzindo uma apparencia</div>
- <div class="verse indent0">De alvo lirio entre verde, um cazalinho;</div>
- <div class="verse indent0">Pois essa he a casa de Egle. E mais avante,</div>
- <div class="verse indent0">No alto; não voltêão solitarias</div>
- <div class="verse indent0">As pandas velas de veloz moinho?</div>
- <div class="verse indent0">Tambem ja la pouzei n’uma afrontada</div>
- <div class="verse indent0">Tarde do estio, e lhe dormi á sombra.</div>
- <div class="verse indent0">Tudo isto me conhece! Esta ladeira</div>
- <div class="verse indent0">De rusticos degráos, que ahi desce á dextra,</div>
- <div class="verse indent0">De perenne verdor acobertada,</div>
- <div class="verse indent0">Cáe na fonte da aldea. (Ahi vão por agua</div>
- <div class="verse indent0">Com seus vermelhos cantaros as moças.</div>
- <div class="verse indent0">Outras cá vem, com passo mais tardio,</div>
- <div class="verse indent0">Sobindo ja, com os potes á cabeça</div>
- <div class="verse indent0">Lustrosos, vacillando e sempre firmes)</div><span class="pagenum"><a id="Page_99"></a>[99]</span>
- <div class="verse indent0">Não presumis quanto he social a boa</div>
- <div class="verse indent0">Da fontinha aldeã! não ha formosa</div>
- <div class="verse indent0">Que ali se não detenha e não se enfeite;</div>
- <div class="verse indent0">Não ha pastor cortez, que ao fim da tarde,</div>
- <div class="verse indent0">Ja recolhido o gado, ali não desça</div>
- <div class="verse indent0">Para ajudar a encher; inda não houve</div>
- <div class="verse indent0">Na vizinhança amor, cantiga nova,</div>
- <div class="verse indent0">Ou fallado successo, que cem vezes</div>
- <div class="verse indent0">Do fundo de seu antro os não ouvisse</div>
- <div class="verse indent0">A Náiade anciã; nem bôda alguma,</div>
- <div class="verse indent0">Sem se enramar o portico musgoso.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Á esquerda, pela varzea anda rebanho;</div>
- <div class="verse indent0">Que ouvi balar, e ainda ouço a cantilena</div>
- <div class="verse indent0">De pegureira voz. Dizei-me á pressa,</div>
- <div class="verse indent0">Que scena off’rece a varzea? a relva molle</div>
- <div class="verse indent0">De alvas boninas trémulas brincada,</div>
- <div class="verse indent0">Onde o calor nascente o orvalho enxuga,</div>
- <div class="verse indent0">O sombrear das arvores dispersas,</div>
- <div class="verse indent0">Bellos não são de ver? he vasto o bando</div>
- <div class="verse indent0">Das ovelhas pacíficas? he linda</div>
- <div class="verse indent0">A guardadora sua? está sozinha</div>
- <div class="verse indent0">Em pé volvendo o fuso e olhando o pasto,</div>
- <div class="verse indent0">Ou com algum pastor sentada em ocio?</div>
- <div class="verse indent0">Traz disperso o cabello ou prezo em rosas?</div>
- <div class="verse indent0">Que donoso cantar! que peregrina</div>
- <div class="verse indent0">Poesia que esperdiça aquella moça</div>
- <div class="verse indent0">Com broncas solidões e ovelhas rudes!</div>
- <div class="verse indent0">Couza que assim namore a fantasia</div>
- <div class="verse indent0">Não quero que haja, não: virgem formosa</div>
- <div class="verse indent0">Sozinha sob o ceo; velando em brutos</div>
- <div class="verse indent0">A que era de velar como um thesouro;</div>
- <div class="verse indent0">A graça envolta em lãs, contente e rica;</div><span class="pagenum"><a id="Page_100"></a>[100]</span>
- <div class="verse indent0">E annos verdes, sem pena aqui florindo,</div>
- <div class="verse indent0">Longe de olhos e amor, jogos e esp’ranças!</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Detende-vos: o aroma he de violetas.</div>
- <div class="verse indent0">Ei-las! irei tecendo a c’roa minha</div>
- <div class="verse indent0">Com estas, que escondidas, pudibundas,</div>
- <div class="verse indent0">Como a pastora, em paz desabrocharão,</div>
- <div class="verse indent0">O ar, como a pastora, em roda encantão.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Ja percebo o rugir das aveleiras;</div>
- <div class="verse indent0">Não vejo inda o cazal estancia d’Egle,</div>
- <div class="verse indent0">Mas perto, oh perto vem: todo esse rôlo</div>
- <div class="verse indent0">De espesso fumo que serpêa aos ares,</div>
- <div class="verse indent0">He da interna fogueira que amanhece,</div>
- <div class="verse indent0">Cuidadosa do almoço, aos moradores.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Entremos no pomar. Ja Primavera</div>
- <div class="verse indent0">Copiosa o bafejou, de agradecida</div>
- <div class="verse indent0">Ás pomareiras mãos que lho aprestárão.</div>
- <div class="verse indent0">Inda folhas não ha, mas tudo he flores!</div>
- <div class="verse indent0">Vede como ante o sol tremúla e brilha</div>
- <div class="verse indent0">O pecegueiro co’o vermelho ornato:</div>
- <div class="verse indent0">Vede alem da pereira a branca véste,</div>
- <div class="verse indent0">Da cerejeira, do abrunheiro a cópa:</div>
- <div class="verse indent0">Vede como uma vide em cada tronco</div>
- <div class="verse indent0">Tenaz se enlêa em tortuoso abraço;</div>
- <div class="verse indent0">Ja seus pequenos pampanos rebentão,</div>
- <div class="verse indent0">Verdejantes festões ja vão formando:</div>
- <div class="verse indent0">Do cheiroso morango a planta humilde</div>
- <div class="verse indent0">Aqui e ali no verde chão rasteja.</div>
- <div class="verse indent0">Arvores, plantas d’Egle, a nomeada</div>
- <div class="verse indent0">Em todo este arredor pelas delicias</div>
- <div class="verse indent0">Dos ricos frutos seus, não se numérão,</div><span class="pagenum"><a id="Page_101"></a>[101]</span>
- <div class="verse indent0">Nem sei louvor que lhes não ceda, e muito.</div>
- <div class="verse indent0">O porque sejão taes, fique em segredo</div>
- <div class="verse indent0">Quando vo-lo eu disser. — Aqui Vertumno</div>
- <div class="verse indent0">Veio uma tarde do passado outono,</div>
- <div class="verse indent0">Mudado em rouxinol, cantar nos ramos,</div>
- <div class="verse indent0">D’onde, mais bella que a gentil Pomona,</div>
- <div class="verse indent0">Egle andava colhendo a rica fruta.</div>
- <div class="verse indent0">Julgou ver sua Deoza o terno amante,</div>
- <div class="verse indent0">E tão doce cantou por entre os frutos,</div>
- <div class="verse indent0">Tão queixoso gemeo, gemeo tão meigo</div>
- <div class="verse indent0">Cercou-a tanto com chorosos pios,</div>
- <div class="verse indent0">Tantas vezes pouzou na mão de neve,</div>
- <div class="verse indent0">Na trança negra, no virgineo seio,</div>
- <div class="verse indent0">Que Egle o metteo no candido regaço,</div>
- <div class="verse indent0">O levou toda ufana ao lar paterno,</div>
- <div class="verse indent0">E em pintada gaiola inda hoje o guarda,</div>
- <div class="verse indent0">Que o Deos não quer fugir do cativeiro.</div>
- <div class="verse indent0">Quando a sente acordar pela alta noite,</div>
- <div class="verse indent0">Acalenta-a com languidos requebros:</div>
- <div class="verse indent0">Ao romper da manhã, quando no bosque</div>
- <div class="verse indent0">Ouve perto cantando as outras aves,</div>
- <div class="verse indent0">Logo a acorda com vividos gorgeios:</div>
- <div class="verse indent0">Mas quando a vê surgir, qual Venus da agua,</div>
- <div class="verse indent0">Sem mais vestido que a esparsida coma ...</div>
- <div class="verse indent0">Ahi he o pipillar, o esvoaçar-se,</div>
- <div class="verse indent0">O encrespar de plumage, o dar sem tino</div>
- <div class="verse indent0">Contra os duros varões co’ o peito brando:</div>
- <div class="verse indent0">Ahi o abrir do bico a pedir beijos,</div>
- <div class="verse indent0">E o revelar calado o amor e o nume.</div>
- <div class="verse indent0">Por isso he que ao pomar onde foi prezo</div>
- <div class="verse indent0">Fadou, quanta vos prende, infinda graça.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Como he puro este ceo do campo d’Egle!</div><span class="pagenum"><a id="Page_102"></a>[102]</span>
- <div class="verse indent0">Como he doce este Zéfiro que folga</div>
- <div class="verse indent0">Entre as arvores d’Egle! este he ditoso!</div>
- <div class="verse indent0">Ei-la que sáe de seu campestre alvergue.</div>
- <div class="verse indent0">Calados se podeis, entre estes verdes</div>
- <div class="verse indent0">Porque vos não descubra, olhai-a um pouco.</div>
- <div class="verse indent0">Quereis ver como a ponto lhe adivinho</div>
- <div class="verse indent0">Os passos, e o que faz, e os pensamentos?</div>
- <div class="verse indent0">Sim, Egle he sempre aquella, he sempre a mesma;</div>
- <div class="verse indent0">Arvore sem enxerto he sua vida,</div>
- <div class="verse indent0">Dá sempre a flor igual, iguaes os frutos.</div>
- <div class="verse indent0">Mas silencio, Vertumnos insoffridos,</div>
- <div class="verse indent0">Ja vo-la pinto, e me direis se eu érro.</div>
- <div class="verse indent0">Do braço nu e candido lhe pende</div>
- <div class="verse indent0">De louro milho o próvido cestinho.</div>
- <div class="verse indent0">Chama as pombas, lá vão pouzar no alpendre;</div>
- <div class="verse indent0">Á eira arroja os grãos, lá são na eira,</div>
- <div class="verse indent0">Arrulhão, comem sofregas, refogem;</div>
- <div class="verse indent0">Ahi vai novo punhado, ahi vem de novo.</div>
- <div class="verse indent0">Uma d’ellas, mais alva do que o leite,</div>
- <div class="verse indent0">Vai pouzar no cestinho ao lado d’Egle,</div>
- <div class="verse indent0">E mansa come na formosa dextra;</div>
- <div class="verse indent0">Furtão côres com o sol o collo, as azas.</div>
- <div class="verse indent0">Egle lhe chama filha; affirmarieis</div>
- <div class="verse indent0">Que o brutinho a entendeo, salta-lhe ao seio,</div>
- <div class="verse indent0">Espaneja-se: agora lhe promette</div>
- <div class="verse indent0">O pombo mais fiel para consorte,</div>
- <div class="verse indent0">E um ninho todo fôfo, e muito afago</div>
- <div class="verse indent0">Aos pequeninos seus; mas quer em paga</div>
- <div class="verse indent0">Um beijo, e um beijo pede: a face inclina,</div>
- <div class="verse indent0">O bico a vem libar; alonga os labios</div>
- <div class="verse indent0">Unidos em botão, corre o biquinho,</div>
- <div class="verse indent0">E ao centro do botão lhe leva o beijo.</div><span class="pagenum"><a id="Page_103"></a>[103]</span>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Agora vem ao tanque, aos rubros peixes</div>
- <div class="verse indent0">Trazer segundo almoço: oh!—providencia</div>
- <div class="verse indent0">Não ha mais desvelada, ou mais formosa!</div>
- <div class="verse indent0">Mal que o choveo nas aguas transparentes,</div>
- <div class="verse indent0">Por entre os crebros circulos assoma</div>
- <div class="verse indent0">De vivos olhos purpurina turba,</div>
- <div class="verse indent0">Tragão-no, e fogem requebrando as caudas:</div>
- <div class="verse indent0">Ermo o lago outra vez ficou dormindo.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Que dizeis? volve a casa? em manhã d’estas</div>
- <div class="verse indent0">Egle volve ao cazal! tornará logo.</div>
- <div class="verse indent0">Mas vós não ficareis, que o não consinto;</div>
- <div class="verse indent0">Hoje he só Divindade a Primavera.</div>
- <div class="verse indent0">Emquanto a hora da Festa inda vem longe,</div>
- <div class="verse indent0">Irmos correndo á sôlta, irmos folgando</div>
- <div class="verse indent0">He o nosso dever, foi jura nossa.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">¿Mas que risadas d’esta parte sôão</div>
- <div class="verse indent0">Entre os salgueiros, do regato á borda?</div>
- <div class="verse indent0">Rasgado o cinto, desgrenhada a trança,</div>
- <div class="verse indent0">Uma Ninfa gentil é quem sozinha,</div>
- <div class="verse indent0">Se ouve rir no pacífico arvoredo!</div>
- <div class="verse indent0">La vai na vêa d’agua bracejando,</div>
- <div class="verse indent0">E a soltar de afflição piedosos gritos</div>
- <div class="verse indent0">Um Sátiro infeliz! ja muito longe</div>
- <div class="verse indent0">A corrente lhe leva o odre e a flauta.</div>
- <div class="verse indent0">Agora á flôr das agoas apparece,</div>
- <div class="verse indent0">Some-se agora no lodoso fundo.</div>
- <div class="verse indent0">Em vez de o soccorrer, o apupão rindo</div>
- <div class="verse indent0">Da opposta varzea os rusticos pastores.</div>
- <div class="verse indent0">—“Dize, bom guardador das vaccas nedeas</div>
- <div class="verse indent0">“Que successo foi este?”—“Eu vo-lo conto.</div>
- <div class="verse indent0">“A Ninfa hia correndo, antes voando,</div><span class="pagenum"><a id="Page_104"></a>[104]</span>
- <div class="verse indent0">“Ao longo d’esta margem que verdeja,</div>
- <div class="verse indent0">“Quando eu dei fé; suava-lhe no alcance</div>
- <div class="verse indent0">“O mofino do Sátiro ... (Que vejo!</div>
- <div class="verse indent0">“Inda poude aferrar ... Más horas leve</div>
- <div class="verse indent0">“A agua que o não tragou! Pois ja não larga</div>
- <div class="verse indent0">“Os vimes que aferrou co’a mão pelluda.</div>
- <div class="verse indent0">“La trepa ... Vê-lo em cima! Oh como o bruto</div>
- <div class="verse indent0">“Se estira ao sol e arqueja!) Hia no alcance</div>
- <div class="verse indent0">“Da pobre Ninfa o Sátiro; umas silvas</div>
- <div class="verse indent0">“A prendêrão, travando-lhe do cinto.</div>
- <div class="verse indent0">“Carpia-se a coitada entre alaridos,</div>
- <div class="verse indent0">“Como passaro prezo; esta novilha</div>
- <div class="verse indent0">“Não muge com mais ancia em vendo os lobos.</div>
- <div class="verse indent0">“Bate as palmas o fero, e mais ligeiro</div>
- <div class="verse indent0">“Atropella a carreira, e vai clamando</div>
- <div class="verse indent0">—“Venci-te—Avida mão ja lhe lançava,</div>
- <div class="verse indent0">“Senão quando (tomado está dos vinhos)</div>
- <div class="verse indent0">“O pé caprino na orvalhada relva</div>
- <div class="verse indent0">“Resvala: vê-lo vai de tombo em tombo</div>
- <div class="verse indent0">“Medindo a ribanceira, e dá no rio!</div>
- <div class="verse indent0">“Logo ao caír, fugíra-lhe dos hombros</div>
- <div class="verse indent0">“O odre do vinho, e a flauta d’entre os dedos.</div>
- <div class="verse indent0">“Mal poude resfolgar—Ó flauta! ó odre!—</div>
- <div class="verse indent0">“Disse trez vezes, e esqueceo-lhe a Ninfa”—</div>
- <div class="verse indent0">—“Bem hajas, guardador das nedeas vaccas:</div>
- <div class="verse indent0">“Mais feliz sejas tu com teus amores,</div>
- <div class="verse indent0">“E menos apressada a que seguires.”</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Socios, que mais ha ahi? Que vos demora</div>
- <div class="verse indent0">Em de redor de um choupo? Letras, versos</div>
- <div class="verse indent0">Entalhados no tronco! uma grinalda</div>
- <div class="verse indent0">A abraça-lo, outras mil por toda a cópa,</div>
- <div class="verse indent0">Que parece um rosal! na terra mirtos!</div><span class="pagenum"><a id="Page_105"></a>[105]</span>
- <div class="verse indent0">Lede-me esse letreiro: algum queixume</div>
- <div class="verse indent0">De infeliz namorado. Oh! ceos, he crivel?</div>
- <div class="verse indent0">LEI DE AMOR tem por titulo? se fosse</div>
- <div class="verse indent0">Da propria mão do Nume aqui gravada!</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent4"><i>Amar, amar! viver d’amores!</i></div>
- <div class="verse indent2"><i>Que o tempo off’rece e nunca espera;</i></div>
- <div class="verse indent2"><i>Aos corações bem como ás flores</i></div>
- <div class="verse indent2"><i>Não se renova a Primavera.</i></div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Oh Lei, porta de Elisio antes da morte!</div>
- <div class="verse indent0">Sim, sim, de Amor tu es; vós sois das Graças</div>
- <div class="verse indent0">Coroas que a ufanaes, a encheis de aroma.</div>
- <div class="verse indent0">Socios, ministros das Piérias Deozas,</div>
- <div class="verse indent0">Erguei mão não profana ás flores sacras,</div>
- <div class="verse indent0">Privilegio he do estro, ouzai colhê-las:</div>
- <div class="verse indent0">Levará cadaqual no peito a sua</div>
- <div class="verse indent0">Bem sobre o coração, tão perto d’elle</div>
- <div class="verse indent0">Que ouvindo-o palpitar lhe falle amores.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Pois he lei quero amar: sim. Porém onde</div>
- <div class="verse indent0">Onde estará da Primavera a Deoza?</div>
- <div class="verse indent0">Por toda a parte os seus vestigios nóto,</div>
- <div class="verse indent0">Mas não a posso achar. Ah! vós que rides,</div>
- <div class="verse indent0">A insólita paixão julgaes chimera.</div>
- <div class="verse indent0">Existe, existe a Virgem graciosa,</div>
- <div class="verse indent0">Dos Ceos a Filha occulta anda na terra:</div>
- <div class="verse indent0">Não são sem divindade estes prodigios.</div>
- <div class="verse indent0">Quem faz tão branda murmurar a fonte?</div>
- <div class="verse indent0">Quem abre a rosa na materna planta?</div>
- <div class="verse indent0">Quem dá cheiro á violeta, e côr ao lirio,</div>
- <div class="verse indent0">Ao ar fresco o regalo e verde aos campos?</div>
- <div class="verse indent0">Quem poesia de amor ensina ás aves?</div><span class="pagenum"><a id="Page_106"></a>[106]</span>
- <div class="verse indent0">Quem é que influe no coração dos homens</div>
- <div class="verse indent0">Tanto amor, tanta paz, doçura tanta?</div>
- <div class="verse indent0">Existe, existe a Virgem graciosa,</div>
- <div class="verse indent0">A minha doce Amante, a minha Amada,</div>
- <div class="verse indent0">Dos Ceos a Filha occulta anda na terra.</div>
- <div class="verse indent0">Sinaes de sua mão, pizadas suas,</div>
- <div class="verse indent0">Fragrancias que espirou, por toda a parte</div>
- <div class="verse indent0">Me envolvem, me arrebatão, me endoidecem;</div>
- <div class="verse indent0">Mas busco-a e não se mostra; exclamo, he surda!</div>
- <div class="verse indent0">O dia he fallador, he distraído,</div>
- <div class="verse indent0">Deidade virginal recêa o dia,</div>
- <div class="verse indent0">Casta, só quer talvez ás castas sombras</div>
- <div class="verse indent0">Revelar seu misterio, abrir seu peito.</div>
- <div class="verse indent0">Oh quem me dera que baixasse a noite!</div>
- <div class="verse indent0">Da noite no pacífico silencio</div>
- <div class="verse indent0">Côa pelo ar vazio o som mais leve:</div>
- <div class="verse indent0">Por isso a Filomela a quiz por sua,</div>
- <div class="verse indent0">E o mocho lhe confia as longas queixas:</div>
- <div class="verse indent0">Quem me ja déra que baixasse a noite!</div>
- <div class="verse indent0">Irei clamar do cume dos outeiros</div>
- <div class="verse indent0">“Ó Primavera, ó minha Primavera!”</div>
- <div class="verse indent0">E depois que trez vezes repetirem,</div>
- <div class="verse indent0">Ao longe os echos meu tristonho grito,</div>
- <div class="verse indent0">Attento escutarei se me responde.</div>
- <div class="verse indent0">Se nada ouvir, prostrando-me, e cobrindo</div>
- <div class="verse indent0">De igneos beijos a terra (os igneos beijos</div>
- <div class="verse indent0">Tem valor de conjurio entre amadores)</div>
- <div class="verse indent0">Com maior devoção, dobrada fôrça,</div>
- <div class="verse indent0">Clamarei “Primavera, ó Primavera!”</div>
- <div class="verse indent0">E os campos todos correrei bradando.</div>
- <div class="verse indent0">Na solitaria gruta alguma Ninfa</div>
- <div class="verse indent0">Ha de acordar, e á parte do oriente</div>
- <div class="verse indent0">Lançar a vista, procurando a aurora:</div><span class="pagenum"><a id="Page_107"></a>[107]</span>
- <div class="verse indent0">A aurora não virá, e eu longo tempo</div>
- <div class="verse indent0">Andarei pelas trevas suspirando.</div>
- <div class="verse indent0">Se trez vezes o sol descer ás ondas,</div>
- <div class="verse indent0">Sem que possa encontrar a minha Amada,</div>
- <div class="verse indent0">E sem que algum mortal dê novas d’ella,</div>
- <div class="verse indent0">Apagarei no peito o incendio inutil,</div>
- <div class="verse indent0">Pensando que era ingrata, ou que por sonhos</div>
- <div class="verse indent0">Somente a víra em extases do estro.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Mas viver sem amar, sem ser amado?</div>
- <div class="verse indent0">Vida entre gelos equivale á morte,</div>
- <div class="verse indent0">No pasto ao coração mantem-se a vida;</div>
- <div class="verse indent0">Sois brandas affeições, a essencia d’ella.</div>
- <div class="verse indent0">Confessar-me da Lei que abrange a todos,</div>
- <div class="verse indent0">O primeiro infrátor? Ó Chlóe, ó bella,</div>
- <div class="verse indent0">Serás tu d’entre mil, o preferido</div>
- <div class="verse indent0">Emprego aos versos meus e aos meus excessos.</div>
- <div class="verse indent0">Ja tens da Primavera o genio, as graças,</div>
- <div class="verse indent0">Sua fama terás, terás seus hinos.</div>
- <div class="verse indent0">Quando com teu rebanho para o rio</div>
- <div class="verse indent0">O bosque ao fim da tarde atravessares,</div>
- <div class="verse indent0">De longe me verás na flórea margem</div>
- <div class="verse indent0">Sobre um penedo a celebrar teu nome.</div>
- <div class="verse indent0">Quando o quente redil ao gado abrires</div>
- <div class="verse indent0">No frescor da manhã, dir-te-ha meu rosto</div>
- <div class="verse indent0">Que entre as da tua porta arvores caras</div>
- <div class="verse indent0">Não fui amanhecer, mas toda a noite</div>
- <div class="verse indent0">De amor andei cercando o teu descanço,</div>
- <div class="verse indent0">Sentindo-te o respiro, ou crendo ouvi-lo.</div>
- <div class="verse indent0">Quando na sésta, á sombra da oliveira</div>
- <div class="verse indent0">Tiveres descuidosa adormecido,</div>
- <div class="verse indent0">Em sons de flauta escutarás por sonhos</div>
- <div class="verse indent0">O cantar novo que te mais recreie.</div><span class="pagenum"><a id="Page_108"></a>[108]</span>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Mas vede como leve escapa o tempo!</div>
- <div class="verse indent0">Ja alto e rijo o sol encurta as sombras.</div>
- <div class="verse indent0">Largo se ha divagado! Hora purpúrea,</div>
- <div class="verse indent0">A mais social, mais folgazã das horas,</div>
- <div class="verse indent0">Chamando está por nós co’a mesa agreste.</div>
- <div class="verse indent0">Onde a iremos tomar? n’algum tugurio</div>
- <div class="verse indent0">De solitaria Baucis? nem de feno</div>
- <div class="verse indent0">Pobres tétos consente o sacro Dia.</div>
- <div class="verse indent0">Ali temos o outeiro alcatifado,</div>
- <div class="verse indent0">Rico montáõ de flores! Que mui frescos</div>
- <div class="verse indent0">Pela assomada os louros se entrelação!</div>
- <div class="verse indent0">Mas sobre tudo que aprazivel gruta!</div>
- <div class="verse indent0">Por fóra he de hera um tufo luzidio,</div>
- <div class="verse indent0">Dentro um fôrro de musgo. Alvitre novo</div>
- <div class="verse indent0">Ó Socios escutai. Esta collina</div>
- <div class="verse indent0">Desde hoje para nós fique Parnaso.</div>
- <div class="verse indent0">Eis a gruta de Cirrha, onde costuma</div>
- <div class="verse indent0">Febo sonhar magníficas imagens!</div>
- <div class="verse indent0">Esses louros são delle! Aquella fonte</div>
- <div class="verse indent0">(Ceos nada falta!) he fonte de Castalia!</div>
- <div class="verse indent0">No remanso diáfano boiando</div>
- <div class="verse indent0">Niveos ganços as azas empavezão;</div>
- <div class="verse indent0">Fingi-lhes doce a voz, chamai-lhes cisnes:</div>
- <div class="verse indent0">Lindas pastoras nossas Musas sejão.</div>
- <div class="verse indent0">Respiremos o estro! Ó lá de Cirrha</div>
- <div class="verse indent0">Virações, acudi-nos contra a calma:</div>
- <div class="verse indent0">E vós louros selvaticos, ó louros,</div>
- <div class="verse indent0">Velai com vossa abobada frondente</div>
- <div class="verse indent0">Os vates e o banquete, o rir e os versos.</div>
- <div class="verse indent0">A primeira saude a Bacho e Ceres,</div>
- <div class="verse indent0">A Palles e Pomona, ora presentes</div>
- <div class="verse indent0">Do banquete á rural simplicidade.</div>
- <div class="verse indent0">Para dias iguaes, plantar-lhes voto</div><span class="pagenum"><a id="Page_109"></a>[109]</span>
- <div class="verse indent0">Cá bem no viso do sagrado outeiro,</div>
- <div class="verse indent0">Densa cabana de perpetua folha:</div>
- <div class="verse indent0">Para aqui, de canceiras feriados,</div>
- <div class="verse indent0">Viremos amiude abrir os peitos</div>
- <div class="verse indent0">Ao bachico folguedo, a Amor e aos cantos,</div>
- <div class="verse indent0">Co’a alegria assombrar, e co’a amizade</div>
- <div class="verse indent0">Do loureiral as Dríades vizinhas.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Na venturosa paz d’este retiro,</div>
- <div class="verse indent0">Não virá perturbar nossa humildade</div>
- <div class="verse indent0">Com seus trovões, com seus <i>coriscos horridos</i></div>
- <div class="verse indent0">Turba sublime de soturnos vates.</div>
- <div class="verse indent0">Alçando o collo, enfaticos praguejem</div>
- <div class="verse indent0">Contra os <i>tirannos</i>, contra os <i>monstros barbaros</i>;</div>
- <div class="verse indent0">Pintem de rôjo os <i>prepotentes déspotas</i>,</div>
- <div class="verse indent0">Fulminem os <i>perversos aristócratas</i>,</div>
- <div class="verse indent0">E fujão por estudo á natureza.</div>
- <div class="verse indent0">Não lhes invejo, não, a bronsea tuba,</div>
- <div class="verse indent0">Que despede trovões e rasga ouvidos.</div>
- <div class="verse indent0">De nosso humilde genio estou contente:</div>
- <div class="verse indent0">Nada mais temos que uma agreste flauta;</div>
- <div class="verse indent0">Com ella muda, ás vezes longas horas,</div>
- <div class="verse indent0">Da natureza os quadros estudâmos.</div>
- <div class="verse indent0">Socios dos rouxinoes, só diffundimos</div>
- <div class="verse indent0">Depois de meditar, nossos gorgeios;</div>
- <div class="verse indent0">Em quanto o mocho a luz aborrecendo,</div>
- <div class="verse indent0">Nos amenos vergeis nunca discorre;</div>
- <div class="verse indent0">Dorme o formoso dia em cava furna,</div>
- <div class="verse indent0">E sólta pela noite horrendos guinchos,</div>
- <div class="verse indent0">Pouzado junto ao ceo, mas entre horrores.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Elmiro, ó tu que, tanto como odêo,</div>
- <div class="verse indent0">Odêas as sonoras bagatelas,</div><span class="pagenum"><a id="Page_110"></a>[110]</span>
- <div class="verse indent0">E ris, como eu, dos estrondosos nadas;</div>
- <div class="verse indent0">Nunca te afastes da florída róta,</div>
- <div class="verse indent0">Por onde a Natureza o Genio chama.</div>
- <div class="verse indent0">Da madrugada nos mimosos sonhos,</div>
- <div class="verse indent0">Costumas ver de murtas coroada,</div>
- <div class="verse indent0">A amavel Sombra do risonho Géssner.</div>
- <div class="verse indent0">Oh! quando aos campos teus um dia voltes,</div>
- <div class="verse indent0">Á sombra do teu cedro será doce</div>
- <div class="verse indent0">Ouvir-te prantear perdida amante!</div>
- <div class="verse indent0">Entre as folhas cheirosas susurrando,</div>
- <div class="verse indent0">Qual favonio indeciso, os Manes d’ella,</div>
- <div class="verse indent0">Mansa tristeza ao coração te enviem.</div>
- <div class="verse indent0">Emquanto no escarceo da grão Cidade</div>
- <div class="verse indent0">Eu misero, eu saudoso andar lutando,</div>
- <div class="verse indent0">La no fertil torrão verás contente</div>
- <div class="verse indent0">Por ceos de teu jardim nascer a aurora:</div>
- <div class="verse indent0">Regarás pela fresca as flores tuas</div>
- <div class="verse indent0">Junto da terna Mãi, que este só gôsto</div>
- <div class="verse indent0">Na morte conservou do esposo amado;</div>
- <div class="verse indent0">Triste e formosa qual viuva rôla.</div>
- <div class="verse indent0">Outras vezes as pombas que sustentas,</div>
- <div class="verse indent0">Terno irás vizitar co’as Irmãs bellas,</div>
- <div class="verse indent0">Qual entre as Graças passeára Adonis</div>
- <div class="verse indent0">Nos arvoredos da ociosa Chipre.</div>
- <div class="verse indent0">Elmiro, ¿e alguma vez tambem meus versos</div>
- <div class="verse indent0">Serão do teu retiro um passatempo?</div>
- <div class="verse indent0">Quando eu tos enviar, vós reunidos</div>
- <div class="verse indent0">Junto do fogo nos serões do inverno,</div>
- <div class="verse indent0">Contentes os lereis; e tu, girando</div>
- <div class="verse indent0">Co’a vaga idea nos passados tempos,</div>
- <div class="verse indent0">Dirás a suspirar “He meu amigo”.</div>
- </div>
-</div>
-</div>
-
-<p class="center">FIM DO CANTO PRIMEIRO.</p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_111"></a>[111]</span></p>
-
-<h3 class="nobreak" id="DIA_CANTO_II">O DIA<br />
-DA<br />
-PRIMAVERA.</h3>
-
-<h4>CANTO II.<br />
-<i>A Tarde.</i></h4>
-
-</div>
-
-<div class="poetry-container">
-<div class="poetry">
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0">Ja dos louros as grimpas se embalanção:</div>
- <div class="verse indent0">Surgir, surgir da relva sonolenta!</div>
- <div class="verse indent0">Ja fresca viração consola os ares:</div>
- <div class="verse indent0">Que zoada que vai por toda a selva!</div>
- <div class="verse indent0">Estrépito de rio impetuoso</div>
- <div class="verse indent0">Na calada da noite a crê mil vezes</div>
- <div class="verse indent0">O viandante perdido. Hora da Festa,</div>
- <div class="verse indent0">Bem te ouvimos anciosa estar chamando.</div>
- <div class="verse indent0">¡Da Primavera á Festa, á gruta, ó Socios,</div>
- <div class="verse indent0">De Amarilis e Umbrano á vasta gruta!</div>
- <div class="verse indent0">Ja agora o bom de Anfrizo ha de ter pronto</div>
- <div class="verse indent0">De sua déstra mão o altar gramíneo,</div>
- <div class="verse indent0">Arqueado em docel do cedro a cópa,</div>
- <div class="verse indent0">E do cedro no pé com flórea tarja</div>
- <div class="verse indent0">Da nossa Primavera aberto o nome,</div><span class="pagenum"><a id="Page_112"></a>[112]</span>
- <div class="verse indent0">Se he que amor lhe não fez gravar <i>Dorinda</i>;</div>
- <div class="verse indent0">Dorinda, cujos magicos encantos</div>
- <div class="verse indent0">Na lira do amador gerão milagres;</div>
- <div class="verse indent0">Cujos olhos, tão negros como a noite,</div>
- <div class="verse indent0">São como a noite ao Deos de amor tão caros.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Sim, vamos — Vedes vós o pequenino</div>
- <div class="verse indent0">Que la vem amontado em verde cana?</div>
- <div class="verse indent0">Quão guapo agita as redeas côr de rosa,</div>
- <div class="verse indent0">E açouta co’a varinha a brava fera!</div>
- <div class="verse indent0">Ouvis-lhe a doce voz que por mim chama?</div>
- <div class="verse indent0">—“Salve, menino! e adeos, que hoje não posso.</div>
- <div class="verse indent0">“Outro dia virei, toda uma tarde,</div>
- <div class="verse indent0">“Trabalhar nas flautinhas, que arremedem</div>
- <div class="verse indent0">“Cantar de rouxinol soprando-as n’agua.</div>
- <div class="verse indent0">“Amanhã me procura aqui no outeiro,</div>
- <div class="verse indent0">“Verás, verás que historias te não conto.”—</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Partio: como galopa afervorado!</div>
- <div class="verse indent0">Ja vai conta-lo á mãi. Este menino</div>
- <div class="verse indent0">He da aldea a doudice, e os meus amores.</div>
- <div class="verse indent0">He dote de seus annos a innocencia,</div>
- <div class="verse indent0">Como do botãozinho he dote a graça:</div>
- <div class="verse indent0">Mas aqui ha melhor, he botãozinho</div>
- <div class="verse indent0">Ja fragrante, he virtude antes do sizo.</div>
- <div class="verse indent0">N’aquella sésta do abafado agosto,</div>
- <div class="verse indent0">Quando fostes nadar, eu passeava</div>
- <div class="verse indent0">Sozinho a espairecer pela frescura;</div>
- <div class="verse indent0">Eis para mim correndo este menino,</div>
- <div class="verse indent0">Vergonhoso me diz:—“Queres atar-me</div>
- <div class="verse indent0">“Este cordel nas pontas do meu arco,</div>
- <div class="verse indent0">“Bem seguro, bem forte, que não quebre?”—</div>
- <div class="verse indent0">—“Sim, amavel menino (eu lhe respondo)</div><span class="pagenum"><a id="Page_113"></a>[113]</span>
- <div class="verse indent0">“Sim quero atar-to bem seguro e forte”—</div>
- <div class="verse indent0">E emquanto lho fazia, assim lhe disse:</div>
- <div class="verse indent0">—“Vais caçar borboletas? ou mordeo-te</div>
- <div class="verse indent0">“Alguma abelha, e queres castiga-la?”—</div>
- <div class="verse indent0">—“Não, não: vou dar em minha mãi um tiro”—</div>
- <div class="verse indent0">—“Um tiro em tua mãi!”—“Sim n’outro dia</div>
- <div class="verse indent0">“Deo-me tanto nas mãos, que me ficarão</div>
- <div class="verse indent0">“A doer, tão vermelhas como as rosas”—</div>
- <div class="verse indent0">—“E porque assim te deo, que te ficassem</div>
- <div class="verse indent0">“As mãozinhas vermelhas como as rosas?”—</div>
- <div class="verse indent0">—“Eu tinha (acudio elle) um melro novo:</div>
- <div class="verse indent0">“Era meu, apanhou-o a minha rede.</div>
- <div class="verse indent0">“Sempre estava a cantar; era tão lindo!</div>
- <div class="verse indent0">“E quando assobiava? os outros melros</div>
- <div class="verse indent0">“Punhão-se la do bosque a responder-lhe,</div>
- <div class="verse indent0">“Queria tanto á nossa Mirtilinha!</div>
- <div class="verse indent0">“(A nossa Mirtilinha he a mais pequena</div>
- <div class="verse indent0">“Das minhas trez irmãs): e ella tratava-o,</div>
- <div class="verse indent0">“Quando eu hia á seara ás cegarregas.</div>
- <div class="verse indent0">“No outro dia esqueceo nos a gaiola</div>
- <div class="verse indent0">“Ao sol toda a manhã: quando fui vê-lo,</div>
- <div class="verse indent0">“Não se podia ter, abria o bico</div>
- <div class="verse indent0">“E não tomava nada. Um pequenito</div>
- <div class="verse indent0">“Me disse que era calma: agarro n’elle,</div>
- <div class="verse indent0">“Vou-me ao tanque, e mergulho-o cinco vezes.</div>
- <div class="verse indent0">“Ficou muito peór: punha-o direito,</div>
- <div class="verse indent0">“E elle sempre a caír, fechava os olhos,</div>
- <div class="verse indent0">“E estremecia todo. Aquietou-se:</div>
- <div class="verse indent0">“Cuidei eu que dormia e disse, Dorme,</div>
- <div class="verse indent0">“Veio um velho, abanou-o, e disse, He morto.</div>
- <div class="verse indent0">“Fui com elle na mão chorando, e em gritos, ta,</div>
- <div class="verse indent0">“Procurar minha mãi. Ficou pasmada</div>
- <div class="verse indent0">“Quando o vio, e eu lhe disse—Ahi está, não can-</div><span class="pagenum"><a id="Page_114"></a>[114]</span>
- <div class="verse indent0">“Nem ja faz festa á nossa Mirtilinha—</div>
- <div class="verse indent0">“Poz-se a ralhar por isto, e castigou me”—</div>
- <div class="verse indent0">“Cruel menino (lhe volvi severo),</div>
- <div class="verse indent0">“Cruel menino, e em tua mãi pretendes</div>
- <div class="verse indent0">“Ir com setas vingar-te?”—“Oh! não (me torna),</div>
- <div class="verse indent0">“Não lhe hei de fazer mal. Se tu soubesses</div>
- <div class="verse indent0">“O que uma seta faz!...”—“Não te percebo,</div>
- <div class="verse indent0">“E pois que faz? explica-te, saibamos”—</div>
- <div class="verse indent0">—“Na cabana de Silvio (me responde)</div>
- <div class="verse indent0">“Ha um cópo de páo todo pintado,</div>
- <div class="verse indent0">“Que elle ja prometteo que me daria</div>
- <div class="verse indent0">“Se eu lhe levasse a fita, com que ás vezes</div>
- <div class="verse indent0">“A minha irmã Glicera ata os cabellos.</div>
- <div class="verse indent0">“Por fóra do tal cópo está com um arco,</div>
- <div class="verse indent0">“Para atirar a uma pastora linda,</div>
- <div class="verse indent0">“Um menino como eu, com os olhos negros</div>
- <div class="verse indent0">“Voltados para mim, e sempre a rir-se.</div>
- <div class="verse indent0">“Anda nuzinho ao frio, e tem nos hombros</div>
- <div class="verse indent0">“Azas, que lhe não ganha a borboleta.</div>
- <div class="verse indent0">“Silvio disse-me o nome que lhe davão,</div>
- <div class="verse indent0">“Porem ... ja me esqueceo: tambem me disse</div>
- <div class="verse indent0">“Que elle costuma á gente descuidada</div>
- <div class="verse indent0">“Atirar muita vez d’aquellas setas.</div>
- <div class="verse indent0">“Eu cuidava que as setas matarião,</div>
- <div class="verse indent0">“Tinhão-mo dito um dia os caçadores,</div>
- <div class="verse indent0">“Mas Silvio me jurou que não matavão,</div>
- <div class="verse indent0">“E contou-mo sem rir; Silvio não mente.</div>
- <div class="verse indent0">“Aquellas setas vem, entrão no peito</div>
- <div class="verse indent0">“Sem ferida nem sangue, e até sem dores.</div>
- <div class="verse indent0">“Se obrigão a chorar e a ficar triste,</div>
- <div class="verse indent0">“Como ás vezes succede ao meu bom Silvio,</div>
- <div class="verse indent0">“Em toda esta tristeza ha tanto gôsto,</div>
- <div class="verse indent0">“Que he mais doce gemer, que estar alegre.</div><span class="pagenum"><a id="Page_115"></a>[115]</span>
- <div class="verse indent0">“Eu d’isto nada entendo, porem Silvio</div>
- <div class="verse indent0">“Me disse que algum tempo o entenderia.</div>
- <div class="verse indent0">“Lembra-me agora! o tal menino d’azas (certo</div>
- <div class="verse indent0">“Chama-se <i>Amor</i>; não he verdade?”—“He</div>
- <div class="verse indent0">(Lhe respondo, apertando-o nos meus braços),</div>
- <div class="verse indent0">“Chama-se Amor, e he como tu formoso.”—</div>
- <div class="verse indent0">—“E seus tiros não fazem que fiquemos</div>
- <div class="verse indent0">“Tão amigos de alguem, como o cordeiro</div>
- <div class="verse indent0">“Que anda a brincar com seu irmão no prado?”—</div>
- <div class="verse indent0">—“Sim he verdade”—“Então venha o meu arco,</div>
- <div class="verse indent0">“Ja tenho em casa muitas setas prontas,</div>
- <div class="verse indent0">“Vou ferir minha mãi.”—“Louco! o teu arco</div>
- <div class="verse indent0">“Como o d’elle não he (lhe brado rindo):</div>
- <div class="verse indent0">“Lança-te ao collo seu, perdão lhe pede,</div>
- <div class="verse indent0">“Beija-a, conta-lhe tudo, e eu te prometto</div>
- <div class="verse indent0">“Por cada beijo teu, mil beijos d’ella”—</div>
- <div class="verse indent0">Não me ouvio mais, correo: e de caminho</div>
- <div class="verse indent0">Colheo para offertar-lhe algumas flores.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Mas eis-no; ja no suspirado sitio!</div>
- <div class="verse indent0">Essa a gruta: este o cedro annoso e immenso,</div>
- <div class="verse indent0">Condigno pavilhão do altar votivo.</div>
- <div class="verse indent0">Inda as c’roas vos faltão, ela ó Socios,</div>
- <div class="verse indent0">Rompei demoras, ide ás flores, ide,</div>
- <div class="verse indent0">E volvei logo a dar princípio á Festa.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Só fiquei: se eu podesse aqui no prado</div>
- <div class="verse indent0">Por meus olhos tambem colher algumas!</div>
- <div class="verse indent0">(Que as violetas que hei posto andão ja murchas.)</div>
- <div class="verse indent0">—“Ó pastorinha de formoso gado,</div>
- <div class="verse indent0">“Se podes, nem te peza alguns momentos</div>
- <div class="verse indent0">“Perder comigo, apanha-me violetas,</div>
- <div class="verse indent0">“Ensinar-te-hei por prémio outros cantares.</div><span class="pagenum"><a id="Page_116"></a>[116]</span>
- <div class="verse indent0">“Teu rafeiro no emtanto o gado vele.”</div>
- <div class="verse indent0">Partio, deixando ao lado meu, na relva</div>
- <div class="verse indent0">O cordeiro que tinha em seu regaço,</div>
- <div class="verse indent0">Tão alvo, tão pequeno como um lirio.</div>
- <div class="verse indent0">Pobre innocente! nos meus dedos busca</div>
- <div class="verse indent0">Da mãi, que ao longe bala, a doce têta!</div>
- <div class="verse indent0">Se comer ja soubesse, eu lhe daria</div>
- <div class="verse indent0">D’estas papoulas, d’esta fina grama.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Que silencio! mal ouço uma fontinha;</div>
- <div class="verse indent0">Serena viração de quando em quando;</div>
- <div class="verse indent0">O crepitar miudo dos raminhos,</div>
- <div class="verse indent0">Que a leve cabra arranca do espinheiro;</div>
- <div class="verse indent0">A voz d’um lavrador aos bois tardios;</div>
- <div class="verse indent0">E o cançado gemer de um carro ao longe.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Cá volve a minha Flora! estou c’roado:</div>
- <div class="verse indent0">“Graças ó doce e rustica Belleza!</div>
- <div class="verse indent0">Sempre emtorno de ti rebentem flores</div>
- <div class="verse indent0">Que o teu rebanho cobiçoso pasça;</div>
- <div class="verse indent0">Nunca te falte pelo estio a sombra:</div>
- <div class="verse indent0">E amor te volte em fruto as esperanças,</div>
- <div class="verse indent0">Se esperanças de amor no peito nutres.</div>
- <div class="verse indent0">Vês tu aquelle altar? foi obra nossa,</div>
- <div class="verse indent0">Foi por nós consagrado á Primavera,</div>
- <div class="verse indent0">E vamos festeja-la. Altar sem Nume</div>
- <div class="verse indent0">Faz menos devoção; se tu quizesses,</div>
- <div class="verse indent0">Bem o podias ser. Anda, mimosa</div>
- <div class="verse indent0">E amavel pastorinha; enflora á pressa</div>
- <div class="verse indent0">A trança, o collo, o seio, e no regaço</div>
- <div class="verse indent0">Lança flores quaesquer, qualquer verdura:</div>
- <div class="verse indent0">Oh! da-me este prazer. Do cedro ao tronco</div>
- <div class="verse indent0">Vai-te encostar do modo que te digo,</div><span class="pagenum"><a id="Page_117"></a>[117]</span>
- <div class="verse indent0">Co’a mão na face, e com o sorrir nos labios<a id="FNanchor_8" href="#Footnote_8" class="fnanchor">[8]</a>.</div>
- <div class="verse indent0">Direi aos socios meus, quando voltarem:</div>
- <div class="verse indent0">“Invoquei tanto e tanto os meus Amores</div>
- <div class="verse indent0">(Nome he que á Deoza dou, não tenhas susto</div>
- <div class="verse indent0">“Nem me furtos a mão) e he tão benigna,</div>
- <div class="verse indent0">“Tão docil, tão cortez a Primavera,</div>
- <div class="verse indent0">“Que saío do seu bosque, e apraz-lhe ouvir-nos.”</div>
- <div class="verse indent0">Folgaremos de os ver caír no engano,</div>
- <div class="verse indent0">Ajoelhar-se á fingida Primavera,</div>
- <div class="verse indent0">E mais de coração cantar-lhe os hinos.</div>
- <div class="verse indent0">De que te ris, singela rapariga?</div>
- <div class="verse indent0">Porque foges de mim? Se não consentes,</div>
- <div class="verse indent0">Cedo iremos buscar-te nos teus montes,</div>
- <div class="verse indent0">Chamar-te Deoza, em dôbro envergonhar-te.”</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Que he isto! ja volveis? mostrai-me as c’roas.</div>
- <div class="verse indent0">Como escolheste bem, terno Josino,</div>
- <div class="verse indent0">Meigo no coração, na voz mavioso!</div>
- <div class="verse indent0">Goivos com mirtos para ti cazaste,</div>
- <div class="verse indent0">Com o suave condiz a suavidade.</div>
- <div class="verse indent0">Se nos campos do ceo, reino do Genio,</div>
- <div class="verse indent0">Eu podesse colher miudos astros,</div>
- <div class="verse indent0">Dos versos onde alçaste ao ceo meu nome</div>
- <div class="verse indent0">C’roa de ethérea luz seria prémio.</div>
- <div class="verse indent0">Dou-te o que posso, gravarei teu nome</div><span class="pagenum"><a id="Page_118"></a>[118]</span>
- <div class="verse indent0">Em bosque, onde Hamadríades o leão:</div>
- <div class="verse indent0">Decoraráõ com o verso os teus louvores,</div>
- <div class="verse indent0">E alguma em si dirá: “Quem me ora désse</div>
- <div class="verse indent0">Em minhas solidões este Josino,</div>
- <div class="verse indent0">Por ver se he no cantar, qual dizem, meigo.”</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Vejamos meu Irmão<a id="FNanchor_9" href="#Footnote_9" class="fnanchor">[9]</a> a tua escolha.</div>
- <div class="verse indent0">Eis-te como eu cingido de violetas;</div>
- <div class="verse indent0">Ah quanto são iguaes os gostos nossos!</div>
- <div class="verse indent0">Abraça-me cantor da natureza,</div>
- <div class="verse indent0">Um a outro, um pelo outro aqui juremos</div>
- <div class="verse indent0">Juntar sempre em busca-la a industria nossa.</div>
- <div class="verse indent0">Abraça-me outra vez: nossa amizade,</div>
- <div class="verse indent0">Nossa terna amizade, e nosso estudo</div>
- <div class="verse indent0">Aperte mais e mais do sangue os laços.</div>
- <div class="verse indent0">Se jamais fado atroz nos separasse ...</div>
- <div class="verse indent0">Longe do pensamento esse impossivel!</div>
- <div class="verse indent0">Duas vidas irmãs que medrão juntas</div>
- <div class="verse indent0">Tem uma só raiz; dão flor, dão fruto</div>
- <div class="verse indent0">Nas mesmas estações, e ás horas mesmas.</div>
- <div class="verse indent0">Quer benção mande o ceo, quer sôpro de ira,</div>
- <div class="verse indent0">Um só bem, um só mal abrange as duas,</div>
- <div class="verse indent0">Emquanto uma existir persiste a sócia.</div>
- <div class="verse indent0">Vai para o nosso altar, um só momento</div>
- <div class="verse indent0">Me prende, o meu lugar tu la conserva</div>
- <div class="verse indent0">Entre ti e o das Musas ja mimoso</div>
- <div class="verse indent0">Nosso irmão, que no berço achou a flauta:</div>
- <div class="verse indent0">Menino, a quem cingistes de alvas rosas,</div>
- <div class="verse indent0">Como elle emblemas da innocencia breve.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Elmiro, o teu diadema he bello e simples;</div><span class="pagenum"><a id="Page_119"></a>[119]</span>
- <div class="verse indent0">Mirto e teixo pregões de amor e mágoa.</div>
- <div class="verse indent0">Não são menos de ver, nem menos proprias</div>
- <div class="verse indent0">As vossas, bom Franzino, alegre Albano.</div>
- <div class="verse indent0">Do amor perfeito as flores melindrosas</div>
- <div class="verse indent0">Tecem, Franzino, a tua, e tem por joia</div>
- <div class="verse indent0">Uma saudade a tremular na fronte.</div>
- <div class="verse indent0">De teus suspiros o ditoso emprego</div>
- <div class="verse indent0">Longe está, bem o sei, mas não suspires:</div>
- <div class="verse indent0">Tua amada fiel na ausencia chora,</div>
- <div class="verse indent0">Sua imaginação durante o dia</div>
- <div class="verse indent0">Voa a buscar-te aos campos do Mondego;</div>
- <div class="verse indent0">Dos campos do Mondego aos braços d’ella</div>
- <div class="verse indent0">Sua imaginação te leva em sonhos.</div>
- <div class="verse indent0">Albano, a ti o amor foi mais propício:</div>
- <div class="verse indent0">Vês amiude os olhos que te inflammão</div>
- <div class="verse indent0">E o sorrir facil que te muda em louco.</div>
- <div class="verse indent0">Não muito abertas, incendidas rosas</div>
- <div class="verse indent0">Cercando as tuas fontes, me afigurão</div>
- <div class="verse indent0">A imagem ver de envergonhados beijos.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Vem meu Anfrizo: a tua d’entre todas</div>
- <div class="verse indent0">He por certo a mais funebre grinalda;</div>
- <div class="verse indent0">Um ramo de cipreste e alguns suspiros.</div>
- <div class="verse indent0">Ah tua mãi tão cedo abandonar-te!</div>
- <div class="verse indent0">Orfão triste, perdoa ao vate amigo,</div>
- <div class="verse indent0">Que em chaga inda tão fresca a mão te ha pôsto.</div>
- <div class="verse indent0">Se para ella ha balsamo no mundo,</div>
- <div class="verse indent0">Só Amor sabe d’elle, e mãos de neve</div>
- <div class="verse indent0">Tem para to applicar virtude innata.</div>
- <div class="verse indent0">Sim, Dorinda gentil como que busca</div>
- <div class="verse indent0">Esse ermo de tua alma encher de affetos,</div>
- <div class="verse indent0">E no vão do teu peito insinuar-se.</div>
- <div class="verse indent0">Mas a saudade maternal he muito;</div><span class="pagenum"><a id="Page_120"></a>[120]</span>
- <div class="verse indent0">Todo o mundo, a amizade, e até Dorinda</div>
- <div class="verse indent0">Só poderáõ na angustia confortar-te.</div>
- <div class="verse indent0">Teu mal sustido chôro eis recomeça!</div>
- <div class="verse indent0">Só a dor te contenta, á dor sirvamos:</div>
- <div class="verse indent0">Narrar-te quero a historia do cipreste,</div>
- <div class="verse indent0">Que dos ramos feraes partio comtigo.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Prêzo das graças da opulenta Silvia</div>
- <div class="verse indent0">Titiro guardador de pobre armento,</div>
- <div class="verse indent0">Com seus ais estes montes abalava.</div>
- <div class="verse indent0">A bella desdenhosa, muitas vezes</div>
- <div class="verse indent0">Quando o sentia a modular ternura</div>
- <div class="verse indent0">Ao som da flauta n’um sombrio valle,</div>
- <div class="verse indent0">Torcia, por não ve-lo, o seu caminho.</div>
- <div class="verse indent0">Ah se o visse, estendido entre o rebanho,</div>
- <div class="verse indent0">O pranto a borbulhar nos fitos olhos,</div>
- <div class="verse indent0">E ao som da flauta, em baixa voz unidos</div>
- <div class="verse indent0">De quando em quando um ai, e o nome d’ella!</div>
- <div class="verse indent0">Rigores virginaes, desdens de rica</div>
- <div class="verse indent0">A amor, á compaixão talvez cedessem,</div>
- <div class="verse indent0">E ficasse mais bella, a ser piedosa.</div>
- <div class="verse indent0">Por só consolação de seus desgostos,</div>
- <div class="verse indent0">Co’a pèga que ja foi da ingrata Silvia</div>
- <div class="verse indent0">Folgava repetir de Silvia o nome.</div>
- <div class="verse indent0">Nunca a avezinha ao misero deixava,</div>
- <div class="verse indent0">Que assim a havião prêza os novos mimos.</div>
- <div class="verse indent0">Só ás vezes aos lares revoando</div>
- <div class="verse indent0">Da formosa cruel, de la trazia</div>
- <div class="verse indent0">Furtada alguma prenda ao pobre dono;</div>
- <div class="verse indent0">Sem querer lhe atiçava o fogo inutil.</div>
- <div class="verse indent0">Era triste, mas doce, ouvir de noite</div>
- <div class="verse indent0">Pelos bosques bradar “Ó Silvia, ó Silvia”</div>
- <div class="verse indent0">O terno amante; e acompanha-lo a pêga,</div><span class="pagenum"><a id="Page_121"></a>[121]</span>
- <div class="verse indent0">Ja pouzada em seu hombro, ou ja gritando</div>
- <div class="verse indent0">La de cima de um tronco “Ó Silvia, ó Silvia!”</div>
- <div class="verse indent0">Longos tempos assim pelas florestas</div>
- <div class="verse indent0">Vagar se ouvirão solitarios ambos;</div>
- <div class="verse indent0">Té que o loquaz brutinho de cançado</div>
- <div class="verse indent0">Veio um dia caír entre as mãos d’elle,</div>
- <div class="verse indent0">Bateo as azas, terminou seus dias.</div>
- <div class="verse indent0">Á fiel companheira ultimas honras</div>
- <div class="verse indent0">Deo como poude Titiro: sagrou-lhe</div>
- <div class="verse indent0">Um pequenino tumulo de barro,</div>
- <div class="verse indent0">E um ciprestinho de anno, que por novo</div>
- <div class="verse indent0">Inda estudava o geito de ser triste.</div>
- <div class="verse indent0">Aos Numes implorou que o não crescessem:</div>
- <div class="verse indent0">Mas pouco e pouco o tronco foi subindo,</div>
- <div class="verse indent0">E com elle de Titiro a saudade.</div>
- <div class="verse indent0">Bem póde ser que o tumulo não visses,</div>
- <div class="verse indent0">Que ervas espessas de redor o afogão</div>
- <div class="verse indent0">Ah desde que o pastor tambem jaz morto,</div>
- <div class="verse indent0">Morto ás mãos da saudade, e em terra alhêa!</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Tempo he da Festa. Á Festa!—Ahi estão as flautas</div>
- <div class="verse indent0">Ja silvando rebate ás alegrias!</div>
- <div class="verse indent0">Travai dança, alta dança ruidosa,</div>
- <div class="verse indent0">Quaes em seu monte os Sátiros a saltão!</div>
- <div class="verse indent0">Venhão de apoz os hinos: logo Bacho</div>
- <div class="verse indent0">Nos acuda co’as taças, menineiro</div>
- <div class="verse indent0">No aspéto e no palrar, no resto annoso,</div>
- <div class="verse indent0">De cãs a reluzir por entre as parras.</div>
- <div class="verse indent0">Ser-lhe-ha boa salva o retinir dos cópos</div>
- <div class="verse indent0">E os das saudes misturados gritos.</div>
- <div class="verse indent0">Do altar meu canto agora ascenda ao Nume!</div><span class="pagenum"><a id="Page_122"></a>[122]</span>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Vem ó Dona das Graças e Flores,</div>
- <div class="verse indent0">Volve á terra teu mago calor;</div>
- <div class="verse indent0">Aos que fogem de amor gera amores,</div>
- <div class="verse indent0">Nos que a amores se dão cria amor.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Tu és Venus, a Grecia delira</div>
- <div class="verse indent0">Crendo-a Filha do túrbido mar,</div>
- <div class="verse indent0">Tu és Venus e Musa da lira,</div>
- <div class="verse indent0">Cumpre á lira teu Nume exaltar.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Tu és Dríade, e Náiade, e Flora,</div>
- <div class="verse indent0">Mocidade e Saude e Prazer,</div>
- <div class="verse indent0">Com mil nomes o mundo te adora,</div>
- <div class="verse indent0">Mil poderes compoem teu poder.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Do Ceo puro és a noiva córada,</div>
- <div class="verse indent0">És só d’elle como elle he só teu;</div>
- <div class="verse indent0">Rica em trajos, de aromas banhada</div>
- <div class="verse indent0">A seus beijos te off’rece Himeneo.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Feliz extase, abraço jocundo</div>
- <div class="verse indent0">Do consorcio completa as prizões,</div>
- <div class="verse indent0">Primavera, em teu seio fecundo</div>
- <div class="verse indent0">Ja pullullão mais trez estações.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Á voz tua amorosa e macia,</div>
- <div class="verse indent0">A teu mago e perpetuo sorrir</div>
- <div class="verse indent0">Tudo cede, e te adora á porfia,</div>
- <div class="verse indent0">Como te ha de o mortal resistir?</div><span class="pagenum"><a id="Page_123"></a>[123]</span>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Léda brinca a feliz meninice,</div>
- <div class="verse indent0">Léda a ninfa em seus dons se revê,</div>
- <div class="verse indent0">Lédo o velho desruga a velhice,</div>
- <div class="verse indent0">Tudo he lédo, e não sabe o porque.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Onde assomas o mato florece,</div>
- <div class="verse indent0">Desatina a avezinha a cantar,</div>
- <div class="verse indent0">Côr d’esp’ranças a terra amanhece,</div>
- <div class="verse indent0">Arde o peixe nas brenhas do mar.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Perde as iras a rábida fera,</div>
- <div class="verse indent0">E se estranha de ter coração.</div>
- <div class="verse indent0">Primavera, que és tu Primavera?</div>
- <div class="verse indent0">Vida, fôrça, virtude, união.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Desde que abre ao carneiro doirado</div>
- <div class="verse indent0">Hora alegre o celeste redil,</div>
- <div class="verse indent0">E das sombras e gelo espalhado</div>
- <div class="verse indent0">Despe as terras Favonio subtíl;</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Despe a mente por ti bafejada</div>
- <div class="verse indent0">Suas neves e escuro invernal,</div>
- <div class="verse indent0">Ressuscita de flores toucada,</div>
- <div class="verse indent0">Enche a lira, nem sôa mortal.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Pois tu és quem me acorda e me inflamma,</div>
- <div class="verse indent0">A ti, Deoza, os meus versos serão.</div>
- <div class="verse indent0">Mas debalde o meu estro te chama,</div>
- <div class="verse indent0">Os meus olhos jamais te verão!</div><span class="pagenum"><a id="Page_124"></a>[124]</span>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Amigos, baixo he o Sol, findem-se os hinos:</div>
- <div class="verse indent0">Ponde silencio aos copos falladores;</div>
