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If you are not located in the United States, you -will have to check the laws of the country where you are located before -using this eBook. - -Title: A Primavera - -Author: Antonio Feliciano de Castilho - -Release Date: April 07, 2021 [eBook #65021] - -Language: Portuguese - -Character set encoding: UTF-8 - -Produced by: Rita Farinha, Alberto Manuel Brandão Simões and the Online - Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This - book was produced from scanned images of public domain - material from the Google Books project.) - -*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A PRIMAVERA *** - - - - - -OBRAS - -DE - -Antonio Feliciano de Castilho - - -_Constando-me ter havido quem reimprimisse em França, sem licença minha, -dois volumes de minhas Obras, e sendo isto sobre iniquidade, manifesto -roubo, declaro que perseguirei em juizo com acção de furto, em quanto a -nossa Lei sobre imprensa não estabelecer outra propria para taes casos, -a quem quer que, sem minha expressa licença, reimprimir esta ou outra -qualquer Obra minha, ou impressas fóra as introduzir e vender neste -reino._ - - _A. F. de Castilho._ - - - - - A PRIMAVERA - - POR - - _Antonio Feliciano de Castilho_, - - _Bacharel Formado em Direito, Socio da Academia - das Sciencias de Lisboa, da Sociedade - Juridica e da dos Amigos das Letras da - mesma Cidade, da Sociedade Literaria Portuense, - do Instituto Historico de Paris, da - Academia Real das Sciencias e Bellas Letras - de Roão._ - - _Mais correcta, emendada, e copiosissimamente accrescentada._ - - Lisboa. - NA TYPOGRAFIA DE A.I.S DE BULHÕES. - _Rua do Soccorro de Cima N.º 39. 1.º andar._ - 1837. - - - - - _Stet quicumque volet potens_ - _Aulœ culmine lubrico:_ - _Me dulcis saturet quies;_ - _Obscuro positus loco_ - _Leni perfruar otio;_ - _Nullis nota Quiritibus_ - _Ætas per tacitum flua_ - _Sic cum transierint mei_ - _Nullo cum strepitu dies,_ - _Plebeius moriar senex._ - _Illi mors gravis incubat,_ - _Qui notus nimis omnibus,_ - _Ignotus moritur sibi._ - - _Sen. Thyest. Act. 11._ - - - - -ANTE-PROLOGO. - - -Bem será para alguns motivo de maravilha, e de riso para muitos, a -declaração por onde me agrada começar este Ante Prologo; e he, que o -estou principiando, e querendo Deos o levarei ao cabo, antes de conhecer -a Obra para que vai feito. Quatorze annos, e não poucos d’elles bem -estirados, são hoje discorridos depois de impressa, e por tanto segundo -meu costume aposentada e esquecida, a minha _Primavera_. N’estes quatorze -annos, começados a contar aos vinte e dois da minha vida, não só se -encerrou, e desvaneceo aquella melhor, mais florída e derramada parte -d’ella, que tanto discrimina, e afasta o periodo seguinte do anterior, -senão que ahi se desatou tão desfeito temporal de successos estranhos, -de terrores e calamidades publicas; tantas certezas saírão vãs, -realisarão-se tantos impossiveis; por tal arte se transtornou e renovou -ora em bem ora em mal a face do nosso Portugal; tão fracas e tenues -reliquias de um passado, que ainda nós os moços alcançámos, subsistem -já agora quer nas pessoas, quer nas cousas e costumes, e emfim por tudo -isto nos petreficámos, e envelhecemos em tanta maneira, que por mim digo, -n’estes quatorze annos me parece ter a Fortuna desbaratado cabedal de -seculos, e o Tempo uma larga idade do mundo. Tantos e taes annos que da -minha Obra me separão, não custará muito a crer ma tenhão tornado ao cabo -tão alhea, como se d’ella só mui por longe me houvera susurrado uma leve -noticia. Esta idea confusa, mas suave e suavissima como apagado retrato -de antigos amores, como lua de estio contemplada em fundo de ermo, ou -como vista de remotas velas ao coração do que alem-mar definha desterrado -entre asperezas, esta idea toda mansa, toda rosada, toda primavera, mais -temo perdê-la do que todas as minhas outras illusões, se por ventura já -hoje alguma tenho. Talvez receie, e se receio talvez me não falte rasão, -que ao reler estes Poemettos, nem ache n’elles as côres que os longes -me figuravão, nem os gostos com que os hia não compondo, mas para assim -dizer colhendo e enramalhetando pelas varzeas e valles do Mondego: tanta -foi a metamorphose que de mim fizerão os livros, as couzas, e a idade! -Como que tenho uma dolorosa certeza de que me acontecerá com isto o que -ja me succedeo visitando, depois de espaçosissima ausencia, as cazas -onde a minha primeira infancia fôra brincada, amada e perdida: tudo -achei mesquinho, solitario e quasi mudo, tudo me dizia muita saudade -e nenhum prazer; cada pedra tinha sua historia, mas todas me clamavão -outros tantos desenganos. Grande differença esta entre as nossas -proprias antigalhas e as do mundo! as do mundo pelo seu mesmo misterio -nos deleitão, são a primeira pagina de um romanse para a imaginação; -as nossas pela sua certeza nos contristão, e são a pagina ultima de uma -historia que assaz nos corria formosissima. - -Apraz-me por tanto boiar ainda por algumas horas ao de cima d’estas -fantasias, e antes de se me apagarem, se já he que isso tem de ser, -alegrar com o seu reflexo estas paginas, que mal poderáõ ser muitas: -sempre he cedo para lançar pelas janellas fóra os brinquedos de nossa -puericia; e mal haja quem o faz sem que todo o coração se lhe aperte -dentro no peito. - -Por isto que digo, entenderáõ meus leitores o porque, exhausta logo -no primeiro anno a primeira impressão da _Primavera_, tantos se tem -devolvido sem que jamais me deliberasse a reimprimi-la. Pelos fins de -todos os invernos e começos da melhor estação, me era ella de todos -meus livreiros requerida; por mais de uma vez me senti abalado, mas a -lembrança do meu desencantamento me era sempre esquiva, e repugnava-me, -como uma certa simonia, o arriscar-me a por alguns cruzados malbaratar -uma dilicia do sanctuario de meu animo. N’esta parte não me entenderáõ -todos, mas os meus intimos confirmarião com juramento o que digo. -Agora porem que até a minha pobre bibliotheca já se ahi vai rareando -e desfazendo vendida, e me importa pôr entre mim e a terra do meu -nascimento muita outra terra de permeio, e Deos sabe para quanto tempo, -obedeço aos desejos de muitos dos que ainda lem, ao conselho dos amigos, -e á lei da necessidade. Reverei para a impressão, e perderei para mim -este livro de saudades, livro que só fechado eu poderia ler como me -convinha. E por quanto, depois de sua leitura talvez me desamparasse -a vontade de aventurar algumas reflexões sobre este genero de poemas, -fa-las-hei antes, e já aqui; deixando para o Prologo as que ácerca da -Obra me forem por ella mesma suggeridas. - -A Poesia campesina, ou segundo vulgarmente lhe dão nome, pastoril, com -ser de todas a mais antiga, nunca em nenhuma parte se perdeo, dado em -muitas decaisse não raro do seu credito e lustre; e segundo todas as -mostras, deitará ainda até ao fim das idades literarias. Sempre moça -como a terra sua mãi, mansa como os arroios seus irmãos, formosa como -as flores que lhe guarnecem o chapeo de palha, livre e leve como os -zefiros pela assomada dos montes, alegre, namorada e innocente como as -aves na madrugada do anno, he de ver qual se vai sozinha e vivissima por -entre tantas couzas mais fortes que morrem; com o seu cajado de pastora, -segura entre tantos inimigos; girando todo o orbe, e por todo elle bem -vinda; vingando e vencendo todos os seculos; dando a alguns d’elles de -mais amoravel indole a sua propria fórma; e relevando-lhe, ainda os mais -ferozes e guerreiros, que lhes ella misture com a sua frauta do serão os -himnos da guerra, lhes entreteça maliciosa violetas com os louros, e os -campos que elles a ferro e fogo devastarão os repovoe ella de imaginadas -verdura, flores e felicidade. - -Hum curioso reparo poderáõ ter feito os que os fazem no ler poetas, e -he, que apenas haverá algum dos chamados Epicos, para quem o campo e sua -vivenda não fosse deleitoso assumpto. Compraz-se Homero de travar com -as façanhas dos heroes toques e pinturas do viver natural e primitivo; -Virgilio, que ja primeiro que se abalançasse ás armas e guerras tinha -cantado os pastores, e doutrinado os lavradores, particularmente se -recreia quando no meio das batalhas pode a uns e outros mandar algumas -saudades; nos dois Orlandos e em todos os livros de cavallaria, vai igual -mistura; o mesmo na Jerusalem, cujo autor havia escrito o Amintas: e -d’entre os nossos, para por todos citar um, mas um que por todos valha, -Camoẽs, não só afamou os Portuguezes sujeitadores de elementos e homens, -mas todo se deleita em conversar os pegureiros e campos da nossa graciosa -Lusitania, terra cujos filhos, se me não engano, são por indole dotados -destes dois extremos, de brandura e de valor, de amor ao obscuro rusticar -e ao glorioso correr de aventuras e perigos: por onde entendo que para -muito mais do que são os fizera Deos, assim como fizera para muito mais -do que he o grandioso torrãozinho que habitão. - -Disse engenho subtil, e bons juizos crêrão, que o desejo, ancia e -esperança de bem que todos temos innatamente, era claro argumento de -uma vida futura, ja que nesta se nos não deparava contentamento: assim -tambem dissera eu, que este natural e universal gosto á poesia amena he -um indicio de que, se jamais o homem foi homem e ditoso, la nos campos -o foi; que as plantas d’onde nos brotão sustento e recreação, exhalão -secretamente amor para os seus vizinhos, e que pelos saudosos valles -das idades patriarchaes, em quanto os bosques não caírão para em sua -vez se levantarem as muralhas, as bençãos do ceo orvalhavão muito mais -amiude. Alguma couza farão para aqui palavras do meu Florian, que porque -d’elle são as verterei de muito boa mente—“Oh se nós podessemos ler em -seu original texto os bons autores d’essa Allemanha, enlevar-nos-hia a -tanta singeleza, a tanta doçura por onde de todas as outras se estremão -suas obras! Em conhecer a natureza, e especialmente a natureza campezina, -levão-nos elles uma infinita vantagem: amão-na mais deveras, retratão-na -com tintas mais fieis. Todos nossos poemas pastoris nada tem que ver com -as meras traducções de Gessner. Ninguem jamais fecha a Morte de Abel, -os Idyllios ou Daphnis, sem ja se sentir mais soffrido, mais terno, -mais mavioso, e porque tudo diga, mais virtuoso que antes da lição. -Não respira senão moral pura e facil, e virtude d’aquella que logo -vem trazendo bemaventuranças. Fosse eu parocho de aldea, que sempre á -estação da missa havia de ler e reler Gessner aos meus fregueses: e por -certissimo tenho que todos meus aldeões se farião probos, todas minhas -parochianas castas, e ninguem me havia de ao sermão adormecer.”— - -Isto dizia de Gessner Florian, digno de o louvar pelo mui bem que o sabia -comprehender e seguir. Isto não escrevia eu nem o dizia, mas amplamente -o sentia n’esse bom tempo que ja la vai. Gessner não era para mim um -nome, senão um individuo presente, um suavissimo contubernal; nem ja -suas obras me erão livros, mas realidade, vida e mundo.—Sei que se -não leva a bem o muito fallar um individuo de si proprio, mormente em -publico, e mormente ainda quando esse individuo he tão mesquinho sujeito -como eu: mas de que outra couza posso eu escrever? dos outros? não os -conheço; erudito, não o sou; descubrimentos não os fiz, nem ja agora os -farei: fólgo de espraiar conversa com os meus patricios, na falta de -melhor assunto, fallo-lhes de mim e de meus gostos.—O mais selecto de -todos elles era pois Gessner, no qual e na escolha de Poesias Allemãs -por Huber, andou por alguns annos cifrada toda minha leitura, porque -de quantos autores patrios meus conhecidos havião escrito e poetado de -couzas rusticas, nenhum havia que ou por sobejidão de engenho e argucia, -ou por mal cabida escuridade, ou pelo trivial do pensamento e dicção, ou -pelo desageitado do metro, ou pelo urbano artificio do que lhes parecia -singeleza, ou emfim por um não sei que de mais ou de menos, lhe não -lançasse lodo e arêa no jardim que bem ao meio da alma me havia sido por -Gessner plantado.[1] Muito aproveitei em tão boa escola: como poeta não, -que bem o sabem meus leitores; como homem sim, que disso tive mui cabal e -experimentada certeza. Minhas nativas propensões beneficas se arraigarão; -minha interior aspereza, que todos de si a tem, se amolleceo; sentia-me -palpitar no peito um coração da idade de ouro; esvoaçava-me na cabeça -uma alma inteira de Arcade; compunha todo o meu economico futuro de uma -choupana, um pomarinho, e pombas mui brancas e cordeiros mui nedios; em -summa, se Florian fosse meu parocho, propor-mehia nas suas homilias como -um santo da sua bemaventurança. Assim, e por esse tempo, foi a minha -_Primavera_ improvisada, e como ella as _Flores_ e as _Quatro Partes do -Dia_, Poemas que brevemente sairáõ estampados, e inteirão com o presente -volume o fragil monumentinho dos annos, em que fui tal, qual desejava -permanecer toda a vida. - -Passe ainda adeante a sinceridade: com vergonha não só minha, mas do -tempo em que vivo, confesso que d’essa ingenua bondade, pela qual eu -mesmo a mim me comprazia, o de mais (como espirito que era subtilissimo) -se evaporou; parte se azedou no vaso com as más sementes de odio que -de fóra lhe lançavão; o resto se recozeo e estragou ao fogo das civis -dissensões: procuro-me e não me acho, ou se me acho não me amo. Ainda a -minha antiga choupana, os cordeiros nedios e as pombas alvissimas se me -fazem lembrados por uma noite de estio, mas riem menos, e não me acenão -senão fracamente. Tanto vi e vejo de alhêas maldades, tanto tem procurado -os entes mais abjetos e vis amargurar-me, que nem quasi na virtude -acredito, nem na possibilidade de ser feliz: e este estado, se não he -de todos o mais antipoetico, se na escola romantica pode até lograr os -foros do _bello ideal_ e ultimo sublime, pelo menos he o mais avêsso á -filosofia e mansidão Gessnerica. Oh quando poderáõ os dois monstros, em -cujas garras inexpertamente caí, quando poderáõ Politica e Romantismo -dar-me um longe, uma sombra dos interiores commodos que me lá ficarão com -a poesia natural e singela? E igual pergunta dolorosa poderia fazer o -mundo, a ter um coração e uma voz. Ja quanto á Politica me calo, que esse -voto fiz eu; mas quando será que o Romantismo exclusivo e tiranno qual -se presenta, se gabe de perfumar entendimentos para o amor, de reclinar -o amor como filho nos braços da virtude, e de transformar o templo da -virtude em caza do contentamento? Quando será que outro homem, da laia e -costumes dos nossos velhos, possa dizer na sinceridade da sua alma:—“Se -eu fosse parocho, leria Byron ou Schiller á estação da missa, para tornar -castas e probas as minhas ovelhas”? Mas todas estas reflexões de nado -valem: a torrente vai funda e rapida, ninguem, e muito menos eu lhe poria -dique. E até (que tão pouco dou pela minha filosofia) talvez que tudo o -que por ahi vai, que certamente: parece bem triste e bem máo, seja bem -necessario ao concerto e melhoria do mundo. Não digo eu o que as couzas -são, sim o que se me ellas figurão: não as sentencêo sem appellação; na -minha primeira instancia as julgo, e o que moralmente me parecem isso -assento com afoita liberdade. Perde ou ganha a humana especie em cada -vez mais se apartar por obra, por palavra, e por pensamento, do rural e -simples theor de seu primitivo ser? por minha experiencia affirmaria que -perde, mas os sabios que o decidão, e a mim seja-me licito pôr duvidas. - -Não me intrometterei com o que vai por outros reinos; esse uso de -qualquer contrabandista literario de nunca chegar ás couzas patrias sem -primeiro haver tocado nas de França e Inglaterra, não me quadra a mim, -que ao menos tenho a sufficiente consciencia e pejo para não citar o que -mal conheço: em Portugal me limito. Somos nós mais felizes ou melhores -que nossos avós? Certo que não; e tanto, que se esses bons e honrados -velhos podessem ter adivinhado quaes seriamos nós, nós herdeiros de -seus nomes, escarnecedores de seus exemplos, e deshonradores de seus -castos e amigaveis costumes; nós que ao seu velho fallar e escrever de -_deveres_, substituimos o nosso novo fallar e escrever de _direitos_, e -á moda de ter palavra, a moda de ter palavras, ter-se-hião horrorisado -como de abominação, do pensamento de gerar. Acordai do sepulchro um -d’esses anciãos, que depois de pagar inteira a divida a pai e mãi, -viveo todo para a mulher, matou-se pelos filhos, guardou a palavra como -religião, a religião como necessidade, e cada paschoa de flores, bem -com Deos, contentissimo comsigo, se ufanava de sentar ao melhor lugar -de sua mesa o parocho, e todos os seus vizinhos de envolta com seus -filhos. Mostrai-lhe todos os nossos progressos, que em sós algumas -vantagens materiaes e corporaes se resumem: alardeai-lhe o que esperamos, -mas não lhe escondaes o que destruimos: lede-lhe a primeira pagina do -primeiro Jornal que topardes d’esse mesmo dia, raza de impudencia, -empapada com fel, estillando lagrimas, revendo sangue, suando calumnias -e desavergonhamentos, respirando e soprando odios de nação contra nação, -de cidade contra cidade, de familia contra familia, de irmão contra -irmão, de povos contra reis, de reis contra povos, e dos homens contra -a Providencia. Supponde que Deos lhe offerece renovação da vida, e -offerecei-lhe vós todas as blazonadissimas excellencias do nosso viver -e do nosso esperar: repellir-vos-ha com aquelle braço que antigamente -defendia e não apunhalava a Patria; tapará com o resto da mortalha o -rosto que só depois de cadaver córa pela primeira vez; e cerrando rijo os -olhos contra a luz, e deixando-se recair pezadamente, de vós não pedirá -mais do que um favor, o de lhe restituirdes a sua lagea.[2] - -Emquanto assim vai o presente avesso do preterito pelo que toca á moral -e á felicidade, fallo da verdadeira felicidade, d’aquella em que a -moral entra como elemento, e não da fizica e corporal, da de fazenda -e honras, como hoje se entende; vejamos a que ponto subirão com o -_movimento_ e _progresso_ as nossas letras. Entrai as typografias, e -dizei-me porque assim amotinão com o seu noturno e diurno lavor a -vizinhança? perguntei-lhes porque assim gemem e se afadigão? em quaes -livros nos estão preparando mananciaes de doutrina, ou de costumes, ou -de suave, honesto e ja tão precizo desenfadamento? Dissereis que nossos -laboriosos maiores as deixarão esfalfadas com os copiosos frutos de -suas lucubrações: o mais com que se atrevem, são ridiculos farrapos de -bestiaes torpezas. Seguem-se os mezes aos mezes e os annos aos annos, -sem outras literarias novidades. Terra he que ja deo optimas searas e -vinhas abundosas; agora descultivada e baldia, e á lei da natureza bruta, -desata toda sua força e substancia em cardos, em ortigas, em venenos -e serpentes. Quantos livros, e quantos bons livros, que nós outros -nem conhecemos nem ja valemos a sopesar, saíão dos nossos prelos, nos -tempos em que a probidade, e a mansidão, e a concordia tinhão seu preço. -Um só reinado, e ainda bem chegado a nós, e de rei que por bom se não -cita, com tanta copia de literarios monumentos nos deixou avergadas as -bibliothecas, que dez centos de annos como o presente não produziráõ -a decima parte. São os nossos typógrafos de hoje, se com aquelles os -comparamos, como os nossos cutileiros de punhaes, comparados com os bons -armeiros que forjavão espadas como as de nossos heroes de boa data, que -só com sua pezada presença nos maravilhão, a nós, que por nossa verbosa -sabedoria, acabaremos de desbaratar tantas e tão longes terras, como nos -ellas ganharão esgremindo-se. - -Tal vai pois o estado literario como o social; e nem menos podia ser, -porque estas duas couzas, como alma e corpo, se pertencem inseparaveis: -Mão de Deos que ao corpo politico quizesse restituir a saude, por ahi -lhe fortaleceria não menos o espirito; Sopro de Deos que ao espirito -restituisse a luz, por ahi lhe ordenaria e vigoraria todos os movimentos. -Por tanto, conhecendo e confessando que nem facil he nem possivel torcer -a carreira desenfreada que o nosso mundo leva não sei para onde, todavia -para mim tenho, se na cabeça está isto, se no coração, não o direi, mas -tenho para mim, que mui bem fará, e muito amado será dos rectos juizos -quem nos fizer volver olhos de saudade para a vida que ja se viveo, o -que ainda um ou outro, aqui ou acolá poderá inteira, ou quando mais -não fôr, em partes, em amostras reviver. E pois será isto uma illusão -minha? Se o geral da gente vai por entre dores para uma couza que se -chama perfeição, não pode um individuo em particular deixar-se ficar -atraz, despir essas suadas armas de milicia conquistadora, e recolher-se, -honrado desertor, lá onde viva seguro com Deos, comsigo, com poucos -vizinhos, logrando-se da natureza, e desfrutando em variados prazeres -todos as estações; prezentes que Deos enviou para todos os homens, mas -de que os das cidades só pela folhinha tem noticia! Por quão feliz se -não devêra dar o escritor desambicioso, se aos puros sons de sua lira -afinada nos bosques, lograsse, não como Anfião fundar e povoar cidades, -não como Orfeo arrancar as feras dos arvoredos e domestica-las; mas -arrancar d’entre feras humanas homens inda não corrutos, e assenta-los, -para sempre feriados do reboliço dos grandes povos, no divino remanso de -uma campestre solidão! De mui leves cousas e tenuissimos momentos pende -ás vezes o destino de toda uma vida: assim como de um encontro fortuito -resulta uma affeição amorosa, que logo produz um consorcio e um sisthema -completo de existir, assim de uma palavra em uma conversa casual, da -substancia de uma pagina lida em certa hora, do aspéto de um painel, -podem nascer, e mil vezes terão nascido, determinações, vocação, e fados -de individuos. E para vir a um exemplo recente e meu, aquelle bom livro -das _Prisões_ de Silvio Péllico (todo imbuido, releve-se-me a expressão, -de uma christã e filosofica filosofia, que a maior parte das assim -chamadas nem uma nem outra couza tem) aquelle bom livro, ja principiou e -talvez acabará de me curar o animo: não lhe restituirá a muita harmonia -com que o de Gessner mo temperára, porque a mocidade das illusões passa -e não volta; mas deixar-mo-ha provavelmente assaz alto e forte, que -ainda no meio das maiores tempestades repouze e abençoe tudo. E não he -isto maravilha, que a alguns outros que o lerão ja eu ouvi iguaes, senão -maiores encarecimentos de sua medicinal virtude.[3] - -Este desvio, por onde me agora deixava ir, levar-me-hia longe, que assim -he accomodado a meus gostos; mas porque he desvio o largo, e retomo o -caminho que hia seguindo. A poesia amavel, a que nas mãos e seio nos -vinha offerecendo ramalhetes, e frutos no regaço, e amores nos olhos, -e nas fallas consolações, afastou-se d’entre nós, onde ainda a alguns -poderia aproveitar, e assim como outras muitas boas artes e prendas, foi -reclinar-se á espera na beira da torrente dos dias, d’onde não volverá, -sem que primeiro se restaurem muitas optimas couzas e todas suas, que -o mundo velho tinha produzido. Mas d’onde viráõ estas couzas? Do mesmo -mundo velho? mal o creio, que o novo quebrou a ponte que os juntava, -e rio de ufania vendo abismar-se fábrica que assim parecia eterna. -Renasceráõ por tanto da propria natureza da terra, da indole da alma -humana que ja uma vez as produzio, ou do sopro do ceo: renasceráõ tarde; -renasceráõ quando nós ja não formos; renasceráõ, talvez diversas, mas -renasceráõ. E quaes são estas couzas do mundo passado, cuja perda tanto -dóe ás Musas e á Virtude? são as formosuras e magnificencias da religião, -o respeito aos finados e a seus sepulchros, ás lições da experiencia, ás -obras dos antigos homens, a veneração ás cãs, o quasi culto ás mulheres, -a benevolencia e sociabilidade, o aferro aos usos e modas patrias, o -amor do estudo, que nós dissipámos com as leituras efemeras, e o amor do -torrão natal, nobre fecundissimo sentimento, mas impossivel onde se vive -sem muita brandura e sem firme certeza de permanecer. Tudo isto se perdeo -para nós, e não sei que bens haja em seu lugar posto a _Filosofia_. A que -verdadeiramente o he, ainda que esse nome se não dê, a que realmente faz -homens livres e felizes, não he Furia que destrua tão venerandos objetos; -ama-os, defende-os, reforma-os quando o tempo os viciou, concerta-os que -se amparem mutuamente, pede-lhes frutos, e com seus frutos se fortalece. - -Quando de espaço me dou a escavar estas verdades, nada me assombra a -nossa crassa e desdenhosa ignorancia, mãi ou filha, e certamente socia -da nossa immoralidade. Esta mal agoirada ignorancia e esta immoralidade -cresceráõ; ja nossos filhos apenas saberáõ ler, e se o turbilhão que a -roda leva não houver quem o suspenda, brutos e ferozes sairáõ os netos. -Applicai todos os vossos sentidos ao coração da nossa Cidade: se a vida -he movimento, ahi trabalha vida; se porem a vida ha-de ter um perfume, -uma harmonia, ahi não ha senão morte, e aquelle movimento he de cadaver -que fermenta para se dissolver. Poesia, verdadeira poesia ja n’este -Reino, onde em todos os tempos pullullava espontanea, posto que raro -amadurecesse, ja por consequencia acabou: quanto desde hoje se poetar -nas enamoradas doçuras da vida aldeã, mais não será que recordações sem -germen de futuro. D’entre a memoria e o espirito, não da experimental -convicção do poeta, nasceráõ esses versos, como lagrimas de balsamo, -que não de dentro da arvore, mas d’entre a casca e o libro vem raras -gotejando, para cairem e se perderem no terreno bravio da solidão. Oh -Liberdade, Liberdade! quão mal te comprehendem os que te separão do -bello! quão mal te servem os que te malquistão com os homens de bem! -como involuntariamente te levão á morte os que só te pedem como summa -felicidade, o direito de nada respeitar, estradas de ferro, navios de -vapor, um himno, e punhaes ou carceres contra quem quer que não beber ás -suas mesas! Pobre Liberdade, não he este ainda o teu dia: não és tu idolo -de selvagens, mas Divindade benefica de homens prudentes. - -Eis-me outra vez com a Politica, e o meu voto quebrado. Ja vejo que a -minha cura não está tão adeantada como o eu suppunha: não ha remedio, -amanhã releremos Silvio Péllico, e por hoje voltemo-nos com toda a -diligencia a rematar, como quer que seja, este escrito. - -Sáe pois o presente livro por todos os modos extemporaneo, ja porque a -estação nem he d’elles nem para elles, ja porque lhe fallecêrão dias -para amadurecer e sasoar, e ja porque dos que lhe tomarem o sabor, uns -o taxaráõ de temporão, outros de serodio, sendo que uma e outra couza -he elle, e demais a mais pêco, segundo a planta de que se creou. Uma só -lembrança me consola, e he, que assim mesmo ja deveo ser peor, quando -da primeira vez appareceo, e mais lhe não faltárão gostadores; tanto he -assim que nunca faltaráõ simpathias ao que de sua origem he bom, ainda -quando desbotado e estragado pela impericia de quem o tratou. Melhor he -hoje do que então era; não porque o eu tornasse á forja e á bigorna, ou -o recorresse e lustrasse com esmerada lima, senão porque havendo hoje -menos dados á lição dos livros, e em especial d’este genero, tambem ja -não ha criticos, senão he para as acções da vida publica e domestica; por -onde as obras escritas podem passar a seu salvo, sem que suas pobrezas -e vergonhas sejão vistas e apupadas na praça. Desconsolada consolação -he esta de se poder desafinar cantando, por se cantar entre surdos: -mas esse mal, se o he, só a mim me toca, e para o descontar me sobra -a lembrança, de que alguns caladamente me agradeceráõ o diverti-los -do publico espetaculo. Para estes em boa hora sáia e sai o livrinho -fallador de campos e amores: suave appareça como a violeta sozinha -encontrada no passeio de inverno: suave e não estranhado como o raio de -sol por cima de campo de batalha apoz uma noite de geada; nada aproveita -elle aos cadaveres, mas alegra e consola como esperança aos que mal -feridos jazião, e a quem o regelado lentor das trevas coalhava o sangue, -desesperava as dores, tranzia os ossos, e os descoroçoava da providencia. - -Ramalhete he de flores silvestres que a meus amigos deixo na hora do -apartamento, que ao menos em quanto durar lhes recordará que os amei. -Terra de Portugal e outr’ora de Portuguezes, terra namorada do mais -formoso ceo, terra sombreada de larangeiras e murtas, acobertada de verde -e bordada alcatifa, amorosamente abraçada do Oceano, talhada e regada de -tão espelhados rios, terra de tanta poesia e de tanto amor, eu te deixo! -E para que ja nunca onde quer que a fortuna me detenha, me cuides de ti -esquecido, terra do meu Portugal lembre-te que o meu ultimo pensamento ao -sair das tuas praias foi o da tua Primavera e o da minha Mocidade. - - _Lisboa: 1 de Dezembro 1836._ - - - - -PROLOGO. - - -Não erão vãos os meus receios; acabo de visitar a _Primavera_, não ainda -para lhe emendar as miudezas, mas para a conhecer por alto, e podê-la -sentenciar no todo. Reconheci-a, mas demudada, mui outra da que a tinha -deixado na graça, geito e amores; trocarão-ma os annos, trocando-me. -Desama-la ainda não, mas ama-la tambem ja não! Se lhe não quero mal, he -só porque lhe quiz muito bem, e foi minha; mas como ja me risquei de seu -namorado, não hei de chamar-lhe formosa, que o não he, nem dissimular que -sejão defeitos, muitos que em bom tempo ja talvez lhe tive por perfeições -e primores. Não ha remedio, prometti-me seu juiz, passará por onde -houvéra de passar, se de inimigo fôra. Se ella perder do seu preço, e eu -do meu, consolemo-nos ambos d’esse pouco damno; ella por não receber de -mim injustiça, eu com ter obedecido á consciencia, que tambem em letras a -ha. Antes porem que entremos a contas e lhe formemos o summario, releva -anticipar uma dúvida não leve, que se me pode pôr, e desfazer um reparo, -que deixado a si pareceria de fôrça. - -He o reparo e a dúvida; que pois he o Livro inamavel por defeitos a -seu proprio autor, não havia porque de novo o semear em público, antes -importava pôr todos os meios para que o nunca mais vissem, nem d’elle se -fizesse menção; que o contrario he faltar a toda a reverencia, que aos -leitores se deve, dando-os por broncos para conhecer o máo; ou á caridade -natural comsigo proprio, expondo-se sem fôrça de obrigação a menoscabos, -se não injurias. - -Não quero responder que em dar o que ha quando ou emquanto não ha melhor, -ja o que o faz se ha de haver por desempenhado; nem que, para reo que sem -tratos e sôlto confessa os delitos, sempre por bom direito se usou de -misericordia; melhores me parecem do que estes, os meus fundamentos: e -ei-los aqui. - -Primeiro: que andando a _Primavera_ ja impressa e corrente por muitas -mãos, e não podendo ser recolhê-la eu de novo, e desluzi-la da memoria -de muitos que a bem agazalharão, melhor arbitrio he, pois que tem de -se conservar no mundo, renascer n’elle expurgada de muitos vicios da -primeira impressão, e se a paciencia me acudir com o preciso valor, -retocada no que pertence ao literario. - -Segundo: que havendo talvez ainda, e podendo vir a haver, moços que se -dem a poetar, acontecerá que entre os mais livros portuguezes que ás -mãos lhes cheguem, vão de envolta os meus (assim mo promette sua boa -fortuna, que os livros a tem como os homens, e ás vezes os mais ruins -muito melhor do que os bons): mãos de principiantes não sabem escolher, -os amores, amenidades e branduras da _Primavera_ cáem muito a gente moça, -ir-se-hião traz o gosto, e beberião muitos defeitos; do que seria minha a -culpa, se eu não procurasse agora arrancar boa parte d’elles, e contra os -demais os não precavesse com honestas advertencias. - -Terceiro, finalmente: que eu pretendo antes ser bem conhecido pelo que -fui, sou, e hei de ser, do que só pelo que sou; porque nascendo-nos o -presente do passado, ainda que diverso, e produzindo-nos ainda que tambem -diverso, o futuro, o sermos só conhecidos pelo que somos não he sermos -conhecidos. He pensamento que merece ser entendido. Alexandre Dumas o -explicará. Sem pedir venia traduzo o passo, com quanto seja longo, certo -de que o não parecerá. - -—“A maior desgraça da crítica, ainda quando se não sae com ignorancias -e velhacarias (diz elle no prologo da _Catharina Howard_) consiste em -sentenciar uma Obra nova desmembrada do feixe literario cuja he parte: -ahi está porque nunca se póde avaliar um livro com exacção antes da -morte do autor; e mais ainda he preciso que Deos lhe haja concedido -desde o primeiro até o ultimo, os dias, que para acabar seu edificio se -lhe fazião mister; por quanto, se antes de tempo morreo, o monumento -que traçára tem de ficar incompleto para sempre como a Sé de Colonia, -e os homens mal justos para com elle ainda para alem da sepultura, -lançar-lhe-hão á conta de humana fraqueza o ter-lhe ficado certo vão por -tapar, quando a morte de invejosa e apressada lhe veio atar as mãos, e -ja talvez para se arrematar mais não faltava que uma só pedra: ora por -aquelle vão, he que a crítica se mette e entra, quer o autor esteja vivo, -quer defunto.” - -“De trez idades se compoem a vida de quem nasceo fadado a dar de si -produções, e em trez periodos se desparte: como couza alta e nobre que -he, tem primeiramente sua base por onde se começa; depois um cume onde -se chega; ultimamente la por dentro um motivo, tenção e fim particular -para onde se torna a descer. Pelo que, he necessario que o homem tenha -vivido todas estas trez idades e que o seu talento haja cursado estes -trez periodos, para se poder avaliar aquelle talento no seu todo, aquelle -homem na sua produção.” - -“Primeira idade, quando a fantasia prevalece á rasão. A esta idade de -viço pertencem as horas que tão despedidas voão dos vinte e cinco aos -trinta e cinco. He o periodo para dever inventar _Hamlet_ quem se chamar -Shakespeare, o _Cid_ quem tiver nome de Corneille, os _Salteadores_ quem -for Schiller.” - -“Segunda idade, em que a fantasia e a rasão se embalanção, ajudando-se -mutuamente, e vindo a formar das suas duas uma só força neutra. A esta -idade vigorosa pertencem os dias que vão correndo dos trinta e cinco aos -quarenta e cinco. He o periodo em que os mesmos trez sujeitos produzem _O -Rei Lear_, _Cinna_, _Wallenstein_.” - -“Terceira idade, em que a rasão prevalece á imaginação. A esta idade de -reflexão pertencem os annos que descem dos quarenta e cinco aos cincoenta -e cinco. He o periodo em que elles compoem _Ricardo III_, _Polyeuctes_, -_Guilherme Tell_.” - -“Ora pergunto, ficarião completos Schiller sem _Wallenstein_ e _Guilherme -Tell_, Corneille sem _Cinna_ e _Polyeuctes_, e Shakespeare sem _O Rei -Lear_ e _Ricardo III_?” - -“Parece-me portanto que nunca devêra a crítica requerer de um poeta, -senão as obras de sua idade; e bem sabemos nós como o faz ella sempre -ao revez, sendo as obras que mais se empenha em querer extorquir de um -engenho as dos annos que ainda não vingou, ou as dos outros annos que ja -deixou transpostos. Pelo que toca a uma obra que vem condizendo com o -periodo d’onde dimana, nunca a impertinencia dos juizes a dá por cabal: -são uns Aristarchos sem paciencia, que acodem logo com a crítica a cada -pedra de per si, ao passo que ainda se está guindando, sem advertirem -que aquella pedra só assente e junta com as outras pedras he que ha de -dar prova da traça e desenho geral do architéto: são como uns pomareiros -esquipaticos, que não tomando em conta o inalteravel fio das quadras do -anno, pedem fruta madura á primavera, frutos verdes ao verão, e ao outono -flores.”— - -Bem haja Alexandre Dumas, que tão artificiosa e claramente me decifrou, e -me ajudou a pôr em limpo uma verdade, cujos ares muito ha que eu tomava -de longe; uma verdade que eu andava adivinhando como por entre nevoas. - -Ora pois, dos trez apontados motivos de determinação, foi este ultimo o -de maior momento: quiz dar completo o meu retrato, menos o intellectual -do que o moral, a quem desejasse conhecer-me: não podia omittir como -feição o que eu havia sido, e ainda antes d’aquella primeira idade, que -dos vinte e cinco decorre até os trinta e cinco annos. A _Primavera_, -escrita aos vinte e dois, tinha por tanto de entrar encorporada na -collecção das minhas Obras. Se a refundisse pelo meu gôsto de hoje -em dia, não sei se ficára melhor, mas sei que ficára outra, e por -conseguinte falsa como feição. Tudo quanto era seu geito, seu pensar, -seu ser proprio passará intato; e n’isso, se se hão de perdoar gabos -a quem sem disfarces nem dó se disciplina deante do Povo por peccados -poeticos, n’isso digo, alguma couza ha de bom, sem o que não tivera -agradado a tanta gente. O por onde a lima pode e deve correr afoita e sem -dó, são—_as numerosas faltas de boa falla portugueza—desleixo de frase—e -estiramento de períodos_. - -Quero-me explicar, não para os Mestres, sim para os novéis no officio -de escrever, com os quaes particularmente converso nos meus prologos; -e porque não havia eu repartir do fruto de minha tanta ou quanta -experiencia com quem não a póde ainda ter, nem suppri-la com seguir -cursos de Bellas-letras que entre nós se não ensinão? Um dos maiores -delitos literarios, e em que mais usualmente cáem os moços, he o -_desprezo de lingua e corréção_; delito que per si basta para descontar -muitos meritos intrinsecos de escritura. Sem bem saber sua lingua, diz -Boileau, o autor mais divino nunca passará, por muito que faça, de máo -escritor. He ella a ferramenta para este genero de lavor da alma; e quem -poem as mãos na obra sem primeiro ajuntar, conhecer, escolher e apontar -bem os instrumentos de que se ha de valer, nem se pode mostrar bom -artífice, nem merecer desculpa de o não ser. - -Toda a Musa em creança padece dispepsia de versos, diabetes disséra quem -se menos prezára de cortez com Divindades. Na primeira idade he costume, -e por muitas rasões, das quaes não será a mais fraca a aversão ao -trabalho, presumir-se antes de facilidade e presteza no escrever, do que -de corréção e primor: coração e fantasia tudo anda ligeiro, querem que a -penna lhes obedeça, como se ella podesse; forção-na, e dahi resulta que -pensamento ou afféto que lá dentro era soberbo, apparece cá fora frio, -mesquinho, desengraçado; e maravilha-se o escrevedor quando a mesma couza -que valentemente o agitava, em quanto em si a revolvia, depois de passada -para o papel adormenta os ouvintes, e a elle proprio o desconsola. De -todos os defeitos de autor, talvez se podesse affirmar que só este he -verdadeiro, real e absoluto defeito; porque, se os pensamentos e affetos -de cada idade são della, e dessoão e descontentão a todas as outras, tem -por si o serem d’ella, e como taes se defendem por conterem verdade e -pintarem o homem; não assim a lingua, que em todas as idades he ou deve -ser uma, não provando outra couza o faltar-se a ella, senão que se quer -fallar antes de se ter aprendido. Sou experimentado, e por bem do proximo -direi com vergonha minha, que no que me ficou escrito d’essa quasi -infancia poetica, as couzas nem me espantão nem me offendem, ainda quando -as desapprovo, mas a linguagem e o dizer me fazem de continuo caír as -faces; e por isso que he escolho em que naufraguei tão desastradamente, -o assignalo com tanta miudeza e teima; nem cançarei de o assignalar e -accender-lhe em cima boa luz de farol, em quanto vir, como vejo, outros, -que nem por idade se absolvem, esbarrar n’elle e perder-se a todas as -horas. Mancebos, (se os ha ahi que se dem ás letras) vós que encetaes a -mui ardua e perigosa vereda que pelas letras conduz á fama, seja qual -fôr o genero de poesia para onde propendais, seja qual fôr o vosso não -vulgar engenho, sejão quaes forem os louvores que os velhos na arte vos -concedão, e os applausos com que as sociedades vos afoutem, não vos deis -pressa de apparecer: os conselhos que Horacio vos deu, durão com toda a -fôrça que a natureza e a pratica lhe bafejarão. Deve-se compor de espaço, -consultar os bons e peritos, guardar por nove annos, chamar, e tornar a -chamar dez vezes á unha a obra ja perfeita. O amor proprio nos persuade -e impelle a apparecermos cedo, devia elle, se não fôra cego, ter-nos mão -para nos não sairmos senão a horas; - - _A melhor fruta colhe-se mais tarde._ - - (_F. R. Lobo._) - -Muito mais vale começar jornada com dia claro, do que, para adeantar -horas, largar a pouzada pelo escuro da noite, em que os tropeços são -faceis, perigosas as quedas, e quasi certo o extravio, que a final -lançadas as contas nos farão chegar mais tarde e menos gostosos ao lugar -que demandâmos. Repetirei, porque nunca o repeti-lo será de sóbra, o -que ja por semelhante occasião disse em outro meu livrinho, contra -esta enfermidade que se tornou praga, e nos traz a todos lastimosamente -gafados; não ha mais remedio senão soccorrermo-nos aos livros mestres -de nossa lingua. A aversão que vós outros, gente moça, lhes tendes, bem -sei d’onde nasce, que tambem eu por ahi passei: correm para vós como -rio caudal os livros d’essa França, todos especiosos e doirados, todos -galhardos e louçãos, arrebicados e argutos no dizer, promettedores de -maravilhas nos titulos e indices, conversando comvosco paixões fortes -e brandos affetos, uns vomitando republica por todas as folhas, outros -por todos os poros exhalando commodissima incredulidade, e todos á uma -embebidos do presente, afinados pelo vosso ponto, e se o posso dizer, -mancebos como vós mesmos. Não ja assim os nossos patrios autores: estes -não vos sáem ao caminho; pouzão, antes jazem, pela escuridão êrma das -bibliothecas, mal envoltos na grosseira capa de seu tempo, enterrados -no pó, meio devorados dos bichos; se os olhais por fóra, parece-vos que -a vida vos não daria para um só volume: se os consultais por dentro ja -os titulos vos não namorão, os indices vos descoroçoão: folheai-los por -alto, vem os milagres incriveis, a historia encarecida ou chã, a poesia -enleada e escura, o estilo incorreto e desflorido, o amor grave e sizudo, -os costumes castos, a moral severa, a fé religiosa e inconcussa: cada -pagina na sua simplicidade apregoa Deos, revem por cada poro o cheiro -do mundo velho: mas esforçai, affazei-vos por alguns dias a soffrê-los -e comsenti-los; continuá-los-heis sem tedio, logo com gôsto, com ancia, -reconhecendo a final quanto as primeiras mostras vos havião mentido, como -pelo meio e fundo d’aquelle enganoso dissabor andavão sumidas galas, -joias, riquezas, maravilhas, que vos enchem os olhos, vos cativão a -vontade, e fazem que vos peze do tempo que os não conhecestes. Assaz nos -divertimos do caminho, rasão he que a elle nos tornemos. - -O segundo defeito geral que me occorreo n’esta leitura, foi o que eu -chamei _desleixo de frase_. He este muito menos grave que a impureza da -lingua, sendo-o todavia assaz que mereça quanta reformação lhe eu possa -fazer. Quando quem não cura da pureza de sua lingua, cura ao menos de -lhe não deitar remendo de panno estranho ou novo que não seja vistoso -e garrido, quando o que se não preza de dizer limpa e castamente, ao -menos timbra no exprimir com viveza não vulgar, com certo matiz, com -certa novidade, algum passo mais se lhe póde conceder. Procurei se ao -menos teria eu posto algum pouco d’isto, e achei um desconsolado não. A -locução não me pareceo tão poeticameme figurada como convinha em poesia, -ainda pastoril; os epíthetos erão tão sem succo e bastos como a caruma no -mato. Uma e outra couza requerião, em quem as quizesse bem emendar, muita -paciencia, e muitissima mais da que eu tenho. De ambas, mormente dos -epíthetos, procurarei limpar a maior; todos não he possivel: tanto e por -tal geito estão com toda a Obra cozidos e enraizados, que lhes vale o que -ás ervas parasítas em parede velha mas necessaria; foução-se-lhe algumas -demazias, perdoa-se ao resto, com o medo que em faltando, se esboroe a -parede, e venha ao chão toda delida. - -Tambem me queixei de _estiramento de períodos_. He defeito portuguez, -peninsular, meridional. Dava-me agora na vontade tornar a culpa ao -sol, que n’estas suas terras faz que tudo se desaperte, e derrame, e -desate em viço e sobejidão: mas fiquem esses milagres do sol para os -esquadrinhadores metafisicos, a quem inda assim, não quero mal; e eu, -melhor que a nenhuma outra causa, lançarei aquella minha diffusão ás -costas dos annos em que escrevia, com o que sempre fico de bom partido, -por das minhas a tirar. O que he grandemente verdade, he ser este defeito -para muitissimos leitores, principalmente mancebos ou hospedes nas regras -de escrever, virtude, e a virtude contrária vicio. Saírão a _Noite do -Castello_ e _Ciumes do Bardo_ muito mais contraídos e apanhados em couzas -e palavras, do que estes Poemettos e as _Cartas de Echo_: pois comtudo -muitos houve e ha, que por isso mesmo ficárão preferindo aos novos os -antigos e até velhos opusculos. A cada hora me diz um que me torne ao -meu primeiro caminho; outro que não desampare o novo: uns, que estas -ultimas obras se não lem senão de escaço numero; outros que as passadas -não occupão meia hora os olhos dos homens graves e bons juizes. Oh! -quem reconheceo nunca a verdade da fabula do velho, do rapaz e do burro -como o triste, que para expiação talvez d’algum grande peccado, entrega -e desampara a público os partos do seu tinteiro! Pois que não póde -ser contentar a todos, ir-me-hei como e por onde o meu juizo, gôsto e -natureza me levarem. - -A poesia substancial e severamente escrupulosa, he o mais das vezes -descontada por uma certa desharmonia: a muita harmonia, ainda quando mais -apoucada de ideas, ja entretem suavemente: qualquer leitor se entende -com taes escritos, ninguem com elles se cança; são um genero de musica -facil, que ainda quando não exprime affetos, se ouve com gosto; são -como um deslizar de barco por uma agoa mansa: por isto he que os livros -do _Porto_ e _Tristezas_ de Ovidio se lem de um cabo a outro com muita -deleitação.—_Inter utrumque_: nem tanto apêrto como Almeno na chamada -tradução de Ovidio; nem tanta soltura como o seu amigo, e outr’ora meu -mestre, Elpino Duriense[4] nas poesias originaes; nem tanto pospor a -harmonia e clareza á brevidade como Filinto; nem tanto sacrificar o -entendimento ao ouvido como Elmano. Isto foi o que me pareceo lograr -na _Noite do Castello_, e _Ciumes do Bardo_, e não me arrependo se por -ventura o consegui. - -Tanto não, mas alguma couza d’isto fôra o que eu quizera na _Primavera_: -alguma couza, para poder com ella reconciliar os severos; tudo não, por -não dessimilhar em demazia esta parte do retrato. - -Até aqui descubrimos defeitos que importa emendar, agora os vamos ver -do outro genero, em que me não he licito bolir, por serem essencia do -livro: erão aquelles no tocante á lingua, estilo, e metro, que ainda que -importantes, não passão de accidentes da obra; estes são da alma, vida, e -pensamento da mesma obra. Entremos pelo descritivo (não será portugueza -a voz, mas o uso e necessidade lhe valeráõ.) Descritivos se chamão em -geral todos os poemas deste genero, e como a taes, parece que tudo quanto -for pintar dentro do quadro do seu painel, lhes compete e convem. Não -he comtudo bem assim, porque as descrições, por mui formosa e naturaes -que se ostentem, tambem canção a imaginativa de quem lê, quando umas -ás outras se vem succedendo perennemente e sem um bom entremeio de -narração, ou outro valente interesse, que por um modo verosimil as reuna, -separando-as ao mesmo tempo, para que se não confundão, nem se afrontem, -nem esmoreção. Não o advertio Delílle, e d’ahi procedeo não bastar seu -altissimo engenho para livrar seus poemas de enfadosos. Ora este livro -he quasi um embrechado massiço de descrições; e assim, se o posso dizer, -mais para ou olhos da alma do que para o seu entendimento. Mas serão ao -menos estas pinturas, consideradas uma por uma, de algum preço por fineza -de tintas, ou pontualidade de desenho? autos são em que me não compete -dar sentença. O Padre Kinsey, ou o Portuguez que em seu nome escreveo, -disse que eu não pintava bem a natureza; talvez que outro tanto, e -ainda peór, se devesse dizer da mór parte de nossos poetas; mas não he -contra elles, senão contra mim só que eu enfeixei varas no princípio -d’este prologo: como os applicados noviços se não enganem comigo por -minha culpa, que se desvairem e percão com os outros, paciencia! Aqui -está comtudo o que me parece; este descritivo he desbotado e de côres -pouco vivas e proprias se com o de Gessner ou Kleist se compara, mas -he o melhor que eu soube; eu que nem podia ir-me pelos campos fazendo, -como de si dizia Kleist, caçadas poeticas de imagens, nem discorrê-los -como Gessner, de lapis na mão. Ja póde ser que o Padre Kinsey, ou o seu -ponto, não houvessem de se me avantajar muito, se lhes coubesse tirar ás -escuras, ou quasi, o retrato da natureza: muito mais faz quem atravessa o -Tejo a nado, do que hum Almirante Inglez que em segura e bem apercebida -náo rodêa a esfera; poderá este trazer mais riquezas e informações, mas á -fé que não prova mais fôrças e esfôrço que o desconhecido nadador de uma -só corrente. - -Passemos ávante, e das descrições entremos nos affetos. N’esta parte -direi pouco, porque sem embargo de que o desabrimento com que me castigo -onde entendo merecê-lo, me podia deixar alguma licença para tambem me -louvar pelo que em mim visse de bom, melhor he que nos louvores, em que -mais facilmente nos podêmos enganar, nos contentemos de ser ouvintes. -Ainda assim, não acabo eu de dizer tão pouco, que muito bem se não -entenda ja que no tocante a affetos não quero muito mal á minha Obra: -fallo dos affetos em geral, porque passos ha n’ella a cujo affeto não sei -ja hoje querer mal nem bem; honesto, formoso, e macio me parece, sei que -n’esse tempo devia ser meu, porque eu não compunha, tirava do coração, -mas ja o não posso entender cabalmente, e avaliar. Esses passos, apezar -de tudo e de mim, hão de passar intatos, que em assunto de branduras o -eu de hoje respeita religiosamente ao eu de algum dia; e porque tudo -diga, ainda que quizera emendar, não saberia. Sim me inclino a que haverá -(e ja de alguns m’o boquejarão) excesso, redundancia, languidez em -tantas suavidades, caricias e extremos de bem querer a tudo, e a todos. -Inclino-me e talvez o creio: mas que havia de cortar? a que havia de -perdoar, se assim como o eu antigo valia tanto mais que o eu presente, -póde ser que o melhor se me figurasse agora peór, e o peór melhor? - -Digamos duas palavras da Mithologia. Ja não sou tão emperrado pagão como -n’outro tempo; desconsola-me ver o desmedido uso que d’ella fiz. Não se -entenda por isto que me alistasse debaixo das bandeiras triunfaes dos -modernos espanca-numes, nem que tiro vãgloria de botar pelo mundo pregáõ, -como Beranger, que os Deuzes ja saírão do meu credo. Todo o excesso -em crer ou não crer, em admittir, ou recusar me parece hoje em dia um -disparate, de que sempre, mais por aqui mais por ali, vem a resultar -contras e arrependimentos. Enjoa-me a fabula dos Lusiadas, e muita, e -muita, e muita outra: aborrece-me quasi todo o emprego que dos Romanos -para cá se tem feito d’ella, _incredulus odi_. Só consinto na fabula -parca, explicavel, e só a amo quando soberbamente poetada. Alumiarei -com um exemplo: quero-a assim como a derrama ás mãos chêas por suas tão -poeticas prozas o christianissimo Chateaubriand, esse mesmo que de longe -visto, assim parece guerrea-la. Nada d’isto acho eu pelo commum no meu -livro: de cada canto me surde uma Divindade; a boa parte d’ellas não -responde verdade, e se alguma couza ahi vierão fazer, certo que não foi -inspirar-me um só rasgo poetico. Porque pois as deixarei? porque não -substancia do livro, e n’elle tem posse velha e apozentadoria. - -Dêmos a derradeira parte do prologo, que em prologos deve ser sempre -esta a de vantagem, a algum poucachinho dizer sobre a moral. Moral -hoje, moral em livro de poeta, grande novidade e grande estranheza! Sim -hoje, que ainda ha muito quem se preze de viver honesto, virtuoso e -pela antiga: sim em livro de poeta, e por isso mesmo; visto como tudo -quanto era contra ella o tem a proza a si tomado, não será muito que lhe -abra sua porta a poesia, e lhe dê guarida em um pobre cantinho térreo -de sua pousada, como he este: inda mal, que até cá, no fundo de tamanha -escuridão e penuria, por todas as fendas e agulheiros do mal reparado -edificio poetico lhe chegaráõ as risadas sem alma nem sal de seus -inimigos, e contra essas não ha valer-lhe. Ha pois do titulo d’este livro -a dentro, dado se não prometta senão primavera, um como ar de bondade e -saude para o animo, de socego e bemaventurança para a vida: e por isso -he que, a despeito da todas suas manchas, me parece bem, como ja no -Ante-Prologo deixei tocado, atira-lo, como sementinha de erva medicinal, -ao baldio sáfaro e corruto d’esta idade. Bem estou eu antevendo quantos -de mim hão de haver lástima, por me assentar no meio de tão ferida e -accesa batalha, por cantar entre tantas vozerias de odios. Paciencia! -tambem sei que homem sentado não sóbe, nem a trôco de cantigas se comprão -riquezas e valimentos: mas cada qual tem sua estrella, e a minha, que -outra vez descobrio depois de largo eclipse, esta foi, e esta ha de ser; -oxalá que para sempre! Com o bom de Archimedes me pareço n’isto, o qual -na hora que a cidade estava sendo entrada do inimigo, e alagada das -torrentes de ferro e fogo, nem tinha ouvidos para o estrondo, nem deixava -de proseguir na composição da lustrosissima esfera celeste, unicos amores -que no canto calado de sua casa o desvelavão. Havia ahi uma não sei que -magnanimidade; e a ninguem deixa de doer a cutilada do soldado feroz que -despede tal cabeça para cima de tal obra. Mas quando me ólho, e me vejo -a brincar com flores e cordeiros, ao tempo que em redor de mim estão no -chôco tão grandes destinos do mundo, não me lastimo, porem rio-me, e -cuido estar vendo em mim proprio um menino, que por um dia de tempestade, -enthesoura conchas e forma lagoazinhas na praia, emquanto andão á vista -galeões alterosos á luta com os elementos, e na mesma praia uns pasmão, -outros se aterrão, outros suspirão pelo instante do naufragio para se -arremessarem aos despojos, apenas o mar os cuspir.—Fugindo me hião agora -outra vez os pés pela antiga ladeira abaixo: e a moral, esquecida até -por quem lhe deo couto! Com ella sou, e com ella determino acabar. - -He a moral na maior parte d’estes poemas pura, facil e amavel; e se não -tão efficaz como a de Gessner, não he porque o eu dezejasse menos, he -porque podia menos atavia-la, e aformozea-la do que elle, e atavios e -formozuras até servem para fazer do bom optimo. Todos os amores de que -se urde e tece a domestica felicidade, se achão aqui representados por -um modo que se recommendão, e d’elles se imbue de mui bom grado o animo; -o amor filial, o paterno, o materno, o conjugal, a amizade, até o affeto -aos animaes, arvores, flores, e mais creaturas de Deos, companheiras -nossas n’este mundo, aqui vem de envolta com a recreação. Porque tudo -diga, pelo gostador ou gostadora d’este livro daria eu mais, e mais -quizera viver com elle debaixo do mesmo telhado, e tratar quer negocios -quer passatempos, do que, se dizê-lo ouro, com gostadores e pregoadores -d’outros livros que estamos vendo rebentar de muito mais avultados -engenhos. Se eu tivesse filhos e filhas a quem dar criação, sei que -emquanto não podessem ler Gessner, e seus bons imitadores estrangeiros, -lhes daria a _Primavera_; e ja não digo o mesmo das _Cartas de Echo_, e -muito menos da _Noite do Castello_, e _Ciumes do Bardo_. Mas, acudirá -algum prudente, couzas se deparão na _Primavera_ que mais são para ser -defendidas a donzellas, e resguardadas de fantasias ainda verdes, do que -para se aconselharem por doutrina. Sim as ha, e todas essas paginas que -para idades encorpadas e apercebidas de experiencia bem podem não ser -damnosas e parar em mero deleite, todas rasgára e déra ao fogo antes de -lhes entregar a obra para lição: e porei exemplos; na _Festa de Maio_, -os fins dos episodios de Galatea e Ignez de Castro, no mesmo poema boa -parte da republica de Chipre, como o culto religioso da Natureza, os -bens em communidade, a nudez, o divorcio, o cazamento de um com muitas -_et cetera_. Antes de passar adeante, trasladarei, que alguma couza fará -para aqui, parte de uma Nota que ácerca da republica de Chipre se lia na -primeira edição, a pag. 169. - -—“Note-se que este poema está muito longe de dever ser considerado como -didático; que toda esta republica de Chipre he meramente um Dithirambo, -aonde a licença do poeta he muito mais ampla do que em outro qualquer -genero de poesia; que esta sociedade de que se ha de formar a republica, -he de poetas, homens de quem vulgarmente se diz que mais dão ao prazer do -que á rasão; e que em boca de poeta se poem a arenga recitada no templo. -Para os avisados escusada fôra a nota, mas para os fanaticos, que ignorão -ter a Musa do Dithirambo licença para nos seus delirios arremetter contra -tudo, he indispensavel.” - -Era este arrasondo o melhor que o caso admittia, porem melhor houvéra -sido não carecer d’elle; e se ainda por elle se pode perdoar á republica -de Chipre, não assim ás demais desenvolturas, como as dos dois ja -apontados episodios. Porque as puz umas e outras? vá mais penitencia. Puz -as pinturas amorosas em quasi nudez, porque estava n’aquella sazão da -vida e do anno, em que todos nos deliciamos nas fantasias sensuaes, e se -somos poetas, cuidamos morrer abrazados e afrontados em não desabafando. -Porque não expurguei d’ellas esta segunda edição? pelo mesmo motivo do -retrato, e não outro. Quanto ao culto da Natureza, e á gente nua, e aos -maridos de muitas mulheres, são necedades taes, que não merecem que -nos detenhâmos em as refutar: são d’aquellas demencias, cujo aggregado -dá o que entre moços que esfolheão livrinhos bem doirados e térsos, se -denomina filosofia, e que só dura emquanto a experiencia e o tempo nos -não desmamão da presunção; pelo que, e pela rasão geral, ja muitas vezes -apontada, de querer mostrar-me qual fui, vivão, durem e passem, que -depois d’isto ja a ninguem farão mal. - -Eis aqui por alto, mas com toda a lealdade, o juizo que da _Primavera_ -formei; he primavera por matos de serra, com mais flores do que graças, -com mais ares saudaveis do que ervas medicinaes, mui tibia de fragrancias -mimosas, mui nua em muita parte de terreno, mas com seus longes de campos -e cazaes felizes, e muitas saudades lá pelos extremos confusos do seu -horizonte. Quem se d’estas cousas contenta, fico se recreie com ella; -e quem com ella se recrear, para amigo o quero, que esse saberá, como -eu, amar muito os homens, fugindo-os; e enfadado, como eu, das terras -onde não ha ver passaros senão em gaiola, nem verdura fóra de gigas, -nem arvoredo que não seja pintado, nem pastores e innocencia senão na -opera e trajados de seda e veludo, nem felicidade senão em promessas de -políticos, irá procurar-se, achar-se, e lograr-se de Deos, de si, e dos -penhores de sua alma no seio e entranhas da vida campestre. Oh, se assim -fosse!... e se Deos a um tal me désse ainda por vizinho!... - - _Lisboa 4 de Dezembro de 1836._ - - - - -_Post Scriptum._ - - -_Lisboa 29 de Março de 1837._ - -Quando todo estava no trabalho de desempenhar minha palavra, e fazer -ainda mais do que no Prologo deixára promettido, revendo cuidadosamente, -afeiçoando, podando e enxertando de novo este volume, sobreveio-me aos -2 de Fevereiro passado, o maior infortunio de minha vida, uma perda de -que em nenhum tempo se me poderá o coração consolar. Quebrarão-se-me -as forças para continuar no trabalho, bem como se esvairão muitos, -antes todos, meus projetos. Ja não arrancarei (e para que?) este pouco -e inutil resto de mim mesmo da terra que encobre a minha melhor metade: -aqui procurarei, se tanto podér ainda, pagar com uma pouca fama e muitas -lagrimas, a quem a mim me deo até á sua ultima hora seus olhos, seu amor, -toda sua alma. Qual ficou este livro tal sae, e muito inferior ao que eu -promettia, podia e devia fazer. Se algum de meus leitores entende por -experiencia o que seja padecer n’uma viuvez uma completa orfandade, esse -passará com indulgencia, e ainda suspirando, pelos muitos defeitos que -na leitura lhe occorrerem. Aos sem alma não tenho que dizer: se quizerem -castigar o espirito meio morto, porque não pôde mais, fação-no, que dôres -d’essas não acharáõ ja em mim lugar nenhum. - - - - -EPISTOLA Á PRIMAVERA - - -_Vai a Epistola em tudo outra da que fôra na primeira Edição: conserva -a invenção e os pensamentos, mas emendou-se a linguagem, apertou-se o -estilo, deu-se alguma côr mais ás imagens, explicarão-se melhor alguns -pensamentos, reformarão-se e afinarão-se quasi todos os versos._ - - - - -DEDICATORIA A MINHA IRMÃ. - - -_Eu mandei o meu Genio campestre apanhar flores por entre os gelos do -inverno. Formosas não saírão, bem o sei, porem n’esta estação do anno não -mas dá melhores o estreito jardimzinho que me as Musas doarão nas fraldas -do Parnaso. A ti, minha Irmã, me ordena o coração que as offereça. -Felicidade será para mim, se quando para o teu lado me tornar, tu me -disseres abraçando-me:—“Eu amo as flores que tu me enviaste, no meu seio -as guardo: as da primavera menos me contentão do que estas, que o teu -Genio campestre colhe no teu jardim, por entre os gelos do inverno.”_ - - - - -DUAS PALAVRAS DE INTRODUÇÃO - - -Fôra o inverno de 1821 para 22 dos mais desabridos e temerosos de que -entre os vivos se faz memoria. Na Beira, onde me então achava, vião-se -arrancados e espedaçados bosques, olivaes e pomares, sementeiras -afogadas, pontes demolidas, e os rios sem margens. Dos 25 de Dezembro -até os 9 de Janeiro, que me demorei em uma aldeinha, uma legua desviada -de Coimbra, saboreando no trato cordeal de alguns amigos e parentes -as férias, então mui festivas, de meus estudos, foi sempre tão atada -e rigorosa a porfia das invernadas, que nos falseou quasi de todo a -recreação mais apetecida dos que fartos da cidade, vão alguma hora ao -campo desenfadar-se. De não passear nos vingavamos o melhor que o tempo -e lugar no-lo consentião: práticas desaffrontadas de constrangimento, -temperadas de bom sal, e muitas vezes substanciaes; a voltas d’ellas, -leituras accommodadas ao mais dos gostos, poesia, e improvisos de -_charadas_ e adivinhações nos enchião as horas não contadas. As -espaçosas noites e boa parte dos dias, se levavão n’estes e semelhantes -passatempos, em de redor de uma farta fogueira, segundo he costume -d’aquellas terras. Por alguma rara tarde, quando o sol descobria, e o ar -um pouco mitigado nos consentia saír, nos hiamos, ora pelo jardim onde -se explanava um soberbo lago, outr’ora pela orla mais assoalhada dos -laranjaes, que mui corpulentos e viçosos, acenavão de seus ramos com -frutos e flores, pondo a vista, o cheiro e o gôsto em doce competencia -de delicias. Era ainda aquillo, ou ja era, umas lembranças, uns longes -de primavera no coração do inverno, saíamos da prisão dos lares, -aproveitavão-se com sofreguidão: talvez nenhum dia de perfeita primavera -na longa cadêa d’elles me pareceo nunca melhor e mais ledo, do que estas -pobres tardes sonegadas ao mez do Natal. A fantasia enganada do sol, toda -se me desatava em poeticas flores, o que n’esses tempos só por maravilha -me acontecia fóra da primavera, e luares do verão. Quando vinha a noite, -acceita ao meu coração, (que sempre de si o conheci, não sei porque, -amigo de com ella suspirar saudades), e ja todos ao conchego do nosso -lume fiel nos tornavamos alvoraçados, comigo só me hia pouzar a um canto, -colhendo, concertando e accrescentando com mui entranhado contentamento, -quantas florinhas me havia brotado a fantasia. De saudades da primavera -me parece ainda agora que nascião todas; o que certo sei, he que ahi, e -n’um imaginar d’estes meus, me veio a lembrança e desejo de escrever á -Primavera uma Epistola. Se n’isto abusei ou não da licença tão concedida -a poetas, não o sei; sei que no ditar estes versos para se escreverem, e -no conceber-lhes o assunto a passear ou a seroar, gozei prazeres que ja a -crítica me não póde tirar. Se contra o bom juizo pequei, todo o meu pezar -he não poder outra vez peccar pelo mesmo modo, nem outra vez namorar-me -da Primavera: os annos que a trazem ás arvores no-la levão a nós, e ja la -vão quinze, (quinze annos!) sôbre o tempo em que eu brincava com estas -innocencias. - - _Lisboa: 9 de Dezembro de 1836._ - - - - -EPISTOLA - -_Á PRIMAVERA_. - - - Corre a Noite, jaz muda a natureza; - Os campos solitarios esmorecem; - Mal se ouve ao longe o estrondo da corrente: - De quando em quando a lua desmaiada - Mergulha em nuvens, surde, outra vez morre; - E das planicies a extensão geosa - Ora resae e alveja, ora se apaga. - - N’esta cabana de grosseiros troncos, - Tecido vime e colmo, onde sereno, - Vento, e cuidados não coárão nunca, - N’esta onde habita perennal fogueira, - E onde he Penate o Genio da hospedagem, - Venho entre amigos deslembrar tristezas: - Do frio lá de fóra o ultimo resto - Ja o atirei á chama tragadora. - Em ti, Amores meus, em ti só fallo - Ó Primavera minha; em ti só cuido; - A ti quero escrever: inda ha bem pouco - Em meu passeio a flor das larangeiras, - E do sol que hia a pôr-se o extremo raio, - Cá me derão de ti saudades tristes. - - Desde que ao scetro do raivoso Junho - Tu doce com teus Zéfiros fugiste, - Meu dia estendo em languidos suspiros. - A noite em vagos sonhos me afigura - Ver-te, cantar-te, desfrutar teus mimos: - Mal desponta a manhã, mal foge o sono, - Desespero-me, lido entre amarguras; - Peço aos bosques sem folha, aos ermos campos, - Aos rochedos de neve, ás turvas fontes, - Ao ceo toldado, aos ares tempestosos, - E a toda a natureza, a minha Amada. - - “Primavera, onde estás?” do outeiro exclamo; - De valle em valle, de um cabêço em outro, - “Primavera, onde estás?” responde o echo: - No prado o guardador, no monte o Fauno, - Pelo arvoredo as Dríades á escuta, - “Primavera, onde estás?” depois exclamão. - Emquanto assim fiel, por ti ó Deosa - Me desentranho em ais, onde te escondes, - Perguiçosa gentil? onde vagueas - Bella inconstante que estes ais não ouves? - Algum Deos namorado, em plaga estranha, - Encheria de amor teus olhos livres? - Esquecer-te-hião, (Ceos!) promessas tantas? - Sim: que te importa o definhar de um vate? - Do vate que te amou, te adora ausente? - Tu folgas e elle gema; elle delire, - Tu a prados sorris vestindo prados, - Revês-te, amante nova, em novas flores: - Fontes ha tambem lá, que importão éstas? - De fonte ao claro espelho te engrinaldas; - E ufana de encantar sensiveis peitos, - Tambem, como entre nós, por lá dardejas - Fogo de amor aos entes insensiveis. - - Volta, volta, ó cruel, aos campos nossos. - Qual paiz no universo, a não ser Pafos, - He mais digno de ti? ¿por onde achaste - Para o cortejo teu, Ninfas, pastoras, - Como éstas que entre a murta o ceo nos cria? - Amantes mais fieis? florestas, rios - Namorar-se, mais frescas, mais formosos? - Mais doces flautas quando amor entoão, - Aves mais doces quando amor gorgêão? - ¿A tua Cintra, Elisio dos desejos, - Nobre jardim do Oceano, onde folgavas - Contemplar na alta noite em mista dança - Ninfas das ondas, Ninfas das florestas, - Assim te descaío? ja não proteges - Os córos virginaes que ali passêão - Sorrindo ao ver seu nome em bosque e bosque? - ¿Por toda a parte as Graças que espairecem; - Do aligero esquadrão travêssos brincos, - Frechas doiradas em contínuo vôo - Aqui e ali aos peitos descuidados, - E se errão corações, ferindo os bosques, - Porque os bosques ali tambem suspirão, - Tudo pois te esqueceo? Volve, ó Querida; - Cede, não sejas dura, a amor, aos versos. - - Desde que te ausentaste ahi pende a lira - Nos braços nus de um álamo sem folhas, - A minha lira ao vento abandonada! - A lira d’oiro, onde entoei teu Nome, - Onde a minha paixão soou mil vezes - Na linguagem dos ceos a teus ouvidos, - Ei-la sem honra; os ventos lhe roubárão - Dos antigos festões o escaço resto! - Ao passar com seu gado, e vendo-a muda, - Diz suspirando a turba dos pastores: - “E’sta a que dava alento ás nossas festas: - Mal haja quem a trouxe a tal desterro!” - Dríades ternas, que meu canto ouvião - Não talvez sem prazer, dizem passando: - “O vate emmudeceo longe da Amada!” - Mas apenas teus Silfos precursores, - C’roados de violetas assomarem - Na ethérea região de nossos climas; - Apenas este ceo pezado e turvo - Mandar á terra os ultimos chuveiros; - Apenas rebentando as novas folhas - Se remoçar esse álamo tristonho, - E entre a nova ramage, emtorno á lira, - Cançada de seguir-te andar pouzando - A rolinha estrangeira, e sócia tua, - Á lira despirei do inverno o musgo; - E n’ella, de aureas cordas melhorada, - Só de ti chêo, na presença tua, - Brotarei versos, como brotas flores. - - Oh voa, acode a consolar Cibele, - Cibele a térrea mãi da especie humana, - Cibele, amores teus, qual tu Deidade! - Se ora a visses! ... do carro verdejante - Os rebeldes tufões a derrubarão: - Co’a trança descomposta, o manto em rios, - A altiva c’roa em parte destruida, - Nua jaz á vergonha, ao vento, á neve. - Seu tanto desamparo he mágoa aos filhos: - Mas para dar-lhe a mão, torna-la a Nume, - Poder, qual em ti ha, não ha nos homens: - Do fundo do teu lodo a ti só chama, - Ai, leve-te algum vento as queixas d’ella! - - As torrentes sem freio divagando - Contra marmóreas pontes indignadas, - Investem, chocão, despedação, rojão - Ruinas em montoẽs aos fundos mares. - As Dríades, teu povo e tua gloria, - Tremem, oh dor! ao furioso assalto - D’Euros, e Notos, e Africos em guerra: - A seu brutal furor nenhuma escapa: - Crer-se-hia que as prisões da Eolia furna - Para sempre arrazára a mão de Jove. - Dríades nobres de arvores antigas, - Refugio outr’ora das calmosas séstas; - Dríades bellas de arvores vaidosas - Co’a idade juvenil, verdura e fôrças, - Tem a seus pés quaes vítimas caído. - Co’os negros frutos oliveira amiga - Baqueou; não lhe valeo celeste guarda; - E Minerva prantêa o estrago enorme: - Cáe o pinheiro amedrontando os valles, - E Pan, sentado nos troncados restos, - Triste espera por ti co’a flauta muda. - - ¿D’esta cabana a rustica fogueira - Sabes quem a sustenta? ah! corre, vôa: - Cedro, que eu te sagrei, caío por terra, - E onde brincou favonio estalão chamas. - Mui tarde chegarás se não-te apressas; - Do colono e pastor os ais te invocão, - A mesma natureza he morta quasi! - - Que fragor, que trovão! piedade ó Numes!... - Este deu raio, e pérto.—Outro rebrama!... - O Olimpo sobre nós desaba em fogo! - Chlóe, e Amarilis trémulas, gritando, - Desfeita a rubra côr em côr da morte, - Enchem de seu terror esta cabana. - O’ innocentes, miseras pastoras, - Não griteis, não tremais; vereis em breve - Dissipado este horror nos longes ares; - Contra o crime orgulhoso os Deoses troão, - Não fere o raio a rusticos alvergues. - Não, não me engano, ouvís como se afasta? - Como la vai ja longe? o mais do estrondo - Ja he toada vã no vão dos bosques. - Chuva propícia em caudalosa enchente - Desce na escuridão; resoa o této - Com o crebro saltitar das frias gotas: - Sibila o vento na vizinha serra. - Chlóe a porta fechou: nós apertâmos - O cerco estreito em deredor do fogo. - Cantou o gallo esperto: he meia noite! - E eu vélo ainda, e velarei saudoso - As horas todas que á manhã precedem! - Horas, horas de paz no horror das trevas; - Horas de estro, misterio, omnipotencia - Ao que nasceo das Musas bafejado! - Sonhe a ambição com purpuras, e scetros; - Torpe avareza com os inuteis cofres; - A vingança, fatal a si e aos outros, - Cogite embora nas traições, no engano, - Nos agudos punhaes, no sangue em jorros; - Vulgar amante afine, esmere astucias, - Com que succumba a tímida innocencia, - E aos laços venha destramente armados: - Eu dando a amor o que se deve ao sono, - Em chama pura, porque he tua, ardendo, - Alégro com teu Nome a horrenda noite, - A saudade em saudades apascento, - E inda ausente, comtigo ausente fallo. - Como o perdido em temeroso escuro, - Que ao mais leve rumor trémulo pára, - Assacinos agoura em cada tronco, - Não ouza resfolgar, prosegue a medo, - Aqui lhe surde a silva, alem penedos, - E lhe abrem fauces mil os precepicios, - Só tem na aurora esp’rança, e mal que ao longe - Annuncios d’ella vê, canta e renasce; - Serei mais que feliz pois vas ser minha, - Mal te sonhar ao longe, ó Primavera. - - Sim: eu te amo inda mais que a vide ao tronco, - Mais do que o touro em maio ama a novilha; - Quero-te mais que o Deos de amor ás trevas, - Mais do que Flora ao Zéfiro inconstante. - Eu suspiro por ti, como suspira - Murchada planta por sereno orvalho, - E ardente ceifador por fresca fonte: - Es-me tão cara como a bella esposa - A seu amante de chorar cançado, - Quando no dia d’hirneneo se abração: - Tão doce emfim como o primeiro beijo, - Que uma terna pastora, a medo e a furto, - Consente ao seu pastor levar-lhe aos labios. - Qual dos amores, que no mundo girão, - He mais grato que o meu? Este em delícias - Excede tanto aos mais, como tu vences, - Tu belleza do ceo, do mundo as bellas: - Eu amo e para amar não me recato, - Ao mundo inteiro meu ardor confesso, - Tenho rivaes e do ciume zombo, - Gozo-te, e nem pudor nem leis mo estorvão. - - Inda me está lembrando (hora doirada!) - Quando longe do mundo, e a sós comtigo, - Pela primeira vez te disse “Eu te amo!” - Abria a Aurora o roxo mez das flores: - Juntas em córos no arvoredo as aves, - De ramo em ramo aos ranchos adejando, - Em nunca ouvidos sons a luz saudavão: - Inda do puro rio a opaca nevoa - Bem não era desfeita ao sol nascido; - Inda das folhas concavas pendião - Trémulas gotas de luzente orvalho, - Que depois leva o brincador Favonio; - Quando (ai memoria doce!) eu dei comtigo - Inda meia a dormir na fofa relva. - N’alguns louros de roda entretecida - Hera tenaz um toldo te formava: - O melro grave, o rouxinol cadente, - Para encantar-te os sonhos, diffundião - Entre uns rosaes a musica dos prados; - Enchia aroma puro os puros ares. - Ligeiras, bellas Sílfides, velando - Invisiveis teu placido retiro, - Impedião que um Fauno petulante - Ou rustico pastor pozessem olhos - Em teu corpo sem véo, cheio de encantos. - Alí me conduzio propicio acazo: - Não mo impedirão Sílfides zelosas, - A natureza inteira he franca ao vate. - Ridente sono, da innocencia imagem, - Cerrava ainda os olhos teus ao dia: - Todo brandura o juvenil semblante, - Até sem o saber, até dormindo, - Faria suspirar homens e feras. - Entre a face mimosa e a fria relva - Tinhas meio curvado o braço lindo: - Como ao desdem, na esquerda seguravas - A cornucopia, a não poder com flores: - Halito doce de fragancia amena - Sáe do seio, que túrgido se eleva; - Dos roseos labios, da pequena boca - Vem tão doce, vem tal, que um peito humano - Bafejado por elle, excede os numes, - E a alma, em vez de pensar, delicias volve. - - Tal eras, tal fiquei ó Primavera! - Espertaste de todo; e toda risos, - E todos luz e amor os olhos verdes, - O que era ja sem termo accrescentaste, - Dobrou-se a graça ao mundo, o fogo aos peitos. - Um mar de deleitosas fantasias - Me soçobrou, confesso, e tempo largo - Jazi com o ledo mundo em braços da alma. - Depois tornando em mim, ví-te ja prestes - Para baixar do outeiro aos amplos valles: - Quão mais louçã, e em galas mais garrida! - ¿Que muito, se a mais nova das trez Graças, - De tuas mil Oréades servida, - Pozera as proprias mãos ao vago enfeite? - Erão-te manto ondado, e roupas simples, - Quanto verde ha na terra, e flor nas plantas; - Mas triunfava a rosa! aos botões d’ella, - Nem ja todos botões, nem flores todos, - Fôra o tépido seio em throno dado, - E em vez de o embellezar, se ornavão d’elle: - Erão raios do Sol a c’roa tua!... - Parei de embevecido! e quem no mundo - Te vio jamais como te vio teu vate? - Em teu seio amoroso um Cupidinho, - Qual borboleta d’oiro, esvoaçava - De botões a botões, na escolha incerto. - Vio-me; e curto farpáõ, doirado, agudo, - Curto farpáõ que os olhos não percebem, - Me arrojou, me sumio dentro no peito. - Graças ao tiro do mimoso Alado! - Na profundez da f’rida, e gôstos d’ella, - Contente reconheço, adoro um Nome. - - Amante, desde então, ditoso amante, - De dia a dia te encontrei mais terna. - Incenso, que antes dava a falsas Musas, - Off’reci-te, acceitaste, e foste a minha. - Abriste-me a Aganippe em cada arroio, - Cada monte foi Pindo, e Tempo os valles: - E tu em cada valle, em cada monte, - Ante a lua, ante o sol, me estavas sempre - Musa do coração, presente aos olhos. - De poetas foi sonho a voz das outras, - A tua graciosa ciciava, - De toda a parte vinha em tom macio, - Que filtra inspirações, e a amor contenta. - - Se os de ambições miserrimos forçados - Que ás cidades dão vida, e a si a roubão, - Podessem vir um dia onde tu reinas! - Se a mente que as paixões lhes anuvião, - E olhos em que os cuidados, seus verdugos, - Atárão com trez nós perpétua venda, - Podessem ver-te a luz deliciosa, - O manso da alegria, os gostos puros!... - Deixando sem adeos tumulto e pompas, - Mais de um, mais de um, salvando a tempo os filhos, - Co’as pouzadas dos bons unirra a sua. - E a quem darás tu nunca o riso cheio, - Como o déras a este, que trocasse - Oiro a virtude, e marmores a flores? - ¿Que ja sôlto de si e a si tornado, - Viesse pôr, para os livrar de queda - E adora-los em ocio, os seus penates - Á beira de uma límpida corrente, - Que de um bosque atravéz susurra e foge. - Víra os Genios da terra o anno inteiro - A lhe aprestar a mesa; aqui brotando a - No pomar curvo, ali na horta regada, - Lá no chão da seara, alem na vinha - Que o recôsto do outeiro alastra e enreda, - Mais longe nos cabeços verdejantes - Onde o gado em socego os leites cria. - Não lhe ameaçára o raio o této humilde: - As manhãs, d’entre as ramas espreitando - Pela aberta janella, o acordarião, - Por lhe alargar a vida: os passarinhos - Lhe dirão nas frescas alvoradas - “Bem vindo, alegre amigo, ás nossas casas! - Nós cantamos teu Deos, somos felizes, - Tu louva o nosso, e goza d’este mundo.” - Se algum cuidado a vespera deixasse, - Levar-lho-hia na vêa murmurante - A correntinha onde lavasse o rosto. - Vê zagalas fieis, vê perigrinas - De formosura e joias não compradas, - (Que uma da-lha a saude, outras o prado); - Com ellas espairece a fantasia, - E se inda o coração quer mais ventura, - Ama; ao ceo que ja tinha, um Deos lhe accresce! - Quanto via e pasmava em mortos quadros, - Onde astuto pincel prodigios obra, - Sombras vãs, cujo preço he rios d’oiro, - Tudo agora real, vivo, mais bello, - De mais subida mão pintura immensa, - De graça lhe cercára o lar e a vida. - Mas ah! porque me sólto em vãs ideas! - Embora o preço teu não saiba o mundo, - Primavera, eu te adoro e tu me afagas: - Caro co’a lira vezes mil teu nome, - E tu me infloras magamente a lira: - Em longo mútuo abraço almas trocâmos; - A minha he mansidão, frescor, perfume, - Toda a tua, poesia, amor, extremos. - Lanças-me em teu regaço, e quando a noite - A lira e cornucopia aos dois nos furta, - Das-me dormir co’a fronte no teu seio, - D’onde me vem coando uns sonhos leves, - Todos teus, todos candidos, na fórma - De flores, de aves, de amorinhos, de auras. - Assim, me queres teu até no sono! - E porque sombras más o não perturbem, - Mo ficas a velar á luz dos astros, - O semblante pacífico ao sereno, - Os olhos no ceo da alva, e o peito amores. - - Mas tu ... porque não vens?—Não não me engano, - Inda agora os trovões rijo batalhão. - Talvez rola n’esta hora a tempestade - Pelo oceano de Atlante ondas sobre ondas; - Rugindo estoira o mar em crespas serras: - Possança de baixeis, esfôrço, industria - Não vale a contrastar-lhe a valentia; - De toda a parte a morte esvoaça, ruge - Na horrenda cerração com sons do averno; - O náufrago abraçado a sôlto lenho, - De toda a parte a vê, a ouve, a sorve; - Vai a abismos e a ceos repulso d’ambos, - E perde, antes da vida, a luz e a mente. - Sumio-se o ultimo audaz de sôbre as aguas! - De nuvens atro veo submerge a lua; - Não luz na escuridade alguma estrella; - He o luto do Homem forte! Ó Mar és livre! - Triunfaste, adormece.—Ah que de vezes - Taes scenas, tal horror, maior, mais negro, - Nos tem de si brotado a umbrosa quadra! - Ó tu contrária sua, o tu dos homens - Sempre invocada amiga, ethéreo Nume, - A quem ceo, terra e mar dão vassallagem, - Onde estás, que não vens com um leve assopro - Trazer serenidade aos elementos? - Se inda és a mesma, e súpplicas te movem, - Sobe ao carro da aurora, os ares fende, - E acode ao Luso clima, onde te invocão. - - ¿Lembra-te a gruta, a gruta onde Amarilis - De seu ja quasi esposo Umbrano, o astuto, - Acceitou, de sincera, a grave aposta? - Qual era, que o pastor lhe não podia - Dar n’uma tarde tantos beijos, tantos, - Como as folhas do plátano vizinho, - Sendo o premio da aposta inda outro beijo? - ¿Aquella gruta, onde ambos consumirão - Um dia teu, a adivinhar a ponto - Todas as graças do primeiro filho; - E só no sexo os votos discordavão, - Porque Umbrano pintava outra Amarilis, - E Amarilis raivosa um novo Umbrano? - Pois n’essa, n’essa gruta os meus amigos - Para hospedar-te um grão festejo tração. - Pôr-se-ha do cedro á sombra altar gramíneo - Com seus flóreos listões, onde c’roados - Te libem vinho annoso e leite puro, - Concertando himnos teus com lira e flautas. - O lavrador da proxima campina, - A estirada cantiga aos bois tardios - Parando calará, para escutar-nos. - - Então, então começa o tempo d’oiro, - Folgão no campo os naturaes prazeres, - E a rustica alegria apraz aos deoses. - Aqui, apoz as candidas ovelhas, - Vai trigueira, descalça pastorinha - Aos echos do arredor cantando amores; - Ali galhudo Sátiro se esconde - Para colher alguma Ninfa errante; - Alem com ledos sons retine o bosque, - O riso ferve, as flautas se misturão; - Mais longe, aos pés de mal fingida ingrata, - Se exhalão rogos apiedando as selvas. - Um favonio subtil encrespa as ágoas, - E enfada a Ninfa, que estudava uns geitos - De se enfadar com quem de amor lhe falle. - Priapo brincador gira saltando - Nos jardins, nos vergeis, e nos pomares, - Ramos bate, alvorota o plúmeo bando, - Que foge, mas de Amor não foge ás settas. - Amor e seus irmãos, com o facho em punho, - Lanção tacito fogo a quanto existe. - Junto da verde faia susurrando - Se ouve outra faia um não sei que, tão doce, - Que aos amantes apraz o seu murmúrio. - Do rebanho o marido entre o rebanho - Bala amoroso, e todas lhe respondem: - Pela novilha se enfurece o toiro, - Accomette o rival, goza o triunfo. - Côr de neve, innocentes cordeirinhos - Ja balão na verdura, ja recresce - Maravilhando a serra, a grei profusa - Das erradias cabras saltadoras: - A nova creação corre exultando; - Aquelle foge, os outros o perseguem, - Voltão, saltão, empinão-se, discorrem - Por toda a parte n’um momento o prado; - Cresce o leite, e o pastor a quem ja faltão - Cinchos para o queijar, tarros que o levem, - Lédo se enraiva com riquezas tantas. - Todo o arredor da aldea he movimento, - Contente lida, esp’rança, amenidade. - - Porque se hão de calar da infancia os brincos? - A infancia he primavera, he mundozinho - Florente, de que nasce um grande mundo. - Menino á espreita e mudo entre as silveiras, - Apoz o som do grillo o vai buscando; - Outro os ramos envisca, as redes arma; - Prêzo de longo fio ao pé mimoso - Passarinho pelo ar chirla e revoa, - E crendo-se de novo o rei do espaço, - De inconstante creança um dedo o rege. - Um mais travêsso, ás árvores trepado, - Nos ramos se embalança, ou furta os ninhos; - Outro mais atrevido, emvão forceja - Por montar no carneiro, que se escapa, - Fazendo ao longe retinir os bosques - Co’ o crebro som da aguda campainha. - Tenra menina um malmequer desfolha, - E pelo amor da mãi á flor pergunta; - Em quanto seus irmãos vão na corrente - Pôr de cortiça um concavo barquinho. - Na luta, na carreira apostas fervem. - Oh! da infancia do mundo amaveis scenas! - Se inda as virtudes sôbre a terra existem, - Se inda existe o prazer, o socio d’ellas, - He no campo, no campo; e a quadra tua - Nos mostra, ó Primavera, este prodigio. - - Mas da fogueira as chamas enfraquecem! - Ja os gallos das proximas cabanas - Vão começando a annunciar-me o dia: - Que som grato! que enlêvo estar sentindo - Por um sereno albor, estes vizinhos - Nuncios da aurora, a cuja voz respondem - Outros aqui e alem, com voz diversa! - Sim, o dia começa: a luz nascente - Pelas fendas do této está brilhando. - Eis-me só junto ao lar! quem sabe ha quanto - Se irião meus bons hospedes ao colmo: - Agora em doce paz lá estão dormindo. - Que breve noite! e he finda; ah toda he finda! - Da fresta, onde cheguei, contemplo os ares, - E claro vejo o ceo, de nuvens limpo: - Mal brilha no horizonte a estrella d’alva. - E os olhos meus (oh dor!) só descobrirem - Como por um véo denso a natureza! - Os montes que longissimo se alcanção - De vinhas e arvoredo entresachados, - O rio ao longe a fulgurar co’as ondas, - Os remotos cazaes da gente humilde - Pelas verdes campinas alvejando, - Não vê-los eu! não ver!... Mas que murmúrio - Sólta a folhagem do loureiro antigo, - Que defronte de mim remonta aos ares? - O Favonio acordou, que hontem de tarde, - Cançado de girar, adormecêra - Junto á cascata no pomar sombrio. - Vai subito partir: em curtas horas - Será comtigo, e te dirá meus versos. - - Meus Amores, adeos! adeos meu Nume! - Da Epistola a resposta a vinda seja. - - - - -O DIA DA PRIMAVERA - -POEMETTO EM DOIS CANTOS - - -_Em dois Cantos se divide agora este Poema, para commodo de quem lê. -Entendi em apertar melhor que da primeira vez, este feixe de flores, se o -he: algumas deitei fóra sem fazerem mingoa; as demais forão refrescadas, -e se me não engano mais algum viço ganharão. Puz-lhe com tão boa vontade -as mãos como na Epistola: pelo que, sem deixar de ser o mesmo, he outro; -he o mesmo no essencial e intrinseco, todo outro no lustre e na toada._ - - - - -DEDICATORIA A MINHA MÃI. - - -_Á maneira das arvores, que acordando do sono do inverno ao bafo -omnipotente da primavera, como que ressuscitão com o riso e vida nos -primeiros olhos e flores, o meu engenho começa a matizar-se das suas, -com a tornada d’estes dias puros e deleitosos aos amigos do campo. As -primicias, que d’ellas pude colher, forão para a grinalda que apresentei -na Festa da Primavera celebrada com os meus amigos. Depois de a haver -tirado do altar da Deosa que governa a mocidade do anno, a quem senão a -ti, ó minha Mãi, devêra offerecer esta grinalda? sim: outrem qualquer -a engeitára por de nenhum preço; de ti sei eu certo que lhe acharás -uma graça especial, mais finas côres, e fragrancias mais suaves: emfim -me atrevo esperar que póstos amorosamente os olhos na minha Obra, -entenderás, sem o dizer, como eu sinto todo o amoroso da gratidão, ao -cuidar em quem me deo alem do ser, a educação, e todos os mais carinhosos -desvelos: alguns suspiros e lagrimas, para cúmulo da minha felicidade, -serão talvez por ti, ó minha Mãi, espalhados na minha ausencia._ - - - - -HISTORIA DA FESTA DA _PRIMAVERA_. - - -Remontando a vêa do Mondego até obra de um quarto de legua para cima da -Cidade, encontra-se na margem do poente um gracioso retiro, selvatico -sem aspereza, e como que enfeitado sem arte: dissereis que em hora -de contentamento o fizera a Natureza, para algum dia hospedar no -regalo d’aquellas suas sombras um ajuntamento de poetas seus. De _Lapa -dos Esteios_ pozerão nome ao sítio em dias remotos, segundo soa, os -vinhateiros e pomareiros que de umas e outras varzeas do rio costumavão -acudir ali por paos, com que estear suas parreiras e arvores derreadas -com o pezo da fruta. Ainda permanece o nome, porem ja o arvoredo se não -desbarata pelos vizinhos, e a Lapa, de tão solitaria e amena que he, -parece a appetecida estancia do Genio da liberdade. - -Entra-se por um breve cáes ornado de cinco alterosas arvores, das quaes -uma torcendo-se toda para o rio, se debruça para saudar e cobrir com -a sua sombra os bateis que chegão. No tôpo do cáes, e fronteira a quem -desembarca, se alevanta um genero de muralha nativa de rochedo, rôto em -muitos seios. Esta penedia, até aos nove ou dez palmos de altura, sóbe -nua e só ornada de sua mesma aspereza; d’ahi para cima, como envergonhada -de sua dura condição, se esconde toda com um frontal de heras, que ora -resaem como cabeços pendurados, ora se recolhem para fantasiarem la -por dentro suas grutazinhas e labirinthos, d’onde ás vezes se estão -vendo saír por um cabo e por outro os passaros, que depois de beber e -se banharem na vêa da agoa, se empoleirão pelos lamegueiros vizinhos, -namorando e cantando a suavidade e fresquidão de suas habitações. Pelo -lado direito d’esta aprazivel scena, sóbe uma cerrada espessura de bosque -pequeno, onde os olhos se enleão na confusão de troncos e folhagem: -pelo esquerdo abre-se para cima uma escada rustica mas commoda, de doze -degraos. Tecem-lhe estendido toldo dois lamegueiros velhos, e outras -arvores mais pequenas se abração por ali, travadas com mil voltas de -hera. Dá esta subida em uma planura sôbre o comprido com seus assentos -de ambas as bandas, isto he da terra e do rio, o qual por entre um basto -arvoredo, que d’ahi por uma especie de promontorio, vai descendo até -lhe metter os pés na corrente, se está vendo a furto transparecer: das -primeiras cabeças d’este arvoredo cáe para os assentos uma boa a vedada -sombra. O puro e perfumado dos ares, a vária presença da terra e aguas, -o susurrar dos ramos abanados da viração, as melodiosas querellas das -aves, em summa o natureza enfeitada só de suas mãos, e paz e descanço -de deserto, são a fonte perenne dos encantamentos d’este sítio. Uma -ladeira suave opposta á escada, e ainda mais sombreada, despede em outro -cáes com seus degraos nativos de rocha até á agua. He este menos bem -assombrado que o primeiro: não tem relva, nem arvore, nem verdura afóra -ada muralha no tôpo, toda velada de musgos, matizados com seus tufos de -fetos silvestres, congossas e um sem numero de outras plantas e ervas, -sobresaindo a espaços alguns ramos solitarios de figueira brava: mas o -que de interior graça lhe fallece, lho compensa a larga vista que para -fóra desfruta. - -Era chegado o primeiro dia de primavera. Tratado e assentado estava de -ha muito entre mim e meus amigos, como iriamos passa-lo juntos, em uma -romaria e festa poetica á honra d’aquella mais formosa parte do anno. Não -faltavão á volta da Cidade muitos sitios accommodados ao intento, antes -não creio que possa haver no mundo outra verdadeira Arcadia, que em tão -pequeno espaço resuma tantos: mas d’entre todos coube á Lapa dos Esteios -a palma da competencia. De doze se compunha o rancho, todos amigos, -poetas e academicos. - -Por volta de meio dia, pouco mais, nos ajuntámos com muita alegria e -abraços, e todos com as nossos ramalhetes de primavera nas mãos, nos -pozemos alvoraçadamente em caminho para o rio, onde ja o barco nos -aguardava. O ar estava puro: contra o sol que ardia rijo, nos acudia com -refrigerio um pouco vento, que ao mesmo tempo nos fazia mui boa feição -para contrastar a corrente. Saltámos e partimos.—Em quanto alguns por -um e outro bordo ajudavão o favor do ar com o trabalho de suas varas, -repellindo o álveo, e fazendo-nos resvalar mais prestes á medida de -nossos desejos, os demais amotinavão ao longe ambas as ribeiras com suas -cantigas de amores, entoadas em chusma. A cada momento porem se quebrava -por si o canto, para se contemplar e encarecer o muito que a natureza -e o artificio podérão e soubérão crear para enlevo de olhos, por ambas -aquellas dilatadas margens e campos: pradaria verde e florída, outeiros -risonhos, cazaes branqueados, grangearia e recreação de quintas, pomares, -hortas, jardins, e mil arbustos curvos por entre choupos e salgueiros até -beijarem a agua, esse era o painel em que meus amigos se hião enlevando, -e que a mim, que pelo longe que era posto, o não podia nem por nevoas -enxergar, me desentranhou algum suspiro, dando-me a sentir no meio da -geral alegria alguns momentos magoados, recostado na borda da embarcaçaõ. - -Mil couzas pequenas, e por ventura vãs (mas quaes ha que sejão taes para -gente moça em dia de júbilo?) matizarão toda esta viagem: taes como a -grita que de subito alevantámos ao passar por baixo do arco grande da -ponte, aonde as vozes, refletindo do massiço da cantaria, nos ressortião -para os ouvidos com uma estranha soada, como que por aquella porta e -esteiro estivessemos entrando um mar nunca d’antes descoberto; despedidas -á Cidade que de nós se alongava, branca e assentada em seu monte, até que -desapparecia, e ás margens que para nós arremettião correndo com seus -estendaes, lavradores e rebanhos, para logo nos passarem alem, fugir-nos -e perderem-se; a vista de um bando immenso de pombas, que levantando-se -espavoridas com a nossa passagem, de um ilheo de arêa onde se estavão -a beber e banhar-se, nos atravessarão pela proa e forão derramar-se -todas queixosas pela ribanceira vizinha; o ceo a espelhar-se inteiro -nas aguas ufanas de retratarem multiplicado o sol da primavera com toda -sua magnificencia: semelhantes nadas produzião em somma um genero de -felicidade a estes moços Anacreontes viajando, á qual, para de todo o -ser, só faltava poder durar. - -De instante para instante importunavamos os barqueiros, perguntando -insoffridos quanto nos restava do caminho. Cuidava-se ver a Lapa dos -Esteios em quantas soledades apraziveis nos apparecião ao longe. Emfim -a apontárão com o dedo; levantão-se todos, todos com clamor unísono a -saudão. Saltámos logo no primeiro cáes, deixando o nosso barco amarrado -a uma arvorezinha, que se algum curioso vier visitar aquelle sitio, -he a terceira da parte esquerda. Uns de outros derramados, nos fomos -prestesmente por onde o acaso ou a fantasia nos levavão, correndo e -devassando toda aquella solidão, que por algumas horas vinhamos povoar: -e tornando-nos a ajuntar no alto, onde tão commodos assentos se nos -deparavão. “Esta Lapa disse um, para estancia e habitação das Musas -parece feita; por aqui as heras pendem de toda a parte!” Sobre o que, se -procedeo logo á lição dos poemas que todos levavamos. Aqui usarão meus -amigos para comigo de huma cortezia, de que por mais que fiz me não foi -possivel defender-me, ordenando-me com seus rogos que os meus versos, -para os quaes o ultimo lugar em tal companhia podéra ainda ser de muita -honra, rompessem antes de outros aquelle acto. Estes, a que eu pozera o -titulo que ainda tem _O Dia da Primavera_, ja primeiro que o sitio fosse -escolhido se achavão feitos, rasão porque não ha que procurar n’elles a -pintura d’elle. Concebêra eu um dia de Primavera levado pelos campos em -contentamento com aquelles companheiros; tomei de minha livre imaginação -o que me pareceo bastaria para o encher; e poetei-o sem me obrigar a -nenhuma outra verdade. - -_Elmiro_ (que todos havião arcadicamente tomado para si nomes de -pastores) assim como a leitura foi rematada, veio para mim com um listão -de heras nas mãos, e mo lançou, a todo o poder que eu pude para me -escusar, do hombro direito ao lado esquerdo.—Seguio-se _Anfrizo_, o qual -em pé junto de mim, e com uma coroa em punho, recitou uma formosa Ode, -toda floreada dos louvores que a amisade lhe figurava poderem-me bem -assentar; e chegado que foi á ultima estrofe, me coroou abraçando-me. -Tambem a esta honra me foi forçado ceder, com quanto claramente em mim -sentisse o muito que vinha mal empregada: a amisade ordenava, o dia era -seu, rendi-me. Era a grinalda de artificiosissimo lavor, mui fresca, e -tecido de louros, heras e cópia de flores naturaes; guardei-a com ufania -e como joia; quizera conserva-la para sempre, mas representava gloria, e -minha, murchou, desfez se, largos annos ha que he pó, e pó disperso. - -Dado que ja então fosse tal o meu triunfo, qual nem em sonhos de ambição -o podéra antever, _Josino_, a cuja feiticeira Musa ja eu era, muito -havia, devedor, inda o subio de ponto, lendo antes de um poema, pequeno -em extensão mas grande e grandissimo em merecimento, um elogio a mim em -tão delicados versos, que não posso menos de perdoar-lhe a lisonja. - -_Aulizo_[5] leo um longo poema intitulado _A Primavera_, que todo -respirava amor aos campos e á virtude, ataviado de mui mimosas galas -poeticas, e de mui particular doçura e sabor para os ouvidos: nem se -cuide que sangue ou amisade ou vãgloria me fazem fôrça para o dizer, -que antes o dissimulára eu, se o ser irmão e amigo fossem partes para, -quando a todos os mais vou distribuindo seu preço, lho sonegar a elle; e -ainda assim talvez o não ousára, se tão boas testemunhas não valessem a -confirma-lo. - -Foi esta leitura interrompida de uns sons de flauta, que por cima -das cabeças, e de mui perto nos vinhão: era o meu caro amigo, -Horacio portuguez, José Fernandes de Oliveira Leitão de Gouvea, que -alvoraçando-nos e alvoraçado, nos apparecia ao cimo da curta escada que -da Lapa sobe para a _Quinta das Canas_, que lhe fica sobranceira. Forão -tudo clamores de alegria, recebendo entre nós, poetas todos verdes, o -nosso decano e patriarcha; cercámo-lo com abraços, das mãos lhe furtarão -a flauta, foi levado de repente a todos os recantos do nosso Parnaso, -contando-lhe todos á uma o que até ali se passára, que vezes se fallára -n’elle, e se desconfiára de sua promettida vinda. Este homem amavel, -jovial, incapaz de estudadas gravidades, dado e corrente com todos, bom -sem merecimento de esfôrço, filosofo sem o cuidar, coração que ainda não -saío nem ja agora sairá da infancia, homem só comsigo parecido, que a -ninguem imitou nunca, nem de outrem será nunca imitado, e cuja vida, se -alguem soubesse escrevê-la, sairia tão original e unica como elle mesmo, -este digo, nascido para ser alma de qualquer ajuntamento moço e alegre, -tomou para logo seu quinhão na Festa. Deu-se fim ao poema interrompido -com a chegada do novo socio, que muitas outras vezes o tornou a -interromper com applaudir e abraçar o poeta. _Josino_, que assim como o -ouvia fôra entrançando uma coroa de hora da arvore mais chegada, mal que -o ultimo verso expirou, se foi com ella, por entre as palmas de todos, -premiar a fronte do cantor. - -_Elmiro_, que de apoz se seguio, nos cativou as attenções com um poema -de muita invenção e belleza, aonde outra vez a amizade me brindou com -perfumes seus, para os não dizer da lizonja. Igualmente o coroámos; e -outro tanto se foi fazendo aos demais, que recitarão poemas mais breves -ou traduções. - -_Salicio_[6] repetio uma mimosissima tradução livre de uma parte da -_Primavera_ de Thompson: _Albano_, uma tradução em lindas quadras do -Idillio Primavera de Gessner: _Francilio_, uma tradução em proza de Utz, -que leo de pé com o copo em punho, e rematou com um brinde: _Franzino_ -uma versão da _Primavera_ de Cramer: cerrando-se finalmente este rico -banquete poetico com mais de quatrocentos versos de um poema de meu irmão -José Feliciano de Castilho, que pelo muito menino que ainda áquelle tempo -era, não foi dos menos vitoriados. - -Todos estavamos coroados, e o rancho se espalhou. “Ja la vai o sol -abaixo; os seus raios apenas tocão ja os cumes dos outeiros d’alem: -aproveitar o tempo!” bradarão alguns amigos da borda de uma eira que -dominava a Lapa: e todos sentimos que a tarde nos hia insensivelmente -escapando. Então ao som da flauta do nosso Horacio, começarão todos -de dançar e saltar, e as aves incitadas da musica, levantarão mais -alto os gorgeios da tarde. As folhas das heras, que por ali guarnecião -todas as arvores, e algumas flores voavão ás mãos chêas como em chuva, -de uns contra os outros. De quando em quando se alevantava alguma voz -inculcando, porque o fossem todos ver, algum particular gracioso e ainda -não observado d’aquelle sítio. Chamando _Aulizo_ pelos outros, lhes -fez notar do cáes mais arido, o como o rio d’ali visto, á conta de sua -curvidade se afigurava lago cercado de collinas desiguaes, coroadas e -semeadas de larangeiras, oliveiras e pinheiros, e cazaes alvejando, -enxergando-se mais a longe, e por entre estes, outros outeiros, quasi a -se desvanecer na distancia e sombra da tarde. Debuxava eu no animo toda -aquella scena saudosa; saía-me o quadro maravilhoso, mas era por ventura -verdadeiro? não o sei. - -Uma merenda saborosa nos appareceo de repente e como por encanto: -_Elmiro_ fôra o magico providente. Toalhas brancas de neve estendidas no -cáes do desembarque, forão povoadas de primorosos manjares, garrafas ja -de dias, e copos coroados de verdura: uns rolos de arvores estendidos -em quadro nos valerão de assentos: dois meninos gémeos, vestidinhos da -branco, erão os Ganimedes do nosso banquete folgazão. Parte assentados, -parte reclinados em diversas posturas, outros por entre estes girando com -os copos e pratos na mão, boas descaídas, descuidos a tempo, apontadas -graciosidades e risos do íntimo, brindes com o copo alto na direita, -enviados a mui longes e mui diversas terras (que não havia um só que da -sua não padecesse ausencia e se não finasse com saudades), outras saudes -ora mais ora menos sumidas, a objetos nomeados umas vezes e outras não, -mas mui bons de adivinhar pelos suspiros e geito do saudador, a voltas -e proposito d’isso narrativas e contos para folgar, musicas alegres de -flauta mil vezes começadas e outras tantas interrompidas, e outros muitos -nadas com que a penna se não atreve, convinhão em aprazivel mistura para -encantar a ultima hora da Festa da Primavera. - -Posto era o sol, mas o ceo ainda não carregado de noite: havia-se de -partir, faltava o animo para o fazer; instavão os barqueiros, crescião -n’elles a rasão e o importunar, acabárão comnosco que nos rendessemos. -Despedidos os amorosamente da Lapa ja áquella hora entranhada de -escuridão temerosa; com os pés ja postos na beira da agua, nenhum queria -ser primeiro que trocasse terra de tanta festa, por um barco que nos -hía tornar para onde vida de proza e cuidados nos aguardava: senão -quando, levantando o bom Gouvea a voz, com ella suave e chêa que se hía -por aquellas margens alem, começa de cantar _A minha Lilia morreo_; -improviso seu, chêo de uma branda tristeza, que aos cançados e não fartos -de gozar costuma ser segundo gozo. Assim hia elle até n’isto imitando -o seu Horacio, que nos poeticos festins que dava ao Genio da alegria, -nunca se esquecia com seu quinhão de pensamento para a morte. Profundo -era o silencio que de toda a parte cercava o nosso cantor; só se ouvia o -murmurio baixinho da corrente. - -Não havia quem nos apartasse: por derradeira vez nos tornámos ainda á -Lapa, travou-se uma dança por despedida, e fez-se uma saude geral ao -lugar e ás trez Graças que ali costumão a vir muitas vezes[7], até que -emfim nos embarcámos, com as nossas coroas na cabeça. Foi aos barqueiros -defendido usar de vara, antes se lhes encommendou que nos deixassem -embora ir, tão mansa e perguiçosamente como á vêa mal desperta do rio -parecesse, e ainda n’aquelle pouco descer das aguas houvéramos nós tido -mão, se podessemos. - -Pareceo bem, para atalhar a confusão de tantas vozes como as que ali -fervião juntas, nomear á maneira do Rei do vinho nos festins dos antigos, -um que nos governasse. Este foi Gouvea por acclamação unanime. Lembrou -um que d’ahi ao deante nos ficassemos uns aos outros dando o tratamento -de confiança, que a boa amizade consente e requer: approvou-se. “E -quemquer que a esta lei desobedeça, haja-se por expulso da _Sociedade -dos Amigos da Primavera_.” Approvou-se com alvoroço; levantarão-se todos -abraçando-se, apertando-se entre si as mãos, e dando-se entre risos o -tratamento novo tão amiudado para lhe quebrar a estranheza, que ninguem -se entendia.—“Todos os Socios (gritou outro, e de novo se fez silencio) -hão de conservar até que o tempo as destrua, estas suas coroas, se não -monumentos de gloria, penhores certo que mais vale, de horas felizes:” -approvou-se por lei o que ja todos levavão no coração bem votado. -Suscitou-se depois que recitasse cada um segundo a ordem dos assentos, -alguma sua poesia breve, e que mais lhe parecesse accommodada á occasião. -Não faltárão aqui seus debates, lembrando uns como apoz tanto recitar, -tinha a cantoria muito melhor cabida do que os versos nus, outros -affirmando que a flauta melhor que nenhuma outra cousa diria com a hora, -sítio, e calada grande do rio: até que um veio conciliar a diversidade -dos pareceres, dizendo que umas couzas não tolhião as outras, antes -podião ir todas a revezes tendo seu lugar: o que assim se cumprio. - -A serenidade da noite junta com as saudades do dia, nos fez achar -inefavel doçura nos sons da flauta, que parecião modulados pela -melancolia, e se esvaíão ao longe nos ares. Se ás vezes o acaso nos -levava mais para uma das margens, uns frouxos echos chêos de doçura a -tristeza se comprazião de repetir a musica e as palmas com que a nós -applaudiamos. Emquanto um só cantava em meia voz, e nós o ouviamos -calados, a face na mão, e meio reclinados contra o rio, suave nos era -escutar como as quasi insensiveis ondas, com som muito mais baixo nos -vinhão beijar os lados do batel, d’onde, se fugião partindo, com um -murmurinho saudoso. - -Descemos em terra, e abraçando-nos repassados de igual amizade, e das -mesmas lembranças, votámos logo ali nova Festa em honra do primeiro dia -de Maio, a qual se veio a fazer, como ao deante o declarará o volume: e -todo esse meio tempo de uma até á outra, foi tecido de doces memorias, -fantasias poeticas, tenções e esperanças de prazer. - -Assim se podia e sabia ainda então passar dias mansos, innocentes e -bemaventurados! - - _Lisboa: 2 de Janeiro de 1837._ - - - - -O DIA DA PRIMAVERA. - -CANTO I. - -_A Manhã_ - - - Ei-la que chega a amante Primavera! - Logo ao romper do dia susurrando - Vós, Favonios azues, a annunciaveis. - Chega ... chegou! as aves a festejão - Desatinadas, doidas; ja com verdes - Braços lhe acena o bosque; estão-se os rios - A retrata-la; as fontes a murmurão; - Traz gala o monte; os valles se alcatifão; - Ri-lhe o ceo todo, a Natureza he d’ella! - - Mais cedo ao leito do marido annoso - Hoje a Aurora fugio; tomou regaço - De orientaes aljofares mais rico, - Mais cópia em seio e mãos de ethéreas flores. - Aos umbraes inda escuros do horisonte - Quem a aguardava, quem? os meus Amores - Que encontro! que abraçar-se!... O Zefirinho - Que ja por entre nós passou trez vezes, - Trez vezes ao passar mo ha segredado: - Vio tudo, tudo ouvio, que era elle proprio - Um dos que pelo ar vinhão soprando - O matizado pavilhão de nuvens, - Em que ás terras baixava o Par celeste. - Rosto a rosto inclinado; as mãos unidas; - Mago riso um só riso em bocas duas; - Absortos em luz mutua os mutuos olhos; - Duas Gémeas do ceo, duas Virtudes - N’uma Virtude só, se afiguravão. - —“Ó minha Irmã (dizia a Primavera) - “Quem nos ha de estremar? tu es do dia - “A Primavera, eu sou do anno Aurora”— - —“Filha como eu do Sol (acode rindo - “A Aurora), ó doce Irmã, vérte-te o Fado, - “Não q eu to inveje, os bens de urna mais ampla: - “Deu-te folgar sem mim, deu-te a alegria - “Dos dias que eu só abro, e os tão gabados - “Prazeres que eu não vi, não verei nunca, - “Prazeres do sol pôsto, e de alvas noites. - “A mim lida perenne, a mim rigores - “De oppostas estações, reinar de instantes, - “Contínua fuga, e os odios dos ditosos, - “E as maldições de Amor comtigo affavel. - “Eis porque a meu pezar, já por costume, - “De olhos que espargem luz se orvalhão choros. - “Perdôa-mos teu jubilo mos sécca. - “Desce, eu parto, urge o Tempo, e ja me acena - “Co’a mão rugosa para novos climas. - “Fica-te em nossa amada Lusitania, - “Inda pouco ha tão triste. Observa os cumes - “Contra o nosso nascente; ahi vês á espera - “A turba toda dos campestres Deozes, - “Flora, Cibele, Dríades, Napéas, - “Hamadríades, Náiades, Silvano, - “A caçadora Cinthia, Amores, Graças, - “Os ledos Risos, a amorosa Venus; - “E Pan ha muito tempo em nova flauta, - “No verde cume do apartado monte, - “Lá onde canas trémulas susurrão, - “Para a tua chegada estuda um hino, - “A cujo estrondo os Sátiros voltêem.”— - Diz: olha para traz, vê o Sol, desmaia, - Beija a Amiga, e fugindo a entrega ao dia. - - Desfez-se a névoa eis Sol! Joelho em terra, - Amigos meus; he o Sol da Primavera! - “Ó Sol das flores, Salve! Ó Sol de amantes, - “Salve! E trez vezes Salve! ó Sol dos vates!” - Vêde-o doirando do arvoredo os cumes; - Vêde nas aguas límpidas fervendo - De reflexos de luz áureo cardume. - Corramos n’um momento os campos todos! - Como esta luz do Ceo, que a toda a parte - Desce, rompe, insinua-se, alvoroça; - Como esta luz do Ceo, vates mancebos, - Devassemos a terra: uma só gruta - Não fique, um arvoredo, ou valle, ou fonte, - Por onde não mergulhe a vista, o estro. - - Esta, que ora seguimos, tortuosa - Concava senda, ha pouco estreito rio - Co’as grossas chuvas da vizinha serra, - Parece de um jardim curiosa rua! - De um lado e d’outro os còmaros pendentes - Ja não são montes de crueis espinhos, - Montes são de verdura, e roxas flores, - Onde n’outra estação viráõ c’os cestos - Colher nevadas mãos negras amoras: - Recende o legacão, e a madresilva. - De madresilva ornemo-nos as frontes ... - Mas não: fique-se em paz a flor nevada; - Quer-se antes a violeta, eu sei outeiro - Onde ella mora, he flor da Primavera; - D’esta eu fiz elleição não quero d’outra, - Vós, se outra preferís, apanhai d’essa. - - Por aqui vai a encosta desfarçada: - Como que ja de cór meus pés a sabem. - Ja vós de cá vereis, la quasi ao cimo, - Um ramalhete espesso de aveleiras, - E de dentro luzindo uma apparencia - De alvo lirio entre verde, um cazalinho; - Pois essa he a casa de Egle. E mais avante, - No alto; não voltêão solitarias - As pandas velas de veloz moinho? - Tambem ja la pouzei n’uma afrontada - Tarde do estio, e lhe dormi á sombra. - Tudo isto me conhece! Esta ladeira - De rusticos degráos, que ahi desce á dextra, - De perenne verdor acobertada, - Cáe na fonte da aldea. (Ahi vão por agua - Com seus vermelhos cantaros as moças. - Outras cá vem, com passo mais tardio, - Sobindo ja, com os potes á cabeça - Lustrosos, vacillando e sempre firmes) - Não presumis quanto he social a boa - Da fontinha aldeã! não ha formosa - Que ali se não detenha e não se enfeite; - Não ha pastor cortez, que ao fim da tarde, - Ja recolhido o gado, ali não desça - Para ajudar a encher; inda não houve - Na vizinhança amor, cantiga nova, - Ou fallado successo, que cem vezes - Do fundo de seu antro os não ouvisse - A Náiade anciã; nem bôda alguma, - Sem se enramar o portico musgoso. - - Á esquerda, pela varzea anda rebanho; - Que ouvi balar, e ainda ouço a cantilena - De pegureira voz. Dizei-me á pressa, - Que scena off’rece a varzea? a relva molle - De alvas boninas trémulas brincada, - Onde o calor nascente o orvalho enxuga, - O sombrear das arvores dispersas, - Bellos não são de ver? he vasto o bando - Das ovelhas pacíficas? he linda - A guardadora sua? está sozinha - Em pé volvendo o fuso e olhando o pasto, - Ou com algum pastor sentada em ocio? - Traz disperso o cabello ou prezo em rosas? - Que donoso cantar! que peregrina - Poesia que esperdiça aquella moça - Com broncas solidões e ovelhas rudes! - Couza que assim namore a fantasia - Não quero que haja, não: virgem formosa - Sozinha sob o ceo; velando em brutos - A que era de velar como um thesouro; - A graça envolta em lãs, contente e rica; - E annos verdes, sem pena aqui florindo, - Longe de olhos e amor, jogos e esp’ranças! - - Detende-vos: o aroma he de violetas. - Ei-las! irei tecendo a c’roa minha - Com estas, que escondidas, pudibundas, - Como a pastora, em paz desabrocharão, - O ar, como a pastora, em roda encantão. - - Ja percebo o rugir das aveleiras; - Não vejo inda o cazal estancia d’Egle, - Mas perto, oh perto vem: todo esse rôlo - De espesso fumo que serpêa aos ares, - He da interna fogueira que amanhece, - Cuidadosa do almoço, aos moradores. - - Entremos no pomar. Ja Primavera - Copiosa o bafejou, de agradecida - Ás pomareiras mãos que lho aprestárão. - Inda folhas não ha, mas tudo he flores! - Vede como ante o sol tremúla e brilha - O pecegueiro co’o vermelho ornato: - Vede alem da pereira a branca véste, - Da cerejeira, do abrunheiro a cópa: - Vede como uma vide em cada tronco - Tenaz se enlêa em tortuoso abraço; - Ja seus pequenos pampanos rebentão, - Verdejantes festões ja vão formando: - Do cheiroso morango a planta humilde - Aqui e ali no verde chão rasteja. - Arvores, plantas d’Egle, a nomeada - Em todo este arredor pelas delicias - Dos ricos frutos seus, não se numérão, - Nem sei louvor que lhes não ceda, e muito. - O porque sejão taes, fique em segredo - Quando vo-lo eu disser. — Aqui Vertumno - Veio uma tarde do passado outono, - Mudado em rouxinol, cantar nos ramos, - D’onde, mais bella que a gentil Pomona, - Egle andava colhendo a rica fruta. - Julgou ver sua Deoza o terno amante, - E tão doce cantou por entre os frutos, - Tão queixoso gemeo, gemeo tão meigo - Cercou-a tanto com chorosos pios, - Tantas vezes pouzou na mão de neve, - Na trança negra, no virgineo seio, - Que Egle o metteo no candido regaço, - O levou toda ufana ao lar paterno, - E em pintada gaiola inda hoje o guarda, - Que o Deos não quer fugir do cativeiro. - Quando a sente acordar pela alta noite, - Acalenta-a com languidos requebros: - Ao romper da manhã, quando no bosque - Ouve perto cantando as outras aves, - Logo a acorda com vividos gorgeios: - Mas quando a vê surgir, qual Venus da agua, - Sem mais vestido que a esparsida coma ... - Ahi he o pipillar, o esvoaçar-se, - O encrespar de plumage, o dar sem tino - Contra os duros varões co’ o peito brando: - Ahi o abrir do bico a pedir beijos, - E o revelar calado o amor e o nume. - Por isso he que ao pomar onde foi prezo - Fadou, quanta vos prende, infinda graça. - - Como he puro este ceo do campo d’Egle! - Como he doce este Zéfiro que folga - Entre as arvores d’Egle! este he ditoso! - Ei-la que sáe de seu campestre alvergue. - Calados se podeis, entre estes verdes - Porque vos não descubra, olhai-a um pouco. - Quereis ver como a ponto lhe adivinho - Os passos, e o que faz, e os pensamentos? - Sim, Egle he sempre aquella, he sempre a mesma; - Arvore sem enxerto he sua vida, - Dá sempre a flor igual, iguaes os frutos. - Mas silencio, Vertumnos insoffridos, - Ja vo-la pinto, e me direis se eu érro. - Do braço nu e candido lhe pende - De louro milho o próvido cestinho. - Chama as pombas, lá vão pouzar no alpendre; - Á eira arroja os grãos, lá são na eira, - Arrulhão, comem sofregas, refogem; - Ahi vai novo punhado, ahi vem de novo. - Uma d’ellas, mais alva do que o leite, - Vai pouzar no cestinho ao lado d’Egle, - E mansa come na formosa dextra; - Furtão côres com o sol o collo, as azas. - Egle lhe chama filha; affirmarieis - Que o brutinho a entendeo, salta-lhe ao seio, - Espaneja-se: agora lhe promette - O pombo mais fiel para consorte, - E um ninho todo fôfo, e muito afago - Aos pequeninos seus; mas quer em paga - Um beijo, e um beijo pede: a face inclina, - O bico a vem libar; alonga os labios - Unidos em botão, corre o biquinho, - E ao centro do botão lhe leva o beijo. - - Agora vem ao tanque, aos rubros peixes - Trazer segundo almoço: oh!—providencia - Não ha mais desvelada, ou mais formosa! - Mal que o choveo nas aguas transparentes, - Por entre os crebros circulos assoma - De vivos olhos purpurina turba, - Tragão-no, e fogem requebrando as caudas: - Ermo o lago outra vez ficou dormindo. - - Que dizeis? volve a casa? em manhã d’estas - Egle volve ao cazal! tornará logo. - Mas vós não ficareis, que o não consinto; - Hoje he só Divindade a Primavera. - Emquanto a hora da Festa inda vem longe, - Irmos correndo á sôlta, irmos folgando - He o nosso dever, foi jura nossa. - - ¿Mas que risadas d’esta parte sôão - Entre os salgueiros, do regato á borda? - Rasgado o cinto, desgrenhada a trança, - Uma Ninfa gentil é quem sozinha, - Se ouve rir no pacífico arvoredo! - La vai na vêa d’agua bracejando, - E a soltar de afflição piedosos gritos - Um Sátiro infeliz! ja muito longe - A corrente lhe leva o odre e a flauta. - Agora á flôr das agoas apparece, - Some-se agora no lodoso fundo. - Em vez de o soccorrer, o apupão rindo - Da opposta varzea os rusticos pastores. - —“Dize, bom guardador das vaccas nedeas - “Que successo foi este?”—“Eu vo-lo conto. - “A Ninfa hia correndo, antes voando, - “Ao longo d’esta margem que verdeja, - “Quando eu dei fé; suava-lhe no alcance - “O mofino do Sátiro ... (Que vejo! - “Inda poude aferrar ... Más horas leve - “A agua que o não tragou! Pois ja não larga - “Os vimes que aferrou co’a mão pelluda. - “La trepa ... Vê-lo em cima! Oh como o bruto - “Se estira ao sol e arqueja!) Hia no alcance - “Da pobre Ninfa o Sátiro; umas silvas - “A prendêrão, travando-lhe do cinto. - “Carpia-se a coitada entre alaridos, - “Como passaro prezo; esta novilha - “Não muge com mais ancia em vendo os lobos. - “Bate as palmas o fero, e mais ligeiro - “Atropella a carreira, e vai clamando - —“Venci-te—Avida mão ja lhe lançava, - “Senão quando (tomado está dos vinhos) - “O pé caprino na orvalhada relva - “Resvala: vê-lo vai de tombo em tombo - “Medindo a ribanceira, e dá no rio! - “Logo ao caír, fugíra-lhe dos hombros - “O odre do vinho, e a flauta d’entre os dedos. - “Mal poude resfolgar—Ó flauta! ó odre!— - “Disse trez vezes, e esqueceo-lhe a Ninfa”— - —“Bem hajas, guardador das nedeas vaccas: - “Mais feliz sejas tu com teus amores, - “E menos apressada a que seguires.” - - Socios, que mais ha ahi? Que vos demora - Em de redor de um choupo? Letras, versos - Entalhados no tronco! uma grinalda - A abraça-lo, outras mil por toda a cópa, - Que parece um rosal! na terra mirtos! - Lede-me esse letreiro: algum queixume - De infeliz namorado. Oh! ceos, he crivel? - LEI DE AMOR tem por titulo? se fosse - Da propria mão do Nume aqui gravada! - - _Amar, amar! viver d’amores!