- <div class="verse indent0">Assaz he tempo. O dia era dos campos,</div>
- <div class="verse indent0">Ás aguas toca a noite; a noite grave,</div>
- <div class="verse indent0">Recolhida, saudosa, ama pascer-se</div>
- <div class="verse indent0">No murmurinho de deserto rio:</div>
- <div class="verse indent0">Tambem o coração tem dia e noite,</div>
- <div class="verse indent0">E precisa dos bens desenfadar-se.</div>
- <div class="verse indent0">Largo dista a corrente; o passo aperte</div>
- <div class="verse indent0">Quem sabe quanto he grato á luz de estrellas</div>
- <div class="verse indent0">Ouvir palrar as Náias a deshoras.</div>
- <div class="verse indent0">Vamos tomando o gôsto aos fins da tarde;</div>
- <div class="verse indent0">E emquanto mais ligeiro o bom Josino</div>
- <div class="verse indent0">Corre a aprestar a barca, entreteremos</div>
- <div class="verse indent0">O caminhar, colhendo rosmaninho</div>
- <div class="verse indent0">Para o colchão nóturno. ¡Que delicias,</div>
- <div class="verse indent0">Ir-se acamado em flores aboiando</div>
- <div class="verse indent0">Á luz modesta da nascente lua!</div>
- <div class="verse indent0">Ama o rio os cantares de saudade;</div>
- <div class="verse indent0">Cantares de saudade atiraremos</div>
- <div class="verse indent0">Até ao mar pelas sombrias margens.</div>
- <div class="verse indent0">Logo que o não rogado, amigo sono,</div>
- <div class="verse indent0">De papoulas toucado perguiçosas,</div>
- <div class="verse indent0">Lá nos for procurar, e manso e manso</div>
- <div class="verse indent0">Forem caindo os sons e pensamentos,</div>
- <div class="verse indent0">Iremos amarrar na margem muda</div>
- <div class="verse indent0">A qualquer tronco a barca flutuante:</div>
- <div class="verse indent0">Lançaremos por cima o branco toldo,</div>
- <div class="verse indent0">Bastante abrigo do nóturno orvalho:</div>
- <div class="verse indent0">E estendidos macio, e conversando</div>
- <div class="verse indent0">Em voz baixa, embalados cederemos</div>
- <div class="verse indent0">Ao começado sono os restos da alma.</div>
- <div class="verse indent0">Quando alta noite algum de nós acorde</div><span class="pagenum"><a id="Page_125"></a>[125]</span>
- <div class="verse indent0">A um leve crepitar do linho undaute,</div>
- <div class="verse indent0">Cuidará que uma Náiade surgíra</div>
- <div class="verse indent0">Fóra da agua a cabeça curiosa,</div>
- <div class="verse indent0">E inclina o seio ao bôrdo; e nos espreitas</div>
- <div class="verse indent0">Assim como alvoreça, a luz da aurora,</div>
- <div class="verse indent0">E vós, madrugadoras andorinhas,</div>
- <div class="verse indent0">Para o campo acordado heis de acordar-nos.</div>
- <div class="verse indent0">Correremos as candidas cortinas,</div>
- <div class="verse indent0">E veremos de subito, encantados,</div>
- <div class="verse indent0">Sobre nós a verdura estar pendente,</div>
- <div class="verse indent0">Do pranto da manhã ja rociada.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Não tarda o Sol momentos em sumir-se;</div>
- <div class="verse indent0">No mais vivo escarlate ensopa os campos,</div>
- <div class="verse indent0">Tinge a folhage, os rostos nos accende,</div>
- <div class="verse indent0">Por montes e olivaes dos ceos oppostos</div>
- <div class="verse indent0">Começa a desdobrar seu manto a noite.</div>
- <div class="verse indent0">Busca o rustico azilo o boi tardio;</div>
- <div class="verse indent0">Por toda a parte os gados vão passando.</div>
- <div class="verse indent0">Sustenhamos o halito, escutemos</div>
- <div class="verse indent0">Esta distante musica toada</div>
- <div class="verse indent0">Que assim transporta os animos em gôstos:</div>
- <div class="verse indent0">He toda feminil, toda feitiços,</div>
- <div class="verse indent0">Vem toda ao coração; oh se a conheço!</div>
- <div class="verse indent0">Pastoras são, que ao longe no arvoredo,</div>
- <div class="verse indent0">Vão para a aldea recolhendo em chusma</div>
- <div class="verse indent0">O tropel dos rebanhos misturados.</div>
- <div class="verse indent0">Cantão, porque he sazão de primavera,</div>
- <div class="verse indent0">E peito de mulher, como avezinha,</div>
- <div class="verse indent0">Desfaz-se em canto e amor em vendo flores:</div>
- <div class="verse indent0">Cantão, porque de um dia assim formoso</div>
- <div class="verse indent0">Serão formoso as toma, e o fuso leve</div>
- <div class="verse indent0">Que andou por solidões um dia inteiro,</div><span class="pagenum"><a id="Page_126"></a>[126]</span>
- <div class="verse indent0">Vai girar no conchego da fogueira;</div>
- <div class="verse indent0">E cantão, porque flautas de pastores</div>
- <div class="verse indent0">Que vão na companhia, as desafião.</div>
- <div class="verse indent0">Mas tantos sons confunde-os a distancia,</div>
- <div class="verse indent0">Figura-se uma voz de tantas vozes;</div>
- <div class="verse indent0">Como que uma só boca a manda aos ares,</div>
- <div class="verse indent0">Exprime um só afféto, um só deseja.</div>
- <div class="verse indent0">Oh Natureza! oh Tarde! oh Primavera!...</div>
- <div class="verse indent0">Lagrimas de prazer vertem meus olhos!</div>
- <div class="verse indent0">Somos em bosques de propícias Fadas?</div>
- <div class="verse indent0">Ou vaguêo ja Sombra, e vós comigo,</div>
- <div class="verse indent0">Na semi-vida e semi-luz do Elisio?</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Ja tudo se esvaío, tudo he silencio:</div>
- <div class="verse indent0">Por campo e campo ao largo impera a Noite.</div>
- <div class="verse indent0">Erguida a lua nova o horror lhe troca</div>
- <div class="verse indent0">Em saudosa tristeza, e o mocho alerta</div>
- <div class="verse indent0">La do alto a ajuda com o piar carpido:</div>
- <div class="verse indent0">Ja ouço o estrepitar das frescas aguas.</div>
- <div class="verse indent0">Vem barquinha da noite, perguiçosa,</div>
- <div class="verse indent0">Vem, toma o rosmaninho, e a nós recebe,</div>
- <div class="verse indent0">Oh que ameno he pousar passada a lida,</div>
- <div class="verse indent0">Em meio de aguas tantas, rodeado</div>
- <div class="verse indent0">De amigos bons, e triste, não de proprias</div>
- <div class="verse indent0">Tristezas, sim das mansas do Universo!</div>
- <div class="verse indent0">Ouvi, amigos meus, os meus dezejos,</div>
- <div class="verse indent0">Quaes mos ora no seio estão brotando</div>
- <div class="verse indent0">A hora, o sítio, a lua, aquelles pios;</div>
- <div class="verse indent0">Relevai que ao folgar vos furte instantes.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Seios Deozes minhas supplicas ouvissem,</div>
- <div class="verse indent0">Um torrão fertil, rústica vivenda,</div>
- <div class="verse indent0">Houvérão de abrigar-me a vida pura:</div><span class="pagenum"><a id="Page_127"></a>[127]</span>
- <div class="verse indent0">La minhas ambições se fartarião</div>
- <div class="verse indent0">De nobre, de quieta obscuridade.</div>
- <div class="verse indent0">Mas pois que de outra sorte aprouve aos Deozes,</div>
- <div class="verse indent0">E o fio, não de lã grosseira e nívea,</div>
- <div class="verse indent0">Me torcem, mas de ferro as trez do Averno,</div>
- <div class="verse indent0">Guardai vós na memoria o meu dezejo.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Depois que entre os abraços delirantes</div>
- <div class="verse indent0">De todos os que amei, findar meus dias,</div>
- <div class="verse indent0">Sepultai-me n’um valle ignoto e fertil<a id="FNanchor_10" href="#Footnote_10" class="fnanchor">[10]</a>.</div>
- <div class="verse indent0">Para marcar da sepultura o sítio,</div>
- <div class="verse indent0">Sôbre o cadaver, que vos foi tão caro,</div>
- <div class="verse indent0">Mangeronas plantai, cuja verdura</div>
- <div class="verse indent0">Em roda fechem variados lirios.</div>
- <div class="verse indent0">Na raiz funda de soberba olaia</div>
- <div class="verse indent0">Pouze a minha cabeça, e o tronco amigo</div>
- <div class="verse indent0">Sobre mim curve a cópa florecente.</div>
- <div class="verse indent0">Mil piteiras unidas, ostentando</div>
- <div class="verse indent0">Na hastea vaidosa as flores amarellas,</div>
- <div class="verse indent0">Em quadrado não grande me defendão</div>
- <div class="verse indent0">Das incursões das cabras roedoras.</div>
- <div class="verse indent0">Em meu tronco se escreva este epitafio:</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2"><i>Foi poeta amador da Natureza:</i></div>
- <div class="verse indent0"><i>D’entre as sombras ancioso a procurava,</i></div>
- <div class="verse indent0"><i>Qual terno amante a bella fugitiva.</i></div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0">Sôbre isto pendurai sonora flauta,</div><span class="pagenum"><a id="Page_128"></a>[128]</span>
- <div class="verse indent0">Que se revolva á discrição do vento.</div>
- <div class="verse indent0">Não cerque os ossos meus, não mos ensombre</div>
- <div class="verse indent0">Nem teixo nem cipreste; arvores quatro</div>
- <div class="verse indent0">Quizéra só no meu jardim de morte.</div>
- <div class="verse indent0">N’um canto a larangeira graciosa,</div>
- <div class="verse indent0">Que mescla util e doce, a flor e o fruto:</div>
- <div class="verse indent0">N’outro a figueira sob as amplas folhas</div>
- <div class="verse indent0">Modesta occulte seus nectareos mimos:</div>
- <div class="verse indent0">Defronte um pecegueiro em frutos mostre</div>
- <div class="verse indent0">Que amavel he pudor, quando enche faces</div>
- <div class="verse indent0">De penugem subtil inda cobertas:</div>
- <div class="verse indent0">No ultimo canto ... (a escolha me confunde)</div>
- <div class="verse indent0">Plantai no ultimo canto uma ginjeira,</div>
- <div class="verse indent0">He a arvore da infancia, até na altura;</div>
- <div class="verse indent0">D’esta por sua mão colhe um menino</div>
- <div class="verse indent0">A mui ridente baga, e ri de ufano.</div>
- <div class="verse indent0">Alguns tempos depois que a fria terra</div>
- <div class="verse indent0">Meus restos encerrar, á minha olaia</div>
- <div class="verse indent0">Vós, meus amigos, vós dareis meu nome,</div>
- <div class="verse indent0">Pois de mim se nutrio, e eu serei n’ella.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Dos guerreiros nos tumulos afiem</div>
- <div class="verse indent0">Faminta espada os barbaros guerreiros:</div>
- <div class="verse indent0">No sepulchro do sabio o sabio estude;</div>
- <div class="verse indent0">E dos reis nos marmoreos monumentos</div>
- <div class="verse indent0">Vá sonhar a ambição, grandeza e pompas:</div>
- <div class="verse indent0">Vós soltos de freneticas loucuras</div>
- <div class="verse indent0">Aqui vireis mil vezes vizitar-me,</div>
- <div class="verse indent0">Na amizade pensar que nos uníra,</div>
- <div class="verse indent0">E unir-nos deverá transposto o Lethes.</div>
- <div class="verse indent0">Porque me interrompeis com taes suspiros?</div>
- <div class="verse indent0">Ah! deixai-me acabar. Quando sentados</div>
- <div class="verse indent0">Emtorno a mim na flórida alcatifa,</div><span class="pagenum"><a id="Page_129"></a>[129]</span>
- <div class="verse indent0">Guardardes meditando alto silencio,</div>
- <div class="verse indent0">Se d’entre as mangeronas que me cobrem,</div>
- <div class="verse indent0">Saír acaso a borboleta errante,</div>
- <div class="verse indent0">¿Não vereis n’ella o espirito do amigo</div>
- <div class="verse indent0">Que vem gozar do sol a claridade?</div>
- <div class="verse indent0">Quando o suave rouxinol de noite</div>
- <div class="verse indent0">Da minha olaia gorgear nos ramos,</div>
- <div class="verse indent0">Não pensareis, de santo horror tranzidos,</div>
- <div class="verse indent0">Que feito rouxinol, meus cantos sólto?</div>
- <div class="verse indent0">Sim pensareis, e erguendo-se inspirado</div>
- <div class="verse indent0">Algum lhe ha de bradar “Ó meu Amigo!”</div>
- <div class="verse indent0">Responderáõ “Ó meu Amigo” os bosques;</div>
- <div class="verse indent0">E vós direis que o meu fantasma errante</div>
- <div class="verse indent0">Da argentea lua á muda claridade,</div>
- <div class="verse indent0">Á conhecida voz d’alem responde,</div>
- <div class="verse indent0">E em tudo encontrareis a imagem minha.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Se inda então meus costumes vos lembrarem,</div>
- <div class="verse indent0">Se vos lembrar meu coração piedoso,</div>
- <div class="verse indent0">Velai que em meu retiro as bellas aves</div>
- <div class="verse indent0">De caçador cruel cantem seguras:</div>
- <div class="verse indent0">Amor, o leve Amor, com arco d’oiro,</div>
- <div class="verse indent0">Só elle e mais ninguem, logre atirar-lhes;</div>
- <div class="verse indent0">Careço de amorosa melodia</div>
- <div class="verse indent0">Que me poetize o sono derrabeiro:</div>
- <div class="verse indent0">Morto que nada tem preciza d’estas</div>
- <div class="verse indent0">Pobres delicias rusticas, se folga</div>
- <div class="verse indent0">Que a namorada moça, o terno amante</div>
- <div class="verse indent0">Juntos ou sós, a vizitá-lo acudão.</div>
- <div class="verse indent0">Então ao som de languidos suspiros,</div>
- <div class="verse indent0">De alegres cantos, de amorosos versos,</div>
- <div class="verse indent0">De ternas queixas, de perdões suaves,</div>
- <div class="verse indent0">Muitas vezes contente a minha Sombra;</div><span class="pagenum"><a id="Page_130"></a>[130]</span>
- <div class="verse indent0">Formando ao pôr do sol vermelha nuvem,</div>
- <div class="verse indent0">Girará n’estes ares, revolvendo</div>
- <div class="verse indent0">Da passada existencia almas lembranças.</div>
- </div>
-</div>
-</div>
-
-<p class="center">FIM DO POEMETTO</p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_131"></a>[131]</span></p>
-
-<h3 class="nobreak" id="DIA_NOTAS">NOTAS<br />
-AO<br />
-POEMETTO ANTECEDENTE.</h3>
-
-</div>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<h4 class="nobreak" id="DIA_NOTA_1"><i><a href="#Page_109">Pag. 109.</a> verso 10.</i></h4>
-
-</div>
-
-<div class="poetry-container">
-<div class="poetry">
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0">Com seus trovões, com seus coriscos <i>horridos</i>.</div>
- </div>
-</div>
-</div>
-
-<p>Trazia este verso na primeira edição a seguinte
-Nota—<i>Eis àhi os primeiros esdruxolos
-que fiz em minha vida, e espero que sejão
-os ultimos, ainda que por isso que fique excluido da
-communhão de certa Seita moderna.</i>—Supprimi-a,
-e no declarar o porque, vou dar não
-equivoca prova da minha candura. Prezar-se
-um escritor de mais amigo da verdade que de
-Platão e de Aristoteles, alguma couza he; mostrar
-porem que mais do que a si proprio a
-ama, certo que não he vulgar o exemplo, e
-esse tenho eu dado, e não raro, ja fallando ja
-escrevendo limpa e rasgadamente o que de minhas
-Obras me parece. He um bom propozito
-que eu fiz em meu interior, e espero não quebrantar
-nunca, não só porque de si he honesto
-e nobre, senão que por este meio, o qual não<span class="pagenum"><a id="Page_132"></a>[132]</span>
-custa mais do que algum suspiro á nossa vaidade
-que sempre se torce e confrange de ser
-mostrada nua, me estremarei da manada dos
-charlatães literarios, de quem nem o estomago
-me consente fallar. E porque chegue por direito
-caminho á questão dos esdruxolos, recordarei
-com vénia e boa paz dos leitores, o
-que ja no Prologo da terceira Edição das minhas
-<i>Cartas de Echo</i> deixei tocado; com a differença,
-que d’esta vez o farei mais explicitamente.</p>
-
-<p>No tempo em que eu cursava meus estudos
-na Universidade de Coimbra, florecia ella com
-muitos e bons engenhos de mancebos dados ás
-Bellas-letras. E porque ainda então se não tinhão
-accendido os desastradissimos odios das
-parcialidades políticas, a Hobbesiana propensão
-de guerrear se exercia nas letras. Duas seitas
-de escrever se contavão; a cada uma das
-quaes não faltavão admiradores, apostolos e
-evangelistas, assim como por isso mesmo inimigos,
-escarnecedores e parodiadores. Os Livros
-em que uma juramentava os seus adeptos,
-erão Gessner e Bocage; Filinto era o Alcorão da
-outra. Gessner quanto ás couzas e affétos, e
-Bocage quanto ao térso e lustroso de estilo
-e metro, erão os idolos de uma; os da
-outra erão, quanto a couzas e affétos Filinto,
-quanto a estilo e metro Filinto, e Filinto quanto
-a tudo em que Filinto podesse bem ou mal
-ser imitado. Tinha cada uma d’ellas suas vantagens
-e seus descontos, como agora claramente<span class="pagenum"><a id="Page_133"></a>[133]</span>
-diviso, quando as considero com animo livro
-e desassombrado de preoccupações. Não fallarei
-aqui de Gessner, porque ja no Prologo o
-fiz; confrontarei somente, e de corrida, Elmano
-e Filinto.</p>
-
-<p>A ambos dotára natureza de talentos, bem
-que entre si diversissimos, assaz fortes todavia
-que podessem cunhar á sua feição a poesia do
-seus tempos. Elmano, que talvez em seu genero
-nos ficará sendo unico, de fôrça devia deslumbrar
-e encantar pelo caudal inexhaurivel, brilhante
-e estrepitoso de sua vêa, que eu appellidarei,
-e ria quem rir, um Niagara de talento:
-e assim como, os que pasmão deante d’essa
-grande catarata de puro embevecidos em
-sua cópia e magnificencia, não tem olhos para
-notar o esteril do seu curso, o assolador do
-seu ímpeto, e os penedos que rója envoltos e
-desfarçados com suas aguas, assim os que presentes
-assistirão ao poetar de Bocage, ou da
-tradição o receberão, fascinados com os seus
-estrondos, espumas e iris, mal se podem lembrar
-de lhe desejar afféto, sizo, e exatidão,
-que muitas vezes lhe fallecem.</p>
-
-<p>Cinco couzas, pelo menos, para o bom poeta
-se requerem: <i>faculdade inventiva</i>—<i>faculdade
-sensitiva</i>—<i>sciencia</i>—<i>lingua</i>—<i>e ouvido</i>; e
-ainda com estas cinco outra, que talvez resultará
-rempre de sua união, e sem a qual todas
-as mais seráõ baldadas; fallo d’aquelle discernimento
-pronto, que a muitos erradamente pafeceo<span class="pagenum"><a id="Page_134"></a>[134]</span>
-instinto, e a que se costuma dar nome
-de <i>gôsto</i>. Em raros sujeitos concorrem tantos
-predicados; por isso só de longe a longe apparecem
-os maximos poetas, e ja se dão por
-grandes aquelles a quem menos faltou d’estes
-requisitos. —</p>
-
-<p><i>Faculdade inventiva</i> ou não a tinha, ou apenas
-a tinha Manoel Maria; a sua queda para
-tradutor bastaria para indicio, se de indicios
-te carecesse aonde claras reluzem as provas:
-um <i>Fado</i>, um <i>Jove</i>, <i>Eternidade</i>, <i>Natureza</i>,
-<i>Sóes</i> e <i>Caos</i> são o <i>index rerum notabilium</i> da
-maior parte de seus escritos; e tanto abunda
-n’estes bordões sustedores e disfarçadores de
-sua fraqueza, como Ferreira (e quem descobrirá
-os meus?) na cançada repetição do <i>esprito</i>,
-Jorge de Montemayor na de <i>hermoso</i> e <i>hermosura</i>,
-Pina e Mello na de <i>alento</i> e <i>impulso</i>,
-Alfeno Cynthio na de <i>santo</i> (epítheto, que por
-mais não ter onde o pegue, até o poem, se bem
-me lembro, como arrebique na cara de suas pastoras
-e namoradas): com a differença que os
-particulares bordões d’estes poetas, e ainda outros
-de outros muitos, não são em suas Obras
-senão meras circunstancias e accidentes, e os
-de Bocage menos são estribilhos do que fundo
-o substancia de inteiros e repetidos periodos.</p>
-
-<p>De <i>faculdade sensitiva</i> talvez o houvesse menos
-escaçamente dotado a natureza, mas outras
-qualidades que lhe ella mesma deo em maior
-auge, taes como volubilidade de fantasia,<span class="pagenum"><a id="Page_135"></a>[135]</span>
-aspereza de condição, espirito sobranceiro e satírico,
-e coração, como elle mesmo confessa.</p>
-
-<p><i>Mais propenso ao furor do que á ternura,</i>
-lhe entibiarão os affétos benignos, de que sé
-a longes distancias lhe sáe, como a descuido,
-algum reflexo. A estes máos e naturaes elementos
-accrescêrão desvarios da fortuna ou do acaso,
-bem valentes para de todo lhe seccarem a
-fonte das branduras. Vida mal preparada de
-educação, nua dos amoraveis habitos domesticos,
-desalumiada de doutrina e estudo, aturdida
-de applausos contínuos e encarecidos,
-amargurada amiude de pobreza, vagabunda entre
-amigos não amados e por terras não suas,
-vida, porque tudo diga, corrida á ventura e
-sem norte conhecido, desenfreada de todas as
-leis, sôlta por todos os vicios, cínica por timbre,
-e por indole silvestre e bravia, como podia
-ser que lhe não tisnasse no germen os affétos
-maviosos? Isso foi, e isso conhece quem
-bem attento o ler e meditar. Mas em desconto,
-as paixões fortes como o ciume, a colera,
-a vingança, sente-as e pinta-as vigoroso, assim
-como todos os objétos grandiosos, remontados,
-encarecidos, ou terriveis. Não vos debuxará
-um mendigo, avergado de annos, estendido
-n’umas palhas esquecidas, junto do cão
-seu ultimo companheiro, e orando no desamparo
-da noute, por quem, sem o convidar para
-a sua fogueira do inverno, lhe deo fóra da
-porta meia fatia de pão; nem ainda as carícias
-de uma mãi a seu filho: mas dir-vos-ha,
-rico e altisono, os impetos de uma tempestade,<span class="pagenum"><a id="Page_136"></a>[136]</span>
-a sanha de uma batalha, as iras de uma
-madrasta, ou as furias de um infeliz que pragueja
-sua má ventura.</p>
-
-<p>Os affétos e a invenção póde a <i>sciencia</i> por
-álgum modo suppri-los, opulentando-nos com
-os affétos e invenção de melhores autores, uma
-vez que por nós tenhamos a arte de bem escolher,
-bem digerir, e bem converter esses literarios
-alimentos em substancia nossa, em nosso
-proprio ser: ainda mui boa estrella he essa,
-e não poucos dos afamados desde Virgilio até
-ós nossos dias, só á sciencia, e a essa arte de a
-aproveitar, haverão devido a melhor parte do
-seu credito. He o saber, princípio e fonte de
-bem escrever, dizia o Mestre dos poetas; e
-dizia o dos oradores, que uns e outros era mister
-entenderem de tudo. E se ja isso foi nos
-tempos antigos conselho e quasi preceito, preceito
-absoluto se tornou, e necessidade, para
-quem escreve n’estes tempos, em que a luz se
-derramou mais ampla, em que as sciencias,
-cançadas de viver sobre si, se congregarão como
-boas irmãs em uma só familia, juntarão
-os seus patrimonios em commum, e cada uma
-ajudando a todas as outras, vem a por todas ellas
-receber um infinito accrescimo em seu peculio.
-Limitadissima era a instrução de Bocage:
-o latim e o francez, na primeira de cujas
-linguas mormente era primoroso sabedor,
-segundo referem, podérão ter-lha dado copiosissima:
-mas nem a viveza de seu animo, os
-prazeres e os divertimentos que em seu cerrado<span class="pagenum"><a id="Page_137"></a>[137]</span>
-círculo o trazião como enfeitiçado, lhe permittião
-estudos, nem são elles facil couza para
-pobres e viciosos, nem o que era saudado
-por divino, como quer que <i>desatasse na voz o
-acceso turbilhão</i> de suas ideas, carecia de ir
-excavar em livros o suado cabedal, com que
-outros negocêão veneração.</p>
-
-<p>Quanto á <i>linguagem</i>, não será pêjo dizer,
-que a usava limpa e sã, não se podendo taxar
-a sua de mendiga e remendada, como
-a ja muitos de seus contemporaneos vinha acontecendo,
-nem encarecer de rica e ambiciosa:
-pouco tinha lido do portuguez, mas esse
-pouco com aproveitamento: só d’isso ajudado,
-e do latim la se foi remindo e esteando a
-sua Musa sem emprestimos do francez; e este
-carecer de vicios ja então era grande virtude.
-Para lhe darem, como a texto, cabimento em
-nosso Diccionario<a id="FNanchor_11" href="#Footnote_11" class="fnanchor">[11]</a>, não vejo eu razão sufficiente,
-assim como a não ha para o desprezo
-e esquecimento, em que os havidos por puritanos
-o deixárão cair. Uma couza he porem verdade
-irrefragavel, e he, que em nenhum escritor,
-antigo nem moderno, apparece a lingua
-portugueza mais senhoril e polida, mais igual
-e ao meio entre o usual e o sublime, entre a
-penuria e a prodigalidade.</p>
-
-<p>Somos chegados á <i>harmonia</i>, o mais eminente<span class="pagenum"><a id="Page_138"></a>[138]</span>
-merito de Bocage, e no qual nem antecessor
-teve, nem ainda até hoje successor.
-De todas as partes que em Bocage concorrião
-para poeta, nenhuma havia tão delicada, e em
-que tanto se houvesse a natureza esmerado como
-o ouvido. A verdadeira musica dos nossos
-metros, particularmente do hendecassíllabo, não
-só a desempenhou e ensinou elle, senão que a
-inventou; e com felicidade tão rara, que não
-cuido se possa a pontar hespanhol, e nem por ventura
-italiano que o iguale, e mais he o italiano
-pela abundancia de suas brandas e variadas
-vogaes, pelo moderado e macio de suas
-consoantes, pelas licenças e elasticidade de
-seus vocabulos, muito mais pronto e domavel
-para todo o uso métrico do que o portuguez.
-Poucos estafárão tanto os consoantes como Bocage
-(e ainda ahi he grande o seu louvor, que
-não he dado rimar mais primorosamente); mas
-a ninguem erão os consoantes mais escuzados:
-são esses para o verso uns arrebiques e sinaes
-com que os mal assombrados se disfarção, para
-poderem apparecer, mas de que os graciosos
-e bellos não carecem, nem os devem consentir,
-por não parecerem menos do que são.
-Porque não ouzarei eu dizer, que mais são os
-seus versos poeticos, do que era poeta elle proprio?
-Como simples cantilena agradão, agradão
-ainda quando por vãos os engeita o juizo
-e o coração por frios: um estrangeiro que
-ignorante d’esta lingua os ouvisse bem e devidamente
-ler, recrear-se-hia como com a toada
-de um bem tangido instrumento. Grande excellencia<span class="pagenum"><a id="Page_139"></a>[139]</span>
-por certo he esta, á qual principalmente
-deveo levar traz si suspensos e encantados
-os animos, e por onde logrou ser, sem o
-cuidar, fundador de uma escola, que se me não
-engano, ainda de todo não passou. Toda a
-gloria de engenho he oiro em que nunca faltão
-fezes: o produzir pela mágica de sua versificação
-uma seita de versificadores, por honroso
-se podéra haver, se aos discipulos podesse
-ter transmittido, juntamente com as normas,
-o talento, a fôrça, a graça e o gôsto com
-que as produzia e aperfeiçoava: porem quiz algum
-Genio máo, para lhe humilhar a vaidade
-e descontar a vitoria, que a maior parte
-de seus sectarios menos lhe tomassem a melodia
-do que os escarcéos, as empollas, os trocadilhos,
-as apóstrofes, as redundancias, e os
-versos que ja se hoje chamão de dobrar,</p>
-
-<div class="poetry-container">
-<div class="poetry">
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2"><i>Seu mais doce penhor, seu bem mais doce.—</i></div>
- <div class="verse indent0"><i>Vio n’ella os risos, vio as graças n’ella.—</i></div>
- <div class="verse indent0"><i>Um Deos não he perjuro, um Deos não mente.</i></div>
- <div class="verse indent0"><i>Que não paga de um Deos, de um Ceo não paga,</i></div>
- <div class="verse indent0"><i>Ouzaste pregoar mais Ceos, mais Deozes.—</i></div>
- </div>
-</div>
-</div>
-
-<p class="noindent">versos, que parcamente lançados, como nas
-Obras de Virgilio, tem graça; semeados a frouxo
-são affeites e desdoiros do estilo.</p>
-
-<p>Do seu <i>gôsto</i> ja me julgo dispensado de fallar,
-porque me parece que o que d’isso podéra
-dizer por si mesmo está nascendo do que fica
-dito. Concluamos: o que de Bocage digo em<span class="pagenum"><a id="Page_140"></a>[140]</span>
-geral, com suas exceções se ha de entender,
-porque por uma parte muitas paginas ha suas,
-mormente em algumas traduções do francez,
-onde parece lhe esqueceo pôr o tal verniz de
-dicção e sons que para si inventára, e de que
-a ninguem deixou a verdadeira receita: e por
-outra parte tambem, obras ternos suas, mormente
-sonetos e traduções latinas, cabaes e redondissimamente
-perfeitas.—Passemo-nos já
-a tomar iguaes contas a Filinto.</p>
-
-<p>Muito mais melindroso he este processo, até
-porque ja o querer tomar-lhas será para seus
-apaniguados um crime de leso Apollo, e primeira
-cabeça. Valha-me porem a declaração
-que faço, de que em tudo quanto disser,
-não seguirei outras partes que as de minha
-razão, declarando previamente que muito pouco
-dou eu mesmo por ella; mais são consultas
-que faço que sentenças que profiro, e antes
-exercicios de imparcialidade do que acintei de
-inimigo: de ninguem o sou, quanto mais de
-poetas, de perseguidos, de velhos, de mortos.
-Foi tempo em que eu, obscuro poetastre do
-Mondego, ria e vazava epigrammas contra o
-tradutor dos <i>Martyres</i>: hoje se me afigure
-muito mais valioso. He elle o mesmo, mudei
-eu; Deos sabe quantas vezes mudarei ainda
-com os annos: do mudar não he nossa a culpa;
-nossa he porem, e feíssima a de persistir
-no erro conhecido; se a republica literaria
-tivesse inquisidores, por heresia e contumacia
-que não havião relaxar ao braço secular. Ha<span class="pagenum"><a id="Page_141"></a>[141]</span>
-por ahi muito homem do meu officio que possa
-dizer de si outro tanto? Mas deixemos esses
-que estão vivos, e vamo-nos a Filinto.</p>
-
-<p>Se he ou não <i>creador</i>, ja vi ser renhida
-questão entre ociosos: para mim tenho que
-semelhante titulo mal lhe pode caber. O frequente
-verter ha pouco disse eu que denunciava
-esterilidade; e podéra accrescentar uma sentença
-ainda mais desabrida, que ha muito
-encontrei, cuido que nas Lições literarias do
-Doutor inglez Blair, e que muito me caío; a
-saber, que o costume de traduzir, bem que
-olhado pela rama pareça dever ser frutífero,
-sempre ao cabo vem a desgastar-nos a faculdade
-inventiva. Compara-lo hei com o linho,
-que apezar de tão precizo no mundo e de tão
-agradavel aos lavradores depois de colhido,
-por isto só desgosta a muitos d’elles, que a terra
-onde se criou fica magra, e como elles dizem
-queimada para outras novidades. Muito
-mais de metade dos tomos de Filinto trazem
-no titulo os nomes de autores estranhos, devendo-se
-ainda lançar a este rol por boa restituição,
-bastantes Obras, que talvez por descuido, imprimio
-sem nenhuma menção de serem, como
-erão, vertidas. As imitações são no merito e
-inconvenientes meias traduções, e as do nosso
-poeta são numerosissimas, disfarçadas umas,
-outras manhosamente dissimuladas. No resto
-que he de sua lavra, apenas se nos depara
-couza que abone talento original e produtivo a:
-são os chamados lugares communs de poesia<span class="pagenum"><a id="Page_142"></a>[142]</span>
-filosofica, que ja por safados custão a passar,
-e as tão esfalfadas visões e apparecimentos de
-Apollos, de Musas, de Amores, de Pégasos,
-e de outros mil defuntos, a quem o tempo ja
-comeo o balsamo, e que todavia são ainda a
-unica povoação de quasi todos seus poemas, tanto
-jocosos como sérios. Algumas vezes me vem
-desconfianças de que n’aquelle passo da Sátira
-do <i>Bilhar</i>, em que o nosso Tolentino parece
-rir de certas Odes, contra Filinto hia tirada
-a seta de sua crítica:</p>
-
-<div class="poetry-container">
-<div class="poetry">
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2"><i>Co’as verdes mãos o serpeado Tejo</i></div>
- <div class="verse indent0"><i>Alça o trilingue, mádido tridente;</i></div>
- <div class="verse indent0"><i>Mas que Górgona filtra? eu vejo, eu vejo ...</i></div>
- <div class="verse indent0">Em dizendo isto he Ode certamente.</div>
- </div>
-</div>
-</div>
-
-<p>Em <i>affétos</i> porem sobreleva a Bocage, e não
-abunda. A espaços lhe vislumbrão assomos d’aquella
-sismadora melancolia, que mais ou menos
-respira em todos os bons poetas. As amarguras
-e saudades, que em tão larga vida e desterro
-lhe não faltárão, alguma, e não rara
-vez, lhe soprárão versos amoraveis, e deliciosos
-de tristeza. He este de todos os dotes de
-poeta o mais caramente comprado; sendo assim
-que Deos sabe quantas vezes em applaudir
-um verso que nos toca, batemos por ventura
-palmas a calados infortunios de quem
-no-lo escreveo. Não nos assuntos ditos <i>sentimentaes</i>
-se conhece tanto o verdadeiro sentimento,
-como nos de indole mais fria e izenta;
-porque, se n’estes ultimos apparece inesperada<span class="pagenum"><a id="Page_143"></a>[143]</span>
-uma palavra maviosa, n’uma flor de festa
-uma nôdoa de lagrima a descuido, ahi vem o
-infallivel documento de ternura e suavidade:
-e d’estas sombras de lagrimas, d’estas palavras,
-maviosas achamo-las em Filinto.</p>
-
-<p>Na <i>sciencia</i> he que elle mais notoriamente
-leva a palma ao seu contendor. Que muito?
-com o dôbro de vida, com precizáõ
-de estudar para se divertir das mágoas e ganhar
-pão, com o ar e tráfico de Paris onde
-todos inspirão e expirão letras, e com tão espaçosa
-velhice, pingue quadra em que as paixões
-quietando nos deixão todo o silencio, remanso
-e curiosidade necessarios para o estudo!
-Tornarão-se-lhe familiares os classicos portuguezes
-e latinos, de uns e outros dos quaes talvez
-Bocage não tivesse acabado dois ou trez volumes;
-familiares os classicos francezes, hespanhoes
-e italianos, e ainda as versões dos inglezes
-e allemães. Á roda d’elle chovião de dia a
-dia, e de hora a hora, os frutos novos de todos os
-ramos das Sciencias, de que he impossivel a
-quem por lá vive não provar, até sem querer,
-e ao cabo não se nutrir e fortificar. Entretanto
-repararia eu, se o ousasse, que para quem
-logrou concurso de tão favoraveis circunstancias,
-como as que a sua má estrella lhe deparou,
-não saío Filinto o que se podéra esperar
-de noticioso e culto; e ou desaproveitou o maná
-que ás mãos do espirito lhe chovia, ou se
-o tomou lhe não luzio. Á primeira d’estas duas
-conjéturas me inclino, porque segundo o que<span class="pagenum"><a id="Page_144"></a>[144]</span>
-de seu natural alcanço por suas Obras, parece-me
-que na lição das estranhas mais se hia á caça
-de vocabulos e frases curiosas, insolentes
-e atrevidas, do que de doutrinas e filosofia.
-A sua era meã e usual: cançados louvores á
-Liberdade, á Amisade e á sã Virtude, ao estudo,
-ao descanço e ao deleite, alguns arremeços
-de encontro aos Bonzos e Naires, eis ahi
-sondado até ao lastro o seu poço de saber moral:
-alguma historia não rara antiga e moderna,
-eis todo o seu saber positivo; e todo o
-seu saber natural, alguns dos principios geraes
-e diarios das Sciencias fisicas. E certo,
-que se mais avultados fossem estes seus cabedaes,
-e vêa mais fecunda lhe consentisse
-anciar mais altas couzas do que palavras e
-frases, não se deixára ficar tanto atraz no
-meio de um seculo novo e alado de poesia;
-não se contentára o seu estro abstémio com a
-agua do Parnaso até á ultima hora da vida;
-e não nos deixára seus volumes pejados quasi
-só de fabula, como armarios de muzeu antiquario,
-onde se não vai procurar qual he o mundo
-em que vivemos, mas deduzir de troncados
-e desluzidos fragmentos, o que em tal ou tal
-parte da terra houve lá n’outros tempos, com
-os quaes e com a qual só pouco ou nada temos.
-Diz um Escritor insigne<a id="FNanchor_12" href="#Footnote_12" class="fnanchor">[12]</a>, que a poesia assim
-como ontr’ora viveo de fabula, revive hoje e
-se apascenta de verdade. Melhor dissera que
-de verdade viveo em todos os tempos a nobre<span class="pagenum"><a id="Page_145"></a>[145]</span>
-poesia, pois que o que para nós se descubrio
-fabula, era nos dias em que appareceo e florio,
-verdade de factos, ou capa allegórica de
-verdades, mui crida e sincera.—Resumamos;
-Filinto soube mais que Bocage, menos do que
-podéra, e diverso do que devêra saber.</p>
-
-<p>A <i>linguagem</i>, de que pela ordem se me segue
-fallar, mais requeria n’este caso um tratado,
-do que uma nota de fugida. Algum dia
-o tentarei, quando me achar mais de assento
-e sobre mão do que agora, que as justas raias
-d’este escrito me estão tolhendo. He a linguagem
-e elocução a principal feição caraterística
-de Francisco Manoel, como de Manoel
-Maria o he a harmoniosa elegancia.</p>
-
-<p>A torrente das hipérboles e conceitos hia arrazando
-e engolindo todo o nosso Parnaso,
-quando para lhe pôr a ella diques, e a elle
-salva-lo, e repovoa-lo de natureza, appareceo
-a Arcadia. Detençosa e ardua se representava
-a obra, como aquella em que a razão nua
-tinha de lutar com a imaginação delirante. Para
-anteparar ímpetos de vêa tão engrossada com
-as contínuas nascentes e tão copiosas de Italia,
-Hespanha e Portugal, ja tão senhora do
-leito e dominadora das margens, era mister
-que braços fortes lhe levantassem muralhas solidas
-de grossa e pezada cantaria. Virão os
-Arcades como lhes estavão á mão as obras, não
-todas primorosas, mas quasi todas massiças
-dos nossos quinhentistas e dos romanos classieos:<span class="pagenum"><a id="Page_146"></a>[146]</span>
-erão accommodadas ao intento, dizião
-com seu gôsto e costume; valerão-se d’ellas,
-accrescentarão-lhes as suas proprias, levantarão
-o muro; bramio, quebrou e escoou-se a
-inundação. Raro he o bem, que só porque o
-he, não traga outros comsigo: dos trabalhos,
-que havião tido por fim acabar com os nojos e
-puerilidades do falso engenho, nasceo um conhecimento
-mais profundo da linguagem, mais
-extremoso amor á sua pureza, e o comêço do
-encarniçado e ainda não findo pleito, entre a
-puridade e o gallicismo. Verdade he que n’este
-segundo campo se não guerreou com tão favoravel
-marte como no primeiro, porque se as
-maravilhas da <i>Fenix Renascida</i> passárão, os
-gallicismos fôrão em successivo crescimento,
-sendo ja hoje tão caudaes e trasbordados, que
-princípio a desconfiar não haverá remedio senão
-rendermo-nos, encruzar os braços, e deicharmo-nos
-ir ao fundo: tanto estou convencido
-de que nem a propria razão he poderosa contra
-o espirito de um povo: e a final de contas,
-Deos sabe, até n’isto, o que he razão!</p>
-
-<p>Era Filinto, por sua amizade e commercio
-íntimo com os sujeitos de maior credito
-na Arcadia, e por motivos de sua propria
-conveniencia, homem que de necessidade devia
-entrar na pendencia, e sustenta-la até á
-ultima: n’isso assentou, e o cumprio mui
-pontualmente. Entendeu desde todo o princípio,
-como aquelle a quem não fallecia bom
-juizo, em se prover das armas seguras e bem<span class="pagenum"><a id="Page_147"></a>[147]</span>
-temperadas, sem que lhe não conviria arriscar-se
-no combate: e se as defensivas que vestio
-lhe podessem ter saído tão impenetraveis ás
-setas do ridiculo como as offensivas que meneou
-erão fortes e penetrantes, guapissimo Cavalleiro
-houvéra apparecido, e invencivel. Do
-antigo portuguez e do latim instituio concertar
-toda sua armadura: com diurna e nóturna
-mão versou pois os monumentos de ambas estas
-linguas; e quanto do portuguez ja feito se
-podia enthezourar, ou se lhe podia accrescentar
-por derivação, por composição, por analogia,
-por translação, ou por qualquer outra
-licença poetica, sem embargo de desenvolta
-e extrema, tudo ouzou com ardimento verdadeiramente
-admiravel. Fez estranheza a novidade,
-offenderão-se os mimosos com o escabroso
-e difficil de tal estilo, arripiarão-se os pusillanimes
-com o arrôjo, os ignorantes e priguiçosos
-com a immensa fadiga que bem vião
-seria necessaria para entender, não só imitar
-e seguir, quem tão por fóra caminhava das veredas
-batidas e vulgares. Todos estes, e com
-elles os invejosos, saírão em campo, combaterão,
-e apuparão, e quanto mais apupavão
-e combatião, mais recrescia em Filinto o acintoso
-proposito de se não descer do começado, antes
-encarecê-lo sempre até o ultimo ponto. Outra
-causa havia que para isto lhe fazia fôrça, e
-era conhecer como sem estes bordados, recamos
-e relêvos de frase, o cabedal de suas galas
-poeticas appareceria, qual em realidade
-era, grosso, commum e de mui baixa valia.<span class="pagenum"><a id="Page_148"></a>[148]</span>
-Mas quer o movesse esta causa bem perdoavel,
-quer fosse generosidade com que se offerecia
-aos motejos, e desapreço de muitos, com
-o só intuito de restaurar, e avantajado, o edificio
-do idioma portuguez, sempre fica certo que n’este
-particular mereceo mui bem de sua patria, e
-a deixou muito mais medrada do que a achára.
-Oxalá que dois ou trez mais, dotados de
-igual credito, pozessem como elle peito á empreza;
-e muito embora demaziassem como elle:
-cunhassem a flux tudo quanto dão as minas
-portugueza e romana; ainda muito oiro puro
-de dicção viria enriquecer-nos, e facilitar-nos
-o tracto; pôsto que tambem como elle lá cunhassem
-á mistura oiro enfezado, não de lei,
-nem de receber: o juizo público estremaria
-umas de outras moedas, e as engeitadas a ninguem
-farião mal, se não fosse ao credito de seu
-autor. Assim crescêra cabedal, que ainda mingoa
-para as obras do engenho patrio. Nossa
-lingua, qual por ora a temos, e até restituindo-lhe
-todos seus fóros caídos, todas suas joias
-enterradas, não supre as hodiernas precizões
-do espirito. Quando a esfera do saber, sentir
-e pensar se está de hora para hora dilatando
-no mundo, do qual nós outros (ainda que o
-não pareçâmos) somos tambem parte, forçado
-hé que a esféra da expressão ao mesmo compasso
-se dilate, e engrandeça. Repôr ao idioma
-quanto ja teve será louvavel consciencia, porem
-não bastará, se apoz isso se lhe não dér
-com mão liberal, mas prudente, quanta substancia
-nova elle possa receber e commutar, para<span class="pagenum"><a id="Page_149"></a>[149]</span>
-que na apostada carreira que os entendimentos
-das nações agora levão para o infinito desconhecido,
-o da nossa, por fraco e sem azas, se
-não deixe ficar atraz.</p>
-
-<p>Uma reflexão quero eu aqui fazer, mais que
-a taxem de digressão; não será nova para os
-que escrevem, mas servirá para que os que
-lem se abstenhão mais de acoimar pobrezas em
-nossos poetas. Ja das palavras se averiguou
-serem ellas fio e arrimo de que a mente se vale
-para melhor ir seguindo por suas ideas sem queda
-nem tropêço. Pois se as palavras, que não
-passão de reflexos e retratos do pensamento,
-tem virtude para o fecundar, menos ainda se
-duvidará precizar a imaginação poetica de uma
-abundante linguagem, para se manifestar por
-obras, assim como o pintor de finas e variadas
-tintas para seus paineis, e o musico de instrumento
-pronto e copiosamente registado, para
-enlevar os animos. O poeta francez, porque
-tem uma lingua que á fôrça de bem cultivada
-por muitos e differentes engenhos, se accommoda
-préstes e serviçal aos pensamentos mais
-subtis e novos, e aos affétos mais delicados e
-passageiros, d’ella se ajuda para inventar, e
-com ella exprime completamente o que inventou.
-Não assim nós, que em pertendendo alçar-nos
-por cima das communs ideas do nosso
-paiz, nos achâmos, sem o cuidar, pensando
-em francez; e se isso, que bem ou mal nos apparece
-na alma, tentâmos passa-lo para o papel,
-suâmos, bramimos, aqui nos faltão de todo as<span class="pagenum"><a id="Page_150"></a>[150]</span>
-expressões, ali só tibias nos acodem, outras
-mal determinadas e mal entendidas, outras estiradas
-em perífrases. Dai-me o proprio Lamartine
-nascido nas margens do Tejo, e pedi-lhe
-uma só <i>Meditação</i>, uma só epocha de <i>Jocelyn</i>;
-grande será o acêrto se as conceber,
-quasi impossivel que as escreva. Ponderou Condillac
-mui avizadamente, que a razão porque
-apparecião em certo povo e tempo maior numero
-de varões abalisados em letras, era o ponto
-de crescimento e sufficiencia abastada a que
-chegou n’esse tempo a lingua d’esse povo. Melhor
-será que o deixemos por sua boca doutrinar-nos,
-que bom missionario he em couzas
-d’estas.</p>
-
-<p>“Acontece com as linguas (diz elle) o mesmo
-que com os algarismos dos geómetras:
-quanto mais perfeitas são, mais vistas novas
-nos offerecem, e mais nos dilatão o espirito.
-Os bons acertos de Newton de antemão havião
-sido preparados pela escolha dos sinaes
-que antes d’elle se fizera, e pelos methodos de
-calculo ja imaginados. Se mais cedo nascesse,
-podéra ter sido homem grande para o seu seculo,
-mas não fôra agora maravilha d’este
-nosso. Outro tanto vai pelos demais generos.
-A boa fortuna dos engenhos mais bem aparelhados
-inteiramente depende dos progressos da
-lingua no seculo em que vivem, porque os vocabulos
-correspondem aos algarismos dos geómetras,
-e o modo de empregar os vocabulos
-corresponde aos methodos do calculo. Por tanto,<span class="pagenum"><a id="Page_151"></a>[151]</span>
-em uma lingua aonde ha penuria de palavras
-ou de construções bem azadas, ha os
-mesmos obstaculos em que a geometria topava
-antes do invento da algebra. O idioma francez
-foi por largo discurso de tempo tão pouco
-ageitado aos progressos do espirito, que se
-imaginarmos Corneille em cada um dos seculos
-ascendentes da monarchia franceza, quanto
-mais ao remontar nos fôrmos afastando do em
-que viveo, tanto mais, e gradualmente, irá mingoando
-o seu engenho, e chegar-se-hia por
-ultimo a um Corneille que nenhuma prova poderia
-dar de talento.”</p>
-
-<p>Voltemos a Filinto. Não decedirei se houve
-ou não bom fundamento para o allegarem por
-autor e texto, como o fizerão na quarta edição
-do Diccionario de Moraes: nem ouzaria eu
-pôr mão no fogo pela infallibilidade de sua pureza,
-porque (mas a medo e sommisso vai o dito,
-que por dito e não sentença merece vénia)
-aqui ou acolá se me figura enxergar por suas
-paginas algumas nódoas d’aquella mesma côr
-a que nunca perdoou odio. Mas se as ha, são
-manchas, no passo que o geral de sua escritura
-he recheado de muitas preciosidades para quem
-poz peito a bem escrever esta lingua. Por toda a
-parte lhe estão pullullando lusitanismos em vocabulos,
-frases, collocação, inversões, geito e feição
-de períodos, que se houver gôsto em quem
-lê para os joeirar e limpar de alguma mistura
-chôcha ou sédiça, farão muito bom sustento
-para poetas e prozadores. Se houver gôsto, puz<span class="pagenum"><a id="Page_152"></a>[152]</span>
-eu, e muito que o puz de indústria, porque,
-os que d’elle carecerem, lição tal só os fará mais
-ridiculos; os que ainda o não houverem formado,
-e se metterem por esses onze e mais volumes
-sem bom e constante Mentor, não sei se
-em linguagem e em poesia viráõ nunca a dar
-fruto que bem saiba e se abençoe.</p>
-
-<p>Em summa, Francisco Manoel do Nascimento
-foi um martyr da religião de nossa lingua:
-para lhe lançar mais gloria cerceou a sua propria:
-com o excessivo das joias com que a arreou,
-deixou-a affétada, e menos matrona grave
-do que bailarina de corda; sim habilidosa
-e leve, mas dengosa e presumida: mostrou-lhe
-o como e por onde devia subir á perfeição, a
-que por outros, porem tarde e mui tarde,
-será levada: foi, porque tudo diga, um destemperado
-despertador, que nos poz a pé para
-o dia das letras.—Quero repetir, fez serviço
-talvez maior que nenhum dos classicos, mas
-he de todos o menos para seguir ás cegas. Bem
-haja elle que tocou a alvorada para nos acordar,
-mas mal haja quem quizer ficar com trombeta
-tão rouca e dissonante a tocar alvoradas
-todo o dia: ja estamos acordados, cabe agora
-aproveitar o tempo, como gente de juizo.</p>
-
-<p>Se da lingua passâmos em Filinto á <i>harmonia
-métrica</i>, damos maior salto que o de Léucade,
-e como cumprindo igual oraculo, ou
-nos afogamos em um mar bravo, ou de lá surdimos
-curados de todo o amor a tal poeta.<span class="pagenum"><a id="Page_153"></a>[153]</span>
-Em nenhuma das quatro ou cinco partes do
-globo, e em nenhuma era se metrificou jamais
-lão dura, desleixada e insolentemente. Se alguma
-vez se esquece com dois ou trez versos bons,
-logo se vinga com duas ou trez duzias, que se
-os reduzissem a linhas iguaes, não serião mais
-nem menos que desaceiada proza. E ainda he
-para agradecer quando só lhe falta melodia,
-porque algumas vezes nos dispara versos, em
-que as pauzas vem todas desconjuntadas, e outros,
-em que sobejão síllabas, por mais que a
-maço as procuremos entalar e embeber umas
-por outras.—A sua rima he por via de regra
-desnatural a pobre: os seus sonetos e toda
-sua lírica de consoantes, enxabimentos ou
-arripíos. Bem se alcança como erão arrufos de
-maltratado, as injurias que em muitas partes
-vomitou contra a rima, e não como as de
-Boileau, vozes só de um juizo rigoroso, que
-de dentro das letras as media. Nos defeitos
-de versificador fez de idade para idade successivos
-enotados progressos, sendo assim que ou por desleixo,
-ou por certa petulancia, em que engenhos
-grandes muitas vezes cáem, tomando por timbre o
-escarnecer do Publico, quanto mais hia usando
-do officio, tanto mais desprimoroso se foi mostrando,
-até ganhar tão duro callo na consciencia,
-que nem a deliciosa harmonia dos versos de
-Racine lhe podia ja ao cabo inspirar, um só
-verso toleravel de tradução.</p>
-
-<p>Do muito que só deixo apontado se deduz
-a idea que para mim tenho do seu <i>gôsto</i>; melhor<span class="pagenum"><a id="Page_154"></a>[154]</span>
-será do que só deixa-la deduzir, declara-la.
-Parece-me pois ser o seu gôsto pouco e
-máo; e n’isto estribo o parecer: 1.º que para
-suas Obras originaes costumava de escolher fracos
-sujeitos—2.º que as pejava de taes invenções
-que ja em tempo de Romanos o não erão—3.º
-que por vida se repete, e por costume
-redunda—4.º que na ordem desordenadissima
-em que seus escritos pôz, anda o peor tão
-travado com o melhor, e as puerilidades vergonhosas
-com as Odes que lhe lucrárão nome,
-que sem que o lustre do bom disfarce o máo,
-o esqualor e nojo d’este deturpa e estraga aquelle—5.º
-que se para traduzir elegeo
-ás vezes bons originaes, taes como o Oberon
-e os Martyres, outras os escolheo desenganadamente
-incapazes, taes como a triste historia
-em verso da Guerra Púnica: outras
-vezes, escolhendo originaes optimos, nem antevio,
-nem pelo discurso do trabalho conheceo,
-nem sequer sentio depois de findo (porque talvez
-se o sentisse nos houvéra poupado a ler a
-versão), que havia n’essas Obras exclusivos e
-essencialidades, quer da lingua em que estavão
-feitas, quer do engenho que as fizera; haja
-vista ás tão graciosas e admiraveis fabulas
-de Lafontaine, que em Filinto parecem tanto
-as mesmas, como a estampa de Bertoldo se
-podéra julgar retrato do Apollo de Belveder.
-etc. etc. etc. etc.</p>
-
-<p>Taes são hoje para mim Filinto e Bocage:
-mui outros dos que ja me parecêrão, e talvez<span class="pagenum"><a id="Page_155"></a>[155]</span>
-dos que me hão de parecer quando novos livros,
-novas couzas, e o rodear dos annos me houverem
-feito sou ordinario e incontrastavel officio.
-N’aquellas eras pois, que ja eras antigas se me
-representão aquelles meus tempos, caía todo
-com o meu Gessner em braços, para a parte
-de Bocage, mancebo e lustrozo; e se me figurava
-que se lograsse trava-los, fundi-los em um,
-faria obra de se me agradecer. Os partidarios
-de Filinto, que não sei porque, trazião guerra
-declarada com Bocage, vierão saindo de
-seus montes escarpados, empeçados e tenebrosos,
-para dar váias e tirar remêssos de epigrammas
-ao nosso bando: cerrámo-nos com a bandeira,
-démos sobre elles com iguaes armas,
-foi batalha campal, rôta e sem misericordia:
-não houve mórtos nem cativos, poucos transfugas,
-feridos muitos. Recolhidos nas trincheiras,
-cantámos uns e outros, como he costume,
-o <i>Te deum</i> da vitoria; dobrámos a altura aos
-vallos, e profundez aos fossos que nos estremavão;
-jurámos não acceitar nunca pazes, quanto
-menos commette-las, nem consentir em alguma
-couza que ás dos inimigos se parecesse. Eu
-que fôra dos mal feridos e ainda palpava as costuras,
-como havia de faltar a nenhum ponto
-da conjuração? Muitos d’elles merecerião tratados,
-mas porque não fazem para o fim d’esta Nota,
-venho aos esdruxolos, e só libarei a
-materia.</p>
-
-<p>Da natureza, como quer que seja, nos vem
-sempre o gôsto; mas sendo que a moda, que<span class="pagenum"><a id="Page_156"></a>[156]</span>
-muitas vezes se gera de um acaso, introduz o
-uso, e este chega a mudar ou alterar a natureza,
-vem a ser o gôsto em muitos casos enleada
-materia e muito esquiva para questão,
-abonando-se talvez por ahi o proverbio, que
-sobre gôstos prohibe disputar. Dir-me-hão, que
-nada tem a natureza com os métros, que só a
-moda a seu talante os cria e os acaba: he e
-não he verdade; mas tambem isso deixaremos
-de parte, por pedir digressão larga e mui sobida
-filosofia. Em breve, parece-me que a fantasia
-ou o acaso inventa os métros, a moda os
-espalha e rege, a nossa natureza se lhes affaz,
-mas deve quanto podér afeiçoa-los e conchega-los
-comsigo. Das dez, onze ou doze síllabas de que
-pode constar o nosso verso heroico, quiz a moda
-que o numero de onze fosse em Portugal,
-Hespanha e Italia o usual e corrente; moda que
-estribou no ser d’estas linguas, em que a quantia
-de vozes graves excede á das agudas e dactílicas.
-Costumou-se o ouvido com a igualdade
-da queda, criou uma certa natureza, e todas
-as vezes que inopinadamente o obrigão a
-outra queda maior ou menor, como que se espanta
-e sobresalta: porei exemplo nos que sobem
-ou descem ás escuras e ja pelo tino uma
-escada; se lhes falta no subir um degráo com
-que ainda contavão, o pé que no ar pôz firmeza
-cáe em falso, e comsigo leva todo o corpo
-estremecido; se lhes sobeja um no descer, o pé
-que ja se dava por assente, não desce mas atropella
-e traspoem. Por tanto, regra geral, o
-verso grave, que he o da moda e tambem o da<span class="pagenum"><a id="Page_157"></a>[157]</span>
-nossa natureza, he o de que nos deveremos servir:
-como porem entre as couzas sujeitas á poesia,
-se nos deparem algumas, cuja indole póde
-ser esse mesmo estremeçáõ, ou atropellamento,
-razão será que em taes casos bem averiguados
-e por via de excéção, acudamos á idea
-com o verso que melhor lhe condiz: os exemplos
-são faceis de colher nos autores, não gastaremos
-com elles papel. Ora para se consentir
-n’esta excéção, não deixa de haver outro
-motivo de algum momento, e verdadeiramente
-he elle o mesmo em que a regra geral se
-fundou; porque as estranhezas, que por desagradaveis
-persuadírão á regra, por uteis nos
-conformão com a excéção, sendo que tem virtude
-para nos espertarem, quando o embalar
-da monotonia nos vai adormecendo. Não por
-outra causa, vierão os melhores metrificadores
-latinos em variar, ainda que rarissima vez, os
-seus hexámetros perfeitos com o espondaico ou
-com um monosíllabo final: ambos nos abalão;
-os primeiros em certo modo como os esdruxolos,
-os segundos como os agudos; e abalando-nos
-a propozito, por exemplo para sentirmos
-a queda do animal no famoso <i>procumbit humi
-bos</i>, deixão-nos afiados para proseguir com attenção,
-e melhor tomar o gôsto ao caminho,
-que outra vez continúa lizo e macio, passado
-o tropêço.</p>
-
-<p>Assentámos o princípio, vejamos se o uso
-lhe tem sido conforme. A Italia, attenta a
-prontidão, e musica de sua lingua, devêra ser<span class="pagenum"><a id="Page_158"></a>[158]</span>
-d’estes trez povos do sul o mais aprimorado em
-toda a qualidade de metrificação, e todavia
-he o contrario no hendecasíllabo sôlto, podendo
-dizer por si o que o seu Ovidio poz na boca
-de Narciso, que a sua riqueza a fez pobre: os
-seus poetas, ainda os modernissimos, sôbre
-não curarem dos sons que recheão o verso, e
-quantas vezes nem das pauzas, sôbre estirarem
-desmesuradamente os seus períodos, consentindo
-que os versos se travem e encadêem de contínuo,
-misturão sem nenhum motivo de effeito,
-os versos agudos e esdrúxolos com os graves,
-segundo o acaso lhos vai deparando. He o mesmo
-que succede a quem possue terra de sobejo fertil e
-facil: ella que supra por si ás primeiras precizões;
-trabalhe-se o necessario para que não
-falte, o resto, que bastaria para a fazer paraizo,
-dê-se á priguiça. Os francezes, que tão menos
-poetica lingua tinhão, obrigados por essa mesma
-pobreza a cultiva-la, esmerados e incançaveis,
-¡quanto a não levão ja por arte, adeante do
-que por natureza podéra ser a italiana! são
-n’uma parte os paúes de Hollanda a produzir;
-na outra, terras pingues e dobradas de
-Otaiti a regalar com pão e frutos espontaneos
-aos semi-nus e ociosos naturaes. D’este versejar
-de italianos, me dizia uma vez José Agostinho
-de Macedo, que a maior parte de taes
-poesias lhe dava a lembrar as récuas de mulos
-de almocreve, que enfiados e prezos uns a outros,
-ao som dos chocalhos enfadosos, la se
-vão, ora tropeçando ora erguendo-se, continuando
-o caminho, e sempre chegão com a carga<span class="pagenum"><a id="Page_159"></a>[159]</span>
-onde tem de ir. Quando assim fallo, quero que
-se entenda que me não refiro a todos sem excéção,
-mas só ao geral d’aquelles poetas. Bem
-pode ser que os haja agora primorosissimos que
-eu não conheça, e dos conheçidos alguns ha
-com quem não serei tão severo taes como Monti
-na tradução da Illiada, Fóscolo se me não
-engana a lembrança que d’elle me ficou, Alexandre
-Manzoni, e Felice Romani.</p>
-
-<p>Em Portugal, pois que a lingua era tambem
-préstes e serviçal, e os que n’ella poeta vão se
-comprazião de se irem sempre na pista dos
-Toscanos, sente-se nos poetas antigos o
-mesmo desmazelo. La andão com os versos
-graves os esdruxolos inuteis, ainda que não
-frequentes e os agudos aos cardumes. Camões,
-que de todos elles foi por ventura o de
-mais delicado ouvido, rimando hendecasíllabos,
-até na epopea não duvidou em os pôr, quando
-acaso lhe apparecião, e sem nenhuma intenção
-ou fito poetico; o que a Vasco Mauzinho
-de Quebedo seu inferior em poesia, mas
-superior, se he lícito dizê-lo, em metrificar,
-por tal arte desagradou, que em todo o poema
-de Affonso Africano nunca interpolou com
-elles versos graves, e d’isso faz alarde em seu
-prologo.</p>
-
-<p>N’esta incerteza correo a couza até os nossos
-tempos, em que dois homens de fôrça, dois
-athletas da poesia, representando cada um
-uma das encontradas opiniões, devião ter perante<span class="pagenum"><a id="Page_160"></a>[160]</span>
-os olhos publicos um calado e rijo certame,
-para decisão ultima da contenda. Foi
-Bocage o mancebo, cavalleiro da metrificação
-liza e uniforme; o velho Filinto da mista e libérrima.