_ - _Que o tempo off’rece e nunca espera;_ - _Aos corações bem como ás flores_ - _Não se renova a Primavera._ - - Oh Lei, porta de Elisio antes da morte! - Sim, sim, de Amor tu es; vós sois das Graças - Coroas que a ufanaes, a encheis de aroma. - Socios, ministros das Piérias Deozas, - Erguei mão não profana ás flores sacras, - Privilegio he do estro, ouzai colhê-las: - Levará cadaqual no peito a sua - Bem sobre o coração, tão perto d’elle - Que ouvindo-o palpitar lhe falle amores. - - Pois he lei quero amar: sim. Porém onde - Onde estará da Primavera a Deoza? - Por toda a parte os seus vestigios nóto, - Mas não a posso achar. Ah! vós que rides, - A insólita paixão julgaes chimera. - Existe, existe a Virgem graciosa, - Dos Ceos a Filha occulta anda na terra: - Não são sem divindade estes prodigios. - Quem faz tão branda murmurar a fonte? - Quem abre a rosa na materna planta? - Quem dá cheiro á violeta, e côr ao lirio, - Ao ar fresco o regalo e verde aos campos? - Quem poesia de amor ensina ás aves? - Quem é que influe no coração dos homens - Tanto amor, tanta paz, doçura tanta? - Existe, existe a Virgem graciosa, - A minha doce Amante, a minha Amada, - Dos Ceos a Filha occulta anda na terra. - Sinaes de sua mão, pizadas suas, - Fragrancias que espirou, por toda a parte - Me envolvem, me arrebatão, me endoidecem; - Mas busco-a e não se mostra; exclamo, he surda! - O dia he fallador, he distraído, - Deidade virginal recêa o dia, - Casta, só quer talvez ás castas sombras - Revelar seu misterio, abrir seu peito. - Oh quem me dera que baixasse a noite! - Da noite no pacífico silencio - Côa pelo ar vazio o som mais leve: - Por isso a Filomela a quiz por sua, - E o mocho lhe confia as longas queixas: - Quem me ja déra que baixasse a noite! - Irei clamar do cume dos outeiros - “Ó Primavera, ó minha Primavera!” - E depois que trez vezes repetirem, - Ao longe os echos meu tristonho grito, - Attento escutarei se me responde. - Se nada ouvir, prostrando-me, e cobrindo - De igneos beijos a terra (os igneos beijos - Tem valor de conjurio entre amadores) - Com maior devoção, dobrada fôrça, - Clamarei “Primavera, ó Primavera!” - E os campos todos correrei bradando. - Na solitaria gruta alguma Ninfa - Ha de acordar, e á parte do oriente - Lançar a vista, procurando a aurora: - A aurora não virá, e eu longo tempo - Andarei pelas trevas suspirando. - Se trez vezes o sol descer ás ondas, - Sem que possa encontrar a minha Amada, - E sem que algum mortal dê novas d’ella, - Apagarei no peito o incendio inutil, - Pensando que era ingrata, ou que por sonhos - Somente a víra em extases do estro. - - Mas viver sem amar, sem ser amado? - Vida entre gelos equivale á morte, - No pasto ao coração mantem-se a vida; - Sois brandas affeições, a essencia d’ella. - Confessar-me da Lei que abrange a todos, - O primeiro infrátor? Ó Chlóe, ó bella, - Serás tu d’entre mil, o preferido - Emprego aos versos meus e aos meus excessos. - Ja tens da Primavera o genio, as graças, - Sua fama terás, terás seus hinos. - Quando com teu rebanho para o rio - O bosque ao fim da tarde atravessares, - De longe me verás na flórea margem - Sobre um penedo a celebrar teu nome. - Quando o quente redil ao gado abrires - No frescor da manhã, dir-te-ha meu rosto - Que entre as da tua porta arvores caras - Não fui amanhecer, mas toda a noite - De amor andei cercando o teu descanço, - Sentindo-te o respiro, ou crendo ouvi-lo. - Quando na sésta, á sombra da oliveira - Tiveres descuidosa adormecido, - Em sons de flauta escutarás por sonhos - O cantar novo que te mais recreie. - - Mas vede como leve escapa o tempo! - Ja alto e rijo o sol encurta as sombras. - Largo se ha divagado! Hora purpúrea, - A mais social, mais folgazã das horas, - Chamando está por nós co’a mesa agreste. - Onde a iremos tomar? n’algum tugurio - De solitaria Baucis? nem de feno - Pobres tétos consente o sacro Dia. - Ali temos o outeiro alcatifado, - Rico montáõ de flores! Que mui frescos - Pela assomada os louros se entrelação! - Mas sobre tudo que aprazivel gruta! - Por fóra he de hera um tufo luzidio, - Dentro um fôrro de musgo. Alvitre novo - Ó Socios escutai. Esta collina - Desde hoje para nós fique Parnaso. - Eis a gruta de Cirrha, onde costuma - Febo sonhar magníficas imagens! - Esses louros são delle! Aquella fonte - (Ceos nada falta!) he fonte de Castalia! - No remanso diáfano boiando - Niveos ganços as azas empavezão; - Fingi-lhes doce a voz, chamai-lhes cisnes: - Lindas pastoras nossas Musas sejão. - Respiremos o estro! Ó lá de Cirrha - Virações, acudi-nos contra a calma: - E vós louros selvaticos, ó louros, - Velai com vossa abobada frondente - Os vates e o banquete, o rir e os versos. - A primeira saude a Bacho e Ceres, - A Palles e Pomona, ora presentes - Do banquete á rural simplicidade. - Para dias iguaes, plantar-lhes voto - Cá bem no viso do sagrado outeiro, - Densa cabana de perpetua folha: - Para aqui, de canceiras feriados, - Viremos amiude abrir os peitos - Ao bachico folguedo, a Amor e aos cantos, - Co’a alegria assombrar, e co’a amizade - Do loureiral as Dríades vizinhas. - - Na venturosa paz d’este retiro, - Não virá perturbar nossa humildade - Com seus trovões, com seus _coriscos horridos_ - Turba sublime de soturnos vates. - Alçando o collo, enfaticos praguejem - Contra os _tirannos_, contra os _monstros barbaros_; - Pintem de rôjo os _prepotentes déspotas_, - Fulminem os _perversos aristócratas_, - E fujão por estudo á natureza. - Não lhes invejo, não, a bronsea tuba, - Que despede trovões e rasga ouvidos. - De nosso humilde genio estou contente: - Nada mais temos que uma agreste flauta; - Com ella muda, ás vezes longas horas, - Da natureza os quadros estudâmos. - Socios dos rouxinoes, só diffundimos - Depois de meditar, nossos gorgeios; - Em quanto o mocho a luz aborrecendo, - Nos amenos vergeis nunca discorre; - Dorme o formoso dia em cava furna, - E sólta pela noite horrendos guinchos, - Pouzado junto ao ceo, mas entre horrores. - - Elmiro, ó tu que, tanto como odêo, - Odêas as sonoras bagatelas, - E ris, como eu, dos estrondosos nadas; - Nunca te afastes da florída róta, - Por onde a Natureza o Genio chama. - Da madrugada nos mimosos sonhos, - Costumas ver de murtas coroada, - A amavel Sombra do risonho Géssner. - Oh! quando aos campos teus um dia voltes, - Á sombra do teu cedro será doce - Ouvir-te prantear perdida amante! - Entre as folhas cheirosas susurrando, - Qual favonio indeciso, os Manes d’ella, - Mansa tristeza ao coração te enviem. - Emquanto no escarceo da grão Cidade - Eu misero, eu saudoso andar lutando, - La no fertil torrão verás contente - Por ceos de teu jardim nascer a aurora: - Regarás pela fresca as flores tuas - Junto da terna Mãi, que este só gôsto - Na morte conservou do esposo amado; - Triste e formosa qual viuva rôla. - Outras vezes as pombas que sustentas, - Terno irás vizitar co’as Irmãs bellas, - Qual entre as Graças passeára Adonis - Nos arvoredos da ociosa Chipre. - Elmiro, ¿e alguma vez tambem meus versos - Serão do teu retiro um passatempo? - Quando eu tos enviar, vós reunidos - Junto do fogo nos serões do inverno, - Contentes os lereis; e tu, girando - Co’a vaga idea nos passados tempos, - Dirás a suspirar “He meu amigo”. - -FIM DO CANTO PRIMEIRO. - - - - -O DIA DA PRIMAVERA. - -CANTO II. - -_A Tarde._ - - - Ja dos louros as grimpas se embalanção: - Surgir, surgir da relva sonolenta! - Ja fresca viração consola os ares: - Que zoada que vai por toda a selva! - Estrépito de rio impetuoso - Na calada da noite a crê mil vezes - O viandante perdido. Hora da Festa, - Bem te ouvimos anciosa estar chamando. - ¡Da Primavera á Festa, á gruta, ó Socios, - De Amarilis e Umbrano á vasta gruta! - Ja agora o bom de Anfrizo ha de ter pronto - De sua déstra mão o altar gramíneo, - Arqueado em docel do cedro a cópa, - E do cedro no pé com flórea tarja - Da nossa Primavera aberto o nome, - Se he que amor lhe não fez gravar _Dorinda_; - Dorinda, cujos magicos encantos - Na lira do amador gerão milagres; - Cujos olhos, tão negros como a noite, - São como a noite ao Deos de amor tão caros. - - Sim, vamos — Vedes vós o pequenino - Que la vem amontado em verde cana? - Quão guapo agita as redeas côr de rosa, - E açouta co’a varinha a brava fera! - Ouvis-lhe a doce voz que por mim chama? - —“Salve, menino! e adeos, que hoje não posso. - “Outro dia virei, toda uma tarde, - “Trabalhar nas flautinhas, que arremedem - “Cantar de rouxinol soprando-as n’agua. - “Amanhã me procura aqui no outeiro, - “Verás, verás que historias te não conto.”— - - Partio: como galopa afervorado! - Ja vai conta-lo á mãi. Este menino - He da aldea a doudice, e os meus amores. - He dote de seus annos a innocencia, - Como do botãozinho he dote a graça: - Mas aqui ha melhor, he botãozinho - Ja fragrante, he virtude antes do sizo. - N’aquella sésta do abafado agosto, - Quando fostes nadar, eu passeava - Sozinho a espairecer pela frescura; - Eis para mim correndo este menino, - Vergonhoso me diz:—“Queres atar-me - “Este cordel nas pontas do meu arco, - “Bem seguro, bem forte, que não quebre?”— - —“Sim, amavel menino (eu lhe respondo) - “Sim quero atar-to bem seguro e forte”— - E emquanto lho fazia, assim lhe disse: - —“Vais caçar borboletas? ou mordeo-te - “Alguma abelha, e queres castiga-la?”— - —“Não, não: vou dar em minha mãi um tiro”— - —“Um tiro em tua mãi!”—“Sim n’outro dia - “Deo-me tanto nas mãos, que me ficarão - “A doer, tão vermelhas como as rosas”— - —“E porque assim te deo, que te ficassem - “As mãozinhas vermelhas como as rosas?”— - —“Eu tinha (acudio elle) um melro novo: - “Era meu, apanhou-o a minha rede. - “Sempre estava a cantar; era tão lindo! - “E quando assobiava? os outros melros - “Punhão-se la do bosque a responder-lhe, - “Queria tanto á nossa Mirtilinha! - “(A nossa Mirtilinha he a mais pequena - “Das minhas trez irmãs): e ella tratava-o, - “Quando eu hia á seara ás cegarregas. - “No outro dia esqueceo nos a gaiola - “Ao sol toda a manhã: quando fui vê-lo, - “Não se podia ter, abria o bico - “E não tomava nada. Um pequenito - “Me disse que era calma: agarro n’elle, - “Vou-me ao tanque, e mergulho-o cinco vezes. - “Ficou muito peór: punha-o direito, - “E elle sempre a caír, fechava os olhos, - “E estremecia todo. Aquietou-se: - “Cuidei eu que dormia e disse, Dorme, - “Veio um velho, abanou-o, e disse, He morto. - “Fui com elle na mão chorando, e em gritos, ta, - “Procurar minha mãi. Ficou pasmada - “Quando o vio, e eu lhe disse—Ahi está, não can- - “Nem ja faz festa á nossa Mirtilinha— - “Poz-se a ralhar por isto, e castigou me”— - “Cruel menino (lhe volvi severo), - “Cruel menino, e em tua mãi pretendes - “Ir com setas vingar-te?”—“Oh! não (me torna), - “Não lhe hei de fazer mal. Se tu soubesses - “O que uma seta faz!...”—“Não te percebo, - “E pois que faz? explica-te, saibamos”— - —“Na cabana de Silvio (me responde) - “Ha um cópo de páo todo pintado, - “Que elle ja prometteo que me daria - “Se eu lhe levasse a fita, com que ás vezes - “A minha irmã Glicera ata os cabellos. - “Por fóra do tal cópo está com um arco, - “Para atirar a uma pastora linda, - “Um menino como eu, com os olhos negros - “Voltados para mim, e sempre a rir-se. - “Anda nuzinho ao frio, e tem nos hombros - “Azas, que lhe não ganha a borboleta. - “Silvio disse-me o nome que lhe davão, - “Porem ... ja me esqueceo: tambem me disse - “Que elle costuma á gente descuidada - “Atirar muita vez d’aquellas setas. - “Eu cuidava que as setas matarião, - “Tinhão-mo dito um dia os caçadores, - “Mas Silvio me jurou que não matavão, - “E contou-mo sem rir; Silvio não mente. - “Aquellas setas vem, entrão no peito - “Sem ferida nem sangue, e até sem dores. - “Se obrigão a chorar e a ficar triste, - “Como ás vezes succede ao meu bom Silvio, - “Em toda esta tristeza ha tanto gôsto, - “Que he mais doce gemer, que estar alegre. - “Eu d’isto nada entendo, porem Silvio - “Me disse que algum tempo o entenderia. - “Lembra-me agora! o tal menino d’azas (certo - “Chama-se _Amor_; não he verdade?”—“He - (Lhe respondo, apertando-o nos meus braços), - “Chama-se Amor, e he como tu formoso.”— - —“E seus tiros não fazem que fiquemos - “Tão amigos de alguem, como o cordeiro - “Que anda a brincar com seu irmão no prado?”— - —“Sim he verdade”—“Então venha o meu arco, - “Ja tenho em casa muitas setas prontas, - “Vou ferir minha mãi.”—“Louco! o teu arco - “Como o d’elle não he (lhe brado rindo): - “Lança-te ao collo seu, perdão lhe pede, - “Beija-a, conta-lhe tudo, e eu te prometto - “Por cada beijo teu, mil beijos d’ella”— - Não me ouvio mais, correo: e de caminho - Colheo para offertar-lhe algumas flores. - - Mas eis-no; ja no suspirado sitio! - Essa a gruta: este o cedro annoso e immenso, - Condigno pavilhão do altar votivo. - Inda as c’roas vos faltão, ela ó Socios, - Rompei demoras, ide ás flores, ide, - E volvei logo a dar princípio á Festa. - - Só fiquei: se eu podesse aqui no prado - Por meus olhos tambem colher algumas! - (Que as violetas que hei posto andão ja murchas.) - —“Ó pastorinha de formoso gado, - “Se podes, nem te peza alguns momentos - “Perder comigo, apanha-me violetas, - “Ensinar-te-hei por prémio outros cantares. - “Teu rafeiro no emtanto o gado vele.” - Partio, deixando ao lado meu, na relva - O cordeiro que tinha em seu regaço, - Tão alvo, tão pequeno como um lirio. - Pobre innocente! nos meus dedos busca - Da mãi, que ao longe bala, a doce têta! - Se comer ja soubesse, eu lhe daria - D’estas papoulas, d’esta fina grama. - - Que silencio! mal ouço uma fontinha; - Serena viração de quando em quando; - O crepitar miudo dos raminhos, - Que a leve cabra arranca do espinheiro; - A voz d’um lavrador aos bois tardios; - E o cançado gemer de um carro ao longe. - - Cá volve a minha Flora! estou c’roado: - “Graças ó doce e rustica Belleza! - Sempre emtorno de ti rebentem flores - Que o teu rebanho cobiçoso pasça; - Nunca te falte pelo estio a sombra: - E amor te volte em fruto as esperanças, - Se esperanças de amor no peito nutres. - Vês tu aquelle altar? foi obra nossa, - Foi por nós consagrado á Primavera, - E vamos festeja-la. Altar sem Nume - Faz menos devoção; se tu quizesses, - Bem o podias ser. Anda, mimosa - E amavel pastorinha; enflora á pressa - A trança, o collo, o seio, e no regaço - Lança flores quaesquer, qualquer verdura: - Oh! da-me este prazer. Do cedro ao tronco - Vai-te encostar do modo que te digo, - Co’a mão na face, e com o sorrir nos labios[8]. - Direi aos socios meus, quando voltarem: - “Invoquei tanto e tanto os meus Amores - (Nome he que á Deoza dou, não tenhas susto - “Nem me furtos a mão) e he tão benigna, - “Tão docil, tão cortez a Primavera, - “Que saío do seu bosque, e apraz-lhe ouvir-nos.” - Folgaremos de os ver caír no engano, - Ajoelhar-se á fingida Primavera, - E mais de coração cantar-lhe os hinos. - De que te ris, singela rapariga? - Porque foges de mim? Se não consentes, - Cedo iremos buscar-te nos teus montes, - Chamar-te Deoza, em dôbro envergonhar-te.” - - Que he isto! ja volveis? mostrai-me as c’roas. - Como escolheste bem, terno Josino, - Meigo no coração, na voz mavioso! - Goivos com mirtos para ti cazaste, - Com o suave condiz a suavidade. - Se nos campos do ceo, reino do Genio, - Eu podesse colher miudos astros, - Dos versos onde alçaste ao ceo meu nome - C’roa de ethérea luz seria prémio. - Dou-te o que posso, gravarei teu nome - Em bosque, onde Hamadríades o leão: - Decoraráõ com o verso os teus louvores, - E alguma em si dirá: “Quem me ora désse - Em minhas solidões este Josino, - Por ver se he no cantar, qual dizem, meigo.” - - Vejamos meu Irmão[9] a tua escolha. - Eis-te como eu cingido de violetas; - Ah quanto são iguaes os gostos nossos! - Abraça-me cantor da natureza, - Um a outro, um pelo outro aqui juremos - Juntar sempre em busca-la a industria nossa. - Abraça-me outra vez: nossa amizade, - Nossa terna amizade, e nosso estudo - Aperte mais e mais do sangue os laços. - Se jamais fado atroz nos separasse ... - Longe do pensamento esse impossivel! - Duas vidas irmãs que medrão juntas - Tem uma só raiz; dão flor, dão fruto - Nas mesmas estações, e ás horas mesmas. - Quer benção mande o ceo, quer sôpro de ira, - Um só bem, um só mal abrange as duas, - Emquanto uma existir persiste a sócia. - Vai para o nosso altar, um só momento - Me prende, o meu lugar tu la conserva - Entre ti e o das Musas ja mimoso - Nosso irmão, que no berço achou a flauta: - Menino, a quem cingistes de alvas rosas, - Como elle emblemas da innocencia breve. - - Elmiro, o teu diadema he bello e simples; - Mirto e teixo pregões de amor e mágoa. - Não são menos de ver, nem menos proprias - As vossas, bom Franzino, alegre Albano. - Do amor perfeito as flores melindrosas - Tecem, Franzino, a tua, e tem por joia - Uma saudade a tremular na fronte. - De teus suspiros o ditoso emprego - Longe está, bem o sei, mas não suspires: - Tua amada fiel na ausencia chora, - Sua imaginação durante o dia - Voa a buscar-te aos campos do Mondego; - Dos campos do Mondego aos braços d’ella - Sua imaginação te leva em sonhos. - Albano, a ti o amor foi mais propício: - Vês amiude os olhos que te inflammão - E o sorrir facil que te muda em louco. - Não muito abertas, incendidas rosas - Cercando as tuas fontes, me afigurão - A imagem ver de envergonhados beijos. - - Vem meu Anfrizo: a tua d’entre todas - He por certo a mais funebre grinalda; - Um ramo de cipreste e alguns suspiros. - Ah tua mãi tão cedo abandonar-te! - Orfão triste, perdoa ao vate amigo, - Que em chaga inda tão fresca a mão te ha pôsto. - Se para ella ha balsamo no mundo, - Só Amor sabe d’elle, e mãos de neve - Tem para to applicar virtude innata. - Sim, Dorinda gentil como que busca - Esse ermo de tua alma encher de affetos, - E no vão do teu peito insinuar-se. - Mas a saudade maternal he muito; - Todo o mundo, a amizade, e até Dorinda - Só poderáõ na angustia confortar-te. - Teu mal sustido chôro eis recomeça! - Só a dor te contenta, á dor sirvamos: - Narrar-te quero a historia do cipreste, - Que dos ramos feraes partio comtigo. - - Prêzo das graças da opulenta Silvia - Titiro guardador de pobre armento, - Com seus ais estes montes abalava. - A bella desdenhosa, muitas vezes - Quando o sentia a modular ternura - Ao som da flauta n’um sombrio valle, - Torcia, por não ve-lo, o seu caminho. - Ah se o visse, estendido entre o rebanho, - O pranto a borbulhar nos fitos olhos, - E ao som da flauta, em baixa voz unidos - De quando em quando um ai, e o nome d’ella! - Rigores virginaes, desdens de rica - A amor, á compaixão talvez cedessem, - E ficasse mais bella, a ser piedosa. - Por só consolação de seus desgostos, - Co’a pèga que ja foi da ingrata Silvia - Folgava repetir de Silvia o nome. - Nunca a avezinha ao misero deixava, - Que assim a havião prêza os novos mimos. - Só ás vezes aos lares revoando - Da formosa cruel, de la trazia - Furtada alguma prenda ao pobre dono; - Sem querer lhe atiçava o fogo inutil. - Era triste, mas doce, ouvir de noite - Pelos bosques bradar “Ó Silvia, ó Silvia” - O terno amante; e acompanha-lo a pêga, - Ja pouzada em seu hombro, ou ja gritando - La de cima de um tronco “Ó Silvia, ó Silvia!” - Longos tempos assim pelas florestas - Vagar se ouvirão solitarios ambos; - Té que o loquaz brutinho de cançado - Veio um dia caír entre as mãos d’elle, - Bateo as azas, terminou seus dias. - Á fiel companheira ultimas honras - Deo como poude Titiro: sagrou-lhe - Um pequenino tumulo de barro, - E um ciprestinho de anno, que por novo - Inda estudava o geito de ser triste. - Aos Numes implorou que o não crescessem: - Mas pouco e pouco o tronco foi subindo, - E com elle de Titiro a saudade. - Bem póde ser que o tumulo não visses, - Que ervas espessas de redor o afogão - Ah desde que o pastor tambem jaz morto, - Morto ás mãos da saudade, e em terra alhêa! - - Tempo he da Festa. Á Festa!—Ahi estão as flautas - Ja silvando rebate ás alegrias! - Travai dança, alta dança ruidosa, - Quaes em seu monte os Sátiros a saltão! - Venhão de apoz os hinos: logo Bacho - Nos acuda co’as taças, menineiro - No aspéto e no palrar, no resto annoso, - De cãs a reluzir por entre as parras. - Ser-lhe-ha boa salva o retinir dos cópos - E os das saudes misturados gritos. - Do altar meu canto agora ascenda ao Nume! - - Vem ó Dona das Graças e Flores, - Volve á terra teu mago calor; - Aos que fogem de amor gera amores, - Nos que a amores se dão cria amor. - - Tu és Venus, a Grecia delira - Crendo-a Filha do túrbido mar, - Tu és Venus e Musa da lira, - Cumpre á lira teu Nume exaltar. - - Tu és Dríade, e Náiade, e Flora, - Mocidade e Saude e Prazer, - Com mil nomes o mundo te adora, - Mil poderes compoem teu poder. - - Do Ceo puro és a noiva córada, - És só d’elle como elle he só teu; - Rica em trajos, de aromas banhada - A seus beijos te off’rece Himeneo. - - Feliz extase, abraço jocundo - Do consorcio completa as prizões, - Primavera, em teu seio fecundo - Ja pullullão mais trez estações. - - Á voz tua amorosa e macia, - A teu mago e perpetuo sorrir - Tudo cede, e te adora á porfia, - Como te ha de o mortal resistir? - - Léda brinca a feliz meninice, - Léda a ninfa em seus dons se revê, - Lédo o velho desruga a velhice, - Tudo he lédo, e não sabe o porque. - - Onde assomas o mato florece, - Desatina a avezinha a cantar, - Côr d’esp’ranças a terra amanhece, - Arde o peixe nas brenhas do mar. - - Perde as iras a rábida fera, - E se estranha de ter coração. - Primavera, que és tu Primavera? - Vida, fôrça, virtude, união. - - Desde que abre ao carneiro doirado - Hora alegre o celeste redil, - E das sombras e gelo espalhado - Despe as terras Favonio subtíl; - - Despe a mente por ti bafejada - Suas neves e escuro invernal, - Ressuscita de flores toucada, - Enche a lira, nem sôa mortal. - - Pois tu és quem me acorda e me inflamma, - A ti, Deoza, os meus versos serão. - Mas debalde o meu estro te chama, - Os meus olhos jamais te verão! - - Amigos, baixo he o Sol, findem-se os hinos: - Ponde silencio aos copos falladores; - Assaz he tempo. O dia era dos campos, - Ás aguas toca a noite; a noite grave, - Recolhida, saudosa, ama pascer-se - No murmurinho de deserto rio: - Tambem o coração tem dia e noite, - E precisa dos bens desenfadar-se. - Largo dista a corrente; o passo aperte - Quem sabe quanto he grato á luz de estrellas - Ouvir palrar as Náias a deshoras. - Vamos tomando o gôsto aos fins da tarde; - E emquanto mais ligeiro o bom Josino - Corre a aprestar a barca, entreteremos - O caminhar, colhendo rosmaninho - Para o colchão nóturno. ¡Que delicias, - Ir-se acamado em flores aboiando - Á luz modesta da nascente lua! - Ama o rio os cantares de saudade; - Cantares de saudade atiraremos - Até ao mar pelas sombrias margens. - Logo que o não rogado, amigo sono, - De papoulas toucado perguiçosas, - Lá nos for procurar, e manso e manso - Forem caindo os sons e pensamentos, - Iremos amarrar na margem muda - A qualquer tronco a barca flutuante: - Lançaremos por cima o branco toldo, - Bastante abrigo do nóturno orvalho: - E estendidos macio, e conversando - Em voz baixa, embalados cederemos - Ao começado sono os restos da alma. - Quando alta noite algum de nós acorde - A um leve crepitar do linho undaute, - Cuidará que uma Náiade surgíra - Fóra da agua a cabeça curiosa, - E inclina o seio ao bôrdo; e nos espreitas - Assim como alvoreça, a luz da aurora, - E vós, madrugadoras andorinhas, - Para o campo acordado heis de acordar-nos. - Correremos as candidas cortinas, - E veremos de subito, encantados, - Sobre nós a verdura estar pendente, - Do pranto da manhã ja rociada. - - Não tarda o Sol momentos em sumir-se; - No mais vivo escarlate ensopa os campos, - Tinge a folhage, os rostos nos accende, - Por montes e olivaes dos ceos oppostos - Começa a desdobrar seu manto a noite. - Busca o rustico azilo o boi tardio; - Por toda a parte os gados vão passando. - Sustenhamos o halito, escutemos - Esta distante musica toada - Que assim transporta os animos em gôstos: - He toda feminil, toda feitiços, - Vem toda ao coração; oh se a conheço! - Pastoras são, que ao longe no arvoredo, - Vão para a aldea recolhendo em chusma - O tropel dos rebanhos misturados. - Cantão, porque he sazão de primavera, - E peito de mulher, como avezinha, - Desfaz-se em canto e amor em vendo flores: - Cantão, porque de um dia assim formoso - Serão formoso as toma, e o fuso leve - Que andou por solidões um dia inteiro, - Vai girar no conchego da fogueira; - E cantão, porque flautas de pastores - Que vão na companhia, as desafião. - Mas tantos sons confunde-os a distancia, - Figura-se uma voz de tantas vozes; - Como que uma só boca a manda aos ares, - Exprime um só afféto, um só deseja. - Oh Natureza! oh Tarde! oh Primavera!... - Lagrimas de prazer vertem meus olhos! - Somos em bosques de propícias Fadas? - Ou vaguêo ja Sombra, e vós comigo, - Na semi-vida e semi-luz do Elisio? - - Ja tudo se esvaío, tudo he silencio: - Por campo e campo ao largo impera a Noite. - Erguida a lua nova o horror lhe troca - Em saudosa tristeza, e o mocho alerta - La do alto a ajuda com o piar carpido: - Ja ouço o estrepitar das frescas aguas. - Vem barquinha da noite, perguiçosa, - Vem, toma o rosmaninho, e a nós recebe, - Oh que ameno he pousar passada a lida, - Em meio de aguas tantas, rodeado - De amigos bons, e triste, não de proprias - Tristezas, sim das mansas do Universo! - Ouvi, amigos meus, os meus dezejos, - Quaes mos ora no seio estão brotando - A hora, o sítio, a lua, aquelles pios; - Relevai que ao folgar vos furte instantes. - - Seios Deozes minhas supplicas ouvissem, - Um torrão fertil, rústica vivenda, - Houvérão de abrigar-me a vida pura: - La minhas ambições se fartarião - De nobre, de quieta obscuridade. - Mas pois que de outra sorte aprouve aos Deozes, - E o fio, não de lã grosseira e nívea, - Me torcem, mas de ferro as trez do Averno, - Guardai vós na memoria o meu dezejo. - - Depois que entre os abraços delirantes - De todos os que amei, findar meus dias, - Sepultai-me n’um valle ignoto e fertil[10]. - Para marcar da sepultura o sítio, - Sôbre o cadaver, que vos foi tão caro, - Mangeronas plantai, cuja verdura - Em roda fechem variados lirios. - Na raiz funda de soberba olaia - Pouze a minha cabeça, e o tronco amigo - Sobre mim curve a cópa florecente. - Mil piteiras unidas, ostentando - Na hastea vaidosa as flores amarellas, - Em quadrado não grande me defendão - Das incursões das cabras roedoras. - Em meu tronco se escreva este epitafio: - - _Foi poeta amador da Natureza:_ - _D’entre as sombras ancioso a procurava,_ - _Qual terno amante a bella fugitiva._ - - Sôbre isto pendurai sonora flauta, - Que se revolva á discrição do vento. - Não cerque os ossos meus, não mos ensombre - Nem teixo nem cipreste; arvores quatro - Quizéra só no meu jardim de morte. - N’um canto a larangeira graciosa, - Que mescla util e doce, a flor e o fruto: - N’outro a figueira sob as amplas folhas - Modesta occulte seus nectareos mimos: - Defronte um pecegueiro em frutos mostre - Que amavel he pudor, quando enche faces - De penugem subtil inda cobertas: - No ultimo canto ... (a escolha me confunde) - Plantai no ultimo canto uma ginjeira, - He a arvore da infancia, até na altura; - D’esta por sua mão colhe um menino - A mui ridente baga, e ri de ufano. - Alguns tempos depois que a fria terra - Meus restos encerrar, á minha olaia - Vós, meus amigos, vós dareis meu nome, - Pois de mim se nutrio, e eu serei n’ella. - - Dos guerreiros nos tumulos afiem - Faminta espada os barbaros guerreiros: - No sepulchro do sabio o sabio estude; - E dos reis nos marmoreos monumentos - Vá sonhar a ambição, grandeza e pompas: - Vós soltos de freneticas loucuras - Aqui vireis mil vezes vizitar-me, - Na amizade pensar que nos uníra, - E unir-nos deverá transposto o Lethes. - Porque me interrompeis com taes suspiros? - Ah! deixai-me acabar. Quando sentados - Emtorno a mim na flórida alcatifa, - Guardardes meditando alto silencio, - Se d’entre as mangeronas que me cobrem, - Saír acaso a borboleta errante, - ¿Não vereis n’ella o espirito do amigo - Que vem gozar do sol a claridade? - Quando o suave rouxinol de noite - Da minha olaia gorgear nos ramos, - Não pensareis, de santo horror tranzidos, - Que feito rouxinol, meus cantos sólto? - Sim pensareis, e erguendo-se inspirado - Algum lhe ha de bradar “Ó meu Amigo!” - Responderáõ “Ó meu Amigo” os bosques; - E vós direis que o meu fantasma errante - Da argentea lua á muda claridade, - Á conhecida voz d’alem responde, - E em tudo encontrareis a imagem minha. - - Se inda então meus costumes vos lembrarem, - Se vos lembrar meu coração piedoso, - Velai que em meu retiro as bellas aves - De caçador cruel cantem seguras: - Amor, o leve Amor, com arco d’oiro, - Só elle e mais ninguem, logre atirar-lhes; - Careço de amorosa melodia - Que me poetize o sono derrabeiro: - Morto que nada tem preciza d’estas - Pobres delicias rusticas, se folga - Que a namorada moça, o terno amante - Juntos ou sós, a vizitá-lo acudão. - Então ao som de languidos suspiros, - De alegres cantos, de amorosos versos, - De ternas queixas, de perdões suaves, - Muitas vezes contente a minha Sombra; - Formando ao pôr do sol vermelha nuvem, - Girará n’estes ares, revolvendo - Da passada existencia almas lembranças. - -FIM DO POEMETTO - - - - -NOTAS AO POEMETTO ANTECEDENTE. - - - - -_Pag. 109. verso 10._ - - Com seus trovões, com seus coriscos _horridos_. - - -Trazia este verso na primeira edição a seguinte Nota—_Eis àhi os -primeiros esdruxolos que fiz em minha vida, e espero que sejão os -ultimos, ainda que por isso que fique excluido da communhão de certa -Seita moderna._—Supprimi-a, e no declarar o porque, vou dar não equivoca -prova da minha candura. Prezar-se um escritor de mais amigo da verdade -que de Platão e de Aristoteles, alguma couza he; mostrar porem que mais -do que a si proprio a ama, certo que não he vulgar o exemplo, e esse -tenho eu dado, e não raro, ja fallando ja escrevendo limpa e rasgadamente -o que de minhas Obras me parece. He um bom propozito que eu fiz em meu -interior, e espero não quebrantar nunca, não só porque de si he honesto -e nobre, senão que por este meio, o qual não custa mais do que algum -suspiro á nossa vaidade que sempre se torce e confrange de ser mostrada -nua, me estremarei da manada dos charlatães literarios, de quem nem -o estomago me consente fallar. E porque chegue por direito caminho á -questão dos esdruxolos, recordarei com vénia e boa paz dos leitores, o -que ja no Prologo da terceira Edição das minhas _Cartas de Echo_ deixei -tocado; com a differença, que d’esta vez o farei mais explicitamente. - -No tempo em que eu cursava meus estudos na Universidade de Coimbra, -florecia ella com muitos e bons engenhos de mancebos dados ás -Bellas-letras. E porque ainda então se não tinhão accendido os -desastradissimos odios das parcialidades políticas, a Hobbesiana -propensão de guerrear se exercia nas letras. Duas seitas de escrever -se contavão; a cada uma das quaes não faltavão admiradores, apostolos -e evangelistas, assim como por isso mesmo inimigos, escarnecedores e -parodiadores. Os Livros em que uma juramentava os seus adeptos, erão -Gessner e Bocage; Filinto era o Alcorão da outra. Gessner quanto ás -couzas e affétos, e Bocage quanto ao térso e lustroso de estilo e metro, -erão os idolos de uma; os da outra erão, quanto a couzas e affétos -Filinto, quanto a estilo e metro Filinto, e Filinto quanto a tudo em -que Filinto podesse bem ou mal ser imitado. Tinha cada uma d’ellas suas -vantagens e seus descontos, como agora claramente diviso, quando as -considero com animo livro e desassombrado de preoccupações. Não fallarei -aqui de Gessner, porque ja no Prologo o fiz; confrontarei somente, e de -corrida, Elmano e Filinto. - -A ambos dotára natureza de talentos, bem que entre si diversissimos, -assaz fortes todavia que podessem cunhar á sua feição a poesia do seus -tempos. Elmano, que talvez em seu genero nos ficará sendo unico, de -fôrça devia deslumbrar e encantar pelo caudal inexhaurivel, brilhante e -estrepitoso de sua vêa, que eu appellidarei, e ria quem rir, um Niagara -de talento: e assim como, os que pasmão deante d’essa grande catarata de -puro embevecidos em sua cópia e magnificencia, não tem olhos para notar -o esteril do seu curso, o assolador do seu ímpeto, e os penedos que rója -envoltos e desfarçados com suas aguas, assim os que presentes assistirão -ao poetar de Bocage, ou da tradição o receberão, fascinados com os seus -estrondos, espumas e iris, mal se podem lembrar de lhe desejar afféto, -sizo, e exatidão, que muitas vezes lhe fallecem. - -Cinco couzas, pelo menos, para o bom poeta se requerem: _faculdade -inventiva_—_faculdade sensitiva_—_sciencia_—_lingua_—_e ouvido_; e ainda -com estas cinco outra, que talvez resultará rempre de sua união, e sem a -qual todas as mais seráõ baldadas; fallo d’aquelle discernimento pronto, -que a muitos erradamente pafeceo instinto, e a que se costuma dar nome -de _gôsto_. Em raros sujeitos concorrem tantos predicados; por isso só -de longe a longe apparecem os maximos poetas, e ja se dão por grandes -aquelles a quem menos faltou d’estes requisitos. — - -_Faculdade inventiva_ ou não a tinha, ou apenas a tinha Manoel -Maria; a sua queda para tradutor bastaria para indicio, se de -indicios te carecesse aonde claras reluzem as provas: um _Fado_, um -_Jove_, _Eternidade_, _Natureza_, _Sóes_ e _Caos_ são o _index rerum -notabilium_ da maior parte de seus escritos; e tanto abunda n’estes -bordões sustedores e disfarçadores de sua fraqueza, como Ferreira (e -quem descobrirá os meus?) na cançada repetição do _esprito_, Jorge de -Montemayor na de _hermoso_ e _hermosura_, Pina e Mello na de _alento_ -e _impulso_, Alfeno Cynthio na de _santo_ (epítheto, que por mais não -ter onde o pegue, até o poem, se bem me lembro, como arrebique na cara -de suas pastoras e namoradas): com a differença que os particulares -bordões d’estes poetas, e ainda outros de outros muitos, não são em suas -Obras senão meras circunstancias e accidentes, e os de Bocage menos são -estribilhos do que fundo o substancia de inteiros e repetidos periodos. - -De _faculdade sensitiva_ talvez o houvesse menos escaçamente dotado a -natureza, mas outras qualidades que lhe ella mesma deo em maior auge, -taes como volubilidade de fantasia, aspereza de condição, espirito -sobranceiro e satírico, e coração, como elle mesmo confessa. - -_Mais propenso ao furor do que á ternura,_ lhe entibiarão os affétos -benignos, de que sé a longes distancias lhe sáe, como a descuido, algum -reflexo. A estes máos e naturaes elementos accrescêrão desvarios da -fortuna ou do acaso, bem valentes para de todo lhe seccarem a fonte das -branduras. Vida mal preparada de educação, nua dos amoraveis habitos -domesticos, desalumiada de doutrina e estudo, aturdida de applausos -contínuos e encarecidos, amargurada amiude de pobreza, vagabunda entre -amigos não amados e por terras não suas, vida, porque tudo diga, corrida -á ventura e sem norte conhecido, desenfreada de todas as leis, sôlta por -todos os vicios, cínica por timbre, e por indole silvestre e bravia, -como podia ser que lhe não tisnasse no germen os affétos maviosos? Isso -foi, e isso conhece quem bem attento o ler e meditar. Mas em desconto, -as paixões fortes como o ciume, a colera, a vingança, sente-as e -pinta-as vigoroso, assim como todos os objétos grandiosos, remontados, -encarecidos, ou terriveis. Não vos debuxará um mendigo, avergado de -annos, estendido n’umas palhas esquecidas, junto do cão seu ultimo -companheiro, e orando no desamparo da noute, por quem, sem o convidar -para a sua fogueira do inverno, lhe deo fóra da porta meia fatia de pão; -nem ainda as carícias de uma mãi a seu filho: mas dir-vos-ha, rico e -altisono, os impetos de uma tempestade, a sanha de uma batalha, as iras -de uma madrasta, ou as furias de um infeliz que pragueja sua má ventura. - -Os affétos e a invenção póde a _sciencia_ por álgum modo suppri-los, -opulentando-nos com os affétos e invenção de melhores autores, uma -vez que por nós tenhamos a arte de bem escolher, bem digerir, e bem -converter esses literarios alimentos em substancia nossa, em nosso -proprio ser: ainda mui boa estrella he essa, e não poucos dos afamados -desde Virgilio até ós nossos dias, só á sciencia, e a essa arte de a -aproveitar, haverão devido a melhor parte do seu credito. He o saber, -princípio e fonte de bem escrever, dizia o Mestre dos poetas; e dizia o -dos oradores, que uns e outros era mister entenderem de tudo. E se ja -isso foi nos tempos antigos conselho e quasi preceito, preceito absoluto -se tornou, e necessidade, para quem escreve n’estes tempos, em que a luz -se derramou mais ampla, em que as sciencias, cançadas de viver sobre -si, se congregarão como boas irmãs em uma só familia, juntarão os seus -patrimonios em commum, e cada uma ajudando a todas as outras, vem a por -todas ellas receber um infinito accrescimo em seu peculio. Limitadissima -era a instrução de Bocage: o latim e o francez, na primeira de cujas -linguas mormente era primoroso sabedor, segundo referem, podérão ter-lha -dado copiosissima: mas nem a viveza de seu animo, os prazeres e os -divertimentos que em seu cerrado círculo o trazião como enfeitiçado, lhe -permittião estudos, nem são elles facil couza para pobres e viciosos, -nem o que era saudado por divino, como quer que _desatasse na voz o -acceso turbilhão_ de suas ideas, carecia de ir excavar em livros o suado -cabedal, com que outros negocêão veneração. - -Quanto á _linguagem_, não será pêjo dizer, que a usava limpa e sã, não -se podendo taxar a sua de mendiga e remendada, como a ja muitos de seus -contemporaneos vinha acontecendo, nem encarecer de rica e ambiciosa: -pouco tinha lido do portuguez, mas esse pouco com aproveitamento: só -d’isso ajudado, e do latim la se foi remindo e esteando a sua Musa -sem emprestimos do francez; e este carecer de vicios ja então era -grande virtude. Para lhe darem, como a texto, cabimento em nosso -Diccionario[11], não vejo eu razão sufficiente, assim como a não ha para -o desprezo e esquecimento, em que os havidos por puritanos o deixárão -cair. Uma couza he porem verdade irrefragavel, e he, que em nenhum -escritor, antigo nem moderno, apparece a lingua portugueza mais senhoril -e polida, mais igual e ao meio entre o usual e o sublime, entre a penuria -e a prodigalidade. - -Somos chegados á _harmonia_, o mais eminente merito de Bocage, e no qual -nem antecessor teve, nem ainda até hoje successor. De todas as partes -que em Bocage concorrião para poeta, nenhuma havia tão delicada, e em -que tanto se houvesse a natureza esmerado como o ouvido. A verdadeira -musica dos nossos metros, particularmente do hendecassíllabo, não só -a desempenhou e ensinou elle, senão que a inventou; e com felicidade -tão rara, que não cuido se possa a pontar hespanhol, e nem por ventura -italiano que o iguale, e mais he o italiano pela abundancia de suas -brandas e variadas vogaes, pelo moderado e macio de suas consoantes, -pelas licenças e elasticidade de seus vocabulos, muito mais pronto e -domavel para todo o uso métrico do que o portuguez. Poucos estafárão -tanto os consoantes como Bocage (e ainda ahi he grande o seu louvor, que -não he dado rimar mais primorosamente); mas a ninguem erão os consoantes -mais escuzados: são esses para o verso uns arrebiques e sinaes com que -os mal assombrados se disfarção, para poderem apparecer, mas de que os -graciosos e bellos não carecem, nem os devem consentir, por não parecerem -menos do que são. Porque não ouzarei eu dizer, que mais são os seus -versos poeticos, do que era poeta elle proprio? Como simples cantilena -agradão, agradão ainda quando por vãos os engeita o juizo e o coração -por frios: um estrangeiro que ignorante d’esta lingua os ouvisse bem -e devidamente ler, recrear-se-hia como com a toada de um bem tangido -instrumento. Grande excellencia por certo he esta, á qual principalmente -deveo levar traz si suspensos e encantados os animos, e por onde logrou -ser, sem o cuidar, fundador de uma escola, que se me não engano, ainda -de todo não passou. Toda a gloria de engenho he oiro em que nunca -faltão fezes: o produzir pela mágica de sua versificação uma seita de -versificadores, por honroso se podéra haver, se aos discipulos podesse -ter transmittido, juntamente com as normas, o talento, a fôrça, a graça e -o gôsto com que as produzia e aperfeiçoava: porem quiz algum Genio máo, -para lhe humilhar a vaidade e descontar a vitoria, que a maior parte -de seus sectarios menos lhe tomassem a melodia do que os escarcéos, as -empollas, os trocadilhos, as apóstrofes, as redundancias, e os versos que -ja se hoje chamão de dobrar, - - _Seu mais doce penhor, seu bem mais doce.—_ - _Vio n’ella os risos, vio as graças n’ella.—_ - _Um Deos não he perjuro, um Deos não mente._ - _Que não paga de um Deos, de um Ceo não paga,_ - _Ouzaste pregoar mais Ceos, mais Deozes.—_ - -versos, que parcamente lançados, como nas Obras de Virgilio, tem graça; -semeados a frouxo são affeites e desdoiros do estilo. - -Do seu _gôsto_ ja me julgo dispensado de fallar, porque me parece que -o que d’isso podéra dizer por si mesmo está nascendo do que fica dito. -Concluamos: o que de Bocage digo em geral, com suas exceções se ha -de entender, porque por uma parte muitas paginas ha suas, mormente -em algumas traduções do francez, onde parece lhe esqueceo pôr o tal -verniz de dicção e sons que para si inventára, e de que a ninguem -deixou a verdadeira receita: e por outra parte tambem, obras ternos -suas, mormente sonetos e traduções latinas, cabaes e redondissimamente -perfeitas.—Passemo-nos já a tomar iguaes contas a Filinto. - -Muito mais melindroso he este processo, até porque ja o querer tomar-lhas -será para seus apaniguados um crime de leso Apollo, e primeira cabeça. -Valha-me porem a declaração que faço, de que em tudo quanto disser, não -seguirei outras partes que as de minha razão, declarando previamente -que muito pouco dou eu mesmo por ella; mais são consultas que faço -que sentenças que profiro, e antes exercicios de imparcialidade do -que acintei de inimigo: de ninguem o sou, quanto mais de poetas, de -perseguidos, de velhos, de mortos. Foi tempo em que eu, obscuro poetastre -do Mondego, ria e vazava epigrammas contra o tradutor dos _Martyres_: -hoje se me afigure muito mais valioso. He elle o mesmo, mudei eu; Deos -sabe quantas vezes mudarei ainda com os annos: do mudar não he nossa a -culpa; nossa he porem, e feíssima a de persistir no erro conhecido; se -a republica literaria tivesse inquisidores, por heresia e contumacia -que não havião relaxar ao braço secular. Ha por ahi muito homem do meu -officio que possa dizer de si outro tanto? Mas deixemos esses que estão -vivos, e vamo-nos a Filinto. - -Se he ou não _creador_, ja vi ser renhida questão entre ociosos: para -mim tenho que semelhante titulo mal lhe pode caber. O frequente verter -ha pouco disse eu que denunciava esterilidade; e podéra accrescentar uma -sentença ainda mais desabrida, que ha muito encontrei, cuido que nas -Lições literarias do Doutor inglez Blair, e que muito me caío; a saber, -que o costume de traduzir, bem que olhado pela rama pareça dever ser -frutífero, sempre ao cabo vem a desgastar-nos a faculdade inventiva. -Compara-lo hei com o linho, que apezar de tão precizo no mundo e de -tão agradavel aos lavradores depois de colhido, por isto só desgosta a -muitos d’elles, que a terra onde se criou fica magra, e como elles dizem -queimada para outras novidades. Muito mais de metade dos tomos de Filinto -trazem no titulo os nomes de autores estranhos, devendo-se ainda lançar a -este rol por boa restituição, bastantes Obras, que talvez por descuido, -imprimio sem nenhuma menção de serem, como erão, vertidas. As imitações -são no merito e inconvenientes meias traduções, e as do nosso poeta são -numerosissimas, disfarçadas umas, outras manhosamente dissimuladas. No -resto que he de sua lavra, apenas se nos depara couza que abone talento -original e produtivo a: são os chamados lugares communs de poesia -filosofica, que ja por safados custão a passar, e as tão esfalfadas -visões e apparecimentos de Apollos, de Musas, de Amores, de Pégasos, e -de outros mil defuntos, a quem o tempo ja comeo o balsamo, e que todavia -são ainda a unica povoação de quasi todos seus poemas, tanto jocosos como -sérios. Algumas vezes me vem desconfianças de que n’aquelle passo da -Sátira do _Bilhar_, em que o nosso Tolentino parece rir de certas Odes, -contra Filinto hia tirada a seta de sua crítica: - - _Co’as verdes mãos o serpeado Tejo_ - _Alça o trilingue, mádido tridente;_ - _Mas que Górgona filtra? eu vejo, eu vejo ..._ - Em dizendo isto he Ode certamente. - -Em _affétos_ porem sobreleva a Bocage, e não abunda. A espaços lhe -vislumbrão assomos d’aquella sismadora melancolia, que mais ou menos -respira em todos os bons poetas. As amarguras e saudades, que em tão -larga vida e desterro lhe não faltárão, alguma, e não rara vez, lhe -soprárão versos amoraveis, e deliciosos de tristeza. He este de todos -os dotes de poeta o mais caramente comprado; sendo assim que Deos sabe -quantas vezes em applaudir um verso que nos toca, batemos por ventura -palmas a calados infortunios de quem no-lo escreveo. Não nos assuntos -ditos _sentimentaes_ se conhece tanto o verdadeiro sentimento, como -nos de indole mais fria e izenta; porque, se n’estes ultimos apparece -inesperada uma palavra maviosa, n’uma flor de festa uma nôdoa de lagrima -a descuido, ahi vem o infallivel documento de ternura e suavidade: e -d’estas sombras de lagrimas, d’estas palavras, maviosas achamo-las em -Filinto. - -Na _sciencia_ he que elle mais notoriamente leva a palma ao seu -contendor. Que muito? com o dôbro de vida, com precizáõ de estudar para -se divertir das mágoas e ganhar pão, com o ar e tráfico de Paris onde -todos inspirão e expirão letras, e com tão espaçosa velhice, pingue -quadra em que as paixões quietando nos deixão todo o silencio, remanso -e curiosidade necessarios para o estudo! Tornarão-se-lhe familiares -os classicos portuguezes e latinos, de uns e outros dos quaes talvez -Bocage não tivesse acabado dois ou trez volumes; familiares os classicos -francezes, hespanhoes e italianos, e ainda as versões dos inglezes e -allemães. Á roda d’elle chovião de dia a dia, e de hora a hora, os frutos -novos de todos os ramos das Sciencias, de que he impossivel a quem por lá -vive não provar, até sem querer, e ao cabo não se nutrir e fortificar. -Entretanto repararia eu, se o ousasse, que para quem logrou concurso de -tão favoraveis circunstancias, como as que a sua má estrella lhe deparou, -não saío Filinto o que se podéra esperar de noticioso e culto; e ou -desaproveitou o maná que ás mãos do espirito lhe chovia, ou se o tomou -lhe não luzio. Á primeira d’estas duas conjéturas me inclino, porque -segundo o que de seu natural alcanço por suas Obras, parece-me que na -lição das estranhas mais se hia á caça de vocabulos e frases curiosas, -insolentes e atrevidas, do que de doutrinas e filosofia. A sua era meã -e usual: cançados louvores á Liberdade, á Amisade e á sã Virtude, ao -estudo, ao descanço e ao deleite, alguns arremeços de encontro aos Bonzos -e Naires, eis ahi sondado até ao lastro o seu poço de saber moral: alguma -historia não rara antiga e moderna, eis todo o seu saber positivo; e todo -o seu saber natural, alguns dos principios geraes e diarios das Sciencias -fisicas. E certo, que se mais avultados fossem estes seus cabedaes, e vêa -mais fecunda lhe consentisse anciar mais altas couzas do que palavras -e frases, não se deixára ficar tanto atraz no meio de um seculo novo -e alado de poesia; não se contentára o seu estro abstémio com a agua -do Parnaso até á ultima hora da vida; e não nos deixára seus volumes -pejados quasi só de fabula, como armarios de muzeu antiquario, onde se -não vai procurar qual he o mundo em que vivemos, mas deduzir de troncados -e desluzidos fragmentos, o que em tal ou tal parte da terra houve lá -n’outros tempos, com os quaes e com a qual só pouco ou nada temos. Diz um -Escritor insigne[12], que a poesia assim como ontr’ora viveo de fabula, -revive hoje e se apascenta de verdade. Melhor dissera que de verdade -viveo em todos os tempos a nobre poesia, pois que o que para nós se -descubrio fabula, era nos dias em que appareceo e florio, verdade de -factos, ou capa allegórica de verdades, mui crida e sincera.—Resumamos; -Filinto soube mais que Bocage, menos do que podéra, e diverso do que -devêra saber. - -A _linguagem_, de que pela ordem se me segue fallar, mais requeria n’este -caso um tratado, do que uma nota de fugida. Algum dia o tentarei, quando -me achar mais de assento e sobre mão do que agora, que as justas raias -d’este escrito me estão tolhendo. He a linguagem e elocução a principal -feição caraterística de Francisco Manoel, como de Manoel Maria o he a -harmoniosa elegancia. - -A torrente das hipérboles e conceitos hia arrazando e engolindo todo o -nosso Parnaso, quando para lhe pôr a ella diques, e a elle salva-lo, -e repovoa-lo de natureza, appareceo a Arcadia. Detençosa e ardua se -representava a obra, como aquella em que a razão nua tinha de lutar com a -imaginação delirante. Para anteparar ímpetos de vêa tão engrossada com as -contínuas nascentes e tão copiosas de Italia, Hespanha e Portugal, ja tão -senhora do leito e dominadora das margens, era mister que braços fortes -lhe levantassem muralhas solidas de grossa e pezada cantaria. Virão os -Arcades como lhes estavão á mão as obras, não todas primorosas, mas -quasi todas massiças dos nossos quinhentistas e dos romanos classieos: -erão accommodadas ao intento, dizião com seu gôsto e costume; valerão-se -d’ellas, accrescentarão-lhes as suas proprias, levantarão o muro; bramio, -quebrou e escoou-se a inundação. Raro he o bem, que só porque o he, não -traga outros comsigo: dos trabalhos, que havião tido por fim acabar com -os nojos e puerilidades do falso engenho, nasceo um conhecimento mais -profundo da linguagem, mais extremoso amor á sua pureza, e o comêço do -encarniçado e ainda não findo pleito, entre a puridade e o gallicismo. -Verdade he que n’este segundo campo se não guerreou com tão favoravel -marte como no primeiro, porque se as maravilhas da _Fenix Renascida_ -passárão, os gallicismos fôrão em successivo crescimento, sendo ja hoje -tão caudaes e trasbordados, que princípio a desconfiar não haverá remedio -senão rendermo-nos, encruzar os braços, e deicharmo-nos ir ao fundo: -tanto estou convencido de que nem a propria razão he poderosa contra o -espirito de um povo: e a final de contas, Deos sabe, até n’isto, o que he -razão! - -Era Filinto, por sua amizade e commercio íntimo com os sujeitos de maior -credito na Arcadia, e por motivos de sua propria conveniencia, homem que -de necessidade devia entrar na pendencia, e sustenta-la até á ultima: -n’isso assentou, e o cumprio mui pontualmente. Entendeu desde todo o -princípio, como aquelle a quem não fallecia bom juizo, em se prover das -armas seguras e bem temperadas, sem que lhe não conviria arriscar-se -no combate: e se as defensivas que vestio lhe podessem ter saído tão -impenetraveis ás setas do ridiculo como as offensivas que meneou erão -fortes e penetrantes, guapissimo Cavalleiro houvéra apparecido, e -invencivel. Do antigo portuguez e do latim instituio concertar toda sua -armadura: com diurna e nóturna mão versou pois os monumentos de ambas -estas linguas; e quanto do portuguez ja feito se podia enthezourar, ou -se lhe podia accrescentar por derivação, por composição, por analogia, -por translação, ou por qualquer outra licença poetica, sem embargo -de desenvolta e extrema, tudo ouzou com ardimento verdadeiramente -admiravel. Fez estranheza a novidade, offenderão-se os mimosos com o -escabroso e difficil de tal estilo, arripiarão-se os pusillanimes com o -arrôjo, os ignorantes e priguiçosos com a immensa fadiga que bem vião -seria necessaria para entender, não só imitar e seguir, quem tão por -fóra caminhava das veredas batidas e vulgares. Todos estes, e com elles -os invejosos, saírão em campo, combaterão, e apuparão, e quanto mais -apupavão e combatião, mais recrescia em Filinto o acintoso proposito de -se não descer do começado, antes encarecê-lo sempre até o ultimo ponto. -Outra causa havia que para isto lhe fazia fôrça, e era conhecer como -sem estes bordados, recamos e relêvos de frase, o cabedal de suas galas -poeticas appareceria, qual em realidade era, grosso, commum e de mui -baixa valia. Mas quer o movesse esta causa bem perdoavel, quer fosse -generosidade com que se offerecia aos motejos, e desapreço de muitos, com -o só intuito de restaurar, e avantajado, o edificio do idioma portuguez, -sempre fica certo que n’este particular mereceo mui bem de sua patria, -e a deixou muito mais medrada do que a achára. Oxalá que dois ou trez -mais, dotados de igual credito, pozessem como elle peito á empreza; e -muito embora demaziassem como elle: cunhassem a flux tudo quanto dão -as minas portugueza e romana; ainda muito oiro puro de dicção viria -enriquecer-nos, e facilitar-nos o tracto; pôsto que tambem como elle lá -cunhassem á mistura oiro enfezado, não de lei, nem de receber: o juizo -público estremaria umas de outras moedas, e as engeitadas a ninguem -farião mal, se não fosse ao credito de seu autor. Assim crescêra cabedal, -que ainda mingoa para as obras do engenho patrio. Nossa lingua, qual por -ora a temos, e até restituindo-lhe todos seus fóros caídos, todas suas -joias enterradas, não supre as hodiernas precizões do espirito. Quando -a esfera do saber, sentir e pensar se está de hora para hora dilatando -no mundo, do qual nós outros (ainda que o não pareçâmos) somos tambem -parte, forçado hé que a esféra da expressão ao mesmo compasso se dilate, -e engrandeça. Repôr ao idioma quanto ja teve será louvavel consciencia, -porem não bastará, se apoz isso se lhe não dér com mão liberal, mas -prudente, quanta substancia nova elle possa receber e commutar, para que -na apostada carreira que os entendimentos das nações agora levão para o -infinito desconhecido, o da nossa, por fraco e sem azas, se não deixe -ficar atraz. - -Uma reflexão quero eu aqui fazer, mais que a taxem de digressão; não será -nova para os que escrevem, mas servirá para que os que lem se abstenhão -mais de acoimar pobrezas em nossos poetas. Ja das palavras se averiguou -serem ellas fio e arrimo de que a mente se vale para melhor ir seguindo -por suas ideas sem queda nem tropêço. Pois se as palavras, que não passão -de reflexos e retratos do pensamento, tem virtude para o fecundar, -menos ainda se duvidará precizar a imaginação poetica de uma abundante -linguagem, para se manifestar por obras, assim como o pintor de finas e -variadas tintas para seus paineis, e o musico de instrumento pronto e -copiosamente registado, para enlevar os animos. O poeta francez, porque -tem uma lingua que á fôrça de bem cultivada por muitos e differentes -engenhos, se accommoda préstes e serviçal aos pensamentos mais subtis -e novos, e aos affétos mais delicados e passageiros, d’ella se ajuda -para inventar, e com ella exprime completamente o que inventou. Não -assim nós, que em pertendendo alçar-nos por cima das communs ideas do -nosso paiz, nos achâmos, sem o cuidar, pensando em francez; e se isso, -que bem ou mal nos apparece na alma, tentâmos passa-lo para o papel, -suâmos, bramimos, aqui nos faltão de todo as expressões, ali só tibias -nos acodem, outras mal determinadas e mal entendidas, outras estiradas -em perífrases. Dai-me o proprio Lamartine nascido nas margens do Tejo, -e pedi-lhe uma só _Meditação_, uma só epocha de _Jocelyn_; grande será -o acêrto se as conceber, quasi impossivel que as escreva. Ponderou -Condillac mui avizadamente, que a razão porque apparecião em certo povo -e tempo maior numero de varões abalisados em letras, era o ponto de -crescimento e sufficiencia abastada a que chegou n’esse tempo a lingua -d’esse povo. Melhor será que o deixemos por sua boca doutrinar-nos, que -bom missionario he em couzas d’estas. - -“Acontece com as linguas (diz elle) o mesmo que com os algarismos dos -geómetras: quanto mais perfeitas são, mais vistas novas nos offerecem, e -mais nos dilatão o espirito. Os bons acertos de Newton de antemão havião -sido preparados pela escolha dos sinaes que antes d’elle se fizera, e -pelos methodos de calculo ja imaginados. Se mais cedo nascesse, podéra -ter sido homem grande para o seu seculo, mas não fôra agora maravilha -d’este nosso. Outro tanto vai pelos demais generos. A boa fortuna dos -engenhos mais bem aparelhados inteiramente depende dos progressos da -lingua no seculo em que vivem, porque os vocabulos correspondem aos -algarismos dos geómetras, e o modo de empregar os vocabulos corresponde -aos methodos do calculo. Por tanto, em uma lingua aonde ha penuria de -palavras ou de construções bem azadas, ha os mesmos obstaculos em que a -geometria topava antes do invento da algebra. O idioma francez foi por -largo discurso de tempo tão pouco ageitado aos progressos do espirito, -que se imaginarmos Corneille em cada um dos seculos ascendentes da -monarchia franceza, quanto mais ao remontar nos fôrmos afastando do em -que viveo, tanto mais, e gradualmente, irá mingoando o seu engenho, e -chegar-se-hia por ultimo a um Corneille que nenhuma prova poderia dar de -talento.” - -Voltemos a Filinto. Não decedirei se houve ou não bom fundamento -para o allegarem por autor e texto, como o fizerão na quarta edição -do Diccionario de Moraes: nem ouzaria eu pôr mão no fogo pela -infallibilidade de sua pureza, porque (mas a medo e sommisso vai o dito, -que por dito e não sentença merece vénia) aqui ou acolá se me figura -enxergar por suas paginas algumas nódoas d’aquella mesma côr a que nunca -perdoou odio. Mas se as ha, são manchas, no passo que o geral de sua -escritura he recheado de muitas preciosidades para quem poz peito a bem -escrever esta lingua. Por toda a parte lhe estão pullullando lusitanismos -em vocabulos, frases, collocação, inversões, geito e feição de períodos, -que se houver gôsto em quem lê para os joeirar e limpar de alguma mistura -chôcha ou sédiça, farão muito bom sustento para poetas e prozadores. Se -houver gôsto, puz eu, e muito que o puz de indústria, porque, os que -d’elle carecerem, lição tal só os fará mais ridiculos; os que ainda o não -houverem formado, e se metterem por esses onze e mais volumes sem bom e -constante Mentor, não sei se em linguagem e em poesia viráõ nunca a dar -fruto que bem saiba e se abençoe. - -Em summa, Francisco Manoel do Nascimento foi um martyr da religião de -nossa lingua: para lhe lançar mais gloria cerceou a sua propria: com o -excessivo das joias com que a arreou, deixou-a affétada, e menos matrona -grave do que bailarina de corda; sim habilidosa e leve, mas dengosa -e presumida: mostrou-lhe o como e por onde devia subir á perfeição, -a que por outros, porem tarde e mui tarde, será levada: foi, porque -tudo diga, um destemperado despertador, que nos poz a pé para o dia -das letras.—Quero repetir, fez serviço talvez maior que nenhum dos -classicos, mas he de todos o menos para seguir ás cegas. Bem haja elle -que tocou a alvorada para nos acordar, mas mal haja quem quizer ficar com -trombeta tão rouca e dissonante a tocar alvoradas todo o dia: ja estamos -acordados, cabe agora aproveitar o tempo, como gente de juizo. - -Se da lingua passâmos em Filinto á _harmonia métrica_, damos maior salto -que o de Léucade, e como cumprindo igual oraculo, ou nos afogamos em -um mar bravo, ou de lá surdimos curados de todo o amor a tal poeta. -Em nenhuma das quatro ou cinco partes do globo, e em nenhuma era se -metrificou jamais lão dura, desleixada e insolentemente. Se alguma vez -se esquece com dois ou trez versos bons, logo se vinga com duas ou trez -duzias, que se os reduzissem a linhas iguaes, não serião mais nem menos -que desaceiada proza. E ainda he para agradecer quando só lhe falta -melodia, porque algumas vezes nos dispara versos, em que as pauzas vem -todas desconjuntadas, e outros, em que sobejão síllabas, por mais que a -maço as procuremos entalar e embeber umas por outras.—A sua rima he por -via de regra desnatural a pobre: os seus sonetos e toda sua lírica de -consoantes, enxabimentos ou arripíos. Bem se alcança como erão arrufos -de maltratado, as injurias que em muitas partes vomitou contra a rima, e -não como as de Boileau, vozes só de um juizo rigoroso, que de dentro das -letras as media. Nos defeitos de versificador fez de idade para idade -successivos enotados progressos, sendo assim que ou por desleixo, ou por -certa petulancia, em que engenhos grandes muitas vezes cáem, tomando -por timbre o escarnecer do Publico, quanto mais hia usando do officio, -tanto mais desprimoroso se foi mostrando, até ganhar tão duro callo na -consciencia, que nem a deliciosa harmonia dos versos de Racine lhe podia -ja ao cabo inspirar, um só verso toleravel de tradução. - -Do muito que só deixo apontado se deduz a idea que para mim tenho do seu -_gôsto_; melhor será do que só deixa-la deduzir, declara-la. Parece-me -pois ser o seu gôsto pouco e máo; e n’isto estribo o parecer: 1.º que -para suas Obras originaes costumava de escolher fracos sujeitos—2.º -que as pejava de taes invenções que ja em tempo de Romanos o não -erão—3.º que por vida se repete, e por costume redunda—4.º que na ordem -desordenadissima em que seus escritos pôz, anda o peor tão travado com -o melhor, e as puerilidades vergonhosas com as Odes que lhe lucrárão -nome, que sem que o lustre do bom disfarce o máo, o esqualor e nojo -d’este deturpa e estraga aquelle—5.º que se para traduzir elegeo ás vezes -bons originaes, taes como o Oberon e os Martyres, outras os escolheo -desenganadamente incapazes, taes como a triste historia em verso da -Guerra Púnica: outras vezes, escolhendo originaes optimos, nem antevio, -nem pelo discurso do trabalho conheceo, nem sequer sentio depois de -findo (porque talvez se o sentisse nos houvéra poupado a ler a versão), -que havia n’essas Obras exclusivos e essencialidades, quer da lingua em -que estavão feitas, quer do engenho que as fizera; haja vista ás tão -graciosas e admiraveis fabulas de Lafontaine, que em Filinto parecem -tanto as mesmas, como a estampa de Bertoldo se podéra julgar retrato do -Apollo de Belveder. etc. etc. etc. etc. - -Taes são hoje para mim Filinto e Bocage: mui outros dos que ja me -parecêrão, e talvez dos que me hão de parecer quando novos livros, -novas couzas, e o rodear dos annos me houverem feito sou ordinario e -incontrastavel officio. N’aquellas eras pois, que ja eras antigas se me -representão aquelles meus tempos, caía todo com o meu Gessner em braços, -para a parte de Bocage, mancebo e lustrozo; e se me figurava que se -lograsse trava-los, fundi-los em um, faria obra de se me agradecer. Os -partidarios de Filinto, que não sei porque, trazião guerra declarada com -Bocage, vierão saindo de seus montes escarpados, empeçados e tenebrosos, -para dar váias e tirar remêssos de epigrammas ao nosso bando: cerrámo-nos -com a bandeira, démos sobre elles com iguaes armas, foi batalha campal, -rôta e sem misericordia: não houve mórtos nem cativos, poucos transfugas, -feridos muitos. Recolhidos nas trincheiras, cantámos uns e outros, -como he costume, o _Te deum_ da vitoria; dobrámos a altura aos vallos, -e profundez aos fossos que nos estremavão; jurámos não acceitar nunca -pazes, quanto menos commette-las, nem consentir em alguma couza que ás -dos inimigos se parecesse. Eu que fôra dos mal feridos e ainda palpava -as costuras, como havia de faltar a nenhum ponto da conjuração? Muitos -d’elles merecerião tratados, mas porque não fazem para o fim d’esta Nota, -venho aos esdruxolos, e só libarei a materia. - -Da natureza, como quer que seja, nos vem sempre o gôsto; mas sendo que -a moda, que muitas vezes se gera de um acaso, introduz o uso, e este -chega a mudar ou alterar a natureza, vem a ser o gôsto em muitos casos -enleada materia e muito esquiva para questão, abonando-se talvez por ahi -o proverbio, que sobre gôstos prohibe disputar. Dir-me-hão, que nada -tem a natureza com os métros, que só a moda a seu talante os cria e os -acaba: he e não he verdade; mas tambem isso deixaremos de parte, por -pedir digressão larga e mui sobida filosofia. Em breve, parece-me que a -fantasia ou o acaso inventa os métros, a moda os espalha e rege, a nossa -natureza se lhes affaz, mas deve quanto podér afeiçoa-los e conchega-los -comsigo. Das dez, onze ou doze síllabas de que pode constar o nosso verso -heroico, quiz a moda que o numero de onze fosse em Portugal, Hespanha -e Italia o usual e corrente; moda que estribou no ser d’estas linguas, -em que a quantia de vozes graves excede á das agudas e dactílicas. -Costumou-se o ouvido com a igualdade da queda, criou uma certa natureza, -e todas as vezes que inopinadamente o obrigão a outra queda maior ou -menor, como que se espanta e sobresalta: porei exemplo nos que sobem ou -descem ás escuras e ja pelo tino uma escada; se lhes falta no subir um -degráo com que ainda contavão, o pé que no ar pôz firmeza cáe em falso, -e comsigo leva todo o corpo estremecido; se lhes sobeja um no descer, o -pé que ja se dava por assente, não desce mas atropella e traspoem. Por -tanto, regra geral, o verso grave, que he o da moda e tambem o da nossa -natureza, he o de que nos deveremos servir: como porem entre as couzas -sujeitas á poesia, se nos deparem algumas, cuja indole póde ser esse -mesmo estremeçáõ, ou atropellamento, razão será que em taes casos bem -averiguados e por via de excéção, acudamos á idea com o verso que melhor -lhe condiz: os exemplos são faceis de colher nos autores, não gastaremos -com elles papel. Ora para se consentir n’esta excéção, não deixa de haver -outro motivo de algum momento, e verdadeiramente he elle o mesmo em que -a regra geral se fundou; porque as estranhezas, que por desagradaveis -persuadírão á regra, por uteis nos conformão com a excéção, sendo que -tem virtude para nos espertarem, quando o embalar da monotonia nos vai -adormecendo. Não por outra causa, vierão os melhores metrificadores -latinos em variar, ainda que rarissima vez, os seus hexámetros perfeitos -com o espondaico ou com um monosíllabo final: ambos nos abalão; os -primeiros em certo modo como os esdruxolos, os segundos como os agudos; -e abalando-nos a propozito, por exemplo para sentirmos a queda do animal -no famoso _procumbit humi bos_, deixão-nos afiados para proseguir com -attenção, e melhor tomar o gôsto ao caminho, que outra vez continúa lizo -e macio, passado o tropêço. - -Assentámos o princípio, vejamos se o uso lhe tem sido conforme. A Italia, -attenta a prontidão, e musica de sua lingua, devêra ser d’estes trez -povos do sul o mais aprimorado em toda a qualidade de metrificação, e -todavia he o contrario no hendecasíllabo sôlto, podendo dizer por si o -que o seu Ovidio poz na boca de Narciso, que a sua riqueza a fez pobre: -os seus poetas, ainda os modernissimos, sôbre não curarem dos sons -que recheão o verso, e quantas vezes nem das pauzas, sôbre estirarem -desmesuradamente os seus períodos, consentindo que os versos se travem e -encadêem de contínuo, misturão sem nenhum motivo de effeito, os versos -agudos e esdrúxolos com os graves, segundo o acaso lhos vai deparando. -He o mesmo que succede a quem possue terra de sobejo fertil e facil: -ella que supra por si ás primeiras precizões; trabalhe-se o necessario -para que não falte, o resto, que bastaria para a fazer paraizo, dê-se á -priguiça. Os francezes, que tão menos poetica lingua tinhão, obrigados -por essa mesma pobreza a cultiva-la, esmerados e incançaveis, ¡quanto a -não levão ja por arte, adeante do que por natureza podéra ser a italiana! -são n’uma parte os paúes de Hollanda a produzir; na outra, terras pingues -e dobradas de Otaiti a regalar com pão e frutos espontaneos aos semi-nus -e ociosos naturaes. D’este versejar de italianos, me dizia uma vez José -Agostinho de Macedo, que a maior parte de taes poesias lhe dava a lembrar -as récuas de mulos de almocreve, que enfiados e prezos uns a outros, ao -som dos chocalhos enfadosos, la se vão, ora tropeçando ora erguendo-se, -continuando o caminho, e sempre chegão com a carga onde tem de ir. -Quando assim fallo, quero que se entenda que me não refiro a todos sem -excéção, mas só ao geral d’aquelles poetas. Bem pode ser que os haja -agora primorosissimos que eu não conheça, e dos conheçidos alguns ha com -quem não serei tão severo taes como Monti na tradução da Illiada, Fóscolo -se me não engana a lembrança que d’elle me ficou, Alexandre Manzoni, e -Felice Romani. - -Em Portugal, pois que a lingua era tambem préstes e serviçal, e os que -n’ella poeta vão se comprazião de se irem sempre na pista dos Toscanos, -sente-se nos poetas antigos o mesmo desmazelo. La andão com os versos -graves os esdruxolos inuteis, ainda que não frequentes e os agudos aos -cardumes. Camões, que de todos elles foi por ventura o de mais delicado -ouvido, rimando hendecasíllabos, até na epopea não duvidou em os pôr, -quando acaso lhe apparecião, e sem nenhuma intenção ou fito poetico; o -que a Vasco Mauzinho de Quebedo seu inferior em poesia, mas superior, se -he lícito dizê-lo, em metrificar, por tal arte desagradou, que em todo -o poema de Affonso Africano nunca interpolou com elles versos graves, e -d’isso faz alarde em seu prologo. - -N’esta incerteza correo a couza até os nossos tempos, em que dois -homens de fôrça, dois athletas da poesia, representando cada um uma das -encontradas opiniões, devião ter perante os olhos publicos um calado -e rijo certame, para decisão ultima da contenda. Foi Bocage o mancebo, -cavalleiro da metrificação liza e uniforme; o velho Filinto da mista -e libérrima. Todo o empenho de Bocage era a harmonia constante, todos -os seus versos forão graves, e de compasso batido. Nascimento queria -por cima de todas as outras couzas dar todas suas ideas, boas ou más, -graudas ou miudas, mui bem pintadas e repintadas, que ainda quando -insignificantes, não deixassem de ferir na vista. Servia Bocage ao metro -como a senhor: Nascimento, como de escravo se servia d’elle, trazia-o -rôto, contrafeito, demudado, e por todas as ilhargas estalando com o -pezo da carga. Se he lícito comparar estes dois poetas com outros dois -romanos, de muito mais subidos quilates, digo, que são na metrificação -hendecasíllaba, o que nos dístichos elegíacos eróticos forão Ovidio e -Propercio. O dísticho de Ovidio he sempre torneado por medida, nada -lhe falta nem sóbra, reluz de polido, e algumas vezes pouco péza: nos -de Propercio ha sempre mais succo de couzas (bastante espremeo d’elles -Ovidio para seu remedio); mas o hexámetro sáe amiude desalinhado, o -pentámetro dissonante da sua usual toada, acabando não em dissíllabo, -como para bem o requer o geito de tal metro, mas em trissílabos e -quadrissíllabos á moda de Catullo; partem-se menos apuradamente os -hemistíchios, embebe-se e embrulha-se em demazia o pentámetro no -hexámetro, e, o que mais rijo he, o hexámetro de um dísticho no -pentámetro do anterior; o que não tira ser Propercio, em meu conceito, um -poeta de mui alta valia (e não sei se diga que o unico amante apaixonado -dos antigos, com licença dos grammaticos e dos priguiçosos que o engeitão -por escuro), e Ovidio um dos mais bem assombrados engenhos do mundo. - -Do que levo ponderado, se he exáto como cuido que he, segue-se que nem -Bocage, nem Filinto erão para modellos absolutos, e que tão desacordado -andava quem não consentia em verso que grave não fosse, como quem -esdruxolava por vida e fóra d’aquelles casos em que o esdruxolar traz -em si mesmo a desculpa e o louvor. Entendi que ja por acinte o fazião, -e por acinte contra acinte escrevi essa Nota da primeira edição, que -atraz deixo trasladada. Fôra o voto pueril, conheci-o assim como o sangue -alvoraçado da batalha me esfriou, mas tão sobre maneira se oppunha a -vergonha a uma retratação, que permaneci até hoje sem um esdruxolo em -tantos versos soltos como tenho impresso, e tantos mais que ainda não -saírão á luz. Quantas vezes, compondo a _Noite do Castello_ e o _Bardo_, -não senti tentações e ímpetos de romper e acabar por uma vez com uma -prizão imaginária, que a olhos vistos me estava tolhendo mui bons -effeitos poeticos; e comtudo confrangia-me, esquivava-me, escrupuleava, -e não podia acabar comigo que me resolvesse, podendo dizer como aquelle -rei de França _La se vai tudo, menos a honra_. Os passos d’esses poemas -em que tal me acontecia, por si se estão indo agora denunciando, póstos -os dactílicos imitativos nos lugares, que abaixo do final se podem -reputar pelos mais autorizados e distintos do verso, que são o ponto do -hemistíchio ou pauza do meio verso, e o comêço do seguinte, quando fica -bem cortado e estremado. — D’este livro ao deante me dou por desobrigado -do voto; e eis aqui, me parece, o como lã para os outros me hei de haver: -nunca porer só por pôr ou por me forrar trabalho, verso dactílico; nunca -o engeitarei quando a fôrça, graça ou qualquer outra vantagem da poesia -o requererem. Bem quizera dizer outro tanto dos agudos, mas ahi ainda -o meu antojo he forte; sei que a razão não está menos por elles, e não -ouzo segui-la: veremos o que o tempo, grande causador de mudanças, poderá -trazer comsigo. - - - - -NOTA - -_de Augusto Frederico de Castilho._ - -_Pag. 118. verso 6._ - - Vejamos, meu Irmão, a tua escolha. &c. - - -Quando um autor, para publicar os seus pensamentos se entrega á nossa boa -fé o lealdade, os nossos olhos e mãos para logo mudão de dono, ficão -seus; tem de vigiar e selar o depósito confiado, para que nada se lhe -accrescente nem cercêe: qualquer palavra, qualquer vírgula de mais ou de -menos, por muito que as pareção estar pedindo este ou aquelle passo do -texto, são mais que violação de testamento, porque ideas são propriedade -mais real e sagrada do que bens da fortuna. Assim he, mas cumpre que não -seja assim na presente occasião: faltarei ao direito do autor e á minha -obrigação de secretario, para cumprir com outra mais santa lei, a do amor -fraterno, alliviando aqui, e em mais de uma maneira, o meu coração, ás -escondidas do mesmo autor, para quem serão grande novidade estas linhas, -quando de alguem (que não de mim) as chegar a ouvir ler. - -Direi em primeiro lugar, que na Festa da Primavera, cujas honras forão -na maior parte a meu Irmão, os versos a que esta Nota vai lançada -tanto abalo fizerão em mim, que pela primeira vez os lia, que eu me vi -necessitado a interrompê-los coberto de lagrimas e afogado em soluços, -para me ir lançar no seio d’elle, protestando-lhe assim, com um silencio -que eu não tive palavras para romper, que os seus dezejos de vivermos -para sempre unidos, ja em mim erão necessidade, e que o pensamento de -separação se me representava tão _atroz_ e _impossivel_ como a elle. -Eu o vi profundamente commovido entre os meus braços, e foi esta a -primeira vez em que nos-fizemos uma declaração tão expressa e amor, -nós que semelhantes aos _Dois amigos_ de Gessner, sempre tinhamos -vivido e contávamos com viver um para o outro, sem ainda uma só vez nos -havermos dado o nome de amigos. O meu voto, ufano-me de o dizer, tem -sido santamente cumprido: ja la vão quinze annos, e eis-me aqui ao lado -d’elle, eis-me tão inseparavel como tinha sido desde menino até áquella -hora! que digo? ainda mais, porque para reparar a perda horrivel que elle -acaba de experimentar; eu carecia de ter agora em mim, em vez de um, dois -ou mais corações para lhe offerecer. - -Agora cumpre-me preencher o principal fim d’esta Nota, transcrevendo -para aqui alguns versos parallelos a estes, de um meu Poemetto, que -com o titulo de _Primavera_ recitei n’aquelle mesmo Dia. Os elogios -que o leitor vai achar, não mos inspirou só a amizade fraternal, mas a -convicção em que ainda hoje estou, e hoje muito mais, do subido mérito do -elogiado. Aqui era o lugar de desmentir um grande numero, talvez a maior -parte das sentenças, que sôbre a valia d’estes poemas a sua modestia (em -tudo excessiva) lhe dictou no Ante-Prologo, e principalmente no Prologo -d’este Livro: mas não cuido que a minha licença possa chegar tanto -adeante: calar-me-hei, bastando-me agora ter desabafado, por algum modo, -nos versos que se vão ler. - - E tu, meu caro Irmão, tu me arrabatas, - Quando magico attráes aos sons da lira, - As Musas da Danubio á foz do Tejo. - Oh dize-me onde has visto a Natureza, - Virgem tão bella para ti sorrindo? - La na idade infantil, quando teus olhos - Inda na luz formosos se espraiavão, - ¿Veio ella mesma perfumar-te o berço, - Tingir-te em rósea côr dos ceos o espaço, - Encher-te o ar de ignotas harmonias, - De affétos orvalhar-te o brando seio, - E com magas visões doirar teus sonhos? - Sim veio; e quaes na mente que as afaga - As maternas feições impressas ficão, - Taes seu olhar, e voz, e graça, e tudo - Te vivem, te reluzem pela mente, - Doirão-te a escuridão, compõem-te um mundo, - Em silencio te admiro ha longo tempo; - E até (que fui tão louco) ouzei co’as tuas - Minhas fôrças medir, tentar-te a gloria. - Não somos nós irmãos, me disse eu mesmo? - Não corremos iguaes no longo estudo? - Pois ha de a lira d’elle ousar prodigios, - Sem que, para a imitar, desperte a minha? - Mas que vale o dezejo, o sangue, o estudo! - Tu sabes remontar-te aos ceos n’um vôo: - Eu tento, eu me debato, ergo-me, cáio, - No inglorio chão cançado me adormeço: - Será pois d’elle só a eternidade. - Só d’elle? a sua gloria aos dois nos basta; - Qual nossos corações amor vincula, - Tal has de unir, ó fama, os nomes d’ambos. - Com todo o eterno sôpro enchendo a tuba, - “Este o maior, dirás dos lusos vates!” - Dirás depois mais baixo: “Este com os olhos - “Leo e estudou do Irmão, do terno amigo.” - - - - -OS CANTOS DE ABRIL IDILLIO. - - -_O mais deslavado e insôsso Poemetto na primeira edição, erão Os -Cantos de Abril. Só a invenção fôra boa; na execução e estilo revia um -tão contínuo desprimor, que me foi necessario demolir e reedificar. -Por tanto, com o mesmo titulo he obra diversa, muito melhor, mas não -perfeita, porque ja para a emenda da emenda não chegou a paciencia._ - - - - -DEDICATORIA A MEU PAI. - - -_He a educação o maior prezente que de homem se pode haver. Vós, meu Pai, -fizestes mais do que educar-me: superior a uma preoccupação tão geral -quão perniciosa, vistes nascer o meu engenho poetico e não o destruistes, -viste-lo crescer e não o contrastastes, senão que antes lhe déstes -amparo, bafo e desvelos. Eis aqui por tanto um reconhecimento da minha -gratidão._ - -_Oxalá possão estes versos, que me afouto a vos offerecer, agradar-vos -tanto, como os Cantos de Abril, no silencio da noite e debaixo do -parreiral da cabana, agradárão ao bom Menalca._ - - - - -ADVERTENCIA. - - -Notar-se-ha que por todos os Poemettos d’este livro se dão sempre versos -á infancia, e n’este Idillio tem ella não uma parte, nem a principal, -senão o todo: se o porque, pode importar a alguem, agora lho direi -brevemente. - -Parece-me um Menino, de todas as couzas graciosas que Deos fez u -graciosissima. Aquelle ajuntamento e consonancia de tantos dotes; -formosura, d’elle proprio nem buscada nem sabida; graças que lhe ninguem -ensinou; singeleza e candura; alegria, fraqueza, innocencia; e muito -afféto, e muito mostra-lo; e total descuido do porvir; e não o temer -nada; e a poesia particular do seu dizer; e a sua grammaticazinha natural -que a nó nos faz rir, couzas são estas que apoz si me levão esquecido -e encantado. No trato d’estes botões da humanidade, que vem abrindo, -parece-me, e ja pareceo a muitos, poderem-se lucrar boas vantagens: -ja não fallo em seu bondoso contentamento que talvez se pega, e na -felicidade de recobrarmos horas de meninice, imitando-os, sem saber, a -elles, como elles nos imitão a nós; fallo porem no muito que o nosso -espirito se acostuma então a estremar o bom do máo, e a joeirar cá -dentro o puro do impuro, para nem por sonhos profanar o que das mãos da -natureza saío e se conserva santo. E demais, um Menino não sabe nada, -quer saber tudo, e por tudo nos pergunta: ¿não he isso estar-nos pondo -a caminho de muitos descobrimentos de verdades e relações das couzas, -que nunca aliás por nossa preguiça ou descuido fariamos?—Muitas pessoas -vejo, e faz-me pena, desamarem as creanças, despreza-las, havê-las por -menos de gente, tolher-lhes as fallas, as obras de sua idade, e Deos sabe -se tambem o entendimento: eu por mim, quero-lhes muito, porque entendo -que excedem em valia aos seus desprezadores, e sinto que a mim me levão -grande vantagem em bondade e ventura. De um ajuntamento esplendido mil -vezes tenho fugido para elles: no campo, melhor que em nenhuma outra -parte, saboreio esta doçura a meu contento. Todos os pequenos das aldeas -em que tenho estado me conhecem, e sei que são meus amigos: apinhão-se-me -ao redor em me vendo; invento jogos, historias ou conversas para elles; -divirto-os, divertem-me; uns com outros, e uns de outros aprendemos. - -Erão horas bem doiradas essas de minha vida, como as ja tivéra João -Jaques, como as terão tido muitos, e como as poderáõ ter quantos as -dezejarem. - - _Lisboa: 7 de Janeiro de 1837._ - - - - -OS CANTOS DE ABRIL IDILLIO. - - - Por um serão de Abril suave e ameno, - Menalca, a bella Dafne, e seus trez filhos, - Estavão-se a folgar ante a cabana. - Por entre as parras do sonoro alpendre - A mansa lua chêa se enlevava, - Espreitando esta rústica familia. - Menalca erà ja velho: os justos Deozes, - Querendo premiar lhe a larga vida - Passada em os amar e amar aos homens, - De Citheréa ao Filho havião dito: - “Filho de Citheréa, entrega Dafne - Por esposa na Menalca, a fim que o velho - Remoce, vendo ao lar a mocidade, - E a virtude que tem o alegre em outrem.” - Amor nem sempre aos Deozes obedece, - Porem amava a Dafne; entrançou logo - A florente cadêa, e vendo-os prezos, - Tanto a si mesmo do que fez se aprouve, - Que ficou sempre entre elles na cabana. - - “Filho de Citheréa, accrescentárão - Depois os Deozes, da-lhe o teu retrato - Em filhos, e uma filha irmã das Graças, - A fim que em seu crepúsculo da tarde. - O velho inda se alegre, e abrace esp’ranças: - Da-lhe prole, o fada-la a nós pertence.” - E Amor lhe déra prole, dois meninos - Seu retrato, e uma filha irmã das Graças. - Ja rosas de abril decimo florecem - No semblante de Silvia; um anno a vence - Titiro; e vence a este um anno Alexis. - - Menalca, em juncos molles estendido, - Tem da esposa no candido regaço - Como em ninho amoroso a branca fronte: - Pelas feições transpira-lhe bondade; - O mistico luar o diviniza. - Dafne o contempla muda, e niveos dedos - De afagar umas cãs sentem vaidade. - Elle a querida mão colhe entre as suas, - Beijada a achêga ao rosto, os fracos olhos - Derrama pelos céos alumiados, - E fitando-os na lua “Olhai, meus filhos, - Olhai, disse elle, como brilha a lua! - Que suavidade e paz não côa ao largo - O astro das noites! como attráe da terra - Nosso espirito humilde a pensamentos - De outro mundo melhor, mansão de Deozes! - Que esp’ranças, de saudades misturadas, - Não traz a pura noite ás almas puras! - Dias que em vão suspiro, amenos dias - Da minha mocidade...! agora jazo - Como arvore das folhas despedida, - Que mais não florirá, porque o machado - Ja lhe abrio marca para se ir ao fogo. - Então era eu cantor chamado ás festas, - E afamado por longe entre os cantores - Na frauta e no rabil, porque os meus cantos - Erão sempre á Virtude e á Natureza. - Por uns serões assim, como acodião - Todos a ouvir-me! As Ninfas era fama - Que descião do bosque, e pelas sarças - Vinhão pôr mais de perto o ouvido á escuta: - E os ventos se detinhão, recostados - Aos duros troncos, sem bolir co’os ramos. - Té dizião que a frauta, em que eu tangia, - O benevolo Pan ma déra em sonhos. - E ora jaz, annos ha, de pó coberta! - Em tôrno ao meu fogão ja não se apinhão - Os pegureiros a aprender-me os cantos, - Meu cabello nevou, nevou minha alma. - Ah! se não fosseis vós, Dafne, meus filhos, - Vivido tenho assaz, pedíra aos Numes - Tornar a ver meus pais n’outras cabanas, - Onde he perpetua a luz, e a eternidade - Uma estação de musicas e flores. - Quando eu la renascer á vossa espera, - Á tua espera ó Dafne, á vossa ó filhos, - Resurgirá comigo a minha frauta; - E com ella enganando aquella ausencia, - Penosa até no Elisio, em versos novos - Louvando os Immortaes, e eterno eu mesmo, - Pedir-lhes-hei comtudo que só tarde - Vos levem para mim; que vos derramem - De virtudes e bens copiosas bençãos - Sempre n’esta cabana, onde hei nascido; - E que no meu sepulchro o passageiro - Diga parando—Ó bom pastor Menales, - Leve te seja a terra, e tu contente - Porque os teus filhos te excedêrão todos.” - - Aqui sentio caír na fronte calva - Uma calada lagrima, e doeo-lhe - Ter nublado o prazer de seus Penates. - Senta-se, alegra o rosto, enchuga os olhos; - E unindo ao seio a esposa “Ouvi meus filhos:” - O cantar diz co’a noite, agrada á lua, - Contenta á vossa mãi. Cantai louvores - D’este suave Abril; nunca em meus versos - Deixei de o celebrar, quando era moço. - Os pastores de outr’ora Abril sagrarão - A Venus, graciosa Mãi de tudo. - Vede-a n’aquella estrella estar sorrindo; - As glorias do seu mez são glorias d’ella. - Alexis, principia, eu te acompanho - Co’a tua mesma frauta; os sons da frauta - Dão como vida ás solidões da noite. - Seja a toada a que inventei (quão lédo!) - No dia que nasceste, e a nossos olhos - Se doirou de alegria esta cabana: - Bem a sabes, começa, e Pan te ajude. - - ALEXIS. - - Eu amo o verde Abril, porque he formoso, - Todo está chêo de arvores vestidas. - - TITIRO. - - Eu amo o alegre Abril, porque he sonoro; - Vem cantado por bandos de avesinhas. - - SILVIA. - - Eu amo o rico Abril porque he cheiroso, - Espalha em cada prado um mar de flores. - - ALEXIS. - - A folhagem traz sombra, as sombras trazem: - Seus folgares da sésta á gente grande, - E a nós para brincar franca licença. - - TITIRO. - - As aves são dos ares alegria; - Chamão na madrugada os preguiçosos, - E divertem na lida aos lavradores. - - SILVIA. - - Flores dão côr á terra, e cheiro ás auras; - Flores são mãis da fruta; os Deozes rindo - As crearão, e rindo acceitão flores. - - ALEXIS. - - O Pan que está na gruta do arvoredo - Não pára senão lá, por mais que o mudem; - Sinal que um bosque e a sombra apraz aos Deozes. - Tudo ali he formoso á maravilha! - Por baixo a fresquidão, por cima o verde; - A terra de reflexos variada; - O této sonoroso e movediço; - Mais alto, o ceo azul, dado ás amostras. - E que direis do rio entre arvoredos? - ¿Como se pintão na agua aquellas folhas, - E o vento que as revolve, e as pombas alvas - Pelos ramos, e um sol desfeito em muitos? - Parece que no fundo do remanso - Tem Pan outro arvoredo, igual em tudo. - Quando hoje eu lá passava, a Pan dei graças, - Porque achei que um tal sítio encantaria - Ó meu Pai, teus passeios solitarios. - - TITIRO. - - Fonte como a das Náiades nenhuma: - Cantão-lhe em volta passaros sem conto; - Sinal que o bando alado apraz ás Ninfas. - Por ali me regala ir espreitando - Tantos ninhos por entre tantas folhas. - Admiro a perfeição d’aquelles berços, - E o tino com que os pobres de uns brutinhos - Os souberão livrar a soes e a chuvas: - Aqui uma avezinha inda sem pennas, - Outra a romper da casca; alem uns ovos - Branquejão d’entre o musgo, e ja palpitão; - Se os tóco, sinto dentro o passarinho, - E fujo com temor que a mãi o engeite. - ¡Ver as mãis vir do pasto alvoraçadas, - Darem o almoço aos filhos que pipilão, - E co’as azas e peito agazalha-los! - E ver logo os maridos tão contentes - A gorgear-lhe á roda! o porque o fazem - Mal sabeis vós; cuidais que he diverti-las! - Oh que não: he ja dar lições e exemplos - De canto aos filhos seus: não de outra sorte - O nosso pai nos ensinou seus versos. - - SILVIA. - - C’roas frescas de rosas cada dia - De Citheréa ás portas amanhecem; - Sinal que a Citheréa aprazem flores. - Todo o anno era Abril se eu fôra a Deoza! - Nunca no meu altar e ás minhas portas - Faltarião montões de flores frescas. - Todas só para ti as cobiçava, - Ó minha mãi: com ellas te enfeitára - Cada hora do dia; cada noite - As renovára ao leito onde tu dormes; - Não porias teus pés senão em flores. - Se o passageiro ás vezes me pergunta, - Quando me encontra á borda do caminho, - “Quem he a tua mãi?” eu lhe respondo - Chêa de gloria “A minha mãi he Dafne!” - Hontem de tarde o graciosa Amintas, - O pobre guardador das duas cabras, - Quando o meu pão lhe dei pedio-me um beijo, - Chamou-me bella, e disse que o meu rosto - Era como o de Dafne, ou como as rosas. - Sendo assim, bella sou, que outra pastora - Igual a minha mãi não ha na aldea, - Nem flor em todo o mundo irmã da rosa. - - ALEXIS. - - O vizinho Milão, que hoje he tão rico, - Não tinha mais que uma arvore, e de terra - Só quanto aquella sombra lhe cobria. - “Corta-a Milão, dizião-lhe os pastores, - Alegras teu campinho, e terás lenha - Para aquecer a choça um meio inverno”— - —“Eu? respondia o triste, eu pôr machado - Na boa da minha arvore? primeiro - Me falte lume alheio o inverno todo, - Que eu mate a que a meu pai ja dava séstas; - A que de meu avô me foi mandada, - Que a não poz para si; e a que nos braços - Me embalou tanta vez sendo menino. - Os Deozes a existencia lhe dilatem, - Que assim lhe quero eu muito, e o meu campinho - Produza o que podér, que eu sou contente.”— - Sorrião-se os pastores; o carvalho - Cada vez mais as sombras estendia, - E Milão de anno em anno hia a mais pobre. - Lembrou-lhe um dia, em bem, que uma videira - Plantada a par com o tronco, o enfeitaria, - E os cachos pendurados pela cópa - Lhe darião tambem sua vindima: - E eis que ao abrir a cova, acha um thesouro! - Desde então ficou rico, e diz-me sempre, - Que os Deozes immortaes lhe hão dado em prémio - Por amar suas arvores. He elle - Quem mas ensina a amar, são d’elle os versos, - Com que ao bosque de Pan cantei louvores. - - TITIRO - - Deozes, tocai o peito de Mirtilo - Porque não sáia máu quando fôr grande. - Hoje, entrando na mata, o vi la dentro - Andar armando aos passaros. Que pena, - Disse em mim; não ser passaro um momento; - Não poder ir correndo o bosque aos pios, - E dizendo em cada arvore “Cautella - Meus irmãozinhos do ar; vejo inimigo; - Não saiaes; o inimigo anda no bosque...!” - Paciencia, assim mesmo hei de acudir-lhes. - Vou-me por entre as moutas rastejando - Até ao ouco e immenso castanheiro, - Que abre em seu tronco uma portada de heras, - E se nomêa a casa de Silvano. - Trepo, e dentro me escondo: os meus vizinhos - Lá por cima na cópa papeavão, - Cuido que adivinhando o que eu faria. - Encósto a boca á fresta carcomida, - Que está fronteira ao portico da entrada, - E clamo em rouca voz “Pára Mirtilo.” - Parou, ergueo-se, e poz-se a olhar em roda; - Vendo tudo em socego ás redes torna. - Com voz mais estrondosa e mais horrenda, - Torno-lhe eu a bradar “Mirtilo pára.” - Não esperou terceira: arroja tudo, - Salta, vôa; oh que riso! uns echos fêos - Lhe hião gritando apoz “Mirtilo pára.” - Somio-se; á terra pulo, espreito o mato, - Acho as redes, os presos sólto, os mortos - Levo-os onde ôlho de ave os não descubra: - Encho-as de pedras, na torrente as lanço, - E corro a procura-lo—“Oh tu não sabes, - Lhe digo, de que morte escapo agora! - Não te engano, era um Deos, vi-o eu, rangia - Os dentes, bracejava uma alta fouce, - Vinha a saír das sombras do arvoredo; - Vio-me e gritou me “Pára” eu páro e chóro. - —“Es tu que andas armando ás minhas aves? - Pois eu vou dar-te o ensino; as tuas redes - Ja te lá vão por esse rio abaixo, - E agora has de ir tu morto á caça d’ellas.”— - E então vem para mim, co’a fouce aos lanços - Cortando pelo ar—“Bom Deos, perdoa, - Lhe grito a soluçar co’as mãos erguidas, - Eu sou Titiro, o filho de Menalca, - As tuas aves amo, e temo os Deozes: - Eu redes, eu caçar!”—“Estou perdido! - Disseste que eu ... Mirtilo me interrompe.” - —“Não, Mirtilo, socega, eu não lho disse, - Nem sabia que tu ... fallemos baixo - Que nos não ouça o Deos. Olha, este p’rigo - Passou, mas outra vez não te aventures, - Que eu bem sei como o vi, não te perdoa. - Deixa ás pobres das aves innocentes - Divertir-te e cantar; nada mais querem; - Não tens razão, não teus de as perseguires. - Quanto ás redes, eu quero consolar-te: - Ouve Mirtilo, acceita este cestinho - De cana entretecida em juncos verdes, - E este meu cajadinho em boa altura - Liso, airoso, e sem nós.”—Assim dizendo, - Enfiei-lhe no braço o meu cestinho - De cana entretecida em verdes juncos, - E entreguei-lhe o cajado. Então Mirtilo - Me abraçou, e saltando de contente, - Jurou-me nunca mais armar ás aves. - - SILVIA. - - Glicera por vaidosa he que ama as flôres: - Apanha-as para si não para os Deozes, - Não lhas merece a Mãi e alcança-as Mopso. - Quando em nosso jardim vejo Glicera, - Ja me eu ponho a tremer: corta as melhores, - He seu costume; enfado-me, sorri-se; - Chóro, ri-se; e enfeixando-as, me repete: - “Que te servem por ora estas floritas? - Deixa passar mais cinco primaveras, - E então sim, nem mais uma hei de furtar-te; - Pois sei te hão de servir quaes me hoje servem.” - Coitado de quem he como eu menina, - Que se manda esperar por primaveras! - Que podia eu fazer? queixei-me ás Ninfas. - Hontem, ja pôsto o sol, quando erão horas - De logo vir Glicera, a presumida, - Que furta e vai cantando; ajoelhei-me - Co’as mãos póstas por entre as minhas flôres. - E disse: “Como as arvores tem ninfas, - Que lhes morão la dentro e as aviventão, - Ha ninfazinhas a velar nas flores. - Ninfazinhas das flores, escutai-me: - Se a rega, com que as folhas aquecidas - Vos refresquei ha pouco, vos foi grata, - Olhai por vós, fazei com que Glicera, - Como eu vos vi e ouvi, vos veja e ouça; - Apparecei-lhe como a mim, por sonhos, - Vestidas de mil côres, perfumadas, - Pequenas, mui mimosas, e só outras - Em não mostrar-lhe a ella um ar festivo. - Dizei-lhe como os Deozes vos crearão - Para amores de zefiros, recreio - De borboletas e olhos, e formosas - Copeiras do formoso mel doirado: - Dizei-lhe que tão bella e curta vida - Não se deve encurtar, que as deshumanas - Tem máo fim, que apezar de passageiras, - Ninfas sois, e o Destino ha de vingar-vos: - Que se tornar sacrílega a colher-vos, - Vossos fragrantes ultimos suspiros - Seráõ de queixa aos ceos, e antes de tempo - As rosas no seu rôsto hão de murchar-se.” - Como eu isto dizia, entrou Glicera: - Murchas trazia as rosas de seu rôsto, - Não rio, nem colheo nada, e suspiráva. - Penada de a assim ver, beijei-a, e disse: - “Se alguma d’estas flores te contenta, - Eu mesma a vou cortar.”—“Não (me responde) - Ja não quero mais flores, Mopso ingrato - As que ultimas lhe dei deo-as a outrem: - Como as flores me engeita hei de engeita-lo.” - Ao que eu logo acudi—“Vês tu, Glicera, - Fallei verdade ou não? nascem as flores - Só para as nossas mãis, e para os Deozes, - Da-lhas tu, e verás se hão de engeitar-tas.” - - MENALCA. - - Basta meus filhos, basta; não ha sombras - Tão gratas no verão, cheiro de flores - Tão suave, ou tão ledo canto de aves, - Que me recrêem como os vossos versos. - Vinde, vinde, abracemo-nos, ó filhos: - Dei-vos eu a doutrina; engenho os Fados; - Mas os Deozes virtude: alcatifais-me - De bem viçosa esp’rança o meu declivio: - Dais-me o que nem pedir ouzava aos Deozes. - Antevejo a florir-me a sepultura ... - - DAFNE. - - Entremos na cabana: aquella nuvem - Quer encobrir a lua; ergueo-se o vento, - Não tarda muito algum ligeiro orvalho. - - - - -NOTA AO IDILLIO. - - -Na muita rama que ao Idillio decotei para esta segunda edição, ninguem, -por mais que a cate, poderá achar fruto, nem sequer uma triste flôr, -se a não he o passo que para aqui traslado, da falla de Alexis pag. 96 -na primeira edição; ácerca do qual e de tudo o mais quanto supprimi ou -accrescentei, releva reclamar pela maior indulgencia dos leitores. Não ma -negará quem ja alguma vez houver experimentado como de todas as couzas, -que parecendo tenues, são agras e laboriosas, a mais agra, laboriosa, e -não sei se diga impossivel, he poetar e metrificar as fallas da infancia: -caminho he esse que estreitissimo corre por entre precipicios, sendo -maravilha que ahi os maiores engenhos se tenhão, e sigão sem caír ou para -a direita ou para a esquerda. O primeiro e melhor juiz do homem candido -he a sua consciencia: a minha me diz que os trez filhos de Menalca nem -sempre, antes poucas vezes, fallão como conviria: de sobejo são poetas -para meninos e rusticos; e tanto, que se não fôra a resalva, que logo -do comêço lhes vai lançada, de serem filhos de improvizador, e por elle -doutrinados no canto, não haveria perdão que de ridiculos os salvasse. - -Segue-se o excerpto, com todos seus defeitos e aleijões de nascença: - - O MENINO ALEXIS. - - Ver-me no bosque de prazer me enchia; - Quando Amintas, chamando-me da gruta, - Aonde estão de musgo revestidas - As imagens das Náiades da fonte, - Assim me disse, dando-me uma rosa: - —“Eu te darei uma pequena ovelha, - Toda branca, na testa só malhada, - Se fores ter com Egle, e lhe entregares - A rosa, que te dou, se lhe disseres - “Egle, Amintas por ti morre de amores.” - Beija-a depois na face, e continúa; - “Egle, este beijo é do extremoso Amintas.” - ¿Não a vês la ao longe entre os salgueiros, - Apascentando as candidas novilhas? - Corre; e não tardes a buscar a ovelha.”— - Eu fui correndo a ella, dei-lhe a rosa, - Beijei-lhe a face, e disse-lhe: “Este beijo, - Egle, este beijo é do extremoso Amintas.” - Nada me respondeo, sorrio-se, e as faces - Como a rosa encarnadas lhe ficárão. - Abraçando-a depois, lhe disse alegre, - “Egle, Amintas por ti morre de amores.” - Rio-se outra vez, e dando-me na face, - “Oh como tu és máo! vai-te, me-disse, - Não posso ... não, não quero acreditar-te.” - Nada lhe respondi, voltei á gruta, - Onde o Pastor contente e alvoraçado - Me deo sem custo uma pequena ovelha - Toda branca, na testa só malhada. - ¡Como a minha ovelhinha é bella, e mansa! - Andei com ella todo o dia ao pasto - Pela relva do bosque, etc. - - - - -A FESTA DE MAIO - -POEMETTO EM DOIS CANTOS. - - -_Se nos trez Poemettos precedentes pude fazer muito mais do promettido -no Prologo, n’este último fica a minha palavra empenhada. Pouquissimos -de seus defeitos mais palpaveis cheguei a apagar, e esses quasi só de -linguagem. Receoso de me vir a faltar o tempo ou o animo, se desde a -primeira pagina do Livro me começasse a esmerar seguidamente, fôra minha -primeira occupação ir por todo elle despontando, á ventura e sem ordem, o -que me apparecia pessimo, justamente como no Prologo deixára promettido. -Conheci logo que este trabalho era insufficiente: entrei no outro mais -miudo e ordenado; refundi a cito_ a Epistola, o Dia da Primavera, os -Cantos de Abril, _nenhuma das quaes Obras cheguei com tudo a lustrar. A_ -Festa de Maio, _por ser a derradeira, quasi ficou, e até nova edição (se -algum dia se fizer) ficará, como era. O maior bem que lhe pude fazer, foi -abri-la em dois Cantos, para que o leitor achasse marco onde descançar em -tão enfadonha e comprida estrada._ - - - - -DEDICATORIA ÁS SENHORAS DA LAPA DOS ESTEIOS. - - -SENHORAS, - -_A segunda tarde, que passámos em Festa na vossa Lapa, não tem jamais -de nos esquecer. O vosso gracioso e cortez descer a ouvir-nos, as -carícias com que amimastes o nosso Maiozinho, dando-lhe entre vós -assento, detendo-o nos regaços, beijando-o, ¿como he que nos não havião -de cativar, a nós, que o cingíramos de suas galas, o sentáramos em -throno, pôsto que menos para apetecer, e o levantáramos por Divindade em -nossos Cantos? Finalmente aquelle vosso generoso trocar de nome á Lapa, -querendo que por nosso respeito se ficasse chamando_ dos Poetas, _em -tamanhos obrigações nos pozerão, que as Musas nos acodiráõ para um dia -vos provarmos que nós, Sacerdotes seus, não somos ingratos. A minha, de -mais atrevida que he, me envia adeante, a tributar-vos este Poema, que -pois o approvastes, ja não he de vós indigno. He prezente de uma Deoza do -Parnaso, não podem as trez Graças rejeita-lo._ - - - - -HISTORIA DA FESTA DE MAIO. - - -Pelas trez horas da tarde do primeiro dia de Maio de 1822 ja nós, a -Sociedade dos poetas _Amigos da Primavera_, nos achávamos á sombra das -arvores, pelo Encanamento do Mondego, esperando anciosamente o batel, que -nos havia de tornar á Lapa dos Esteios, para celebrarmos a Festa de Maio: -de tantos que lá fôramos no Dia da Primavera, só faltava _Anfrizo_, em -cuja vez recebêramos _Antíono_, mancebo mui dado a bons estudos, versado -na lingua e poesia allemã, e autor ja então de Anacreonticas e Idillios -de muito preço. - -O suspirado batel acudio cedo á nossa ancia: todo toldado, alcatifado e -cingido com mui curiosas invenções de verdes e flores, vinha parecendo -o naviozinho do _Primeiro Navegante_. Abica, saltâmos-lhe dentro todos -juntos; larga, vogâmos contentes e cantando. Quem bem quizesse pintar com -a penna affétos do coração, não achára bastante um volume para historiar -esta só tarde. Dezejára eu muito convidar cortezmente meus leitores a nos -acompanharem, tomando seu quinhão em nosso folgar; mas não o posso, e -ainda mal, que o de maior valia fica-lo-hão perdendo. Hiamos todos tão -unidos em vontade, conformes em gôsto, feriados de cuidados, crentes na -ventura, chêos e cercados de poesia, e namorados da natureza, que os -todos só parecião um, um só moço, transportado em bemaventurança. - -Ora cantando, ora encarecendo, quasi adorando as varias gentilezas -que a perto e a longe, e por toda a parte se presentavão e renovavão -de contínuo, aportámos apoz uma hora, na formosa Lapa dos Esteios. -Erguemo-nos, vozeâmos, voão do barco para o ceo foguetes que todo o ar -estrugem, e para a margem os hinos de uma orchestra que comnosco hia. Diz -a musica muito com todos os affétos da alma, mas do contentamento, onde o -ha, faz alvorôço, que muitas vezes prorompe em lagrimas. D’esta maneira -triunfal saltámos para o cáes, voámos ao alto da Lapa. Conhecia-nos o -sítio pelos mesmos, desconheciamo-lo nós por melhorado: obrados erão -sobre a natureza milagres de Maio. Ja as arvores alardeavão ás virações -montes de folhagem, que pelo ar se embalavão ao sol; era agora o rio -ainda mais puro, os ares mais temperados e benignos. ¿Quereis haver -alguma idea da habitação das almas felizes? quereis pintar os lugares -onde as Ninfas, os Faunos e Pan apparecião aos pastores innocentes na -idade de oiro? entrai a Lapa dos Esteios pelos graciosos dias de Maio. -He a Primavera nos princípios uma linda menina; mas não sabe firmar o -passo, balbucia, tudo teme, não se decide em nada, suas graças ja se -annuncião claramente mas ainda se não desenvolverão; em Maio he moça toda -viçosa de mocidade, a quem ledos cortejão Amores e Prazeres, cujo sorrir -endoidece o pensamento, e vai entender com os corações. Tinha a Natureza -dado a segunda mão e ultima ao lugar; mas a Arte quizera entrar com ella -á competencia, sem comtudo lhe desacatar a primazia: tudo estava varrido -e puro e concertado de um sem numero de vasos de muitas, e finissimas -flores. - -No alto assentámos o altar do Deozinho Maio: todo elle era verdura; duas -colunas, artificiosamente fabricadas de flores, e rematadas em umas -maçanêtas de igual marmore, se alevantavão dos dois cantos da frente, e -communicando-se no cimo por um semicirculo, que na materia e primor não -desdizia do resto, ajudavão a formar um genero de portico bem vistoso e -engraçado; os lados, fundo e abobada do recinto erão de ramos verdes de -todas as qualidades, bem entrelaçados e bordados de frescas e vermelhas -rosas; no meio estava um assento pequeno, á feição de poial rústico, -tecido de lustrosas heras, onde se via recostado o Maio em acto mui -gentil, e com um geito todo seu. Era um Menino de cinco annos, louro como -o sol, e alvo como a neve, cabellos crespos e annelados, caídos por um e -outro hombro: de roupagem, não tinha outra de seu que um aventalinho, -que debaixo dos peitos lhe descia aos joelhos; o qual, assim como os -listões que de cima dos hombros lho vinhão tomar encruzando-se por -deante e pelas costas, estava recamado de cedro e buxo, com sua orla mui -accesa de flores de romeira, cravos, e rosas: calçava cothurnos de seda -escarlate; na cabeça ostentava corôa de verdura, e do braço esquerdo como -que acenava ás vontades com um cabazinho, farto dos frutos do seu tempo; -e tudo por modo tal, que a bôca se não sabia determinar se o diria nu -ou vestido, nem a fantasia dos poetas se o quereria simples Menino, ou -verdadeira Divindade. - -Mandámos por dois dos nossos vizitar e convidar para a Festa as amaveis -Senhoras, cuja he a Lapa, as quaes na quinta que por cima fica tem seu -perpétuo domicilio. Não tardarão: recebemo-las como convinha, nós com -a festa dos nossos musicos, e com muitos seus abraços as Senhoras, que -abaladas dos annuncios de tão bôa tarde, nos tinhão feito a honra de -acudir ao sítio. Ja era crescido o auditorio, e muito para contentar -e accender engenhos: fomo-nos uns a outros seguindo com os poemas que -levavamos, os quaes em fórma de rito religioso, se recitavão em pé -deante do altar, fazendo a nossa orchestra uma harmoniosa ráia de poema -a poema, que para tudo as tardes de Maio deixão tempo. Poz-se-lhe remate -com os vinhos e saudes d’uma saborosa merenda, como á primeira tarde da -Primavera se havia feito. Passou-se o serão parte pelas salas, outra -parte pelo jardim das nossas hospedeiras. - -A noite era uma das mais bellas de tal mez: a lua brilhantissima despedia -até os horisontes um clarão quasi diurno, não se enxergando nuvem por -todo o descampado do seu céo; refletia-se, e desenrolava sua alcatifa de -movediça prata ao longo d’esse Mondego tão digno de seus amores; o ar era -tão manso e quêdo, que as luzes, curiosamente distribuidas por entre os -vasos de flores, nem de leve estremecião; suave era de ver sair por toda -a parte d’entre planta e planta uns reflexos verdejantes mui amigos dos -olhos, muito mais da fantasia de poetas. - -Prazeres que o coração estriou por uma noite assim enfeitiçada, não são -para se poderem pintar. Pouco tardou que a sociedade, como acontece, se -não soltasse e dispartisse em ranchos pequenos: a musica errante e fóra -dos olhos, umas vezes folgando, suspirando outras, e outras como quem -sismava algumas amorosas mágoas, hia-se ja pelos arvoredos da quinta, -ja ribeiras do rio acima e abaixo, tão grata, que ainda não sei couza -que mais quizesse. Muitos e muitas baillavão arcadicamente sob a abobada -do céo, em quanto nós outros, os que das Musas só fôramos fadados para -versos, os estudavamos e repetiamos á porfia. Algumas semelhantes horas -devia ter passado o primeiro que escreveo Elisios. - -Era a noite crescida para muito alem do meio, quando nos despedimos; e -la foi caír na eternidade um dia, que ainda agora me persegue saudoso, e -apoz o qual nenhum outro veio semelhante. - - - - -A FESTA DE MAIO. - -POEMETTO - -CANTO I. - - - Eia, amigos, ao campo! ha ja trez horas, - Que os Tindáreos Irmãos no aéreo espaço - Vírão do meio dia o rôsto ardente: - Eia, amigos, ao campo! as horas vôão, - E o Maio alegre ás féstas nos convida: - Os Zéfiros ligeiros, embalando - Do parreiral a trémula folhagem, - Ao rio, ao barco estão chamando a turba. - ¿O Deos Menino, o gracioso Maio - Não vamos celebrar na fresca Lapa? - Pois que se tarda? os Numes não consentem - No culto seu ministros preguiçosos. - Chamai á pressa as pastorís Camenas, - Tomai as flautas, coroai as frontes - Co’as grinaldas, que em premio vos cingírão - Da Primavera no primeira tarde. - Como! o tempo ... (ai da flor da mocidade!) - O tempo as destruio! de graças tantas - Que existe pois? um pó. Jazem desfeitas, - Sem perfume, sem côr as lindas flores, - E as verdes folhas se enrolárão murchas! - Ah! corramos; o pezo, que as esmaga, - Róla tambem sôbre a existencia nossa: - Nossas grinaldas nos festins vivêrão, - Morrêrão no prazer; e nós, como ellas, - Devemos esperar, brincando, a morte. - - Cedo nos hombros do nervoso Atlante - O eixo voluvel em perpétuo giro - Ha de erguer ante o Sol novas esferas: - O Touro ja fugio: Castor, e Pollux - Succedêrão-lhe agora: hão de apoz elles - Os astros scintillar, que nos conduzão - Da estiva calma os importunos tempos. - Então fenecem pelo campo as flores, - Tépidas correm na planicie as fontes, - Calão-se as aves nos cavados troncos, - E fallece a frescura ás proprias noites. - Vamos, emquanto as flores não perecem, - Emquanto soprão lisongeiras auras, - Emquanto um doce frio as ondas levão, - Emquanto as aves pelos ares cantão, - E as claras noites co’a frescura aprazem; - Vamos correndo: de vergonha córe - Quem último chegar do rio á margem. - - ¡Graças aos ceos, que a suspirada arêa - Ja pizâmos emfim! mas pelas faces - Abrazado suor me está caindo. - Inda o barco não chega: eia, sentai-vos. - D’esta aura carinhosa ao fresco sôpro - Quanto he doce voltar o rosto ardente, - E ora uma face, ora outra offerecer-lhe! - Ella as beija brincando, e espalha em ondas - Os escuros anneis, que lhas roubavão. - - Verde canavial, salve trez vezes! - Co’as boliçosas, arqueadas folhas - Nos escondes a rir de Febo aos olhos. - Ninfa adorada pelo Deos da Arcadia, - (Deos dos pastores, inventor da flauta) - Sacrilego furor não nos incita: - Não te offendas se agora as nossas dextras - De tuas canas adornadas vires: - Sua altiveza airosa nos agrada, - Vates somos, os trémulos seus cumes - Ondulando, os lascivos seus abraços - A cada viração que vai fugindo, - Tudo isso nos namora, e diz poesia. - Não te offendas ó Ninfa, ei-las colhidas! - Gravai com ellas n’esta arêa os nomes - Das vossas bellas, imprimi-lhe um beijo, - E partamos, que o barco ahi fere a margem. - Bem: eu lancei da Primavera o nome - Em caratéres taes, que ao longe possa - Lê-los o pescador no fim da tarde. - - Eis-nos emfim nas transparentes ondas! - Agora cumpre diligencia, esfôrço, - Para vencer as fugitivas aguas. - Ferva o trabalho, as varas não descancem; - No fundo leito redobrai os golpes, - E suavisai com musica a fadiga. - Eu deitado na pôpa, eu dicto os versos; - Cantai, e o echo em baixa voz aprenda. - - Ouvi Ninfas do placido Mondego, - Ouvi com ledo rôsto as preces nossas. - - Saí correndo das limosas grutas: - Occultas no cristal do patrio rio, - Vós podeis impellir co’as mãos de neve, - E fazer que o batel, qual aguia, vôe. - Bellas Filhas do lúcido Mondego, - Vamos passar a tarde á grata sombra, - Das lindas Graças na famosa Lapa. - Ali, se acaso não me illude o estro, - Vós, Ninfas, vós com ellas muitas vezes - As noites do luar passais em danças: - Sôbre um tronco musgoso Amor sentado, - Para acertar as rápidas choréas - Com saudosa flauta a Noite acorda, - E Venus compassiva lhe desata - Dos olhos entretanto a escura venda. - Mil Amorinhos sem farpões, sem facho, - (Nem onde vós estais carecem d’elles) - Vôão aqui e ali por entre os ramos. - - Ouvi Ninfas do placido Mondego, - Ouvi com ledo rôsto as preces nossas. - - Dai-nos breve chegar, sereis cantadas; - E iremos outro dia erguer altares - De cada vosso chôpo á sombra amiga, - Pondo-lhe em roda uma vistosa grade - D’aureas canas com murtas revestidas: - Em vossas ondas lançaremos rosas, - E puro leite, e saboroso vinho. - Porque tardais, ó Náiades esquivas? - Turba innocente de mancebos rindo - Bem merece o favor dos sacros Numes. - Nós não vamos em lenhos alterosos, - Roçando as nuvens com soberbas velas, - C’o ferro a lampejar nas bravas dextras, - Levar da guerra a furia aos outros povos, - Lançar em fogo os bosques, e as cidades, - Para voltar aos mares tormentosos - Co’um pouco do metal, que gera os crimes: - Nós vamos procurar vizinha praia - Para rir, e beber de Maio em honra; - Vamos c’roar-nos de verdura, e lirios, - Cantar ao som da flauta a Natureza, - Dançar no meio de innocentes gostos, - E longe dos mortaes, viver ditosos, - Poucas horas sequer, na paz dos campos. - - Ouvi, Ninfas do placido Mondego, - Ouvi com ledo rôsto as preces nossas. - - Terra, terra: éstas árvores das margens, - Que ora nos vão passando sôbre as frontes, - Convidão a colher sua folhagem: - Saltai, colhei os mais viçosos ramos, - Teça-se um tôldo, que nos roube á calma. - - Ávante! adeos, ó Driades, ficai-vos - Em doce paz; o orvalho vos fecunde; - Ache vossa raiz no estio as aguas - Tão abundantes, como as tendes hoje. - Nós vamos celebrar o mez das flores, - Quando voltarmos vos daremos graças. - Ávante! não cesseis, alegres nautas! - Cantai: eu voas ensino um canto novo. - - Das Filhas de Nereo a mais formosa - Foi Galatéa candida, e rosada. - Por seus olhos azues morreo de inveja - Aglaia, irmã de Amor; a curta boca - Ciumes acendeo no peito d’Egle, - Bem que da boca d’Egle um doce beijo - O scetro pagaria ao rei dos Numes; - E Eufrosina, entre os Deozes celebrada - Pelos aureos anneis da longa trança, - De Galatéa a trança cobiçava. - E o seio! o seio túrgido e nevado, - Mais nevado que a espuma em que se tornão - Na frente de um cachopo as crespas vagas, - O seio era melhor que o teu, ó Cípria! - Treze vezes floríra a primavera, - Depois que aura vital gozava a Ninfa, - E ja no mar, no ceo, no mundo inteiro - Das bellas todas triunfava a bella, - E ais e louvores a seguião sempre. - Nereo, chamando-a á funda gruta um-dia, - Assentou-a nos trémulos joelhos, - Ao hombro lhe lançou paterna dextra, - E beijando-a lhe diz.—“Assaz he tempo, - “Filha, de rematar da infancia os brincos. - “Tu conheces teu rôsto, ¿e não conheces - “Que he preciso fugir á turba insana, - “Que te rodêa, que te chama bella? - “Crê tu nas cãs de um pai, de um pai no afféto; - “Quanto mais suas fallas te agradarem, - “E mais seus modos lisongeiros vires, - “Mais pérfidos serão. Cabe a meus annos - “Dar prudente conselho á tenra idade; - “Perdoa-me, acautello-te a innocencia. - “De meus delfias o lúbrico rebanho, - “Desde hoje apascentar he teu cuidado: - “Não convem á belleza ociosa vida.”— - Disse, e poz-lhe na mão, como a pastora, - Cajado de coral com ponta d’oiro; - Entregou-lhe a rebanho, e conduzindo-a - De seus mares a um placido retivo, - —“Fica, pastora, aqui, lhe-disse o Velho, - “Vir-te-hei vêr muita vez.”—Rio-se, e deixou-a. - - Alguns dias ali viveo contente - Com seu rebanho a equorea pegureira. - Ora entre as moutas dos coraes ramosos - O levava a pascer os brandos limos, - Ora ao marinho cão deixando-o entregue, - Hia colher das perolas as conchas. - - Uma tarde de Maio, quando aos braços - De Thetis vio que o sol hia descendo, - Ouzou sair do fundo, e foi sentar-se - A gozar do espétaculo dos bosques - Na alegre entrada de uma verde gruta. - Nas ondas por acaso então nadava - Acis gentil de encantadores olhos: - Vio-o, e visto, calou seu canto alegre; - Sólta um suspiro, e se perturba, e córa. - Do paternal preceito inda lembrada, - Quer na gruta esconder-se até que parta - Das ondas o mancebo: eis se arrepende, - Ja não quer occultar-se, e quer que a veja. - D’entre o verde do mar o níveo corpo, - Que os olhos cega, e o coração cativa, - As proporções, a ligeireza, a graça, - Com que agora se occulta, agora assoma, - E em modos mil as posições varía, - Tudo, tudo a detem. De quando em quando, - Sem conhecer que o faz, se lhe aproxima; - As tranças, que trazia ao vento sôltas, - Sem saber o porque, reparte e lança - Sôbre os hombros de neve, e cobre o seio: - Consulta no mar lizo a propria imagem; - Quer mais bella tornar-se, e mais não póde. - - Cançado de banhar-se o Moço emtanto - Vinha a praia ganhando: ella assustada - Corre á gruta; ali cora, ali desmaia, - Quando o mancebo, quando o pai lhe lembra. - O bello nadador não tarda muito, - Entra na gruta, onde largára as vestes ... - - Amigos, vós parais como esquecidos? - Deixais que o lenho na corrente desça? - Ah! voltai ao trabalho; e por castigo - Não ouvirèis do alegre canto o resto. - - Novo me inspira agora esse murmúrio, - Com que a Fonte das lagrimas se lança - Da serpeada varzea ao rio aberto. - - Junto á fresca matriz d’este ribeiro, - Onde gozou em seculo remoto - O mais ditoso par de amor os mimos, - Meu estro agora placido voltêa - Por entre os cedros, e os feraes ciprestes; - E ora ao lago pacífico se arroja, - Ora da fonte nos penedos pouza. - Comvosco não existe o vosso amigo; - Gira fóra d’aqui no sítio umbroso, - La conversa co’a Musa, aprende, e canta - Gratas histórias dos passados tempos. - - Uma noite de Maio Inez formosa, - Ao pallido clarão da argentea lua, - Com seu Pedro fiel aqui vagava. - De seu candido amor primeiro fruto, - Lindo, qual dos Amores o mais lindo, - Um tenro filho, que a fallar começa, - Co’a pequenina mão á mãi seguro, - A passos desiguaes a acompanhava. - No dextro braço do gentil consorte - O alvo braço despido entrelaçando, - Languidamente a bella se apoiava. - Traja da côr da neve, ornão-lhe as tranças - Rúbidas rosas que reveste o musgo: - Sob um véo raro e sôlto arfão dois peitos, - Que estrema, que matiza, e que perfuma - A flor, que he d’entre mil só digna d’elles, - O amor perfeito em fresco ramalhete. - Pelo silencio, e paz da noite amiga, - Nos extasis de amor arrebatados, - Ebrios ambos do nectar da ternura, - Vagueando em seu ermo, respiravão - Todo quanto prazer nas almas cabe. - —“Inez, dizia Pedro, olha estes cedros, - “Que doce murmurando agita o vento! - “Olha as aguas do tanque, onde tão clara - “Se está dos Ceos a Lua retratando! - “Ouve o rumor das ondas transparentes, - “Que vem brotando da cavada penha! - “Cara Inez ... ah! calemo-nos; escuta - “O amante rouxinol como gorgeia! - “Não o sentes mui proximo? quem sabe! - “Talvez que em teu jardim celébre agora - “Ao lado de uma esposa os seus prazeres: - “Se assim he, refinai perfume, ó flores, - “E vós levai-lho, zefiros da noite, - “No instante em que Himeneo tem de ajuntal-los. - “Ó minha Inez, não ser inda possivel - “Confiarmos á luz nossa ventura, - “E eu dizer, sou de Inez!...”—N’isto o mancebo, - Apertando a seu peito o braço d’ella, - De beijos lhe inundava a mão mimosa. - Em silencio e cuidosa a linda Castro - Parava contemplando os ceos, o esposo, - E unindo a regia dextra ao seio oppresso, - Dava a resposta n’um fiel suspiro. - —“Oh! (dizia depois) que Deos contrário - “Ao terno amor, á candída innocencia, - “Poz peito, ó doce encanto, a separar-nos? - “Quão melhor fôra haver nascido em choças! - “La, tendo por imperio um só rebanho, - “Lãs por purpura, e flores por diadema, - “Pedro fôra pastor e Inez pastora. - “Teu solio quantas lagrimas nos custa! - “Mas se fosse teu solio um manso outeiro, - “Docel um parreiral firme em colunas - “Das que dão fruto e flor, saude, e agrados, - “Não cortíra em meus sonhos o remorso, - “Teu coração ninguem mo disputára, - “Não se encobríra o meu amor ...”—“Oh cessa, - “Cessa (Pedro lhe diz interrompendo-a): - “De que servem, querida, essas lembranças! - “Se te adoro, que temes? se me adoras, - “Que posso eu mais querer! Virtudes tantas, - “Raros dons quaes os ceos em ti resumem, - “Não são para jazer na escuridade; - “Dos reis, de teus avós te poem no estrada, - “Para luzires nos corrutos dias, - “Como astro de bondade entre os humanos. - “Gozemos do prazer. Olha esta noite - “Como he formosa, minha Inez; não tornes, - “Eu to peço por mim, por ti, por esse - “Fruto do nosso amor que te he tão caro, - “Não tornes a acordar taes pensamentos. - “Queres tu, minha amada, á curta noite - “Dar emprego melhor, mais proprio d’ella? - “O assento ao pé da fonte nos convida, - “Vem-me outra vez cantar os magos versos, - “Onde quasi exprimiste o enlevo d’ambos, - “Quando a primeira vez nos vimos juntos - “Tambem de noite, e n’este sítio mesmo.” - - Disse, e Inez imprimindo-lhe nos labios - Co’a meiga curta boca um longo beijo, - —“Vamos, responde, apraz-me esse meu canto, - “E agradar-te, inda mais; partamos logo.”