-Todo o empenho de Bocage era a
-harmonia constante, todos os seus versos forão
-graves, e de compasso batido. Nascimento queria
-por cima de todas as outras couzas dar todas
-suas ideas, boas ou más, graudas ou miudas,
-mui bem pintadas e repintadas, que ainda
-quando insignificantes, não deixassem de ferir na
-vista. Servia Bocage ao metro como a senhor: Nascimento,
-como de escravo se servia d’elle,
-trazia-o rôto, contrafeito, demudado, e por
-todas as ilhargas estalando com o pezo da carga.
-Se he lícito comparar estes dois poetas com
-outros dois romanos, de muito mais subidos
-quilates, digo, que são na metrificação hendecasíllaba,
-o que nos dístichos elegíacos eróticos
-forão Ovidio e Propercio. O dísticho de Ovidio
-he sempre torneado por medida, nada lhe
-falta nem sóbra, reluz de polido, e algumas
-vezes pouco péza: nos de Propercio ha sempre
-mais succo de couzas (bastante espremeo d’elles
-Ovidio para seu remedio); mas o hexámetro
-sáe amiude desalinhado, o pentámetro dissonante
-da sua usual toada, acabando não em
-dissíllabo, como para bem o requer o geito de
-tal metro, mas em trissílabos e quadrissíllabos
-á moda de Catullo; partem-se menos apuradamente
-os hemistíchios, embebe-se e embrulha-se
-em demazia o pentámetro no hexámetro, e, o que
-mais rijo he, o hexámetro de um dísticho<span class="pagenum"><a id="Page_161"></a>[161]</span>
-no pentámetro do anterior; o que não tira ser
-Propercio, em meu conceito, um poeta de mui
-alta valia (e não sei se diga que o unico amante
-apaixonado dos antigos, com licença dos grammaticos
-e dos priguiçosos que o engeitão por
-escuro), e Ovidio um dos mais bem assombrados
-engenhos do mundo.</p>
-
-<p>Do que levo ponderado, se he exáto como
-cuido que he, segue-se que nem Bocage, nem
-Filinto erão para modellos absolutos, e que
-tão desacordado andava quem não consentia
-em verso que grave não fosse, como quem
-esdruxolava por vida e fóra d’aquelles casos em
-que o esdruxolar traz em si mesmo a desculpa
-e o louvor. Entendi que ja por acinte o fazião,
-e por acinte contra acinte escrevi essa Nota da
-primeira edição, que atraz deixo trasladada. Fôra
-o voto pueril, conheci-o assim como o sangue
-alvoraçado da batalha me esfriou, mas tão
-sobre maneira se oppunha a vergonha a uma
-retratação, que permaneci até hoje sem um esdruxolo
-em tantos versos soltos como tenho impresso,
-e tantos mais que ainda não saírão á
-luz. Quantas vezes, compondo a <i>Noite do Castello</i>
-e o <i>Bardo</i>, não senti tentações e ímpetos
-de romper e acabar por uma vez com uma
-prizão imaginária, que a olhos vistos me estava
-tolhendo mui bons effeitos poeticos; e comtudo
-confrangia-me, esquivava-me, escrupuleava, e
-não podia acabar comigo que me resolvesse, podendo
-dizer como aquelle rei de França <i>La se vai
-tudo, menos a honra</i>. Os passos d’esses poemas<span class="pagenum"><a id="Page_162"></a>[162]</span>
-em que tal me acontecia, por si se estão indo
-agora denunciando, póstos os dactílicos imitativos
-nos lugares, que abaixo do final se podem
-reputar pelos mais autorizados e distintos
-do verso, que são o ponto do hemistíchio
-ou pauza do meio verso, e o comêço do seguinte,
-quando fica bem cortado e estremado. —
-D’este livro ao deante me dou por desobrigado
-do voto; e eis aqui, me parece, o como lã
-para os outros me hei de haver: nunca porer
-só por pôr ou por me forrar trabalho, verso
-dactílico; nunca o engeitarei quando a fôrça,
-graça ou qualquer outra vantagem da poesia o requererem.
-Bem quizera dizer outro tanto dos agudos,
-mas ahi ainda o meu antojo he forte; sei
-que a razão não está menos por elles, e não
-ouzo segui-la: veremos o que o tempo, grande
-causador de mudanças, poderá trazer comsigo.</p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<h4 class="nobreak" id="DIA_NOTA_2">NOTA<br />
-<span class="smaller"><i>de Augusto Frederico de Castilho.</i></span></h4>
-
-<p class="center"><i><a href="#Page_118">Pag. 118.</a> verso 6.</i></p>
-
-</div>
-
-<div class="poetry-container">
-<div class="poetry">
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0">Vejamos, meu Irmão, a tua escolha. &amp;c.</div>
- </div>
-</div>
-</div>
-
-<p>Quando um autor, para publicar os seus
-pensamentos se entrega á nossa boa fé o lealdade,
-os nossos olhos e mãos para logo mudão<span class="pagenum"><a id="Page_163"></a>[163]</span>
-de dono, ficão seus; tem de vigiar e selar
-o depósito confiado, para que nada se lhe accrescente
-nem cercêe: qualquer palavra, qualquer
-vírgula de mais ou de menos, por muito que
-as pareção estar pedindo este ou aquelle passo
-do texto, são mais que violação de testamento,
-porque ideas são propriedade mais real e
-sagrada do que bens da fortuna. Assim he,
-mas cumpre que não seja assim na presente
-occasião: faltarei ao direito do autor e á minha
-obrigação de secretario, para cumprir
-com outra mais santa lei, a do amor fraterno,
-alliviando aqui, e em mais de uma maneira,
-o meu coração, ás escondidas do mesmo autor,
-para quem serão grande novidade estas linhas,
-quando de alguem (que não de mim) as chegar
-a ouvir ler.</p>
-
-<p>Direi em primeiro lugar, que na Festa da
-Primavera, cujas honras forão na maior parte
-a meu Irmão, os versos a que esta Nota vai
-lançada tanto abalo fizerão em mim, que pela
-primeira vez os lia, que eu me vi necessitado
-a interrompê-los coberto de lagrimas e afogado
-em soluços, para me ir lançar no seio d’elle,
-protestando-lhe assim, com um silencio que eu
-não tive palavras para romper, que os seus
-dezejos de vivermos para sempre unidos, ja em
-mim erão necessidade, e que o pensamento
-de separação se me representava tão <i>atroz</i>
-e <i>impossivel</i> como a elle. Eu o vi profundamente
-commovido entre os meus braços, e
-foi esta a primeira vez em que nos-fizemos<span class="pagenum"><a id="Page_164"></a>[164]</span>
-uma declaração tão expressa e amor, nós
-que semelhantes aos <i>Dois amigos</i> de Gessner,
-sempre tinhamos vivido e contávamos com viver
-um para o outro, sem ainda uma só vez
-nos havermos dado o nome de amigos. O meu
-voto, ufano-me de o dizer, tem sido santamente
-cumprido: ja la vão quinze annos, e eis-me
-aqui ao lado d’elle, eis-me tão inseparavel
-como tinha sido desde menino até áquella hora!
-que digo? ainda mais, porque para reparar a
-perda horrivel que elle acaba de experimentar;
-eu carecia de ter agora em mim, em vez de um,
-dois ou mais corações para lhe offerecer.</p>
-
-<p>Agora cumpre-me preencher o principal fim
-d’esta Nota, transcrevendo para aqui alguns
-versos parallelos a estes, de um meu Poemetto,
-que com o titulo de <i>Primavera</i> recitei n’aquelle
-mesmo Dia. Os elogios que o leitor vai achar,
-não mos inspirou só a amizade fraternal, mas
-a convicção em que ainda hoje estou, e hoje
-muito mais, do subido mérito do elogiado.
-Aqui era o lugar de desmentir um grande numero,
-talvez a maior parte das sentenças, que
-sôbre a valia d’estes poemas a sua modestia
-(em tudo excessiva) lhe dictou no Ante-Prologo,
-e principalmente no Prologo d’este Livro:
-mas não cuido que a minha licença possa
-chegar tanto adeante: calar-me-hei, bastando-me
-agora ter desabafado, por algum modo,
-nos versos que se vão ler.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_165"></a>[165]</span></p>
-
-<div class="poetry-container">
-<div class="poetry">
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0">E tu, meu caro Irmão, tu me arrabatas,</div>
- <div class="verse indent0">Quando magico attráes aos sons da lira,</div>
- <div class="verse indent0">As Musas da Danubio á foz do Tejo.</div>
- <div class="verse indent0">Oh dize-me onde has visto a Natureza,</div>
- <div class="verse indent0">Virgem tão bella para ti sorrindo?</div>
- <div class="verse indent0">La na idade infantil, quando teus olhos</div>
- <div class="verse indent0">Inda na luz formosos se espraiavão,</div>
- <div class="verse indent0">¿Veio ella mesma perfumar-te o berço,</div>
- <div class="verse indent0">Tingir-te em rósea côr dos ceos o espaço,</div>
- <div class="verse indent0">Encher-te o ar de ignotas harmonias,</div>
- <div class="verse indent0">De affétos orvalhar-te o brando seio,</div>
- <div class="verse indent0">E com magas visões doirar teus sonhos?</div>
- <div class="verse indent0">Sim veio; e quaes na mente que as afaga</div>
- <div class="verse indent0">As maternas feições impressas ficão,</div>
- <div class="verse indent0">Taes seu olhar, e voz, e graça, e tudo</div>
- <div class="verse indent0">Te vivem, te reluzem pela mente,</div>
- <div class="verse indent0">Doirão-te a escuridão, compõem-te um mundo,</div>
- <div class="verse indent0">Em silencio te admiro ha longo tempo;</div>
- <div class="verse indent0">E até (que fui tão louco) ouzei co’as tuas</div>
- <div class="verse indent0">Minhas fôrças medir, tentar-te a gloria.</div>
- <div class="verse indent0">Não somos nós irmãos, me disse eu mesmo?</div>
- <div class="verse indent0">Não corremos iguaes no longo estudo?</div>
- <div class="verse indent0">Pois ha de a lira d’elle ousar prodigios,</div>
- <div class="verse indent0">Sem que, para a imitar, desperte a minha?</div>
- <div class="verse indent0">Mas que vale o dezejo, o sangue, o estudo!</div>
- <div class="verse indent0">Tu sabes remontar-te aos ceos n’um vôo:</div>
- <div class="verse indent0">Eu tento, eu me debato, ergo-me, cáio,</div>
- <div class="verse indent0">No inglorio chão cançado me adormeço:</div>
- <div class="verse indent0">Será pois d’elle só a eternidade.</div>
- <div class="verse indent0">Só d’elle? a sua gloria aos dois nos basta;</div>
- <div class="verse indent0">Qual nossos corações amor vincula,</div>
- <div class="verse indent0">Tal has de unir, ó fama, os nomes d’ambos.</div><span class="pagenum"><a id="Page_166"></a>[166]</span>
- <div class="verse indent0">Com todo o eterno sôpro enchendo a tuba,</div>
- <div class="verse indent0">“Este o maior, dirás dos lusos vates!”</div>
- <div class="verse indent0">Dirás depois mais baixo: “Este com os olhos</div>
- <div class="verse indent0">“Leo e estudou do Irmão, do terno amigo.”</div>
- </div>
-</div>
-</div>
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_167"></a>[167]</span></p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_168"></a>[168]</span></p>
-
-<h2 class="nobreak" id="OS_CANTOS_DE_ABRIL_IDILLIO">OS<br />
-CANTOS DE ABRIL<br />
-IDILLIO.</h2>
-
-</div>
-
-<p><i>O mais deslavado e insôsso Poemetto na
-primeira edição, erão Os Cantos de Abril.
-Só a invenção fôra boa; na execução e estilo
-revia um tão contínuo desprimor, que me foi
-necessario demolir e reedificar. Por tanto,
-com o mesmo titulo he obra diversa, muito
-melhor, mas não perfeita, porque ja para
-a emenda da emenda não chegou a paciencia.</i></p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_169"></a>[169]</span></p>
-
-<h3 class="nobreak" id="IDILLIO_DEDICATORIA">DEDICATORIA<br />
-A MEU PAI.</h3>
-
-</div>
-
-<p><i>He a educação o maior prezente que de homem
-se pode haver. Vós, meu Pai, fizestes mais do
-que educar-me: superior a uma preoccupação
-tão geral quão perniciosa, vistes nascer o meu
-engenho poetico e não o destruistes, viste-lo crescer
-e não o contrastastes, senão que antes lhe
-déstes amparo, bafo e desvelos. Eis aqui por
-tanto um reconhecimento da minha gratidão.</i></p>
-
-<p><i>Oxalá possão estes versos, que me afouto a vos
-offerecer, agradar-vos tanto, como os Cantos de
-Abril, no silencio da noite e debaixo do parreiral
-da cabana, agradárão ao bom Menalca.</i></p>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_170"></a>[170]</span></p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_171"></a>[171]</span></p>
-
-<h3 class="nobreak" id="IDILLIO_ADVERTENCIA">ADVERTENCIA.</h3>
-
-</div>
-
-<p>Notar-se-ha que por todos os Poemettos d’este
-livro se dão sempre versos á infancia, e n’este
-Idillio tem ella não uma parte, nem a principal,
-senão o todo: se o porque, pode importar
-a alguem, agora lho direi brevemente.</p>
-
-<p>Parece-me um Menino, de todas as couzas
-graciosas que Deos fez u graciosissima. Aquelle
-ajuntamento e consonancia de tantos dotes;
-formosura, d’elle proprio nem buscada nem
-sabida; graças que lhe ninguem ensinou; singeleza
-e candura; alegria, fraqueza, innocencia;
-e muito afféto, e muito mostra-lo; e total
-descuido do porvir; e não o temer nada;
-e a poesia particular do seu dizer; e a sua
-grammaticazinha natural que a nó nos faz rir,
-couzas são estas que apoz si me levão esquecido
-e encantado. No trato d’estes botões da
-humanidade, que vem abrindo, parece-me, e
-ja pareceo a muitos, poderem-se lucrar boas
-vantagens: ja não fallo em seu bondoso contentamento
-que talvez se pega, e na felicidade
-de recobrarmos horas de meninice, imitando-os,
-sem saber, a elles, como elles nos imitão
-a nós; fallo porem no muito que o nosso
-espirito se acostuma então a estremar o bom
-do máo, e a joeirar cá dentro o puro do impuro,
-para nem por sonhos profanar o que das<span class="pagenum"><a id="Page_172"></a>[172]</span>
-mãos da natureza saío e se conserva santo. E
-demais, um Menino não sabe nada, quer saber
-tudo, e por tudo nos pergunta: ¿não he isso
-estar-nos pondo a caminho de muitos descobrimentos
-de verdades e relações das couzas,
-que nunca aliás por nossa preguiça ou descuido
-fariamos?—Muitas pessoas vejo, e faz-me
-pena, desamarem as creanças, despreza-las,
-havê-las por menos de gente, tolher-lhes as fallas,
-as obras de sua idade, e Deos sabe se
-tambem o entendimento: eu por mim, quero-lhes
-muito, porque entendo que excedem
-em valia aos seus desprezadores, e sinto que a
-mim me levão grande vantagem em bondade
-e ventura. De um ajuntamento esplendido mil
-vezes tenho fugido para elles: no campo, melhor
-que em nenhuma outra parte, saboreio esta
-doçura a meu contento. Todos os pequenos
-das aldeas em que tenho estado me conhecem,
-e sei que são meus amigos: apinhão-se-me ao
-redor em me vendo; invento jogos, historias
-ou conversas para elles; divirto-os, divertem-me;
-uns com outros, e uns de outros aprendemos.</p>
-
-<p>Erão horas bem doiradas essas de minha vida,
-como as ja tivéra João Jaques, como as
-terão tido muitos, e como as poderáõ ter quantos
-as dezejarem.</p>
-
-<p class="right"><i>Lisboa: 7 de Janeiro de 1837.</i></p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_173"></a>[173]</span></p>
-
-<h3 class="nobreak" id="IDILLIO">OS<br />
-CANTOS DE ABRIL<br />
-IDILLIO.</h3>
-
-</div>
-
-<div class="poetry-container">
-<div class="poetry">
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0">Por um serão de Abril suave e ameno,</div>
- <div class="verse indent0">Menalca, a bella Dafne, e seus trez filhos,</div>
- <div class="verse indent0">Estavão-se a folgar ante a cabana.</div>
- <div class="verse indent0">Por entre as parras do sonoro alpendre</div>
- <div class="verse indent0">A mansa lua chêa se enlevava,</div>
- <div class="verse indent0">Espreitando esta rústica familia.</div>
- <div class="verse indent0">Menalca erà ja velho: os justos Deozes,</div>
- <div class="verse indent0">Querendo premiar lhe a larga vida</div>
- <div class="verse indent0">Passada em os amar e amar aos homens,</div>
- <div class="verse indent0">De Citheréa ao Filho havião dito:</div>
- <div class="verse indent0">“Filho de Citheréa, entrega Dafne</div>
- <div class="verse indent0">Por esposa na Menalca, a fim que o velho</div>
- <div class="verse indent0">Remoce, vendo ao lar a mocidade,</div>
- <div class="verse indent0">E a virtude que tem o alegre em outrem.”</div>
- <div class="verse indent0">Amor nem sempre aos Deozes obedece,</div>
- <div class="verse indent0">Porem amava a Dafne; entrançou logo</div>
- <div class="verse indent0">A florente cadêa, e vendo-os prezos,</div>
- <div class="verse indent0">Tanto a si mesmo do que fez se aprouve,</div>
- <div class="verse indent0">Que ficou sempre entre elles na cabana.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">“Filho de Citheréa, accrescentárão</div>
- <div class="verse indent0">Depois os Deozes, da-lhe o teu retrato</div><span class="pagenum"><a id="Page_174"></a>[174]</span>
- <div class="verse indent0">Em filhos, e uma filha irmã das Graças,</div>
- <div class="verse indent0">A fim que em seu crepúsculo da tarde.</div>
- <div class="verse indent0">O velho inda se alegre, e abrace esp’ranças:</div>
- <div class="verse indent0">Da-lhe prole, o fada-la a nós pertence.”</div>
- <div class="verse indent0">E Amor lhe déra prole, dois meninos</div>
- <div class="verse indent0">Seu retrato, e uma filha irmã das Graças.</div>
- <div class="verse indent0">Ja rosas de abril decimo florecem</div>
- <div class="verse indent0">No semblante de Silvia; um anno a vence</div>
- <div class="verse indent0">Titiro; e vence a este um anno Alexis.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Menalca, em juncos molles estendido,</div>
- <div class="verse indent0">Tem da esposa no candido regaço</div>
- <div class="verse indent0">Como em ninho amoroso a branca fronte:</div>
- <div class="verse indent0">Pelas feições transpira-lhe bondade;</div>
- <div class="verse indent0">O mistico luar o diviniza.</div>
- <div class="verse indent0">Dafne o contempla muda, e niveos dedos</div>
- <div class="verse indent0">De afagar umas cãs sentem vaidade.</div>
- <div class="verse indent0">Elle a querida mão colhe entre as suas,</div>
- <div class="verse indent0">Beijada a achêga ao rosto, os fracos olhos</div>
- <div class="verse indent0">Derrama pelos céos alumiados,</div>
- <div class="verse indent0">E fitando-os na lua “Olhai, meus filhos,</div>
- <div class="verse indent0">Olhai, disse elle, como brilha a lua!</div>
- <div class="verse indent0">Que suavidade e paz não côa ao largo</div>
- <div class="verse indent0">O astro das noites! como attráe da terra</div>
- <div class="verse indent0">Nosso espirito humilde a pensamentos</div>
- <div class="verse indent0">De outro mundo melhor, mansão de Deozes!</div>
- <div class="verse indent0">Que esp’ranças, de saudades misturadas,</div>
- <div class="verse indent0">Não traz a pura noite ás almas puras!</div>
- <div class="verse indent0">Dias que em vão suspiro, amenos dias</div>
- <div class="verse indent0">Da minha mocidade...! agora jazo</div>
- <div class="verse indent0">Como arvore das folhas despedida,</div>
- <div class="verse indent0">Que mais não florirá, porque o machado</div>
- <div class="verse indent0">Ja lhe abrio marca para se ir ao fogo.</div><span class="pagenum"><a id="Page_175"></a>[175]</span>
- <div class="verse indent0">Então era eu cantor chamado ás festas,</div>
- <div class="verse indent0">E afamado por longe entre os cantores</div>
- <div class="verse indent0">Na frauta e no rabil, porque os meus cantos</div>
- <div class="verse indent0">Erão sempre á Virtude e á Natureza.</div>
- <div class="verse indent0">Por uns serões assim, como acodião</div>
- <div class="verse indent0">Todos a ouvir-me! As Ninfas era fama</div>
- <div class="verse indent0">Que descião do bosque, e pelas sarças</div>
- <div class="verse indent0">Vinhão pôr mais de perto o ouvido á escuta:</div>
- <div class="verse indent0">E os ventos se detinhão, recostados</div>
- <div class="verse indent0">Aos duros troncos, sem bolir co’os ramos.</div>
- <div class="verse indent0">Té dizião que a frauta, em que eu tangia,</div>
- <div class="verse indent0">O benevolo Pan ma déra em sonhos.</div>
- <div class="verse indent0">E ora jaz, annos ha, de pó coberta!</div>
- <div class="verse indent0">Em tôrno ao meu fogão ja não se apinhão</div>
- <div class="verse indent0">Os pegureiros a aprender-me os cantos,</div>
- <div class="verse indent0">Meu cabello nevou, nevou minha alma.</div>
- <div class="verse indent0">Ah! se não fosseis vós, Dafne, meus filhos,</div>
- <div class="verse indent0">Vivido tenho assaz, pedíra aos Numes</div>
- <div class="verse indent0">Tornar a ver meus pais n’outras cabanas,</div>
- <div class="verse indent0">Onde he perpetua a luz, e a eternidade</div>
- <div class="verse indent0">Uma estação de musicas e flores.</div>
- <div class="verse indent0">Quando eu la renascer á vossa espera,</div>
- <div class="verse indent0">Á tua espera ó Dafne, á vossa ó filhos,</div>
- <div class="verse indent0">Resurgirá comigo a minha frauta;</div>
- <div class="verse indent0">E com ella enganando aquella ausencia,</div>
- <div class="verse indent0">Penosa até no Elisio, em versos novos</div>
- <div class="verse indent0">Louvando os Immortaes, e eterno eu mesmo,</div>
- <div class="verse indent0">Pedir-lhes-hei comtudo que só tarde</div>
- <div class="verse indent0">Vos levem para mim; que vos derramem</div>
- <div class="verse indent0">De virtudes e bens copiosas bençãos</div>
- <div class="verse indent0">Sempre n’esta cabana, onde hei nascido;</div>
- <div class="verse indent0">E que no meu sepulchro o passageiro</div>
- <div class="verse indent0">Diga parando—Ó bom pastor Menales,</div><span class="pagenum"><a id="Page_176"></a>[176]</span>
- <div class="verse indent0">Leve te seja a terra, e tu contente</div>
- <div class="verse indent0">Porque os teus filhos te excedêrão todos.”</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Aqui sentio caír na fronte calva</div>
- <div class="verse indent0">Uma calada lagrima, e doeo-lhe</div>
- <div class="verse indent0">Ter nublado o prazer de seus Penates.</div>
- <div class="verse indent0">Senta-se, alegra o rosto, enchuga os olhos;</div>
- <div class="verse indent0">E unindo ao seio a esposa “Ouvi meus filhos:”</div>
- <div class="verse indent0">O cantar diz co’a noite, agrada á lua,</div>
- <div class="verse indent0">Contenta á vossa mãi. Cantai louvores</div>
- <div class="verse indent0">D’este suave Abril; nunca em meus versos</div>
- <div class="verse indent0">Deixei de o celebrar, quando era moço.</div>
- <div class="verse indent0">Os pastores de outr’ora Abril sagrarão</div>
- <div class="verse indent0">A Venus, graciosa Mãi de tudo.</div>
- <div class="verse indent0">Vede-a n’aquella estrella estar sorrindo;</div>
- <div class="verse indent0">As glorias do seu mez são glorias d’ella.</div>
- <div class="verse indent0">Alexis, principia, eu te acompanho</div>
- <div class="verse indent0">Co’a tua mesma frauta; os sons da frauta</div>
- <div class="verse indent0">Dão como vida ás solidões da noite.</div>
- <div class="verse indent0">Seja a toada a que inventei (quão lédo!)</div>
- <div class="verse indent0">No dia que nasceste, e a nossos olhos</div>
- <div class="verse indent0">Se doirou de alegria esta cabana:</div>
- <div class="verse indent0">Bem a sabes, começa, e Pan te ajude.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse center">ALEXIS.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0">Eu amo o verde Abril, porque he formoso,</div>
- <div class="verse indent0">Todo está chêo de arvores vestidas.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse center">TITIRO.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0">Eu amo o alegre Abril, porque he sonoro;</div>
- <div class="verse indent0">Vem cantado por bandos de avesinhas.</div><span class="pagenum"><a id="Page_177"></a>[177]</span>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse center">SILVIA.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0">Eu amo o rico Abril porque he cheiroso,</div>
- <div class="verse indent0">Espalha em cada prado um mar de flores.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse center">ALEXIS.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0">A folhagem traz sombra, as sombras trazem:</div>
- <div class="verse indent0">Seus folgares da sésta á gente grande,</div>
- <div class="verse indent0">E a nós para brincar franca licença.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse center">TITIRO.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0">As aves são dos ares alegria;</div>
- <div class="verse indent0">Chamão na madrugada os preguiçosos,</div>
- <div class="verse indent0">E divertem na lida aos lavradores.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse center">SILVIA.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0">Flores dão côr á terra, e cheiro ás auras;</div>
- <div class="verse indent0">Flores são mãis da fruta; os Deozes rindo</div>
- <div class="verse indent0">As crearão, e rindo acceitão flores.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse center">ALEXIS.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0">O Pan que está na gruta do arvoredo</div>
- <div class="verse indent0">Não pára senão lá, por mais que o mudem;</div>
- <div class="verse indent0">Sinal que um bosque e a sombra apraz aos Deozes.</div>
- <div class="verse indent0">Tudo ali he formoso á maravilha!</div>
- <div class="verse indent0">Por baixo a fresquidão, por cima o verde;</div>
- <div class="verse indent0">A terra de reflexos variada;</div>
- <div class="verse indent0">O této sonoroso e movediço;</div>
- <div class="verse indent0">Mais alto, o ceo azul, dado ás amostras.</div><span class="pagenum"><a id="Page_178"></a>[178]</span>
- <div class="verse indent0">E que direis do rio entre arvoredos?</div>
- <div class="verse indent0">¿Como se pintão na agua aquellas folhas,</div>
- <div class="verse indent0">E o vento que as revolve, e as pombas alvas</div>
- <div class="verse indent0">Pelos ramos, e um sol desfeito em muitos?</div>
- <div class="verse indent0">Parece que no fundo do remanso</div>
- <div class="verse indent0">Tem Pan outro arvoredo, igual em tudo.</div>
- <div class="verse indent0">Quando hoje eu lá passava, a Pan dei graças,</div>
- <div class="verse indent0">Porque achei que um tal sítio encantaria</div>
- <div class="verse indent0">Ó meu Pai, teus passeios solitarios.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse center">TITIRO.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0">Fonte como a das Náiades nenhuma:</div>
- <div class="verse indent0">Cantão-lhe em volta passaros sem conto;</div>
- <div class="verse indent0">Sinal que o bando alado apraz ás Ninfas.</div>
- <div class="verse indent0">Por ali me regala ir espreitando</div>
- <div class="verse indent0">Tantos ninhos por entre tantas folhas.</div>
- <div class="verse indent0">Admiro a perfeição d’aquelles berços,</div>
- <div class="verse indent0">E o tino com que os pobres de uns brutinhos</div>
- <div class="verse indent0">Os souberão livrar a soes e a chuvas:</div>
- <div class="verse indent0">Aqui uma avezinha inda sem pennas,</div>
- <div class="verse indent0">Outra a romper da casca; alem uns ovos</div>
- <div class="verse indent0">Branquejão d’entre o musgo, e ja palpitão;</div>
- <div class="verse indent0">Se os tóco, sinto dentro o passarinho,</div>
- <div class="verse indent0">E fujo com temor que a mãi o engeite.</div>
- <div class="verse indent0">¡Ver as mãis vir do pasto alvoraçadas,</div>
- <div class="verse indent0">Darem o almoço aos filhos que pipilão,</div>
- <div class="verse indent0">E co’as azas e peito agazalha-los!</div>
- <div class="verse indent0">E ver logo os maridos tão contentes</div>
- <div class="verse indent0">A gorgear-lhe á roda! o porque o fazem</div>
- <div class="verse indent0">Mal sabeis vós; cuidais que he diverti-las!</div>
- <div class="verse indent0">Oh que não: he ja dar lições e exemplos</div>
- <div class="verse indent0">De canto aos filhos seus: não de outra sorte</div><span class="pagenum"><a id="Page_179"></a>[179]</span>
- <div class="verse indent0">O nosso pai nos ensinou seus versos.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse center">SILVIA.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0">C’roas frescas de rosas cada dia</div>
- <div class="verse indent0">De Citheréa ás portas amanhecem;</div>
- <div class="verse indent0">Sinal que a Citheréa aprazem flores.</div>
- <div class="verse indent0">Todo o anno era Abril se eu fôra a Deoza!</div>
- <div class="verse indent0">Nunca no meu altar e ás minhas portas</div>
- <div class="verse indent0">Faltarião montões de flores frescas.</div>
- <div class="verse indent0">Todas só para ti as cobiçava,</div>
- <div class="verse indent0">Ó minha mãi: com ellas te enfeitára</div>
- <div class="verse indent0">Cada hora do dia; cada noite</div>
- <div class="verse indent0">As renovára ao leito onde tu dormes;</div>
- <div class="verse indent0">Não porias teus pés senão em flores.</div>
- <div class="verse indent0">Se o passageiro ás vezes me pergunta,</div>
- <div class="verse indent0">Quando me encontra á borda do caminho,</div>
- <div class="verse indent0">“Quem he a tua mãi?” eu lhe respondo</div>
- <div class="verse indent0">Chêa de gloria “A minha mãi he Dafne!”</div>
- <div class="verse indent0">Hontem de tarde o graciosa Amintas,</div>
- <div class="verse indent0">O pobre guardador das duas cabras,</div>
- <div class="verse indent0">Quando o meu pão lhe dei pedio-me um beijo,</div>
- <div class="verse indent0">Chamou-me bella, e disse que o meu rosto</div>
- <div class="verse indent0">Era como o de Dafne, ou como as rosas.</div>
- <div class="verse indent0">Sendo assim, bella sou, que outra pastora</div>
- <div class="verse indent0">Igual a minha mãi não ha na aldea,</div>
- <div class="verse indent0">Nem flor em todo o mundo irmã da rosa.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse center">ALEXIS.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0">O vizinho Milão, que hoje he tão rico,</div>
- <div class="verse indent0">Não tinha mais que uma arvore, e de terra</div>
- <div class="verse indent0">Só quanto aquella sombra lhe cobria.</div><span class="pagenum"><a id="Page_180"></a>[180]</span>
- <div class="verse indent0">“Corta-a Milão, dizião-lhe os pastores,</div>
- <div class="verse indent0">Alegras teu campinho, e terás lenha</div>
- <div class="verse indent0">Para aquecer a choça um meio inverno”—</div>
- <div class="verse indent0">—“Eu? respondia o triste, eu pôr machado</div>
- <div class="verse indent0">Na boa da minha arvore? primeiro</div>
- <div class="verse indent0">Me falte lume alheio o inverno todo,</div>
- <div class="verse indent0">Que eu mate a que a meu pai ja dava séstas;</div>
- <div class="verse indent0">A que de meu avô me foi mandada,</div>
- <div class="verse indent0">Que a não poz para si; e a que nos braços</div>
- <div class="verse indent0">Me embalou tanta vez sendo menino.</div>
- <div class="verse indent0">Os Deozes a existencia lhe dilatem,</div>
- <div class="verse indent0">Que assim lhe quero eu muito, e o meu campinho</div>
- <div class="verse indent0">Produza o que podér, que eu sou contente.”—</div>
- <div class="verse indent0">Sorrião-se os pastores; o carvalho</div>
- <div class="verse indent0">Cada vez mais as sombras estendia,</div>
- <div class="verse indent0">E Milão de anno em anno hia a mais pobre.</div>
- <div class="verse indent0">Lembrou-lhe um dia, em bem, que uma videira</div>
- <div class="verse indent0">Plantada a par com o tronco, o enfeitaria,</div>
- <div class="verse indent0">E os cachos pendurados pela cópa</div>
- <div class="verse indent0">Lhe darião tambem sua vindima:</div>
- <div class="verse indent0">E eis que ao abrir a cova, acha um thesouro!</div>
- <div class="verse indent0">Desde então ficou rico, e diz-me sempre,</div>
- <div class="verse indent0">Que os Deozes immortaes lhe hão dado em prémio</div>
- <div class="verse indent0">Por amar suas arvores. He elle</div>
- <div class="verse indent0">Quem mas ensina a amar, são d’elle os versos,</div>
- <div class="verse indent0">Com que ao bosque de Pan cantei louvores.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse center">TITIRO</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0">Deozes, tocai o peito de Mirtilo</div>
- <div class="verse indent0">Porque não sáia máu quando fôr grande.</div>
- <div class="verse indent0">Hoje, entrando na mata, o vi la dentro</div>
- <div class="verse indent0">Andar armando aos passaros. Que pena,</div><span class="pagenum"><a id="Page_181"></a>[181]</span>
- <div class="verse indent0">Disse em mim; não ser passaro um momento;</div>
- <div class="verse indent0">Não poder ir correndo o bosque aos pios,</div>
- <div class="verse indent0">E dizendo em cada arvore “Cautella</div>
- <div class="verse indent0">Meus irmãozinhos do ar; vejo inimigo;</div>
- <div class="verse indent0">Não saiaes; o inimigo anda no bosque...!”</div>
- <div class="verse indent0">Paciencia, assim mesmo hei de acudir-lhes.</div>
- <div class="verse indent0">Vou-me por entre as moutas rastejando</div>
- <div class="verse indent0">Até ao ouco e immenso castanheiro,</div>
- <div class="verse indent0">Que abre em seu tronco uma portada de heras,</div>
- <div class="verse indent0">E se nomêa a casa de Silvano.</div>
- <div class="verse indent0">Trepo, e dentro me escondo: os meus vizinhos</div>
- <div class="verse indent0">Lá por cima na cópa papeavão,</div>
- <div class="verse indent0">Cuido que adivinhando o que eu faria.</div>
- <div class="verse indent0">Encósto a boca á fresta carcomida,</div>
- <div class="verse indent0">Que está fronteira ao portico da entrada,</div>
- <div class="verse indent0">E clamo em rouca voz “Pára Mirtilo.”</div>
- <div class="verse indent0">Parou, ergueo-se, e poz-se a olhar em roda;</div>
- <div class="verse indent0">Vendo tudo em socego ás redes torna.</div>
- <div class="verse indent0">Com voz mais estrondosa e mais horrenda,</div>
- <div class="verse indent0">Torno-lhe eu a bradar “Mirtilo pára.”</div>
- <div class="verse indent0">Não esperou terceira: arroja tudo,</div>
- <div class="verse indent0">Salta, vôa; oh que riso! uns echos fêos</div>
- <div class="verse indent0">Lhe hião gritando apoz “Mirtilo pára.”</div>
- <div class="verse indent0">Somio-se; á terra pulo, espreito o mato,</div>
- <div class="verse indent0">Acho as redes, os presos sólto, os mortos</div>
- <div class="verse indent0">Levo-os onde ôlho de ave os não descubra:</div>
- <div class="verse indent0">Encho-as de pedras, na torrente as lanço,</div>
- <div class="verse indent0">E corro a procura-lo—“Oh tu não sabes,</div>
- <div class="verse indent0">Lhe digo, de que morte escapo agora!</div>
- <div class="verse indent0">Não te engano, era um Deos, vi-o eu, rangia</div>
- <div class="verse indent0">Os dentes, bracejava uma alta fouce,</div>
- <div class="verse indent0">Vinha a saír das sombras do arvoredo;</div>
- <div class="verse indent0">Vio-me e gritou me “Pára” eu páro e chóro.</div><span class="pagenum"><a id="Page_182"></a>[182]</span>
- <div class="verse indent0">—“Es tu que andas armando ás minhas aves?</div>
- <div class="verse indent0">Pois eu vou dar-te o ensino; as tuas redes</div>
- <div class="verse indent0">Ja te lá vão por esse rio abaixo,</div>
- <div class="verse indent0">E agora has de ir tu morto á caça d’ellas.”—</div>
- <div class="verse indent0">E então vem para mim, co’a fouce aos lanços</div>
- <div class="verse indent0">Cortando pelo ar—“Bom Deos, perdoa,</div>
- <div class="verse indent0">Lhe grito a soluçar co’as mãos erguidas,</div>
- <div class="verse indent0">Eu sou Titiro, o filho de Menalca,</div>
- <div class="verse indent0">As tuas aves amo, e temo os Deozes:</div>
- <div class="verse indent0">Eu redes, eu caçar!”—“Estou perdido!</div>
- <div class="verse indent0">Disseste que eu ... Mirtilo me interrompe.”</div>
- <div class="verse indent0">—“Não, Mirtilo, socega, eu não lho disse,</div>
- <div class="verse indent0">Nem sabia que tu ... fallemos baixo</div>
- <div class="verse indent0">Que nos não ouça o Deos. Olha, este p’rigo</div>
- <div class="verse indent0">Passou, mas outra vez não te aventures,</div>
- <div class="verse indent0">Que eu bem sei como o vi, não te perdoa.</div>
- <div class="verse indent0">Deixa ás pobres das aves innocentes</div>
- <div class="verse indent0">Divertir-te e cantar; nada mais querem;</div>
- <div class="verse indent0">Não tens razão, não teus de as perseguires.</div>
- <div class="verse indent0">Quanto ás redes, eu quero consolar-te:</div>
- <div class="verse indent0">Ouve Mirtilo, acceita este cestinho</div>
- <div class="verse indent0">De cana entretecida em juncos verdes,</div>
- <div class="verse indent0">E este meu cajadinho em boa altura</div>
- <div class="verse indent0">Liso, airoso, e sem nós.”—Assim dizendo,</div>
- <div class="verse indent0">Enfiei-lhe no braço o meu cestinho</div>
- <div class="verse indent0">De cana entretecida em verdes juncos,</div>
- <div class="verse indent0">E entreguei-lhe o cajado. Então Mirtilo</div>
- <div class="verse indent0">Me abraçou, e saltando de contente,</div>
- <div class="verse indent0">Jurou-me nunca mais armar ás aves.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse center">SILVIA.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0">Glicera por vaidosa he que ama as flôres:</div><span class="pagenum"><a id="Page_183"></a>[183]</span>
- <div class="verse indent0">Apanha-as para si não para os Deozes,</div>
- <div class="verse indent0">Não lhas merece a Mãi e alcança-as Mopso.</div>
- <div class="verse indent0">Quando em nosso jardim vejo Glicera,</div>
- <div class="verse indent0">Ja me eu ponho a tremer: corta as melhores,</div>
- <div class="verse indent0">He seu costume; enfado-me, sorri-se;</div>
- <div class="verse indent0">Chóro, ri-se; e enfeixando-as, me repete:</div>
- <div class="verse indent0">“Que te servem por ora estas floritas?</div>
- <div class="verse indent0">Deixa passar mais cinco primaveras,</div>
- <div class="verse indent0">E então sim, nem mais uma hei de furtar-te;</div>
- <div class="verse indent0">Pois sei te hão de servir quaes me hoje servem.”</div>
- <div class="verse indent0">Coitado de quem he como eu menina,</div>
- <div class="verse indent0">Que se manda esperar por primaveras!</div>
- <div class="verse indent0">Que podia eu fazer? queixei-me ás Ninfas.</div>
- <div class="verse indent0">Hontem, ja pôsto o sol, quando erão horas</div>
- <div class="verse indent0">De logo vir Glicera, a presumida,</div>
- <div class="verse indent0">Que furta e vai cantando; ajoelhei-me</div>
- <div class="verse indent0">Co’as mãos póstas por entre as minhas flôres.</div>
- <div class="verse indent0">E disse: “Como as arvores tem ninfas,</div>
- <div class="verse indent0">Que lhes morão la dentro e as aviventão,</div>
- <div class="verse indent0">Ha ninfazinhas a velar nas flores.</div>
- <div class="verse indent0">Ninfazinhas das flores, escutai-me:</div>
- <div class="verse indent0">Se a rega, com que as folhas aquecidas</div>
- <div class="verse indent0">Vos refresquei ha pouco, vos foi grata,</div>
- <div class="verse indent0">Olhai por vós, fazei com que Glicera,</div>
- <div class="verse indent0">Como eu vos vi e ouvi, vos veja e ouça;</div>
- <div class="verse indent0">Apparecei-lhe como a mim, por sonhos,</div>
- <div class="verse indent0">Vestidas de mil côres, perfumadas,</div>
- <div class="verse indent0">Pequenas, mui mimosas, e só outras</div>
- <div class="verse indent0">Em não mostrar-lhe a ella um ar festivo.</div>
- <div class="verse indent0">Dizei-lhe como os Deozes vos crearão</div>
- <div class="verse indent0">Para amores de zefiros, recreio</div>
- <div class="verse indent0">De borboletas e olhos, e formosas</div>
- <div class="verse indent0">Copeiras do formoso mel doirado:</div><span class="pagenum"><a id="Page_184"></a>[184]</span>
- <div class="verse indent0">Dizei-lhe que tão bella e curta vida</div>
- <div class="verse indent0">Não se deve encurtar, que as deshumanas</div>
- <div class="verse indent0">Tem máo fim, que apezar de passageiras,</div>
- <div class="verse indent0">Ninfas sois, e o Destino ha de vingar-vos:</div>
- <div class="verse indent0">Que se tornar sacrílega a colher-vos,</div>
- <div class="verse indent0">Vossos fragrantes ultimos suspiros</div>
- <div class="verse indent0">Seráõ de queixa aos ceos, e antes de tempo</div>
- <div class="verse indent0">As rosas no seu rôsto hão de murchar-se.”</div>
- <div class="verse indent0">Como eu isto dizia, entrou Glicera:</div>
- <div class="verse indent0">Murchas trazia as rosas de seu rôsto,</div>
- <div class="verse indent0">Não rio, nem colheo nada, e suspiráva.</div>
- <div class="verse indent0">Penada de a assim ver, beijei-a, e disse:</div>
- <div class="verse indent0">“Se alguma d’estas flores te contenta,</div>
- <div class="verse indent0">Eu mesma a vou cortar.”—“Não (me responde)</div>
- <div class="verse indent0">Ja não quero mais flores, Mopso ingrato</div>
- <div class="verse indent0">As que ultimas lhe dei deo-as a outrem:</div>
- <div class="verse indent0">Como as flores me engeita hei de engeita-lo.”</div>
- <div class="verse indent0">Ao que eu logo acudi—“Vês tu, Glicera,</div>
- <div class="verse indent0">Fallei verdade ou não? nascem as flores</div>
- <div class="verse indent0">Só para as nossas mãis, e para os Deozes,</div>
- <div class="verse indent0">Da-lhas tu, e verás se hão de engeitar-tas.”</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse center">MENALCA.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0">Basta meus filhos, basta; não ha sombras</div>
- <div class="verse indent0">Tão gratas no verão, cheiro de flores</div>
- <div class="verse indent0">Tão suave, ou tão ledo canto de aves,</div>
- <div class="verse indent0">Que me recrêem como os vossos versos.</div>
- <div class="verse indent0">Vinde, vinde, abracemo-nos, ó filhos:</div>
- <div class="verse indent0">Dei-vos eu a doutrina; engenho os Fados;</div>
- <div class="verse indent0">Mas os Deozes virtude: alcatifais-me</div>
- <div class="verse indent0">De bem viçosa esp’rança o meu declivio:</div>
- <div class="verse indent0">Dais-me o que nem pedir ouzava aos Deozes.</div><span class="pagenum"><a id="Page_185"></a>[185]</span>
- <div class="verse indent0">Antevejo a florir-me a sepultura ...</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse center">DAFNE.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0">Entremos na cabana: aquella nuvem</div>
- <div class="verse indent0">Quer encobrir a lua; ergueo-se o vento,</div>
- <div class="verse indent0">Não tarda muito algum ligeiro orvalho.</div>
- </div>
-</div>
-</div>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_186"></a>[186]</span></p>
-
-<h3 class="nobreak" id="IDILLIO_NOTA">NOTA<br />
-AO IDILLIO.</h3>
-
-</div>
-
-<p>Na muita rama que ao Idillio decotei para
-esta segunda edição, ninguem, por mais que
-a cate, poderá achar fruto, nem sequer uma
-triste flôr, se a não he o passo que para aqui
-traslado, da falla de Alexis pag. 96 na primeira
-edição; ácerca do qual e de tudo o mais
-quanto supprimi ou accrescentei, releva reclamar
-pela maior indulgencia dos leitores. Não
-ma negará quem ja alguma vez houver experimentado
-como de todas as couzas, que parecendo
-tenues, são agras e laboriosas, a mais
-agra, laboriosa, e não sei se diga impossivel,
-he poetar e metrificar as fallas da infancia:
-caminho he esse que estreitissimo corre por entre
-precipicios, sendo maravilha que ahi os maiores
-engenhos se tenhão, e sigão sem caír ou
-para a direita ou para a esquerda. O primeiro
-e melhor juiz do homem candido he a sua consciencia:
-a minha me diz que os trez filhos de
-Menalca nem sempre, antes poucas vezes, fallão
-como conviria: de sobejo são poetas para
-meninos e rusticos; e tanto, que se não fôra
-a resalva, que logo do comêço lhes vai lançada,
-de serem filhos de improvizador, e por elle
-doutrinados no canto, não haveria perdão que
-de ridiculos os salvasse.</p>
-
-<p>Segue-se o excerpto, com todos seus defeitos
-e aleijões de nascença:</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_187"></a>[187]</span></p>
-
-<div class="poetry-container">
-<div class="poetry">
- <div class="stanza">
- <div class="verse center">O MENINO ALEXIS.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0">Ver-me no bosque de prazer me enchia;</div>
- <div class="verse indent0">Quando Amintas, chamando-me da gruta,</div>
- <div class="verse indent0">Aonde estão de musgo revestidas</div>
- <div class="verse indent0">As imagens das Náiades da fonte,</div>
- <div class="verse indent0">Assim me disse, dando-me uma rosa:</div>
- <div class="verse indent0">—“Eu te darei uma pequena ovelha,</div>
- <div class="verse indent0">Toda branca, na testa só malhada,</div>
- <div class="verse indent0">Se fores ter com Egle, e lhe entregares</div>
- <div class="verse indent0">A rosa, que te dou, se lhe disseres</div>
- <div class="verse indent0">“Egle, Amintas por ti morre de amores.”</div>
- <div class="verse indent0">Beija-a depois na face, e continúa;</div>
- <div class="verse indent0">“Egle, este beijo é do extremoso Amintas.”</div>
- <div class="verse indent0">¿Não a vês la ao longe entre os salgueiros,</div>
- <div class="verse indent0">Apascentando as candidas novilhas?</div>
- <div class="verse indent0">Corre; e não tardes a buscar a ovelha.”—</div>
- <div class="verse indent0">Eu fui correndo a ella, dei-lhe a rosa,</div>
- <div class="verse indent0">Beijei-lhe a face, e disse-lhe: “Este beijo,</div>
- <div class="verse indent0">Egle, este beijo é do extremoso Amintas.”</div>
- <div class="verse indent0">Nada me respondeo, sorrio-se, e as faces</div>
- <div class="verse indent0">Como a rosa encarnadas lhe ficárão.</div>
- <div class="verse indent0">Abraçando-a depois, lhe disse alegre,</div>
- <div class="verse indent0">“Egle, Amintas por ti morre de amores.”</div>
- <div class="verse indent0">Rio-se outra vez, e dando-me na face,</div>
- <div class="verse indent0">“Oh como tu és máo! vai-te, me-disse,</div>
- <div class="verse indent0">Não posso ... não, não quero acreditar-te.”</div>
- <div class="verse indent0">Nada lhe respondi, voltei á gruta,</div>
- <div class="verse indent0">Onde o Pastor contente e alvoraçado</div>
- <div class="verse indent0">Me deo sem custo uma pequena ovelha</div>
- <div class="verse indent0">Toda branca, na testa só malhada.</div>
- <div class="verse indent0">¡Como a minha ovelhinha é bella, e mansa!</div>
- <div class="verse indent0">Andei com ella todo o dia ao pasto</div>
- <div class="verse indent0">Pela relva do bosque, etc.</div>
- </div>
-</div>
-</div>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_188"></a>[188]</span></p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_189"></a>[189]</span></p>
-
-<h2 class="nobreak" id="A_FESTA_DE_MAIO"><span class="smcap">A<br />
-Festa de Maio</span><br />
-<span class="smaller">POEMETTO EM DOIS CANTOS.</span></h2>
-
-</div>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_190"></a>[190]</span></p>
-
-<p><i>Se nos trez Poemettos precedentes pude fazer
-muito mais do promettido no Prologo, n’este
-último fica a minha palavra empenhada.
-Pouquissimos de seus defeitos mais palpaveis
-cheguei a apagar, e esses quasi só de linguagem.
-Receoso de me vir a faltar o tempo ou
-o animo, se desde a primeira pagina do Livro
-me começasse a esmerar seguidamente, fôra
-minha primeira occupação ir por todo elle
-despontando, á ventura e sem ordem, o
-que me apparecia pessimo, justamente como
-no Prologo deixára promettido. Conheci logo
-que este trabalho era insufficiente: entrei no
-outro mais miudo e ordenado; refundi a cito</i>
-a Epistola, o Dia da Primavera, os Cantos
-de Abril, <i>nenhuma das quaes Obras cheguei
-com tudo a lustrar. A</i> Festa de Maio, <i>por ser
-a derradeira, quasi ficou, e até nova edição
-(se algum dia se fizer) ficará, como era. O
-maior bem que lhe pude fazer, foi abri-la
-em dois Cantos, para que o leitor achasse
-marco onde descançar em tão enfadonha e
-comprida estrada.</i></p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_191"></a>[191]</span></p>
-
-<h3 class="nobreak" id="MAIO_DEDICATORIA">DEDICATORIA<br />
-ÁS SENHORAS DA LAPA DOS ESTEIOS.</h3>
-
-</div>
-
-<p class="noindent">SENHORAS,</p>
-
-<p><i>A segunda tarde, que passámos em Festa na
-vossa Lapa, não tem jamais de nos esquecer.
-O vosso gracioso e cortez descer a ouvir-nos,
-as carícias com que amimastes o nosso Maiozinho,
-dando-lhe entre vós assento, detendo-o
-nos regaços, beijando-o, ¿como he que nos não
-havião de cativar, a nós, que o cingíramos de
-suas galas, o sentáramos em throno, pôsto que
-menos para apetecer, e o levantáramos por Divindade
-em nossos Cantos? Finalmente aquelle
-vosso generoso trocar de nome á Lapa, querendo
-que por nosso respeito se ficasse chamando</i>
-dos Poetas, <i>em tamanhos obrigações nos pozerão,
-que as Musas nos acodiráõ para um dia
-vos provarmos que nós, Sacerdotes seus, não
-somos ingratos. A minha, de mais atrevida que
-he, me envia adeante, a tributar-vos este Poema,
-que pois o approvastes, ja não he de vós indigno.
-He prezente de uma Deoza do Parnaso,
-não podem as trez Graças rejeita-lo.</i></p>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_192"></a>[192]</span></p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_193"></a>[193]</span></p>
-
-<h3 class="nobreak" id="MAIO_HISTORIA"><span class="smcap">HISTORIA<br />
-da<br />
-Festa de Maio.</span></h3>
-
-</div>
-
-<p>Pelas trez horas da tarde do primeiro dia de
-Maio de 1822 ja nós, a Sociedade dos poetas
-<i>Amigos da Primavera</i>, nos achávamos á sombra
-das arvores, pelo Encanamento do Mondego,
-esperando anciosamente o batel, que
-nos havia de tornar á Lapa dos Esteios, para
-celebrarmos a Festa de Maio: de tantos que
-lá fôramos no Dia da Primavera, só faltava
-<i>Anfrizo</i>, em cuja vez recebêramos <i>Antíono</i>,
-mancebo mui dado a bons estudos, versado
-na lingua e poesia allemã, e autor ja então de
-Anacreonticas e Idillios de muito preço.</p>
-
-<p>O suspirado batel acudio cedo á nossa ancia:
-todo toldado, alcatifado e cingido com mui
-curiosas invenções de verdes e flores, vinha parecendo
-o naviozinho do <i>Primeiro Navegante</i>.
-Abica, saltâmos-lhe dentro todos juntos; larga,
-vogâmos contentes e cantando. Quem
-bem quizesse pintar com a penna affétos do
-coração, não achára bastante um volume para
-historiar esta só tarde. Dezejára eu muito convidar
-cortezmente meus leitores a nos acompanharem,
-tomando seu quinhão em nosso folgar;<span class="pagenum"><a id="Page_194"></a>[194]</span>
-mas não o posso, e ainda mal, que o
-de maior valia fica-lo-hão perdendo. Hiamos
-todos tão unidos em vontade, conformes em
-gôsto, feriados de cuidados, crentes na ventura,
-chêos e cercados de poesia, e namorados
-da natureza, que os todos só parecião um,
-um só moço, transportado em bemaventurança.</p>
-
-<p>Ora cantando, ora encarecendo, quasi adorando
-as varias gentilezas que a perto e a longe,
-e por toda a parte se presentavão e renovavão
-de contínuo, aportámos apoz uma hora,
-na formosa Lapa dos Esteios. Erguemo-nos,
-vozeâmos, voão do barco para o ceo foguetes
-que todo o ar estrugem, e para a margem os
-hinos de uma orchestra que comnosco hia.
-Diz a musica muito com todos os affétos da
-alma, mas do contentamento, onde o ha, faz
-alvorôço, que muitas vezes prorompe em lagrimas.
-D’esta maneira triunfal saltámos para o
-cáes, voámos ao alto da Lapa. Conhecia-nos
-o sítio pelos mesmos, desconheciamo-lo nós
-por melhorado: obrados erão sobre a natureza
-milagres de Maio. Ja as arvores alardeavão ás
-virações montes de folhagem, que pelo ar se
-embalavão ao sol; era agora o rio ainda mais
-puro, os ares mais temperados e benignos.
-¿Quereis haver alguma idea da habitação das
-almas felizes? quereis pintar os lugares onde
-as Ninfas, os Faunos e Pan apparecião aos pastores
-innocentes na idade de oiro? entrai a
-Lapa dos Esteios pelos graciosos dias de Maio.
-He a Primavera nos princípios uma linda menina;<span class="pagenum"><a id="Page_195"></a>[195]</span>
-mas não sabe firmar o passo, balbucia,
-tudo teme, não se decide em nada, suas graças
-ja se annuncião claramente mas ainda se
-não desenvolverão; em Maio he moça toda viçosa
-de mocidade, a quem ledos cortejão Amores
-e Prazeres, cujo sorrir endoidece o pensamento,
-e vai entender com os corações. Tinha
-a Natureza dado a segunda mão e ultima ao
-lugar; mas a Arte quizera entrar com ella á
-competencia, sem comtudo lhe desacatar a
-primazia: tudo estava varrido e puro e concertado
-de um sem numero de vasos de muitas,
-e finissimas flores.</p>
-
-<p>No alto assentámos o altar do Deozinho Maio:
-todo elle era verdura; duas colunas, artificiosamente
-fabricadas de flores, e rematadas
-em umas maçanêtas de igual marmore, se alevantavão
-dos dois cantos da frente, e communicando-se
-no cimo por um semicirculo,
-que na materia e primor não desdizia do resto,
-ajudavão a formar um genero de portico bem
-vistoso e engraçado; os lados, fundo e abobada
-do recinto erão de ramos verdes de todas
-as qualidades, bem entrelaçados e bordados de
-frescas e vermelhas rosas; no meio estava um
-assento pequeno, á feição de poial rústico, tecido
-de lustrosas heras, onde se via recostado o
-Maio em acto mui gentil, e com um geito todo
-seu. Era um Menino de cinco annos, louro
-como o sol, e alvo como a neve, cabellos
-crespos e annelados, caídos por um e outro
-hombro: de roupagem, não tinha outra de seu<span class="pagenum"><a id="Page_196"></a>[196]</span>
-que um aventalinho, que debaixo dos peitos
-lhe descia aos joelhos; o qual, assim como os
-listões que de cima dos hombros lho vinhão tomar
-encruzando-se por deante e pelas costas,
-estava recamado de cedro e buxo, com sua orla
-mui accesa de flores de romeira, cravos, e rosas:
-calçava cothurnos de seda escarlate; na
-cabeça ostentava corôa de verdura, e do braço
-esquerdo como que acenava ás vontades com
-um cabazinho, farto dos frutos do seu tempo;
-e tudo por modo tal, que a bôca se não sabia
-determinar se o diria nu ou vestido, nem
-a fantasia dos poetas se o quereria simples Menino,
-ou verdadeira Divindade.</p>
-
-<p>Mandámos por dois dos nossos vizitar e convidar
-para a Festa as amaveis Senhoras, cuja
-he a Lapa, as quaes na quinta que por cima
-fica tem seu perpétuo domicilio. Não tardarão:
-recebemo-las como convinha, nós com
-a festa dos nossos musicos, e com muitos seus
-abraços as Senhoras, que abaladas dos annuncios
-de tão bôa tarde, nos tinhão feito a honra
-de acudir ao sítio. Ja era crescido o auditorio,
-e muito para contentar e accender engenhos:
-fomo-nos uns a outros seguindo com os poemas
-que levavamos, os quaes em fórma de rito religioso,
-se recitavão em pé deante do altar, fazendo
-a nossa orchestra uma harmoniosa ráia
-de poema a poema, que para tudo as tardes
-de Maio deixão tempo. Poz-se-lhe remate com
-os vinhos e saudes d’uma saborosa merenda,
-como á primeira tarde da Primavera se havia<span class="pagenum"><a id="Page_197"></a>[197]</span>
-feito. Passou-se o serão parte pelas salas, outra
-parte pelo jardim das nossas hospedeiras.</p>
-
-<p>A noite era uma das mais bellas de tal mez:
-a lua brilhantissima despedia até os horisontes
-um clarão quasi diurno, não se enxergando nuvem
-por todo o descampado do seu céo; refletia-se,
-e desenrolava sua alcatifa de movediça
-prata ao longo d’esse Mondego tão digno
-de seus amores; o ar era tão manso e quêdo,
-que as luzes, curiosamente distribuidas por entre
-os vasos de flores, nem de leve estremecião;
-suave era de ver sair por toda a parte d’entre
-planta e planta uns reflexos verdejantes mui
-amigos dos olhos, muito mais da fantasia de
-poetas.</p>
-
-<p>Prazeres que o coração estriou por uma noite
-assim enfeitiçada, não são para se poderem
-pintar. Pouco tardou que a sociedade, como
-acontece, se não soltasse e dispartisse em ranchos
-pequenos: a musica errante e fóra dos
-olhos, umas vezes folgando, suspirando outras,
-e outras como quem sismava algumas amorosas
-mágoas, hia-se ja pelos arvoredos da quinta,
-ja ribeiras do rio acima e abaixo, tão grata,
-que ainda não sei couza que mais quizesse.
-Muitos e muitas baillavão arcadicamente sob a
-abobada do céo, em quanto nós outros, os
-que das Musas só fôramos fadados para versos,
-os estudavamos e repetiamos á porfia. Algumas
-semelhantes horas devia ter passado o primeiro
-que escreveo Elisios.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_198"></a>[198]</span></p>
-
-<p>Era a noite crescida para muito alem do
-meio, quando nos despedimos; e la foi caír
-na eternidade um dia, que ainda agora me
-persegue saudoso, e apoz o qual nenhum outro
-veio semelhante.</p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_199"></a>[199]</span></p>
-
-<h3 class="nobreak" id="MAIO_CANTO_I"><span class="smcap">A<br />
-Festa de Maio.</span></h3>
-
-<h4><span class="smcap">Poemetto</span><br />
-CANTO I.</h4>
-
-</div>
-
-<div class="poetry-container">
-<div class="poetry">
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Eia, amigos, ao campo! ha ja trez horas,</div>
- <div class="verse indent0">Que os Tindáreos Irmãos no aéreo espaço</div>
- <div class="verse indent0">Vírão do meio dia o rôsto ardente:</div>
- <div class="verse indent0">Eia, amigos, ao campo! as horas vôão,</div>
- <div class="verse indent0">E o Maio alegre ás féstas nos convida:</div>
- <div class="verse indent0">Os Zéfiros ligeiros, embalando</div>
- <div class="verse indent0">Do parreiral a trémula folhagem,</div>
- <div class="verse indent0">Ao rio, ao barco estão chamando a turba.</div>
- <div class="verse indent0">¿O Deos Menino, o gracioso Maio</div>
- <div class="verse indent0">Não vamos celebrar na fresca Lapa?</div>
- <div class="verse indent0">Pois que se tarda? os Numes não consentem</div>
- <div class="verse indent0">No culto seu ministros preguiçosos.</div>
- <div class="verse indent0">Chamai á pressa as pastorís Camenas,</div>
- <div class="verse indent0">Tomai as flautas, coroai as frontes</div>
- <div class="verse indent0">Co’as grinaldas, que em premio vos cingírão</div>
- <div class="verse indent0">Da Primavera no primeira tarde.</div>
- <div class="verse indent0">Como! o tempo ... (ai da flor da mocidade!)</div>
- <div class="verse indent0">O tempo as destruio! de graças tantas</div><span class="pagenum"><a id="Page_200"></a>[200]</span>
- <div class="verse indent0">Que existe pois? um pó. Jazem desfeitas,</div>
- <div class="verse indent0">Sem perfume, sem côr as lindas flores,</div>
- <div class="verse indent0">E as verdes folhas se enrolárão murchas!</div>
- <div class="verse indent0">Ah! corramos; o pezo, que as esmaga,</div>
- <div class="verse indent0">Róla tambem sôbre a existencia nossa:</div>
- <div class="verse indent0">Nossas grinaldas nos festins vivêrão,</div>
- <div class="verse indent0">Morrêrão no prazer; e nós, como ellas,</div>
- <div class="verse indent0">Devemos esperar, brincando, a morte.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Cedo nos hombros do nervoso Atlante</div>
- <div class="verse indent0">O eixo voluvel em perpétuo giro</div>
- <div class="verse indent0">Ha de erguer ante o Sol novas esferas:</div>
- <div class="verse indent0">O Touro ja fugio: Castor, e Pollux</div>
- <div class="verse indent0">Succedêrão-lhe agora: hão de apoz elles</div>
- <div class="verse indent0">Os astros scintillar, que nos conduzão</div>
- <div class="verse indent0">Da estiva calma os importunos tempos.</div>
- <div class="verse indent0">Então fenecem pelo campo as flores,</div>
- <div class="verse indent0">Tépidas correm na planicie as fontes,</div>
- <div class="verse indent0">Calão-se as aves nos cavados troncos,</div>
- <div class="verse indent0">E fallece a frescura ás proprias noites.</div>
- <div class="verse indent0">Vamos, emquanto as flores não perecem,</div>
- <div class="verse indent0">Emquanto soprão lisongeiras auras,</div>
- <div class="verse indent0">Emquanto um doce frio as ondas levão,</div>
- <div class="verse indent0">Emquanto as aves pelos ares cantão,</div>
- <div class="verse indent0">E as claras noites co’a frescura aprazem;</div>
- <div class="verse indent0">Vamos correndo: de vergonha córe</div>
- <div class="verse indent0">Quem último chegar do rio á margem.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0">¡Graças aos ceos, que a suspirada arêa</div>
- <div class="verse indent0">Ja pizâmos emfim! mas pelas faces</div>
- <div class="verse indent0">Abrazado suor me está caindo.</div>
- <div class="verse indent0">Inda o barco não chega: eia, sentai-vos.</div>
- <div class="verse indent0">D’esta aura carinhosa ao fresco sôpro</div><span class="pagenum"><a id="Page_201"></a>[201]</span>
- <div class="verse indent0">Quanto he doce voltar o rosto ardente,</div>
- <div class="verse indent0">E ora uma face, ora outra offerecer-lhe!</div>
- <div class="verse indent0">Ella as beija brincando, e espalha em ondas</div>
- <div class="verse indent0">Os escuros anneis, que lhas roubavão.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Verde canavial, salve trez vezes!</div>
- <div class="verse indent0">Co’as boliçosas, arqueadas folhas</div>
- <div class="verse indent0">Nos escondes a rir de Febo aos olhos.</div>
- <div class="verse indent0">Ninfa adorada pelo Deos da Arcadia,</div>
- <div class="verse indent0">(Deos dos pastores, inventor da flauta)</div>
- <div class="verse indent0">Sacrilego furor não nos incita:</div>
- <div class="verse indent0">Não te offendas se agora as nossas dextras</div>
- <div class="verse indent0">De tuas canas adornadas vires:</div>
- <div class="verse indent0">Sua altiveza airosa nos agrada,</div>
- <div class="verse indent0">Vates somos, os trémulos seus cumes</div>
- <div class="verse indent0">Ondulando, os lascivos seus abraços</div>
- <div class="verse indent0">A cada viração que vai fugindo,</div>
- <div class="verse indent0">Tudo isso nos namora, e diz poesia.</div>
- <div class="verse indent0">Não te offendas ó Ninfa, ei-las colhidas!</div>
- <div class="verse indent0">Gravai com ellas n’esta arêa os nomes</div>
- <div class="verse indent0">Das vossas bellas, imprimi-lhe um beijo,</div>
- <div class="verse indent0">E partamos, que o barco ahi fere a margem.</div>
- <div class="verse indent0">Bem: eu lancei da Primavera o nome</div>
- <div class="verse indent0">Em caratéres taes, que ao longe possa</div>
- <div class="verse indent0">Lê-los o pescador no fim da tarde.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Eis-nos emfim nas transparentes ondas!</div>
- <div class="verse indent0">Agora cumpre diligencia, esfôrço,</div>
- <div class="verse indent0">Para vencer as fugitivas aguas.</div>
- <div class="verse indent0">Ferva o trabalho, as varas não descancem;</div>
- <div class="verse indent0">No fundo leito redobrai os golpes,</div>
- <div class="verse indent0">E suavisai com musica a fadiga.</div>
- <div class="verse indent0">Eu deitado na pôpa, eu dicto os versos;</div><span class="pagenum"><a id="Page_202"></a>[202]</span>
- <div class="verse indent0">Cantai, e o echo em baixa voz aprenda.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Ouvi Ninfas do placido Mondego,</div>
- <div class="verse indent0">Ouvi com ledo rôsto as preces nossas.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Saí correndo das limosas grutas:</div>
- <div class="verse indent0">Occultas no cristal do patrio rio,</div>
- <div class="verse indent0">Vós podeis impellir co’as mãos de neve,</div>
- <div class="verse indent0">E fazer que o batel, qual aguia, vôe.</div>
- <div class="verse indent0">Bellas Filhas do lúcido Mondego,</div>
- <div class="verse indent0">Vamos passar a tarde á grata sombra,</div>
- <div class="verse indent0">Das lindas Graças na famosa Lapa.</div>
- <div class="verse indent0">Ali, se acaso não me illude o estro,</div>
- <div class="verse indent0">Vós, Ninfas, vós com ellas muitas vezes</div>
- <div class="verse indent0">As noites do luar passais em danças:</div>
- <div class="verse indent0">Sôbre um tronco musgoso Amor sentado,</div>
- <div class="verse indent0">Para acertar as rápidas choréas</div>
- <div class="verse indent0">Com saudosa flauta a Noite acorda,</div>
- <div class="verse indent0">E Venus compassiva lhe desata</div>
- <div class="verse indent0">Dos olhos entretanto a escura venda.</div>
- <div class="verse indent0">Mil Amorinhos sem farpões, sem facho,</div>
- <div class="verse indent0">(Nem onde vós estais carecem d’elles)</div>
- <div class="verse indent0">Vôão aqui e ali por entre os ramos.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Ouvi Ninfas do placido Mondego,</div>
- <div class="verse indent0">Ouvi com ledo rôsto as preces nossas.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Dai-nos breve chegar, sereis cantadas;</div>
- <div class="verse indent0">E iremos outro dia erguer altares</div>
- <div class="verse indent0">De cada vosso chôpo á sombra amiga,</div>
- <div class="verse indent0">Pondo-lhe em roda uma vistosa grade</div>
- <div class="verse indent0">D’aureas canas com murtas revestidas:</div>
- <div class="verse indent0">Em vossas ondas lançaremos rosas,</div><span class="pagenum"><a id="Page_203"></a>[203]</span>
- <div class="verse indent0">E puro leite, e saboroso vinho.</div>
- <div class="verse indent0">Porque tardais, ó Náiades esquivas?</div>
- <div class="verse indent0">Turba innocente de mancebos rindo</div>
- <div class="verse indent0">Bem merece o favor dos sacros Numes.</div>
- <div class="verse indent0">Nós não vamos em lenhos alterosos,</div>
- <div class="verse indent0">Roçando as nuvens com soberbas velas,</div>
- <div class="verse indent0">C’o ferro a lampejar nas bravas dextras,</div>
- <div class="verse indent0">Levar da guerra a furia aos outros povos,</div>
- <div class="verse indent0">Lançar em fogo os bosques, e as cidades,</div>
- <div class="verse indent0">Para voltar aos mares tormentosos</div>
- <div class="verse indent0">Co’um pouco do metal, que gera os crimes:</div>
- <div class="verse indent0">Nós vamos procurar vizinha praia</div>
- <div class="verse indent0">Para rir, e beber de Maio em honra;</div>
- <div class="verse indent0">Vamos c’roar-nos de verdura, e lirios,</div>
- <div class="verse indent0">Cantar ao som da flauta a Natureza,</div>
- <div class="verse indent0">Dançar no meio de innocentes gostos,</div>
- <div class="verse indent0">E longe dos mortaes, viver ditosos,</div>
- <div class="verse indent0">Poucas horas sequer, na paz dos campos.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Ouvi, Ninfas do placido Mondego,</div>
- <div class="verse indent0">Ouvi com ledo rôsto as preces nossas.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Terra, terra: éstas árvores das margens,</div>
- <div class="verse indent0">Que ora nos vão passando sôbre as frontes,</div>
- <div class="verse indent0">Convidão a colher sua folhagem:</div>
- <div class="verse indent0">Saltai, colhei os mais viçosos ramos,</div>
- <div class="verse indent0">Teça-se um tôldo, que nos roube á calma.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Ávante! adeos, ó Driades, ficai-vos</div>
- <div class="verse indent0">Em doce paz; o orvalho vos fecunde;</div>
- <div class="verse indent0">Ache vossa raiz no estio as aguas</div>
- <div class="verse indent0">Tão abundantes, como as tendes hoje.</div>
- <div class="verse indent0">Nós vamos celebrar o mez das flores,</div><span class="pagenum"><a id="Page_204"></a>[204]</span>
- <div class="verse indent0">Quando voltarmos vos daremos graças.</div>
- <div class="verse indent0">Ávante! não cesseis, alegres nautas!</div>
- <div class="verse indent0">Cantai: eu voas ensino um canto novo.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Das Filhas de Nereo a mais formosa</div>
- <div class="verse indent0">Foi Galatéa candida, e rosada.</div>
- <div class="verse indent0">Por seus olhos azues morreo de inveja</div>
- <div class="verse indent0">Aglaia, irmã de Amor; a curta boca</div>
- <div class="verse indent0">Ciumes acendeo no peito d’Egle,</div>
- <div class="verse indent0">Bem que da boca d’Egle um doce beijo</div>
- <div class="verse indent0">O scetro pagaria ao rei dos Numes;</div>
- <div class="verse indent0">E Eufrosina, entre os Deozes celebrada</div>
- <div class="verse indent0">Pelos aureos anneis da longa trança,</div>
- <div class="verse indent0">De Galatéa a trança cobiçava.</div>
- <div class="verse indent0">E o seio! o seio túrgido e nevado,</div>
- <div class="verse indent0">Mais nevado que a espuma em que se tornão</div>
- <div class="verse indent0">Na frente de um cachopo as crespas vagas,</div>
- <div class="verse indent0">O seio era melhor que o teu, ó Cípria!</div>
- <div class="verse indent0">Treze vezes floríra a primavera,</div>
- <div class="verse indent0">Depois que aura vital gozava a Ninfa,</div>
- <div class="verse indent0">E ja no mar, no ceo, no mundo inteiro</div>
- <div class="verse indent0">Das bellas todas triunfava a bella,</div>
- <div class="verse indent0">E ais e louvores a seguião sempre.</div>
- <div class="verse indent0">Nereo, chamando-a á funda gruta um-dia,</div>
- <div class="verse indent0">Assentou-a nos trémulos joelhos,</div>
- <div class="verse indent0">Ao hombro lhe lançou paterna dextra,</div>
- <div class="verse indent0">E beijando-a lhe diz.—“Assaz he tempo,</div>
- <div class="verse indent0">“Filha, de rematar da infancia os brincos.</div>
- <div class="verse indent0">“Tu conheces teu rôsto, ¿e não conheces</div>
- <div class="verse indent0">“Que he preciso fugir á turba insana,</div>
- <div class="verse indent0">“Que te rodêa, que te chama bella?</div>
- <div class="verse indent0">“Crê tu nas cãs de um pai, de um pai no afféto;</div>
- <div class="verse indent0">“Quanto mais suas fallas te agradarem,</div><span class="pagenum"><a id="Page_205"></a>[205]</span>
- <div class="verse indent0">“E mais seus modos lisongeiros vires,</div>
- <div class="verse indent0">“Mais pérfidos serão. Cabe a meus annos</div>
- <div class="verse indent0">“Dar prudente conselho á tenra idade;</div>
- <div class="verse indent0">“Perdoa-me, acautello-te a innocencia.</div>
- <div class="verse indent0">“De meus delfias o lúbrico rebanho,</div>
- <div class="verse indent0">“Desde hoje apascentar he teu cuidado:</div>
- <div class="verse indent0">“Não convem á belleza ociosa vida.”—</div>
- <div class="verse indent0">Disse, e poz-lhe na mão, como a pastora,</div>
- <div class="verse indent0">Cajado de coral com ponta d’oiro;</div>
- <div class="verse indent0">Entregou-lhe a rebanho, e conduzindo-a</div>
- <div class="verse indent0">De seus mares a um placido retivo,</div>
- <div class="verse indent0">—“Fica, pastora, aqui, lhe-disse o Velho,</div>
- <div class="verse indent0">“Vir-te-hei vêr muita vez.”—Rio-se, e deixou-a.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Alguns dias ali viveo contente</div>
- <div class="verse indent0">Com seu rebanho a equorea pegureira.</div>
- <div class="verse indent0">Ora entre as moutas dos coraes ramosos</div>
- <div class="verse indent0">O levava a pascer os brandos limos,</div>
- <div class="verse indent0">Ora ao marinho cão deixando-o entregue,</div>
- <div class="verse indent0">Hia colher das perolas as conchas.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Uma tarde de Maio, quando aos braços</div>
- <div class="verse indent0">De Thetis vio que o sol hia descendo,</div>
- <div class="verse indent0">Ouzou sair do fundo, e foi sentar-se</div>
- <div class="verse indent0">A gozar do espétaculo dos bosques</div>
- <div class="verse indent0">Na alegre entrada de uma verde gruta.</div>
- <div class="verse indent0">Nas ondas por acaso então nadava</div>
- <div class="verse indent0">Acis gentil de encantadores olhos:</div>
- <div class="verse indent0">Vio-o, e visto, calou seu canto alegre;</div>
- <div class="verse indent0">Sólta um suspiro, e se perturba, e córa.</div>
- <div class="verse indent0">Do paternal preceito inda lembrada,</div>
- <div class="verse indent0">Quer na gruta esconder-se até que parta</div>
- <div class="verse indent0">Das ondas o mancebo: eis se arrepende,</div><span class="pagenum"><a id="Page_206"></a>[206]</span>
- <div class="verse indent0">Ja não quer occultar-se, e quer que a veja.</div>
- <div class="verse indent0">D’entre o verde do mar o níveo corpo,</div>
- <div class="verse indent0">Que os olhos cega, e o coração cativa,</div>
- <div class="verse indent0">As proporções, a ligeireza, a graça,</div>
- <div class="verse indent0">Com que agora se occulta, agora assoma,</div>
- <div class="verse indent0">E em modos mil as posições varía,</div>
- <div class="verse indent0">Tudo, tudo a detem. De quando em quando,</div>
- <div class="verse indent0">Sem conhecer que o faz, se lhe aproxima;</div>
- <div class="verse indent0">As tranças, que trazia ao vento sôltas,</div>
- <div class="verse indent0">Sem saber o porque, reparte e lança</div>
- <div class="verse indent0">Sôbre os hombros de neve, e cobre o seio:</div>
- <div class="verse indent0">Consulta no mar lizo a propria imagem;</div>
- <div class="verse indent0">Quer mais bella tornar-se, e mais não póde.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Cançado de banhar-se o Moço emtanto</div>
- <div class="verse indent0">Vinha a praia ganhando: ella assustada</div>
- <div class="verse indent0">Corre á gruta; ali cora, ali desmaia,</div>
- <div class="verse indent0">Quando o mancebo, quando o pai lhe lembra.</div>
- <div class="verse indent0">O bello nadador não tarda muito,</div>
- <div class="verse indent0">Entra na gruta, onde largára as vestes ...</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Amigos, vós parais como esquecidos?</div>
- <div class="verse indent0">Deixais que o lenho na corrente desça?</div>
- <div class="verse indent0">Ah! voltai ao trabalho; e por castigo</div>
- <div class="verse indent0">Não ouvirèis do alegre canto o resto.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Novo me inspira agora esse murmúrio,</div>
- <div class="verse indent0">Com que a Fonte das lagrimas se lança</div>
- <div class="verse indent0">Da serpeada varzea ao rio aberto.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Junto á fresca matriz d’este ribeiro,</div>
- <div class="verse indent0">Onde gozou em seculo remoto</div>
- <div class="verse indent0">O mais ditoso par de amor os mimos,</div><span class="pagenum"><a id="Page_207"></a>[207]</span>
- <div class="verse indent0">Meu estro agora placido voltêa</div>
- <div class="verse indent0">Por entre os cedros, e os feraes ciprestes;</div>
- <div class="verse indent0">E ora ao lago pacífico se arroja,</div>
- <div class="verse indent0">Ora da fonte nos penedos pouza.</div>
- <div class="verse indent0">Comvosco não existe o vosso amigo;</div>
- <div class="verse indent0">Gira fóra d’aqui no sítio umbroso,</div>
- <div class="verse indent0">La conversa co’a Musa, aprende, e canta</div>
- <div class="verse indent0">Gratas histórias dos passados tempos.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Uma noite de Maio Inez formosa,</div>
- <div class="verse indent0">Ao pallido clarão da argentea lua,</div>
- <div class="verse indent0">Com seu Pedro fiel aqui vagava.</div>
- <div class="verse indent0">De seu candido amor primeiro fruto,</div>
- <div class="verse indent0">Lindo, qual dos Amores o mais lindo,</div>
- <div class="verse indent0">Um tenro filho, que a fallar começa,</div>
- <div class="verse indent0">Co’a pequenina mão á mãi seguro,</div>
- <div class="verse indent0">A passos desiguaes a acompanhava.</div>
- <div class="verse indent0">No dextro braço do gentil consorte</div>
- <div class="verse indent0">O alvo braço despido entrelaçando,</div>
- <div class="verse indent0">Languidamente a bella se apoiava.</div>
- <div class="verse indent0">Traja da côr da neve, ornão-lhe as tranças</div>
- <div class="verse indent0">Rúbidas rosas que reveste o musgo:</div>
- <div class="verse indent0">Sob um véo raro e sôlto arfão dois peitos,</div>
- <div class="verse indent0">Que estrema, que matiza, e que perfuma</div>
- <div class="verse indent0">A flor, que he d’entre mil só digna d’elles,</div>
- <div class="verse indent0">O amor perfeito em fresco ramalhete.</div>
- <div class="verse indent0">Pelo silencio, e paz da noite amiga,</div>
- <div class="verse indent0">Nos extasis de amor arrebatados,</div>
- <div class="verse indent0">Ebrios ambos do nectar da ternura,</div>
- <div class="verse indent0">Vagueando em seu ermo, respiravão</div>
- <div class="verse indent0">Todo quanto prazer nas almas cabe.</div>
- <div class="verse indent0">—“Inez, dizia Pedro, olha estes cedros,</div>
- <div class="verse indent0">“Que doce murmurando agita o vento!</div><span class="pagenum"><a id="Page_208"></a>[208]</span>
- <div class="verse indent0">“Olha as aguas do tanque, onde tão clara</div>
- <div class="verse indent0">“Se está dos Ceos a Lua retratando!</div>
- <div class="verse indent0">“Ouve o rumor das ondas transparentes,</div>
- <div class="verse indent0">“Que vem brotando da cavada penha!</div>
- <div class="verse indent0">“Cara Inez ... ah! calemo-nos; escuta</div>
- <div class="verse indent0">“O amante rouxinol como gorgeia!</div>
- <div class="verse indent0">“Não o sentes mui proximo? quem sabe!</div>
- <div class="verse indent0">“Talvez que em teu jardim celébre agora</div>
- <div class="verse indent0">“Ao lado de uma esposa os seus prazeres:</div>
- <div class="verse indent0">“Se assim he, refinai perfume, ó flores,</div>
- <div class="verse indent0">“E vós levai-lho, zefiros da noite,</div>
- <div class="verse indent0">“No instante em que Himeneo tem de ajuntal-los.</div>
- <div class="verse indent0">“Ó minha Inez, não ser inda possivel</div>
- <div class="verse indent0">“Confiarmos á luz nossa ventura,</div>
- <div class="verse indent0">“E eu dizer, sou de Inez!...”—N’isto o mancebo,</div>
- <div class="verse indent0">Apertando a seu peito o braço d’ella,</div>
- <div class="verse indent0">De beijos lhe inundava a mão mimosa.</div>
- <div class="verse indent0">Em silencio e cuidosa a linda Castro</div>
- <div class="verse indent0">Parava contemplando os ceos, o esposo,</div>
- <div class="verse indent0">E unindo a regia dextra ao seio oppresso,</div>
- <div class="verse indent0">Dava a resposta n’um fiel suspiro.</div>
- <div class="verse indent0">—“Oh! (dizia depois) que Deos contrário</div>
- <div class="verse indent0">“Ao terno amor, á candída innocencia,</div>
- <div class="verse indent0">“Poz peito, ó doce encanto, a separar-nos?</div>
- <div class="verse indent0">“Quão melhor fôra haver nascido em choças!</div>
- <div class="verse indent0">“La, tendo por imperio um só rebanho,</div>
- <div class="verse indent0">“Lãs por purpura, e flores por diadema,</div>
- <div class="verse indent0">“Pedro fôra pastor e Inez pastora.</div>
- <div class="verse indent0">“Teu solio quantas lagrimas nos custa!</div>
- <div class="verse indent0">“Mas se fosse teu solio um manso outeiro,</div>
- <div class="verse indent0">“Docel um parreiral firme em colunas</div>
- <div class="verse indent0">“Das que dão fruto e flor, saude, e agrados,</div>
- <div class="verse indent0">“Não cortíra em meus sonhos o remorso,</div><span class="pagenum"><a id="Page_209"></a>[209]</span>
- <div class="verse indent0">“Teu coração ninguem mo disputára,</div>
- <div class="verse indent0">“Não se encobríra o meu amor ...”—“Oh cessa,</div>
- <div class="verse indent0">“Cessa (Pedro lhe diz interrompendo-a):</div>
- <div class="verse indent0">“De que servem, querida, essas lembranças!</div>
- <div class="verse indent0">“Se te adoro, que temes? se me adoras,</div>
- <div class="verse indent0">“Que posso eu mais querer! Virtudes tantas,</div>
- <div class="verse indent0">“Raros dons quaes os ceos em ti resumem,</div>
- <div class="verse indent0">“Não são para jazer na escuridade;</div>
- <div class="verse indent0">“Dos reis, de teus avós te poem no estrada,</div>
- <div class="verse indent0">“Para luzires nos corrutos dias,</div>
- <div class="verse indent0">“Como astro de bondade entre os humanos.</div>
- <div class="verse indent0">“Gozemos do prazer. Olha esta noite</div>
- <div class="verse indent0">“Como he formosa, minha Inez; não tornes,</div>
- <div class="verse indent0">“Eu to peço por mim, por ti, por esse</div>
- <div class="verse indent0">“Fruto do nosso amor que te he tão caro,</div>
- <div class="verse indent0">“Não tornes a acordar taes pensamentos.</div>
- <div class="verse indent0">“Queres tu, minha amada, á curta noite</div>
- <div class="verse indent0">“Dar emprego melhor, mais proprio d’ella?</div>
- <div class="verse indent0">“O assento ao pé da fonte nos convida,</div>
- <div class="verse indent0">“Vem-me outra vez cantar os magos versos,</div>
- <div class="verse indent0">“Onde quasi exprimiste o enlevo d’ambos,</div>
- <div class="verse indent0">“Quando a primeira vez nos vimos juntos</div>
- <div class="verse indent0">“Tambem de noite, e n’este sítio mesmo.”</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Disse, e Inez imprimindo-lhe nos labios</div>
- <div class="verse indent0">Co’a meiga curta boca um longo beijo,</div>
- <div class="verse indent0">—“Vamos, responde, apraz-me esse meu canto,</div>
- <div class="verse indent0">“E agradar-te, inda mais; partamos logo.”—</div>
- <div class="verse indent0">Diz, e ja leva ao collo o seu filhinho.</div>
- <div class="verse indent0">Forceja o pai furtar-lhe o doce pezo,</div>
- <div class="verse indent0">Ella a ninguem o cede:—“O meu menino</div>
- <div class="verse indent0">“He meu, lhe diz; quando eu tiver meninas,</div>
- <div class="verse indent0">“Dar-tas-hei, desde ja chama-lhe tuas;</div><span class="pagenum"><a id="Page_210"></a>[210]</span>
- <div class="verse indent0">“Pertence o filho á mãi, e ao pai a filha.”—</div>
- <div class="verse indent0">Sorrindo com ternura o ledo Amante,</div>
- <div class="verse indent0">—“Ser-me-ha dado, lhe diz, que de teu filho</div>
- <div class="verse indent0">“Ao menos colha uns beijos que me deve,</div>
- <div class="verse indent0">“Ou hei de só com os teus ficar contente”?—</div>
- <div class="verse indent0">—“Se tos deve meu filho, eu vou pagar-tos”</div>
- <div class="verse indent0">Inez responde, e lhe pagou mil beijos.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Chegados são aos bancos do rochedo.</div>
- <div class="verse indent0">—“Ja do sol o calor morreo na pedra;</div>
- <div class="verse indent0">“Para assento, he mister ser estufada.</div>
- <div class="verse indent0">“Não rias, o brocado hão de ser ramos;</div>
- <div class="verse indent0">“Para a pastora Inez, nenhum mais proprio”—</div>
- <div class="verse indent0">Voa ao proximo cedro, os ramos corta,</div>
- <div class="verse indent0">Alastra-os sobre o marmore, e reclina</div>
- <div class="verse indent0">O infantinho, que pósta a loira fronte</div>
- <div class="verse indent0">No maternal joelho, eis adormece.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Absorto no painel delicioso,</div>
- <div class="verse indent0">Não podendo parar nem desviar-se,</div>
- <div class="verse indent0">Como homem, que formosa feiticeira</div>
- <div class="verse indent0">Prende e agita n’um círculo encantado,</div>
- <div class="verse indent0">Vaga o Principe á luz voluptuosa</div>
- <div class="verse indent0">De lua por entre arvores. Desponta</div>
- <div class="verse indent0">No ermo silencio o canto namorado!</div>
- <div class="verse indent0">O suave da voz, o doce estilo,</div>
- <div class="verse indent0">A musica tocante, a frase meiga</div>
- <div class="verse indent0">Alhêão-no de si, todo elle he fogo:</div>
- <div class="verse indent0">Não conhece onde está, quem he não sabe:</div>
- <div class="verse indent0">No cahos do prazer, em que se abisma,</div>
- <div class="verse indent0">Só vê brilhar Inez, Inez só ouve;</div>
- <div class="verse indent0">E qual se nunca em braços a apertára,</div>
- <div class="verse indent0">E virgem melindrosa o ceo benigno</div><span class="pagenum"><a id="Page_211"></a>[211]</span>
- <div class="verse indent0">Lha houvéra ali chovido aquella noite,</div>
- <div class="verse indent0">Arde e delira em sofregos dezejos.</div>
- <div class="verse indent0">Já não sabe conter-se, o fim do canto</div>
- <div class="verse indent0">Já não póde esperar; “Ó minha, exclama,</div>
- <div class="verse indent0">“Ó minha ...” e sem findar, pois não encontra</div>
- <div class="verse indent0">Nome que exprima o que lhe ferve na alma,</div>
- <div class="verse indent0">Voa a abraça-la sem poder fallar-lhe;</div>
- <div class="verse indent0">A voz com loucos beijos lhe interrompe,</div>
- <div class="verse indent0">Quer dos labios sorver-lhe os sons divinos;</div>
- <div class="verse indent0">Mas ella rindo, e a boca desviando,</div>
- <div class="verse indent0">Que a deixe terminar lhe pede a custo.</div>
- <div class="verse indent0">—“Sim, acaba (responde), Inez, acaba”—</div>
- <div class="verse indent0">E emtanto hia beijando o collo, o seio.</div>
- <div class="verse indent0">Depois, como ante Nume, ajoelhando,</div>
- <div class="verse indent0">Suspenso a contemplava espaço longo;</div>
- <div class="verse indent0">E depois no regaço o rôsto acceso</div>
- <div class="verse indent0">Lhe punha, como em ninho de delicias,</div>
- <div class="verse indent0">E no certo esperar crescia o fogo.</div>
- <div class="verse indent0">Só vós caladas arvores no emtanto</div>
- <div class="verse indent0">A canção namorada ouvindo estaveis</div>
- <div class="verse indent0">Da mui ditosa Inez! Como expirava</div>
- <div class="verse indent0">A derradeira nota, estremecendo</div>
- <div class="verse indent0">Acorda o moço, alvoraçado surge,</div>
- <div class="verse indent0">E tomando á cantora a mão submissa,</div>
- <div class="verse indent0">—“Vamos, lhe diz, a lua vai descendo,</div>
- <div class="verse indent0">“O tácito poente a chama ao sono:</div>
- <div class="verse indent0">“Oh quão leve entre nós foge esta noite!</div>
- <div class="verse indent0">“As auras pela relva estão dormindo,</div>
- <div class="verse indent0">“Pendem com sono as arvores seus cumes,</div>
- <div class="verse indent0">“Do largo tanque as aguas nem se encrespão.</div>
- <div class="verse indent0">“O rouxinol que ha pouco gorgeava ...</div>
- <div class="verse indent0">“Ja tambem se calou: sabes a causa?”—</div>
- <div class="verse indent0">—“Talvez lhe empeça a voz, responde a bella,</div><span class="pagenum"><a id="Page_212"></a>[212]</span>
- <div class="verse indent0">“Teimoso furto de continuos beijos.”—</div>
- <div class="verse indent0">—“Não, não, responde o amante, agora occulto</div>
- <div class="verse indent0">“Co’a docil companheira em quente abrigo,</div>
- <div class="verse indent0">“Aperta o rouxinol de amor os laços.</div>
- <div class="verse indent0">“E nós Inez? ah toma o teu menino,</div>
- <div class="verse indent0">“Talvez não tarde a aurora, ao leito vamos,</div>
- <div class="verse indent0">“E do fresco da noite ali zombemos.”</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Emfim chegámos! c’o ligeiro impulso</div>
- <div class="verse indent0">Bate a proa no cáes, o lenho treme,</div>
- <div class="verse indent0">Tremem com elle de seu tôldo as folhas.</div>
- <div class="verse indent0">Salve ameno lugar, que as Graças pizão!</div>
- <div class="verse indent0">Glória ao sacro arvoredo, que diffunde</div>
- <div class="verse indent0">Sôbre a calma do vate a sombra fria!</div>
- <div class="verse indent0">Glória ás auras, que prêzas n’este sítio,</div>
- <div class="verse indent0">Das Dríades por mão aos troncos d’ellas,</div>
- <div class="verse indent0">Agitão com susurro a massa enorme</div>
- <div class="verse indent0">Da folhagem suspensa! honra aos que brincão</div>
- <div class="verse indent0">Puros raios do sol sôbre o terreno,</div>
- <div class="verse indent0">Mal que um favonio lhes descobre a entrada!</div>
- <div class="verse indent0">Eterno amor ás aves, que em seus ramos</div>
- <div class="verse indent0">A vinda nossa a gorgear celebrão!</div>
- <div class="verse indent0">Paz ao dezerto, onde comnosco as Musas,</div>
- <div class="verse indent0">Esquecidas de Pimpla, se contentão</div>
- <div class="verse indent0">De encher de alegres canticos os ares!</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Á festa, á festa! Reuni-vos todos,</div>
- <div class="verse indent0">Vinde colhêr as fugitivas horas:</div>
- <div class="verse indent0">Como vaga que passa, ou flôr que murcha,</div>
- <div class="verse indent0">Para mais não voltar, se escoa o tempo.</div>
- <div class="verse indent0">Á festa, amigos! Oh! n’esta eminencia</div>
- <div class="verse indent0">Eis ja pronto um altar! ei-lo cingido</div>
- <div class="verse indent0">Com largas fitas de pintadas flores!</div><span class="pagenum"><a id="Page_213"></a>[213]</span>
- <div class="verse indent0">Ante elle o rosmaninho, a murta, as rosas</div>
- <div class="verse indent0">Té não curta distancia o chão tapizão;</div>
- <div class="verse indent0">Heras, e lirios candidos o toldão:</div>
- <div class="verse indent0">De heras e lirios adornai as frontes.</div>
- <div class="verse indent0">Ajoelhai: lá sobe a Divindade!</div>
- <div class="verse indent0">Silencio! paz!... Retumbe pelos echos,</div>
- <div class="verse indent0">Sem mistura de voz, o som das flautas.</div>
- <div class="verse indent0">No coração, no espirito me chovem</div>
- <div class="verse indent0">D’estro divino eléctricas centelhas.</div>
- <div class="verse indent0">Ja me sinto mudado em branco cisne!</div>
- <div class="verse indent0">Cercai-me: eu vou cantar; calam-se os ventos!</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Voa invisivel das Hemonias serras,</div>
- <div class="verse indent0">Tu que no Xantho as aureas tranças lavas:</div>
- <div class="verse indent0">E se he tua, qual Roma suppozera,</div>
- <div class="verse indent0">Ésta a melhor porção da florea quadra,</div>
- <div class="verse indent0">Do cantor de teu mez protege a audacia.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">D’entre os filhos da immensa eternidade,</div>
- <div class="verse indent0">D’entre esses doze Irmãos, que repartido</div>
- <div class="verse indent0">Tem por sua influencia o anho inteiro,</div>
- <div class="verse indent0">Maio foi sempre o mais gentil de todos:</div>
- <div class="verse indent0">Qual dos cachos o Deos, e o Deos das setas,</div>
- <div class="verse indent0">Goza brincando eterna mocidade.</div>
- <div class="verse indent0">As Graças infantis, e a Formosura</div>
- <div class="verse indent0">O creárão nos ceos com o proprio leite.</div>
- <div class="verse indent0">Mal que o mundo surgio do horrendo cáhos,</div>
- <div class="verse indent0">Veio formar-lhe os seus primeiros dias,</div>
- <div class="verse indent0">E Maio foi da terra a fresca aurora.</div>
- <div class="verse indent0">Em mimos escondendo a magestade,</div>
- <div class="verse indent0">He Maio o pai, e o rei da Natureza:</div>
- <div class="verse indent0">Qual em soberbo paço, anda nos bosques;</div>
- <div class="verse indent0">Ou, qual em solio, nos outeiros verdes</div><span class="pagenum"><a id="Page_214"></a>[214]</span>
- <div class="verse indent0">Se assenta, ao lado da risonha Flora.</div>
- <div class="verse indent0">Compõe-lhe o seu cortejo Auras, Favonios,</div>
- <div class="verse indent0">Que das plumas azues fragrancia espargem</div>
- <div class="verse indent0">Furtada ha pouco ás pudibundas rosas.</div>
- <div class="verse indent0">Em seu reinado insolita doçura</div>
- <div class="verse indent0">Exhala o canto dos volateis bandos,</div>
- <div class="verse indent0">E canoro parece o bosque inteiro.</div>
- <div class="verse indent0">Em seu reinado os prados florecentes</div>
- <div class="verse indent0">Só curão de ostentar perfume e cores:</div>
- <div class="verse indent0">E a Ninfa ás vezes longas horas fica</div>
- <div class="verse indent0">A meditar na escolha dos ornatos.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Co’a folhagem densissima susurra</div>
- <div class="verse indent0">O bosque annoso a celebrar-te, ó Maio;</div>
- <div class="verse indent0">Susurra a celebrar-te o rio, a fonte.</div>
- <div class="verse indent0">Com serena alegria o sol derrama</div>
- <div class="verse indent0">Vasto oceano de luz no aereo espaço.</div>
- <div class="verse indent0">A pompa da manhã, da tarde o brilho</div>
- <div class="verse indent0">Tem não visto matiz d’oiro e de rosas,</div>
- <div class="verse indent0">E côr de fogo sôbre um ceo de leite.</div>
- <div class="verse indent0">Toda patente a abobada de estrellas,</div>
- <div class="verse indent0">Toda brilhante a prateada lua,</div>
- <div class="verse indent0">Te dão, como as do Elisio, alegres noites,</div>
- <div class="verse indent0">De importuno calor desafrontadas,</div>
- <div class="verse indent0">Chêias de encanto, da saudade amigas,</div>
- <div class="verse indent0">Gratas a um tempo ao coração, e ao estro.</div>
- <div class="verse indent0">Aqui, e ali os rouxinoes se escutão</div>
- <div class="verse indent0">Longas horas c’os echos porfiando.</div>
- <div class="verse indent0">Gira, vaguêa pelas fracas trevas</div>
- <div class="verse indent0">Dos pirilampos o lustroso bando:</div>
- <div class="verse indent0">Resoa em cada aldêa alguma frauta,</div>
- <div class="verse indent0">E emtôrno d’ella as camponezas danção:</div>
- <div class="verse indent0">Bala no aprisco impaciente o gado</div><span class="pagenum"><a id="Page_215"></a>[215]</span>
- <div class="verse indent0">As poucas horas, que á manhã precedem.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Como he doce o teu mez, benigno Maio!</div>
- <div class="verse indent0">Alegra-se o viandante ao ver nos campos</div>
- <div class="verse indent0">Do verde trigo as trémulas searas</div>
- <div class="verse indent0">Iguaes a um vasto lago, onde os favonios,</div>
- <div class="verse indent0">Nascidos inda ha pouco entre as florestas,</div>
- <div class="verse indent0">Aprendem a encrespar as verdes aguas.</div>
- <div class="verse indent0">Aqui a par de um campo, onde começa</div>
- <div class="verse indent0">O milho a despontar, desprega aos ares</div>
- <div class="verse indent0">Com vaidosa soberba altas bandeiras</div>
- <div class="verse indent0">De outros milhos o exército infinito.</div>
- <div class="verse indent0">Ostentando riqueza alem menêão,</div>
- <div class="verse indent0">Entre a argentea folhagem pendurados</div>
- <div class="verse indent0">Cachos de flor, os olivaes fecundos.</div>
- <div class="verse indent0">Os pomares de frutos se carregão,</div>
- <div class="verse indent0">Que ja sem medo aos furacões, e ás chuvas,</div>
- <div class="verse indent0">Com áncia a côr, e a madureza esperão.</div>
- <div class="verse indent0">As aves da manhã, quando revôão</div>
- <div class="verse indent0">Com longo canto pela immensa altura,</div>
- <div class="verse indent0">Se aprazem de os olhar; e ás vezes descem,</div>
- <div class="verse indent0">E vem pouzar nos encurvados ramos,</div>
- <div class="verse indent0">O futuro sustento ali festejão:</div>
- <div class="verse indent0">Tal de annos onze uma pequena virgem</div>
- <div class="verse indent0">De adoradores mil se vê cercada;</div>
- <div class="verse indent0">Bem que á sua belleza inda lhe faltem</div>
- <div class="verse indent0">Terno expressivo olhar, globos de neve,</div>
- <div class="verse indent0">Voluptuoso dezejo entre suspiros,</div>
- <div class="verse indent0">Buscado enfeite, graciosas fallas,</div>
- <div class="verse indent0">Rodêão-na comtudo, adivinhando</div>
- <div class="verse indent0">Pelo botáõ fechado a flor aberta.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Mas, ó Maio, o teu mez não brilha esteril!</div><span class="pagenum"><a id="Page_216"></a>[216]</span>
- <div class="verse indent0">La se ergue o laranjal c’os frutos d’oiro;</div>
- <div class="verse indent0">Doces limões, e saborosas limas,</div>
- <div class="verse indent0">D’entre a larga folhagem descobrindo</div>
- <div class="verse indent0">A amarellada tez e o forte aroma,</div>
- <div class="verse indent0">Prendem sentidos convidando ao furto;</div>
- <div class="verse indent0">Ri-se entre as mais a alegre cerejeira,</div>
- <div class="verse indent0">Que ainda que no gôsto a muitas cede,</div>
- <div class="verse indent0">Mais que todas seduz co’as vivas bagas;</div>
- <div class="verse indent0">A ginjeira com ella aposta encantos,</div>
- <div class="verse indent0">Mas apenas gostada, a palma he sua;</div>
- <div class="verse indent0">Iguaes a um coração em côr, em fórma</div>
- <div class="verse indent0">Os suaves morangos ja maduros,</div>
- <div class="verse indent0">Contentes da humildade, estão dormindo</div>
- <div class="verse indent0">No fresco seio da materna planta:</div>
- <div class="verse indent0">D’ali, se vem um zefiro acorda-los,</div>
- <div class="verse indent0">Olhão em roda as pampinosas vinhas;</div>
- <div class="verse indent0">E vendo como os pequeninos cachos,</div>
- <div class="verse indent0">Que a fronte cingem do celeste Bromio,</div>
- <div class="verse indent0">E um dia gratos brilharáõ nas mezas</div>
- <div class="verse indent0">Mudados no licor, que gera os risos,</div>
- <div class="verse indent0">Do nativo terreno apenas se erguem,</div>
- <div class="verse indent0">Zombando riem da vaidosa audacia,</div>
- <div class="verse indent0">Com que somem no ceo pomposo cume</div>
- <div class="verse indent0">Árvores tantas menos uteis que elles.</div>
- <div class="verse indent0">Por toda a parte as desveladas hortas</div>
- <div class="verse indent0">C’o verde alegre das crescidas plantas</div>
- <div class="verse indent0">O suor do colono estão pagando;</div>
- <div class="verse indent0">Seu terreno sulcado está coberto</div>
- <div class="verse indent0">De immensas produções, que vão nas mesas</div>
- <div class="verse indent0">Ser preciso sustento, ou grato mimo,</div>
- <div class="verse indent0">E ora entrar na choupana, ora nos Paços.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Em teus dias, ó Maio, as vélas sólta</div><span class="pagenum"><a id="Page_217"></a>[217]</span>
- <div class="verse indent0">Sem medo o nauta pelo vasto oceano,</div>
- <div class="verse indent0">E olhando puro o ceo, de leite as ondas,</div>
- <div class="verse indent0">A cujas furias escapou nadando,</div>
- <div class="verse indent0">Sobre a pôpa da náo regendo o leme,</div>
- <div class="verse indent0">Pensa na esposa, nos filhinhos pensa;</div>
- <div class="verse indent0">Prometteu-lhes voltar; nem ja receia,</div>
- <div class="verse indent0">Maio, fiado em ti, ser-lhes perjuro:</div>
- <div class="verse indent0">Sobre a cana do leme encosta os braços,</div>
- <div class="verse indent0">E ou sólta em grande voz grosseiros versos,</div>
- <div class="verse indent0">Ou costumada musica assobia</div>
- <div class="verse indent0">Olhando a estrada de alvejante espuma,</div>
- <div class="verse indent0">Que d’um e d’outro lado á prôa foge.</div>
- <div class="verse indent0">Brinca nas aguas, e ou se esconde, ou salta</div>
- <div class="verse indent0">De vagos peixes prateada turba;</div>
- <div class="verse indent0">Na verde superficie as Ninfas danção,</div>
- <div class="verse indent0">Da tarda noite nas caladas horas,</div>
- <div class="verse indent0">Das estrellas á doce claridade.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Mas eu quero soltar mais altos vôos,</div>
- <div class="verse indent0">Trazer ao mundo incognitas verdades.</div>
- <div class="verse indent0">Em teus dias, ó Maio, os Páfios bosques</div>
- <div class="verse indent0">Vírão nascer os trêfegos Amores!</div>
- <div class="verse indent0">N’um valle opaco, onde buscando o fresco</div>
- <div class="verse indent0">Costumavas dormir entre mil flores,</div>
- <div class="verse indent0">La teve a Deoza o seu fecundo parto.</div>
- <div class="verse indent0">Apenas sobre a attonita verdura</div>
- <div class="verse indent0">Cípria depunha um pequenino alado,</div>
- <div class="verse indent0">Logo o via nos ceos voar, sumir-se:</div>
- <div class="verse indent0">Tal dos Amores o soberbo genio!</div>
- <div class="verse indent0">Quando cançados de brincar nos ares,</div>
- <div class="verse indent0">Um passatempo á terna Mãi pedião,</div>
- <div class="verse indent0">Tu lhes foste ensinar pelas florestas</div>
- <div class="verse indent0">A formar arcos de flexiveis ramos,</div><span class="pagenum"><a id="Page_218"></a>[218]</span>
- <div class="verse indent0">E despedir, sem nunca errar, seus golpes.</div>
- <div class="verse indent0">Tu lhes mostraste os rezinosos troncos,</div>
- <div class="verse indent0">De que havião formar brilhantes fachos.</div>
- <div class="verse indent0">Tu mesmo entre elles companheiro e mestre,</div>
- <div class="verse indent0">Pelos campos as flores procuravas,</div>
- <div class="verse indent0">Com que doces prizões tecer devião.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Tudo em teus dias no universo adora;</div>
- <div class="verse indent0">O sexo, a idade, as condições não livrão.</div>
- <div class="verse indent0">Entre o rebanho, que amoroso bala,</div>
- <div class="verse indent0">Amoroso pastor canta ou suspira;</div>
- <div class="verse indent0">Ternas gorgêão no arvoredo as aves;</div>
- <div class="verse indent0">Ragem ardendo de dezejo as feras;</div>
- <div class="verse indent0">Suspiros ouço ás arvores, e aos ventos;</div>
- <div class="verse indent0">Abrem o seio as virgemzinhas flores,</div>
- <div class="verse indent0">E Venus as fecunda, e mãis se tornão.</div>
- <div class="verse indent0">Em cada gruta, em cada bosque ás Ninfas</div>
- <div class="verse indent0">Uma emboscada os Sátiros aprestão.</div>
- <div class="verse indent0">Em bellezas mortaes embevecido,</div>
- <div class="verse indent0">Canta em rustica voz novos amores</div>
- <div class="verse indent0">C’roado de pinheiro o Deos da Arcadia,</div>
- <div class="verse indent0">E ante a Ninfa gentil mudada em canas</div>
- <div class="verse indent0">Pelas canas da flauta os sons varía</div>
- <div class="verse indent0">Com ar alegre, que perjuro o torna.</div>
- <div class="verse indent0">Sensivel para o Sol se volta Clície;</div>
- <div class="verse indent0">O Sol na terra outras bellezas busca,</div>
- <div class="verse indent0">E outras acha, que o peito lhe cativão,</div>
- <div class="verse indent0">E fazem que mais tarde a Thetis desça.</div>
- <div class="verse indent0">Entre os astros as Pléiades luzentes</div>
- <div class="verse indent0">Com saudade seus thalamos recordão:</div>
- <div class="verse indent0">Junto d’ellas o Touro inda parece</div>
- <div class="verse indent0">Mugir lembrado da formosa Europa.</div>
- <div class="verse indent0">Mais placida refulge a Cípria estrella;</div><span class="pagenum"><a id="Page_219"></a>[219]</span>
- <div class="verse indent0">Dissereis que saudosa indaga os sitios,</div>
- <div class="verse indent0">Onde comtigo, venturoso Adonis,</div>
- <div class="verse indent0">Passava as noites do formoso Maio:</div>
- <div class="verse indent0">E quando foge, a Aurora se envergonha,</div>
- <div class="verse indent0">E cora por voltar tão cedo ao mundo;</div>
- <div class="verse indent0">Pois quem ha que não saiba os seus segredos?</div>
- <div class="verse indent0">Quem de Céfalo a história não repete?</div>
- <div class="verse indent0">Em cada tronco um dísticho de amores,</div>
- <div class="verse indent0">Ou dois nomes se lem, como enlaçados.</div>
- <div class="verse indent0">Uma sombra, uma só não ha nos campos,</div>
- <div class="verse indent0">Onde Amor não recorde, ou não prepare,</div>
- <div class="verse indent0">Ou não veja presente uma vitoria.</div>
- <div class="verse indent0">Foi, Maio, foi teu mez que ao Rei das sombras</div>
- <div class="verse indent0">Fez que deixasse o sempiterno cáhos,</div>
- <div class="verse indent0">Para roubar a encantadora esquiva,</div>
- <div class="verse indent0">Do flóreo campo de Enna ornato, e Deoza.</div>
- <div class="verse indent0">Foi, Maio, foi teu mez que ouviu primeiro</div>
- <div class="verse indent0">Diana a suspirar, arrepender-se</div>
- <div class="verse indent0">De ser das virgens tutelar Deidade.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Graças ao teu poder, e ao teu influxo!</div>
- <div class="verse indent0">És tu que a rir convidas gracioso</div>
- <div class="verse indent0">Minerva um pouco a abandonar seus livros<a id="FNanchor_13" href="#Footnote_13" class="fnanchor">[13]</a>.</div>
- <div class="verse indent0">Quem póde resistir-te? emfim te cede,</div>
- <div class="verse indent0">Toma-te pela mão, para que a leves</div>
- <div class="verse indent0">A divagar em teus vistosos campos;</div>
- <div class="verse indent0">O ar de meditação troca em agrados,</div>
- <div class="verse indent0">E vê contente abandonar-lhe a côrte</div><span class="pagenum"><a id="Page_220"></a>[220]</span>
- <div class="verse indent0">De seus alunos juvenil caterva,</div>
- <div class="verse indent0">Que alvoraçada aos patrios lares vôa.</div>
- <div class="verse indent0">Sim, Maio, eu voarei aos patrios lares!</div>
- <div class="verse indent0">Mas cuidas que jamais distancia ou tempo</div>
- <div class="verse indent0">D’este dia a memoria hão de apagar-me?</div>
- <div class="verse indent0">Não: onde quer que os fados me conduzão</div>
- <div class="verse indent0">Sempre te hei de cantar, sempre c’roado</div>
- <div class="verse indent0">De teus altares me verás ministro:</div>
- <div class="verse indent0">Mas d’esta sociedade, e d’estes brincos,</div>
- <div class="verse indent0">Em quanto a noite se adornar de estrellas,</div>
- <div class="verse indent0">Nunca a lembrança volverei sem mágoa.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">De generoso vinho enchei-me o copo,</div>
- <div class="verse indent0">Que de mírtea grinalda ornado quero.</div>
- <div class="verse indent0">Imitai-me tambem. Por este, ó Maio,</div>
- <div class="verse indent0">Suavissimo licor, pai da alegria,</div>
- <div class="verse indent0">Por este, digo, cuja taça empunho,</div>
- <div class="verse indent0">Juro ante o ceo, de teu altar em frente,</div>
- <div class="verse indent0">Que um anno só não deixará meu estro</div>
- <div class="verse indent0">De exaltar tua glória, e a minha amada,</div>
- <div class="verse indent0">A Deoza tua mãi, a Primavera.</div>
- <div class="verse indent0">Reformai-me outra vez a funda taça.</div>
- <div class="verse indent0">Em honra a vós, formosas moradoras</div>
- <div class="verse indent0">D’este ameno lugar, esta se esgote.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Aguardai, cabe agora o sacrificio;</div>
- <div class="verse indent0">Vou-me a buscar a vítima, que a trouxe</div>
- <div class="verse indent0">Occulta e prêza do batel na pôpa.</div>
- <div class="verse indent0">Eis-me, abri-me caminho! eu volto ás aras:</div>
- <div class="verse indent0">Para a santa ablução trazei-me um vaso.</div>
- <div class="verse indent0">Silencio! fallo ao Deos!—“Sejão-te acceitos</div>
- <div class="verse indent0">A vida, e leve espirito do prezo</div>
- <div class="verse indent0">Que vem n’esta gaiola, o qual eu vate</div><span class="pagenum"><a id="Page_221"></a>[221]</span>
- <div class="verse indent0">Por todos nós agora te dedico,</div>
- <div class="verse indent0">E dedicado entrego ás livres Parcas.</div>
- <div class="verse indent0">Digna he de ti formoso ave formosa</div>
- <div class="verse indent0">Como esta; pintasilgo ativo em canto,</div>
- <div class="verse indent0">Garrido em côres, no brincar esperto,</div>
- <div class="verse indent0">Mestre em tirar do cristalino poço</div>
- <div class="verse indent0">Com o balde de avelã sua bebida:</div>
- <div class="verse indent0">Outro melhor nunca girou nos bosques.</div>
- <div class="verse indent0">D’esta estação n’um dos primeiros dias,</div>
- <div class="verse indent0">Segundo o meu costume antes da aurora</div>
- <div class="verse indent0">Saí a espairecer nos campos verdes,</div>
- <div class="verse indent0">Ouvir das aves os primeiros cantos,</div>
- <div class="verse indent0">E aquecer-me sentado sobre a relva</div>
- <div class="verse indent0">Ao primeiro calor do sol nascente.</div>
- <div class="verse indent0">Banhei o rôsto n’um remanso puro,</div>
- <div class="verse indent0">Colhi as flores inda ha pouco abertas;</div>
- <div class="verse indent0">E co’a mente serena, e possuido</div>
- <div class="verse indent0">Do amor do campo, e dos campestres gostos,</div>
- <div class="verse indent0">Voltei de novo ao lar. Junto á janella</div>
- <div class="verse indent0">Por onde largo sol ja vinha entrando,</div>
- <div class="verse indent0">Fui sentar-me a pascer em vãs delicias.</div>
- <div class="verse indent0">Eu sonhava acordado! ah nos meus sonhos</div>
- <div class="verse indent0">Não via mais que bosques e pastores,</div>
- <div class="verse indent0">Rebanhos, fontes, rusticas choupanas!</div>
- <div class="verse indent0">Dono me cria d’um torrão pequeno</div>
- <div class="verse indent0">Mas pingue, de uma choça pequenina</div>
- <div class="verse indent0">Mas alva, entre nogueiras, rodeada</div>
- <div class="verse indent0">De alvos cordeiros nédeos e alvas pombas.</div>
- <div class="verse indent0">Eis que afoitando um vôo, esta avezinha</div>
- <div class="verse indent0">Me entra por casa; ao seu gorgeio acórdo,</div>
- <div class="verse indent0">Pois junto a mim pouzava gorgeando.</div>
- <div class="verse indent0">Ouves, Maio, este som, com que parece</div>
- <div class="verse indent0">Approvar adejando o que te conto?</div><span class="pagenum"><a id="Page_222"></a>[222]</span>
- <div class="verse indent0">Ouves? repara bem: tal modulava</div>
- <div class="verse indent0">Quando amoroso a vizitar-me veio.</div>
- <div class="verse indent0">Ganhando confiança a pouco e pouco,</div>
- <div class="verse indent0">Saltou-me para o hombro, e de improvizo</div>
- <div class="verse indent0">Prêzo se vio na minha mão fechado.</div>
- <div class="verse indent0">Quiz debater-se, emvão; piou, carpio-se,</div>
- <div class="verse indent0">O bom coraçãozinho lhe batia.</div>
- <div class="verse indent0">Beijei-o, puz-lhe mesa; o sem ventura</div>
- <div class="verse indent0">Nada acceitava, anciando só fugir-me.</div>
- <div class="verse indent0">“Conheces-me bem mal, pobre innocente,</div>
- <div class="verse indent0">Lhe digo; essa gaiola he teu palacio</div>
- <div class="verse indent0">Não carcere, eu teu servo e não tirano.</div>
- <div class="verse indent0">Servo e palacio um dia de experiencia</div>
- <div class="verse indent0">Talvez tos faça amar: se não, prometto</div>
- <div class="verse indent0">Abrir-te a porta e libertar-te os vôos.”</div>
- <div class="verse indent0">Á janella da minha a estancia d’elle</div>
- <div class="verse indent0">Penduro; os aureos grãos e a clara linfa,</div>
- <div class="verse indent0">Cama fôfa entre ramos florecentes,</div>
- <div class="verse indent0">Vista de campo e céo por toda a parte,</div>
- <div class="verse indent0">Mas livres um de açôr, outro do tiros,</div>
- <div class="verse indent0">Manso, mansinho ás grades o affizerão:</div>
- <div class="verse indent0">Comeo, bebeo, cantou. “Pois que tu cantas,</div>
- <div class="verse indent0">Vatezinho silvestre, em nossa casa,</div>
- <div class="verse indent0">Juntos e amigos ficaremos sempre.</div>
- <div class="verse indent0">Tu serás de meus dias a harmonia,</div>
- <div class="verse indent0">Eu tua providencia; a fonte e a messe</div>
- <div class="verse indent0">Te viráõ procurar, dar-te-hei florestas</div>
- <div class="verse indent0">La dentro em teus penates de cortiça,</div>
- <div class="verse indent0">E porque logres tudo, uma consorte</div>
- <div class="verse indent0">Virgem, bella, fagueira, e cujos filhos</div>
- <div class="verse indent0">Seráõ só teus, e como tu formosos.”</div>
- <div class="verse indent0">Desde então ledo vive, e tanto aos mimos</div>
- <div class="verse indent0">Se acostumou domesticos, e tanto</div><span class="pagenum"><a id="Page_223"></a>[223]</span>
- <div class="verse indent0">A amizade entendeo, que lhe abro a grade</div>
- <div class="verse indent0">Fronteira aos ceos da aurora, aos bosques amplos,</div>
- <div class="verse indent0">E nem bosques nem ceos lhe dizem—foge.—</div>
- <div class="verse indent0">Da liberdade que lhe acena á porta</div>
- <div class="verse indent0">Se despede cantando, e empoleirado,</div>
- <div class="verse indent0">Reizinho em casa sua, a mim e a ella</div>
- <div class="verse indent0">Nos compara, e lhe diz: “Aquelle humano</div>
- <div class="verse indent0">Deos foi que para mim creou taes ocios!”</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">“He esta, ó Maio, a vítima que trago</div>
- <div class="verse indent0">Ao sacrificio teu! perco um amigo!”</div>
- <div class="verse indent0">Com esta mimosissima grinalda</div>
- <div class="verse indent0">De sensitiva lhe circundo o collo,</div>
- <div class="verse indent0">Para sinal da dor que me comprime.</div>
- <div class="verse indent0">Vamos, venha o punhal, que eu limpo o pranto.</div>
- <div class="verse indent0">Ó ceos!... quanto me custa! He sacrilegio</div>
- <div class="verse indent0">Qualquer demora mais: ânimo agora,</div>
- <div class="verse indent0">Saudoso coração!... Venceste, ó Maio!</div>
- <div class="verse indent0">Venceste! consumou-se o sacrificio!</div>
- <div class="verse indent0">O fio prêzo ao pé cortei de um golpe,</div>
- <div class="verse indent0">Lancei-o ao ar; voou; nem ja o ouvimos.</div>
- <div class="verse indent0">Foi rever seus antigos companheiros,</div>
- <div class="verse indent0">Sua amada, seu bosque, e o seu alvergue.</div>
- <div class="verse indent0">Oh! como será doce emtôrno ao sócio</div>
- <div class="verse indent0">Que julgárão perdido, apinhoada</div>
- <div class="verse indent0">Papear parabens a alada tribu!</div>
- <div class="verse indent0">Oh tu lhes dize então do amigo o nome,</div>
- <div class="verse indent0">Que vezes te beijei de madrugada</div>
- <div class="verse indent0">Por me acordares co’o suave canto,</div>
- <div class="verse indent0">Para trocar o leito pelo grato</div>
- <div class="verse indent0">Passeio da manhã, d’onde trazia</div>
- <div class="verse indent0">Pera a tua gaiola hastes de flores.</div>
- <div class="verse indent0">Ouvirá leda a esposa a leda historia,</div><span class="pagenum"><a id="Page_224"></a>[224]</span>
- <div class="verse indent0">E a contará depois aos tenros filhos.</div>
- <div class="verse indent0">Talvez que em meu passeio inda algum dia,</div>
- <div class="verse indent0">A festejar-me, emtôrno a mim se junte</div>
- <div class="verse indent0">Chêa de gratidão toda a familia,</div>
- <div class="verse indent0">Tu meu amigo, a tua esposa, e prole.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Dispersai-vos, bebei, cantai, amigos,</div>
- <div class="verse indent0">Ride, e dançai, porque invejoso o tempo,</div>
- <div class="verse indent0">Co’as cãs na fronte, e o coração gelado,</div>
- <div class="verse indent0">As horas do prazer furta aos mancebos.</div>
- <div class="verse indent0">Mas ai de nós, que o perfido voando</div>
- <div class="verse indent0">Ja nos fugio co’a encantadora tarde!</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Desçamos ao batel: adeos ó Lapa,</div>
- <div class="verse indent0">Adeos, fica-te em paz; e cedo espera</div>
- <div class="verse indent0">Ver de novo juntar-se á sombra tua</div>
- <div class="verse indent0">Da Natureza os candidos Amigos.</div>
- <div class="verse indent0">Deixai as varas, gracejemos antes,</div>
- <div class="verse indent0">Não cumpre trabalhar, para fugirmos</div>