— - Diz, e ja leva ao collo o seu filhinho. - Forceja o pai furtar-lhe o doce pezo, - Ella a ninguem o cede:—“O meu menino - “He meu, lhe diz; quando eu tiver meninas, - “Dar-tas-hei, desde ja chama-lhe tuas; - “Pertence o filho á mãi, e ao pai a filha.”— - Sorrindo com ternura o ledo Amante, - —“Ser-me-ha dado, lhe diz, que de teu filho - “Ao menos colha uns beijos que me deve, - “Ou hei de só com os teus ficar contente”?— - —“Se tos deve meu filho, eu vou pagar-tos” - Inez responde, e lhe pagou mil beijos. - - Chegados são aos bancos do rochedo. - —“Ja do sol o calor morreo na pedra; - “Para assento, he mister ser estufada. - “Não rias, o brocado hão de ser ramos; - “Para a pastora Inez, nenhum mais proprio”— - Voa ao proximo cedro, os ramos corta, - Alastra-os sobre o marmore, e reclina - O infantinho, que pósta a loira fronte - No maternal joelho, eis adormece. - - Absorto no painel delicioso, - Não podendo parar nem desviar-se, - Como homem, que formosa feiticeira - Prende e agita n’um círculo encantado, - Vaga o Principe á luz voluptuosa - De lua por entre arvores. Desponta - No ermo silencio o canto namorado! - O suave da voz, o doce estilo, - A musica tocante, a frase meiga - Alhêão-no de si, todo elle he fogo: - Não conhece onde está, quem he não sabe: - No cahos do prazer, em que se abisma, - Só vê brilhar Inez, Inez só ouve; - E qual se nunca em braços a apertára, - E virgem melindrosa o ceo benigno - Lha houvéra ali chovido aquella noite, - Arde e delira em sofregos dezejos. - Já não sabe conter-se, o fim do canto - Já não póde esperar; “Ó minha, exclama, - “Ó minha ...” e sem findar, pois não encontra - Nome que exprima o que lhe ferve na alma, - Voa a abraça-la sem poder fallar-lhe; - A voz com loucos beijos lhe interrompe, - Quer dos labios sorver-lhe os sons divinos; - Mas ella rindo, e a boca desviando, - Que a deixe terminar lhe pede a custo. - —“Sim, acaba (responde), Inez, acaba”— - E emtanto hia beijando o collo, o seio. - Depois, como ante Nume, ajoelhando, - Suspenso a contemplava espaço longo; - E depois no regaço o rôsto acceso - Lhe punha, como em ninho de delicias, - E no certo esperar crescia o fogo. - Só vós caladas arvores no emtanto - A canção namorada ouvindo estaveis - Da mui ditosa Inez! Como expirava - A derradeira nota, estremecendo - Acorda o moço, alvoraçado surge, - E tomando á cantora a mão submissa, - —“Vamos, lhe diz, a lua vai descendo, - “O tácito poente a chama ao sono: - “Oh quão leve entre nós foge esta noite! - “As auras pela relva estão dormindo, - “Pendem com sono as arvores seus cumes, - “Do largo tanque as aguas nem se encrespão. - “O rouxinol que ha pouco gorgeava ... - “Ja tambem se calou: sabes a causa?”— - —“Talvez lhe empeça a voz, responde a bella, - “Teimoso furto de continuos beijos.”— - —“Não, não, responde o amante, agora occulto - “Co’a docil companheira em quente abrigo, - “Aperta o rouxinol de amor os laços. - “E nós Inez? ah toma o teu menino, - “Talvez não tarde a aurora, ao leito vamos, - “E do fresco da noite ali zombemos.” - - Emfim chegámos! c’o ligeiro impulso - Bate a proa no cáes, o lenho treme, - Tremem com elle de seu tôldo as folhas. - Salve ameno lugar, que as Graças pizão! - Glória ao sacro arvoredo, que diffunde - Sôbre a calma do vate a sombra fria! - Glória ás auras, que prêzas n’este sítio, - Das Dríades por mão aos troncos d’ellas, - Agitão com susurro a massa enorme - Da folhagem suspensa! honra aos que brincão - Puros raios do sol sôbre o terreno, - Mal que um favonio lhes descobre a entrada! - Eterno amor ás aves, que em seus ramos - A vinda nossa a gorgear celebrão! - Paz ao dezerto, onde comnosco as Musas, - Esquecidas de Pimpla, se contentão - De encher de alegres canticos os ares! - - Á festa, á festa! Reuni-vos todos, - Vinde colhêr as fugitivas horas: - Como vaga que passa, ou flôr que murcha, - Para mais não voltar, se escoa o tempo. - Á festa, amigos! Oh! n’esta eminencia - Eis ja pronto um altar! ei-lo cingido - Com largas fitas de pintadas flores! - Ante elle o rosmaninho, a murta, as rosas - Té não curta distancia o chão tapizão; - Heras, e lirios candidos o toldão: - De heras e lirios adornai as frontes. - Ajoelhai: lá sobe a Divindade! - Silencio! paz!... Retumbe pelos echos, - Sem mistura de voz, o som das flautas. - No coração, no espirito me chovem - D’estro divino eléctricas centelhas. - Ja me sinto mudado em branco cisne! - Cercai-me: eu vou cantar; calam-se os ventos! - - Voa invisivel das Hemonias serras, - Tu que no Xantho as aureas tranças lavas: - E se he tua, qual Roma suppozera, - Ésta a melhor porção da florea quadra, - Do cantor de teu mez protege a audacia. - - D’entre os filhos da immensa eternidade, - D’entre esses doze Irmãos, que repartido - Tem por sua influencia o anho inteiro, - Maio foi sempre o mais gentil de todos: - Qual dos cachos o Deos, e o Deos das setas, - Goza brincando eterna mocidade. - As Graças infantis, e a Formosura - O creárão nos ceos com o proprio leite. - Mal que o mundo surgio do horrendo cáhos, - Veio formar-lhe os seus primeiros dias, - E Maio foi da terra a fresca aurora. - Em mimos escondendo a magestade, - He Maio o pai, e o rei da Natureza: - Qual em soberbo paço, anda nos bosques; - Ou, qual em solio, nos outeiros verdes - Se assenta, ao lado da risonha Flora. - Compõe-lhe o seu cortejo Auras, Favonios, - Que das plumas azues fragrancia espargem - Furtada ha pouco ás pudibundas rosas. - Em seu reinado insolita doçura - Exhala o canto dos volateis bandos, - E canoro parece o bosque inteiro. - Em seu reinado os prados florecentes - Só curão de ostentar perfume e cores: - E a Ninfa ás vezes longas horas fica - A meditar na escolha dos ornatos. - - Co’a folhagem densissima susurra - O bosque annoso a celebrar-te, ó Maio; - Susurra a celebrar-te o rio, a fonte. - Com serena alegria o sol derrama - Vasto oceano de luz no aereo espaço. - A pompa da manhã, da tarde o brilho - Tem não visto matiz d’oiro e de rosas, - E côr de fogo sôbre um ceo de leite. - Toda patente a abobada de estrellas, - Toda brilhante a prateada lua, - Te dão, como as do Elisio, alegres noites, - De importuno calor desafrontadas, - Chêias de encanto, da saudade amigas, - Gratas a um tempo ao coração, e ao estro. - Aqui, e ali os rouxinoes se escutão - Longas horas c’os echos porfiando. - Gira, vaguêa pelas fracas trevas - Dos pirilampos o lustroso bando: - Resoa em cada aldêa alguma frauta, - E emtôrno d’ella as camponezas danção: - Bala no aprisco impaciente o gado - As poucas horas, que á manhã precedem. - - Como he doce o teu mez, benigno Maio! - Alegra-se o viandante ao ver nos campos - Do verde trigo as trémulas searas - Iguaes a um vasto lago, onde os favonios, - Nascidos inda ha pouco entre as florestas, - Aprendem a encrespar as verdes aguas. - Aqui a par de um campo, onde começa - O milho a despontar, desprega aos ares - Com vaidosa soberba altas bandeiras - De outros milhos o exército infinito. - Ostentando riqueza alem menêão, - Entre a argentea folhagem pendurados - Cachos de flor, os olivaes fecundos. - Os pomares de frutos se carregão, - Que ja sem medo aos furacões, e ás chuvas, - Com áncia a côr, e a madureza esperão. - As aves da manhã, quando revôão - Com longo canto pela immensa altura, - Se aprazem de os olhar; e ás vezes descem, - E vem pouzar nos encurvados ramos, - O futuro sustento ali festejão: - Tal de annos onze uma pequena virgem - De adoradores mil se vê cercada; - Bem que á sua belleza inda lhe faltem - Terno expressivo olhar, globos de neve, - Voluptuoso dezejo entre suspiros, - Buscado enfeite, graciosas fallas, - Rodêão-na comtudo, adivinhando - Pelo botáõ fechado a flor aberta. - - Mas, ó Maio, o teu mez não brilha esteril! - La se ergue o laranjal c’os frutos d’oiro; - Doces limões, e saborosas limas, - D’entre a larga folhagem descobrindo - A amarellada tez e o forte aroma, - Prendem sentidos convidando ao furto; - Ri-se entre as mais a alegre cerejeira, - Que ainda que no gôsto a muitas cede, - Mais que todas seduz co’as vivas bagas; - A ginjeira com ella aposta encantos, - Mas apenas gostada, a palma he sua; - Iguaes a um coração em côr, em fórma - Os suaves morangos ja maduros, - Contentes da humildade, estão dormindo - No fresco seio da materna planta: - D’ali, se vem um zefiro acorda-los, - Olhão em roda as pampinosas vinhas; - E vendo como os pequeninos cachos, - Que a fronte cingem do celeste Bromio, - E um dia gratos brilharáõ nas mezas - Mudados no licor, que gera os risos, - Do nativo terreno apenas se erguem, - Zombando riem da vaidosa audacia, - Com que somem no ceo pomposo cume - Árvores tantas menos uteis que elles. - Por toda a parte as desveladas hortas - C’o verde alegre das crescidas plantas - O suor do colono estão pagando; - Seu terreno sulcado está coberto - De immensas produções, que vão nas mesas - Ser preciso sustento, ou grato mimo, - E ora entrar na choupana, ora nos Paços. - - Em teus dias, ó Maio, as vélas sólta - Sem medo o nauta pelo vasto oceano, - E olhando puro o ceo, de leite as ondas, - A cujas furias escapou nadando, - Sobre a pôpa da náo regendo o leme, - Pensa na esposa, nos filhinhos pensa; - Prometteu-lhes voltar; nem ja receia, - Maio, fiado em ti, ser-lhes perjuro: - Sobre a cana do leme encosta os braços, - E ou sólta em grande voz grosseiros versos, - Ou costumada musica assobia - Olhando a estrada de alvejante espuma, - Que d’um e d’outro lado á prôa foge. - Brinca nas aguas, e ou se esconde, ou salta - De vagos peixes prateada turba; - Na verde superficie as Ninfas danção, - Da tarda noite nas caladas horas, - Das estrellas á doce claridade. - - Mas eu quero soltar mais altos vôos, - Trazer ao mundo incognitas verdades. - Em teus dias, ó Maio, os Páfios bosques - Vírão nascer os trêfegos Amores! - N’um valle opaco, onde buscando o fresco - Costumavas dormir entre mil flores, - La teve a Deoza o seu fecundo parto. - Apenas sobre a attonita verdura - Cípria depunha um pequenino alado, - Logo o via nos ceos voar, sumir-se: - Tal dos Amores o soberbo genio! - Quando cançados de brincar nos ares, - Um passatempo á terna Mãi pedião, - Tu lhes foste ensinar pelas florestas - A formar arcos de flexiveis ramos, - E despedir, sem nunca errar, seus golpes. - Tu lhes mostraste os rezinosos troncos, - De que havião formar brilhantes fachos. - Tu mesmo entre elles companheiro e mestre, - Pelos campos as flores procuravas, - Com que doces prizões tecer devião. - - Tudo em teus dias no universo adora; - O sexo, a idade, as condições não livrão. - Entre o rebanho, que amoroso bala, - Amoroso pastor canta ou suspira; - Ternas gorgêão no arvoredo as aves; - Ragem ardendo de dezejo as feras; - Suspiros ouço ás arvores, e aos ventos; - Abrem o seio as virgemzinhas flores, - E Venus as fecunda, e mãis se tornão. - Em cada gruta, em cada bosque ás Ninfas - Uma emboscada os Sátiros aprestão. - Em bellezas mortaes embevecido, - Canta em rustica voz novos amores - C’roado de pinheiro o Deos da Arcadia, - E ante a Ninfa gentil mudada em canas - Pelas canas da flauta os sons varía - Com ar alegre, que perjuro o torna. - Sensivel para o Sol se volta Clície; - O Sol na terra outras bellezas busca, - E outras acha, que o peito lhe cativão, - E fazem que mais tarde a Thetis desça. - Entre os astros as Pléiades luzentes - Com saudade seus thalamos recordão: - Junto d’ellas o Touro inda parece - Mugir lembrado da formosa Europa. - Mais placida refulge a Cípria estrella; - Dissereis que saudosa indaga os sitios, - Onde comtigo, venturoso Adonis, - Passava as noites do formoso Maio: - E quando foge, a Aurora se envergonha, - E cora por voltar tão cedo ao mundo; - Pois quem ha que não saiba os seus segredos? - Quem de Céfalo a história não repete? - Em cada tronco um dísticho de amores, - Ou dois nomes se lem, como enlaçados. - Uma sombra, uma só não ha nos campos, - Onde Amor não recorde, ou não prepare, - Ou não veja presente uma vitoria. - Foi, Maio, foi teu mez que ao Rei das sombras - Fez que deixasse o sempiterno cáhos, - Para roubar a encantadora esquiva, - Do flóreo campo de Enna ornato, e Deoza. - Foi, Maio, foi teu mez que ouviu primeiro - Diana a suspirar, arrepender-se - De ser das virgens tutelar Deidade. - - Graças ao teu poder, e ao teu influxo! - És tu que a rir convidas gracioso - Minerva um pouco a abandonar seus livros[13]. - Quem póde resistir-te? emfim te cede, - Toma-te pela mão, para que a leves - A divagar em teus vistosos campos; - O ar de meditação troca em agrados, - E vê contente abandonar-lhe a côrte - De seus alunos juvenil caterva, - Que alvoraçada aos patrios lares vôa. - Sim, Maio, eu voarei aos patrios lares! - Mas cuidas que jamais distancia ou tempo - D’este dia a memoria hão de apagar-me? - Não: onde quer que os fados me conduzão - Sempre te hei de cantar, sempre c’roado - De teus altares me verás ministro: - Mas d’esta sociedade, e d’estes brincos, - Em quanto a noite se adornar de estrellas, - Nunca a lembrança volverei sem mágoa. - - De generoso vinho enchei-me o copo, - Que de mírtea grinalda ornado quero. - Imitai-me tambem. Por este, ó Maio, - Suavissimo licor, pai da alegria, - Por este, digo, cuja taça empunho, - Juro ante o ceo, de teu altar em frente, - Que um anno só não deixará meu estro - De exaltar tua glória, e a minha amada, - A Deoza tua mãi, a Primavera. - Reformai-me outra vez a funda taça. - Em honra a vós, formosas moradoras - D’este ameno lugar, esta se esgote. - - Aguardai, cabe agora o sacrificio; - Vou-me a buscar a vítima, que a trouxe - Occulta e prêza do batel na pôpa. - Eis-me, abri-me caminho! eu volto ás aras: - Para a santa ablução trazei-me um vaso. - Silencio! fallo ao Deos!—“Sejão-te acceitos - A vida, e leve espirito do prezo - Que vem n’esta gaiola, o qual eu vate - Por todos nós agora te dedico, - E dedicado entrego ás livres Parcas. - Digna he de ti formoso ave formosa - Como esta; pintasilgo ativo em canto, - Garrido em côres, no brincar esperto, - Mestre em tirar do cristalino poço - Com o balde de avelã sua bebida: - Outro melhor nunca girou nos bosques. - D’esta estação n’um dos primeiros dias, - Segundo o meu costume antes da aurora - Saí a espairecer nos campos verdes, - Ouvir das aves os primeiros cantos, - E aquecer-me sentado sobre a relva - Ao primeiro calor do sol nascente. - Banhei o rôsto n’um remanso puro, - Colhi as flores inda ha pouco abertas; - E co’a mente serena, e possuido - Do amor do campo, e dos campestres gostos, - Voltei de novo ao lar. Junto á janella - Por onde largo sol ja vinha entrando, - Fui sentar-me a pascer em vãs delicias. - Eu sonhava acordado! ah nos meus sonhos - Não via mais que bosques e pastores, - Rebanhos, fontes, rusticas choupanas! - Dono me cria d’um torrão pequeno - Mas pingue, de uma choça pequenina - Mas alva, entre nogueiras, rodeada - De alvos cordeiros nédeos e alvas pombas. - Eis que afoitando um vôo, esta avezinha - Me entra por casa; ao seu gorgeio acórdo, - Pois junto a mim pouzava gorgeando. - Ouves, Maio, este som, com que parece - Approvar adejando o que te conto? - Ouves? repara bem: tal modulava - Quando amoroso a vizitar-me veio. - Ganhando confiança a pouco e pouco, - Saltou-me para o hombro, e de improvizo - Prêzo se vio na minha mão fechado. - Quiz debater-se, emvão; piou, carpio-se, - O bom coraçãozinho lhe batia. - Beijei-o, puz-lhe mesa; o sem ventura - Nada acceitava, anciando só fugir-me. - “Conheces-me bem mal, pobre innocente, - Lhe digo; essa gaiola he teu palacio - Não carcere, eu teu servo e não tirano. - Servo e palacio um dia de experiencia - Talvez tos faça amar: se não, prometto - Abrir-te a porta e libertar-te os vôos.” - Á janella da minha a estancia d’elle - Penduro; os aureos grãos e a clara linfa, - Cama fôfa entre ramos florecentes, - Vista de campo e céo por toda a parte, - Mas livres um de açôr, outro do tiros, - Manso, mansinho ás grades o affizerão: - Comeo, bebeo, cantou. “Pois que tu cantas, - Vatezinho silvestre, em nossa casa, - Juntos e amigos ficaremos sempre. - Tu serás de meus dias a harmonia, - Eu tua providencia; a fonte e a messe - Te viráõ procurar, dar-te-hei florestas - La dentro em teus penates de cortiça, - E porque logres tudo, uma consorte - Virgem, bella, fagueira, e cujos filhos - Seráõ só teus, e como tu formosos.” - Desde então ledo vive, e tanto aos mimos - Se acostumou domesticos, e tanto - A amizade entendeo, que lhe abro a grade - Fronteira aos ceos da aurora, aos bosques amplos, - E nem bosques nem ceos lhe dizem—foge.— - Da liberdade que lhe acena á porta - Se despede cantando, e empoleirado, - Reizinho em casa sua, a mim e a ella - Nos compara, e lhe diz: “Aquelle humano - Deos foi que para mim creou taes ocios!” - - “He esta, ó Maio, a vítima que trago - Ao sacrificio teu! perco um amigo!” - Com esta mimosissima grinalda - De sensitiva lhe circundo o collo, - Para sinal da dor que me comprime. - Vamos, venha o punhal, que eu limpo o pranto. - Ó ceos!... quanto me custa! He sacrilegio - Qualquer demora mais: ânimo agora, - Saudoso coração!... Venceste, ó Maio! - Venceste! consumou-se o sacrificio! - O fio prêzo ao pé cortei de um golpe, - Lancei-o ao ar; voou; nem ja o ouvimos. - Foi rever seus antigos companheiros, - Sua amada, seu bosque, e o seu alvergue. - Oh! como será doce emtôrno ao sócio - Que julgárão perdido, apinhoada - Papear parabens a alada tribu! - Oh tu lhes dize então do amigo o nome, - Que vezes te beijei de madrugada - Por me acordares co’o suave canto, - Para trocar o leito pelo grato - Passeio da manhã, d’onde trazia - Pera a tua gaiola hastes de flores. - Ouvirá leda a esposa a leda historia, - E a contará depois aos tenros filhos. - Talvez que em meu passeio inda algum dia, - A festejar-me, emtôrno a mim se junte - Chêa de gratidão toda a familia, - Tu meu amigo, a tua esposa, e prole. - - Dispersai-vos, bebei, cantai, amigos, - Ride, e dançai, porque invejoso o tempo, - Co’as cãs na fronte, e o coração gelado, - As horas do prazer furta aos mancebos. - Mas ai de nós, que o perfido voando - Ja nos fugio co’a encantadora tarde! - - Desçamos ao batel: adeos ó Lapa, - Adeos, fica-te em paz; e cedo espera - Ver de novo juntar-se á sombra tua - Da Natureza os candidos Amigos. - Deixai as varas, gracejemos antes, - Não cumpre trabalhar, para fugirmos - De um bosque sacro a Maio, e sacro ás Musas. - -FIM DO CANTO PRIMEIRO. - - - - -A FESTA DE MAIO. - -POEMETTO - -CANTO II. - - - D’essa garrafa de cristal doirado - Duas taças me enchei. Venha a primeira: - Esta se esgote da amizade em honra. - Ó divino licor! se o puro nectar, - Que Hebes formosa a Jove ministrava, - Comtigo competir podesse ao menos, - Jove lhe perdoára o seu descuido, - Nem dos bosques Ideos arrebatado - Ganimedes gentil voára aos Numes. - - Dai-me, dai-me a segunda. Em honra agora - Do celeste prazer, que nos encende, - Este liquido fogo ao peito envio. - Graças ás mãos, que á terra afortunada - Derão em hora boa éstas videiras! - Graças a Baccho, ao protétor, que tanto - Desvelo lhes prestou! Graças á turba - De alegres raparigas, que levárão - Os cachos ao lagar em largos cestos! - A vós mancebos rusticos e alegres, - Que aos pés calcastes as cheirosas uvas! - E a ti, lenho feliz, em cujo seio - Os sagrados toneis se transportárão - Desde os campos de Chipre aos campos nossos! - Do celeste perfume ébrias as Ninfas - Te acompanhárão na veloz carreira; - Continuamente as velas te enfunárão - Com halito propício os frescos ventos, - Que lá brincavão pelas ferteis vinhas, - Faceis criando, e colorindo as uvas: - E o mesmo Baccho (eu não vos minto, amigos: - Ah! dai-me a taça, os labios se me seccão); - Baccho em pessoa, o vencedor das Indias, - Invisivel na pôpa revirava - O leme dirétor co’a mão divina. - Dai-me á pressa outro copo: outro: mais cinco: - Mais um que eu vote a Febo, e nove ás Musas. - Sinto o meu coração desfeito em gôsto! - Ah! por piedade rodeai-me todos; - Quando entre amigos bebo, um só não basta - Para me encher atropelados copos. - A cada qual de vós uma saude - Quero fazer; mais uma a cada Ninfa; - Aos Numes todos, que na terra habitão, - Aos Numes todos, que dos ceos nos olhão, - A todos que no Elisio nos esperão; - Farei uma saude a cada vaga, - Que desde a Herminea Serra[14] aos mares corre, - Álua, a cada estrella, a quanto existe. - Do mais vivo prazer me volvo em braços! - Rio, e respiro magicas delicias! - - Gelos, que em serras coroais as fontes, - D’onde as urnas as Náiades inclinão - Para mandar-nos de tão longe as aguas, - Derretei-vos em subitas correntes: - Brami de roda dos Hermineos lagos, - Ventos da tempestade; as átras nuvens - Reuní, condensai: retumbe ao longe - O ronco do trovão pelas florestas, - E o monte enorme em seus abismos trema. - Todo em chuveiros se desate o polo: - E cedo (oh! praza aos ceos!) e cedo o rio - Vença o leito, e com impeto revolva - Tropel ruidoso de espumosas vagas. - Sem poder contrastar-lhe a furia immensa, - Perto da margem sem poder ganha-la, - No escuro turbilhão de rôjo iremos. - Quando a aurora assomar, ja muito longe - Nos verá pelo Atlantico engolfados. - Do enfeitado batel voltando a prôa - Contra as vagas austraes, candidas velas - Presentaremos ao ligeiro Boreas. - Em dia bonançoso, e mar de rosas - Iremos sem temor, chêos de assombro, - Gozando entre as equoreas Divindades - Scenas de Maio no ceruleo campo. - Cedo veremos verdejando e rindo - O alto Cabo surgir na extrema ponta - Da Lusitana terra: erguendo aos astros - A nautica celeuma, alvoraçados. - Poremos no occidente o vago leme - Para afrontarmos as Titóneas plagas. - Entre o Barbaro solo, e o solo Hispano - Passaremos cantando o Estreito, aonde - As Colunas ergueo famoso Alcides. - Pelos ventos Hesperios ajudados, - Movendo assombro ás cérulas Nereidas, - Cortaremos, voando, em curtos dias, - Mediterraneo, tua longa estrada. - - Nossos astros serão por entre as ondas - O astro de Venus luminoso, e claro, - Ariadne, a esposa do contente Bromio, - E os Tindáreos Irmãos, cuja concordia, - Cuja amizade nos será de exemplo. - Eolo prenderá com mil cadêas - Euro o nosso contrario: as verdes ondas, - Ouvindo de Tritão troar o buzio, - Sem furia, sem fragor do barco emtôrno, - Chêas por cima de alvejante espuma, - Saltaráõ quaes no prado os cordeirinhos. - Que, meus amigos! receais procellas? - Procellas contra nós! Assáz os Numes - Nas almas sabem ler; nós demandâmos - Chipre, votada aos candidos prazeres: - Do vinho a Deoza, a Deoza dos amores, - Os Numes da amizade, eis nossos astros; - Que havemos de temer? Não, não me importa - Que o ar, que o pégo em furias se revolva: - Por entre a serração, por entre a morte, - Voaremos a rir de Chipre aos campos, - Quaes na barca da Estige um dia iremos - Dos lagos avernaes ao grato Elisio. - - Não ha que recear. Dai-me outro copo; - Outro bebei, e ouvi-me. Amigos fados - Da Ilha encantadora ao melhor sítio - Nos hão de conduzir: ja cuido vê-la! - Um cáes em meia lua, um cáes não grande, - Ja nos hospeda na conchosa arêa: - Unidas penhas de elegante aspéto - O anfitheatro deleitoso fórmão: - Todas se vestem de verdura, e flores, - Todas tem fria gruta, ou doce fonte. - D’estas fontes, que emtôrno enchem os ares - De um desigual, suavissimo murmúrio, - Umas descem chovendo entre os penedos, - Outras em larga enchente se arremeção, - Sem o musgo occultar, de rocha em rocha, - Té que ás bacias espumosas saltão. - Aqui um mirto, alem uma roseira - Coroa a entrada das pequenas grutas, - Ou lhes fórma seu tôldo, ou quasi as cobre. - Por toda a parte melindrosos ninhos - Se ouvem piar; por toda a parte adejão - Co’o sustento no bico as ternas aves. - D’esta folhagem se levanta o melro, - E vai pouzar na proxima folhagem: - Queixa-se n’uma gruta Filomela - Quando Progne sentida eleva o canto. - Prezos aos troncos Zéfiros murmurão; - Auras, dos valles proximos correndo, - Das invisiveis azas nos derramão - Almos efluvios de cheirosas flores. - Vede assentos, que a mão da Natureza - Nos rochedos abrio, que a mão do Tempo - Cobrio, amaciou com verde estofo; - Aqui se tem as Ninfas assentado - Pelas tardes de Maio muitas vezes, - Para gozar os brincos dos Amores, - Que ora lutão na arêa, ora apostando, - Se arrojão de mergulho aos verdes mares, - E apparecem depois nadando e rindo. - - Vamos: por esta parte o cáes nos deixa - Na Ilha penetrar: commoda entrada - Nos off’rece este portico de murtas. - Deozes! que vamos vêr! Salve cem vezes, - Bosque sombrio, magestoso, immenso! - Do desmedido Atlante a espadoa enorme - Não, não he quem sustem o eterno Olimpo, - És tu, sagrado bosque; a vista humana - Chegar não póde a teus soberbos cumes! - Serras, diluvios de ondeantes folhas - Sôbre colunas mil, que o raio assustão, - Se agitão sôbre nós. Longe, ó profanos! - Vates, erremos pelas frescas trevas! - Alem, se não me engano, o sol penetra. - Corramos. Oh prazer! oh maravilha! - Eis um retiro aos Numes consagrado, - Incognito aos mortaes, de encantos fertil! - Tu que vizitas cada dia o mundo, - Ó Sol, ¿que outro lugar no mundo encontras, - Onde com mais prazer teus raios lances? - Vede este prado, cujo fundo escondem - De Hibleas flores animadas nuvens: - Olhai sem guardador pingues rebanhos - Livres saltando nos outeiros verdes: - Vêde encostas de pampanos cobertas; - Fontes á sombra de arvores sagradas; - Jardins fechados de cheirosos muros - De altos lilazes, de azareiro e cedro; - Tanques no meio, onde em repuxo aos ares - Voão do bico de marmoreos cisnes - Argenteas linfas, que no ar se cruzão, - Mil arcos, mil abobadas formando, - E em fresca chuva vem mover os lagos! - - Que ditoso paiz! não sei que sinto - No meio agora d’estes sons campestres, - Respirando balsamicos vapores, - Em sacra habitação, entre os amigos, - Longe dos homens, da innocencia ao lado! - Abraçemo-nos. Sim: desde hoje unidos, - Seremos d’este sítio os habitantes. - - D’esse ribeiro na fecunda varzea, - Ali, onde hospedagem graciosa - Presta ás aves do ceo pequena selva; - Ali, onde estendidos pela grama - Junto ás novilhas candidas, repouzão, - Co’a cornígera fronte entre as papoulas, - Mansos touros, que o jugo inda não vírão, - Ali se vos apraz, se apraz aos Deozes, - Vamos pois construir nossas moradas. - - Do Genio do lugar primeiro em honra - Cumpre fazer as libações, e os votos; - Venerar, depois d’isto, a turba agreste - Das Ninfas do paiz; e culto, e nome - Dar ás fontes, aos campos, e ás collinas - D’estas gentis, incognitas paragens. - - Vede faias aqui, pinheiros, chôpos; - Abatei-os, tecei nossas cabanas. - Formemos uma aldêa: a cada alvergue - Juntemos um jardim, que ao fundo banhem - Do claro rio as fugitivas aguas. - - Não falte o culto ás sacras Divindades. - Á obra, á obra! o templo se levante - Nobre, proprio de nós, digno dos Deozes, - Com paredes de cedro á luz vedadas. - Deixamos á vaidade altas colunas, - Cúpulas d’oiro, abobadas suspensas - Em meia altura da extensão dos ares; - De trémula parreira um této basta. - - Ponde no tôpo o altar da Natureza, - De nossa adoração primeiro objéto: - Firmada sôbre um globo, como o nosso, - Uma estatua gentil figure a Deoza, - Virgem, bella, risonha, affavel, nua, - Guardando-lhe o pudor sendal ligeiro: - Colar de flores lhe atavie o collo, - C’roa de frutos lhe circunde a fronte, - Diversos ramos as madeixas ornem: - Tenha n’uma das mãos celeste chama; - Penda da outra, e por seguro fio, - O Genio do prazer, que as azas bata - Para voar-lhe ao cobiçado seio: - Cerquem-lhe o pedestal em turba immensa - Homens, feras, volateis, nadadores, - E quanto emfim por seu influxo existe: - Vejão-se á volta os poderosos Genios, - Que a seu sabor os elementos movem, - Salamandras, Ondins, Silfos, e Gnomos. - D’esta ara ao lado se verão pendentes - As flautas nossas, pois lhe são votadas. - - Sôbre outro altar a Deoza de Cithéra, - Não de marfim, nem marmore talhada, - Mas de alva cera das abelhas nossas, - Feita por nossas mãos encante a vista. - Quero-a nua de todo: ao seio amime - Entre os braços de neve o filho alado; - E co’a ternura languida nos olhos, - Como para o beijar lhe estenda os labios, - Curta tornando, como a d’elle, a boca. - As trez Irmãs de Amor pequenas, bellas, - Como invejando do menino a sorte, - Forcejem por trepar da Mãi ao collo, - Emquanto o Irmão travêsso a rir pretende - Co’as delicadas mãos lança-las fôra. - Duas turbas de Amores apinhados - Se ergão d’aqui d’ali: tenhão por terra - Os arcos, e os farpões; na dextra empunhem - Fachos, que hão de brilhar nos festos dias, - Por nossas mãos com sacro lume accesos. - - Defronte d’esta, na parede opposta, - Outro brilhe votado á Primavera. - Ali se mostre a Deoza, cuja veste - Um manto seja de tecidas flores; - De flores o toucado; a planta nua - Sôbre floreo torráõ firmada alveje: - Durma a seus pés o aurígero carneiro; - O Maio, filho seu, tenha em seus braços, - Igual em perfeições á Mãi formosa, - Alado como os Zéfiros e Amores, - Que os Amores, que os Zéfiros mais lindo. - Tenha na dextra um ramo florecente, - Onde pouzem pintadas borboletas: - No esquerdo braço um cabazinho grave, - C’os doces frutos, que em seu mez se colhem, - E a rir pareça á Deoza appresenta-los; - Mas a Deoza, estendendo a mão de neve, - Como que busque o grávido cestinho - Tirar de sôbre o seio, onde elle o punha. - De Favonios um bando se reparta - Aos dois lados do altar, em cujas dextras - Ponhamos bem fingidas cornucopias - Chêas d’agua, onde flores se conservam. - - Atrio cercado de sombrios louros - Haja na frente do sagrado alcaçar. - Por trez frondosos porticos se passe - Do templo ao atrio: emtôrno d’elle avultem, - Dos loureiros á sombra, as Deozas nove, - E o Nume protétor do equorea Delos. - - Um de nós cada mez será por sorte - Da sacra estancia o sacerdote, e o guarda. - Ficaráõ a seu cargo os festos dias, - Dos altares o culto, os hinos sacros, - E a protéção dos ninhos melindrosos, - Que as aves formaráõ do této em volta; - Para que nunca violados sejão, - Santa hospitalidade, os teus direitos. - - Da nossa aldêa ás proximas campinas - Daremos de cultura uteis desvelos. - Vertumno, e Ceres, e Pomona, e Flora - Hão de favonear trabalhos nossos, - E em sustento pagar nossas fadigas. - - Ricas hortas, dulcissimos pomares, - Doiradas messes, pampinosas vinhas - O celleiro commum nos terão chêo. - Da ociosidade vã não será filha - Nossa innocente e solida riqueza. - Algum de nós ao trato dos rebanhos - Seus cuidados dará: que importa o mundo? - Vida de nossos pais! vida dos campos! - Quem te nomeia humilde, e vergonhosa? - Vive o pastor no seio da innocencia; - No meio da pobreza he rico, e folga. - Emquanto os grandes entre escravos gemem, - Canta o pastor entre o rebanho, ou dorme, - Fiado em seu amigo, em seu rafeiro: - Nem ao menos que ha leis sabe nos campos. - São seus dias cadêas de prazeres, - E seus prazeres innocencia todos. - Não cala seu amor, canta-o nos bosques - Em alta voz, ou goza-lhe as delicias. - Ao transmontar do sol volta a seus lares; - Conta á porta o rebanho, e junto ao fogo - Vai co’a cêa frugal entre os amigos - Restaurar o vigor para o trabalho. - Repouza em paz sobre o macio feno - Emquanto alguma luz no ceo não raia: - Não ha cuidado, que lhe rompa o sono; - Se acaso sonha, os sonhos não lhe pezão, - Pintão passados bens, ou bens futuros, - E volta ao mesmo quando nasce a aurora. - Vergonhosa ésta vida! ó desgraçados, - Corai no meio das grandezas vossas: - Se o pastor conhecesse o vosso estado, - Nem de olhar-vos sequer nem se dignava. - - No regaço feliz da natureza, - Ao lado da ventura, os dias nossos - Serão a imagem dos doirados dias. - Como os primeiros pais da especie humana, - Viveremos frugaes entre a abundancia, - Ricos sem pompa, sem vaidade sabios, - Socegados sem leis, sem armas fortes. - Hão de mil vezes os campestres Numes, - E o sacro Povo, morador do Olimpo, - Compràzer-se de olhar a nossa aldêa. - Ao romper da manhã, ser-lhes-ha doce - Ver-nos todos sair dos proprios lares - Co’a alegria na face: uns diligentes - C’os instrumentos rusticos nas dextras, - Ou seguindo seus bois, tornar-se aos campos; - Outros guiando para os ferteis pastos - Longa tropa lanígera balante. - Ser-lhes-ha doce o ver como trabalhão - Todos no bem commum, sem que se escutem - Do _meu_ e _teu_ os nomes perigosos. - - Quando o gallo doméstico no aldêa - Soltar ao meiodia o canto agodo, - Correremos á mesa: unidos todos - De um bosque á sombra nos calmosos tempos - E junto ao fogo quando reine o frio, - Não veremos deante a rica prata - Com vivo resplendor cegando os olhos; - Nem dourados cristaes, nem porcelanas, - Cuja louca ambição furiosa arrasta - Tantos loucos mortaes, dignos de pranto, - D’entre os braços dos seus aos torvos mares, - E em fragil pinho, que rodêa a morte, - De longinquo paiz os leva aos portos. - De facil construção vermelho barro - Fará nossa baixella; e cavos troncos - Fundos, polidos, de jasmins c’roados, - Servir-nos hão de o rúbido falerno. - - De nossas hortas vegetaes gostosos, - Os teus dons, ó Pomona, e os teus, ó Ceres, - O mel puro e doirado, e o branco leite - Bastão assaz da Natureza aos filhos. - - E que? algum de nós contra o que vive - Ouzaria vibrar da morte a fouce! - O touro soffredor, cuja fereza - Para servir-nos se abateo ao jugo, - O touro, o nosso amigo, e o nosso escravo, - Que sem ter parte alguma em nossos gostos - Tomava parte nas fadigas nossas; - Que armado pelas mãos da Natureza - Podia, se quizesse, oppôr-se aos fracos, - Que a paz, que a liberdade ouzão roubar-lhe, - Depois de longo, aviltador serviço - Deve ... (oh pejo! oh furor! oh sacrilegio!) - Caír ás mãos do barbaro assassino, - Para quem só viveo! por quem mil vezes - Coberto de suor, chêo de espuma, - Co’a fronte baixa, sem mugir ao menos, - Queimado pelo sol, até soffria - Duro, ferreo aguilhão se fraquejava! - Qual ouzaria ensanguentar a dextra - Na mansa ovelha, da innocencia imagem; - Que incapaz de offender, nunca rebelde - Aos brados do pastor, seu proprio leite - Entre seus filhos e elle repartia, - E até para cobri-lo as lãs lhe dava! - Lindos filhos do ar, ternos cantores, - Que innocentes voais pelas florestas, - Nos prazeres, no Amor gastando a vida, - Filhos do ceo, modelos, que adorâmos, - Não temais habitar nos campos nossos. - Se o açor, se o falcão por estes sítios - Passar alguma vez, vinde, eu vos peço, - Vinde-vos esconder em nossos lares, - De vossa timidez sacra guarida: - Se nos virdes passar nos sitios, onde - Entre os ramos, á sombra vos agrada - Divertir gorgeando a terna esposa, - Que muda, e carinhosa esconde, e aquece - Entre as azas seus filhos pipilando, - Se nos virdes passar ... oh! por piedade - Não fujais, prosegui vossas cantigas; - Sois como nós da Natureza filhos; - A Mãi commum vos deo a liberdade, - Sustenta-vos, bem como nos sustenta: - Sois fracos, tanta basta; e nós não somos - Nem tiranos, nem perfidos, nem baixos - Para abusar da fôrça: he jus terrivel! - Se para vos matar compete ao homem, - Para o homem matar compete ao tigre. - Não: vivei entre nós, como entre amigos: - Somos todos irmãos: arcos, e setas, - Redes, e visco, passatempos torpes, - Não usa quem adora a Natureza: - Serião entre nós nefandos crimes. - - Se um dia á caça algum de nós (os Deozes - Affastem para longe o agouro horrendo), - Se um dia á caça algum de nós corresse; - Coberto de suor, de sede extinto - Praza aos ceos que discorra os duros campos; - Curve-o das armas o terrivel pezo; - Não ache onde empregar da morte as furias; - Seus proprios cães os membros lhe lacerem - Té que as entranhas vis ao sol descubrão, - E rôto arqueje o coração perverso: - Semivivo, rugindo, ardendo em raiva, - Entre penedos se revolva, e espume, - C’os olhos ja sem luz, chêos da morte, - Pallido o rosto, ensanguentada a coma; - Té que, mugindo em subita voragem, - Se rasgue a terra ao detestavel pezo, - E ao fundo o arroje dos sulfureos lagos. - E se o malvado consummar seu crime, - Se as mãos tingir no sangue do innocente, - O rio onde correr para banha-las - As ondas atropelle, e volte á fonte, - Fique attonito o monstro, e o leito sêcco; - E quando sôbre o fogo os miseraveis - Membros pozer, que o sangue inda gotejão, - Que inda tem no tremor de vida um resto, - Chêas de horror e de piedade as chamas, - Deixando intáto o funebre cadaver, - Com medonho estampido abandonando - N’um momento seu lar, se ergão aos ares - Para chover no algoz, torna-lo em cinzas. - - Mas vá longe de nós o quadro infame! - Somos frugaes, e simplices; e basta - Olhar-nos para ver nossa virtude. - Sim: que a lavrada seda, o oiro, as telas, - E dos insanos cortezãos a pompa - Não nos ha de cubrir. No inverno algente, - Contra os rigores da estação nublosa - Usaremos da lã que nos revista, - Sem que do artista a dextra insultadora - Lhe desfigure a côr, lhe mude o aspéto: - Se no outono reinar do inverno o frio - Voltaremos á lã: na primavera - Basta o candido linho: emfim no estio, - (Deixe-me em paz, ou seus ouvidos serre - Quem no corruto coração fomenta - De prejuizos vãos caterva impura!) - No estio, amigos meus, com vosco fallo, - Seremos todos nus: rião-se embora - Os perversos, que ao vício costumados, - Até na natureza encontrão vício. - Sim, andaremos nus; nus se mostrárão - Os pais, e as mãis do mundo em tempos d’oiro, - Nos vaguêão da America nos bosques - Da Natureza não corrutos filhos, - Nem os tinge o rubor, a côr do pejo, - Que o pejo nasce se a innocencia morre: - A Innocencia, a Verdade, as Graças bellas - Pintão-se nuas: nuas pelos bosques - Errão as Ninfas: d’entre as ondas nua - Venus saío de encantos rodeada: - Seu Filho, qual nasceo, se mostra ainda: - E todos nós, dizei, como nascemos? - Quando, depois de trabalhosas dores, - Nos cingem nossas mãis aos ternos peitos, - Tecidas vestes sobre nós encontrão? - Não: se o tempo o exigir cubra-se o corpo; - Se o tempo o não requer, porque insensatos, - Vãos, inuteis incommodos buscâmos? - - Prazeres me pédis, dou-vos prazeres: - A musica suave, a dança, os versos, - Dos bons ditos o sal, carreiras, lutas, - Tecer grinaldas de campestres flores, - Fresco, e murmúrio de favonios, e aguas, - Os ternos sons de aligeros cantores, - Da natureza o estudo, as graças d’ella, - As formosas manhãs, as bellas tardes. - Iremos navegar pelo ribeiro - N’este mesmo batel; a branca lua - Deante nos irá para guiar-nos: - Os ventos dormiráõ pelos outeiros: - De um, d’outro lado as arvores ao longo - Das socegadas margens, docemente - Se ouviráõ susurar de quando em quando: - O astro da noite ledo e scintillante - Se verá na corrente em longa estrada: - Echos repetiráõ nossas cantigas: - D’entre um canavial a Filomela - Se ouvirá gorgeando convidar-nos: - Com mil olhos de luz o ceo da noite - De ver nossa alegria ha de alegrar-se. - Algum campestre Fauno, que aturdindo - Com voz immensa a silenciosa margem, - Seus amores contar da fonte ás Ninfas, - O canto estrugidor alguns momentos - Suspenderá, de assombro arrebatado. - Se tivermos calor volta-se a proa - Sobre uma ilhota de vermelha arêa, - E encalhando o batel salta-se ás ondas: - N’uma noite encalmada um banho fresco - Nos consola, e refaz: ali se julga - Acima estar da natureza o homem; - Vive em novo elemento, em cujo seio - Revestido se crê de essencia nova. - Ao brando frio os membros pouco a pouco - Se conformão, se affazem, se contentão; - Dissipa-se o tremor, e a voz anciada - Um momento depois se resserena. - Todo o vivo prazer então começa: - Ora apraz o nadar contra a corrente, - Ora girar nas aguas escondido, - Ou c’os olhos na lua ir descançado - Em parte occulto, em parte descoberto, - De costas, ao som d’agua, escorregando. - De quando em quando um toma pé no fundo, - Assemelhando o busto de uma estatua - De marmore polido, que se eleva - Fronteira á lua, e solitaria brilha; - Os companheiros de redor o cercão, - E com muito clamor sobre elle atirão - Co’as plantas, e co’as mãos ondas sobre ondas. - Elle grita, elle ri, jura, e promette - De os punir, de vingar-se; então se arroja - Ás ondas outra vez, e os segue, e os urge, - Chove sobre elles desmedidas vagas. - C’o festival combate o rio ferve, - Perturba-se a corrente, os echos bradão - Oh como he doce um banho entre mancebos! - Um ri contando uma engraçada história, - Outro grita, outro canta, e todos folgão. - No fundo desigual talvez se encontre - Dormindo alguma Náiade entre as conchas. - Sois mortaes? e que importa? humano he Páris, - He Páris um pastor, goza entretanto - Ternos abraços de immortal Enone, - Que deixa por goza-lo a propria fonte, - E vem sentar-se entre um rebanho humilde; - E ai de vós, se das Ninfas não moverdes - Os puros corações para a ternura! - Mulheres não as ha nos campos nossos, - E vazia de amor a vida he nada. - Redobrai a attenção, pois devo agora - Fallar em baixa voz, porque receio - Que as formosas Mondágides me escutem. - - O mesmo coração, dezejos, gostos, - Que tem nossas mortaes no peito occultos, - Tem as Ninfas tambem: de exemplos quantos - Se não póde cingir ésta verdade! - Sobre as aras de Amor todas off’recem: - Os ais do adorador nenhuma offendem, - Comprazem-se de ouvir que as chamão bellas, - E a gloria prezão de enxugar o pranto, - O pranto que ellas sós nos arrancárão. - Se nos ouvem crueis, se esquivas fogem, - He porque insana lei de atroz costume - Lhes ordena o fugir, lhes insinua - Que he delito em seu sexo a natureza: - Mas contra a natureza em vão combatem - De cega educação fataes abúsos! - A mãi universal ou cedo ou tarde - Vence, triunfa, e no triunfo leva - O sexo encantador ja maniatado. - Todas oppõe sabida resistencia, - Mas cumpre não ceder: por nós combatem - Seu mesmo coração e a natureza, - Que auxilio inefficaz jamais nos farão. - ¿E não sabeis que emquanto desdenhosas - De nossos ais parecem offendidas, - Quaes se as mordesse venenosa serpe, - Tremem, recêão que ao temor cedamos, - E frouxa timidez nos furte as armas? - Inda que ostentem ríspida esquivança, - Agrada-lhes a guerra, e occultos votos - Fazem a Amor para ficar vencidas. - Implorar-lhes perdão he ultraja-las; - Contra ellas ser audaz he ser-lhes caro, - He dar-lhes bens, poupando-lhe a vergonha. - Mas a regra primeira, a grande, o tudo - Entre as regras de amor, he o artificio. - He vasta a gradação de sentimentos - Da innocencia á ternura. Em cume altivo - De alta montanha, cujo aspéto assombra, - Tem seu templo a Ternura, onde cercada - Das Graças, dos Prazeres, dos Amores, - Encanta os corações benigna Venus: - He forçoso galgar toda a montanha, - Subir de rocha em rocha, e p’rigo em p’rigo - Para se entrar no deleitoso alcaçar. - Quem pretender poupar um passo ao menos, - Quem saltar pretender, perde o ja ganho, - Para mais não surgir baquêa em terra. - Amor azas não tem, como se pinta; - A curtos passos, devagar só anda. - - Começaremos offertando ás Ninfas - Sôbre altares campestres, levantados - Das arvores á sombra, ao pé das fontes, - Ou nas grutas do fresco, ou sôbre outeiros, - Festões, grinaldas, passarinhos, frutos, - E capellas de búzios e de conchas, - Mais brilhantes, mais bellas do que o Iris. - Formaremos cantigas, em que aos echos - Dos campos entre a lida repitamos - As perfeições, os méritos, os nomes - Das Napéas, das Dríades formosas, - Hamadríades, Náiades, e quantas - Filhas da Natureza a terra habitão, - Para formar com dextra occulta e sábia - Do rústico o prazer, do vate o encanto. - Isto, e a nossa virtude, e a vida nossa - Laboriosa, honrada, alegre, e quasi - Igual á vida dos campestres Deozes, - Disporáõ para nós seu terno peito. - Talvez qué pouco a pouco minorado - O custo susto de encontrar humanos, - Não fujão de mostrar-se a seus cantores. - Se eu descançar junto de um cedro antigo, - Ou de uma faia, ou reclinar a fronte - Sôbre a raiz em parte descoberta - De uma oliveira, ou castanheiro antigo, - Darei graças á Dríade, que habita - No tronco bemfeitor, que me faz sombra; - E d’elle a amavel Dríade saindo - Virá sentar-se ao lado meu na relva. - - Depois que pouco e pouco transformado - Se houver em confiança o pejo, o susto, - Mudaremos de estilo: em nossos versos, - E só, e de contínuo a formosura - Em fogo nos porá do estro as azas. - Hão de sorrir-se e comprazer-se, e muitas - Suspenderáõ em seu caminho os passos. - He lei sem excéção; domina em todas - A sêde, a gloria de chamar-se bellas. - Mas bellas tão somente heis de chama-las, - Sem falar-lhes de amar: depois de affeitas - A ouvir a narração de seus encantos, - Dizei-lhes que por certo as rochas mesmas, - Os troncos, e o cristal das frias aguas - Ardem cativos de bellezas tantas; - Que o sol com mais prazer detem seus olhos - Nos campos d’ellas, só por ver seus rostos. - Se virdes que um sorriso gracioso - Vos recompensa o canto, audacia, amigos! - Avante um passo, e n’este passo cumpre - O segredo buscar. Desde esse instante - Não lhes falleis deante das mais Ninfas; - Buscai até que os socios vos não oução. - - Suppõe tu, caro Antíeno, encontrar-te - (Esta supposição perdoe Alcippe) - N’um bosque solitario, onde vaguêa - Quem te faz delirar em novo incendio. - Se ella está pensativa, “Oh venturoso - O objéto, lhe dirás, em que se occupa - Tua imaginação, formosa Ninfa! - Se eu o fosse!... ai de mim! porque revolve - Loucas esp’ranças, se chorar só devo?” - Se a vires sôbre o espelho do cascata - Com brancas rosas concertando as tranças, - Qual sôbre o teu ribeiro o faz Alcippe, - “Feliz rainha das mimosas flores, - Feliz rosa, dirás, inda que perdes - Ao pé das graças d’ella as graças tuas!” - Se pozer sôbre o seio as melindrosas - Roxas flores de amor, dirás: “Que inveja! - Por ser vós um momento eu dera a vida!” - Mas isto em meia voz, para que julgue - Que não he por te ouvir que assim fallaste. - Não se irritou? prosegue, e de mais perto, - “Permitte-me, (dirás com ar ingenuo, - Chêo de timidez) permitte, ó Ninfa, - Que eu te torne mais bella, e te componha - Essas flores, que um pouco se desmandão.” - Se ella o permitte, a occasião não percas: - Se ella hesita e se cala, não recusa; - Compõe-lhe o ornato no formoso seio, - E sorrindo, lhe dize: “Alguem no mundo - Existe que não ame as proprias obras? - E’sta obra, que findei, me agrada tanto!...” - N’isto beija-lhe o seio, e deixa as flores. - D’aqui avante o mar he ja tranquillo, - Propício o vento, e mui vizinho o porto: - Ja de piloto o lenho não carece; - Quanto offerece amor tudo he ja vosso. - - Ja vejo sôbre os ceos dos nossos campos - Todo o dia brincando em roseo coche - Pelas pombas tirada a amavel Cípria: - Coroado de louro, ei-la contente - Entre palmas, que sombra lhe derramão! - Ei-la por toda a parte sacodindo - Do misterioso cinto encantos, gostos, - Delicias, tudo emfim que obriga a Jove - Mudado em branco cisne, ou chuva d’oiro, - A trocar pela terra o sacro Olimpo! - Desde então mais ditosa he nossa aldêa, - Mais risonhos seus bellos arrabaldes: - Ha misterios de amor em qualquer gruta, - Em qualquer solidão brincão prazeres. - - Eis os frutos de amor, que desabrochão! - Ja os vejo das bellas entre os braços, - Qual pequeno botáõ nascido apenas - Da rosa ja perfeita ao lado brilha. - Ei-las co’o proprio leite a sustenta-los; - Taes como descreveo nos magos versos - Francilia; Musa de meu patrio rio, - A doce amiga sustentando o filho, - _Igual a Venus com Amor nos braços._ - Eu as vejo, depois de afagos ternos, - Soltar de si os cintos azulados, - Em dois troncos prender as pontas ambas, - Abri-los, deitar dentro entre mil flores, - Depois de o ter beijado, o tenro infante, - Para ser dos favonios embalado. - Eu as vejo nos troncos encostar-se - Co’as mãos na face, e os olhos no innocente, - Juntando aos sons das aves em seu ninho - Ternos cantos, que os filhos adormeção. - - Ja co’a turba infantil recresce a aldêa: - Succedem ao silencio alegres brincos, - Gostosos passatempos se preparão, - De nossos bens o número se aumenta. - Vai crescendo em razão, crescendo em fôrça - Ésta prole feliz, que os Cíprios valles - Como os Amores, como as Graças, honra. - Creados longe do tropel das côrtes, - Puros no coração, que ninguem busca - Semear de illusões, de prejuizos, - Educados na paz, sem ver tiranos, - Sem ouvir discorrer pedantes sabios, - Té das Sciencias ignorando os nomes, - Terão destinos, que excedendo os nossos, - Não hajão que invejar os puros dias, - Que cegamente se nomêão d’oiro. - D’oiro! ai d’elles se o oiro então se visse! - Mais nocivo que o ferro, a bemfazeja - Terra o sumio nas maternaes entranhas, - Sôbre leitos de pallido veneno. - Quando o Genio do mal o trouxe ao dia, - Chêas de assombro, de tropel correndo, - Fugírão co’a Justiça almas Virtudes; - E pelas fundas minas, que o guardavão, - Surgio do patrio inferno a perseguir-nos - Chusma de Vicios, e raivosas Furias, - Que os Vicios inspirando, os Vicios punem. - Se alguma vez os descendentes nossos, - Quando a terra pacificos romperem, - Encontraram com oiro, um grito soltem; - A aldêa se reuna ardendo em raiva, - Qual se dos bosques férvido saisse, - Igual ao raio, o bruto d’Erimantho; - E o pallido fulgor da massa infesta - Vão longe sepultar nos verdes mares. - “Monstro contrário a nós, sê devorado - Pelo monstro do mar, que em furia vences” - Dirão todos em chusma; e socegados - Tornaráõ a lavrar seus ferteis campos. - - Que idea pelo espirito me adeja - Chêa de luz, de encantos rodeada! - Ja vejo pelos ares scintillando - Os fachos de Himeneo. Ja pelas ruas - Vestidos de alvo linho, e coroados - De fresca mangerona os moços correm, - “Ó Himeneo! Vem Himeneo!” gritando. - “Ó Himeneo! Vem Himeneo!” respondem - Os campos d’echo em echo; e pelas casas, - Chêas de gôsto, e de esperança as virgens - “Vem Himeneo, ó Himeneo!” repetem. - As ruas de verdura estão juncadas, - Listões de flores coroando as portas - Enchem os ares de composto cheiro: - E os meninos, que as causas não percebem - Do confuso prazer, vão transportados - Correndo em chusmas, e batendo as palmas, - Gritando, “Ó Himeneo!” La desce, e pouza - O Nume sôbre o altar da Cípria Deoza! - O venturoso par la vai sobindo - Por entre a multidão, que attenta o mede. - La chega ao sítio destinado aos votos. - Sacerdotes não ha: da aldêa os velhos - Os cercão de redor. La se abraçárão!... - He curto o voto seu. “Juro adorar-te - Emquanto o doce amor tiver no peito.” - Unindo o seio ao seio, e face á face, - Depois se beijaráõ por largo tempo; - E o Nume da alliança, o carinhoso - Filho de Urania os cingirá dos mirtos, - Que de Venus, e Amor as frontes ornão. - Depois algum de nós se erga c’roado, - Para fallar d’ésta maneira ao povo. - - “Nasceo Amor para encantar os homens, - Não para ser dos corações tirano. - Menino ama o brincar, e quer ser livre. - Cura o tempo as feridas que elle fórma: - Depois de alto clarão, que cega os olhos, - Seu facho, pouco e pouco enfraquecendo, - Vem por fim a apagar-se: a Natureza, - Nada produz que não succumba á morte. - Os animaes, as flores, os arbustos - Tem curta duração: vai manso, e manso - O tempo destruindo altas montanhas, - Gasta-se o escolho c’o bater das ondas; - Succede a lua ao sol, á noite o dia, - Uma estação perece, outra renasce: - Tudo he mortal na terra, e mais que tudo - As humanas paixões insulta a morte: - Succede ao riso o pranto; á dor prazeres; - Ao odio amor; ao terno amor a raiva. - Eu vi moraes affétos n’um só dia - Nascer e terminar, qual nasce e murcha - N’um só dia de abril a rubra rosa. - Ditoso par! amai-vos extremosos - Emquanto a natureza vos consinta, - E oxalá que o consinta em largos annos! - E oxalá que de vós o que entre os mortos - Primeiro descançar, sinta regadas - Pelos olhos do sócio as mudas cinzas. - Feliz quem n’um só fogo arde constante; - Feliz, mas raro como os negros cisnes! - E ha loucos, e ha perversos, que ante as aras - Jurem guardar uma constancia eterna? - Cegos, que a natureza desconhecem, - Ou zombão d’ella escarnecendo os votos. - Jurão-se amar sem fim, e ou tarde ou cedo, - Sem fim, e sem remorsos se detestão! - Jurão-se amar sem fim! Mal que resoa - Debaixo das abobadas o voto, - Calcando o arco aos pés com ar maligno - O pobre Amor retira-se chorando - D’ésta afronta cruel; pois sua glória, - Seu prazer, e seu timbre he ser voluvel. - Crepitando em faiscas derradeiras - Se apaga o facho, que debalde agita, - E emtôrno espalha venenoso fumo, - Fumo, que obriga a lágrimas eternas. - Entre pios e agouros desgraçados, - Ao leito nupcial os acompanha - Entre alegre e assustada a meiga Venus. - Co’as serpes do cabello desgrenhadas, - Mas inda sem silvar, detraz os segue - Impaciente a rabida Discordia. - De flores se coroa a lauta mesa, - Voão-lhe em roda as graças, e o falerno, - E riso, e confusão de encantos chêa. - Mas ah! cedo os pezares, e os suspiros, - A desesperação, e as vãs querellas, - E a desordem, e as lágrimas rodêão - Os lares do prazer; a scena infausta - Não rara vez negro punhal termina, - A viuvez, o luto envolve o leito! - Mas vós, ditoso par, vós, cujos labios - Não proferírão temerario voto, - Folgai, vivei, nos braços da ternura, - Melindrosa ternura, que não morre - Se lhe não lanção vergonhoso jugo. - Para amar-vos fieis por largo tempo - Sede amaveis, ou sede virtuosos - Porque a doce virtude he sempre amavel. - Se o fogo se acabar, voltai ao templo, - A prender novo objéto em novos laços.” - - Ouvindo este discurso o povo inteiro - O applaude em baixa voz, e á Mãi das Graças - Se canta o hino, que remata a festa. - O resto d’este dia he dado aos jogos, - Gasta-se a noite á roda das fogueiras - Em musicas e em danças variadas. - - Engano-me, ou queixosa a Natureza - Escuto suspirar? não, não me engano! - Ella suspira, e pede-nos vingança - D’outra injustiça, que lhe faz o mundo. - Ouvi, e concordai: sabeis que muito - Em número nos vence o amavel sexo. - Se a Mãi universal não gera um ente, - Que não consagre a amor; e a lei sagrada, - Que obriga a propagar a propria especie, - He lei universal, que abrange a todos, - ¿Com que jus, por que horrenda tirania - Privadas d’Himeneo suspirão tantas? - Não: cada esposo esposas enumere, - Té que uma só sem thalamo não fique; - Todas d’est’arte viveráõ contentes; - A honra de ser mãi pertence a todas: - Cresce a aldêa, não brada a Natureza; - Infamadas não são as que procurão - Os prazeres de amar, de ser amadas: - Não se ouvirá que um barbaro veneno - Dera a mãi a seu filho inda no ventre; - Ou que um férreo punhal, ou laço infame - Logo ao nascer lhe terminára os dias: - Nem Venus corará vendo offertar-se - De ternura venal corsutos mimos. - - Quão bellos correráõ nossos momentos, - Longo, e tão longe dos polidos povos! - Quasi Numes na vida encantadora, - Até na duração quasi seremos - Rivaes do povo habitador do Elisio. - O fio d’oiro da existencia nossa - Inteiro volveráõ no fuso as Parcas. - Com pé tardío a inevitavel Deoza, - Que o Mundo despovoa, e bebe o pranto, - E acompanha a saudade entre os ciprestes, - Sem terror, e sem fouce, e até sorrindo, - Sem que a precedão seus fataes ministros, - Nos levará de manso e a curtos passos, - Coroados do cãs para o sepulcro. - Mas, amigos, quem sabe! as Cíprias Ninfas, - Se o fado o não tolher, talvez nos mostrem - A verde planta, que ao cerúleo reino - Deo mais um Nume, transformando a Glauco. - Semideozes então, nos tornaremos - De nossa aldêa os sacros protétores! - Mas não: a lei da morte he lei terrivel, - Que rara vez os Numes quebrantárão. - - He forçoso morrer!... Longe os temores! - He forçoso morrer, morra-se embora. - Não faltaráõ dulcissimos transportes, - Prazeres e ternura ao lance extremo! - Sôbre o funereo leito o moribundo, - Ja sem côr, ja sem fôrça, e quasi extinta - Em seus olhos a luz, e a voz nos labios, - Erguendo a fraca dextra acena, e chama - Cadaum junto a si; vai despedir-se - Para o sono sem fim! Sôbre as heranças - Que ha de recommendar se não tem nada? - Nada excéto a virtude, e os instrumentos - Com que a terra lavrou. Sua cabana - Vai ter outro senhor; as flores suas - Implorão no jardim desde este instante - D’outro cultor a próvida tutella: - D’outro, sim; cuja mão todos os dias - Irá de madrugada aos sacros manes, - Pendurar sôbre o tumulo orvalhado - Uma grinalda de orvalhadas flores. - - Elle abre inda uma vez seus frouxos olhos, - Onde começa a derramar-se a noite, - E de seus labios tremulos, por onde - Ja põe a occulta morte a mão gelada, - Sólta chêo de afféto a voz, que expira, - E seus amigos, e seus filhos chama: - Os seus amigos mudamente o cercão, - E não mostrar-lhe as lágrimas procurão: - Áluz da tibia alampada contemplão - Quanto a hora fatal ja se aproxima. - E seus pobres filhinhos entretanto - N’um canto da cabana estão sentados; - Dos amigos no gesto, e nas maneiras - Ler seu destino impacientes buscão, - E attonitos, e tristes nem se atrevem - A fallar, a fazer qualquer pergunta, - Porque os não lancem d’este sítio fóra: - Mas olhão-se entre si co’um ar tão meigo, - Lastimoso, innocente, que podéra - Desfazer de piedade a propria morte, - Se o fado não contasse os nossos dias. - Seu Pai, que os adorou, quer inda vê-los, - Lançar-lhes a sagrada, última benção, - Ver seu pranto, gozar dos seus afagos, - Quer chama-los. A voz faltou de todo! - E deixando caír de lado o rôsto, - Soltou da vida o derradeiro arranco. - - Ao profundo silencio altos clamores - Succedem n’um momento; e o pranto, e os gritos - Por toda a parte na cabana sôão. - Os meninos confusos se levantão, - Ouvem a nova, attentão no cadaver: - Ouriçado o cabello, o sangue frio, - Pallido o rosto, e vacillante o passo, - Fogem para o jardim, por onde os segue - A imagem de seu Pai, no susto envolta. - Qual o vírão ha pouco, o tem comsigo! - Dos parreiraes as sombras os perturbão, - Vem nos troncos das árvores fantasmas. - Vão buscar o luar do rio á borda; - Mas lembrão-se que ali todas as noites - Passeavão com elle: ésta lembrança - Os torna a perseguir; e em tudo encontrão - De um Pai tão caro o aspéto, que os assusta, - - Pela aldêa se espalha a infausta nova, - E parece que a morte em cada casa - Arvorára um trofeo! Domina em todos - A dor, que se desfaz em pranto e gritos! - Dir-se-hia que furioso, insuperavel, - Hia de této em této um vasto incendio. - Depois que um pouco em lúgubres transportes - A dor se evaporou, por toda a parte - Sôão louvores do chorado amigo. - Cadaum lhe encarece uma virtude, - E de cada virtude exemplos contão. - - O Justo dorme em paz: mas entretanto - Ninguem dorme na aldêa. Ouvio-se o gallo - Cantar, quando expirou da noite em meio: - Torna o gallo a cantar na madrugada; - E em contínua vigilia discorrêrão - As longas horas, que á manhã precedem! - Torna o gallo a cantar na madrugada, - A aurora quer nascer; enchem-se os ares - De uma luz, que ao luar excede um pouco. - Do ninho suspendido em nossos tétos - A andorinha ja sáe; vôa cantando - Defronte agora das janellas nossas - Para nos saudar, pois entra o dia. - Ja dos ceos pelos flúidos espaços - Circula a cotovía, que não cança - No longo canto, ou desmedido vôo: - Ja o rumor das arvores e fontes, - Que da noite na paz costuma ouvir-se, - Vai fugindo com as trémulas estrellas; - Torna a alegria ao mundo, e ao campo as cores: - Mas a alegria d’entre nós he longe, - Os campos todos para nós tem luto. - Ja se ouvem resoar da aldêa as portas; - Ja sáe, ja se reune o povo inteiro. - O ar de meditação domina em todos, - Todos trazem de pranto rociadas - As recentes grinaldas, que tecêrão. - - Em plantas aromaticas envolto, - Do alvergue, ha pouco seu, la vem saindo - O deplorado amigo: ao caro pêzo - Submettem quatro os hombros vigorosos. - Bençãos, bençãos ao Justo, em cujo aspéto - Por entre a pallidez inda ressumbrão - Mansa innocencia, affétos generosos! - A lenta marcha á turba consternada - Rompem com baixo tom sonoras flautas, - Que de triste alverôço o peito agitão. - Apôz ellas, o funebre cadaver - Dos Anciãos vai precedendo á chusma. - Estes, fronte inclinada, olhos em terra, - Vão suspirando, e a vista lacrimosa - Lanção de quando em quando ao doce amigo, - Que os precedeo na regiáõ da morte. - Em seguida, modestos se confundem - Os mancebos, de teixo coroados, - Co’as bellas raparigas, que parecem - Mais formosas co’a languida tristeza: - Elles cantão em côro aos longos echos - O como a quanto existe abrange a morte; - Ellas em tom mais doce a voz levantão, - Para mostrar como a existencia curta - De prazeres doirar-se ao menos deve. - Vão depois os meninos innocentes - De ambos os sexos em confuso bando: - Levão em suas mãos para o sepulcro - Pequenas oblações; pomos, e flores, - Taças de leite e mel, de vinho e d’agua - Tomada em fonte viva antes da aurora, - E de barro thuribulos não grandes. - - Ja se chega ao lugar sagrado á morte: - He um valle sombrio, onde se abração - Mil arvores diversas, onde habitão - Meigas filhas do ceo, canoras aves: - Reveste fresca relva a terra fria, - Pallido musgo os carcomidos troncos. - Aqui frescos favonios adejando - Pelas folhudas grimpas, docemente - Só se ouvem suspirar: aqui mais terna - Derrama a aurora o pranto matutino; - Mais terna geme e rôla; e mais delirios - Na alma gera o luar por estes campos. - He fechado o lugar de mil rochedos, - Por onde algumas fontes se derivão - Com tacito rumor, que inspira os sonos: - Pelas profundas, tenebrosas grutas, - E sôbre os agudissimos rochedos - Crê-se ver e escutar sagrados manes, - Em frouxa voz, que as auras assemelha, - Cantando os gostos da passada vida. - La não geme a coruja, ou pia o mocho: - Reina em vez do terror branda saudade, - Terna melancolia, encanto, enlêvo - Dos corações, das almas bem nascidas. - - Que estrondo he este pelo chão de morte? - São as férreas enchadas, que se alternão - Para formar do eterno sono o leito. - Agora cresce a dor na despedida. - La chega, la se arroja, la se esconde - Da Mãi universal no seio um filho! - “Paz ao homem de bem!” dizem de roda - Os velhos, e retirão-se chorando. - “Leve te seja a terra!” os moços gritão, - E partem derramando-lhe folhagem. - Chega a turba infantil, seus dons off’rece, - E vai juntar-se á multidão, que torna - Aos trabalhos de novo á sua aldêa. - - Mas ah! qual d’entre nós terá primeiro, - Caros amigos, de fechar seus dias? - Quaes choraráõ no tumulo silvestre! - Talvez eu vos preceda, e vá saudoso - Ver na Tenárea porta o Cão trifauce, - Na Estige nebulosa a barca horrenda, - E do Elisio paiz os gratos campos, - La onde os vates do universo inteiro, - Ja Numes, em republica se unírão. - - Mas não pensemos n’isto: he Maio agora - Que devemos cantar: nós o jurámos. - Recomponde na fronte as vossas c’roas; - Ergamo-nos, enchei de vinho as taças; - E ante o Ceo, ante a Lua, que nos ouve, - Entre os Favonios, e as formosas Ninfas, - Que escondidas nas ondas nos rodêão, - Saudemos novamente o alegre Maio, - Jurando que desde hoje em nossas liras - Ha de escutar cada anno os seus louvores. - - Ó Maio, eu fallo; escuta-me. “Por este - Licor de Bassareo, que me arrebata; - Pelos Filhos gentís da branca Leda, - Que pela mão a nós te conduzírão; - Por tuas flores, com que estou soberbo; - Por tuas fontes, zéfiros e bosques; - Por teu ceo graciosa; e por ti mesmo; - E pela tua amiga, a minha Musa, - Juro de consagrar emquanto viva, - Todo o teu mez ao teu louvor, e ás festas.” - -FIM DA FESTA DE MAIO. - - - - -NOTAS Á FESTA DE MAIO. - - - - -CANTO I. - -_Pag. 204. verso 4.º_ - - Das Filhas de Nereo a mais formosa - Foi Galatéa candida e rosada. - - -Como das bagatelas que forçadamente tenho semeado por alguns d’esses -Jornaes, que he o mesmo que escrever em folhas e atira-las ao ar, algumas -haja que não mereção de todo perder-se, estas me pareceo i-las recolhendo -a meus livros, por qualquer modo que fossem achando cabida, para não ser -como a Sibilla de Cumas, que em uma vez se lhe desmandando com os ventos -as folhas que tinha escritas, ja para sempre tirava d’ellas o sentido: -_neo ponere in ordine curat_. Por isso traslado do Num. 3 do _Jornal dos -Amigos das Letras_, todo o seguinte Artigo[15]. - - _Antonii Feliciani de Castilho_, - - GALATEA: CARMEN. - - ADVERTENCIA PRELIMINAR - - O fragmento latino que se vos offerece, sob o titulo de - Galatea, he huma tentativa e nada mais: e quem mo quisesse - haver a ostentação, não só mostrára quam pouco me conhece, - mas ainda com atrocissima injúria me aggravaria. Discorridos - são hoje mais de dez annos, depois que, desejoso de refrescar - lembranças de conhecido com as Romanas Musas companheiras e - alegria de minha infancia, me dei ao passatempo de metrificar - em latim, ja os pensamentos que primeiros me occorrião, ja - algum episodio de minhas proprias obrinhas; sendo assim, - que esta fabula de Galatea a trasladei do Poema da _Festa - de Maio_, no meu livro da _Primavera_. Sei bem que não ha - hoje, e especialmente por cá, leitores para o latim, sendo a - final chegado o prazo de, com razão e sem o mínimo escrupulo, - se poder chamar tal lingua morta e enterrada: sei mais que, - inda mal, não respondem estes meus versos ao que eu anciára - que elles fossem, e nem valem mais que uma boa parte dos ahi - impressos na custosa Coléção de Poetas do nosso Padre Reis; - e com tudo, a despeito d’estas duas tão fortes razões, e tão - valentes para me deverem dissuadir, convim em que tão pobre - couza se désse á estampa. Será, segundo muitas vezes se escreve - em Prologos, para incitar engenhos a fazerem melhor? não. Pois - será, como tambem em Prologos se usa de escrever, para que - os Aristarchos me ensinem o que, o como, e o por onde devo - corrigir e melhorar? menos; que não sei eu de um só que se hoje - occupe com semelhantes vaidades. Como por tanto me livrarei da - desmerecida taxa de presunçoso? confessando, como tambem em - Prologos se costuma, mas d’esta vez com verdade, que o faço por - obedecer a dezejos de pessoa, com quem muito me importa estar - em tudo bem. - - GALATEA - - _Carmen, ex Lusitano Latine redditum._ - - Assiduis, juvenes, proscindite flumina remis, - Dum vacat et picto lœtos juvat ire phaselo; - Intereaque meo vestrum fallente laborem - Carmine, Romanas percurram pollice chordas. - - Nereidas inter quondam pulcherrima Nymphas - Nympha fuit Galatea maris: cui lilia mixtis - Ore rosis, flavæque comæ, roseique labelli, - Cæruleoque oculi placido fulgore micantes, - Et sinus albenti in scopulis albentior unda, - Qualem nec Paphiis habuit quæ regnat in arvis. - - Tertia postdecimam vernantia tempora brumam - Floruerant, postquam vitali vescitur aura - Nympha; nec in terris, aut cœlo, aut æquore toto - Est quæ formosis ausit contendere formis. - Multi illam juvenes, multi petiere deorum, - Undique blanditiis et laudibus insidiantes, - Nulli illi juvenes, nulli placuere deorum. - - Hanc pater undisono sub gurgite in antra vocavit, - Amplexumque dedit, tremulisque sedere coegit - In genibus, tales fundens post oscula voces: - “Filia, tempus adest pueriles linquere ludos. - “Non te pulchra latet, qua subjicis omnia, forma; - “Tene latet quantis fugiendi viribus, instant - “Qui toties, laudesque ferunt, gressusque sequuntur? - “Crede patris canis et amori crede paterno; - “Quò plus obsequiis, quò plus sermone placebunt - “(Parce seni juvenem patri non grata monenti) - “Hóc magis incautæ protendent retia formæ. - “Filia, tempus adest pueriles linquere ludos: - “Sit tibi cura meos posthac delphinas in undis - “Pascere, perque salum deformes ducere phocas; - “Non bene pigra tuis ignavia convenit annis.” - - Dixit: et e patrio discerpta coralia ponto, - Cuspide inaurata, pastoria munera, virgam - Tradidit, atque pecus natæ commisit habendum. - Est virides inter, Nereus quibus imperat, undas - Valle locus tuta, nec divo pervius ulli, - “Hic maneas, dixit, te sæpe deinde revisam.” - Arrisit, natamque pater sine teste reliquit. - - Haud semel ignifero radiarant lumine currus, - Phæbe tui, dum lœta pecus Galatea marinum, - Gurgitis inter opes, viridanti paverat alga. - Interdum æquoreis linquens armenta molossis - Ibat, et in calathos modo tinctas murice conchas, - Et modo lucentes baccas contenta legebat. - Ver erat, et pictos zephyris mulcentibus agros, - Mense renidebat tellus lætissima Majo; - Aureus in liquidæ Sol brachia Thetidos ibat. - Deserere ima maris, solum conscendere littus - Ausa fuit virgo, non sic reditura sub undas. - Summa petens scopuli viridi sub rupe recessit, - Unde fretum, terrasque lubens circumspicit omnes. - Hic sedet, et pascens animos novitate locorum, - Miratur, facilesque oculos fert omnia circum. - Ut mediis vidit formosum fluctibus Acin - Æquora jactatis tranantem cana lacertis, - Versibus abstinuit, versus nam forte canebat; - Erubuit, turbata silet, suspiria ducit; - Nunc subeunt jussus, subeunt hortamina patris; - Jam cupiat tutis fugiendo immergier undis, - Nec potis est cupiens, et littore perdita inhæret: - Nunc libet et tacito cautæ latuisse sub antro, - Donec arenoso mutarit littore fluctus - Discedensque puer securam liquerit oram; - Pænitet inde fugæ, sistit, mavultque videri. - Corpora, cæruleas inter candentia lymphas, - Quam numeris perfecta suis! quam fortia pulsis - Devectantur aquis! quam multa est gratia nanti! - Quam bene suffuso sua membra liquore teguntur, - Quam bene disperso nudantur eburnea ponto! - Cuncta tenent oculos, in cunctis Nympha moratur. - Interdum propius sensim vestigia ponit, - Nec propiora tamen fieri vestigia sentit. - Queisque prins sparsis volitaverat aura capillis, - Nescia cur fingat, vel collo dividat apte, - Dividit illa tamen, studioque indulget inani. - Hinc littus petit, ac vultus speculatur in unda, - Et quanquam ipsa sibi pulcherruma tota videtur, - Pulchrior exoptat fieri, frustraque laborat. - - Interea juvenis, jam fessus nasse, redibat, - Et prope jam fulvas manibus tangebat arenas: - Illa fugit, trepidatque, et rupe reconditur ima. - Hic latet, et votis contraria vota rependens, - Nunc patris hortatus, et nunc reminiscitur Acin, - Et rubet, et pallet, nec vultibus hæret in isdem. - - Haud mora: nudus adest, antrumque Simethius intrat - Acis, ut abjectas repetat sub tegmine vestes. - - Quid remi cecidere, quid ó cessatis amici? - Nonne retro refugisse ratem, dumque ora tenetis, - Aversam in portus sentitis abire relictos? - Instaurate opus, ac totis incumbite remis: - Quó pœnas detis, dictis nihil amplius addam. - - - - -CANTO II. - -_Pag. 237. versos 15 e 16._ - - E que? algum de nós contra o que vive - - -A questão, se sim ou não se ha de o homem alimentar de substancias -animaes, tem sido muitas vezes, e com oppostas sentenças, debatida por -filosofos, poetas, naturalistas e medicos. A affirmação e a negação -achárão para argumentos ja uso e consenso de povos em todos os tempos, -ja razões intrinsecas tiradas de nossa propria conveniencia. He assunto -que requeria larga escritura, e em que a qualquer seria facil dissertar -eruditamente. Voar-lhe-hei pelas summidades. - -Aquella vaga tradição, que em toda a parte permanece, de uma primitiva -idade do mundo innocente e felicissima, entre as couzas de que reza, -aponta sempre o não se comer de animal algum, senão só de frutas, hervas, -leite e mel. De outro modo se não podião sustentar, conforme parece -pelo ancianíssimo Genesis, os moradores do Paraizo, não só homens, -porem todos os viventes. Quadrava o preceito e toava o uso pelo menos -á humana natureza, que ainda agora, se a bem espreitarmos na infancia, -ou antes de alterada por contrarios habitos, se afflige e revolve com -o aspéto do sangue e morte. Verdade he, que depois da queda de nossos -primeiros pais, nem o Testamento velho nem o novo, tornão a prohibir as -carnes; mas toques da mesma nativa compaixão para com os animaes não -lhes faltão, dos quaes pelo menos se deduz por bom discurso, que se os -tivermos de comer, ainda ahi nos devemos haver com a possivel mansidão, -poupando cruezas escuzadas, como são, e se costuma, atormenta-los na -agonia por lhes refinar o sabor, caçar, montear e pescar por passatempo -e pelo mero gôsto de malfazer. Lê-se nos Proverbios, segundo as versão -dos Setenta: _Justus miseretur animas jumentorum suorum; viscera autem -impiorum crudelia._—O que justo fôr ha de se apiedar da condição dos seus -brutos; mas as entranhas dos impios não se apiedão da nenhuma couza.—No -Exodo: _Non coques hædum in lacte matris suæ._—Não cozas o cabrito no -leite de sua mãi.—He dito para ser ruminado, pelo mimoso do afféto que -recende. No Deuteronomio: _Si ambulans per viam, in arbore vel in terra -nidum avis inveneris, et matrem pullis vel ovis desuper incubantem, non -tenebis eam cum filiis sed abire palicris, ut bene sit tibi, et longo -vivas tempore._—Se o acaso te deparar no caminho, quer em arvore quer no -chão, um ninho de ave, e a mãi estiver a agazalhar os filhos ou os ovos, -não a tomes com os filhos, senão que em boa hora a deixes ir, para que -boa estrêa te venha, e vivas largos annos.— - -Entre os Santos Padres, que são os depositarios e dispenseiros do -espirito christão, alguma couza se podéra citar que autorizasse este -genero de piedade. Sabida he a de que usou S. Anselmo, uma vez para -com uma lebre, outra para com um passarinho. Tertulliano se maravilha -de que entre christãos, os haja que se accommodem a ser carniceiros: -_nescio an dolendum an erubescendumn sit_;—não sei, diz elle, se mais he -para se haver lástima, se vergonha. S. João Chrisosthomo escreva, que -se não podia ser santo sem uma estremada suavidade de affétos, e muita -vehemencia de bem querer, não só aos nossos, mas ainda aos estranhos, em -tanta maneira que até aos brutos animaes abranja essa mansidão. (_Homil. -29. na Epist. ad Rom._) E dizia bem, que nas vidas de não poucos santos -resplandecem as provas. S. Francisco de Assiz resgatava os cordeiros -que hião para o córte, pagava e soltava as redadas dos peixes e os -viveiros das aves. Mas não apontemos mais, por não enjoar filosofos, -digo filosofos de nossa terra, dos que nos assoalhão filosofia de torna -viagem, porque os lá de fóra ja deixarão muito para traz a impiedade. - -Não he porem necessario ser christão, senão que basta ser homem, -para repartir com os brutos do thesouro da charidade, de que muitos -d’elles usão a seu modo, não só para com os seus, mas para comnosco. -Sendo assim que onde os não maltratão, são elles de indole muito mais -benigna: em Inglaterra, segundo se diz, nem ha cão que ladre, nem besta -que escoucinhe: em não sei que ilha dezerta, acharão os primeiros -descobridores, em aportando, (segundo encontrei na Escolha de Viagens -por John Adams) serem tão cortezes as aves de que toda era chêa, que -não fogião dos novos hospedes, antes os festejavão e se deixavão pôr a -mão; semelhantemente ao que da ilha das Garças aponta João de Barros -_Dec. 1 Liv. 1 Cap. 7_, aonde “como não erão traquejadas de gente (as -garças e outras aves), ás mãos tomarão (os marinheiros de Nuno Tristão) -tanta quantidade d’ellas, que ficou por refresco ao navio.” Dos leões he -corrente entre os naturalistas não perseguirem, mas esquivarem-se dos -perseguidores, embrenhando-se cada vez mais pelos seus sertões adentro, -sendo alias mui leves de domesticar, e folgando de acompanhar, como -rafeiros innocentes, a trôco de qualquer esmola de pão, por largo espaço -de leguas. Muitas são em toda a parte, mormente em Africa, as serpentes, -que namoradas do bom gazalhado, trocão seus matos pelas pouzadas humanas, -e n’ellas se hão como boas comadres da familia. O cavallo do Arabe he o -contubernal e primeiro amigo de seu dono: um bom Arabe na morte do seu -cavallo deveria de se expressar pouco mais ou menos como Millevoye o -suppoem na Elegia. Muitos prezos tem logrado domesticar aranhas e ratos, -até o ponto de, no meio das asperezas de um segredo, se poderem esquecer -por muitas horas do seu desamparo, crueldades e injustiças humanas. No -páteo da rezidencia parochial de S. Mamede da Castanheira do Vouga, -todos os dias a horas certas viamos acudir ao almoço e cêa que ás nossas -pombas desparriamos, todos os passarinhos da vizinhança, que ja traziamos -tão correntes, que nos vinhão comer aos pés, por saberem (porque os -brutinhos sabem muito mais do que nós outros cuidâmos) que n’aquella -cazinha da solidão moravão amigos seus, e nunca terem ouvido tiro, nem -enxergado rede no pequeno arredor do templo e passaes solitarios.[16] Se -a tudo isto e a muitos outros exemplos se lançar conta, alguma verdade se -achará no affirmarem poetas, que no discaír da idade de oiro, ao mesmo -tempo que se os homens corromperão degenerando em crueis, se forão as -feras tornando bravias e desabridas. - -Em todos os tempos, e até por fóra e mui longe d’esta religião charidosa, -houve quem bem entendesse como entes nossos conterraneos n’este -orbe, irmãos nossos em viver, sentir, padecer e acabar, com sangue e -coração como nós, com amor, prazeres e filhos como nós, bebendo como -nós no immenso vaso do pai commum o mesmo ar, a mesma luz, as mesmas -aguas, e comendo comnosco á mesma mesa do universal banquete, poderião -quando muito servir-nos de pasto; mas fóra d’ahi, qualquer injúria -que se lhes accrescentasse, seria hortorosa profanação e violação da -natureza. Plutarcho e Quintiliano referem, que os Athenienses castigarão -severamente algumas sevicias commettidas contra animaes. O Alcorão -espalhou por todos os povos, que largamente senhorea, muita d’esta -benignidade: raro Mahometano deixará de matar a fome ao cão de seu -inimigo. Na China passa esta beneficencia muito adeante. Que no-lo diga -em seu estilo chão o nosso Fernão Mendes, ou talvez o Jesuita que em seu -nome, e por um modo tão rijo de crer, compilou tantas e tão preciosas -noticias do Oriente, mui desacreditadas em tempo, ja hoje em parte mui -abonadas de verdadeiras. Padre ou marinheiro, diz assim: (falla de uma -feira que no rio de Batampina, em caminho de Nanquim para Pequim, se faz -com mais da duas mil ruas de barcaças, nas quaes ha para vender tudo a -que no mundo se pode pôr nome.) “Ha tambem outras embarcações em que os -homens trazem grande soma de gayolas com passarinhos viuos e tangendo com -instrumentos musicos dizem em voz alta á gente que os ouve, que libertem -aquelles cativos que são criaturas de Deos, a que muita gente acede a -lhes dar esmola com que resgata daquelles cativos os que cada um quer e -os lança logo a avoar, e toda a gente dando hũa grande grita lhe diz, -_pichau pitanel catão vocaxi_, que quer dizer, _dize lá a Deos como cá -o servimos_. Ha outros homens que noutras embarcações trazem grandes -panellas cheyas de agoa, em que trazem muitos peixinhos viuos que tomão -nos rios nũas redes de malha muyto miudas, tambem pela mesma maneira -vem bradando que libertem aquelles cativos por seruiço de Deos que são -innocentes que nunca peccarão, a que tambem a gente dando sua esmola, -comprão daquelles peixinhos os que querem e os tornão logo a lançar no -rio, dizendo, _vayte embora, e lá dize de mym este bem que te fiz por -seruiço de Deos_. E estas embarcações em que estas cousas se trazem a -vender não se hão de contar por menos soma que de cento e duzentas para -cima.” - -Na India são n’esta virtude extremosissimos. Alguns viajantes tanto -encarecem a couza, que chegão a affirmar haverem por lá, ainda no seculo -passado, hospitaes para as mais asquerosas sevandijas, como piolhos, -pulgas e persovejos. - -Pôsto que tudo quanto até aqui tenho trazido, possa parecer uma diversão -do principal propozito, não o he, por quanto d’estes misericordiosos -affétos he que se tem em parte derivado a abstinencia de carnes, -observada por muitas pessoas, communidades, seitas e povos: em parte -digo, porque em outros diversos fundamentos tem tambem estribado, como -veremos. - -E pois que a ultima que tocámos foi a India, a ella tornemos, levando por -explorador e lingua, não algum estrangeiro, de que outros se contentão -mais, mas um patricio nosso, dos varios que para tal officio se podérão -tomar: he Duarte Barbosa, e diz: - -“Ha neste regno (de Guzarate) outra sorte de Gentios, que chamaom -Bramanes, estes nom comem carne, nem pescado, nem nenhũa cousa que -mora, nem mataom, nem menos querem uer matar, por asy lho defender sua -idolatria; e guardaom isto em tamanho estremo que he cousa espantosa, -porque muytas uezes acontece leuarem-lhe hos Mouros bichos, e pasarinhos -uiuos, e fazerem que hos querem matar perante eles, e estes Bramanes lhos -compraom e resgataom, dando-lhe por eles muyto mais do que ualem, por -lhe saluarem has uidas, e soltalos. Se tambem El Rey, ou ho gouernador -da tera, tem algũu homem, porculpas que cometese, julgado ha morte; -ajuntamse eles, e compramno ha justiça, se lho quer uender, pera que nom -mora; e tambem algũus Mouros pedintes, quando querem auer esmola destes, -tomaom muy grandes pedras, e daom com elas emsima dos ombros e barigas, -como que se querem matar perante eles, e porque ho nom façaom, lhe daom -muytas esmolas, e que se uaom em pas; outros trazem faquas, e daom-se -cõelas cutiladas pelos braços e pernas, e pera se nom matarem lhes daom -muytas esmolas; outros lhe uem has portas ha querer lhe degolar ratos e -cobras, ha hos quaes eles daom muyto dinheiro por ho nom fazerem, e desta -maneira saom dos Mouros muy apreciados: estes Bramanes se achaom no -caminho algũu golpe de formiguas, aredam-se buscando por honde pasem sem -bas pisarem. E em suas casas de dia çeaom; de dia nem de noyte acendem -candea, per caso de algũs mosquitos nom irem morer no lume da candea; e -se todauia tem grande necesidade de acenderem de noyte, tem hũa alenterna -de papel ou de pano agomado, pera cousa nenhũa uiua poder ir morer dentro -no fogo; se estes criaom muytos piolhos, nom hos mataom, e quando hos -muyto aqueixaom mandaom chamar hũs homeins que antre eles uiuem, que -tambem saom gentios, e eles hos haom por de santa uida, e saom come -irmytães, uiuendo em muyta abstinença por reuerencia dos seus Deoses; -estes hos cataom, e quantos piolhos lhe tiraom poemnos em suas cabeças, -e hos criaom com suas carnes, em que dizem fazerem muy grande seruiço ha -seu Idolo, e asy guardaom hũus e outros com muyta temperança ha ley de -nom matarem: estes Gentios saom muy delicados e temperados em seu comer; -seus manjares saom leites, manteiga, açuquar, e aros, e muytas conseruas -de diuersas maneiras; seruem-se muyto de cousas de fruyta e ortaliça, e -deruas de campo pera seus manjares; honde quer que uiuem tem muytas ortas -e pomares.” - -Na _Historia de Mysore_, lê-se que em Bengala, quando a violencia da fome -a devastou em 1774, consumindo-lhe obra de trez milhões d’almas, forão -em muito grande numero os Indios que antes quizerão deixar-se morrer á -mingoa, do que acabar comsigo comer carne de animaes. - -Frequente e antigo he na India este antojo, e tão notorio, que não ha -porque afogar o discurso com mais exemplos. Bem podia proceder isso em -parte da vegetavel abundancia e espantosa cultura d’aquellas terras, -e de alguma especial compleição do clima, ou natureza ou costumes -dos moradores, ou algumas outras circunstancias, segundo as quaes os -corpos se dessem melhor com os pastos leves e frugaes: viria depois a -religião consagrar por dogmas seus os conselhos da higiene, como com -vinho, toucinho e abluções aconteceo em muito oriente á conta da lepra: -para melhor incutir o preceito, cerca-lo-hia de fabulas amigas da -imaginação do vulgo, como a encarnação dos Deozes em corpos de brutos, e -a transmigração das almas humanas por differentes sortes de viventes até -parar na vacca; materias estas de que as historias e perigrinações fazem -larga menção. Dos Indios podérão tomar por mão a crença os Egipcios, os -quaes, sendo moradores de solo não menos liberal, devião tambem perdoar -grandemente aos animaes, em quem reverenciavão suas Divindades, ou -santuarios ambulantes que d’ellas forão: e confirma-me na suspeita a -conveniencia, que ja de alguem deverá ter sido notada, do boi Apis do -Egito com a vacca ainda hoje sagrada dos Indios. Do Egito provavelmente -trouxe Pithagoras para a Italia, em tempos de Numa ou Servio Tullio, a -sua metempsícosa com a defensão do uso das carnes. Não pegou a invenção, -se não foi em alguns escolares fanaticos de tamanho mestre; e nem -filosofos pelo tempo adeante a sustentarão, nem poetas se valerão d’ella, -afóra Ovidio nas metamorfoses, e só como narrador; e mais não deixava de -ser fecunda e bem assombrada crença para poesias. Não pegou, porque não -vinha propria á indole do solo ou ao temperamento dos Italos, ou, o que -he mais certo, porque encontrava os antiquissimos usos de umas gentes, -que primeiro tinhão sido pastoras e depois guerreiras. - -Na Ilha da Palma, acharão os nossos, quando descobrião, conquistavão e -amansavão aquelle archipelago, (senhorio traspassado depois em Castella, -mas padrão glorioso do nosso Infante D. Henrique) serem mantimento dos -moradores hervas, leite e mel.—Com este particular exemplo me acóde a -memoria, mas alguns outros semelhantes de outras ilhas me parece ter -achado pelas historias, de que me não ficou nem fiz a lembrança preciza. - -Com a propagação da fé christã renasceo religiosa a abstinencia na -Europa, por motivo não de brandura, mas de mortificação. Apparecerão -Ordens numerosas de religiosos, primeiro só de homens, logo tambem -de mulheres, que renunciando todos os carnaes deleites para melhor -apurarem os do espirito, tomando o exemplo dos primitivos eremitas que -se abastavão com as hervas, raizes, frutas silvestres, e aguas dos -montes, não só cortarão pelas demazias na quantidade do sustento, não só -o estreitarão com regra de jejuns, mas em varios de seus institutos o -expurgarão de todo animal terrestre ou volatil, não consentindo, quando -muito, senão em algum marisco secco e fraco, para regalo das festas. E he -para notar como ainda os mais rígidos observantes logravão saude inteira -e robusta, e chegavão ao ultimo fio da velhice: _mens sana in corpore -sano_. - -Annos ha que me recordo de ter achado em uma Gazeta de Lisboa, estar-se -creando em Manchester uma seita, que por filosofica defendia tomar -qualquer sustento animal. Era noticia de Gazeta, não affirmarei que -tivesse pé, e se o teve, não sei em que parou. - -Ja que estamos com Inglezes, fallemos de Franklin. Este homem, a quem a -probidade e o juizo fizerão filosofo e liberal, e não a devassidão e o -estouvamento, tendo lido, di-lo elle, o livro em que Tryon recommenda -a dieta vegetal, determinou-se em a observar. Pô-lo por obra, e -limitando-se em arroz e batatas, e ás vezes ainda em menos, como passas, -bolaxa ou pão, com uma gota de agua, não só forrou do seu salario (era -ainda então compositor de imprensa) com que poder comprar livros, mas -do seu tempo acerescentou para estudos o que as refeições e digestões -lhe podérão consumir: fez progressos proporcionados á clareza de ideas e -fortaleza de percepção, que são o fruto da temperança no comer e beber. -Seguio constante por algum tempo, não pouco, até que chega á ilha de -Block, assiste a uma pesca, revolvem-se-lhe nas entranhas as maximas do -seu Tryon, dá por genero de assassinio aquelle matar viventes, que nem -tinhão feito nem erão capazes de fazer o mínimo mal. Poem-se os mortos ao -lume, recende o guizado; o filosofo no seu tempo gostára apaixonadamente -de peixe; entra pelo nariz a tentação, estremece a filosofia, e em boa -hora lhe acode com uma bulla de composição, lembrando-lhe como ao abrir e -limpar d’aquelles peixes, lhes víra dentro do buxo outros peixinhos mais -pequenos. “Pois que he isto, diz elle entre si, se vós uns a outros vos -comeis, porque não hei de eu tambem comer-vos a vós?” N’essa hora e com -esta palavra se lhe quebrou o fadario; o que muito bem prova, acrescenta -o bom homem, sermos nós _animaes racionaes_, sabendo, como sabemos, achar -pretextos plausiveis para quanto nos póde dar gôsto. - -Outro autor muito afamado de nossos dias, Raynal, era igualmente sobrio. -A Senhora Marqueza d’Alorna, que muitas vezes o teve a jantar, me contou, -que nunca o víra comer mais que algumas poucas hervas e fruta, nem beber -senão agua. Era, observava ella, como um conviva das Ninfas, custando a -crer como com aquellas refeições de idillio se podessem sustentar tantos -nervos d’alma e de pensamento. - -Se depois de autores de livros se póde citar quem não sabe ler, em Grada, -lugarejo da Bairrada, vivia um moço que eu conheci, o qual nunca provára -vacca. Perguntado a causa, não era religião, nem filosofia, nem tedio -natural, mas effeito de um vehementissimo e entranhado amor que tinha -aos bois, com quem se creára, com quem vivia, lavrava, e dormia paredes -meias. Rústico era, e sem o cuidar discorria e fallava como o Sabio de -Cheronea, quando dizia, que por tudo quanto o mundo tinha, não venderia -nunca o boi que em seu serviço envelhecêra. - -Afóra os monges, filosofos e amigos dos bois, ha ainda uma grande quantia -de homens, puro comedores de vegetaes em quasi todo o anno: são os -moradores das serras e aldêas pobres, a quem a estreiteza de sua fortuna -mal dá licença para chegarem á carne por entrudo e paschoa, e poucas -mais vezes e só escassissimamente, ao pescado, vizita mui rara em terras -mesquinhas do sertão. De choupanas sei eu, e quasi de inteiros lugares, -pelas abas da Serra do Caramulo, onde oito annos vivi, que de pouco mais -se sustentão que do pão de centeio e milho, batatas e alguns legumes: e -estes asperissimos banquetes, em que até pelo demais fallece o agro vinho -verde de seus montes, trazem-os comtudo mais rijos e sãos no trabalho, -do que as grandes ucharias aos mimosos das cidades. - -Acabarei estes exemplos com o que melhor conheço, que he o meu. Quando -eu compuz estes versos da _Festa de Maio_, era como ja no Ante-Prologo -disse, todo Gessnérico: trazia a alma toda a nadar no coração empapado -com os mais brandos affétos do mundo, como rosa a boiar em vaso de leite: -amava as plantas e tratava com ellas como com entes sensitivos; todos -os entes sensitivos amava-os como amigos e companheiros: tinha fantasia -pronta, que muito ajuda em todo o genero de bem querer; esta me revelava -de contínuo e me ataviava de suas fabulas e côres a particular vida e -cheíssimo mundo de cada inséto; e porque esse seu mundo e vida dizia -tanto com o meu, e o commum de seus substanciaes interesses com o commum -dos substanciaes interesses dos homens, acontecia que imaginando-me ora -grilo, ora passaro, ora borboleta, tinha aprendido uma perfeita, e se -dizè-lo posso, egoista charidade para com todos elles. Ouvi debater a -questão do uso das carnes: as razões affirmativas podião ter mais fôrça, -mas as negativas dizião com o meu gôsto; he meia persuasão; caírão-me -tão bem, que logo me dei, se não por convencido, por persuadido: e como -persuadido e convencido escrevi os versos, que por isso aos indifferentes -se de contrária sentença, devem parecer, como em verdade são, sobejos, -exagerados e declamatorios. - -Era o escrito fruto de minha opinião; mas esta, como accontece, se -roborou por elle, e até tal ponto se confirmou, que do que até alí não -passára de poetica theoria, instituí fazer prática minha em toda a vida, -renunciando qualquer genero de alimento animal. Por duas vias se fazia de -mal o tenta-lo, ja porque em couza tão excetuada do geral não deixarias -de caír estranhezas e zombarias, ja porque tanta sobriedade entre quem -a não usava, era genero de martirio continuamente renovado. Mas contra -estes dois contrastes prevalecião outros dois argumentos: primeiro, minha -consciencia, que repugnava banquetes de sangue: segundo, o presuposto em -que estava, de que as faculdades da alma se havião de adelgaçar e crescer -onde o corpo fosse favorecido da parcimonia. Metti-me Pithagorico aos -vinte e trez d’Agosto do anno de 1822, tendo sido gastos os mezes, que -desde a feitura do poema decorrerão até esse, em acabar de me resolver e -aparelhar para tão grande façanha; e permaneci na observancia do voto até -vinte e trez d’Agosto do seguinte anno. Acabei o noviciado, e em lugar de -professar, despedi-me. Tive minhas razões; e ainda que pouco se me havia -de dar agora do que se podesse dizer ácerca de um indivíduo, que n’esse -tempo tinha o nome que eu hoje tenho, e do qual, segundo as theorias dos -medicos, não conservo hoje uma só particula, sendo eu um, vivo e junto; -elle outro, morto e disperso por todo esse mundo: todavia, porque ainda -temos commum um leve som, que he o nome, quero lançar pontualmente na -balança do juizo dos meus leitores os seus porques; e bons ou máos, forão -estes.—Primeiro: que a abstinencia de uma só pessoa não poupava uma unica -existencia de animal. Segundo: que era presunção ridicula o desquitar-se -um sujeito, por alguns argumentos, de uma opinião e uso quasi universal, -sendo assim que todos os homens, guerreando-se entre si por crenças -religiosas, por sisthemas filosoficos, por principios de política e -sciencias, por modas e gostos, todos se conformavão no comer das carnes. -Terceiro: que realmente era obstinação o desconhecer como a natureza nos -não aparelhára só para comer e digerir vegetaes. Quarto: estar-nos ella -dando nos proprios animaes, que uns de outros se sustentão, uma prova -de ser menos escrupulosa do que Pithagoras e a poesia. Quinto: que ella -propria os multiplica á proporção do que uns a outros devem tragar. -Sexto: que se ella faz com que cada passada, cada pedra que movemos, cada -gota de agua que engolimos, cada fruto ou folha que aproveitamos, cada -sôpro que inspiramos ou expiramos, cada movimento emfim que fazemos, -ainda dos mais indispensaveis para a vida, a destrua a milhões e milhões -de entes conhecidos, e a numero talvez ainda maior de desconhecidos, -não ha porque nos tenha a grande peccado, o aumentar-mos por nosso -bem a lista com mais algumas unidades. Setimo: que o adelgaçamento e -crescimento de minhas faculdades intelletuaes que eu esperára d’aquella -mais leve nutrição, não só se não tinha verificado, mas antes o contrário -succedêra, pôsto que de diversas causas podésse pender o successo: -e por muito tempo me ficou o costume de, quando via versos fracos e -desengraçados, dizer: Devião estes de ser compostos por quem não comia -senão hervas. Outavo, ultimo, e não leve motivo: que ainda que pouco dado -ás delicias da gula, o cheiro e presença de melhores iguarias do que as -minhas, de dia em dia me tentava mais, e quando succedia achar-me entre -gente alegre e em mesa de festa, as ondas de tentação, que eu forcejava -dissimular o melhor que podia, crescião e redobravão com os motejos dos -circunstantes, que bem poderião ter sal, mas não que adubasse as minhas -insôssas hervas. - -De todos os varios antecedentes deduzo, que sem embargo das objeções, -autoridades e exemplos, o uso das carnes se ha de ter por licito, e por -dithirambico o que lá fica no texto: mas que fóra do caso de necessidade -ou clara utilidade, e alem do ponto em que essa necessidade ou utilidade -pararem, toda a sevicia contra viventes he immoral, injusta, insensata, e -digna de muito grande castigo. - -E tanto isto assim he, que, porque todo o carniceiro de officio contrahe -na alma e nos modos alguma couza de cruento e de tigre, em muitas partes -se tem por infame. Em Portugal, nenhum mechanico honrado e de conta -acceitaria um tal para sogro ou genro, ainda com grosso cabedal de -renda; nem de boca plebea pode saír mais afrontosa injúria que o nome -de magarefe. Em Inglaterra não os admittem jurados em causa crime. Na -principal ilha das Canarias encontrárão seus descobridores, que os -naturaes, com viverem á lei de sua rudeza silvestre, “havião por couza -mui torpe esfolar alguem gado, e n’este mister de magarefes lhes servião -os cativos que tomavão; e quando lhe estes falecião, buscavão homens dos -mais baixos do povo para este officio, os quaes vivião apartados da outra -gente e não os communicavão em aquelle mister” (_Barr. Dec. 1. L. 1. C. -12._)—Bem hajão os inglezes, que formão sociedades para proteger animaes, -e abençoado seja o inglez Deputado Martin, que para lhes fazer bem, se -arrosta com os escarneos dos praguentos. Bem hajão os allemães, que em -seus campos não perdoão multa municipal aos que, no levar rezes pelos -caminhos, as atravessão deante de si na albardadura, ou tolhidamente as -apinhoão dentro em carros. E bem haja a nossa Camara, quando conseguir -desterrar o escandalo do afrontoso trato que nossos carreiros dão a seus -bois, como ja desterrou a atroz e immoral matança dos porcos perante os -olhos do povo. - -Quero rematar com uma reflexão, que ja acima podéra ter cabido, mas que -por dezejar da-la por conselho, e pô-la onde melhor se recommendasse, -muito de industria deixei para o fecho. Vai o dito a pais e educadores, -a quem toca. Nada importa mais, do que affazer cedo os meninos a uma -grande suavidade de costumes: assim foi creado o bom Montaigne. Se os -eu tivesse, parece-me que tambem assim os crearia, e bem bons frutos -lhes havia de colher na minha velhice. Primeiro que tudo, parece-me que -me conformaria com Rousseau em os não alimentar desde o leite senão com -vegetaes, por entender como elle, serem estes mais accommodados a suas -naturezas, e mais proprios para fisicamente os suavizar e humanar. Mas -não quero agora averiguar isto que pertence a medicos; outro he o meu -alvo. Não consentíra jamais que presenceassem espetaculos de atrocidades -ou injustiça; e quando a minha má estrella lhos presentasse, procuraria -afea-los com boas razões, mais de affétos e lagrimas que de raciocinios. -As urbanas corridas de touros e as aldeanas festas de alanceamento de -pombos, frangos e patos, como couzas antiquissimas e nacional feição, -as respeito; mas não levára la os meus tenrinhos, que são mui branda -cera para qualquer bom ou máo cunho. Se de alguem lhes fosse insinuada a -correntissima abusão de nossos provincianos, de que em casa que devasta -ou maltrata os ninhos do seu beirado, tudo vai para traz e de fôrça se ha -de aguardar por enterramento, calára-me, porque acho razão a Fontenelle -em dizer, que se na mão tivesse fechadas todas as verdades do mundo, Deos -o defendesse de a abrir. - - _Magnànima menzogna, or quando è il vero_ - _Si bello, che si possa a te preporre?_ - -Dar-lhes-hia, da Historia natural poetizada, tanta luz, quanta bastasse -para levarem grande interesse nos fados de cada individuozinho que -respira: um raio de tal luz póde bastar para pôr fim a muita dureza que -provenha de cegueira. Conheci e tratei com um parocho de fóra da terra, -que desgostoso de que uma sua fregueza, rapariga nova, não pozesse reparo -em maltratar animaes, a chamou brandamente, explicou-lhe como tudo -que era nascido devia ter algum entendimento, capacidade para dores e -prazeres, parentes, amigos e affeições. Com isto só a fez outra, e tão -outra desde essa hora, que onde depois se lhe fazia de mister dar morte -a uma pomba ou gallinha, ainda que em seu páteo não forão creadas, ja o -coração se lhe confrangia, tremião-lhe os pulsos, e chegada á execução, -não corria mais sangue da ferida, que mal acertava, do que lagrimas de -seus olhos.—De mim mesmo me parece agora, que se escrevi os versos a que -me refiro, e em commenta-los me alargo tanto, e uma e outra couza de tão -boa mente, de tudo deve ter sido raiz a creação, em tudo excellente e -n’esta parte bem empregada, que meu pai se esmerou em dar a todos seus -filhos. - -Outra couza fizera eu principalmente; era commetter-lhes o trato e -tutela de alguns animaes caseiros, a quem podessem chamar seus. N’este -exercicio aprenderião a ser observadores, vigilantes, serviçaes; tomarião -com o gôsto da propriedade o amor do trabalho, havendo-se ja por algum -modo como pais de familias; costumar-se-hião a acautelar, previnir e -amar; tomarião para toda a vida o geito de amparar fracos e desvalidos, -e de não ver um qualquer indivíduo, sem logo compor na imaginação a -historia completa do seu viver, do seu padecer, do seu precizar. - -Da efficacia de tal methodo, e tão simples, e tão formoso, tenho eu uma -muito amavel prova de minhas portas a dentro. Uma mulher, toda boa, toda -extremosa, tomou unicamente a peito o vingar-me da natureza; cerca-me -de contínuo, como um anjo, de amor e de luz; empresta-me olhos para eu -ver o mundo e as obras dos seculos; tira deante dos meus passos todos -os espinhos no caminho da vida; inventa-me um encantamento novo para -cada minuto; diz-me e faz-me entender como a verdadeira felicidade se -não compoem de grandes pedaços, mas sim de atomozinhos que de longe se -não podem perceber; repete-me e persuade-me que nasci para as Musas -e para o amor, e não para a política, nem para os odios, serve-me, -vela-me e defende-me como a filho, ama-me como a esposo, zela o meu nome -como o de irmão; lançou a sua vida na minha vida, o seu pensamento no -meu pensamento; existe pelo meu amor, morreria se lhe elle faltasse. -Quem lhe ensinou tão generosa, tão nova benevolencia? quem lhe deo -tantos segredos de fazer feliz? as suas aves e pombas, a sua amiga, e -alguns livros, unica sociedade da cella, onde desde seus annos verdes a -Providencia ma estava guardando e aperfeiçoando[17]. - - - - -_Pag. 243. verso 18 e seguintes_ - - O mesmo coração, dezejos, gostos, - Que tem nossas mortaes no peito occultos, - Tem as Ninfas tambem &c. - - -Por estes versos começa uma torrente caudal de couzas vãs e doidas ácerca -das mulheres, e relações dos dois sexos, que ora mais, ora menos turva, -se vai alongando até pag. 254. A pezar de se devolver por leito de quasi -proza, e por entre margens para meu gôsto mal assombradas, bom seria que -por ellas nos podéramos ir detendo a pescar, e a examinar algumas das -couzas mais graúdas que vão na chêa: serião questões apraziveis de ociosa -filosofia, mas prometti no prologo despreza-las; perdoar-lhes-hemos, -deixa-las ir seu caminho. Passem a seu salvo as regras de namorar á -antiga; a arte não de amar mas de enredar e colher, como o são quantas -com titulo de amar se tem escrito; a poligamia, menos de Mahometano do -que de Tupinamba; o divorcio e ulteriores nupcias dos divorciados e -divorciadas; a botecuda nudez dos sexos &c. La se avenhão como poderem -todas essas puerilidades com seus inimigos, que se de minha Musa -nascêrão, muito ha que eu e ella as desherdámos. O meu ponto agora he -assentar boas pazes para sempre com as damas. Todas minhas Obras, não -só esta, _Cartas de Echo_, _Amor e Melancolia_, _Noite do Castello_, -_Ciumes do Bardo_, me devem ter perante ellas representado cavalleiro -descortez de desleal poesia. Tempo he de mudar de cores, abjurar o erro, -e para merecer o perdão, que ellas de puro boas concedem antes de pedido, -romper lanças em favor de sua fama, não só contra inimigos, se os podem -ter, mas contra mim proprio, pelas ter aggravado. He uma Nota estreita -arena para tão singular duello: mas embora, que para outro dia e campo -desafiado fica o eu mancebo desatinado e altivo d’outro tempo por mim -grave, reflexivo e respeitoso; o eu versejador por mim pensador; o eu -academico e solteiro por mim cazado e recolhido: emfim por mim conhecedor -do terreno do combate o eu ignorante d’elle, a cuja face ja n’esta hora -arremésso a luva, e lhe digo “Mentiste, e mercê de Deos e de minha Dama, -provar-to-hei.” Mas pois que he forçado ficar para outro dia a pendencia, -aqui não farei mais do que um pouco ensaiar-me para ella, campeando -soltamente e esgremindo nos ares. - -Nenhuma couza tem sido mais experimentada no mundo e mais vezes definida -que o amor, nenhuma ha tão mal e imperfeitamente comprehendida como o -amor. Fallo do amor dos homens, unico de que os homens podem fallar: o -das mulheres he ainda mais incomprehensivel, e certamente muito mais -espantoso, quando verdadeiro. O que pretende dar regras de amar, como -alguns outros fizerão antes de mim, e como eu proprio supponho que -pretendi, assemelha-se ao astronomo, que tendo endoidecido á força de -ter velado as noites a observar os astros, presumisse, riscando órbitas -com o lapis, constrangê-los a segui-las: as esferas e os affétos saem do -nada ao sôpro de Deos, resplandecem com a sua luz propria e misteriosa, -vão-se ora afastando ora aproximando de seus centros pelo caminho que -sua natureza lhes ordena, eclipsão-se na hora prescrita, desappareceráõ -quando Deos fôr servido; sem que em tudo isso haja querer, escolha, -presciencia, ou conhecimento de nossa parte. Amamos uma mulher, e certa -mulher; porque temos de a amar; porque he necessidade sua e nossa que -a amemos; amamo-la pelo modo que a natureza quer e não outro, não he -uma acção mas uma paixão: se a premião o premio he gratuito, se a punem -he injusto o castigo, porque não recáem sôbre um effeito de eleição. -Ama-se uma mulher, repito, sem o procurar, sem o cuidar, sem arbitrio, a -despeito da razão, da vontade e dos votos, como á rosa, como á lua, como -á harmonia, como aos sabores dos frutos deliciosos. Para ellas se vai -como os rios dos montes para os valles, como a chamma para o ceo, como -a pedra do ar para a terra, como o menino para os peitos da ama, como o -coração para o prazer. N’estas occasioẽs todo em nós he extraordinario, -e se o posso dizer, sobre-natural: sentimo-nos fôrças que não possuiamos -para querer, seguir, abraçar e reter: o pensamento se torna infinito, -porque o objéto que procurâmos, como uma metade nossa que nos foge, -nos apparece infinito. Por dentro d’aquellas graças fisicas, de que -os sentidos se namorão, imagina-se um mundo estranho e illimitado de -perfeições, de que se namora a alma: ahi se dezeja tudo quanto he capaz -de embellezar a vida; o dezejo he logo esperança, a esperança certeza, -a certeza delirio, e novamente dezejos; e quem porá limites a dezejos, -a delirios, a esperanças? O abrangimento do infinito da Divindade em um -corpo humano não he misterio que o amor não saiba muito bem entender. He -aqui o lugar de confessar que a este sobre-humano conceito, que da mulher -amada se faz, mil vezes corresponde plenissima realidade. - -Por mais que a natureza se aprimore em modelar, tornear, corar, amaciar, -brunir, bafejar e endeozar o fisico da mulher, as suas graças, o seu -merito, o seu ser de mulher não são esses dotes, sujeitos ao tempo e -dependentes de um ar, assim como nas flores não são mel as pétalas -vistosas e coradas, o cheiro suave e attrátivo, que o sol e o vento -attenuão e desbaratão. Diz-se que as feiticeiras tem o seu encantamento -em um novêlo; o novêlo do feitiço das mulheres está no seu coração e no -seu espirito, que n’ellas he tambem coração. O coração da mulher não -mora descançadamente reclinado no peito como o nosso, por toda sua alma -esvoaça perdido de amor, gemendo de amor, como uma ave mãi e feliz por -todos os ramos de um bosque de primavera: sente-se-lhe o frémito das -azas, ouve-se-lhe a harmonia em tudo quanto diz, em tudo quanto cala, -no que faz como no que deixa de fazer, no que pensa, recorda ou espera, -nas lagrimas e no riso, no enfado e no contentamento, na vigilia e no -sono. O coração lhe está á porta interior de cada sentido recebendo as -impressões; para elle e por elle veẽm, para elle e por elle ouvem, para -elle e por elle presencêão a natureza, communicão com ella e comnosco. Um -sôpro divino formou a alma do homem, a da mulher de um beijo delicioso -deveo ser formada. - -Este afféto, esta doçura, esta, quero eu dizê-lo, feminidade da mulher -são de tão alta natureza, tão estremes de liga, tão independentes do fim -mesmo para que a providencia a destinou, que me parece ainda despojada de -sentidos, poderia amar vehementemente como os espiritos angelicos. Que -será quando os sentidos confluem, para atear com sua materia inflammavel -este fogo celeste? ¿quando a Vestal, afrontando todo o futuro, deixa -apagar no altar da Deoza de sua infancia a luz virginal que velou por -tantos dias e noites? ¿quando na turbação insólita d’estas trevas -desconhecidas, se entregou toda e com todo seu futuro ao ente que a -implorou como Divindade, e que ella sabe e sente em si tornará feliz -por cima de todas as felicidades? ¿quando uma vez encetou prazeres, -cujo maior encanto para ella se da-los recebendo-os, e não os receber -sem ao mesmo tempo consummar mais de um doloroso sacrificio? Oh então -he o amar do amar! o afféto, que ja em profundeza não podia crescer, -cresce em superficie, e trasborda todo e para toda a parte, como um -perfume abundante; então he que sem voz pronunciou o _sempre_; que sentio -apertar-se-lhe nas entranhas a indissolubilidade do consorcio, porque o -amor de fantasia se fez realidade, de dezejo destino, de suspiro occulto -gloria; a tudo tem ja direito porque ja deo tudo, não póde dezejar ser -de outrem porque a outrem não teria tanto que dar. E he esta a grande -differença da mulher ao homem, e do amor ao amor: o d’ella tem um abono -e côr de eternidade, o nosso um elemento e uma côr de tempo. Podéra -ser emblema do nosso, uma náo alterosa e possante, surta em uma bahia -aprazivel, mercadejando e folgando com a terra, empavezando ufania -de flammulas e galhardetes, aferrada ao fundo do mar com uma unha de -ferro, mas podendo de uma hora para outra arranca-la ou picar a amarra, -desfraldar as velas que sempre estão prestes, e vogar atravez de todas -as ondas, por cima de todos os abismos, a mercadejar e folgar no extremo -opposto do mundo: emquanto a feminil affeição, como barquinha contente e -desambiciosa, feita para os ocios de sua enseada, coroada a pôpa ora de -flores abertas ora de esperançosos verdes, sem deitar nenhuma ancora, não -foge nunca d’entre aquellas margens conhecidas; por entre ellas vai e vem -avoejando de contínuo, levando e trazendo sempre commodos e alegrias, sem -curar que de sua barra em fóra haja outros mares, n’esses mares outras -bahias; delicia-se na sua, onde tudo a festeja e saúda por seu nome, onde -se entende com todos os ventos, todos os refugios conhece para o dia -da tempestade. O amor do homem, com os sentidos satisfeitos muita vez -se satisfaz e adormece; como o frizão dos Jogos Olímpicos, que chegado -apoz violenta carreira a tocar na meta, surdo até ás vozes da gloria que -esporeou, se estirava para repouzar ou para morrer. O amor da mulher, -satisfeitos os sentidos, se restaura, resurge mais puro e extremoso, -mais vivaz e promettedor; semelhante ás plantas, quando desfallecidas -nos afrontamentos do verão se dessedentão com a chuva de uma nuvem que -passsou, e viçosas reverdecem para embalsamar os ares de seu valle. -Uma de muitas razões que para esta differença podem concorrer, he que -n’essa hora adquirio a mulher direitos, o homem contrahio obrigações; as -obrigações pezão, os direitos agradão, as obrigações limitão e apoucão, -os direitos accrescentão e engrandecem. Trocarão-se os papeis na scena, -o seguidor esquiva-se, a perseguida segue. O amor do homem he só amor, -o amor da mulher he amor e amizade: elle, porque pertence ao mundo, á -gloria e a tantas outras paixões, só tem meio coração, meia vontade, -meio tempo para dar á sua companheira; esta, separada do mundo pelo -mesmo mundo e pela natureza, por isso mesmo mais raramente accessivel a -outras paixões, dá ao seu amigo todo o coração, toda a vontade e toda -a vida; dar-lhe-hia se podesse mais vida, e mais coração, mas não mais -vontade: com elle, por elle, e para elle existe, na propria ausencia o -tem presente; e quando cessa de abraça-lo, he para se gozar de o ter -abraçado, e cuidar como logo o abraçará de novo, e volverá a ser d’elle -amado, fazendo-o feliz. - -Tal he o theor da natureza: tem excéções e numerosas. Corações ha de -homens, que sem ser effeminados, não desdirião n’um peito feminino; -e corações de mulheres, que talvez bem nascidos e bem fadados, mas -torcidos depois pela educação, quebrados pela sociedade, corrutos pelos -exemplos, merecem as satiras, demaziadamente geraes, com que os autores -de sua degeneração todos os dias lhe poem ferrete: mas essas, mais -infelizes do que culpadas, os desgraçados que as pintem e condenem, eu -pinto a mulher amante, a mulher perfeita, a mulher mulher, a mulher -como a concebi, como a conheço, como a adoro. Foi esta a que Deos fez e -temperou de poesia e harmonia lá na origem do mundo, quando vio que não -era bom que o homem vivesse só. Esta he a que depois de nos dar a vida, -no-la suaviza e apura; no-la multiplica em entes novos; no-la adoça nos -momentos derradeiros; nos ama ainda, quando ja não somos; dá seus beijos -amorosos a uma pedra, porque do nosso nome lhe conserva uma letra; e -consummando o seu destino de amar, felicitar, sacrificar-se, ajoelhada na -terra, nos vizita no mundo das sombras; estreitando o seu commercio com -os ceos que a esperão, para nós só os invoca, e depois de no-los ter dado -em amostra no tempo á fôrça de amor, á fôrça de amor no-los grangêa na -eternidade. - -Custa a crer como um ente, que he metade da nossa especie, que das duas -he a mais amavel metade, a mais carinhosa, em tantas couzas nosso igual -para nos attraír, mas com tantas differenças de nós para se nos unir -ainda mais, que se tem defeitos de nós os recebe, e nos dá em troca, -sem o cuidar, tantas das virtudes que possuimos, custa, digo, a crer -como um talento, a quem sua propria fraqueza devêra tornar inviolavel, -pôde ver-se em todos os tempos, e provavelmente continuará a ser até ao -fim dos seculos, alvo e emprego das críticas mais desabridas, e mais -grosseiras calúnias. Divindade extraordinaria, a quem seus proprios -ministros e sacrificadores insultão adorando-a, e que de cima de seu -altar, fragil mas eterno, inalteravel em sua mansidão, derrama sôbre bons -e máos a felicidade! Que a filosofia as injuriasse não espantára. La -Bruyere foi cruel para com ellas, Larochefoucault furioso, nenhum d’elles -justo, nem sequer francez: a filosofia não anda sem os filosofos, e todos -sabem como os dados a esse triste officio, são pelo demais almas seccas -e incapazes de avaliar branduras, entendimentos sem olhos de imaginação, -unicos proprios para julgar da verdadeira belleza; homens emfim -eremiticos, rusticos e ignorantes no meio da sociedade; e para remate de -suspeição, ja alongados pelo inverno da vida: da-se á filosofia o que as -mulheres ja não querem. - -A poesia não tem sido menos descomedida: a poesia, que d’ellas e para -ellas nasceo, cujas Divindades forão com razão pelos antigos fabuladas em -fórma feminil, como as Graças, como os Genios de tudo quanto ha amavel na -natureza, a poesia, a seu máo grado, lhes tem sido rebelde todas quantas -vezes os poetas, por de sobejo amantes e zelosos, precizárão desabafar -desgraças verdadeiras ou fantásticas: a lira acostumada a lhes entoar -seraficamente não louvores senão hinos, resoou execrações, ás quaes -respondêrão numerosos echos; porque onde o numero dos ingratos e indignos -era grande, não podia o dos maltratados e queixosos ser pequeno: e d’ahi -nascêrão essas civis guerras da literatura a favor e contra o sexo, -guerras batalhadas nas salas e saráos, nos passeios em romagens, nas -merendas das comadres e nas academias, desde o Japão até Portugal, desde -os serões da arca diluviana até os nossos dias, em que o amor cedeo á -política, e as questões das mulheres ás questões dos ministerios: _Factus -est repente de cœlo sonus, tamquam advenientis spiritus vehementer_.... -Ahi vinha ja querendo-se intrometter o meu demonio meridiano: ápage! - -Para as grandes pelejas de que fallava, se despejárão todos os arsenaes -da mística theologia, da methafísica, da historia sagrada e profana, das -fabulas e anecdotas, da fisiologia e novellas. Ficou largamente juncado o -campo de cadaveres em folio, em quarto, em outavo, em doze, em dezeseis, -em trinta e dois, em sessenta e quatro; de pergaminho, de marroquim, de -seda, de taboa, de papelão, de carneira, de papel: defuntos quasi todos -sem amenta, e cujos nomes, se os houvesse de compilar, encherião maior -livro do que este. Depois do derramamento de tantos rios de tinta, ainda -pende a mesma questão; ainda até ao fim do mundo se tem de trazer para -ella couzas que pareção novas; e as cinzas de Lucrecia, Dido, Phryne, -Sapho, Aspasia, Arria, Cornelia, Osmia, Heloiza; Christina, Catharina, -Maria Thereza; as cinzas das que habitárão cazaes, harens, palacios, -mosteiros; as cinzas de Ninivitas, Gomorritas, Babilonicas, Espartanas, -Atticas, Romanas, Africanas, Botecudas, Amazonas bellicosas, Indicas -Bailladeiras, Viuvas Indostanicas, continuárão a ser revolvidas, pizadas -e adoradas por modos sempre differentes, e quasi sempre cegamente, até -á consummação dos seculos. A mulher fisica principia a ser conhecida, a -mulher intellétual sê-lo-ha, a mulher moral he o infinito. - -A mocidade, quadra da vida em que reinão os mais encontrados ventos, em -obras a maior vassalla e tributária do sexo, he, fallando, escrevendo, -e talvez pensando, a sua maior detrátora. Uma conversação de mancebos, -embora amantes, não se detem senão em rebaixar o merito das mulheres: -nascidos os disséreis das pedras de Deucalião e criados ás tetas das -lobas. Qual pode ser a causa d’esta mais que montezinha ferocidade? -Será inveja á superioridade modesta? será despeito de vencidos? não; -essas vitorias, e ainda essas superioridades em virtudes, que não são -as distintivas do nosso sexo, facilmente se perdoão. He a causa o mesmo -natural instinto, que faz que os soldados em tempo de guerra, seroando -entre as armas á fogueira ociosa do seu rancho, encareção as derrotas -do inimigo, e lhe assaquem fraquezas que não tem, para a si proprios -accrescentarem animos e determinação para as futuras pelejas. - -Facil he carecer das loucuras da idade que ja não temos, ou que ainda -não temos; blazona-se d’isso, mas não he virtude: carecer porem dos -vicios proprios dos nossos annos seria virtude, mas tão rara he, que o -despossui-la deve merecer vénia dos sizudos. Era eu em toda a fôrça de -minha adolescencia, quando entre coetâneos e a seu contento, cantava em -meus versos destinados os fracos e imperfeições de algumas mulheres, -como fracos e imperfeições de todas ou da maior parte. Da falsidade -que n’isso havia me corro, mas muito mais do pouco delicado tom do meu -cantar, porque se me figura agora delito ainda muito mais grave, do -que attribuir-lhes defeitos, o pintar-lhos inamavelmente: a graça he -o seu primeiro mérito, injuria-las graciosamente ainda não he de todo -injuria-las. De muita nuvem se desaffronta, e de mui grande carga respira -um coração confessando suas culpas, mormente quando pelas confessar -se torna a entrar absolto e regenerado na estima e benevolencia das -dominadoras do mundo: quasi se folga, como me está succedendo, de ter -tido a culpa, para merecer a vénia e saborear a reconciliação. - -Transfuga dos arraiaes dos levantados, ás trincheiras d’ellas me -recolho, não só com as armas com que as guerriei, para as defender, mas -com uma bandeira para chamamento e reunião de outros. Ressuscitaria, -se podesse, para o meu novo campo todos os bem nascidos espiritos das -idades cavalleiras e cortezes, para procurarmos salvar da ultima ruina -o feminil imperio, que de dia para dia vai sendo entrado, talado e -engolido da Política; fero monstro em que tão mal assenta feminino! E se -o conseguissemos, se os moços que deixárão os affétos pelos debates, as -sociedades pelos _clubs_, os versos e cartas apaixonadas pelos jornaes -frios e praguentos, quizessem volver a seu natural officio de amar, de -agradar e divertir-se, ¡como se não amaciaria esta bruteza quasi, cínica -de nosso tempo illuminado, em que se não sabe ler! A propria Liberdade -lucraria, porque os seus nervos e verdadeiros espiritos vitaes não são -outros senão as virtudes e as bondades: ¿e quem como as mulheres, nos -poderia ainda attrair da praça onde se briga, odêa e persegue, para a -casa onde se quer bem e se folga, para a cosa onde até á ultima velhice -nos educâmos, para a casa onde de bondades e virtudes nos dão ellas a -todos os momentos exemplos vivos e formosissimos? _Tellus, et domus, et -placens uxor!_ Oh se eu podesse mostrar este meu pensamento, como me -está florejando na alma! dizer com palavras a mulher como a sei no meu -coração!... mas feminina he a mão com que escrevo, ¿como dezenharia ella -o seu retrato? - - - - -_Pag. 261._ - -FIM DA FESTA DE MAIO. - - -Se o fim de qualquer obra he a sua coroa, custará a achar obra tão mal -coroada como esta _Primavera_. Dos quatro Poemas he a _Festa de Maio_ -o ínfimo, não contribuindo pouco para isso o seu estirado comprimento: -e da _Festa de Maio_ a ínfima parte he sem nenhuma dúvida a segunda e -última. Boa e mui fertil era a idea primitiva, na qual, mas só na qual, -mui casualmente me encontrára com o allemão Gerstenberg no dithirambo -que traz titulo _Chipre_. Desenvolveo elle a sua, pôsto que em prosa, -como poeta mui valente: derramei eu, e enfraqueci a minha em pobrissimos -versos (era tempo que na maior parte dos dias compunha trezentos e mais) -que bem podérão, sem detrimento de pensamentos, ser reduzidos ao terço -do seu numero. Ja poderei parecer importuno com tanto repetir confissão -das minhas faltas; mas antes isso, do que se diga que eu as córo ou -tapo, ou com tantos annos ainda não caí em as conhecer cabalmente. Quem -a este meu cortar pelas proprias roupas chamasse affétação, muito se -enganára comigo: censuro-me, não para atalhar alhêas censuras; menos -para provocar defezas aos que sempre folgão, quer em bem quer em mal, -de encontrar as opiniões dos que escrevem; mas censuro-me e em todas -minhas couzas marco seu preço, para que os agora principiantes lá ao -deante se não queixem de mim, como eu podéra agora queixar-me de outros, -com cujos livros me criei. Consciencia e Verdade, ainda em mesquinhas -letras, devem de ser escrupulosamente servidas: tem uma e outra alguma -couza de tão divinas, que por mais dolorosos sacrificios que de nós -lhes façamos, no-los pagão com íntima satisfação. Certo he que fazendo -o que eu faço, se corre perigo de vir a um grande dissabor, como he, -depois de sinceramente confessados os defeitos, saírem os nescios na -arte de criticar, e que nunca uma só linha escrevêrão, aproveitarem-se -cobardemente de taes revelações, vozea-las como descobrimentos seus, e -vingando-se de sua propria esterilidade, triunfar miseravelmente dos -descuidos, sem nenhuma menção das boas partes. Ja isso por mim passou -depois que dissertei ácerca da invenção da _Noite do Castello_. Onde tal -se escreveo, quem o escreveo, e como o escreveo não o direi, que não -quero em livros meus andar carreando dementes para a posteridade, se he -que meus livros tem de la chegar, como cá chegárão alguns bem ruins dos -tempos atraz. E a final, que valem semelhantes pregoẽs e taes pregoeiros, -comparados com as suas duas maiores inimigas que são a verdade e a -consciencia? podéra accrescentar a vergonha. Em meu conceito nada. Por -tanto sigão elles por seu caminho, onde se afogão em lodo, e todos lhes -cospem na face; e eu, que nem sequer os tenho em assaz de conta para os -odiar, continue o dar documentos do unico merito de que me prézo, que he -a candura. Para dar culto á Verdade e á Consciencia, não sacrificarei -alhêas famas, que me não pertencem, mas pela minha rasgarei afoito: -far-lhes-hei de meu sujeito intellétual, o que de seus corpos diz Fernão -Mendes que fazião la em Tinagoogoo certos penitentes, que em procissões -públicas se hião espedaçando ante os carros triunfaes dos seus idolos, -e por fim se arremessavão por deante das rodas, para serem talhados e -esmagados: _a que toda a gente_, como refere o bom perigrino, _com uma -grande grita dezia: pachiloo a furão; que quer dizer: a minha alma com a -tua. E decendo logo de cima do carro um sacerdote ... se chegava áquelles -bemaventurados ou malaventurados ... e ajuntando os pedaços e as cabeças -... os mostravão ao povo de cima do mais alto sobrado do carro onde hia -o idolo, dezendo n’um tom muito sentido:_ “_Rogai peccadores todos a -Deos, que vos faça dignos de serdes santos como este que agora morreo em -sacrificio de cheiro suave._” - -FIM. - - - - -MAIS PRIMAVERA. - - - - -ADVERTENCIA. - - -Os trez seguintes Artigos vem, _mutatis mutandis_, trasladados da _Guarda -Avançada_, Jornal campeão da CARTA e da RAINHA, como todos os d’esse -tempo, sem excétuar um unico; Jornal exagerado, e muitas vezes injusto -sem querer, como o serão sempre os redigidos por almas novas e ardentes, -sinceras e poeticas, inexpertas e temerarias, que presumem que uma -revolução póde realizar os filantrópicos sonhos de um solitario; Jornal -emfim de que eu fui collaborador, quando vivia para a política, ainda que -não da política, e do qual perante minha consciencia me recordo com pezar -mas sem peijo, porque talvez fez males e grandes males, não aspirando -senão ao bem. Tanto he verdade, que só a moderação he capaz de dar frutos -abençoados! Relêa-se o meu Prologo do _Tributo Portuguez_. Aqui não quero -accrescentar mais nada sobre materias, sim importantissimas, mas que eu -ja dou todas por um malmequerzinho dos campos. — Sáem pois os Artigos -substancialmente os mesmos. Pena será, se passado agora tanto tempo -depois de escritos, os que por la estão espectadores das couzas públicas -os acharem muito mais applicaveis aos presentes dias; e ainda maior -lástima, se para o deante não vierem a perder boa parte de sua verdade. - -Remato com o louvor, que no Prologo deixei promettido, de meu mestre e -amigo o Snr. Antonio Ribeiro dos Santos: fragmento copiado do _Num. 2_ do -_Jornal dos Amigos das Letras_. Se a alguem parecer que não cáe este sob -o titulo de _Primavera_, paciencia; recebão-no como Nota, agazalhem-no -como filho de gratidão. Para mim recende elle muita primavera de -puericia, e de um jardim das Musas. - - - - -MARÇO - -(PRINCÍPIO DA PRIMAVERA) - - -Eis aqui os primeiros dias da graciosa estação. Das flores lhe chamárão -os poetas; melhor podérão chamar-lhe flor do anno. A terra, como viuva -ainda verde que se enfeita para novas bodas, a terra pelo sol repassada -de amorosa quentura, vendo-o volver a afaga-la, depois de lhe haver por -tanto tempo fugido, arrêa-se de todas suas galas, esperançosa sorrí por -entre a sua grinalda florída, embebe-se em perfumes, acerca-se de musicas -voluptuosas, e suspira brandamente dentro nos arvoredos recem vestidos, -nos valles alcatifados, pelas margens dos rios outra vez serenos. Com -razão foi a Primavera consagrada dos antigos ás Musas e Graças: com razão -se escolhião as suas vésperas para o Pontifice Maximo accender o novo -fogo, que devia durar todo o anno: com razão os pais de nossa lingua -derão a esta parte do anno um nome feminino, e os pintores apparencias -de formosa moça; emquanto Estio, Outono e Inverno pela aspereza, pela -fôrça, pela gravidade, pertencião a outro sexo. Cada fonte se aliza em -um espelho; cada pedra se veste em assento aveludado; cada haste nua se -desaperta n’um ramalhete: tornão-se os bosques outras tantas republicas -populosas, cujos cidadãos, livres como as virações, voão, cantão, -brincão, acaricião-se, desposão-se, educão a sua prole bafejada do ceo, -e parecem não respirar senão o prazer da independencia, da ternura e da -melodia. A natureza revoca á vida innumeraveis especies de animaes de que -o Inverno só continha o germen; ás outras infunde, como aos passaros, -um contentamento, uma ligeireza, uma attráção, que o Inverno lhes havia -roubado ou amortecido. Do ceo chove fecundidade sôbre tudo que he vivo; -e tudo o que he vivo sáe trajado de festa, e por toda a parte encontra -mesa que Deos lhe assoalha, carregada de sua abundancia com luxo, -magnificencia e formusura. - -A humana especie não podia em tão geral favor ser esquecida, antes foi -o seu quinhão de todos o mais largo. O amor, que para nós não tem uma -estação exclusiva, n’esta entretanto se nos desenvolve com recrescida -atividade: he porque o proprio ar, empregnado de elementos vitaes, nos -está coando aos peitos uma extraordinaria energia: he porque tudo em -de redor exemplos são que nos cativão: he porque o alvoroço e festa do -universo convidão o coração a gozar: he porque ao florir da rosa dos -jardins, muita e muita rosa esmorecida se reanima nas faces da belleza: -he porque a voz da mulher então sáe, não sei como, ainda mais doce; e -tanto ellas mesmas sem o saber o sentem, que em toda a parte em que as -horas e circunstancias do seu canto não andão assentadas nas tarifas da -moda, insensivelmente se achão a cantar, e este novo attrátivo parece -n’ellas uma necessidade, como he nas aves da primavera. Dir-se-hia que -a natureza nos manda as flores nos dias em que o amor nos instiga a -offerecê-las. - -Mas os feitiços da Primavera não se limitão nos da recreação e amor. -Um medico vos dirá que he ella a estação da saude; um sabio a do vigor -mental; um navegante a do princípio de confiança nos seus mares: o -artífice a saúda como a que abre a porta a longos dias; o pastor como a -mãi da abundancia; o agrícola vê as esperanças do anno desparzidas por -suas terras, por suas vinhas, por seus pomares. Ah! só os homens das -cidades, tristemente condenados á fadiga e ao luxo, quasi não encontrão a -primavera no seu anno! Para esses reduz-se a mais algumas horas de luz, -e a uma pouca mais serenidade em um ceo sem horizontes. Se ao menos se -podesse esta serenidade reflétir nas nossas almas!... mas os redemoinhos -das novidades, os raios das intrigas ambiciosas, o frio do desalento -e carregadas nuvens ao longe esterilizão tudo, e se uma ou outra flor -de esperança nos desabrocha a medo, lá está logo a reflexão, filha do -conhecimento dos homens, que a faz com um sôpro desapparecer. O anno dos -nossos destinos teve um inverno bem longo e rigoroso: n’elle sulcámos -a terra para semear liberdade e ventura, adubámo-la com o nosso sangue -e corpos de nossos irmãos, regámo-la com o nosso suor e lágrimas; e -agora que nós e nossos filhos esperavamos ao menos a florescencia que -nos augurasse frutos para o futuro, a Deos approuve de outro modo, e uma -torrente de iniquidades, que não quer parar, continúa a assolar a terra -de nossos avós. - - - - -ABRIL - - -Este mez, assim chamado por abrir o seio da terra á fecundidade; -consagrado desde a infancia de Roma á Deoza da formosura, á Mãi das -Graças, Amores, e Jogos, he o primeiro que ouza, por debaixo ainda das -últimas nuvens chuvosas do inverno, sair e folgar com seu manto verde, e -bordado de flores. O dia da sua entrada era para os nossos antepassados -uma festa popular, menos estrepitosa que o Carnaval, de que parecia -imitação, mas tambem mais innocente e serena. Ignoro se esse costume -o herdárão elles de nações mais antigas, com quanto dos Romanos o não -houvessem, de quem tantos outros lhes vierão. Tão pouco me recordo de -haver lido alguma origem historica aos brinquedos rituaes do primeiro de -Abril; mas sabido he que elles existírão em nossa terra, e inda hoje se -lhes conservão os restos, mormente pelas Provincias. O dinheiro pregado -nas ruas, as cartas, e prezentes de lôgro, a pedra que chamavão das -agulhas, a fôrca de Judas, e outras quejandas bagatelas para rir, estão -entretendo n’esta hora bastantes dos nossos aldeões do norte. - -As lembranças velhas tem para mim muito grande saudade, e doçura; doe-me -o coração quando vejo ir-se perdendo estas seculares tradições que a -ninguem fazião mal, ainda que nascidas em berço de superstição, e que -de bom tinhão o transportar-nos a tempos sabidos, e remotos, ou a tempos -mais remotos ainda, e ignorados. E que he o que as apaga, e fica em seu -lugar? odios, pobreza, e desgraças. Oh! aonde estará um poeta amigo dos -serões e da innocencia, que se apresse em nos escrever os Fastos do -nosso bom Portugal? No meio da confusão desconsolada do presente, nós -beijariamos essa obra como santa reliquia em terra de infieis: veriamos -um iris vão mas brilhante, entre nuvens de tormenta. Para excitar -algum bom engenho a no-lo dar, he que eu coméço, e continuarei sempre -a recordar nos seus dias proprios as nossas antiguãlhas: o que farei -com muita avidez, porque d’aqui a alguns annos, o investiga-las será -ja tarde. Assim os pintores Italianos se deleitão copiando os restos -amortecidos das pinturas a fresco que sobre-vivem ao grande Imperio, -e os antiquarios trasladão avidamente os enrolados livros das cidades -soterradas, antes que de todo se desfação em pó. - - - - -MAIO. - - -He a apparição d’este mez uma festa da natureza, em que sempre os homens -se alegrárão: quizeramos poder tributar-lhe algumas flores pelas tantas -que nos elle concede. Não teçamos o seu encomio d’aquillo que sendo -sensivel a todos não carece de ser descrito. Zéfiros e rosas, rolas e -rouxinoes, abelhas e borboletas, a terra toda verde, o ceo todo azul, as -noites começando a fugir como envergonhadas de esconder as alegrias da -natureza, objétos são que ainda que desde a origem do mundo se apresentem -sempre novos, já se tornárão lugares communs nas descrições da poesia. -Voltemo-nos para as recordações; embalemos e adormeçamos com ellas por -um pouco o espirito martirisado dos absurdos e crueldades d’estes máos -tempos, em que ja se não crião fabulas risonhas e innocentes, coloridas -pela imaginação, animadas pelo amor. - -Forão os homens antigos os que idolatras da concordia, para melhor a -insinuarem á terra, collocárão nos astros a sua imagem brilhante, e ao -signo de Maio chamarão o signo dos Gémeos. Elles forão os que sensiveis -aos encantos das Artes, consagrarão este mez a um Deos, que vivificando -a natureza pela luz e calor, presidia com a Lira na mão aos prestigiosos -artificios que a embellezão. Almas petrificadas ha ahi, para quem estas -saudades do mundo antigo são frivolas, comparadas com um artigo de -gazeta; para nós he delicioso andar mergulhando pelo oceano dos seculos, -e não voltar a assentar-nos na nossa Ilhota escabrosa e esteril, senão -carregados dos coraes, das pérolas, das riquezas formosissimas, que se cá -não produzem. O fundador de Roma dedicou aos mancebos (_Juvenes_) o mez -de Junho; era essa a idade que lhe fazia ganhar vitorias, mas ja primeiro -havia consagrado o Maio aos velhos (_Majores_), porque feroz como era, -Romulo experimentava o afféto que nos attráe para com o antigo. Passemos -por alto Festas misteriosas da Deoza Bona, celebradas pelas Romanas no -primeiro de Maio, em todo o segredo dos Penates e sem testemunha de -varão; visitas das Vestaes ao Pontifice Maximo e principaes Magistrados -da Republica; contemplemos a expiação dos Lémures, pois que usos nossos -me parecem ter d’ahi recebido origem. - -Á meia noite levantava-se o pai de familias, hia-se descalço, calado, e -chêo de terror santo, á fonte, dando por todo o caminho amiudados estalos -com os dedos para afugentar os genios máos. Lavava trez vezes as mãos, -e tornando-se para casa, vinha atirando uma a uma, por cima da cabeça e -para traz de si, favas negras, de que trazia chêa a boca, e articulando -taes palavras—_com estas favas me resgato a mim e aos meus_:—o que por -nove vezes repetia, sem olhar para traz, para não espantar o espétro -que vinha apanhando as favas negras. Tomava agua por uma ou duas vezes, -batia n’um vaso de bronze, e para conjurar a sombra a lhe largar a casa, -por nove vezes repetia—_Sahi, ó manes paternos_.—Eis provavelmente -d’onde provierão estes sustos vagos que ainda se dão a sentir aos homens -rusticos no princípio de Maio; este uso de se repartirem e comerem -castanhas seccas para evitar que o Maio se apodere de nós. A imaginação -do bom povo perdeo de vista essas larvas, mas o medo que ellas produzírão -lhe ficou: he uma especie de moeda, que safada como está de passar de -mãos em mãos, ainda conserva a sua valia. - -Outros costumes de Maio tem o nosso Portugal, a que folgáramos que -alguem escavasse e descobrisse a raiz, sendo certo que na historia a -devem ter. O Maio pequenino, que seguido de todas as crianças do bairro, -corre enfeitado de flores, as ruas da cidade, ao som de um cantar antigo -e uniforme; aquellas mimosas Maias tão arraiadas e donosas, que á orla -dos caminhos se encontrão comprimentando os passageiros; aquell’outro -estilo, ja talvez hoje passado, de se deitarem n’um mesmo leito um casal -de creanças innocentes, para se lhes cantar em roda um como epithalamio, -ou trova de suas bodas; os descantes amorosos dados com a viola n’esta -occasião pelos aldeões ás suas escolhidas; não provirá tudo isto de -alguma ja perdida lembrança de cultos da Deoza Maia? E a usança de -ornar com flores Maias as portas e interior das casas, não será reflexo -distante dos festejos Romanos á Deoza Bona? - -A religião, que para si tomou ornato de tantas joias ao Paganismo, não -se desdenhou tambem de perfilhar este mez. Em muitas freguezias, pelas -nossas provincias do norte, o bom Parocho vai benzer no princípio de Maio -a bandeja de rosas que entre os devotos se distribuem e se commungão, -porque esta flor abençoada traz felicidade.—Vem depois aquellas tão -esperançosas, tão cantadas e tão sabidas Ladainhas de Maio.—Hoje os -camponezes de França vão plantar o seu Maio á porta das pessoas honradas -da sua freguezia: os Inglezes renovão de certo modo as antigas _Vigilias -de Venus_: os Gregos, como se os seus poetas d’outro tempo os inspirassem -ainda, e a era das Elegias tornasse a reviver, vão descantar amores e -pendurar grinaldas aos umbraes das suas inclinações: e os moradores de -Roma, segundo nos foi dito por quem lá foi a essa terra de saudades, -ainda agora se reunem na fonte de Egeria a respirar as delicias da -natureza, debaixo d’aquelle ceo de tanto amor, que não a pensar em Numa e -na grandeza antiga dos Romanos, de que a elles só veio em herança a terra -coberta de muitas ruinas. - -¿Para que servem todas estas memorias, nos estão perguntando os -insaciaveis de Politica? e nós não lhes sabemos responder senão que -a nós estes pensamentos nos fazem muito bem, e que aos amigos de -passatempos innocentes se não ha de prohibir o que a ninguem faz mal. -Deixai-nos ser algum dia do anno semi-pagãos. São as superstições da -Politica ambiciosa as que empecem á felicidade, mas estes graciosos -prejuisos de nossos pais a nenhuma couza do mundo danão. E de mais, -se havemos de dizer toda a verdade, a fé, que a estes pobres erros -acompanha, costuma trazer comsigo muita piedade religiosa, e n’ella -alguma doçura moral, que nem sempre vai por onde vai a desenganada -Filosofia. Ditoso d’aquelle engenho que podesse trazer outra vez ao -mundo a innocencia que nos lá ficou no paiz das fabulas! mas interromper -um sonho de poesia quando se julga que a felicidade vem apoz os nossos -passos, voltarmo-nos, como Orfeo, para a abraçar, e vermo-la fugir e -desapparecer n’um ai, e um mundo de realidades dolorosas estender-se -immenso deante de nós, oh! isto he muito triste! - - - - -_ÁCERCA DA PESSOA DO Sr. Antonio Ribeiro dos Santos._ - - -Pôsto que o escrever de Varão tão conhecido dentro e fóra d’este -Reino, qual foi o Sr. Antonio Ribeiro dos Santos, já possa a muitos -parecer escusado, o deixar de o fazer, mais que seja por alto, nem -a opportunidade da occasião mo consente, nem menos mo consentiria o -gôsto, que sempre do refrescar essas memorias me resulta; por quanto na -primavera de minha vida, e primeira manhã de minha poesia, foi que a boa -de minha fortuna me deu conhecer este Nestor de nossa Literatura, que -já então, ao cabo da sua longa e proveitosa carreira, ornado de muitos -méritos de sciencias e virtudes, respeitado e apontado de longe, pouzava -sereno e magestoso, aguardando pela sua hora, á beira da eternidade. - -Que fosse nascido nas terras do Douro, d’onde lhe prouve tomar nome -de Elpino Duriense; que fizesse com bons mestres seus estudos; que se -tornasse, lendo na Universidade de Coimbra, um de seus mais lustrosos -luminares; que na Igreja e no Estado occupasse mui subidos empregos; que -fosse o amigo e centro de quantos bons engenhos em seu tempo florecerão, -não faltará quem o escreva entre seus outros muitos louvores. Tão -pouco me deterei dispartindo entre a Jurisprudencia, a Historia, as -Antiguidades, a Literatura, e a Poesia o opulentissimo cathalogo de suas -Obras, cuja maxima, e por ventura optima parte, ainda até agora não viu -a luz. Não hão de ser mãos tão debeis como as minhas as que revolvão -tamanhos trofeos, nem em tão pequeno espaço como este coubéra retratar -completo Homem que abrangeu duas idades, bem fazendo-lhes mutuamente a -uma pela outra; anticipando em meio do seculo passado o gôsto, o apuro, -a filosofia d’este nosso; transplantando para o presente o estudo, a -boa fé, o saber do passado; e legando ao futuro thesouros que andou -desencantando das antiguidades remotissimas. Menos arremessados são meus -dezejos, e mais seguros, que só quero levar meus leitores a com este bom -velho encetarem conhecimento. - -Corre a primavera do anno de 1814 ou 15, que eu certo o não sei. A -morada de Elpino, que em um dos mais desafrontados altos de Lisboa está -formosamente situada, longe do bolicio, como bem cabia á sua indole -pacifica e genio estudioso, he um templo de Musas, religiosamente vedado -aos olhos e vozes de profanos, isto he dos máos e ignorantes, unicos -de todos os entes para quem sua porta e animo não erão hospedeiros. -Por aquellas salas, gravemente ataviadas á laia dos nossos antigos, de -sedas e arrazes, alcatifas, tremós, espaldares e soberbos quadros dos -mais perigrinos pintores, reina o silencio, e uma lembrança dos antigos -e abundosos tempos de nossos avós, que tanto conforma com os nobres e -portuguezes pensamentos de suas poesias, as quaes se raras vezes voão -sublimes, nunca, nem por sombras, desmentem da boa moral e sã filosofia. -Aqui o bom Elpino nos recebe cordialmente, a meus irmãos e a mim; os -filhos do seu amigo são seus amigos, os estudiosos das Musas portuguezas -e romanas são os seus amores. O ancião, que ainda entre sabios podéra -ser ouvido como oraculo, remoça-se conversando com meninos, apouca-se -para que o melhor comprehendão, orna-lhes a moral e o estudo com quantas -flores sabe; do centro da gloria lhes ensina por onde se abre o caminho -que para lá conduz; e pelo grande espirito e persuasão com que falla, -talvez consegue crear algumas vehementes vocações literarias. Outras -vezes nos convida para a bibliotheca, suas delicias, e nos acompanha -com a alegria na boca. Os seus olhos, como que ao fim de tanto lêr ja -quizessem descançar para sempre, não lhe alumião o caminho; e semilhante -áquelle grande Bardo Ossian, a quem velho e cego, piedosa conduzia a -moça Malvina para os logares usados de sua inspiração, no hombro de uma -menina, sua afilhada e leitora, segurava o bom de Elpino uma das mãos, -emquanto com a outra arrimada a um bordão, palpava o caminho, e se -ajudava em seu quebrado andar. - -Era a bibliotheca o íntimo retiro d’este ermitão do Parnaso, fugida para -longe das casas, pôsto que tão quietas, e frescamente assentada em meio -de muitas sombras, verduras e aromas de seu jardim, hortas e pomares. -Grandissima cópia de livros, longamente procurados e custosamente juntos, -e entre os quaes se estremavão no numero e riqueza os Gregos, os Romanos, -e os antigos Portuguezes, alí estavão juntos, entre o susurro estudioso -das ramas e os cantares descuidosos dos passaros. Um Apollo de marmore -com a sua lira em punho, parecia estar-se mui bem cabido e contente no -meio d’aquelle seu alcaçar, cercado de tantos seus cultores, servido por -tão venerando Sacerdote. Lembranças são estas que trago colhidas de minha -infancia, e que transplanto para aqui, por não querer que se percão. - -Áquelle Homem, n’aquellas tardes, e debaixo d’aquelle této, devo a grande -veneração que ainda hoje consagro aos meus livros latinos, não poucos -dos quaes mos deu elle proprio; e tocados de suas mãos poeticas, me -inspirão ainda agora poesia e virtude, até cerrados, e n’elles confio que -me hajão de servir de pranchas, com que n’este pélago de freneticas e -descompostas innovações, me não deixe, como tantos que mais valião do que -eu, totalmente sossobrar. Nos seus ouvidos indulgentes lançava não só as -primicias dos meus versos, mas ainda as traças e esperanças de obras que -borbulhavão de uma seiba virgem de quatorze annos. Escutava elle tudo com -desvellada benevolencia, umas vezes apontando-me melhores caminhos ou -mais faceis, outras desviando-me de commettimentos maiores que meus annos -e forças; agora revelando-me regras, logo insinuando-mas com exemplos, -com que sempre fiel e muito a ponto lhe acudia a memoria. Não he verdade -que ha em tudo isto um não sei que, por onde o que o pratíca não póde -menos ser de um grande homem? Oxalá meus esforços melhor houvessem -respondido a suas diligencias, ou me não houvesse elle desamparado no -começo da carreira, para a qual apenas me aparelhou! Sim, porque embora -me hajão a vaidade, a gratidão péde que eu publique, foi este Pontifice -das Musas que me iniciou no seu culto, e no seu paternal enthusiasmo -me disse—Tu serás poeta.—Scena digna de um pincel eloquente: um ancião -coroado de louros, e cego como Homero, sagrando ao culto da mais bella -das Artes, um menino cego como elle! - - - - -NOTAS - - -[1] Alguma vez publicarei o que acerca d’isto disputamos por Cartas, -de Lisboa para Coimbra, o Padre José Agostinho de Macedo e eu. Negava -aquelle escriptor, de incontrastavel talento, que a Poesia Allemã e -Suissa mais fosse do que a nossa rica em graças naturaes, e amena -frescura, antes affirmava que a nossa a excedia grandemente. Ou não -escrevia elle deveras, ou se convenceo do erro, como será de ver das -Cartas, quando ellas aparecerem. O motivo porque até hoje as tenho dos -publicos olhos resguardadas, outro não foi senão recêo de que se me -attribuisse a vãgloria a publicação de uma disputa em que tamanho sujeito -me cedeo, principalmente sendo notorio que o favor que em seus escritos -deu ás minhas primeiras tentativas poeticas e infantis, jamais o denegou -com o andar do tempo, antes o reforçou com mui graciosos louvores. - -[2] Conceder-lha-heis, se ja não tiverdes determinado emprega-la em outro -uso, ou fundar nesse sitio alguma caza de Commissão que nada faça, ou -algum quartel de guarda que legisle sobre os destinos publicos. - -[3] O Livro _Le mie Prigione_, quanto á utilidade prática leva, me -parece, a palma á _Imitação_ de Kempis. Em Kempis apparece a descrição -da caridade e piedade, em Silvio a applicação d’ellas aos successos da -vida. Kempis aconselha, Silvio ensina a perdoar, a amar, e a ser feliz, -em despeito da fortuna: dá o exemplo d’isso, he elle proprio o exemplo. - -[4] Quem bem reparar na justiça rigorosa (de cruel a taxaráõ alguns) -com que eu proprio trato a minha Musa, perdoar-me-ha quando por amor ás -nossas letras, aponto um defeito em meu mestre e amigo o Snr. Antonio -Ribeiro dos Santos. Inda assim, porque me não fique remordendo a -consciencia, como expiação, e mui suave, porei no fim do volume um penhor -do meu respeito e grato animo a tão grande varão; capitulo ja impresso no -_Jornal dos Amigos das Letras_, mas por isso mesmo apenas conhecido. - -[5] Meu irmão Augusto Frederico de Castilho. - -[6] Meu irmão Adriano Ernesto de Castilho. - -[7] As Senhoras Mellos, a quem pertence a Lapa e a Quinta das Canas. - -[8] Na _Primavera_ de meu Irmão Augusto Frederico de Castilho ha um lugar -parallelo, não quanto á expressão, mas quanto ao pensamento principal. -Releva porem que em duas couzas se advirta: a uma, que nenhum de nós -foi plagiario, nem o podiamos ser, porque todos compunhamos em segredo; -a outra, que o passo do poema, em que elle descreve Nize a figurar de -Primavera, leva grande vantagem de valia a estes versos! - -[9] Augusto Frederico de Castilho. - -[10] O meu amigo Jose Vitorino Freire Cardozo da Fonseca (_Etmiro_) tinha -começado em uma sua quinta na Beira um jardim, tal como o descrevo aos -seguintes versos, e que pretendia consagrar á minha memoria. Mal haja -aquelle, a quem semelhante penhor de amizade não enternece! - -[11] Veja-se a Quarta Edição do Diccionario chamado de Moraes. - -[12] Lamartine no Prologo de _Jocelyn_ - -[13] Em Maio se poem o ponto aos Estudos da Universidade, que eu -n’aquelles tempos cursava. Só os que por ahi tem passado, podem entender -o alvoroço com que he recebido. - -[14] Antigo nome da Serra de Estrella d’onde nasce o Mondego. - -[15] Por esta occazião me importa fazer um annuncio ao Publico. Ei-lo: -declaro que se esse Jornal inexperadamente acabou, não foi minha a culpa, -assim como de nenhum dos sócios, mas somente dos acontecimentos, assim -publicos como privados da Sociedade: com elle nunca tive outras algumas -relações senão as onerosas e de trabalho, que eu tomava comtudo com muito -gôsto. Todos os sócios o sabem, mas interessa-me que o saiba toda a -gente, para me salvar de quaesquer desasizadas reclamações. - -[16] Em podendo ser, publicarei um volume de poesias, que lá compuz -acerca d’aquella bemaventurada solidão, onde annos vivi ignorado e -contente, na residencia de meu Irmão Augusto Frederico. - -[17] Tudo isto, que eu julgava para sempre meu, passou! Aprouve a Deos -mostrar-me só de relance a felicidade! Pouco mais de dois annos a -illustre e digna sobrinha de Nicolau Tolentino de Almeida, a Senhora -D. Maria Izabel de Baenna Coimbra Portugal, se sacrificou toda a -felicitar-me: o Pai de todo o amor e de toda a virtude a chamou logo -para o seu seio: era aquelle um Anjo que faltava no ceo. Esta Nota ao -poema, vai como se achava feita quando ella ja me não escrevia, senão -a espaços, mas ainda se comprazia de me ouvir dictar. Quando o seu fim -era ja inevitavel, todos o sabião e talvez ella mesma, e eu contava -ainda com largos annos de fortuna. O mesmo advirto quanto ás mais Notas -e accrescentamentos d’este Livro, que tudo estava pronto (faltando só -algumas poucas notas que não fiz nem ja farei) antes do fatal dia um -de Fevereiro passado: dois se imprimio erradamente no Post Scriptum do -Prologo. Se outrem não tivesse conservado essa data, e me não advertisse -da inexatidão em que mal informado caí, ainda agora a podéra eu ignorar: -esse dia, as vesperas e os seguintes não tiverão para mim nenhuma ráia -nem de luz, nem do sôno, nem de alguma outra das couzas que estremão os -dias.—_12 de Maio de 1837._ - - - - -INDEX. - - - Pag. - - Ante-Prologo 5 - - Prologo 25 - - _Post-Scriptum_ 47 - - Epistola á Primavera 49 - - Dedicatoria a minha Irmã 51 - - Duas Palavras de Introdução 53 - - Epistola 57 - - O Dia da Primavera Poemetto 75 - - Dedicatoria a minha Mãi 77 - - Historia da Festa da Primavera 79 - - O Dia da Primavera Canto I - _A Manhã_ 95 - - O Dia da Primavera Canto II - _A Tarde_ 111 - - Notas ao Poemetto antecedente 131 - - Nota 1.ª (_Elmano e Filinto—versificação - esdruxola e aguda_ &c.) 131 - - Nota 2.ª de Augusto Frederico de Castilho 162 - - Os Cantos de Abril Idillio 167 - - Dedicatoria a meu Pai 169 - - Advertencia 171 - - Os Cantos de Abril 173 - - Nota ao Idillio (_Excerpto de alguns - versos da primeira Edição do Idillio, - rejeitados n’esta segunda_) 186 - - A Festa de Maio Poemetto 189 - - Dedicatoria ás Senhoras da Lapa dos - Esteios 191 - - Historia da Festa de Maio 193 - - A Festa de Maio Canto I 199 - - —— Canto II 225 - - Notas á Festa de Maio 263 - - Nota 1.ª (_Com a tradução para latim - dos amores de Galatea no Cant. 1 da - Festa de Maio_) 263 - - Nota 2.ª (_Piedade para com os animaes—alimento - animal_ &c.) 269 - - Nota 3.ª (_Em desaggravo das mulheres_) 291 - - Nota 4.ª (_Sôbre o 2.º Canto da Festa - de Maio_) 305 - - Mais Primavera 309 - - Advertencia 311 - - Março (_Princípio da Primavera_) 313 - - Abril 317 - - Maio 319 - - Ácerca da Pessoa do Sr. Antonio Ribeiro - dos Santos 324 - -FIM - - - - -Lista de Assignantes. - - - S. M. F. A RAINHA D. MARIA II. - S. M. I. A DUQUEZA DE BRAGANÇA. - S. A. R. O PRINCIPE D. FERNANDO AUGUSTO. - - A. A. A. Moreira. - Ab. M.ᵃ J. Paiva Manso. - Abrahão Weelhause. - A. Carneiro. - Achilles de Pereira. - A. Eustaquio da Silva. - Ag.ᵗᵒ de Castro da Gama Lobo. - —— José Pereira. - —— Roïz da F. Soares. - A. J. R. Leitão. - Albino F. de Figueiredo. - Conselh.ᵒ Alexandre Alb. de Serpa Pinto. _4 Ex._ - Alexandre Lahmeyer. - D. Alvaro. - Amaro Coutinho Pereira. - Anacleto José da Silva. - André Joaquim Ramalho. - —— Perez. - A. Neves de Sequeira. - Angelo Augusto Martins. - D. Anna C. Guimarães. - —— Ifig. do Valle de S. e Menezes. - —— Lucinda Mont.ʳᵒ - —— Ludovina. - —— Margar.ᵈᵃ Fructuoso de Ar.ᵒ - —— Victoria da Rocha Torres. - Anonimo. _2 Exempl._ - Anselmo J.ᵉ Braamcamp. - Ant.ᵒ Adolfo Ferr.ᵃ Sarmento. _15 Exempl._ - —— Adriano da Mata P.ᵗᵃ - —— Ag.ᵒ Per.ᵃ Lacerda. - —— Alves Souto. - —— Aluisio Jervis d’Atouguia. - —— Augusto Gonsalves. - —— B. de Brito e Cunha. - —— Cardoso e Silva. - —— C. da Costa e Sousa. - —— Coelho Bragante. - —— da Costa Paiva. 130 _Exempl._ - —— Dias d’Azevedo. - —— —— Monteiro. - —— —— Rodão. - —— Diniz Couto Valente - —— Ezequiel d’Aguiar. - —— F. Mag.ᵃᵉˢ Coutᵒ - —— F. Mendonça Arraes. - —— Frz. Alves Fortuna. - —— Florencio Reixa. - —— Fr. Alv. Guimarães. - —— Freire Castello Br.ᶜᵒ - —— de Freitas. - —— Gaud. S.ᵃ Monteiro. - —— G. Barreto de Pina. - —— Gomes Lima. - —— Glz. d’Alm.ᵈᵃ Rino. - —— Gueifão Bello Per.ᵃ - —— Guilherme da Costa. - —— Henriques Doria. - —— Jacinto Santarem. - —— Joaquim de Abreu. - —— Cons.ᵒ Antᵒ Joaq.ᵐ da Costa Carv.ᵒ 6 _Ex._ - —— Joaq.ᵐ Reis Junior. - —— —— da Silva. - —— —— Teix.ᵃ S.ᵃ - —— J. d’Oliveira Lima. - —— José d’Avila. - —— J.ᵉ Bot.ᵒ da Cunha. - —— —— Ferr.ᵃ de Sousa. - —— —— Glz. Basto. - —— —— —— Duarte. - —— —— de Oliveira. - —— J.ᵉ de Oliveira e S.ᵃ - —— —— R. Guim.ᵃᵉˢ 3 _Ex._ - —— —— de Sá Camello. - —— —— da S.ᵃ Milheiros. - —— —— de Sousa Martins. - —— —— Teixeira Leal. - —— —— de Vasc.ᵒˢ 20 _Ex._ - —— Leite Pereira Lobo. - —— Lopes de C. Alm.ᵈᵃ - —— Lour. Coelho. 5 Ex. - —— Luiz Nogᵃ e Freitas. - —— M.ᵉˡ R. Abranches. - —— —— Vargas. - —— M.ᵃ d’Almeida e S.ᵃ - —— —— de Campos. - —— —— Ferreira. - —— —— L. M. Queiroz. - —— —— Machado. - —— —— Thovar Lemos. - —— Martins dos Santos. - —— de Mello Breyner. - —— N. Roïz. Cancella. - —— Nunes dos Reis. - —— Pedro de Carvalho. - —— P. X. O. B. Leite. - —— Pereira de Faria. - —— Porfirio de Freitas. - —— Ramos Azev.ᵒ Maia. - —— Rib. Azev.ᵒ Bastos. - —— Ribeiro de Faria. - —— Sald.ᵃ R. Albuq.ᵉ - —— Samp. X. Casqueiro. - —— dos Santos Monteiro. - —— de Sá Per.ᵃ Samp. - —— da Silva Bastos. - —— da Silva Leitão. - —— S.ᵃ Monteiro. 2 _Ex._ - —— Sotero Sz.ᵃ Falcão. - —— Thomaz Aquino S.ᵃ - —— Vicente de Sousa. - —— Vieira de Carvalho. - A. P. Ardisson. - A. P. B. de Saldanha. - A. R. Sealy. - Assemblea Lisbonense. - —— Portuense. - Associação Civilisadora. - Augusto. - —— Frederico Ferr.ᵃ - Dr. Augusto Lavit. 2 _Ex._ - Augusto Maria Dermott. - —— Victor Sabbo. - Aureliano J.ᵉ de Moraes. - Ayres Sá Nogueira. 3 _Ex._ - —— da Silva Coelho. - - Balthesar Lopes do Calheiros e Menezes. - Bandeira—Ex-Governador do Castello. 4 _Ex._ - Barão d’Argamaça. - —— de Ruivoz. - Barnabé F. Paula Ataide. - Bartholomeu dos Martires. - Bento Alão. - —— de Almeida. - —— G. Brito Taborda. - —— Guilherme Klingleofer. 3 _Exempl._ - —— J.ᵉ Teixeira Penna. - —— de Moura Portugal. - —— Pereira. - Bernardino J.ᵉ dos Santos. - Bernardo José de Miranda. - Busch. - - Dr. Cabral Teix.ᵃ Moraes. - Caet.ᵒ Alberto Orlandi. - —— J.ᵉ Alves d’Araujo. - —— José M.ᵃ de Sena. - —— Xavier Diniz. - C. Almeida. - Camillo da Silva Ferraz. - Candido José Roïz Vieira. - Cap.ᵃᵒ Engenheiro Carv.ᵒ - Carlos Augusto Poppe. - —— Gould. 5 _Exempl._ - —— de Sá. - —— Vieira da Silva. - Carneiro. - Castro Almeida. - C. F. Altavilla. - Christovão M.ᵃ dos Santos. - Cipriano A. Rib. Freire. - Cipriano Dom. Vianna. - C. Lagrange. - D. Clara Clorinda Lopes Pereira de Vasconcellos. - Clem.ᵉ A. O. M. Alm.ᵈᵃ - —— Augusto Bolonha. - D. Clementina Adelaide da Silva Monteiro. - C. Massa. - C. M. Caula. - Conde da Cunha. - —— de Lumiares. - —— de Mello. 6 _Ex._ - —— de Villa Real. - Condeça de Belmonte D. Jeronima. - —— de Mello. 2 _Ex._ - —— de Villa Real. - Cosme José Dias. 10 _Ex._ - - Daniel Cesar S.ᵃ Ferraz. - —— Sotero Caio dos S.ᵗᵒˢ - D. A. R. Varella. - David Ubaldo S.ᵃ Leitão. - Diogo Ant.ᵒ de Sequeira. - —— Aug. C. Constancio. - —— P. Mtr.ᵒ Bandeira. - Domingo Garcia Peres. - Domingos Fr. Santos Lim. - —— Monteiro de Albuquerque e Amaral. - —— Ribeiro de Faria. - —— —— dos S.ᵗᵒˢ - Duque da Terceira. - Duqueza da Terceira. - - C.ᵉˡ E. C. C. F. Furtado. - Eduardo Frederico Lour.ᵒ - Emilia C. de Figueiredo. - D. Emilia Martinini. - Epifanio Fr. de Miranda. - Ernesto Adolfo de Freitas. - —— M. V. Montenegro. - —— José Ferreira. - - D. Faustina M.ᵃ das Dominações Simões. - F. C. de M. - Feliciano Alm.ᵈᵃ Vidal. - Fernando Affonso Giraldes de Mello e Sampaio. - Fernando Theod. Arnaut. - F. L. Bettencourt. - Figueiredo. 13 _Exempl._ - Filippe Folque. - Fortunato José Barreiros. - —— —— N. M. e Mello. - D. Francisca de Noronha. - Fran.ᶜᵒ Abrantes. - —— Adrião Pereira. - —— Affonso da Costa Chaves e Mello. 12 _Ex._ - —— Alves Souto. - —— —— Alm.ᵈᵃ Reixa. - —— Ant.ᵒ de Pinho. - —— —— Cerqueira S.ᵃ - —— —— F. S.ᵃ Ferrão. - —— —— dos Santos. - —— de Assis Almeida. - —— —— —— Alm.ᵈᵃ C.ᵗᵉ Real. - P. Francisco d’Assis Biga. - Fran.ᶜᵒ Brito P. Almeida. - —— Candido Mend.ᵃ - —— de Castro Freire. - —— C. Judice Samora. - —— da Conc.ᵃᵒ Soares. - —— Dias Brandão. - —— Eduardo Andrade. - —— Fabião de Mend.ᶜᵃ - —— Gaspar Lahmeyer. - —— Gomes Loureiro. - —— Joaq.ᵐ da Cunha Travassos Cast.ᵒ Branco. - —— —— da Fonseca. - —— —— dos Santos. - —— J.ᵉ de Freitas. - —— J.ᵉ de Sousa Nunes. - —— —— Tavares Junior. - —— Luiz de Sousa. - —— da Mãi dos Homens Annes de Carvalho. - —— M.ᵉˡ C. Pimenta. - —— —— de Negreiros. - —— M. Silvr.ᵃ Menezes. - —— —— de S.ˢᵃ Brandão. - —— —— de Maris Coelho. - —— M. Walsh. 4 _Ex._ - —— Nunes da Silva. - —— Paula Costa Feio. - —— —— Seg. Lemos. - —— —— S.ˢᵃ V. Boas. - —— —— V. Campos. - —— —— Zuzarte. - —— P. Taboada Junior. - —— P.ᵗᵒ de Magalhães. - —— Raim. d’Andrade. - —— da Silva Falcão. - —— Vieira S. Barradas. - Frederico Aug.ᵗᵒ Martha. - Fructuoso Dias Mendes. - —— —— de Paiva Card.ᵒ - F. Z. Fer.ᵃ d’Ar.ᵒ 5 _Ex._ - - Dr. G. Centazzi. - Gabriel Fran.ᶜᵒ Ribeiro. - —— Lopes de Lima. - G. A. Pereira de Sousa. - Gaspar dos Reis e Sousa. - —— Schindler. - D. Genoveva Victoria da Rocha Farinho. - D. Gervasia Joaquina de Sousa Falcão. - Greg.ᵒ Mag.ᵃᵉˢ Collaço. - Guilherme Ignacio Basto. - - H. D. Wems. - Henriq. J. Passos Chaves. - Hermano Estanisláo Orlandi. - H. Hodgson. 10 _Exempl._ - H. J. Moser. - H. O. Maya. 2 _Exempl._ - Honorio Ces. Mendonça. - - Ignacio Cabral Arez da Silveira Barros. - Vice Almirante Ignacio da Costa Quintella. - —— José de Sá. - —— P. Qt.ᵃ Emaus. - D. Ignez Raim. Prado. - D. Ildefonso Olheiro. - Isidoro H. C. Semmedo. - Izidro Costa. - - Jacinto de Freitas Oliv.ʳᵃ - —— José de Mattos. - —— José de Sá Lima. - —— de Sousa Falcão. - —— —— —— —— 2 _Exempl._ - Jacomo Pereira de Carv.ᵒ - J. Bento Pereira. - J. B. Massa. - J. B. S. L. de Almeida Garrett. - J. C. Bastos. - Jeronimo José da Silva. - —— Perᵃ Vasconc.ᵒˢ - —— —— da S.ᵃ Cardoso. - J. F. Danin. - J. F. Passos. - J. F. R. S. de Azevedo. - J. F. Thomaz. - J. G. Toussaint. - J. J. A. Redondo. - J. J. da C. J. - J. J. Loureiro. - J. J. Manitti. - J. M. Chaves. - J. M. F. Dias. - J. M. S. Freire. - João A. de S.ˢᵃ Queiroga. - —— A. Lobo de Moira. - —— Anastacio Simões. - —— Antonio Biga Nunes. - —— —— Colasso da S.ᵃ 2 _Exempl._ - —— —— Marques. - —— —— Pereira. - —— Bap.ᵗᵃ da Costa. - —— —— da Cunha Fer.ᵃ - —— —— e Mafaos. - —— —— Sabo Junior. - P.ᵉ João Baptista da S.ᵃ - João Bpt.ᵃ S.ᵃ Malafaia. - —— Bento da Costa. - —— Bonifacio Guimarães. - D. João da Camara. - João Coelho de Gibraltar. - —— —— da Silva. - —— Dias X. do Loureiro. - —— Ferr.ᵃ Azev.ᵈᵒ Junior. - —— —— Camp. 10 _Ex._ - —— —— dos S.ᵗᵒˢ S.ᵃ J. - P. João Franc.ᵒ B. Lança. - João Gomes Roldão. - —— —— dos Santos. - Dr. João Gonç. Miranda. - Dr. João Gonç. M. Robalo. - João Guilherme Caldeira. - —— Ignacio Curvo. - —— Januario V. Rezende. - —— José da Assumpção. - —— —— Ferr.ᵃ de Sousa. - —— —— Freitas Aragão. - —— —— Machado Ferr.ᵃ - —— Lameira M. V. Lobos. - —— Lourenço Ferr.ᵃ Braga. 4 _Exempl._ - —— Luiz de Sousa Falcão. - —— —— Talone. - —— Manoel de Aral. - P.ᵉ João Maria Cardeira. - João Maria Feijó. - D. João Martins Falcão. - João da Matta e Silva. - —— Mend. A. Barbarino. - —— Neves Gomes Eliseu. - —— Nogueira Gandra. - —— Nunes da Silva. - —— Pedro Coelho. - —— —— Heitor Alcant.ᵃ - —— —— Nol. Cunha. - —— Per.ᵃ Queiroz Basto. 20 _Exempl._ - —— Silva Fonseca. - —— Procopio Tavares. - —— Saecadura Botte Corte Real. 2 _Exempl._ - —— da Silva Falcão. - D. João Silva Pessanha. - João da Silva Serrão. - —— de Sousa Falcão. - —— Vic.ᵗᵉ P.ᵗᵉˡ Mald.ᵈᵒ - —— de V.ˡᵃ N.ᵛᵃ de Vasc.ˡᵒˢ Correia de Barros. - Joaq.ᵐ Xavier da Maia. - —— Ant.ᵒ Aguiar. 5 _Ex._ - —— —— Barbosa Torres. - —— —— da Costa. - —— —— da Fonseca. - —— —— Tenreiro. - —— —— Vidal da Gama. - —— Augusto Burlamaqui Marecos. - —— Barreto de Castilho. - —— Corrêa Moreira. - —— Felix Moreira 6 _Ex._ - —— Francisco Danim. - —— G.ᵐᵉˢ V.ʳᵃ Gaio. - —— José Bernardes. - —— —— Costa Macedo. - —— —— Costa Portugal. - —— —— da Cunha. - —— —— Dias Lopes de Vasconcellos. 3 _Exemp._ - —— —— Figueira. - —— —— Gião. - —— —— Lobo. - —— —— Marques Cald.ᵃ - —— Julio da S.ᵛᵃ Ferraz. - Cons.ʳᵒ Joaq. Larcher. - Joaq. Lucio Arbues M.ʳᵃ - —— das Neves Franco. - —— Pedro Abreu Lima. - —— Romão Lob.ᵗᵒ Pires. - —— da Silva Cordeiro. - —— da Silva Machado. - —— Torquato Alvares Ribeiro. _6 Exemp._ - —— Victor S.ᵃ Gosmão. - —— Urbano de Sampaio. - D. Joaq.ⁿᵃ Carlota Fons.ᶜᵃ - Jorge Oom. - José Anastasio Pereira. - —— Antonio de Almeida. - —— —— de Castro. - —— —— Cob.ʳᵒ d’Azevedo Gentil. - —— —— Mello Ar.ʲᵒ - —— —— da Silveira. - —— —— Soares M.ᵈᵉˢ - —— d’Ar.ʲᵒ Coutinho V.ⁿᵃ - —— —— Machado. - —— Aug.ᵗᵒ Correa Leal. - —— Bernardino Frazão. - —— de Brito. - —— Caetano Rebello. - —— Candido Alz. Torres Barata Araujo e Lima. - —— Carlos Cerveira Val.ᵗᵉ - —— —— da Costa P.ʳᵃ - —— —— Guimarães. - B.ᵉˡ José Cesar da Silveira. - José C. M. - —— do Coração de Jesus. - —— Crispim da Cunha. - —— Ricardo P.ʳᵃ Cabral. - —— Roïz. da S.ᵃ Vianna. - —— dos Santos Nazareth. - —— Servulo Costa e S.ᵃˢ - —— Silverio da Fonseca. - —— Silvestre de Andrade. - —— Sousa Falcão Senior. - —— —— —— Junior. - —— Tello Mag.ᵃᵉˢ Collaço. - —— Vaz Araujo Veiga. - José Victorino Freire da Fonseca Cardoso. - —— —— Zuzarte Coelho da Silveira. - Jovencio Pedroso Oliv.ʳᵃ - J. Paulo da Silva. - J. P. N. X. de L. Brito. - J. P. R. G. - J. R. Blanco. - J. R. Manco. - J. R. Pinto. - - K. Pinto. - - L. A. M. Brandão. - L. J. de Gouvea. - Leandro Capistrano d’Almeida Figueiredo. - Lourenço de Almeida. - —— Justiniano Lima. - —— M. Telles Mattos. - L. T. H. de Brederode. - Luciano S. Carv.ᵒ para si e seus amigos 40 _Ex._ - Luiza Mathey. - Luiz A. Bello Reis Junior. - —— Antonio de Freitas. - —— B. Ribeiro Vianna. - —— Caet.ᵒ Guerra Santos. - —— C. Alm.ᵈᵃ Botelho. - —— da Costa Pereira. - —— —— —— Pinto. - —— Joaquim de Sampaio. - —— José da Silva. - D. Luiz M.ᵃ da Camara. - Luiz de Mello Breyner. - —— —— —— Corrêa. - —— Miguel d’Azevedo. - —— O. da Costa. - - M.ᵉˡ Alves do Rio Junior. - —— Antonio Rodrigues. - —— —— Vianna. - —— Bento Rodrigues. - D. Manoel da Camara. - M.ᵉˡ de Castro Pereira. - —— —— —— e Silva. - —— Coelho Bragante. - —— Felix Oliv. Pinheiro. - —— Ferreira Borges. - —— Francisco Dias. - —— —— —— das Neves. - —— Gonçalves Pombo. - —— I. Cunha Menezes. - —— I. Moreira Freire. - —— Joaq.ᵐ Cardoso Castello Branco. 2 _Ex._ - —— —— Fortes. - —— —— Freire. - —— —— Moreira. - —— —— Pereira Silva. - —— —— Santiago. - —— José Cordeiro Galão. - —— —— Esteves Campos. - —— —— da Motta. - —— Maria da Rocha. - D. M.ᵉˡ M. Sousa Falcão. - M.ᵉˡ Per.ᵃ Lima Tavares. - —— Ramos. - —— Roïz Costa Salgado. - —— dos Santos. - —— Thomaz S.ˢᵃ Menezes. - —— de Vasconcellos. - —— Urbano. - Marcellino Ant.ᵒ Moraes. - D. M.ᵃ B. C. Vilella. - —— —— C. S.ˢᵃ Falcão. - —— —— Carlota Vidal Gama Lobo. - —— —— Carmo Guimarães. - —— —— C. Guimarães. - —— —— Clara Braamcamp. - —— —— F. Paes de Mattos. - —— —— H. Sousa Falcão. - —— —— José Ozorio. - —— —— J. Sanches Brito. - —— —— Luiza d’Albuquerque. 2 _Exempl._ - —— —— Magdalena Sousa. - —— —— Manoel Vidal da Gama Lobo. - —— —— M. Silva Falcão. - —— —— R. Sousa Falcão Ferreri. - —— —— Vicencia de Mello. - —— —— Xavier Falcão. - D. Margarida Silva Machado Figueiredo. - D. Marianna C. Ribeiro. - —— —— G. Pereira de Beça. - —— —— Noronha. - —— —— da Silva Machado Figueiredo. - Marquez de Fronteira. - —— de Saldanha. - M. F. da Costa. - Miguel Ferreira da Costa. - —— Fran.ᶜᵒ Saldanha. - —— João Coelho. - —— Joaquim Pires. - —— J.ᵉ Okeeffe. 2 _Ex._ - —— M.ᵃ Gomes de Andrade e Leiros. - M. J. M. Dantas. 2 _Ex._ - M. T. H. de Brederode. - - N. H. Klingelhoufer. 3 _Exempl._ - D. Nicasio Canete y Moral. - Nicoláo Maria Nobre. - Nicoláo C. P.ᵗᵒ Queiros. - —— S. James. - Nuno José Gonçalves. - - Pedro A. N. Domingues. - D. Pedro Cunha Menezes. - Pedro Jacome de Calheiros e Menezes. - —— José de Oliveira. - —— M.ᵃ Costa Almeida. - —— Paulo Ferr.ᵃ Sousa. - —— —— Vasconcellos. - —— P.ᵗᵒ Moraes Sarm.ᵗᵒ - Bacharel Pedro dos Santos Freire. - Pedro da Silva Ferraz. - —— de Sousa Cardoso. - P. G. Toussaint. - P. M. Lagan. 4 _Exempl._ - Prior da Magdalena. - —— de Marv.ᵃ de Sant.ᵉᵐ - —— do Milagre de Sant.ᵉᵐ - - Quintino Teixeira Carv.ᵒ - D. Quiteria da Silva Machado Figueiredo. - - Rafael Antonio de Brito Pimenta d’Almeida. - —— Archanjo de Carv.ᵒ - Reis e Irmão. - Roberto Wanzeller. - Rodrigo de Azevedo Sousa da Camara. - —— José Dias Lopes de Vasconcellos. - —— Limpo Rav.ᶜᵒ Pereira de Lacerda. - Rosa Coelho de Gibraltar. - D. Rosa Dioguina Lopes Pereira de Vasconcellos. - - Sebastião André Xavier. - —— Casqueiro Vieira Gago. - —— de Gargamala. - —— J. Villaça Gama. - —— Xavier Botelho. - Servulo M.ᵃ de Carvalho. - S. J. de Gouvea. - Silencio Christão Barros. - Simplicio Moura Mach.ᵈᵒ - - Tertuliano Turibio Lobato Pinto Ferreira. - D. Ther.ᵃ Hedeviges Leite de Moraes Castilho. - —— —— Maria Botelho. - —— —— Miquelina Alves de Sousa. - —— —— Theodora da Soledade Martins. - —— —— Xavier Botelho. - Thomaz Aq.ᵒ S.ˢᵃ 2 _Ex._ - —— Pinto Saavedra. - —— Rufino Monteiro. - Thomé A. Frnz. Roxo. - Torcato Francisco Carn.ʳᵒ - - D. Vasco Guterre Cunha. - Vicente Altavilla. - —— Pires da Gama. - D. Vic.ᵗᵉ Segur. Menezes. - Victorino José Gomes. - —— Manoel de Oliveira Mascarenhas. - Visconde do Porto Covo. 2 _Exempl._ - Vital Jorge Maia Canhão. - -*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A PRIMAVERA *** - -Updated editions will replace the previous one--the old editions will -be renamed. - -Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright -law means that no one owns a United States copyright in these works, -so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the -United States without permission and without paying copyright -royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part -of this license, apply to copying and distributing Project -Gutenberg-tm electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG-tm -concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, -and may not be used if you charge for an eBook, except by following -the terms of the trademark license, including paying royalties for use -of the Project Gutenberg trademark. 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General Terms of Use and Redistributing Project -Gutenberg-tm electronic works - -1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm -electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to -and accept all the terms of this license and intellectual property -(trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all -the terms of this agreement, you must cease using and return or -destroy all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your -possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a -Project Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound -by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the -person or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph -1.E.8. - -1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be -used on or associated in any way with an electronic work by people who -agree to be bound by the terms of this agreement. 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Hart was the originator of the Project -Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be -freely shared with anyone. For forty years, he produced and -distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of -volunteer support. - -Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed -editions, all of which are confirmed as not protected by copyright in -the U.S. unless a copyright notice is included. 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You may copy it, give it away or re-use it under the terms -of the Project Gutenberg License included with this eBook or online -at <a href="https://www.gutenberg.org">www.gutenberg.org</a>. 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F. de Castilho.</i></p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_3"></a>[3]</span></p> - -<h1>A PRIMAVERA</h1> - -<p class="center">POR</p> - -<p class="center larger"><i>Antonio Feliciano de Castilho</i>,</p> - -<p class="hanging"><i>Bacharel Formado em Direito, Socio da Academia -das Sciencias de Lisboa, da Sociedade -Juridica e da dos Amigos das Letras da -mesma Cidade, da Sociedade Literaria Portuense, -do Instituto Historico de Paris, da -Academia Real das Sciencias e Bellas Letras -de Roão.</i></p> - -<p class="titlepage"><i>Mais correcta, emendada, e copiosissimamente accrescentada.</i></p> - -<p class="titlepage"><span class="gothic">Lisboa.</span><br /> -<span class="smcap">Na Typografia de A.I.S de Bulhões.</span><br /> -<i>Rua do Soccorro de Cima N.º 39. 1.º andar.</i><br /> -1837.</p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_4"></a>[4]</span></p> - -<div class="poetry-container"> -<div class="poetry"> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0"><i>Stet quicumque volet potens</i></div> - <div class="verse indent0"><i>Aulœ culmine lubrico:</i></div> - <div class="verse indent0"><i>Me dulcis saturet quies;</i></div> - <div class="verse indent0"><i>Obscuro positus loco</i></div> - <div class="verse indent0"><i>Leni perfruar otio;</i></div> - <div class="verse indent0"><i>Nullis nota Quiritibus</i></div> - <div class="verse indent0"><i>Ætas per tacitum flua</i></div> - <div class="verse indent0"><i>Sic cum transierint mei</i></div> - <div class="verse indent0"><i>Nullo cum strepitu dies,</i></div> - <div class="verse indent0"><i>Plebeius moriar senex.</i></div> - <div class="verse indent0"><i>Illi mors gravis incubat,</i></div> - <div class="verse indent0"><i>Qui notus nimis omnibus,</i></div> - <div class="verse indent0"><i>Ignotus moritur sibi.</i></div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse right"><i>Sen. Thyest. Act. 11.</i></div> - </div> -</div> -</div> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_5"></a>[5]</span></p> - -<h2 class="nobreak" id="ANTE-PROLOGO">ANTE-PROLOGO.</h2> - -</div> - -<p>Bem será para alguns motivo de maravilha, -e de riso para muitos, a declaração por onde -me agrada começar este Ante Prologo; e he, que o -estou principiando, e querendo Deos o levarei -ao cabo, antes de conhecer a Obra para que -vai feito. Quatorze annos, e não poucos d’elles -bem estirados, são hoje discorridos depois de -impressa, e por tanto segundo meu costume -aposentada e esquecida, a minha <i>Primavera</i>. -N’estes quatorze annos, começados a contar -aos vinte e dois da minha vida, não só se encerrou, -e desvaneceo aquella melhor, mais -florída e derramada parte d’ella, que tanto -discrimina, e afasta o periodo seguinte do anterior, -senão que ahi se desatou tão desfeito temporal -de successos estranhos, de terrores e -calamidades publicas; tantas certezas saírão -vãs, realisarão-se tantos impossiveis; por tal -arte se transtornou e renovou ora em bem ora -em mal a face do nosso Portugal; tão fracas e -tenues reliquias de um passado, que ainda nós -os moços alcançámos, subsistem já agora quer -nas pessoas, quer nas cousas e costumes, e -emfim por tudo isto nos petreficámos, e envelhecemos -em tanta maneira, que por mim digo, -n’estes quatorze annos me parece ter a Fortuna -desbaratado cabedal de seculos, e o Tempo<span class="pagenum"><a id="Page_6"></a>[6]</span> -uma larga idade do mundo. Tantos e taes -annos que da minha Obra me separão, não -custará muito a crer ma tenhão tornado ao -cabo tão alhea, como se d’ella só mui por -longe me houvera susurrado uma leve noticia. -Esta idea confusa, mas suave e suavissima -como apagado retrato de antigos amores, como -lua de estio contemplada em fundo de ermo, -ou como vista de remotas velas ao coração do -que alem-mar definha desterrado entre asperezas, -esta idea toda mansa, toda rosada, toda -primavera, mais temo perdê-la do que todas as -minhas outras illusões, se por ventura já hoje -alguma tenho. Talvez receie, e se receio talvez -me não falte rasão, que ao reler estes Poemettos, -nem ache n’elles as côres que os longes -me figuravão, nem os gostos com que -os hia não compondo, mas para assim dizer -colhendo e enramalhetando pelas varzeas e valles -do Mondego: tanta foi a metamorphose -que de mim fizerão os livros, as couzas, e a -idade! Como que tenho uma dolorosa certeza -de que me acontecerá com isto o que ja me -succedeo visitando, depois de espaçosissima ausencia, -as cazas onde a minha primeira infancia -fôra brincada, amada e perdida: tudo -achei mesquinho, solitario e quasi mudo, tudo -me dizia muita saudade e nenhum prazer; cada -pedra tinha sua historia, mas todas me clamavão -outros tantos desenganos. Grande differença -esta entre as nossas proprias antigalhas -e as do mundo! as do mundo pelo seu mesmo -misterio nos deleitão, são a primeira pagina<span class="pagenum"><a id="Page_7"></a>[7]</span> -de um romanse para a imaginação; as nossas pela -sua certeza nos contristão, e são a pagina ultima -de uma historia que assaz nos corria formosissima.</p> - -<p>Apraz-me por tanto boiar ainda por algumas -horas ao de cima d’estas fantasias, e antes de -se me apagarem, se já he que isso tem de -ser, alegrar com o seu reflexo estas paginas, -que mal poderáõ ser muitas: sempre he -cedo para lançar pelas janellas fóra os brinquedos -de nossa puericia; e mal haja quem o -faz sem que todo o coração se lhe aperte dentro -no peito.</p> - -<p>Por isto que digo, entenderáõ meus leitores -o porque, exhausta logo no primeiro anno a -primeira impressão da <i>Primavera</i>, tantos se -tem devolvido sem que jamais me deliberasse -a reimprimi-la. Pelos fins de todos os invernos -e começos da melhor estação, me era ella de -todos meus livreiros requerida; por mais de -uma vez me senti abalado, mas a lembrança -do meu desencantamento me era sempre esquiva, -e repugnava-me, como uma certa simonia, -o arriscar-me a por alguns cruzados -malbaratar uma dilicia do sanctuario de meu -animo. N’esta parte não me entenderáõ todos, -mas os meus intimos confirmarião com juramento -o que digo. Agora porem que até a -minha pobre bibliotheca já se ahi vai rareando -e desfazendo vendida, e me importa pôr entre -mim e a terra do meu nascimento muita outra<span class="pagenum"><a id="Page_8"></a>[8]</span> -terra de permeio, e Deos sabe para quanto -tempo, obedeço aos desejos de muitos dos que -ainda lem, ao conselho dos amigos, e á lei da -necessidade. Reverei para a impressão, e perderei -para mim este livro de saudades, livro -que só fechado eu poderia ler como me convinha. -E por quanto, depois de sua leitura talvez -me desamparasse a vontade de aventurar -algumas reflexões sobre este genero de poemas, -fa-las-hei antes, e já aqui; deixando para o -Prologo as que ácerca da Obra me forem -por ella mesma suggeridas.</p> - -<p>A Poesia campesina, ou segundo vulgarmente -lhe dão nome, pastoril, com ser de todas -a mais antiga, nunca em nenhuma parte -se perdeo, dado em muitas decaisse não raro -do seu credito e lustre; e segundo todas as -mostras, deitará ainda até ao fim das idades -literarias. Sempre moça como a terra sua mãi, -mansa como os arroios seus irmãos, formosa -como as flores que lhe guarnecem o chapeo de -palha, livre e leve como os zefiros pela assomada -dos montes, alegre, namorada e innocente -como as aves na madrugada do anno, he de -ver qual se vai sozinha e vivissima por entre -tantas couzas mais fortes que morrem; com o -seu cajado de pastora, segura entre tantos -inimigos; girando todo o orbe, e por todo elle -bem vinda; vingando e vencendo todos os seculos; -dando a alguns d’elles de mais amoravel -indole a sua propria fórma; e relevando-lhe, -ainda os mais ferozes e guerreiros,<span class="pagenum"><a id="Page_9"></a>[9]</span> -que lhes ella misture com a sua frauta -do serão os himnos da guerra, lhes entreteça -maliciosa violetas com os louros, e os campos -que elles a ferro e fogo devastarão os repovoe -ella de imaginadas verdura, flores e felicidade.</p> - -<p>Hum curioso reparo poderáõ ter feito os que -os fazem no ler poetas, e he, que apenas haverá -algum dos chamados Epicos, para quem o -campo e sua vivenda não fosse deleitoso assumpto. -Compraz-se Homero de travar com -as façanhas dos heroes toques e pinturas do -viver natural e primitivo; Virgilio, que ja primeiro -que se abalançasse ás armas e guerras -tinha cantado os pastores, e doutrinado os lavradores, -particularmente se recreia quando no -meio das batalhas pode a uns e outros mandar -algumas saudades; nos dois Orlandos e -em todos os livros de cavallaria, vai igual mistura; -o mesmo na Jerusalem, cujo autor havia -escrito o Amintas: e d’entre os nossos, -para por todos citar um, mas um que por todos -valha, Camoẽs, não só afamou os Portuguezes -sujeitadores de elementos e homens, mas -todo se deleita em conversar os pegureiros e -campos da nossa graciosa Lusitania, terra cujos -filhos, se me não engano, são por indole dotados -destes dois extremos, de brandura e de -valor, de amor ao obscuro rusticar e ao glorioso -correr de aventuras e perigos: por onde -entendo que para muito mais do que são os -fizera Deos, assim como fizera para muito -mais do que he o grandioso torrãozinho que -habitão.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_10"></a>[10]</span></p> - -<p>Disse engenho subtil, e bons juizos crêrão, -que o desejo, ancia e esperança de bem que -todos temos innatamente, era claro argumento -de uma vida futura, ja que nesta se nos não -deparava contentamento: assim tambem dissera -eu, que este natural e universal gosto á -poesia amena he um indicio de que, se jamais -o homem foi homem e ditoso, la nos campos -o foi; que as plantas d’onde nos brotão sustento -e recreação, exhalão secretamente -amor para os seus vizinhos, e que pelos saudosos -valles das idades patriarchaes, em quanto -os bosques não caírão para em sua vez se levantarem -as muralhas, as bençãos do ceo orvalhavão -muito mais amiude. Alguma couza -farão para aqui palavras do meu Florian, que -porque d’elle são as verterei de muito boa mente—“Oh -se nós podessemos ler em seu original -texto os bons autores d’essa Allemanha, -enlevar-nos-hia a tanta singeleza, a -tanta doçura por onde de todas as outras -se estremão suas obras! Em conhecer a -natureza, e especialmente a natureza campezina, -levão-nos elles uma infinita vantagem: -amão-na mais deveras, retratão-na -com tintas mais fieis. Todos nossos poemas -pastoris nada tem que ver com as meras -traducções de Gessner. Ninguem jamais -fecha a Morte de Abel, os Idyllios ou Daphnis, -sem ja se sentir mais soffrido, mais -terno, mais mavioso, e porque tudo diga, -mais virtuoso que antes da lição. Não respira -senão moral pura e facil, e virtude<span class="pagenum"><a id="Page_11"></a>[11]</span> -d’aquella que logo vem trazendo bemaventuranças. -Fosse eu parocho de aldea, -que sempre á estação da missa havia de ler -e reler Gessner aos meus fregueses: e por -certissimo tenho que todos meus aldeões se -farião probos, todas minhas parochianas -castas, e ninguem me havia de ao sermão -adormecer.”—</p> - -<p>Isto dizia de Gessner Florian, digno de o -louvar pelo mui bem que o sabia comprehender -e seguir. Isto não escrevia eu nem o dizia, -mas amplamente o sentia n’esse bom tempo -que ja la vai. Gessner não era para mim um -nome, senão um individuo presente, um suavissimo -contubernal; nem ja suas obras me -erão livros, mas realidade, vida e mundo.—Sei -que se não leva a bem o muito fallar um individuo -de si proprio, mormente em publico, -e mormente ainda quando esse individuo -he tão mesquinho sujeito como eu: mas de -que outra couza posso eu escrever? dos outros? -não os conheço; erudito, não o sou; descubrimentos -não os fiz, nem ja agora os farei: -fólgo de espraiar conversa com os meus patricios, -na falta de melhor assunto, fallo-lhes -de mim e de meus gostos.—O mais selecto de -todos elles era pois Gessner, no qual e na escolha -de Poesias Allemãs por Huber, andou -por alguns annos cifrada toda minha leitura, -porque de quantos autores patrios meus conhecidos -havião escrito e poetado de couzas rusticas, -nenhum havia que ou por sobejidão de<span class="pagenum"><a id="Page_12"></a>[12]</span> -engenho e argucia, ou por mal cabida escuridade, -ou pelo trivial do pensamento e dicção, -ou pelo desageitado do metro, ou pelo urbano -artificio do que lhes parecia singeleza, ou -emfim por um não sei que de mais ou de menos, -lhe não lançasse lodo e arêa no jardim -que bem ao meio da alma me havia sido por -Gessner plantado.<a id="FNanchor_1" href="#Footnote_1" class="fnanchor">[1]</a> Muito aproveitei em tão -boa escola: como poeta não, que bem o sabem -meus leitores; como homem sim, que -disso tive mui cabal e experimentada certeza. -Minhas nativas propensões beneficas se arraigarão; -minha interior aspereza, que todos de -si a tem, se amolleceo; sentia-me palpitar no -peito um coração da idade de ouro; esvoaçava-me -na cabeça uma alma inteira de Arcade; -compunha todo o meu economico futuro de -uma choupana, um pomarinho, e pombas -mui brancas e cordeiros mui nedios; em summa, -se Florian fosse meu parocho, propor-mehia<span class="pagenum"><a id="Page_13"></a>[13]</span> -nas suas homilias como um santo da sua -bemaventurança. Assim, e por esse tempo, -foi a minha <i>Primavera</i> improvisada, e como -ella as <i>Flores</i> e as <i>Quatro Partes do Dia</i>, Poemas -que brevemente sairáõ estampados, e -inteirão com o presente volume o fragil monumentinho -dos annos, em que fui tal, qual desejava -permanecer toda a vida.</p> - -<p>Passe ainda adeante a sinceridade: com -vergonha não só minha, mas do tempo em -que vivo, confesso que d’essa ingenua bondade, -pela qual eu mesmo a mim me comprazia, o -de mais (como espirito que era subtilissimo) se -evaporou; parte se azedou no vaso com as más -sementes de odio que de fóra lhe lançavão; o -resto se recozeo e estragou ao fogo das civis -dissensões: procuro-me e não me acho, ou se -me acho não me amo. Ainda a minha antiga -choupana, os cordeiros nedios e as pombas alvissimas -se me fazem lembrados por uma noite -de estio, mas riem menos, e não me acenão -senão fracamente. Tanto vi e vejo de alhêas -maldades, tanto tem procurado os entes mais -abjetos e vis amargurar-me, que nem quasi -na virtude acredito, nem na possibilidade -de ser feliz: e este estado, se não he de todos -o mais antipoetico, se na escola romantica pode -até lograr os foros do <i>bello ideal</i> e ultimo -sublime, pelo menos he o mais avêsso á filosofia -e mansidão Gessnerica. Oh quando poderáõ -os dois monstros, em cujas garras inexpertamente -caí, quando poderáõ Politica e<span class="pagenum"><a id="Page_14"></a>[14]</span> -Romantismo dar-me um longe, uma sombra -dos interiores commodos que me lá ficarão -com a poesia natural e singela? E igual pergunta -dolorosa poderia fazer o mundo, a ter -um coração e uma voz. Ja quanto á Politica -me calo, que esse voto fiz eu; mas quando -será que o Romantismo exclusivo e tiranno -qual se presenta, se gabe de perfumar entendimentos -para o amor, de reclinar o amor como -filho nos braços da virtude, e de transformar -o templo da virtude em caza do contentamento? -Quando será que outro homem, da -laia e costumes dos nossos velhos, possa dizer -na sinceridade da sua alma:—“Se eu fosse -parocho, leria Byron ou Schiller á estação da -missa, para tornar castas e probas as minhas -ovelhas”? Mas todas estas reflexões de nado valem: -a torrente vai funda e rapida, ninguem, -e muito menos eu lhe poria dique. E até (que -tão pouco dou pela minha filosofia) talvez -que tudo o que por ahi vai, que certamente: -parece bem triste e bem máo, seja bem necessario -ao concerto e melhoria do mundo. Não -digo eu o que as couzas são, sim o que se me -ellas figurão: não as sentencêo sem appellação; -na minha primeira instancia as julgo, e -o que moralmente me parecem isso assento -com afoita liberdade. Perde ou ganha a humana -especie em cada vez mais se apartar por -obra, por palavra, e por pensamento, do rural -e simples theor de seu primitivo ser? por -minha experiencia affirmaria que perde, mas -os sabios que o decidão, e a mim seja-me licito -pôr duvidas.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_15"></a>[15]</span></p> - -<p>Não me intrometterei com o que vai por -outros reinos; esse uso de qualquer contrabandista -literario de nunca chegar ás couzas patrias -sem primeiro haver tocado nas de França -e Inglaterra, não me quadra a mim, que -ao menos tenho a sufficiente consciencia e pejo -para não citar o que mal conheço: em Portugal -me limito. Somos nós mais felizes ou melhores -que nossos avós? Certo que não; e tanto, -que se esses bons e honrados velhos podessem -ter adivinhado quaes seriamos nós, nós herdeiros -de seus nomes, escarnecedores de seus -exemplos, e deshonradores de seus castos e amigaveis -costumes; nós que ao seu velho fallar e -escrever de <i>deveres</i>, substituimos o nosso novo -fallar e escrever de <i>direitos</i>, e á moda de ter -palavra, a moda de ter palavras, ter-se-hião -horrorisado como de abominação, do pensamento -de gerar. Acordai do sepulchro um d’esses -anciãos, que depois de pagar inteira a divida a -pai e mãi, viveo todo para a mulher, matou-se -pelos filhos, guardou a palavra como religião, -a religião como necessidade, e cada -paschoa de flores, bem com Deos, contentissimo -comsigo, se ufanava de sentar ao melhor -lugar de sua mesa o parocho, e todos os seus -vizinhos de envolta com seus filhos. Mostrai-lhe -todos os nossos progressos, que em sós algumas -vantagens materiaes e corporaes se resumem: -alardeai-lhe o que esperamos, mas -não lhe escondaes o que destruimos: lede-lhe -a primeira pagina do primeiro Jornal que topardes -d’esse mesmo dia, raza de impudencia,<span class="pagenum"><a id="Page_16"></a>[16]</span> -empapada com fel, estillando lagrimas, revendo -sangue, suando calumnias e desavergonhamentos, -respirando e soprando odios de nação contra -nação, de cidade contra cidade, de familia -contra familia, de irmão contra irmão, de -povos contra reis, de reis contra povos, e dos -homens contra a Providencia. Supponde que -Deos lhe offerece renovação da vida, e offerecei-lhe -vós todas as blazonadissimas excellencias -do nosso viver e do nosso esperar: repellir-vos-ha -com aquelle braço que antigamente -defendia e não apunhalava a Patria; tapará -com o resto da mortalha o rosto que só depois -de cadaver córa pela primeira vez; e cerrando -rijo os olhos contra a luz, e deixando-se -recair pezadamente, de vós não pedirá -mais do que um favor, o de lhe restituirdes a -sua lagea.<a id="FNanchor_2" href="#Footnote_2" class="fnanchor">[2]</a></p> - -<p>Emquanto assim vai o presente avesso do -preterito pelo que toca á moral e á felicidade, -fallo da verdadeira felicidade, d’aquella em -que a moral entra como elemento, e não da -fizica e corporal, da de fazenda e honras, -como hoje se entende; vejamos a que ponto -subirão com o <i>movimento</i> e <i>progresso</i> as nossas -letras. Entrai as typografias, e dizei-me porque -assim amotinão com o seu noturno<span class="pagenum"><a id="Page_17"></a>[17]</span> -e diurno lavor a vizinhança? perguntei-lhes -porque assim gemem e se afadigão? em quaes -livros nos estão preparando mananciaes de -doutrina, ou de costumes, ou de suave, honesto -e ja tão precizo desenfadamento? Dissereis -que nossos laboriosos maiores as deixarão -esfalfadas com os copiosos frutos de suas lucubrações: -o mais com que se atrevem, são -ridiculos farrapos de bestiaes torpezas. Seguem-se -os mezes aos mezes e os annos aos annos, -sem outras literarias novidades. Terra he que -ja deo optimas searas e vinhas abundosas; -agora descultivada e baldia, e á lei da natureza -bruta, desata toda sua força e substancia -em cardos, em ortigas, em venenos e serpentes. -Quantos livros, e quantos bons livros, que nós outros -nem conhecemos nem ja valemos a sopesar, -saíão dos nossos prelos, nos tempos em que a -probidade, e a mansidão, e a concordia tinhão -seu preço. Um só reinado, e ainda bem chegado -a nós, e de rei que por bom se não cita, -com tanta copia de literarios monumentos -nos deixou avergadas as bibliothecas, que dez -centos de annos como o presente não produziráõ -a decima parte. São os nossos typógrafos -de hoje, se com aquelles os comparamos, -como os nossos cutileiros de punhaes, comparados -com os bons armeiros que forjavão espadas -como as de nossos heroes de boa data, -que só com sua pezada presença nos maravilhão, -a nós, que por nossa verbosa sabedoria, -acabaremos de desbaratar tantas e tão longes -terras, como nos ellas ganharão esgremindo-se.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_18"></a>[18]</span></p> - -<p>Tal vai pois o estado literario como o social; -e nem menos podia ser, porque estas -duas couzas, como alma e corpo, se pertencem -inseparaveis: Mão de Deos que ao corpo -politico quizesse restituir a saude, por ahi lhe -fortaleceria não menos o espirito; Sopro de -Deos que ao espirito restituisse a luz, por ahi -lhe ordenaria e vigoraria todos os movimentos. -Por tanto, conhecendo e confessando que nem -facil he nem possivel torcer a carreira desenfreada -que o nosso mundo leva não sei para -onde, todavia para mim tenho, se na cabeça -está isto, se no coração, não o direi, mas tenho -para mim, que mui bem fará, e muito amado -será dos rectos juizos quem nos fizer volver -olhos de saudade para a vida que ja se viveo, -o que ainda um ou outro, aqui ou acolá poderá -inteira, ou quando mais não fôr, em partes, -em amostras reviver. E pois será isto uma -illusão minha? Se o geral da gente vai por -entre dores para uma couza que se chama perfeição, -não pode um individuo em particular -deixar-se ficar atraz, despir essas suadas -armas de milicia conquistadora, e recolher-se, -honrado desertor, lá onde viva seguro com Deos, -comsigo, com poucos vizinhos, logrando-se -da natureza, e desfrutando em variados prazeres -todos as estações; prezentes que Deos enviou -para todos os homens, mas de que os das -cidades só pela folhinha tem noticia! Por quão -feliz se não devêra dar o escritor desambicioso, -se aos puros sons de sua lira afinada -nos bosques, lograsse, não como Anfião fundar<span class="pagenum"><a id="Page_19"></a>[19]</span> -e povoar cidades, não como Orfeo arrancar -as feras dos arvoredos e domestica-las; mas -arrancar d’entre feras humanas homens inda não -corrutos, e assenta-los, para sempre feriados -do reboliço dos grandes povos, no divino -remanso de uma campestre solidão! De mui -leves cousas e tenuissimos momentos pende -ás vezes o destino de toda uma vida: assim -como de um encontro fortuito resulta uma -affeição amorosa, que logo produz um consorcio -e um sisthema completo de existir, -assim de uma palavra em uma conversa casual, -da substancia de uma pagina lida em certa -hora, do aspéto de um painel, podem -nascer, e mil vezes terão nascido, determinações, -vocação, e fados de individuos. E para vir -a um exemplo recente e meu, aquelle bom livro -das <i>Prisões</i> de Silvio Péllico (todo imbuido, -releve-se-me a expressão, de uma christã -e filosofica filosofia, que a maior parte das assim -chamadas nem uma nem outra couza tem) -aquelle bom livro, ja principiou e talvez acabará -de me curar o animo: não lhe restituirá -a muita harmonia com que o de Gessner mo -temperára, porque a mocidade das illusões passa -e não volta; mas deixar-mo-ha provavelmente -assaz alto e forte, que ainda no meio das maiores -tempestades repouze e abençoe tudo. E -não he isto maravilha, que a alguns outros -que o lerão ja eu ouvi iguaes, senão maiores -encarecimentos de sua medicinal virtude.<a id="FNanchor_3" href="#Footnote_3" class="fnanchor">[3]</a></p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_20"></a>[20]</span></p> - -<p>Este desvio, por onde me agora deixava ir, -levar-me-hia longe, que assim he accomodado -a meus gostos; mas porque he desvio o largo, -e retomo o caminho que hia seguindo. -A poesia amavel, a que nas mãos e seio nos -vinha offerecendo ramalhetes, e frutos no regaço, -e amores nos olhos, e nas fallas consolações, -afastou-se d’entre nós, onde ainda a -alguns poderia aproveitar, e assim como outras -muitas boas artes e prendas, foi reclinar-se -á espera na beira da torrente dos dias, d’onde -não volverá, sem que primeiro se restaurem -muitas optimas couzas e todas suas, que o -mundo velho tinha produzido. Mas d’onde -viráõ estas couzas? Do mesmo mundo velho? -mal o creio, que o novo quebrou a ponte que -os juntava, e rio de ufania vendo abismar-se -fábrica que assim parecia eterna. Renasceráõ -por tanto da propria natureza da terra, -da indole da alma humana que ja uma vez as -produzio, ou do sopro do ceo: renasceráõ tarde; -renasceráõ quando nós ja não formos; renasceráõ, -talvez diversas, mas renasceráõ. E quaes -são estas couzas do mundo passado, cuja perda -tanto dóe ás Musas e á Virtude? são as -formosuras e magnificencias da religião, o -respeito aos finados e a seus sepulchros, ás lições -da experiencia, ás obras dos antigos homens, -a veneração ás cãs, o quasi culto ás mulheres,<span class="pagenum"><a id="Page_21"></a>[21]</span> -a benevolencia e sociabilidade, o aferro -aos usos e modas patrias, o amor do estudo, que -nós dissipámos com as leituras efemeras, e o amor -do torrão natal, nobre fecundissimo sentimento, -mas impossivel onde se vive sem muita -brandura e sem firme certeza de permanecer. -Tudo isto se perdeo para nós, e não sei que -bens haja em seu lugar posto a <i>Filosofia</i>. A -que verdadeiramente o he, ainda que esse nome -se não dê, a que realmente faz homens livres -e felizes, não he Furia que destrua tão -venerandos objetos; ama-os, defende-os, reforma-os -quando o tempo os viciou, concerta-os -que se amparem mutuamente, pede-lhes -frutos, e com seus frutos se fortalece.</p> - -<p>Quando de espaço me dou a escavar estas -verdades, nada me assombra a nossa crassa -e desdenhosa ignorancia, mãi ou filha, e certamente -socia da nossa immoralidade. Esta mal -agoirada ignorancia e esta immoralidade cresceráõ; -ja nossos filhos apenas saberáõ ler, e -se o turbilhão que a roda leva não houver -quem o suspenda, brutos e ferozes sairáõ os -netos. Applicai todos os vossos sentidos ao -coração da nossa Cidade: se a vida he movimento, -ahi trabalha vida; se porem a vida ha-de -ter um perfume, uma harmonia, ahi não -ha senão morte, e aquelle movimento he de -cadaver que fermenta para se dissolver. Poesia, -verdadeira poesia ja n’este Reino, onde em todos -os tempos pullullava espontanea, posto que -raro amadurecesse, ja por consequencia acabou: -quanto desde hoje se poetar nas enamoradas<span class="pagenum"><a id="Page_22"></a>[22]</span> -doçuras da vida aldeã, mais não será -que recordações sem germen de futuro. D’entre -a memoria e o espirito, não da experimental -convicção do poeta, nasceráõ esses versos, -como lagrimas de balsamo, que não de dentro da -arvore, mas d’entre a casca e o libro vem raras -gotejando, para cairem e se perderem no -terreno bravio da solidão. Oh Liberdade, Liberdade! -quão mal te comprehendem os que -te separão do bello! quão mal te servem os -que te malquistão com os homens de bem! -como involuntariamente te levão á morte os -que só te pedem como summa felicidade, o -direito de nada respeitar, estradas de ferro, -navios de vapor, um himno, e punhaes ou -carceres contra quem quer que não beber ás -suas mesas! Pobre Liberdade, não he este -ainda o teu dia: não és tu idolo de selvagens, -mas Divindade benefica de homens prudentes.</p> - -<p>Eis-me outra vez com a Politica, e o meu -voto quebrado. Ja vejo que a minha cura não -está tão adeantada como o eu suppunha: não -ha remedio, amanhã releremos Silvio Péllico, -e por hoje voltemo-nos com toda a diligencia a -rematar, como quer que seja, este escrito.</p> - -<p>Sáe pois o presente livro por todos os modos -extemporaneo, ja porque a estação nem he -d’elles nem para elles, ja porque lhe fallecêrão -dias para amadurecer e sasoar, e ja porque -dos que lhe tomarem o sabor, uns o taxaráõ -de temporão, outros de serodio, sendo<span class="pagenum"><a id="Page_23"></a>[23]</span> -que uma e outra couza he elle, e demais a -mais pêco, segundo a planta de que se creou. -Uma só lembrança me consola, e he, que assim -mesmo ja deveo ser peor, quando da primeira -vez appareceo, e mais lhe não faltárão -gostadores; tanto he assim que nunca faltaráõ -simpathias ao que de sua origem he bom, ainda -quando desbotado e estragado pela impericia -de quem o tratou. Melhor he hoje do -que então era; não porque o eu tornasse á forja -e á bigorna, ou o recorresse e lustrasse com -esmerada lima, senão porque havendo hoje -menos dados á lição dos livros, e em especial -d’este genero, tambem ja não ha criticos, senão -he para as acções da vida publica e domestica; -por onde as obras escritas podem passar -a seu salvo, sem que suas pobrezas e vergonhas -sejão vistas e apupadas na praça. Desconsolada -consolação he esta de se poder desafinar -cantando, por se cantar entre surdos: -mas esse mal, se o he, só a mim me toca, e -para o descontar me sobra a lembrança, de -que alguns caladamente me agradeceráõ o diverti-los -do publico espetaculo. Para estes -em boa hora sáia e sai o livrinho fallador de -campos e amores: suave appareça como a -violeta sozinha encontrada no passeio de inverno: -suave e não estranhado como o raio de -sol por cima de campo de batalha apoz uma -noite de geada; nada aproveita elle aos cadaveres, -mas alegra e consola como esperança aos -que mal feridos jazião, e a quem o regelado lentor -das trevas coalhava o sangue, desesperava<span class="pagenum"><a id="Page_24"></a>[24]</span> -as dores, tranzia os ossos, e os descoroçoava -da providencia.</p> - -<p>Ramalhete he de flores silvestres que a meus -amigos deixo na hora do apartamento, que ao -menos em quanto durar lhes recordará que os -amei. Terra de Portugal e outr’ora de Portuguezes, -terra namorada do mais formoso ceo, -terra sombreada de larangeiras e murtas, acobertada -de verde e bordada alcatifa, amorosamente -abraçada do Oceano, talhada e regada -de tão espelhados rios, terra de tanta poesia -e de tanto amor, eu te deixo! E para que -ja nunca onde quer que a fortuna me detenha, -me cuides de ti esquecido, terra do meu Portugal -lembre-te que o meu ultimo pensamento -ao sair das tuas praias foi o da tua Primavera -e o da minha Mocidade.</p> - -<p class="right"><i>Lisboa: 1 de Dezembro 1836.</i></p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_25"></a>[25]</span></p> - -<h2 class="nobreak" id="PROLOGO">PROLOGO.</h2> - -</div> - -<p>Não erão vãos os meus receios; acabo de -visitar a <i>Primavera</i>, não ainda para lhe emendar -as miudezas, mas para a conhecer por -alto, e podê-la sentenciar no todo. Reconheci-a, -mas demudada, mui outra da que a tinha deixado -na graça, geito e amores; trocarão-ma -os annos, trocando-me. Desama-la ainda não, -mas ama-la tambem ja não! Se lhe não quero -mal, he só porque lhe quiz muito bem, e foi -minha; mas como ja me risquei de seu namorado, -não hei de chamar-lhe formosa, que o -não he, nem dissimular que sejão defeitos, -muitos que em bom tempo ja talvez lhe tive -por perfeições e primores. Não ha remedio, -prometti-me seu juiz, passará por onde houvéra -de passar, se de inimigo fôra. Se ella perder -do seu preço, e eu do meu, consolemo-nos -ambos d’esse pouco damno; ella por não receber -de mim injustiça, eu com ter obedecido á -consciencia, que tambem em letras a ha. Antes -porem que entremos a contas e lhe formemos -o summario, releva anticipar uma dúvida -não leve, que se me pode pôr, e desfazer -um reparo, que deixado a si pareceria de fôrça.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_26"></a>[26]</span></p> - -<p>He o reparo e a dúvida; que pois he o Livro -inamavel por defeitos a seu proprio autor, -não havia porque de novo o semear em público, -antes importava pôr todos os meios para -que o nunca mais vissem, nem d’elle se fizesse -menção; que o contrario he faltar a toda -a reverencia, que aos leitores se deve, dando-os -por broncos para conhecer o máo; ou -á caridade natural comsigo proprio, expondo-se -sem fôrça de obrigação a menoscabos, se -não injurias.</p> - -<p>Não quero responder que em dar o que -ha quando ou emquanto não ha melhor, ja -o que o faz se ha de haver por desempenhado; -nem que, para reo que sem tratos e sôlto confessa -os delitos, sempre por bom direito se -usou de misericordia; melhores me parecem do -que estes, os meus fundamentos: e ei-los aqui.</p> - -<p>Primeiro: que andando a <i>Primavera</i> ja impressa -e corrente por muitas mãos, e não podendo -ser recolhê-la eu de novo, e desluzi-la -da memoria de muitos que a bem agazalharão, -melhor arbitrio he, pois que tem de se -conservar no mundo, renascer n’elle expurgada -de muitos vicios da primeira impressão, e -se a paciencia me acudir com o preciso valor, -retocada no que pertence ao literario.</p> - -<p>Segundo: que havendo talvez ainda, e podendo -vir a haver, moços que se dem a poetar, -acontecerá que entre os mais livros portuguezes<span class="pagenum"><a id="Page_27"></a>[27]</span> -que ás mãos lhes cheguem, vão de -envolta os meus (assim mo promette sua boa -fortuna, que os livros a tem como os homens, -e ás vezes os mais ruins muito melhor do que os -bons): mãos de principiantes não sabem escolher, -os amores, amenidades e branduras da -<i>Primavera</i> cáem muito a gente moça, ir-se-hião -traz o gosto, e beberião muitos defeitos; -do que seria minha a culpa, se eu não procurasse -agora arrancar boa parte d’elles, e contra -os demais os não precavesse com honestas -advertencias.</p> - -<p>Terceiro, finalmente: que eu pretendo antes -ser bem conhecido pelo que fui, sou, e -hei de ser, do que só pelo que sou; porque -nascendo-nos o presente do passado, ainda -que diverso, e produzindo-nos ainda que tambem -diverso, o futuro, o sermos só conhecidos -pelo que somos não he sermos conhecidos. -He pensamento que merece ser entendido. Alexandre -Dumas o explicará. Sem pedir venia -traduzo o passo, com quanto seja longo, certo -de que o não parecerá.</p> - -<p>—“A maior desgraça da crítica, ainda -quando se não sae com ignorancias e velhacarias -(diz elle no prologo da <i>Catharina Howard</i>) -consiste em sentenciar uma Obra nova desmembrada -do feixe literario cuja he parte: -ahi está porque nunca se póde avaliar um livro -com exacção antes da morte do autor; e -mais ainda he preciso que Deos lhe haja concedido<span class="pagenum"><a id="Page_28"></a>[28]</span> -desde o primeiro até o ultimo, os dias, -que para acabar seu edificio se lhe fazião mister; -por quanto, se antes de tempo morreo, -o monumento que traçára tem de ficar incompleto -para sempre como a Sé de Colonia, e -os homens mal justos para com elle ainda -para alem da sepultura, lançar-lhe-hão á conta -de humana fraqueza o ter-lhe ficado certo -vão por tapar, quando a morte de invejosa e -apressada lhe veio atar as mãos, e ja talvez -para se arrematar mais não faltava que uma -só pedra: ora por aquelle vão, he que a crítica -se mette e entra, quer o autor esteja vivo, -quer defunto.”</p> - -<p>“De trez idades se compoem a vida de -quem nasceo fadado a dar de si produções, e -em trez periodos se desparte: como couza alta -e nobre que he, tem primeiramente sua base -por onde se começa; depois um cume onde se -chega; ultimamente la por dentro um motivo, -tenção e fim particular para onde se torna a -descer. Pelo que, he necessario que o homem -tenha vivido todas estas trez idades e que o seu -talento haja cursado estes trez periodos, para -se poder avaliar aquelle talento no seu todo, -aquelle homem na sua produção.”</p> - -<p>“Primeira idade, quando a fantasia prevalece -á rasão. A esta idade de viço pertencem -as horas que tão despedidas voão dos vinte e -cinco aos trinta e cinco. He o periodo para -dever inventar <i>Hamlet</i> quem se chamar Shakespeare,<span class="pagenum"><a id="Page_29"></a>[29]</span> -o <i>Cid</i> quem tiver nome de Corneille, -os <i>Salteadores</i> quem for Schiller.”</p> - -<p>“Segunda idade, em que a fantasia e a -rasão se embalanção, ajudando-se mutuamente, -e vindo a formar das suas duas uma só -força neutra. A esta idade vigorosa pertencem -os dias que vão correndo dos trinta e cinco aos -quarenta e cinco. He o periodo em que os -mesmos trez sujeitos produzem <i>O Rei Lear</i>, -<i>Cinna</i>, <i>Wallenstein</i>.”</p> - -<p>“Terceira idade, em que a rasão prevalece -á imaginação. A esta idade de reflexão pertencem -os annos que descem dos quarenta e -cinco aos cincoenta e cinco. He o periodo em -que elles compoem <i>Ricardo III</i>, <i>Polyeuctes</i>, -<i>Guilherme Tell</i>.”</p> - -<p>“Ora pergunto, ficarião completos Schiller -sem <i>Wallenstein</i> e <i>Guilherme Tell</i>, Corneille sem -<i>Cinna</i> e <i>Polyeuctes</i>, e Shakespeare -sem <i>O Rei Lear</i> e <i>Ricardo III</i>?”</p> - -<p>“Parece-me portanto que nunca devêra a -crítica requerer de um poeta, senão as obras -de sua idade; e bem sabemos nós como o faz -ella sempre ao revez, sendo as obras que mais -se empenha em querer extorquir de um engenho -as dos annos que ainda não vingou, ou -as dos outros annos que ja deixou transpostos. -Pelo que toca a uma obra que vem condizendo -com o periodo d’onde dimana, nunca a<span class="pagenum"><a id="Page_30"></a>[30]</span> -impertinencia dos juizes a dá por cabal: são -uns Aristarchos sem paciencia, que acodem -logo com a crítica a cada pedra de per si, ao -passo que ainda se está guindando, sem advertirem -que aquella pedra só assente e junta -com as outras pedras he que ha de dar prova -da traça e desenho geral do architéto: são como -uns pomareiros esquipaticos, que não tomando -em conta o inalteravel fio das quadras -do anno, pedem fruta madura á primavera, -frutos verdes ao verão, e ao outono flores.”—</p> - -<p>Bem haja Alexandre Dumas, que tão artificiosa -e claramente me decifrou, e me ajudou -a pôr em limpo uma verdade, cujos ares muito -ha que eu tomava de longe; uma verdade que -eu andava adivinhando como por entre nevoas.</p> - -<p>Ora pois, dos trez apontados motivos de -determinação, foi este ultimo o de maior momento: -quiz dar completo o meu retrato, menos -o intellectual do que o moral, a quem desejasse -conhecer-me: não podia omittir como feição -o que eu havia sido, e ainda antes d’aquella -primeira idade, que dos vinte e cinco decorre -até os trinta e cinco annos. A <i>Primavera</i>, -escrita aos vinte e dois, tinha por tanto de -entrar encorporada na collecção das minhas -Obras. Se a refundisse pelo meu gôsto de hoje -em dia, não sei se ficára melhor, mas sei que -ficára outra, e por conseguinte falsa como feição. -Tudo quanto era seu geito, seu pensar,<span class="pagenum"><a id="Page_31"></a>[31]</span> -seu ser proprio passará intato; e n’isso, se se -hão de perdoar gabos a quem sem disfarces nem -dó se disciplina deante do Povo por peccados -poeticos, n’isso digo, alguma couza ha de -bom, sem o que não tivera agradado a tanta -gente. O por onde a lima pode e deve correr -afoita e sem dó, são—<i>as numerosas faltas de -boa falla portugueza—desleixo de frase—e -estiramento de períodos</i>.</p> - -<p>Quero-me explicar, não para os Mestres, -sim para os novéis no officio de escrever, com -os quaes particularmente converso nos meus -prologos; e porque não havia eu repartir do -fruto de minha tanta ou quanta experiencia -com quem não a póde ainda ter, nem suppri-la -com seguir cursos de Bellas-letras que entre -nós se não ensinão? Um dos maiores delitos -literarios, e em que mais usualmente cáem os -moços, he o <i>desprezo de lingua e corréção</i>; -delito que per si basta para descontar muitos -meritos intrinsecos de escritura. Sem bem saber -sua lingua, diz Boileau, o autor mais -divino nunca passará, por muito que faça, de -máo escritor. He ella a ferramenta para este -genero de lavor da alma; e quem poem as -mãos na obra sem primeiro ajuntar, conhecer, -escolher e apontar bem os instrumentos de que -se ha de valer, nem se pode mostrar bom artífice, -nem merecer desculpa de o não ser.</p> - -<p>Toda a Musa em creança padece dispepsia de -versos, diabetes disséra quem se menos prezára<span class="pagenum"><a id="Page_32"></a>[32]</span> -de cortez com Divindades. Na primeira -idade he costume, e por muitas rasões, -das quaes não será a mais fraca a aversão -ao trabalho, presumir-se antes de facilidade -e presteza no escrever, do que de corréção -e primor: coração e fantasia tudo anda ligeiro, -querem que a penna lhes obedeça, como se -ella podesse; forção-na, e dahi resulta que -pensamento ou afféto que lá dentro era soberbo, -apparece cá fora frio, mesquinho, desengraçado; -e maravilha-se o escrevedor quando -a mesma couza que valentemente o agitava, em -quanto em si a revolvia, depois de passada -para o papel adormenta os ouvintes, e a elle -proprio o desconsola. De todos os defeitos de -autor, talvez se podesse affirmar que só este -he verdadeiro, real e absoluto defeito; porque, -se os pensamentos e affetos de cada idade são -della, e dessoão e descontentão a todas as outras, -tem por si o serem d’ella, e como taes -se defendem por conterem verdade e pintarem -o homem; não assim a lingua, que em todas -as idades he ou deve ser uma, não provando -outra couza o faltar-se a ella, senão que se quer -fallar antes de se ter aprendido. Sou experimentado, -e por bem do proximo direi com -vergonha minha, que no que me ficou escrito -d’essa quasi infancia poetica, as couzas nem me -espantão nem me offendem, ainda quando as -desapprovo, mas a linguagem e o dizer me fazem -de continuo caír as faces; e por isso que -he escolho em que naufraguei tão desastradamente, -o assignalo com tanta miudeza e teima;<span class="pagenum"><a id="Page_33"></a>[33]</span> -nem cançarei de o assignalar e accender-lhe -em cima boa luz de farol, em quanto vir, -como vejo, outros, que nem por idade se absolvem, -esbarrar n’elle e perder-se a todas as -horas. Mancebos, (se os ha ahi que se dem -ás letras) vós que encetaes a mui ardua e perigosa -vereda que pelas letras conduz á fama, -seja qual fôr o genero de poesia para onde -propendais, seja qual fôr o vosso não vulgar -engenho, sejão quaes forem os louvores que os -velhos na arte vos concedão, e os applausos -com que as sociedades vos afoutem, não vos -deis pressa de apparecer: os conselhos que Horacio -vos deu, durão com toda a fôrça que a -natureza e a pratica lhe bafejarão. Deve-se -compor de espaço, consultar os bons e peritos, -guardar por nove annos, chamar, e tornar a -chamar dez vezes á unha a obra ja perfeita. -O amor proprio nos persuade e impelle a apparecermos -cedo, devia elle, se não fôra cego, -ter-nos mão para nos não sairmos senão a horas;</p> - -<div class="poetry-container"> -<div class="poetry"> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0"><i>A melhor fruta colhe-se mais tarde.</i></div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse right">(<i>F. R. Lobo.</i>)</div> - </div> -</div> -</div> - -<p>Muito mais vale começar jornada com dia claro, -do que, para adeantar horas, largar a -pouzada pelo escuro da noite, em que os tropeços -são faceis, perigosas as quedas, e quasi -certo o extravio, que a final lançadas as -contas nos farão chegar mais tarde e menos -gostosos ao lugar que demandâmos. Repetirei, -porque nunca o repeti-lo será de sóbra, o que -ja por semelhante occasião disse em outro meu<span class="pagenum"><a id="Page_34"></a>[34]</span> -livrinho, contra esta enfermidade que se tornou -praga, e nos traz a todos lastimosamente gafados; -não ha mais remedio senão soccorrermo-nos -aos livros mestres de nossa lingua. -A aversão que vós outros, gente moça, lhes -tendes, bem sei d’onde nasce, que tambem eu -por ahi passei: correm para vós como rio caudal -os livros d’essa França, todos especiosos e -doirados, todos galhardos e louçãos, arrebicados -e argutos no dizer, promettedores de maravilhas -nos titulos e indices, conversando comvosco -paixões fortes e brandos affetos, uns vomitando -republica por todas as folhas, outros -por todos os poros exhalando commodissima incredulidade, -e todos á uma embebidos do -presente, afinados pelo vosso ponto, e se o -posso dizer, mancebos como vós mesmos. Não -ja assim os nossos patrios autores: estes não -vos sáem ao caminho; pouzão, antes jazem, -pela escuridão êrma das bibliothecas, mal envoltos -na grosseira capa de seu tempo, enterrados -no pó, meio devorados dos bichos; se -os olhais por fóra, parece-vos que a vida vos -não daria para um só volume: se os consultais -por dentro ja os titulos vos não namorão, -os indices vos descoroçoão: folheai-los por alto, -vem os milagres incriveis, a historia encarecida -ou chã, a poesia enleada e escura, -o estilo incorreto e desflorido, o amor grave e -sizudo, os costumes castos, a moral severa, a -fé religiosa e inconcussa: cada pagina na sua -simplicidade apregoa Deos, revem por cada -poro o cheiro do mundo velho: mas esforçai,<span class="pagenum"><a id="Page_35"></a>[35]</span> -affazei-vos por alguns dias a soffrê-los e comsenti-los; -continuá-los-heis sem tedio, logo com -gôsto, com ancia, reconhecendo a final quanto -as primeiras mostras vos havião mentido, -como pelo meio e fundo d’aquelle enganoso dissabor -andavão sumidas galas, joias, riquezas, -maravilhas, que vos enchem os olhos, vos cativão -a vontade, e fazem que vos peze do tempo -que os não conhecestes. Assaz nos divertimos -do caminho, rasão he que a elle nos tornemos.</p> - -<p>O segundo defeito geral que me occorreo -n’esta leitura, foi o que eu chamei <i>desleixo de -frase</i>. He este muito menos grave que a impureza -da lingua, sendo-o todavia assaz que -mereça quanta reformação lhe eu possa fazer. -Quando quem não cura da pureza de sua lingua, -cura ao menos de lhe não deitar -remendo de panno estranho ou novo que -não seja vistoso e garrido, quando o que se -não preza de dizer limpa e castamente, ao -menos timbra no exprimir com viveza não vulgar, -com certo matiz, com certa novidade, -algum passo mais se lhe póde conceder. -Procurei se ao menos teria eu posto algum pouco -d’isto, e achei um desconsolado não. A -locução não me pareceo tão poeticameme figurada -como convinha em poesia, ainda -pastoril; os epíthetos erão tão sem succo e bastos -como a caruma no mato. Uma e outra -couza requerião, em quem as quizesse bem -emendar, muita paciencia, e muitissima mais<span class="pagenum"><a id="Page_36"></a>[36]</span> -da que eu tenho. De ambas, mormente dos -epíthetos, procurarei limpar a maior; todos -não he possivel: tanto e por tal geito estão -com toda a Obra cozidos e enraizados, que -lhes vale o que ás ervas parasítas em parede -velha mas necessaria; foução-se-lhe algumas demazias, -perdoa-se ao resto, com o medo que em -faltando, se esboroe a parede, e venha ao chão -toda delida.</p> - -<p>Tambem me queixei de <i>estiramento de períodos</i>. -He defeito portuguez, peninsular, meridional. -Dava-me agora na vontade tornar a -culpa ao sol, que n’estas suas terras faz que -tudo se desaperte, e derrame, e desate em viço -e sobejidão: mas fiquem esses milagres do sol -para os esquadrinhadores metafisicos, a quem -inda assim, não quero mal; e eu, melhor -que a nenhuma outra causa, lançarei aquella -minha diffusão ás costas dos annos em que escrevia, -com o que sempre fico de bom partido, -por das minhas a tirar. O que he grandemente -verdade, he ser este defeito para muitissimos -leitores, principalmente mancebos ou -hospedes nas regras de escrever, virtude, e a -virtude contrária vicio. Saírão a <i>Noite do Castello</i> -e <i>Ciumes do Bardo</i> muito mais contraídos -e apanhados em couzas e palavras, do que -estes Poemettos e as <i>Cartas de Echo</i>: pois comtudo -muitos houve e ha, que por isso mesmo -ficárão preferindo aos novos os antigos e até -velhos opusculos. A cada hora me diz um que -me torne ao meu primeiro caminho; outro<span class="pagenum"><a id="Page_37"></a>[37]</span> -que não desampare o novo: uns, que estas ultimas -obras se não lem senão de escaço numero; -outros que as passadas não occupão meia -hora os olhos dos homens graves e bons juizes. -Oh! quem reconheceo nunca a verdade da fabula -do velho, do rapaz e do burro como o -triste, que para expiação talvez d’algum grande -peccado, entrega e desampara a público -os partos do seu tinteiro! Pois que não póde -ser contentar a todos, ir-me-hei como e por -onde o meu juizo, gôsto e natureza me levarem.</p> - -<p>A poesia substancial e severamente escrupulosa, -he o mais das vezes descontada por uma -certa desharmonia: a muita harmonia, ainda -quando mais apoucada de ideas, ja entretem -suavemente: qualquer leitor se entende com -taes escritos, ninguem com elles se cança; -são um genero de musica facil, que ainda -quando não exprime affetos, se ouve com gosto; -são como um deslizar de barco por uma -agoa mansa: por isto he que os livros do <i>Porto</i> -e <i>Tristezas</i> de Ovidio se lem de um cabo a -outro com muita deleitação.—<i>Inter utrumque</i>: -nem tanto apêrto como Almeno na chamada -tradução de Ovidio; nem tanta soltura -como o seu amigo, e outr’ora meu mestre, -Elpino Duriense<a id="FNanchor_4" href="#Footnote_4" class="fnanchor">[4]</a> nas poesias originaes;<span class="pagenum"><a id="Page_38"></a>[38]</span> -nem tanto pospor a harmonia e clareza á brevidade -como Filinto; nem tanto sacrificar o -entendimento ao ouvido como Elmano. Isto -foi o que me pareceo lograr na <i>Noite do Castello</i>, -e <i>Ciumes do Bardo</i>, e não me arrependo -se por ventura o consegui.</p> - -<p>Tanto não, mas alguma couza d’isto fôra -o que eu quizera na <i>Primavera</i>: alguma couza, -para poder com ella reconciliar os severos; -tudo não, por não dessimilhar em demazia -esta parte do retrato.</p> - -<p>Até aqui descubrimos defeitos que importa -emendar, agora os vamos ver do outro genero, -em que me não he licito bolir, por serem -essencia do livro: erão aquelles no tocante á -lingua, estilo, e metro, que ainda que importantes, -não passão de accidentes da obra; estes -são da alma, vida, e pensamento da mesma -obra. Entremos pelo descritivo (não será portugueza -a voz, mas o uso e necessidade lhe -valeráõ.) Descritivos se chamão em geral todos -os poemas deste genero, e como a taes, -parece que tudo quanto for pintar dentro do -quadro do seu painel, lhes compete e convem. -Não he comtudo bem assim, porque as<span class="pagenum"><a id="Page_39"></a>[39]</span> -descrições, por mui formosa e naturaes que -se ostentem, tambem canção a imaginativa -de quem lê, quando umas ás outras se vem succedendo -perennemente e sem um bom entremeio -de narração, ou outro valente interesse, -que por um modo verosimil as reuna, separando-as -ao mesmo tempo, para que se não -confundão, nem se afrontem, nem esmoreção. -Não o advertio Delílle, e d’ahi procedeo não -bastar seu altissimo engenho para livrar seus -poemas de enfadosos. Ora este livro he quasi -um embrechado massiço de descrições; e assim, -se o posso dizer, mais para ou olhos da alma -do que para o seu entendimento. Mas serão ao -menos estas pinturas, consideradas uma por -uma, de algum preço por fineza de tintas, ou -pontualidade de desenho? autos são em que -me não compete dar sentença. O Padre Kinsey, -ou o Portuguez que em seu nome escreveo, -disse que eu não pintava bem a natureza; -talvez que outro tanto, e ainda peór, se -devesse dizer da mór parte de nossos poetas; -mas não he contra elles, senão contra mim só -que eu enfeixei varas no princípio d’este prologo: -como os applicados noviços se não enganem -comigo por minha culpa, que se desvairem -e percão com os outros, paciencia! -Aqui está comtudo o que me parece; este descritivo -he desbotado e de côres pouco vivas e -proprias se com o de Gessner ou Kleist se -compara, mas he o melhor que eu soube; eu -que nem podia ir-me pelos campos fazendo, -como de si dizia Kleist, caçadas poeticas de<span class="pagenum"><a id="Page_40"></a>[40]</span> -imagens, nem discorrê-los como Gessner, de -lapis na mão. Ja póde ser que o Padre Kinsey, -ou o seu ponto, não houvessem de se me -avantajar muito, se lhes coubesse tirar ás escuras, -ou quasi, o retrato da natureza: muito -mais faz quem atravessa o Tejo a nado, -do que hum Almirante Inglez que em segura -e bem apercebida náo rodêa a esfera; poderá -este trazer mais riquezas e informações, mas á -fé que não prova mais fôrças e esfôrço que o -desconhecido nadador de uma só corrente.</p> - -<p>Passemos ávante, e das descrições entremos -nos affetos. N’esta parte direi pouco, porque -sem embargo de que o desabrimento com que -me castigo onde entendo merecê-lo, me podia -deixar alguma licença para tambem me louvar -pelo que em mim visse de bom, melhor -he que nos louvores, em que mais facilmente -nos podêmos enganar, nos contentemos de ser -ouvintes. Ainda assim, não acabo eu de dizer -tão pouco, que muito bem se não entenda ja -que no tocante a affetos não quero muito -mal á minha Obra: fallo dos affetos em geral, -porque passos ha n’ella a cujo affeto não -sei ja hoje querer mal nem bem; honesto, -formoso, e macio me parece, sei que n’esse -tempo devia ser meu, porque eu não compunha, -tirava do coração, mas ja o não posso -entender cabalmente, e avaliar. Esses passos, -apezar de tudo e de mim, hão de passar intatos, -que em assunto de branduras o eu de -hoje respeita religiosamente ao eu de algum<span class="pagenum"><a id="Page_41"></a>[41]</span> -dia; e porque tudo diga, ainda que quizera -emendar, não saberia. Sim me inclino a que -haverá (e ja de alguns m’o boquejarão) excesso, -redundancia, languidez em tantas -suavidades, caricias e extremos de bem querer -a tudo, e a todos. Inclino-me e talvez o creio: -mas que havia de cortar? a que havia de perdoar, -se assim como o eu antigo valia tanto -mais que o eu presente, póde ser que o melhor -se me figurasse agora peór, e o peór melhor?</p> - -<p>Digamos duas palavras da Mithologia. Ja -não sou tão emperrado pagão como n’outro -tempo; desconsola-me ver o desmedido uso -que d’ella fiz. Não se entenda por isto que me -alistasse debaixo das bandeiras triunfaes dos -modernos espanca-numes, nem que tiro vãgloria -de botar pelo mundo pregáõ, como Beranger, -que os Deuzes ja saírão do meu credo. -Todo o excesso em crer ou não crer, em admittir, -ou recusar me parece hoje em dia um disparate, -de que sempre, mais por aqui mais por -ali, vem a resultar contras e arrependimentos. -Enjoa-me a fabula dos Lusiadas, e muita, e -muita, e muita outra: aborrece-me quasi todo -o emprego que dos Romanos para cá se tem -feito d’ella, <i>incredulus odi</i>. Só consinto na -fabula parca, explicavel, e só a amo quando -soberbamente poetada. Alumiarei com um -exemplo: quero-a assim como a derrama ás -mãos chêas por suas tão poeticas prozas o christianissimo -Chateaubriand, esse mesmo que de -longe visto, assim parece guerrea-la. Nada d’isto<span class="pagenum"><a id="Page_42"></a>[42]</span> -acho eu pelo commum no meu livro: de cada canto -me surde uma Divindade; a boa parte d’ellas -não responde verdade, e se alguma couza ahi vierão -fazer, certo que não foi inspirar-me um -só rasgo poetico. Porque pois as deixarei? -porque não substancia do livro, e n’elle tem -posse velha e apozentadoria.</p> - -<p>Dêmos a derradeira parte do prologo, que -em prologos deve ser sempre esta a de vantagem, -a algum poucachinho dizer sobre a moral. -Moral hoje, moral em livro de poeta, -grande novidade e grande estranheza! Sim -hoje, que ainda ha muito quem se preze de -viver honesto, virtuoso e pela antiga: sim em -livro de poeta, e por isso mesmo; visto como -tudo quanto era contra ella o tem a proza a -si tomado, não será muito que lhe abra sua -porta a poesia, e lhe dê guarida em um pobre -cantinho térreo de sua pousada, como he -este: inda mal, que até cá, no fundo de tamanha -escuridão e penuria, por todas as fendas -e agulheiros do mal reparado edificio poetico -lhe chegaráõ as risadas sem alma nem sal -de seus inimigos, e contra essas não ha valer-lhe. -Ha pois do titulo d’este livro a dentro, -dado se não prometta senão primavera, um -como ar de bondade e saude para o animo, -de socego e bemaventurança para a vida: e -por isso he que, a despeito da todas suas manchas, -me parece bem, como ja no Ante-Prologo -deixei tocado, atira-lo, como sementinha -de erva medicinal, ao baldio sáfaro e corruto<span class="pagenum"><a id="Page_43"></a>[43]</span> -d’esta idade. Bem estou eu antevendo -quantos de mim hão de haver lástima, por -me assentar no meio de tão ferida e accesa -batalha, por cantar entre tantas vozerias de -odios. Paciencia! tambem sei que homem sentado -não sóbe, nem a trôco de cantigas se -comprão riquezas e valimentos: mas cada qual -tem sua estrella, e a minha, que outra vez descobrio -depois de largo eclipse, esta foi, e -esta ha de ser; oxalá que para sempre! Com -o bom de Archimedes me pareço n’isto, o -qual na hora que a cidade estava sendo entrada -do inimigo, e alagada das torrentes de -ferro e fogo, nem tinha ouvidos para o estrondo, -nem deixava de proseguir na composição -da lustrosissima esfera celeste, unicos amores -que no canto calado de sua casa o desvelavão. -Havia ahi uma não sei que magnanimidade; -e a ninguem deixa de doer a cutilada do soldado -feroz que despede tal cabeça para cima -de tal obra. Mas quando me ólho, e me vejo -a brincar com flores e cordeiros, ao tempo -que em redor de mim estão no chôco tão grandes -destinos do mundo, não me lastimo, porem -rio-me, e cuido estar vendo em mim proprio -um menino, que por um dia de tempestade, -enthesoura conchas e forma lagoazinhas -na praia, emquanto andão á vista galeões -alterosos á luta com os elementos, e na mesma -praia uns pasmão, outros se aterrão, outros -suspirão pelo instante do naufragio para se arremessarem -aos despojos, apenas o mar os -cuspir.—Fugindo me hião agora outra vez<span class="pagenum"><a id="Page_44"></a>[44]</span> -os pés pela antiga ladeira abaixo: e a moral, -esquecida até por quem lhe deo couto! Com -ella sou, e com ella determino acabar.</p> - -<p>He a moral na maior parte d’estes poemas -pura, facil e amavel; e se não tão efficaz -como a de Gessner, não he porque o eu dezejasse -menos, he porque podia menos atavia-la, -e aformozea-la do que elle, e atavios e -formozuras até servem para fazer do bom optimo. -Todos os amores de que se urde e tece a -domestica felicidade, se achão aqui representados -por um modo que se recommendão, e -d’elles se imbue de mui bom grado o animo; -o amor filial, o paterno, o materno, o conjugal, -a amizade, até o affeto aos animaes, -arvores, flores, e mais creaturas de Deos, -companheiras nossas n’este mundo, aqui vem -de envolta com a recreação. Porque tudo diga, -pelo gostador ou gostadora d’este livro daria -eu mais, e mais quizera viver com elle debaixo -do mesmo telhado, e tratar quer negocios -quer passatempos, do que, se dizê-lo ouro, -com gostadores e pregoadores d’outros livros -que estamos vendo rebentar de muito mais -avultados engenhos. Se eu tivesse filhos e filhas -a quem dar criação, sei que emquanto não -podessem ler Gessner, e seus bons imitadores estrangeiros, -lhes daria a <i>Primavera</i>; e ja não digo o -mesmo das <i>Cartas de Echo</i>, e muito menos da -<i>Noite do Castello</i>, e <i>Ciumes do Bardo</i>. Mas, -acudirá algum prudente, couzas se deparão na -<i>Primavera</i> que mais são para ser defendidas a<span class="pagenum"><a id="Page_45"></a>[45]</span> -donzellas, e resguardadas de fantasias ainda -verdes, do que para se aconselharem por doutrina. -Sim as ha, e todas essas paginas que -para idades encorpadas e apercebidas de experiencia -bem podem não ser damnosas e parar -em mero deleite, todas rasgára e déra ao fogo -antes de lhes entregar a obra para lição: e -porei exemplos; na <i>Festa de Maio</i>, os fins dos episodios -de Galatea e Ignez de Castro, no mesmo -poema boa parte da republica de Chipre, como -o culto religioso da Natureza, os bens em -communidade, a nudez, o divorcio, o cazamento -de um com muitas <i>et cetera</i>. Antes de -passar adeante, trasladarei, que alguma couza -fará para aqui, parte de uma Nota que ácerca -da republica de Chipre se lia na primeira -edição, a pag. 169.</p> - -<p>—“Note-se que este poema está muito -longe de dever ser considerado como didático; -que toda esta republica de Chipre he meramente -um Dithirambo, aonde a licença do -poeta he muito mais ampla do que em outro -qualquer genero de poesia; que esta sociedade -de que se ha de formar a republica, he de -poetas, homens de quem vulgarmente se diz -que mais dão ao prazer do que á rasão; e que -em boca de poeta se poem a arenga recitada -no templo. Para os avisados escusada fôra a nota, -mas para os fanaticos, que ignorão ter a Musa do -Dithirambo licença para nos seus delirios arremetter -contra tudo, he indispensavel.”</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_46"></a>[46]</span></p> - -<p>Era este arrasondo o melhor que o caso admittia, -porem melhor houvéra sido não carecer -d’elle; e se ainda por elle se pode perdoar á -republica de Chipre, não assim ás demais desenvolturas, -como as dos dois ja apontados -episodios. Porque as puz umas e outras? vá -mais penitencia. Puz as pinturas amorosas em -quasi nudez, porque estava n’aquella sazão da -vida e do anno, em que todos nos deliciamos -nas fantasias sensuaes, e se somos poetas, cuidamos -morrer abrazados e afrontados em não -desabafando. Porque não expurguei d’ellas -esta segunda edição? pelo mesmo motivo do -retrato, e não outro. Quanto ao culto da Natureza, -e á gente nua, e aos maridos de muitas -mulheres, são necedades taes, que não merecem -que nos detenhâmos em as refutar: são -d’aquellas demencias, cujo aggregado dá o que -entre moços que esfolheão livrinhos bem doirados -e térsos, se denomina filosofia, e que só -dura emquanto a experiencia e o tempo nos -não desmamão da presunção; pelo que, e pela rasão -geral, ja muitas vezes apontada, de querer -mostrar-me qual fui, vivão, durem e passem, -que depois d’isto ja a ninguem farão mal.</p> - -<p>Eis aqui por alto, mas com toda a lealdade, -o juizo que da <i>Primavera</i> formei; he primavera -por matos de serra, com mais flores -do que graças, com mais ares saudaveis do que -ervas medicinaes, mui tibia de fragrancias mimosas, -mui nua em muita parte de terreno, -mas com seus longes de campos e cazaes felizes,<span class="pagenum"><a id="Page_47"></a>[47]</span> -e muitas saudades lá pelos extremos confusos -do seu horizonte. Quem se d’estas cousas contenta, -fico se recreie com ella; e quem com -ella se recrear, para amigo o quero, que esse -saberá, como eu, amar muito os homens, fugindo-os; -e enfadado, como eu, das terras onde -não ha ver passaros senão em gaiola, nem -verdura fóra de gigas, nem arvoredo que não -seja pintado, nem pastores e innocencia senão -na opera e trajados de seda e veludo, nem -felicidade senão em promessas de políticos, -irá procurar-se, achar-se, e lograr-se de Deos, -de si, e dos penhores de sua alma no seio e -entranhas da vida campestre. Oh, se assim -fosse!... e se Deos a um tal me désse ainda -por vizinho!...</p> - -<p class="right"><i>Lisboa 4 de Dezembro de 1836.</i></p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<h2 class="nobreak" id="Post_Scriptum"><i>Post Scriptum.</i></h2> - -</div> - -<p class="center"><i>Lisboa 29 de Março de 1837.</i></p> - -<p>Quando todo estava no trabalho de desempenhar -minha palavra, e fazer ainda mais do -que no Prologo deixára promettido, revendo -cuidadosamente, afeiçoando, podando e enxertando -de novo este volume, sobreveio-me aos -2 de Fevereiro passado, o maior infortunio de -minha vida, uma perda de que em nenhum tempo<span class="pagenum"><a id="Page_48"></a>[48]</span> -se me poderá o coração consolar. Quebrarão-se-me -as forças para continuar no trabalho, -bem como se esvairão muitos, antes todos, meus -projetos. Ja não arrancarei (e para que?) -este pouco e inutil resto de mim mesmo da -terra que encobre a minha melhor metade: -aqui procurarei, se tanto podér ainda, pagar -com uma pouca fama e muitas lagrimas, a quem -a mim me deo até á sua ultima hora seus -olhos, seu amor, toda sua alma. Qual ficou -este livro tal sae, e muito inferior ao que eu -promettia, podia e devia fazer. Se algum de -meus leitores entende por experiencia o que seja -padecer n’uma viuvez uma completa orfandade, -esse passará com indulgencia, e ainda -suspirando, pelos muitos defeitos que na leitura -lhe occorrerem. Aos sem alma não tenho -que dizer: se quizerem castigar o espirito meio -morto, porque não pôde mais, fação-no, que -dôres d’essas não acharáõ ja em mim lugar nenhum.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_49"></a>[49]</span></p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_50"></a>[50]</span></p> - -<h2 class="nobreak" id="EPISTOLA_A_PRIMAVERA">EPISTOLA<br /> -Á<br /> -PRIMAVERA</h2> - -</div> - -<p><i>Vai a Epistola em tudo outra da que fôra -na primeira Edição: conserva a invenção e os -pensamentos, mas emendou-se a linguagem, -apertou-se o estilo, deu-se alguma côr mais ás imagens, -explicarão-se melhor alguns pensamentos, -reformarão-se e afinarão-se quasi todos os versos.</i></p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_51"></a>[51]</span></p> - -<h3 class="nobreak" id="EPISTOLA_DEDICATORIA">DEDICATORIA<br /> -A MINHA IRMÃ.</h3> - -</div> - -<p><i>Eu mandei o meu Genio campestre apanhar -flores por entre os gelos do inverno. Formosas -não saírão, bem o sei, porem n’esta estação do -anno não mas dá melhores o estreito jardimzinho -que me as Musas doarão nas fraldas do -Parnaso. A ti, minha Irmã, me ordena o coração -que as offereça. Felicidade será para mim, -se quando para o teu lado me tornar, tu me -disseres abraçando-me:—“Eu amo as flores -que tu me enviaste, no meu seio as guardo: -as da primavera menos me contentão do -que estas, que o teu Genio campestre colhe -no teu jardim, por entre os gelos do inverno.”</i></p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_52"></a>[52]</span></p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_53"></a>[53]</span></p> - -<h3 class="nobreak" id="EPISTOLA_INTRODUCAO">DUAS PALAVRAS DE INTRODUÇÃO</h3> - -</div> - -<p>Fôra o inverno de 1821 para 22 dos mais -desabridos e temerosos de que entre os vivos se -faz memoria. Na Beira, onde me então achava, -vião-se arrancados e espedaçados bosques, -olivaes e pomares, sementeiras afogadas, pontes -demolidas, e os rios sem margens. Dos 25 -de Dezembro até os 9 de Janeiro, que me demorei -em uma aldeinha, uma legua desviada -de Coimbra, saboreando no trato cordeal de -alguns amigos e parentes as férias, então mui -festivas, de meus estudos, foi sempre tão atada -e rigorosa a porfia das invernadas, que nos -falseou quasi de todo a recreação mais apetecida -dos que fartos da cidade, vão alguma hora -ao campo desenfadar-se. De não passear -nos vingavamos o melhor que o tempo e lugar -no-lo consentião: práticas desaffrontadas -de constrangimento, temperadas de bom sal, -e muitas vezes substanciaes; a voltas d’ellas, -leituras accommodadas ao mais dos gostos, poesia, -e improvisos de <i>charadas</i> e adivinhações -nos enchião as horas não contadas. As espaçosas -noites e boa parte dos dias, se levavão n’estes -e semelhantes passatempos, em de redor -de uma farta fogueira, segundo he costume -d’aquellas terras. Por alguma rara tarde, quando -o sol descobria, e o ar um pouco mitigado -nos consentia saír, nos hiamos, ora pelo -jardim onde se explanava um soberbo lago, -outr’ora pela orla mais assoalhada dos laranjaes,<span class="pagenum"><a id="Page_54"></a>[54]</span> -que mui corpulentos e viçosos, acenavão -de seus ramos com frutos e flores, pondo a -vista, o cheiro e o gôsto em doce competencia -de delicias. Era ainda aquillo, ou ja era, -umas lembranças, uns longes de primavera no -coração do inverno, saíamos da prisão dos lares, -aproveitavão-se com sofreguidão: talvez -nenhum dia de perfeita primavera na longa -cadêa d’elles me pareceo nunca melhor e mais -ledo, do que estas pobres tardes sonegadas ao -mez do Natal. A fantasia enganada do sol, -toda se me desatava em poeticas flores, o que -n’esses tempos só por maravilha me acontecia -fóra da primavera, e luares do verão. Quando -vinha a noite, acceita ao meu coração, -(que sempre de si o conheci, não sei porque, -amigo de com ella suspirar saudades), e ja todos -ao conchego do nosso lume fiel nos tornavamos -alvoraçados, comigo só me hia pouzar -a um canto, colhendo, concertando e accrescentando -com mui entranhado contentamento, -quantas florinhas me havia brotado a fantasia. -De saudades da primavera me parece ainda -agora que nascião todas; o que certo sei, he -que ahi, e n’um imaginar d’estes meus, me veio -a lembrança e desejo de escrever á Primavera -uma Epistola. Se n’isto abusei ou não da licença -tão concedida a poetas, não o sei; sei -que no ditar estes versos para se escreverem, -e no conceber-lhes o assunto a passear ou a -seroar, gozei prazeres que ja a crítica me não -póde tirar. Se contra o bom juizo pequei, todo -o meu pezar he não poder outra vez peccar<span class="pagenum"><a id="Page_55"></a>[55]</span> -pelo mesmo modo, nem outra vez namorar-me -da Primavera: os annos que a trazem -ás arvores no-la levão a nós, e ja la vão quinze, -(quinze annos!) sôbre o tempo em que eu -brincava com estas innocencias.