- <div class="verse indent0">De um bosque sacro a Maio, e sacro ás Musas.</div>
- </div>
-</div>
-</div>
-
-<p class="center">FIM DO CANTO PRIMEIRO.</p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_225"></a>[225]</span></p>
-
-<h3 class="nobreak" id="MAIO_CANTO_II"><span class="smcap">A<br />
-Festa de Maio.</span></h3>
-
-<h4><span class="smcap">Poemetto</span><br />
-CANTO II.</h4>
-
-</div>
-
-<div class="poetry-container">
-<div class="poetry">
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">D’essa garrafa de cristal doirado</div>
- <div class="verse indent0">Duas taças me enchei. Venha a primeira:</div>
- <div class="verse indent0">Esta se esgote da amizade em honra.</div>
- <div class="verse indent0">Ó divino licor! se o puro nectar,</div>
- <div class="verse indent0">Que Hebes formosa a Jove ministrava,</div>
- <div class="verse indent0">Comtigo competir podesse ao menos,</div>
- <div class="verse indent0">Jove lhe perdoára o seu descuido,</div>
- <div class="verse indent0">Nem dos bosques Ideos arrebatado</div>
- <div class="verse indent0">Ganimedes gentil voára aos Numes.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Dai-me, dai-me a segunda. Em honra agora</div>
- <div class="verse indent0">Do celeste prazer, que nos encende,</div>
- <div class="verse indent0">Este liquido fogo ao peito envio.</div>
- <div class="verse indent0">Graças ás mãos, que á terra afortunada</div>
- <div class="verse indent0">Derão em hora boa éstas videiras!</div>
- <div class="verse indent0">Graças a Baccho, ao protétor, que tanto</div>
- <div class="verse indent0">Desvelo lhes prestou! Graças á turba</div>
- <div class="verse indent0">De alegres raparigas, que levárão</div><span class="pagenum"><a id="Page_226"></a>[226]</span>
- <div class="verse indent0">Os cachos ao lagar em largos cestos!</div>
- <div class="verse indent0">A vós mancebos rusticos e alegres,</div>
- <div class="verse indent0">Que aos pés calcastes as cheirosas uvas!</div>
- <div class="verse indent0">E a ti, lenho feliz, em cujo seio</div>
- <div class="verse indent0">Os sagrados toneis se transportárão</div>
- <div class="verse indent0">Desde os campos de Chipre aos campos nossos!</div>
- <div class="verse indent0">Do celeste perfume ébrias as Ninfas</div>
- <div class="verse indent0">Te acompanhárão na veloz carreira;</div>
- <div class="verse indent0">Continuamente as velas te enfunárão</div>
- <div class="verse indent0">Com halito propício os frescos ventos,</div>
- <div class="verse indent0">Que lá brincavão pelas ferteis vinhas,</div>
- <div class="verse indent0">Faceis criando, e colorindo as uvas:</div>
- <div class="verse indent0">E o mesmo Baccho (eu não vos minto, amigos:</div>
- <div class="verse indent0">Ah! dai-me a taça, os labios se me seccão);</div>
- <div class="verse indent0">Baccho em pessoa, o vencedor das Indias,</div>
- <div class="verse indent0">Invisivel na pôpa revirava</div>
- <div class="verse indent0">O leme dirétor co’a mão divina.</div>
- <div class="verse indent0">Dai-me á pressa outro copo: outro: mais cinco:</div>
- <div class="verse indent0">Mais um que eu vote a Febo, e nove ás Musas.</div>
- <div class="verse indent0">Sinto o meu coração desfeito em gôsto!</div>
- <div class="verse indent0">Ah! por piedade rodeai-me todos;</div>
- <div class="verse indent0">Quando entre amigos bebo, um só não basta</div>
- <div class="verse indent0">Para me encher atropelados copos.</div>
- <div class="verse indent0">A cada qual de vós uma saude</div>
- <div class="verse indent0">Quero fazer; mais uma a cada Ninfa;</div>
- <div class="verse indent0">Aos Numes todos, que na terra habitão,</div>
- <div class="verse indent0">Aos Numes todos, que dos ceos nos olhão,</div>
- <div class="verse indent0">A todos que no Elisio nos esperão;</div>
- <div class="verse indent0">Farei uma saude a cada vaga,</div>
- <div class="verse indent0">Que desde a Herminea Serra<a id="FNanchor_14" href="#Footnote_14" class="fnanchor">[14]</a> aos mares corre,</div><span class="pagenum"><a id="Page_227"></a>[227]</span>
- <div class="verse indent0">Álua, a cada estrella, a quanto existe.</div>
- <div class="verse indent0">Do mais vivo prazer me volvo em braços!</div>
- <div class="verse indent0">Rio, e respiro magicas delicias!</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Gelos, que em serras coroais as fontes,</div>
- <div class="verse indent0">D’onde as urnas as Náiades inclinão</div>
- <div class="verse indent0">Para mandar-nos de tão longe as aguas,</div>
- <div class="verse indent0">Derretei-vos em subitas correntes:</div>
- <div class="verse indent0">Brami de roda dos Hermineos lagos,</div>
- <div class="verse indent0">Ventos da tempestade; as átras nuvens</div>
- <div class="verse indent0">Reuní, condensai: retumbe ao longe</div>
- <div class="verse indent0">O ronco do trovão pelas florestas,</div>
- <div class="verse indent0">E o monte enorme em seus abismos trema.</div>
- <div class="verse indent0">Todo em chuveiros se desate o polo:</div>
- <div class="verse indent0">E cedo (oh! praza aos ceos!) e cedo o rio</div>
- <div class="verse indent0">Vença o leito, e com impeto revolva</div>
- <div class="verse indent0">Tropel ruidoso de espumosas vagas.</div>
- <div class="verse indent0">Sem poder contrastar-lhe a furia immensa,</div>
- <div class="verse indent0">Perto da margem sem poder ganha-la,</div>
- <div class="verse indent0">No escuro turbilhão de rôjo iremos.</div>
- <div class="verse indent0">Quando a aurora assomar, ja muito longe</div>
- <div class="verse indent0">Nos verá pelo Atlantico engolfados.</div>
- <div class="verse indent0">Do enfeitado batel voltando a prôa</div>
- <div class="verse indent0">Contra as vagas austraes, candidas velas</div>
- <div class="verse indent0">Presentaremos ao ligeiro Boreas.</div>
- <div class="verse indent0">Em dia bonançoso, e mar de rosas</div>
- <div class="verse indent0">Iremos sem temor, chêos de assombro,</div>
- <div class="verse indent0">Gozando entre as equoreas Divindades</div>
- <div class="verse indent0">Scenas de Maio no ceruleo campo.</div>
- <div class="verse indent0">Cedo veremos verdejando e rindo</div>
- <div class="verse indent0">O alto Cabo surgir na extrema ponta</div>
- <div class="verse indent0">Da Lusitana terra: erguendo aos astros</div>
- <div class="verse indent0">A nautica celeuma, alvoraçados.</div><span class="pagenum"><a id="Page_228"></a>[228]</span>
- <div class="verse indent0">Poremos no occidente o vago leme</div>
- <div class="verse indent0">Para afrontarmos as Titóneas plagas.</div>
- <div class="verse indent0">Entre o Barbaro solo, e o solo Hispano</div>
- <div class="verse indent0">Passaremos cantando o Estreito, aonde</div>
- <div class="verse indent0">As Colunas ergueo famoso Alcides.</div>
- <div class="verse indent0">Pelos ventos Hesperios ajudados,</div>
- <div class="verse indent0">Movendo assombro ás cérulas Nereidas,</div>
- <div class="verse indent0">Cortaremos, voando, em curtos dias,</div>
- <div class="verse indent0">Mediterraneo, tua longa estrada.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Nossos astros serão por entre as ondas</div>
- <div class="verse indent0">O astro de Venus luminoso, e claro,</div>
- <div class="verse indent0">Ariadne, a esposa do contente Bromio,</div>
- <div class="verse indent0">E os Tindáreos Irmãos, cuja concordia,</div>
- <div class="verse indent0">Cuja amizade nos será de exemplo.</div>
- <div class="verse indent0">Eolo prenderá com mil cadêas</div>
- <div class="verse indent0">Euro o nosso contrario: as verdes ondas,</div>
- <div class="verse indent0">Ouvindo de Tritão troar o buzio,</div>
- <div class="verse indent0">Sem furia, sem fragor do barco emtôrno,</div>
- <div class="verse indent0">Chêas por cima de alvejante espuma,</div>
- <div class="verse indent0">Saltaráõ quaes no prado os cordeirinhos.</div>
- <div class="verse indent0">Que, meus amigos! receais procellas?</div>
- <div class="verse indent0">Procellas contra nós! Assáz os Numes</div>
- <div class="verse indent0">Nas almas sabem ler; nós demandâmos</div>
- <div class="verse indent0">Chipre, votada aos candidos prazeres:</div>
- <div class="verse indent0">Do vinho a Deoza, a Deoza dos amores,</div>
- <div class="verse indent0">Os Numes da amizade, eis nossos astros;</div>
- <div class="verse indent0">Que havemos de temer? Não, não me importa</div>
- <div class="verse indent0">Que o ar, que o pégo em furias se revolva:</div>
- <div class="verse indent0">Por entre a serração, por entre a morte,</div>
- <div class="verse indent0">Voaremos a rir de Chipre aos campos,</div>
- <div class="verse indent0">Quaes na barca da Estige um dia iremos</div>
- <div class="verse indent0">Dos lagos avernaes ao grato Elisio.</div><span class="pagenum"><a id="Page_229"></a>[229]</span>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Não ha que recear. Dai-me outro copo;</div>
- <div class="verse indent0">Outro bebei, e ouvi-me. Amigos fados</div>
- <div class="verse indent0">Da Ilha encantadora ao melhor sítio</div>
- <div class="verse indent0">Nos hão de conduzir: ja cuido vê-la!</div>
- <div class="verse indent0">Um cáes em meia lua, um cáes não grande,</div>
- <div class="verse indent0">Ja nos hospeda na conchosa arêa:</div>
- <div class="verse indent0">Unidas penhas de elegante aspéto</div>
- <div class="verse indent0">O anfitheatro deleitoso fórmão:</div>
- <div class="verse indent0">Todas se vestem de verdura, e flores,</div>
- <div class="verse indent0">Todas tem fria gruta, ou doce fonte.</div>
- <div class="verse indent0">D’estas fontes, que emtôrno enchem os ares</div>
- <div class="verse indent0">De um desigual, suavissimo murmúrio,</div>
- <div class="verse indent0">Umas descem chovendo entre os penedos,</div>
- <div class="verse indent0">Outras em larga enchente se arremeção,</div>
- <div class="verse indent0">Sem o musgo occultar, de rocha em rocha,</div>
- <div class="verse indent0">Té que ás bacias espumosas saltão.</div>
- <div class="verse indent0">Aqui um mirto, alem uma roseira</div>
- <div class="verse indent0">Coroa a entrada das pequenas grutas,</div>
- <div class="verse indent0">Ou lhes fórma seu tôldo, ou quasi as cobre.</div>
- <div class="verse indent0">Por toda a parte melindrosos ninhos</div>
- <div class="verse indent0">Se ouvem piar; por toda a parte adejão</div>
- <div class="verse indent0">Co’o sustento no bico as ternas aves.</div>
- <div class="verse indent0">D’esta folhagem se levanta o melro,</div>
- <div class="verse indent0">E vai pouzar na proxima folhagem:</div>
- <div class="verse indent0">Queixa-se n’uma gruta Filomela</div>
- <div class="verse indent0">Quando Progne sentida eleva o canto.</div>
- <div class="verse indent0">Prezos aos troncos Zéfiros murmurão;</div>
- <div class="verse indent0">Auras, dos valles proximos correndo,</div>
- <div class="verse indent0">Das invisiveis azas nos derramão</div>
- <div class="verse indent0">Almos efluvios de cheirosas flores.</div>
- <div class="verse indent0">Vede assentos, que a mão da Natureza</div>
- <div class="verse indent0">Nos rochedos abrio, que a mão do Tempo</div>
- <div class="verse indent0">Cobrio, amaciou com verde estofo;</div><span class="pagenum"><a id="Page_230"></a>[230]</span>
- <div class="verse indent0">Aqui se tem as Ninfas assentado</div>
- <div class="verse indent0">Pelas tardes de Maio muitas vezes,</div>
- <div class="verse indent0">Para gozar os brincos dos Amores,</div>
- <div class="verse indent0">Que ora lutão na arêa, ora apostando,</div>
- <div class="verse indent0">Se arrojão de mergulho aos verdes mares,</div>
- <div class="verse indent0">E apparecem depois nadando e rindo.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Vamos: por esta parte o cáes nos deixa</div>
- <div class="verse indent0">Na Ilha penetrar: commoda entrada</div>
- <div class="verse indent0">Nos off’rece este portico de murtas.</div>
- <div class="verse indent0">Deozes! que vamos vêr! Salve cem vezes,</div>
- <div class="verse indent0">Bosque sombrio, magestoso, immenso!</div>
- <div class="verse indent0">Do desmedido Atlante a espadoa enorme</div>
- <div class="verse indent0">Não, não he quem sustem o eterno Olimpo,</div>
- <div class="verse indent0">És tu, sagrado bosque; a vista humana</div>
- <div class="verse indent0">Chegar não póde a teus soberbos cumes!</div>
- <div class="verse indent0">Serras, diluvios de ondeantes folhas</div>
- <div class="verse indent0">Sôbre colunas mil, que o raio assustão,</div>
- <div class="verse indent0">Se agitão sôbre nós. Longe, ó profanos!</div>
- <div class="verse indent0">Vates, erremos pelas frescas trevas!</div>
- <div class="verse indent0">Alem, se não me engano, o sol penetra.</div>
- <div class="verse indent0">Corramos. Oh prazer! oh maravilha!</div>
- <div class="verse indent0">Eis um retiro aos Numes consagrado,</div>
- <div class="verse indent0">Incognito aos mortaes, de encantos fertil!</div>
- <div class="verse indent0">Tu que vizitas cada dia o mundo,</div>
- <div class="verse indent0">Ó Sol, ¿que outro lugar no mundo encontras,</div>
- <div class="verse indent0">Onde com mais prazer teus raios lances?</div>
- <div class="verse indent0">Vede este prado, cujo fundo escondem</div>
- <div class="verse indent0">De Hibleas flores animadas nuvens:</div>
- <div class="verse indent0">Olhai sem guardador pingues rebanhos</div>
- <div class="verse indent0">Livres saltando nos outeiros verdes:</div>
- <div class="verse indent0">Vêde encostas de pampanos cobertas;</div>
- <div class="verse indent0">Fontes á sombra de arvores sagradas;</div><span class="pagenum"><a id="Page_231"></a>[231]</span>
- <div class="verse indent0">Jardins fechados de cheirosos muros</div>
- <div class="verse indent0">De altos lilazes, de azareiro e cedro;</div>
- <div class="verse indent0">Tanques no meio, onde em repuxo aos ares</div>
- <div class="verse indent0">Voão do bico de marmoreos cisnes</div>
- <div class="verse indent0">Argenteas linfas, que no ar se cruzão,</div>
- <div class="verse indent0">Mil arcos, mil abobadas formando,</div>
- <div class="verse indent0">E em fresca chuva vem mover os lagos!</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Que ditoso paiz! não sei que sinto</div>
- <div class="verse indent0">No meio agora d’estes sons campestres,</div>
- <div class="verse indent0">Respirando balsamicos vapores,</div>
- <div class="verse indent0">Em sacra habitação, entre os amigos,</div>
- <div class="verse indent0">Longe dos homens, da innocencia ao lado!</div>
- <div class="verse indent0">Abraçemo-nos. Sim: desde hoje unidos,</div>
- <div class="verse indent0">Seremos d’este sítio os habitantes.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">D’esse ribeiro na fecunda varzea,</div>
- <div class="verse indent0">Ali, onde hospedagem graciosa</div>
- <div class="verse indent0">Presta ás aves do ceo pequena selva;</div>
- <div class="verse indent0">Ali, onde estendidos pela grama</div>
- <div class="verse indent0">Junto ás novilhas candidas, repouzão,</div>
- <div class="verse indent0">Co’a cornígera fronte entre as papoulas,</div>
- <div class="verse indent0">Mansos touros, que o jugo inda não vírão,</div>
- <div class="verse indent0">Ali se vos apraz, se apraz aos Deozes,</div>
- <div class="verse indent0">Vamos pois construir nossas moradas.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Do Genio do lugar primeiro em honra</div>
- <div class="verse indent0">Cumpre fazer as libações, e os votos;</div>
- <div class="verse indent0">Venerar, depois d’isto, a turba agreste</div>
- <div class="verse indent0">Das Ninfas do paiz; e culto, e nome</div>
- <div class="verse indent0">Dar ás fontes, aos campos, e ás collinas</div>
- <div class="verse indent0">D’estas gentis, incognitas paragens.</div><span class="pagenum"><a id="Page_232"></a>[232]</span>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Vede faias aqui, pinheiros, chôpos;</div>
- <div class="verse indent0">Abatei-os, tecei nossas cabanas.</div>
- <div class="verse indent0">Formemos uma aldêa: a cada alvergue</div>
- <div class="verse indent0">Juntemos um jardim, que ao fundo banhem</div>
- <div class="verse indent0">Do claro rio as fugitivas aguas.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Não falte o culto ás sacras Divindades.</div>
- <div class="verse indent0">Á obra, á obra! o templo se levante</div>
- <div class="verse indent0">Nobre, proprio de nós, digno dos Deozes,</div>
- <div class="verse indent0">Com paredes de cedro á luz vedadas.</div>
- <div class="verse indent0">Deixamos á vaidade altas colunas,</div>
- <div class="verse indent0">Cúpulas d’oiro, abobadas suspensas</div>
- <div class="verse indent0">Em meia altura da extensão dos ares;</div>
- <div class="verse indent0">De trémula parreira um této basta.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Ponde no tôpo o altar da Natureza,</div>
- <div class="verse indent0">De nossa adoração primeiro objéto:</div>
- <div class="verse indent0">Firmada sôbre um globo, como o nosso,</div>
- <div class="verse indent0">Uma estatua gentil figure a Deoza,</div>
- <div class="verse indent0">Virgem, bella, risonha, affavel, nua,</div>
- <div class="verse indent0">Guardando-lhe o pudor sendal ligeiro:</div>
- <div class="verse indent0">Colar de flores lhe atavie o collo,</div>
- <div class="verse indent0">C’roa de frutos lhe circunde a fronte,</div>
- <div class="verse indent0">Diversos ramos as madeixas ornem:</div>
- <div class="verse indent0">Tenha n’uma das mãos celeste chama;</div>
- <div class="verse indent0">Penda da outra, e por seguro fio,</div>
- <div class="verse indent0">O Genio do prazer, que as azas bata</div>
- <div class="verse indent0">Para voar-lhe ao cobiçado seio:</div>
- <div class="verse indent0">Cerquem-lhe o pedestal em turba immensa</div>
- <div class="verse indent0">Homens, feras, volateis, nadadores,</div>
- <div class="verse indent0">E quanto emfim por seu influxo existe:</div>
- <div class="verse indent0">Vejão-se á volta os poderosos Genios,</div>
- <div class="verse indent0">Que a seu sabor os elementos movem,</div><span class="pagenum"><a id="Page_233"></a>[233]</span>
- <div class="verse indent0">Salamandras, Ondins, Silfos, e Gnomos.</div>
- <div class="verse indent0">D’esta ara ao lado se verão pendentes</div>
- <div class="verse indent0">As flautas nossas, pois lhe são votadas.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Sôbre outro altar a Deoza de Cithéra,</div>
- <div class="verse indent0">Não de marfim, nem marmore talhada,</div>
- <div class="verse indent0">Mas de alva cera das abelhas nossas,</div>
- <div class="verse indent0">Feita por nossas mãos encante a vista.</div>
- <div class="verse indent0">Quero-a nua de todo: ao seio amime</div>
- <div class="verse indent0">Entre os braços de neve o filho alado;</div>
- <div class="verse indent0">E co’a ternura languida nos olhos,</div>
- <div class="verse indent0">Como para o beijar lhe estenda os labios,</div>
- <div class="verse indent0">Curta tornando, como a d’elle, a boca.</div>
- <div class="verse indent0">As trez Irmãs de Amor pequenas, bellas,</div>
- <div class="verse indent0">Como invejando do menino a sorte,</div>
- <div class="verse indent0">Forcejem por trepar da Mãi ao collo,</div>
- <div class="verse indent0">Emquanto o Irmão travêsso a rir pretende</div>
- <div class="verse indent0">Co’as delicadas mãos lança-las fôra.</div>
- <div class="verse indent0">Duas turbas de Amores apinhados</div>
- <div class="verse indent0">Se ergão d’aqui d’ali: tenhão por terra</div>
- <div class="verse indent0">Os arcos, e os farpões; na dextra empunhem</div>
- <div class="verse indent0">Fachos, que hão de brilhar nos festos dias,</div>
- <div class="verse indent0">Por nossas mãos com sacro lume accesos.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Defronte d’esta, na parede opposta,</div>
- <div class="verse indent0">Outro brilhe votado á Primavera.</div>
- <div class="verse indent0">Ali se mostre a Deoza, cuja veste</div>
- <div class="verse indent0">Um manto seja de tecidas flores;</div>
- <div class="verse indent0">De flores o toucado; a planta nua</div>
- <div class="verse indent0">Sôbre floreo torráõ firmada alveje:</div>
- <div class="verse indent0">Durma a seus pés o aurígero carneiro;</div>
- <div class="verse indent0">O Maio, filho seu, tenha em seus braços,</div>
- <div class="verse indent0">Igual em perfeições á Mãi formosa,</div><span class="pagenum"><a id="Page_234"></a>[234]</span>
- <div class="verse indent0">Alado como os Zéfiros e Amores,</div>
- <div class="verse indent0">Que os Amores, que os Zéfiros mais lindo.</div>
- <div class="verse indent0">Tenha na dextra um ramo florecente,</div>
- <div class="verse indent0">Onde pouzem pintadas borboletas:</div>
- <div class="verse indent0">No esquerdo braço um cabazinho grave,</div>
- <div class="verse indent0">C’os doces frutos, que em seu mez se colhem,</div>
- <div class="verse indent0">E a rir pareça á Deoza appresenta-los;</div>
- <div class="verse indent0">Mas a Deoza, estendendo a mão de neve,</div>
- <div class="verse indent0">Como que busque o grávido cestinho</div>
- <div class="verse indent0">Tirar de sôbre o seio, onde elle o punha.</div>
- <div class="verse indent0">De Favonios um bando se reparta</div>
- <div class="verse indent0">Aos dois lados do altar, em cujas dextras</div>
- <div class="verse indent0">Ponhamos bem fingidas cornucopias</div>
- <div class="verse indent0">Chêas d’agua, onde flores se conservam.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Atrio cercado de sombrios louros</div>
- <div class="verse indent0">Haja na frente do sagrado alcaçar.</div>
- <div class="verse indent0">Por trez frondosos porticos se passe</div>
- <div class="verse indent0">Do templo ao atrio: emtôrno d’elle avultem,</div>
- <div class="verse indent0">Dos loureiros á sombra, as Deozas nove,</div>
- <div class="verse indent0">E o Nume protétor do equorea Delos.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Um de nós cada mez será por sorte</div>
- <div class="verse indent0">Da sacra estancia o sacerdote, e o guarda.</div>
- <div class="verse indent0">Ficaráõ a seu cargo os festos dias,</div>
- <div class="verse indent0">Dos altares o culto, os hinos sacros,</div>
- <div class="verse indent0">E a protéção dos ninhos melindrosos,</div>
- <div class="verse indent0">Que as aves formaráõ do této em volta;</div>
- <div class="verse indent0">Para que nunca violados sejão,</div>
- <div class="verse indent0">Santa hospitalidade, os teus direitos.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Da nossa aldêa ás proximas campinas</div>
- <div class="verse indent0">Daremos de cultura uteis desvelos.</div><span class="pagenum"><a id="Page_235"></a>[235]</span>
- <div class="verse indent0">Vertumno, e Ceres, e Pomona, e Flora</div>
- <div class="verse indent0">Hão de favonear trabalhos nossos,</div>
- <div class="verse indent0">E em sustento pagar nossas fadigas.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Ricas hortas, dulcissimos pomares,</div>
- <div class="verse indent0">Doiradas messes, pampinosas vinhas</div>
- <div class="verse indent0">O celleiro commum nos terão chêo.</div>
- <div class="verse indent0">Da ociosidade vã não será filha</div>
- <div class="verse indent0">Nossa innocente e solida riqueza.</div>
- <div class="verse indent0">Algum de nós ao trato dos rebanhos</div>
- <div class="verse indent0">Seus cuidados dará: que importa o mundo?</div>
- <div class="verse indent0">Vida de nossos pais! vida dos campos!</div>
- <div class="verse indent0">Quem te nomeia humilde, e vergonhosa?</div>
- <div class="verse indent0">Vive o pastor no seio da innocencia;</div>
- <div class="verse indent0">No meio da pobreza he rico, e folga.</div>
- <div class="verse indent0">Emquanto os grandes entre escravos gemem,</div>
- <div class="verse indent0">Canta o pastor entre o rebanho, ou dorme,</div>
- <div class="verse indent0">Fiado em seu amigo, em seu rafeiro:</div>
- <div class="verse indent0">Nem ao menos que ha leis sabe nos campos.</div>
- <div class="verse indent0">São seus dias cadêas de prazeres,</div>
- <div class="verse indent0">E seus prazeres innocencia todos.</div>
- <div class="verse indent0">Não cala seu amor, canta-o nos bosques</div>
- <div class="verse indent0">Em alta voz, ou goza-lhe as delicias.</div>
- <div class="verse indent0">Ao transmontar do sol volta a seus lares;</div>
- <div class="verse indent0">Conta á porta o rebanho, e junto ao fogo</div>
- <div class="verse indent0">Vai co’a cêa frugal entre os amigos</div>
- <div class="verse indent0">Restaurar o vigor para o trabalho.</div>
- <div class="verse indent0">Repouza em paz sobre o macio feno</div>
- <div class="verse indent0">Emquanto alguma luz no ceo não raia:</div>
- <div class="verse indent0">Não ha cuidado, que lhe rompa o sono;</div>
- <div class="verse indent0">Se acaso sonha, os sonhos não lhe pezão,</div>
- <div class="verse indent0">Pintão passados bens, ou bens futuros,</div>
- <div class="verse indent0">E volta ao mesmo quando nasce a aurora.</div><span class="pagenum"><a id="Page_236"></a>[236]</span>
- <div class="verse indent0">Vergonhosa ésta vida! ó desgraçados,</div>
- <div class="verse indent0">Corai no meio das grandezas vossas:</div>
- <div class="verse indent0">Se o pastor conhecesse o vosso estado,</div>
- <div class="verse indent0">Nem de olhar-vos sequer nem se dignava.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">No regaço feliz da natureza,</div>
- <div class="verse indent0">Ao lado da ventura, os dias nossos</div>
- <div class="verse indent0">Serão a imagem dos doirados dias.</div>
- <div class="verse indent0">Como os primeiros pais da especie humana,</div>
- <div class="verse indent0">Viveremos frugaes entre a abundancia,</div>
- <div class="verse indent0">Ricos sem pompa, sem vaidade sabios,</div>
- <div class="verse indent0">Socegados sem leis, sem armas fortes.</div>
- <div class="verse indent0">Hão de mil vezes os campestres Numes,</div>
- <div class="verse indent0">E o sacro Povo, morador do Olimpo,</div>
- <div class="verse indent0">Compràzer-se de olhar a nossa aldêa.</div>
- <div class="verse indent0">Ao romper da manhã, ser-lhes-ha doce</div>
- <div class="verse indent0">Ver-nos todos sair dos proprios lares</div>
- <div class="verse indent0">Co’a alegria na face: uns diligentes</div>
- <div class="verse indent0">C’os instrumentos rusticos nas dextras,</div>
- <div class="verse indent0">Ou seguindo seus bois, tornar-se aos campos;</div>
- <div class="verse indent0">Outros guiando para os ferteis pastos</div>
- <div class="verse indent0">Longa tropa lanígera balante.</div>
- <div class="verse indent0">Ser-lhes-ha doce o ver como trabalhão</div>
- <div class="verse indent0">Todos no bem commum, sem que se escutem</div>
- <div class="verse indent0">Do <i>meu</i> e <i>teu</i> os nomes perigosos.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Quando o gallo doméstico no aldêa</div>
- <div class="verse indent0">Soltar ao meiodia o canto agodo,</div>
- <div class="verse indent0">Correremos á mesa: unidos todos</div>
- <div class="verse indent0">De um bosque á sombra nos calmosos tempos</div>
- <div class="verse indent0">E junto ao fogo quando reine o frio,</div>
- <div class="verse indent0">Não veremos deante a rica prata</div>
- <div class="verse indent0">Com vivo resplendor cegando os olhos;</div><span class="pagenum"><a id="Page_237"></a>[237]</span>
- <div class="verse indent0">Nem dourados cristaes, nem porcelanas,</div>
- <div class="verse indent0">Cuja louca ambição furiosa arrasta</div>
- <div class="verse indent0">Tantos loucos mortaes, dignos de pranto,</div>
- <div class="verse indent0">D’entre os braços dos seus aos torvos mares,</div>
- <div class="verse indent0">E em fragil pinho, que rodêa a morte,</div>
- <div class="verse indent0">De longinquo paiz os leva aos portos.</div>
- <div class="verse indent0">De facil construção vermelho barro</div>
- <div class="verse indent0">Fará nossa baixella; e cavos troncos</div>
- <div class="verse indent0">Fundos, polidos, de jasmins c’roados,</div>
- <div class="verse indent0">Servir-nos hão de o rúbido falerno.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">De nossas hortas vegetaes gostosos,</div>
- <div class="verse indent0">Os teus dons, ó Pomona, e os teus, ó Ceres,</div>
- <div class="verse indent0">O mel puro e doirado, e o branco leite</div>
- <div class="verse indent0">Bastão assaz da Natureza aos filhos.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">E que? algum de nós contra o que vive</div>
- <div class="verse indent0">Ouzaria vibrar da morte a fouce!</div>
- <div class="verse indent0">O touro soffredor, cuja fereza</div>
- <div class="verse indent0">Para servir-nos se abateo ao jugo,</div>
- <div class="verse indent0">O touro, o nosso amigo, e o nosso escravo,</div>
- <div class="verse indent0">Que sem ter parte alguma em nossos gostos</div>
- <div class="verse indent0">Tomava parte nas fadigas nossas;</div>
- <div class="verse indent0">Que armado pelas mãos da Natureza</div>
- <div class="verse indent0">Podia, se quizesse, oppôr-se aos fracos,</div>
- <div class="verse indent0">Que a paz, que a liberdade ouzão roubar-lhe,</div>
- <div class="verse indent0">Depois de longo, aviltador serviço</div>
- <div class="verse indent0">Deve ... (oh pejo! oh furor! oh sacrilegio!)</div>
- <div class="verse indent0">Caír ás mãos do barbaro assassino,</div>
- <div class="verse indent0">Para quem só viveo! por quem mil vezes</div>
- <div class="verse indent0">Coberto de suor, chêo de espuma,</div>
- <div class="verse indent0">Co’a fronte baixa, sem mugir ao menos,</div>
- <div class="verse indent0">Queimado pelo sol, até soffria</div><span class="pagenum"><a id="Page_238"></a>[238]</span>
- <div class="verse indent0">Duro, ferreo aguilhão se fraquejava!</div>
- <div class="verse indent0">Qual ouzaria ensanguentar a dextra</div>
- <div class="verse indent0">Na mansa ovelha, da innocencia imagem;</div>
- <div class="verse indent0">Que incapaz de offender, nunca rebelde</div>
- <div class="verse indent0">Aos brados do pastor, seu proprio leite</div>
- <div class="verse indent0">Entre seus filhos e elle repartia,</div>
- <div class="verse indent0">E até para cobri-lo as lãs lhe dava!</div>
- <div class="verse indent0">Lindos filhos do ar, ternos cantores,</div>
- <div class="verse indent0">Que innocentes voais pelas florestas,</div>
- <div class="verse indent0">Nos prazeres, no Amor gastando a vida,</div>
- <div class="verse indent0">Filhos do ceo, modelos, que adorâmos,</div>
- <div class="verse indent0">Não temais habitar nos campos nossos.</div>
- <div class="verse indent0">Se o açor, se o falcão por estes sítios</div>
- <div class="verse indent0">Passar alguma vez, vinde, eu vos peço,</div>
- <div class="verse indent0">Vinde-vos esconder em nossos lares,</div>
- <div class="verse indent0">De vossa timidez sacra guarida:</div>
- <div class="verse indent0">Se nos virdes passar nos sitios, onde</div>
- <div class="verse indent0">Entre os ramos, á sombra vos agrada</div>
- <div class="verse indent0">Divertir gorgeando a terna esposa,</div>
- <div class="verse indent0">Que muda, e carinhosa esconde, e aquece</div>
- <div class="verse indent0">Entre as azas seus filhos pipilando,</div>
- <div class="verse indent0">Se nos virdes passar ... oh! por piedade</div>
- <div class="verse indent0">Não fujais, prosegui vossas cantigas;</div>
- <div class="verse indent0">Sois como nós da Natureza filhos;</div>
- <div class="verse indent0">A Mãi commum vos deo a liberdade,</div>
- <div class="verse indent0">Sustenta-vos, bem como nos sustenta:</div>
- <div class="verse indent0">Sois fracos, tanta basta; e nós não somos</div>
- <div class="verse indent0">Nem tiranos, nem perfidos, nem baixos</div>
- <div class="verse indent0">Para abusar da fôrça: he jus terrivel!</div>
- <div class="verse indent0">Se para vos matar compete ao homem,</div>
- <div class="verse indent0">Para o homem matar compete ao tigre.</div>
- <div class="verse indent0">Não: vivei entre nós, como entre amigos:</div>
- <div class="verse indent0">Somos todos irmãos: arcos, e setas,</div><span class="pagenum"><a id="Page_239"></a>[239]</span>
- <div class="verse indent0">Redes, e visco, passatempos torpes,</div>
- <div class="verse indent0">Não usa quem adora a Natureza:</div>
- <div class="verse indent0">Serião entre nós nefandos crimes.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Se um dia á caça algum de nós (os Deozes</div>
- <div class="verse indent0">Affastem para longe o agouro horrendo),</div>
- <div class="verse indent0">Se um dia á caça algum de nós corresse;</div>
- <div class="verse indent0">Coberto de suor, de sede extinto</div>
- <div class="verse indent0">Praza aos ceos que discorra os duros campos;</div>
- <div class="verse indent0">Curve-o das armas o terrivel pezo;</div>
- <div class="verse indent0">Não ache onde empregar da morte as furias;</div>
- <div class="verse indent0">Seus proprios cães os membros lhe lacerem</div>
- <div class="verse indent0">Té que as entranhas vis ao sol descubrão,</div>
- <div class="verse indent0">E rôto arqueje o coração perverso:</div>
- <div class="verse indent0">Semivivo, rugindo, ardendo em raiva,</div>
- <div class="verse indent0">Entre penedos se revolva, e espume,</div>
- <div class="verse indent0">C’os olhos ja sem luz, chêos da morte,</div>
- <div class="verse indent0">Pallido o rosto, ensanguentada a coma;</div>
- <div class="verse indent0">Té que, mugindo em subita voragem,</div>
- <div class="verse indent0">Se rasgue a terra ao detestavel pezo,</div>
- <div class="verse indent0">E ao fundo o arroje dos sulfureos lagos.</div>
- <div class="verse indent0">E se o malvado consummar seu crime,</div>
- <div class="verse indent0">Se as mãos tingir no sangue do innocente,</div>
- <div class="verse indent0">O rio onde correr para banha-las</div>
- <div class="verse indent0">As ondas atropelle, e volte á fonte,</div>
- <div class="verse indent0">Fique attonito o monstro, e o leito sêcco;</div>
- <div class="verse indent0">E quando sôbre o fogo os miseraveis</div>
- <div class="verse indent0">Membros pozer, que o sangue inda gotejão,</div>
- <div class="verse indent0">Que inda tem no tremor de vida um resto,</div>
- <div class="verse indent0">Chêas de horror e de piedade as chamas,</div>
- <div class="verse indent0">Deixando intáto o funebre cadaver,</div>
- <div class="verse indent0">Com medonho estampido abandonando</div>
- <div class="verse indent0">N’um momento seu lar, se ergão aos ares</div><span class="pagenum"><a id="Page_240"></a>[240]</span>
- <div class="verse indent0">Para chover no algoz, torna-lo em cinzas.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Mas vá longe de nós o quadro infame!</div>
- <div class="verse indent0">Somos frugaes, e simplices; e basta</div>
- <div class="verse indent0">Olhar-nos para ver nossa virtude.</div>
- <div class="verse indent0">Sim: que a lavrada seda, o oiro, as telas,</div>
- <div class="verse indent0">E dos insanos cortezãos a pompa</div>
- <div class="verse indent0">Não nos ha de cubrir. No inverno algente,</div>
- <div class="verse indent0">Contra os rigores da estação nublosa</div>
- <div class="verse indent0">Usaremos da lã que nos revista,</div>
- <div class="verse indent0">Sem que do artista a dextra insultadora</div>
- <div class="verse indent0">Lhe desfigure a côr, lhe mude o aspéto:</div>
- <div class="verse indent0">Se no outono reinar do inverno o frio</div>
- <div class="verse indent0">Voltaremos á lã: na primavera</div>
- <div class="verse indent0">Basta o candido linho: emfim no estio,</div>
- <div class="verse indent0">(Deixe-me em paz, ou seus ouvidos serre</div>
- <div class="verse indent0">Quem no corruto coração fomenta</div>
- <div class="verse indent0">De prejuizos vãos caterva impura!)</div>
- <div class="verse indent0">No estio, amigos meus, com vosco fallo,</div>
- <div class="verse indent0">Seremos todos nus: rião-se embora</div>
- <div class="verse indent0">Os perversos, que ao vício costumados,</div>
- <div class="verse indent0">Até na natureza encontrão vício.</div>
- <div class="verse indent0">Sim, andaremos nus; nus se mostrárão</div>
- <div class="verse indent0">Os pais, e as mãis do mundo em tempos d’oiro,</div>
- <div class="verse indent0">Nos vaguêão da America nos bosques</div>
- <div class="verse indent0">Da Natureza não corrutos filhos,</div>
- <div class="verse indent0">Nem os tinge o rubor, a côr do pejo,</div>
- <div class="verse indent0">Que o pejo nasce se a innocencia morre:</div>
- <div class="verse indent0">A Innocencia, a Verdade, as Graças bellas</div>
- <div class="verse indent0">Pintão-se nuas: nuas pelos bosques</div>
- <div class="verse indent0">Errão as Ninfas: d’entre as ondas nua</div>
- <div class="verse indent0">Venus saío de encantos rodeada:</div>
- <div class="verse indent0">Seu Filho, qual nasceo, se mostra ainda:</div><span class="pagenum"><a id="Page_241"></a>[241]</span>
- <div class="verse indent0">E todos nós, dizei, como nascemos?</div>
- <div class="verse indent0">Quando, depois de trabalhosas dores,</div>
- <div class="verse indent0">Nos cingem nossas mãis aos ternos peitos,</div>
- <div class="verse indent0">Tecidas vestes sobre nós encontrão?</div>
- <div class="verse indent0">Não: se o tempo o exigir cubra-se o corpo;</div>
- <div class="verse indent0">Se o tempo o não requer, porque insensatos,</div>
- <div class="verse indent0">Vãos, inuteis incommodos buscâmos?</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Prazeres me pédis, dou-vos prazeres:</div>
- <div class="verse indent0">A musica suave, a dança, os versos,</div>
- <div class="verse indent0">Dos bons ditos o sal, carreiras, lutas,</div>
- <div class="verse indent0">Tecer grinaldas de campestres flores,</div>
- <div class="verse indent0">Fresco, e murmúrio de favonios, e aguas,</div>
- <div class="verse indent0">Os ternos sons de aligeros cantores,</div>
- <div class="verse indent0">Da natureza o estudo, as graças d’ella,</div>
- <div class="verse indent0">As formosas manhãs, as bellas tardes.</div>
- <div class="verse indent0">Iremos navegar pelo ribeiro</div>
- <div class="verse indent0">N’este mesmo batel; a branca lua</div>
- <div class="verse indent0">Deante nos irá para guiar-nos:</div>
- <div class="verse indent0">Os ventos dormiráõ pelos outeiros:</div>
- <div class="verse indent0">De um, d’outro lado as arvores ao longo</div>
- <div class="verse indent0">Das socegadas margens, docemente</div>
- <div class="verse indent0">Se ouviráõ susurar de quando em quando:</div>
- <div class="verse indent0">O astro da noite ledo e scintillante</div>
- <div class="verse indent0">Se verá na corrente em longa estrada:</div>
- <div class="verse indent0">Echos repetiráõ nossas cantigas:</div>
- <div class="verse indent0">D’entre um canavial a Filomela</div>
- <div class="verse indent0">Se ouvirá gorgeando convidar-nos:</div>
- <div class="verse indent0">Com mil olhos de luz o ceo da noite</div>
- <div class="verse indent0">De ver nossa alegria ha de alegrar-se.</div>
- <div class="verse indent0">Algum campestre Fauno, que aturdindo</div>
- <div class="verse indent0">Com voz immensa a silenciosa margem,</div>
- <div class="verse indent0">Seus amores contar da fonte ás Ninfas,</div><span class="pagenum"><a id="Page_242"></a>[242]</span>
- <div class="verse indent0">O canto estrugidor alguns momentos</div>
- <div class="verse indent0">Suspenderá, de assombro arrebatado.</div>
- <div class="verse indent0">Se tivermos calor volta-se a proa</div>
- <div class="verse indent0">Sobre uma ilhota de vermelha arêa,</div>
- <div class="verse indent0">E encalhando o batel salta-se ás ondas:</div>
- <div class="verse indent0">N’uma noite encalmada um banho fresco</div>
- <div class="verse indent0">Nos consola, e refaz: ali se julga</div>
- <div class="verse indent0">Acima estar da natureza o homem;</div>
- <div class="verse indent0">Vive em novo elemento, em cujo seio</div>
- <div class="verse indent0">Revestido se crê de essencia nova.</div>
- <div class="verse indent0">Ao brando frio os membros pouco a pouco</div>
- <div class="verse indent0">Se conformão, se affazem, se contentão;</div>
- <div class="verse indent0">Dissipa-se o tremor, e a voz anciada</div>
- <div class="verse indent0">Um momento depois se resserena.</div>
- <div class="verse indent0">Todo o vivo prazer então começa:</div>
- <div class="verse indent0">Ora apraz o nadar contra a corrente,</div>
- <div class="verse indent0">Ora girar nas aguas escondido,</div>
- <div class="verse indent0">Ou c’os olhos na lua ir descançado</div>
- <div class="verse indent0">Em parte occulto, em parte descoberto,</div>
- <div class="verse indent0">De costas, ao som d’agua, escorregando.</div>
- <div class="verse indent0">De quando em quando um toma pé no fundo,</div>
- <div class="verse indent0">Assemelhando o busto de uma estatua</div>
- <div class="verse indent0">De marmore polido, que se eleva</div>
- <div class="verse indent0">Fronteira á lua, e solitaria brilha;</div>
- <div class="verse indent0">Os companheiros de redor o cercão,</div>
- <div class="verse indent0">E com muito clamor sobre elle atirão</div>
- <div class="verse indent0">Co’as plantas, e co’as mãos ondas sobre ondas.</div>
- <div class="verse indent0">Elle grita, elle ri, jura, e promette</div>
- <div class="verse indent0">De os punir, de vingar-se; então se arroja</div>
- <div class="verse indent0">Ás ondas outra vez, e os segue, e os urge,</div>
- <div class="verse indent0">Chove sobre elles desmedidas vagas.</div>
- <div class="verse indent0">C’o festival combate o rio ferve,</div>
- <div class="verse indent0">Perturba-se a corrente, os echos bradão</div><span class="pagenum"><a id="Page_243"></a>[243]</span>
- <div class="verse indent0">Oh como he doce um banho entre mancebos!</div>
- <div class="verse indent0">Um ri contando uma engraçada história,</div>
- <div class="verse indent0">Outro grita, outro canta, e todos folgão.</div>
- <div class="verse indent0">No fundo desigual talvez se encontre</div>
- <div class="verse indent0">Dormindo alguma Náiade entre as conchas.</div>
- <div class="verse indent0">Sois mortaes? e que importa? humano he Páris,</div>
- <div class="verse indent0">He Páris um pastor, goza entretanto</div>
- <div class="verse indent0">Ternos abraços de immortal Enone,</div>
- <div class="verse indent0">Que deixa por goza-lo a propria fonte,</div>
- <div class="verse indent0">E vem sentar-se entre um rebanho humilde;</div>
- <div class="verse indent0">E ai de vós, se das Ninfas não moverdes</div>
- <div class="verse indent0">Os puros corações para a ternura!</div>
- <div class="verse indent0">Mulheres não as ha nos campos nossos,</div>
- <div class="verse indent0">E vazia de amor a vida he nada.</div>
- <div class="verse indent0">Redobrai a attenção, pois devo agora</div>
- <div class="verse indent0">Fallar em baixa voz, porque receio</div>
- <div class="verse indent0">Que as formosas Mondágides me escutem.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">O mesmo coração, dezejos, gostos,</div>
- <div class="verse indent0">Que tem nossas mortaes no peito occultos,</div>
- <div class="verse indent0">Tem as Ninfas tambem: de exemplos quantos</div>
- <div class="verse indent0">Se não póde cingir ésta verdade!</div>
- <div class="verse indent0">Sobre as aras de Amor todas off’recem:</div>
- <div class="verse indent0">Os ais do adorador nenhuma offendem,</div>
- <div class="verse indent0">Comprazem-se de ouvir que as chamão bellas,</div>
- <div class="verse indent0">E a gloria prezão de enxugar o pranto,</div>
- <div class="verse indent0">O pranto que ellas sós nos arrancárão.</div>
- <div class="verse indent0">Se nos ouvem crueis, se esquivas fogem,</div>
- <div class="verse indent0">He porque insana lei de atroz costume</div>
- <div class="verse indent0">Lhes ordena o fugir, lhes insinua</div>
- <div class="verse indent0">Que he delito em seu sexo a natureza:</div>
- <div class="verse indent0">Mas contra a natureza em vão combatem</div>
- <div class="verse indent0">De cega educação fataes abúsos!</div><span class="pagenum"><a id="Page_244"></a>[244]</span>
- <div class="verse indent0">A mãi universal ou cedo ou tarde</div>
- <div class="verse indent0">Vence, triunfa, e no triunfo leva</div>
- <div class="verse indent0">O sexo encantador ja maniatado.</div>
- <div class="verse indent0">Todas oppõe sabida resistencia,</div>
- <div class="verse indent0">Mas cumpre não ceder: por nós combatem</div>
- <div class="verse indent0">Seu mesmo coração e a natureza,</div>
- <div class="verse indent0">Que auxilio inefficaz jamais nos farão.</div>
- <div class="verse indent0">¿E não sabeis que emquanto desdenhosas</div>
- <div class="verse indent0">De nossos ais parecem offendidas,</div>
- <div class="verse indent0">Quaes se as mordesse venenosa serpe,</div>
- <div class="verse indent0">Tremem, recêão que ao temor cedamos,</div>
- <div class="verse indent0">E frouxa timidez nos furte as armas?</div>
- <div class="verse indent0">Inda que ostentem ríspida esquivança,</div>
- <div class="verse indent0">Agrada-lhes a guerra, e occultos votos</div>
- <div class="verse indent0">Fazem a Amor para ficar vencidas.</div>
- <div class="verse indent0">Implorar-lhes perdão he ultraja-las;</div>
- <div class="verse indent0">Contra ellas ser audaz he ser-lhes caro,</div>
- <div class="verse indent0">He dar-lhes bens, poupando-lhe a vergonha.</div>
- <div class="verse indent0">Mas a regra primeira, a grande, o tudo</div>
- <div class="verse indent0">Entre as regras de amor, he o artificio.</div>
- <div class="verse indent0">He vasta a gradação de sentimentos</div>
- <div class="verse indent0">Da innocencia á ternura. Em cume altivo</div>
- <div class="verse indent0">De alta montanha, cujo aspéto assombra,</div>
- <div class="verse indent0">Tem seu templo a Ternura, onde cercada</div>
- <div class="verse indent0">Das Graças, dos Prazeres, dos Amores,</div>
- <div class="verse indent0">Encanta os corações benigna Venus:</div>
- <div class="verse indent0">He forçoso galgar toda a montanha,</div>
- <div class="verse indent0">Subir de rocha em rocha, e p’rigo em p’rigo</div>
- <div class="verse indent0">Para se entrar no deleitoso alcaçar.</div>
- <div class="verse indent0">Quem pretender poupar um passo ao menos,</div>
- <div class="verse indent0">Quem saltar pretender, perde o ja ganho,</div>
- <div class="verse indent0">Para mais não surgir baquêa em terra.</div>
- <div class="verse indent0">Amor azas não tem, como se pinta;</div><span class="pagenum"><a id="Page_245"></a>[245]</span>
- <div class="verse indent0">A curtos passos, devagar só anda.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Começaremos offertando ás Ninfas</div>
- <div class="verse indent0">Sôbre altares campestres, levantados</div>
- <div class="verse indent0">Das arvores á sombra, ao pé das fontes,</div>
- <div class="verse indent0">Ou nas grutas do fresco, ou sôbre outeiros,</div>
- <div class="verse indent0">Festões, grinaldas, passarinhos, frutos,</div>
- <div class="verse indent0">E capellas de búzios e de conchas,</div>
- <div class="verse indent0">Mais brilhantes, mais bellas do que o Iris.</div>
- <div class="verse indent0">Formaremos cantigas, em que aos echos</div>
- <div class="verse indent0">Dos campos entre a lida repitamos</div>
- <div class="verse indent0">As perfeições, os méritos, os nomes</div>
- <div class="verse indent0">Das Napéas, das Dríades formosas,</div>
- <div class="verse indent0">Hamadríades, Náiades, e quantas</div>
- <div class="verse indent0">Filhas da Natureza a terra habitão,</div>
- <div class="verse indent0">Para formar com dextra occulta e sábia</div>
- <div class="verse indent0">Do rústico o prazer, do vate o encanto.</div>
- <div class="verse indent0">Isto, e a nossa virtude, e a vida nossa</div>
- <div class="verse indent0">Laboriosa, honrada, alegre, e quasi</div>
- <div class="verse indent0">Igual á vida dos campestres Deozes,</div>
- <div class="verse indent0">Disporáõ para nós seu terno peito.</div>
- <div class="verse indent0">Talvez qué pouco a pouco minorado</div>
- <div class="verse indent0">O custo susto de encontrar humanos,</div>
- <div class="verse indent0">Não fujão de mostrar-se a seus cantores.</div>
- <div class="verse indent0">Se eu descançar junto de um cedro antigo,</div>
- <div class="verse indent0">Ou de uma faia, ou reclinar a fronte</div>
- <div class="verse indent0">Sôbre a raiz em parte descoberta</div>
- <div class="verse indent0">De uma oliveira, ou castanheiro antigo,</div>
- <div class="verse indent0">Darei graças á Dríade, que habita</div>
- <div class="verse indent0">No tronco bemfeitor, que me faz sombra;</div>
- <div class="verse indent0">E d’elle a amavel Dríade saindo</div>
- <div class="verse indent0">Virá sentar-se ao lado meu na relva.</div><span class="pagenum"><a id="Page_246"></a>[246]</span>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Depois que pouco e pouco transformado</div>
- <div class="verse indent0">Se houver em confiança o pejo, o susto,</div>
- <div class="verse indent0">Mudaremos de estilo: em nossos versos,</div>
- <div class="verse indent0">E só, e de contínuo a formosura</div>
- <div class="verse indent0">Em fogo nos porá do estro as azas.</div>
- <div class="verse indent0">Hão de sorrir-se e comprazer-se, e muitas</div>
- <div class="verse indent0">Suspenderáõ em seu caminho os passos.</div>
- <div class="verse indent0">He lei sem excéção; domina em todas</div>
- <div class="verse indent0">A sêde, a gloria de chamar-se bellas.</div>
- <div class="verse indent0">Mas bellas tão somente heis de chama-las,</div>
- <div class="verse indent0">Sem falar-lhes de amar: depois de affeitas</div>
- <div class="verse indent0">A ouvir a narração de seus encantos,</div>
- <div class="verse indent0">Dizei-lhes que por certo as rochas mesmas,</div>
- <div class="verse indent0">Os troncos, e o cristal das frias aguas</div>
- <div class="verse indent0">Ardem cativos de bellezas tantas;</div>
- <div class="verse indent0">Que o sol com mais prazer detem seus olhos</div>
- <div class="verse indent0">Nos campos d’ellas, só por ver seus rostos.</div>
- <div class="verse indent0">Se virdes que um sorriso gracioso</div>
- <div class="verse indent0">Vos recompensa o canto, audacia, amigos!</div>
- <div class="verse indent0">Avante um passo, e n’este passo cumpre</div>
- <div class="verse indent0">O segredo buscar. Desde esse instante</div>
- <div class="verse indent0">Não lhes falleis deante das mais Ninfas;</div>
- <div class="verse indent0">Buscai até que os socios vos não oução.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Suppõe tu, caro Antíeno, encontrar-te</div>
- <div class="verse indent0">(Esta supposição perdoe Alcippe)</div>
- <div class="verse indent0">N’um bosque solitario, onde vaguêa</div>
- <div class="verse indent0">Quem te faz delirar em novo incendio.</div>
- <div class="verse indent0">Se ella está pensativa, “Oh venturoso</div>
- <div class="verse indent0">O objéto, lhe dirás, em que se occupa</div>
- <div class="verse indent0">Tua imaginação, formosa Ninfa!</div>
- <div class="verse indent0">Se eu o fosse!... ai de mim! porque revolve</div>
- <div class="verse indent0">Loucas esp’ranças, se chorar só devo?”</div><span class="pagenum"><a id="Page_247"></a>[247]</span>
- <div class="verse indent0">Se a vires sôbre o espelho do cascata</div>
- <div class="verse indent0">Com brancas rosas concertando as tranças,</div>
- <div class="verse indent0">Qual sôbre o teu ribeiro o faz Alcippe,</div>
- <div class="verse indent0">“Feliz rainha das mimosas flores,</div>
- <div class="verse indent0">Feliz rosa, dirás, inda que perdes</div>
- <div class="verse indent0">Ao pé das graças d’ella as graças tuas!”</div>
- <div class="verse indent0">Se pozer sôbre o seio as melindrosas</div>
- <div class="verse indent0">Roxas flores de amor, dirás: “Que inveja!</div>
- <div class="verse indent0">Por ser vós um momento eu dera a vida!”</div>
- <div class="verse indent0">Mas isto em meia voz, para que julgue</div>
- <div class="verse indent0">Que não he por te ouvir que assim fallaste.</div>
- <div class="verse indent0">Não se irritou? prosegue, e de mais perto,</div>
- <div class="verse indent0">“Permitte-me, (dirás com ar ingenuo,</div>
- <div class="verse indent0">Chêo de timidez) permitte, ó Ninfa,</div>
- <div class="verse indent0">Que eu te torne mais bella, e te componha</div>
- <div class="verse indent0">Essas flores, que um pouco se desmandão.”</div>
- <div class="verse indent0">Se ella o permitte, a occasião não percas:</div>
- <div class="verse indent0">Se ella hesita e se cala, não recusa;</div>
- <div class="verse indent0">Compõe-lhe o ornato no formoso seio,</div>
- <div class="verse indent0">E sorrindo, lhe dize: “Alguem no mundo</div>
- <div class="verse indent0">Existe que não ame as proprias obras?</div>
- <div class="verse indent0">E’sta obra, que findei, me agrada tanto!...”</div>
- <div class="verse indent0">N’isto beija-lhe o seio, e deixa as flores.</div>
- <div class="verse indent0">D’aqui avante o mar he ja tranquillo,</div>
- <div class="verse indent0">Propício o vento, e mui vizinho o porto:</div>
- <div class="verse indent0">Ja de piloto o lenho não carece;</div>
- <div class="verse indent0">Quanto offerece amor tudo he ja vosso.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Ja vejo sôbre os ceos dos nossos campos</div>
- <div class="verse indent0">Todo o dia brincando em roseo coche</div>
- <div class="verse indent0">Pelas pombas tirada a amavel Cípria:</div>
- <div class="verse indent0">Coroado de louro, ei-la contente</div>
- <div class="verse indent0">Entre palmas, que sombra lhe derramão!</div><span class="pagenum"><a id="Page_248"></a>[248]</span>
- <div class="verse indent0">Ei-la por toda a parte sacodindo</div>
- <div class="verse indent0">Do misterioso cinto encantos, gostos,</div>
- <div class="verse indent0">Delicias, tudo emfim que obriga a Jove</div>
- <div class="verse indent0">Mudado em branco cisne, ou chuva d’oiro,</div>
- <div class="verse indent0">A trocar pela terra o sacro Olimpo!</div>
- <div class="verse indent0">Desde então mais ditosa he nossa aldêa,</div>
- <div class="verse indent0">Mais risonhos seus bellos arrabaldes:</div>
- <div class="verse indent0">Ha misterios de amor em qualquer gruta,</div>
- <div class="verse indent0">Em qualquer solidão brincão prazeres.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Eis os frutos de amor, que desabrochão!</div>
- <div class="verse indent0">Ja os vejo das bellas entre os braços,</div>
- <div class="verse indent0">Qual pequeno botáõ nascido apenas</div>
- <div class="verse indent0">Da rosa ja perfeita ao lado brilha.</div>
- <div class="verse indent0">Ei-las co’o proprio leite a sustenta-los;</div>
- <div class="verse indent0">Taes como descreveo nos magos versos</div>
- <div class="verse indent0">Francilia; Musa de meu patrio rio,</div>
- <div class="verse indent0">A doce amiga sustentando o filho,</div>
- <div class="verse indent0"><i>Igual a Venus com Amor nos braços.</i></div>
- <div class="verse indent0">Eu as vejo, depois de afagos ternos,</div>
- <div class="verse indent0">Soltar de si os cintos azulados,</div>
- <div class="verse indent0">Em dois troncos prender as pontas ambas,</div>
- <div class="verse indent0">Abri-los, deitar dentro entre mil flores,</div>
- <div class="verse indent0">Depois de o ter beijado, o tenro infante,</div>
- <div class="verse indent0">Para ser dos favonios embalado.</div>
- <div class="verse indent0">Eu as vejo nos troncos encostar-se</div>
- <div class="verse indent0">Co’as mãos na face, e os olhos no innocente,</div>
- <div class="verse indent0">Juntando aos sons das aves em seu ninho</div>
- <div class="verse indent0">Ternos cantos, que os filhos adormeção.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Ja co’a turba infantil recresce a aldêa:</div>
- <div class="verse indent0">Succedem ao silencio alegres brincos,</div>
- <div class="verse indent0">Gostosos passatempos se preparão,</div><span class="pagenum"><a id="Page_249"></a>[249]</span>
- <div class="verse indent0">De nossos bens o número se aumenta.</div>
- <div class="verse indent0">Vai crescendo em razão, crescendo em fôrça</div>
- <div class="verse indent0">Ésta prole feliz, que os Cíprios valles</div>
- <div class="verse indent0">Como os Amores, como as Graças, honra.</div>
- <div class="verse indent0">Creados longe do tropel das côrtes,</div>
- <div class="verse indent0">Puros no coração, que ninguem busca</div>
- <div class="verse indent0">Semear de illusões, de prejuizos,</div>
- <div class="verse indent0">Educados na paz, sem ver tiranos,</div>
- <div class="verse indent0">Sem ouvir discorrer pedantes sabios,</div>
- <div class="verse indent0">Té das Sciencias ignorando os nomes,</div>
- <div class="verse indent0">Terão destinos, que excedendo os nossos,</div>
- <div class="verse indent0">Não hajão que invejar os puros dias,</div>
- <div class="verse indent0">Que cegamente se nomêão d’oiro.</div>
- <div class="verse indent0">D’oiro! ai d’elles se o oiro então se visse!</div>
- <div class="verse indent0">Mais nocivo que o ferro, a bemfazeja</div>
- <div class="verse indent0">Terra o sumio nas maternaes entranhas,</div>
- <div class="verse indent0">Sôbre leitos de pallido veneno.</div>
- <div class="verse indent0">Quando o Genio do mal o trouxe ao dia,</div>
- <div class="verse indent0">Chêas de assombro, de tropel correndo,</div>
- <div class="verse indent0">Fugírão co’a Justiça almas Virtudes;</div>
- <div class="verse indent0">E pelas fundas minas, que o guardavão,</div>
- <div class="verse indent0">Surgio do patrio inferno a perseguir-nos</div>
- <div class="verse indent0">Chusma de Vicios, e raivosas Furias,</div>
- <div class="verse indent0">Que os Vicios inspirando, os Vicios punem.</div>
- <div class="verse indent0">Se alguma vez os descendentes nossos,</div>
- <div class="verse indent0">Quando a terra pacificos romperem,</div>
- <div class="verse indent0">Encontraram com oiro, um grito soltem;</div>
- <div class="verse indent0">A aldêa se reuna ardendo em raiva,</div>
- <div class="verse indent0">Qual se dos bosques férvido saisse,</div>
- <div class="verse indent0">Igual ao raio, o bruto d’Erimantho;</div>
- <div class="verse indent0">E o pallido fulgor da massa infesta</div>
- <div class="verse indent0">Vão longe sepultar nos verdes mares.</div>
- <div class="verse indent0">“Monstro contrário a nós, sê devorado</div><span class="pagenum"><a id="Page_250"></a>[250]</span>
- <div class="verse indent0">Pelo monstro do mar, que em furia vences”</div>
- <div class="verse indent0">Dirão todos em chusma; e socegados</div>
- <div class="verse indent0">Tornaráõ a lavrar seus ferteis campos.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Que idea pelo espirito me adeja</div>
- <div class="verse indent0">Chêa de luz, de encantos rodeada!</div>
- <div class="verse indent0">Ja vejo pelos ares scintillando</div>
- <div class="verse indent0">Os fachos de Himeneo. Ja pelas ruas</div>
- <div class="verse indent0">Vestidos de alvo linho, e coroados</div>
- <div class="verse indent0">De fresca mangerona os moços correm,</div>
- <div class="verse indent0">“Ó Himeneo! Vem Himeneo!” gritando.</div>
- <div class="verse indent0">“Ó Himeneo! Vem Himeneo!” respondem</div>
- <div class="verse indent0">Os campos d’echo em echo; e pelas casas,</div>
- <div class="verse indent0">Chêas de gôsto, e de esperança as virgens</div>
- <div class="verse indent0">“Vem Himeneo, ó Himeneo!” repetem.</div>
- <div class="verse indent0">As ruas de verdura estão juncadas,</div>
- <div class="verse indent0">Listões de flores coroando as portas</div>
- <div class="verse indent0">Enchem os ares de composto cheiro:</div>