</p> - -<p class="right"><i>Lisboa: 9 de Dezembro de 1836.</i></p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_56"></a>[56]</span></p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_57"></a>[57]</span></p> - -<h3 class="nobreak" id="EPISTOLA">EPISTOLA<br /> -<i>Á PRIMAVERA</i>.</h3> - -</div> - -<div class="poetry-container"> -<div class="poetry"> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">Corre a Noite, jaz muda a natureza;</div> - <div class="verse indent0">Os campos solitarios esmorecem;</div> - <div class="verse indent0">Mal se ouve ao longe o estrondo da corrente:</div> - <div class="verse indent0">De quando em quando a lua desmaiada</div> - <div class="verse indent0">Mergulha em nuvens, surde, outra vez morre;</div> - <div class="verse indent0">E das planicies a extensão geosa</div> - <div class="verse indent0">Ora resae e alveja, ora se apaga.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">N’esta cabana de grosseiros troncos,</div> - <div class="verse indent0">Tecido vime e colmo, onde sereno,</div> - <div class="verse indent0">Vento, e cuidados não coárão nunca,</div> - <div class="verse indent0">N’esta onde habita perennal fogueira,</div> - <div class="verse indent0">E onde he Penate o Genio da hospedagem,</div> - <div class="verse indent0">Venho entre amigos deslembrar tristezas:</div> - <div class="verse indent0">Do frio lá de fóra o ultimo resto</div> - <div class="verse indent0">Ja o atirei á chama tragadora.</div> - <div class="verse indent0">Em ti, Amores meus, em ti só fallo</div> - <div class="verse indent0">Ó Primavera minha; em ti só cuido;</div> - <div class="verse indent0">A ti quero escrever: inda ha bem pouco</div> - <div class="verse indent0">Em meu passeio a flor das larangeiras,</div> - <div class="verse indent0">E do sol que hia a pôr-se o extremo raio,</div> - <div class="verse indent0">Cá me derão de ti saudades tristes.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Desde que ao scetro do raivoso Junho</div> - <div class="verse indent0">Tu doce com teus Zéfiros fugiste,</div><span class="pagenum"><a id="Page_58"></a>[58]</span> - <div class="verse indent0">Meu dia estendo em languidos suspiros.</div> - <div class="verse indent0">A noite em vagos sonhos me afigura</div> - <div class="verse indent0">Ver-te, cantar-te, desfrutar teus mimos:</div> - <div class="verse indent0">Mal desponta a manhã, mal foge o sono,</div> - <div class="verse indent0">Desespero-me, lido entre amarguras;</div> - <div class="verse indent0">Peço aos bosques sem folha, aos ermos campos,</div> - <div class="verse indent0">Aos rochedos de neve, ás turvas fontes,</div> - <div class="verse indent0">Ao ceo toldado, aos ares tempestosos,</div> - <div class="verse indent0">E a toda a natureza, a minha Amada.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">“Primavera, onde estás?” do outeiro exclamo;</div> - <div class="verse indent0">De valle em valle, de um cabêço em outro,</div> - <div class="verse indent0">“Primavera, onde estás?” responde o echo:</div> - <div class="verse indent0">No prado o guardador, no monte o Fauno,</div> - <div class="verse indent0">Pelo arvoredo as Dríades á escuta,</div> - <div class="verse indent0">“Primavera, onde estás?” depois exclamão.</div> - <div class="verse indent0">Emquanto assim fiel, por ti ó Deosa</div> - <div class="verse indent0">Me desentranho em ais, onde te escondes,</div> - <div class="verse indent0">Perguiçosa gentil? onde vagueas</div> - <div class="verse indent0">Bella inconstante que estes ais não ouves?</div> - <div class="verse indent0">Algum Deos namorado, em plaga estranha,</div> - <div class="verse indent0">Encheria de amor teus olhos livres?</div> - <div class="verse indent0">Esquecer-te-hião, (Ceos!) promessas tantas?</div> - <div class="verse indent0">Sim: que te importa o definhar de um vate?</div> - <div class="verse indent0">Do vate que te amou, te adora ausente?</div> - <div class="verse indent0">Tu folgas e elle gema; elle delire,</div> - <div class="verse indent0">Tu a prados sorris vestindo prados,</div> - <div class="verse indent0">Revês-te, amante nova, em novas flores:</div> - <div class="verse indent0">Fontes ha tambem lá, que importão éstas?</div> - <div class="verse indent0">De fonte ao claro espelho te engrinaldas;</div> - <div class="verse indent0">E ufana de encantar sensiveis peitos,</div> - <div class="verse indent0">Tambem, como entre nós, por lá dardejas</div> - <div class="verse indent0">Fogo de amor aos entes insensiveis.</div><span class="pagenum"><a id="Page_59"></a>[59]</span> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Volta, volta, ó cruel, aos campos nossos.</div> - <div class="verse indent0">Qual paiz no universo, a não ser Pafos,</div> - <div class="verse indent0">He mais digno de ti? ¿por onde achaste</div> - <div class="verse indent0">Para o cortejo teu, Ninfas, pastoras,</div> - <div class="verse indent0">Como éstas que entre a murta o ceo nos cria?</div> - <div class="verse indent0">Amantes mais fieis? florestas, rios</div> - <div class="verse indent0">Namorar-se, mais frescas, mais formosos?</div> - <div class="verse indent0">Mais doces flautas quando amor entoão,</div> - <div class="verse indent0">Aves mais doces quando amor gorgêão?</div> - <div class="verse indent0">¿A tua Cintra, Elisio dos desejos,</div> - <div class="verse indent0">Nobre jardim do Oceano, onde folgavas</div> - <div class="verse indent0">Contemplar na alta noite em mista dança</div> - <div class="verse indent0">Ninfas das ondas, Ninfas das florestas,</div> - <div class="verse indent0">Assim te descaío? ja não proteges</div> - <div class="verse indent0">Os córos virginaes que ali passêão</div> - <div class="verse indent0">Sorrindo ao ver seu nome em bosque e bosque?</div> - <div class="verse indent0">¿Por toda a parte as Graças que espairecem;</div> - <div class="verse indent0">Do aligero esquadrão travêssos brincos,</div> - <div class="verse indent0">Frechas doiradas em contínuo vôo</div> - <div class="verse indent0">Aqui e ali aos peitos descuidados,</div> - <div class="verse indent0">E se errão corações, ferindo os bosques,</div> - <div class="verse indent0">Porque os bosques ali tambem suspirão,</div> - <div class="verse indent0">Tudo pois te esqueceo? Volve, ó Querida;</div> - <div class="verse indent0">Cede, não sejas dura, a amor, aos versos.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Desde que te ausentaste ahi pende a lira</div> - <div class="verse indent0">Nos braços nus de um álamo sem folhas,</div> - <div class="verse indent0">A minha lira ao vento abandonada!</div> - <div class="verse indent0">A lira d’oiro, onde entoei teu Nome,</div> - <div class="verse indent0">Onde a minha paixão soou mil vezes</div> - <div class="verse indent0">Na linguagem dos ceos a teus ouvidos,</div> - <div class="verse indent0">Ei-la sem honra; os ventos lhe roubárão</div> - <div class="verse indent0">Dos antigos festões o escaço resto!</div><span class="pagenum"><a id="Page_60"></a>[60]</span> - <div class="verse indent0">Ao passar com seu gado, e vendo-a muda,</div> - <div class="verse indent0">Diz suspirando a turba dos pastores:</div> - <div class="verse indent0">“E’sta a que dava alento ás nossas festas:</div> - <div class="verse indent0">Mal haja quem a trouxe a tal desterro!”</div> - <div class="verse indent0">Dríades ternas, que meu canto ouvião</div> - <div class="verse indent0">Não talvez sem prazer, dizem passando:</div> - <div class="verse indent0">“O vate emmudeceo longe da Amada!”</div> - <div class="verse indent0">Mas apenas teus Silfos precursores,</div> - <div class="verse indent0">C’roados de violetas assomarem</div> - <div class="verse indent0">Na ethérea região de nossos climas;</div> - <div class="verse indent0">Apenas este ceo pezado e turvo</div> - <div class="verse indent0">Mandar á terra os ultimos chuveiros;</div> - <div class="verse indent0">Apenas rebentando as novas folhas</div> - <div class="verse indent0">Se remoçar esse álamo tristonho,</div> - <div class="verse indent0">E entre a nova ramage, emtorno á lira,</div> - <div class="verse indent0">Cançada de seguir-te andar pouzando</div> - <div class="verse indent0">A rolinha estrangeira, e sócia tua,</div> - <div class="verse indent0">Á lira despirei do inverno o musgo;</div> - <div class="verse indent0">E n’ella, de aureas cordas melhorada,</div> - <div class="verse indent0">Só de ti chêo, na presença tua,</div> - <div class="verse indent0">Brotarei versos, como brotas flores.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Oh voa, acode a consolar Cibele,</div> - <div class="verse indent0">Cibele a térrea mãi da especie humana,</div> - <div class="verse indent0">Cibele, amores teus, qual tu Deidade!</div> - <div class="verse indent0">Se ora a visses! ... do carro verdejante</div> - <div class="verse indent0">Os rebeldes tufões a derrubarão:</div> - <div class="verse indent0">Co’a trança descomposta, o manto em rios,</div> - <div class="verse indent0">A altiva c’roa em parte destruida,</div> - <div class="verse indent0">Nua jaz á vergonha, ao vento, á neve.</div> - <div class="verse indent0">Seu tanto desamparo he mágoa aos filhos:</div> - <div class="verse indent0">Mas para dar-lhe a mão, torna-la a Nume,</div> - <div class="verse indent0">Poder, qual em ti ha, não ha nos homens:</div><span class="pagenum"><a id="Page_61"></a>[61]</span> - <div class="verse indent0">Do fundo do teu lodo a ti só chama,</div> - <div class="verse indent0">Ai, leve-te algum vento as queixas d’ella!</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">As torrentes sem freio divagando</div> - <div class="verse indent0">Contra marmóreas pontes indignadas,</div> - <div class="verse indent0">Investem, chocão, despedação, rojão</div> - <div class="verse indent0">Ruinas em montoẽs aos fundos mares.</div> - <div class="verse indent0">As Dríades, teu povo e tua gloria,</div> - <div class="verse indent0">Tremem, oh dor! ao furioso assalto</div> - <div class="verse indent0">D’Euros, e Notos, e Africos em guerra:</div> - <div class="verse indent0">A seu brutal furor nenhuma escapa:</div> - <div class="verse indent0">Crer-se-hia que as prisões da Eolia furna</div> - <div class="verse indent0">Para sempre arrazára a mão de Jove.</div> - <div class="verse indent0">Dríades nobres de arvores antigas,</div> - <div class="verse indent0">Refugio outr’ora das calmosas séstas;</div> - <div class="verse indent0">Dríades bellas de arvores vaidosas</div> - <div class="verse indent0">Co’a idade juvenil, verdura e fôrças,</div> - <div class="verse indent0">Tem a seus pés quaes vítimas caído.</div> - <div class="verse indent0">Co’os negros frutos oliveira amiga</div> - <div class="verse indent0">Baqueou; não lhe valeo celeste guarda;</div> - <div class="verse indent0">E Minerva prantêa o estrago enorme:</div> - <div class="verse indent0">Cáe o pinheiro amedrontando os valles,</div> - <div class="verse indent0">E Pan, sentado nos troncados restos,</div> - <div class="verse indent0">Triste espera por ti co’a flauta muda.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">¿D’esta cabana a rustica fogueira</div> - <div class="verse indent0">Sabes quem a sustenta? ah! corre, vôa:</div> - <div class="verse indent0">Cedro, que eu te sagrei, caío por terra,</div> - <div class="verse indent0">E onde brincou favonio estalão chamas.</div> - <div class="verse indent0">Mui tarde chegarás se não-te apressas;</div> - <div class="verse indent0">Do colono e pastor os ais te invocão,</div> - <div class="verse indent0">A mesma natureza he morta quasi!</div><span class="pagenum"><a id="Page_62"></a>[62]</span> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Que fragor, que trovão! piedade ó Numes!...</div> - <div class="verse indent0">Este deu raio, e pérto.—Outro rebrama!...</div> - <div class="verse indent0">O Olimpo sobre nós desaba em fogo!</div> - <div class="verse indent0">Chlóe, e Amarilis trémulas, gritando,</div> - <div class="verse indent0">Desfeita a rubra côr em côr da morte,</div> - <div class="verse indent0">Enchem de seu terror esta cabana.</div> - <div class="verse indent0">O’ innocentes, miseras pastoras,</div> - <div class="verse indent0">Não griteis, não tremais; vereis em breve</div> - <div class="verse indent0">Dissipado este horror nos longes ares;</div> - <div class="verse indent0">Contra o crime orgulhoso os Deoses troão,</div> - <div class="verse indent0">Não fere o raio a rusticos alvergues.</div> - <div class="verse indent0">Não, não me engano, ouvís como se afasta?</div> - <div class="verse indent0">Como la vai ja longe? o mais do estrondo</div> - <div class="verse indent0">Ja he toada vã no vão dos bosques.</div> - <div class="verse indent0">Chuva propícia em caudalosa enchente</div> - <div class="verse indent0">Desce na escuridão; resoa o této</div> - <div class="verse indent0">Com o crebro saltitar das frias gotas:</div> - <div class="verse indent0">Sibila o vento na vizinha serra.</div> - <div class="verse indent0">Chlóe a porta fechou: nós apertâmos</div> - <div class="verse indent0">O cerco estreito em deredor do fogo.</div> - <div class="verse indent0">Cantou o gallo esperto: he meia noite!</div> - <div class="verse indent0">E eu vélo ainda, e velarei saudoso</div> - <div class="verse indent0">As horas todas que á manhã precedem!</div> - <div class="verse indent0">Horas, horas de paz no horror das trevas;</div> - <div class="verse indent0">Horas de estro, misterio, omnipotencia</div> - <div class="verse indent0">Ao que nasceo das Musas bafejado!</div> - <div class="verse indent0">Sonhe a ambição com purpuras, e scetros;</div> - <div class="verse indent0">Torpe avareza com os inuteis cofres;</div> - <div class="verse indent0">A vingança, fatal a si e aos outros,</div> - <div class="verse indent0">Cogite embora nas traições, no engano,</div> - <div class="verse indent0">Nos agudos punhaes, no sangue em jorros;</div> - <div class="verse indent0">Vulgar amante afine, esmere astucias,</div> - <div class="verse indent0">Com que succumba a tímida innocencia,</div><span class="pagenum"><a id="Page_63"></a>[63]</span> - <div class="verse indent0">E aos laços venha destramente armados:</div> - <div class="verse indent0">Eu dando a amor o que se deve ao sono,</div> - <div class="verse indent0">Em chama pura, porque he tua, ardendo,</div> - <div class="verse indent0">Alégro com teu Nome a horrenda noite,</div> - <div class="verse indent0">A saudade em saudades apascento,</div> - <div class="verse indent0">E inda ausente, comtigo ausente fallo.</div> - <div class="verse indent0">Como o perdido em temeroso escuro,</div> - <div class="verse indent0">Que ao mais leve rumor trémulo pára,</div> - <div class="verse indent0">Assacinos agoura em cada tronco,</div> - <div class="verse indent0">Não ouza resfolgar, prosegue a medo,</div> - <div class="verse indent0">Aqui lhe surde a silva, alem penedos,</div> - <div class="verse indent0">E lhe abrem fauces mil os precepicios,</div> - <div class="verse indent0">Só tem na aurora esp’rança, e mal que ao longe</div> - <div class="verse indent0">Annuncios d’ella vê, canta e renasce;</div> - <div class="verse indent0">Serei mais que feliz pois vas ser minha,</div> - <div class="verse indent0">Mal te sonhar ao longe, ó Primavera.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Sim: eu te amo inda mais que a vide ao tronco,</div> - <div class="verse indent0">Mais do que o touro em maio ama a novilha;</div> - <div class="verse indent0">Quero-te mais que o Deos de amor ás trevas,</div> - <div class="verse indent0">Mais do que Flora ao Zéfiro inconstante.</div> - <div class="verse indent0">Eu suspiro por ti, como suspira</div> - <div class="verse indent0">Murchada planta por sereno orvalho,</div> - <div class="verse indent0">E ardente ceifador por fresca fonte:</div> - <div class="verse indent0">Es-me tão cara como a bella esposa</div> - <div class="verse indent0">A seu amante de chorar cançado,</div> - <div class="verse indent0">Quando no dia d’hirneneo se abração:</div> - <div class="verse indent0">Tão doce emfim como o primeiro beijo,</div> - <div class="verse indent0">Que uma terna pastora, a medo e a furto,</div> - <div class="verse indent0">Consente ao seu pastor levar-lhe aos labios.</div> - <div class="verse indent0">Qual dos amores, que no mundo girão,</div> - <div class="verse indent0">He mais grato que o meu? Este em delícias</div> - <div class="verse indent0">Excede tanto aos mais, como tu vences,</div><span class="pagenum"><a id="Page_64"></a>[64]</span> - <div class="verse indent0">Tu belleza do ceo, do mundo as bellas:</div> - <div class="verse indent0">Eu amo e para amar não me recato,</div> - <div class="verse indent0">Ao mundo inteiro meu ardor confesso,</div> - <div class="verse indent0">Tenho rivaes e do ciume zombo,</div> - <div class="verse indent0">Gozo-te, e nem pudor nem leis mo estorvão.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Inda me está lembrando (hora doirada!)</div> - <div class="verse indent0">Quando longe do mundo, e a sós comtigo,</div> - <div class="verse indent0">Pela primeira vez te disse “Eu te amo!”</div> - <div class="verse indent0">Abria a Aurora o roxo mez das flores:</div> - <div class="verse indent0">Juntas em córos no arvoredo as aves,</div> - <div class="verse indent0">De ramo em ramo aos ranchos adejando,</div> - <div class="verse indent0">Em nunca ouvidos sons a luz saudavão:</div> - <div class="verse indent0">Inda do puro rio a opaca nevoa</div> - <div class="verse indent0">Bem não era desfeita ao sol nascido;</div> - <div class="verse indent0">Inda das folhas concavas pendião</div> - <div class="verse indent0">Trémulas gotas de luzente orvalho,</div> - <div class="verse indent0">Que depois leva o brincador Favonio;</div> - <div class="verse indent0">Quando (ai memoria doce!) eu dei comtigo</div> - <div class="verse indent0">Inda meia a dormir na fofa relva.</div> - <div class="verse indent0">N’alguns louros de roda entretecida</div> - <div class="verse indent0">Hera tenaz um toldo te formava:</div> - <div class="verse indent0">O melro grave, o rouxinol cadente,</div> - <div class="verse indent0">Para encantar-te os sonhos, diffundião</div> - <div class="verse indent0">Entre uns rosaes a musica dos prados;</div> - <div class="verse indent0">Enchia aroma puro os puros ares.</div> - <div class="verse indent0">Ligeiras, bellas Sílfides, velando</div> - <div class="verse indent0">Invisiveis teu placido retiro,</div> - <div class="verse indent0">Impedião que um Fauno petulante</div> - <div class="verse indent0">Ou rustico pastor pozessem olhos</div> - <div class="verse indent0">Em teu corpo sem véo, cheio de encantos.</div> - <div class="verse indent0">Alí me conduzio propicio acazo:</div> - <div class="verse indent0">Não mo impedirão Sílfides zelosas,</div><span class="pagenum"><a id="Page_65"></a>[65]</span> - <div class="verse indent0">A natureza inteira he franca ao vate.</div> - <div class="verse indent2">Ridente sono, da innocencia imagem,</div> - <div class="verse indent0">Cerrava ainda os olhos teus ao dia:</div> - <div class="verse indent0">Todo brandura o juvenil semblante,</div> - <div class="verse indent0">Até sem o saber, até dormindo,</div> - <div class="verse indent0">Faria suspirar homens e feras.</div> - <div class="verse indent0">Entre a face mimosa e a fria relva</div> - <div class="verse indent0">Tinhas meio curvado o braço lindo:</div> - <div class="verse indent0">Como ao desdem, na esquerda seguravas</div> - <div class="verse indent0">A cornucopia, a não poder com flores:</div> - <div class="verse indent0">Halito doce de fragancia amena</div> - <div class="verse indent0">Sáe do seio, que túrgido se eleva;</div> - <div class="verse indent0">Dos roseos labios, da pequena boca</div> - <div class="verse indent0">Vem tão doce, vem tal, que um peito humano</div> - <div class="verse indent0">Bafejado por elle, excede os numes,</div> - <div class="verse indent0">E a alma, em vez de pensar, delicias volve.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Tal eras, tal fiquei ó Primavera!</div> - <div class="verse indent0">Espertaste de todo; e toda risos,</div> - <div class="verse indent0">E todos luz e amor os olhos verdes,</div> - <div class="verse indent0">O que era ja sem termo accrescentaste,</div> - <div class="verse indent0">Dobrou-se a graça ao mundo, o fogo aos peitos.</div> - <div class="verse indent0">Um mar de deleitosas fantasias</div> - <div class="verse indent0">Me soçobrou, confesso, e tempo largo</div> - <div class="verse indent0">Jazi com o ledo mundo em braços da alma.</div> - <div class="verse indent0">Depois tornando em mim, ví-te ja prestes</div> - <div class="verse indent0">Para baixar do outeiro aos amplos valles:</div> - <div class="verse indent0">Quão mais louçã, e em galas mais garrida!</div> - <div class="verse indent0">¿Que muito, se a mais nova das trez Graças,</div> - <div class="verse indent0">De tuas mil Oréades servida,</div> - <div class="verse indent0">Pozera as proprias mãos ao vago enfeite?</div> - <div class="verse indent0">Erão-te manto ondado, e roupas simples,</div> - <div class="verse indent0">Quanto verde ha na terra, e flor nas plantas;</div><span class="pagenum"><a id="Page_66"></a>[66]</span> - <div class="verse indent0">Mas triunfava a rosa! aos botões d’ella,</div> - <div class="verse indent0">Nem ja todos botões, nem flores todos,</div> - <div class="verse indent0">Fôra o tépido seio em throno dado,</div> - <div class="verse indent0">E em vez de o embellezar, se ornavão d’elle:</div> - <div class="verse indent0">Erão raios do Sol a c’roa tua!...</div> - <div class="verse indent0">Parei de embevecido! e quem no mundo</div> - <div class="verse indent0">Te vio jamais como te vio teu vate?</div> - <div class="verse indent0">Em teu seio amoroso um Cupidinho,</div> - <div class="verse indent0">Qual borboleta d’oiro, esvoaçava</div> - <div class="verse indent0">De botões a botões, na escolha incerto.</div> - <div class="verse indent0">Vio-me; e curto farpáõ, doirado, agudo,</div> - <div class="verse indent0">Curto farpáõ que os olhos não percebem,</div> - <div class="verse indent0">Me arrojou, me sumio dentro no peito.</div> - <div class="verse indent0">Graças ao tiro do mimoso Alado!</div> - <div class="verse indent0">Na profundez da f’rida, e gôstos d’ella,</div> - <div class="verse indent0">Contente reconheço, adoro um Nome.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Amante, desde então, ditoso amante,</div> - <div class="verse indent0">De dia a dia te encontrei mais terna.</div> - <div class="verse indent0">Incenso, que antes dava a falsas Musas,</div> - <div class="verse indent0">Off’reci-te, acceitaste, e foste a minha.</div> - <div class="verse indent0">Abriste-me a Aganippe em cada arroio,</div> - <div class="verse indent0">Cada monte foi Pindo, e Tempo os valles:</div> - <div class="verse indent0">E tu em cada valle, em cada monte,</div> - <div class="verse indent0">Ante a lua, ante o sol, me estavas sempre</div> - <div class="verse indent0">Musa do coração, presente aos olhos.</div> - <div class="verse indent0">De poetas foi sonho a voz das outras,</div> - <div class="verse indent0">A tua graciosa ciciava,</div> - <div class="verse indent0">De toda a parte vinha em tom macio,</div> - <div class="verse indent0">Que filtra inspirações, e a amor contenta.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Se os de ambições miserrimos forçados</div> - <div class="verse indent0">Que ás cidades dão vida, e a si a roubão,</div><span class="pagenum"><a id="Page_67"></a>[67]</span> - <div class="verse indent0">Podessem vir um dia onde tu reinas!</div> - <div class="verse indent0">Se a mente que as paixões lhes anuvião,</div> - <div class="verse indent0">E olhos em que os cuidados, seus verdugos,</div> - <div class="verse indent0">Atárão com trez nós perpétua venda,</div> - <div class="verse indent0">Podessem ver-te a luz deliciosa,</div> - <div class="verse indent0">O manso da alegria, os gostos puros!...</div> - <div class="verse indent0">Deixando sem adeos tumulto e pompas,</div> - <div class="verse indent0">Mais de um, mais de um, salvando a tempo os filhos,</div> - <div class="verse indent0">Co’as pouzadas dos bons unirra a sua.</div> - <div class="verse indent0">E a quem darás tu nunca o riso cheio,</div> - <div class="verse indent0">Como o déras a este, que trocasse</div> - <div class="verse indent0">Oiro a virtude, e marmores a flores?</div> - <div class="verse indent0">¿Que ja sôlto de si e a si tornado,</div> - <div class="verse indent0">Viesse pôr, para os livrar de queda</div> - <div class="verse indent0">E adora-los em ocio, os seus penates</div> - <div class="verse indent0">Á beira de uma límpida corrente,</div> - <div class="verse indent0">Que de um bosque atravéz susurra e foge.</div> - <div class="verse indent0">Víra os Genios da terra o anno inteiro</div> - <div class="verse indent0">A lhe aprestar a mesa; aqui brotando a</div> - <div class="verse indent0">No pomar curvo, ali na horta regada,</div> - <div class="verse indent0">Lá no chão da seara, alem na vinha</div> - <div class="verse indent0">Que o recôsto do outeiro alastra e enreda,</div> - <div class="verse indent0">Mais longe nos cabeços verdejantes</div> - <div class="verse indent0">Onde o gado em socego os leites cria.</div> - <div class="verse indent0">Não lhe ameaçára o raio o této humilde:</div> - <div class="verse indent0">As manhãs, d’entre as ramas espreitando</div> - <div class="verse indent0">Pela aberta janella, o acordarião,</div> - <div class="verse indent0">Por lhe alargar a vida: os passarinhos</div> - <div class="verse indent0">Lhe dirão nas frescas alvoradas</div> - <div class="verse indent0">“Bem vindo, alegre amigo, ás nossas casas!</div> - <div class="verse indent0">Nós cantamos teu Deos, somos felizes,</div> - <div class="verse indent0">Tu louva o nosso, e goza d’este mundo.”</div> - <div class="verse indent0">Se algum cuidado a vespera deixasse,</div><span class="pagenum"><a id="Page_68"></a>[68]</span> - <div class="verse indent0">Levar-lho-hia na vêa murmurante</div> - <div class="verse indent0">A correntinha onde lavasse o rosto.</div> - <div class="verse indent0">Vê zagalas fieis, vê perigrinas</div> - <div class="verse indent0">De formosura e joias não compradas,</div> - <div class="verse indent0">(Que uma da-lha a saude, outras o prado);</div> - <div class="verse indent0">Com ellas espairece a fantasia,</div> - <div class="verse indent0">E se inda o coração quer mais ventura,</div> - <div class="verse indent0">Ama; ao ceo que ja tinha, um Deos lhe accresce!</div> - <div class="verse indent0">Quanto via e pasmava em mortos quadros,</div> - <div class="verse indent0">Onde astuto pincel prodigios obra,</div> - <div class="verse indent0">Sombras vãs, cujo preço he rios d’oiro,</div> - <div class="verse indent0">Tudo agora real, vivo, mais bello,</div> - <div class="verse indent0">De mais subida mão pintura immensa,</div> - <div class="verse indent0">De graça lhe cercára o lar e a vida.</div> - <div class="verse indent0">Mas ah! porque me sólto em vãs ideas!</div> - <div class="verse indent0">Embora o preço teu não saiba o mundo,</div> - <div class="verse indent0">Primavera, eu te adoro e tu me afagas:</div> - <div class="verse indent0">Caro co’a lira vezes mil teu nome,</div> - <div class="verse indent0">E tu me infloras magamente a lira:</div> - <div class="verse indent0">Em longo mútuo abraço almas trocâmos;</div> - <div class="verse indent0">A minha he mansidão, frescor, perfume,</div> - <div class="verse indent0">Toda a tua, poesia, amor, extremos.</div> - <div class="verse indent0">Lanças-me em teu regaço, e quando a noite</div> - <div class="verse indent0">A lira e cornucopia aos dois nos furta,</div> - <div class="verse indent0">Das-me dormir co’a fronte no teu seio,</div> - <div class="verse indent0">D’onde me vem coando uns sonhos leves,</div> - <div class="verse indent0">Todos teus, todos candidos, na fórma</div> - <div class="verse indent0">De flores, de aves, de amorinhos, de auras.</div> - <div class="verse indent0">Assim, me queres teu até no sono!</div> - <div class="verse indent0">E porque sombras más o não perturbem,</div> - <div class="verse indent0">Mo ficas a velar á luz dos astros,</div> - <div class="verse indent0">O semblante pacífico ao sereno,</div> - <div class="verse indent0">Os olhos no ceo da alva, e o peito amores.</div><span class="pagenum"><a id="Page_69"></a>[69]</span> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Mas tu ... porque não vens?—Não não me engano,</div> - <div class="verse indent0">Inda agora os trovões rijo batalhão.</div> - <div class="verse indent0">Talvez rola n’esta hora a tempestade</div> - <div class="verse indent0">Pelo oceano de Atlante ondas sobre ondas;</div> - <div class="verse indent0">Rugindo estoira o mar em crespas serras:</div> - <div class="verse indent0">Possança de baixeis, esfôrço, industria</div> - <div class="verse indent0">Não vale a contrastar-lhe a valentia;</div> - <div class="verse indent0">De toda a parte a morte esvoaça, ruge</div> - <div class="verse indent0">Na horrenda cerração com sons do averno;</div> - <div class="verse indent0">O náufrago abraçado a sôlto lenho,</div> - <div class="verse indent0">De toda a parte a vê, a ouve, a sorve;</div> - <div class="verse indent0">Vai a abismos e a ceos repulso d’ambos,</div> - <div class="verse indent0">E perde, antes da vida, a luz e a mente.</div> - <div class="verse indent0">Sumio-se o ultimo audaz de sôbre as aguas!</div> - <div class="verse indent0">De nuvens atro veo submerge a lua;</div> - <div class="verse indent0">Não luz na escuridade alguma estrella;</div> - <div class="verse indent0">He o luto do Homem forte! Ó Mar és livre!</div> - <div class="verse indent0">Triunfaste, adormece.—Ah que de vezes</div> - <div class="verse indent0">Taes scenas, tal horror, maior, mais negro,</div> - <div class="verse indent0">Nos tem de si brotado a umbrosa quadra!</div> - <div class="verse indent0">Ó tu contrária sua, o tu dos homens</div> - <div class="verse indent0">Sempre invocada amiga, ethéreo Nume,</div> - <div class="verse indent0">A quem ceo, terra e mar dão vassallagem,</div> - <div class="verse indent0">Onde estás, que não vens com um leve assopro</div> - <div class="verse indent0">Trazer serenidade aos elementos?</div> - <div class="verse indent0">Se inda és a mesma, e súpplicas te movem,</div> - <div class="verse indent0">Sobe ao carro da aurora, os ares fende,</div> - <div class="verse indent0">E acode ao Luso clima, onde te invocão.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">¿Lembra-te a gruta, a gruta onde Amarilis</div> - <div class="verse indent0">De seu ja quasi esposo Umbrano, o astuto,</div> - <div class="verse indent0">Acceitou, de sincera, a grave aposta?</div> - <div class="verse indent0">Qual era, que o pastor lhe não podia</div><span class="pagenum"><a id="Page_70"></a>[70]</span> - <div class="verse indent0">Dar n’uma tarde tantos beijos, tantos,</div> - <div class="verse indent0">Como as folhas do plátano vizinho,</div> - <div class="verse indent0">Sendo o premio da aposta inda outro beijo?</div> - <div class="verse indent0">¿Aquella gruta, onde ambos consumirão</div> - <div class="verse indent0">Um dia teu, a adivinhar a ponto</div> - <div class="verse indent0">Todas as graças do primeiro filho;</div> - <div class="verse indent0">E só no sexo os votos discordavão,</div> - <div class="verse indent0">Porque Umbrano pintava outra Amarilis,</div> - <div class="verse indent0">E Amarilis raivosa um novo Umbrano?</div> - <div class="verse indent0">Pois n’essa, n’essa gruta os meus amigos</div> - <div class="verse indent0">Para hospedar-te um grão festejo tração.</div> - <div class="verse indent0">Pôr-se-ha do cedro á sombra altar gramíneo</div> - <div class="verse indent0">Com seus flóreos listões, onde c’roados</div> - <div class="verse indent0">Te libem vinho annoso e leite puro,</div> - <div class="verse indent0">Concertando himnos teus com lira e flautas.</div> - <div class="verse indent0">O lavrador da proxima campina,</div> - <div class="verse indent0">A estirada cantiga aos bois tardios</div> - <div class="verse indent0">Parando calará, para escutar-nos.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Então, então começa o tempo d’oiro,</div> - <div class="verse indent0">Folgão no campo os naturaes prazeres,</div> - <div class="verse indent0">E a rustica alegria apraz aos deoses.</div> - <div class="verse indent0">Aqui, apoz as candidas ovelhas,</div> - <div class="verse indent0">Vai trigueira, descalça pastorinha</div> - <div class="verse indent0">Aos echos do arredor cantando amores;</div> - <div class="verse indent0">Ali galhudo Sátiro se esconde</div> - <div class="verse indent0">Para colher alguma Ninfa errante;</div> - <div class="verse indent0">Alem com ledos sons retine o bosque,</div> - <div class="verse indent0">O riso ferve, as flautas se misturão;</div> - <div class="verse indent0">Mais longe, aos pés de mal fingida ingrata,</div> - <div class="verse indent0">Se exhalão rogos apiedando as selvas.</div> - <div class="verse indent0">Um favonio subtil encrespa as ágoas,</div> - <div class="verse indent0">E enfada a Ninfa, que estudava uns geitos</div><span class="pagenum"><a id="Page_71"></a>[71]</span> - <div class="verse indent0">De se enfadar com quem de amor lhe falle.</div> - <div class="verse indent0">Priapo brincador gira saltando</div> - <div class="verse indent0">Nos jardins, nos vergeis, e nos pomares,</div> - <div class="verse indent0">Ramos bate, alvorota o plúmeo bando,</div> - <div class="verse indent0">Que foge, mas de Amor não foge ás settas.</div> - <div class="verse indent0">Amor e seus irmãos, com o facho em punho,</div> - <div class="verse indent0">Lanção tacito fogo a quanto existe.</div> - <div class="verse indent0">Junto da verde faia susurrando</div> - <div class="verse indent0">Se ouve outra faia um não sei que, tão doce,</div> - <div class="verse indent0">Que aos amantes apraz o seu murmúrio.</div> - <div class="verse indent0">Do rebanho o marido entre o rebanho</div> - <div class="verse indent0">Bala amoroso, e todas lhe respondem:</div> - <div class="verse indent0">Pela novilha se enfurece o toiro,</div> - <div class="verse indent0">Accomette o rival, goza o triunfo.</div> - <div class="verse indent0">Côr de neve, innocentes cordeirinhos</div> - <div class="verse indent0">Ja balão na verdura, ja recresce</div> - <div class="verse indent0">Maravilhando a serra, a grei profusa</div> - <div class="verse indent0">Das erradias cabras saltadoras:</div> - <div class="verse indent0">A nova creação corre exultando;</div> - <div class="verse indent0">Aquelle foge, os outros o perseguem,</div> - <div class="verse indent0">Voltão, saltão, empinão-se, discorrem</div> - <div class="verse indent0">Por toda a parte n’um momento o prado;</div> - <div class="verse indent0">Cresce o leite, e o pastor a quem ja faltão</div> - <div class="verse indent0">Cinchos para o queijar, tarros que o levem,</div> - <div class="verse indent0">Lédo se enraiva com riquezas tantas.</div> - <div class="verse indent0">Todo o arredor da aldea he movimento,</div> - <div class="verse indent0">Contente lida, esp’rança, amenidade.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Porque se hão de calar da infancia os brincos?</div> - <div class="verse indent0">A infancia he primavera, he mundozinho</div> - <div class="verse indent0">Florente, de que nasce um grande mundo.</div> - <div class="verse indent0">Menino á espreita e mudo entre as silveiras,</div> - <div class="verse indent0">Apoz o som do grillo o vai buscando;</div><span class="pagenum"><a id="Page_72"></a>[72]</span> - <div class="verse indent0">Outro os ramos envisca, as redes arma;</div> - <div class="verse indent0">Prêzo de longo fio ao pé mimoso</div> - <div class="verse indent0">Passarinho pelo ar chirla e revoa,</div> - <div class="verse indent0">E crendo-se de novo o rei do espaço,</div> - <div class="verse indent0">De inconstante creança um dedo o rege.</div> - <div class="verse indent0">Um mais travêsso, ás árvores trepado,</div> - <div class="verse indent0">Nos ramos se embalança, ou furta os ninhos;</div> - <div class="verse indent0">Outro mais atrevido, emvão forceja</div> - <div class="verse indent0">Por montar no carneiro, que se escapa,</div> - <div class="verse indent0">Fazendo ao longe retinir os bosques</div> - <div class="verse indent0">Co’ o crebro som da aguda campainha.</div> - <div class="verse indent0">Tenra menina um malmequer desfolha,</div> - <div class="verse indent0">E pelo amor da mãi á flor pergunta;</div> - <div class="verse indent0">Em quanto seus irmãos vão na corrente</div> - <div class="verse indent0">Pôr de cortiça um concavo barquinho.</div> - <div class="verse indent0">Na luta, na carreira apostas fervem.</div> - <div class="verse indent0">Oh! da infancia do mundo amaveis scenas!</div> - <div class="verse indent0">Se inda as virtudes sôbre a terra existem,</div> - <div class="verse indent0">Se inda existe o prazer, o socio d’ellas,</div> - <div class="verse indent0">He no campo, no campo; e a quadra tua</div> - <div class="verse indent0">Nos mostra, ó Primavera, este prodigio.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">Mas da fogueira as chamas enfraquecem!</div> - <div class="verse indent0">Ja os gallos das proximas cabanas</div> - <div class="verse indent0">Vão começando a annunciar-me o dia:</div> - <div class="verse indent0">Que som grato! que enlêvo estar sentindo</div> - <div class="verse indent0">Por um sereno albor, estes vizinhos</div> - <div class="verse indent0">Nuncios da aurora, a cuja voz respondem</div> - <div class="verse indent0">Outros aqui e alem, com voz diversa!</div> - <div class="verse indent0">Sim, o dia começa: a luz nascente</div> - <div class="verse indent0">Pelas fendas do této está brilhando.</div> - <div class="verse indent0">Eis-me só junto ao lar! quem sabe ha quanto</div> - <div class="verse indent0">Se irião meus bons hospedes ao colmo:</div><span class="pagenum"><a id="Page_73"></a>[73]</span> - <div class="verse indent0">Agora em doce paz lá estão dormindo.</div> - <div class="verse indent0">Que breve noite! e he finda; ah toda he finda!</div> - <div class="verse indent0">Da fresta, onde cheguei, contemplo os ares,</div> - <div class="verse indent0">E claro vejo o ceo, de nuvens limpo:</div> - <div class="verse indent0">Mal brilha no horizonte a estrella d’alva.</div> - <div class="verse indent0">E os olhos meus (oh dor!) só descobrirem</div> - <div class="verse indent0">Como por um véo denso a natureza!</div> - <div class="verse indent0">Os montes que longissimo se alcanção</div> - <div class="verse indent0">De vinhas e arvoredo entresachados,</div> - <div class="verse indent0">O rio ao longe a fulgurar co’as ondas,</div> - <div class="verse indent0">Os remotos cazaes da gente humilde</div> - <div class="verse indent0">Pelas verdes campinas alvejando,</div> - <div class="verse indent0">Não vê-los eu! não ver!... Mas que murmúrio</div> - <div class="verse indent0">Sólta a folhagem do loureiro antigo,</div> - <div class="verse indent0">Que defronte de mim remonta aos ares?</div> - <div class="verse indent0">O Favonio acordou, que hontem de tarde,</div> - <div class="verse indent0">Cançado de girar, adormecêra</div> - <div class="verse indent0">Junto á cascata no pomar sombrio.</div> - <div class="verse indent0">Vai subito partir: em curtas horas</div> - <div class="verse indent0">Será comtigo, e te dirá meus versos.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">Meus Amores, adeos! adeos meu Nume!</div> - <div class="verse indent0">Da Epistola a resposta a vinda seja.</div> - </div> -</div> -</div> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_74"></a>[74]</span></p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_75"></a>[75]</span></p> - -<h2 class="nobreak" id="O_DIA_DA_PRIMAVERA">O DIA DA<br /> -PRIMAVERA<br /> -POEMETTO EM DOIS CANTOS</h2> - -</div> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_76"></a>[76]</span></p> - -<p><i>Em dois Cantos se divide agora este Poema, -para commodo de quem lê. Entendi em apertar -melhor que da primeira vez, este feixe de -flores, se o he: algumas deitei fóra sem fazerem -mingoa; as demais forão refrescadas, e se -me não engano mais algum viço ganharão. -Puz-lhe com tão boa vontade as mãos como na -Epistola: pelo que, sem deixar de ser o -mesmo, he outro; he o mesmo no essencial e -intrinseco, todo outro no lustre e na toada.</i></p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_77"></a>[77]</span></p> - -<h3 class="nobreak" id="DIA_DEDICATORIA">DEDICATORIA<br /> -A MINHA MÃI.</h3> - -</div> - -<p><i>Á maneira das arvores, que acordando do -sono do inverno ao bafo omnipotente da primavera, -como que ressuscitão com o riso e vida -nos primeiros olhos e flores, o meu engenho -começa a matizar-se das suas, com a tornada -d’estes dias puros e deleitosos aos amigos do -campo. As primicias, que d’ellas pude colher, -forão para a grinalda que apresentei na Festa -da Primavera celebrada com os meus amigos. -Depois de a haver tirado do altar da Deosa -que governa a mocidade do anno, a quem senão -a ti, ó minha Mãi, devêra offerecer esta -grinalda? sim: outrem qualquer a engeitára -por de nenhum preço; de ti sei eu certo que -lhe acharás uma graça especial, mais finas côres, -e fragrancias mais suaves: emfim me atrevo -esperar que póstos amorosamente os olhos na -minha Obra, entenderás, sem o dizer, como eu -sinto todo o amoroso da gratidão, ao cuidar em -quem me deo alem do ser, a educação, e todos -os mais carinhosos desvelos: alguns suspiros e -lagrimas, para cúmulo da minha felicidade, serão -talvez por ti, ó minha Mãi, espalhados na -minha ausencia.</i></p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_78"></a>[78]</span></p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_79"></a>[79]</span></p> - -<h3 class="nobreak" id="DIA_HISTORIA">HISTORIA DA FESTA<br /> -DA<br /> -<i>PRIMAVERA</i>.</h3> - -</div> - -<p>Remontando a vêa do Mondego até obra de -um quarto de legua para cima da Cidade, encontra-se -na margem do poente um gracioso -retiro, selvatico sem aspereza, e como que enfeitado -sem arte: dissereis que em hora de contentamento -o fizera a Natureza, para algum -dia hospedar no regalo d’aquellas suas sombras -um ajuntamento de poetas seus. De <i>Lapa dos -Esteios</i> pozerão nome ao sítio em dias remotos, -segundo soa, os vinhateiros e pomareiros -que de umas e outras varzeas do rio costumavão -acudir ali por paos, com que estear suas -parreiras e arvores derreadas com o pezo da -fruta. Ainda permanece o nome, porem ja -o arvoredo se não desbarata pelos vizinhos, e -a Lapa, de tão solitaria e amena que he, parece -a appetecida estancia do Genio da liberdade.</p> - -<p>Entra-se por um breve cáes ornado de cinco -alterosas arvores, das quaes uma torcendo-se -toda para o rio, se debruça para saudar e cobrir<span class="pagenum"><a id="Page_80"></a>[80]</span> -com a sua sombra os bateis que chegão. -No tôpo do cáes, e fronteira a quem desembarca, -se alevanta um genero de muralha nativa -de rochedo, rôto em muitos seios. Esta penedia, -até aos nove ou dez palmos de altura, -sóbe nua e só ornada de sua mesma aspereza; -d’ahi para cima, como envergonhada -de sua dura condição, se esconde toda com um -frontal de heras, que ora resaem como cabeços -pendurados, ora se recolhem para fantasiarem -la por dentro suas grutazinhas e labirinthos, -d’onde ás vezes se estão vendo saír por um cabo -e por outro os passaros, que depois de beber -e se banharem na vêa da agoa, se empoleirão -pelos lamegueiros vizinhos, namorando e -cantando a suavidade e fresquidão de suas habitações. -Pelo lado direito d’esta aprazivel scena, -sóbe uma cerrada espessura de bosque pequeno, -onde os olhos se enleão na confusão de -troncos e folhagem: pelo esquerdo abre-se para -cima uma escada rustica mas commoda, de -doze degraos. Tecem-lhe estendido toldo dois -lamegueiros velhos, e outras arvores mais pequenas -se abração por ali, travadas com mil -voltas de hera. Dá esta subida em uma planura -sôbre o comprido com seus assentos de -ambas as bandas, isto he da terra e do rio, -o qual por entre um basto arvoredo, que d’ahi -por uma especie de promontorio, vai descendo -até lhe metter os pés na corrente, se está vendo -a furto transparecer: das primeiras cabeças -d’este arvoredo cáe para os assentos uma boa -a vedada sombra. O puro e perfumado dos<span class="pagenum"><a id="Page_81"></a>[81]</span> -ares, a vária presença da terra e aguas, o -susurrar dos ramos abanados da viração, as -melodiosas querellas das aves, em summa o -natureza enfeitada só de suas mãos, e paz e -descanço de deserto, são a fonte perenne dos -encantamentos d’este sítio. Uma ladeira suave -opposta á escada, e ainda mais sombreada, -despede em outro cáes com seus degraos nativos -de rocha até á agua. He este menos bem -assombrado que o primeiro: não tem relva, -nem arvore, nem verdura afóra ada muralha -no tôpo, toda velada de musgos, matizados com -seus tufos de fetos silvestres, congossas e um -sem numero de outras plantas e ervas, sobresaindo -a espaços alguns ramos solitarios de -figueira brava: mas o que de interior graça -lhe fallece, lho compensa a larga vista que para -fóra desfruta.</p> - -<p>Era chegado o primeiro dia de primavera. -Tratado e assentado estava de ha muito entre -mim e meus amigos, como iriamos passa-lo -juntos, em uma romaria e festa poetica á -honra d’aquella mais formosa parte do anno. -Não faltavão á volta da Cidade muitos sitios -accommodados ao intento, antes não creio que -possa haver no mundo outra verdadeira Arcadia, -que em tão pequeno espaço resuma tantos: -mas d’entre todos coube á Lapa dos Esteios -a palma da competencia. De doze se -compunha o rancho, todos amigos, poetas e -academicos.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_82"></a>[82]</span></p> - -<p>Por volta de meio dia, pouco mais, nos -ajuntámos com muita alegria e abraços, e todos -com as nossos ramalhetes de primavera -nas mãos, nos pozemos alvoraçadamente em -caminho para o rio, onde ja o barco nos -aguardava. O ar estava puro: contra o sol -que ardia rijo, nos acudia com refrigerio -um pouco vento, que ao mesmo tempo nos -fazia mui boa feição para contrastar a corrente. -Saltámos e partimos.—Em quanto alguns -por um e outro bordo ajudavão o favor do -ar com o trabalho de suas varas, repellindo o -álveo, e fazendo-nos resvalar mais prestes á -medida de nossos desejos, os demais amotinavão -ao longe ambas as ribeiras com suas cantigas -de amores, entoadas em chusma. A cada -momento porem se quebrava por si o canto, -para se contemplar e encarecer o muito que a -natureza e o artificio podérão e soubérão crear -para enlevo de olhos, por ambas aquellas dilatadas -margens e campos: pradaria verde e florída, -outeiros risonhos, cazaes branqueados, -grangearia e recreação de quintas, pomares, -hortas, jardins, e mil arbustos curvos por entre -choupos e salgueiros até beijarem a agua, esse -era o painel em que meus amigos se hião enlevando, -e que a mim, que pelo longe que era -posto, o não podia nem por nevoas enxergar, -me desentranhou algum suspiro, dando-me -a sentir no meio da geral alegria alguns momentos -magoados, recostado na borda da embarcaçaõ.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_83"></a>[83]</span></p> - -<p>Mil couzas pequenas, e por ventura vãs (mas -quaes ha que sejão taes para gente moça em -dia de júbilo?) matizarão toda esta viagem: taes -como a grita que de subito alevantámos ao -passar por baixo do arco grande da ponte, -aonde as vozes, refletindo do massiço da cantaria, -nos ressortião para os ouvidos com uma -estranha soada, como que por aquella porta -e esteiro estivessemos entrando um mar nunca -d’antes descoberto; despedidas á Cidade que -de nós se alongava, branca e assentada em seu -monte, até que desapparecia, e ás margens que -para nós arremettião correndo com seus estendaes, -lavradores e rebanhos, para logo nos -passarem alem, fugir-nos e perderem-se; a -vista de um bando immenso de pombas, que -levantando-se espavoridas com a nossa passagem, -de um ilheo de arêa onde se estavão a -beber e banhar-se, nos atravessarão pela proa -e forão derramar-se todas queixosas pela ribanceira -vizinha; o ceo a espelhar-se inteiro -nas aguas ufanas de retratarem multiplicado -o sol da primavera com toda sua magnificencia: -semelhantes nadas produzião em somma -um genero de felicidade a estes moços Anacreontes -viajando, á qual, para de todo o ser, só -faltava poder durar.</p> - -<p>De instante para instante importunavamos -os barqueiros, perguntando insoffridos quanto -nos restava do caminho. Cuidava-se ver a Lapa -dos Esteios em quantas soledades apraziveis -nos apparecião ao longe. Emfim a apontárão<span class="pagenum"><a id="Page_84"></a>[84]</span> -com o dedo; levantão-se todos, todos com -clamor unísono a saudão. Saltámos logo no -primeiro cáes, deixando o nosso barco amarrado -a uma arvorezinha, que se algum curioso -vier visitar aquelle sitio, he a terceira da -parte esquerda. Uns de outros derramados, -nos fomos prestesmente por onde o acaso ou a -fantasia nos levavão, correndo e devassando -toda aquella solidão, que por algumas horas -vinhamos povoar: e tornando-nos a ajuntar no -alto, onde tão commodos assentos se nos deparavão. -“Esta Lapa disse um, para estancia -e habitação das Musas parece feita; por -aqui as heras pendem de toda a parte!” -Sobre o que, se procedeo logo á lição dos poemas -que todos levavamos. Aqui usarão meus -amigos para comigo de huma cortezia, de que -por mais que fiz me não foi possivel defender-me, -ordenando-me com seus rogos que os -meus versos, para os quaes o ultimo lugar em -tal companhia podéra ainda ser de muita honra, -rompessem antes de outros aquelle acto. -Estes, a que eu pozera o titulo que ainda tem -<i>O Dia da Primavera</i>, ja primeiro que o sitio -fosse escolhido se achavão feitos, rasão porque -não ha que procurar n’elles a pintura d’elle. -Concebêra eu um dia de Primavera levado pelos -campos em contentamento com aquelles companheiros; -tomei de minha livre imaginação o -que me pareceo bastaria para o encher; e poetei-o -sem me obrigar a nenhuma outra verdade.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_85"></a>[85]</span></p> - -<p><i>Elmiro</i> (que todos havião arcadicamente tomado -para si nomes de pastores) assim como -a leitura foi rematada, veio para mim com -um listão de heras nas mãos, e mo lançou, -a todo o poder que eu pude para me escusar, -do hombro direito ao lado esquerdo.—Seguio-se -<i>Anfrizo</i>, o qual em pé junto de mim, e -com uma coroa em punho, recitou uma formosa -Ode, toda floreada dos louvores que a -amisade lhe figurava poderem-me bem assentar; -e chegado que foi á ultima estrofe, me coroou -abraçando-me. Tambem a esta honra me -foi forçado ceder, com quanto claramente em -mim sentisse o muito que vinha mal empregada: -a amisade ordenava, o dia era seu, rendi-me. -Era a grinalda de artificiosissimo lavor, -mui fresca, e tecido de louros, heras e -cópia de flores naturaes; guardei-a com ufania -e como joia; quizera conserva-la para sempre, -mas representava gloria, e minha, murchou, -desfez se, largos annos ha que he pó, -e pó disperso.</p> - -<p>Dado que ja então fosse tal o meu triunfo, -qual nem em sonhos de ambição o podéra antever, -<i>Josino</i>, a cuja feiticeira Musa ja eu era, -muito havia, devedor, inda o subio de ponto, -lendo antes de um poema, pequeno em extensão -mas grande e grandissimo em merecimento, -um elogio a mim em tão delicados versos, -que não posso menos de perdoar-lhe a lisonja.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_86"></a>[86]</span></p> - -<p><i>Aulizo</i><a id="FNanchor_5" href="#Footnote_5" class="fnanchor">[5]</a> leo um longo poema intitulado -<i>A Primavera</i>, que todo respirava amor aos campos -e á virtude, ataviado de mui mimosas galas -poeticas, e de mui particular doçura e sabor -para os ouvidos: nem se cuide que sangue ou -amisade ou vãgloria me fazem fôrça para o -dizer, que antes o dissimulára eu, se o ser irmão -e amigo fossem partes para, quando a -todos os mais vou distribuindo seu preço, lho -sonegar a elle; e ainda assim talvez o não -ousára, se tão boas testemunhas não valessem -a confirma-lo.</p> - -<p>Foi esta leitura interrompida de uns sons de -flauta, que por cima das cabeças, e de mui -perto nos vinhão: era o meu caro amigo, Horacio -portuguez, José Fernandes de Oliveira -Leitão de Gouvea, que alvoraçando-nos e alvoraçado, -nos apparecia ao cimo da curta escada -que da Lapa sobe para a <i>Quinta das Canas</i>, -que lhe fica sobranceira. Forão tudo clamores -de alegria, recebendo entre nós, poetas -todos verdes, o nosso decano e patriarcha; -cercámo-lo com abraços, das mãos lhe furtarão -a flauta, foi levado de repente a todos os -recantos do nosso Parnaso, contando-lhe todos -á uma o que até ali se passára, que vezes -se fallára n’elle, e se desconfiára de sua promettida -vinda. Este homem amavel, jovial, -incapaz de estudadas gravidades, dado e corrente -com todos, bom sem merecimento de esfôrço,<span class="pagenum"><a id="Page_87"></a>[87]</span> -filosofo sem o cuidar, coração que ainda -não saío nem ja agora sairá da infancia, -homem só comsigo parecido, que a ninguem -imitou nunca, nem de outrem será nunca imitado, -e cuja vida, se alguem soubesse escrevê-la, -sairia tão original e unica como elle mesmo, -este digo, nascido para ser alma de qualquer -ajuntamento moço e alegre, tomou para -logo seu quinhão na Festa. Deu-se fim ao poema -interrompido com a chegada do novo socio, -que muitas outras vezes o tornou a interromper -com applaudir e abraçar o poeta. <i>Josino</i>, -que assim como o ouvia fôra entrançando -uma coroa de hora da arvore mais chegada, mal -que o ultimo verso expirou, se foi com ella, -por entre as palmas de todos, premiar a fronte -do cantor.</p> - -<p><i>Elmiro</i>, que de apoz se seguio, nos cativou -as attenções com um poema de muita invenção -e belleza, aonde outra vez a amizade me -brindou com perfumes seus, para os não dizer -da lizonja. Igualmente o coroámos; e outro -tanto se foi fazendo aos demais, que recitarão -poemas mais breves ou traduções.</p> - -<p><i>Salicio</i><a id="FNanchor_6" href="#Footnote_6" class="fnanchor">[6]</a> repetio uma mimosissima tradução -livre de uma parte da <i>Primavera</i> de Thompson: -<i>Albano</i>, uma tradução em lindas quadras -do Idillio Primavera de Gessner: <i>Francilio</i>, -uma tradução em proza de Utz, que<span class="pagenum"><a id="Page_88"></a>[88]</span> -leo de pé com o copo em punho, e rematou -com um brinde: <i>Franzino</i> uma versão da <i>Primavera</i> -de Cramer: cerrando-se finalmente este -rico banquete poetico com mais de quatrocentos -versos de um poema de meu irmão José -Feliciano de Castilho, que pelo muito menino -que ainda áquelle tempo era, não foi -dos menos vitoriados.</p> - -<p>Todos estavamos coroados, e o rancho se -espalhou. “Ja la vai o sol abaixo; os seus -raios apenas tocão ja os cumes dos outeiros -d’alem: aproveitar o tempo!” bradarão -alguns amigos da borda de uma eira que dominava -a Lapa: e todos sentimos que a tarde -nos hia insensivelmente escapando. Então ao -som da flauta do nosso Horacio, começarão -todos de dançar e saltar, e as aves incitadas -da musica, levantarão mais alto os gorgeios -da tarde. As folhas das heras, que por ali -guarnecião todas as arvores, e algumas flores -voavão ás mãos chêas como em chuva, de uns -contra os outros. De quando em quando se -alevantava alguma voz inculcando, porque o -fossem todos ver, algum particular gracioso e -ainda não observado d’aquelle sítio. Chamando -<i>Aulizo</i> pelos outros, lhes fez notar do cáes -mais arido, o como o rio d’ali visto, -á conta de sua curvidade se afigurava lago cercado -de collinas desiguaes, coroadas e semeadas -de larangeiras, oliveiras e pinheiros, e cazaes -alvejando, enxergando-se mais a longe, e por -entre estes, outros outeiros, quasi a se desvanecer<span class="pagenum"><a id="Page_89"></a>[89]</span> -na distancia e sombra da tarde. Debuxava -eu no animo toda aquella scena saudosa; -saía-me o quadro maravilhoso, mas era por -ventura verdadeiro? não o sei.</p> - -<p>Uma merenda saborosa nos appareceo de repente -e como por encanto: <i>Elmiro</i> fôra o magico -providente. Toalhas brancas de neve estendidas -no cáes do desembarque, forão povoadas -de primorosos manjares, garrafas ja de -dias, e copos coroados de verdura: uns rolos -de arvores estendidos em quadro nos valerão de -assentos: dois meninos gémeos, vestidinhos da -branco, erão os Ganimedes do nosso banquete -folgazão. Parte assentados, parte reclinados -em diversas posturas, outros por entre estes girando -com os copos e pratos na mão, boas -descaídas, descuidos a tempo, apontadas graciosidades -e risos do íntimo, brindes com o copo -alto na direita, enviados a mui longes e -mui diversas terras (que não havia um só que -da sua não padecesse ausencia e se não finasse -com saudades), outras saudes ora mais ora -menos sumidas, a objetos nomeados umas vezes -e outras não, mas mui bons de adivinhar pelos -suspiros e geito do saudador, a voltas e -proposito d’isso narrativas e contos para folgar, -musicas alegres de flauta mil vezes começadas -e outras tantas interrompidas, e outros -muitos nadas com que a penna se não atreve, -convinhão em aprazivel mistura para encantar -a ultima hora da Festa da Primavera.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_90"></a>[90]</span></p> - -<p>Posto era o sol, mas o ceo ainda não carregado -de noite: havia-se de partir, faltava -o animo para o fazer; instavão os barqueiros, -crescião n’elles a rasão e o importunar, acabárão -comnosco que nos rendessemos. Despedidos -os amorosamente da Lapa ja áquella hora -entranhada de escuridão temerosa; com os pés -ja postos na beira da agua, nenhum queria ser -primeiro que trocasse terra de tanta festa, por -um barco que nos hía tornar para onde vida -de proza e cuidados nos aguardava: senão -quando, levantando o bom Gouvea a voz, -com ella suave e chêa que se hía por aquellas -margens alem, começa de cantar <i>A minha Lilia -morreo</i>; improviso seu, chêo de uma branda -tristeza, que aos cançados e não fartos de -gozar costuma ser segundo gozo. Assim hia -elle até n’isto imitando o seu Horacio, que -nos poeticos festins que dava ao Genio da alegria, -nunca se esquecia com seu quinhão de pensamento -para a morte. Profundo era o silencio -que de toda a parte cercava o nosso cantor; -só se ouvia o murmurio baixinho da corrente.</p> - -<p>Não havia quem nos apartasse: por derradeira -vez nos tornámos ainda á Lapa, travou-se -uma dança por despedida, e fez-se uma -saude geral ao lugar e ás trez Graças que ali -costumão a vir muitas vezes<a id="FNanchor_7" href="#Footnote_7" class="fnanchor">[7]</a>, até que emfim<span class="pagenum"><a id="Page_91"></a>[91]</span> -nos embarcámos, com as nossas coroas na -cabeça. Foi aos barqueiros defendido usar de -vara, antes se lhes encommendou que nos deixassem -embora ir, tão mansa e perguiçosamente -como á vêa mal desperta do rio parecesse, -e ainda n’aquelle pouco descer das aguas houvéramos -nós tido mão, se podessemos.</p> - -<p>Pareceo bem, para atalhar a confusão de -tantas vozes como as que ali fervião juntas, -nomear á maneira do Rei do vinho nos festins -dos antigos, um que nos governasse. Este -foi Gouvea por acclamação unanime. Lembrou -um que d’ahi ao deante nos ficassemos uns aos -outros dando o tratamento de confiança, que -a boa amizade consente e requer: approvou-se. -“E quemquer que a esta lei desobedeça, haja-se -por expulso da <i>Sociedade dos Amigos -da Primavera</i>.” Approvou-se com alvoroço; -levantarão-se todos abraçando-se, apertando-se -entre si as mãos, e dando-se entre risos -o tratamento novo tão amiudado para lhe quebrar -a estranheza, que ninguem se entendia.—“Todos -os Socios (gritou outro, e de novo se -fez silencio) hão de conservar até que o -tempo as destrua, estas suas coroas, se não -monumentos de gloria, penhores certo que -mais vale, de horas felizes:” approvou-se -por lei o que ja todos levavão no coração bem -votado. Suscitou-se depois que recitasse cada -um segundo a ordem dos assentos, alguma sua -poesia breve, e que mais lhe parecesse accommodada -á occasião. Não faltárão aqui seus debates,<span class="pagenum"><a id="Page_92"></a>[92]</span> -lembrando uns como apoz tanto recitar, -tinha a cantoria muito melhor cabida do que -os versos nus, outros affirmando que a flauta -melhor que nenhuma outra cousa diria com a -hora, sítio, e calada grande do rio: até que -um veio conciliar a diversidade dos pareceres, -dizendo que umas couzas não tolhião as outras, -antes podião ir todas a revezes tendo seu lugar: -o que assim se cumprio.</p> - -<p>A serenidade da noite junta com as saudades -do dia, nos fez achar inefavel doçura nos -sons da flauta, que parecião modulados pela -melancolia, e se esvaíão ao longe nos ares. Se -ás vezes o acaso nos levava mais para uma das -margens, uns frouxos echos chêos de doçura a -tristeza se comprazião de repetir a musica e as -palmas com que a nós applaudiamos. Emquanto -um só cantava em meia voz, e nós o ouviamos -calados, a face na mão, e meio reclinados -contra o rio, suave nos era escutar como -as quasi insensiveis ondas, com som muito -mais baixo nos vinhão beijar os lados do batel, -d’onde, se fugião partindo, com um murmurinho -saudoso.</p> - -<p>Descemos em terra, e abraçando-nos repassados -de igual amizade, e das mesmas lembranças, -votámos logo ali nova Festa em honra -do primeiro dia de Maio, a qual se veio a fazer, -como ao deante o declarará o volume: e -todo esse meio tempo de uma até á outra, foi -tecido de doces memorias, fantasias poeticas, -tenções e esperanças de prazer.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_93"></a>[93]</span></p> - -<p>Assim se podia e sabia ainda então passar -dias mansos, innocentes e bemaventurados!</p> - -<p class="right"><i>Lisboa: 2 de Janeiro de 1837.</i></p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_94"></a>[94]</span></p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_95"></a>[95]</span></p> - -<h3 class="nobreak" id="DIA_CANTO_I">O DIA<br /> -DA<br /> -PRIMAVERA.</h3> - -<h4>CANTO I.<br /> -<i>A Manhã</i></h4> - -</div> - -<div class="poetry-container"> -<div class="poetry"> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Ei-la que chega a amante Primavera!</div> - <div class="verse indent0">Logo ao romper do dia susurrando</div> - <div class="verse indent0">Vós, Favonios azues, a annunciaveis.</div> - <div class="verse indent0">Chega ... chegou! as aves a festejão</div> - <div class="verse indent0">Desatinadas, doidas; ja com verdes</div> - <div class="verse indent0">Braços lhe acena o bosque; estão-se os rios</div> - <div class="verse indent0">A retrata-la; as fontes a murmurão;</div> - <div class="verse indent0">Traz gala o monte; os valles se alcatifão;</div> - <div class="verse indent0">Ri-lhe o ceo todo, a Natureza he d’ella!</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Mais cedo ao leito do marido annoso</div> - <div class="verse indent0">Hoje a Aurora fugio; tomou regaço</div> - <div class="verse indent0">De orientaes aljofares mais rico,</div> - <div class="verse indent0">Mais cópia em seio e mãos de ethéreas flores.</div> - <div class="verse indent0">Aos umbraes inda escuros do horisonte</div><span class="pagenum"><a id="Page_96"></a>[96]</span> - <div class="verse indent0">Quem a aguardava, quem? os meus Amores</div> - <div class="verse indent0">Que encontro! que abraçar-se!... O Zefirinho</div> - <div class="verse indent0">Que ja por entre nós passou trez vezes,</div> - <div class="verse indent0">Trez vezes ao passar mo ha segredado:</div> - <div class="verse indent0">Vio tudo, tudo ouvio, que era elle proprio</div> - <div class="verse indent0">Um dos que pelo ar vinhão soprando</div> - <div class="verse indent0">O matizado pavilhão de nuvens,</div> - <div class="verse indent0">Em que ás terras baixava o Par celeste.</div> - <div class="verse indent0">Rosto a rosto inclinado; as mãos unidas;</div> - <div class="verse indent0">Mago riso um só riso em bocas duas;</div> - <div class="verse indent0">Absortos em luz mutua os mutuos olhos;</div> - <div class="verse indent0">Duas Gémeas do ceo, duas Virtudes</div> - <div class="verse indent0">N’uma Virtude só, se afiguravão.</div> - <div class="verse indent0">—“Ó minha Irmã (dizia a Primavera)</div> - <div class="verse indent0">“Quem nos ha de estremar? tu es do dia</div> - <div class="verse indent0">“A Primavera, eu sou do anno Aurora”—</div> - <div class="verse indent0">—“Filha como eu do Sol (acode rindo</div> - <div class="verse indent0">“A Aurora), ó doce Irmã, vérte-te o Fado,</div> - <div class="verse indent0">“Não q eu to inveje, os bens de urna mais ampla:</div> - <div class="verse indent0">“Deu-te folgar sem mim, deu-te a alegria</div> - <div class="verse indent0">“Dos dias que eu só abro, e os tão gabados</div> - <div class="verse indent0">“Prazeres que eu não vi, não verei nunca,</div> - <div class="verse indent0">“Prazeres do sol pôsto, e de alvas noites.</div> - <div class="verse indent0">“A mim lida perenne, a mim rigores</div> - <div class="verse indent0">“De oppostas estações, reinar de instantes,</div> - <div class="verse indent0">“Contínua fuga, e os odios dos ditosos,</div> - <div class="verse indent0">“E as maldições de Amor comtigo affavel.</div> - <div class="verse indent0">“Eis porque a meu pezar, já por costume,</div> - <div class="verse indent0">“De olhos que espargem luz se orvalhão choros.</div> - <div class="verse indent0">“Perdôa-mos teu jubilo mos sécca.</div> - <div class="verse indent0">“Desce, eu parto, urge o Tempo, e ja me acena</div> - <div class="verse indent0">“Co’a mão rugosa para novos climas.</div> - <div class="verse indent0">“Fica-te em nossa amada Lusitania,</div><span class="pagenum"><a id="Page_97"></a>[97]</span> - <div class="verse indent0">“Inda pouco ha tão triste. Observa os cumes</div> - <div class="verse indent0">“Contra o nosso nascente; ahi vês á espera</div> - <div class="verse indent0">“A turba toda dos campestres Deozes,</div> - <div class="verse indent0">“Flora, Cibele, Dríades, Napéas,</div> - <div class="verse indent0">“Hamadríades, Náiades, Silvano,</div> - <div class="verse indent0">“A caçadora Cinthia, Amores, Graças,</div> - <div class="verse indent0">“Os ledos Risos, a amorosa Venus;</div> - <div class="verse indent0">“E Pan ha muito tempo em nova flauta,</div> - <div class="verse indent0">“No verde cume do apartado monte,</div> - <div class="verse indent0">“Lá onde canas trémulas susurrão,</div> - <div class="verse indent0">“Para a tua chegada estuda um hino,</div> - <div class="verse indent0">“A cujo estrondo os Sátiros voltêem.”—</div> - <div class="verse indent0">Diz: olha para traz, vê o Sol, desmaia,</div> - <div class="verse indent0">Beija a Amiga, e fugindo a entrega ao dia.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Desfez-se a névoa eis Sol! Joelho em terra,</div> - <div class="verse indent0">Amigos meus; he o Sol da Primavera!</div> - <div class="verse indent0">“Ó Sol das flores, Salve! Ó Sol de amantes,</div> - <div class="verse indent0">“Salve! E trez vezes Salve! ó Sol dos vates!”</div> - <div class="verse indent0">Vêde-o doirando do arvoredo os cumes;</div> - <div class="verse indent0">Vêde nas aguas límpidas fervendo</div> - <div class="verse indent0">De reflexos de luz áureo cardume.</div> - <div class="verse indent0">Corramos n’um momento os campos todos!</div> - <div class="verse indent0">Como esta luz do Ceo, que a toda a parte</div> - <div class="verse indent0">Desce, rompe, insinua-se, alvoroça;</div> - <div class="verse indent0">Como esta luz do Ceo, vates mancebos,</div> - <div class="verse indent0">Devassemos a terra: uma só gruta</div> - <div class="verse indent0">Não fique, um arvoredo, ou valle, ou fonte,</div> - <div class="verse indent0">Por onde não mergulhe a vista, o estro.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Esta, que ora seguimos, tortuosa</div> - <div class="verse indent0">Concava senda, ha pouco estreito rio</div> - <div class="verse indent0">Co’as grossas chuvas da vizinha serra,</div><span class="pagenum"><a id="Page_98"></a>[98]</span> - <div class="verse indent0">Parece de um jardim curiosa rua!</div> - <div class="verse indent0">De um lado e d’outro os còmaros pendentes</div> - <div class="verse indent0">Ja não são montes de crueis espinhos,</div> - <div class="verse indent0">Montes são de verdura, e roxas flores,</div> - <div class="verse indent0">Onde n’outra estação viráõ c’os cestos</div> - <div class="verse indent0">Colher nevadas mãos negras amoras:</div> - <div class="verse indent0">Recende o legacão, e a madresilva.</div> - <div class="verse indent0">De madresilva ornemo-nos as frontes ...</div> - <div class="verse indent0">Mas não: fique-se em paz a flor nevada;</div> - <div class="verse indent0">Quer-se antes a violeta, eu sei outeiro</div> - <div class="verse indent0">Onde ella mora, he flor da Primavera;</div> - <div class="verse indent0">D’esta eu fiz elleição não quero d’outra,</div> - <div class="verse indent0">Vós, se outra preferís, apanhai d’essa.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Por aqui vai a encosta desfarçada:</div> - <div class="verse indent0">Como que ja de cór meus pés a sabem.</div> - <div class="verse indent0">Ja vós de cá vereis, la quasi ao cimo,</div> - <div class="verse indent0">Um ramalhete espesso de aveleiras,</div> - <div class="verse indent0">E de dentro luzindo uma apparencia</div> - <div class="verse indent0">De alvo lirio entre verde, um cazalinho;</div> - <div class="verse indent0">Pois essa he a casa de Egle. E mais avante,</div> - <div class="verse indent0">No alto; não voltêão solitarias</div> - <div class="verse indent0">As pandas velas de veloz moinho?</div> - <div class="verse indent0">Tambem ja la pouzei n’uma afrontada</div> - <div class="verse indent0">Tarde do estio, e lhe dormi á sombra.</div> - <div class="verse indent0">Tudo isto me conhece! Esta ladeira</div> - <div class="verse indent0">De rusticos degráos, que ahi desce á dextra,</div> - <div class="verse indent0">De perenne verdor acobertada,</div> - <div class="verse indent0">Cáe na fonte da aldea. (Ahi vão por agua</div> - <div class="verse indent0">Com seus vermelhos cantaros as moças.</div> - <div class="verse indent0">Outras cá vem, com passo mais tardio,</div> - <div class="verse indent0">Sobindo ja, com os potes á cabeça</div> - <div class="verse indent0">Lustrosos, vacillando e sempre firmes)</div><span class="pagenum"><a id="Page_99"></a>[99]</span> - <div class="verse indent0">Não presumis quanto he social a boa</div> - <div class="verse indent0">Da fontinha aldeã! não ha formosa</div> - <div class="verse indent0">Que ali se não detenha e não se enfeite;</div> - <div class="verse indent0">Não ha pastor cortez, que ao fim da tarde,</div> - <div class="verse indent0">Ja recolhido o gado, ali não desça</div> - <div class="verse indent0">Para ajudar a encher; inda não houve</div> - <div class="verse indent0">Na vizinhança amor, cantiga nova,</div> - <div class="verse indent0">Ou fallado successo, que cem vezes</div> - <div class="verse indent0">Do fundo de seu antro os não ouvisse</div> - <div class="verse indent0">A Náiade anciã; nem bôda alguma,</div> - <div class="verse indent0">Sem se enramar o portico musgoso.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Á esquerda, pela varzea anda rebanho;</div> - <div class="verse indent0">Que ouvi balar, e ainda ouço a cantilena</div> - <div class="verse indent0">De pegureira voz. Dizei-me á pressa,</div> - <div class="verse indent0">Que scena off’rece a varzea? a relva molle</div> - <div class="verse indent0">De alvas boninas trémulas brincada,</div> - <div class="verse indent0">Onde o calor nascente o orvalho enxuga,</div> - <div class="verse indent0">O sombrear das arvores dispersas,</div> - <div class="verse indent0">Bellos não são de ver? he vasto o bando</div> - <div class="verse indent0">Das ovelhas pacíficas? he linda</div> - <div class="verse indent0">A guardadora sua? está sozinha</div> - <div class="verse indent0">Em pé volvendo o fuso e olhando o pasto,</div> - <div class="verse indent0">Ou com algum pastor sentada em ocio?</div> - <div class="verse indent0">Traz disperso o cabello ou prezo em rosas?</div> - <div class="verse indent0">Que donoso cantar! que peregrina</div> - <div class="verse indent0">Poesia que esperdiça aquella moça</div> - <div class="verse indent0">Com broncas solidões e ovelhas rudes!</div> - <div class="verse indent0">Couza que assim namore a fantasia</div> - <div class="verse indent0">Não quero que haja, não: virgem formosa</div> - <div class="verse indent0">Sozinha sob o ceo; velando em brutos</div> - <div class="verse indent0">A que era de velar como um thesouro;</div> - <div class="verse indent0">A graça envolta em lãs, contente e rica;</div><span class="pagenum"><a id="Page_100"></a>[100]</span> - <div class="verse indent0">E annos verdes, sem pena aqui florindo,</div> - <div class="verse indent0">Longe de olhos e amor, jogos e esp’ranças!</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Detende-vos: o aroma he de violetas.</div> - <div class="verse indent0">Ei-las! irei tecendo a c’roa minha</div> - <div class="verse indent0">Com estas, que escondidas, pudibundas,</div> - <div class="verse indent0">Como a pastora, em paz desabrocharão,</div> - <div class="verse indent0">O ar, como a pastora, em roda encantão.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Ja percebo o rugir das aveleiras;</div> - <div class="verse indent0">Não vejo inda o cazal estancia d’Egle,</div> - <div class="verse indent0">Mas perto, oh perto vem: todo esse rôlo</div> - <div class="verse indent0">De espesso fumo que serpêa aos ares,</div> - <div class="verse indent0">He da interna fogueira que amanhece,</div> - <div class="verse indent0">Cuidadosa do almoço, aos moradores.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Entremos no pomar. Ja Primavera</div> - <div class="verse indent0">Copiosa o bafejou, de agradecida</div> - <div class="verse indent0">Ás pomareiras mãos que lho aprestárão.</div> - <div class="verse indent0">Inda folhas não ha, mas tudo he flores!</div> - <div class="verse indent0">Vede como ante o sol tremúla e brilha</div> - <div class="verse indent0">O pecegueiro co’o vermelho ornato:</div> - <div class="verse indent0">Vede alem da pereira a branca véste,</div> - <div class="verse indent0">Da cerejeira, do abrunheiro a cópa:</div> - <div class="verse indent0">Vede como uma vide em cada tronco</div> - <div class="verse indent0">Tenaz se enlêa em tortuoso abraço;</div> - <div class="verse indent0">Ja seus pequenos pampanos rebentão,</div> - <div class="verse indent0">Verdejantes festões ja vão formando:</div> - <div class="verse indent0">Do cheiroso morango a planta humilde</div> - <div class="verse indent0">Aqui e ali no verde chão rasteja.</div> - <div class="verse indent0">Arvores, plantas d’Egle, a nomeada</div> - <div class="verse indent0">Em todo este arredor pelas delicias</div> - <div class="verse indent0">Dos ricos frutos seus, não se numérão,</div><span class="pagenum"><a id="Page_101"></a>[101]</span> - <div class="verse indent0">Nem sei louvor que lhes não ceda, e muito.</div> - <div class="verse indent0">O porque sejão taes, fique em segredo</div> - <div class="verse indent0">Quando vo-lo eu disser. — Aqui Vertumno</div> - <div class="verse indent0">Veio uma tarde do passado outono,</div> - <div class="verse indent0">Mudado em rouxinol, cantar nos ramos,</div> - <div class="verse indent0">D’onde, mais bella que a gentil Pomona,</div> - <div class="verse indent0">Egle andava colhendo a rica fruta.</div> - <div class="verse indent0">Julgou ver sua Deoza o terno amante,</div> - <div class="verse indent0">E tão doce cantou por entre os frutos,</div> - <div class="verse indent0">Tão queixoso gemeo, gemeo tão meigo</div> - <div class="verse indent0">Cercou-a tanto com chorosos pios,</div> - <div class="verse indent0">Tantas vezes pouzou na mão de neve,</div> - <div class="verse indent0">Na trança negra, no virgineo seio,</div> - <div class="verse indent0">Que Egle o metteo no candido regaço,</div> - <div class="verse indent0">O levou toda ufana ao lar paterno,</div> - <div class="verse indent0">E em pintada gaiola inda hoje o guarda,</div> - <div class="verse indent0">Que o Deos não quer fugir do cativeiro.</div> - <div class="verse indent0">Quando a sente acordar pela alta noite,</div> - <div class="verse indent0">Acalenta-a com languidos requebros:</div> - <div class="verse indent0">Ao romper da manhã, quando no bosque</div> - <div class="verse indent0">Ouve perto cantando as outras aves,</div> - <div class="verse indent0">Logo a acorda com vividos gorgeios:</div> - <div class="verse indent0">Mas quando a vê surgir, qual Venus da agua,</div> - <div class="verse indent0">Sem mais vestido que a esparsida coma ...</div> - <div class="verse indent0">Ahi he o pipillar, o esvoaçar-se,</div> - <div class="verse indent0">O encrespar de plumage, o dar sem tino</div> - <div class="verse indent0">Contra os duros varões co’ o peito brando:</div> - <div class="verse indent0">Ahi o abrir do bico a pedir beijos,</div> - <div class="verse indent0">E o revelar calado o amor e o nume.</div> - <div class="verse indent0">Por isso he que ao pomar onde foi prezo</div> - <div class="verse indent0">Fadou, quanta vos prende, infinda graça.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Como he puro este ceo do campo d’Egle!</div><span class="pagenum"><a id="Page_102"></a>[102]</span> - <div class="verse indent0">Como he doce este Zéfiro que folga</div> - <div class="verse indent0">Entre as arvores d’Egle! este he ditoso!</div> - <div class="verse indent0">Ei-la que sáe de seu campestre alvergue.</div> - <div class="verse indent0">Calados se podeis, entre estes verdes</div> - <div class="verse indent0">Porque vos não descubra, olhai-a um pouco.</div> - <div class="verse indent0">Quereis ver como a ponto lhe adivinho</div> - <div class="verse indent0">Os passos, e o que faz, e os pensamentos?</div> - <div class="verse indent0">Sim, Egle he sempre aquella, he sempre a mesma;</div> - <div class="verse indent0">Arvore sem enxerto he sua vida,</div> - <div class="verse indent0">Dá sempre a flor igual, iguaes os frutos.</div> - <div class="verse indent0">Mas silencio, Vertumnos insoffridos,</div> - <div class="verse indent0">Ja vo-la pinto, e me direis se eu érro.</div> - <div class="verse indent0">Do braço nu e candido lhe pende</div> - <div class="verse indent0">De louro milho o próvido cestinho.</div> - <div class="verse indent0">Chama as pombas, lá vão pouzar no alpendre;</div> - <div class="verse indent0">Á eira arroja os grãos, lá são na eira,</div> - <div class="verse indent0">Arrulhão, comem sofregas, refogem;</div> - <div class="verse indent0">Ahi vai novo punhado, ahi vem de novo.</div> - <div class="verse indent0">Uma d’ellas, mais alva do que o leite,</div> - <div class="verse indent0">Vai pouzar no cestinho ao lado d’Egle,</div> - <div class="verse indent0">E mansa come na formosa dextra;</div> - <div class="verse indent0">Furtão côres com o sol o collo, as azas.</div> - <div class="verse indent0">Egle lhe chama filha; affirmarieis</div> - <div class="verse indent0">Que o brutinho a entendeo, salta-lhe ao seio,</div> - <div class="verse indent0">Espaneja-se: agora lhe promette</div> - <div class="verse indent0">O pombo mais fiel para consorte,</div> - <div class="verse indent0">E um ninho todo fôfo, e muito afago</div> - <div class="verse indent0">Aos pequeninos seus; mas quer em paga</div> - <div class="verse indent0">Um beijo, e um beijo pede: a face inclina,</div> - <div class="verse indent0">O bico a vem libar; alonga os labios</div> - <div class="verse indent0">Unidos em botão, corre o biquinho,</div> - <div class="verse indent0">E ao centro do botão lhe leva o beijo.</div><span class="pagenum"><a id="Page_103"></a>[103]</span> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Agora vem ao tanque, aos rubros peixes</div> - <div class="verse indent0">Trazer segundo almoço: oh!—providencia</div> - <div class="verse indent0">Não ha mais desvelada, ou mais formosa!</div> - <div class="verse indent0">Mal que o choveo nas aguas transparentes,</div> - <div class="verse indent0">Por entre os crebros circulos assoma</div> - <div class="verse indent0">De vivos olhos purpurina turba,</div> - <div class="verse indent0">Tragão-no, e fogem requebrando as caudas:</div> - <div class="verse indent0">Ermo o lago outra vez ficou dormindo.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Que dizeis? volve a casa? em manhã d’estas</div> - <div class="verse indent0">Egle volve ao cazal! tornará logo.</div> - <div class="verse indent0">Mas vós não ficareis, que o não consinto;</div> - <div class="verse indent0">Hoje he só Divindade a Primavera.</div> - <div class="verse indent0">Emquanto a hora da Festa inda vem longe,</div> - <div class="verse indent0">Irmos correndo á sôlta, irmos folgando</div> - <div class="verse indent0">He o nosso dever, foi jura nossa.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">¿Mas que risadas d’esta parte sôão</div> - <div class="verse indent0">Entre os salgueiros, do regato á borda?</div> - <div class="verse indent0">Rasgado o cinto, desgrenhada a trança,</div> - <div class="verse indent0">Uma Ninfa gentil é quem sozinha,</div> - <div class="verse indent0">Se ouve rir no pacífico arvoredo!</div> - <div class="verse indent0">La vai na vêa d’agua bracejando,</div> - <div class="verse indent0">E a soltar de afflição piedosos gritos</div> - <div class="verse indent0">Um Sátiro infeliz! ja muito longe</div> - <div class="verse indent0">A corrente lhe leva o odre e a flauta.</div> - <div class="verse indent0">Agora á flôr das agoas apparece,</div> - <div class="verse indent0">Some-se agora no lodoso fundo.</div> - <div class="verse indent0">Em vez de o soccorrer, o apupão rindo</div> - <div class="verse indent0">Da opposta varzea os rusticos pastores.</div> - <div class="verse indent0">—“Dize, bom guardador das vaccas nedeas</div> - <div class="verse indent0">“Que successo foi este?”—“Eu vo-lo conto.</div> - <div class="verse indent0">“A Ninfa hia correndo, antes voando,</div><span class="pagenum"><a id="Page_104"></a>[104]</span> - <div class="verse indent0">“Ao longo d’esta margem que verdeja,</div> - <div class="verse indent0">“Quando eu dei fé; suava-lhe no alcance</div> - <div class="verse indent0">“O mofino do Sátiro ... (Que vejo!</div> - <div class="verse indent0">“Inda poude aferrar ... Más horas leve</div> - <div class="verse indent0">“A agua que o não tragou! Pois ja não larga</div> - <div class="verse indent0">“Os vimes que aferrou co’a mão pelluda.</div> - <div class="verse indent0">“La trepa ... Vê-lo em cima! Oh como o bruto</div> - <div class="verse indent0">“Se estira ao sol e arqueja!) Hia no alcance</div> - <div class="verse indent0">“Da pobre Ninfa o Sátiro; umas silvas</div> - <div class="verse indent0">“A prendêrão, travando-lhe do cinto.</div> - <div class="verse indent0">“Carpia-se a coitada entre alaridos,</div> - <div class="verse indent0">“Como passaro prezo; esta novilha</div> - <div class="verse indent0">“Não muge com mais ancia em vendo os lobos.</div> - <div class="verse indent0">“Bate as palmas o fero, e mais ligeiro</div> - <div class="verse indent0">“Atropella a carreira, e vai clamando</div> - <div class="verse indent0">—“Venci-te—Avida mão ja lhe lançava,</div> - <div class="verse indent0">“Senão quando (tomado está dos vinhos)</div> - <div class="verse indent0">“O pé caprino na orvalhada relva</div> - <div class="verse indent0">“Resvala: vê-lo vai de tombo em tombo</div> - <div class="verse indent0">“Medindo a ribanceira, e dá no rio!</div> - <div class="verse indent0">“Logo ao caír, fugíra-lhe dos hombros</div> - <div class="verse indent0">“O odre do vinho, e a flauta d’entre os dedos.</div> - <div class="verse indent0">“Mal poude resfolgar—Ó flauta! ó odre!—</div> - <div class="verse indent0">“Disse trez vezes, e esqueceo-lhe a Ninfa”—</div> - <div class="verse indent0">—“Bem hajas, guardador das nedeas vaccas:</div> - <div class="verse indent0">“Mais feliz sejas tu com teus amores,</div> - <div class="verse indent0">“E menos apressada a que seguires.”</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Socios, que mais ha ahi? Que vos demora</div> - <div class="verse indent0">Em de redor de um choupo? Letras, versos</div> - <div class="verse indent0">Entalhados no tronco! uma grinalda</div> - <div class="verse indent0">A abraça-lo, outras mil por toda a cópa,</div> - <div class="verse indent0">Que parece um rosal! na terra mirtos!</div><span class="pagenum"><a id="Page_105"></a>[105]</span> - <div class="verse indent0">Lede-me esse letreiro: algum queixume</div> - <div class="verse indent0">De infeliz namorado. Oh! ceos, he crivel?</div> - <div class="verse indent0">LEI DE AMOR tem por titulo? se fosse</div> - <div class="verse indent0">Da propria mão do Nume aqui gravada!</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent4"><i>Amar, amar! viver d’amores!</i></div> - <div class="verse indent2"><i>Que o tempo off’rece e nunca espera;</i></div> - <div class="verse indent2"><i>Aos corações bem como ás flores</i></div> - <div class="verse indent2"><i>Não se renova a Primavera.</i></div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Oh Lei, porta de Elisio antes da morte!</div> - <div class="verse indent0">Sim, sim, de Amor tu es; vós sois das Graças</div> - <div class="verse indent0">Coroas que a ufanaes, a encheis de aroma.</div> - <div class="verse indent0">Socios, ministros das Piérias Deozas,</div> - <div class="verse indent0">Erguei mão não profana ás flores sacras,</div> - <div class="verse indent0">Privilegio he do estro, ouzai colhê-las:</div> - <div class="verse indent0">Levará cadaqual no peito a sua</div> - <div class="verse indent0">Bem sobre o coração, tão perto d’elle</div> - <div class="verse indent0">Que ouvindo-o palpitar lhe falle amores.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Pois he lei quero amar: sim. Porém onde</div> - <div class="verse indent0">Onde estará da Primavera a Deoza?</div> - <div class="verse indent0">Por toda a parte os seus vestigios nóto,</div> - <div class="verse indent0">Mas não a posso achar. Ah! vós que rides,</div> - <div class="verse indent0">A insólita paixão julgaes chimera.</div> - <div class="verse indent0">Existe, existe a Virgem graciosa,</div> - <div class="verse indent0">Dos Ceos a Filha occulta anda na terra:</div> - <div class="verse indent0">Não são sem divindade estes prodigios.</div> - <div class="verse indent0">Quem faz tão branda murmurar a fonte?</div> - <div class="verse indent0">Quem abre a rosa na materna planta?</div> - <div class="verse indent0">Quem dá cheiro á violeta, e côr ao lirio,</div> - <div class="verse indent0">Ao ar fresco o regalo e verde aos campos?</div> - <div class="verse indent0">Quem poesia de amor ensina ás aves?</div><span class="pagenum"><a id="Page_106"></a>[106]</span> - <div class="verse indent0">Quem é que influe no coração dos homens</div> - <div class="verse indent0">Tanto amor, tanta paz, doçura tanta?</div> - <div class="verse indent0">Existe, existe a Virgem graciosa,</div> - <div class="verse indent0">A minha doce Amante, a minha Amada,</div> - <div class="verse indent0">Dos Ceos a Filha occulta anda na terra.</div> - <div class="verse indent0">Sinaes de sua mão, pizadas suas,</div> - <div class="verse indent0">Fragrancias que espirou, por toda a parte</div> - <div class="verse indent0">Me envolvem, me arrebatão, me endoidecem;</div> - <div class="verse indent0">Mas busco-a e não se mostra; exclamo, he surda!</div> - <div class="verse indent0">O dia he fallador, he distraído,</div> - <div class="verse indent0">Deidade virginal recêa o dia,</div> - <div class="verse indent0">Casta, só quer talvez ás castas sombras</div> - <div class="verse indent0">Revelar seu misterio, abrir seu peito.</div> - <div class="verse indent0">Oh quem me dera que baixasse a noite!</div> - <div class="verse indent0">Da noite no pacífico silencio</div> - <div class="verse indent0">Côa pelo ar vazio o som mais leve:</div> - <div class="verse indent0">Por isso a Filomela a quiz por sua,</div> - <div class="verse indent0">E o mocho lhe confia as longas queixas:</div> - <div class="verse indent0">Quem me ja déra que baixasse a noite!</div> - <div class="verse indent0">Irei clamar do cume dos outeiros</div> - <div class="verse indent0">“Ó Primavera, ó minha Primavera!”</div> - <div class="verse indent0">E depois que trez vezes repetirem,</div> - <div class="verse indent0">Ao longe os echos meu tristonho grito,</div> - <div class="verse indent0">Attento escutarei se me responde.</div> - <div class="verse indent0">Se nada ouvir, prostrando-me, e cobrindo</div> - <div class="verse indent0">De igneos beijos a terra (os igneos beijos</div> - <div class="verse indent0">Tem valor de conjurio entre amadores)</div> - <div class="verse indent0">Com maior devoção, dobrada fôrça,</div> - <div class="verse indent0">Clamarei “Primavera, ó Primavera!”</div> - <div class="verse indent0">E os campos todos correrei bradando.</div> - <div class="verse indent0">Na solitaria gruta alguma Ninfa</div> - <div class="verse indent0">Ha de acordar, e á parte do oriente</div> - <div class="verse indent0">Lançar a vista, procurando a aurora:</div><span class="pagenum"><a id="Page_107"></a>[107]</span> - <div class="verse indent0">A aurora não virá, e eu longo tempo</div> - <div class="verse indent0">Andarei pelas trevas suspirando.</div> - <div class="verse indent0">Se trez vezes o sol descer ás ondas,</div> - <div class="verse indent0">Sem que possa encontrar a minha Amada,</div> - <div class="verse indent0">E sem que algum mortal dê novas d’ella,</div> - <div class="verse indent0">Apagarei no peito o incendio inutil,</div> - <div class="verse indent0">Pensando que era ingrata, ou que por sonhos</div> - <div class="verse indent0">Somente a víra em extases do estro.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Mas viver sem amar, sem ser amado?</div> - <div class="verse indent0">Vida entre gelos equivale á morte,</div> - <div class="verse indent0">No pasto ao coração mantem-se a vida;</div> - <div class="verse indent0">Sois brandas affeições, a essencia d’ella.</div> - <div class="verse indent0">Confessar-me da Lei que abrange a todos,</div> - <div class="verse indent0">O primeiro infrátor? Ó Chlóe, ó bella,</div> - <div class="verse indent0">Serás tu d’entre mil, o preferido</div> - <div class="verse indent0">Emprego aos versos meus e aos meus excessos.</div> - <div class="verse indent0">Ja tens da Primavera o genio, as graças,</div> - <div class="verse indent0">Sua fama terás, terás seus hinos.</div> - <div class="verse indent0">Quando com teu rebanho para o rio</div> - <div class="verse indent0">O bosque ao fim da tarde atravessares,</div> - <div class="verse indent0">De longe me verás na flórea margem</div> - <div class="verse indent0">Sobre um penedo a celebrar teu nome.</div> - <div class="verse indent0">Quando o quente redil ao gado abrires</div> - <div class="verse indent0">No frescor da manhã, dir-te-ha meu rosto</div> - <div class="verse indent0">Que entre as da tua porta arvores caras</div> - <div class="verse indent0">Não fui amanhecer, mas toda a noite</div> - <div class="verse indent0">De amor andei cercando o teu descanço,</div> - <div class="verse indent0">Sentindo-te o respiro, ou crendo ouvi-lo.</div> - <div class="verse indent0">Quando na sésta, á sombra da oliveira</div> - <div class="verse indent0">Tiveres descuidosa adormecido,</div> - <div class="verse indent0">Em sons de flauta escutarás por sonhos</div> - <div class="verse indent0">O cantar novo que te mais recreie.</div><span class="pagenum"><a id="Page_108"></a>[108]</span> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Mas vede como leve escapa o tempo!</div> - <div class="verse indent0">Ja alto e rijo o sol encurta as sombras.</div> - <div class="verse indent0">Largo se ha divagado! Hora purpúrea,</div> - <div class="verse indent0">A mais social, mais folgazã das horas,</div> - <div class="verse indent0">Chamando está por nós co’a mesa agreste.</div> - <div class="verse indent0">Onde a iremos tomar? n’algum tugurio</div> - <div class="verse indent0">De solitaria Baucis? nem de feno</div> - <div class="verse indent0">Pobres tétos consente o sacro Dia.</div> - <div class="verse indent0">Ali temos o outeiro alcatifado,</div> - <div class="verse indent0">Rico montáõ de flores! Que mui frescos</div> - <div class="verse indent0">Pela assomada os louros se entrelação!</div> - <div class="verse indent0">Mas sobre tudo que aprazivel gruta!</div> - <div class="verse indent0">Por fóra he de hera um tufo luzidio,</div> - <div class="verse indent0">Dentro um fôrro de musgo. Alvitre novo</div> - <div class="verse indent0">Ó Socios escutai. Esta collina</div> - <div class="verse indent0">Desde hoje para nós fique Parnaso.</div> - <div class="verse indent0">Eis a gruta de Cirrha, onde costuma</div> - <div class="verse indent0">Febo sonhar magníficas imagens!</div> - <div class="verse indent0">Esses louros são delle! Aquella fonte</div> - <div class="verse indent0">(Ceos nada falta!) he fonte de Castalia!</div> - <div class="verse indent0">No remanso diáfano boiando</div> - <div class="verse indent0">Niveos ganços as azas empavezão;</div> - <div class="verse indent0">Fingi-lhes doce a voz, chamai-lhes cisnes:</div> - <div class="verse indent0">Lindas pastoras nossas Musas sejão.</div> - <div class="verse indent0">Respiremos o estro! Ó lá de Cirrha</div> - <div class="verse indent0">Virações, acudi-nos contra a calma:</div> - <div class="verse indent0">E vós louros selvaticos, ó louros,</div> - <div class="verse indent0">Velai com vossa abobada frondente</div> - <div class="verse indent0">Os vates e o banquete, o rir e os versos.</div> - <div class="verse indent0">A primeira saude a Bacho e Ceres,</div> - <div class="verse indent0">A Palles e Pomona, ora presentes</div> - <div class="verse indent0">Do banquete á rural simplicidade.</div> - <div class="verse indent0">Para dias iguaes, plantar-lhes voto</div><span class="pagenum"><a id="Page_109"></a>[109]</span> - <div class="verse indent0">Cá bem no viso do sagrado outeiro,</div> - <div class="verse indent0">Densa cabana de perpetua folha:</div> - <div class="verse indent0">Para aqui, de canceiras feriados,</div> - <div class="verse indent0">Viremos amiude abrir os peitos</div> - <div class="verse indent0">Ao bachico folguedo, a Amor e aos cantos,</div> - <div class="verse indent0">Co’a alegria assombrar, e co’a amizade</div> - <div class="verse indent0">Do loureiral as Dríades vizinhas.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Na venturosa paz d’este retiro,</div> - <div class="verse indent0">Não virá perturbar nossa humildade</div> - <div class="verse indent0">Com seus trovões, com seus <i>coriscos horridos</i></div> - <div class="verse indent0">Turba sublime de soturnos vates.</div> - <div class="verse indent0">Alçando o collo, enfaticos praguejem</div> - <div class="verse indent0">Contra os <i>tirannos</i>, contra os <i>monstros barbaros</i>;</div> - <div class="verse indent0">Pintem de rôjo os <i>prepotentes déspotas</i>,</div> - <div class="verse indent0">Fulminem os <i>perversos aristócratas</i>,</div> - <div class="verse indent0">E fujão por estudo á natureza.</div> - <div class="verse indent0">Não lhes invejo, não, a bronsea tuba,</div> - <div class="verse indent0">Que despede trovões e rasga ouvidos.</div> - <div class="verse indent0">De nosso humilde genio estou contente:</div> - <div class="verse indent0">Nada mais temos que uma agreste flauta;</div> - <div class="verse indent0">Com ella muda, ás vezes longas horas,</div> - <div class="verse indent0">Da natureza os quadros estudâmos.</div> - <div class="verse indent0">Socios dos rouxinoes, só diffundimos</div> - <div class="verse indent0">Depois de meditar, nossos gorgeios;</div> - <div class="verse indent0">Em quanto o mocho a luz aborrecendo,</div> - <div class="verse indent0">Nos amenos vergeis nunca discorre;</div> - <div class="verse indent0">Dorme o formoso dia em cava furna,</div> - <div class="verse indent0">E sólta pela noite horrendos guinchos,</div> - <div class="verse indent0">Pouzado junto ao ceo, mas entre horrores.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Elmiro, ó tu que, tanto como odêo,</div> - <div class="verse indent0">Odêas as sonoras bagatelas,</div><span class="pagenum"><a id="Page_110"></a>[110]</span> - <div class="verse indent0">E ris, como eu, dos estrondosos nadas;</div> - <div class="verse indent0">Nunca te afastes da florída róta,</div> - <div class="verse indent0">Por onde a Natureza o Genio chama.</div> - <div class="verse indent0">Da madrugada nos mimosos sonhos,</div> - <div class="verse indent0">Costumas ver de murtas coroada,</div> - <div class="verse indent0">A amavel Sombra do risonho Géssner.</div> - <div class="verse indent0">Oh! quando aos campos teus um dia voltes,</div> - <div class="verse indent0">Á sombra do teu cedro será doce</div> - <div class="verse indent0">Ouvir-te prantear perdida amante!</div> - <div class="verse indent0">Entre as folhas cheirosas susurrando,</div> - <div class="verse indent0">Qual favonio indeciso, os Manes d’ella,</div> - <div class="verse indent0">Mansa tristeza ao coração te enviem.</div> - <div class="verse indent0">Emquanto no escarceo da grão Cidade</div> - <div class="verse indent0">Eu misero, eu saudoso andar lutando,</div> - <div class="verse indent0">La no fertil torrão verás contente</div> - <div class="verse indent0">Por ceos de teu jardim nascer a aurora:</div> - <div class="verse indent0">Regarás pela fresca as flores tuas</div> - <div class="verse indent0">Junto da terna Mãi, que este só gôsto</div> - <div class="verse indent0">Na morte conservou do esposo amado;</div> - <div class="verse indent0">Triste e formosa qual viuva rôla.</div> - <div class="verse indent0">Outras vezes as pombas que sustentas,</div> - <div class="verse indent0">Terno irás vizitar co’as Irmãs bellas,</div> - <div class="verse indent0">Qual entre as Graças passeára Adonis</div> - <div class="verse indent0">Nos arvoredos da ociosa Chipre.</div> - <div class="verse indent0">Elmiro, ¿e alguma vez tambem meus versos</div> - <div class="verse indent0">Serão do teu retiro um passatempo?</div> - <div class="verse indent0">Quando eu tos enviar, vós reunidos</div> - <div class="verse indent0">Junto do fogo nos serões do inverno,</div> - <div class="verse indent0">Contentes os lereis; e tu, girando</div> - <div class="verse indent0">Co’a vaga idea nos passados tempos,</div> - <div class="verse indent0">Dirás a suspirar “He meu amigo”.</div> - </div> -</div> -</div> - -<p class="center">FIM DO CANTO PRIMEIRO.</p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_111"></a>[111]</span></p> - -<h3 class="nobreak" id="DIA_CANTO_II">O DIA<br /> -DA<br /> -PRIMAVERA.</h3> - -<h4>CANTO II.<br /> -<i>A Tarde.</i></h4> - -</div> - -<div class="poetry-container"> -<div class="poetry"> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">Ja dos louros as grimpas se embalanção:</div> - <div class="verse indent0">Surgir, surgir da relva sonolenta!</div> - <div class="verse indent0">Ja fresca viração consola os ares:</div> - <div class="verse indent0">Que zoada que vai por toda a selva!</div> - <div class="verse indent0">Estrépito de rio impetuoso</div> - <div class="verse indent0">Na calada da noite a crê mil vezes</div> - <div class="verse indent0">O viandante perdido. Hora da Festa,</div> - <div class="verse indent0">Bem te ouvimos anciosa estar chamando.</div> - <div class="verse indent0">¡Da Primavera á Festa, á gruta, ó Socios,</div> - <div class="verse indent0">De Amarilis e Umbrano á vasta gruta!</div> - <div class="verse indent0">Ja agora o bom de Anfrizo ha de ter pronto</div> - <div class="verse indent0">De sua déstra mão o altar gramíneo,</div> - <div class="verse indent0">Arqueado em docel do cedro a cópa,</div> - <div class="verse indent0">E do cedro no pé com flórea tarja</div> - <div class="verse indent0">Da nossa Primavera aberto o nome,</div><span class="pagenum"><a id="Page_112"></a>[112]</span> - <div class="verse indent0">Se he que amor lhe não fez gravar <i>Dorinda</i>;</div> - <div class="verse indent0">Dorinda, cujos magicos encantos</div> - <div class="verse indent0">Na lira do amador gerão milagres;</div> - <div class="verse indent0">Cujos olhos, tão negros como a noite,</div> - <div class="verse indent0">São como a noite ao Deos de amor tão caros.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Sim, vamos — Vedes vós o pequenino</div> - <div class="verse indent0">Que la vem amontado em verde cana?</div> - <div class="verse indent0">Quão guapo agita as redeas côr de rosa,</div> - <div class="verse indent0">E açouta co’a varinha a brava fera!</div> - <div class="verse indent0">Ouvis-lhe a doce voz que por mim chama?</div> - <div class="verse indent0">—“Salve, menino! e adeos, que hoje não posso.</div> - <div class="verse indent0">“Outro dia virei, toda uma tarde,</div> - <div class="verse indent0">“Trabalhar nas flautinhas, que arremedem</div> - <div class="verse indent0">“Cantar de rouxinol soprando-as n’agua.</div> - <div class="verse indent0">“Amanhã me procura aqui no outeiro,</div> - <div class="verse indent0">“Verás, verás que historias te não conto.”—</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Partio: como galopa afervorado!</div> - <div class="verse indent0">Ja vai conta-lo á mãi. Este menino</div> - <div class="verse indent0">He da aldea a doudice, e os meus amores.</div> - <div class="verse indent0">He dote de seus annos a innocencia,</div> - <div class="verse indent0">Como do botãozinho he dote a graça:</div> - <div class="verse indent0">Mas aqui ha melhor, he botãozinho</div> - <div class="verse indent0">Ja fragrante, he virtude antes do sizo.</div> - <div class="verse indent0">N’aquella sésta do abafado agosto,</div> - <div class="verse indent0">Quando fostes nadar, eu passeava</div> - <div class="verse indent0">Sozinho a espairecer pela frescura;</div> - <div class="verse indent0">Eis para mim correndo este menino,</div> - <div class="verse indent0">Vergonhoso me diz:—“Queres atar-me</div> - <div class="verse indent0">“Este cordel nas pontas do meu arco,</div> - <div class="verse indent0">“Bem seguro, bem forte, que não quebre?”—</div> - <div class="verse indent0">—“Sim, amavel menino (eu lhe respondo)</div><span class="pagenum"><a id="Page_113"></a>[113]</span> - <div class="verse indent0">“Sim quero atar-to bem seguro e forte”—</div> - <div class="verse indent0">E emquanto lho fazia, assim lhe disse:</div> - <div class="verse indent0">—“Vais caçar borboletas? ou mordeo-te</div> - <div class="verse indent0">“Alguma abelha, e queres castiga-la?”—</div> - <div class="verse indent0">—“Não, não: vou dar em minha mãi um tiro”—</div> - <div class="verse indent0">—“Um tiro em tua mãi!”—“Sim n’outro dia</div> - <div class="verse indent0">“Deo-me tanto nas mãos, que me ficarão</div> - <div class="verse indent0">“A doer, tão vermelhas como as rosas”—</div> - <div class="verse indent0">—“E porque assim te deo, que te ficassem</div> - <div class="verse indent0">“As mãozinhas vermelhas como as rosas?”—</div> - <div class="verse indent0">—“Eu tinha (acudio elle) um melro novo:</div> - <div class="verse indent0">“Era meu, apanhou-o a minha rede.</div> - <div class="verse indent0">“Sempre estava a cantar; era tão lindo!</div> - <div class="verse indent0">“E quando assobiava? os outros melros</div> - <div class="verse indent0">“Punhão-se la do bosque a responder-lhe,</div> - <div class="verse indent0">“Queria tanto á nossa Mirtilinha!</div> - <div class="verse indent0">“(A nossa Mirtilinha he a mais pequena</div> - <div class="verse indent0">“Das minhas trez irmãs): e ella tratava-o,</div> - <div class="verse indent0">“Quando eu hia á seara ás cegarregas.</div> - <div class="verse indent0">“No outro dia esqueceo nos a gaiola</div> - <div class="verse indent0">“Ao sol toda a manhã: quando fui vê-lo,</div> - <div class="verse indent0">“Não se podia ter, abria o bico</div> - <div class="verse indent0">“E não tomava nada. Um pequenito</div> - <div class="verse indent0">“Me disse que era calma: agarro n’elle,</div> - <div class="verse indent0">“Vou-me ao tanque, e mergulho-o cinco vezes.</div> - <div class="verse indent0">“Ficou muito peór: punha-o direito,</div> - <div class="verse indent0">“E elle sempre a caír, fechava os olhos,</div> - <div class="verse indent0">“E estremecia todo. Aquietou-se:</div> - <div class="verse indent0">“Cuidei eu que dormia e disse, Dorme,</div> - <div class="verse indent0">“Veio um velho, abanou-o, e disse, He morto.</div> - <div class="verse indent0">“Fui com elle na mão chorando, e em gritos, ta,</div> - <div class="verse indent0">“Procurar minha mãi. Ficou pasmada</div> - <div class="verse indent0">“Quando o vio, e eu lhe disse—Ahi está, não can-</div><span class="pagenum"><a id="Page_114"></a>[114]</span> - <div class="verse indent0">“Nem ja faz festa á nossa Mirtilinha—</div> - <div class="verse indent0">“Poz-se a ralhar por isto, e castigou me”—</div> - <div class="verse indent0">“Cruel menino (lhe volvi severo),</div> - <div class="verse indent0">“Cruel menino, e em tua mãi pretendes</div> - <div class="verse indent0">“Ir com setas vingar-te?”—“Oh! não (me torna),</div> - <div class="verse indent0">“Não lhe hei de fazer mal. Se tu soubesses</div> - <div class="verse indent0">“O que uma seta faz!...”—“Não te percebo,</div> - <div class="verse indent0">“E pois que faz? explica-te, saibamos”—</div> - <div class="verse indent0">—“Na cabana de Silvio (me responde)</div> - <div class="verse indent0">“Ha um cópo de páo todo pintado,</div> - <div class="verse indent0">“Que elle ja prometteo que me daria</div> - <div class="verse indent0">“Se eu lhe levasse a fita, com que ás vezes</div> - <div class="verse indent0">“A minha irmã Glicera ata os cabellos.</div> - <div class="verse indent0">“Por fóra do tal cópo está com um arco,</div> - <div class="verse indent0">“Para atirar a uma pastora linda,</div> - <div class="verse indent0">“Um menino como eu, com os olhos negros</div> - <div class="verse indent0">“Voltados para mim, e sempre a rir-se.</div> - <div class="verse indent0">“Anda nuzinho ao frio, e tem nos hombros</div> - <div class="verse indent0">“Azas, que lhe não ganha a borboleta.</div> - <div class="verse indent0">“Silvio disse-me o nome que lhe davão,</div> - <div class="verse indent0">“Porem ... ja me esqueceo: tambem me disse</div> - <div class="verse indent0">“Que elle costuma á gente descuidada</div> - <div class="verse indent0">“Atirar muita vez d’aquellas setas.</div> - <div class="verse indent0">“Eu cuidava que as setas matarião,</div> - <div class="verse indent0">“Tinhão-mo dito um dia os caçadores,</div> - <div class="verse indent0">“Mas Silvio me jurou que não matavão,</div> - <div class="verse indent0">“E contou-mo sem rir; Silvio não mente.</div> - <div class="verse indent0">“Aquellas setas vem, entrão no peito</div> - <div class="verse indent0">“Sem ferida nem sangue, e até sem dores.</div> - <div class="verse indent0">“Se obrigão a chorar e a ficar triste,</div> - <div class="verse indent0">“Como ás vezes succede ao meu bom Silvio,</div> - <div class="verse indent0">“Em toda esta tristeza ha tanto gôsto,</div> - <div class="verse indent0">“Que he mais doce gemer, que estar alegre.</div><span class="pagenum"><a id="Page_115"></a>[115]</span> - <div class="verse indent0">“Eu d’isto nada entendo, porem Silvio</div> - <div class="verse indent0">“Me disse que algum tempo o entenderia.</div> - <div class="verse indent0">“Lembra-me agora! o tal menino d’azas (certo</div> - <div class="verse indent0">“Chama-se <i>Amor</i>; não he verdade?”—“He</div> - <div class="verse indent0">(Lhe respondo, apertando-o nos meus braços),</div> - <div class="verse indent0">“Chama-se Amor, e he como tu formoso.”—</div> - <div class="verse indent0">—“E seus tiros não fazem que fiquemos</div> - <div class="verse indent0">“Tão amigos de alguem, como o cordeiro</div> - <div class="verse indent0">“Que anda a brincar com seu irmão no prado?”—</div> - <div class="verse indent0">—“Sim he verdade”—“Então venha o meu arco,</div> - <div class="verse indent0">“Ja tenho em casa muitas setas prontas,</div> - <div class="verse indent0">“Vou ferir minha mãi.”—“Louco! o teu arco</div> - <div class="verse indent0">“Como o d’elle não he (lhe brado rindo):</div> - <div class="verse indent0">“Lança-te ao collo seu, perdão lhe pede,</div> - <div class="verse indent0">“Beija-a, conta-lhe tudo, e eu te prometto</div> - <div class="verse indent0">“Por cada beijo teu, mil beijos d’ella”—</div> - <div class="verse indent0">Não me ouvio mais, correo: e de caminho</div> - <div class="verse indent0">Colheo para offertar-lhe algumas flores.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Mas eis-no; ja no suspirado sitio!</div> - <div class="verse indent0">Essa a gruta: este o cedro annoso e immenso,</div> - <div class="verse indent0">Condigno pavilhão do altar votivo.</div> - <div class="verse indent0">Inda as c’roas vos faltão, ela ó Socios,</div> - <div class="verse indent0">Rompei demoras, ide ás flores, ide,</div> - <div class="verse indent0">E volvei logo a dar princípio á Festa.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Só fiquei: se eu podesse aqui no prado</div> - <div class="verse indent0">Por meus olhos tambem colher algumas!</div> - <div class="verse indent0">(Que as violetas que hei posto andão ja murchas.)</div> - <div class="verse indent0">—“Ó pastorinha de formoso gado,</div> - <div class="verse indent0">“Se podes, nem te peza alguns momentos</div> - <div class="verse indent0">“Perder comigo, apanha-me violetas,</div> - <div class="verse indent0">“Ensinar-te-hei por prémio outros cantares.</div><span class="pagenum"><a id="Page_116"></a>[116]</span> - <div class="verse indent0">“Teu rafeiro no emtanto o gado vele.”</div> - <div class="verse indent0">Partio, deixando ao lado meu, na relva</div> - <div class="verse indent0">O cordeiro que tinha em seu regaço,</div> - <div class="verse indent0">Tão alvo, tão pequeno como um lirio.</div> - <div class="verse indent0">Pobre innocente! nos meus dedos busca</div> - <div class="verse indent0">Da mãi, que ao longe bala, a doce têta!</div> - <div class="verse indent0">Se comer ja soubesse, eu lhe daria</div> - <div class="verse indent0">D’estas papoulas, d’esta fina grama.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Que silencio! mal ouço uma fontinha;</div> - <div class="verse indent0">Serena viração de quando em quando;</div> - <div class="verse indent0">O crepitar miudo dos raminhos,</div> - <div class="verse indent0">Que a leve cabra arranca do espinheiro;</div> - <div class="verse indent0">A voz d’um lavrador aos bois tardios;</div> - <div class="verse indent0">E o cançado gemer de um carro ao longe.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Cá volve a minha Flora! estou c’roado:</div> - <div class="verse indent0">“Graças ó doce e rustica Belleza!</div> - <div class="verse indent0">Sempre emtorno de ti rebentem flores</div> - <div class="verse indent0">Que o teu rebanho cobiçoso pasça;</div> - <div class="verse indent0">Nunca te falte pelo estio a sombra:</div> - <div class="verse indent0">E amor te volte em fruto as esperanças,</div> - <div class="verse indent0">Se esperanças de amor no peito nutres.</div> - <div class="verse indent0">Vês tu aquelle altar? foi obra nossa,</div> - <div class="verse indent0">Foi por nós consagrado á Primavera,</div> - <div class="verse indent0">E vamos festeja-la. Altar sem Nume</div> - <div class="verse indent0">Faz menos devoção; se tu quizesses,</div> - <div class="verse indent0">Bem o podias ser. Anda, mimosa</div> - <div class="verse indent0">E amavel pastorinha; enflora á pressa</div> - <div class="verse indent0">A trança, o collo, o seio, e no regaço</div> - <div class="verse indent0">Lança flores quaesquer, qualquer verdura:</div> - <div class="verse indent0">Oh! da-me este prazer. Do cedro ao tronco</div> - <div class="verse indent0">Vai-te encostar do modo que te digo,</div><span class="pagenum"><a id="Page_117"></a>[117]</span> - <div class="verse indent0">Co’a mão na face, e com o sorrir nos labios<a id="FNanchor_8" href="#Footnote_8" class="fnanchor">[8]</a>.</div> - <div class="verse indent0">Direi aos socios meus, quando voltarem:</div> - <div class="verse indent0">“Invoquei tanto e tanto os meus Amores</div> - <div class="verse indent0">(Nome he que á Deoza dou, não tenhas susto</div> - <div class="verse indent0">“Nem me furtos a mão) e he tão benigna,</div> - <div class="verse indent0">“Tão docil, tão cortez a Primavera,</div> - <div class="verse indent0">“Que saío do seu bosque, e apraz-lhe ouvir-nos.”</div> - <div class="verse indent0">Folgaremos de os ver caír no engano,</div> - <div class="verse indent0">Ajoelhar-se á fingida Primavera,</div> - <div class="verse indent0">E mais de coração cantar-lhe os hinos.</div> - <div class="verse indent0">De que te ris, singela rapariga?</div> - <div class="verse indent0">Porque foges de mim? Se não consentes,</div> - <div class="verse indent0">Cedo iremos buscar-te nos teus montes,</div> - <div class="verse indent0">Chamar-te Deoza, em dôbro envergonhar-te.”</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Que he isto! ja volveis? mostrai-me as c’roas.</div> - <div class="verse indent0">Como escolheste bem, terno Josino,</div> - <div class="verse indent0">Meigo no coração, na voz mavioso!</div> - <div class="verse indent0">Goivos com mirtos para ti cazaste,</div> - <div class="verse indent0">Com o suave condiz a suavidade.</div> - <div class="verse indent0">Se nos campos do ceo, reino do Genio,</div> - <div class="verse indent0">Eu podesse colher miudos astros,</div> - <div class="verse indent0">Dos versos onde alçaste ao ceo meu nome</div> - <div class="verse indent0">C’roa de ethérea luz seria prémio.</div> - <div class="verse indent0">Dou-te o que posso, gravarei teu nome</div><span class="pagenum"><a id="Page_118"></a>[118]</span> - <div class="verse indent0">Em bosque, onde Hamadríades o leão:</div> - <div class="verse indent0">Decoraráõ com o verso os teus louvores,</div> - <div class="verse indent0">E alguma em si dirá: “Quem me ora désse</div> - <div class="verse indent0">Em minhas solidões este Josino,</div> - <div class="verse indent0">Por ver se he no cantar, qual dizem, meigo.”</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Vejamos meu Irmão<a id="FNanchor_9" href="#Footnote_9" class="fnanchor">[9]</a> a tua escolha.</div> - <div class="verse indent0">Eis-te como eu cingido de violetas;</div> - <div class="verse indent0">Ah quanto são iguaes os gostos nossos!</div> - <div class="verse indent0">Abraça-me cantor da natureza,</div> - <div class="verse indent0">Um a outro, um pelo outro aqui juremos</div> - <div class="verse indent0">Juntar sempre em busca-la a industria nossa.</div> - <div class="verse indent0">Abraça-me outra vez: nossa amizade,</div> - <div class="verse indent0">Nossa terna amizade, e nosso estudo</div> - <div class="verse indent0">Aperte mais e mais do sangue os laços.</div> - <div class="verse indent0">Se jamais fado atroz nos separasse ...</div> - <div class="verse indent0">Longe do pensamento esse impossivel!</div> - <div class="verse indent0">Duas vidas irmãs que medrão juntas</div> - <div class="verse indent0">Tem uma só raiz; dão flor, dão fruto</div> - <div class="verse indent0">Nas mesmas estações, e ás horas mesmas.</div> - <div class="verse indent0">Quer benção mande o ceo, quer sôpro de ira,</div> - <div class="verse indent0">Um só bem, um só mal abrange as duas,</div> - <div class="verse indent0">Emquanto uma existir persiste a sócia.</div> - <div class="verse indent0">Vai para o nosso altar, um só momento</div> - <div class="verse indent0">Me prende, o meu lugar tu la conserva</div> - <div class="verse indent0">Entre ti e o das Musas ja mimoso</div> - <div class="verse indent0">Nosso irmão, que no berço achou a flauta:</div> - <div class="verse indent0">Menino, a quem cingistes de alvas rosas,</div> - <div class="verse indent0">Como elle emblemas da innocencia breve.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Elmiro, o teu diadema he bello e simples;</div><span class="pagenum"><a id="Page_119"></a>[119]</span> - <div class="verse indent0">Mirto e teixo pregões de amor e mágoa.</div> - <div class="verse indent0">Não são menos de ver, nem menos proprias</div> - <div class="verse indent0">As vossas, bom Franzino, alegre Albano.</div> - <div class="verse indent0">Do amor perfeito as flores melindrosas</div> - <div class="verse indent0">Tecem, Franzino, a tua, e tem por joia</div> - <div class="verse indent0">Uma saudade a tremular na fronte.</div> - <div class="verse indent0">De teus suspiros o ditoso emprego</div> - <div class="verse indent0">Longe está, bem o sei, mas não suspires:</div> - <div class="verse indent0">Tua amada fiel na ausencia chora,</div> - <div class="verse indent0">Sua imaginação durante o dia</div> - <div class="verse indent0">Voa a buscar-te aos campos do Mondego;</div> - <div class="verse indent0">Dos campos do Mondego aos braços d’ella</div> - <div class="verse indent0">Sua imaginação te leva em sonhos.</div> - <div class="verse indent0">Albano, a ti o amor foi mais propício:</div> - <div class="verse indent0">Vês amiude os olhos que te inflammão</div> - <div class="verse indent0">E o sorrir facil que te muda em louco.</div> - <div class="verse indent0">Não muito abertas, incendidas rosas</div> - <div class="verse indent0">Cercando as tuas fontes, me afigurão</div> - <div class="verse indent0">A imagem ver de envergonhados beijos.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Vem meu Anfrizo: a tua d’entre todas</div> - <div class="verse indent0">He por certo a mais funebre grinalda;</div> - <div class="verse indent0">Um ramo de cipreste e alguns suspiros.</div> - <div class="verse indent0">Ah tua mãi tão cedo abandonar-te!</div> - <div class="verse indent0">Orfão triste, perdoa ao vate amigo,</div> - <div class="verse indent0">Que em chaga inda tão fresca a mão te ha pôsto.</div> - <div class="verse indent0">Se para ella ha balsamo no mundo,</div> - <div class="verse indent0">Só Amor sabe d’elle, e mãos de neve</div> - <div class="verse indent0">Tem para to applicar virtude innata.</div> - <div class="verse indent0">Sim, Dorinda gentil como que busca</div> - <div class="verse indent0">Esse ermo de tua alma encher de affetos,</div> - <div class="verse indent0">E no vão do teu peito insinuar-se.</div> - <div class="verse indent0">Mas a saudade maternal he muito;</div><span class="pagenum"><a id="Page_120"></a>[120]</span> - <div class="verse indent0">Todo o mundo, a amizade, e até Dorinda</div> - <div class="verse indent0">Só poderáõ na angustia confortar-te.</div> - <div class="verse indent0">Teu mal sustido chôro eis recomeça!</div> - <div class="verse indent0">Só a dor te contenta, á dor sirvamos:</div> - <div class="verse indent0">Narrar-te quero a historia do cipreste,</div> - <div class="verse indent0">Que dos ramos feraes partio comtigo.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Prêzo das graças da opulenta Silvia</div> - <div class="verse indent0">Titiro guardador de pobre armento,</div> - <div class="verse indent0">Com seus ais estes montes abalava.</div> - <div class="verse indent0">A bella desdenhosa, muitas vezes</div> - <div class="verse indent0">Quando o sentia a modular ternura</div> - <div class="verse indent0">Ao som da flauta n’um sombrio valle,</div> - <div class="verse indent0">Torcia, por não ve-lo, o seu caminho.</div> - <div class="verse indent0">Ah se o visse, estendido entre o rebanho,</div> - <div class="verse indent0">O pranto a borbulhar nos fitos olhos,</div> - <div class="verse indent0">E ao som da flauta, em baixa voz unidos</div> - <div class="verse indent0">De quando em quando um ai, e o nome d’ella!</div> - <div class="verse indent0">Rigores virginaes, desdens de rica</div> - <div class="verse indent0">A amor, á compaixão talvez cedessem,</div> - <div class="verse indent0">E ficasse mais bella, a ser piedosa.</div> - <div class="verse indent0">Por só consolação de seus desgostos,</div> - <div class="verse indent0">Co’a pèga que ja foi da ingrata Silvia</div> - <div class="verse indent0">Folgava repetir de Silvia o nome.</div> - <div class="verse indent0">Nunca a avezinha ao misero deixava,</div> - <div class="verse indent0">Que assim a havião prêza os novos mimos.</div> - <div class="verse indent0">Só ás vezes aos lares revoando</div> - <div class="verse indent0">Da formosa cruel, de la trazia</div> - <div class="verse indent0">Furtada alguma prenda ao pobre dono;</div> - <div class="verse indent0">Sem querer lhe atiçava o fogo inutil.</div> - <div class="verse indent0">Era triste, mas doce, ouvir de noite</div> - <div class="verse indent0">Pelos bosques bradar “Ó Silvia, ó Silvia”</div> - <div class="verse indent0">O terno amante; e acompanha-lo a pêga,</div><span class="pagenum"><a id="Page_121"></a>[121]</span> - <div class="verse indent0">Ja pouzada em seu hombro, ou ja gritando</div> - <div class="verse indent0">La de cima de um tronco “Ó Silvia, ó Silvia!”</div> - <div class="verse indent0">Longos tempos assim pelas florestas</div> - <div class="verse indent0">Vagar se ouvirão solitarios ambos;</div> - <div class="verse indent0">Té que o loquaz brutinho de cançado</div> - <div class="verse indent0">Veio um dia caír entre as mãos d’elle,</div> - <div class="verse indent0">Bateo as azas, terminou seus dias.</div> - <div class="verse indent0">Á fiel companheira ultimas honras</div> - <div class="verse indent0">Deo como poude Titiro: sagrou-lhe</div> - <div class="verse indent0">Um pequenino tumulo de barro,</div> - <div class="verse indent0">E um ciprestinho de anno, que por novo</div> - <div class="verse indent0">Inda estudava o geito de ser triste.</div> - <div class="verse indent0">Aos Numes implorou que o não crescessem:</div> - <div class="verse indent0">Mas pouco e pouco o tronco foi subindo,</div> - <div class="verse indent0">E com elle de Titiro a saudade.</div> - <div class="verse indent0">Bem póde ser que o tumulo não visses,</div> - <div class="verse indent0">Que ervas espessas de redor o afogão</div> - <div class="verse indent0">Ah desde que o pastor tambem jaz morto,</div> - <div class="verse indent0">Morto ás mãos da saudade, e em terra alhêa!</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Tempo he da Festa. Á Festa!—Ahi estão as flautas</div> - <div class="verse indent0">Ja silvando rebate ás alegrias!</div> - <div class="verse indent0">Travai dança, alta dança ruidosa,</div> - <div class="verse indent0">Quaes em seu monte os Sátiros a saltão!</div> - <div class="verse indent0">Venhão de apoz os hinos: logo Bacho</div> - <div class="verse indent0">Nos acuda co’as taças, menineiro</div> - <div class="verse indent0">No aspéto e no palrar, no resto annoso,</div> - <div class="verse indent0">De cãs a reluzir por entre as parras.</div> - <div class="verse indent0">Ser-lhe-ha boa salva o retinir dos cópos</div> - <div class="verse indent0">E os das saudes misturados gritos.</div> - <div class="verse indent0">Do altar meu canto agora ascenda ao Nume!</div><span class="pagenum"><a id="Page_122"></a>[122]</span> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Vem ó Dona das Graças e Flores,</div> - <div class="verse indent0">Volve á terra teu mago calor;</div> - <div class="verse indent0">Aos que fogem de amor gera amores,</div> - <div class="verse indent0">Nos que a amores se dão cria amor.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Tu és Venus, a Grecia delira</div> - <div class="verse indent0">Crendo-a Filha do túrbido mar,</div> - <div class="verse indent0">Tu és Venus e Musa da lira,</div> - <div class="verse indent0">Cumpre á lira teu Nume exaltar.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Tu és Dríade, e Náiade, e Flora,</div> - <div class="verse indent0">Mocidade e Saude e Prazer,</div> - <div class="verse indent0">Com mil nomes o mundo te adora,</div> - <div class="verse indent0">Mil poderes compoem teu poder.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Do Ceo puro és a noiva córada,</div> - <div class="verse indent0">És só d’elle como elle he só teu;</div> - <div class="verse indent0">Rica em trajos, de aromas banhada</div> - <div class="verse indent0">A seus beijos te off’rece Himeneo.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Feliz extase, abraço jocundo</div> - <div class="verse indent0">Do consorcio completa as prizões,</div> - <div class="verse indent0">Primavera, em teu seio fecundo</div> - <div class="verse indent0">Ja pullullão mais trez estações.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Á voz tua amorosa e macia,</div> - <div class="verse indent0">A teu mago e perpetuo sorrir</div> - <div class="verse indent0">Tudo cede, e te adora á porfia,</div> - <div class="verse indent0">Como te ha de o mortal resistir?</div><span class="pagenum"><a id="Page_123"></a>[123]</span> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Léda brinca a feliz meninice,</div> - <div class="verse indent0">Léda a ninfa em seus dons se revê,</div> - <div class="verse indent0">Lédo o velho desruga a velhice,</div> - <div class="verse indent0">Tudo he lédo, e não sabe o porque.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Onde assomas o mato florece,</div> - <div class="verse indent0">Desatina a avezinha a cantar,</div> - <div class="verse indent0">Côr d’esp’ranças a terra amanhece,</div> - <div class="verse indent0">Arde o peixe nas brenhas do mar.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Perde as iras a rábida fera,</div> - <div class="verse indent0">E se estranha de ter coração.</div> - <div class="verse indent0">Primavera, que és tu Primavera?</div> - <div class="verse indent0">Vida, fôrça, virtude, união.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Desde que abre ao carneiro doirado</div> - <div class="verse indent0">Hora alegre o celeste redil,</div> - <div class="verse indent0">E das sombras e gelo espalhado</div> - <div class="verse indent0">Despe as terras Favonio subtíl;</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Despe a mente por ti bafejada</div> - <div class="verse indent0">Suas neves e escuro invernal,</div> - <div class="verse indent0">Ressuscita de flores toucada,</div> - <div class="verse indent0">Enche a lira, nem sôa mortal.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Pois tu és quem me acorda e me inflamma,</div> - <div class="verse indent0">A ti, Deoza, os meus versos serão.</div> - <div class="verse indent0">Mas debalde o meu estro te chama,</div> - <div class="verse indent0">Os meus olhos jamais te verão!</div><span class="pagenum"><a id="Page_124"></a>[124]</span> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Amigos, baixo he o Sol, findem-se os hinos:</div> - <div class="verse indent0">Ponde silencio aos copos falladores;</div> - <div class="verse indent0">Assaz he tempo. O dia era dos campos,</div> - <div class="verse indent0">Ás aguas toca a noite; a noite grave,</div> - <div class="verse indent0">Recolhida, saudosa, ama pascer-se</div> - <div class="verse indent0">No murmurinho de deserto rio:</div> - <div class="verse indent0">Tambem o coração tem dia e noite,</div> - <div class="verse indent0">E precisa dos bens desenfadar-se.</div> - <div class="verse indent0">Largo dista a corrente; o passo aperte</div> - <div class="verse indent0">Quem sabe quanto he grato á luz de estrellas</div> - <div class="verse indent0">Ouvir palrar as Náias a deshoras.</div> - <div class="verse indent0">Vamos tomando o gôsto aos fins da tarde;</div> - <div class="verse indent0">E emquanto mais ligeiro o bom Josino</div> - <div class="verse indent0">Corre a aprestar a barca, entreteremos</div> - <div class="verse indent0">O caminhar, colhendo rosmaninho</div> - <div class="verse indent0">Para o colchão nóturno. ¡Que delicias,</div> - <div class="verse indent0">Ir-se acamado em flores aboiando</div> - <div class="verse indent0">Á luz modesta da nascente lua!</div> - <div class="verse indent0">Ama o rio os cantares de saudade;</div> - <div class="verse indent0">Cantares de saudade atiraremos</div> - <div class="verse indent0">Até ao mar pelas sombrias margens.</div> - <div class="verse indent0">Logo que o não rogado, amigo sono,</div> - <div class="verse indent0">De papoulas toucado perguiçosas,</div> - <div class="verse indent0">Lá nos for procurar, e manso e manso</div> - <div class="verse indent0">Forem caindo os sons e pensamentos,</div> - <div class="verse indent0">Iremos amarrar na margem muda</div> - <div class="verse indent0">A qualquer tronco a barca flutuante:</div> - <div class="verse indent0">Lançaremos por cima o branco toldo,</div> - <div class="verse indent0">Bastante abrigo do nóturno orvalho:</div> - <div class="verse indent0">E estendidos macio, e conversando</div> - <div class="verse indent0">Em voz baixa, embalados cederemos</div> - <div class="verse indent0">Ao começado sono os restos da alma.</div> - <div class="verse indent0">Quando alta noite algum de nós acorde</div><span class="pagenum"><a id="Page_125"></a>[125]</span> - <div class="verse indent0">A um leve crepitar do linho undaute,</div> - <div class="verse indent0">Cuidará que uma Náiade surgíra</div> - <div class="verse indent0">Fóra da agua a cabeça curiosa,</div> - <div class="verse indent0">E inclina o seio ao bôrdo; e nos espreitas</div> - <div class="verse indent0">Assim como alvoreça, a luz da aurora,</div> - <div class="verse indent0">E vós, madrugadoras andorinhas,</div> - <div class="verse indent0">Para o campo acordado heis de acordar-nos.</div> - <div class="verse indent0">Correremos as candidas cortinas,</div> - <div class="verse indent0">E veremos de subito, encantados,</div> - <div class="verse indent0">Sobre nós a verdura estar pendente,</div> - <div class="verse indent0">Do pranto da manhã ja rociada.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Não tarda o Sol momentos em sumir-se;</div> - <div class="verse indent0">No mais vivo escarlate ensopa os campos,</div> - <div class="verse indent0">Tinge a folhage, os rostos nos accende,</div> - <div class="verse indent0">Por montes e olivaes dos ceos oppostos</div> - <div class="verse indent0">Começa a desdobrar seu manto a noite.</div> - <div class="verse indent0">Busca o rustico azilo o boi tardio;</div> - <div class="verse indent0">Por toda a parte os gados vão passando.</div> - <div class="verse indent0">Sustenhamos o halito, escutemos</div> - <div class="verse indent0">Esta distante musica toada</div> - <div class="verse indent0">Que assim transporta os animos em gôstos:</div> - <div class="verse indent0">He toda feminil, toda feitiços,</div> - <div class="verse indent0">Vem toda ao coração; oh se a conheço!</div> - <div class="verse indent0">Pastoras são, que ao longe no arvoredo,</div> - <div class="verse indent0">Vão para a aldea recolhendo em chusma</div> - <div class="verse indent0">O tropel dos rebanhos misturados.</div> - <div class="verse indent0">Cantão, porque he sazão de primavera,</div> - <div class="verse indent0">E peito de mulher, como avezinha,</div> - <div class="verse indent0">Desfaz-se em canto e amor em vendo flores:</div> - <div class="verse indent0">Cantão, porque de um dia assim formoso</div> - <div class="verse indent0">Serão formoso as toma, e o fuso leve</div> - <div class="verse indent0">Que andou por solidões um dia inteiro,</div><span class="pagenum"><a id="Page_126"></a>[126]</span> - <div class="verse indent0">Vai girar no conchego da fogueira;</div> - <div class="verse indent0">E cantão, porque flautas de pastores</div> - <div class="verse indent0">Que vão na companhia, as desafião.</div> - <div class="verse indent0">Mas tantos sons confunde-os a distancia,</div> - <div class="verse indent0">Figura-se uma voz de tantas vozes;</div> - <div class="verse indent0">Como que uma só boca a manda aos ares,</div> - <div class="verse indent0">Exprime um só afféto, um só deseja.</div> - <div class="verse indent0">Oh Natureza! oh Tarde! oh Primavera!...</div> - <div class="verse indent0">Lagrimas de prazer vertem meus olhos!</div> - <div class="verse indent0">Somos em bosques de propícias Fadas?</div> - <div class="verse indent0">Ou vaguêo ja Sombra, e vós comigo,</div> - <div class="verse indent0">Na semi-vida e semi-luz do Elisio?</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Ja tudo se esvaío, tudo he silencio:</div> - <div class="verse indent0">Por campo e campo ao largo impera a Noite.</div> - <div class="verse indent0">Erguida a lua nova o horror lhe troca</div> - <div class="verse indent0">Em saudosa tristeza, e o mocho alerta</div> - <div class="verse indent0">La do alto a ajuda com o piar carpido:</div> - <div class="verse indent0">Ja ouço o estrepitar das frescas aguas.</div> - <div class="verse indent0">Vem barquinha da noite, perguiçosa,</div> - <div class="verse indent0">Vem, toma o rosmaninho, e a nós recebe,</div> - <div class="verse indent0">Oh que ameno he pousar passada a lida,</div> - <div class="verse indent0">Em meio de aguas tantas, rodeado</div> - <div class="verse indent0">De amigos bons, e triste, não de proprias</div> - <div class="verse indent0">Tristezas, sim das mansas do Universo!</div> - <div class="verse indent0">Ouvi, amigos meus, os meus dezejos,</div> - <div class="verse indent0">Quaes mos ora no seio estão brotando</div> - <div class="verse indent0">A hora, o sítio, a lua, aquelles pios;</div> - <div class="verse indent0">Relevai que ao folgar vos furte instantes.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Seios Deozes minhas supplicas ouvissem,</div> - <div class="verse indent0">Um torrão fertil, rústica vivenda,</div> - <div class="verse indent0">Houvérão de abrigar-me a vida pura:</div><span class="pagenum"><a id="Page_127"></a>[127]</span> - <div class="verse indent0">La minhas ambições se fartarião</div> - <div class="verse indent0">De nobre, de quieta obscuridade.</div> - <div class="verse indent0">Mas pois que de outra sorte aprouve aos Deozes,</div> - <div class="verse indent0">E o fio, não de lã grosseira e nívea,</div> - <div class="verse indent0">Me torcem, mas de ferro as trez do Averno,</div> - <div class="verse indent0">Guardai vós na memoria o meu dezejo.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Depois que entre os abraços delirantes</div> - <div class="verse indent0">De todos os que amei, findar meus dias,</div> - <div class="verse indent0">Sepultai-me n’um valle ignoto e fertil<a id="FNanchor_10" href="#Footnote_10" class="fnanchor">[10]</a>.</div> - <div class="verse indent0">Para marcar da sepultura o sítio,</div> - <div class="verse indent0">Sôbre o cadaver, que vos foi tão caro,</div> - <div class="verse indent0">Mangeronas plantai, cuja verdura</div> - <div class="verse indent0">Em roda fechem variados lirios.</div> - <div class="verse indent0">Na raiz funda de soberba olaia</div> - <div class="verse indent0">Pouze a minha cabeça, e o tronco amigo</div> - <div class="verse indent0">Sobre mim curve a cópa florecente.</div> - <div class="verse indent0">Mil piteiras unidas, ostentando</div> - <div class="verse indent0">Na hastea vaidosa as flores amarellas,</div> - <div class="verse indent0">Em quadrado não grande me defendão</div> - <div class="verse indent0">Das incursões das cabras roedoras.</div> - <div class="verse indent0">Em meu tronco se escreva este epitafio:</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2"><i>Foi poeta amador da Natureza:</i></div> - <div class="verse indent0"><i>D’entre as sombras ancioso a procurava,</i></div> - <div class="verse indent0"><i>Qual terno amante a bella fugitiva.</i></div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">Sôbre isto pendurai sonora flauta,</div><span class="pagenum"><a id="Page_128"></a>[128]</span> - <div class="verse indent0">Que se revolva á discrição do vento.</div> - <div class="verse indent0">Não cerque os ossos meus, não mos ensombre</div> - <div class="verse indent0">Nem teixo nem cipreste; arvores quatro</div> - <div class="verse indent0">Quizéra só no meu jardim de morte.</div> - <div class="verse indent0">N’um canto a larangeira graciosa,</div> - <div class="verse indent0">Que mescla util e doce, a flor e o fruto:</div> - <div class="verse indent0">N’outro a figueira sob as amplas folhas</div> - <div class="verse indent0">Modesta occulte seus nectareos mimos:</div> - <div class="verse indent0">Defronte um pecegueiro em frutos mostre</div> - <div class="verse indent0">Que amavel he pudor, quando enche faces</div> - <div class="verse indent0">De penugem subtil inda cobertas:</div> - <div class="verse indent0">No ultimo canto ... (a escolha me confunde)</div> - <div class="verse indent0">Plantai no ultimo canto uma ginjeira,</div> - <div class="verse indent0">He a arvore da infancia, até na altura;</div> - <div class="verse indent0">D’esta por sua mão colhe um menino</div> - <div class="verse indent0">A mui ridente baga, e ri de ufano.</div> - <div class="verse indent0">Alguns tempos depois que a fria terra</div> - <div class="verse indent0">Meus restos encerrar, á minha olaia</div> - <div class="verse indent0">Vós, meus amigos, vós dareis meu nome,</div> - <div class="verse indent0">Pois de mim se nutrio, e eu serei n’ella.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Dos guerreiros nos tumulos afiem</div> - <div class="verse indent0">Faminta espada os barbaros guerreiros:</div> - <div class="verse indent0">No sepulchro do sabio o sabio estude;</div> - <div class="verse indent0">E dos reis nos marmoreos monumentos</div> - <div class="verse indent0">Vá sonhar a ambição, grandeza e pompas:</div> - <div class="verse indent0">Vós soltos de freneticas loucuras</div> - <div class="verse indent0">Aqui vireis mil vezes vizitar-me,</div> - <div class="verse indent0">Na amizade pensar que nos uníra,</div> - <div class="verse indent0">E unir-nos deverá transposto o Lethes.</div> - <div class="verse indent0">Porque me interrompeis com taes suspiros?</div> - <div class="verse indent0">Ah! deixai-me acabar. Quando sentados</div> - <div class="verse indent0">Emtorno a mim na flórida alcatifa,</div><span class="pagenum"><a id="Page_129"></a>[129]</span> - <div class="verse indent0">Guardardes meditando alto silencio,</div> - <div class="verse indent0">Se d’entre as mangeronas que me cobrem,</div> - <div class="verse indent0">Saír acaso a borboleta errante,</div> - <div class="verse indent0">¿Não vereis n’ella o espirito do amigo</div> - <div class="verse indent0">Que vem gozar do sol a claridade?</div> - <div class="verse indent0">Quando o suave rouxinol de noite</div> - <div class="verse indent0">Da minha olaia gorgear nos ramos,</div> - <div class="verse indent0">Não pensareis, de santo horror tranzidos,</div> - <div class="verse indent0">Que feito rouxinol, meus cantos sólto?</div> - <div class="verse indent0">Sim pensareis, e erguendo-se inspirado</div> - <div class="verse indent0">Algum lhe ha de bradar “Ó meu Amigo!”</div> - <div class="verse indent0">Responderáõ “Ó meu Amigo” os bosques;</div> - <div class="verse indent0">E vós direis que o meu fantasma errante</div> - <div class="verse indent0">Da argentea lua á muda claridade,</div> - <div class="verse indent0">Á conhecida voz d’alem responde,</div> - <div class="verse indent0">E em tudo encontrareis a imagem minha.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Se inda então meus costumes vos lembrarem,</div> - <div class="verse indent0">Se vos lembrar meu coração piedoso,</div> - <div class="verse indent0">Velai que em meu retiro as bellas aves</div> - <div class="verse indent0">De caçador cruel cantem seguras:</div> - <div class="verse indent0">Amor, o leve Amor, com arco d’oiro,</div> - <div class="verse indent0">Só elle e mais ninguem, logre atirar-lhes;</div> - <div class="verse indent0">Careço de amorosa melodia</div> - <div class="verse indent0">Que me poetize o sono derrabeiro:</div> - <div class="verse indent0">Morto que nada tem preciza d’estas</div> - <div class="verse indent0">Pobres delicias rusticas, se folga</div> - <div class="verse indent0">Que a namorada moça, o terno amante</div> - <div class="verse indent0">Juntos ou sós, a vizitá-lo acudão.</div> - <div class="verse indent0">Então ao som de languidos suspiros,</div> - <div class="verse indent0">De alegres cantos, de amorosos versos,</div> - <div class="verse indent0">De ternas queixas, de perdões suaves,</div> - <div class="verse indent0">Muitas vezes contente a minha Sombra;</div><span class="pagenum"><a id="Page_130"></a>[130]</span> - <div class="verse indent0">Formando ao pôr do sol vermelha nuvem,</div> - <div class="verse indent0">Girará n’estes ares, revolvendo</div> - <div class="verse indent0">Da passada existencia almas lembranças.</div> - </div> -</div> -</div> - -<p class="center">FIM DO POEMETTO</p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_131"></a>[131]</span></p> - -<h3 class="nobreak" id="DIA_NOTAS">NOTAS<br /> -AO<br /> -POEMETTO ANTECEDENTE.</h3> - -</div> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<h4 class="nobreak" id="DIA_NOTA_1"><i><a href="#Page_109">Pag. 109.</a> verso 10.</i></h4> - -</div> - -<div class="poetry-container"> -<div class="poetry"> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">Com seus trovões, com seus coriscos <i>horridos</i>.</div> - </div> -</div> -</div> - -<p>Trazia este verso na primeira edição a seguinte -Nota—<i>Eis àhi os primeiros esdruxolos -que fiz em minha vida, e espero que sejão -os ultimos, ainda que por isso que fique excluido da -communhão de certa Seita moderna.</i>—Supprimi-a, -e no declarar o porque, vou dar não -equivoca prova da minha candura. Prezar-se -um escritor de mais amigo da verdade que de -Platão e de Aristoteles, alguma couza he; mostrar -porem que mais do que a si proprio a -ama, certo que não he vulgar o exemplo, e -esse tenho eu dado, e não raro, ja fallando ja -escrevendo limpa e rasgadamente o que de minhas -Obras me parece. He um bom propozito -que eu fiz em meu interior, e espero não quebrantar -nunca, não só porque de si he honesto -e nobre, senão que por este meio, o qual não<span class="pagenum"><a id="Page_132"></a>[132]</span> -custa mais do que algum suspiro á nossa vaidade -que sempre se torce e confrange de ser -mostrada nua, me estremarei da manada dos -charlatães literarios, de quem nem o estomago -me consente fallar. E porque chegue por direito -caminho á questão dos esdruxolos, recordarei -com vénia e boa paz dos leitores, o -que ja no Prologo da terceira Edição das minhas -<i>Cartas de Echo</i> deixei tocado; com a differença, -que d’esta vez o farei mais explicitamente.</p> - -<p>No tempo em que eu cursava meus estudos -na Universidade de Coimbra, florecia ella com -muitos e bons engenhos de mancebos dados ás -Bellas-letras. E porque ainda então se não tinhão -accendido os desastradissimos odios das -parcialidades políticas, a Hobbesiana propensão -de guerrear se exercia nas letras. Duas seitas -de escrever se contavão; a cada uma das -quaes não faltavão admiradores, apostolos e -evangelistas, assim como por isso mesmo inimigos, -escarnecedores e parodiadores. Os Livros -em que uma juramentava os seus adeptos, -erão Gessner e Bocage; Filinto era o Alcorão da -outra. Gessner quanto ás couzas e affétos, e -Bocage quanto ao térso e lustroso de estilo -e metro, erão os idolos de uma; os da -outra erão, quanto a couzas e affétos Filinto, -quanto a estilo e metro Filinto, e Filinto quanto -a tudo em que Filinto podesse bem ou mal -ser imitado. Tinha cada uma d’ellas suas vantagens -e seus descontos, como agora claramente<span class="pagenum"><a id="Page_133"></a>[133]</span> -diviso, quando as considero com animo livro -e desassombrado de preoccupações. Não fallarei -aqui de Gessner, porque ja no Prologo o -fiz; confrontarei somente, e de corrida, Elmano -e Filinto.</p> - -<p>A ambos dotára natureza de talentos, bem -que entre si diversissimos, assaz fortes todavia -que podessem cunhar á sua feição a poesia do -seus tempos. Elmano, que talvez em seu genero -nos ficará sendo unico, de fôrça devia deslumbrar -e encantar pelo caudal inexhaurivel, brilhante -e estrepitoso de sua vêa, que eu appellidarei, -e ria quem rir, um Niagara de talento: -e assim como, os que pasmão deante d’essa -grande catarata de puro embevecidos em -sua cópia e magnificencia, não tem olhos para -notar o esteril do seu curso, o assolador do -seu ímpeto, e os penedos que rója envoltos e -desfarçados com suas aguas, assim os que presentes -assistirão ao poetar de Bocage, ou da -tradição o receberão, fascinados com os seus -estrondos, espumas e iris, mal se podem lembrar -de lhe desejar afféto, sizo, e exatidão, -que muitas vezes lhe fallecem.</p> - -<p>Cinco couzas, pelo menos, para o bom poeta -se requerem: <i>faculdade inventiva</i>—<i>faculdade -sensitiva</i>—<i>sciencia</i>—<i>lingua</i>—<i>e ouvido</i>; e -ainda com estas cinco outra, que talvez resultará -rempre de sua união, e sem a qual todas -as mais seráõ baldadas; fallo d’aquelle discernimento -pronto, que a muitos erradamente pafeceo<span class="pagenum"><a id="Page_134"></a>[134]</span> -instinto, e a que se costuma dar nome -de <i>gôsto</i>. Em raros sujeitos concorrem tantos -predicados; por isso só de longe a longe apparecem -os maximos poetas, e ja se dão por -grandes aquelles a quem menos faltou d’estes -requisitos. —</p> - -<p><i>Faculdade inventiva</i> ou não a tinha, ou apenas -a tinha Manoel Maria; a sua queda para -tradutor bastaria para indicio, se de indicios -te carecesse aonde claras reluzem as provas: -um <i>Fado</i>, um <i>Jove</i>, <i>Eternidade</i>, <i>Natureza</i>, -<i>Sóes</i> e <i>Caos</i> são o <i>index rerum notabilium</i> da -maior parte de seus escritos; e tanto abunda -n’estes bordões sustedores e disfarçadores de -sua fraqueza, como Ferreira (e quem descobrirá -os meus?) na cançada repetição do <i>esprito</i>, -Jorge de Montemayor na de <i>hermoso</i> e <i>hermosura</i>, -Pina e Mello na de <i>alento</i> e <i>impulso</i>, -Alfeno Cynthio na de <i>santo</i> (epítheto, que por -mais não ter onde o pegue, até o poem, se bem -me lembro, como arrebique na cara de suas pastoras -e namoradas): com a differença que os -particulares bordões d’estes poetas, e ainda outros -de outros muitos, não são em suas Obras -senão meras circunstancias e accidentes, e os -de Bocage menos são estribilhos do que fundo -o substancia de inteiros e repetidos periodos.</p> - -<p>De <i>faculdade sensitiva</i> talvez o houvesse menos -escaçamente dotado a natureza, mas outras -qualidades que lhe ella mesma deo em maior -auge, taes como volubilidade de fantasia,<span class="pagenum"><a id="Page_135"></a>[135]</span> -aspereza de condição, espirito sobranceiro e satírico, -e coração, como elle mesmo confessa.</p> - -<p><i>Mais propenso ao furor do que á ternura,</i> -lhe entibiarão os affétos benignos, de que sé -a longes distancias lhe sáe, como a descuido, -algum reflexo. A estes máos e naturaes elementos -accrescêrão desvarios da fortuna ou do acaso, -bem valentes para de todo lhe seccarem a -fonte das branduras. Vida mal preparada de -educação, nua dos amoraveis habitos domesticos, -desalumiada de doutrina e estudo, aturdida -de applausos contínuos e encarecidos, -amargurada amiude de pobreza, vagabunda entre -amigos não amados e por terras não suas, -vida, porque tudo diga, corrida á ventura e -sem norte conhecido, desenfreada de todas as -leis, sôlta por todos os vicios, cínica por timbre, -e por indole silvestre e bravia, como podia -ser que lhe não tisnasse no germen os affétos -maviosos? Isso foi, e isso conhece quem -bem attento o ler e meditar. Mas em desconto, -as paixões fortes como o ciume, a colera, -a vingança, sente-as e pinta-as vigoroso, assim -como todos os objétos grandiosos, remontados, -encarecidos, ou terriveis. Não vos debuxará -um mendigo, avergado de annos, estendido -n’umas palhas esquecidas, junto do cão -seu ultimo companheiro, e orando no desamparo -da noute, por quem, sem o convidar para -a sua fogueira do inverno, lhe deo fóra da -porta meia fatia de pão; nem ainda as carícias -de uma mãi a seu filho: mas dir-vos-ha, -rico e altisono, os impetos de uma tempestade,<span class="pagenum"><a id="Page_136"></a>[136]</span> -a sanha de uma batalha, as iras de uma -madrasta, ou as furias de um infeliz que pragueja -sua má ventura.</p> - -<p>Os affétos e a invenção póde a <i>sciencia</i> por -álgum modo suppri-los, opulentando-nos com -os affétos e invenção de melhores autores, uma -vez que por nós tenhamos a arte de bem escolher, -bem digerir, e bem converter esses literarios -alimentos em substancia nossa, em nosso -proprio ser: ainda mui boa estrella he essa, -e não poucos dos afamados desde Virgilio até -ós nossos dias, só á sciencia, e a essa arte de a -aproveitar, haverão devido a melhor parte do -seu credito. He o saber, princípio e fonte de -bem escrever, dizia o Mestre dos poetas; e -dizia o dos oradores, que uns e outros era mister -entenderem de tudo. E se ja isso foi nos -tempos antigos conselho e quasi preceito, preceito -absoluto se tornou, e necessidade, para -quem escreve n’estes tempos, em que a luz se -derramou mais ampla, em que as sciencias, -cançadas de viver sobre si, se congregarão como -boas irmãs em uma só familia, juntarão -os seus patrimonios em commum, e cada uma -ajudando a todas as outras, vem a por todas ellas -receber um infinito accrescimo em seu peculio. -Limitadissima era a instrução de Bocage: -o latim e o francez, na primeira de cujas -linguas mormente era primoroso sabedor, -segundo referem, podérão ter-lha dado copiosissima: -mas nem a viveza de seu animo, os -prazeres e os divertimentos que em seu cerrado<span class="pagenum"><a id="Page_137"></a>[137]</span> -círculo o trazião como enfeitiçado, lhe permittião -estudos, nem são elles facil couza para -pobres e viciosos, nem o que era saudado -por divino, como quer que <i>desatasse na voz o -acceso turbilhão</i> de suas ideas, carecia de ir -excavar em livros o suado cabedal, com que -outros negocêão veneração.</p> - -<p>Quanto á <i>linguagem</i>, não será pêjo dizer, -que a usava limpa e sã, não se podendo taxar -a sua de mendiga e remendada, como -a ja muitos de seus contemporaneos vinha acontecendo, -nem encarecer de rica e ambiciosa: -pouco tinha lido do portuguez, mas esse -pouco com aproveitamento: só d’isso ajudado, -e do latim la se foi remindo e esteando a -sua Musa sem emprestimos do francez; e este -carecer de vicios ja então era grande virtude. -Para lhe darem, como a texto, cabimento em -nosso Diccionario<a id="FNanchor_11" href="#Footnote_11" class="fnanchor">[11]</a>, não vejo eu razão sufficiente, -assim como a não ha para o desprezo -e esquecimento, em que os havidos por puritanos -o deixárão cair. Uma couza he porem verdade -irrefragavel, e he, que em nenhum escritor, -antigo nem moderno, apparece a lingua -portugueza mais senhoril e polida, mais igual -e ao meio entre o usual e o sublime, entre a -penuria e a prodigalidade.</p> - -<p>Somos chegados á <i>harmonia</i>, o mais eminente<span class="pagenum"><a id="Page_138"></a>[138]</span> -merito de Bocage, e no qual nem antecessor -teve, nem ainda até hoje successor. -De todas as partes que em Bocage concorrião -para poeta, nenhuma havia tão delicada, e em -que tanto se houvesse a natureza esmerado como -o ouvido. A verdadeira musica dos nossos -metros, particularmente do hendecassíllabo, não -só a desempenhou e ensinou elle, senão que a -inventou; e com felicidade tão rara, que não -cuido se possa a pontar hespanhol, e nem por ventura -italiano que o iguale, e mais he o italiano -pela abundancia de suas brandas e variadas -vogaes, pelo moderado e macio de suas -consoantes, pelas licenças e elasticidade de -seus vocabulos, muito mais pronto e domavel -para todo o uso métrico do que o portuguez. -Poucos estafárão tanto os consoantes como Bocage -(e ainda ahi he grande o seu louvor, que -não he dado rimar mais primorosamente); mas -a ninguem erão os consoantes mais escuzados: -são esses para o verso uns arrebiques e sinaes -com que os mal assombrados se disfarção, para -poderem apparecer, mas de que os graciosos -e bellos não carecem, nem os devem consentir, -por não parecerem menos do que são. -Porque não ouzarei eu dizer, que mais são os -seus versos poeticos, do que era poeta elle proprio? -Como simples cantilena agradão, agradão -ainda quando por vãos os engeita o juizo -e o coração por frios: um estrangeiro que -ignorante d’esta lingua os ouvisse bem e devidamente -ler, recrear-se-hia como com a toada -de um bem tangido instrumento. Grande excellencia<span class="pagenum"><a id="Page_139"></a>[139]</span> -por certo he esta, á qual principalmente -deveo levar traz si suspensos e encantados -os animos, e por onde logrou ser, sem o -cuidar, fundador de uma escola, que se me não -engano, ainda de todo não passou. Toda a -gloria de engenho he oiro em que nunca faltão -fezes: o produzir pela mágica de sua versificação -uma seita de versificadores, por honroso -se podéra haver, se aos discipulos podesse -ter transmittido, juntamente com as normas, -o talento, a fôrça, a graça e o gôsto com -que as produzia e aperfeiçoava: porem quiz algum -Genio máo, para lhe humilhar a vaidade -e descontar a vitoria, que a maior parte -de seus sectarios menos lhe tomassem a melodia -do que os escarcéos, as empollas, os trocadilhos, -as apóstrofes, as redundancias, e os -versos que ja se hoje chamão de dobrar,</p> - -<div class="poetry-container"> -<div class="poetry"> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2"><i>Seu mais doce penhor, seu bem mais doce.—</i></div> - <div class="verse indent0"><i>Vio n’ella os risos, vio as graças n’ella.—</i></div> - <div class="verse indent0"><i>Um Deos não he perjuro, um Deos não mente.</i></div> - <div class="verse indent0"><i>Que não paga de um Deos, de um Ceo não paga,</i></div> - <div class="verse indent0"><i>Ouzaste pregoar mais Ceos, mais Deozes.—</i></div> - </div> -</div> -</div> - -<p class="noindent">versos, que parcamente lançados, como nas -Obras de Virgilio, tem graça; semeados a frouxo -são affeites e desdoiros do estilo.</p> - -<p>Do seu <i>gôsto</i> ja me julgo dispensado de fallar, -porque me parece que o que d’isso podéra -dizer por si mesmo está nascendo do que fica -dito. Concluamos: o que de Bocage digo em<span class="pagenum"><a id="Page_140"></a>[140]</span> -geral, com suas exceções se ha de entender, -porque por uma parte muitas paginas ha suas, -mormente em algumas traduções do francez, -onde parece lhe esqueceo pôr o tal verniz de -dicção e sons que para si inventára, e de que -a ninguem deixou a verdadeira receita: e por -outra parte tambem, obras ternos suas, mormente -sonetos e traduções latinas, cabaes e redondissimamente -perfeitas.—Passemo-nos já -a tomar iguaes contas a Filinto.</p> - -<p>Muito mais melindroso he este processo, até -porque ja o querer tomar-lhas será para seus -apaniguados um crime de leso Apollo, e primeira -cabeça. Valha-me porem a declaração -que faço, de que em tudo quanto disser, -não seguirei outras partes que as de minha -razão, declarando previamente que muito pouco -dou eu mesmo por ella; mais são consultas -que faço que sentenças que profiro, e antes -exercicios de imparcialidade do que acintei de -inimigo: de ninguem o sou, quanto mais de -poetas, de perseguidos, de velhos, de mortos. -Foi tempo em que eu, obscuro poetastre do -Mondego, ria e vazava epigrammas contra o -tradutor dos <i>Martyres</i>: hoje se me afigure -muito mais valioso. He elle o mesmo, mudei -eu; Deos sabe quantas vezes mudarei ainda -com os annos: do mudar não he nossa a culpa; -nossa he porem, e feíssima a de persistir -no erro conhecido; se a republica literaria -tivesse inquisidores, por heresia e contumacia -que não havião relaxar ao braço secular. Ha<span class="pagenum"><a id="Page_141"></a>[141]</span> -por ahi muito homem do meu officio que possa -dizer de si outro tanto? Mas deixemos esses -que estão vivos, e vamo-nos a Filinto.</p> - -<p>Se he ou não <i>creador</i>, ja vi ser renhida -questão entre ociosos: para mim tenho que -semelhante titulo mal lhe pode caber. O frequente -verter ha pouco disse eu que denunciava -esterilidade; e podéra accrescentar uma sentença -ainda mais desabrida, que ha muito -encontrei, cuido que nas Lições literarias do -Doutor inglez Blair, e que muito me caío; a -saber, que o costume de traduzir, bem que -olhado pela rama pareça dever ser frutífero, -sempre ao cabo vem a desgastar-nos a faculdade -inventiva. Compara-lo hei com o linho, -que apezar de tão precizo no mundo e de tão -agradavel aos lavradores depois de colhido, -por isto só desgosta a muitos d’elles, que a terra -onde se criou fica magra, e como elles dizem -queimada para outras novidades. Muito -mais de metade dos tomos de Filinto trazem -no titulo os nomes de autores estranhos, devendo-se -ainda lançar a este rol por boa restituição, -bastantes Obras, que talvez por descuido, imprimio -sem nenhuma menção de serem, como -erão, vertidas. As imitações são no merito e -inconvenientes meias traduções, e as do nosso -poeta são numerosissimas, disfarçadas umas, -outras manhosamente dissimuladas. No resto -que he de sua lavra, apenas se nos depara -couza que abone talento original e produtivo a: -são os chamados lugares communs de poesia<span class="pagenum"><a id="Page_142"></a>[142]</span> -filosofica, que ja por safados custão a passar, -e as tão esfalfadas visões e apparecimentos de -Apollos, de Musas, de Amores, de Pégasos, -e de outros mil defuntos, a quem o tempo ja -comeo o balsamo, e que todavia são ainda a -unica povoação de quasi todos seus poemas, tanto -jocosos como sérios. Algumas vezes me vem -desconfianças de que n’aquelle passo da Sátira -do <i>Bilhar</i>, em que o nosso Tolentino parece -rir de certas Odes, contra Filinto hia tirada -a seta de sua crítica:</p> - -<div class="poetry-container"> -<div class="poetry"> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2"><i>Co’as verdes mãos o serpeado Tejo</i></div> - <div class="verse indent0"><i>Alça o trilingue, mádido tridente;</i></div> - <div class="verse indent0"><i>Mas que Górgona filtra? eu vejo, eu vejo ...</i></div> - <div class="verse indent0">Em dizendo isto he Ode certamente.</div> - </div> -</div> -</div> - -<p>Em <i>affétos</i> porem sobreleva a Bocage, e não -abunda. A espaços lhe vislumbrão assomos d’aquella -sismadora melancolia, que mais ou menos -respira em todos os bons poetas. As amarguras -e saudades, que em tão larga vida e desterro -lhe não faltárão, alguma, e não rara -vez, lhe soprárão versos amoraveis, e deliciosos -de tristeza. He este de todos os dotes de -poeta o mais caramente comprado; sendo assim -que Deos sabe quantas vezes em applaudir -um verso que nos toca, batemos por ventura -palmas a calados infortunios de quem -no-lo escreveo. Não nos assuntos ditos <i>sentimentaes</i> -se conhece tanto o verdadeiro sentimento, -como nos de indole mais fria e izenta; -porque, se n’estes ultimos apparece inesperada<span class="pagenum"><a id="Page_143"></a>[143]</span> -uma palavra maviosa, n’uma flor de festa -uma nôdoa de lagrima a descuido, ahi vem o -infallivel documento de ternura e suavidade: -e d’estas sombras de lagrimas, d’estas palavras, -maviosas achamo-las em Filinto.</p> - -<p>Na <i>sciencia</i> he que elle mais notoriamente -leva a palma ao seu contendor. Que muito? -com o dôbro de vida, com precizáõ -de estudar para se divertir das mágoas e ganhar -pão, com o ar e tráfico de Paris onde -todos inspirão e expirão letras, e com tão espaçosa -velhice, pingue quadra em que as paixões -quietando nos deixão todo o silencio, remanso -e curiosidade necessarios para o estudo! -Tornarão-se-lhe familiares os classicos portuguezes -e latinos, de uns e outros dos quaes talvez -Bocage não tivesse acabado dois ou trez volumes; -familiares os classicos francezes, hespanhoes -e italianos, e ainda as versões dos inglezes -e allemães. Á roda d’elle chovião de dia a -dia, e de hora a hora, os frutos novos de todos os -ramos das Sciencias, de que he impossivel a -quem por lá vive não provar, até sem querer, -e ao cabo não se nutrir e fortificar. Entretanto -repararia eu, se o ousasse, que para quem -logrou concurso de tão favoraveis circunstancias, -como as que a sua má estrella lhe deparou, -não saío Filinto o que se podéra esperar -de noticioso e culto; e ou desaproveitou o maná -que ás mãos do espirito lhe chovia, ou se -o tomou lhe não luzio. Á primeira d’estas duas -conjéturas me inclino, porque segundo o que<span class="pagenum"><a id="Page_144"></a>[144]</span> -de seu natural alcanço por suas Obras, parece-me -que na lição das estranhas mais se hia á caça -de vocabulos e frases curiosas, insolentes -e atrevidas, do que de doutrinas e filosofia. -A sua era meã e usual: cançados louvores á -Liberdade, á Amisade e á sã Virtude, ao estudo, -ao descanço e ao deleite, alguns arremeços -de encontro aos Bonzos e Naires, eis ahi -sondado até ao lastro o seu poço de saber moral: -alguma historia não rara antiga e moderna, -eis todo o seu saber positivo; e todo o -seu saber natural, alguns dos principios geraes -e diarios das Sciencias fisicas. E certo, -que se mais avultados fossem estes seus cabedaes, -e vêa mais fecunda lhe consentisse -anciar mais altas couzas do que palavras e -frases, não se deixára ficar tanto atraz no -meio de um seculo novo e alado de poesia; -não se contentára o seu estro abstémio com a -agua do Parnaso até á ultima hora da vida; -e não nos deixára seus volumes pejados quasi -só de fabula, como armarios de muzeu antiquario, -onde se não vai procurar qual he o mundo -em que vivemos, mas deduzir de troncados -e desluzidos fragmentos, o que em tal ou tal -parte da terra houve lá n’outros tempos, com -os quaes e com a qual só pouco ou nada temos. -Diz um Escritor insigne<a id="FNanchor_12" href="#Footnote_12" class="fnanchor">[12]</a>, que a poesia assim -como ontr’ora viveo de fabula, revive hoje e -se apascenta de verdade. Melhor dissera que -de verdade viveo em todos os tempos a nobre<span class="pagenum"><a id="Page_145"></a>[145]</span> -poesia, pois que o que para nós se descubrio -fabula, era nos dias em que appareceo e florio, -verdade de factos, ou capa allegórica de -verdades, mui crida e sincera.—Resumamos; -Filinto soube mais que Bocage, menos do que -podéra, e diverso do que devêra saber.</p> - -<p>A <i>linguagem</i>, de que pela ordem se me segue -fallar, mais requeria n’este caso um tratado, -do que uma nota de fugida. Algum dia -o tentarei, quando me achar mais de assento -e sobre mão do que agora, que as justas raias -d’este escrito me estão tolhendo. He a linguagem -e elocução a principal feição caraterística -de Francisco Manoel, como de Manoel -Maria o he a harmoniosa elegancia.</p> - -<p>A torrente das hipérboles e conceitos hia arrazando -e engolindo todo o nosso Parnaso, -quando para lhe pôr a ella diques, e a elle -salva-lo, e repovoa-lo de natureza, appareceo -a Arcadia. Detençosa e ardua se representava -a obra, como aquella em que a razão nua -tinha de lutar com a imaginação delirante. Para -anteparar ímpetos de vêa tão engrossada com -as contínuas nascentes e tão copiosas de Italia, -Hespanha e Portugal, ja tão senhora do -leito e dominadora das margens, era mister -que braços fortes lhe levantassem muralhas solidas -de grossa e pezada cantaria. Virão os -Arcades como lhes estavão á mão as obras, não -todas primorosas, mas quasi todas massiças -dos nossos quinhentistas e dos romanos classieos:<span class="pagenum"><a id="Page_146"></a>[146]</span> -erão accommodadas ao intento, dizião -com seu gôsto e costume; valerão-se d’ellas, -accrescentarão-lhes as suas proprias, levantarão -o muro; bramio, quebrou e escoou-se a -inundação. Raro he o bem, que só porque o -he, não traga outros comsigo: dos trabalhos, -que havião tido por fim acabar com os nojos e -puerilidades do falso engenho, nasceo um conhecimento -mais profundo da linguagem, mais -extremoso amor á sua pureza, e o comêço do -encarniçado e ainda não findo pleito, entre a -puridade e o gallicismo. Verdade he que n’este -segundo campo se não guerreou com tão favoravel -marte como no primeiro, porque se as -maravilhas da <i>Fenix Renascida</i> passárão, os -gallicismos fôrão em successivo crescimento, -sendo ja hoje tão caudaes e trasbordados, que -princípio a desconfiar não haverá remedio senão -rendermo-nos, encruzar os braços, e deicharmo-nos -ir ao fundo: tanto estou convencido -de que nem a propria razão he poderosa contra -o espirito de um povo: e a final de contas, -Deos sabe, até n’isto, o que he razão!</p> - -<p>Era Filinto, por sua amizade e commercio -íntimo com os sujeitos de maior credito -na Arcadia, e por motivos de sua propria -conveniencia, homem que de necessidade devia -entrar na pendencia, e sustenta-la até á -ultima: n’isso assentou, e o cumprio mui -pontualmente. Entendeu desde todo o princípio, -como aquelle a quem não fallecia bom -juizo, em se prover das armas seguras e bem<span class="pagenum"><a id="Page_147"></a>[147]</span> -temperadas, sem que lhe não conviria arriscar-se -no combate: e se as defensivas que vestio -lhe podessem ter saído tão impenetraveis ás -setas do ridiculo como as offensivas que meneou -erão fortes e penetrantes, guapissimo Cavalleiro -houvéra apparecido, e invencivel. Do -antigo portuguez e do latim instituio concertar -toda sua armadura: com diurna e nóturna -mão versou pois os monumentos de ambas estas -linguas; e quanto do portuguez ja feito se -podia enthezourar, ou se lhe podia accrescentar -por derivação, por composição, por analogia, -por translação, ou por qualquer outra -licença poetica, sem embargo de desenvolta -e extrema, tudo ouzou com ardimento verdadeiramente -admiravel. Fez estranheza a novidade, -offenderão-se os mimosos com o escabroso -e difficil de tal estilo, arripiarão-se os pusillanimes -com o arrôjo, os ignorantes e priguiçosos -com a immensa fadiga que bem vião -seria necessaria para entender, não só imitar -e seguir, quem tão por fóra caminhava das veredas -batidas e vulgares. Todos estes, e com -elles os invejosos, saírão em campo, combaterão, -e apuparão, e quanto mais apupavão -e combatião, mais recrescia em Filinto o acintoso -proposito de se não descer do começado, antes -encarecê-lo sempre até o ultimo ponto. Outra -causa havia que para isto lhe fazia fôrça, e -era conhecer como sem estes bordados, recamos -e relêvos de frase, o cabedal de suas galas -poeticas appareceria, qual em realidade -era, grosso, commum e de mui baixa valia.<span class="pagenum"><a id="Page_148"></a>[148]</span> -Mas quer o movesse esta causa bem perdoavel, -quer fosse generosidade com que se offerecia -aos motejos, e desapreço de muitos, com -o só intuito de restaurar, e avantajado, o edificio -do idioma portuguez, sempre fica certo que n’este -particular mereceo mui bem de sua patria, e -a deixou muito mais medrada do que a achára. -Oxalá que dois ou trez mais, dotados de -igual credito, pozessem como elle peito á empreza; -e muito embora demaziassem como elle: -cunhassem a flux tudo quanto dão as minas -portugueza e romana; ainda muito oiro puro -de dicção viria enriquecer-nos, e facilitar-nos -o tracto; pôsto que tambem como elle lá cunhassem -á mistura oiro enfezado, não de lei, -nem de receber: o juizo público estremaria -umas de outras moedas, e as engeitadas a ninguem -farião mal, se não fosse ao credito de seu -autor. Assim crescêra cabedal, que ainda mingoa -para as obras do engenho patrio. Nossa -lingua, qual por ora a temos, e até restituindo-lhe -todos seus fóros caídos, todas suas joias -enterradas, não supre as hodiernas precizões -do espirito. Quando a esfera do saber, sentir -e pensar se está de hora para hora dilatando -no mundo, do qual nós outros (ainda que o -não pareçâmos) somos tambem parte, forçado -hé que a esféra da expressão ao mesmo compasso -se dilate, e engrandeça. Repôr ao idioma -quanto ja teve será louvavel consciencia, porem -não bastará, se apoz isso se lhe não dér -com mão liberal, mas prudente, quanta substancia -nova elle possa receber e commutar, para<span class="pagenum"><a id="Page_149"></a>[149]</span> -que na apostada carreira que os entendimentos -das nações agora levão para o infinito desconhecido, -o da nossa, por fraco e sem azas, se -não deixe ficar atraz.</p> - -<p>Uma reflexão quero eu aqui fazer, mais que -a taxem de digressão; não será nova para os -que escrevem, mas servirá para que os que -lem se abstenhão mais de acoimar pobrezas em -nossos poetas. Ja das palavras se averiguou -serem ellas fio e arrimo de que a mente se vale -para melhor ir seguindo por suas ideas sem queda -nem tropêço. Pois se as palavras, que não -passão de reflexos e retratos do pensamento, -tem virtude para o fecundar, menos ainda se -duvidará precizar a imaginação poetica de uma -abundante linguagem, para se manifestar por -obras, assim como o pintor de finas e variadas -tintas para seus paineis, e o musico de instrumento -pronto e copiosamente registado, para -enlevar os animos. O poeta francez, porque -tem uma lingua que á fôrça de bem cultivada -por muitos e differentes engenhos, se accommoda -préstes e serviçal aos pensamentos mais -subtis e novos, e aos affétos mais delicados e -passageiros, d’ella se ajuda para inventar, e -com ella exprime completamente o que inventou. -Não assim nós, que em pertendendo alçar-nos -por cima das communs ideas do nosso -paiz, nos achâmos, sem o cuidar, pensando -em francez; e se isso, que bem ou mal nos apparece -na alma, tentâmos passa-lo para o papel, -suâmos, bramimos, aqui nos faltão de todo as<span class="pagenum"><a id="Page_150"></a>[150]</span> -expressões, ali só tibias nos acodem, outras -mal determinadas e mal entendidas, outras estiradas -em perífrases. Dai-me o proprio Lamartine -nascido nas margens do Tejo, e pedi-lhe -uma só <i>Meditação</i>, uma só epocha de <i>Jocelyn</i>; -grande será o acêrto se as conceber, -quasi impossivel que as escreva. Ponderou Condillac -mui avizadamente, que a razão porque -apparecião em certo povo e tempo maior numero -de varões abalisados em letras, era o ponto -de crescimento e sufficiencia abastada a que -chegou n’esse tempo a lingua d’esse povo. Melhor -será que o deixemos por sua boca doutrinar-nos, -que bom missionario he em couzas -d’estas.</p> - -<p>“Acontece com as linguas (diz elle) o mesmo -que com os algarismos dos geómetras: -quanto mais perfeitas são, mais vistas novas -nos offerecem, e mais nos dilatão o espirito. -Os bons acertos de Newton de antemão havião -sido preparados pela escolha dos sinaes -que antes d’elle se fizera, e pelos methodos de -calculo ja imaginados. Se mais cedo nascesse, -podéra ter sido homem grande para o seu seculo, -mas não fôra agora maravilha d’este -nosso. Outro tanto vai pelos demais generos. -A boa fortuna dos engenhos mais bem aparelhados -inteiramente depende dos progressos da -lingua no seculo em que vivem, porque os vocabulos -correspondem aos algarismos dos geómetras, -e o modo de empregar os vocabulos -corresponde aos methodos do calculo. Por tanto,<span class="pagenum"><a id="Page_151"></a>[151]</span> -em uma lingua aonde ha penuria de palavras -ou de construções bem azadas, ha os -mesmos obstaculos em que a geometria topava -antes do invento da algebra. O idioma francez -foi por largo discurso de tempo tão pouco -ageitado aos progressos do espirito, que se -imaginarmos Corneille em cada um dos seculos -ascendentes da monarchia franceza, quanto -mais ao remontar nos fôrmos afastando do em -que viveo, tanto mais, e gradualmente, irá mingoando -o seu engenho, e chegar-se-hia por -ultimo a um Corneille que nenhuma prova poderia -dar de talento.”</p> - -<p>Voltemos a Filinto. Não decedirei se houve -ou não bom fundamento para o allegarem por -autor e texto, como o fizerão na quarta edição -do Diccionario de Moraes: nem ouzaria eu -pôr mão no fogo pela infallibilidade de sua pureza, -porque (mas a medo e sommisso vai o dito, -que por dito e não sentença merece vénia) -aqui ou acolá se me figura enxergar por suas -paginas algumas nódoas d’aquella mesma côr -a que nunca perdoou odio. Mas se as ha, são -manchas, no passo que o geral de sua escritura -he recheado de muitas preciosidades para quem -poz peito a bem escrever esta lingua. Por toda a -parte lhe estão pullullando lusitanismos em vocabulos, -frases, collocação, inversões, geito e feição -de períodos, que se houver gôsto em quem -lê para os joeirar e limpar de alguma mistura -chôcha ou sédiça, farão muito bom sustento -para poetas e prozadores. Se houver gôsto, puz<span class="pagenum"><a id="Page_152"></a>[152]</span> -eu, e muito que o puz de indústria, porque, -os que d’elle carecerem, lição tal só os fará mais -ridiculos; os que ainda o não houverem formado, -e se metterem por esses onze e mais volumes -sem bom e constante Mentor, não sei se -em linguagem e em poesia viráõ nunca a dar -fruto que bem saiba e se abençoe.</p> - -<p>Em summa, Francisco Manoel do Nascimento -foi um martyr da religião de nossa lingua: -para lhe lançar mais gloria cerceou a sua propria: -com o excessivo das joias com que a arreou, -deixou-a affétada, e menos matrona grave -do que bailarina de corda; sim habilidosa -e leve, mas dengosa e presumida: mostrou-lhe -o como e por onde devia subir á perfeição, a -que por outros, porem tarde e mui tarde, -será levada: foi, porque tudo diga, um destemperado -despertador, que nos poz a pé para -o dia das letras.—Quero repetir, fez serviço -talvez maior que nenhum dos classicos, mas -he de todos o menos para seguir ás cegas. Bem -haja elle que tocou a alvorada para nos acordar, -mas mal haja quem quizer ficar com trombeta -tão rouca e dissonante a tocar alvoradas -todo o dia: ja estamos acordados, cabe agora -aproveitar o tempo, como gente de juizo.</p> - -<p>Se da lingua passâmos em Filinto á <i>harmonia -métrica</i>, damos maior salto que o de Léucade, -e como cumprindo igual oraculo, ou -nos afogamos em um mar bravo, ou de lá surdimos -curados de todo o amor a tal poeta.<span class="pagenum"><a id="Page_153"></a>[153]</span> -Em nenhuma das quatro ou cinco partes do -globo, e em nenhuma era se metrificou jamais -lão dura, desleixada e insolentemente. Se alguma -vez se esquece com dois ou trez versos bons, -logo se vinga com duas ou trez duzias, que se -os reduzissem a linhas iguaes, não serião mais -nem menos que desaceiada proza. E ainda he -para agradecer quando só lhe falta melodia, -porque algumas vezes nos dispara versos, em -que as pauzas vem todas desconjuntadas, e outros, -em que sobejão síllabas, por mais que a -maço as procuremos entalar e embeber umas -por outras.—A sua rima he por via de regra -desnatural a pobre: os seus sonetos e toda -sua lírica de consoantes, enxabimentos ou -arripíos. Bem se alcança como erão arrufos de -maltratado, as injurias que em muitas partes -vomitou contra a rima, e não como as de -Boileau, vozes só de um juizo rigoroso, que -de dentro das letras as media. Nos defeitos -de versificador fez de idade para idade successivos -enotados progressos, sendo assim que ou por desleixo, -ou por certa petulancia, em que engenhos -grandes muitas vezes cáem, tomando por timbre o -escarnecer do Publico, quanto mais hia usando -do officio, tanto mais desprimoroso se foi mostrando, -até ganhar tão duro callo na consciencia, -que nem a deliciosa harmonia dos versos de -Racine lhe podia ja ao cabo inspirar, um só -verso toleravel de tradução.</p> - -<p>Do muito que só deixo apontado se deduz -a idea que para mim tenho do seu <i>gôsto</i>; melhor<span class="pagenum"><a id="Page_154"></a>[154]</span> -será do que só deixa-la deduzir, declara-la. -Parece-me pois ser o seu gôsto pouco e -máo; e n’isto estribo o parecer: 1.º que para -suas Obras originaes costumava de escolher fracos -sujeitos—2.º que as pejava de taes invenções -que ja em tempo de Romanos o não erão—3.º -que por vida se repete, e por costume -redunda—4.º que na ordem desordenadissima -em que seus escritos pôz, anda o peor tão -travado com o melhor, e as puerilidades vergonhosas -com as Odes que lhe lucrárão nome, -que sem que o lustre do bom disfarce o máo, -o esqualor e nojo d’este deturpa e estraga aquelle—5.º -que se para traduzir elegeo -ás vezes bons originaes, taes como o Oberon -e os Martyres, outras os escolheo desenganadamente -incapazes, taes como a triste historia -em verso da Guerra Púnica: outras -vezes, escolhendo originaes optimos, nem antevio, -nem pelo discurso do trabalho conheceo, -nem sequer sentio depois de findo (porque talvez -se o sentisse nos houvéra poupado a ler a -versão), que havia n’essas Obras exclusivos e -essencialidades, quer da lingua em que estavão -feitas, quer do engenho que as fizera; haja -vista ás tão graciosas e admiraveis fabulas -de Lafontaine, que em Filinto parecem tanto -as mesmas, como a estampa de Bertoldo se -podéra julgar retrato do Apollo de Belveder. -etc. etc. etc. etc.</p> - -<p>Taes são hoje para mim Filinto e Bocage: -mui outros dos que ja me parecêrão, e talvez<span class="pagenum"><a id="Page_155"></a>[155]</span> -dos que me hão de parecer quando novos livros, -novas couzas, e o rodear dos annos me houverem -feito sou ordinario e incontrastavel officio. -N’aquellas eras pois, que ja eras antigas se me -representão aquelles meus tempos, caía todo -com o meu Gessner em braços, para a parte -de Bocage, mancebo e lustrozo; e se me figurava -que se lograsse trava-los, fundi-los em um, -faria obra de se me agradecer. Os partidarios -de Filinto, que não sei porque, trazião guerra -declarada com Bocage, vierão saindo de -seus montes escarpados, empeçados e tenebrosos, -para dar váias e tirar remêssos de epigrammas -ao nosso bando: cerrámo-nos com a bandeira, -démos sobre elles com iguaes armas, -foi batalha campal, rôta e sem misericordia: -não houve mórtos nem cativos, poucos transfugas, -feridos muitos. Recolhidos nas trincheiras, -cantámos uns e outros, como he costume, -o <i>Te deum</i> da vitoria; dobrámos a altura aos -vallos, e profundez aos fossos que nos estremavão; -jurámos não acceitar nunca pazes, quanto -menos commette-las, nem consentir em alguma -couza que ás dos inimigos se parecesse. Eu -que fôra dos mal feridos e ainda palpava as costuras, -como havia de faltar a nenhum ponto -da conjuração? Muitos d’elles merecerião tratados, -mas porque não fazem para o fim d’esta Nota, -venho aos esdruxolos, e só libarei a -materia.</p> - -<p>Da natureza, como quer que seja, nos vem -sempre o gôsto; mas sendo que a moda, que<span class="pagenum"><a id="Page_156"></a>[156]</span> -muitas vezes se gera de um acaso, introduz o -uso, e este chega a mudar ou alterar a natureza, -vem a ser o gôsto em muitos casos enleada -materia e muito esquiva para questão, -abonando-se talvez por ahi o proverbio, que -sobre gôstos prohibe disputar. Dir-me-hão, que -nada tem a natureza com os métros, que só a -moda a seu talante os cria e os acaba: he e -não he verdade; mas tambem isso deixaremos -de parte, por pedir digressão larga e mui sobida -filosofia. Em breve, parece-me que a fantasia -ou o acaso inventa os métros, a moda os -espalha e rege, a nossa natureza se lhes affaz, -mas deve quanto podér afeiçoa-los e conchega-los -comsigo. Das dez, onze ou doze síllabas de que -pode constar o nosso verso heroico, quiz a moda -que o numero de onze fosse em Portugal, -Hespanha e Italia o usual e corrente; moda que -estribou no ser d’estas linguas, em que a quantia -de vozes graves excede á das agudas e dactílicas. -Costumou-se o ouvido com a igualdade -da queda, criou uma certa natureza, e todas -as vezes que inopinadamente o obrigão a -outra queda maior ou menor, como que se espanta -e sobresalta: porei exemplo nos que sobem -ou descem ás escuras e ja pelo tino uma -escada; se lhes falta no subir um degráo com -que ainda contavão, o pé que no ar pôz firmeza -cáe em falso, e comsigo leva todo o corpo -estremecido; se lhes sobeja um no descer, o pé -que ja se dava por assente, não desce mas atropella -e traspoem. Por tanto, regra geral, o -verso grave, que he o da moda e tambem o da<span class="pagenum"><a id="Page_157"></a>[157]</span> -nossa natureza, he o de que nos deveremos servir: -como porem entre as couzas sujeitas á poesia, -se nos deparem algumas, cuja indole póde -ser esse mesmo estremeçáõ, ou atropellamento, -razão será que em taes casos bem averiguados -e por via de excéção, acudamos á idea -com o verso que melhor lhe condiz: os exemplos -são faceis de colher nos autores, não gastaremos -com elles papel. Ora para se consentir -n’esta excéção, não deixa de haver outro -motivo de algum momento, e verdadeiramente -he elle o mesmo em que a regra geral se -fundou; porque as estranhezas, que por desagradaveis -persuadírão á regra, por uteis nos -conformão com a excéção, sendo que tem virtude -para nos espertarem, quando o embalar -da monotonia nos vai adormecendo. Não por -outra causa, vierão os melhores metrificadores -latinos em variar, ainda que rarissima vez, os -seus hexámetros perfeitos com o espondaico ou -com um monosíllabo final: ambos nos abalão; -os primeiros em certo modo como os esdruxolos, -os segundos como os agudos; e abalando-nos -a propozito, por exemplo para sentirmos -a queda do animal no famoso <i>procumbit humi -bos</i>, deixão-nos afiados para proseguir com attenção, -e melhor tomar o gôsto ao caminho, -que outra vez continúa lizo e macio, passado -o tropêço.</p> - -<p>Assentámos o princípio, vejamos se o uso -lhe tem sido conforme. A Italia, attenta a -prontidão, e musica de sua lingua, devêra ser<span class="pagenum"><a id="Page_158"></a>[158]</span> -d’estes trez povos do sul o mais aprimorado em -toda a qualidade de metrificação, e todavia -he o contrario no hendecasíllabo sôlto, podendo -dizer por si o que o seu Ovidio poz na boca -de Narciso, que a sua riqueza a fez pobre: os -seus poetas, ainda os modernissimos, sôbre -não curarem dos sons que recheão o verso, e -quantas vezes nem das pauzas, sôbre estirarem -desmesuradamente os seus períodos, consentindo -que os versos se travem e encadêem de contínuo, -misturão sem nenhum motivo de effeito, -os versos agudos e esdrúxolos com os graves, -segundo o acaso lhos vai deparando. He o mesmo -que succede a quem possue terra de sobejo fertil e -facil: ella que supra por si ás primeiras precizões; -trabalhe-se o necessario para que não -falte, o resto, que bastaria para a fazer paraizo, -dê-se á priguiça. Os francezes, que tão menos -poetica lingua tinhão, obrigados por essa mesma -pobreza a cultiva-la, esmerados e incançaveis, -¡quanto a não levão ja por arte, adeante do -que por natureza podéra ser a italiana! são -n’uma parte os paúes de Hollanda a produzir; -na outra, terras pingues e dobradas de -Otaiti a regalar com pão e frutos espontaneos -aos semi-nus e ociosos naturaes. D’este versejar -de italianos, me dizia uma vez José Agostinho -de Macedo, que a maior parte de taes -poesias lhe dava a lembrar as récuas de mulos -de almocreve, que enfiados e prezos uns a outros, -ao som dos chocalhos enfadosos, la se -vão, ora tropeçando ora erguendo-se, continuando -o caminho, e sempre chegão com a carga<span class="pagenum"><a id="Page_159"></a>[159]</span> -onde tem de ir. Quando assim fallo, quero que -se entenda que me não refiro a todos sem excéção, -mas só ao geral d’aquelles poetas. Bem -pode ser que os haja agora primorosissimos que -eu não conheça, e dos conheçidos alguns ha -com quem não serei tão severo taes como Monti -na tradução da Illiada, Fóscolo se me não -engana a lembrança que d’elle me ficou, Alexandre -Manzoni, e Felice Romani.</p> - -<p>Em Portugal, pois que a lingua era tambem -préstes e serviçal, e os que n’ella poeta vão se -comprazião de se irem sempre na pista dos -Toscanos, sente-se nos poetas antigos o -mesmo desmazelo. La andão com os versos -graves os esdruxolos inuteis, ainda que não -frequentes e os agudos aos cardumes. Camões, -que de todos elles foi por ventura o de -mais delicado ouvido, rimando hendecasíllabos, -até na epopea não duvidou em os pôr, quando -acaso lhe apparecião, e sem nenhuma intenção -ou fito poetico; o que a Vasco Mauzinho -de Quebedo seu inferior em poesia, mas -superior, se he lícito dizê-lo, em metrificar, -por tal arte desagradou, que em todo o poema -de Affonso Africano nunca interpolou com -elles versos graves, e d’isso faz alarde em seu -prologo.</p> - -<p>N’esta incerteza correo a couza até os nossos -tempos, em que dois homens de fôrça, dois -athletas da poesia, representando cada um -uma das encontradas opiniões, devião ter perante<span class="pagenum"><a id="Page_160"></a>[160]</span> -os olhos publicos um calado e rijo certame, -para decisão ultima da contenda. Foi -Bocage o mancebo, cavalleiro da metrificação -liza e uniforme; o velho Filinto da mista e libérrima. -Todo o empenho de Bocage era a -harmonia constante, todos os seus versos forão -graves, e de compasso batido. Nascimento queria -por cima de todas as outras couzas dar todas -suas ideas, boas ou más, graudas ou miudas, -mui bem pintadas e repintadas, que ainda -quando insignificantes, não deixassem de ferir na -vista. Servia Bocage ao metro como a senhor: Nascimento, -como de escravo se servia d’elle, -trazia-o rôto, contrafeito, demudado, e por -todas as ilhargas estalando com o pezo da carga. -Se he lícito comparar estes dois poetas com -outros dois romanos, de muito mais subidos -quilates, digo, que são na metrificação hendecasíllaba, -o que nos dístichos elegíacos eróticos -forão Ovidio e Propercio. O dísticho de Ovidio -he sempre torneado por medida, nada lhe -falta nem sóbra, reluz de polido, e algumas -vezes pouco péza: nos de Propercio ha sempre -mais succo de couzas (bastante espremeo d’elles -Ovidio para seu remedio); mas o hexámetro -sáe amiude desalinhado, o pentámetro dissonante -da sua usual toada, acabando não em -dissíllabo, como para bem o requer o geito de -tal metro, mas em trissílabos e quadrissíllabos -á moda de Catullo; partem-se menos apuradamente -os hemistíchios, embebe-se e embrulha-se -em demazia o pentámetro no hexámetro, e, o que -mais rijo he, o hexámetro de um dísticho<span class="pagenum"><a id="Page_161"></a>[161]</span> -no pentámetro do anterior; o que não tira ser -Propercio, em meu conceito, um poeta de mui -alta valia (e não sei se diga que o unico amante -apaixonado dos antigos, com licença dos grammaticos -e dos priguiçosos que o engeitão por -escuro), e Ovidio um dos mais bem assombrados -engenhos do mundo.</p> - -<p>Do que levo ponderado, se he exáto como -cuido que he, segue-se que nem Bocage, nem -Filinto erão para modellos absolutos, e que -tão desacordado andava quem não consentia -em verso que grave não fosse, como quem -esdruxolava por vida e fóra d’aquelles casos em -que o esdruxolar traz em si mesmo a desculpa -e o louvor. Entendi que ja por acinte o fazião, -e por acinte contra acinte escrevi essa Nota da -primeira edição, que atraz deixo trasladada. Fôra -o voto pueril, conheci-o assim como o sangue -alvoraçado da batalha me esfriou, mas tão -sobre maneira se oppunha a vergonha a uma -retratação, que permaneci até hoje sem um esdruxolo -em tantos versos soltos como tenho impresso, -e tantos mais que ainda não saírão á -luz. Quantas vezes, compondo a <i>Noite do Castello</i> -e o <i>Bardo</i>, não senti tentações e ímpetos -de romper e acabar por uma vez com uma -prizão imaginária, que a olhos vistos me estava -tolhendo mui bons effeitos poeticos; e comtudo -confrangia-me, esquivava-me, escrupuleava, e -não podia acabar comigo que me resolvesse, podendo -dizer como aquelle rei de França <i>La se vai -tudo, menos a honra</i>. Os passos d’esses poemas<span class="pagenum"><a id="Page_162"></a>[162]</span> -em que tal me acontecia, por si se estão indo -agora denunciando, póstos os dactílicos imitativos -nos lugares, que abaixo do final se podem -reputar pelos mais autorizados e distintos -do verso, que são o ponto do hemistíchio -ou pauza do meio verso, e o comêço do seguinte, -quando fica bem cortado e estremado. — -D’este livro ao deante me dou por desobrigado -do voto; e eis aqui, me parece, o como lã -para os outros me hei de haver: nunca porer -só por pôr ou por me forrar trabalho, verso -dactílico; nunca o engeitarei quando a fôrça, -graça ou qualquer outra vantagem da poesia o requererem. -Bem quizera dizer outro tanto dos agudos, -mas ahi ainda o meu antojo he forte; sei -que a razão não está menos por elles, e não -ouzo segui-la: veremos o que o tempo, grande -causador de mudanças, poderá trazer comsigo.</p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<h4 class="nobreak" id="DIA_NOTA_2">NOTA<br /> -<span class="smaller"><i>de Augusto Frederico de Castilho.</i></span></h4> - -<p class="center"><i><a href="#Page_118">Pag. 118.</a> verso 6.</i></p> - -</div> - -<div class="poetry-container"> -<div class="poetry"> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">Vejamos, meu Irmão, a tua escolha. &c.</div> - </div> -</div> -</div> - -<p>Quando um autor, para publicar os seus -pensamentos se entrega á nossa boa fé o lealdade, -os nossos olhos e mãos para logo mudão<span class="pagenum"><a id="Page_163"></a>[163]</span> -de dono, ficão seus; tem de vigiar e selar -o depósito confiado, para que nada se lhe accrescente -nem cercêe: qualquer palavra, qualquer -vírgula de mais ou de menos, por muito que -as pareção estar pedindo este ou aquelle passo -do texto, são mais que violação de testamento, -porque ideas são propriedade mais real e -sagrada do que bens da fortuna. Assim he, -mas cumpre que não seja assim na presente -occasião: faltarei ao direito do autor e á minha -obrigação de secretario, para cumprir -com outra mais santa lei, a do amor fraterno, -alliviando aqui, e em mais de uma maneira, -o meu coração, ás escondidas do mesmo autor, -para quem serão grande novidade estas linhas, -quando de alguem (que não de mim) as chegar -a ouvir ler.</p> - -<p>Direi em primeiro lugar, que na Festa da -Primavera, cujas honras forão na maior parte -a meu Irmão, os versos a que esta Nota vai -lançada tanto abalo fizerão em mim, que pela -primeira vez os lia, que eu me vi necessitado -a interrompê-los coberto de lagrimas e afogado -em soluços, para me ir lançar no seio d’elle, -protestando-lhe assim, com um silencio que eu -não tive palavras para romper, que os seus -dezejos de vivermos para sempre unidos, ja em -mim erão necessidade, e que o pensamento -de separação se me representava tão <i>atroz</i> -e <i>impossivel</i> como a elle. Eu o vi profundamente -commovido entre os meus braços, e -foi esta a primeira vez em que nos-fizemos<span class="pagenum"><a id="Page_164"></a>[164]</span> -uma declaração tão expressa e amor, nós -que semelhantes aos <i>Dois amigos</i> de Gessner, -sempre tinhamos vivido e contávamos com viver -um para o outro, sem ainda uma só vez -nos havermos dado o nome de amigos. O meu -voto, ufano-me de o dizer, tem sido santamente -cumprido: ja la vão quinze annos, e eis-me -aqui ao lado d’elle, eis-me tão inseparavel -como tinha sido desde menino até áquella hora! -que digo? ainda mais, porque para reparar a -perda horrivel que elle acaba de experimentar; -eu carecia de ter agora em mim, em vez de um, -dois ou mais corações para lhe offerecer.</p> - -<p>Agora cumpre-me preencher o principal fim -d’esta Nota, transcrevendo para aqui alguns -versos parallelos a estes, de um meu Poemetto, -que com o titulo de <i>Primavera</i> recitei n’aquelle -mesmo Dia. Os elogios que o leitor vai achar, -não mos inspirou só a amizade fraternal, mas -a convicção em que ainda hoje estou, e hoje -muito mais, do subido mérito do elogiado. -Aqui era o lugar de desmentir um grande numero, -talvez a maior parte das sentenças, que -sôbre a valia d’estes poemas a sua modestia -(em tudo excessiva) lhe dictou no Ante-Prologo, -e principalmente no Prologo d’este Livro: -mas não cuido que a minha licença possa -chegar tanto adeante: calar-me-hei, bastando-me -agora ter desabafado, por algum modo, -nos versos que se vão ler.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_165"></a>[165]</span></p> - -<div class="poetry-container"> -<div class="poetry"> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">E tu, meu caro Irmão, tu me arrabatas,</div> - <div class="verse indent0">Quando magico attráes aos sons da lira,</div> - <div class="verse indent0">As Musas da Danubio á foz do Tejo.</div> - <div class="verse indent0">Oh dize-me onde has visto a Natureza,</div> - <div class="verse indent0">Virgem tão bella para ti sorrindo?</div> - <div class="verse indent0">La na idade infantil, quando teus olhos</div> - <div class="verse indent0">Inda na luz formosos se espraiavão,</div> - <div class="verse indent0">¿Veio ella mesma perfumar-te o berço,</div> - <div class="verse indent0">Tingir-te em rósea côr dos ceos o espaço,</div> - <div class="verse indent0">Encher-te o ar de ignotas harmonias,</div> - <div class="verse indent0">De affétos orvalhar-te o brando seio,</div> - <div class="verse indent0">E com magas visões doirar teus sonhos?</div> - <div class="verse indent0">Sim veio; e quaes na mente que as afaga</div> - <div class="verse indent0">As maternas feições impressas ficão,</div> - <div class="verse indent0">Taes seu olhar, e voz, e graça, e tudo</div> - <div class="verse indent0">Te vivem, te reluzem pela mente,</div> - <div class="verse indent0">Doirão-te a escuridão, compõem-te um mundo,</div> - <div class="verse indent0">Em silencio te admiro ha longo tempo;</div> - <div class="verse indent0">E até (que fui tão louco) ouzei co’as tuas</div> - <div class="verse indent0">Minhas fôrças medir, tentar-te a gloria.</div> - <div class="verse indent0">Não somos nós irmãos, me disse eu mesmo?</div> - <div class="verse indent0">Não corremos iguaes no longo estudo?</div> - <div class="verse indent0">Pois ha de a lira d’elle ousar prodigios,</div> - <div class="verse indent0">Sem que, para a imitar, desperte a minha?</div> - <div class="verse indent0">Mas que vale o dezejo, o sangue, o estudo!</div> - <div class="verse indent0">Tu sabes remontar-te aos ceos n’um vôo:</div> - <div class="verse indent0">Eu tento, eu me debato, ergo-me, cáio,</div> - <div class="verse indent0">No inglorio chão cançado me adormeço:</div> - <div class="verse indent0">Será pois d’elle só a eternidade.</div> - <div class="verse indent0">Só d’elle? a sua gloria aos dois nos basta;</div> - <div class="verse indent0">Qual nossos corações amor vincula,</div> - <div class="verse indent0">Tal has de unir, ó fama, os nomes d’ambos.</div><span class="pagenum"><a id="Page_166"></a>[166]</span> - <div class="verse indent0">Com todo o eterno sôpro enchendo a tuba,</div> - <div class="verse indent0">“Este o maior, dirás dos lusos vates!”</div> - <div class="verse indent0">Dirás depois mais baixo: “Este com os olhos</div> - <div class="verse indent0">“Leo e estudou do Irmão, do terno amigo.”</div> - </div> -</div> -</div> -<p><span class="pagenum"><a id="Page_167"></a>[167]</span></p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_168"></a>[168]</span></p> - -<h2 class="nobreak" id="OS_CANTOS_DE_ABRIL_IDILLIO">OS<br /> -CANTOS DE ABRIL<br /> -IDILLIO.</h2> - -</div> - -<p><i>O mais deslavado e insôsso Poemetto na -primeira edição, erão Os Cantos de Abril. -Só a invenção fôra boa; na execução e estilo -revia um tão contínuo desprimor, que me foi -necessario demolir e reedificar. Por tanto, -com o mesmo titulo he obra diversa, muito -melhor, mas não perfeita, porque ja para -a emenda da emenda não chegou a paciencia.</i></p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_169"></a>[169]</span></p> - -<h3 class="nobreak" id="IDILLIO_DEDICATORIA">DEDICATORIA<br /> -A MEU PAI.</h3> - -</div> - -<p><i>He a educação o maior prezente que de homem -se pode haver. Vós, meu Pai, fizestes mais do -que educar-me: superior a uma preoccupação -tão geral quão perniciosa, vistes nascer o meu -engenho poetico e não o destruistes, viste-lo crescer -e não o contrastastes, senão que antes lhe -déstes amparo, bafo e desvelos. Eis aqui por -tanto um reconhecimento da minha gratidão.</i></p> - -<p><i>Oxalá possão estes versos, que me afouto a vos -offerecer, agradar-vos tanto, como os Cantos de -Abril, no silencio da noite e debaixo do parreiral -da cabana, agradárão ao bom Menalca.</i></p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_170"></a>[170]</span></p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_171"></a>[171]</span></p> - -<h3 class="nobreak" id="IDILLIO_ADVERTENCIA">ADVERTENCIA.</h3> - -</div> - -<p>Notar-se-ha que por todos os Poemettos d’este -livro se dão sempre versos á infancia, e n’este -Idillio tem ella não uma parte, nem a principal, -senão o todo: se o porque, pode importar -a alguem, agora lho direi brevemente.</p> - -<p>Parece-me um Menino, de todas as couzas -graciosas que Deos fez u graciosissima. Aquelle -ajuntamento e consonancia de tantos dotes; -formosura, d’elle proprio nem buscada nem -sabida; graças que lhe ninguem ensinou; singeleza -e candura; alegria, fraqueza, innocencia; -e muito afféto, e muito mostra-lo; e total -descuido do porvir; e não o temer nada; -e a poesia particular do seu dizer; e a sua -grammaticazinha natural que a nó nos faz rir, -couzas são estas que apoz si me levão esquecido -e encantado. No trato d’estes botões da -humanidade, que vem abrindo, parece-me, e -ja pareceo a muitos, poderem-se lucrar boas -vantagens: ja não fallo em seu bondoso contentamento -que talvez se pega, e na felicidade -de recobrarmos horas de meninice, imitando-os, -sem saber, a elles, como elles nos imitão -a nós; fallo porem no muito que o nosso -espirito se acostuma então a estremar o bom -do máo, e a joeirar cá dentro o puro do impuro, -para nem por sonhos profanar o que das<span class="pagenum"><a id="Page_172"></a>[172]</span> -mãos da natureza saío e se conserva santo. E -demais, um Menino não sabe nada, quer saber -tudo, e por tudo nos pergunta: ¿não he isso -estar-nos pondo a caminho de muitos descobrimentos -de verdades e relações das couzas, -que nunca aliás por nossa preguiça ou descuido -fariamos?—Muitas pessoas vejo, e faz-me -pena, desamarem as creanças, despreza-las, -havê-las por menos de gente, tolher-lhes as fallas, -as obras de sua idade, e Deos sabe se -tambem o entendimento: eu por mim, quero-lhes -muito, porque entendo que excedem -em valia aos seus desprezadores, e sinto que a -mim me levão grande vantagem em bondade -e ventura. De um ajuntamento esplendido mil -vezes tenho fugido para elles: no campo, melhor -que em nenhuma outra parte, saboreio esta -doçura a meu contento. Todos os pequenos -das aldeas em que tenho estado me conhecem, -e sei que são meus amigos: apinhão-se-me ao -redor em me vendo; invento jogos, historias -ou conversas para elles; divirto-os, divertem-me; -uns com outros, e uns de outros aprendemos.</p> - -<p>Erão horas bem doiradas essas de minha vida, -como as ja tivéra João Jaques, como as -terão tido muitos, e como as poderáõ ter quantos -as dezejarem.</p> - -<p class="right"><i>Lisboa: 7 de Janeiro de 1837.</i></p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_173"></a>[173]</span></p> - -<h3 class="nobreak" id="IDILLIO">OS<br /> -CANTOS DE ABRIL<br /> -IDILLIO.</h3> - -</div> - -<div class="poetry-container"> -<div class="poetry"> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">Por um serão de Abril suave e ameno,</div> - <div class="verse indent0">Menalca, a bella Dafne, e seus trez filhos,</div> - <div class="verse indent0">Estavão-se a folgar ante a cabana.</div> - <div class="verse indent0">Por entre as parras do sonoro alpendre</div> - <div class="verse indent0">A mansa lua chêa se enlevava,</div> - <div class="verse indent0">Espreitando esta rústica familia.</div> - <div class="verse indent0">Menalca erà ja velho: os justos Deozes,</div> - <div class="verse indent0">Querendo premiar lhe a larga vida</div> - <div class="verse indent0">Passada em os amar e amar aos homens,</div> - <div class="verse indent0">De Citheréa ao Filho havião dito:</div> - <div class="verse indent0">“Filho de Citheréa, entrega Dafne</div> - <div class="verse indent0">Por esposa na Menalca, a fim que o velho</div> - <div class="verse indent0">Remoce, vendo ao lar a mocidade,</div> - <div class="verse indent0">E a virtude que tem o alegre em outrem.”</div> - <div class="verse indent0">Amor nem sempre aos Deozes obedece,</div> - <div class="verse indent0">Porem amava a Dafne; entrançou logo</div> - <div class="verse indent0">A florente cadêa, e vendo-os prezos,</div> - <div class="verse indent0">Tanto a si mesmo do que fez se aprouve,</div> - <div class="verse indent0">Que ficou sempre entre elles na cabana.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">“Filho de Citheréa, accrescentárão</div> - <div class="verse indent0">Depois os Deozes, da-lhe o teu retrato</div><span class="pagenum"><a id="Page_174"></a>[174]</span> - <div class="verse indent0">Em filhos, e uma filha irmã das Graças,</div> - <div class="verse indent0">A fim que em seu crepúsculo da tarde.</div> - <div class="verse indent0">O velho inda se alegre, e abrace esp’ranças:</div> - <div class="verse indent0">Da-lhe prole, o fada-la a nós pertence.”</div> - <div class="verse indent0">E Amor lhe déra prole, dois meninos</div> - <div class="verse indent0">Seu retrato, e uma filha irmã das Graças.</div> - <div class="verse indent0">Ja rosas de abril decimo florecem</div> - <div class="verse indent0">No semblante de Silvia; um anno a vence</div> - <div class="verse indent0">Titiro; e vence a este um anno Alexis.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Menalca, em juncos molles estendido,</div> - <div class="verse indent0">Tem da esposa no candido regaço</div> - <div class="verse indent0">Como em ninho amoroso a branca fronte:</div> - <div class="verse indent0">Pelas feições transpira-lhe bondade;</div> - <div class="verse indent0">O mistico luar o diviniza.</div> - <div class="verse indent0">Dafne o contempla muda, e niveos dedos</div> - <div class="verse indent0">De afagar umas cãs sentem vaidade.</div> - <div class="verse indent0">Elle a querida mão colhe entre as suas,</div> - <div class="verse indent0">Beijada a achêga ao rosto, os fracos olhos</div> - <div class="verse indent0">Derrama pelos céos alumiados,</div> - <div class="verse indent0">E fitando-os na lua “Olhai, meus filhos,</div> - <div class="verse indent0">Olhai, disse elle, como brilha a lua!</div> - <div class="verse indent0">Que suavidade e paz não côa ao largo</div> - <div class="verse indent0">O astro das noites! como attráe da terra</div> - <div class="verse indent0">Nosso espirito humilde a pensamentos</div> - <div class="verse indent0">De outro mundo melhor, mansão de Deozes!</div> - <div class="verse indent0">Que esp’ranças, de saudades misturadas,</div> - <div class="verse indent0">Não traz a pura noite ás almas puras!</div> - <div class="verse indent0">Dias que em vão suspiro, amenos dias</div> - <div class="verse indent0">Da minha mocidade...! agora jazo</div> - <div class="verse indent0">Como arvore das folhas despedida,</div> - <div class="verse indent0">Que mais não florirá, porque o machado</div> - <div class="verse indent0">Ja lhe abrio marca para se ir ao fogo.</div><span class="pagenum"><a id="Page_175"></a>[175]</span> - <div class="verse indent0">Então era eu cantor chamado ás festas,</div> - <div class="verse indent0">E afamado por longe entre os cantores</div> - <div class="verse indent0">Na frauta e no rabil, porque os meus cantos</div> - <div class="verse indent0">Erão sempre á Virtude e á Natureza.</div> - <div class="verse indent0">Por uns serões assim, como acodião</div> - <div class="verse indent0">Todos a ouvir-me! As Ninfas era fama</div> - <div class="verse indent0">Que descião do bosque, e pelas sarças</div> - <div class="verse indent0">Vinhão pôr mais de perto o ouvido á escuta:</div> - <div class="verse indent0">E os ventos se detinhão, recostados</div> - <div class="verse indent0">Aos duros troncos, sem bolir co’os ramos.</div> - <div class="verse indent0">Té dizião que a frauta, em que eu tangia,</div> - <div class="verse indent0">O benevolo Pan ma déra em sonhos.</div> - <div class="verse indent0">E ora jaz, annos ha, de pó coberta!</div> - <div class="verse indent0">Em tôrno ao meu fogão ja não se apinhão</div> - <div class="verse indent0">Os pegureiros a aprender-me os cantos,</div> - <div class="verse indent0">Meu cabello nevou, nevou minha alma.</div> - <div class="verse indent0">Ah! se não fosseis vós, Dafne, meus filhos,</div> - <div class="verse indent0">Vivido tenho assaz, pedíra aos Numes</div> - <div class="verse indent0">Tornar a ver meus pais n’outras cabanas,</div> - <div class="verse indent0">Onde he perpetua a luz, e a eternidade</div> - <div class="verse indent0">Uma estação de musicas e flores.</div> - <div class="verse indent0">Quando eu la renascer á vossa espera,</div> - <div class="verse indent0">Á tua espera ó Dafne, á vossa ó filhos,</div> - <div class="verse indent0">Resurgirá comigo a minha frauta;</div> - <div class="verse indent0">E com ella enganando aquella ausencia,</div> - <div class="verse indent0">Penosa até no Elisio, em versos novos</div> - <div class="verse indent0">Louvando os Immortaes, e eterno eu mesmo,</div> - <div class="verse indent0">Pedir-lhes-hei comtudo que só tarde</div> - <div class="verse indent0">Vos levem para mim; que vos derramem</div> - <div class="verse indent0">De virtudes e bens copiosas bençãos</div> - <div class="verse indent0">Sempre n’esta cabana, onde hei nascido;</div> - <div class="verse indent0">E que no meu sepulchro o passageiro</div> - <div class="verse indent0">Diga parando—Ó bom pastor Menales,</div><span class="pagenum"><a id="Page_176"></a>[176]</span> - <div class="verse indent0">Leve te seja a terra, e tu contente</div> - <div class="verse indent0">Porque os teus filhos te excedêrão todos.”</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Aqui sentio caír na fronte calva</div> - <div class="verse indent0">Uma calada lagrima, e doeo-lhe</div> - <div class="verse indent0">Ter nublado o prazer de seus Penates.</div> - <div class="verse indent0">Senta-se, alegra o rosto, enchuga os olhos;</div> - <div class="verse indent0">E unindo ao seio a esposa “Ouvi meus filhos:”</div> - <div class="verse indent0">O cantar diz co’a noite, agrada á lua,</div> - <div class="verse indent0">Contenta á vossa mãi. Cantai louvores</div> - <div class="verse indent0">D’este suave Abril; nunca em meus versos</div> - <div class="verse indent0">Deixei de o celebrar, quando era moço.</div> - <div class="verse indent0">Os pastores de outr’ora Abril sagrarão</div> - <div class="verse indent0">A Venus, graciosa Mãi de tudo.</div> - <div class="verse indent0">Vede-a n’aquella estrella estar sorrindo;</div> - <div class="verse indent0">As glorias do seu mez são glorias d’ella.</div> - <div class="verse indent0">Alexis, principia, eu te acompanho</div> - <div class="verse indent0">Co’a tua mesma frauta; os sons da frauta</div> - <div class="verse indent0">Dão como vida ás solidões da noite.</div> - <div class="verse indent0">Seja a toada a que inventei (quão lédo!)</div> - <div class="verse indent0">No dia que nasceste, e a nossos olhos</div> - <div class="verse indent0">Se doirou de alegria esta cabana:</div> - <div class="verse indent0">Bem a sabes, começa, e Pan te ajude.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse center">ALEXIS.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">Eu amo o verde Abril, porque he formoso,</div> - <div class="verse indent0">Todo está chêo de arvores vestidas.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse center">TITIRO.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">Eu amo o alegre Abril, porque he sonoro;</div> - <div class="verse indent0">Vem cantado por bandos de avesinhas.</div><span class="pagenum"><a id="Page_177"></a>[177]</span> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse center">SILVIA.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">Eu amo o rico Abril porque he cheiroso,</div> - <div class="verse indent0">Espalha em cada prado um mar de flores.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse center">ALEXIS.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">A folhagem traz sombra, as sombras trazem:</div> - <div class="verse indent0">Seus folgares da sésta á gente grande,</div> - <div class="verse indent0">E a nós para brincar franca licença.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse center">TITIRO.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">As aves são dos ares alegria;</div> - <div class="verse indent0">Chamão na madrugada os preguiçosos,</div> - <div class="verse indent0">E divertem na lida aos lavradores.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse center">SILVIA.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">Flores dão côr á terra, e cheiro ás auras;</div> - <div class="verse indent0">Flores são mãis da fruta; os Deozes rindo</div> - <div class="verse indent0">As crearão, e rindo acceitão flores.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse center">ALEXIS.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">O Pan que está na gruta do arvoredo</div> - <div class="verse indent0">Não pára senão lá, por mais que o mudem;</div> - <div class="verse indent0">Sinal que um bosque e a sombra apraz aos Deozes.</div> - <div class="verse indent0">Tudo ali he formoso á maravilha!</div> - <div class="verse indent0">Por baixo a fresquidão, por cima o verde;</div> - <div class="verse indent0">A terra de reflexos variada;</div> - <div class="verse indent0">O této sonoroso e movediço;</div> - <div class="verse indent0">Mais alto, o ceo azul, dado ás amostras.</div><span class="pagenum"><a id="Page_178"></a>[178]</span> - <div class="verse indent0">E que direis do rio entre arvoredos?</div> - <div class="verse indent0">¿Como se pintão na agua aquellas folhas,</div> - <div class="verse indent0">E o vento que as revolve, e as pombas alvas</div> - <div class="verse indent0">Pelos ramos, e um sol desfeito em muitos?</div> - <div class="verse indent0">Parece que no fundo do remanso</div> - <div class="verse indent0">Tem Pan outro arvoredo, igual em tudo.</div> - <div class="verse indent0">Quando hoje eu lá passava, a Pan dei graças,</div> - <div class="verse indent0">Porque achei que um tal sítio encantaria</div> - <div class="verse indent0">Ó meu Pai, teus passeios solitarios.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse center">TITIRO.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">Fonte como a das Náiades nenhuma:</div> - <div class="verse indent0">Cantão-lhe em volta passaros sem conto;</div> - <div class="verse indent0">Sinal que o bando alado apraz ás Ninfas.</div> - <div class="verse indent0">Por ali me regala ir espreitando</div> - <div class="verse indent0">Tantos ninhos por entre tantas folhas.</div> - <div class="verse indent0">Admiro a perfeição d’aquelles berços,</div> - <div class="verse indent0">E o tino com que os pobres de uns brutinhos</div> - <div class="verse indent0">Os souberão livrar a soes e a chuvas:</div> - <div class="verse indent0">Aqui uma avezinha inda sem pennas,</div> - <div class="verse indent0">Outra a romper da casca; alem uns ovos</div> - <div class="verse indent0">Branquejão d’entre o musgo, e ja palpitão;</div> - <div class="verse indent0">Se os tóco, sinto dentro o passarinho,</div> - <div class="verse indent0">E fujo com temor que a mãi o engeite.</div> - <div class="verse indent0">¡Ver as mãis vir do pasto alvoraçadas,</div> - <div class="verse indent0">Darem o almoço aos filhos que pipilão,</div> - <div class="verse indent0">E co’as azas e peito agazalha-los!</div> - <div class="verse indent0">E ver logo os maridos tão contentes</div> - <div class="verse indent0">A gorgear-lhe á roda! o porque o fazem</div> - <div class="verse indent0">Mal sabeis vós; cuidais que he diverti-las!</div> - <div class="verse indent0">Oh que não: he ja dar lições e exemplos</div> - <div class="verse indent0">De canto aos filhos seus: não de outra sorte</div><span class="pagenum"><a id="Page_179"></a>[179]</span> - <div class="verse indent0">O nosso pai nos ensinou seus versos.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse center">SILVIA.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">C’roas frescas de rosas cada dia</div> - <div class="verse indent0">De Citheréa ás portas amanhecem;</div> - <div class="verse indent0">Sinal que a Citheréa aprazem flores.</div> - <div class="verse indent0">Todo o anno era Abril se eu fôra a Deoza!</div> - <div class="verse indent0">Nunca no meu altar e ás minhas portas</div> - <div class="verse indent0">Faltarião montões de flores frescas.</div> - <div class="verse indent0">Todas só para ti as cobiçava,</div> - <div class="verse indent0">Ó minha mãi: com ellas te enfeitára</div> - <div class="verse indent0">Cada hora do dia; cada noite</div> - <div class="verse indent0">As renovára ao leito onde tu dormes;</div> - <div class="verse indent0">Não porias teus pés senão em flores.</div> - <div class="verse indent0">Se o passageiro ás vezes me pergunta,</div> - <div class="verse indent0">Quando me encontra á borda do caminho,</div> - <div class="verse indent0">“Quem he a tua mãi?” eu lhe respondo</div> - <div class="verse indent0">Chêa de gloria “A minha mãi he Dafne!”</div> - <div class="verse indent0">Hontem de tarde o graciosa Amintas,</div> - <div class="verse indent0">O pobre guardador das duas cabras,</div> - <div class="verse indent0">Quando o meu pão lhe dei pedio-me um beijo,</div> - <div class="verse indent0">Chamou-me bella, e disse que o meu rosto</div> - <div class="verse indent0">Era como o de Dafne, ou como as rosas.</div> - <div class="verse indent0">Sendo assim, bella sou, que outra pastora</div> - <div class="verse indent0">Igual a minha mãi não ha na aldea,</div> - <div class="verse indent0">Nem flor em todo o mundo irmã da rosa.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse center">ALEXIS.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">O vizinho Milão, que hoje he tão rico,</div> - <div class="verse indent0">Não tinha mais que uma arvore, e de terra</div> - <div class="verse indent0">Só quanto aquella sombra lhe cobria.</div><span class="pagenum"><a id="Page_180"></a>[180]</span> - <div class="verse indent0">“Corta-a Milão, dizião-lhe os pastores,</div> - <div class="verse indent0">Alegras teu campinho, e terás lenha</div> - <div class="verse indent0">Para aquecer a choça um meio inverno”—</div> - <div class="verse indent0">—“Eu? respondia o triste, eu pôr machado</div> - <div class="verse indent0">Na boa da minha arvore? primeiro</div> - <div class="verse indent0">Me falte lume alheio o inverno todo,</div> - <div class="verse indent0">Que eu mate a que a meu pai ja dava séstas;</div> - <div class="verse indent0">A que de meu avô me foi mandada,</div> - <div class="verse indent0">Que a não poz para si; e a que nos braços</div> - <div class="verse indent0">Me embalou tanta vez sendo menino.</div> - <div class="verse indent0">Os Deozes a existencia lhe dilatem,</div> - <div class="verse indent0">Que assim lhe quero eu muito, e o meu campinho</div> - <div class="verse indent0">Produza o que podér, que eu sou contente.”—</div> - <div class="verse indent0">Sorrião-se os pastores; o carvalho</div> - <div class="verse indent0">Cada vez mais as sombras estendia,</div> - <div class="verse indent0">E Milão de anno em anno hia a mais pobre.</div> - <div class="verse indent0">Lembrou-lhe um dia, em bem, que uma videira</div> - <div class="verse indent0">Plantada a par com o tronco, o enfeitaria,</div> - <div class="verse indent0">E os cachos pendurados pela cópa</div> - <div class="verse indent0">Lhe darião tambem sua vindima:</div> - <div class="verse indent0">E eis que ao abrir a cova, acha um thesouro!</div> - <div class="verse indent0">Desde então ficou rico, e diz-me sempre,</div> - <div class="verse indent0">Que os Deozes immortaes lhe hão dado em prémio</div> - <div class="verse indent0">Por amar suas arvores. He elle</div> - <div class="verse indent0">Quem mas ensina a amar, são d’elle os versos,</div> - <div class="verse indent0">Com que ao bosque de Pan cantei louvores.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse center">TITIRO</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">Deozes, tocai o peito de Mirtilo</div> - <div class="verse indent0">Porque não sáia máu quando fôr grande.</div> - <div class="verse indent0">Hoje, entrando na mata, o vi la dentro</div> - <div class="verse indent0">Andar armando aos passaros. Que pena,</div><span class="pagenum"><a id="Page_181"></a>[181]</span> - <div class="verse indent0">Disse em mim; não ser passaro um momento;</div> - <div class="verse indent0">Não poder ir correndo o bosque aos pios,</div> - <div class="verse indent0">E dizendo em cada arvore “Cautella</div> - <div class="verse indent0">Meus irmãozinhos do ar; vejo inimigo;</div> - <div class="verse indent0">Não saiaes; o inimigo anda no bosque...!”</div> - <div class="verse indent0">Paciencia, assim mesmo hei de acudir-lhes.</div> - <div class="verse indent0">Vou-me por entre as moutas rastejando</div> - <div class="verse indent0">Até ao ouco e immenso castanheiro,</div> - <div class="verse indent0">Que abre em seu tronco uma portada de heras,</div> - <div class="verse indent0">E se nomêa a casa de Silvano.</div> - <div class="verse indent0">Trepo, e dentro me escondo: os meus vizinhos</div> - <div class="verse indent0">Lá por cima na cópa papeavão,</div> - <div class="verse indent0">Cuido que adivinhando o que eu faria.</div> - <div class="verse indent0">Encósto a boca á fresta carcomida,</div> - <div class="verse indent0">Que está fronteira ao portico da entrada,</div> - <div class="verse indent0">E clamo em rouca voz “Pára Mirtilo.”</div> - <div class="verse indent0">Parou, ergueo-se, e poz-se a olhar em roda;</div> - <div class="verse indent0">Vendo tudo em socego ás redes torna.</div> - <div class="verse indent0">Com voz mais estrondosa e mais horrenda,</div> - <div class="verse indent0">Torno-lhe eu a bradar “Mirtilo pára.”</div> - <div class="verse indent0">Não esperou terceira: arroja tudo,</div> - <div class="verse indent0">Salta, vôa; oh que riso! uns echos fêos</div> - <div class="verse indent0">Lhe hião gritando apoz “Mirtilo pára.”</div> - <div class="verse indent0">Somio-se; á terra pulo, espreito o mato,</div> - <div class="verse indent0">Acho as redes, os presos sólto, os mortos</div> - <div class="verse indent0">Levo-os onde ôlho de ave os não descubra:</div> - <div class="verse indent0">Encho-as de pedras, na torrente as lanço,</div> - <div class="verse indent0">E corro a procura-lo—“Oh tu não sabes,</div> - <div class="verse indent0">Lhe digo, de que morte escapo agora!</div> - <div class="verse indent0">Não te engano, era um Deos, vi-o eu, rangia</div> - <div class="verse indent0">Os dentes, bracejava uma alta fouce,</div> - <div class="verse indent0">Vinha a saír das sombras do arvoredo;</div> - <div class="verse indent0">Vio-me e gritou me “Pára” eu páro e chóro.</div><span class="pagenum"><a id="Page_182"></a>[182]</span> - <div class="verse indent0">—“Es tu que andas armando ás minhas aves?</div> - <div class="verse indent0">Pois eu vou dar-te o ensino; as tuas redes</div> - <div class="verse indent0">Ja te lá vão por esse rio abaixo,</div> - <div class="verse indent0">E agora has de ir tu morto á caça d’ellas.”—</div> - <div class="verse indent0">E então vem para mim, co’a fouce aos lanços</div> - <div class="verse indent0">Cortando pelo ar—“Bom Deos, perdoa,</div> - <div class="verse indent0">Lhe grito a soluçar co’as mãos erguidas,</div> - <div class="verse indent0">Eu sou Titiro, o filho de Menalca,</div> - <div class="verse indent0">As tuas aves amo, e temo os Deozes:</div> - <div class="verse indent0">Eu redes, eu caçar!”—“Estou perdido!</div> - <div class="verse indent0">Disseste que eu ... Mirtilo me interrompe.”</div> - <div class="verse indent0">—“Não, Mirtilo, socega, eu não lho disse,</div> - <div class="verse indent0">Nem sabia que tu ... fallemos baixo</div> - <div class="verse indent0">Que nos não ouça o Deos. Olha, este p’rigo</div> - <div class="verse indent0">Passou, mas outra vez não te aventures,</div> - <div class="verse indent0">Que eu bem sei como o vi, não te perdoa.</div> - <div class="verse indent0">Deixa ás pobres das aves innocentes</div> - <div class="verse indent0">Divertir-te e cantar; nada mais querem;</div> - <div class="verse indent0">Não tens razão, não teus de as perseguires.</div> - <div class="verse indent0">Quanto ás redes, eu quero consolar-te:</div> - <div class="verse indent0">Ouve Mirtilo, acceita este cestinho</div> - <div class="verse indent0">De cana entretecida em juncos verdes,</div> - <div class="verse indent0">E este meu cajadinho em boa altura</div> - <div class="verse indent0">Liso, airoso, e sem nós.”—Assim dizendo,</div> - <div class="verse indent0">Enfiei-lhe no braço o meu cestinho</div> - <div class="verse indent0">De cana entretecida em verdes juncos,</div> - <div class="verse indent0">E entreguei-lhe o cajado. Então Mirtilo</div> - <div class="verse indent0">Me abraçou, e saltando de contente,</div> - <div class="verse indent0">Jurou-me nunca mais armar ás aves.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse center">SILVIA.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">Glicera por vaidosa he que ama as flôres:</div><span class="pagenum"><a id="Page_183"></a>[183]</span> - <div class="verse indent0">Apanha-as para si não para os Deozes,</div> - <div class="verse indent0">Não lhas merece a Mãi e alcança-as Mopso.</div> - <div class="verse indent0">Quando em nosso jardim vejo Glicera,</div> - <div class="verse indent0">Ja me eu ponho a tremer: corta as melhores,</div> - <div class="verse indent0">He seu costume; enfado-me, sorri-se;</div> - <div class="verse indent0">Chóro, ri-se; e enfeixando-as, me repete:</div> - <div class="verse indent0">“Que te servem por ora estas floritas?</div> - <div class="verse indent0">Deixa passar mais cinco primaveras,</div> - <div class="verse indent0">E então sim, nem mais uma hei de furtar-te;</div> - <div class="verse indent0">Pois sei te hão de servir quaes me hoje servem.”</div> - <div class="verse indent0">Coitado de quem he como eu menina,</div> - <div class="verse indent0">Que se manda esperar por primaveras!</div> - <div class="verse indent0">Que podia eu fazer? queixei-me ás Ninfas.</div> - <div class="verse indent0">Hontem, ja pôsto o sol, quando erão horas</div> - <div class="verse indent0">De logo vir Glicera, a presumida,</div> - <div class="verse indent0">Que furta e vai cantando; ajoelhei-me</div> - <div class="verse indent0">Co’as mãos póstas por entre as minhas flôres.</div> - <div class="verse indent0">E disse: “Como as arvores tem ninfas,</div> - <div class="verse indent0">Que lhes morão la dentro e as aviventão,</div> - <div class="verse indent0">Ha ninfazinhas a velar nas flores.</div> - <div class="verse indent0">Ninfazinhas das flores, escutai-me:</div> - <div class="verse indent0">Se a rega, com que as folhas aquecidas</div> - <div class="verse indent0">Vos refresquei ha pouco, vos foi grata,</div> - <div class="verse indent0">Olhai por vós, fazei com que Glicera,</div> - <div class="verse indent0">Como eu vos vi e ouvi, vos veja e ouça;</div> - <div class="verse indent0">Apparecei-lhe como a mim, por sonhos,</div> - <div class="verse indent0">Vestidas de mil côres, perfumadas,</div> - <div class="verse indent0">Pequenas, mui mimosas, e só outras</div> - <div class="verse indent0">Em não mostrar-lhe a ella um ar festivo.</div> - <div class="verse indent0">Dizei-lhe como os Deozes vos crearão</div> - <div class="verse indent0">Para amores de zefiros, recreio</div> - <div class="verse indent0">De borboletas e olhos, e formosas</div> - <div class="verse indent0">Copeiras do formoso mel doirado:</div><span class="pagenum"><a id="Page_184"></a>[184]</span> - <div class="verse indent0">Dizei-lhe que tão bella e curta vida</div> - <div class="verse indent0">Não se deve encurtar, que as deshumanas</div> - <div class="verse indent0">Tem máo fim, que apezar de passageiras,</div> - <div class="verse indent0">Ninfas sois, e o Destino ha de vingar-vos:</div> - <div class="verse indent0">Que se tornar sacrílega a colher-vos,</div> - <div class="verse indent0">Vossos fragrantes ultimos suspiros</div> - <div class="verse indent0">Seráõ de queixa aos ceos, e antes de tempo</div> - <div class="verse indent0">As rosas no seu rôsto hão de murchar-se.”</div> - <div class="verse indent0">Como eu isto dizia, entrou Glicera:</div> - <div class="verse indent0">Murchas trazia as rosas de seu rôsto,</div> - <div class="verse indent0">Não rio, nem colheo nada, e suspiráva.</div> - <div class="verse indent0">Penada de a assim ver, beijei-a, e disse:</div> - <div class="verse indent0">“Se alguma d’estas flores te contenta,</div> - <div class="verse indent0">Eu mesma a vou cortar.”—“Não (me responde)</div> - <div class="verse indent0">Ja não quero mais flores, Mopso ingrato</div> - <div class="verse indent0">As que ultimas lhe dei deo-as a outrem:</div> - <div class="verse indent0">Como as flores me engeita hei de engeita-lo.”</div> - <div class="verse indent0">Ao que eu logo acudi—“Vês tu, Glicera,</div> - <div class="verse indent0">Fallei verdade ou não? nascem as flores</div> - <div class="verse indent0">Só para as nossas mãis, e para os Deozes,</div> - <div class="verse indent0">Da-lhas tu, e verás se hão de engeitar-tas.”</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse center">MENALCA.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">Basta meus filhos, basta; não ha sombras</div> - <div class="verse indent0">Tão gratas no verão, cheiro de flores</div> - <div class="verse indent0">Tão suave, ou tão ledo canto de aves,</div> - <div class="verse indent0">Que me recrêem como os vossos versos.</div> - <div class="verse indent0">Vinde, vinde, abracemo-nos, ó filhos:</div> - <div class="verse indent0">Dei-vos eu a doutrina; engenho os Fados;</div> - <div class="verse indent0">Mas os Deozes virtude: alcatifais-me</div> - <div class="verse indent0">De bem viçosa esp’rança o meu declivio:</div> - <div class="verse indent0">Dais-me o que nem pedir ouzava aos Deozes.</div><span class="pagenum"><a id="Page_185"></a>[185]</span> - <div class="verse indent0">Antevejo a florir-me a sepultura ...</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse center">DAFNE.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">Entremos na cabana: aquella nuvem</div> - <div class="verse indent0">Quer encobrir a lua; ergueo-se o vento,</div> - <div class="verse indent0">Não tarda muito algum ligeiro orvalho.</div> - </div> -</div> -</div> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_186"></a>[186]</span></p> - -<h3 class="nobreak" id="IDILLIO_NOTA">NOTA<br /> -AO IDILLIO.</h3> - -</div> - -<p>Na muita rama que ao Idillio decotei para -esta segunda edição, ninguem, por mais que -a cate, poderá achar fruto, nem sequer uma -triste flôr, se a não he o passo que para aqui -traslado, da falla de Alexis pag. 96 na primeira -edição; ácerca do qual e de tudo o mais -quanto supprimi ou accrescentei, releva reclamar -pela maior indulgencia dos leitores. Não -ma negará quem ja alguma vez houver experimentado -como de todas as couzas, que parecendo -tenues, são agras e laboriosas, a mais -agra, laboriosa, e não sei se diga impossivel, -he poetar e metrificar as fallas da infancia: -caminho he esse que estreitissimo corre por entre -precipicios, sendo maravilha que ahi os maiores -engenhos se tenhão, e sigão sem caír ou -para a direita ou para a esquerda. O primeiro -e melhor juiz do homem candido he a sua consciencia: -a minha me diz que os trez filhos de -Menalca nem sempre, antes poucas vezes, fallão -como conviria: de sobejo são poetas para -meninos e rusticos; e tanto, que se não fôra -a resalva, que logo do comêço lhes vai lançada, -de serem filhos de improvizador, e por elle -doutrinados no canto, não haveria perdão que -de ridiculos os salvasse.</p> - -<p>Segue-se o excerpto, com todos seus defeitos -e aleijões de nascença:</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_187"></a>[187]</span></p> - -<div class="poetry-container"> -<div class="poetry"> - <div class="stanza"> - <div class="verse center">O MENINO ALEXIS.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">Ver-me no bosque de prazer me enchia;</div> - <div class="verse indent0">Quando Amintas, chamando-me da gruta,</div> - <div class="verse indent0">Aonde estão de musgo revestidas</div> - <div class="verse indent0">As imagens das Náiades da fonte,</div> - <div class="verse indent0">Assim me disse, dando-me uma rosa:</div> - <div class="verse indent0">—“Eu te darei uma pequena ovelha,</div> - <div class="verse indent0">Toda branca, na testa só malhada,</div> - <div class="verse indent0">Se fores ter com Egle, e lhe entregares</div> - <div class="verse indent0">A rosa, que te dou, se lhe disseres</div> - <div class="verse indent0">“Egle, Amintas por ti morre de amores.”</div> - <div class="verse indent0">Beija-a depois na face, e continúa;</div> - <div class="verse indent0">“Egle, este beijo é do extremoso Amintas.”</div> - <div class="verse indent0">¿Não a vês la ao longe entre os salgueiros,</div> - <div class="verse indent0">Apascentando as candidas novilhas?</div> - <div class="verse indent0">Corre; e não tardes a buscar a ovelha.”—</div> - <div class="verse indent0">Eu fui correndo a ella, dei-lhe a rosa,</div> - <div class="verse indent0">Beijei-lhe a face, e disse-lhe: “Este beijo,</div> - <div class="verse indent0">Egle, este beijo é do extremoso Amintas.”</div> - <div class="verse indent0">Nada me respondeo, sorrio-se, e as faces</div> - <div class="verse indent0">Como a rosa encarnadas lhe ficárão.</div> - <div class="verse indent0">Abraçando-a depois, lhe disse alegre,</div> - <div class="verse indent0">“Egle, Amintas por ti morre de amores.”</div> - <div class="verse indent0">Rio-se outra vez, e dando-me na face,</div> - <div class="verse indent0">“Oh como tu és máo! vai-te, me-disse,</div> - <div class="verse indent0">Não posso ... não, não quero acreditar-te.”</div> - <div class="verse indent0">Nada lhe respondi, voltei á gruta,</div> - <div class="verse indent0">Onde o Pastor contente e alvoraçado</div> - <div class="verse indent0">Me deo sem custo uma pequena ovelha</div> - <div class="verse indent0">Toda branca, na testa só malhada.</div> - <div class="verse indent0">¡Como a minha ovelhinha é bella, e mansa!</div> - <div class="verse indent0">Andei com ella todo o dia ao pasto</div> - <div class="verse indent0">Pela relva do bosque, etc.</div> - </div> -</div> -</div> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_188"></a>[188]</span></p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_189"></a>[189]</span></p> - -<h2 class="nobreak" id="A_FESTA_DE_MAIO"><span class="smcap">A<br /> -Festa de Maio</span><br /> -<span class="smaller">POEMETTO EM DOIS CANTOS.</span></h2> - -</div> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_190"></a>[190]</span></p> - -<p><i>Se nos trez Poemettos precedentes pude fazer -muito mais do promettido no Prologo, n’este -último fica a minha palavra empenhada. -Pouquissimos de seus defeitos mais palpaveis -cheguei a apagar, e esses quasi só de linguagem. -Receoso de me vir a faltar o tempo ou -o animo, se desde a primeira pagina do Livro -me começasse a esmerar seguidamente, fôra -minha primeira occupação ir por todo elle -despontando, á ventura e sem ordem, o -que me apparecia pessimo, justamente como -no Prologo deixára promettido. Conheci logo -que este trabalho era insufficiente: entrei no -outro mais miudo e ordenado; refundi a cito</i> -a Epistola, o Dia da Primavera, os Cantos -de Abril, <i>nenhuma das quaes Obras cheguei -com tudo a lustrar. A</i> Festa de Maio, <i>por ser -a derradeira, quasi ficou, e até nova edição -(se algum dia se fizer) ficará, como era. O -maior bem que lhe pude fazer, foi abri-la -em dois Cantos, para que o leitor achasse -marco onde descançar em tão enfadonha e -comprida estrada.</i></p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_191"></a>[191]</span></p> - -<h3 class="nobreak" id="MAIO_DEDICATORIA">DEDICATORIA<br /> -ÁS SENHORAS DA LAPA DOS ESTEIOS.</h3> - -</div> - -<p class="noindent">SENHORAS,</p> - -<p><i>A segunda tarde, que passámos em Festa na -vossa Lapa, não tem jamais de nos esquecer. -O vosso gracioso e cortez descer a ouvir-nos, -as carícias com que amimastes o nosso Maiozinho, -dando-lhe entre vós assento, detendo-o -nos regaços, beijando-o, ¿como he que nos não -havião de cativar, a nós, que o cingíramos de -suas galas, o sentáramos em throno, pôsto que -menos para apetecer, e o levantáramos por Divindade -em nossos Cantos? Finalmente aquelle -vosso generoso trocar de nome á Lapa, querendo -que por nosso respeito se ficasse chamando</i> -dos Poetas, <i>em tamanhos obrigações nos pozerão, -que as Musas nos acodiráõ para um dia -vos provarmos que nós, Sacerdotes seus, não -somos ingratos. A minha, de mais atrevida que -he, me envia adeante, a tributar-vos este Poema, -que pois o approvastes, ja não he de vós indigno. -He prezente de uma Deoza do Parnaso, -não podem as trez Graças rejeita-lo.</i></p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_192"></a>[192]</span></p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_193"></a>[193]</span></p> - -<h3 class="nobreak" id="MAIO_HISTORIA"><span class="smcap">HISTORIA<br /> -da<br /> -Festa de Maio.</span></h3> - -</div> - -<p>Pelas trez horas da tarde do primeiro dia de -Maio de 1822 ja nós, a Sociedade dos poetas -<i>Amigos da Primavera</i>, nos achávamos á sombra -das arvores, pelo Encanamento do Mondego, -esperando anciosamente o batel, que -nos havia de tornar á Lapa dos Esteios, para -celebrarmos a Festa de Maio: de tantos que -lá fôramos no Dia da Primavera, só faltava -<i>Anfrizo</i>, em cuja vez recebêramos <i>Antíono</i>, -mancebo mui dado a bons estudos, versado -na lingua e poesia allemã, e autor ja então de -Anacreonticas e Idillios de muito preço.</p> - -<p>O suspirado batel acudio cedo á nossa ancia: -todo toldado, alcatifado e cingido com mui -curiosas invenções de verdes e flores, vinha parecendo -o naviozinho do <i>Primeiro Navegante</i>. -Abica, saltâmos-lhe dentro todos juntos; larga, -vogâmos contentes e cantando. Quem -bem quizesse pintar com a penna affétos do -coração, não achára bastante um volume para -historiar esta só tarde. Dezejára eu muito convidar -cortezmente meus leitores a nos acompanharem, -tomando seu quinhão em nosso folgar;<span class="pagenum"><a id="Page_194"></a>[194]</span> -mas não o posso, e ainda mal, que o -de maior valia fica-lo-hão perdendo. Hiamos -todos tão unidos em vontade, conformes em -gôsto, feriados de cuidados, crentes na ventura, -chêos e cercados de poesia, e namorados -da natureza, que os todos só parecião um, -um só moço, transportado em bemaventurança.