- <div class="verse indent0">E os meninos, que as causas não percebem</div>
- <div class="verse indent0">Do confuso prazer, vão transportados</div>
- <div class="verse indent0">Correndo em chusmas, e batendo as palmas,</div>
- <div class="verse indent0">Gritando, “Ó Himeneo!” La desce, e pouza</div>
- <div class="verse indent0">O Nume sôbre o altar da Cípria Deoza!</div>
- <div class="verse indent0">O venturoso par la vai sobindo</div>
- <div class="verse indent0">Por entre a multidão, que attenta o mede.</div>
- <div class="verse indent0">La chega ao sítio destinado aos votos.</div>
- <div class="verse indent0">Sacerdotes não ha: da aldêa os velhos</div>
- <div class="verse indent0">Os cercão de redor. La se abraçárão!...</div>
- <div class="verse indent0">He curto o voto seu. “Juro adorar-te</div>
- <div class="verse indent0">Emquanto o doce amor tiver no peito.”</div>
- <div class="verse indent0">Unindo o seio ao seio, e face á face,</div>
- <div class="verse indent0">Depois se beijaráõ por largo tempo;</div>
- <div class="verse indent0">E o Nume da alliança, o carinhoso</div><span class="pagenum"><a id="Page_251"></a>[251]</span>
- <div class="verse indent0">Filho de Urania os cingirá dos mirtos,</div>
- <div class="verse indent0">Que de Venus, e Amor as frontes ornão.</div>
- <div class="verse indent0">Depois algum de nós se erga c’roado,</div>
- <div class="verse indent0">Para fallar d’ésta maneira ao povo.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">“Nasceo Amor para encantar os homens,</div>
- <div class="verse indent0">Não para ser dos corações tirano.</div>
- <div class="verse indent0">Menino ama o brincar, e quer ser livre.</div>
- <div class="verse indent0">Cura o tempo as feridas que elle fórma:</div>
- <div class="verse indent0">Depois de alto clarão, que cega os olhos,</div>
- <div class="verse indent0">Seu facho, pouco e pouco enfraquecendo,</div>
- <div class="verse indent0">Vem por fim a apagar-se: a Natureza,</div>
- <div class="verse indent0">Nada produz que não succumba á morte.</div>
- <div class="verse indent0">Os animaes, as flores, os arbustos</div>
- <div class="verse indent0">Tem curta duração: vai manso, e manso</div>
- <div class="verse indent0">O tempo destruindo altas montanhas,</div>
- <div class="verse indent0">Gasta-se o escolho c’o bater das ondas;</div>
- <div class="verse indent0">Succede a lua ao sol, á noite o dia,</div>
- <div class="verse indent0">Uma estação perece, outra renasce:</div>
- <div class="verse indent0">Tudo he mortal na terra, e mais que tudo</div>
- <div class="verse indent0">As humanas paixões insulta a morte:</div>
- <div class="verse indent0">Succede ao riso o pranto; á dor prazeres;</div>
- <div class="verse indent0">Ao odio amor; ao terno amor a raiva.</div>
- <div class="verse indent0">Eu vi moraes affétos n’um só dia</div>
- <div class="verse indent0">Nascer e terminar, qual nasce e murcha</div>
- <div class="verse indent0">N’um só dia de abril a rubra rosa.</div>
- <div class="verse indent0">Ditoso par! amai-vos extremosos</div>
- <div class="verse indent0">Emquanto a natureza vos consinta,</div>
- <div class="verse indent0">E oxalá que o consinta em largos annos!</div>
- <div class="verse indent0">E oxalá que de vós o que entre os mortos</div>
- <div class="verse indent0">Primeiro descançar, sinta regadas</div>
- <div class="verse indent0">Pelos olhos do sócio as mudas cinzas.</div>
- <div class="verse indent0">Feliz quem n’um só fogo arde constante;</div><span class="pagenum"><a id="Page_252"></a>[252]</span>
- <div class="verse indent0">Feliz, mas raro como os negros cisnes!</div>
- <div class="verse indent0">E ha loucos, e ha perversos, que ante as aras</div>
- <div class="verse indent0">Jurem guardar uma constancia eterna?</div>
- <div class="verse indent0">Cegos, que a natureza desconhecem,</div>
- <div class="verse indent0">Ou zombão d’ella escarnecendo os votos.</div>
- <div class="verse indent0">Jurão-se amar sem fim, e ou tarde ou cedo,</div>
- <div class="verse indent0">Sem fim, e sem remorsos se detestão!</div>
- <div class="verse indent0">Jurão-se amar sem fim! Mal que resoa</div>
- <div class="verse indent0">Debaixo das abobadas o voto,</div>
- <div class="verse indent0">Calcando o arco aos pés com ar maligno</div>
- <div class="verse indent0">O pobre Amor retira-se chorando</div>
- <div class="verse indent0">D’ésta afronta cruel; pois sua glória,</div>
- <div class="verse indent0">Seu prazer, e seu timbre he ser voluvel.</div>
- <div class="verse indent0">Crepitando em faiscas derradeiras</div>
- <div class="verse indent0">Se apaga o facho, que debalde agita,</div>
- <div class="verse indent0">E emtôrno espalha venenoso fumo,</div>
- <div class="verse indent0">Fumo, que obriga a lágrimas eternas.</div>
- <div class="verse indent0">Entre pios e agouros desgraçados,</div>
- <div class="verse indent0">Ao leito nupcial os acompanha</div>
- <div class="verse indent0">Entre alegre e assustada a meiga Venus.</div>
- <div class="verse indent0">Co’as serpes do cabello desgrenhadas,</div>
- <div class="verse indent0">Mas inda sem silvar, detraz os segue</div>
- <div class="verse indent0">Impaciente a rabida Discordia.</div>
- <div class="verse indent0">De flores se coroa a lauta mesa,</div>
- <div class="verse indent0">Voão-lhe em roda as graças, e o falerno,</div>
- <div class="verse indent0">E riso, e confusão de encantos chêa.</div>
- <div class="verse indent0">Mas ah! cedo os pezares, e os suspiros,</div>
- <div class="verse indent0">A desesperação, e as vãs querellas,</div>
- <div class="verse indent0">E a desordem, e as lágrimas rodêão</div>
- <div class="verse indent0">Os lares do prazer; a scena infausta</div>
- <div class="verse indent0">Não rara vez negro punhal termina,</div>
- <div class="verse indent0">A viuvez, o luto envolve o leito!</div>
- <div class="verse indent0">Mas vós, ditoso par, vós, cujos labios</div><span class="pagenum"><a id="Page_253"></a>[253]</span>
- <div class="verse indent0">Não proferírão temerario voto,</div>
- <div class="verse indent0">Folgai, vivei, nos braços da ternura,</div>
- <div class="verse indent0">Melindrosa ternura, que não morre</div>
- <div class="verse indent0">Se lhe não lanção vergonhoso jugo.</div>
- <div class="verse indent0">Para amar-vos fieis por largo tempo</div>
- <div class="verse indent0">Sede amaveis, ou sede virtuosos</div>
- <div class="verse indent0">Porque a doce virtude he sempre amavel.</div>
- <div class="verse indent0">Se o fogo se acabar, voltai ao templo,</div>
- <div class="verse indent0">A prender novo objéto em novos laços.”</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Ouvindo este discurso o povo inteiro</div>
- <div class="verse indent0">O applaude em baixa voz, e á Mãi das Graças</div>
- <div class="verse indent0">Se canta o hino, que remata a festa.</div>
- <div class="verse indent0">O resto d’este dia he dado aos jogos,</div>
- <div class="verse indent0">Gasta-se a noite á roda das fogueiras</div>
- <div class="verse indent0">Em musicas e em danças variadas.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Engano-me, ou queixosa a Natureza</div>
- <div class="verse indent0">Escuto suspirar? não, não me engano!</div>
- <div class="verse indent0">Ella suspira, e pede-nos vingança</div>
- <div class="verse indent0">D’outra injustiça, que lhe faz o mundo.</div>
- <div class="verse indent0">Ouvi, e concordai: sabeis que muito</div>
- <div class="verse indent0">Em número nos vence o amavel sexo.</div>
- <div class="verse indent0">Se a Mãi universal não gera um ente,</div>
- <div class="verse indent0">Que não consagre a amor; e a lei sagrada,</div>
- <div class="verse indent0">Que obriga a propagar a propria especie,</div>
- <div class="verse indent0">He lei universal, que abrange a todos,</div>
- <div class="verse indent0">¿Com que jus, por que horrenda tirania</div>
- <div class="verse indent0">Privadas d’Himeneo suspirão tantas?</div>
- <div class="verse indent0">Não: cada esposo esposas enumere,</div>
- <div class="verse indent0">Té que uma só sem thalamo não fique;</div>
- <div class="verse indent0">Todas d’est’arte viveráõ contentes;</div>
- <div class="verse indent0">A honra de ser mãi pertence a todas:</div><span class="pagenum"><a id="Page_254"></a>[254]</span>
- <div class="verse indent0">Cresce a aldêa, não brada a Natureza;</div>
- <div class="verse indent0">Infamadas não são as que procurão</div>
- <div class="verse indent0">Os prazeres de amar, de ser amadas:</div>
- <div class="verse indent0">Não se ouvirá que um barbaro veneno</div>
- <div class="verse indent0">Dera a mãi a seu filho inda no ventre;</div>
- <div class="verse indent0">Ou que um férreo punhal, ou laço infame</div>
- <div class="verse indent0">Logo ao nascer lhe terminára os dias:</div>
- <div class="verse indent0">Nem Venus corará vendo offertar-se</div>
- <div class="verse indent0">De ternura venal corsutos mimos.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Quão bellos correráõ nossos momentos,</div>
- <div class="verse indent0">Longo, e tão longe dos polidos povos!</div>
- <div class="verse indent0">Quasi Numes na vida encantadora,</div>
- <div class="verse indent0">Até na duração quasi seremos</div>
- <div class="verse indent0">Rivaes do povo habitador do Elisio.</div>
- <div class="verse indent0">O fio d’oiro da existencia nossa</div>
- <div class="verse indent0">Inteiro volveráõ no fuso as Parcas.</div>
- <div class="verse indent0">Com pé tardío a inevitavel Deoza,</div>
- <div class="verse indent0">Que o Mundo despovoa, e bebe o pranto,</div>
- <div class="verse indent0">E acompanha a saudade entre os ciprestes,</div>
- <div class="verse indent0">Sem terror, e sem fouce, e até sorrindo,</div>
- <div class="verse indent0">Sem que a precedão seus fataes ministros,</div>
- <div class="verse indent0">Nos levará de manso e a curtos passos,</div>
- <div class="verse indent0">Coroados do cãs para o sepulcro.</div>
- <div class="verse indent0">Mas, amigos, quem sabe! as Cíprias Ninfas,</div>
- <div class="verse indent0">Se o fado o não tolher, talvez nos mostrem</div>
- <div class="verse indent0">A verde planta, que ao cerúleo reino</div>
- <div class="verse indent0">Deo mais um Nume, transformando a Glauco.</div>
- <div class="verse indent0">Semideozes então, nos tornaremos</div>
- <div class="verse indent0">De nossa aldêa os sacros protétores!</div>
- <div class="verse indent0">Mas não: a lei da morte he lei terrivel,</div>
- <div class="verse indent0">Que rara vez os Numes quebrantárão.</div><span class="pagenum"><a id="Page_255"></a>[255]</span>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">He forçoso morrer!... Longe os temores!</div>
- <div class="verse indent0">He forçoso morrer, morra-se embora.</div>
- <div class="verse indent0">Não faltaráõ dulcissimos transportes,</div>
- <div class="verse indent0">Prazeres e ternura ao lance extremo!</div>
- <div class="verse indent0">Sôbre o funereo leito o moribundo,</div>
- <div class="verse indent0">Ja sem côr, ja sem fôrça, e quasi extinta</div>
- <div class="verse indent0">Em seus olhos a luz, e a voz nos labios,</div>
- <div class="verse indent0">Erguendo a fraca dextra acena, e chama</div>
- <div class="verse indent0">Cadaum junto a si; vai despedir-se</div>
- <div class="verse indent0">Para o sono sem fim! Sôbre as heranças</div>
- <div class="verse indent0">Que ha de recommendar se não tem nada?</div>
- <div class="verse indent0">Nada excéto a virtude, e os instrumentos</div>
- <div class="verse indent0">Com que a terra lavrou. Sua cabana</div>
- <div class="verse indent0">Vai ter outro senhor; as flores suas</div>
- <div class="verse indent0">Implorão no jardim desde este instante</div>
- <div class="verse indent0">D’outro cultor a próvida tutella:</div>
- <div class="verse indent0">D’outro, sim; cuja mão todos os dias</div>
- <div class="verse indent0">Irá de madrugada aos sacros manes,</div>
- <div class="verse indent0">Pendurar sôbre o tumulo orvalhado</div>
- <div class="verse indent0">Uma grinalda de orvalhadas flores.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Elle abre inda uma vez seus frouxos olhos,</div>
- <div class="verse indent0">Onde começa a derramar-se a noite,</div>
- <div class="verse indent0">E de seus labios tremulos, por onde</div>
- <div class="verse indent0">Ja põe a occulta morte a mão gelada,</div>
- <div class="verse indent0">Sólta chêo de afféto a voz, que expira,</div>
- <div class="verse indent0">E seus amigos, e seus filhos chama:</div>
- <div class="verse indent0">Os seus amigos mudamente o cercão,</div>
- <div class="verse indent0">E não mostrar-lhe as lágrimas procurão:</div>
- <div class="verse indent0">Áluz da tibia alampada contemplão</div>
- <div class="verse indent0">Quanto a hora fatal ja se aproxima.</div>
- <div class="verse indent0">E seus pobres filhinhos entretanto</div>
- <div class="verse indent0">N’um canto da cabana estão sentados;</div><span class="pagenum"><a id="Page_256"></a>[256]</span>
- <div class="verse indent0">Dos amigos no gesto, e nas maneiras</div>
- <div class="verse indent0">Ler seu destino impacientes buscão,</div>
- <div class="verse indent0">E attonitos, e tristes nem se atrevem</div>
- <div class="verse indent0">A fallar, a fazer qualquer pergunta,</div>
- <div class="verse indent0">Porque os não lancem d’este sítio fóra:</div>
- <div class="verse indent0">Mas olhão-se entre si co’um ar tão meigo,</div>
- <div class="verse indent0">Lastimoso, innocente, que podéra</div>
- <div class="verse indent0">Desfazer de piedade a propria morte,</div>
- <div class="verse indent0">Se o fado não contasse os nossos dias.</div>
- <div class="verse indent0">Seu Pai, que os adorou, quer inda vê-los,</div>
- <div class="verse indent0">Lançar-lhes a sagrada, última benção,</div>
- <div class="verse indent0">Ver seu pranto, gozar dos seus afagos,</div>
- <div class="verse indent0">Quer chama-los. A voz faltou de todo!</div>
- <div class="verse indent0">E deixando caír de lado o rôsto,</div>
- <div class="verse indent0">Soltou da vida o derradeiro arranco.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Ao profundo silencio altos clamores</div>
- <div class="verse indent0">Succedem n’um momento; e o pranto, e os gritos</div>
- <div class="verse indent0">Por toda a parte na cabana sôão.</div>
- <div class="verse indent0">Os meninos confusos se levantão,</div>
- <div class="verse indent0">Ouvem a nova, attentão no cadaver:</div>
- <div class="verse indent0">Ouriçado o cabello, o sangue frio,</div>
- <div class="verse indent0">Pallido o rosto, e vacillante o passo,</div>
- <div class="verse indent0">Fogem para o jardim, por onde os segue</div>
- <div class="verse indent0">A imagem de seu Pai, no susto envolta.</div>
- <div class="verse indent0">Qual o vírão ha pouco, o tem comsigo!</div>
- <div class="verse indent0">Dos parreiraes as sombras os perturbão,</div>
- <div class="verse indent0">Vem nos troncos das árvores fantasmas.</div>
- <div class="verse indent0">Vão buscar o luar do rio á borda;</div>
- <div class="verse indent0">Mas lembrão-se que ali todas as noites</div>
- <div class="verse indent0">Passeavão com elle: ésta lembrança</div>
- <div class="verse indent0">Os torna a perseguir; e em tudo encontrão</div>
- <div class="verse indent0">De um Pai tão caro o aspéto, que os assusta,</div><span class="pagenum"><a id="Page_257"></a>[257]</span>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Pela aldêa se espalha a infausta nova,</div>
- <div class="verse indent0">E parece que a morte em cada casa</div>
- <div class="verse indent0">Arvorára um trofeo! Domina em todos</div>
- <div class="verse indent0">A dor, que se desfaz em pranto e gritos!</div>
- <div class="verse indent0">Dir-se-hia que furioso, insuperavel,</div>
- <div class="verse indent0">Hia de této em této um vasto incendio.</div>
- <div class="verse indent0">Depois que um pouco em lúgubres transportes</div>
- <div class="verse indent0">A dor se evaporou, por toda a parte</div>
- <div class="verse indent0">Sôão louvores do chorado amigo.</div>
- <div class="verse indent0">Cadaum lhe encarece uma virtude,</div>
- <div class="verse indent0">E de cada virtude exemplos contão.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">O Justo dorme em paz: mas entretanto</div>
- <div class="verse indent0">Ninguem dorme na aldêa. Ouvio-se o gallo</div>
- <div class="verse indent0">Cantar, quando expirou da noite em meio:</div>
- <div class="verse indent0">Torna o gallo a cantar na madrugada;</div>
- <div class="verse indent0">E em contínua vigilia discorrêrão</div>
- <div class="verse indent0">As longas horas, que á manhã precedem!</div>
- <div class="verse indent0">Torna o gallo a cantar na madrugada,</div>
- <div class="verse indent0">A aurora quer nascer; enchem-se os ares</div>
- <div class="verse indent0">De uma luz, que ao luar excede um pouco.</div>
- <div class="verse indent0">Do ninho suspendido em nossos tétos</div>
- <div class="verse indent0">A andorinha ja sáe; vôa cantando</div>
- <div class="verse indent0">Defronte agora das janellas nossas</div>
- <div class="verse indent0">Para nos saudar, pois entra o dia.</div>
- <div class="verse indent0">Ja dos ceos pelos flúidos espaços</div>
- <div class="verse indent0">Circula a cotovía, que não cança</div>
- <div class="verse indent0">No longo canto, ou desmedido vôo:</div>
- <div class="verse indent0">Ja o rumor das arvores e fontes,</div>
- <div class="verse indent0">Que da noite na paz costuma ouvir-se,</div>
- <div class="verse indent0">Vai fugindo com as trémulas estrellas;</div>
- <div class="verse indent0">Torna a alegria ao mundo, e ao campo as cores:</div>
- <div class="verse indent0">Mas a alegria d’entre nós he longe,</div><span class="pagenum"><a id="Page_258"></a>[258]</span>
- <div class="verse indent0">Os campos todos para nós tem luto.</div>
- <div class="verse indent0">Ja se ouvem resoar da aldêa as portas;</div>
- <div class="verse indent0">Ja sáe, ja se reune o povo inteiro.</div>
- <div class="verse indent0">O ar de meditação domina em todos,</div>
- <div class="verse indent0">Todos trazem de pranto rociadas</div>
- <div class="verse indent0">As recentes grinaldas, que tecêrão.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Em plantas aromaticas envolto,</div>
- <div class="verse indent0">Do alvergue, ha pouco seu, la vem saindo</div>
- <div class="verse indent0">O deplorado amigo: ao caro pêzo</div>
- <div class="verse indent0">Submettem quatro os hombros vigorosos.</div>
- <div class="verse indent0">Bençãos, bençãos ao Justo, em cujo aspéto</div>
- <div class="verse indent0">Por entre a pallidez inda ressumbrão</div>
- <div class="verse indent0">Mansa innocencia, affétos generosos!</div>
- <div class="verse indent0">A lenta marcha á turba consternada</div>
- <div class="verse indent0">Rompem com baixo tom sonoras flautas,</div>
- <div class="verse indent0">Que de triste alverôço o peito agitão.</div>
- <div class="verse indent0">Apôz ellas, o funebre cadaver</div>
- <div class="verse indent0">Dos Anciãos vai precedendo á chusma.</div>
- <div class="verse indent0">Estes, fronte inclinada, olhos em terra,</div>
- <div class="verse indent0">Vão suspirando, e a vista lacrimosa</div>
- <div class="verse indent0">Lanção de quando em quando ao doce amigo,</div>
- <div class="verse indent0">Que os precedeo na regiáõ da morte.</div>
- <div class="verse indent0">Em seguida, modestos se confundem</div>
- <div class="verse indent0">Os mancebos, de teixo coroados,</div>
- <div class="verse indent0">Co’as bellas raparigas, que parecem</div>
- <div class="verse indent0">Mais formosas co’a languida tristeza:</div>
- <div class="verse indent0">Elles cantão em côro aos longos echos</div>
- <div class="verse indent0">O como a quanto existe abrange a morte;</div>
- <div class="verse indent0">Ellas em tom mais doce a voz levantão,</div>
- <div class="verse indent0">Para mostrar como a existencia curta</div>
- <div class="verse indent0">De prazeres doirar-se ao menos deve.</div>
- <div class="verse indent0">Vão depois os meninos innocentes</div><span class="pagenum"><a id="Page_259"></a>[259]</span>
- <div class="verse indent0">De ambos os sexos em confuso bando:</div>
- <div class="verse indent0">Levão em suas mãos para o sepulcro</div>
- <div class="verse indent0">Pequenas oblações; pomos, e flores,</div>
- <div class="verse indent0">Taças de leite e mel, de vinho e d’agua</div>
- <div class="verse indent0">Tomada em fonte viva antes da aurora,</div>
- <div class="verse indent0">E de barro thuribulos não grandes.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Ja se chega ao lugar sagrado á morte:</div>
- <div class="verse indent0">He um valle sombrio, onde se abração</div>
- <div class="verse indent0">Mil arvores diversas, onde habitão</div>
- <div class="verse indent0">Meigas filhas do ceo, canoras aves:</div>
- <div class="verse indent0">Reveste fresca relva a terra fria,</div>
- <div class="verse indent0">Pallido musgo os carcomidos troncos.</div>
- <div class="verse indent0">Aqui frescos favonios adejando</div>
- <div class="verse indent0">Pelas folhudas grimpas, docemente</div>
- <div class="verse indent0">Só se ouvem suspirar: aqui mais terna</div>
- <div class="verse indent0">Derrama a aurora o pranto matutino;</div>
- <div class="verse indent0">Mais terna geme e rôla; e mais delirios</div>
- <div class="verse indent0">Na alma gera o luar por estes campos.</div>
- <div class="verse indent0">He fechado o lugar de mil rochedos,</div>
- <div class="verse indent0">Por onde algumas fontes se derivão</div>
- <div class="verse indent0">Com tacito rumor, que inspira os sonos:</div>
- <div class="verse indent0">Pelas profundas, tenebrosas grutas,</div>
- <div class="verse indent0">E sôbre os agudissimos rochedos</div>
- <div class="verse indent0">Crê-se ver e escutar sagrados manes,</div>
- <div class="verse indent0">Em frouxa voz, que as auras assemelha,</div>
- <div class="verse indent0">Cantando os gostos da passada vida.</div>
- <div class="verse indent0">La não geme a coruja, ou pia o mocho:</div>
- <div class="verse indent0">Reina em vez do terror branda saudade,</div>
- <div class="verse indent0">Terna melancolia, encanto, enlêvo</div>
- <div class="verse indent0">Dos corações, das almas bem nascidas.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Que estrondo he este pelo chão de morte?</div><span class="pagenum"><a id="Page_260"></a>[260]</span>
- <div class="verse indent0">São as férreas enchadas, que se alternão</div>
- <div class="verse indent0">Para formar do eterno sono o leito.</div>
- <div class="verse indent0">Agora cresce a dor na despedida.</div>
- <div class="verse indent0">La chega, la se arroja, la se esconde</div>
- <div class="verse indent0">Da Mãi universal no seio um filho!</div>
- <div class="verse indent0">“Paz ao homem de bem!” dizem de roda</div>
- <div class="verse indent0">Os velhos, e retirão-se chorando.</div>
- <div class="verse indent0">“Leve te seja a terra!” os moços gritão,</div>
- <div class="verse indent0">E partem derramando-lhe folhagem.</div>
- <div class="verse indent0">Chega a turba infantil, seus dons off’rece,</div>
- <div class="verse indent0">E vai juntar-se á multidão, que torna</div>
- <div class="verse indent0">Aos trabalhos de novo á sua aldêa.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Mas ah! qual d’entre nós terá primeiro,</div>
- <div class="verse indent0">Caros amigos, de fechar seus dias?</div>
- <div class="verse indent0">Quaes choraráõ no tumulo silvestre!</div>
- <div class="verse indent0">Talvez eu vos preceda, e vá saudoso</div>
- <div class="verse indent0">Ver na Tenárea porta o Cão trifauce,</div>
- <div class="verse indent0">Na Estige nebulosa a barca horrenda,</div>
- <div class="verse indent0">E do Elisio paiz os gratos campos,</div>
- <div class="verse indent0">La onde os vates do universo inteiro,</div>
- <div class="verse indent0">Ja Numes, em republica se unírão.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Mas não pensemos n’isto: he Maio agora</div>
- <div class="verse indent0">Que devemos cantar: nós o jurámos.</div>
- <div class="verse indent0">Recomponde na fronte as vossas c’roas;</div>
- <div class="verse indent0">Ergamo-nos, enchei de vinho as taças;</div>
- <div class="verse indent0">E ante o Ceo, ante a Lua, que nos ouve,</div>
- <div class="verse indent0">Entre os Favonios, e as formosas Ninfas,</div>
- <div class="verse indent0">Que escondidas nas ondas nos rodêão,</div>
- <div class="verse indent0">Saudemos novamente o alegre Maio,</div>
- <div class="verse indent0">Jurando que desde hoje em nossas liras</div>
- <div class="verse indent0">Ha de escutar cada anno os seus louvores.</div><span class="pagenum"><a id="Page_261"></a>[261]</span>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Ó Maio, eu fallo; escuta-me. “Por este</div>
- <div class="verse indent0">Licor de Bassareo, que me arrebata;</div>
- <div class="verse indent0">Pelos Filhos gentís da branca Leda,</div>
- <div class="verse indent0">Que pela mão a nós te conduzírão;</div>
- <div class="verse indent0">Por tuas flores, com que estou soberbo;</div>
- <div class="verse indent0">Por tuas fontes, zéfiros e bosques;</div>
- <div class="verse indent0">Por teu ceo graciosa; e por ti mesmo;</div>
- <div class="verse indent0">E pela tua amiga, a minha Musa,</div>
- <div class="verse indent0">Juro de consagrar emquanto viva,</div>
- <div class="verse indent0">Todo o teu mez ao teu louvor, e ás festas.”</div>
- </div>
-</div>
-</div>
-
-<p class="center">FIM DA FESTA DE MAIO.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_262"></a>[262]</span></p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_263"></a>[263]</span></p>
-
-<h3 class="nobreak" id="MAIO_NOTAS"><span class="smcap">NOTAS<br />
-á<br />
-Festa de Maio.</span></h3>
-
-</div>
-
-<h4 class="nobreak" id="MAIO_NOTA_1">CANTO I.<br />
-<span class="smaller"><i><a href="#Page_204">Pag. 204.</a> verso 4.º</i></span></h4>
-
-<div class="poetry-container">
-<div class="poetry">
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0">Das Filhas de Nereo a mais formosa</div>
- <div class="verse indent0">Foi Galatéa candida e rosada.</div>
- </div>
-</div>
-</div>
-
-<p>Como das bagatelas que forçadamente tenho
-semeado por alguns d’esses Jornaes, que
-he o mesmo que escrever em folhas e atira-las
-ao ar, algumas haja que não mereção de todo
-perder-se, estas me pareceo i-las recolhendo
-a meus livros, por qualquer modo que fossem
-achando cabida, para não ser como a Sibilla
-de Cumas, que em uma vez se lhe desmandando
-com os ventos as folhas que tinha
-escritas, ja para sempre tirava d’ellas o sentido:
-<i>neo ponere in ordine curat</i>. Por isso traslado<span class="pagenum"><a id="Page_264"></a>[264]</span>
-do Num. 3 do <i>Jornal dos Amigos das
-Letras</i>, todo o seguinte Artigo<a id="FNanchor_15" href="#Footnote_15" class="fnanchor">[15]</a>.</p>
-
-<div class="blockquote">
-
-<p class="center"><i>Antonii Feliciani de Castilho</i>,</p>
-
-<p class="center">GALATEA: CARMEN.</p>
-
-<p class="center"><span class="smcap">Advertencia Preliminar</span></p>
-
-<p>O fragmento latino que se vos offerece, sob
-o titulo de Galatea, he huma tentativa e nada
-mais: e quem mo quisesse haver a ostentação,
-não só mostrára quam pouco me conhece, mas
-ainda com atrocissima injúria me aggravaria.
-Discorridos são hoje mais de dez annos, depois
-que, desejoso de refrescar lembranças de conhecido
-com as Romanas Musas companheiras
-e alegria de minha infancia, me dei ao
-passatempo de metrificar em latim, ja os pensamentos
-que primeiros me occorrião, ja algum
-episodio de minhas proprias obrinhas; sendo
-assim, que esta fabula de Galatea a trasladei
-do Poema da <i>Festa de Maio</i>, no meu livro<span class="pagenum"><a id="Page_265"></a>[265]</span>
-da <i>Primavera</i>. Sei bem que não ha hoje, e especialmente
-por cá, leitores para o latim,
-sendo a final chegado o prazo de, com razão
-e sem o mínimo escrupulo, se poder chamar
-tal lingua morta e enterrada: sei mais que,
-inda mal, não respondem estes meus versos
-ao que eu anciára que elles fossem, e nem valem
-mais que uma boa parte dos ahi impressos na
-custosa Coléção de Poetas do nosso Padre
-Reis; e com tudo, a despeito d’estas duas tão
-fortes razões, e tão valentes para me deverem
-dissuadir, convim em que tão pobre couza se
-désse á estampa. Será, segundo muitas vezes
-se escreve em Prologos, para incitar engenhos
-a fazerem melhor? não. Pois será, como tambem
-em Prologos se usa de escrever, para que
-os Aristarchos me ensinem o que, o como,
-e o por onde devo corrigir e melhorar? menos;
-que não sei eu de um só que se hoje occupe
-com semelhantes vaidades. Como por tanto
-me livrarei da desmerecida taxa de presunçoso?
-confessando, como tambem em Prologos
-se costuma, mas d’esta vez com verdade,
-que o faço por obedecer a dezejos de pessoa,
-com quem muito me importa estar em tudo
-bem.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_266"></a>[266]</span></p>
-
-<div class="poetry-container">
-<div class="poetry">
- <div class="stanza">
- <div class="verse center">GALATEA</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse center"><i>Carmen, ex Lusitano Latine redditum.</i></div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Assiduis, juvenes, proscindite flumina remis,</div>
- <div class="verse indent0">Dum vacat et picto lœtos juvat ire phaselo;</div>
- <div class="verse indent0">Intereaque meo vestrum fallente laborem</div>
- <div class="verse indent0">Carmine, Romanas percurram pollice chordas.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Nereidas inter quondam pulcherrima Nymphas</div>
- <div class="verse indent0">Nympha fuit Galatea maris: cui lilia mixtis</div>
- <div class="verse indent0">Ore rosis, flavæque comæ, roseique labelli,</div>
- <div class="verse indent0">Cæruleoque oculi placido fulgore micantes,</div>
- <div class="verse indent0">Et sinus albenti in scopulis albentior unda,</div>
- <div class="verse indent0">Qualem nec Paphiis habuit quæ regnat in arvis.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Tertia postdecimam vernantia tempora brumam</div>
- <div class="verse indent0">Floruerant, postquam vitali vescitur aura</div>
- <div class="verse indent0">Nympha; nec in terris, aut cœlo, aut æquore toto</div>
- <div class="verse indent0">Est quæ formosis ausit contendere formis.</div>
- <div class="verse indent0">Multi illam juvenes, multi petiere deorum,</div>
- <div class="verse indent0">Undique blanditiis et laudibus insidiantes,</div>
- <div class="verse indent0">Nulli illi juvenes, nulli placuere deorum.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Hanc pater undisono sub gurgite in antra vocavit,</div>
- <div class="verse indent0">Amplexumque dedit, tremulisque sedere coegit</div>
- <div class="verse indent0">In genibus, tales fundens post oscula voces:</div>
- <div class="verse indent0">“Filia, tempus adest pueriles linquere ludos.</div>
- <div class="verse indent0">“Non te pulchra latet, qua subjicis omnia, forma;</div>
- <div class="verse indent0">“Tene latet quantis fugiendi viribus, instant</div>
- <div class="verse indent0">“Qui toties, laudesque ferunt, gressusque sequuntur?</div>
- <div class="verse indent0">“Crede patris canis et amori crede paterno;</div>
- <div class="verse indent0">“Quò plus obsequiis, quò plus sermone placebunt</div>
- <div class="verse indent0">“(Parce seni juvenem patri non grata monenti)</div>
- <div class="verse indent0">“Hóc magis incautæ protendent retia formæ.</div><span class="pagenum"><a id="Page_267"></a>[267]</span>
- <div class="verse indent0">“Filia, tempus adest pueriles linquere ludos:</div>
- <div class="verse indent0">“Sit tibi cura meos posthac delphinas in undis</div>
- <div class="verse indent0">“Pascere, perque salum deformes ducere phocas;</div>
- <div class="verse indent0">“Non bene pigra tuis ignavia convenit annis.”</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Dixit: et e patrio discerpta coralia ponto,</div>
- <div class="verse indent0">Cuspide inaurata, pastoria munera, virgam</div>
- <div class="verse indent0">Tradidit, atque pecus natæ commisit habendum.</div>
- <div class="verse indent0">Est virides inter, Nereus quibus imperat, undas</div>
- <div class="verse indent0">Valle locus tuta, nec divo pervius ulli,</div>
- <div class="verse indent0">“Hic maneas, dixit, te sæpe deinde revisam.”</div>
- <div class="verse indent0">Arrisit, natamque pater sine teste reliquit.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0">Haud semel ignifero radiarant lumine currus,</div>
- <div class="verse indent0">Phæbe tui, dum lœta pecus Galatea marinum,</div>
- <div class="verse indent0">Gurgitis inter opes, viridanti paverat alga.</div>
- <div class="verse indent0">Interdum æquoreis linquens armenta molossis</div>
- <div class="verse indent0">Ibat, et in calathos modo tinctas murice conchas,</div>
- <div class="verse indent0">Et modo lucentes baccas contenta legebat.</div>
- <div class="verse indent0">Ver erat, et pictos zephyris mulcentibus agros,</div>
- <div class="verse indent0">Mense renidebat tellus lætissima Majo;</div>
- <div class="verse indent0">Aureus in liquidæ Sol brachia Thetidos ibat.</div>
- <div class="verse indent0">Deserere ima maris, solum conscendere littus</div>
- <div class="verse indent0">Ausa fuit virgo, non sic reditura sub undas.</div>
- <div class="verse indent0">Summa petens scopuli viridi sub rupe recessit,</div>
- <div class="verse indent0">Unde fretum, terrasque lubens circumspicit omnes.</div>
- <div class="verse indent0">Hic sedet, et pascens animos novitate locorum,</div>
- <div class="verse indent0">Miratur, facilesque oculos fert omnia circum.</div>
- <div class="verse indent0">Ut mediis vidit formosum fluctibus Acin</div>
- <div class="verse indent0">Æquora jactatis tranantem cana lacertis,</div>
- <div class="verse indent0">Versibus abstinuit, versus nam forte canebat;</div>
- <div class="verse indent0">Erubuit, turbata silet, suspiria ducit;</div>
- <div class="verse indent0">Nunc subeunt jussus, subeunt hortamina patris;</div>
- <div class="verse indent0">Jam cupiat tutis fugiendo immergier undis,</div>
- <div class="verse indent0">Nec potis est cupiens, et littore perdita inhæret:</div><span class="pagenum"><a id="Page_268"></a>[268]</span>
- <div class="verse indent0">Nunc libet et tacito cautæ latuisse sub antro,</div>
- <div class="verse indent0">Donec arenoso mutarit littore fluctus</div>
- <div class="verse indent0">Discedensque puer securam liquerit oram;</div>
- <div class="verse indent0">Pænitet inde fugæ, sistit, mavultque videri.</div>
- <div class="verse indent0">Corpora, cæruleas inter candentia lymphas,</div>
- <div class="verse indent0">Quam numeris perfecta suis! quam fortia pulsis</div>
- <div class="verse indent0">Devectantur aquis! quam multa est gratia nanti!</div>
- <div class="verse indent0">Quam bene suffuso sua membra liquore teguntur,</div>
- <div class="verse indent0">Quam bene disperso nudantur eburnea ponto!</div>
- <div class="verse indent0">Cuncta tenent oculos, in cunctis Nympha moratur.</div>
- <div class="verse indent0">Interdum propius sensim vestigia ponit,</div>
- <div class="verse indent0">Nec propiora tamen fieri vestigia sentit.</div>
- <div class="verse indent0">Queisque prins sparsis volitaverat aura capillis,</div>
- <div class="verse indent0">Nescia cur fingat, vel collo dividat apte,</div>
- <div class="verse indent0">Dividit illa tamen, studioque indulget inani.</div>
- <div class="verse indent0">Hinc littus petit, ac vultus speculatur in unda,</div>
- <div class="verse indent0">Et quanquam ipsa sibi pulcherruma tota videtur,</div>
- <div class="verse indent0">Pulchrior exoptat fieri, frustraque laborat.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Interea juvenis, jam fessus nasse, redibat,</div>
- <div class="verse indent0">Et prope jam fulvas manibus tangebat arenas:</div>
- <div class="verse indent0">Illa fugit, trepidatque, et rupe reconditur ima.</div>
- <div class="verse indent0">Hic latet, et votis contraria vota rependens,</div>
- <div class="verse indent0">Nunc patris hortatus, et nunc reminiscitur Acin,</div>
- <div class="verse indent0">Et rubet, et pallet, nec vultibus hæret in isdem.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Haud mora: nudus adest, antrumque Simethius intrat</div>
- <div class="verse indent0">Acis, ut abjectas repetat sub tegmine vestes.</div>
- </div>
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent2">Quid remi cecidere, quid ó cessatis amici?</div>
- <div class="verse indent0">Nonne retro refugisse ratem, dumque ora tenetis,</div>
- <div class="verse indent0">Aversam in portus sentitis abire relictos?</div>
- <div class="verse indent0">Instaurate opus, ac totis incumbite remis:</div>
- <div class="verse indent0">Quó pœnas detis, dictis nihil amplius addam.</div>
- </div>
-</div>
-</div>
-
-</div>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_269"></a>[269]</span></p>
-
-<h4 class="nobreak" id="MAIO_NOTA_2">CANTO II.<br />
-<span class="smaller"><i><a href="#Page_237">Pag. 237.</a> versos 15 e 16.</i></span></h4>
-
-<div class="poetry-container">
-<div class="poetry">
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0">E que? algum de nós contra o que vive</div>
- </div>
-</div>
-</div>
-
-<p>A questão, se sim ou não se ha de o homem
-alimentar de substancias animaes, tem sido
-muitas vezes, e com oppostas sentenças, debatida
-por filosofos, poetas, naturalistas e medicos.
-A affirmação e a negação achárão para argumentos
-ja uso e consenso de povos em todos os
-tempos, ja razões intrinsecas tiradas de nossa
-propria conveniencia. He assunto que requeria
-larga escritura, e em que a qualquer seria
-facil dissertar eruditamente. Voar-lhe-hei pelas
-summidades.</p>
-
-<p>Aquella vaga tradição, que em toda a parte
-permanece, de uma primitiva idade do mundo
-innocente e felicissima, entre as couzas de que
-reza, aponta sempre o não se comer de animal
-algum, senão só de frutas, hervas, leite e mel.
-De outro modo se não podião sustentar, conforme
-parece pelo ancianíssimo Genesis, os moradores
-do Paraizo, não só homens, porem
-todos os viventes. Quadrava o preceito e toava
-o uso pelo menos á humana natureza, que ainda
-agora, se a bem espreitarmos na infancia,
-ou antes de alterada por contrarios habitos, se
-afflige e revolve com o aspéto do sangue e morte.
-Verdade he, que depois da queda de nossos
-primeiros pais, nem o Testamento velho nem
-o novo, tornão a prohibir as carnes; mas toques<span class="pagenum"><a id="Page_270"></a>[270]</span>
-da mesma nativa compaixão para com os
-animaes não lhes faltão, dos quaes pelo menos
-se deduz por bom discurso, que se os tivermos
-de comer, ainda ahi nos devemos haver
-com a possivel mansidão, poupando cruezas
-escuzadas, como são, e se costuma, atormenta-los
-na agonia por lhes refinar o sabor,
-caçar, montear e pescar por passatempo e pelo
-mero gôsto de malfazer. Lê-se nos Proverbios,
-segundo as versão dos Setenta: <i>Justus
-miseretur animas jumentorum suorum; viscera
-autem impiorum crudelia.</i>—O que justo fôr
-ha de se apiedar da condição dos seus brutos;
-mas as entranhas dos impios não se apiedão da
-nenhuma couza.—No Exodo: <i>Non coques hædum
-in lacte matris suæ.</i>—Não cozas o cabrito
-no leite de sua mãi.—He dito para ser
-ruminado, pelo mimoso do afféto que recende.
-No Deuteronomio: <i>Si ambulans per viam, in
-arbore vel in terra nidum avis inveneris, et matrem
-pullis vel ovis desuper incubantem, non
-tenebis eam cum filiis sed abire palicris, ut bene
-sit tibi, et longo vivas tempore.</i>—Se o
-acaso te deparar no caminho, quer em arvore
-quer no chão, um ninho de ave, e a mãi estiver
-a agazalhar os filhos ou os ovos, não a
-tomes com os filhos, senão que em boa hora a
-deixes ir, para que boa estrêa te venha, e vivas
-largos annos.—</p>
-
-<p>Entre os Santos Padres, que são os depositarios
-e dispenseiros do espirito christão, alguma
-couza se podéra citar que autorizasse este<span class="pagenum"><a id="Page_271"></a>[271]</span>
-genero de piedade. Sabida he a de que usou
-S. Anselmo, uma vez para com uma lebre,
-outra para com um passarinho. Tertulliano se
-maravilha de que entre christãos, os haja que
-se accommodem a ser carniceiros: <i>nescio an
-dolendum an erubescendumn sit</i>;—não sei,
-diz elle, se mais he para se haver lástima,
-se vergonha. S. João Chrisosthomo escreva,
-que se não podia ser santo sem uma
-estremada suavidade de affétos, e muita vehemencia
-de bem querer, não só aos nossos, mas
-ainda aos estranhos, em tanta maneira que até
-aos brutos animaes abranja essa mansidão. (<i>Homil.
-29. na Epist. ad Rom.</i>) E dizia bem, que
-nas vidas de não poucos santos resplandecem
-as provas. S. Francisco de Assiz resgatava os
-cordeiros que hião para o córte, pagava e soltava
-as redadas dos peixes e os viveiros das
-aves. Mas não apontemos mais, por não enjoar
-filosofos, digo filosofos de nossa terra, dos
-que nos assoalhão filosofia de torna viagem,
-porque os lá de fóra ja deixarão muito para
-traz a impiedade.</p>
-
-<p>Não he porem necessario ser christão, senão
-que basta ser homem, para repartir com os brutos
-do thesouro da charidade, de que muitos
-d’elles usão a seu modo, não só para com os
-seus, mas para comnosco. Sendo assim que
-onde os não maltratão, são elles de indole muito
-mais benigna: em Inglaterra, segundo se
-diz, nem ha cão que ladre, nem besta que
-escoucinhe: em não sei que ilha dezerta, acharão<span class="pagenum"><a id="Page_272"></a>[272]</span>
-os primeiros descobridores, em aportando,
-(segundo encontrei na Escolha de Viagens
-por John Adams) serem tão cortezes as aves
-de que toda era chêa, que não fogião dos novos
-hospedes, antes os festejavão e se deixavão
-pôr a mão; semelhantemente ao que
-da ilha das Garças aponta João de Barros
-<i>Dec. 1 Liv. 1 Cap. 7</i>, aonde “como não
-erão traquejadas de gente (as garças e outras
-aves), ás mãos tomarão (os marinheiros de Nuno
-Tristão) tanta quantidade d’ellas, que ficou
-por refresco ao navio.” Dos leões he corrente
-entre os naturalistas não perseguirem,
-mas esquivarem-se dos perseguidores, embrenhando-se
-cada vez mais pelos seus sertões adentro,
-sendo alias mui leves de domesticar, e
-folgando de acompanhar, como rafeiros innocentes,
-a trôco de qualquer esmola de pão, por
-largo espaço de leguas. Muitas são em toda a
-parte, mormente em Africa, as serpentes, que
-namoradas do bom gazalhado, trocão seus matos
-pelas pouzadas humanas, e n’ellas se hão
-como boas comadres da familia. O cavallo do
-Arabe he o contubernal e primeiro amigo de
-seu dono: um bom Arabe na morte do seu cavallo
-deveria de se expressar pouco mais ou menos
-como Millevoye o suppoem na Elegia. Muitos
-prezos tem logrado domesticar aranhas e ratos,
-até o ponto de, no meio das asperezas de
-um segredo, se poderem esquecer por muitas
-horas do seu desamparo, crueldades e injustiças
-humanas. No páteo da rezidencia parochial
-de S. Mamede da Castanheira do Vouga,<span class="pagenum"><a id="Page_273"></a>[273]</span>
-todos os dias a horas certas viamos acudir ao
-almoço e cêa que ás nossas pombas desparriamos,
-todos os passarinhos da vizinhança,
-que ja traziamos tão correntes, que nos vinhão
-comer aos pés, por saberem (porque os brutinhos
-sabem muito mais do que nós outros cuidâmos)
-que n’aquella cazinha da solidão moravão
-amigos seus, e nunca terem ouvido tiro,
-nem enxergado rede no pequeno arredor
-do templo e passaes solitarios.<a id="FNanchor_16" href="#Footnote_16" class="fnanchor">[16]</a> Se a tudo
-isto e a muitos outros exemplos se lançar conta,
-alguma verdade se achará no affirmarem
-poetas, que no discaír da idade de oiro, ao mesmo
-tempo que se os homens corromperão degenerando
-em crueis, se forão as feras tornando
-bravias e desabridas.</p>
-
-<p>Em todos os tempos, e até por fóra e mui
-longe d’esta religião charidosa, houve quem bem
-entendesse como entes nossos conterraneos n’este
-orbe, irmãos nossos em viver, sentir, padecer
-e acabar, com sangue e coração como nós,
-com amor, prazeres e filhos como nós, bebendo
-como nós no immenso vaso do pai commum
-o mesmo ar, a mesma luz, as mesmas
-aguas, e comendo comnosco á mesma mesa
-do universal banquete, poderião quando muito
-servir-nos de pasto; mas fóra d’ahi, qualquer<span class="pagenum"><a id="Page_274"></a>[274]</span>
-injúria que se lhes accrescentasse, seria hortorosa
-profanação e violação da natureza. Plutarcho
-e Quintiliano referem, que os Athenienses
-castigarão severamente algumas sevicias
-commettidas contra animaes. O Alcorão espalhou
-por todos os povos, que largamente senhorea,
-muita d’esta benignidade: raro Mahometano
-deixará de matar a fome ao cão de
-seu inimigo. Na China passa esta beneficencia
-muito adeante. Que no-lo diga em seu estilo
-chão o nosso Fernão Mendes, ou talvez o
-Jesuita que em seu nome, e por um modo tão
-rijo de crer, compilou tantas e tão preciosas
-noticias do Oriente, mui desacreditadas em tempo,
-ja hoje em parte mui abonadas de verdadeiras.
-Padre ou marinheiro, diz assim: (falla
-de uma feira que no rio de Batampina, em caminho
-de Nanquim para Pequim, se faz com
-mais da duas mil ruas de barcaças, nas quaes
-ha para vender tudo a que no mundo se pode
-pôr nome.) “Ha tambem outras embarcações em
-que os homens trazem grande soma de gayolas
-com passarinhos viuos e tangendo com instrumentos
-musicos dizem em voz alta á gente
-que os ouve, que libertem aquelles cativos que
-são criaturas de Deos, a que muita gente acede
-a lhes dar esmola com que resgata daquelles
-cativos os que cada um quer e os lança logo
-a avoar, e toda a gente dando hũa grande
-grita lhe diz, <i>pichau pitanel catão vocaxi</i>, que
-quer dizer, <i>dize lá a Deos como cá o servimos</i>.
-Ha outros homens que noutras embarcações
-trazem grandes panellas cheyas de agoa,<span class="pagenum"><a id="Page_275"></a>[275]</span>
-em que trazem muitos peixinhos viuos que tomão
-nos rios nũas redes de malha muyto miudas,
-tambem pela mesma maneira vem bradando
-que libertem aquelles cativos por seruiço
-de Deos que são innocentes que nunca peccarão,
-a que tambem a gente dando sua esmola,
-comprão daquelles peixinhos os que querem
-e os tornão logo a lançar no rio, dizendo,
-<i>vayte embora, e lá dize de mym este bem que
-te fiz por seruiço de Deos</i>. E estas embarcações
-em que estas cousas se trazem a vender não
-se hão de contar por menos soma que de cento
-e duzentas para cima.”</p>
-
-<p>Na India são n’esta virtude extremosissimos.
-Alguns viajantes tanto encarecem a couza,
-que chegão a affirmar haverem por lá, ainda
-no seculo passado, hospitaes para as mais asquerosas
-sevandijas, como piolhos, pulgas e
-persovejos.</p>
-
-<p>Pôsto que tudo quanto até aqui tenho trazido,
-possa parecer uma diversão do principal
-propozito, não o he, por quanto d’estes misericordiosos
-affétos he que se tem em parte derivado
-a abstinencia de carnes, observada por muitas
-pessoas, communidades, seitas e povos: em
-parte digo, porque em outros diversos fundamentos
-tem tambem estribado, como veremos.</p>
-
-<p>E pois que a ultima que tocámos foi a India,
-a ella tornemos, levando por explorador
-e lingua, não algum estrangeiro, de que<span class="pagenum"><a id="Page_276"></a>[276]</span>
-outros se contentão mais, mas um patricio
-nosso, dos varios que para tal officio se podérão
-tomar: he Duarte Barbosa, e diz:</p>
-
-<p>“Ha neste regno (de Guzarate) outra sorte
-de Gentios, que chamaom Bramanes, estes
-nom comem carne, nem pescado, nem nenhũa
-cousa que mora, nem mataom, nem menos
-querem uer matar, por asy lho defender sua
-idolatria; e guardaom isto em tamanho estremo
-que he cousa espantosa, porque muytas
-uezes acontece leuarem-lhe hos Mouros bichos,
-e pasarinhos uiuos, e fazerem que hos querem
-matar perante eles, e estes Bramanes lhos compraom
-e resgataom, dando-lhe por eles muyto
-mais do que ualem, por lhe saluarem has uidas,
-e soltalos. Se tambem El Rey, ou ho gouernador
-da tera, tem algũu homem, porculpas que
-cometese, julgado ha morte; ajuntamse eles,
-e compramno ha justiça, se lho quer uender,
-pera que nom mora; e tambem algũus Mouros
-pedintes, quando querem auer esmola destes,
-tomaom muy grandes pedras, e daom
-com elas emsima dos ombros e barigas, como
-que se querem matar perante eles, e porque ho
-nom façaom, lhe daom muytas esmolas, e que
-se uaom em pas; outros trazem faquas, e daom-se
-cõelas cutiladas pelos braços e pernas,
-e pera se nom matarem lhes daom muytas esmolas;
-outros lhe uem has portas ha querer
-lhe degolar ratos e cobras, ha hos quaes eles
-daom muyto dinheiro por ho nom fazerem, e
-desta maneira saom dos Mouros muy apreciados:<span class="pagenum"><a id="Page_277"></a>[277]</span>
-estes Bramanes se achaom no caminho
-algũu golpe de formiguas, aredam-se buscando
-por honde pasem sem bas pisarem. E em suas
-casas de dia çeaom; de dia nem de noyte acendem
-candea, per caso de algũs mosquitos nom
-irem morer no lume da candea; e se todauia
-tem grande necesidade de acenderem de noyte,
-tem hũa alenterna de papel ou de pano agomado,
-pera cousa nenhũa uiua poder ir morer
-dentro no fogo; se estes criaom muytos piolhos,
-nom hos mataom, e quando hos muyto
-aqueixaom mandaom chamar hũs homeins
-que antre eles uiuem, que tambem saom gentios,
-e eles hos haom por de santa uida, e
-saom come irmytães, uiuendo em muyta abstinença
-por reuerencia dos seus Deoses; estes
-hos cataom, e quantos piolhos lhe tiraom poemnos
-em suas cabeças, e hos criaom com suas
-carnes, em que dizem fazerem muy grande
-seruiço ha seu Idolo, e asy guardaom hũus e
-outros com muyta temperança ha ley de nom
-matarem: estes Gentios saom muy delicados
-e temperados em seu comer; seus manjares saom
-leites, manteiga, açuquar, e aros, e muytas
-conseruas de diuersas maneiras; seruem-se muyto
-de cousas de fruyta e ortaliça, e deruas de
-campo pera seus manjares; honde quer que
-uiuem tem muytas ortas e pomares.”</p>
-
-<p>Na <i>Historia de Mysore</i>, lê-se que em Bengala,
-quando a violencia da fome a devastou
-em 1774, consumindo-lhe obra de trez milhões
-d’almas, forão em muito grande numero os<span class="pagenum"><a id="Page_278"></a>[278]</span>
-Indios que antes quizerão deixar-se morrer á
-mingoa, do que acabar comsigo comer carne de
-animaes.</p>
-
-<p>Frequente e antigo he na India este antojo,
-e tão notorio, que não ha porque afogar o discurso
-com mais exemplos. Bem podia proceder
-isso em parte da vegetavel abundancia e espantosa
-cultura d’aquellas terras, e de alguma
-especial compleição do clima, ou natureza ou
-costumes dos moradores, ou algumas outras
-circunstancias, segundo as quaes os corpos se
-dessem melhor com os pastos leves e frugaes:
-viria depois a religião consagrar por dogmas
-seus os conselhos da higiene, como com vinho,
-toucinho e abluções aconteceo em muito oriente
-á conta da lepra: para melhor incutir o
-preceito, cerca-lo-hia de fabulas amigas da
-imaginação do vulgo, como a encarnação dos
-Deozes em corpos de brutos, e a transmigração
-das almas humanas por differentes sortes
-de viventes até parar na vacca; materias estas
-de que as historias e perigrinações fazem larga
-menção. Dos Indios podérão tomar por mão
-a crença os Egipcios, os quaes, sendo moradores
-de solo não menos liberal, devião
-tambem perdoar grandemente aos animaes, em
-quem reverenciavão suas Divindades, ou santuarios
-ambulantes que d’ellas forão: e confirma-me
-na suspeita a conveniencia, que ja
-de alguem deverá ter sido notada, do boi
-Apis do Egito com a vacca ainda hoje sagrada
-dos Indios. Do Egito provavelmente trouxe<span class="pagenum"><a id="Page_279"></a>[279]</span>
-Pithagoras para a Italia, em tempos de
-Numa ou Servio Tullio, a sua metempsícosa
-com a defensão do uso das carnes. Não pegou
-a invenção, se não foi em alguns escolares
-fanaticos de tamanho mestre; e nem filosofos
-pelo tempo adeante a sustentarão, nem
-poetas se valerão d’ella, afóra Ovidio nas metamorfoses,
-e só como narrador; e mais
-não deixava de ser fecunda e bem assombrada
-crença para poesias. Não pegou, porque não
-vinha propria á indole do solo ou ao temperamento
-dos Italos, ou, o que he mais certo,
-porque encontrava os antiquissimos usos de
-umas gentes, que primeiro tinhão sido pastoras
-e depois guerreiras.</p>
-
-<p>Na Ilha da Palma, acharão os nossos, quando
-descobrião, conquistavão e amansavão aquelle
-archipelago, (senhorio traspassado depois em
-Castella, mas padrão glorioso do nosso Infante
-D. Henrique) serem mantimento dos moradores
-hervas, leite e mel.—Com este particular
-exemplo me acóde a memoria, mas
-alguns outros semelhantes de outras ilhas me
-parece ter achado pelas historias, de que me não
-ficou nem fiz a lembrança preciza.</p>
-
-<p>Com a propagação da fé christã renasceo religiosa
-a abstinencia na Europa, por motivo
-não de brandura, mas de mortificação. Apparecerão
-Ordens numerosas de religiosos, primeiro
-só de homens, logo tambem de mulheres,
-que renunciando todos os carnaes deleites<span class="pagenum"><a id="Page_280"></a>[280]</span>
-para melhor apurarem os do espirito, tomando
-o exemplo dos primitivos eremitas que se
-abastavão com as hervas, raizes, frutas silvestres,
-e aguas dos montes, não só cortarão pelas
-demazias na quantidade do sustento, não
-só o estreitarão com regra de jejuns, mas em
-varios de seus institutos o expurgarão de todo
-animal terrestre ou volatil, não consentindo,
-quando muito, senão em algum marisco secco
-e fraco, para regalo das festas. E he para notar
-como ainda os mais rígidos observantes logravão
-saude inteira e robusta, e chegavão ao ultimo
-fio da velhice: <i>mens sana in corpore sano</i>.</p>
-
-<p>Annos ha que me recordo de ter achado em
-uma Gazeta de Lisboa, estar-se creando em
-Manchester uma seita, que por filosofica defendia
-tomar qualquer sustento animal. Era noticia
-de Gazeta, não affirmarei que tivesse pé,
-e se o teve, não sei em que parou.</p>
-
-<p>Ja que estamos com Inglezes, fallemos de
-Franklin. Este homem, a quem a probidade e
-o juizo fizerão filosofo e liberal, e não a devassidão
-e o estouvamento, tendo lido, di-lo elle,
-o livro em que Tryon recommenda a dieta
-vegetal, determinou-se em a observar. Pô-lo
-por obra, e limitando-se em arroz e batatas,
-e ás vezes ainda em menos, como passas,
-bolaxa ou pão, com uma gota de agua,
-não só forrou do seu salario (era ainda então
-compositor de imprensa) com que poder comprar
-livros, mas do seu tempo acerescentou<span class="pagenum"><a id="Page_281"></a>[281]</span>
-para estudos o que as refeições e digestões lhe
-podérão consumir: fez progressos proporcionados
-á clareza de ideas e fortaleza de percepção,
-que são o fruto da temperança no comer e beber.
-Seguio constante por algum tempo, não
-pouco, até que chega á ilha de Block, assiste
-a uma pesca, revolvem-se-lhe nas entranhas
-as maximas do seu Tryon, dá por genero de
-assassinio aquelle matar viventes, que nem tinhão
-feito nem erão capazes de fazer o mínimo
-mal. Poem-se os mortos ao lume, recende
-o guizado; o filosofo no seu tempo gostára apaixonadamente
-de peixe; entra pelo nariz a tentação,
-estremece a filosofia, e em boa hora
-lhe acode com uma bulla de composição, lembrando-lhe
-como ao abrir e limpar d’aquelles
-peixes, lhes víra dentro do buxo outros peixinhos
-mais pequenos. “Pois que he isto, diz
-elle entre si, se vós uns a outros vos comeis,
-porque não hei de eu tambem comer-vos a vós?”
-N’essa hora e com esta palavra se lhe quebrou
-o fadario; o que muito bem prova, acrescenta
-o bom homem, sermos nós <i>animaes racionaes</i>,
-sabendo, como sabemos, achar pretextos plausiveis
-para quanto nos póde dar gôsto.</p>
-
-<p>Outro autor muito afamado de nossos dias,
-Raynal, era igualmente sobrio. A Senhora
-Marqueza d’Alorna, que muitas vezes o teve
-a jantar, me contou, que nunca o víra comer
-mais que algumas poucas hervas e fruta, nem
-beber senão agua. Era, observava ella, como
-um conviva das Ninfas, custando a crer como<span class="pagenum"><a id="Page_282"></a>[282]</span>
-com aquellas refeições de idillio se podessem
-sustentar tantos nervos d’alma e de pensamento.</p>
-
-<p>Se depois de autores de livros se póde citar
-quem não sabe ler, em Grada, lugarejo da
-Bairrada, vivia um moço que eu conheci, o
-qual nunca provára vacca. Perguntado a causa,
-não era religião, nem filosofia, nem tedio natural,
-mas effeito de um vehementissimo e entranhado
-amor que tinha aos bois, com quem
-se creára, com quem vivia, lavrava, e dormia
-paredes meias. Rústico era, e sem o cuidar discorria
-e fallava como o Sabio de Cheronea,
-quando dizia, que por tudo quanto o mundo tinha,
-não venderia nunca o boi que em seu serviço
-envelhecêra.</p>
-
-<p>Afóra os monges, filosofos e amigos dos
-bois, ha ainda uma grande quantia de homens,
-puro comedores de vegetaes em quasi todo o
-anno: são os moradores das serras e aldêas
-pobres, a quem a estreiteza de sua fortuna
-mal dá licença para chegarem á carne por entrudo
-e paschoa, e poucas mais vezes e só escassissimamente,
-ao pescado, vizita mui rara em terras
-mesquinhas do sertão. De choupanas sei
-eu, e quasi de inteiros lugares, pelas abas da
-Serra do Caramulo, onde oito annos vivi,
-que de pouco mais se sustentão que do pão
-de centeio e milho, batatas e alguns legumes:
-e estes asperissimos banquetes, em que até
-pelo demais fallece o agro vinho verde de seus<span class="pagenum"><a id="Page_283"></a>[283]</span>
-montes, trazem-os comtudo mais rijos e sãos
-no trabalho, do que as grandes ucharias aos
-mimosos das cidades.</p>
-
-<p>Acabarei estes exemplos com o que melhor
-conheço, que he o meu. Quando eu compuz
-estes versos da <i>Festa de Maio</i>, era como ja
-no Ante-Prologo disse, todo Gessnérico: trazia
-a alma toda a nadar no coração empapado com
-os mais brandos affétos do mundo, como rosa
-a boiar em vaso de leite: amava as plantas
-e tratava com ellas como com entes sensitivos;
-todos os entes sensitivos amava-os como amigos
-e companheiros: tinha fantasia pronta, que
-muito ajuda em todo o genero de bem querer;
-esta me revelava de contínuo e me ataviava de
-suas fabulas e côres a particular vida e cheíssimo
-mundo de cada inséto; e porque esse seu
-mundo e vida dizia tanto com o meu, e o commum
-de seus substanciaes interesses com o commum
-dos substanciaes interesses dos homens,
-acontecia que imaginando-me ora grilo, ora
-passaro, ora borboleta, tinha aprendido uma
-perfeita, e se dizè-lo posso, egoista charidade
-para com todos elles. Ouvi debater a questão
-do uso das carnes: as razões affirmativas podião
-ter mais fôrça, mas as negativas dizião
-com o meu gôsto; he meia persuasão; caírão-me
-tão bem, que logo me dei, se não por convencido,
-por persuadido: e como persuadido e
-convencido escrevi os versos, que por isso aos
-indifferentes se de contrária sentença, devem
-parecer, como em verdade são, sobejos, exagerados
-e declamatorios.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_284"></a>[284]</span></p>
-
-<p>Era o escrito fruto de minha opinião; mas
-esta, como accontece, se roborou por elle, e
-até tal ponto se confirmou, que do que até alí
-não passára de poetica theoria, instituí fazer
-prática minha em toda a vida, renunciando
-qualquer genero de alimento animal. Por duas
-vias se fazia de mal o tenta-lo, ja porque em
-couza tão excetuada do geral não deixarias de
-caír estranhezas e zombarias, ja porque tanta
-sobriedade entre quem a não usava, era genero
-de martirio continuamente renovado. Mas
-contra estes dois contrastes prevalecião outros
-dois argumentos: primeiro, minha consciencia,
-que repugnava banquetes de sangue: segundo,
-o presuposto em que estava, de que as
-faculdades da alma se havião de adelgaçar e
-crescer onde o corpo fosse favorecido da parcimonia.