</p> - -<p>Ora cantando, ora encarecendo, quasi adorando -as varias gentilezas que a perto e a longe, -e por toda a parte se presentavão e renovavão -de contínuo, aportámos apoz uma hora, -na formosa Lapa dos Esteios. Erguemo-nos, -vozeâmos, voão do barco para o ceo foguetes -que todo o ar estrugem, e para a margem os -hinos de uma orchestra que comnosco hia. -Diz a musica muito com todos os affétos da -alma, mas do contentamento, onde o ha, faz -alvorôço, que muitas vezes prorompe em lagrimas. -D’esta maneira triunfal saltámos para o -cáes, voámos ao alto da Lapa. Conhecia-nos -o sítio pelos mesmos, desconheciamo-lo nós -por melhorado: obrados erão sobre a natureza -milagres de Maio. Ja as arvores alardeavão ás -virações montes de folhagem, que pelo ar se -embalavão ao sol; era agora o rio ainda mais -puro, os ares mais temperados e benignos. -¿Quereis haver alguma idea da habitação das -almas felizes? quereis pintar os lugares onde -as Ninfas, os Faunos e Pan apparecião aos pastores -innocentes na idade de oiro? entrai a -Lapa dos Esteios pelos graciosos dias de Maio. -He a Primavera nos princípios uma linda menina;<span class="pagenum"><a id="Page_195"></a>[195]</span> -mas não sabe firmar o passo, balbucia, -tudo teme, não se decide em nada, suas graças -ja se annuncião claramente mas ainda se -não desenvolverão; em Maio he moça toda viçosa -de mocidade, a quem ledos cortejão Amores -e Prazeres, cujo sorrir endoidece o pensamento, -e vai entender com os corações. Tinha -a Natureza dado a segunda mão e ultima ao -lugar; mas a Arte quizera entrar com ella á -competencia, sem comtudo lhe desacatar a -primazia: tudo estava varrido e puro e concertado -de um sem numero de vasos de muitas, -e finissimas flores.</p> - -<p>No alto assentámos o altar do Deozinho Maio: -todo elle era verdura; duas colunas, artificiosamente -fabricadas de flores, e rematadas -em umas maçanêtas de igual marmore, se alevantavão -dos dois cantos da frente, e communicando-se -no cimo por um semicirculo, -que na materia e primor não desdizia do resto, -ajudavão a formar um genero de portico bem -vistoso e engraçado; os lados, fundo e abobada -do recinto erão de ramos verdes de todas -as qualidades, bem entrelaçados e bordados de -frescas e vermelhas rosas; no meio estava um -assento pequeno, á feição de poial rústico, tecido -de lustrosas heras, onde se via recostado o -Maio em acto mui gentil, e com um geito todo -seu. Era um Menino de cinco annos, louro -como o sol, e alvo como a neve, cabellos -crespos e annelados, caídos por um e outro -hombro: de roupagem, não tinha outra de seu<span class="pagenum"><a id="Page_196"></a>[196]</span> -que um aventalinho, que debaixo dos peitos -lhe descia aos joelhos; o qual, assim como os -listões que de cima dos hombros lho vinhão tomar -encruzando-se por deante e pelas costas, -estava recamado de cedro e buxo, com sua orla -mui accesa de flores de romeira, cravos, e rosas: -calçava cothurnos de seda escarlate; na -cabeça ostentava corôa de verdura, e do braço -esquerdo como que acenava ás vontades com -um cabazinho, farto dos frutos do seu tempo; -e tudo por modo tal, que a bôca se não sabia -determinar se o diria nu ou vestido, nem -a fantasia dos poetas se o quereria simples Menino, -ou verdadeira Divindade.</p> - -<p>Mandámos por dois dos nossos vizitar e convidar -para a Festa as amaveis Senhoras, cuja -he a Lapa, as quaes na quinta que por cima -fica tem seu perpétuo domicilio. Não tardarão: -recebemo-las como convinha, nós com -a festa dos nossos musicos, e com muitos seus -abraços as Senhoras, que abaladas dos annuncios -de tão bôa tarde, nos tinhão feito a honra -de acudir ao sítio. Ja era crescido o auditorio, -e muito para contentar e accender engenhos: -fomo-nos uns a outros seguindo com os poemas -que levavamos, os quaes em fórma de rito religioso, -se recitavão em pé deante do altar, fazendo -a nossa orchestra uma harmoniosa ráia -de poema a poema, que para tudo as tardes -de Maio deixão tempo. Poz-se-lhe remate com -os vinhos e saudes d’uma saborosa merenda, -como á primeira tarde da Primavera se havia<span class="pagenum"><a id="Page_197"></a>[197]</span> -feito. Passou-se o serão parte pelas salas, outra -parte pelo jardim das nossas hospedeiras.</p> - -<p>A noite era uma das mais bellas de tal mez: -a lua brilhantissima despedia até os horisontes -um clarão quasi diurno, não se enxergando nuvem -por todo o descampado do seu céo; refletia-se, -e desenrolava sua alcatifa de movediça -prata ao longo d’esse Mondego tão digno -de seus amores; o ar era tão manso e quêdo, -que as luzes, curiosamente distribuidas por entre -os vasos de flores, nem de leve estremecião; -suave era de ver sair por toda a parte d’entre -planta e planta uns reflexos verdejantes mui -amigos dos olhos, muito mais da fantasia de -poetas.</p> - -<p>Prazeres que o coração estriou por uma noite -assim enfeitiçada, não são para se poderem -pintar. Pouco tardou que a sociedade, como -acontece, se não soltasse e dispartisse em ranchos -pequenos: a musica errante e fóra dos -olhos, umas vezes folgando, suspirando outras, -e outras como quem sismava algumas amorosas -mágoas, hia-se ja pelos arvoredos da quinta, -ja ribeiras do rio acima e abaixo, tão grata, -que ainda não sei couza que mais quizesse. -Muitos e muitas baillavão arcadicamente sob a -abobada do céo, em quanto nós outros, os -que das Musas só fôramos fadados para versos, -os estudavamos e repetiamos á porfia. Algumas -semelhantes horas devia ter passado o primeiro -que escreveo Elisios.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_198"></a>[198]</span></p> - -<p>Era a noite crescida para muito alem do -meio, quando nos despedimos; e la foi caír -na eternidade um dia, que ainda agora me -persegue saudoso, e apoz o qual nenhum outro -veio semelhante.</p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_199"></a>[199]</span></p> - -<h3 class="nobreak" id="MAIO_CANTO_I"><span class="smcap">A<br /> -Festa de Maio.</span></h3> - -<h4><span class="smcap">Poemetto</span><br /> -CANTO I.</h4> - -</div> - -<div class="poetry-container"> -<div class="poetry"> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Eia, amigos, ao campo! ha ja trez horas,</div> - <div class="verse indent0">Que os Tindáreos Irmãos no aéreo espaço</div> - <div class="verse indent0">Vírão do meio dia o rôsto ardente:</div> - <div class="verse indent0">Eia, amigos, ao campo! as horas vôão,</div> - <div class="verse indent0">E o Maio alegre ás féstas nos convida:</div> - <div class="verse indent0">Os Zéfiros ligeiros, embalando</div> - <div class="verse indent0">Do parreiral a trémula folhagem,</div> - <div class="verse indent0">Ao rio, ao barco estão chamando a turba.</div> - <div class="verse indent0">¿O Deos Menino, o gracioso Maio</div> - <div class="verse indent0">Não vamos celebrar na fresca Lapa?</div> - <div class="verse indent0">Pois que se tarda? os Numes não consentem</div> - <div class="verse indent0">No culto seu ministros preguiçosos.</div> - <div class="verse indent0">Chamai á pressa as pastorís Camenas,</div> - <div class="verse indent0">Tomai as flautas, coroai as frontes</div> - <div class="verse indent0">Co’as grinaldas, que em premio vos cingírão</div> - <div class="verse indent0">Da Primavera no primeira tarde.</div> - <div class="verse indent0">Como! o tempo ... (ai da flor da mocidade!)</div> - <div class="verse indent0">O tempo as destruio! de graças tantas</div><span class="pagenum"><a id="Page_200"></a>[200]</span> - <div class="verse indent0">Que existe pois? um pó. Jazem desfeitas,</div> - <div class="verse indent0">Sem perfume, sem côr as lindas flores,</div> - <div class="verse indent0">E as verdes folhas se enrolárão murchas!</div> - <div class="verse indent0">Ah! corramos; o pezo, que as esmaga,</div> - <div class="verse indent0">Róla tambem sôbre a existencia nossa:</div> - <div class="verse indent0">Nossas grinaldas nos festins vivêrão,</div> - <div class="verse indent0">Morrêrão no prazer; e nós, como ellas,</div> - <div class="verse indent0">Devemos esperar, brincando, a morte.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Cedo nos hombros do nervoso Atlante</div> - <div class="verse indent0">O eixo voluvel em perpétuo giro</div> - <div class="verse indent0">Ha de erguer ante o Sol novas esferas:</div> - <div class="verse indent0">O Touro ja fugio: Castor, e Pollux</div> - <div class="verse indent0">Succedêrão-lhe agora: hão de apoz elles</div> - <div class="verse indent0">Os astros scintillar, que nos conduzão</div> - <div class="verse indent0">Da estiva calma os importunos tempos.</div> - <div class="verse indent0">Então fenecem pelo campo as flores,</div> - <div class="verse indent0">Tépidas correm na planicie as fontes,</div> - <div class="verse indent0">Calão-se as aves nos cavados troncos,</div> - <div class="verse indent0">E fallece a frescura ás proprias noites.</div> - <div class="verse indent0">Vamos, emquanto as flores não perecem,</div> - <div class="verse indent0">Emquanto soprão lisongeiras auras,</div> - <div class="verse indent0">Emquanto um doce frio as ondas levão,</div> - <div class="verse indent0">Emquanto as aves pelos ares cantão,</div> - <div class="verse indent0">E as claras noites co’a frescura aprazem;</div> - <div class="verse indent0">Vamos correndo: de vergonha córe</div> - <div class="verse indent0">Quem último chegar do rio á margem.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">¡Graças aos ceos, que a suspirada arêa</div> - <div class="verse indent0">Ja pizâmos emfim! mas pelas faces</div> - <div class="verse indent0">Abrazado suor me está caindo.</div> - <div class="verse indent0">Inda o barco não chega: eia, sentai-vos.</div> - <div class="verse indent0">D’esta aura carinhosa ao fresco sôpro</div><span class="pagenum"><a id="Page_201"></a>[201]</span> - <div class="verse indent0">Quanto he doce voltar o rosto ardente,</div> - <div class="verse indent0">E ora uma face, ora outra offerecer-lhe!</div> - <div class="verse indent0">Ella as beija brincando, e espalha em ondas</div> - <div class="verse indent0">Os escuros anneis, que lhas roubavão.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Verde canavial, salve trez vezes!</div> - <div class="verse indent0">Co’as boliçosas, arqueadas folhas</div> - <div class="verse indent0">Nos escondes a rir de Febo aos olhos.</div> - <div class="verse indent0">Ninfa adorada pelo Deos da Arcadia,</div> - <div class="verse indent0">(Deos dos pastores, inventor da flauta)</div> - <div class="verse indent0">Sacrilego furor não nos incita:</div> - <div class="verse indent0">Não te offendas se agora as nossas dextras</div> - <div class="verse indent0">De tuas canas adornadas vires:</div> - <div class="verse indent0">Sua altiveza airosa nos agrada,</div> - <div class="verse indent0">Vates somos, os trémulos seus cumes</div> - <div class="verse indent0">Ondulando, os lascivos seus abraços</div> - <div class="verse indent0">A cada viração que vai fugindo,</div> - <div class="verse indent0">Tudo isso nos namora, e diz poesia.</div> - <div class="verse indent0">Não te offendas ó Ninfa, ei-las colhidas!</div> - <div class="verse indent0">Gravai com ellas n’esta arêa os nomes</div> - <div class="verse indent0">Das vossas bellas, imprimi-lhe um beijo,</div> - <div class="verse indent0">E partamos, que o barco ahi fere a margem.</div> - <div class="verse indent0">Bem: eu lancei da Primavera o nome</div> - <div class="verse indent0">Em caratéres taes, que ao longe possa</div> - <div class="verse indent0">Lê-los o pescador no fim da tarde.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Eis-nos emfim nas transparentes ondas!</div> - <div class="verse indent0">Agora cumpre diligencia, esfôrço,</div> - <div class="verse indent0">Para vencer as fugitivas aguas.</div> - <div class="verse indent0">Ferva o trabalho, as varas não descancem;</div> - <div class="verse indent0">No fundo leito redobrai os golpes,</div> - <div class="verse indent0">E suavisai com musica a fadiga.</div> - <div class="verse indent0">Eu deitado na pôpa, eu dicto os versos;</div><span class="pagenum"><a id="Page_202"></a>[202]</span> - <div class="verse indent0">Cantai, e o echo em baixa voz aprenda.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Ouvi Ninfas do placido Mondego,</div> - <div class="verse indent0">Ouvi com ledo rôsto as preces nossas.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Saí correndo das limosas grutas:</div> - <div class="verse indent0">Occultas no cristal do patrio rio,</div> - <div class="verse indent0">Vós podeis impellir co’as mãos de neve,</div> - <div class="verse indent0">E fazer que o batel, qual aguia, vôe.</div> - <div class="verse indent0">Bellas Filhas do lúcido Mondego,</div> - <div class="verse indent0">Vamos passar a tarde á grata sombra,</div> - <div class="verse indent0">Das lindas Graças na famosa Lapa.</div> - <div class="verse indent0">Ali, se acaso não me illude o estro,</div> - <div class="verse indent0">Vós, Ninfas, vós com ellas muitas vezes</div> - <div class="verse indent0">As noites do luar passais em danças:</div> - <div class="verse indent0">Sôbre um tronco musgoso Amor sentado,</div> - <div class="verse indent0">Para acertar as rápidas choréas</div> - <div class="verse indent0">Com saudosa flauta a Noite acorda,</div> - <div class="verse indent0">E Venus compassiva lhe desata</div> - <div class="verse indent0">Dos olhos entretanto a escura venda.</div> - <div class="verse indent0">Mil Amorinhos sem farpões, sem facho,</div> - <div class="verse indent0">(Nem onde vós estais carecem d’elles)</div> - <div class="verse indent0">Vôão aqui e ali por entre os ramos.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Ouvi Ninfas do placido Mondego,</div> - <div class="verse indent0">Ouvi com ledo rôsto as preces nossas.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Dai-nos breve chegar, sereis cantadas;</div> - <div class="verse indent0">E iremos outro dia erguer altares</div> - <div class="verse indent0">De cada vosso chôpo á sombra amiga,</div> - <div class="verse indent0">Pondo-lhe em roda uma vistosa grade</div> - <div class="verse indent0">D’aureas canas com murtas revestidas:</div> - <div class="verse indent0">Em vossas ondas lançaremos rosas,</div><span class="pagenum"><a id="Page_203"></a>[203]</span> - <div class="verse indent0">E puro leite, e saboroso vinho.</div> - <div class="verse indent0">Porque tardais, ó Náiades esquivas?</div> - <div class="verse indent0">Turba innocente de mancebos rindo</div> - <div class="verse indent0">Bem merece o favor dos sacros Numes.</div> - <div class="verse indent0">Nós não vamos em lenhos alterosos,</div> - <div class="verse indent0">Roçando as nuvens com soberbas velas,</div> - <div class="verse indent0">C’o ferro a lampejar nas bravas dextras,</div> - <div class="verse indent0">Levar da guerra a furia aos outros povos,</div> - <div class="verse indent0">Lançar em fogo os bosques, e as cidades,</div> - <div class="verse indent0">Para voltar aos mares tormentosos</div> - <div class="verse indent0">Co’um pouco do metal, que gera os crimes:</div> - <div class="verse indent0">Nós vamos procurar vizinha praia</div> - <div class="verse indent0">Para rir, e beber de Maio em honra;</div> - <div class="verse indent0">Vamos c’roar-nos de verdura, e lirios,</div> - <div class="verse indent0">Cantar ao som da flauta a Natureza,</div> - <div class="verse indent0">Dançar no meio de innocentes gostos,</div> - <div class="verse indent0">E longe dos mortaes, viver ditosos,</div> - <div class="verse indent0">Poucas horas sequer, na paz dos campos.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Ouvi, Ninfas do placido Mondego,</div> - <div class="verse indent0">Ouvi com ledo rôsto as preces nossas.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Terra, terra: éstas árvores das margens,</div> - <div class="verse indent0">Que ora nos vão passando sôbre as frontes,</div> - <div class="verse indent0">Convidão a colher sua folhagem:</div> - <div class="verse indent0">Saltai, colhei os mais viçosos ramos,</div> - <div class="verse indent0">Teça-se um tôldo, que nos roube á calma.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Ávante! adeos, ó Driades, ficai-vos</div> - <div class="verse indent0">Em doce paz; o orvalho vos fecunde;</div> - <div class="verse indent0">Ache vossa raiz no estio as aguas</div> - <div class="verse indent0">Tão abundantes, como as tendes hoje.</div> - <div class="verse indent0">Nós vamos celebrar o mez das flores,</div><span class="pagenum"><a id="Page_204"></a>[204]</span> - <div class="verse indent0">Quando voltarmos vos daremos graças.</div> - <div class="verse indent0">Ávante! não cesseis, alegres nautas!</div> - <div class="verse indent0">Cantai: eu voas ensino um canto novo.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Das Filhas de Nereo a mais formosa</div> - <div class="verse indent0">Foi Galatéa candida, e rosada.</div> - <div class="verse indent0">Por seus olhos azues morreo de inveja</div> - <div class="verse indent0">Aglaia, irmã de Amor; a curta boca</div> - <div class="verse indent0">Ciumes acendeo no peito d’Egle,</div> - <div class="verse indent0">Bem que da boca d’Egle um doce beijo</div> - <div class="verse indent0">O scetro pagaria ao rei dos Numes;</div> - <div class="verse indent0">E Eufrosina, entre os Deozes celebrada</div> - <div class="verse indent0">Pelos aureos anneis da longa trança,</div> - <div class="verse indent0">De Galatéa a trança cobiçava.</div> - <div class="verse indent0">E o seio! o seio túrgido e nevado,</div> - <div class="verse indent0">Mais nevado que a espuma em que se tornão</div> - <div class="verse indent0">Na frente de um cachopo as crespas vagas,</div> - <div class="verse indent0">O seio era melhor que o teu, ó Cípria!</div> - <div class="verse indent0">Treze vezes floríra a primavera,</div> - <div class="verse indent0">Depois que aura vital gozava a Ninfa,</div> - <div class="verse indent0">E ja no mar, no ceo, no mundo inteiro</div> - <div class="verse indent0">Das bellas todas triunfava a bella,</div> - <div class="verse indent0">E ais e louvores a seguião sempre.</div> - <div class="verse indent0">Nereo, chamando-a á funda gruta um-dia,</div> - <div class="verse indent0">Assentou-a nos trémulos joelhos,</div> - <div class="verse indent0">Ao hombro lhe lançou paterna dextra,</div> - <div class="verse indent0">E beijando-a lhe diz.—“Assaz he tempo,</div> - <div class="verse indent0">“Filha, de rematar da infancia os brincos.</div> - <div class="verse indent0">“Tu conheces teu rôsto, ¿e não conheces</div> - <div class="verse indent0">“Que he preciso fugir á turba insana,</div> - <div class="verse indent0">“Que te rodêa, que te chama bella?</div> - <div class="verse indent0">“Crê tu nas cãs de um pai, de um pai no afféto;</div> - <div class="verse indent0">“Quanto mais suas fallas te agradarem,</div><span class="pagenum"><a id="Page_205"></a>[205]</span> - <div class="verse indent0">“E mais seus modos lisongeiros vires,</div> - <div class="verse indent0">“Mais pérfidos serão. Cabe a meus annos</div> - <div class="verse indent0">“Dar prudente conselho á tenra idade;</div> - <div class="verse indent0">“Perdoa-me, acautello-te a innocencia.</div> - <div class="verse indent0">“De meus delfias o lúbrico rebanho,</div> - <div class="verse indent0">“Desde hoje apascentar he teu cuidado:</div> - <div class="verse indent0">“Não convem á belleza ociosa vida.”—</div> - <div class="verse indent0">Disse, e poz-lhe na mão, como a pastora,</div> - <div class="verse indent0">Cajado de coral com ponta d’oiro;</div> - <div class="verse indent0">Entregou-lhe a rebanho, e conduzindo-a</div> - <div class="verse indent0">De seus mares a um placido retivo,</div> - <div class="verse indent0">—“Fica, pastora, aqui, lhe-disse o Velho,</div> - <div class="verse indent0">“Vir-te-hei vêr muita vez.”—Rio-se, e deixou-a.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Alguns dias ali viveo contente</div> - <div class="verse indent0">Com seu rebanho a equorea pegureira.</div> - <div class="verse indent0">Ora entre as moutas dos coraes ramosos</div> - <div class="verse indent0">O levava a pascer os brandos limos,</div> - <div class="verse indent0">Ora ao marinho cão deixando-o entregue,</div> - <div class="verse indent0">Hia colher das perolas as conchas.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Uma tarde de Maio, quando aos braços</div> - <div class="verse indent0">De Thetis vio que o sol hia descendo,</div> - <div class="verse indent0">Ouzou sair do fundo, e foi sentar-se</div> - <div class="verse indent0">A gozar do espétaculo dos bosques</div> - <div class="verse indent0">Na alegre entrada de uma verde gruta.</div> - <div class="verse indent0">Nas ondas por acaso então nadava</div> - <div class="verse indent0">Acis gentil de encantadores olhos:</div> - <div class="verse indent0">Vio-o, e visto, calou seu canto alegre;</div> - <div class="verse indent0">Sólta um suspiro, e se perturba, e córa.</div> - <div class="verse indent0">Do paternal preceito inda lembrada,</div> - <div class="verse indent0">Quer na gruta esconder-se até que parta</div> - <div class="verse indent0">Das ondas o mancebo: eis se arrepende,</div><span class="pagenum"><a id="Page_206"></a>[206]</span> - <div class="verse indent0">Ja não quer occultar-se, e quer que a veja.</div> - <div class="verse indent0">D’entre o verde do mar o níveo corpo,</div> - <div class="verse indent0">Que os olhos cega, e o coração cativa,</div> - <div class="verse indent0">As proporções, a ligeireza, a graça,</div> - <div class="verse indent0">Com que agora se occulta, agora assoma,</div> - <div class="verse indent0">E em modos mil as posições varía,</div> - <div class="verse indent0">Tudo, tudo a detem. De quando em quando,</div> - <div class="verse indent0">Sem conhecer que o faz, se lhe aproxima;</div> - <div class="verse indent0">As tranças, que trazia ao vento sôltas,</div> - <div class="verse indent0">Sem saber o porque, reparte e lança</div> - <div class="verse indent0">Sôbre os hombros de neve, e cobre o seio:</div> - <div class="verse indent0">Consulta no mar lizo a propria imagem;</div> - <div class="verse indent0">Quer mais bella tornar-se, e mais não póde.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Cançado de banhar-se o Moço emtanto</div> - <div class="verse indent0">Vinha a praia ganhando: ella assustada</div> - <div class="verse indent0">Corre á gruta; ali cora, ali desmaia,</div> - <div class="verse indent0">Quando o mancebo, quando o pai lhe lembra.</div> - <div class="verse indent0">O bello nadador não tarda muito,</div> - <div class="verse indent0">Entra na gruta, onde largára as vestes ...</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Amigos, vós parais como esquecidos?</div> - <div class="verse indent0">Deixais que o lenho na corrente desça?</div> - <div class="verse indent0">Ah! voltai ao trabalho; e por castigo</div> - <div class="verse indent0">Não ouvirèis do alegre canto o resto.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Novo me inspira agora esse murmúrio,</div> - <div class="verse indent0">Com que a Fonte das lagrimas se lança</div> - <div class="verse indent0">Da serpeada varzea ao rio aberto.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Junto á fresca matriz d’este ribeiro,</div> - <div class="verse indent0">Onde gozou em seculo remoto</div> - <div class="verse indent0">O mais ditoso par de amor os mimos,</div><span class="pagenum"><a id="Page_207"></a>[207]</span> - <div class="verse indent0">Meu estro agora placido voltêa</div> - <div class="verse indent0">Por entre os cedros, e os feraes ciprestes;</div> - <div class="verse indent0">E ora ao lago pacífico se arroja,</div> - <div class="verse indent0">Ora da fonte nos penedos pouza.</div> - <div class="verse indent0">Comvosco não existe o vosso amigo;</div> - <div class="verse indent0">Gira fóra d’aqui no sítio umbroso,</div> - <div class="verse indent0">La conversa co’a Musa, aprende, e canta</div> - <div class="verse indent0">Gratas histórias dos passados tempos.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Uma noite de Maio Inez formosa,</div> - <div class="verse indent0">Ao pallido clarão da argentea lua,</div> - <div class="verse indent0">Com seu Pedro fiel aqui vagava.</div> - <div class="verse indent0">De seu candido amor primeiro fruto,</div> - <div class="verse indent0">Lindo, qual dos Amores o mais lindo,</div> - <div class="verse indent0">Um tenro filho, que a fallar começa,</div> - <div class="verse indent0">Co’a pequenina mão á mãi seguro,</div> - <div class="verse indent0">A passos desiguaes a acompanhava.</div> - <div class="verse indent0">No dextro braço do gentil consorte</div> - <div class="verse indent0">O alvo braço despido entrelaçando,</div> - <div class="verse indent0">Languidamente a bella se apoiava.</div> - <div class="verse indent0">Traja da côr da neve, ornão-lhe as tranças</div> - <div class="verse indent0">Rúbidas rosas que reveste o musgo:</div> - <div class="verse indent0">Sob um véo raro e sôlto arfão dois peitos,</div> - <div class="verse indent0">Que estrema, que matiza, e que perfuma</div> - <div class="verse indent0">A flor, que he d’entre mil só digna d’elles,</div> - <div class="verse indent0">O amor perfeito em fresco ramalhete.</div> - <div class="verse indent0">Pelo silencio, e paz da noite amiga,</div> - <div class="verse indent0">Nos extasis de amor arrebatados,</div> - <div class="verse indent0">Ebrios ambos do nectar da ternura,</div> - <div class="verse indent0">Vagueando em seu ermo, respiravão</div> - <div class="verse indent0">Todo quanto prazer nas almas cabe.</div> - <div class="verse indent0">—“Inez, dizia Pedro, olha estes cedros,</div> - <div class="verse indent0">“Que doce murmurando agita o vento!</div><span class="pagenum"><a id="Page_208"></a>[208]</span> - <div class="verse indent0">“Olha as aguas do tanque, onde tão clara</div> - <div class="verse indent0">“Se está dos Ceos a Lua retratando!</div> - <div class="verse indent0">“Ouve o rumor das ondas transparentes,</div> - <div class="verse indent0">“Que vem brotando da cavada penha!</div> - <div class="verse indent0">“Cara Inez ... ah! calemo-nos; escuta</div> - <div class="verse indent0">“O amante rouxinol como gorgeia!</div> - <div class="verse indent0">“Não o sentes mui proximo? quem sabe!</div> - <div class="verse indent0">“Talvez que em teu jardim celébre agora</div> - <div class="verse indent0">“Ao lado de uma esposa os seus prazeres:</div> - <div class="verse indent0">“Se assim he, refinai perfume, ó flores,</div> - <div class="verse indent0">“E vós levai-lho, zefiros da noite,</div> - <div class="verse indent0">“No instante em que Himeneo tem de ajuntal-los.</div> - <div class="verse indent0">“Ó minha Inez, não ser inda possivel</div> - <div class="verse indent0">“Confiarmos á luz nossa ventura,</div> - <div class="verse indent0">“E eu dizer, sou de Inez!...”—N’isto o mancebo,</div> - <div class="verse indent0">Apertando a seu peito o braço d’ella,</div> - <div class="verse indent0">De beijos lhe inundava a mão mimosa.</div> - <div class="verse indent0">Em silencio e cuidosa a linda Castro</div> - <div class="verse indent0">Parava contemplando os ceos, o esposo,</div> - <div class="verse indent0">E unindo a regia dextra ao seio oppresso,</div> - <div class="verse indent0">Dava a resposta n’um fiel suspiro.</div> - <div class="verse indent0">—“Oh! (dizia depois) que Deos contrário</div> - <div class="verse indent0">“Ao terno amor, á candída innocencia,</div> - <div class="verse indent0">“Poz peito, ó doce encanto, a separar-nos?</div> - <div class="verse indent0">“Quão melhor fôra haver nascido em choças!</div> - <div class="verse indent0">“La, tendo por imperio um só rebanho,</div> - <div class="verse indent0">“Lãs por purpura, e flores por diadema,</div> - <div class="verse indent0">“Pedro fôra pastor e Inez pastora.</div> - <div class="verse indent0">“Teu solio quantas lagrimas nos custa!</div> - <div class="verse indent0">“Mas se fosse teu solio um manso outeiro,</div> - <div class="verse indent0">“Docel um parreiral firme em colunas</div> - <div class="verse indent0">“Das que dão fruto e flor, saude, e agrados,</div> - <div class="verse indent0">“Não cortíra em meus sonhos o remorso,</div><span class="pagenum"><a id="Page_209"></a>[209]</span> - <div class="verse indent0">“Teu coração ninguem mo disputára,</div> - <div class="verse indent0">“Não se encobríra o meu amor ...”—“Oh cessa,</div> - <div class="verse indent0">“Cessa (Pedro lhe diz interrompendo-a):</div> - <div class="verse indent0">“De que servem, querida, essas lembranças!</div> - <div class="verse indent0">“Se te adoro, que temes? se me adoras,</div> - <div class="verse indent0">“Que posso eu mais querer! Virtudes tantas,</div> - <div class="verse indent0">“Raros dons quaes os ceos em ti resumem,</div> - <div class="verse indent0">“Não são para jazer na escuridade;</div> - <div class="verse indent0">“Dos reis, de teus avós te poem no estrada,</div> - <div class="verse indent0">“Para luzires nos corrutos dias,</div> - <div class="verse indent0">“Como astro de bondade entre os humanos.</div> - <div class="verse indent0">“Gozemos do prazer. Olha esta noite</div> - <div class="verse indent0">“Como he formosa, minha Inez; não tornes,</div> - <div class="verse indent0">“Eu to peço por mim, por ti, por esse</div> - <div class="verse indent0">“Fruto do nosso amor que te he tão caro,</div> - <div class="verse indent0">“Não tornes a acordar taes pensamentos.</div> - <div class="verse indent0">“Queres tu, minha amada, á curta noite</div> - <div class="verse indent0">“Dar emprego melhor, mais proprio d’ella?</div> - <div class="verse indent0">“O assento ao pé da fonte nos convida,</div> - <div class="verse indent0">“Vem-me outra vez cantar os magos versos,</div> - <div class="verse indent0">“Onde quasi exprimiste o enlevo d’ambos,</div> - <div class="verse indent0">“Quando a primeira vez nos vimos juntos</div> - <div class="verse indent0">“Tambem de noite, e n’este sítio mesmo.”</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Disse, e Inez imprimindo-lhe nos labios</div> - <div class="verse indent0">Co’a meiga curta boca um longo beijo,</div> - <div class="verse indent0">—“Vamos, responde, apraz-me esse meu canto,</div> - <div class="verse indent0">“E agradar-te, inda mais; partamos logo.”—</div> - <div class="verse indent0">Diz, e ja leva ao collo o seu filhinho.</div> - <div class="verse indent0">Forceja o pai furtar-lhe o doce pezo,</div> - <div class="verse indent0">Ella a ninguem o cede:—“O meu menino</div> - <div class="verse indent0">“He meu, lhe diz; quando eu tiver meninas,</div> - <div class="verse indent0">“Dar-tas-hei, desde ja chama-lhe tuas;</div><span class="pagenum"><a id="Page_210"></a>[210]</span> - <div class="verse indent0">“Pertence o filho á mãi, e ao pai a filha.”—</div> - <div class="verse indent0">Sorrindo com ternura o ledo Amante,</div> - <div class="verse indent0">—“Ser-me-ha dado, lhe diz, que de teu filho</div> - <div class="verse indent0">“Ao menos colha uns beijos que me deve,</div> - <div class="verse indent0">“Ou hei de só com os teus ficar contente”?—</div> - <div class="verse indent0">—“Se tos deve meu filho, eu vou pagar-tos”</div> - <div class="verse indent0">Inez responde, e lhe pagou mil beijos.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Chegados são aos bancos do rochedo.</div> - <div class="verse indent0">—“Ja do sol o calor morreo na pedra;</div> - <div class="verse indent0">“Para assento, he mister ser estufada.</div> - <div class="verse indent0">“Não rias, o brocado hão de ser ramos;</div> - <div class="verse indent0">“Para a pastora Inez, nenhum mais proprio”—</div> - <div class="verse indent0">Voa ao proximo cedro, os ramos corta,</div> - <div class="verse indent0">Alastra-os sobre o marmore, e reclina</div> - <div class="verse indent0">O infantinho, que pósta a loira fronte</div> - <div class="verse indent0">No maternal joelho, eis adormece.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Absorto no painel delicioso,</div> - <div class="verse indent0">Não podendo parar nem desviar-se,</div> - <div class="verse indent0">Como homem, que formosa feiticeira</div> - <div class="verse indent0">Prende e agita n’um círculo encantado,</div> - <div class="verse indent0">Vaga o Principe á luz voluptuosa</div> - <div class="verse indent0">De lua por entre arvores. Desponta</div> - <div class="verse indent0">No ermo silencio o canto namorado!</div> - <div class="verse indent0">O suave da voz, o doce estilo,</div> - <div class="verse indent0">A musica tocante, a frase meiga</div> - <div class="verse indent0">Alhêão-no de si, todo elle he fogo:</div> - <div class="verse indent0">Não conhece onde está, quem he não sabe:</div> - <div class="verse indent0">No cahos do prazer, em que se abisma,</div> - <div class="verse indent0">Só vê brilhar Inez, Inez só ouve;</div> - <div class="verse indent0">E qual se nunca em braços a apertára,</div> - <div class="verse indent0">E virgem melindrosa o ceo benigno</div><span class="pagenum"><a id="Page_211"></a>[211]</span> - <div class="verse indent0">Lha houvéra ali chovido aquella noite,</div> - <div class="verse indent0">Arde e delira em sofregos dezejos.</div> - <div class="verse indent0">Já não sabe conter-se, o fim do canto</div> - <div class="verse indent0">Já não póde esperar; “Ó minha, exclama,</div> - <div class="verse indent0">“Ó minha ...” e sem findar, pois não encontra</div> - <div class="verse indent0">Nome que exprima o que lhe ferve na alma,</div> - <div class="verse indent0">Voa a abraça-la sem poder fallar-lhe;</div> - <div class="verse indent0">A voz com loucos beijos lhe interrompe,</div> - <div class="verse indent0">Quer dos labios sorver-lhe os sons divinos;</div> - <div class="verse indent0">Mas ella rindo, e a boca desviando,</div> - <div class="verse indent0">Que a deixe terminar lhe pede a custo.</div> - <div class="verse indent0">—“Sim, acaba (responde), Inez, acaba”—</div> - <div class="verse indent0">E emtanto hia beijando o collo, o seio.</div> - <div class="verse indent0">Depois, como ante Nume, ajoelhando,</div> - <div class="verse indent0">Suspenso a contemplava espaço longo;</div> - <div class="verse indent0">E depois no regaço o rôsto acceso</div> - <div class="verse indent0">Lhe punha, como em ninho de delicias,</div> - <div class="verse indent0">E no certo esperar crescia o fogo.</div> - <div class="verse indent0">Só vós caladas arvores no emtanto</div> - <div class="verse indent0">A canção namorada ouvindo estaveis</div> - <div class="verse indent0">Da mui ditosa Inez! Como expirava</div> - <div class="verse indent0">A derradeira nota, estremecendo</div> - <div class="verse indent0">Acorda o moço, alvoraçado surge,</div> - <div class="verse indent0">E tomando á cantora a mão submissa,</div> - <div class="verse indent0">—“Vamos, lhe diz, a lua vai descendo,</div> - <div class="verse indent0">“O tácito poente a chama ao sono:</div> - <div class="verse indent0">“Oh quão leve entre nós foge esta noite!</div> - <div class="verse indent0">“As auras pela relva estão dormindo,</div> - <div class="verse indent0">“Pendem com sono as arvores seus cumes,</div> - <div class="verse indent0">“Do largo tanque as aguas nem se encrespão.</div> - <div class="verse indent0">“O rouxinol que ha pouco gorgeava ...</div> - <div class="verse indent0">“Ja tambem se calou: sabes a causa?”—</div> - <div class="verse indent0">—“Talvez lhe empeça a voz, responde a bella,</div><span class="pagenum"><a id="Page_212"></a>[212]</span> - <div class="verse indent0">“Teimoso furto de continuos beijos.”—</div> - <div class="verse indent0">—“Não, não, responde o amante, agora occulto</div> - <div class="verse indent0">“Co’a docil companheira em quente abrigo,</div> - <div class="verse indent0">“Aperta o rouxinol de amor os laços.</div> - <div class="verse indent0">“E nós Inez? ah toma o teu menino,</div> - <div class="verse indent0">“Talvez não tarde a aurora, ao leito vamos,</div> - <div class="verse indent0">“E do fresco da noite ali zombemos.”</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Emfim chegámos! c’o ligeiro impulso</div> - <div class="verse indent0">Bate a proa no cáes, o lenho treme,</div> - <div class="verse indent0">Tremem com elle de seu tôldo as folhas.</div> - <div class="verse indent0">Salve ameno lugar, que as Graças pizão!</div> - <div class="verse indent0">Glória ao sacro arvoredo, que diffunde</div> - <div class="verse indent0">Sôbre a calma do vate a sombra fria!</div> - <div class="verse indent0">Glória ás auras, que prêzas n’este sítio,</div> - <div class="verse indent0">Das Dríades por mão aos troncos d’ellas,</div> - <div class="verse indent0">Agitão com susurro a massa enorme</div> - <div class="verse indent0">Da folhagem suspensa! honra aos que brincão</div> - <div class="verse indent0">Puros raios do sol sôbre o terreno,</div> - <div class="verse indent0">Mal que um favonio lhes descobre a entrada!</div> - <div class="verse indent0">Eterno amor ás aves, que em seus ramos</div> - <div class="verse indent0">A vinda nossa a gorgear celebrão!</div> - <div class="verse indent0">Paz ao dezerto, onde comnosco as Musas,</div> - <div class="verse indent0">Esquecidas de Pimpla, se contentão</div> - <div class="verse indent0">De encher de alegres canticos os ares!</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Á festa, á festa! Reuni-vos todos,</div> - <div class="verse indent0">Vinde colhêr as fugitivas horas:</div> - <div class="verse indent0">Como vaga que passa, ou flôr que murcha,</div> - <div class="verse indent0">Para mais não voltar, se escoa o tempo.</div> - <div class="verse indent0">Á festa, amigos! Oh! n’esta eminencia</div> - <div class="verse indent0">Eis ja pronto um altar! ei-lo cingido</div> - <div class="verse indent0">Com largas fitas de pintadas flores!</div><span class="pagenum"><a id="Page_213"></a>[213]</span> - <div class="verse indent0">Ante elle o rosmaninho, a murta, as rosas</div> - <div class="verse indent0">Té não curta distancia o chão tapizão;</div> - <div class="verse indent0">Heras, e lirios candidos o toldão:</div> - <div class="verse indent0">De heras e lirios adornai as frontes.</div> - <div class="verse indent0">Ajoelhai: lá sobe a Divindade!</div> - <div class="verse indent0">Silencio! paz!... Retumbe pelos echos,</div> - <div class="verse indent0">Sem mistura de voz, o som das flautas.</div> - <div class="verse indent0">No coração, no espirito me chovem</div> - <div class="verse indent0">D’estro divino eléctricas centelhas.</div> - <div class="verse indent0">Ja me sinto mudado em branco cisne!</div> - <div class="verse indent0">Cercai-me: eu vou cantar; calam-se os ventos!</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Voa invisivel das Hemonias serras,</div> - <div class="verse indent0">Tu que no Xantho as aureas tranças lavas:</div> - <div class="verse indent0">E se he tua, qual Roma suppozera,</div> - <div class="verse indent0">Ésta a melhor porção da florea quadra,</div> - <div class="verse indent0">Do cantor de teu mez protege a audacia.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">D’entre os filhos da immensa eternidade,</div> - <div class="verse indent0">D’entre esses doze Irmãos, que repartido</div> - <div class="verse indent0">Tem por sua influencia o anho inteiro,</div> - <div class="verse indent0">Maio foi sempre o mais gentil de todos:</div> - <div class="verse indent0">Qual dos cachos o Deos, e o Deos das setas,</div> - <div class="verse indent0">Goza brincando eterna mocidade.</div> - <div class="verse indent0">As Graças infantis, e a Formosura</div> - <div class="verse indent0">O creárão nos ceos com o proprio leite.</div> - <div class="verse indent0">Mal que o mundo surgio do horrendo cáhos,</div> - <div class="verse indent0">Veio formar-lhe os seus primeiros dias,</div> - <div class="verse indent0">E Maio foi da terra a fresca aurora.</div> - <div class="verse indent0">Em mimos escondendo a magestade,</div> - <div class="verse indent0">He Maio o pai, e o rei da Natureza:</div> - <div class="verse indent0">Qual em soberbo paço, anda nos bosques;</div> - <div class="verse indent0">Ou, qual em solio, nos outeiros verdes</div><span class="pagenum"><a id="Page_214"></a>[214]</span> - <div class="verse indent0">Se assenta, ao lado da risonha Flora.</div> - <div class="verse indent0">Compõe-lhe o seu cortejo Auras, Favonios,</div> - <div class="verse indent0">Que das plumas azues fragrancia espargem</div> - <div class="verse indent0">Furtada ha pouco ás pudibundas rosas.</div> - <div class="verse indent0">Em seu reinado insolita doçura</div> - <div class="verse indent0">Exhala o canto dos volateis bandos,</div> - <div class="verse indent0">E canoro parece o bosque inteiro.</div> - <div class="verse indent0">Em seu reinado os prados florecentes</div> - <div class="verse indent0">Só curão de ostentar perfume e cores:</div> - <div class="verse indent0">E a Ninfa ás vezes longas horas fica</div> - <div class="verse indent0">A meditar na escolha dos ornatos.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Co’a folhagem densissima susurra</div> - <div class="verse indent0">O bosque annoso a celebrar-te, ó Maio;</div> - <div class="verse indent0">Susurra a celebrar-te o rio, a fonte.</div> - <div class="verse indent0">Com serena alegria o sol derrama</div> - <div class="verse indent0">Vasto oceano de luz no aereo espaço.</div> - <div class="verse indent0">A pompa da manhã, da tarde o brilho</div> - <div class="verse indent0">Tem não visto matiz d’oiro e de rosas,</div> - <div class="verse indent0">E côr de fogo sôbre um ceo de leite.</div> - <div class="verse indent0">Toda patente a abobada de estrellas,</div> - <div class="verse indent0">Toda brilhante a prateada lua,</div> - <div class="verse indent0">Te dão, como as do Elisio, alegres noites,</div> - <div class="verse indent0">De importuno calor desafrontadas,</div> - <div class="verse indent0">Chêias de encanto, da saudade amigas,</div> - <div class="verse indent0">Gratas a um tempo ao coração, e ao estro.</div> - <div class="verse indent0">Aqui, e ali os rouxinoes se escutão</div> - <div class="verse indent0">Longas horas c’os echos porfiando.</div> - <div class="verse indent0">Gira, vaguêa pelas fracas trevas</div> - <div class="verse indent0">Dos pirilampos o lustroso bando:</div> - <div class="verse indent0">Resoa em cada aldêa alguma frauta,</div> - <div class="verse indent0">E emtôrno d’ella as camponezas danção:</div> - <div class="verse indent0">Bala no aprisco impaciente o gado</div><span class="pagenum"><a id="Page_215"></a>[215]</span> - <div class="verse indent0">As poucas horas, que á manhã precedem.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Como he doce o teu mez, benigno Maio!</div> - <div class="verse indent0">Alegra-se o viandante ao ver nos campos</div> - <div class="verse indent0">Do verde trigo as trémulas searas</div> - <div class="verse indent0">Iguaes a um vasto lago, onde os favonios,</div> - <div class="verse indent0">Nascidos inda ha pouco entre as florestas,</div> - <div class="verse indent0">Aprendem a encrespar as verdes aguas.</div> - <div class="verse indent0">Aqui a par de um campo, onde começa</div> - <div class="verse indent0">O milho a despontar, desprega aos ares</div> - <div class="verse indent0">Com vaidosa soberba altas bandeiras</div> - <div class="verse indent0">De outros milhos o exército infinito.</div> - <div class="verse indent0">Ostentando riqueza alem menêão,</div> - <div class="verse indent0">Entre a argentea folhagem pendurados</div> - <div class="verse indent0">Cachos de flor, os olivaes fecundos.</div> - <div class="verse indent0">Os pomares de frutos se carregão,</div> - <div class="verse indent0">Que ja sem medo aos furacões, e ás chuvas,</div> - <div class="verse indent0">Com áncia a côr, e a madureza esperão.</div> - <div class="verse indent0">As aves da manhã, quando revôão</div> - <div class="verse indent0">Com longo canto pela immensa altura,</div> - <div class="verse indent0">Se aprazem de os olhar; e ás vezes descem,</div> - <div class="verse indent0">E vem pouzar nos encurvados ramos,</div> - <div class="verse indent0">O futuro sustento ali festejão:</div> - <div class="verse indent0">Tal de annos onze uma pequena virgem</div> - <div class="verse indent0">De adoradores mil se vê cercada;</div> - <div class="verse indent0">Bem que á sua belleza inda lhe faltem</div> - <div class="verse indent0">Terno expressivo olhar, globos de neve,</div> - <div class="verse indent0">Voluptuoso dezejo entre suspiros,</div> - <div class="verse indent0">Buscado enfeite, graciosas fallas,</div> - <div class="verse indent0">Rodêão-na comtudo, adivinhando</div> - <div class="verse indent0">Pelo botáõ fechado a flor aberta.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Mas, ó Maio, o teu mez não brilha esteril!</div><span class="pagenum"><a id="Page_216"></a>[216]</span> - <div class="verse indent0">La se ergue o laranjal c’os frutos d’oiro;</div> - <div class="verse indent0">Doces limões, e saborosas limas,</div> - <div class="verse indent0">D’entre a larga folhagem descobrindo</div> - <div class="verse indent0">A amarellada tez e o forte aroma,</div> - <div class="verse indent0">Prendem sentidos convidando ao furto;</div> - <div class="verse indent0">Ri-se entre as mais a alegre cerejeira,</div> - <div class="verse indent0">Que ainda que no gôsto a muitas cede,</div> - <div class="verse indent0">Mais que todas seduz co’as vivas bagas;</div> - <div class="verse indent0">A ginjeira com ella aposta encantos,</div> - <div class="verse indent0">Mas apenas gostada, a palma he sua;</div> - <div class="verse indent0">Iguaes a um coração em côr, em fórma</div> - <div class="verse indent0">Os suaves morangos ja maduros,</div> - <div class="verse indent0">Contentes da humildade, estão dormindo</div> - <div class="verse indent0">No fresco seio da materna planta:</div> - <div class="verse indent0">D’ali, se vem um zefiro acorda-los,</div> - <div class="verse indent0">Olhão em roda as pampinosas vinhas;</div> - <div class="verse indent0">E vendo como os pequeninos cachos,</div> - <div class="verse indent0">Que a fronte cingem do celeste Bromio,</div> - <div class="verse indent0">E um dia gratos brilharáõ nas mezas</div> - <div class="verse indent0">Mudados no licor, que gera os risos,</div> - <div class="verse indent0">Do nativo terreno apenas se erguem,</div> - <div class="verse indent0">Zombando riem da vaidosa audacia,</div> - <div class="verse indent0">Com que somem no ceo pomposo cume</div> - <div class="verse indent0">Árvores tantas menos uteis que elles.</div> - <div class="verse indent0">Por toda a parte as desveladas hortas</div> - <div class="verse indent0">C’o verde alegre das crescidas plantas</div> - <div class="verse indent0">O suor do colono estão pagando;</div> - <div class="verse indent0">Seu terreno sulcado está coberto</div> - <div class="verse indent0">De immensas produções, que vão nas mesas</div> - <div class="verse indent0">Ser preciso sustento, ou grato mimo,</div> - <div class="verse indent0">E ora entrar na choupana, ora nos Paços.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Em teus dias, ó Maio, as vélas sólta</div><span class="pagenum"><a id="Page_217"></a>[217]</span> - <div class="verse indent0">Sem medo o nauta pelo vasto oceano,</div> - <div class="verse indent0">E olhando puro o ceo, de leite as ondas,</div> - <div class="verse indent0">A cujas furias escapou nadando,</div> - <div class="verse indent0">Sobre a pôpa da náo regendo o leme,</div> - <div class="verse indent0">Pensa na esposa, nos filhinhos pensa;</div> - <div class="verse indent0">Prometteu-lhes voltar; nem ja receia,</div> - <div class="verse indent0">Maio, fiado em ti, ser-lhes perjuro:</div> - <div class="verse indent0">Sobre a cana do leme encosta os braços,</div> - <div class="verse indent0">E ou sólta em grande voz grosseiros versos,</div> - <div class="verse indent0">Ou costumada musica assobia</div> - <div class="verse indent0">Olhando a estrada de alvejante espuma,</div> - <div class="verse indent0">Que d’um e d’outro lado á prôa foge.</div> - <div class="verse indent0">Brinca nas aguas, e ou se esconde, ou salta</div> - <div class="verse indent0">De vagos peixes prateada turba;</div> - <div class="verse indent0">Na verde superficie as Ninfas danção,</div> - <div class="verse indent0">Da tarda noite nas caladas horas,</div> - <div class="verse indent0">Das estrellas á doce claridade.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Mas eu quero soltar mais altos vôos,</div> - <div class="verse indent0">Trazer ao mundo incognitas verdades.</div> - <div class="verse indent0">Em teus dias, ó Maio, os Páfios bosques</div> - <div class="verse indent0">Vírão nascer os trêfegos Amores!</div> - <div class="verse indent0">N’um valle opaco, onde buscando o fresco</div> - <div class="verse indent0">Costumavas dormir entre mil flores,</div> - <div class="verse indent0">La teve a Deoza o seu fecundo parto.</div> - <div class="verse indent0">Apenas sobre a attonita verdura</div> - <div class="verse indent0">Cípria depunha um pequenino alado,</div> - <div class="verse indent0">Logo o via nos ceos voar, sumir-se:</div> - <div class="verse indent0">Tal dos Amores o soberbo genio!</div> - <div class="verse indent0">Quando cançados de brincar nos ares,</div> - <div class="verse indent0">Um passatempo á terna Mãi pedião,</div> - <div class="verse indent0">Tu lhes foste ensinar pelas florestas</div> - <div class="verse indent0">A formar arcos de flexiveis ramos,</div><span class="pagenum"><a id="Page_218"></a>[218]</span> - <div class="verse indent0">E despedir, sem nunca errar, seus golpes.</div> - <div class="verse indent0">Tu lhes mostraste os rezinosos troncos,</div> - <div class="verse indent0">De que havião formar brilhantes fachos.</div> - <div class="verse indent0">Tu mesmo entre elles companheiro e mestre,</div> - <div class="verse indent0">Pelos campos as flores procuravas,</div> - <div class="verse indent0">Com que doces prizões tecer devião.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Tudo em teus dias no universo adora;</div> - <div class="verse indent0">O sexo, a idade, as condições não livrão.</div> - <div class="verse indent0">Entre o rebanho, que amoroso bala,</div> - <div class="verse indent0">Amoroso pastor canta ou suspira;</div> - <div class="verse indent0">Ternas gorgêão no arvoredo as aves;</div> - <div class="verse indent0">Ragem ardendo de dezejo as feras;</div> - <div class="verse indent0">Suspiros ouço ás arvores, e aos ventos;</div> - <div class="verse indent0">Abrem o seio as virgemzinhas flores,</div> - <div class="verse indent0">E Venus as fecunda, e mãis se tornão.</div> - <div class="verse indent0">Em cada gruta, em cada bosque ás Ninfas</div> - <div class="verse indent0">Uma emboscada os Sátiros aprestão.</div> - <div class="verse indent0">Em bellezas mortaes embevecido,</div> - <div class="verse indent0">Canta em rustica voz novos amores</div> - <div class="verse indent0">C’roado de pinheiro o Deos da Arcadia,</div> - <div class="verse indent0">E ante a Ninfa gentil mudada em canas</div> - <div class="verse indent0">Pelas canas da flauta os sons varía</div> - <div class="verse indent0">Com ar alegre, que perjuro o torna.</div> - <div class="verse indent0">Sensivel para o Sol se volta Clície;</div> - <div class="verse indent0">O Sol na terra outras bellezas busca,</div> - <div class="verse indent0">E outras acha, que o peito lhe cativão,</div> - <div class="verse indent0">E fazem que mais tarde a Thetis desça.</div> - <div class="verse indent0">Entre os astros as Pléiades luzentes</div> - <div class="verse indent0">Com saudade seus thalamos recordão:</div> - <div class="verse indent0">Junto d’ellas o Touro inda parece</div> - <div class="verse indent0">Mugir lembrado da formosa Europa.</div> - <div class="verse indent0">Mais placida refulge a Cípria estrella;</div><span class="pagenum"><a id="Page_219"></a>[219]</span> - <div class="verse indent0">Dissereis que saudosa indaga os sitios,</div> - <div class="verse indent0">Onde comtigo, venturoso Adonis,</div> - <div class="verse indent0">Passava as noites do formoso Maio:</div> - <div class="verse indent0">E quando foge, a Aurora se envergonha,</div> - <div class="verse indent0">E cora por voltar tão cedo ao mundo;</div> - <div class="verse indent0">Pois quem ha que não saiba os seus segredos?</div> - <div class="verse indent0">Quem de Céfalo a história não repete?</div> - <div class="verse indent0">Em cada tronco um dísticho de amores,</div> - <div class="verse indent0">Ou dois nomes se lem, como enlaçados.</div> - <div class="verse indent0">Uma sombra, uma só não ha nos campos,</div> - <div class="verse indent0">Onde Amor não recorde, ou não prepare,</div> - <div class="verse indent0">Ou não veja presente uma vitoria.</div> - <div class="verse indent0">Foi, Maio, foi teu mez que ao Rei das sombras</div> - <div class="verse indent0">Fez que deixasse o sempiterno cáhos,</div> - <div class="verse indent0">Para roubar a encantadora esquiva,</div> - <div class="verse indent0">Do flóreo campo de Enna ornato, e Deoza.</div> - <div class="verse indent0">Foi, Maio, foi teu mez que ouviu primeiro</div> - <div class="verse indent0">Diana a suspirar, arrepender-se</div> - <div class="verse indent0">De ser das virgens tutelar Deidade.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Graças ao teu poder, e ao teu influxo!</div> - <div class="verse indent0">És tu que a rir convidas gracioso</div> - <div class="verse indent0">Minerva um pouco a abandonar seus livros<a id="FNanchor_13" href="#Footnote_13" class="fnanchor">[13]</a>.</div> - <div class="verse indent0">Quem póde resistir-te? emfim te cede,</div> - <div class="verse indent0">Toma-te pela mão, para que a leves</div> - <div class="verse indent0">A divagar em teus vistosos campos;</div> - <div class="verse indent0">O ar de meditação troca em agrados,</div> - <div class="verse indent0">E vê contente abandonar-lhe a côrte</div><span class="pagenum"><a id="Page_220"></a>[220]</span> - <div class="verse indent0">De seus alunos juvenil caterva,</div> - <div class="verse indent0">Que alvoraçada aos patrios lares vôa.</div> - <div class="verse indent0">Sim, Maio, eu voarei aos patrios lares!</div> - <div class="verse indent0">Mas cuidas que jamais distancia ou tempo</div> - <div class="verse indent0">D’este dia a memoria hão de apagar-me?</div> - <div class="verse indent0">Não: onde quer que os fados me conduzão</div> - <div class="verse indent0">Sempre te hei de cantar, sempre c’roado</div> - <div class="verse indent0">De teus altares me verás ministro:</div> - <div class="verse indent0">Mas d’esta sociedade, e d’estes brincos,</div> - <div class="verse indent0">Em quanto a noite se adornar de estrellas,</div> - <div class="verse indent0">Nunca a lembrança volverei sem mágoa.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">De generoso vinho enchei-me o copo,</div> - <div class="verse indent0">Que de mírtea grinalda ornado quero.</div> - <div class="verse indent0">Imitai-me tambem. Por este, ó Maio,</div> - <div class="verse indent0">Suavissimo licor, pai da alegria,</div> - <div class="verse indent0">Por este, digo, cuja taça empunho,</div> - <div class="verse indent0">Juro ante o ceo, de teu altar em frente,</div> - <div class="verse indent0">Que um anno só não deixará meu estro</div> - <div class="verse indent0">De exaltar tua glória, e a minha amada,</div> - <div class="verse indent0">A Deoza tua mãi, a Primavera.</div> - <div class="verse indent0">Reformai-me outra vez a funda taça.</div> - <div class="verse indent0">Em honra a vós, formosas moradoras</div> - <div class="verse indent0">D’este ameno lugar, esta se esgote.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Aguardai, cabe agora o sacrificio;</div> - <div class="verse indent0">Vou-me a buscar a vítima, que a trouxe</div> - <div class="verse indent0">Occulta e prêza do batel na pôpa.</div> - <div class="verse indent0">Eis-me, abri-me caminho! eu volto ás aras:</div> - <div class="verse indent0">Para a santa ablução trazei-me um vaso.</div> - <div class="verse indent0">Silencio! fallo ao Deos!—“Sejão-te acceitos</div> - <div class="verse indent0">A vida, e leve espirito do prezo</div> - <div class="verse indent0">Que vem n’esta gaiola, o qual eu vate</div><span class="pagenum"><a id="Page_221"></a>[221]</span> - <div class="verse indent0">Por todos nós agora te dedico,</div> - <div class="verse indent0">E dedicado entrego ás livres Parcas.</div> - <div class="verse indent0">Digna he de ti formoso ave formosa</div> - <div class="verse indent0">Como esta; pintasilgo ativo em canto,</div> - <div class="verse indent0">Garrido em côres, no brincar esperto,</div> - <div class="verse indent0">Mestre em tirar do cristalino poço</div> - <div class="verse indent0">Com o balde de avelã sua bebida:</div> - <div class="verse indent0">Outro melhor nunca girou nos bosques.</div> - <div class="verse indent0">D’esta estação n’um dos primeiros dias,</div> - <div class="verse indent0">Segundo o meu costume antes da aurora</div> - <div class="verse indent0">Saí a espairecer nos campos verdes,</div> - <div class="verse indent0">Ouvir das aves os primeiros cantos,</div> - <div class="verse indent0">E aquecer-me sentado sobre a relva</div> - <div class="verse indent0">Ao primeiro calor do sol nascente.</div> - <div class="verse indent0">Banhei o rôsto n’um remanso puro,</div> - <div class="verse indent0">Colhi as flores inda ha pouco abertas;</div> - <div class="verse indent0">E co’a mente serena, e possuido</div> - <div class="verse indent0">Do amor do campo, e dos campestres gostos,</div> - <div class="verse indent0">Voltei de novo ao lar. Junto á janella</div> - <div class="verse indent0">Por onde largo sol ja vinha entrando,</div> - <div class="verse indent0">Fui sentar-me a pascer em vãs delicias.</div> - <div class="verse indent0">Eu sonhava acordado! ah nos meus sonhos</div> - <div class="verse indent0">Não via mais que bosques e pastores,</div> - <div class="verse indent0">Rebanhos, fontes, rusticas choupanas!</div> - <div class="verse indent0">Dono me cria d’um torrão pequeno</div> - <div class="verse indent0">Mas pingue, de uma choça pequenina</div> - <div class="verse indent0">Mas alva, entre nogueiras, rodeada</div> - <div class="verse indent0">De alvos cordeiros nédeos e alvas pombas.</div> - <div class="verse indent0">Eis que afoitando um vôo, esta avezinha</div> - <div class="verse indent0">Me entra por casa; ao seu gorgeio acórdo,</div> - <div class="verse indent0">Pois junto a mim pouzava gorgeando.</div> - <div class="verse indent0">Ouves, Maio, este som, com que parece</div> - <div class="verse indent0">Approvar adejando o que te conto?</div><span class="pagenum"><a id="Page_222"></a>[222]</span> - <div class="verse indent0">Ouves? repara bem: tal modulava</div> - <div class="verse indent0">Quando amoroso a vizitar-me veio.</div> - <div class="verse indent0">Ganhando confiança a pouco e pouco,</div> - <div class="verse indent0">Saltou-me para o hombro, e de improvizo</div> - <div class="verse indent0">Prêzo se vio na minha mão fechado.</div> - <div class="verse indent0">Quiz debater-se, emvão; piou, carpio-se,</div> - <div class="verse indent0">O bom coraçãozinho lhe batia.</div> - <div class="verse indent0">Beijei-o, puz-lhe mesa; o sem ventura</div> - <div class="verse indent0">Nada acceitava, anciando só fugir-me.</div> - <div class="verse indent0">“Conheces-me bem mal, pobre innocente,</div> - <div class="verse indent0">Lhe digo; essa gaiola he teu palacio</div> - <div class="verse indent0">Não carcere, eu teu servo e não tirano.</div> - <div class="verse indent0">Servo e palacio um dia de experiencia</div> - <div class="verse indent0">Talvez tos faça amar: se não, prometto</div> - <div class="verse indent0">Abrir-te a porta e libertar-te os vôos.”</div> - <div class="verse indent0">Á janella da minha a estancia d’elle</div> - <div class="verse indent0">Penduro; os aureos grãos e a clara linfa,</div> - <div class="verse indent0">Cama fôfa entre ramos florecentes,</div> - <div class="verse indent0">Vista de campo e céo por toda a parte,</div> - <div class="verse indent0">Mas livres um de açôr, outro do tiros,</div> - <div class="verse indent0">Manso, mansinho ás grades o affizerão:</div> - <div class="verse indent0">Comeo, bebeo, cantou. “Pois que tu cantas,</div> - <div class="verse indent0">Vatezinho silvestre, em nossa casa,</div> - <div class="verse indent0">Juntos e amigos ficaremos sempre.</div> - <div class="verse indent0">Tu serás de meus dias a harmonia,</div> - <div class="verse indent0">Eu tua providencia; a fonte e a messe</div> - <div class="verse indent0">Te viráõ procurar, dar-te-hei florestas</div> - <div class="verse indent0">La dentro em teus penates de cortiça,</div> - <div class="verse indent0">E porque logres tudo, uma consorte</div> - <div class="verse indent0">Virgem, bella, fagueira, e cujos filhos</div> - <div class="verse indent0">Seráõ só teus, e como tu formosos.”</div> - <div class="verse indent0">Desde então ledo vive, e tanto aos mimos</div> - <div class="verse indent0">Se acostumou domesticos, e tanto</div><span class="pagenum"><a id="Page_223"></a>[223]</span> - <div class="verse indent0">A amizade entendeo, que lhe abro a grade</div> - <div class="verse indent0">Fronteira aos ceos da aurora, aos bosques amplos,</div> - <div class="verse indent0">E nem bosques nem ceos lhe dizem—foge.—</div> - <div class="verse indent0">Da liberdade que lhe acena á porta</div> - <div class="verse indent0">Se despede cantando, e empoleirado,</div> - <div class="verse indent0">Reizinho em casa sua, a mim e a ella</div> - <div class="verse indent0">Nos compara, e lhe diz: “Aquelle humano</div> - <div class="verse indent0">Deos foi que para mim creou taes ocios!”</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">“He esta, ó Maio, a vítima que trago</div> - <div class="verse indent0">Ao sacrificio teu! perco um amigo!”</div> - <div class="verse indent0">Com esta mimosissima grinalda</div> - <div class="verse indent0">De sensitiva lhe circundo o collo,</div> - <div class="verse indent0">Para sinal da dor que me comprime.</div> - <div class="verse indent0">Vamos, venha o punhal, que eu limpo o pranto.</div> - <div class="verse indent0">Ó ceos!... quanto me custa! He sacrilegio</div> - <div class="verse indent0">Qualquer demora mais: ânimo agora,</div> - <div class="verse indent0">Saudoso coração!... Venceste, ó Maio!</div> - <div class="verse indent0">Venceste! consumou-se o sacrificio!</div> - <div class="verse indent0">O fio prêzo ao pé cortei de um golpe,</div> - <div class="verse indent0">Lancei-o ao ar; voou; nem ja o ouvimos.</div> - <div class="verse indent0">Foi rever seus antigos companheiros,</div> - <div class="verse indent0">Sua amada, seu bosque, e o seu alvergue.</div> - <div class="verse indent0">Oh! como será doce emtôrno ao sócio</div> - <div class="verse indent0">Que julgárão perdido, apinhoada</div> - <div class="verse indent0">Papear parabens a alada tribu!</div> - <div class="verse indent0">Oh tu lhes dize então do amigo o nome,</div> - <div class="verse indent0">Que vezes te beijei de madrugada</div> - <div class="verse indent0">Por me acordares co’o suave canto,</div> - <div class="verse indent0">Para trocar o leito pelo grato</div> - <div class="verse indent0">Passeio da manhã, d’onde trazia</div> - <div class="verse indent0">Pera a tua gaiola hastes de flores.</div> - <div class="verse indent0">Ouvirá leda a esposa a leda historia,</div><span class="pagenum"><a id="Page_224"></a>[224]</span> - <div class="verse indent0">E a contará depois aos tenros filhos.</div> - <div class="verse indent0">Talvez que em meu passeio inda algum dia,</div> - <div class="verse indent0">A festejar-me, emtôrno a mim se junte</div> - <div class="verse indent0">Chêa de gratidão toda a familia,</div> - <div class="verse indent0">Tu meu amigo, a tua esposa, e prole.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Dispersai-vos, bebei, cantai, amigos,</div> - <div class="verse indent0">Ride, e dançai, porque invejoso o tempo,</div> - <div class="verse indent0">Co’as cãs na fronte, e o coração gelado,</div> - <div class="verse indent0">As horas do prazer furta aos mancebos.</div> - <div class="verse indent0">Mas ai de nós, que o perfido voando</div> - <div class="verse indent0">Ja nos fugio co’a encantadora tarde!</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Desçamos ao batel: adeos ó Lapa,</div> - <div class="verse indent0">Adeos, fica-te em paz; e cedo espera</div> - <div class="verse indent0">Ver de novo juntar-se á sombra tua</div> - <div class="verse indent0">Da Natureza os candidos Amigos.</div> - <div class="verse indent0">Deixai as varas, gracejemos antes,</div> - <div class="verse indent0">Não cumpre trabalhar, para fugirmos</div> - <div class="verse indent0">De um bosque sacro a Maio, e sacro ás Musas.</div> - </div> -</div> -</div> - -<p class="center">FIM DO CANTO PRIMEIRO.</p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_225"></a>[225]</span></p> - -<h3 class="nobreak" id="MAIO_CANTO_II"><span class="smcap">A<br /> -Festa de Maio.</span></h3> - -<h4><span class="smcap">Poemetto</span><br /> -CANTO II.</h4> - -</div> - -<div class="poetry-container"> -<div class="poetry"> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">D’essa garrafa de cristal doirado</div> - <div class="verse indent0">Duas taças me enchei. Venha a primeira:</div> - <div class="verse indent0">Esta se esgote da amizade em honra.</div> - <div class="verse indent0">Ó divino licor! se o puro nectar,</div> - <div class="verse indent0">Que Hebes formosa a Jove ministrava,</div> - <div class="verse indent0">Comtigo competir podesse ao menos,</div> - <div class="verse indent0">Jove lhe perdoára o seu descuido,</div> - <div class="verse indent0">Nem dos bosques Ideos arrebatado</div> - <div class="verse indent0">Ganimedes gentil voára aos Numes.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Dai-me, dai-me a segunda. Em honra agora</div> - <div class="verse indent0">Do celeste prazer, que nos encende,</div> - <div class="verse indent0">Este liquido fogo ao peito envio.</div> - <div class="verse indent0">Graças ás mãos, que á terra afortunada</div> - <div class="verse indent0">Derão em hora boa éstas videiras!</div> - <div class="verse indent0">Graças a Baccho, ao protétor, que tanto</div> - <div class="verse indent0">Desvelo lhes prestou! Graças á turba</div> - <div class="verse indent0">De alegres raparigas, que levárão</div><span class="pagenum"><a id="Page_226"></a>[226]</span> - <div class="verse indent0">Os cachos ao lagar em largos cestos!</div> - <div class="verse indent0">A vós mancebos rusticos e alegres,</div> - <div class="verse indent0">Que aos pés calcastes as cheirosas uvas!</div> - <div class="verse indent0">E a ti, lenho feliz, em cujo seio</div> - <div class="verse indent0">Os sagrados toneis se transportárão</div> - <div class="verse indent0">Desde os campos de Chipre aos campos nossos!</div> - <div class="verse indent0">Do celeste perfume ébrias as Ninfas</div> - <div class="verse indent0">Te acompanhárão na veloz carreira;</div> - <div class="verse indent0">Continuamente as velas te enfunárão</div> - <div class="verse indent0">Com halito propício os frescos ventos,</div> - <div class="verse indent0">Que lá brincavão pelas ferteis vinhas,</div> - <div class="verse indent0">Faceis criando, e colorindo as uvas:</div> - <div class="verse indent0">E o mesmo Baccho (eu não vos minto, amigos:</div> - <div class="verse indent0">Ah! dai-me a taça, os labios se me seccão);</div> - <div class="verse indent0">Baccho em pessoa, o vencedor das Indias,</div> - <div class="verse indent0">Invisivel na pôpa revirava</div> - <div class="verse indent0">O leme dirétor co’a mão divina.</div> - <div class="verse indent0">Dai-me á pressa outro copo: outro: mais cinco:</div> - <div class="verse indent0">Mais um que eu vote a Febo, e nove ás Musas.</div> - <div class="verse indent0">Sinto o meu coração desfeito em gôsto!</div> - <div class="verse indent0">Ah! por piedade rodeai-me todos;</div> - <div class="verse indent0">Quando entre amigos bebo, um só não basta</div> - <div class="verse indent0">Para me encher atropelados copos.</div> - <div class="verse indent0">A cada qual de vós uma saude</div> - <div class="verse indent0">Quero fazer; mais uma a cada Ninfa;</div> - <div class="verse indent0">Aos Numes todos, que na terra habitão,</div> - <div class="verse indent0">Aos Numes todos, que dos ceos nos olhão,</div> - <div class="verse indent0">A todos que no Elisio nos esperão;</div> - <div class="verse indent0">Farei uma saude a cada vaga,</div> - <div class="verse indent0">Que desde a Herminea Serra<a id="FNanchor_14" href="#Footnote_14" class="fnanchor">[14]</a> aos mares corre,</div><span class="pagenum"><a id="Page_227"></a>[227]</span> - <div class="verse indent0">Álua, a cada estrella, a quanto existe.</div> - <div class="verse indent0">Do mais vivo prazer me volvo em braços!</div> - <div class="verse indent0">Rio, e respiro magicas delicias!</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Gelos, que em serras coroais as fontes,</div> - <div class="verse indent0">D’onde as urnas as Náiades inclinão</div> - <div class="verse indent0">Para mandar-nos de tão longe as aguas,</div> - <div class="verse indent0">Derretei-vos em subitas correntes:</div> - <div class="verse indent0">Brami de roda dos Hermineos lagos,</div> - <div class="verse indent0">Ventos da tempestade; as átras nuvens</div> - <div class="verse indent0">Reuní, condensai: retumbe ao longe</div> - <div class="verse indent0">O ronco do trovão pelas florestas,</div> - <div class="verse indent0">E o monte enorme em seus abismos trema.</div> - <div class="verse indent0">Todo em chuveiros se desate o polo:</div> - <div class="verse indent0">E cedo (oh! praza aos ceos!) e cedo o rio</div> - <div class="verse indent0">Vença o leito, e com impeto revolva</div> - <div class="verse indent0">Tropel ruidoso de espumosas vagas.</div> - <div class="verse indent0">Sem poder contrastar-lhe a furia immensa,</div> - <div class="verse indent0">Perto da margem sem poder ganha-la,</div> - <div class="verse indent0">No escuro turbilhão de rôjo iremos.</div> - <div class="verse indent0">Quando a aurora assomar, ja muito longe</div> - <div class="verse indent0">Nos verá pelo Atlantico engolfados.</div> - <div class="verse indent0">Do enfeitado batel voltando a prôa</div> - <div class="verse indent0">Contra as vagas austraes, candidas velas</div> - <div class="verse indent0">Presentaremos ao ligeiro Boreas.</div> - <div class="verse indent0">Em dia bonançoso, e mar de rosas</div> - <div class="verse indent0">Iremos sem temor, chêos de assombro,</div> - <div class="verse indent0">Gozando entre as equoreas Divindades</div> - <div class="verse indent0">Scenas de Maio no ceruleo campo.</div> - <div class="verse indent0">Cedo veremos verdejando e rindo</div> - <div class="verse indent0">O alto Cabo surgir na extrema ponta</div> - <div class="verse indent0">Da Lusitana terra: erguendo aos astros</div> - <div class="verse indent0">A nautica celeuma, alvoraçados.</div><span class="pagenum"><a id="Page_228"></a>[228]</span> - <div class="verse indent0">Poremos no occidente o vago leme</div> - <div class="verse indent0">Para afrontarmos as Titóneas plagas.</div> - <div class="verse indent0">Entre o Barbaro solo, e o solo Hispano</div> - <div class="verse indent0">Passaremos cantando o Estreito, aonde</div> - <div class="verse indent0">As Colunas ergueo famoso Alcides.</div> - <div class="verse indent0">Pelos ventos Hesperios ajudados,</div> - <div class="verse indent0">Movendo assombro ás cérulas Nereidas,</div> - <div class="verse indent0">Cortaremos, voando, em curtos dias,</div> - <div class="verse indent0">Mediterraneo, tua longa estrada.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Nossos astros serão por entre as ondas</div> - <div class="verse indent0">O astro de Venus luminoso, e claro,</div> - <div class="verse indent0">Ariadne, a esposa do contente Bromio,</div> - <div class="verse indent0">E os Tindáreos Irmãos, cuja concordia,</div> - <div class="verse indent0">Cuja amizade nos será de exemplo.</div> - <div class="verse indent0">Eolo prenderá com mil cadêas</div> - <div class="verse indent0">Euro o nosso contrario: as verdes ondas,</div> - <div class="verse indent0">Ouvindo de Tritão troar o buzio,</div> - <div class="verse indent0">Sem furia, sem fragor do barco emtôrno,</div> - <div class="verse indent0">Chêas por cima de alvejante espuma,</div> - <div class="verse indent0">Saltaráõ quaes no prado os cordeirinhos.</div> - <div class="verse indent0">Que, meus amigos! receais procellas?</div> - <div class="verse indent0">Procellas contra nós! Assáz os Numes</div> - <div class="verse indent0">Nas almas sabem ler; nós demandâmos</div> - <div class="verse indent0">Chipre, votada aos candidos prazeres:</div> - <div class="verse indent0">Do vinho a Deoza, a Deoza dos amores,</div> - <div class="verse indent0">Os Numes da amizade, eis nossos astros;</div> - <div class="verse indent0">Que havemos de temer? Não, não me importa</div> - <div class="verse indent0">Que o ar, que o pégo em furias se revolva:</div> - <div class="verse indent0">Por entre a serração, por entre a morte,</div> - <div class="verse indent0">Voaremos a rir de Chipre aos campos,</div> - <div class="verse indent0">Quaes na barca da Estige um dia iremos</div> - <div class="verse indent0">Dos lagos avernaes ao grato Elisio.</div><span class="pagenum"><a id="Page_229"></a>[229]</span> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Não ha que recear. Dai-me outro copo;</div> - <div class="verse indent0">Outro bebei, e ouvi-me. Amigos fados</div> - <div class="verse indent0">Da Ilha encantadora ao melhor sítio</div> - <div class="verse indent0">Nos hão de conduzir: ja cuido vê-la!</div> - <div class="verse indent0">Um cáes em meia lua, um cáes não grande,</div> - <div class="verse indent0">Ja nos hospeda na conchosa arêa:</div> - <div class="verse indent0">Unidas penhas de elegante aspéto</div> - <div class="verse indent0">O anfitheatro deleitoso fórmão:</div> - <div class="verse indent0">Todas se vestem de verdura, e flores,</div> - <div class="verse indent0">Todas tem fria gruta, ou doce fonte.</div> - <div class="verse indent0">D’estas fontes, que emtôrno enchem os ares</div> - <div class="verse indent0">De um desigual, suavissimo murmúrio,</div> - <div class="verse indent0">Umas descem chovendo entre os penedos,</div> - <div class="verse indent0">Outras em larga enchente se arremeção,</div> - <div class="verse indent0">Sem o musgo occultar, de rocha em rocha,</div> - <div class="verse indent0">Té que ás bacias espumosas saltão.</div> - <div class="verse indent0">Aqui um mirto, alem uma roseira</div> - <div class="verse indent0">Coroa a entrada das pequenas grutas,</div> - <div class="verse indent0">Ou lhes fórma seu tôldo, ou quasi as cobre.</div> - <div class="verse indent0">Por toda a parte melindrosos ninhos</div> - <div class="verse indent0">Se ouvem piar; por toda a parte adejão</div> - <div class="verse indent0">Co’o sustento no bico as ternas aves.</div> - <div class="verse indent0">D’esta folhagem se levanta o melro,</div> - <div class="verse indent0">E vai pouzar na proxima folhagem:</div> - <div class="verse indent0">Queixa-se n’uma gruta Filomela</div> - <div class="verse indent0">Quando Progne sentida eleva o canto.</div> - <div class="verse indent0">Prezos aos troncos Zéfiros murmurão;</div> - <div class="verse indent0">Auras, dos valles proximos correndo,</div> - <div class="verse indent0">Das invisiveis azas nos derramão</div> - <div class="verse indent0">Almos efluvios de cheirosas flores.</div> - <div class="verse indent0">Vede assentos, que a mão da Natureza</div> - <div class="verse indent0">Nos rochedos abrio, que a mão do Tempo</div> - <div class="verse indent0">Cobrio, amaciou com verde estofo;</div><span class="pagenum"><a id="Page_230"></a>[230]</span> - <div class="verse indent0">Aqui se tem as Ninfas assentado</div> - <div class="verse indent0">Pelas tardes de Maio muitas vezes,</div> - <div class="verse indent0">Para gozar os brincos dos Amores,</div> - <div class="verse indent0">Que ora lutão na arêa, ora apostando,</div> - <div class="verse indent0">Se arrojão de mergulho aos verdes mares,</div> - <div class="verse indent0">E apparecem depois nadando e rindo.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Vamos: por esta parte o cáes nos deixa</div> - <div class="verse indent0">Na Ilha penetrar: commoda entrada</div> - <div class="verse indent0">Nos off’rece este portico de murtas.</div> - <div class="verse indent0">Deozes! que vamos vêr! Salve cem vezes,</div> - <div class="verse indent0">Bosque sombrio, magestoso, immenso!</div> - <div class="verse indent0">Do desmedido Atlante a espadoa enorme</div> - <div class="verse indent0">Não, não he quem sustem o eterno Olimpo,</div> - <div class="verse indent0">És tu, sagrado bosque; a vista humana</div> - <div class="verse indent0">Chegar não póde a teus soberbos cumes!</div> - <div class="verse indent0">Serras, diluvios de ondeantes folhas</div> - <div class="verse indent0">Sôbre colunas mil, que o raio assustão,</div> - <div class="verse indent0">Se agitão sôbre nós. Longe, ó profanos!</div> - <div class="verse indent0">Vates, erremos pelas frescas trevas!</div> - <div class="verse indent0">Alem, se não me engano, o sol penetra.</div> - <div class="verse indent0">Corramos. Oh prazer! oh maravilha!</div> - <div class="verse indent0">Eis um retiro aos Numes consagrado,</div> - <div class="verse indent0">Incognito aos mortaes, de encantos fertil!</div> - <div class="verse indent0">Tu que vizitas cada dia o mundo,</div> - <div class="verse indent0">Ó Sol, ¿que outro lugar no mundo encontras,</div> - <div class="verse indent0">Onde com mais prazer teus raios lances?</div> - <div class="verse indent0">Vede este prado, cujo fundo escondem</div> - <div class="verse indent0">De Hibleas flores animadas nuvens:</div> - <div class="verse indent0">Olhai sem guardador pingues rebanhos</div> - <div class="verse indent0">Livres saltando nos outeiros verdes:</div> - <div class="verse indent0">Vêde encostas de pampanos cobertas;</div> - <div class="verse indent0">Fontes á sombra de arvores sagradas;</div><span class="pagenum"><a id="Page_231"></a>[231]</span> - <div class="verse indent0">Jardins fechados de cheirosos muros</div> - <div class="verse indent0">De altos lilazes, de azareiro e cedro;</div> - <div class="verse indent0">Tanques no meio, onde em repuxo aos ares</div> - <div class="verse indent0">Voão do bico de marmoreos cisnes</div> - <div class="verse indent0">Argenteas linfas, que no ar se cruzão,</div> - <div class="verse indent0">Mil arcos, mil abobadas formando,</div> - <div class="verse indent0">E em fresca chuva vem mover os lagos!</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Que ditoso paiz! não sei que sinto</div> - <div class="verse indent0">No meio agora d’estes sons campestres,</div> - <div class="verse indent0">Respirando balsamicos vapores,</div> - <div class="verse indent0">Em sacra habitação, entre os amigos,</div> - <div class="verse indent0">Longe dos homens, da innocencia ao lado!</div> - <div class="verse indent0">Abraçemo-nos. Sim: desde hoje unidos,</div> - <div class="verse indent0">Seremos d’este sítio os habitantes.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">D’esse ribeiro na fecunda varzea,</div> - <div class="verse indent0">Ali, onde hospedagem graciosa</div> - <div class="verse indent0">Presta ás aves do ceo pequena selva;</div> - <div class="verse indent0">Ali, onde estendidos pela grama</div> - <div class="verse indent0">Junto ás novilhas candidas, repouzão,</div> - <div class="verse indent0">Co’a cornígera fronte entre as papoulas,</div> - <div class="verse indent0">Mansos touros, que o jugo inda não vírão,</div> - <div class="verse indent0">Ali se vos apraz, se apraz aos Deozes,</div> - <div class="verse indent0">Vamos pois construir nossas moradas.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Do Genio do lugar primeiro em honra</div> - <div class="verse indent0">Cumpre fazer as libações, e os votos;</div> - <div class="verse indent0">Venerar, depois d’isto, a turba agreste</div> - <div class="verse indent0">Das Ninfas do paiz; e culto, e nome</div> - <div class="verse indent0">Dar ás fontes, aos campos, e ás collinas</div> - <div class="verse indent0">D’estas gentis, incognitas paragens.</div><span class="pagenum"><a id="Page_232"></a>[232]</span> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Vede faias aqui, pinheiros, chôpos;</div> - <div class="verse indent0">Abatei-os, tecei nossas cabanas.</div> - <div class="verse indent0">Formemos uma aldêa: a cada alvergue</div> - <div class="verse indent0">Juntemos um jardim, que ao fundo banhem</div> - <div class="verse indent0">Do claro rio as fugitivas aguas.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Não falte o culto ás sacras Divindades.</div> - <div class="verse indent0">Á obra, á obra! o templo se levante</div> - <div class="verse indent0">Nobre, proprio de nós, digno dos Deozes,</div> - <div class="verse indent0">Com paredes de cedro á luz vedadas.</div> - <div class="verse indent0">Deixamos á vaidade altas colunas,</div> - <div class="verse indent0">Cúpulas d’oiro, abobadas suspensas</div> - <div class="verse indent0">Em meia altura da extensão dos ares;</div> - <div class="verse indent0">De trémula parreira um této basta.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Ponde no tôpo o altar da Natureza,</div> - <div class="verse indent0">De nossa adoração primeiro objéto:</div> - <div class="verse indent0">Firmada sôbre um globo, como o nosso,</div> - <div class="verse indent0">Uma estatua gentil figure a Deoza,</div> - <div class="verse indent0">Virgem, bella, risonha, affavel, nua,</div> - <div class="verse indent0">Guardando-lhe o pudor sendal ligeiro:</div> - <div class="verse indent0">Colar de flores lhe atavie o collo,</div> - <div class="verse indent0">C’roa de frutos lhe circunde a fronte,</div> - <div class="verse indent0">Diversos ramos as madeixas ornem:</div> - <div class="verse indent0">Tenha n’uma das mãos celeste chama;</div> - <div class="verse indent0">Penda da outra, e por seguro fio,</div> - <div class="verse indent0">O Genio do prazer, que as azas bata</div> - <div class="verse indent0">Para voar-lhe ao cobiçado seio:</div> - <div class="verse indent0">Cerquem-lhe o pedestal em turba immensa</div> - <div class="verse indent0">Homens, feras, volateis, nadadores,</div> - <div class="verse indent0">E quanto emfim por seu influxo existe:</div> - <div class="verse indent0">Vejão-se á volta os poderosos Genios,</div> - <div class="verse indent0">Que a seu sabor os elementos movem,</div><span class="pagenum"><a id="Page_233"></a>[233]</span> - <div class="verse indent0">Salamandras, Ondins, Silfos, e Gnomos.</div> - <div class="verse indent0">D’esta ara ao lado se verão pendentes</div> - <div class="verse indent0">As flautas nossas, pois lhe são votadas.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Sôbre outro altar a Deoza de Cithéra,</div> - <div class="verse indent0">Não de marfim, nem marmore talhada,</div> - <div class="verse indent0">Mas de alva cera das abelhas nossas,</div> - <div class="verse indent0">Feita por nossas mãos encante a vista.</div> - <div class="verse indent0">Quero-a nua de todo: ao seio amime</div> - <div class="verse indent0">Entre os braços de neve o filho alado;</div> - <div class="verse indent0">E co’a ternura languida nos olhos,</div> - <div class="verse indent0">Como para o beijar lhe estenda os labios,</div> - <div class="verse indent0">Curta tornando, como a d’elle, a boca.</div> - <div class="verse indent0">As trez Irmãs de Amor pequenas, bellas,</div> - <div class="verse indent0">Como invejando do menino a sorte,</div> - <div class="verse indent0">Forcejem por trepar da Mãi ao collo,</div> - <div class="verse indent0">Emquanto o Irmão travêsso a rir pretende</div> - <div class="verse indent0">Co’as delicadas mãos lança-las fôra.</div> - <div class="verse indent0">Duas turbas de Amores apinhados</div> - <div class="verse indent0">Se ergão d’aqui d’ali: tenhão por terra</div> - <div class="verse indent0">Os arcos, e os farpões; na dextra empunhem</div> - <div class="verse indent0">Fachos, que hão de brilhar nos festos dias,</div> - <div class="verse indent0">Por nossas mãos com sacro lume accesos.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Defronte d’esta, na parede opposta,</div> - <div class="verse indent0">Outro brilhe votado á Primavera.</div> - <div class="verse indent0">Ali se mostre a Deoza, cuja veste</div> - <div class="verse indent0">Um manto seja de tecidas flores;</div> - <div class="verse indent0">De flores o toucado; a planta nua</div> - <div class="verse indent0">Sôbre floreo torráõ firmada alveje:</div> - <div class="verse indent0">Durma a seus pés o aurígero carneiro;</div> - <div class="verse indent0">O Maio, filho seu, tenha em seus braços,</div> - <div class="verse indent0">Igual em perfeições á Mãi formosa,</div><span class="pagenum"><a id="Page_234"></a>[234]</span> - <div class="verse indent0">Alado como os Zéfiros e Amores,</div> - <div class="verse indent0">Que os Amores, que os Zéfiros mais lindo.</div> - <div class="verse indent0">Tenha na dextra um ramo florecente,</div> - <div class="verse indent0">Onde pouzem pintadas borboletas:</div> - <div class="verse indent0">No esquerdo braço um cabazinho grave,</div> - <div class="verse indent0">C’os doces frutos, que em seu mez se colhem,</div> - <div class="verse indent0">E a rir pareça á Deoza appresenta-los;</div> - <div class="verse indent0">Mas a Deoza, estendendo a mão de neve,</div> - <div class="verse indent0">Como que busque o grávido cestinho</div> - <div class="verse indent0">Tirar de sôbre o seio, onde elle o punha.</div> - <div class="verse indent0">De Favonios um bando se reparta</div> - <div class="verse indent0">Aos dois lados do altar, em cujas dextras</div> - <div class="verse indent0">Ponhamos bem fingidas cornucopias</div> - <div class="verse indent0">Chêas d’agua, onde flores se conservam.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Atrio cercado de sombrios louros</div> - <div class="verse indent0">Haja na frente do sagrado alcaçar.</div> - <div class="verse indent0">Por trez frondosos porticos se passe</div> - <div class="verse indent0">Do templo ao atrio: emtôrno d’elle avultem,</div> - <div class="verse indent0">Dos loureiros á sombra, as Deozas nove,</div> - <div class="verse indent0">E o Nume protétor do equorea Delos.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Um de nós cada mez será por sorte</div> - <div class="verse indent0">Da sacra estancia o sacerdote, e o guarda.</div> - <div class="verse indent0">Ficaráõ a seu cargo os festos dias,</div> - <div class="verse indent0">Dos altares o culto, os hinos sacros,</div> - <div class="verse indent0">E a protéção dos ninhos melindrosos,</div> - <div class="verse indent0">Que as aves formaráõ do této em volta;</div> - <div class="verse indent0">Para que nunca violados sejão,</div> - <div class="verse indent0">Santa hospitalidade, os teus direitos.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Da nossa aldêa ás proximas campinas</div> - <div class="verse indent0">Daremos de cultura uteis desvelos.</div><span class="pagenum"><a id="Page_235"></a>[235]</span> - <div class="verse indent0">Vertumno, e Ceres, e Pomona, e Flora</div> - <div class="verse indent0">Hão de favonear trabalhos nossos,</div> - <div class="verse indent0">E em sustento pagar nossas fadigas.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Ricas hortas, dulcissimos pomares,</div> - <div class="verse indent0">Doiradas messes, pampinosas vinhas</div> - <div class="verse indent0">O celleiro commum nos terão chêo.</div> - <div class="verse indent0">Da ociosidade vã não será filha</div> - <div class="verse indent0">Nossa innocente e solida riqueza.</div> - <div class="verse indent0">Algum de nós ao trato dos rebanhos</div> - <div class="verse indent0">Seus cuidados dará: que importa o mundo?</div> - <div class="verse indent0">Vida de nossos pais! vida dos campos!</div> - <div class="verse indent0">Quem te nomeia humilde, e vergonhosa?</div> - <div class="verse indent0">Vive o pastor no seio da innocencia;</div> - <div class="verse indent0">No meio da pobreza he rico, e folga.</div> - <div class="verse indent0">Emquanto os grandes entre escravos gemem,</div> - <div class="verse indent0">Canta o pastor entre o rebanho, ou dorme,</div> - <div class="verse indent0">Fiado em seu amigo, em seu rafeiro:</div> - <div class="verse indent0">Nem ao menos que ha leis sabe nos campos.</div> - <div class="verse indent0">São seus dias cadêas de prazeres,</div> - <div class="verse indent0">E seus prazeres innocencia todos.</div> - <div class="verse indent0">Não cala seu amor, canta-o nos bosques</div> - <div class="verse indent0">Em alta voz, ou goza-lhe as delicias.</div> - <div class="verse indent0">Ao transmontar do sol volta a seus lares;</div> - <div class="verse indent0">Conta á porta o rebanho, e junto ao fogo</div> - <div class="verse indent0">Vai co’a cêa frugal entre os amigos</div> - <div class="verse indent0">Restaurar o vigor para o trabalho.</div> - <div class="verse indent0">Repouza em paz sobre o macio feno</div> - <div class="verse indent0">Emquanto alguma luz no ceo não raia:</div> - <div class="verse indent0">Não ha cuidado, que lhe rompa o sono;</div> - <div class="verse indent0">Se acaso sonha, os sonhos não lhe pezão,</div> - <div class="verse indent0">Pintão passados bens, ou bens futuros,</div> - <div class="verse indent0">E volta ao mesmo quando nasce a aurora.</div><span class="pagenum"><a id="Page_236"></a>[236]</span> - <div class="verse indent0">Vergonhosa ésta vida! ó desgraçados,</div> - <div class="verse indent0">Corai no meio das grandezas vossas:</div> - <div class="verse indent0">Se o pastor conhecesse o vosso estado,</div> - <div class="verse indent0">Nem de olhar-vos sequer nem se dignava.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">No regaço feliz da natureza,</div> - <div class="verse indent0">Ao lado da ventura, os dias nossos</div> - <div class="verse indent0">Serão a imagem dos doirados dias.</div> - <div class="verse indent0">Como os primeiros pais da especie humana,</div> - <div class="verse indent0">Viveremos frugaes entre a abundancia,</div> - <div class="verse indent0">Ricos sem pompa, sem vaidade sabios,</div> - <div class="verse indent0">Socegados sem leis, sem armas fortes.</div> - <div class="verse indent0">Hão de mil vezes os campestres Numes,</div> - <div class="verse indent0">E o sacro Povo, morador do Olimpo,</div> - <div class="verse indent0">Compràzer-se de olhar a nossa aldêa.</div> - <div class="verse indent0">Ao romper da manhã, ser-lhes-ha doce</div> - <div class="verse indent0">Ver-nos todos sair dos proprios lares</div> - <div class="verse indent0">Co’a alegria na face: uns diligentes</div> - <div class="verse indent0">C’os instrumentos rusticos nas dextras,</div> - <div class="verse indent0">Ou seguindo seus bois, tornar-se aos campos;</div> - <div class="verse indent0">Outros guiando para os ferteis pastos</div> - <div class="verse indent0">Longa tropa lanígera balante.</div> - <div class="verse indent0">Ser-lhes-ha doce o ver como trabalhão</div> - <div class="verse indent0">Todos no bem commum, sem que se escutem</div> - <div class="verse indent0">Do <i>meu</i> e <i>teu</i> os nomes perigosos.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Quando o gallo doméstico no aldêa</div> - <div class="verse indent0">Soltar ao meiodia o canto agodo,</div> - <div class="verse indent0">Correremos á mesa: unidos todos</div> - <div class="verse indent0">De um bosque á sombra nos calmosos tempos</div> - <div class="verse indent0">E junto ao fogo quando reine o frio,</div> - <div class="verse indent0">Não veremos deante a rica prata</div> - <div class="verse indent0">Com vivo resplendor cegando os olhos;</div><span class="pagenum"><a id="Page_237"></a>[237]</span> - <div class="verse indent0">Nem dourados cristaes, nem porcelanas,</div> - <div class="verse indent0">Cuja louca ambição furiosa arrasta</div> - <div class="verse indent0">Tantos loucos mortaes, dignos de pranto,</div> - <div class="verse indent0">D’entre os braços dos seus aos torvos mares,</div> - <div class="verse indent0">E em fragil pinho, que rodêa a morte,</div> - <div class="verse indent0">De longinquo paiz os leva aos portos.</div> - <div class="verse indent0">De facil construção vermelho barro</div> - <div class="verse indent0">Fará nossa baixella; e cavos troncos</div> - <div class="verse indent0">Fundos, polidos, de jasmins c’roados,</div> - <div class="verse indent0">Servir-nos hão de o rúbido falerno.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">De nossas hortas vegetaes gostosos,</div> - <div class="verse indent0">Os teus dons, ó Pomona, e os teus, ó Ceres,</div> - <div class="verse indent0">O mel puro e doirado, e o branco leite</div> - <div class="verse indent0">Bastão assaz da Natureza aos filhos.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">E que? algum de nós contra o que vive</div> - <div class="verse indent0">Ouzaria vibrar da morte a fouce!</div> - <div class="verse indent0">O touro soffredor, cuja fereza</div> - <div class="verse indent0">Para servir-nos se abateo ao jugo,</div> - <div class="verse indent0">O touro, o nosso amigo, e o nosso escravo,</div> - <div class="verse indent0">Que sem ter parte alguma em nossos gostos</div> - <div class="verse indent0">Tomava parte nas fadigas nossas;</div> - <div class="verse indent0">Que armado pelas mãos da Natureza</div> - <div class="verse indent0">Podia, se quizesse, oppôr-se aos fracos,</div> - <div class="verse indent0">Que a paz, que a liberdade ouzão roubar-lhe,</div> - <div class="verse indent0">Depois de longo, aviltador serviço</div> - <div class="verse indent0">Deve ... (oh pejo! oh furor! oh sacrilegio!)</div> - <div class="verse indent0">Caír ás mãos do barbaro assassino,</div> - <div class="verse indent0">Para quem só viveo! por quem mil vezes</div> - <div class="verse indent0">Coberto de suor, chêo de espuma,</div> - <div class="verse indent0">Co’a fronte baixa, sem mugir ao menos,</div> - <div class="verse indent0">Queimado pelo sol, até soffria</div><span class="pagenum"><a id="Page_238"></a>[238]</span> - <div class="verse indent0">Duro, ferreo aguilhão se fraquejava!</div> - <div class="verse indent0">Qual ouzaria ensanguentar a dextra</div> - <div class="verse indent0">Na mansa ovelha, da innocencia imagem;</div> - <div class="verse indent0">Que incapaz de offender, nunca rebelde</div> - <div class="verse indent0">Aos brados do pastor, seu proprio leite</div> - <div class="verse indent0">Entre seus filhos e elle repartia,</div> - <div class="verse indent0">E até para cobri-lo as lãs lhe dava!</div> - <div class="verse indent0">Lindos filhos do ar, ternos cantores,</div> - <div class="verse indent0">Que innocentes voais pelas florestas,</div> - <div class="verse indent0">Nos prazeres, no Amor gastando a vida,</div> - <div class="verse indent0">Filhos do ceo, modelos, que adorâmos,</div> - <div class="verse indent0">Não temais habitar nos campos nossos.</div> - <div class="verse indent0">Se o açor, se o falcão por estes sítios</div> - <div class="verse indent0">Passar alguma vez, vinde, eu vos peço,</div> - <div class="verse indent0">Vinde-vos esconder em nossos lares,</div> - <div class="verse indent0">De vossa timidez sacra guarida:</div> - <div class="verse indent0">Se nos virdes passar nos sitios, onde</div> - <div class="verse indent0">Entre os ramos, á sombra vos agrada</div> - <div class="verse indent0">Divertir gorgeando a terna esposa,</div> - <div class="verse indent0">Que muda, e carinhosa esconde, e aquece</div> - <div class="verse indent0">Entre as azas seus filhos pipilando,</div> - <div class="verse indent0">Se nos virdes passar ... oh! por piedade</div> - <div class="verse indent0">Não fujais, prosegui vossas cantigas;</div> - <div class="verse indent0">Sois como nós da Natureza filhos;</div> - <div class="verse indent0">A Mãi commum vos deo a liberdade,</div> - <div class="verse indent0">Sustenta-vos, bem como nos sustenta:</div> - <div class="verse indent0">Sois fracos, tanta basta; e nós não somos</div> - <div class="verse indent0">Nem tiranos, nem perfidos, nem baixos</div> - <div class="verse indent0">Para abusar da fôrça: he jus terrivel!</div> - <div class="verse indent0">Se para vos matar compete ao homem,</div> - <div class="verse indent0">Para o homem matar compete ao tigre.</div> - <div class="verse indent0">Não: vivei entre nós, como entre amigos:</div> - <div class="verse indent0">Somos todos irmãos: arcos, e setas,</div><span class="pagenum"><a id="Page_239"></a>[239]</span> - <div class="verse indent0">Redes, e visco, passatempos torpes,</div> - <div class="verse indent0">Não usa quem adora a Natureza:</div> - <div class="verse indent0">Serião entre nós nefandos crimes.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Se um dia á caça algum de nós (os Deozes</div> - <div class="verse indent0">Affastem para longe o agouro horrendo),</div> - <div class="verse indent0">Se um dia á caça algum de nós corresse;</div> - <div class="verse indent0">Coberto de suor, de sede extinto</div> - <div class="verse indent0">Praza aos ceos que discorra os duros campos;</div> - <div class="verse indent0">Curve-o das armas o terrivel pezo;</div> - <div class="verse indent0">Não ache onde empregar da morte as furias;</div> - <div class="verse indent0">Seus proprios cães os membros lhe lacerem</div> - <div class="verse indent0">Té que as entranhas vis ao sol descubrão,</div> - <div class="verse indent0">E rôto arqueje o coração perverso:</div> - <div class="verse indent0">Semivivo, rugindo, ardendo em raiva,</div> - <div class="verse indent0">Entre penedos se revolva, e espume,</div> - <div class="verse indent0">C’os olhos ja sem luz, chêos da morte,</div> - <div class="verse indent0">Pallido o rosto, ensanguentada a coma;</div> - <div class="verse indent0">Té que, mugindo em subita voragem,</div> - <div class="verse indent0">Se rasgue a terra ao detestavel pezo,</div> - <div class="verse indent0">E ao fundo o arroje dos sulfureos lagos.</div> - <div class="verse indent0">E se o malvado consummar seu crime,</div> - <div class="verse indent0">Se as mãos tingir no sangue do innocente,</div> - <div class="verse indent0">O rio onde correr para banha-las</div> - <div class="verse indent0">As ondas atropelle, e volte á fonte,</div> - <div class="verse indent0">Fique attonito o monstro, e o leito sêcco;</div> - <div class="verse indent0">E quando sôbre o fogo os miseraveis</div> - <div class="verse indent0">Membros pozer, que o sangue inda gotejão,</div> - <div class="verse indent0">Que inda tem no tremor de vida um resto,</div> - <div class="verse indent0">Chêas de horror e de piedade as chamas,</div> - <div class="verse indent0">Deixando intáto o funebre cadaver,</div> - <div class="verse indent0">Com medonho estampido abandonando</div> - <div class="verse indent0">N’um momento seu lar, se ergão aos ares</div><span class="pagenum"><a id="Page_240"></a>[240]</span> - <div class="verse indent0">Para chover no algoz, torna-lo em cinzas.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Mas vá longe de nós o quadro infame!</div> - <div class="verse indent0">Somos frugaes, e simplices; e basta</div> - <div class="verse indent0">Olhar-nos para ver nossa virtude.</div> - <div class="verse indent0">Sim: que a lavrada seda, o oiro, as telas,</div> - <div class="verse indent0">E dos insanos cortezãos a pompa</div> - <div class="verse indent0">Não nos ha de cubrir. No inverno algente,</div> - <div class="verse indent0">Contra os rigores da estação nublosa</div> - <div class="verse indent0">Usaremos da lã que nos revista,</div> - <div class="verse indent0">Sem que do artista a dextra insultadora</div> - <div class="verse indent0">Lhe desfigure a côr, lhe mude o aspéto:</div> - <div class="verse indent0">Se no outono reinar do inverno o frio</div> - <div class="verse indent0">Voltaremos á lã: na primavera</div> - <div class="verse indent0">Basta o candido linho: emfim no estio,</div> - <div class="verse indent0">(Deixe-me em paz, ou seus ouvidos serre</div> - <div class="verse indent0">Quem no corruto coração fomenta</div> - <div class="verse indent0">De prejuizos vãos caterva impura!)</div> - <div class="verse indent0">No estio, amigos meus, com vosco fallo,</div> - <div class="verse indent0">Seremos todos nus: rião-se embora</div> - <div class="verse indent0">Os perversos, que ao vício costumados,</div> - <div class="verse indent0">Até na natureza encontrão vício.</div> - <div class="verse indent0">Sim, andaremos nus; nus se mostrárão</div> - <div class="verse indent0">Os pais, e as mãis do mundo em tempos d’oiro,</div> - <div class="verse indent0">Nos vaguêão da America nos bosques</div> - <div class="verse indent0">Da Natureza não corrutos filhos,</div> - <div class="verse indent0">Nem os tinge o rubor, a côr do pejo,</div> - <div class="verse indent0">Que o pejo nasce se a innocencia morre:</div> - <div class="verse indent0">A Innocencia, a Verdade, as Graças bellas</div> - <div class="verse indent0">Pintão-se nuas: nuas pelos bosques</div> - <div class="verse indent0">Errão as Ninfas: d’entre as ondas nua</div> - <div class="verse indent0">Venus saío de encantos rodeada:</div> - <div class="verse indent0">Seu Filho, qual nasceo, se mostra ainda:</div><span class="pagenum"><a id="Page_241"></a>[241]</span> - <div class="verse indent0">E todos nós, dizei, como nascemos?</div> - <div class="verse indent0">Quando, depois de trabalhosas dores,</div> - <div class="verse indent0">Nos cingem nossas mãis aos ternos peitos,</div> - <div class="verse indent0">Tecidas vestes sobre nós encontrão?</div> - <div class="verse indent0">Não: se o tempo o exigir cubra-se o corpo;</div> - <div class="verse indent0">Se o tempo o não requer, porque insensatos,</div> - <div class="verse indent0">Vãos, inuteis incommodos buscâmos?</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Prazeres me pédis, dou-vos prazeres:</div> - <div class="verse indent0">A musica suave, a dança, os versos,</div> - <div class="verse indent0">Dos bons ditos o sal, carreiras, lutas,</div> - <div class="verse indent0">Tecer grinaldas de campestres flores,</div> - <div class="verse indent0">Fresco, e murmúrio de favonios, e aguas,</div> - <div class="verse indent0">Os ternos sons de aligeros cantores,</div> - <div class="verse indent0">Da natureza o estudo, as graças d’ella,</div> - <div class="verse indent0">As formosas manhãs, as bellas tardes.</div> - <div class="verse indent0">Iremos navegar pelo ribeiro</div> - <div class="verse indent0">N’este mesmo batel; a branca lua</div> - <div class="verse indent0">Deante nos irá para guiar-nos:</div> - <div class="verse indent0">Os ventos dormiráõ pelos outeiros:</div> - <div class="verse indent0">De um, d’outro lado as arvores ao longo</div> - <div class="verse indent0">Das socegadas margens, docemente</div> - <div class="verse indent0">Se ouviráõ susurar de quando em quando:</div> - <div class="verse indent0">O astro da noite ledo e scintillante</div> - <div class="verse indent0">Se verá na corrente em longa estrada:</div> - <div class="verse indent0">Echos repetiráõ nossas cantigas:</div> - <div class="verse indent0">D’entre um canavial a Filomela</div> - <div class="verse indent0">Se ouvirá gorgeando convidar-nos:</div> - <div class="verse indent0">Com mil olhos de luz o ceo da noite</div> - <div class="verse indent0">De ver nossa alegria ha de alegrar-se.</div> - <div class="verse indent0">Algum campestre Fauno, que aturdindo</div> - <div class="verse indent0">Com voz immensa a silenciosa margem,</div> - <div class="verse indent0">Seus amores contar da fonte ás Ninfas,</div><span class="pagenum"><a id="Page_242"></a>[242]</span> - <div class="verse indent0">O canto estrugidor alguns momentos</div> - <div class="verse indent0">Suspenderá, de assombro arrebatado.</div> - <div class="verse indent0">Se tivermos calor volta-se a proa</div> - <div class="verse indent0">Sobre uma ilhota de vermelha arêa,</div> - <div class="verse indent0">E encalhando o batel salta-se ás ondas:</div> - <div class="verse indent0">N’uma noite encalmada um banho fresco</div> - <div class="verse indent0">Nos consola, e refaz: ali se julga</div> - <div class="verse indent0">Acima estar da natureza o homem;</div> - <div class="verse indent0">Vive em novo elemento, em cujo seio</div> - <div class="verse indent0">Revestido se crê de essencia nova.</div> - <div class="verse indent0">Ao brando frio os membros pouco a pouco</div> - <div class="verse indent0">Se conformão, se affazem, se contentão;</div> - <div class="verse indent0">Dissipa-se o tremor, e a voz anciada</div> - <div class="verse indent0">Um momento depois se resserena.</div> - <div class="verse indent0">Todo o vivo prazer então começa:</div> - <div class="verse indent0">Ora apraz o nadar contra a corrente,</div> - <div class="verse indent0">Ora girar nas aguas escondido,</div> - <div class="verse indent0">Ou c’os olhos na lua ir descançado</div> - <div class="verse indent0">Em parte occulto, em parte descoberto,</div> - <div class="verse indent0">De costas, ao som d’agua, escorregando.</div> - <div class="verse indent0">De quando em quando um toma pé no fundo,</div> - <div class="verse indent0">Assemelhando o busto de uma estatua</div> - <div class="verse indent0">De marmore polido, que se eleva</div> - <div class="verse indent0">Fronteira á lua, e solitaria brilha;</div> - <div class="verse indent0">Os companheiros de redor o cercão,</div> - <div class="verse indent0">E com muito clamor sobre elle atirão</div> - <div class="verse indent0">Co’as plantas, e co’as mãos ondas sobre ondas.</div> - <div class="verse indent0">Elle grita, elle ri, jura, e promette</div> - <div class="verse indent0">De os punir, de vingar-se; então se arroja</div> - <div class="verse indent0">Ás ondas outra vez, e os segue, e os urge,</div> - <div class="verse indent0">Chove sobre elles desmedidas vagas.</div> - <div class="verse indent0">C’o festival combate o rio ferve,</div> - <div class="verse indent0">Perturba-se a corrente, os echos bradão</div><span class="pagenum"><a id="Page_243"></a>[243]</span> - <div class="verse indent0">Oh como he doce um banho entre mancebos!</div> - <div class="verse indent0">Um ri contando uma engraçada história,</div> - <div class="verse indent0">Outro grita, outro canta, e todos folgão.</div> - <div class="verse indent0">No fundo desigual talvez se encontre</div> - <div class="verse indent0">Dormindo alguma Náiade entre as conchas.</div> - <div class="verse indent0">Sois mortaes? e que importa? humano he Páris,</div> - <div class="verse indent0">He Páris um pastor, goza entretanto</div> - <div class="verse indent0">Ternos abraços de immortal Enone,</div> - <div class="verse indent0">Que deixa por goza-lo a propria fonte,</div> - <div class="verse indent0">E vem sentar-se entre um rebanho humilde;</div> - <div class="verse indent0">E ai de vós, se das Ninfas não moverdes</div> - <div class="verse indent0">Os puros corações para a ternura!</div> - <div class="verse indent0">Mulheres não as ha nos campos nossos,</div> - <div class="verse indent0">E vazia de amor a vida he nada.</div> - <div class="verse indent0">Redobrai a attenção, pois devo agora</div> - <div class="verse indent0">Fallar em baixa voz, porque receio</div> - <div class="verse indent0">Que as formosas Mondágides me escutem.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">O mesmo coração, dezejos, gostos,</div> - <div class="verse indent0">Que tem nossas mortaes no peito occultos,</div> - <div class="verse indent0">Tem as Ninfas tambem: de exemplos quantos</div> - <div class="verse indent0">Se não póde cingir ésta verdade!</div> - <div class="verse indent0">Sobre as aras de Amor todas off’recem:</div> - <div class="verse indent0">Os ais do adorador nenhuma offendem,</div> - <div class="verse indent0">Comprazem-se de ouvir que as chamão bellas,</div> - <div class="verse indent0">E a gloria prezão de enxugar o pranto,</div> - <div class="verse indent0">O pranto que ellas sós nos arrancárão.</div> - <div class="verse indent0">Se nos ouvem crueis, se esquivas fogem,</div> - <div class="verse indent0">He porque insana lei de atroz costume</div> - <div class="verse indent0">Lhes ordena o fugir, lhes insinua</div> - <div class="verse indent0">Que he delito em seu sexo a natureza:</div> - <div class="verse indent0">Mas contra a natureza em vão combatem</div> - <div class="verse indent0">De cega educação fataes abúsos!</div><span class="pagenum"><a id="Page_244"></a>[244]</span> - <div class="verse indent0">A mãi universal ou cedo ou tarde</div> - <div class="verse indent0">Vence, triunfa, e no triunfo leva</div> - <div class="verse indent0">O sexo encantador ja maniatado.</div> - <div class="verse indent0">Todas oppõe sabida resistencia,</div> - <div class="verse indent0">Mas cumpre não ceder: por nós combatem</div> - <div class="verse indent0">Seu mesmo coração e a natureza,</div> - <div class="verse indent0">Que auxilio inefficaz jamais nos farão.</div> - <div class="verse indent0">¿E não sabeis que emquanto desdenhosas</div> - <div class="verse indent0">De nossos ais parecem offendidas,</div> - <div class="verse indent0">Quaes se as mordesse venenosa serpe,</div> - <div class="verse indent0">Tremem, recêão que ao temor cedamos,</div> - <div class="verse indent0">E frouxa timidez nos furte as armas?</div> - <div class="verse indent0">Inda que ostentem ríspida esquivança,</div> - <div class="verse indent0">Agrada-lhes a guerra, e occultos votos</div> - <div class="verse indent0">Fazem a Amor para ficar vencidas.</div> - <div class="verse indent0">Implorar-lhes perdão he ultraja-las;</div> - <div class="verse indent0">Contra ellas ser audaz he ser-lhes caro,</div> - <div class="verse indent0">He dar-lhes bens, poupando-lhe a vergonha.</div> - <div class="verse indent0">Mas a regra primeira, a grande, o tudo</div> - <div class="verse indent0">Entre as regras de amor, he o artificio.</div> - <div class="verse indent0">He vasta a gradação de sentimentos</div> - <div class="verse indent0">Da innocencia á ternura. Em cume altivo</div> - <div class="verse indent0">De alta montanha, cujo aspéto assombra,</div> - <div class="verse indent0">Tem seu templo a Ternura, onde cercada</div> - <div class="verse indent0">Das Graças, dos Prazeres, dos Amores,</div> - <div class="verse indent0">Encanta os corações benigna Venus:</div> - <div class="verse indent0">He forçoso galgar toda a montanha,</div> - <div class="verse indent0">Subir de rocha em rocha, e p’rigo em p’rigo</div> - <div class="verse indent0">Para se entrar no deleitoso alcaçar.</div> - <div class="verse indent0">Quem pretender poupar um passo ao menos,</div> - <div class="verse indent0">Quem saltar pretender, perde o ja ganho,</div> - <div class="verse indent0">Para mais não surgir baquêa em terra.</div> - <div class="verse indent0">Amor azas não tem, como se pinta;</div><span class="pagenum"><a id="Page_245"></a>[245]</span> - <div class="verse indent0">A curtos passos, devagar só anda.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Começaremos offertando ás Ninfas</div> - <div class="verse indent0">Sôbre altares campestres, levantados</div> - <div class="verse indent0">Das arvores á sombra, ao pé das fontes,</div> - <div class="verse indent0">Ou nas grutas do fresco, ou sôbre outeiros,</div> - <div class="verse indent0">Festões, grinaldas, passarinhos, frutos,</div> - <div class="verse indent0">E capellas de búzios e de conchas,</div> - <div class="verse indent0">Mais brilhantes, mais bellas do que o Iris.</div> - <div class="verse indent0">Formaremos cantigas, em que aos echos</div> - <div class="verse indent0">Dos campos entre a lida repitamos</div> - <div class="verse indent0">As perfeições, os méritos, os nomes</div> - <div class="verse indent0">Das Napéas, das Dríades formosas,</div> - <div class="verse indent0">Hamadríades, Náiades, e quantas</div> - <div class="verse indent0">Filhas da Natureza a terra habitão,</div> - <div class="verse indent0">Para formar com dextra occulta e sábia</div> - <div class="verse indent0">Do rústico o prazer, do vate o encanto.</div> - <div class="verse indent0">Isto, e a nossa virtude, e a vida nossa</div> - <div class="verse indent0">Laboriosa, honrada, alegre, e quasi</div> - <div class="verse indent0">Igual á vida dos campestres Deozes,</div> - <div class="verse indent0">Disporáõ para nós seu terno peito.</div> - <div class="verse indent0">Talvez qué pouco a pouco minorado</div> - <div class="verse indent0">O custo susto de encontrar humanos,</div> - <div class="verse indent0">Não fujão de mostrar-se a seus cantores.</div> - <div class="verse indent0">Se eu descançar junto de um cedro antigo,</div> - <div class="verse indent0">Ou de uma faia, ou reclinar a fronte</div> - <div class="verse indent0">Sôbre a raiz em parte descoberta</div> - <div class="verse indent0">De uma oliveira, ou castanheiro antigo,</div> - <div class="verse indent0">Darei graças á Dríade, que habita</div> - <div class="verse indent0">No tronco bemfeitor, que me faz sombra;</div> - <div class="verse indent0">E d’elle a amavel Dríade saindo</div> - <div class="verse indent0">Virá sentar-se ao lado meu na relva.</div><span class="pagenum"><a id="Page_246"></a>[246]</span> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Depois que pouco e pouco transformado</div> - <div class="verse indent0">Se houver em confiança o pejo, o susto,</div> - <div class="verse indent0">Mudaremos de estilo: em nossos versos,</div> - <div class="verse indent0">E só, e de contínuo a formosura</div> - <div class="verse indent0">Em fogo nos porá do estro as azas.</div> - <div class="verse indent0">Hão de sorrir-se e comprazer-se, e muitas</div> - <div class="verse indent0">Suspenderáõ em seu caminho os passos.</div> - <div class="verse indent0">He lei sem excéção; domina em todas</div> - <div class="verse indent0">A sêde, a gloria de chamar-se bellas.</div> - <div class="verse indent0">Mas bellas tão somente heis de chama-las,</div> - <div class="verse indent0">Sem falar-lhes de amar: depois de affeitas</div> - <div class="verse indent0">A ouvir a narração de seus encantos,</div> - <div class="verse indent0">Dizei-lhes que por certo as rochas mesmas,</div> - <div class="verse indent0">Os troncos, e o cristal das frias aguas</div> - <div class="verse indent0">Ardem cativos de bellezas tantas;</div> - <div class="verse indent0">Que o sol com mais prazer detem seus olhos</div> - <div class="verse indent0">Nos campos d’ellas, só por ver seus rostos.</div> - <div class="verse indent0">Se virdes que um sorriso gracioso</div> - <div class="verse indent0">Vos recompensa o canto, audacia, amigos!</div> - <div class="verse indent0">Avante um passo, e n’este passo cumpre</div> - <div class="verse indent0">O segredo buscar. Desde esse instante</div> - <div class="verse indent0">Não lhes falleis deante das mais Ninfas;</div> - <div class="verse indent0">Buscai até que os socios vos não oução.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Suppõe tu, caro Antíeno, encontrar-te</div> - <div class="verse indent0">(Esta supposição perdoe Alcippe)</div> - <div class="verse indent0">N’um bosque solitario, onde vaguêa</div> - <div class="verse indent0">Quem te faz delirar em novo incendio.</div> - <div class="verse indent0">Se ella está pensativa, “Oh venturoso</div> - <div class="verse indent0">O objéto, lhe dirás, em que se occupa</div> - <div class="verse indent0">Tua imaginação, formosa Ninfa!</div> - <div class="verse indent0">Se eu o fosse!... ai de mim! porque revolve</div> - <div class="verse indent0">Loucas esp’ranças, se chorar só devo?”</div><span class="pagenum"><a id="Page_247"></a>[247]</span> - <div class="verse indent0">Se a vires sôbre o espelho do cascata</div> - <div class="verse indent0">Com brancas rosas concertando as tranças,</div> - <div class="verse indent0">Qual sôbre o teu ribeiro o faz Alcippe,</div> - <div class="verse indent0">“Feliz rainha das mimosas flores,</div> - <div class="verse indent0">Feliz rosa, dirás, inda que perdes</div> - <div class="verse indent0">Ao pé das graças d’ella as graças tuas!”</div> - <div class="verse indent0">Se pozer sôbre o seio as melindrosas</div> - <div class="verse indent0">Roxas flores de amor, dirás: “Que inveja!</div> - <div class="verse indent0">Por ser vós um momento eu dera a vida!”</div> - <div class="verse indent0">Mas isto em meia voz, para que julgue</div> - <div class="verse indent0">Que não he por te ouvir que assim fallaste.</div> - <div class="verse indent0">Não se irritou? prosegue, e de mais perto,</div> - <div class="verse indent0">“Permitte-me, (dirás com ar ingenuo,</div> - <div class="verse indent0">Chêo de timidez) permitte, ó Ninfa,</div> - <div class="verse indent0">Que eu te torne mais bella, e te componha</div> - <div class="verse indent0">Essas flores, que um pouco se desmandão.”</div> - <div class="verse indent0">Se ella o permitte, a occasião não percas:</div> - <div class="verse indent0">Se ella hesita e se cala, não recusa;</div> - <div class="verse indent0">Compõe-lhe o ornato no formoso seio,</div> - <div class="verse indent0">E sorrindo, lhe dize: “Alguem no mundo</div> - <div class="verse indent0">Existe que não ame as proprias obras?</div> - <div class="verse indent0">E’sta obra, que findei, me agrada tanto!...”</div> - <div class="verse indent0">N’isto beija-lhe o seio, e deixa as flores.</div> - <div class="verse indent0">D’aqui avante o mar he ja tranquillo,</div> - <div class="verse indent0">Propício o vento, e mui vizinho o porto:</div> - <div class="verse indent0">Ja de piloto o lenho não carece;</div> - <div class="verse indent0">Quanto offerece amor tudo he ja vosso.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Ja vejo sôbre os ceos dos nossos campos</div> - <div class="verse indent0">Todo o dia brincando em roseo coche</div> - <div class="verse indent0">Pelas pombas tirada a amavel Cípria:</div> - <div class="verse indent0">Coroado de louro, ei-la contente</div> - <div class="verse indent0">Entre palmas, que sombra lhe derramão!</div><span class="pagenum"><a id="Page_248"></a>[248]</span> - <div class="verse indent0">Ei-la por toda a parte sacodindo</div> - <div class="verse indent0">Do misterioso cinto encantos, gostos,</div> - <div class="verse indent0">Delicias, tudo emfim que obriga a Jove</div> - <div class="verse indent0">Mudado em branco cisne, ou chuva d’oiro,</div> - <div class="verse indent0">A trocar pela terra o sacro Olimpo!