-Metti-me Pithagorico aos vinte e
-trez d’Agosto do anno de 1822, tendo sido
-gastos os mezes, que desde a feitura do poema
-decorrerão até esse, em acabar de me resolver
-e aparelhar para tão grande façanha; e
-permaneci na observancia do voto até vinte e trez
-d’Agosto do seguinte anno. Acabei o noviciado,
-e em lugar de professar, despedi-me. Tive minhas
-razões; e ainda que pouco se me havia de dar
-agora do que se podesse dizer ácerca de um indivíduo,
-que n’esse tempo tinha o nome que
-eu hoje tenho, e do qual, segundo as theorias
-dos medicos, não conservo hoje uma só particula,
-sendo eu um, vivo e junto; elle outro,
-morto e disperso por todo esse mundo: todavia,
-porque ainda temos commum um leve som,<span class="pagenum"><a id="Page_285"></a>[285]</span>
-que he o nome, quero lançar pontualmente na
-balança do juizo dos meus leitores os seus porques;
-e bons ou máos, forão estes.—Primeiro:
-que a abstinencia de uma só pessoa não
-poupava uma unica existencia de animal. Segundo:
-que era presunção ridicula o desquitar-se
-um sujeito, por alguns argumentos, de uma
-opinião e uso quasi universal, sendo assim que
-todos os homens, guerreando-se entre si por
-crenças religiosas, por sisthemas filosoficos, por
-principios de política e sciencias, por modas
-e gostos, todos se conformavão no comer
-das carnes. Terceiro: que realmente era obstinação
-o desconhecer como a natureza nos não
-aparelhára só para comer e digerir vegetaes.
-Quarto: estar-nos ella dando nos proprios animaes,
-que uns de outros se sustentão, uma prova
-de ser menos escrupulosa do que Pithagoras
-e a poesia. Quinto: que ella propria os
-multiplica á proporção do que uns a outros
-devem tragar. Sexto: que se ella faz com que
-cada passada, cada pedra que movemos, cada
-gota de agua que engolimos, cada fruto ou
-folha que aproveitamos, cada sôpro que inspiramos
-ou expiramos, cada movimento emfim
-que fazemos, ainda dos mais indispensaveis
-para a vida, a destrua a milhões e milhões de
-entes conhecidos, e a numero talvez ainda
-maior de desconhecidos, não ha porque nos tenha
-a grande peccado, o aumentar-mos por
-nosso bem a lista com mais algumas unidades.
-Setimo: que o adelgaçamento e crescimento de
-minhas faculdades intelletuaes que eu esperára<span class="pagenum"><a id="Page_286"></a>[286]</span>
-d’aquella mais leve nutrição, não só se não tinha
-verificado, mas antes o contrário succedêra,
-pôsto que de diversas causas podésse pender
-o successo: e por muito tempo me ficou o
-costume de, quando via versos fracos e desengraçados,
-dizer: Devião estes de ser compostos
-por quem não comia senão hervas. Outavo,
-ultimo, e não leve motivo: que ainda que pouco
-dado ás delicias da gula, o cheiro e presença
-de melhores iguarias do que as minhas,
-de dia em dia me tentava mais, e quando succedia
-achar-me entre gente alegre e em mesa
-de festa, as ondas de tentação, que eu forcejava
-dissimular o melhor que podia, crescião
-e redobravão com os motejos dos circunstantes,
-que bem poderião ter sal, mas não que
-adubasse as minhas insôssas hervas.</p>
-
-<p>De todos os varios antecedentes deduzo, que
-sem embargo das objeções, autoridades e exemplos,
-o uso das carnes se ha de ter por licito, e
-por dithirambico o que lá fica no texto: mas
-que fóra do caso de necessidade ou clara utilidade,
-e alem do ponto em que essa necessidade
-ou utilidade pararem, toda a sevicia
-contra viventes he immoral, injusta, insensata,
-e digna de muito grande castigo.</p>
-
-<p>E tanto isto assim he, que, porque todo o
-carniceiro de officio contrahe na alma e nos
-modos alguma couza de cruento e de tigre,
-em muitas partes se tem por infame. Em Portugal,
-nenhum mechanico honrado e de conta acceitaria<span class="pagenum"><a id="Page_287"></a>[287]</span>
-um tal para sogro ou genro, ainda com
-grosso cabedal de renda; nem de boca plebea
-pode saír mais afrontosa injúria que o nome
-de magarefe. Em Inglaterra não os admittem
-jurados em causa crime. Na principal ilha das
-Canarias encontrárão seus descobridores, que os
-naturaes, com viverem á lei de sua rudeza silvestre,
-“havião por couza mui torpe esfolar
-alguem gado, e n’este mister de magarefes lhes
-servião os cativos que tomavão; e quando lhe
-estes falecião, buscavão homens dos mais baixos
-do povo para este officio, os quaes vivião
-apartados da outra gente e não os communicavão
-em aquelle mister” (<i>Barr. Dec. 1. L. 1.
-C. 12.</i>)—Bem hajão os inglezes, que formão
-sociedades para proteger animaes, e abençoado
-seja o inglez Deputado Martin, que para
-lhes fazer bem, se arrosta com os escarneos dos
-praguentos. Bem hajão os allemães, que em
-seus campos não perdoão multa municipal aos
-que, no levar rezes pelos caminhos, as atravessão
-deante de si na albardadura, ou tolhidamente
-as apinhoão dentro em carros. E
-bem haja a nossa Camara, quando conseguir
-desterrar o escandalo do afrontoso trato que
-nossos carreiros dão a seus bois, como ja desterrou
-a atroz e immoral matança dos porcos
-perante os olhos do povo.</p>
-
-<p>Quero rematar com uma reflexão, que ja
-acima podéra ter cabido, mas que por dezejar
-da-la por conselho, e pô-la onde melhor se recommendasse,
-muito de industria deixei para<span class="pagenum"><a id="Page_288"></a>[288]</span>
-o fecho. Vai o dito a pais e educadores, a quem
-toca. Nada importa mais, do que affazer cedo
-os meninos a uma grande suavidade de costumes:
-assim foi creado o bom Montaigne.
-Se os eu tivesse, parece-me que tambem assim
-os crearia, e bem bons frutos lhes havia de
-colher na minha velhice. Primeiro que tudo,
-parece-me que me conformaria com Rousseau
-em os não alimentar desde o leite senão com
-vegetaes, por entender como elle, serem estes
-mais accommodados a suas naturezas, e mais
-proprios para fisicamente os suavizar e humanar.
-Mas não quero agora averiguar isto que
-pertence a medicos; outro he o meu alvo. Não
-consentíra jamais que presenceassem espetaculos
-de atrocidades ou injustiça; e quando a minha
-má estrella lhos presentasse, procuraria
-afea-los com boas razões, mais de affétos e lagrimas
-que de raciocinios. As urbanas corridas
-de touros e as aldeanas festas de alanceamento
-de pombos, frangos e patos, como couzas antiquissimas
-e nacional feição, as respeito; mas
-não levára la os meus tenrinhos, que são mui
-branda cera para qualquer bom ou máo cunho.
-Se de alguem lhes fosse insinuada a correntissima
-abusão de nossos provincianos, de que em
-casa que devasta ou maltrata os ninhos do
-seu beirado, tudo vai para traz e de fôrça se
-ha de aguardar por enterramento, calára-me,
-porque acho razão a Fontenelle em dizer, que
-se na mão tivesse fechadas todas as verdades
-do mundo, Deos o defendesse de a abrir.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_289"></a>[289]</span></p>
-
-<div class="poetry-container">
-<div class="poetry">
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0"><i>Magnànima menzogna, or quando è il vero</i></div>
- <div class="verse indent0"><i>Si bello, che si possa a te preporre?</i></div>
- </div>
-</div>
-</div>
-
-<p>Dar-lhes-hia, da Historia natural poetizada,
-tanta luz, quanta bastasse para levarem grande
-interesse nos fados de cada individuozinho que
-respira: um raio de tal luz póde bastar para
-pôr fim a muita dureza que provenha de cegueira.
-Conheci e tratei com um parocho de
-fóra da terra, que desgostoso de que uma sua
-fregueza, rapariga nova, não pozesse reparo em
-maltratar animaes, a chamou brandamente,
-explicou-lhe como tudo que era nascido devia
-ter algum entendimento, capacidade para dores
-e prazeres, parentes, amigos e affeições.
-Com isto só a fez outra, e tão outra desde essa
-hora, que onde depois se lhe fazia de mister
-dar morte a uma pomba ou gallinha, ainda
-que em seu páteo não forão creadas, ja o coração
-se lhe confrangia, tremião-lhe os pulsos,
-e chegada á execução, não corria mais
-sangue da ferida, que mal acertava, do que
-lagrimas de seus olhos.—De mim mesmo me
-parece agora, que se escrevi os versos a que
-me refiro, e em commenta-los me alargo tanto,
-e uma e outra couza de tão boa mente, de tudo
-deve ter sido raiz a creação, em tudo excellente
-e n’esta parte bem empregada, que
-meu pai se esmerou em dar a todos seus filhos.</p>
-
-<p>Outra couza fizera eu principalmente; era
-commetter-lhes o trato e tutela de alguns animaes
-caseiros, a quem podessem chamar seus.<span class="pagenum"><a id="Page_290"></a>[290]</span>
-N’este exercicio aprenderião a ser observadores,
-vigilantes, serviçaes; tomarião com o gôsto
-da propriedade o amor do trabalho, havendo-se
-ja por algum modo como pais de familias;
-costumar-se-hião a acautelar, previnir e
-amar; tomarião para toda a vida o geito de
-amparar fracos e desvalidos, e de não ver um
-qualquer indivíduo, sem logo compor na imaginação
-a historia completa do seu viver, do
-seu padecer, do seu precizar.</p>
-
-<p>Da efficacia de tal methodo, e tão simples,
-e tão formoso, tenho eu uma muito amavel
-prova de minhas portas a dentro. Uma mulher,
-toda boa, toda extremosa, tomou unicamente
-a peito o vingar-me da natureza; cerca-me de
-contínuo, como um anjo, de amor e de luz;
-empresta-me olhos para eu ver o mundo e as
-obras dos seculos; tira deante dos meus passos
-todos os espinhos no caminho da vida; inventa-me
-um encantamento novo para cada minuto;
-diz-me e faz-me entender como a verdadeira
-felicidade se não compoem de grandes
-pedaços, mas sim de atomozinhos que de longe
-se não podem perceber; repete-me e persuade-me
-que nasci para as Musas e para o amor, e
-não para a política, nem para os odios, serve-me,
-vela-me e defende-me como a filho, ama-me como
-a esposo, zela o meu nome como o de irmão; lançou
-a sua vida na minha vida, o seu pensamento
-no meu pensamento; existe pelo meu
-amor, morreria se lhe elle faltasse. Quem lhe
-ensinou tão generosa, tão nova benevolencia?<span class="pagenum"><a id="Page_291"></a>[291]</span>
-quem lhe deo tantos segredos de fazer feliz? as
-suas aves e pombas, a sua amiga, e alguns
-livros, unica sociedade da cella, onde desde
-seus annos verdes a Providencia ma estava guardando
-e aperfeiçoando<a id="FNanchor_17" href="#Footnote_17" class="fnanchor">[17]</a>.</p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<h4 class="nobreak" id="MAIO_NOTA_3"><i><a href="#Page_243">Pag. 243.</a> verso 18 e seguintes</i></h4>
-
-</div>
-
-<div class="poetry-container">
-<div class="poetry">
- <div class="stanza">
- <div class="verse indent0">O mesmo coração, dezejos, gostos,</div>
- <div class="verse indent0">Que tem nossas mortaes no peito occultos,</div>
- <div class="verse indent0">Tem as Ninfas tambem &amp;c.</div>
- </div>
-</div>
-</div>
-
-<p>Por estes versos começa uma torrente caudal
-de couzas vãs e doidas ácerca das mulheres,<span class="pagenum"><a id="Page_292"></a>[292]</span>
-e relações dos dois sexos, que ora mais, ora menos
-turva, se vai alongando até pag. 254. A pezar
-de se devolver por leito de quasi proza, e por entre
-margens para meu gôsto mal assombradas, bom
-seria que por ellas nos podéramos ir detendo a
-pescar, e a examinar algumas das couzas mais
-graúdas que vão na chêa: serião questões apraziveis
-de ociosa filosofia, mas prometti no prologo
-despreza-las; perdoar-lhes-hemos, deixa-las ir
-seu caminho. Passem a seu salvo as regras de
-namorar á antiga; a arte não de amar mas de
-enredar e colher, como o são quantas com titulo
-de amar se tem escrito; a poligamia, menos
-de Mahometano do que de Tupinamba;
-o divorcio e ulteriores nupcias dos divorciados
-e divorciadas; a botecuda nudez dos sexos
-&amp;c. La se avenhão como poderem todas essas
-puerilidades com seus inimigos, que se de minha
-Musa nascêrão, muito ha que eu e ella as
-desherdámos. O meu ponto agora he assentar
-boas pazes para sempre com as damas. Todas
-minhas Obras, não só esta, <i>Cartas de Echo</i>,
-<i>Amor e Melancolia</i>, <i>Noite do Castello</i>, <i>Ciumes
-do Bardo</i>, me devem ter perante ellas representado
-cavalleiro descortez de desleal poesia.
-Tempo he de mudar de cores, abjurar o erro,
-e para merecer o perdão, que ellas de puro boas
-concedem antes de pedido, romper lanças em
-favor de sua fama, não só contra inimigos,
-se os podem ter, mas contra mim proprio, pelas
-ter aggravado. He uma Nota estreita arena
-para tão singular duello: mas embora, que para
-outro dia e campo desafiado fica o eu mancebo<span class="pagenum"><a id="Page_293"></a>[293]</span>
-desatinado e altivo d’outro tempo por
-mim grave, reflexivo e respeitoso; o eu versejador
-por mim pensador; o eu academico e
-solteiro por mim cazado e recolhido: emfim
-por mim conhecedor do terreno do combate o
-eu ignorante d’elle, a cuja face ja n’esta hora
-arremésso a luva, e lhe digo “Mentiste, e
-mercê de Deos e de minha Dama, provar-to-hei.”
-Mas pois que he forçado ficar para outro
-dia a pendencia, aqui não farei mais do que
-um pouco ensaiar-me para ella, campeando
-soltamente e esgremindo nos ares.</p>
-
-<p>Nenhuma couza tem sido mais experimentada
-no mundo e mais vezes definida que o amor, nenhuma
-ha tão mal e imperfeitamente comprehendida
-como o amor. Fallo do amor dos homens, unico
-de que os homens podem fallar: o das mulheres
-he ainda mais incomprehensivel, e certamente
-muito mais espantoso, quando verdadeiro.
-O que pretende dar regras de amar, como
-alguns outros fizerão antes de mim, e como eu proprio
-supponho que pretendi, assemelha-se ao
-astronomo, que tendo endoidecido á força de
-ter velado as noites a observar os astros, presumisse,
-riscando órbitas com o lapis, constrangê-los
-a segui-las: as esferas e os affétos saem
-do nada ao sôpro de Deos, resplandecem com a
-sua luz propria e misteriosa, vão-se ora afastando
-ora aproximando de seus centros pelo
-caminho que sua natureza lhes ordena, eclipsão-se
-na hora prescrita, desappareceráõ quando
-Deos fôr servido; sem que em tudo isso haja querer,<span class="pagenum"><a id="Page_294"></a>[294]</span>
-escolha, presciencia, ou conhecimento de nossa
-parte. Amamos uma mulher, e certa mulher;
-porque temos de a amar; porque he necessidade
-sua e nossa que a amemos; amamo-la pelo
-modo que a natureza quer e não outro, não he
-uma acção mas uma paixão: se a premião o premio
-he gratuito, se a punem he injusto o castigo,
-porque não recáem sôbre um effeito de eleição.
-Ama-se uma mulher, repito, sem o procurar,
-sem o cuidar, sem arbitrio, a despeito da
-razão, da vontade e dos votos, como á rosa,
-como á lua, como á harmonia, como aos sabores
-dos frutos deliciosos. Para ellas se vai
-como os rios dos montes para os valles, como
-a chamma para o ceo, como a pedra do ar para
-a terra, como o menino para os peitos da
-ama, como o coração para o prazer. N’estas
-occasioẽs todo em nós he extraordinario, e se
-o posso dizer, sobre-natural: sentimo-nos fôrças
-que não possuiamos para querer, seguir,
-abraçar e reter: o pensamento se torna infinito,
-porque o objéto que procurâmos, como uma
-metade nossa que nos foge, nos apparece infinito.
-Por dentro d’aquellas graças fisicas, de
-que os sentidos se namorão, imagina-se um
-mundo estranho e illimitado de perfeições, de
-que se namora a alma: ahi se dezeja tudo
-quanto he capaz de embellezar a vida; o dezejo
-he logo esperança, a esperança certeza,
-a certeza delirio, e novamente dezejos; e quem
-porá limites a dezejos, a delirios, a esperanças?
-O abrangimento do infinito da Divindade
-em um corpo humano não he misterio que
-o amor não saiba muito bem entender. He<span class="pagenum"><a id="Page_295"></a>[295]</span>
-aqui o lugar de confessar que a este sobre-humano
-conceito, que da mulher amada se faz,
-mil vezes corresponde plenissima realidade.</p>
-
-<p>Por mais que a natureza se aprimore em modelar,
-tornear, corar, amaciar, brunir, bafejar
-e endeozar o fisico da mulher, as suas
-graças, o seu merito, o seu ser de mulher não
-são esses dotes, sujeitos ao tempo e dependentes
-de um ar, assim como nas flores não são
-mel as pétalas vistosas e coradas, o cheiro
-suave e attrátivo, que o sol e o vento attenuão
-e desbaratão. Diz-se que as feiticeiras tem o
-seu encantamento em um novêlo; o novêlo do
-feitiço das mulheres está no seu coração e no
-seu espirito, que n’ellas he tambem coração.
-O coração da mulher não mora descançadamente
-reclinado no peito como o nosso, por
-toda sua alma esvoaça perdido de amor, gemendo
-de amor, como uma ave mãi e feliz por
-todos os ramos de um bosque de primavera:
-sente-se-lhe o frémito das azas, ouve-se-lhe a
-harmonia em tudo quanto diz, em tudo quanto
-cala, no que faz como no que deixa de fazer,
-no que pensa, recorda ou espera, nas lagrimas
-e no riso, no enfado e no contentamento,
-na vigilia e no sono. O coração lhe está
-á porta interior de cada sentido recebendo as
-impressões; para elle e por elle veẽm, para elle
-e por elle ouvem, para elle e por elle presencêão
-a natureza, communicão com ella e
-comnosco. Um sôpro divino formou a alma do
-homem, a da mulher de um beijo delicioso deveo
-ser formada.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_296"></a>[296]</span></p>
-
-<p>Este afféto, esta doçura, esta, quero eu dizê-lo,
-feminidade da mulher são de tão alta natureza,
-tão estremes de liga, tão independentes
-do fim mesmo para que a providencia a destinou,
-que me parece ainda despojada de sentidos,
-poderia amar vehementemente como os
-espiritos angelicos. Que será quando os sentidos
-confluem, para atear com sua materia inflammavel
-este fogo celeste? ¿quando a Vestal,
-afrontando todo o futuro, deixa apagar no altar
-da Deoza de sua infancia a luz virginal que
-velou por tantos dias e noites? ¿quando na turbação
-insólita d’estas trevas desconhecidas, se
-entregou toda e com todo seu futuro ao ente
-que a implorou como Divindade, e que ella
-sabe e sente em si tornará feliz por cima de
-todas as felicidades? ¿quando uma vez encetou
-prazeres, cujo maior encanto para ella se
-da-los recebendo-os, e não os receber sem ao
-mesmo tempo consummar mais de um doloroso
-sacrificio? Oh então he o amar do amar!
-o afféto, que ja em profundeza não podia crescer,
-cresce em superficie, e trasborda todo e
-para toda a parte, como um perfume abundante;
-então he que sem voz pronunciou o <i>sempre</i>;
-que sentio apertar-se-lhe nas entranhas a indissolubilidade
-do consorcio, porque o amor de
-fantasia se fez realidade, de dezejo destino, de
-suspiro occulto gloria; a tudo tem ja direito
-porque ja deo tudo, não póde dezejar ser de
-outrem porque a outrem não teria tanto que
-dar. E he esta a grande differença da mulher
-ao homem, e do amor ao amor: o d’ella tem<span class="pagenum"><a id="Page_297"></a>[297]</span>
-um abono e côr de eternidade, o nosso um elemento
-e uma côr de tempo. Podéra ser emblema
-do nosso, uma náo alterosa e possante,
-surta em uma bahia aprazivel, mercadejando
-e folgando com a terra, empavezando ufania
-de flammulas e galhardetes, aferrada ao fundo
-do mar com uma unha de ferro, mas podendo
-de uma hora para outra arranca-la ou picar a
-amarra, desfraldar as velas que sempre estão
-prestes, e vogar atravez de todas as ondas,
-por cima de todos os abismos, a mercadejar
-e folgar no extremo opposto do mundo: emquanto
-a feminil affeição, como barquinha contente
-e desambiciosa, feita para os ocios de
-sua enseada, coroada a pôpa ora de flores abertas
-ora de esperançosos verdes, sem deitar nenhuma
-ancora, não foge nunca d’entre aquellas
-margens conhecidas; por entre ellas vai
-e vem avoejando de contínuo, levando e trazendo
-sempre commodos e alegrias, sem curar
-que de sua barra em fóra haja outros mares,
-n’esses mares outras bahias; delicia-se na
-sua, onde tudo a festeja e saúda por seu nome,
-onde se entende com todos os ventos, todos
-os refugios conhece para o dia da tempestade.
-O amor do homem, com os sentidos satisfeitos
-muita vez se satisfaz e adormece; como
-o frizão dos Jogos Olímpicos, que chegado
-apoz violenta carreira a tocar na meta, surdo
-até ás vozes da gloria que esporeou, se
-estirava para repouzar ou para morrer. O amor
-da mulher, satisfeitos os sentidos, se restaura,
-resurge mais puro e extremoso, mais vivaz e<span class="pagenum"><a id="Page_298"></a>[298]</span>
-promettedor; semelhante ás plantas, quando
-desfallecidas nos afrontamentos do verão se dessedentão
-com a chuva de uma nuvem que passsou,
-e viçosas reverdecem para embalsamar os
-ares de seu valle. Uma de muitas razões que
-para esta differença podem concorrer, he que
-n’essa hora adquirio a mulher direitos, o homem
-contrahio obrigações; as obrigações pezão,
-os direitos agradão, as obrigações limitão
-e apoucão, os direitos accrescentão e engrandecem.
-Trocarão-se os papeis na scena, o seguidor
-esquiva-se, a perseguida segue. O amor
-do homem he só amor, o amor da mulher he
-amor e amizade: elle, porque pertence ao mundo,
-á gloria e a tantas outras paixões, só tem
-meio coração, meia vontade, meio tempo para
-dar á sua companheira; esta, separada do
-mundo pelo mesmo mundo e pela natureza,
-por isso mesmo mais raramente accessivel a
-outras paixões, dá ao seu amigo todo o coração,
-toda a vontade e toda a vida; dar-lhe-hia
-se podesse mais vida, e mais coração, mas
-não mais vontade: com elle, por elle, e para
-elle existe, na propria ausencia o tem presente;
-e quando cessa de abraça-lo, he para se gozar
-de o ter abraçado, e cuidar como logo o
-abraçará de novo, e volverá a ser d’elle amado,
-fazendo-o feliz.</p>
-
-<p>Tal he o theor da natureza: tem excéções
-e numerosas. Corações ha de homens, que sem
-ser effeminados, não desdirião n’um peito feminino;
-e corações de mulheres, que talvez<span class="pagenum"><a id="Page_299"></a>[299]</span>
-bem nascidos e bem fadados, mas torcidos depois
-pela educação, quebrados pela sociedade,
-corrutos pelos exemplos, merecem as satiras,
-demaziadamente geraes, com que os autores de
-sua degeneração todos os dias lhe poem ferrete:
-mas essas, mais infelizes do que culpadas,
-os desgraçados que as pintem e condenem, eu
-pinto a mulher amante, a mulher perfeita, a
-mulher mulher, a mulher como a concebi, como
-a conheço, como a adoro. Foi esta a que
-Deos fez e temperou de poesia e harmonia lá
-na origem do mundo, quando vio que não era
-bom que o homem vivesse só. Esta he a que
-depois de nos dar a vida, no-la suaviza e apura;
-no-la multiplica em entes novos; no-la
-adoça nos momentos derradeiros; nos ama ainda,
-quando ja não somos; dá seus beijos amorosos
-a uma pedra, porque do nosso nome lhe
-conserva uma letra; e consummando o seu destino
-de amar, felicitar, sacrificar-se, ajoelhada
-na terra, nos vizita no mundo das sombras;
-estreitando o seu commercio com os ceos que
-a esperão, para nós só os invoca, e depois de
-no-los ter dado em amostra no tempo á fôrça de
-amor, á fôrça de amor no-los grangêa na eternidade.</p>
-
-<p>Custa a crer como um ente, que he metade
-da nossa especie, que das duas he a
-mais amavel metade, a mais carinhosa, em
-tantas couzas nosso igual para nos attraír, mas
-com tantas differenças de nós para se nos unir
-ainda mais, que se tem defeitos de nós os recebe,<span class="pagenum"><a id="Page_300"></a>[300]</span>
-e nos dá em troca, sem o cuidar, tantas
-das virtudes que possuimos, custa, digo, a crer
-como um talento, a quem sua propria fraqueza
-devêra tornar inviolavel, pôde ver-se em
-todos os tempos, e provavelmente continuará
-a ser até ao fim dos seculos, alvo e emprego
-das críticas mais desabridas, e mais grosseiras
-calúnias. Divindade extraordinaria, a quem
-seus proprios ministros e sacrificadores insultão
-adorando-a, e que de cima de seu altar, fragil
-mas eterno, inalteravel em sua mansidão,
-derrama sôbre bons e máos a felicidade! Que
-a filosofia as injuriasse não espantára. La Bruyere
-foi cruel para com ellas, Larochefoucault
-furioso, nenhum d’elles justo, nem sequer francez:
-a filosofia não anda sem os filosofos, e todos sabem
-como os dados a esse triste officio, são pelo demais
-almas seccas e incapazes de avaliar branduras,
-entendimentos sem olhos de imaginação,
-unicos proprios para julgar da verdadeira belleza;
-homens emfim eremiticos, rusticos e
-ignorantes no meio da sociedade; e para remate
-de suspeição, ja alongados pelo inverno
-da vida: da-se á filosofia o que as mulheres
-ja não querem.</p>
-
-<p>A poesia não tem sido menos descomedida:
-a poesia, que d’ellas e para ellas nasceo,
-cujas Divindades forão com razão pelos
-antigos fabuladas em fórma feminil, como
-as Graças, como os Genios de tudo quanto
-ha amavel na natureza, a poesia, a seu máo
-grado, lhes tem sido rebelde todas quantas vezes<span class="pagenum"><a id="Page_301"></a>[301]</span>
-os poetas, por de sobejo amantes e zelosos,
-precizárão desabafar desgraças verdadeiras ou
-fantásticas: a lira acostumada a lhes entoar seraficamente
-não louvores senão hinos, resoou
-execrações, ás quaes respondêrão numerosos
-echos; porque onde o numero dos ingratos e
-indignos era grande, não podia o dos maltratados
-e queixosos ser pequeno: e d’ahi nascêrão
-essas civis guerras da literatura a favor e
-contra o sexo, guerras batalhadas nas salas e
-saráos, nos passeios em romagens, nas merendas
-das comadres e nas academias, desde o
-Japão até Portugal, desde os serões da arca
-diluviana até os nossos dias, em que o amor
-cedeo á política, e as questões das mulheres
-ás questões dos ministerios: <i>Factus est repente
-de cœlo sonus, tamquam advenientis spiritus vehementer</i>....
-Ahi vinha ja querendo-se intrometter
-o meu demonio meridiano: ápage!</p>
-
-<p>Para as grandes pelejas de que fallava, se
-despejárão todos os arsenaes da mística theologia,
-da methafísica, da historia sagrada e
-profana, das fabulas e anecdotas, da fisiologia
-e novellas. Ficou largamente juncado o campo
-de cadaveres em folio, em quarto, em outavo,
-em doze, em dezeseis, em trinta e dois, em
-sessenta e quatro; de pergaminho, de marroquim,
-de seda, de taboa, de papelão, de carneira,
-de papel: defuntos quasi todos sem
-amenta, e cujos nomes, se os houvesse de compilar,
-encherião maior livro do que este. Depois
-do derramamento de tantos rios de tinta, ainda<span class="pagenum"><a id="Page_302"></a>[302]</span>
-pende a mesma questão; ainda até ao fim
-do mundo se tem de trazer para ella couzas
-que pareção novas; e as cinzas de Lucrecia,
-Dido, Phryne, Sapho, Aspasia, Arria, Cornelia,
-Osmia, Heloiza; Christina, Catharina,
-Maria Thereza; as cinzas das que habitárão
-cazaes, harens, palacios, mosteiros; as cinzas de
-Ninivitas, Gomorritas, Babilonicas, Espartanas,
-Atticas, Romanas, Africanas, Botecudas,
-Amazonas bellicosas, Indicas Bailladeiras,
-Viuvas Indostanicas, continuárão a ser revolvidas,
-pizadas e adoradas por modos sempre
-differentes, e quasi sempre cegamente, até á
-consummação dos seculos. A mulher fisica principia
-a ser conhecida, a mulher intellétual
-sê-lo-ha, a mulher moral he o infinito.</p>
-
-<p>A mocidade, quadra da vida em que reinão
-os mais encontrados ventos, em obras a maior
-vassalla e tributária do sexo, he, fallando,
-escrevendo, e talvez pensando, a sua maior
-detrátora. Uma conversação de mancebos, embora
-amantes, não se detem senão em rebaixar
-o merito das mulheres: nascidos os disséreis
-das pedras de Deucalião e criados ás tetas
-das lobas. Qual pode ser a causa d’esta
-mais que montezinha ferocidade? Será inveja á
-superioridade modesta? será despeito de vencidos?
-não; essas vitorias, e ainda essas superioridades
-em virtudes, que não são as distintivas
-do nosso sexo, facilmente se perdoão.
-He a causa o mesmo natural instinto, que faz
-que os soldados em tempo de guerra, seroando<span class="pagenum"><a id="Page_303"></a>[303]</span>
-entre as armas á fogueira ociosa do seu
-rancho, encareção as derrotas do inimigo, e
-lhe assaquem fraquezas que não tem, para a
-si proprios accrescentarem animos e determinação
-para as futuras pelejas.</p>
-
-<p>Facil he carecer das loucuras da idade que
-ja não temos, ou que ainda não temos; blazona-se
-d’isso, mas não he virtude: carecer porem
-dos vicios proprios dos nossos annos seria
-virtude, mas tão rara he, que o despossui-la
-deve merecer vénia dos sizudos. Era eu em toda
-a fôrça de minha adolescencia, quando entre
-coetâneos e a seu contento, cantava em
-meus versos destinados os fracos e imperfeições
-de algumas mulheres, como fracos e imperfeições
-de todas ou da maior parte. Da falsidade
-que n’isso havia me corro, mas muito
-mais do pouco delicado tom do meu cantar,
-porque se me figura agora delito ainda muito
-mais grave, do que attribuir-lhes defeitos, o
-pintar-lhos inamavelmente: a graça he o seu
-primeiro mérito, injuria-las graciosamente ainda
-não he de todo injuria-las. De muita nuvem
-se desaffronta, e de mui grande carga respira
-um coração confessando suas culpas, mormente
-quando pelas confessar se torna a entrar
-absolto e regenerado na estima e benevolencia
-das dominadoras do mundo: quasi se folga,
-como me está succedendo, de ter tido a culpa,
-para merecer a vénia e saborear a reconciliação.</p>
-
-<p>Transfuga dos arraiaes dos levantados, ás trincheiras<span class="pagenum"><a id="Page_304"></a>[304]</span>
-d’ellas me recolho, não só com as armas
-com que as guerriei, para as defender,
-mas com uma bandeira para chamamento e
-reunião de outros. Ressuscitaria, se podesse,
-para o meu novo campo todos os bem nascidos
-espiritos das idades cavalleiras e cortezes, para
-procurarmos salvar da ultima ruina o feminil
-imperio, que de dia para dia vai sendo
-entrado, talado e engolido da Política; fero
-monstro em que tão mal assenta feminino!
-E se o conseguissemos, se os moços que
-deixárão os affétos pelos debates, as sociedades
-pelos <i>clubs</i>, os versos e cartas apaixonadas
-pelos jornaes frios e praguentos, quizessem volver
-a seu natural officio de amar, de agradar
-e divertir-se, ¡como se não amaciaria esta bruteza
-quasi, cínica de nosso tempo illuminado,
-em que se não sabe ler! A propria Liberdade
-lucraria, porque os seus nervos e verdadeiros
-espiritos vitaes não são outros senão as virtudes
-e as bondades: ¿e quem como as mulheres,
-nos poderia ainda attrair da praça onde
-se briga, odêa e persegue, para a casa onde
-se quer bem e se folga, para a cosa onde até
-á ultima velhice nos educâmos, para a casa
-onde de bondades e virtudes nos dão ellas a
-todos os momentos exemplos vivos e formosissimos?
-<i>Tellus, et domus, et placens uxor!</i>
-Oh se eu podesse mostrar este meu pensamento,
-como me está florejando na alma!
-dizer com palavras a mulher como a sei no
-meu coração!... mas feminina he a mão com que
-escrevo, ¿como dezenharia ella o seu retrato?</p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_305"></a>[305]</span></p>
-
-<h4 class="nobreak" id="MAIO_NOTA_4"><i><a href="#Page_261">Pag. 261.</a></i><br />
-<span class="smaller">FIM DA FESTA DE MAIO.</span></h4>
-
-</div>
-
-<p>Se o fim de qualquer obra he a sua coroa,
-custará a achar obra tão mal coroada como
-esta <i>Primavera</i>. Dos quatro Poemas he a <i>Festa
-de Maio</i> o ínfimo, não contribuindo pouco
-para isso o seu estirado comprimento: e da
-<i>Festa de Maio</i> a ínfima parte he sem nenhuma
-dúvida a segunda e última. Boa e mui
-fertil era a idea primitiva, na qual, mas só na
-qual, mui casualmente me encontrára com o
-allemão Gerstenberg no dithirambo que traz
-titulo <i>Chipre</i>. Desenvolveo elle a sua, pôsto
-que em prosa, como poeta mui valente: derramei
-eu, e enfraqueci a minha em pobrissimos
-versos (era tempo que na maior parte dos dias
-compunha trezentos e mais) que bem podérão,
-sem detrimento de pensamentos, ser reduzidos ao
-terço do seu numero. Ja poderei parecer importuno
-com tanto repetir confissão das minhas
-faltas; mas antes isso, do que se diga que eu
-as córo ou tapo, ou com tantos annos ainda
-não caí em as conhecer cabalmente. Quem a
-este meu cortar pelas proprias roupas chamasse
-affétação, muito se enganára comigo: censuro-me,
-não para atalhar alhêas censuras;
-menos para provocar defezas aos que sempre
-folgão, quer em bem quer em mal, de encontrar
-as opiniões dos que escrevem; mas censuro-me
-e em todas minhas couzas marco seu<span class="pagenum"><a id="Page_306"></a>[306]</span>
-preço, para que os agora principiantes lá ao
-deante se não queixem de mim, como eu podéra
-agora queixar-me de outros, com cujos
-livros me criei. Consciencia e Verdade, ainda
-em mesquinhas letras, devem de ser escrupulosamente
-servidas: tem uma e outra alguma
-couza de tão divinas, que por mais dolorosos
-sacrificios que de nós lhes façamos, no-los pagão
-com íntima satisfação. Certo he que fazendo
-o que eu faço, se corre perigo de vir a
-um grande dissabor, como he, depois de sinceramente
-confessados os defeitos, saírem os nescios
-na arte de criticar, e que nunca uma só
-linha escrevêrão, aproveitarem-se cobardemente
-de taes revelações, vozea-las como descobrimentos
-seus, e vingando-se de sua propria
-esterilidade, triunfar miseravelmente dos descuidos,
-sem nenhuma menção das boas partes.
-Ja isso por mim passou depois que dissertei
-ácerca da invenção da <i>Noite do Castello</i>. Onde
-tal se escreveo, quem o escreveo, e como
-o escreveo não o direi, que não quero em livros
-meus andar carreando dementes para a
-posteridade, se he que meus livros tem de la
-chegar, como cá chegárão alguns bem ruins
-dos tempos atraz. E a final, que valem semelhantes
-pregoẽs e taes pregoeiros, comparados
-com as suas duas maiores inimigas que são a
-verdade e a consciencia? podéra accrescentar a
-vergonha. Em meu conceito nada. Por tanto
-sigão elles por seu caminho, onde se afogão
-em lodo, e todos lhes cospem na face; e eu,
-que nem sequer os tenho em assaz de conta para<span class="pagenum"><a id="Page_307"></a>[307]</span>
-os odiar, continue o dar documentos do unico
-merito de que me prézo, que he a candura.
-Para dar culto á Verdade e á Consciencia, não
-sacrificarei alhêas famas, que me não pertencem,
-mas pela minha rasgarei afoito: far-lhes-hei
-de meu sujeito intellétual, o que de seus corpos
-diz Fernão Mendes que fazião la em Tinagoogoo
-certos penitentes, que em procissões
-públicas se hião espedaçando ante os carros
-triunfaes dos seus idolos, e por fim se arremessavão
-por deante das rodas, para serem talhados
-e esmagados: <i>a que toda a gente</i>, como
-refere o bom perigrino, <i>com uma grande grita
-dezia: pachiloo a furão; que quer dizer:
-a minha alma com a tua. E decendo logo de
-cima do carro um sacerdote ... se chegava
-áquelles bemaventurados ou malaventurados ...
-e ajuntando os pedaços e as cabeças ... os mostravão
-ao povo de cima do mais alto sobrado
-do carro onde hia o idolo, dezendo n’um tom
-muito sentido:</i> “<i>Rogai peccadores todos a Deos,
-que vos faça dignos de serdes santos como este
-que agora morreo em sacrificio de cheiro suave.</i>”</p>
-
-<p class="center">FIM.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_308"></a>[308]</span></p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_309"></a>[309]</span></p>
-
-<h2 class="nobreak" id="MAIS_PRIMAVERA">MAIS PRIMAVERA.</h2>
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_310"></a>[310]</span></p>
-
-</div>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_311"></a>[311]</span></p>
-
-<h3 class="nobreak" id="PRIMAVERA_ADVERTENCIA">ADVERTENCIA.</h3>
-
-</div>
-
-<p>Os trez seguintes Artigos vem, <i>mutatis mutandis</i>,
-trasladados da <i>Guarda Avançada</i>, Jornal
-campeão da <span class="smcap">Carta</span> e da <span class="smcap">Rainha</span>, como todos
-os d’esse tempo, sem excétuar um unico; Jornal
-exagerado, e muitas vezes injusto sem querer, como
-o serão sempre os redigidos por almas novas e
-ardentes, sinceras e poeticas, inexpertas e temerarias,
-que presumem que uma revolução
-póde realizar os filantrópicos sonhos de um solitario;
-Jornal emfim de que eu fui collaborador,
-quando vivia para a política, ainda que
-não da política, e do qual perante minha consciencia
-me recordo com pezar mas sem peijo,
-porque talvez fez males e grandes males, não
-aspirando senão ao bem. Tanto he verdade,
-que só a moderação he capaz de dar frutos abençoados!
-Relêa-se o meu Prologo do <i>Tributo
-Portuguez</i>. Aqui não quero accrescentar mais
-nada sobre materias, sim importantissimas,
-mas que eu ja dou todas por um malmequerzinho
-dos campos. — Sáem pois os Artigos substancialmente
-os mesmos. Pena será, se passado
-agora tanto tempo depois de escritos, os
-que por la estão espectadores das couzas públicas
-os acharem muito mais applicaveis aos presentes
-dias; e ainda maior lástima, se para o
-deante não vierem a perder boa parte de sua
-verdade.</p>
-
-<p>Remato com o louvor, que no Prologo deixei<span class="pagenum"><a id="Page_312"></a>[312]</span>
-promettido, de meu mestre e amigo o
-Snr. Antonio Ribeiro dos Santos: fragmento
-copiado do <i>Num. 2</i> do <i>Jornal dos Amigos das
-Letras</i>. Se a alguem parecer que não cáe este
-sob o titulo de <i>Primavera</i>, paciencia; recebão-no
-como Nota, agazalhem-no como filho de
-gratidão. Para mim recende elle muita primavera
-de puericia, e de um jardim das Musas.</p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_313"></a>[313]</span></p>
-
-<h3 class="nobreak" id="MARCO">MARÇO<br />
-(PRINCÍPIO DA PRIMAVERA)</h3>
-
-</div>
-
-<p>Eis aqui os primeiros dias da graciosa estação.
-Das flores lhe chamárão os poetas; melhor
-podérão chamar-lhe flor do anno. A terra,
-como viuva ainda verde que se enfeita para
-novas bodas, a terra pelo sol repassada de
-amorosa quentura, vendo-o volver a afaga-la,
-depois de lhe haver por tanto tempo fugido,
-arrêa-se de todas suas galas, esperançosa sorrí
-por entre a sua grinalda florída, embebe-se
-em perfumes, acerca-se de musicas voluptuosas,
-e suspira brandamente dentro nos arvoredos recem
-vestidos, nos valles alcatifados, pelas margens
-dos rios outra vez serenos. Com razão foi
-a Primavera consagrada dos antigos ás Musas
-e Graças: com razão se escolhião as suas vésperas
-para o Pontifice Maximo accender o novo
-fogo, que devia durar todo o anno: com
-razão os pais de nossa lingua derão a esta parte
-do anno um nome feminino, e os pintores
-apparencias de formosa moça; emquanto Estio,
-Outono e Inverno pela aspereza, pela fôrça,
-pela gravidade, pertencião a outro sexo.
-Cada fonte se aliza em um espelho; cada pedra
-se veste em assento aveludado; cada haste
-nua se desaperta n’um ramalhete: tornão-se
-os bosques outras tantas republicas populosas,<span class="pagenum"><a id="Page_314"></a>[314]</span>
-cujos cidadãos, livres como as virações,
-voão, cantão, brincão, acaricião-se, desposão-se,
-educão a sua prole bafejada do ceo,
-e parecem não respirar senão o prazer da independencia,
-da ternura e da melodia. A natureza
-revoca á vida innumeraveis especies de
-animaes de que o Inverno só continha o germen;
-ás outras infunde, como aos passaros, um
-contentamento, uma ligeireza, uma attráção,
-que o Inverno lhes havia roubado ou amortecido.
-Do ceo chove fecundidade sôbre tudo que
-he vivo; e tudo o que he vivo sáe trajado de
-festa, e por toda a parte encontra mesa que
-Deos lhe assoalha, carregada de sua abundancia
-com luxo, magnificencia e formusura.</p>
-
-<p>A humana especie não podia em tão geral
-favor ser esquecida, antes foi o seu quinhão
-de todos o mais largo. O amor, que para nós
-não tem uma estação exclusiva, n’esta entretanto
-se nos desenvolve com recrescida atividade:
-he porque o proprio ar, empregnado de
-elementos vitaes, nos está coando aos peitos
-uma extraordinaria energia: he porque tudo
-em de redor exemplos são que nos cativão: he
-porque o alvoroço e festa do universo convidão
-o coração a gozar: he porque ao florir da rosa
-dos jardins, muita e muita rosa esmorecida
-se reanima nas faces da belleza: he porque a
-voz da mulher então sáe, não sei como, ainda
-mais doce; e tanto ellas mesmas sem o saber
-o sentem, que em toda a parte em que as horas
-e circunstancias do seu canto não andão<span class="pagenum"><a id="Page_315"></a>[315]</span>
-assentadas nas tarifas da moda, insensivelmente
-se achão a cantar, e este novo attrátivo parece
-n’ellas uma necessidade, como he nas
-aves da primavera. Dir-se-hia que a natureza
-nos manda as flores nos dias em que o amor
-nos instiga a offerecê-las.</p>
-
-<p>Mas os feitiços da Primavera não se limitão
-nos da recreação e amor. Um medico vos dirá
-que he ella a estação da saude; um sabio a
-do vigor mental; um navegante a do princípio
-de confiança nos seus mares: o artífice a
-saúda como a que abre a porta a longos dias;
-o pastor como a mãi da abundancia; o agrícola
-vê as esperanças do anno desparzidas por
-suas terras, por suas vinhas, por seus pomares.
-Ah! só os homens das cidades, tristemente
-condenados á fadiga e ao luxo, quasi não
-encontrão a primavera no seu anno! Para esses
-reduz-se a mais algumas horas de luz, e a
-uma pouca mais serenidade em um ceo sem
-horizontes. Se ao menos se podesse esta serenidade
-reflétir nas nossas almas!... mas os redemoinhos
-das novidades, os raios das intrigas
-ambiciosas, o frio do desalento e carregadas
-nuvens ao longe esterilizão tudo, e se uma ou
-outra flor de esperança nos desabrocha a medo,
-lá está logo a reflexão, filha do conhecimento
-dos homens, que a faz com um sôpro desapparecer.
-O anno dos nossos destinos teve um
-inverno bem longo e rigoroso: n’elle sulcámos
-a terra para semear liberdade e ventura, adubámo-la
-com o nosso sangue e corpos de nossos<span class="pagenum"><a id="Page_316"></a>[316]</span>
-irmãos, regámo-la com o nosso suor e lágrimas;
-e agora que nós e nossos filhos esperavamos
-ao menos a florescencia que nos augurasse
-frutos para o futuro, a Deos approuve
-de outro modo, e uma torrente de iniquidades,
-que não quer parar, continúa a assolar a
-terra de nossos avós.</p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_317"></a>[317]</span></p>
-
-<h3 class="nobreak" id="ABRIL">ABRIL</h3>
-
-</div>
-
-<p>Este mez, assim chamado por abrir o seio
-da terra á fecundidade; consagrado desde a infancia
-de Roma á Deoza da formosura, á Mãi
-das Graças, Amores, e Jogos, he o primeiro
-que ouza, por debaixo ainda das últimas nuvens
-chuvosas do inverno, sair e folgar com
-seu manto verde, e bordado de flores. O dia
-da sua entrada era para os nossos antepassados
-uma festa popular, menos estrepitosa que
-o Carnaval, de que parecia imitação, mas
-tambem mais innocente e serena. Ignoro se
-esse costume o herdárão elles de nações mais
-antigas, com quanto dos Romanos o não houvessem,
-de quem tantos outros lhes vierão.
-Tão pouco me recordo de haver lido alguma
-origem historica aos brinquedos rituaes do primeiro
-de Abril; mas sabido he que elles existírão
-em nossa terra, e inda hoje se lhes conservão
-os restos, mormente pelas Provincias.
-O dinheiro pregado nas ruas, as cartas, e prezentes
-de lôgro, a pedra que chamavão das
-agulhas, a fôrca de Judas, e outras quejandas
-bagatelas para rir, estão entretendo n’esta
-hora bastantes dos nossos aldeões do norte.</p>
-
-<p>As lembranças velhas tem para mim muito
-grande saudade, e doçura; doe-me o coração
-quando vejo ir-se perdendo estas seculares tradições
-que a ninguem fazião mal, ainda que<span class="pagenum"><a id="Page_318"></a>[318]</span>
-nascidas em berço de superstição, e que de bom
-tinhão o transportar-nos a tempos sabidos, e
-remotos, ou a tempos mais remotos ainda, e
-ignorados. E que he o que as apaga, e fica
-em seu lugar? odios, pobreza, e desgraças.
-Oh! aonde estará um poeta amigo dos serões
-e da innocencia, que se apresse em nos escrever
-os Fastos do nosso bom Portugal? No meio
-da confusão desconsolada do presente, nós beijariamos
-essa obra como santa reliquia em terra
-de infieis: veriamos um iris vão mas brilhante,
-entre nuvens de tormenta. Para excitar
-algum bom engenho a no-lo dar, he que
-eu coméço, e continuarei sempre a recordar
-nos seus dias proprios as nossas antiguãlhas:
-o que farei com muita avidez, porque
-d’aqui a alguns annos, o investiga-las será ja
-tarde. Assim os pintores Italianos se deleitão
-copiando os restos amortecidos das
-pinturas a fresco que sobre-vivem ao grande
-Imperio, e os antiquarios trasladão avidamente
-os enrolados livros das cidades soterradas,
-antes que de todo se desfação em pó.</p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_319"></a>[319]</span></p>
-
-<h3 class="nobreak" id="MAIO">MAIO.</h3>
-
-</div>
-
-<p>He a apparição d’este mez uma festa da natureza,
-em que sempre os homens se alegrárão:
-quizeramos poder tributar-lhe algumas flores
-pelas tantas que nos elle concede. Não teçamos
-o seu encomio d’aquillo que sendo sensivel
-a todos não carece de ser descrito. Zéfiros
-e rosas, rolas e rouxinoes, abelhas e
-borboletas, a terra toda verde, o ceo todo azul,
-as noites começando a fugir como envergonhadas
-de esconder as alegrias da natureza,
-objétos são que ainda que desde a origem do
-mundo se apresentem sempre novos, já se tornárão
-lugares communs nas descrições da poesia.
-Voltemo-nos para as recordações; embalemos
-e adormeçamos com ellas por um pouco
-o espirito martirisado dos absurdos e crueldades
-d’estes máos tempos, em que ja se não crião
-fabulas risonhas e innocentes, coloridas pela
-imaginação, animadas pelo amor.</p>
-
-<p>Forão os homens antigos os que idolatras da
-concordia, para melhor a insinuarem á terra,
-collocárão nos astros a sua imagem brilhante,
-e ao signo de Maio chamarão o signo dos Gémeos.
-Elles forão os que sensiveis aos encantos
-das Artes, consagrarão este mez a um Deos,
-que vivificando a natureza pela luz e calor,
-presidia com a Lira na mão aos prestigiosos
-artificios que a embellezão. Almas petrificadas<span class="pagenum"><a id="Page_320"></a>[320]</span>
-ha ahi, para quem estas saudades do mundo
-antigo são frivolas, comparadas com um artigo
-de gazeta; para nós he delicioso andar mergulhando
-pelo oceano dos seculos, e não voltar
-a assentar-nos na nossa Ilhota escabrosa e esteril,
-senão carregados dos coraes, das pérolas,
-das riquezas formosissimas, que se cá não
-produzem. O fundador de Roma dedicou aos
-mancebos (<i>Juvenes</i>) o mez de Junho; era essa
-a idade que lhe fazia ganhar vitorias, mas ja
-primeiro havia consagrado o Maio aos velhos
-(<i>Majores</i>), porque feroz como era, Romulo experimentava
-o afféto que nos attráe para com
-o antigo. Passemos por alto Festas misteriosas
-da Deoza Bona, celebradas pelas Romanas no
-primeiro de Maio, em todo o segredo dos Penates
-e sem testemunha de varão; visitas das
-Vestaes ao Pontifice Maximo e principaes Magistrados
-da Republica; contemplemos a expiação
-dos Lémures, pois que usos nossos me
-parecem ter d’ahi recebido origem.</p>
-
-<p>Á meia noite levantava-se o pai de familias,
-hia-se descalço, calado, e chêo de terror
-santo, á fonte, dando por todo o caminho amiudados
-estalos com os dedos para afugentar
-os genios máos. Lavava trez vezes as mãos, e
-tornando-se para casa, vinha atirando uma a
-uma, por cima da cabeça e para traz de si, favas
-negras, de que trazia chêa a boca, e articulando
-taes palavras—<i>com estas favas me resgato
-a mim e aos meus</i>:—o que por nove vezes
-repetia, sem olhar para traz, para não espantar<span class="pagenum"><a id="Page_321"></a>[321]</span>
-o espétro que vinha apanhando as favas
-negras. Tomava agua por uma ou duas vezes,
-batia n’um vaso de bronze, e para conjurar
-a sombra a lhe largar a casa, por nove
-vezes repetia—<i>Sahi, ó manes paternos</i>.—Eis
-provavelmente d’onde provierão estes sustos vagos
-que ainda se dão a sentir aos homens rusticos
-no princípio de Maio; este uso de se repartirem
-e comerem castanhas seccas para evitar
-que o Maio se apodere de nós. A imaginação
-do bom povo perdeo de vista essas larvas,
-mas o medo que ellas produzírão lhe ficou:
-he uma especie de moeda, que safada como está
-de passar de mãos em mãos, ainda conserva
-a sua valia.</p>
-
-<p>Outros costumes de Maio tem o nosso Portugal,
-a que folgáramos que alguem escavasse
-e descobrisse a raiz, sendo certo que na historia
-a devem ter. O Maio pequenino, que seguido
-de todas as crianças do bairro, corre enfeitado
-de flores, as ruas da cidade, ao som
-de um cantar antigo e uniforme; aquellas mimosas
-Maias tão arraiadas e donosas, que á
-orla dos caminhos se encontrão comprimentando
-os passageiros; aquell’outro estilo, ja talvez
-hoje passado, de se deitarem n’um mesmo
-leito um casal de creanças innocentes, para se
-lhes cantar em roda um como epithalamio,
-ou trova de suas bodas; os descantes amorosos
-dados com a viola n’esta occasião pelos aldeões
-ás suas escolhidas; não provirá tudo isto de alguma
-ja perdida lembrança de cultos da Deoza<span class="pagenum"><a id="Page_322"></a>[322]</span>
-Maia? E a usança de ornar com flores Maias
-as portas e interior das casas, não será reflexo
-distante dos festejos Romanos á Deoza Bona?</p>
-
-<p>A religião, que para si tomou ornato de tantas
-joias ao Paganismo, não se desdenhou tambem
-de perfilhar este mez. Em muitas freguezias,
-pelas nossas provincias do norte, o
-bom Parocho vai benzer no princípio de Maio
-a bandeja de rosas que entre os devotos se distribuem
-e se commungão, porque esta flor abençoada
-traz felicidade.—Vem depois aquellas
-tão esperançosas, tão cantadas e tão sabidas
-Ladainhas de Maio.—Hoje os camponezes de
-França vão plantar o seu Maio á porta das
-pessoas honradas da sua freguezia: os Inglezes
-renovão de certo modo as antigas <i>Vigilias de
-Venus</i>: os Gregos, como se os seus poetas d’outro
-tempo os inspirassem ainda, e a era das
-Elegias tornasse a reviver, vão descantar amores
-e pendurar grinaldas aos umbraes das suas
-inclinações: e os moradores de Roma, segundo
-nos foi dito por quem lá foi a essa terra de
-saudades, ainda agora se reunem na fonte de
-Egeria a respirar as delicias da natureza, debaixo
-d’aquelle ceo de tanto amor, que não a
-pensar em Numa e na grandeza antiga dos Romanos,
-de que a elles só veio em herança a
-terra coberta de muitas ruinas.</p>
-
-<p>¿Para que servem todas estas memorias, nos
-estão perguntando os insaciaveis de Politica?<span class="pagenum"><a id="Page_323"></a>[323]</span>
-e nós não lhes sabemos responder senão que a
-nós estes pensamentos nos fazem muito bem,
-e que aos amigos de passatempos innocentes se
-não ha de prohibir o que a ninguem faz mal.
-Deixai-nos ser algum dia do anno semi-pagãos.
-São as superstições da Politica ambiciosa as
-que empecem á felicidade, mas estes graciosos
-prejuisos de nossos pais a nenhuma couza do mundo
-danão. E de mais, se havemos de dizer toda
-a verdade, a fé, que a estes pobres erros acompanha,
-costuma trazer comsigo muita piedade
-religiosa, e n’ella alguma doçura moral,
-que nem sempre vai por onde vai a desenganada
-Filosofia. Ditoso d’aquelle engenho
-que podesse trazer outra vez ao mundo a innocencia
-que nos lá ficou no paiz das fabulas!
-mas interromper um sonho de poesia quando se
-julga que a felicidade vem apoz os nossos passos,
-voltarmo-nos, como Orfeo, para a abraçar,
-e vermo-la fugir e desapparecer n’um ai,
-e um mundo de realidades dolorosas estender-se
-immenso deante de nós, oh! isto he muito
-triste!</p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_324"></a>[324]</span></p>
-
-<h3 class="nobreak" id="ACERCA"><i>ÁCERCA DA PESSOA DO Sr.<br />
-Antonio Ribeiro dos Santos.</i></h3>
-
-</div>
-
-<p>Pôsto que o escrever de Varão tão conhecido
-dentro e fóra d’este Reino, qual foi o Sr.
-Antonio Ribeiro dos Santos, já possa a muitos
-parecer escusado, o deixar de o fazer, mais
-que seja por alto, nem a opportunidade da
-occasião mo consente, nem menos mo consentiria
-o gôsto, que sempre do refrescar essas
-memorias me resulta; por quanto na primavera
-de minha vida, e primeira manhã de minha
-poesia, foi que a boa de minha fortuna
-me deu conhecer este Nestor de nossa Literatura,
-que já então, ao cabo da sua longa e
-proveitosa carreira, ornado de muitos méritos
-de sciencias e virtudes, respeitado e apontado
-de longe, pouzava sereno e magestoso, aguardando
-pela sua hora, á beira da eternidade.</p>
-
-<p>Que fosse nascido nas terras do Douro, d’onde
-lhe prouve tomar nome de Elpino Duriense;
-que fizesse com bons mestres seus estudos;
-que se tornasse, lendo na Universidade de Coimbra,
-um de seus mais lustrosos luminares;
-que na Igreja e no Estado occupasse mui subidos
-empregos; que fosse o amigo e centro de
-quantos bons engenhos em seu tempo florecerão,
-não faltará quem o escreva entre seus outros
-muitos louvores. Tão pouco me deterei<span class="pagenum"><a id="Page_325"></a>[325]</span>
-dispartindo entre a Jurisprudencia, a Historia,
-as Antiguidades, a Literatura, e a Poesia
-o opulentissimo cathalogo de suas Obras,
-cuja maxima, e por ventura optima parte, ainda
-até agora não viu a luz. Não hão de ser mãos
-tão debeis como as minhas as que revolvão tamanhos
-trofeos, nem em tão pequeno espaço como
-este coubéra retratar completo Homem que
-abrangeu duas idades, bem fazendo-lhes mutuamente
-a uma pela outra; anticipando em meio
-do seculo passado o gôsto, o apuro, a filosofia
-d’este nosso; transplantando para o presente
-o estudo, a boa fé, o saber do passado;
-e legando ao futuro thesouros que andou desencantando
-das antiguidades remotissimas. Menos
-arremessados são meus dezejos, e mais seguros,
-que só quero levar meus leitores a com
-este bom velho encetarem conhecimento.</p>
-
-<p>Corre a primavera do anno de 1814 ou 15,
-que eu certo o não sei. A morada de Elpino,
-que em um dos mais desafrontados altos de Lisboa
-está formosamente situada, longe do bolicio,
-como bem cabia á sua indole pacifica e
-genio estudioso, he um templo de Musas, religiosamente
-vedado aos olhos e vozes de profanos,
-isto he dos máos e ignorantes, unicos
-de todos os entes para quem sua porta e animo
-não erão hospedeiros. Por aquellas salas,
-gravemente ataviadas á laia dos nossos antigos,
-de sedas e arrazes, alcatifas, tremós, espaldares
-e soberbos quadros dos mais perigrinos pintores,
-reina o silencio, e uma lembrança dos<span class="pagenum"><a id="Page_326"></a>[326]</span>
-antigos e abundosos tempos de nossos avós,
-que tanto conforma com os nobres e portuguezes
-pensamentos de suas poesias, as quaes se
-raras vezes voão sublimes, nunca, nem por sombras,
-desmentem da boa moral e sã filosofia.
-Aqui o bom Elpino nos recebe cordialmente,
-a meus irmãos e a mim; os filhos do seu amigo
-são seus amigos, os estudiosos das Musas
-portuguezas e romanas são os seus amores. O
-ancião, que ainda entre sabios podéra ser ouvido
-como oraculo, remoça-se conversando com
-meninos, apouca-se para que o melhor comprehendão,
-orna-lhes a moral e o estudo com
-quantas flores sabe; do centro da gloria lhes
-ensina por onde se abre o caminho que para lá
-conduz; e pelo grande espirito e persuasão com
-que falla, talvez consegue crear algumas vehementes
-vocações literarias. Outras vezes nos
-convida para a bibliotheca, suas delicias, e nos
-acompanha com a alegria na boca. Os seus
-olhos, como que ao fim de tanto lêr ja quizessem
-descançar para sempre, não lhe alumião
-o caminho; e semilhante áquelle grande
-Bardo Ossian, a quem velho e cego, piedosa
-conduzia a moça Malvina para os logares
-usados de sua inspiração, no hombro de uma
-menina, sua afilhada e leitora, segurava o bom
-de Elpino uma das mãos, emquanto com a
-outra arrimada a um bordão, palpava o caminho,
-e se ajudava em seu quebrado andar.</p>
-
-<p>Era a bibliotheca o íntimo retiro d’este ermitão
-do Parnaso, fugida para longe das casas,<span class="pagenum"><a id="Page_327"></a>[327]</span>
-pôsto que tão quietas, e frescamente assentada
-em meio de muitas sombras, verduras e
-aromas de seu jardim, hortas e pomares. Grandissima
-cópia de livros, longamente procurados
-e custosamente juntos, e entre os quaes se
-estremavão no numero e riqueza os Gregos, os
-Romanos, e os antigos Portuguezes, alí estavão
-juntos, entre o susurro estudioso das ramas
-e os cantares descuidosos dos passaros. Um
-Apollo de marmore com a sua lira em punho,
-parecia estar-se mui bem cabido e contente no
-meio d’aquelle seu alcaçar, cercado de tantos
-seus cultores, servido por tão venerando Sacerdote.
-Lembranças são estas que trago colhidas
-de minha infancia, e que transplanto para aqui,
-por não querer que se percão.</p>
-
-<p>Áquelle Homem, n’aquellas tardes, e debaixo
-d’aquelle této, devo a grande veneração
-que ainda hoje consagro aos meus livros latinos,
-não poucos dos quaes mos deu elle proprio;
-e tocados de suas mãos poeticas, me
-inspirão ainda agora poesia e virtude, até cerrados,
-e n’elles confio que me hajão de servir
-de pranchas, com que n’este pélago de freneticas
-e descompostas innovações, me não deixe,
-como tantos que mais valião do que eu, totalmente
-sossobrar. Nos seus ouvidos indulgentes
-lançava não só as primicias dos meus versos,
-mas ainda as traças e esperanças de obras
-que borbulhavão de uma seiba virgem de quatorze
-annos. Escutava elle tudo com desvellada
-benevolencia, umas vezes apontando-me melhores<span class="pagenum"><a id="Page_328"></a>[328]</span>
-caminhos ou mais faceis, outras desviando-me
-de commettimentos maiores que meus
-annos e forças; agora revelando-me regras, logo
-insinuando-mas com exemplos, com que sempre
-fiel e muito a ponto lhe acudia a memoria.
-Não he verdade que ha em tudo isto um não
-sei que, por onde o que o pratíca não póde
-menos ser de um grande homem? Oxalá meus
-esforços melhor houvessem respondido a suas
-diligencias, ou me não houvesse elle desamparado
-no começo da carreira, para a qual apenas
-me aparelhou! Sim, porque embora me
-hajão a vaidade, a gratidão péde que eu publique,
-foi este Pontifice das Musas que me
-iniciou no seu culto, e no seu paternal enthusiasmo
-me disse—Tu serás poeta.—Scena
-digna de um pincel eloquente: um ancião coroado
-de louros, e cego como Homero, sagrando
-ao culto da mais bella das Artes, um menino
-cego como elle!</p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="footnotes">
-
-<div class="chapter">
-
-<h2 class="nobreak">NOTAS</h2>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_1" href="#FNanchor_1" class="label">[1]</a> Alguma vez publicarei o que acerca d’isto disputamos
-por Cartas, de Lisboa para Coimbra, o Padre José Agostinho
-de Macedo e eu. Negava aquelle escriptor, de incontrastavel
-talento, que a Poesia Allemã e Suissa mais fosse do
-que a nossa rica em graças naturaes, e amena frescura, antes
-affirmava que a nossa a excedia grandemente. Ou não escrevia
-elle deveras, ou se convenceo do erro, como será de
-ver das Cartas, quando ellas aparecerem. O motivo porque
-até hoje as tenho dos publicos olhos resguardadas, outro não
-foi senão recêo de que se me attribuisse a vãgloria a publicação
-de uma disputa em que tamanho sujeito me cedeo,
-principalmente sendo notorio que o favor que em seus escritos
-deu ás minhas primeiras tentativas poeticas e infantis,
-jamais o denegou com o andar do tempo, antes o reforçou
-com mui graciosos louvores.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_2" href="#FNanchor_2" class="label">[2]</a> Conceder-lha-heis, se ja não tiverdes determinado emprega-la
-em outro uso, ou fundar nesse sitio alguma caza de
-Commissão que nada faça, ou algum quartel de guarda que
-legisle sobre os destinos publicos.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_3" href="#FNanchor_3" class="label">[3]</a> O Livro <i>Le mie Prigione</i>, quanto á utilidade prática
-leva, me parece, a palma á <i>Imitação</i> de Kempis. Em Kempis
-apparece a descrição da caridade e piedade, em Silvio a
-applicação d’ellas aos successos da vida. Kempis aconselha,
-Silvio ensina a perdoar, a amar, e a ser feliz, em despeito
-da fortuna: dá o exemplo d’isso, he elle proprio o exemplo.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_4" href="#FNanchor_4" class="label">[4]</a> Quem bem reparar na justiça rigorosa (de cruel a
-taxaráõ alguns) com que eu proprio trato a minha Musa,
-perdoar-me-ha quando por amor ás nossas letras, aponto um
-defeito em meu mestre e amigo o Snr. Antonio Ribeiro dos
-Santos. Inda assim, porque me não fique remordendo a consciencia,
-como expiação, e mui suave, porei no fim do volume
-um penhor do meu respeito e grato animo a tão grande
-varão; capitulo ja impresso no <i>Jornal dos Amigos das Letras</i>,
-mas por isso mesmo apenas conhecido.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_5" href="#FNanchor_5" class="label">[5]</a> Meu irmão Augusto Frederico de Castilho.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_6" href="#FNanchor_6" class="label">[6]</a> Meu irmão Adriano Ernesto de Castilho.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_7" href="#FNanchor_7" class="label">[7]</a> As Senhoras Mellos, a quem pertence a Lapa e a
-Quinta das Canas.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_8" href="#FNanchor_8" class="label">[8]</a> Na <i>Primavera</i> de meu Irmão Augusto Frederico de
-Castilho ha um lugar parallelo, não quanto á expressão,
-mas quanto ao pensamento principal. Releva porem que em
-duas couzas se advirta: a uma, que nenhum de nós foi plagiario,
-nem o podiamos ser, porque todos compunhamos em
-segredo; a outra, que o passo do poema, em que elle descreve
-Nize a figurar de Primavera, leva grande vantagem de
-valia a estes versos!</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_9" href="#FNanchor_9" class="label">[9]</a> Augusto Frederico de Castilho.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_10" href="#FNanchor_10" class="label">[10]</a> O meu amigo Jose Vitorino Freire Cardozo da Fonseca
-(<i>Etmiro</i>) tinha começado em uma sua quinta na Beira um
-jardim, tal como o descrevo aos seguintes versos, e que pretendia
-consagrar á minha memoria. Mal haja aquelle, a quem
-semelhante penhor de amizade não enternece!</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_11" href="#FNanchor_11" class="label">[11]</a> Veja-se a Quarta Edição do Diccionario chamado de
-Moraes.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_12" href="#FNanchor_12" class="label">[12]</a> Lamartine no Prologo de <i>Jocelyn</i></p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_13" href="#FNanchor_13" class="label">[13]</a> Em Maio se poem o ponto aos Estudos da Universidade,
-que eu n’aquelles tempos cursava. Só os que por ahi
-tem passado, podem entender o alvoroço com que he recebido.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_14" href="#FNanchor_14" class="label">[14]</a> Antigo nome da Serra de Estrella d’onde nasce o
-Mondego.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_15" href="#FNanchor_15" class="label">[15]</a> Por esta occazião me importa fazer um annuncio ao
-Publico. Ei-lo: declaro que se esse Jornal inexperadamente
-acabou, não foi minha a culpa, assim como de nenhum dos
-sócios, mas somente dos acontecimentos, assim publicos como
-privados da Sociedade: com elle nunca tive outras algumas
-relações senão as onerosas e de trabalho, que eu tomava comtudo
-com muito gôsto. Todos os sócios o sabem, mas interessa-me
-que o saiba toda a gente, para me salvar de quaesquer
-desasizadas reclamações.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_16" href="#FNanchor_16" class="label">[16]</a> Em podendo ser, publicarei um volume de poesias,
-que lá compuz acerca d’aquella bemaventurada solidão, onde
-annos vivi ignorado e contente, na residencia de meu Irmão
-Augusto Frederico.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_17" href="#FNanchor_17" class="label">[17]</a> Tudo isto, que eu julgava para sempre meu, passou!
-Aprouve a Deos mostrar-me só de relance a felicidade! Pouco
-mais de dois annos a illustre e digna sobrinha de Nicolau
-Tolentino de Almeida, a Senhora D. Maria Izabel de Baenna
-Coimbra Portugal, se sacrificou toda a felicitar-me: o Pai
-de todo o amor e de toda a virtude a chamou logo para o
-seu seio: era aquelle um Anjo que faltava no ceo. Esta Nota
-ao poema, vai como se achava feita quando ella ja me
-não escrevia, senão a espaços, mas ainda se comprazia de
-me ouvir dictar. Quando o seu fim era ja inevitavel, todos o
-sabião e talvez ella mesma, e eu contava ainda com largos
-annos de fortuna. O mesmo advirto quanto ás mais Notas e
-accrescentamentos d’este Livro, que tudo estava pronto (faltando
-só algumas poucas notas que não fiz nem ja farei) antes
-do fatal dia um de Fevereiro passado: dois se imprimio
-erradamente no Post Scriptum do Prologo. Se outrem não
-tivesse conservado essa data, e me não advertisse da inexatidão
-em que mal informado caí, ainda agora a podéra eu
-ignorar: esse dia, as vesperas e os seguintes não tiverão para
-mim nenhuma ráia nem de luz, nem do sôno, nem de alguma
-outra das couzas que estremão os dias.—<i>12 de Maio
-de 1837.</i></p>
-
-</div>
-
-</div>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum"><a id="Page_329"></a>[329]</span></p>
-
-<h2 class="nobreak">INDEX.</h2>
-
-</div>
-
-<table summary="Index">
- <tr>
- <td></td>
- <td class="tdpg">Pag.</td>
- </tr>
- <tr>
- <td>Ante-Prologo</td>
- <td class="tdpg"><a href="#ANTE-PROLOGO">5</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td>Prologo</td>
- <td class="tdpg"><a href="#PROLOGO">25</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td><i>Post-Scriptum</i></td>
- <td class="tdpg"><a href="#Post_Scriptum">47</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td>Epistola á Primavera</td>
- <td class="tdpg"><a href="#EPISTOLA_A_PRIMAVERA">49</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdl1">Dedicatoria a minha Irmã</td>
- <td class="tdpg"><a href="#EPISTOLA_DEDICATORIA">51</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdl1">Duas Palavras de Introdução</td>
- <td class="tdpg"><a href="#EPISTOLA_INTRODUCAO">53</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdl1">Epistola</td>
- <td class="tdpg"><a href="#EPISTOLA">57</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td>O Dia da Primavera Poemetto</td>
- <td class="tdpg"><a href="#O_DIA_DA_PRIMAVERA">75</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdl1">Dedicatoria a minha Mãi</td>
- <td class="tdpg"><a href="#DIA_DEDICATORIA">77</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdl1">Historia da Festa da Primavera</td>
- <td class="tdpg"><a href="#DIA_HISTORIA">79</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdl1">O Dia da Primavera Canto I</td>
- <td class="tdpg"></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdl2"><i>A Manhã</i></td>
- <td class="tdpg"><a href="#DIA_CANTO_I">95</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdl1">O Dia da Primavera Canto II</td>
- <td class="tdpg"></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdl2"><i>A Tarde</i></td>
- <td class="tdpg"><a href="#DIA_CANTO_II">111</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdl1">Notas ao Poemetto antecedente</td>
- <td class="tdpg"><a href="#DIA_NOTAS">131</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdl1">Nota 1.ª (<i>Elmano e Filinto—versificação esdruxola e aguda</i> &amp;c.)</td>
- <td class="tdpg"><a href="#DIA_NOTA_1">131</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdl1">Nota 2.ª de Augusto Frederico de Castilho</td>
- <td class="tdpg"><a href="#DIA_NOTA_2">162</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td>Os Cantos de Abril Idillio</td>
- <td class="tdpg"><a href="#OS_CANTOS_DE_ABRIL_IDILLIO">167</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdl1">Dedicatoria a meu Pai</td>
- <td class="tdpg"><a href="#IDILLIO_DEDICATORIA">169</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdl1">Advertencia</td>
- <td class="tdpg"><a href="#IDILLIO_ADVERTENCIA">171</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdl1">Os Cantos de Abril</td>
- <td class="tdpg"><a href="#IDILLIO">173</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdl1">Nota ao Idillio (<i>Excerpto de alguns versos da primeira Edição do Idillio, rejeitados n’esta segunda</i>)</td>
- <td class="tdpg"><a href="#IDILLIO_NOTA">186</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td>A Festa de Maio Poemetto</td>
- <td class="tdpg"><a href="#A_FESTA_DE_MAIO">189</a><span class="pagenum"><a id="Page_330"></a>[330]</span></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdl1">Dedicatoria ás Senhoras da Lapa dos Esteios</td>
- <td class="tdpg"><a href="#MAIO_DEDICATORIA">191</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdl1">Historia da Festa de Maio</td>
- <td class="tdpg"><a href="#MAIO_HISTORIA">193</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdl1">A Festa de Maio Canto I</td>
- <td class="tdpg"><a href="#MAIO_CANTO_I">199</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdl1">—— Canto II</td>
- <td class="tdpg"><a href="#MAIO_CANTO_II">225</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdl1">Notas á Festa de Maio</td>
- <td class="tdpg"><a href="#MAIO_NOTAS">263</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdl1">Nota 1.ª (<i>Com a tradução para latim dos amores de Galatea no Cant. 1 da Festa de Maio</i>)</td>
- <td class="tdpg"><a href="#MAIO_NOTA_1">263</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdl1">Nota 2.ª (<i>Piedade para com os animaes—alimento animal</i> &amp;c.)</td>
- <td class="tdpg"><a href="#MAIO_NOTA_2">269</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdl1">Nota 3.ª (<i>Em desaggravo das mulheres</i>)</td>
- <td class="tdpg"><a href="#MAIO_NOTA_3">291</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdl1">Nota 4.ª (<i>Sôbre o 2.º Canto da Festa de Maio</i>)</td>
- <td class="tdpg"><a href="#MAIO_NOTA_4">305</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td>Mais Primavera</td>
- <td class="tdpg"><a href="#MAIS_PRIMAVERA">309</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdl1">Advertencia</td>
- <td class="tdpg"><a href="#PRIMAVERA_ADVERTENCIA">311</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdl1">Março (<i>Princípio da Primavera</i>)</td>
- <td class="tdpg"><a href="#MARCO">313</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdl1">Abril</td>
- <td class="tdpg"><a href="#ABRIL">317</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdl1">Maio</td>
- <td class="tdpg"><a href="#MAIO">319</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdl1">Ácerca da Pessoa do Sr. Antonio Ribeiro dos Santos</td>
- <td class="tdpg"><a href="#ACERCA">324</a></td>
- </tr>
-</table>
-
-<p class="titlepage">FIM</p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<h2 class="nobreak">Lista de Assignantes.</h2>
-
-</div>
-
-<ul>
-<li><span class="smcap">S. M. F. A Rainha D. MARIA II.</span></li>
-<li><span class="smcap">S. M. I. A Duqueza de Bragança.</span></li>
-<li><span class="smcap">S. A. R. O Principe D. Fernando Augusto.</span></li>
-</ul>
-
-<ul>
-<li>A. A. A. Moreira.</li>
-<li>Ab. M.ᵃ J. Paiva Manso.</li>
-<li>Abrahão Weelhause.</li>
-<li>A. Carneiro.</li>
-<li>Achilles de Pereira.</li>
-<li>A. Eustaquio da Silva.</li>
-<li>Ag.ᵗᵒ de Castro da Gama Lobo.</li>
-<li>—— José Pereira.</li>
-<li>—— Roïz da F. Soares.</li>
-<li>A. J. R. Leitão.</li>
-<li>Albino F. de Figueiredo.</li>
-<li>Conselh.ᵒ Alexandre Alb. de Serpa Pinto. <i>4 Ex.</i></li>
-<li>Alexandre Lahmeyer.</li>
-<li>D. Alvaro.</li>
-<li>Amaro Coutinho Pereira.</li>
-<li>Anacleto José da Silva.</li>
-<li>André Joaquim Ramalho.</li>
-<li>—— Perez.</li>
-<li>A. Neves de Sequeira.</li>
-<li>Angelo Augusto Martins.</li>
-<li>D. Anna C. Guimarães.</li>
-<li>—— Ifig. do Valle de S. e Menezes.</li>
-<li>—— Lucinda Mont.ʳᵒ</li>
-<li>—— Ludovina.</li>
-<li>—— Margar.ᵈᵃ Fructuoso de Ar.ᵒ</li>
-<li>—— Victoria da Rocha Torres.</li>
-<li>Anonimo. <i>2 Exempl.</i></li>
-<li>Anselmo J.ᵉ Braamcamp.</li>
-<li>Ant.ᵒ Adolfo Ferr.ᵃ Sarmento. <i>15 Exempl.</i></li>
-<li>—— Adriano da Mata P.ᵗᵃ</li>
-<li>—— Ag.ᵒ Per.ᵃ Lacerda.</li>
-<li>—— Alves Souto.</li>
-<li>—— Aluisio Jervis d’Atouguia.</li>
-<li>—— Augusto Gonsalves.</li>
-<li>—— B. de Brito e Cunha.</li>
-<li>—— Cardoso e Silva.</li>
-<li>—— C. da Costa e Sousa.</li>
-<li>—— Coelho Bragante.</li>
-<li>—— da Costa Paiva. 130 <i>Exempl.</i></li>
-<li>—— Dias d’Azevedo.</li>
-<li>—— —— Monteiro.</li>
-<li>—— —— Rodão.</li>
-<li>—— Diniz Couto Valente</li>
-<li>—— Ezequiel d’Aguiar.</li>
-<li>—— F. Mag.ᵃᵉˢ Coutᵒ</li>
-<li>—— F. Mendonça Arraes.</li>
-<li>—— Frz. Alves Fortuna.</li>
-<li>—— Florencio Reixa.</li>
-<li>—— Fr. Alv. Guimarães.</li>
-<li>—— Freire Castello Br.ᶜᵒ</li>
-<li>—— de Freitas.</li>
-<li>—— Gaud. S.ᵃ Monteiro.</li>
-<li>—— G. Barreto de Pina.</li>
-<li>—— Gomes Lima.</li>
-<li>—— Glz. d’Alm.ᵈᵃ Rino.</li>
-<li>—— Gueifão Bello Per.ᵃ</li>
-<li>—— Guilherme da Costa.</li>
-<li>—— Henriques Doria.</li>
-<li>—— Jacinto Santarem.</li>
-<li>—— Joaquim de Abreu.</li>
-<li>—— Cons.ᵒ Antᵒ Joaq.ᵐ da Costa Carv.ᵒ 6 <i>Ex.</i></li>
-<li>—— Joaq.ᵐ Reis Junior.</li>
-<li>—— —— da Silva.</li>
-<li>—— —— Teix.ᵃ S.ᵃ</li>
-<li>—— J. d’Oliveira Lima.</li>
-<li>—— José d’Avila.</li>
-<li>—— J.ᵉ Bot.ᵒ da Cunha.</li>
-<li>—— —— Ferr.ᵃ de Sousa.</li>
-<li>—— —— Glz. Basto.</li>
-<li>—— —— —— Duarte.</li>
-<li>—— —— de Oliveira.</li>
-<li>—— J.ᵉ de Oliveira e S.ᵃ</li>
-<li>—— —— R. Guim.ᵃᵉˢ 3 <i>Ex.</i></li>
-<li>—— —— de Sá Camello.</li>
-<li>—— —— da S.ᵃ Milheiros.</li>
-<li>—— —— de Sousa Martins.</li>
-<li>—— —— Teixeira Leal.</li>
-<li>—— —— de Vasc.ᵒˢ 20 <i>Ex.</i></li>
-<li>—— Leite Pereira Lobo.</li>
-<li>—— Lopes de C. Alm.ᵈᵃ</li>
-<li>—— Lour. Coelho. 5 Ex.</li>
-<li>—— Luiz Nogᵃ e Freitas.</li>
-<li>—— M.ᵉˡ R. Abranches.</li>
-<li>—— —— Vargas.</li>
-<li>—— M.ᵃ d’Almeida e S.ᵃ</li>
-<li>—— —— de Campos.</li>
-<li>—— —— Ferreira.</li>
-<li>—— —— L. M. Queiroz.</li>
-<li>—— —— Machado.</li>
-<li>—— —— Thovar Lemos.</li>
-<li>—— Martins dos Santos.</li>
-<li>—— de Mello Breyner.</li>
-<li>—— N. Roïz. Cancella.</li>
-<li>—— Nunes dos Reis.</li>
-<li>—— Pedro de Carvalho.</li>
-<li>—— P. X. O. B. Leite.</li>
-<li>—— Pereira de Faria.</li>
-<li>—— Porfirio de Freitas.</li>
-<li>—— Ramos Azev.ᵒ Maia.</li>
-<li>—— Rib. Azev.ᵒ Bastos.</li>
-<li>—— Ribeiro de Faria.</li>
-<li>—— Sald.ᵃ R. Albuq.ᵉ</li>
-<li>—— Samp. X. Casqueiro.</li>
-<li>—— dos Santos Monteiro.</li>
-<li>—— de Sá Per.ᵃ Samp.</li>
-<li>—— da Silva Bastos.</li>
-<li>—— da Silva Leitão.</li>
-<li>—— S.ᵃ Monteiro. 2 <i>Ex.</i></li>
-<li>—— Sotero Sz.ᵃ Falcão.</li>
-<li>—— Thomaz Aquino S.ᵃ</li>
-<li>—— Vicente de Sousa.</li>
-<li>—— Vieira de Carvalho.</li>
-<li>A. P. Ardisson.</li>
-<li>A. P. B. de Saldanha.</li>
-<li>A. R. Sealy.</li>
-<li>Assemblea Lisbonense.</li>
-<li>—— Portuense.</li>
-<li>Associação Civilisadora.</li>
-<li>Augusto.</li>
-<li>—— Frederico Ferr.ᵃ</li>
-<li>Dr. Augusto Lavit. 2 <i>Ex.</i></li>
-<li>Augusto Maria Dermott.</li>
-<li>—— Victor Sabbo.</li>
-<li>Aureliano J.ᵉ de Moraes.</li>
-<li>Ayres Sá Nogueira. 3 <i>Ex.</i></li>
-<li>—— da Silva Coelho.</li>
-<li>Balthesar Lopes do Calheiros e Menezes.</li>
-<li>Bandeira—Ex-Governador do Castello. 4 <i>Ex.</i></li>
-<li>Barão d’Argamaça.</li>
-<li>—— de Ruivoz.</li>
-<li>Barnabé F. Paula Ataide.</li>
-<li>Bartholomeu dos Martires.</li>
-<li>Bento Alão.</li>
-<li>—— de Almeida.</li>
-<li>—— G. Brito Taborda.</li>
-<li>—— Guilherme Klingleofer. 3 <i>Exempl.</i></li>
-<li>—— J.ᵉ Teixeira Penna.</li>
-<li>—— de Moura Portugal.</li>
-<li>—— Pereira.</li>
-<li>Bernardino J.ᵉ dos Santos.</li>
-<li>Bernardo José de Miranda.</li>
-<li>Busch.</li>
-<li>Dr. Cabral Teix.ᵃ Moraes.</li>
-<li>Caet.ᵒ Alberto Orlandi.</li>
-<li>—— J.ᵉ Alves d’Araujo.</li>
-<li>—— José M.ᵃ de Sena.</li>
-<li>—— Xavier Diniz.</li>
-<li>C. Almeida.</li>
-<li>Camillo da Silva Ferraz.</li>
-<li>Candido José Roïz Vieira.</li>
-<li>Cap.ᵃᵒ Engenheiro Carv.ᵒ</li>
-<li>Carlos Augusto Poppe.</li>
-<li>—— Gould. 5 <i>Exempl.</i></li>
-<li>—— de Sá.</li>
-<li>—— Vieira da Silva.</li>
-<li>Carneiro.</li>
-<li>Castro Almeida.</li>
-<li>C. F. Altavilla.</li>
-<li>Christovão M.ᵃ dos Santos.</li>
-<li>Cipriano A. Rib. Freire.</li>
-<li>Cipriano Dom. Vianna.</li>
-<li>C. Lagrange.</li>
-<li>D. Clara Clorinda Lopes Pereira de Vasconcellos.</li>
-<li>Clem.ᵉ A. O. M. Alm.ᵈᵃ</li>
-<li>—— Augusto Bolonha.</li>
-<li>D. Clementina Adelaide da Silva Monteiro.</li>
-<li>C. Massa.</li>
-<li>C. M. Caula.</li>
-<li>Conde da Cunha.</li>
-<li>—— de Lumiares.</li>
-<li>—— de Mello. 6 <i>Ex.</i></li>
-<li>—— de Villa Real.</li>
-<li>Condeça de Belmonte D. Jeronima.</li>
-<li>—— de Mello. 2 <i>Ex.</i></li>
-<li>—— de Villa Real.</li>
-<li>Cosme José Dias. 10 <i>Ex.</i></li>
-<li>Daniel Cesar S.ᵃ Ferraz.</li>
-<li>—— Sotero Caio dos S.ᵗᵒˢ</li>
-<li>D. A. R. Varella.</li>
-<li>David Ubaldo S.ᵃ Leitão.</li>
-<li>Diogo Ant.ᵒ de Sequeira.</li>
-<li>—— Aug. C. Constancio.</li>
-<li>—— P. Mtr.ᵒ Bandeira.</li>
-<li>Domingo Garcia Peres.</li>
-<li>Domingos Fr. Santos Lim.</li>
-<li>—— Monteiro de Albuquerque e Amaral.</li>
-<li>—— Ribeiro de Faria.</li>
-<li>—— —— dos S.ᵗᵒˢ</li>
-<li>Duque da Terceira.</li>
-<li>Duqueza da Terceira.</li>
-<li>C.ᵉˡ E. C. C. F. Furtado.</li>
-<li>Eduardo Frederico Lour.ᵒ</li>
-<li>Emilia C. de Figueiredo.</li>
-<li>D. Emilia Martinini.</li>
-<li>Epifanio Fr. de Miranda.</li>
-<li>Ernesto Adolfo de Freitas.</li>
-<li>—— M. V. Montenegro.</li>
-<li>—— José Ferreira.</li>
-<li>D. Faustina M.ᵃ das Dominações Simões.</li>
-<li>F. C. de M.</li>
-<li>Feliciano Alm.ᵈᵃ Vidal.</li>
-<li>Fernando Affonso Giraldes de Mello e Sampaio.</li>
-<li>Fernando Theod. Arnaut.</li>
-<li>F. L. Bettencourt.</li>
-<li>Figueiredo. 13 <i>Exempl.</i></li>
-<li>Filippe Folque.</li>
-<li>Fortunato José Barreiros.</li>
-<li>—— —— N. M. e Mello.</li>
-<li>D. Francisca de Noronha.</li>
-<li>Fran.ᶜᵒ Abrantes.</li>
-<li>—— Adrião Pereira.</li>
-<li>—— Affonso da Costa Chaves e Mello. 12 <i>Ex.</i></li>
-<li>—— Alves Souto.</li>
-<li>—— —— Alm.ᵈᵃ Reixa.</li>
-<li>—— Ant.ᵒ de Pinho.</li>
-<li>—— —— Cerqueira S.ᵃ</li>
-<li>—— —— F. S.ᵃ Ferrão.</li>
-<li>—— —— dos Santos.</li>
-<li>—— de Assis Almeida.</li>
-<li>—— —— —— Alm.ᵈᵃ C.ᵗᵉ Real.</li>
-<li>P. Francisco d’Assis Biga.</li>
-<li>Fran.ᶜᵒ Brito P. Almeida.</li>
-<li>—— Candido Mend.ᵃ</li>
-<li>—— de Castro Freire.</li>
-<li>—— C. Judice Samora.</li>
-<li>—— da Conc.ᵃᵒ Soares.</li>
-<li>—— Dias Brandão.</li>
-<li>—— Eduardo Andrade.</li>
-<li>—— Fabião de Mend.ᶜᵃ</li>
-<li>—— Gaspar Lahmeyer.</li>
-<li>—— Gomes Loureiro.</li>
-<li>—— Joaq.ᵐ da Cunha Travassos Cast.ᵒ Branco.</li>
-<li>—— —— da Fonseca.</li>
-<li>—— —— dos Santos.</li>
-<li>—— J.ᵉ de Freitas.</li>
-<li>—— J.ᵉ de Sousa Nunes.</li>
-<li>—— —— Tavares Junior.</li>
-<li>—— Luiz de Sousa.</li>
-<li>—— da Mãi dos Homens Annes de Carvalho.</li>
-<li>—— M.ᵉˡ C. Pimenta.</li>
-<li>—— —— de Negreiros.</li>
-<li>—— M. Silvr.ᵃ Menezes.</li>
-<li>—— —— de S.ˢᵃ Brandão.</li>
-<li>—— —— de Maris Coelho.</li>
-<li>—— M. Walsh. 4 <i>Ex.</i></li>
-<li>—— Nunes da Silva.</li>
-<li>—— Paula Costa Feio.</li>
-<li>—— —— Seg. Lemos.</li>
-<li>—— —— S.ˢᵃ V. Boas.</li>
-<li>—— —— V. Campos.</li>
-<li>—— —— Zuzarte.</li>
-<li>—— P. Taboada Junior.</li>
-<li>—— P.ᵗᵒ de Magalhães.</li>
-<li>—— Raim. d’Andrade.</li>
-<li>—— da Silva Falcão.</li>
-<li>—— Vieira S. Barradas.</li>
-<li>Frederico Aug.ᵗᵒ Martha.</li>
-<li>Fructuoso Dias Mendes.</li>
-<li>—— —— de Paiva Card.ᵒ</li>
-<li>F. Z. Fer.ᵃ d’Ar.ᵒ 5 <i>Ex.</i></li>
-<li>Dr. G. Centazzi.</li>
-<li>Gabriel Fran.ᶜᵒ Ribeiro.</li>
-<li>—— Lopes de Lima.</li>
-<li>G. A. Pereira de Sousa.</li>
-<li>Gaspar dos Reis e Sousa.</li>
-<li>—— Schindler.</li>
-<li>D. Genoveva Victoria da Rocha Farinho.</li>
-<li>D. Gervasia Joaquina de Sousa Falcão.</li>
-<li>Greg.ᵒ Mag.ᵃᵉˢ Collaço.</li>
-<li>Guilherme Ignacio Basto.</li>
-<li>H. D. Wems.</li>
-<li>Henriq. J. Passos Chaves.</li>
-<li>Hermano Estanisláo Orlandi.</li>
-<li>H. Hodgson. 10 <i>Exempl.</i></li>
-<li>H. J. Moser.</li>
-<li>H. O. Maya. 2 <i>Exempl.</i></li>
-<li>Honorio Ces. Mendonça.</li>
-<li>Ignacio Cabral Arez da Silveira Barros.</li>
-<li>Vice Almirante Ignacio da Costa Quintella.</li>
-<li>—— José de Sá.</li>
-<li>—— P. Qt.ᵃ Emaus.</li>
-<li>D. Ignez Raim. Prado.</li>
-<li>D. Ildefonso Olheiro.</li>
-<li>Isidoro H. C. Semmedo.</li>
-<li>Izidro Costa.</li>
-<li>Jacinto de Freitas Oliv.ʳᵃ</li>
-<li>—— José de Mattos.</li>
-<li>—— José de Sá Lima.</li>
-<li>—— de Sousa Falcão.</li>
-<li>—— —— —— —— 2 <i>Exempl.</i></li>
-<li>Jacomo Pereira de Carv.ᵒ</li>
-<li>J. Bento Pereira.</li>
-<li>J. B. Massa.</li>
-<li>J. B. S. L. de Almeida Garrett.</li>
-<li>J. C. Bastos.</li>
-<li>Jeronimo José da Silva.</li>
-<li>—— Perᵃ Vasconc.ᵒˢ</li>
-<li>—— —— da S.ᵃ Cardoso.</li>
-<li>J. F. Danin.</li>
-<li>J. F. Passos.</li>
-<li>J. F. R. S. de Azevedo.</li>
-<li>J. F. Thomaz.</li>
-<li>J. G. Toussaint.</li>
-<li>J. J. A. Redondo.</li>
-<li>J. J. da C. J.</li>
-<li>J. J. Loureiro.</li>
-<li>J. J. Manitti.</li>
-<li>J. M. Chaves.</li>
-<li>J. M. F. Dias.</li>
-<li>J. M. S. Freire.</li>
-<li>João A. de S.ˢᵃ Queiroga.</li>
-<li>—— A. Lobo de Moira.</li>
-<li>—— Anastacio Simões.</li>
-<li>—— Antonio Biga Nunes.</li>
-<li>—— —— Colasso da S.ᵃ 2 <i>Exempl.</i></li>
-<li>—— —— Marques.</li>
-<li>—— —— Pereira.</li>
-<li>—— Bap.ᵗᵃ da Costa.</li>
-<li>—— —— da Cunha Fer.ᵃ</li>
-<li>—— —— e Mafaos.</li>
-<li>—— —— Sabo Junior.</li>
-<li>P.ᵉ João Baptista da S.ᵃ</li>
-<li>João Bpt.ᵃ S.ᵃ Malafaia.</li>
-<li>—— Bento da Costa.</li>
-<li>—— Bonifacio Guimarães.</li>
-<li>D. João da Camara.</li>
-<li>João Coelho de Gibraltar.</li>
-<li>—— —— da Silva.</li>
-<li>—— Dias X. do Loureiro.</li>
-<li>—— Ferr.ᵃ Azev.ᵈᵒ Junior.</li>
-<li>—— —— Camp. 10 <i>Ex.</i></li>
-<li>—— —— dos S.ᵗᵒˢ S.ᵃ J.</li>
-<li>P. João Franc.ᵒ B. Lança.</li>
-<li>João Gomes Roldão.</li>
-<li>—— —— dos Santos.</li>
-<li>Dr. João Gonç. Miranda.</li>
-<li>Dr. João Gonç. M. Robalo.</li>
-<li>João Guilherme Caldeira.</li>
-<li>—— Ignacio Curvo.</li>
-<li>—— Januario V. Rezende.</li>
-<li>—— José da Assumpção.</li>
-<li>—— —— Ferr.ᵃ de Sousa.</li>
-<li>—— —— Freitas Aragão.</li>
-<li>—— —— Machado Ferr.ᵃ</li>
-<li>—— Lameira M. V. Lobos.</li>
-<li>—— Lourenço Ferr.ᵃ Braga. 4 <i>Exempl.</i></li>
-<li>—— Luiz de Sousa Falcão.</li>
-<li>—— —— Talone.</li>
-<li>—— Manoel de Aral.</li>
-<li>P.ᵉ João Maria Cardeira.</li>
-<li>João Maria Feijó.</li>
-<li>D. João Martins Falcão.</li>
-<li>João da Matta e Silva.</li>
-<li>—— Mend. A. Barbarino.</li>
-<li>—— Neves Gomes Eliseu.</li>
-<li>—— Nogueira Gandra.</li>
-<li>—— Nunes da Silva.</li>
-<li>—— Pedro Coelho.</li>
-<li>—— —— Heitor Alcant.ᵃ</li>
-<li>—— —— Nol. Cunha.</li>
-<li>—— Per.ᵃ Queiroz Basto. 20 <i>Exempl.</i></li>
-<li>—— Silva Fonseca.</li>
-<li>—— Procopio Tavares.</li>
-<li>—— Saecadura Botte Corte Real. 2 <i>Exempl.</i></li>
-<li>—— da Silva Falcão.</li>
-<li>D. João Silva Pessanha.</li>
-<li>João da Silva Serrão.</li>
-<li>—— de Sousa Falcão.</li>
-<li>—— Vic.ᵗᵉ P.ᵗᵉˡ Mald.ᵈᵒ</li>
-<li>—— de V.ˡᵃ N.ᵛᵃ de Vasc.ˡᵒˢ Correia de Barros.</li>
-<li>Joaq.ᵐ Xavier da Maia.</li>
-<li>—— Ant.ᵒ Aguiar. 5 <i>Ex.</i></li>
-<li>—— —— Barbosa Torres.</li>
-<li>—— —— da Costa.</li>
-<li>—— —— da Fonseca.</li>
-<li>—— —— Tenreiro.</li>
-<li>—— —— Vidal da Gama.</li>
-<li>—— Augusto Burlamaqui Marecos.</li>
-<li>—— Barreto de Castilho.</li>
-<li>—— Corrêa Moreira.</li>
-<li>—— Felix Moreira 6 <i>Ex.</i></li>
-<li>—— Francisco Danim.</li>
-<li>—— G.ᵐᵉˢ V.ʳᵃ Gaio.</li>
-<li>—— José Bernardes.</li>
-<li>—— —— Costa Macedo.</li>
-<li>—— —— Costa Portugal.</li>
-<li>—— —— da Cunha.</li>
-<li>—— —— Dias Lopes de Vasconcellos. 3 <i>Exemp.</i></li>
-<li>—— —— Figueira.</li>
-<li>—— —— Gião.</li>
-<li>—— —— Lobo.</li>
-<li>—— —— Marques Cald.ᵃ</li>
-<li>—— Julio da S.ᵛᵃ Ferraz.</li>
-<li>Cons.ʳᵒ Joaq. Larcher.</li>
-<li>Joaq. Lucio Arbues M.ʳᵃ</li>
-<li>—— das Neves Franco.</li>
-<li>—— Pedro Abreu Lima.</li>
-<li>—— Romão Lob.ᵗᵒ Pires.</li>
-<li>—— da Silva Cordeiro.</li>
-<li>—— da Silva Machado.</li>
-<li>—— Torquato Alvares Ribeiro. <i>6 Exemp.</i></li>
-<li>—— Victor S.ᵃ Gosmão.</li>
-<li>—— Urbano de Sampaio.</li>
-<li>D. Joaq.ⁿᵃ Carlota Fons.ᶜᵃ</li>
-<li>Jorge Oom.</li>
-<li>José Anastasio Pereira.</li>
-<li>—— Antonio de Almeida.</li>
-<li>—— —— de Castro.</li>
-<li>—— —— Cob.ʳᵒ d’Azevedo Gentil.</li>
-<li>—— —— Mello Ar.ʲᵒ</li>
-<li>—— —— da Silveira.</li>
-<li>—— —— Soares M.ᵈᵉˢ</li>
-<li>—— d’Ar.ʲᵒ Coutinho V.ⁿᵃ</li>
-<li>—— —— Machado.</li>
-<li>—— Aug.ᵗᵒ Correa Leal.</li>
-<li>—— Bernardino Frazão.</li>
-<li>—— de Brito.</li>
-<li>—— Caetano Rebello.</li>
-<li>—— Candido Alz. Torres Barata Araujo e Lima.</li>
-<li>—— Carlos Cerveira Val.ᵗᵉ</li>
-<li>—— —— da Costa P.ʳᵃ</li>
-<li>—— —— Guimarães.</li>
-<li>B.ᵉˡ José Cesar da Silveira.</li>
-<li>José C. M.</li>
-<li>—— do Coração de Jesus.</li>
-<li>—— Crispim da Cunha.</li>
-<li>—— Ricardo P.ʳᵃ Cabral.</li>
-<li>—— Roïz. da S.ᵃ Vianna.</li>
-<li>—— dos Santos Nazareth.</li>
-<li>—— Servulo Costa e S.ᵃˢ</li>
-<li>—— Silverio da Fonseca.</li>
-<li>—— Silvestre de Andrade.</li>
-<li>—— Sousa Falcão Senior.</li>
-<li>—— —— —— Junior.</li>
-<li>—— Tello Mag.ᵃᵉˢ Collaço.</li>
-<li>—— Vaz Araujo Veiga.</li>
-<li>José Victorino Freire da Fonseca Cardoso.</li>
-<li>—— —— Zuzarte Coelho da Silveira.</li>
-<li>Jovencio Pedroso Oliv.ʳᵃ</li>
-<li>J. Paulo da Silva.</li>
-<li>J. P. N. X. de L. Brito.</li>
-<li>J. P. R. G.</li>
-<li>J. R. Blanco.</li>
-<li>J. R. Manco.</li>
-<li>J. R. Pinto.</li>
-<li>K. Pinto.</li>
-<li>L. A. M. Brandão.</li>
-<li>L. J. de Gouvea.</li>
-<li>Leandro Capistrano d’Almeida Figueiredo.</li>
-<li>Lourenço de Almeida.</li>
-<li>—— Justiniano Lima.</li>
-<li>—— M. Telles Mattos.</li>
-<li>L. T. H. de Brederode.</li>
-<li>Luciano S. Carv.ᵒ para si e seus amigos 40 <i>Ex.</i></li>
-<li>Luiza Mathey.</li>
-<li>Luiz A. Bello Reis Junior.</li>
-<li>—— Antonio de Freitas.</li>
-<li>—— B. Ribeiro Vianna.</li>
-<li>—— Caet.ᵒ Guerra Santos.</li>
-<li>—— C. Alm.ᵈᵃ Botelho.</li>
-<li>—— da Costa Pereira.</li>
-<li>—— —— —— Pinto.</li>
-<li>—— Joaquim de Sampaio.</li>
-<li>—— José da Silva.</li>
-<li>D. Luiz M.ᵃ da Camara.</li>
-<li>Luiz de Mello Breyner.</li>
-<li>—— —— —— Corrêa.</li>
-<li>—— Miguel d’Azevedo.</li>
-<li>—— O. da Costa.</li>
-<li>M.ᵉˡ Alves do Rio Junior.</li>
-<li>—— Antonio Rodrigues.</li>
-<li>—— —— Vianna.</li>
-<li>—— Bento Rodrigues.</li>
-<li>D. Manoel da Camara.</li>
-<li>M.ᵉˡ de Castro Pereira.</li>
-<li>—— —— —— e Silva.</li>
-<li>—— Coelho Bragante.</li>
-<li>—— Felix Oliv. Pinheiro.</li>
-<li>—— Ferreira Borges.</li>
-<li>—— Francisco Dias.</li>
-<li>—— —— —— das Neves.</li>
-<li>—— Gonçalves Pombo.</li>
-<li>—— I. Cunha Menezes.</li>
-<li>—— I. Moreira Freire.</li>
-<li>—— Joaq.ᵐ Cardoso Castello Branco. 2 <i>Ex.</i></li>
-<li>—— —— Fortes.</li>
-<li>—— —— Freire.</li>
-<li>—— —— Moreira.</li>
-<li>—— —— Pereira Silva.</li>
-<li>—— —— Santiago.</li>
-<li>—— José Cordeiro Galão.</li>
-<li>—— —— Esteves Campos.</li>
-<li>—— —— da Motta.</li>
-<li>—— Maria da Rocha.</li>
-<li>D. M.ᵉˡ M. Sousa Falcão.</li>
-<li>M.ᵉˡ Per.ᵃ Lima Tavares.</li>
-<li>—— Ramos.</li>
-<li>—— Roïz Costa Salgado.</li>
-<li>—— dos Santos.</li>
-<li>—— Thomaz S.ˢᵃ Menezes.</li>
-<li>—— de Vasconcellos.</li>
-<li>—— Urbano.</li>
-<li>Marcellino Ant.ᵒ Moraes.</li>
-<li>D. M.ᵃ B. C. Vilella.</li>
-<li>—— —— C. S.ˢᵃ Falcão.</li>
-<li>—— —— Carlota Vidal Gama Lobo.</li>
-<li>—— —— Carmo Guimarães.</li>
-<li>—— —— C. Guimarães.</li>
-<li>—— —— Clara Braamcamp.</li>
-<li>—— —— F. Paes de Mattos.</li>
-<li>—— —— H. Sousa Falcão.</li>
-<li>—— —— José Ozorio.</li>
-<li>—— —— J. Sanches Brito.</li>
-<li>—— —— Luiza d’Albuquerque. 2 <i>Exempl.</i></li>
-<li>—— —— Magdalena Sousa.</li>
-<li>—— —— Manoel Vidal da Gama Lobo.</li>
-<li>—— —— M. Silva Falcão.</li>
-<li>—— —— R. Sousa Falcão Ferreri.</li>
-<li>—— —— Vicencia de Mello.</li>
-<li>—— —— Xavier Falcão.</li>
-<li>D. Margarida Silva Machado Figueiredo.</li>
-<li>D. Marianna C. Ribeiro.</li>
-<li>—— —— G. Pereira de Beça.</li>
-<li>—— —— Noronha.</li>
-<li>—— —— da Silva Machado Figueiredo.</li>
-<li>Marquez de Fronteira.</li>
-<li>—— de Saldanha.</li>
-<li>M. F. da Costa.</li>
-<li>Miguel Ferreira da Costa.</li>
-<li>—— Fran.ᶜᵒ Saldanha.</li>
-<li>—— João Coelho.</li>
-<li>—— Joaquim Pires.</li>
-<li>—— J.ᵉ Okeeffe. 2 <i>Ex.</i></li>
-<li>—— M.ᵃ Gomes de Andrade e Leiros.</li>
-<li>M. J. M. Dantas. 2 <i>Ex.</i></li>
-<li>M. T. H. de Brederode.</li>
-<li>N. H. Klingelhoufer. 3 <i>Exempl.</i></li>
-<li>D. Nicasio Canete y Moral.</li>
-<li>Nicoláo Maria Nobre.</li>
-<li>Nicoláo C. P.ᵗᵒ Queiros.</li>
-<li>—— S. James.</li>
-<li>Nuno José Gonçalves.</li>
-<li>Pedro A. N. Domingues.</li>
-<li>D. Pedro Cunha Menezes.</li>
-<li>Pedro Jacome de Calheiros e Menezes.</li>
-<li>—— José de Oliveira.</li>
-<li>—— M.ᵃ Costa Almeida.</li>
-<li>—— Paulo Ferr.ᵃ Sousa.</li>
-<li>—— —— Vasconcellos.</li>
-<li>—— P.ᵗᵒ Moraes Sarm.ᵗᵒ</li>
-<li>Bacharel Pedro dos Santos Freire.</li>
-<li>Pedro da Silva Ferraz.</li>
-<li>—— de Sousa Cardoso.</li>
-<li>P. G. Toussaint.</li>
-<li>P. M. Lagan. 4 <i>Exempl.</i></li>
-<li>Prior da Magdalena.</li>
-<li>—— de Marv.ᵃ de Sant.ᵉᵐ</li>
-<li>—— do Milagre de Sant.ᵉᵐ</li>
-<li>Quintino Teixeira Carv.ᵒ</li>
-<li>D. Quiteria da Silva Machado Figueiredo.</li>
-<li>Rafael Antonio de Brito Pimenta d’Almeida.</li>
-<li>—— Archanjo de Carv.ᵒ</li>
-<li>Reis e Irmão.</li>
-<li>Roberto Wanzeller.</li>
-<li>Rodrigo de Azevedo Sousa da Camara.</li>
-<li>—— José Dias Lopes de Vasconcellos.</li>
-<li>—— Limpo Rav.ᶜᵒ Pereira de Lacerda.</li>
-<li>Rosa Coelho de Gibraltar.</li>
-<li>D. Rosa Dioguina Lopes Pereira de Vasconcellos.</li>
-<li>Sebastião André Xavier.</li>
-<li>—— Casqueiro Vieira Gago.</li>
-<li>—— de Gargamala.</li>
-<li>—— J. Villaça Gama.</li>
-<li>—— Xavier Botelho.</li>
-<li>Servulo M.ᵃ de Carvalho.</li>
-<li>S. J. de Gouvea.</li>
-<li>Silencio Christão Barros.</li>
-<li>Simplicio Moura Mach.ᵈᵒ</li>
-<li>Tertuliano Turibio Lobato Pinto Ferreira.</li>
-<li>D. Ther.ᵃ Hedeviges Leite de Moraes Castilho.</li>
-<li>—— —— Maria Botelho.</li>
-<li>—— —— Miquelina Alves de Sousa.</li>
-<li>—— —— Theodora da Soledade Martins.</li>
-<li>—— —— Xavier Botelho.</li>
-<li>Thomaz Aq.ᵒ S.ˢᵃ 2 <i>Ex.</i></li>
-<li>—— Pinto Saavedra.</li>
-<li>—— Rufino Monteiro.</li>
-<li>Thomé A. Frnz. Roxo.</li>
-<li>Torcato Francisco Carn.ʳᵒ</li>
-<li>D. Vasco Guterre Cunha.</li>
-<li>Vicente Altavilla.</li>
-<li>—— Pires da Gama.</li>
-<li>D. Vic.ᵗᵉ Segur. Menezes.</li>
-<li>Victorino José Gomes.</li>
-<li>—— Manoel de Oliveira Mascarenhas.</li>
-<li>Visconde do Porto Covo. 2 <i>Exempl.</i></li>
-<li>Vital Jorge Maia Canhão.</li>
-</ul>
-
-<div style='display:block; margin-top:4em'>*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A PRIMAVERA ***</div>
-<div style='text-align:left'>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-Updated editions will replace the previous one&#8212;the old editions will
-be renamed.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright
-law means that no one owns a United States copyright in these works,
-so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United
-States without permission and without paying copyright
-royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part
-of this license, apply to copying and distributing Project
-Gutenberg&#8482; electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG&#8482;
-concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark,
-and may not be used if you charge for an eBook, except by following
-the terms of the trademark license, including paying royalties for use
-of the Project Gutenberg trademark. If you do not charge anything for
-copies of this eBook, complying with the trademark license is very
-easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation
-of derivative works, reports, performances and research. Project
-Gutenberg eBooks may be modified and printed and given away--you may
-do practically ANYTHING in the United States with eBooks not protected
-by U.S. copyright law. Redistribution is subject to the trademark
-license, especially commercial redistribution.
-</div>
-
-<div style='margin:0.83em 0; font-size:1.1em; text-align:center'>START: FULL LICENSE<br />
-<span style='font-size:smaller'>THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE<br />
-PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK</span>
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-To protect the Project Gutenberg&#8482; mission of promoting the free
-distribution of electronic works, by using or distributing this work
-(or any other work associated in any way with the phrase &#8220;Project
-Gutenberg&#8221;), you agree to comply with all the terms of the Full
-Project Gutenberg&#8482; License available with this file or online at
-www.gutenberg.org/license.
-</div>
-
-<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'>
-Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg&#8482; electronic works
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg&#8482;
-electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to
-and accept all the terms of this license and intellectual property
-(trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all
-the terms of this agreement, you must cease using and return or
-destroy all copies of Project Gutenberg&#8482; electronic works in your
-possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a
-Project Gutenberg&#8482; electronic work and you do not agree to be bound
-by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the person
-or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.B. &#8220;Project Gutenberg&#8221; is a registered trademark. It may only be
-used on or associated in any way with an electronic work by people who
-agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few
-things that you can do with most Project Gutenberg&#8482; electronic works
-even without complying with the full terms of this agreement. See
-paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project
-Gutenberg&#8482; electronic works if you follow the terms of this
-agreement and help preserve free future access to Project Gutenberg&#8482;
-electronic works. See paragraph 1.E below.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation (&#8220;the
-Foundation&#8221; or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection
-of Project Gutenberg&#8482; electronic works. Nearly all the individual
-works in the collection are in the public domain in the United
-States. If an individual work is unprotected by copyright law in the
-United States and you are located in the United States, we do not
-claim a right to prevent you from copying, distributing, performing,
-displaying or creating derivative works based on the work as long as
-all references to Project Gutenberg are removed. Of course, we hope
-that you will support the Project Gutenberg&#8482; mission of promoting
-free access to electronic works by freely sharing Project Gutenberg&#8482;
-works in compliance with the terms of this agreement for keeping the
-Project Gutenberg&#8482; name associated with the work. You can easily
-comply with the terms of this agreement by keeping this work in the
-same format with its attached full Project Gutenberg&#8482; License when
-you share it without charge with others.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern
-what you can do with this work. Copyright laws in most countries are
-in a constant state of change. If you are outside the United States,
-check the laws of your country in addition to the terms of this
-agreement before downloading, copying, displaying, performing,
-distributing or creating derivative works based on this work or any
-other Project Gutenberg&#8482; work. The Foundation makes no
-representations concerning the copyright status of any work in any
-country other than the United States.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg:
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.E.1. The following sentence, with active links to, or other
-immediate access to, the full Project Gutenberg&#8482; License must appear
-prominently whenever any copy of a Project Gutenberg&#8482; work (any work
-on which the phrase &#8220;Project Gutenberg&#8221; appears, or with which the
-phrase &#8220;Project Gutenberg&#8221; is associated) is accessed, displayed,
-performed, viewed, copied or distributed:
-</div>
-
-<blockquote>
- <div style='display:block; margin:1em 0'>
- This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and most
- other parts of the world at no cost and with almost no restrictions
- whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms
- of the Project Gutenberg License included with this eBook or online
- at <a href="https://www.gutenberg.org">www.gutenberg.org</a>. If you
- are not located in the United States, you will have to check the laws
- of the country where you are located before using this eBook.
- </div>
-</blockquote>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.E.2. If an individual Project Gutenberg&#8482; electronic work is
-derived from texts not protected by U.S. copyright law (does not
-contain a notice indicating that it is posted with permission of the
-copyright holder), the work can be copied and distributed to anyone in
-the United States without paying any fees or charges. If you are
-redistributing or providing access to a work with the phrase &#8220;Project
-Gutenberg&#8221; associated with or appearing on the work, you must comply
-either with the requirements of paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 or
-obtain permission for the use of the work and the Project Gutenberg&#8482;
-trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or 1.E.9.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.E.3. If an individual Project Gutenberg&#8482; electronic work is posted
-with the permission of the copyright holder, your use and distribution
-must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any
-additional terms imposed by the copyright holder. Additional terms
-will be linked to the Project Gutenberg&#8482; License for all works
-posted with the permission of the copyright holder found at the
-beginning of this work.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg&#8482;
-License terms from this work, or any files containing a part of this
-work or any other work associated with Project Gutenberg&#8482;.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this
-electronic work, or any part of this electronic work, without
-prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
-active links or immediate access to the full terms of the Project
-Gutenberg&#8482; License.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary,
-compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including
-any word processing or hypertext form. However, if you provide access
-to or distribute copies of a Project Gutenberg&#8482; work in a format
-other than &#8220;Plain Vanilla ASCII&#8221; or other format used in the official
-version posted on the official Project Gutenberg&#8482; website
-(www.gutenberg.org), you must, at no additional cost, fee or expense
-to the user, provide a copy, a means of exporting a copy, or a means
-of obtaining a copy upon request, of the work in its original &#8220;Plain
-Vanilla ASCII&#8221; or other form. Any alternate format must include the
-full Project Gutenberg&#8482; License as specified in paragraph 1.E.1.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
-performing, copying or distributing any Project Gutenberg&#8482; works
-unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing
-access to or distributing Project Gutenberg&#8482; electronic works
-provided that:
-</div>
-
-<div style='margin-left:0.7em;'>
- <div style='text-indent:-0.7em'>
- &bull; You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
- the use of Project Gutenberg&#8482; works calculated using the method
- you already use to calculate your applicable taxes. The fee is owed
- to the owner of the Project Gutenberg&#8482; trademark, but he has
- agreed to donate royalties under this paragraph to the Project
- Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments must be paid
- within 60 days following each date on which you prepare (or are
- legally required to prepare) your periodic tax returns. Royalty
- payments should be clearly marked as such and sent to the Project
- Gutenberg Literary Archive Foundation at the address specified in
- Section 4, &#8220;Information about donations to the Project Gutenberg
- Literary Archive Foundation.&#8221;
- </div>
-
- <div style='text-indent:-0.7em'>
- &bull; You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
- you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
- does not agree to the terms of the full Project Gutenberg&#8482;
- License. You must require such a user to return or destroy all
- copies of the works possessed in a physical medium and discontinue
- all use of and all access to other copies of Project Gutenberg&#8482;
- works.
- </div>
-
- <div style='text-indent:-0.7em'>
- &bull; You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of
- any money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
- electronic work is discovered and reported to you within 90 days of
- receipt of the work.
- </div>
-
- <div style='text-indent:-0.7em'>
- &bull; You comply with all other terms of this agreement for free
- distribution of Project Gutenberg&#8482; works.
- </div>
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project
-Gutenberg&#8482; electronic work or group of works on different terms than
-are set forth in this agreement, you must obtain permission in writing
-from the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the manager of
-the Project Gutenberg&#8482; trademark. Contact the Foundation as set
-forth in Section 3 below.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.F.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
-effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
-works not protected by U.S. copyright law in creating the Project
-Gutenberg&#8482; collection. Despite these efforts, Project Gutenberg&#8482;
-electronic works, and the medium on which they may be stored, may
-contain &#8220;Defects,&#8221; such as, but not limited to, incomplete, inaccurate
-or corrupt data, transcription errors, a copyright or other
-intellectual property infringement, a defective or damaged disk or
-other medium, a computer virus, or computer codes that damage or
-cannot be read by your equipment.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the &#8220;Right
-of Replacement or Refund&#8221; described in paragraph 1.F.3, the Project
-Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
-Gutenberg&#8482; trademark, and any other party distributing a Project
-Gutenberg&#8482; electronic work under this agreement, disclaim all
-liability to you for damages, costs and expenses, including legal
-fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
-LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
-PROVIDED IN PARAGRAPH 1.F.3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
-TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
-LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
-INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
-DAMAGE.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a
-defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can
-receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
-written explanation to the person you received the work from. If you
-received the work on a physical medium, you must return the medium
-with your written explanation. The person or entity that provided you
-with the defective work may elect to provide a replacement copy in
-lieu of a refund. If you received the work electronically, the person
-or entity providing it to you may choose to give you a second
-opportunity to receive the work electronically in lieu of a refund. If
-the second copy is also defective, you may demand a refund in writing
-without further opportunities to fix the problem.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth
-in paragraph 1.F.3, this work is provided to you &#8216;AS-IS&#8217;, WITH NO
-OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT
-LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied
-warranties or the exclusion or limitation of certain types of
-damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement
-violates the law of the state applicable to this agreement, the
-agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or
-limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or
-unenforceability of any provision of this agreement shall not void the
-remaining provisions.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
-trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
-providing copies of Project Gutenberg&#8482; electronic works in
-accordance with this agreement, and any volunteers associated with the
-production, promotion and distribution of Project Gutenberg&#8482;
-electronic works, harmless from all liability, costs and expenses,
-including legal fees, that arise directly or indirectly from any of
-the following which you do or cause to occur: (a) distribution of this
-or any Project Gutenberg&#8482; work, (b) alteration, modification, or
-additions or deletions to any Project Gutenberg&#8482; work, and (c) any
-Defect you cause.
-</div>
-
-<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'>
-Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg&#8482;
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-Project Gutenberg&#8482; is synonymous with the free distribution of
-electronic works in formats readable by the widest variety of
-computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It
-exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations
-from people in all walks of life.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-Volunteers and financial support to provide volunteers with the
-assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg&#8482;&#8217;s
-goals and ensuring that the Project Gutenberg&#8482; collection will
-remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
-Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
-and permanent future for Project Gutenberg&#8482; and future
-generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary
-Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see
-Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org.
-</div>
-
-<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'>
-Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit
-501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
-state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
-Revenue Service. The Foundation&#8217;s EIN or federal tax identification
-number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary
-Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by
-U.S. federal laws and your state&#8217;s laws.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-The Foundation&#8217;s business office is located at 809 North 1500 West,
-Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up
-to date contact information can be found at the Foundation&#8217;s website
-and official page at www.gutenberg.org/contact
-</div>
-
-<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'>
-Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-Project Gutenberg&#8482; depends upon and cannot survive without widespread
-public support and donations to carry out its mission of
-increasing the number of public domain and licensed works that can be
-freely distributed in machine-readable form accessible by the widest
-array of equipment including outdated equipment. Many small donations
-($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
-status with the IRS.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-The Foundation is committed to complying with the laws regulating
-charities and charitable donations in all 50 states of the United
-States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
-considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
-with these requirements. We do not solicit donations in locations
-where we have not received written confirmation of compliance. To SEND
-DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state
-visit <a href="https://www.gutenberg.org/donate/">www.gutenberg.org/donate</a>.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-While we cannot and do not solicit contributions from states where we
-have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
-against accepting unsolicited donations from donors in such states who
-approach us with offers to donate.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-International donations are gratefully accepted, but we cannot make
-any statements concerning tax treatment of donations received from
-outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-Please check the Project Gutenberg web pages for current donation
-methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
-ways including checks, online payments and credit card donations. To
-donate, please visit: www.gutenberg.org/donate
-</div>
-
-<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'>
-Section 5. General Information About Project Gutenberg&#8482; electronic works
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-Professor Michael S. Hart was the originator of the Project
-Gutenberg&#8482; concept of a library of electronic works that could be
-freely shared with anyone. For forty years, he produced and
-distributed Project Gutenberg&#8482; eBooks with only a loose network of
-volunteer support.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-Project Gutenberg&#8482; eBooks are often created from several printed
-editions, all of which are confirmed as not protected by copyright in
-the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not
-necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper
-edition.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-Most people start at our website which has the main PG search
-facility: <a href="https://www.gutenberg.org">www.gutenberg.org</a>.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-This website includes information about Project Gutenberg&#8482;,
-including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
-Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
-subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
-</div>
-
-</div>
-
-</body>
-</html>
diff --git a/old/65021-h/images/cover.jpg b/old/65021-h/images/cover.jpg
deleted file mode 100644
index cc353a9..0000000
--- a/old/65021-h/images/cover.jpg
+++ /dev/null
Binary files differ