</div> - <div class="verse indent0">Desde então mais ditosa he nossa aldêa,</div> - <div class="verse indent0">Mais risonhos seus bellos arrabaldes:</div> - <div class="verse indent0">Ha misterios de amor em qualquer gruta,</div> - <div class="verse indent0">Em qualquer solidão brincão prazeres.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Eis os frutos de amor, que desabrochão!</div> - <div class="verse indent0">Ja os vejo das bellas entre os braços,</div> - <div class="verse indent0">Qual pequeno botáõ nascido apenas</div> - <div class="verse indent0">Da rosa ja perfeita ao lado brilha.</div> - <div class="verse indent0">Ei-las co’o proprio leite a sustenta-los;</div> - <div class="verse indent0">Taes como descreveo nos magos versos</div> - <div class="verse indent0">Francilia; Musa de meu patrio rio,</div> - <div class="verse indent0">A doce amiga sustentando o filho,</div> - <div class="verse indent0"><i>Igual a Venus com Amor nos braços.</i></div> - <div class="verse indent0">Eu as vejo, depois de afagos ternos,</div> - <div class="verse indent0">Soltar de si os cintos azulados,</div> - <div class="verse indent0">Em dois troncos prender as pontas ambas,</div> - <div class="verse indent0">Abri-los, deitar dentro entre mil flores,</div> - <div class="verse indent0">Depois de o ter beijado, o tenro infante,</div> - <div class="verse indent0">Para ser dos favonios embalado.</div> - <div class="verse indent0">Eu as vejo nos troncos encostar-se</div> - <div class="verse indent0">Co’as mãos na face, e os olhos no innocente,</div> - <div class="verse indent0">Juntando aos sons das aves em seu ninho</div> - <div class="verse indent0">Ternos cantos, que os filhos adormeção.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Ja co’a turba infantil recresce a aldêa:</div> - <div class="verse indent0">Succedem ao silencio alegres brincos,</div> - <div class="verse indent0">Gostosos passatempos se preparão,</div><span class="pagenum"><a id="Page_249"></a>[249]</span> - <div class="verse indent0">De nossos bens o número se aumenta.</div> - <div class="verse indent0">Vai crescendo em razão, crescendo em fôrça</div> - <div class="verse indent0">Ésta prole feliz, que os Cíprios valles</div> - <div class="verse indent0">Como os Amores, como as Graças, honra.</div> - <div class="verse indent0">Creados longe do tropel das côrtes,</div> - <div class="verse indent0">Puros no coração, que ninguem busca</div> - <div class="verse indent0">Semear de illusões, de prejuizos,</div> - <div class="verse indent0">Educados na paz, sem ver tiranos,</div> - <div class="verse indent0">Sem ouvir discorrer pedantes sabios,</div> - <div class="verse indent0">Té das Sciencias ignorando os nomes,</div> - <div class="verse indent0">Terão destinos, que excedendo os nossos,</div> - <div class="verse indent0">Não hajão que invejar os puros dias,</div> - <div class="verse indent0">Que cegamente se nomêão d’oiro.</div> - <div class="verse indent0">D’oiro! ai d’elles se o oiro então se visse!</div> - <div class="verse indent0">Mais nocivo que o ferro, a bemfazeja</div> - <div class="verse indent0">Terra o sumio nas maternaes entranhas,</div> - <div class="verse indent0">Sôbre leitos de pallido veneno.</div> - <div class="verse indent0">Quando o Genio do mal o trouxe ao dia,</div> - <div class="verse indent0">Chêas de assombro, de tropel correndo,</div> - <div class="verse indent0">Fugírão co’a Justiça almas Virtudes;</div> - <div class="verse indent0">E pelas fundas minas, que o guardavão,</div> - <div class="verse indent0">Surgio do patrio inferno a perseguir-nos</div> - <div class="verse indent0">Chusma de Vicios, e raivosas Furias,</div> - <div class="verse indent0">Que os Vicios inspirando, os Vicios punem.</div> - <div class="verse indent0">Se alguma vez os descendentes nossos,</div> - <div class="verse indent0">Quando a terra pacificos romperem,</div> - <div class="verse indent0">Encontraram com oiro, um grito soltem;</div> - <div class="verse indent0">A aldêa se reuna ardendo em raiva,</div> - <div class="verse indent0">Qual se dos bosques férvido saisse,</div> - <div class="verse indent0">Igual ao raio, o bruto d’Erimantho;</div> - <div class="verse indent0">E o pallido fulgor da massa infesta</div> - <div class="verse indent0">Vão longe sepultar nos verdes mares.</div> - <div class="verse indent0">“Monstro contrário a nós, sê devorado</div><span class="pagenum"><a id="Page_250"></a>[250]</span> - <div class="verse indent0">Pelo monstro do mar, que em furia vences”</div> - <div class="verse indent0">Dirão todos em chusma; e socegados</div> - <div class="verse indent0">Tornaráõ a lavrar seus ferteis campos.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Que idea pelo espirito me adeja</div> - <div class="verse indent0">Chêa de luz, de encantos rodeada!</div> - <div class="verse indent0">Ja vejo pelos ares scintillando</div> - <div class="verse indent0">Os fachos de Himeneo. Ja pelas ruas</div> - <div class="verse indent0">Vestidos de alvo linho, e coroados</div> - <div class="verse indent0">De fresca mangerona os moços correm,</div> - <div class="verse indent0">“Ó Himeneo! Vem Himeneo!” gritando.</div> - <div class="verse indent0">“Ó Himeneo! Vem Himeneo!” respondem</div> - <div class="verse indent0">Os campos d’echo em echo; e pelas casas,</div> - <div class="verse indent0">Chêas de gôsto, e de esperança as virgens</div> - <div class="verse indent0">“Vem Himeneo, ó Himeneo!” repetem.</div> - <div class="verse indent0">As ruas de verdura estão juncadas,</div> - <div class="verse indent0">Listões de flores coroando as portas</div> - <div class="verse indent0">Enchem os ares de composto cheiro:</div> - <div class="verse indent0">E os meninos, que as causas não percebem</div> - <div class="verse indent0">Do confuso prazer, vão transportados</div> - <div class="verse indent0">Correndo em chusmas, e batendo as palmas,</div> - <div class="verse indent0">Gritando, “Ó Himeneo!” La desce, e pouza</div> - <div class="verse indent0">O Nume sôbre o altar da Cípria Deoza!</div> - <div class="verse indent0">O venturoso par la vai sobindo</div> - <div class="verse indent0">Por entre a multidão, que attenta o mede.</div> - <div class="verse indent0">La chega ao sítio destinado aos votos.</div> - <div class="verse indent0">Sacerdotes não ha: da aldêa os velhos</div> - <div class="verse indent0">Os cercão de redor. La se abraçárão!...</div> - <div class="verse indent0">He curto o voto seu. “Juro adorar-te</div> - <div class="verse indent0">Emquanto o doce amor tiver no peito.”</div> - <div class="verse indent0">Unindo o seio ao seio, e face á face,</div> - <div class="verse indent0">Depois se beijaráõ por largo tempo;</div> - <div class="verse indent0">E o Nume da alliança, o carinhoso</div><span class="pagenum"><a id="Page_251"></a>[251]</span> - <div class="verse indent0">Filho de Urania os cingirá dos mirtos,</div> - <div class="verse indent0">Que de Venus, e Amor as frontes ornão.</div> - <div class="verse indent0">Depois algum de nós se erga c’roado,</div> - <div class="verse indent0">Para fallar d’ésta maneira ao povo.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">“Nasceo Amor para encantar os homens,</div> - <div class="verse indent0">Não para ser dos corações tirano.</div> - <div class="verse indent0">Menino ama o brincar, e quer ser livre.</div> - <div class="verse indent0">Cura o tempo as feridas que elle fórma:</div> - <div class="verse indent0">Depois de alto clarão, que cega os olhos,</div> - <div class="verse indent0">Seu facho, pouco e pouco enfraquecendo,</div> - <div class="verse indent0">Vem por fim a apagar-se: a Natureza,</div> - <div class="verse indent0">Nada produz que não succumba á morte.</div> - <div class="verse indent0">Os animaes, as flores, os arbustos</div> - <div class="verse indent0">Tem curta duração: vai manso, e manso</div> - <div class="verse indent0">O tempo destruindo altas montanhas,</div> - <div class="verse indent0">Gasta-se o escolho c’o bater das ondas;</div> - <div class="verse indent0">Succede a lua ao sol, á noite o dia,</div> - <div class="verse indent0">Uma estação perece, outra renasce:</div> - <div class="verse indent0">Tudo he mortal na terra, e mais que tudo</div> - <div class="verse indent0">As humanas paixões insulta a morte:</div> - <div class="verse indent0">Succede ao riso o pranto; á dor prazeres;</div> - <div class="verse indent0">Ao odio amor; ao terno amor a raiva.</div> - <div class="verse indent0">Eu vi moraes affétos n’um só dia</div> - <div class="verse indent0">Nascer e terminar, qual nasce e murcha</div> - <div class="verse indent0">N’um só dia de abril a rubra rosa.</div> - <div class="verse indent0">Ditoso par! amai-vos extremosos</div> - <div class="verse indent0">Emquanto a natureza vos consinta,</div> - <div class="verse indent0">E oxalá que o consinta em largos annos!</div> - <div class="verse indent0">E oxalá que de vós o que entre os mortos</div> - <div class="verse indent0">Primeiro descançar, sinta regadas</div> - <div class="verse indent0">Pelos olhos do sócio as mudas cinzas.</div> - <div class="verse indent0">Feliz quem n’um só fogo arde constante;</div><span class="pagenum"><a id="Page_252"></a>[252]</span> - <div class="verse indent0">Feliz, mas raro como os negros cisnes!</div> - <div class="verse indent0">E ha loucos, e ha perversos, que ante as aras</div> - <div class="verse indent0">Jurem guardar uma constancia eterna?</div> - <div class="verse indent0">Cegos, que a natureza desconhecem,</div> - <div class="verse indent0">Ou zombão d’ella escarnecendo os votos.</div> - <div class="verse indent0">Jurão-se amar sem fim, e ou tarde ou cedo,</div> - <div class="verse indent0">Sem fim, e sem remorsos se detestão!</div> - <div class="verse indent0">Jurão-se amar sem fim! Mal que resoa</div> - <div class="verse indent0">Debaixo das abobadas o voto,</div> - <div class="verse indent0">Calcando o arco aos pés com ar maligno</div> - <div class="verse indent0">O pobre Amor retira-se chorando</div> - <div class="verse indent0">D’ésta afronta cruel; pois sua glória,</div> - <div class="verse indent0">Seu prazer, e seu timbre he ser voluvel.</div> - <div class="verse indent0">Crepitando em faiscas derradeiras</div> - <div class="verse indent0">Se apaga o facho, que debalde agita,</div> - <div class="verse indent0">E emtôrno espalha venenoso fumo,</div> - <div class="verse indent0">Fumo, que obriga a lágrimas eternas.</div> - <div class="verse indent0">Entre pios e agouros desgraçados,</div> - <div class="verse indent0">Ao leito nupcial os acompanha</div> - <div class="verse indent0">Entre alegre e assustada a meiga Venus.</div> - <div class="verse indent0">Co’as serpes do cabello desgrenhadas,</div> - <div class="verse indent0">Mas inda sem silvar, detraz os segue</div> - <div class="verse indent0">Impaciente a rabida Discordia.</div> - <div class="verse indent0">De flores se coroa a lauta mesa,</div> - <div class="verse indent0">Voão-lhe em roda as graças, e o falerno,</div> - <div class="verse indent0">E riso, e confusão de encantos chêa.</div> - <div class="verse indent0">Mas ah! cedo os pezares, e os suspiros,</div> - <div class="verse indent0">A desesperação, e as vãs querellas,</div> - <div class="verse indent0">E a desordem, e as lágrimas rodêão</div> - <div class="verse indent0">Os lares do prazer; a scena infausta</div> - <div class="verse indent0">Não rara vez negro punhal termina,</div> - <div class="verse indent0">A viuvez, o luto envolve o leito!</div> - <div class="verse indent0">Mas vós, ditoso par, vós, cujos labios</div><span class="pagenum"><a id="Page_253"></a>[253]</span> - <div class="verse indent0">Não proferírão temerario voto,</div> - <div class="verse indent0">Folgai, vivei, nos braços da ternura,</div> - <div class="verse indent0">Melindrosa ternura, que não morre</div> - <div class="verse indent0">Se lhe não lanção vergonhoso jugo.</div> - <div class="verse indent0">Para amar-vos fieis por largo tempo</div> - <div class="verse indent0">Sede amaveis, ou sede virtuosos</div> - <div class="verse indent0">Porque a doce virtude he sempre amavel.</div> - <div class="verse indent0">Se o fogo se acabar, voltai ao templo,</div> - <div class="verse indent0">A prender novo objéto em novos laços.”</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Ouvindo este discurso o povo inteiro</div> - <div class="verse indent0">O applaude em baixa voz, e á Mãi das Graças</div> - <div class="verse indent0">Se canta o hino, que remata a festa.</div> - <div class="verse indent0">O resto d’este dia he dado aos jogos,</div> - <div class="verse indent0">Gasta-se a noite á roda das fogueiras</div> - <div class="verse indent0">Em musicas e em danças variadas.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Engano-me, ou queixosa a Natureza</div> - <div class="verse indent0">Escuto suspirar? não, não me engano!</div> - <div class="verse indent0">Ella suspira, e pede-nos vingança</div> - <div class="verse indent0">D’outra injustiça, que lhe faz o mundo.</div> - <div class="verse indent0">Ouvi, e concordai: sabeis que muito</div> - <div class="verse indent0">Em número nos vence o amavel sexo.</div> - <div class="verse indent0">Se a Mãi universal não gera um ente,</div> - <div class="verse indent0">Que não consagre a amor; e a lei sagrada,</div> - <div class="verse indent0">Que obriga a propagar a propria especie,</div> - <div class="verse indent0">He lei universal, que abrange a todos,</div> - <div class="verse indent0">¿Com que jus, por que horrenda tirania</div> - <div class="verse indent0">Privadas d’Himeneo suspirão tantas?</div> - <div class="verse indent0">Não: cada esposo esposas enumere,</div> - <div class="verse indent0">Té que uma só sem thalamo não fique;</div> - <div class="verse indent0">Todas d’est’arte viveráõ contentes;</div> - <div class="verse indent0">A honra de ser mãi pertence a todas:</div><span class="pagenum"><a id="Page_254"></a>[254]</span> - <div class="verse indent0">Cresce a aldêa, não brada a Natureza;</div> - <div class="verse indent0">Infamadas não são as que procurão</div> - <div class="verse indent0">Os prazeres de amar, de ser amadas:</div> - <div class="verse indent0">Não se ouvirá que um barbaro veneno</div> - <div class="verse indent0">Dera a mãi a seu filho inda no ventre;</div> - <div class="verse indent0">Ou que um férreo punhal, ou laço infame</div> - <div class="verse indent0">Logo ao nascer lhe terminára os dias:</div> - <div class="verse indent0">Nem Venus corará vendo offertar-se</div> - <div class="verse indent0">De ternura venal corsutos mimos.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Quão bellos correráõ nossos momentos,</div> - <div class="verse indent0">Longo, e tão longe dos polidos povos!</div> - <div class="verse indent0">Quasi Numes na vida encantadora,</div> - <div class="verse indent0">Até na duração quasi seremos</div> - <div class="verse indent0">Rivaes do povo habitador do Elisio.</div> - <div class="verse indent0">O fio d’oiro da existencia nossa</div> - <div class="verse indent0">Inteiro volveráõ no fuso as Parcas.</div> - <div class="verse indent0">Com pé tardío a inevitavel Deoza,</div> - <div class="verse indent0">Que o Mundo despovoa, e bebe o pranto,</div> - <div class="verse indent0">E acompanha a saudade entre os ciprestes,</div> - <div class="verse indent0">Sem terror, e sem fouce, e até sorrindo,</div> - <div class="verse indent0">Sem que a precedão seus fataes ministros,</div> - <div class="verse indent0">Nos levará de manso e a curtos passos,</div> - <div class="verse indent0">Coroados do cãs para o sepulcro.</div> - <div class="verse indent0">Mas, amigos, quem sabe! as Cíprias Ninfas,</div> - <div class="verse indent0">Se o fado o não tolher, talvez nos mostrem</div> - <div class="verse indent0">A verde planta, que ao cerúleo reino</div> - <div class="verse indent0">Deo mais um Nume, transformando a Glauco.</div> - <div class="verse indent0">Semideozes então, nos tornaremos</div> - <div class="verse indent0">De nossa aldêa os sacros protétores!</div> - <div class="verse indent0">Mas não: a lei da morte he lei terrivel,</div> - <div class="verse indent0">Que rara vez os Numes quebrantárão.</div><span class="pagenum"><a id="Page_255"></a>[255]</span> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">He forçoso morrer!... Longe os temores!</div> - <div class="verse indent0">He forçoso morrer, morra-se embora.</div> - <div class="verse indent0">Não faltaráõ dulcissimos transportes,</div> - <div class="verse indent0">Prazeres e ternura ao lance extremo!</div> - <div class="verse indent0">Sôbre o funereo leito o moribundo,</div> - <div class="verse indent0">Ja sem côr, ja sem fôrça, e quasi extinta</div> - <div class="verse indent0">Em seus olhos a luz, e a voz nos labios,</div> - <div class="verse indent0">Erguendo a fraca dextra acena, e chama</div> - <div class="verse indent0">Cadaum junto a si; vai despedir-se</div> - <div class="verse indent0">Para o sono sem fim! Sôbre as heranças</div> - <div class="verse indent0">Que ha de recommendar se não tem nada?</div> - <div class="verse indent0">Nada excéto a virtude, e os instrumentos</div> - <div class="verse indent0">Com que a terra lavrou. Sua cabana</div> - <div class="verse indent0">Vai ter outro senhor; as flores suas</div> - <div class="verse indent0">Implorão no jardim desde este instante</div> - <div class="verse indent0">D’outro cultor a próvida tutella:</div> - <div class="verse indent0">D’outro, sim; cuja mão todos os dias</div> - <div class="verse indent0">Irá de madrugada aos sacros manes,</div> - <div class="verse indent0">Pendurar sôbre o tumulo orvalhado</div> - <div class="verse indent0">Uma grinalda de orvalhadas flores.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Elle abre inda uma vez seus frouxos olhos,</div> - <div class="verse indent0">Onde começa a derramar-se a noite,</div> - <div class="verse indent0">E de seus labios tremulos, por onde</div> - <div class="verse indent0">Ja põe a occulta morte a mão gelada,</div> - <div class="verse indent0">Sólta chêo de afféto a voz, que expira,</div> - <div class="verse indent0">E seus amigos, e seus filhos chama:</div> - <div class="verse indent0">Os seus amigos mudamente o cercão,</div> - <div class="verse indent0">E não mostrar-lhe as lágrimas procurão:</div> - <div class="verse indent0">Áluz da tibia alampada contemplão</div> - <div class="verse indent0">Quanto a hora fatal ja se aproxima.</div> - <div class="verse indent0">E seus pobres filhinhos entretanto</div> - <div class="verse indent0">N’um canto da cabana estão sentados;</div><span class="pagenum"><a id="Page_256"></a>[256]</span> - <div class="verse indent0">Dos amigos no gesto, e nas maneiras</div> - <div class="verse indent0">Ler seu destino impacientes buscão,</div> - <div class="verse indent0">E attonitos, e tristes nem se atrevem</div> - <div class="verse indent0">A fallar, a fazer qualquer pergunta,</div> - <div class="verse indent0">Porque os não lancem d’este sítio fóra:</div> - <div class="verse indent0">Mas olhão-se entre si co’um ar tão meigo,</div> - <div class="verse indent0">Lastimoso, innocente, que podéra</div> - <div class="verse indent0">Desfazer de piedade a propria morte,</div> - <div class="verse indent0">Se o fado não contasse os nossos dias.</div> - <div class="verse indent0">Seu Pai, que os adorou, quer inda vê-los,</div> - <div class="verse indent0">Lançar-lhes a sagrada, última benção,</div> - <div class="verse indent0">Ver seu pranto, gozar dos seus afagos,</div> - <div class="verse indent0">Quer chama-los. A voz faltou de todo!</div> - <div class="verse indent0">E deixando caír de lado o rôsto,</div> - <div class="verse indent0">Soltou da vida o derradeiro arranco.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Ao profundo silencio altos clamores</div> - <div class="verse indent0">Succedem n’um momento; e o pranto, e os gritos</div> - <div class="verse indent0">Por toda a parte na cabana sôão.</div> - <div class="verse indent0">Os meninos confusos se levantão,</div> - <div class="verse indent0">Ouvem a nova, attentão no cadaver:</div> - <div class="verse indent0">Ouriçado o cabello, o sangue frio,</div> - <div class="verse indent0">Pallido o rosto, e vacillante o passo,</div> - <div class="verse indent0">Fogem para o jardim, por onde os segue</div> - <div class="verse indent0">A imagem de seu Pai, no susto envolta.</div> - <div class="verse indent0">Qual o vírão ha pouco, o tem comsigo!</div> - <div class="verse indent0">Dos parreiraes as sombras os perturbão,</div> - <div class="verse indent0">Vem nos troncos das árvores fantasmas.</div> - <div class="verse indent0">Vão buscar o luar do rio á borda;</div> - <div class="verse indent0">Mas lembrão-se que ali todas as noites</div> - <div class="verse indent0">Passeavão com elle: ésta lembrança</div> - <div class="verse indent0">Os torna a perseguir; e em tudo encontrão</div> - <div class="verse indent0">De um Pai tão caro o aspéto, que os assusta,</div><span class="pagenum"><a id="Page_257"></a>[257]</span> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Pela aldêa se espalha a infausta nova,</div> - <div class="verse indent0">E parece que a morte em cada casa</div> - <div class="verse indent0">Arvorára um trofeo! Domina em todos</div> - <div class="verse indent0">A dor, que se desfaz em pranto e gritos!</div> - <div class="verse indent0">Dir-se-hia que furioso, insuperavel,</div> - <div class="verse indent0">Hia de této em této um vasto incendio.</div> - <div class="verse indent0">Depois que um pouco em lúgubres transportes</div> - <div class="verse indent0">A dor se evaporou, por toda a parte</div> - <div class="verse indent0">Sôão louvores do chorado amigo.</div> - <div class="verse indent0">Cadaum lhe encarece uma virtude,</div> - <div class="verse indent0">E de cada virtude exemplos contão.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">O Justo dorme em paz: mas entretanto</div> - <div class="verse indent0">Ninguem dorme na aldêa. Ouvio-se o gallo</div> - <div class="verse indent0">Cantar, quando expirou da noite em meio:</div> - <div class="verse indent0">Torna o gallo a cantar na madrugada;</div> - <div class="verse indent0">E em contínua vigilia discorrêrão</div> - <div class="verse indent0">As longas horas, que á manhã precedem!</div> - <div class="verse indent0">Torna o gallo a cantar na madrugada,</div> - <div class="verse indent0">A aurora quer nascer; enchem-se os ares</div> - <div class="verse indent0">De uma luz, que ao luar excede um pouco.</div> - <div class="verse indent0">Do ninho suspendido em nossos tétos</div> - <div class="verse indent0">A andorinha ja sáe; vôa cantando</div> - <div class="verse indent0">Defronte agora das janellas nossas</div> - <div class="verse indent0">Para nos saudar, pois entra o dia.</div> - <div class="verse indent0">Ja dos ceos pelos flúidos espaços</div> - <div class="verse indent0">Circula a cotovía, que não cança</div> - <div class="verse indent0">No longo canto, ou desmedido vôo:</div> - <div class="verse indent0">Ja o rumor das arvores e fontes,</div> - <div class="verse indent0">Que da noite na paz costuma ouvir-se,</div> - <div class="verse indent0">Vai fugindo com as trémulas estrellas;</div> - <div class="verse indent0">Torna a alegria ao mundo, e ao campo as cores:</div> - <div class="verse indent0">Mas a alegria d’entre nós he longe,</div><span class="pagenum"><a id="Page_258"></a>[258]</span> - <div class="verse indent0">Os campos todos para nós tem luto.</div> - <div class="verse indent0">Ja se ouvem resoar da aldêa as portas;</div> - <div class="verse indent0">Ja sáe, ja se reune o povo inteiro.</div> - <div class="verse indent0">O ar de meditação domina em todos,</div> - <div class="verse indent0">Todos trazem de pranto rociadas</div> - <div class="verse indent0">As recentes grinaldas, que tecêrão.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Em plantas aromaticas envolto,</div> - <div class="verse indent0">Do alvergue, ha pouco seu, la vem saindo</div> - <div class="verse indent0">O deplorado amigo: ao caro pêzo</div> - <div class="verse indent0">Submettem quatro os hombros vigorosos.</div> - <div class="verse indent0">Bençãos, bençãos ao Justo, em cujo aspéto</div> - <div class="verse indent0">Por entre a pallidez inda ressumbrão</div> - <div class="verse indent0">Mansa innocencia, affétos generosos!</div> - <div class="verse indent0">A lenta marcha á turba consternada</div> - <div class="verse indent0">Rompem com baixo tom sonoras flautas,</div> - <div class="verse indent0">Que de triste alverôço o peito agitão.</div> - <div class="verse indent0">Apôz ellas, o funebre cadaver</div> - <div class="verse indent0">Dos Anciãos vai precedendo á chusma.</div> - <div class="verse indent0">Estes, fronte inclinada, olhos em terra,</div> - <div class="verse indent0">Vão suspirando, e a vista lacrimosa</div> - <div class="verse indent0">Lanção de quando em quando ao doce amigo,</div> - <div class="verse indent0">Que os precedeo na regiáõ da morte.</div> - <div class="verse indent0">Em seguida, modestos se confundem</div> - <div class="verse indent0">Os mancebos, de teixo coroados,</div> - <div class="verse indent0">Co’as bellas raparigas, que parecem</div> - <div class="verse indent0">Mais formosas co’a languida tristeza:</div> - <div class="verse indent0">Elles cantão em côro aos longos echos</div> - <div class="verse indent0">O como a quanto existe abrange a morte;</div> - <div class="verse indent0">Ellas em tom mais doce a voz levantão,</div> - <div class="verse indent0">Para mostrar como a existencia curta</div> - <div class="verse indent0">De prazeres doirar-se ao menos deve.</div> - <div class="verse indent0">Vão depois os meninos innocentes</div><span class="pagenum"><a id="Page_259"></a>[259]</span> - <div class="verse indent0">De ambos os sexos em confuso bando:</div> - <div class="verse indent0">Levão em suas mãos para o sepulcro</div> - <div class="verse indent0">Pequenas oblações; pomos, e flores,</div> - <div class="verse indent0">Taças de leite e mel, de vinho e d’agua</div> - <div class="verse indent0">Tomada em fonte viva antes da aurora,</div> - <div class="verse indent0">E de barro thuribulos não grandes.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Ja se chega ao lugar sagrado á morte:</div> - <div class="verse indent0">He um valle sombrio, onde se abração</div> - <div class="verse indent0">Mil arvores diversas, onde habitão</div> - <div class="verse indent0">Meigas filhas do ceo, canoras aves:</div> - <div class="verse indent0">Reveste fresca relva a terra fria,</div> - <div class="verse indent0">Pallido musgo os carcomidos troncos.</div> - <div class="verse indent0">Aqui frescos favonios adejando</div> - <div class="verse indent0">Pelas folhudas grimpas, docemente</div> - <div class="verse indent0">Só se ouvem suspirar: aqui mais terna</div> - <div class="verse indent0">Derrama a aurora o pranto matutino;</div> - <div class="verse indent0">Mais terna geme e rôla; e mais delirios</div> - <div class="verse indent0">Na alma gera o luar por estes campos.</div> - <div class="verse indent0">He fechado o lugar de mil rochedos,</div> - <div class="verse indent0">Por onde algumas fontes se derivão</div> - <div class="verse indent0">Com tacito rumor, que inspira os sonos:</div> - <div class="verse indent0">Pelas profundas, tenebrosas grutas,</div> - <div class="verse indent0">E sôbre os agudissimos rochedos</div> - <div class="verse indent0">Crê-se ver e escutar sagrados manes,</div> - <div class="verse indent0">Em frouxa voz, que as auras assemelha,</div> - <div class="verse indent0">Cantando os gostos da passada vida.</div> - <div class="verse indent0">La não geme a coruja, ou pia o mocho:</div> - <div class="verse indent0">Reina em vez do terror branda saudade,</div> - <div class="verse indent0">Terna melancolia, encanto, enlêvo</div> - <div class="verse indent0">Dos corações, das almas bem nascidas.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Que estrondo he este pelo chão de morte?</div><span class="pagenum"><a id="Page_260"></a>[260]</span> - <div class="verse indent0">São as férreas enchadas, que se alternão</div> - <div class="verse indent0">Para formar do eterno sono o leito.</div> - <div class="verse indent0">Agora cresce a dor na despedida.</div> - <div class="verse indent0">La chega, la se arroja, la se esconde</div> - <div class="verse indent0">Da Mãi universal no seio um filho!</div> - <div class="verse indent0">“Paz ao homem de bem!” dizem de roda</div> - <div class="verse indent0">Os velhos, e retirão-se chorando.</div> - <div class="verse indent0">“Leve te seja a terra!” os moços gritão,</div> - <div class="verse indent0">E partem derramando-lhe folhagem.</div> - <div class="verse indent0">Chega a turba infantil, seus dons off’rece,</div> - <div class="verse indent0">E vai juntar-se á multidão, que torna</div> - <div class="verse indent0">Aos trabalhos de novo á sua aldêa.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Mas ah! qual d’entre nós terá primeiro,</div> - <div class="verse indent0">Caros amigos, de fechar seus dias?</div> - <div class="verse indent0">Quaes choraráõ no tumulo silvestre!</div> - <div class="verse indent0">Talvez eu vos preceda, e vá saudoso</div> - <div class="verse indent0">Ver na Tenárea porta o Cão trifauce,</div> - <div class="verse indent0">Na Estige nebulosa a barca horrenda,</div> - <div class="verse indent0">E do Elisio paiz os gratos campos,</div> - <div class="verse indent0">La onde os vates do universo inteiro,</div> - <div class="verse indent0">Ja Numes, em republica se unírão.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Mas não pensemos n’isto: he Maio agora</div> - <div class="verse indent0">Que devemos cantar: nós o jurámos.</div> - <div class="verse indent0">Recomponde na fronte as vossas c’roas;</div> - <div class="verse indent0">Ergamo-nos, enchei de vinho as taças;</div> - <div class="verse indent0">E ante o Ceo, ante a Lua, que nos ouve,</div> - <div class="verse indent0">Entre os Favonios, e as formosas Ninfas,</div> - <div class="verse indent0">Que escondidas nas ondas nos rodêão,</div> - <div class="verse indent0">Saudemos novamente o alegre Maio,</div> - <div class="verse indent0">Jurando que desde hoje em nossas liras</div> - <div class="verse indent0">Ha de escutar cada anno os seus louvores.</div><span class="pagenum"><a id="Page_261"></a>[261]</span> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Ó Maio, eu fallo; escuta-me. “Por este</div> - <div class="verse indent0">Licor de Bassareo, que me arrebata;</div> - <div class="verse indent0">Pelos Filhos gentís da branca Leda,</div> - <div class="verse indent0">Que pela mão a nós te conduzírão;</div> - <div class="verse indent0">Por tuas flores, com que estou soberbo;</div> - <div class="verse indent0">Por tuas fontes, zéfiros e bosques;</div> - <div class="verse indent0">Por teu ceo graciosa; e por ti mesmo;</div> - <div class="verse indent0">E pela tua amiga, a minha Musa,</div> - <div class="verse indent0">Juro de consagrar emquanto viva,</div> - <div class="verse indent0">Todo o teu mez ao teu louvor, e ás festas.”</div> - </div> -</div> -</div> - -<p class="center">FIM DA FESTA DE MAIO.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_262"></a>[262]</span></p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_263"></a>[263]</span></p> - -<h3 class="nobreak" id="MAIO_NOTAS"><span class="smcap">NOTAS<br /> -á<br /> -Festa de Maio.</span></h3> - -</div> - -<h4 class="nobreak" id="MAIO_NOTA_1">CANTO I.<br /> -<span class="smaller"><i><a href="#Page_204">Pag. 204.</a> verso 4.º</i></span></h4> - -<div class="poetry-container"> -<div class="poetry"> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">Das Filhas de Nereo a mais formosa</div> - <div class="verse indent0">Foi Galatéa candida e rosada.</div> - </div> -</div> -</div> - -<p>Como das bagatelas que forçadamente tenho -semeado por alguns d’esses Jornaes, que -he o mesmo que escrever em folhas e atira-las -ao ar, algumas haja que não mereção de todo -perder-se, estas me pareceo i-las recolhendo -a meus livros, por qualquer modo que fossem -achando cabida, para não ser como a Sibilla -de Cumas, que em uma vez se lhe desmandando -com os ventos as folhas que tinha -escritas, ja para sempre tirava d’ellas o sentido: -<i>neo ponere in ordine curat</i>. Por isso traslado<span class="pagenum"><a id="Page_264"></a>[264]</span> -do Num. 3 do <i>Jornal dos Amigos das -Letras</i>, todo o seguinte Artigo<a id="FNanchor_15" href="#Footnote_15" class="fnanchor">[15]</a>.</p> - -<div class="blockquote"> - -<p class="center"><i>Antonii Feliciani de Castilho</i>,</p> - -<p class="center">GALATEA: CARMEN.</p> - -<p class="center"><span class="smcap">Advertencia Preliminar</span></p> - -<p>O fragmento latino que se vos offerece, sob -o titulo de Galatea, he huma tentativa e nada -mais: e quem mo quisesse haver a ostentação, -não só mostrára quam pouco me conhece, mas -ainda com atrocissima injúria me aggravaria. -Discorridos são hoje mais de dez annos, depois -que, desejoso de refrescar lembranças de conhecido -com as Romanas Musas companheiras -e alegria de minha infancia, me dei ao -passatempo de metrificar em latim, ja os pensamentos -que primeiros me occorrião, ja algum -episodio de minhas proprias obrinhas; sendo -assim, que esta fabula de Galatea a trasladei -do Poema da <i>Festa de Maio</i>, no meu livro<span class="pagenum"><a id="Page_265"></a>[265]</span> -da <i>Primavera</i>. Sei bem que não ha hoje, e especialmente -por cá, leitores para o latim, -sendo a final chegado o prazo de, com razão -e sem o mínimo escrupulo, se poder chamar -tal lingua morta e enterrada: sei mais que, -inda mal, não respondem estes meus versos -ao que eu anciára que elles fossem, e nem valem -mais que uma boa parte dos ahi impressos na -custosa Coléção de Poetas do nosso Padre -Reis; e com tudo, a despeito d’estas duas tão -fortes razões, e tão valentes para me deverem -dissuadir, convim em que tão pobre couza se -désse á estampa. Será, segundo muitas vezes -se escreve em Prologos, para incitar engenhos -a fazerem melhor? não. Pois será, como tambem -em Prologos se usa de escrever, para que -os Aristarchos me ensinem o que, o como, -e o por onde devo corrigir e melhorar? menos; -que não sei eu de um só que se hoje occupe -com semelhantes vaidades. Como por tanto -me livrarei da desmerecida taxa de presunçoso? -confessando, como tambem em Prologos -se costuma, mas d’esta vez com verdade, -que o faço por obedecer a dezejos de pessoa, -com quem muito me importa estar em tudo -bem.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_266"></a>[266]</span></p> - -<div class="poetry-container"> -<div class="poetry"> - <div class="stanza"> - <div class="verse center">GALATEA</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse center"><i>Carmen, ex Lusitano Latine redditum.</i></div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Assiduis, juvenes, proscindite flumina remis,</div> - <div class="verse indent0">Dum vacat et picto lœtos juvat ire phaselo;</div> - <div class="verse indent0">Intereaque meo vestrum fallente laborem</div> - <div class="verse indent0">Carmine, Romanas percurram pollice chordas.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Nereidas inter quondam pulcherrima Nymphas</div> - <div class="verse indent0">Nympha fuit Galatea maris: cui lilia mixtis</div> - <div class="verse indent0">Ore rosis, flavæque comæ, roseique labelli,</div> - <div class="verse indent0">Cæruleoque oculi placido fulgore micantes,</div> - <div class="verse indent0">Et sinus albenti in scopulis albentior unda,</div> - <div class="verse indent0">Qualem nec Paphiis habuit quæ regnat in arvis.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Tertia postdecimam vernantia tempora brumam</div> - <div class="verse indent0">Floruerant, postquam vitali vescitur aura</div> - <div class="verse indent0">Nympha; nec in terris, aut cœlo, aut æquore toto</div> - <div class="verse indent0">Est quæ formosis ausit contendere formis.</div> - <div class="verse indent0">Multi illam juvenes, multi petiere deorum,</div> - <div class="verse indent0">Undique blanditiis et laudibus insidiantes,</div> - <div class="verse indent0">Nulli illi juvenes, nulli placuere deorum.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Hanc pater undisono sub gurgite in antra vocavit,</div> - <div class="verse indent0">Amplexumque dedit, tremulisque sedere coegit</div> - <div class="verse indent0">In genibus, tales fundens post oscula voces:</div> - <div class="verse indent0">“Filia, tempus adest pueriles linquere ludos.</div> - <div class="verse indent0">“Non te pulchra latet, qua subjicis omnia, forma;</div> - <div class="verse indent0">“Tene latet quantis fugiendi viribus, instant</div> - <div class="verse indent0">“Qui toties, laudesque ferunt, gressusque sequuntur?</div> - <div class="verse indent0">“Crede patris canis et amori crede paterno;</div> - <div class="verse indent0">“Quò plus obsequiis, quò plus sermone placebunt</div> - <div class="verse indent0">“(Parce seni juvenem patri non grata monenti)</div> - <div class="verse indent0">“Hóc magis incautæ protendent retia formæ.</div><span class="pagenum"><a id="Page_267"></a>[267]</span> - <div class="verse indent0">“Filia, tempus adest pueriles linquere ludos:</div> - <div class="verse indent0">“Sit tibi cura meos posthac delphinas in undis</div> - <div class="verse indent0">“Pascere, perque salum deformes ducere phocas;</div> - <div class="verse indent0">“Non bene pigra tuis ignavia convenit annis.”</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Dixit: et e patrio discerpta coralia ponto,</div> - <div class="verse indent0">Cuspide inaurata, pastoria munera, virgam</div> - <div class="verse indent0">Tradidit, atque pecus natæ commisit habendum.</div> - <div class="verse indent0">Est virides inter, Nereus quibus imperat, undas</div> - <div class="verse indent0">Valle locus tuta, nec divo pervius ulli,</div> - <div class="verse indent0">“Hic maneas, dixit, te sæpe deinde revisam.”</div> - <div class="verse indent0">Arrisit, natamque pater sine teste reliquit.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">Haud semel ignifero radiarant lumine currus,</div> - <div class="verse indent0">Phæbe tui, dum lœta pecus Galatea marinum,</div> - <div class="verse indent0">Gurgitis inter opes, viridanti paverat alga.</div> - <div class="verse indent0">Interdum æquoreis linquens armenta molossis</div> - <div class="verse indent0">Ibat, et in calathos modo tinctas murice conchas,</div> - <div class="verse indent0">Et modo lucentes baccas contenta legebat.</div> - <div class="verse indent0">Ver erat, et pictos zephyris mulcentibus agros,</div> - <div class="verse indent0">Mense renidebat tellus lætissima Majo;</div> - <div class="verse indent0">Aureus in liquidæ Sol brachia Thetidos ibat.</div> - <div class="verse indent0">Deserere ima maris, solum conscendere littus</div> - <div class="verse indent0">Ausa fuit virgo, non sic reditura sub undas.</div> - <div class="verse indent0">Summa petens scopuli viridi sub rupe recessit,</div> - <div class="verse indent0">Unde fretum, terrasque lubens circumspicit omnes.</div> - <div class="verse indent0">Hic sedet, et pascens animos novitate locorum,</div> - <div class="verse indent0">Miratur, facilesque oculos fert omnia circum.</div> - <div class="verse indent0">Ut mediis vidit formosum fluctibus Acin</div> - <div class="verse indent0">Æquora jactatis tranantem cana lacertis,</div> - <div class="verse indent0">Versibus abstinuit, versus nam forte canebat;</div> - <div class="verse indent0">Erubuit, turbata silet, suspiria ducit;</div> - <div class="verse indent0">Nunc subeunt jussus, subeunt hortamina patris;</div> - <div class="verse indent0">Jam cupiat tutis fugiendo immergier undis,</div> - <div class="verse indent0">Nec potis est cupiens, et littore perdita inhæret:</div><span class="pagenum"><a id="Page_268"></a>[268]</span> - <div class="verse indent0">Nunc libet et tacito cautæ latuisse sub antro,</div> - <div class="verse indent0">Donec arenoso mutarit littore fluctus</div> - <div class="verse indent0">Discedensque puer securam liquerit oram;</div> - <div class="verse indent0">Pænitet inde fugæ, sistit, mavultque videri.</div> - <div class="verse indent0">Corpora, cæruleas inter candentia lymphas,</div> - <div class="verse indent0">Quam numeris perfecta suis! quam fortia pulsis</div> - <div class="verse indent0">Devectantur aquis! quam multa est gratia nanti!</div> - <div class="verse indent0">Quam bene suffuso sua membra liquore teguntur,</div> - <div class="verse indent0">Quam bene disperso nudantur eburnea ponto!</div> - <div class="verse indent0">Cuncta tenent oculos, in cunctis Nympha moratur.</div> - <div class="verse indent0">Interdum propius sensim vestigia ponit,</div> - <div class="verse indent0">Nec propiora tamen fieri vestigia sentit.</div> - <div class="verse indent0">Queisque prins sparsis volitaverat aura capillis,</div> - <div class="verse indent0">Nescia cur fingat, vel collo dividat apte,</div> - <div class="verse indent0">Dividit illa tamen, studioque indulget inani.</div> - <div class="verse indent0">Hinc littus petit, ac vultus speculatur in unda,</div> - <div class="verse indent0">Et quanquam ipsa sibi pulcherruma tota videtur,</div> - <div class="verse indent0">Pulchrior exoptat fieri, frustraque laborat.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Interea juvenis, jam fessus nasse, redibat,</div> - <div class="verse indent0">Et prope jam fulvas manibus tangebat arenas:</div> - <div class="verse indent0">Illa fugit, trepidatque, et rupe reconditur ima.</div> - <div class="verse indent0">Hic latet, et votis contraria vota rependens,</div> - <div class="verse indent0">Nunc patris hortatus, et nunc reminiscitur Acin,</div> - <div class="verse indent0">Et rubet, et pallet, nec vultibus hæret in isdem.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Haud mora: nudus adest, antrumque Simethius intrat</div> - <div class="verse indent0">Acis, ut abjectas repetat sub tegmine vestes.</div> - </div> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent2">Quid remi cecidere, quid ó cessatis amici?</div> - <div class="verse indent0">Nonne retro refugisse ratem, dumque ora tenetis,</div> - <div class="verse indent0">Aversam in portus sentitis abire relictos?</div> - <div class="verse indent0">Instaurate opus, ac totis incumbite remis:</div> - <div class="verse indent0">Quó pœnas detis, dictis nihil amplius addam.</div> - </div> -</div> -</div> - -</div> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_269"></a>[269]</span></p> - -<h4 class="nobreak" id="MAIO_NOTA_2">CANTO II.<br /> -<span class="smaller"><i><a href="#Page_237">Pag. 237.</a> versos 15 e 16.</i></span></h4> - -<div class="poetry-container"> -<div class="poetry"> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">E que? algum de nós contra o que vive</div> - </div> -</div> -</div> - -<p>A questão, se sim ou não se ha de o homem -alimentar de substancias animaes, tem sido -muitas vezes, e com oppostas sentenças, debatida -por filosofos, poetas, naturalistas e medicos. -A affirmação e a negação achárão para argumentos -ja uso e consenso de povos em todos os -tempos, ja razões intrinsecas tiradas de nossa -propria conveniencia. He assunto que requeria -larga escritura, e em que a qualquer seria -facil dissertar eruditamente. Voar-lhe-hei pelas -summidades.</p> - -<p>Aquella vaga tradição, que em toda a parte -permanece, de uma primitiva idade do mundo -innocente e felicissima, entre as couzas de que -reza, aponta sempre o não se comer de animal -algum, senão só de frutas, hervas, leite e mel. -De outro modo se não podião sustentar, conforme -parece pelo ancianíssimo Genesis, os moradores -do Paraizo, não só homens, porem -todos os viventes. Quadrava o preceito e toava -o uso pelo menos á humana natureza, que ainda -agora, se a bem espreitarmos na infancia, -ou antes de alterada por contrarios habitos, se -afflige e revolve com o aspéto do sangue e morte. -Verdade he, que depois da queda de nossos -primeiros pais, nem o Testamento velho nem -o novo, tornão a prohibir as carnes; mas toques<span class="pagenum"><a id="Page_270"></a>[270]</span> -da mesma nativa compaixão para com os -animaes não lhes faltão, dos quaes pelo menos -se deduz por bom discurso, que se os tivermos -de comer, ainda ahi nos devemos haver -com a possivel mansidão, poupando cruezas -escuzadas, como são, e se costuma, atormenta-los -na agonia por lhes refinar o sabor, -caçar, montear e pescar por passatempo e pelo -mero gôsto de malfazer. Lê-se nos Proverbios, -segundo as versão dos Setenta: <i>Justus -miseretur animas jumentorum suorum; viscera -autem impiorum crudelia.</i>—O que justo fôr -ha de se apiedar da condição dos seus brutos; -mas as entranhas dos impios não se apiedão da -nenhuma couza.—No Exodo: <i>Non coques hædum -in lacte matris suæ.</i>—Não cozas o cabrito -no leite de sua mãi.—He dito para ser -ruminado, pelo mimoso do afféto que recende. -No Deuteronomio: <i>Si ambulans per viam, in -arbore vel in terra nidum avis inveneris, et matrem -pullis vel ovis desuper incubantem, non -tenebis eam cum filiis sed abire palicris, ut bene -sit tibi, et longo vivas tempore.</i>—Se o -acaso te deparar no caminho, quer em arvore -quer no chão, um ninho de ave, e a mãi estiver -a agazalhar os filhos ou os ovos, não a -tomes com os filhos, senão que em boa hora a -deixes ir, para que boa estrêa te venha, e vivas -largos annos.—</p> - -<p>Entre os Santos Padres, que são os depositarios -e dispenseiros do espirito christão, alguma -couza se podéra citar que autorizasse este<span class="pagenum"><a id="Page_271"></a>[271]</span> -genero de piedade. Sabida he a de que usou -S. Anselmo, uma vez para com uma lebre, -outra para com um passarinho. Tertulliano se -maravilha de que entre christãos, os haja que -se accommodem a ser carniceiros: <i>nescio an -dolendum an erubescendumn sit</i>;—não sei, -diz elle, se mais he para se haver lástima, -se vergonha. S. João Chrisosthomo escreva, -que se não podia ser santo sem uma -estremada suavidade de affétos, e muita vehemencia -de bem querer, não só aos nossos, mas -ainda aos estranhos, em tanta maneira que até -aos brutos animaes abranja essa mansidão. (<i>Homil. -29. na Epist. ad Rom.</i>) E dizia bem, que -nas vidas de não poucos santos resplandecem -as provas. S. Francisco de Assiz resgatava os -cordeiros que hião para o córte, pagava e soltava -as redadas dos peixes e os viveiros das -aves. Mas não apontemos mais, por não enjoar -filosofos, digo filosofos de nossa terra, dos -que nos assoalhão filosofia de torna viagem, -porque os lá de fóra ja deixarão muito para -traz a impiedade.</p> - -<p>Não he porem necessario ser christão, senão -que basta ser homem, para repartir com os brutos -do thesouro da charidade, de que muitos -d’elles usão a seu modo, não só para com os -seus, mas para comnosco. Sendo assim que -onde os não maltratão, são elles de indole muito -mais benigna: em Inglaterra, segundo se -diz, nem ha cão que ladre, nem besta que -escoucinhe: em não sei que ilha dezerta, acharão<span class="pagenum"><a id="Page_272"></a>[272]</span> -os primeiros descobridores, em aportando, -(segundo encontrei na Escolha de Viagens -por John Adams) serem tão cortezes as aves -de que toda era chêa, que não fogião dos novos -hospedes, antes os festejavão e se deixavão -pôr a mão; semelhantemente ao que -da ilha das Garças aponta João de Barros -<i>Dec. 1 Liv. 1 Cap. 7</i>, aonde “como não -erão traquejadas de gente (as garças e outras -aves), ás mãos tomarão (os marinheiros de Nuno -Tristão) tanta quantidade d’ellas, que ficou -por refresco ao navio.” Dos leões he corrente -entre os naturalistas não perseguirem, -mas esquivarem-se dos perseguidores, embrenhando-se -cada vez mais pelos seus sertões adentro, -sendo alias mui leves de domesticar, e -folgando de acompanhar, como rafeiros innocentes, -a trôco de qualquer esmola de pão, por -largo espaço de leguas. Muitas são em toda a -parte, mormente em Africa, as serpentes, que -namoradas do bom gazalhado, trocão seus matos -pelas pouzadas humanas, e n’ellas se hão -como boas comadres da familia. O cavallo do -Arabe he o contubernal e primeiro amigo de -seu dono: um bom Arabe na morte do seu cavallo -deveria de se expressar pouco mais ou menos -como Millevoye o suppoem na Elegia. Muitos -prezos tem logrado domesticar aranhas e ratos, -até o ponto de, no meio das asperezas de -um segredo, se poderem esquecer por muitas -horas do seu desamparo, crueldades e injustiças -humanas. No páteo da rezidencia parochial -de S. Mamede da Castanheira do Vouga,<span class="pagenum"><a id="Page_273"></a>[273]</span> -todos os dias a horas certas viamos acudir ao -almoço e cêa que ás nossas pombas desparriamos, -todos os passarinhos da vizinhança, -que ja traziamos tão correntes, que nos vinhão -comer aos pés, por saberem (porque os brutinhos -sabem muito mais do que nós outros cuidâmos) -que n’aquella cazinha da solidão moravão -amigos seus, e nunca terem ouvido tiro, -nem enxergado rede no pequeno arredor -do templo e passaes solitarios.<a id="FNanchor_16" href="#Footnote_16" class="fnanchor">[16]</a> Se a tudo -isto e a muitos outros exemplos se lançar conta, -alguma verdade se achará no affirmarem -poetas, que no discaír da idade de oiro, ao mesmo -tempo que se os homens corromperão degenerando -em crueis, se forão as feras tornando -bravias e desabridas.</p> - -<p>Em todos os tempos, e até por fóra e mui -longe d’esta religião charidosa, houve quem bem -entendesse como entes nossos conterraneos n’este -orbe, irmãos nossos em viver, sentir, padecer -e acabar, com sangue e coração como nós, -com amor, prazeres e filhos como nós, bebendo -como nós no immenso vaso do pai commum -o mesmo ar, a mesma luz, as mesmas -aguas, e comendo comnosco á mesma mesa -do universal banquete, poderião quando muito -servir-nos de pasto; mas fóra d’ahi, qualquer<span class="pagenum"><a id="Page_274"></a>[274]</span> -injúria que se lhes accrescentasse, seria hortorosa -profanação e violação da natureza. Plutarcho -e Quintiliano referem, que os Athenienses -castigarão severamente algumas sevicias -commettidas contra animaes. O Alcorão espalhou -por todos os povos, que largamente senhorea, -muita d’esta benignidade: raro Mahometano -deixará de matar a fome ao cão de -seu inimigo. Na China passa esta beneficencia -muito adeante. Que no-lo diga em seu estilo -chão o nosso Fernão Mendes, ou talvez o -Jesuita que em seu nome, e por um modo tão -rijo de crer, compilou tantas e tão preciosas -noticias do Oriente, mui desacreditadas em tempo, -ja hoje em parte mui abonadas de verdadeiras. -Padre ou marinheiro, diz assim: (falla -de uma feira que no rio de Batampina, em caminho -de Nanquim para Pequim, se faz com -mais da duas mil ruas de barcaças, nas quaes -ha para vender tudo a que no mundo se pode -pôr nome.) “Ha tambem outras embarcações em -que os homens trazem grande soma de gayolas -com passarinhos viuos e tangendo com instrumentos -musicos dizem em voz alta á gente -que os ouve, que libertem aquelles cativos que -são criaturas de Deos, a que muita gente acede -a lhes dar esmola com que resgata daquelles -cativos os que cada um quer e os lança logo -a avoar, e toda a gente dando hũa grande -grita lhe diz, <i>pichau pitanel catão vocaxi</i>, que -quer dizer, <i>dize lá a Deos como cá o servimos</i>. -Ha outros homens que noutras embarcações -trazem grandes panellas cheyas de agoa,<span class="pagenum"><a id="Page_275"></a>[275]</span> -em que trazem muitos peixinhos viuos que tomão -nos rios nũas redes de malha muyto miudas, -tambem pela mesma maneira vem bradando -que libertem aquelles cativos por seruiço -de Deos que são innocentes que nunca peccarão, -a que tambem a gente dando sua esmola, -comprão daquelles peixinhos os que querem -e os tornão logo a lançar no rio, dizendo, -<i>vayte embora, e lá dize de mym este bem que -te fiz por seruiço de Deos</i>. E estas embarcações -em que estas cousas se trazem a vender não -se hão de contar por menos soma que de cento -e duzentas para cima.”</p> - -<p>Na India são n’esta virtude extremosissimos. -Alguns viajantes tanto encarecem a couza, -que chegão a affirmar haverem por lá, ainda -no seculo passado, hospitaes para as mais asquerosas -sevandijas, como piolhos, pulgas e -persovejos.</p> - -<p>Pôsto que tudo quanto até aqui tenho trazido, -possa parecer uma diversão do principal -propozito, não o he, por quanto d’estes misericordiosos -affétos he que se tem em parte derivado -a abstinencia de carnes, observada por muitas -pessoas, communidades, seitas e povos: em -parte digo, porque em outros diversos fundamentos -tem tambem estribado, como veremos.</p> - -<p>E pois que a ultima que tocámos foi a India, -a ella tornemos, levando por explorador -e lingua, não algum estrangeiro, de que<span class="pagenum"><a id="Page_276"></a>[276]</span> -outros se contentão mais, mas um patricio -nosso, dos varios que para tal officio se podérão -tomar: he Duarte Barbosa, e diz:</p> - -<p>“Ha neste regno (de Guzarate) outra sorte -de Gentios, que chamaom Bramanes, estes -nom comem carne, nem pescado, nem nenhũa -cousa que mora, nem mataom, nem menos -querem uer matar, por asy lho defender sua -idolatria; e guardaom isto em tamanho estremo -que he cousa espantosa, porque muytas -uezes acontece leuarem-lhe hos Mouros bichos, -e pasarinhos uiuos, e fazerem que hos querem -matar perante eles, e estes Bramanes lhos compraom -e resgataom, dando-lhe por eles muyto -mais do que ualem, por lhe saluarem has uidas, -e soltalos. Se tambem El Rey, ou ho gouernador -da tera, tem algũu homem, porculpas que -cometese, julgado ha morte; ajuntamse eles, -e compramno ha justiça, se lho quer uender, -pera que nom mora; e tambem algũus Mouros -pedintes, quando querem auer esmola destes, -tomaom muy grandes pedras, e daom -com elas emsima dos ombros e barigas, como -que se querem matar perante eles, e porque ho -nom façaom, lhe daom muytas esmolas, e que -se uaom em pas; outros trazem faquas, e daom-se -cõelas cutiladas pelos braços e pernas, -e pera se nom matarem lhes daom muytas esmolas; -outros lhe uem has portas ha querer -lhe degolar ratos e cobras, ha hos quaes eles -daom muyto dinheiro por ho nom fazerem, e -desta maneira saom dos Mouros muy apreciados:<span class="pagenum"><a id="Page_277"></a>[277]</span> -estes Bramanes se achaom no caminho -algũu golpe de formiguas, aredam-se buscando -por honde pasem sem bas pisarem. E em suas -casas de dia çeaom; de dia nem de noyte acendem -candea, per caso de algũs mosquitos nom -irem morer no lume da candea; e se todauia -tem grande necesidade de acenderem de noyte, -tem hũa alenterna de papel ou de pano agomado, -pera cousa nenhũa uiua poder ir morer -dentro no fogo; se estes criaom muytos piolhos, -nom hos mataom, e quando hos muyto -aqueixaom mandaom chamar hũs homeins -que antre eles uiuem, que tambem saom gentios, -e eles hos haom por de santa uida, e -saom come irmytães, uiuendo em muyta abstinença -por reuerencia dos seus Deoses; estes -hos cataom, e quantos piolhos lhe tiraom poemnos -em suas cabeças, e hos criaom com suas -carnes, em que dizem fazerem muy grande -seruiço ha seu Idolo, e asy guardaom hũus e -outros com muyta temperança ha ley de nom -matarem: estes Gentios saom muy delicados -e temperados em seu comer; seus manjares saom -leites, manteiga, açuquar, e aros, e muytas -conseruas de diuersas maneiras; seruem-se muyto -de cousas de fruyta e ortaliça, e deruas de -campo pera seus manjares; honde quer que -uiuem tem muytas ortas e pomares.”</p> - -<p>Na <i>Historia de Mysore</i>, lê-se que em Bengala, -quando a violencia da fome a devastou -em 1774, consumindo-lhe obra de trez milhões -d’almas, forão em muito grande numero os<span class="pagenum"><a id="Page_278"></a>[278]</span> -Indios que antes quizerão deixar-se morrer á -mingoa, do que acabar comsigo comer carne de -animaes.</p> - -<p>Frequente e antigo he na India este antojo, -e tão notorio, que não ha porque afogar o discurso -com mais exemplos. Bem podia proceder -isso em parte da vegetavel abundancia e espantosa -cultura d’aquellas terras, e de alguma -especial compleição do clima, ou natureza ou -costumes dos moradores, ou algumas outras -circunstancias, segundo as quaes os corpos se -dessem melhor com os pastos leves e frugaes: -viria depois a religião consagrar por dogmas -seus os conselhos da higiene, como com vinho, -toucinho e abluções aconteceo em muito oriente -á conta da lepra: para melhor incutir o -preceito, cerca-lo-hia de fabulas amigas da -imaginação do vulgo, como a encarnação dos -Deozes em corpos de brutos, e a transmigração -das almas humanas por differentes sortes -de viventes até parar na vacca; materias estas -de que as historias e perigrinações fazem larga -menção. Dos Indios podérão tomar por mão -a crença os Egipcios, os quaes, sendo moradores -de solo não menos liberal, devião -tambem perdoar grandemente aos animaes, em -quem reverenciavão suas Divindades, ou santuarios -ambulantes que d’ellas forão: e confirma-me -na suspeita a conveniencia, que ja -de alguem deverá ter sido notada, do boi -Apis do Egito com a vacca ainda hoje sagrada -dos Indios. Do Egito provavelmente trouxe<span class="pagenum"><a id="Page_279"></a>[279]</span> -Pithagoras para a Italia, em tempos de -Numa ou Servio Tullio, a sua metempsícosa -com a defensão do uso das carnes. Não pegou -a invenção, se não foi em alguns escolares -fanaticos de tamanho mestre; e nem filosofos -pelo tempo adeante a sustentarão, nem -poetas se valerão d’ella, afóra Ovidio nas metamorfoses, -e só como narrador; e mais -não deixava de ser fecunda e bem assombrada -crença para poesias. Não pegou, porque não -vinha propria á indole do solo ou ao temperamento -dos Italos, ou, o que he mais certo, -porque encontrava os antiquissimos usos de -umas gentes, que primeiro tinhão sido pastoras -e depois guerreiras.</p> - -<p>Na Ilha da Palma, acharão os nossos, quando -descobrião, conquistavão e amansavão aquelle -archipelago, (senhorio traspassado depois em -Castella, mas padrão glorioso do nosso Infante -D. Henrique) serem mantimento dos moradores -hervas, leite e mel.—Com este particular -exemplo me acóde a memoria, mas -alguns outros semelhantes de outras ilhas me -parece ter achado pelas historias, de que me não -ficou nem fiz a lembrança preciza.</p> - -<p>Com a propagação da fé christã renasceo religiosa -a abstinencia na Europa, por motivo -não de brandura, mas de mortificação. Apparecerão -Ordens numerosas de religiosos, primeiro -só de homens, logo tambem de mulheres, -que renunciando todos os carnaes deleites<span class="pagenum"><a id="Page_280"></a>[280]</span> -para melhor apurarem os do espirito, tomando -o exemplo dos primitivos eremitas que se -abastavão com as hervas, raizes, frutas silvestres, -e aguas dos montes, não só cortarão pelas -demazias na quantidade do sustento, não -só o estreitarão com regra de jejuns, mas em -varios de seus institutos o expurgarão de todo -animal terrestre ou volatil, não consentindo, -quando muito, senão em algum marisco secco -e fraco, para regalo das festas. E he para notar -como ainda os mais rígidos observantes logravão -saude inteira e robusta, e chegavão ao ultimo -fio da velhice: <i>mens sana in corpore sano</i>.</p> - -<p>Annos ha que me recordo de ter achado em -uma Gazeta de Lisboa, estar-se creando em -Manchester uma seita, que por filosofica defendia -tomar qualquer sustento animal. Era noticia -de Gazeta, não affirmarei que tivesse pé, -e se o teve, não sei em que parou.</p> - -<p>Ja que estamos com Inglezes, fallemos de -Franklin. Este homem, a quem a probidade e -o juizo fizerão filosofo e liberal, e não a devassidão -e o estouvamento, tendo lido, di-lo elle, -o livro em que Tryon recommenda a dieta -vegetal, determinou-se em a observar. Pô-lo -por obra, e limitando-se em arroz e batatas, -e ás vezes ainda em menos, como passas, -bolaxa ou pão, com uma gota de agua, -não só forrou do seu salario (era ainda então -compositor de imprensa) com que poder comprar -livros, mas do seu tempo acerescentou<span class="pagenum"><a id="Page_281"></a>[281]</span> -para estudos o que as refeições e digestões lhe -podérão consumir: fez progressos proporcionados -á clareza de ideas e fortaleza de percepção, -que são o fruto da temperança no comer e beber. -Seguio constante por algum tempo, não -pouco, até que chega á ilha de Block, assiste -a uma pesca, revolvem-se-lhe nas entranhas -as maximas do seu Tryon, dá por genero de -assassinio aquelle matar viventes, que nem tinhão -feito nem erão capazes de fazer o mínimo -mal. Poem-se os mortos ao lume, recende -o guizado; o filosofo no seu tempo gostára apaixonadamente -de peixe; entra pelo nariz a tentação, -estremece a filosofia, e em boa hora -lhe acode com uma bulla de composição, lembrando-lhe -como ao abrir e limpar d’aquelles -peixes, lhes víra dentro do buxo outros peixinhos -mais pequenos. “Pois que he isto, diz -elle entre si, se vós uns a outros vos comeis, -porque não hei de eu tambem comer-vos a vós?” -N’essa hora e com esta palavra se lhe quebrou -o fadario; o que muito bem prova, acrescenta -o bom homem, sermos nós <i>animaes racionaes</i>, -sabendo, como sabemos, achar pretextos plausiveis -para quanto nos póde dar gôsto.</p> - -<p>Outro autor muito afamado de nossos dias, -Raynal, era igualmente sobrio. A Senhora -Marqueza d’Alorna, que muitas vezes o teve -a jantar, me contou, que nunca o víra comer -mais que algumas poucas hervas e fruta, nem -beber senão agua. Era, observava ella, como -um conviva das Ninfas, custando a crer como<span class="pagenum"><a id="Page_282"></a>[282]</span> -com aquellas refeições de idillio se podessem -sustentar tantos nervos d’alma e de pensamento.</p> - -<p>Se depois de autores de livros se póde citar -quem não sabe ler, em Grada, lugarejo da -Bairrada, vivia um moço que eu conheci, o -qual nunca provára vacca. Perguntado a causa, -não era religião, nem filosofia, nem tedio natural, -mas effeito de um vehementissimo e entranhado -amor que tinha aos bois, com quem -se creára, com quem vivia, lavrava, e dormia -paredes meias. Rústico era, e sem o cuidar discorria -e fallava como o Sabio de Cheronea, -quando dizia, que por tudo quanto o mundo tinha, -não venderia nunca o boi que em seu serviço -envelhecêra.</p> - -<p>Afóra os monges, filosofos e amigos dos -bois, ha ainda uma grande quantia de homens, -puro comedores de vegetaes em quasi todo o -anno: são os moradores das serras e aldêas -pobres, a quem a estreiteza de sua fortuna -mal dá licença para chegarem á carne por entrudo -e paschoa, e poucas mais vezes e só escassissimamente, -ao pescado, vizita mui rara em terras -mesquinhas do sertão. De choupanas sei -eu, e quasi de inteiros lugares, pelas abas da -Serra do Caramulo, onde oito annos vivi, -que de pouco mais se sustentão que do pão -de centeio e milho, batatas e alguns legumes: -e estes asperissimos banquetes, em que até -pelo demais fallece o agro vinho verde de seus<span class="pagenum"><a id="Page_283"></a>[283]</span> -montes, trazem-os comtudo mais rijos e sãos -no trabalho, do que as grandes ucharias aos -mimosos das cidades.</p> - -<p>Acabarei estes exemplos com o que melhor -conheço, que he o meu. Quando eu compuz -estes versos da <i>Festa de Maio</i>, era como ja -no Ante-Prologo disse, todo Gessnérico: trazia -a alma toda a nadar no coração empapado com -os mais brandos affétos do mundo, como rosa -a boiar em vaso de leite: amava as plantas -e tratava com ellas como com entes sensitivos; -todos os entes sensitivos amava-os como amigos -e companheiros: tinha fantasia pronta, que -muito ajuda em todo o genero de bem querer; -esta me revelava de contínuo e me ataviava de -suas fabulas e côres a particular vida e cheíssimo -mundo de cada inséto; e porque esse seu -mundo e vida dizia tanto com o meu, e o commum -de seus substanciaes interesses com o commum -dos substanciaes interesses dos homens, -acontecia que imaginando-me ora grilo, ora -passaro, ora borboleta, tinha aprendido uma -perfeita, e se dizè-lo posso, egoista charidade -para com todos elles. Ouvi debater a questão -do uso das carnes: as razões affirmativas podião -ter mais fôrça, mas as negativas dizião -com o meu gôsto; he meia persuasão; caírão-me -tão bem, que logo me dei, se não por convencido, -por persuadido: e como persuadido e -convencido escrevi os versos, que por isso aos -indifferentes se de contrária sentença, devem -parecer, como em verdade são, sobejos, exagerados -e declamatorios.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_284"></a>[284]</span></p> - -<p>Era o escrito fruto de minha opinião; mas -esta, como accontece, se roborou por elle, e -até tal ponto se confirmou, que do que até alí -não passára de poetica theoria, instituí fazer -prática minha em toda a vida, renunciando -qualquer genero de alimento animal. Por duas -vias se fazia de mal o tenta-lo, ja porque em -couza tão excetuada do geral não deixarias de -caír estranhezas e zombarias, ja porque tanta -sobriedade entre quem a não usava, era genero -de martirio continuamente renovado. Mas -contra estes dois contrastes prevalecião outros -dois argumentos: primeiro, minha consciencia, -que repugnava banquetes de sangue: segundo, -o presuposto em que estava, de que as -faculdades da alma se havião de adelgaçar e -crescer onde o corpo fosse favorecido da parcimonia. -Metti-me Pithagorico aos vinte e -trez d’Agosto do anno de 1822, tendo sido -gastos os mezes, que desde a feitura do poema -decorrerão até esse, em acabar de me resolver -e aparelhar para tão grande façanha; e -permaneci na observancia do voto até vinte e trez -d’Agosto do seguinte anno. Acabei o noviciado, -e em lugar de professar, despedi-me. Tive minhas -razões; e ainda que pouco se me havia de dar -agora do que se podesse dizer ácerca de um indivíduo, -que n’esse tempo tinha o nome que -eu hoje tenho, e do qual, segundo as theorias -dos medicos, não conservo hoje uma só particula, -sendo eu um, vivo e junto; elle outro, -morto e disperso por todo esse mundo: todavia, -porque ainda temos commum um leve som,<span class="pagenum"><a id="Page_285"></a>[285]</span> -que he o nome, quero lançar pontualmente na -balança do juizo dos meus leitores os seus porques; -e bons ou máos, forão estes.—Primeiro: -que a abstinencia de uma só pessoa não -poupava uma unica existencia de animal. Segundo: -que era presunção ridicula o desquitar-se -um sujeito, por alguns argumentos, de uma -opinião e uso quasi universal, sendo assim que -todos os homens, guerreando-se entre si por -crenças religiosas, por sisthemas filosoficos, por -principios de política e sciencias, por modas -e gostos, todos se conformavão no comer -das carnes. Terceiro: que realmente era obstinação -o desconhecer como a natureza nos não -aparelhára só para comer e digerir vegetaes. -Quarto: estar-nos ella dando nos proprios animaes, -que uns de outros se sustentão, uma prova -de ser menos escrupulosa do que Pithagoras -e a poesia. Quinto: que ella propria os -multiplica á proporção do que uns a outros -devem tragar. Sexto: que se ella faz com que -cada passada, cada pedra que movemos, cada -gota de agua que engolimos, cada fruto ou -folha que aproveitamos, cada sôpro que inspiramos -ou expiramos, cada movimento emfim -que fazemos, ainda dos mais indispensaveis -para a vida, a destrua a milhões e milhões de -entes conhecidos, e a numero talvez ainda -maior de desconhecidos, não ha porque nos tenha -a grande peccado, o aumentar-mos por -nosso bem a lista com mais algumas unidades. -Setimo: que o adelgaçamento e crescimento de -minhas faculdades intelletuaes que eu esperára<span class="pagenum"><a id="Page_286"></a>[286]</span> -d’aquella mais leve nutrição, não só se não tinha -verificado, mas antes o contrário succedêra, -pôsto que de diversas causas podésse pender -o successo: e por muito tempo me ficou o -costume de, quando via versos fracos e desengraçados, -dizer: Devião estes de ser compostos -por quem não comia senão hervas. Outavo, -ultimo, e não leve motivo: que ainda que pouco -dado ás delicias da gula, o cheiro e presença -de melhores iguarias do que as minhas, -de dia em dia me tentava mais, e quando succedia -achar-me entre gente alegre e em mesa -de festa, as ondas de tentação, que eu forcejava -dissimular o melhor que podia, crescião -e redobravão com os motejos dos circunstantes, -que bem poderião ter sal, mas não que -adubasse as minhas insôssas hervas.</p> - -<p>De todos os varios antecedentes deduzo, que -sem embargo das objeções, autoridades e exemplos, -o uso das carnes se ha de ter por licito, e -por dithirambico o que lá fica no texto: mas -que fóra do caso de necessidade ou clara utilidade, -e alem do ponto em que essa necessidade -ou utilidade pararem, toda a sevicia -contra viventes he immoral, injusta, insensata, -e digna de muito grande castigo.</p> - -<p>E tanto isto assim he, que, porque todo o -carniceiro de officio contrahe na alma e nos -modos alguma couza de cruento e de tigre, -em muitas partes se tem por infame. Em Portugal, -nenhum mechanico honrado e de conta acceitaria<span class="pagenum"><a id="Page_287"></a>[287]</span> -um tal para sogro ou genro, ainda com -grosso cabedal de renda; nem de boca plebea -pode saír mais afrontosa injúria que o nome -de magarefe. Em Inglaterra não os admittem -jurados em causa crime. Na principal ilha das -Canarias encontrárão seus descobridores, que os -naturaes, com viverem á lei de sua rudeza silvestre, -“havião por couza mui torpe esfolar -alguem gado, e n’este mister de magarefes lhes -servião os cativos que tomavão; e quando lhe -estes falecião, buscavão homens dos mais baixos -do povo para este officio, os quaes vivião -apartados da outra gente e não os communicavão -em aquelle mister” (<i>Barr. Dec. 1. L. 1. -C. 12.</i>)—Bem hajão os inglezes, que formão -sociedades para proteger animaes, e abençoado -seja o inglez Deputado Martin, que para -lhes fazer bem, se arrosta com os escarneos dos -praguentos. Bem hajão os allemães, que em -seus campos não perdoão multa municipal aos -que, no levar rezes pelos caminhos, as atravessão -deante de si na albardadura, ou tolhidamente -as apinhoão dentro em carros. E -bem haja a nossa Camara, quando conseguir -desterrar o escandalo do afrontoso trato que -nossos carreiros dão a seus bois, como ja desterrou -a atroz e immoral matança dos porcos -perante os olhos do povo.</p> - -<p>Quero rematar com uma reflexão, que ja -acima podéra ter cabido, mas que por dezejar -da-la por conselho, e pô-la onde melhor se recommendasse, -muito de industria deixei para<span class="pagenum"><a id="Page_288"></a>[288]</span> -o fecho. Vai o dito a pais e educadores, a quem -toca. Nada importa mais, do que affazer cedo -os meninos a uma grande suavidade de costumes: -assim foi creado o bom Montaigne. -Se os eu tivesse, parece-me que tambem assim -os crearia, e bem bons frutos lhes havia de -colher na minha velhice. Primeiro que tudo, -parece-me que me conformaria com Rousseau -em os não alimentar desde o leite senão com -vegetaes, por entender como elle, serem estes -mais accommodados a suas naturezas, e mais -proprios para fisicamente os suavizar e humanar. -Mas não quero agora averiguar isto que -pertence a medicos; outro he o meu alvo. Não -consentíra jamais que presenceassem espetaculos -de atrocidades ou injustiça; e quando a minha -má estrella lhos presentasse, procuraria -afea-los com boas razões, mais de affétos e lagrimas -que de raciocinios. As urbanas corridas -de touros e as aldeanas festas de alanceamento -de pombos, frangos e patos, como couzas antiquissimas -e nacional feição, as respeito; mas -não levára la os meus tenrinhos, que são mui -branda cera para qualquer bom ou máo cunho. -Se de alguem lhes fosse insinuada a correntissima -abusão de nossos provincianos, de que em -casa que devasta ou maltrata os ninhos do -seu beirado, tudo vai para traz e de fôrça se -ha de aguardar por enterramento, calára-me, -porque acho razão a Fontenelle em dizer, que -se na mão tivesse fechadas todas as verdades -do mundo, Deos o defendesse de a abrir.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_289"></a>[289]</span></p> - -<div class="poetry-container"> -<div class="poetry"> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0"><i>Magnànima menzogna, or quando è il vero</i></div> - <div class="verse indent0"><i>Si bello, che si possa a te preporre?</i></div> - </div> -</div> -</div> - -<p>Dar-lhes-hia, da Historia natural poetizada, -tanta luz, quanta bastasse para levarem grande -interesse nos fados de cada individuozinho que -respira: um raio de tal luz póde bastar para -pôr fim a muita dureza que provenha de cegueira. -Conheci e tratei com um parocho de -fóra da terra, que desgostoso de que uma sua -fregueza, rapariga nova, não pozesse reparo em -maltratar animaes, a chamou brandamente, -explicou-lhe como tudo que era nascido devia -ter algum entendimento, capacidade para dores -e prazeres, parentes, amigos e affeições. -Com isto só a fez outra, e tão outra desde essa -hora, que onde depois se lhe fazia de mister -dar morte a uma pomba ou gallinha, ainda -que em seu páteo não forão creadas, ja o coração -se lhe confrangia, tremião-lhe os pulsos, -e chegada á execução, não corria mais -sangue da ferida, que mal acertava, do que -lagrimas de seus olhos.—De mim mesmo me -parece agora, que se escrevi os versos a que -me refiro, e em commenta-los me alargo tanto, -e uma e outra couza de tão boa mente, de tudo -deve ter sido raiz a creação, em tudo excellente -e n’esta parte bem empregada, que -meu pai se esmerou em dar a todos seus filhos.</p> - -<p>Outra couza fizera eu principalmente; era -commetter-lhes o trato e tutela de alguns animaes -caseiros, a quem podessem chamar seus.<span class="pagenum"><a id="Page_290"></a>[290]</span> -N’este exercicio aprenderião a ser observadores, -vigilantes, serviçaes; tomarião com o gôsto -da propriedade o amor do trabalho, havendo-se -ja por algum modo como pais de familias; -costumar-se-hião a acautelar, previnir e -amar; tomarião para toda a vida o geito de -amparar fracos e desvalidos, e de não ver um -qualquer indivíduo, sem logo compor na imaginação -a historia completa do seu viver, do -seu padecer, do seu precizar.</p> - -<p>Da efficacia de tal methodo, e tão simples, -e tão formoso, tenho eu uma muito amavel -prova de minhas portas a dentro. Uma mulher, -toda boa, toda extremosa, tomou unicamente -a peito o vingar-me da natureza; cerca-me de -contínuo, como um anjo, de amor e de luz; -empresta-me olhos para eu ver o mundo e as -obras dos seculos; tira deante dos meus passos -todos os espinhos no caminho da vida; inventa-me -um encantamento novo para cada minuto; -diz-me e faz-me entender como a verdadeira -felicidade se não compoem de grandes -pedaços, mas sim de atomozinhos que de longe -se não podem perceber; repete-me e persuade-me -que nasci para as Musas e para o amor, e -não para a política, nem para os odios, serve-me, -vela-me e defende-me como a filho, ama-me como -a esposo, zela o meu nome como o de irmão; lançou -a sua vida na minha vida, o seu pensamento -no meu pensamento; existe pelo meu -amor, morreria se lhe elle faltasse. Quem lhe -ensinou tão generosa, tão nova benevolencia?<span class="pagenum"><a id="Page_291"></a>[291]</span> -quem lhe deo tantos segredos de fazer feliz? as -suas aves e pombas, a sua amiga, e alguns -livros, unica sociedade da cella, onde desde -seus annos verdes a Providencia ma estava guardando -e aperfeiçoando<a id="FNanchor_17" href="#Footnote_17" class="fnanchor">[17]</a>.</p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<h4 class="nobreak" id="MAIO_NOTA_3"><i><a href="#Page_243">Pag. 243.</a> verso 18 e seguintes</i></h4> - -</div> - -<div class="poetry-container"> -<div class="poetry"> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">O mesmo coração, dezejos, gostos,</div> - <div class="verse indent0">Que tem nossas mortaes no peito occultos,</div> - <div class="verse indent0">Tem as Ninfas tambem &c.</div> - </div> -</div> -</div> - -<p>Por estes versos começa uma torrente caudal -de couzas vãs e doidas ácerca das mulheres,<span class="pagenum"><a id="Page_292"></a>[292]</span> -e relações dos dois sexos, que ora mais, ora menos -turva, se vai alongando até pag. 254. A pezar -de se devolver por leito de quasi proza, e por entre -margens para meu gôsto mal assombradas, bom -seria que por ellas nos podéramos ir detendo a -pescar, e a examinar algumas das couzas mais -graúdas que vão na chêa: serião questões apraziveis -de ociosa filosofia, mas prometti no prologo -despreza-las; perdoar-lhes-hemos, deixa-las ir -seu caminho. Passem a seu salvo as regras de -namorar á antiga; a arte não de amar mas de -enredar e colher, como o são quantas com titulo -de amar se tem escrito; a poligamia, menos -de Mahometano do que de Tupinamba; -o divorcio e ulteriores nupcias dos divorciados -e divorciadas; a botecuda nudez dos sexos -&c. La se avenhão como poderem todas essas -puerilidades com seus inimigos, que se de minha -Musa nascêrão, muito ha que eu e ella as -desherdámos. O meu ponto agora he assentar -boas pazes para sempre com as damas. Todas -minhas Obras, não só esta, <i>Cartas de Echo</i>, -<i>Amor e Melancolia</i>, <i>Noite do Castello</i>, <i>Ciumes -do Bardo</i>, me devem ter perante ellas representado -cavalleiro descortez de desleal poesia. -Tempo he de mudar de cores, abjurar o erro, -e para merecer o perdão, que ellas de puro boas -concedem antes de pedido, romper lanças em -favor de sua fama, não só contra inimigos, -se os podem ter, mas contra mim proprio, pelas -ter aggravado. He uma Nota estreita arena -para tão singular duello: mas embora, que para -outro dia e campo desafiado fica o eu mancebo<span class="pagenum"><a id="Page_293"></a>[293]</span> -desatinado e altivo d’outro tempo por -mim grave, reflexivo e respeitoso; o eu versejador -por mim pensador; o eu academico e -solteiro por mim cazado e recolhido: emfim -por mim conhecedor do terreno do combate o -eu ignorante d’elle, a cuja face ja n’esta hora -arremésso a luva, e lhe digo “Mentiste, e -mercê de Deos e de minha Dama, provar-to-hei.” -Mas pois que he forçado ficar para outro -dia a pendencia, aqui não farei mais do que -um pouco ensaiar-me para ella, campeando -soltamente e esgremindo nos ares.</p> - -<p>Nenhuma couza tem sido mais experimentada -no mundo e mais vezes definida que o amor, nenhuma -ha tão mal e imperfeitamente comprehendida -como o amor. Fallo do amor dos homens, unico -de que os homens podem fallar: o das mulheres -he ainda mais incomprehensivel, e certamente -muito mais espantoso, quando verdadeiro. -O que pretende dar regras de amar, como -alguns outros fizerão antes de mim, e como eu proprio -supponho que pretendi, assemelha-se ao -astronomo, que tendo endoidecido á força de -ter velado as noites a observar os astros, presumisse, -riscando órbitas com o lapis, constrangê-los -a segui-las: as esferas e os affétos saem -do nada ao sôpro de Deos, resplandecem com a -sua luz propria e misteriosa, vão-se ora afastando -ora aproximando de seus centros pelo -caminho que sua natureza lhes ordena, eclipsão-se -na hora prescrita, desappareceráõ quando -Deos fôr servido; sem que em tudo isso haja querer,<span class="pagenum"><a id="Page_294"></a>[294]</span> -escolha, presciencia, ou conhecimento de nossa -parte. Amamos uma mulher, e certa mulher; -porque temos de a amar; porque he necessidade -sua e nossa que a amemos; amamo-la pelo -modo que a natureza quer e não outro, não he -uma acção mas uma paixão: se a premião o premio -he gratuito, se a punem he injusto o castigo, -porque não recáem sôbre um effeito de eleição. -Ama-se uma mulher, repito, sem o procurar, -sem o cuidar, sem arbitrio, a despeito da -razão, da vontade e dos votos, como á rosa, -como á lua, como á harmonia, como aos sabores -dos frutos deliciosos. Para ellas se vai -como os rios dos montes para os valles, como -a chamma para o ceo, como a pedra do ar para -a terra, como o menino para os peitos da -ama, como o coração para o prazer. N’estas -occasioẽs todo em nós he extraordinario, e se -o posso dizer, sobre-natural: sentimo-nos fôrças -que não possuiamos para querer, seguir, -abraçar e reter: o pensamento se torna infinito, -porque o objéto que procurâmos, como uma -metade nossa que nos foge, nos apparece infinito. -Por dentro d’aquellas graças fisicas, de -que os sentidos se namorão, imagina-se um -mundo estranho e illimitado de perfeições, de -que se namora a alma: ahi se dezeja tudo -quanto he capaz de embellezar a vida; o dezejo -he logo esperança, a esperança certeza, -a certeza delirio, e novamente dezejos; e quem -porá limites a dezejos, a delirios, a esperanças? -O abrangimento do infinito da Divindade -em um corpo humano não he misterio que -o amor não saiba muito bem entender. He<span class="pagenum"><a id="Page_295"></a>[295]</span> -aqui o lugar de confessar que a este sobre-humano -conceito, que da mulher amada se faz, -mil vezes corresponde plenissima realidade.</p> - -<p>Por mais que a natureza se aprimore em modelar, -tornear, corar, amaciar, brunir, bafejar -e endeozar o fisico da mulher, as suas -graças, o seu merito, o seu ser de mulher não -são esses dotes, sujeitos ao tempo e dependentes -de um ar, assim como nas flores não são -mel as pétalas vistosas e coradas, o cheiro -suave e attrátivo, que o sol e o vento attenuão -e desbaratão. Diz-se que as feiticeiras tem o -seu encantamento em um novêlo; o novêlo do -feitiço das mulheres está no seu coração e no -seu espirito, que n’ellas he tambem coração. -O coração da mulher não mora descançadamente -reclinado no peito como o nosso, por -toda sua alma esvoaça perdido de amor, gemendo -de amor, como uma ave mãi e feliz por -todos os ramos de um bosque de primavera: -sente-se-lhe o frémito das azas, ouve-se-lhe a -harmonia em tudo quanto diz, em tudo quanto -cala, no que faz como no que deixa de fazer, -no que pensa, recorda ou espera, nas lagrimas -e no riso, no enfado e no contentamento, -na vigilia e no sono. O coração lhe está -á porta interior de cada sentido recebendo as -impressões; para elle e por elle veẽm, para elle -e por elle ouvem, para elle e por elle presencêão -a natureza, communicão com ella e -comnosco. Um sôpro divino formou a alma do -homem, a da mulher de um beijo delicioso deveo -ser formada.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_296"></a>[296]</span></p> - -<p>Este afféto, esta doçura, esta, quero eu dizê-lo, -feminidade da mulher são de tão alta natureza, -tão estremes de liga, tão independentes -do fim mesmo para que a providencia a destinou, -que me parece ainda despojada de sentidos, -poderia amar vehementemente como os -espiritos angelicos. Que será quando os sentidos -confluem, para atear com sua materia inflammavel -este fogo celeste? ¿quando a Vestal, -afrontando todo o futuro, deixa apagar no altar -da Deoza de sua infancia a luz virginal que -velou por tantos dias e noites? ¿quando na turbação -insólita d’estas trevas desconhecidas, se -entregou toda e com todo seu futuro ao ente -que a implorou como Divindade, e que ella -sabe e sente em si tornará feliz por cima de -todas as felicidades? ¿quando uma vez encetou -prazeres, cujo maior encanto para ella se -da-los recebendo-os, e não os receber sem ao -mesmo tempo consummar mais de um doloroso -sacrificio? Oh então he o amar do amar! -o afféto, que ja em profundeza não podia crescer, -cresce em superficie, e trasborda todo e -para toda a parte, como um perfume abundante; -então he que sem voz pronunciou o <i>sempre</i>; -que sentio apertar-se-lhe nas entranhas a indissolubilidade -do consorcio, porque o amor de -fantasia se fez realidade, de dezejo destino, de -suspiro occulto gloria; a tudo tem ja direito -porque ja deo tudo, não póde dezejar ser de -outrem porque a outrem não teria tanto que -dar. E he esta a grande differença da mulher -ao homem, e do amor ao amor: o d’ella tem<span class="pagenum"><a id="Page_297"></a>[297]</span> -um abono e côr de eternidade, o nosso um elemento -e uma côr de tempo. Podéra ser emblema -do nosso, uma náo alterosa e possante, -surta em uma bahia aprazivel, mercadejando -e folgando com a terra, empavezando ufania -de flammulas e galhardetes, aferrada ao fundo -do mar com uma unha de ferro, mas podendo -de uma hora para outra arranca-la ou picar a -amarra, desfraldar as velas que sempre estão -prestes, e vogar atravez de todas as ondas, -por cima de todos os abismos, a mercadejar -e folgar no extremo opposto do mundo: emquanto -a feminil affeição, como barquinha contente -e desambiciosa, feita para os ocios de -sua enseada, coroada a pôpa ora de flores abertas -ora de esperançosos verdes, sem deitar nenhuma -ancora, não foge nunca d’entre aquellas -margens conhecidas; por entre ellas vai -e vem avoejando de contínuo, levando e trazendo -sempre commodos e alegrias, sem curar -que de sua barra em fóra haja outros mares, -n’esses mares outras bahias; delicia-se na -sua, onde tudo a festeja e saúda por seu nome, -onde se entende com todos os ventos, todos -os refugios conhece para o dia da tempestade. -O amor do homem, com os sentidos satisfeitos -muita vez se satisfaz e adormece; como -o frizão dos Jogos Olímpicos, que chegado -apoz violenta carreira a tocar na meta, surdo -até ás vozes da gloria que esporeou, se -estirava para repouzar ou para morrer. O amor -da mulher, satisfeitos os sentidos, se restaura, -resurge mais puro e extremoso, mais vivaz e<span class="pagenum"><a id="Page_298"></a>[298]</span> -promettedor; semelhante ás plantas, quando -desfallecidas nos afrontamentos do verão se dessedentão -com a chuva de uma nuvem que passsou, -e viçosas reverdecem para embalsamar os -ares de seu valle. Uma de muitas razões que -para esta differença podem concorrer, he que -n’essa hora adquirio a mulher direitos, o homem -contrahio obrigações; as obrigações pezão, -os direitos agradão, as obrigações limitão -e apoucão, os direitos accrescentão e engrandecem. -Trocarão-se os papeis na scena, o seguidor -esquiva-se, a perseguida segue. O amor -do homem he só amor, o amor da mulher he -amor e amizade: elle, porque pertence ao mundo, -á gloria e a tantas outras paixões, só tem -meio coração, meia vontade, meio tempo para -dar á sua companheira; esta, separada do -mundo pelo mesmo mundo e pela natureza, -por isso mesmo mais raramente accessivel a -outras paixões, dá ao seu amigo todo o coração, -toda a vontade e toda a vida; dar-lhe-hia -se podesse mais vida, e mais coração, mas -não mais vontade: com elle, por elle, e para -elle existe, na propria ausencia o tem presente; -e quando cessa de abraça-lo, he para se gozar -de o ter abraçado, e cuidar como logo o -abraçará de novo, e volverá a ser d’elle amado, -fazendo-o feliz.</p> - -<p>Tal he o theor da natureza: tem excéções -e numerosas. Corações ha de homens, que sem -ser effeminados, não desdirião n’um peito feminino; -e corações de mulheres, que talvez<span class="pagenum"><a id="Page_299"></a>[299]</span> -bem nascidos e bem fadados, mas torcidos depois -pela educação, quebrados pela sociedade, -corrutos pelos exemplos, merecem as satiras, -demaziadamente geraes, com que os autores de -sua degeneração todos os dias lhe poem ferrete: -mas essas, mais infelizes do que culpadas, -os desgraçados que as pintem e condenem, eu -pinto a mulher amante, a mulher perfeita, a -mulher mulher, a mulher como a concebi, como -a conheço, como a adoro. Foi esta a que -Deos fez e temperou de poesia e harmonia lá -na origem do mundo, quando vio que não era -bom que o homem vivesse só. Esta he a que -depois de nos dar a vida, no-la suaviza e apura; -no-la multiplica em entes novos; no-la -adoça nos momentos derradeiros; nos ama ainda, -quando ja não somos; dá seus beijos amorosos -a uma pedra, porque do nosso nome lhe -conserva uma letra; e consummando o seu destino -de amar, felicitar, sacrificar-se, ajoelhada -na terra, nos vizita no mundo das sombras; -estreitando o seu commercio com os ceos que -a esperão, para nós só os invoca, e depois de -no-los ter dado em amostra no tempo á fôrça de -amor, á fôrça de amor no-los grangêa na eternidade.</p> - -<p>Custa a crer como um ente, que he metade -da nossa especie, que das duas he a -mais amavel metade, a mais carinhosa, em -tantas couzas nosso igual para nos attraír, mas -com tantas differenças de nós para se nos unir -ainda mais, que se tem defeitos de nós os recebe,<span class="pagenum"><a id="Page_300"></a>[300]</span> -e nos dá em troca, sem o cuidar, tantas -das virtudes que possuimos, custa, digo, a crer -como um talento, a quem sua propria fraqueza -devêra tornar inviolavel, pôde ver-se em -todos os tempos, e provavelmente continuará -a ser até ao fim dos seculos, alvo e emprego -das críticas mais desabridas, e mais grosseiras -calúnias. Divindade extraordinaria, a quem -seus proprios ministros e sacrificadores insultão -adorando-a, e que de cima de seu altar, fragil -mas eterno, inalteravel em sua mansidão, -derrama sôbre bons e máos a felicidade! Que -a filosofia as injuriasse não espantára. La Bruyere -foi cruel para com ellas, Larochefoucault -furioso, nenhum d’elles justo, nem sequer francez: -a filosofia não anda sem os filosofos, e todos sabem -como os dados a esse triste officio, são pelo demais -almas seccas e incapazes de avaliar branduras, -entendimentos sem olhos de imaginação, -unicos proprios para julgar da verdadeira belleza; -homens emfim eremiticos, rusticos e -ignorantes no meio da sociedade; e para remate -de suspeição, ja alongados pelo inverno -da vida: da-se á filosofia o que as mulheres -ja não querem.</p> - -<p>A poesia não tem sido menos descomedida: -a poesia, que d’ellas e para ellas nasceo, -cujas Divindades forão com razão pelos -antigos fabuladas em fórma feminil, como -as Graças, como os Genios de tudo quanto -ha amavel na natureza, a poesia, a seu máo -grado, lhes tem sido rebelde todas quantas vezes<span class="pagenum"><a id="Page_301"></a>[301]</span> -os poetas, por de sobejo amantes e zelosos, -precizárão desabafar desgraças verdadeiras ou -fantásticas: a lira acostumada a lhes entoar seraficamente -não louvores senão hinos, resoou -execrações, ás quaes respondêrão numerosos -echos; porque onde o numero dos ingratos e -indignos era grande, não podia o dos maltratados -e queixosos ser pequeno: e d’ahi nascêrão -essas civis guerras da literatura a favor e -contra o sexo, guerras batalhadas nas salas e -saráos, nos passeios em romagens, nas merendas -das comadres e nas academias, desde o -Japão até Portugal, desde os serões da arca -diluviana até os nossos dias, em que o amor -cedeo á política, e as questões das mulheres -ás questões dos ministerios: <i>Factus est repente -de cœlo sonus, tamquam advenientis spiritus vehementer</i>.... -Ahi vinha ja querendo-se intrometter -o meu demonio meridiano: ápage!</p> - -<p>Para as grandes pelejas de que fallava, se -despejárão todos os arsenaes da mística theologia, -da methafísica, da historia sagrada e -profana, das fabulas e anecdotas, da fisiologia -e novellas. Ficou largamente juncado o campo -de cadaveres em folio, em quarto, em outavo, -em doze, em dezeseis, em trinta e dois, em -sessenta e quatro; de pergaminho, de marroquim, -de seda, de taboa, de papelão, de carneira, -de papel: defuntos quasi todos sem -amenta, e cujos nomes, se os houvesse de compilar, -encherião maior livro do que este. Depois -do derramamento de tantos rios de tinta, ainda<span class="pagenum"><a id="Page_302"></a>[302]</span> -pende a mesma questão; ainda até ao fim -do mundo se tem de trazer para ella couzas -que pareção novas; e as cinzas de Lucrecia, -Dido, Phryne, Sapho, Aspasia, Arria, Cornelia, -Osmia, Heloiza; Christina, Catharina, -Maria Thereza; as cinzas das que habitárão -cazaes, harens, palacios, mosteiros; as cinzas de -Ninivitas, Gomorritas, Babilonicas, Espartanas, -Atticas, Romanas, Africanas, Botecudas, -Amazonas bellicosas, Indicas Bailladeiras, -Viuvas Indostanicas, continuárão a ser revolvidas, -pizadas e adoradas por modos sempre -differentes, e quasi sempre cegamente, até á -consummação dos seculos. A mulher fisica principia -a ser conhecida, a mulher intellétual -sê-lo-ha, a mulher moral he o infinito.</p> - -<p>A mocidade, quadra da vida em que reinão -os mais encontrados ventos, em obras a maior -vassalla e tributária do sexo, he, fallando, -escrevendo, e talvez pensando, a sua maior -detrátora. Uma conversação de mancebos, embora -amantes, não se detem senão em rebaixar -o merito das mulheres: nascidos os disséreis -das pedras de Deucalião e criados ás tetas -das lobas. Qual pode ser a causa d’esta -mais que montezinha ferocidade? Será inveja á -superioridade modesta? será despeito de vencidos? -não; essas vitorias, e ainda essas superioridades -em virtudes, que não são as distintivas -do nosso sexo, facilmente se perdoão. -He a causa o mesmo natural instinto, que faz -que os soldados em tempo de guerra, seroando<span class="pagenum"><a id="Page_303"></a>[303]</span> -entre as armas á fogueira ociosa do seu -rancho, encareção as derrotas do inimigo, e -lhe assaquem fraquezas que não tem, para a -si proprios accrescentarem animos e determinação -para as futuras pelejas.</p> - -<p>Facil he carecer das loucuras da idade que -ja não temos, ou que ainda não temos; blazona-se -d’isso, mas não he virtude: carecer porem -dos vicios proprios dos nossos annos seria -virtude, mas tão rara he, que o despossui-la -deve merecer vénia dos sizudos. Era eu em toda -a fôrça de minha adolescencia, quando entre -coetâneos e a seu contento, cantava em -meus versos destinados os fracos e imperfeições -de algumas mulheres, como fracos e imperfeições -de todas ou da maior parte. Da falsidade -que n’isso havia me corro, mas muito -mais do pouco delicado tom do meu cantar, -porque se me figura agora delito ainda muito -mais grave, do que attribuir-lhes defeitos, o -pintar-lhos inamavelmente: a graça he o seu -primeiro mérito, injuria-las graciosamente ainda -não he de todo injuria-las. De muita nuvem -se desaffronta, e de mui grande carga respira -um coração confessando suas culpas, mormente -quando pelas confessar se torna a entrar -absolto e regenerado na estima e benevolencia -das dominadoras do mundo: quasi se folga, -como me está succedendo, de ter tido a culpa, -para merecer a vénia e saborear a reconciliação.</p> - -<p>Transfuga dos arraiaes dos levantados, ás trincheiras<span class="pagenum"><a id="Page_304"></a>[304]</span> -d’ellas me recolho, não só com as armas -com que as guerriei, para as defender, -mas com uma bandeira para chamamento e -reunião de outros. Ressuscitaria, se podesse, -para o meu novo campo todos os bem nascidos -espiritos das idades cavalleiras e cortezes, para -procurarmos salvar da ultima ruina o feminil -imperio, que de dia para dia vai sendo -entrado, talado e engolido da Política; fero -monstro em que tão mal assenta feminino! -E se o conseguissemos, se os moços que -deixárão os affétos pelos debates, as sociedades -pelos <i>clubs</i>, os versos e cartas apaixonadas -pelos jornaes frios e praguentos, quizessem volver -a seu natural officio de amar, de agradar -e divertir-se, ¡como se não amaciaria esta bruteza -quasi, cínica de nosso tempo illuminado, -em que se não sabe ler! A propria Liberdade -lucraria, porque os seus nervos e verdadeiros -espiritos vitaes não são outros senão as virtudes -e as bondades: ¿e quem como as mulheres, -nos poderia ainda attrair da praça onde -se briga, odêa e persegue, para a casa onde -se quer bem e se folga, para a cosa onde até -á ultima velhice nos educâmos, para a casa -onde de bondades e virtudes nos dão ellas a -todos os momentos exemplos vivos e formosissimos? -<i>Tellus, et domus, et placens uxor!</i> -Oh se eu podesse mostrar este meu pensamento, -como me está florejando na alma! -dizer com palavras a mulher como a sei no -meu coração!... mas feminina he a mão com que -escrevo, ¿como dezenharia ella o seu retrato?</p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_305"></a>[305]</span></p> - -<h4 class="nobreak" id="MAIO_NOTA_4"><i><a href="#Page_261">Pag. 261.</a></i><br /> -<span class="smaller">FIM DA FESTA DE MAIO.</span></h4> - -</div> - -<p>Se o fim de qualquer obra he a sua coroa, -custará a achar obra tão mal coroada como -esta <i>Primavera</i>. Dos quatro Poemas he a <i>Festa -de Maio</i> o ínfimo, não contribuindo pouco -para isso o seu estirado comprimento: e da -<i>Festa de Maio</i> a ínfima parte he sem nenhuma -dúvida a segunda e última. Boa e mui -fertil era a idea primitiva, na qual, mas só na -qual, mui casualmente me encontrára com o -allemão Gerstenberg no dithirambo que traz -titulo <i>Chipre</i>. Desenvolveo elle a sua, pôsto -que em prosa, como poeta mui valente: derramei -eu, e enfraqueci a minha em pobrissimos -versos (era tempo que na maior parte dos dias -compunha trezentos e mais) que bem podérão, -sem detrimento de pensamentos, ser reduzidos ao -terço do seu numero. Ja poderei parecer importuno -com tanto repetir confissão das minhas -faltas; mas antes isso, do que se diga que eu -as córo ou tapo, ou com tantos annos ainda -não caí em as conhecer cabalmente. Quem a -este meu cortar pelas proprias roupas chamasse -affétação, muito se enganára comigo: censuro-me, -não para atalhar alhêas censuras; -menos para provocar defezas aos que sempre -folgão, quer em bem quer em mal, de encontrar -as opiniões dos que escrevem; mas censuro-me -e em todas minhas couzas marco seu<span class="pagenum"><a id="Page_306"></a>[306]</span> -preço, para que os agora principiantes lá ao -deante se não queixem de mim, como eu podéra -agora queixar-me de outros, com cujos -livros me criei. Consciencia e Verdade, ainda -em mesquinhas letras, devem de ser escrupulosamente -servidas: tem uma e outra alguma -couza de tão divinas, que por mais dolorosos -sacrificios que de nós lhes façamos, no-los pagão -com íntima satisfação. Certo he que fazendo -o que eu faço, se corre perigo de vir a -um grande dissabor, como he, depois de sinceramente -confessados os defeitos, saírem os nescios -na arte de criticar, e que nunca uma só -linha escrevêrão, aproveitarem-se cobardemente -de taes revelações, vozea-las como descobrimentos -seus, e vingando-se de sua propria -esterilidade, triunfar miseravelmente dos descuidos, -sem nenhuma menção das boas partes. -Ja isso por mim passou depois que dissertei -ácerca da invenção da <i>Noite do Castello</i>. Onde -tal se escreveo, quem o escreveo, e como -o escreveo não o direi, que não quero em livros -meus andar carreando dementes para a -posteridade, se he que meus livros tem de la -chegar, como cá chegárão alguns bem ruins -dos tempos atraz. E a final, que valem semelhantes -pregoẽs e taes pregoeiros, comparados -com as suas duas maiores inimigas que são a -verdade e a consciencia? podéra accrescentar a -vergonha. Em meu conceito nada. Por tanto -sigão elles por seu caminho, onde se afogão -em lodo, e todos lhes cospem na face; e eu, -que nem sequer os tenho em assaz de conta para<span class="pagenum"><a id="Page_307"></a>[307]</span> -os odiar, continue o dar documentos do unico -merito de que me prézo, que he a candura. -Para dar culto á Verdade e á Consciencia, não -sacrificarei alhêas famas, que me não pertencem, -mas pela minha rasgarei afoito: far-lhes-hei -de meu sujeito intellétual, o que de seus corpos -diz Fernão Mendes que fazião la em Tinagoogoo -certos penitentes, que em procissões -públicas se hião espedaçando ante os carros -triunfaes dos seus idolos, e por fim se arremessavão -por deante das rodas, para serem talhados -e esmagados: <i>a que toda a gente</i>, como -refere o bom perigrino, <i>com uma grande grita -dezia: pachiloo a furão; que quer dizer: -a minha alma com a tua. E decendo logo de -cima do carro um sacerdote ... se chegava -áquelles bemaventurados ou malaventurados ... -e ajuntando os pedaços e as cabeças ... os mostravão -ao povo de cima do mais alto sobrado -do carro onde hia o idolo, dezendo n’um tom -muito sentido:</i> “<i>Rogai peccadores todos a Deos, -que vos faça dignos de serdes santos como este -que agora morreo em sacrificio de cheiro suave.</i>”</p> - -<p class="center">FIM.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_308"></a>[308]</span></p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_309"></a>[309]</span></p> - -<h2 class="nobreak" id="MAIS_PRIMAVERA">MAIS PRIMAVERA.</h2> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_310"></a>[310]</span></p> - -</div> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_311"></a>[311]</span></p> - -<h3 class="nobreak" id="PRIMAVERA_ADVERTENCIA">ADVERTENCIA.</h3> - -</div> - -<p>Os trez seguintes Artigos vem, <i>mutatis mutandis</i>, -trasladados da <i>Guarda Avançada</i>, Jornal -campeão da <span class="smcap">Carta</span> e da <span class="smcap">Rainha</span>, como todos -os d’esse tempo, sem excétuar um unico; Jornal -exagerado, e muitas vezes injusto sem querer, como -o serão sempre os redigidos por almas novas e -ardentes, sinceras e poeticas, inexpertas e temerarias, -que presumem que uma revolução -póde realizar os filantrópicos sonhos de um solitario; -Jornal emfim de que eu fui collaborador, -quando vivia para a política, ainda que -não da política, e do qual perante minha consciencia -me recordo com pezar mas sem peijo, -porque talvez fez males e grandes males, não -aspirando senão ao bem. Tanto he verdade, -que só a moderação he capaz de dar frutos abençoados! -Relêa-se o meu Prologo do <i>Tributo -Portuguez</i>. Aqui não quero accrescentar mais -nada sobre materias, sim importantissimas, -mas que eu ja dou todas por um malmequerzinho -dos campos. — Sáem pois os Artigos substancialmente -os mesmos. Pena será, se passado -agora tanto tempo depois de escritos, os -que por la estão espectadores das couzas públicas -os acharem muito mais applicaveis aos presentes -dias; e ainda maior lástima, se para o -deante não vierem a perder boa parte de sua -verdade.</p> - -<p>Remato com o louvor, que no Prologo deixei<span class="pagenum"><a id="Page_312"></a>[312]</span> -promettido, de meu mestre e amigo o -Snr. Antonio Ribeiro dos Santos: fragmento -copiado do <i>Num. 2</i> do <i>Jornal dos Amigos das -Letras</i>. Se a alguem parecer que não cáe este -sob o titulo de <i>Primavera</i>, paciencia; recebão-no -como Nota, agazalhem-no como filho de -gratidão. Para mim recende elle muita primavera -de puericia, e de um jardim das Musas.</p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_313"></a>[313]</span></p> - -<h3 class="nobreak" id="MARCO">MARÇO<br /> -(PRINCÍPIO DA PRIMAVERA)</h3> - -</div> - -<p>Eis aqui os primeiros dias da graciosa estação. -Das flores lhe chamárão os poetas; melhor -podérão chamar-lhe flor do anno. A terra, -como viuva ainda verde que se enfeita para -novas bodas, a terra pelo sol repassada de -amorosa quentura, vendo-o volver a afaga-la, -depois de lhe haver por tanto tempo fugido, -arrêa-se de todas suas galas, esperançosa sorrí -por entre a sua grinalda florída, embebe-se -em perfumes, acerca-se de musicas voluptuosas, -e suspira brandamente dentro nos arvoredos recem -vestidos, nos valles alcatifados, pelas margens -dos rios outra vez serenos. Com razão foi -a Primavera consagrada dos antigos ás Musas -e Graças: com razão se escolhião as suas vésperas -para o Pontifice Maximo accender o novo -fogo, que devia durar todo o anno: com -razão os pais de nossa lingua derão a esta parte -do anno um nome feminino, e os pintores -apparencias de formosa moça; emquanto Estio, -Outono e Inverno pela aspereza, pela fôrça, -pela gravidade, pertencião a outro sexo. -Cada fonte se aliza em um espelho; cada pedra -se veste em assento aveludado; cada haste -nua se desaperta n’um ramalhete: tornão-se -os bosques outras tantas republicas populosas,<span class="pagenum"><a id="Page_314"></a>[314]</span> -cujos cidadãos, livres como as virações, -voão, cantão, brincão, acaricião-se, desposão-se, -educão a sua prole bafejada do ceo, -e parecem não respirar senão o prazer da independencia, -da ternura e da melodia. A natureza -revoca á vida innumeraveis especies de -animaes de que o Inverno só continha o germen; -ás outras infunde, como aos passaros, um -contentamento, uma ligeireza, uma attráção, -que o Inverno lhes havia roubado ou amortecido. -Do ceo chove fecundidade sôbre tudo que -he vivo; e tudo o que he vivo sáe trajado de -festa, e por toda a parte encontra mesa que -Deos lhe assoalha, carregada de sua abundancia -com luxo, magnificencia e formusura.</p> - -<p>A humana especie não podia em tão geral -favor ser esquecida, antes foi o seu quinhão -de todos o mais largo. O amor, que para nós -não tem uma estação exclusiva, n’esta entretanto -se nos desenvolve com recrescida atividade: -he porque o proprio ar, empregnado de -elementos vitaes, nos está coando aos peitos -uma extraordinaria energia: he porque tudo -em de redor exemplos são que nos cativão: he -porque o alvoroço e festa do universo convidão -o coração a gozar: he porque ao florir da rosa -dos jardins, muita e muita rosa esmorecida -se reanima nas faces da belleza: he porque a -voz da mulher então sáe, não sei como, ainda -mais doce; e tanto ellas mesmas sem o saber -o sentem, que em toda a parte em que as horas -e circunstancias do seu canto não andão<span class="pagenum"><a id="Page_315"></a>[315]</span> -assentadas nas tarifas da moda, insensivelmente -se achão a cantar, e este novo attrátivo parece -n’ellas uma necessidade, como he nas -aves da primavera. Dir-se-hia que a natureza -nos manda as flores nos dias em que o amor -nos instiga a offerecê-las.</p> - -<p>Mas os feitiços da Primavera não se limitão -nos da recreação e amor. Um medico vos dirá -que he ella a estação da saude; um sabio a -do vigor mental; um navegante a do princípio -de confiança nos seus mares: o artífice a -saúda como a que abre a porta a longos dias; -o pastor como a mãi da abundancia; o agrícola -vê as esperanças do anno desparzidas por -suas terras, por suas vinhas, por seus pomares. -Ah! só os homens das cidades, tristemente -condenados á fadiga e ao luxo, quasi não -encontrão a primavera no seu anno! Para esses -reduz-se a mais algumas horas de luz, e a -uma pouca mais serenidade em um ceo sem -horizontes. Se ao menos se podesse esta serenidade -reflétir nas nossas almas!... mas os redemoinhos -das novidades, os raios das intrigas -ambiciosas, o frio do desalento e carregadas -nuvens ao longe esterilizão tudo, e se uma ou -outra flor de esperança nos desabrocha a medo, -lá está logo a reflexão, filha do conhecimento -dos homens, que a faz com um sôpro desapparecer. -O anno dos nossos destinos teve um -inverno bem longo e rigoroso: n’elle sulcámos -a terra para semear liberdade e ventura, adubámo-la -com o nosso sangue e corpos de nossos<span class="pagenum"><a id="Page_316"></a>[316]</span> -irmãos, regámo-la com o nosso suor e lágrimas; -e agora que nós e nossos filhos esperavamos -ao menos a florescencia que nos augurasse -frutos para o futuro, a Deos approuve -de outro modo, e uma torrente de iniquidades, -que não quer parar, continúa a assolar a -terra de nossos avós.</p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_317"></a>[317]</span></p> - -<h3 class="nobreak" id="ABRIL">ABRIL</h3> - -</div> - -<p>Este mez, assim chamado por abrir o seio -da terra á fecundidade; consagrado desde a infancia -de Roma á Deoza da formosura, á Mãi -das Graças, Amores, e Jogos, he o primeiro -que ouza, por debaixo ainda das últimas nuvens -chuvosas do inverno, sair e folgar com -seu manto verde, e bordado de flores. O dia -da sua entrada era para os nossos antepassados -uma festa popular, menos estrepitosa que -o Carnaval, de que parecia imitação, mas -tambem mais innocente e serena. Ignoro se -esse costume o herdárão elles de nações mais -antigas, com quanto dos Romanos o não houvessem, -de quem tantos outros lhes vierão. -Tão pouco me recordo de haver lido alguma -origem historica aos brinquedos rituaes do primeiro -de Abril; mas sabido he que elles existírão -em nossa terra, e inda hoje se lhes conservão -os restos, mormente pelas Provincias. -O dinheiro pregado nas ruas, as cartas, e prezentes -de lôgro, a pedra que chamavão das -agulhas, a fôrca de Judas, e outras quejandas -bagatelas para rir, estão entretendo n’esta -hora bastantes dos nossos aldeões do norte.</p> - -<p>As lembranças velhas tem para mim muito -grande saudade, e doçura; doe-me o coração -quando vejo ir-se perdendo estas seculares tradições -que a ninguem fazião mal, ainda que<span class="pagenum"><a id="Page_318"></a>[318]</span> -nascidas em berço de superstição, e que de bom -tinhão o transportar-nos a tempos sabidos, e -remotos, ou a tempos mais remotos ainda, e -ignorados. E que he o que as apaga, e fica -em seu lugar? odios, pobreza, e desgraças. -Oh! aonde estará um poeta amigo dos serões -e da innocencia, que se apresse em nos escrever -os Fastos do nosso bom Portugal? No meio -da confusão desconsolada do presente, nós beijariamos -essa obra como santa reliquia em terra -de infieis: veriamos um iris vão mas brilhante, -entre nuvens de tormenta. Para excitar -algum bom engenho a no-lo dar, he que -eu coméço, e continuarei sempre a recordar -nos seus dias proprios as nossas antiguãlhas: -o que farei com muita avidez, porque -d’aqui a alguns annos, o investiga-las será ja -tarde. Assim os pintores Italianos se deleitão -copiando os restos amortecidos das -pinturas a fresco que sobre-vivem ao grande -Imperio, e os antiquarios trasladão avidamente -os enrolados livros das cidades soterradas, -antes que de todo se desfação em pó.</p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_319"></a>[319]</span></p> - -<h3 class="nobreak" id="MAIO">MAIO.</h3> - -</div> - -<p>He a apparição d’este mez uma festa da natureza, -em que sempre os homens se alegrárão: -quizeramos poder tributar-lhe algumas flores -pelas tantas que nos elle concede. Não teçamos -o seu encomio d’aquillo que sendo sensivel -a todos não carece de ser descrito. Zéfiros -e rosas, rolas e rouxinoes, abelhas e -borboletas, a terra toda verde, o ceo todo azul, -as noites começando a fugir como envergonhadas -de esconder as alegrias da natureza, -objétos são que ainda que desde a origem do -mundo se apresentem sempre novos, já se tornárão -lugares communs nas descrições da poesia. -Voltemo-nos para as recordações; embalemos -e adormeçamos com ellas por um pouco -o espirito martirisado dos absurdos e crueldades -d’estes máos tempos, em que ja se não crião -fabulas risonhas e innocentes, coloridas pela -imaginação, animadas pelo amor.</p> - -<p>Forão os homens antigos os que idolatras da -concordia, para melhor a insinuarem á terra, -collocárão nos astros a sua imagem brilhante, -e ao signo de Maio chamarão o signo dos Gémeos. -Elles forão os que sensiveis aos encantos -das Artes, consagrarão este mez a um Deos, -que vivificando a natureza pela luz e calor, -presidia com a Lira na mão aos prestigiosos -artificios que a embellezão. Almas petrificadas<span class="pagenum"><a id="Page_320"></a>[320]</span> -ha ahi, para quem estas saudades do mundo -antigo são frivolas, comparadas com um artigo -de gazeta; para nós he delicioso andar mergulhando -pelo oceano dos seculos, e não voltar -a assentar-nos na nossa Ilhota escabrosa e esteril, -senão carregados dos coraes, das pérolas, -das riquezas formosissimas, que se cá não -produzem. O fundador de Roma dedicou aos -mancebos (<i>Juvenes</i>) o mez de Junho; era essa -a idade que lhe fazia ganhar vitorias, mas ja -primeiro havia consagrado o Maio aos velhos -(<i>Majores</i>), porque feroz como era, Romulo experimentava -o afféto que nos attráe para com -o antigo. Passemos por alto Festas misteriosas -da Deoza Bona, celebradas pelas Romanas no -primeiro de Maio, em todo o segredo dos Penates -e sem testemunha de varão; visitas das -Vestaes ao Pontifice Maximo e principaes Magistrados -da Republica; contemplemos a expiação -dos Lémures, pois que usos nossos me -parecem ter d’ahi recebido origem.</p> - -<p>Á meia noite levantava-se o pai de familias, -hia-se descalço, calado, e chêo de terror -santo, á fonte, dando por todo o caminho amiudados -estalos com os dedos para afugentar -os genios máos. Lavava trez vezes as mãos, e -tornando-se para casa, vinha atirando uma a -uma, por cima da cabeça e para traz de si, favas -negras, de que trazia chêa a boca, e articulando -taes palavras—<i>com estas favas me resgato -a mim e aos meus</i>:—o que por nove vezes -repetia, sem olhar para traz, para não espantar<span class="pagenum"><a id="Page_321"></a>[321]</span> -o espétro que vinha apanhando as favas -negras. Tomava agua por uma ou duas vezes, -batia n’um vaso de bronze, e para conjurar -a sombra a lhe largar a casa, por nove -vezes repetia—<i>Sahi, ó manes paternos</i>.—Eis -provavelmente d’onde provierão estes sustos vagos -que ainda se dão a sentir aos homens rusticos -no princípio de Maio; este uso de se repartirem -e comerem castanhas seccas para evitar -que o Maio se apodere de nós. A imaginação -do bom povo perdeo de vista essas larvas, -mas o medo que ellas produzírão lhe ficou: -he uma especie de moeda, que safada como está -de passar de mãos em mãos, ainda conserva -a sua valia.</p> - -<p>Outros costumes de Maio tem o nosso Portugal, -a que folgáramos que alguem escavasse -e descobrisse a raiz, sendo certo que na historia -a devem ter. O Maio pequenino, que seguido -de todas as crianças do bairro, corre enfeitado -de flores, as ruas da cidade, ao som -de um cantar antigo e uniforme; aquellas mimosas -Maias tão arraiadas e donosas, que á -orla dos caminhos se encontrão comprimentando -os passageiros; aquell’outro estilo, ja talvez -hoje passado, de se deitarem n’um mesmo -leito um casal de creanças innocentes, para se -lhes cantar em roda um como epithalamio, -ou trova de suas bodas; os descantes amorosos -dados com a viola n’esta occasião pelos aldeões -ás suas escolhidas; não provirá tudo isto de alguma -ja perdida lembrança de cultos da Deoza<span class="pagenum"><a id="Page_322"></a>[322]</span> -Maia? E a usança de ornar com flores Maias -as portas e interior das casas, não será reflexo -distante dos festejos Romanos á Deoza Bona?</p> - -<p>A religião, que para si tomou ornato de tantas -joias ao Paganismo, não se desdenhou tambem -de perfilhar este mez. Em muitas freguezias, -pelas nossas provincias do norte, o -bom Parocho vai benzer no princípio de Maio -a bandeja de rosas que entre os devotos se distribuem -e se commungão, porque esta flor abençoada -traz felicidade.—Vem depois aquellas -tão esperançosas, tão cantadas e tão sabidas -Ladainhas de Maio.—Hoje os camponezes de -França vão plantar o seu Maio á porta das -pessoas honradas da sua freguezia: os Inglezes -renovão de certo modo as antigas <i>Vigilias de -Venus</i>: os Gregos, como se os seus poetas d’outro -tempo os inspirassem ainda, e a era das -Elegias tornasse a reviver, vão descantar amores -e pendurar grinaldas aos umbraes das suas -inclinações: e os moradores de Roma, segundo -nos foi dito por quem lá foi a essa terra de -saudades, ainda agora se reunem na fonte de -Egeria a respirar as delicias da natureza, debaixo -d’aquelle ceo de tanto amor, que não a -pensar em Numa e na grandeza antiga dos Romanos, -de que a elles só veio em herança a -terra coberta de muitas ruinas.</p> - -<p>¿Para que servem todas estas memorias, nos -estão perguntando os insaciaveis de Politica?<span class="pagenum"><a id="Page_323"></a>[323]</span> -e nós não lhes sabemos responder senão que a -nós estes pensamentos nos fazem muito bem, -e que aos amigos de passatempos innocentes se -não ha de prohibir o que a ninguem faz mal. -Deixai-nos ser algum dia do anno semi-pagãos. -São as superstições da Politica ambiciosa as -que empecem á felicidade, mas estes graciosos -prejuisos de nossos pais a nenhuma couza do mundo -danão. E de mais, se havemos de dizer toda -a verdade, a fé, que a estes pobres erros acompanha, -costuma trazer comsigo muita piedade -religiosa, e n’ella alguma doçura moral, -que nem sempre vai por onde vai a desenganada -Filosofia. Ditoso d’aquelle engenho -que podesse trazer outra vez ao mundo a innocencia -que nos lá ficou no paiz das fabulas! -mas interromper um sonho de poesia quando se -julga que a felicidade vem apoz os nossos passos, -voltarmo-nos, como Orfeo, para a abraçar, -e vermo-la fugir e desapparecer n’um ai, -e um mundo de realidades dolorosas estender-se -immenso deante de nós, oh! isto he muito -triste!</p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_324"></a>[324]</span></p> - -<h3 class="nobreak" id="ACERCA"><i>ÁCERCA DA PESSOA DO Sr.<br /> -Antonio Ribeiro dos Santos.</i></h3> - -</div> - -<p>Pôsto que o escrever de Varão tão conhecido -dentro e fóra d’este Reino, qual foi o Sr. -Antonio Ribeiro dos Santos, já possa a muitos -parecer escusado, o deixar de o fazer, mais -que seja por alto, nem a opportunidade da -occasião mo consente, nem menos mo consentiria -o gôsto, que sempre do refrescar essas -memorias me resulta; por quanto na primavera -de minha vida, e primeira manhã de minha -poesia, foi que a boa de minha fortuna -me deu conhecer este Nestor de nossa Literatura, -que já então, ao cabo da sua longa e -proveitosa carreira, ornado de muitos méritos -de sciencias e virtudes, respeitado e apontado -de longe, pouzava sereno e magestoso, aguardando -pela sua hora, á beira da eternidade.</p> - -<p>Que fosse nascido nas terras do Douro, d’onde -lhe prouve tomar nome de Elpino Duriense; -que fizesse com bons mestres seus estudos; -que se tornasse, lendo na Universidade de Coimbra, -um de seus mais lustrosos luminares; -que na Igreja e no Estado occupasse mui subidos -empregos; que fosse o amigo e centro de -quantos bons engenhos em seu tempo florecerão, -não faltará quem o escreva entre seus outros -muitos louvores. Tão pouco me deterei<span class="pagenum"><a id="Page_325"></a>[325]</span> -dispartindo entre a Jurisprudencia, a Historia, -as Antiguidades, a Literatura, e a Poesia -o opulentissimo cathalogo de suas Obras, -cuja maxima, e por ventura optima parte, ainda -até agora não viu a luz. Não hão de ser mãos -tão debeis como as minhas as que revolvão tamanhos -trofeos, nem em tão pequeno espaço como -este coubéra retratar completo Homem que -abrangeu duas idades, bem fazendo-lhes mutuamente -a uma pela outra; anticipando em meio -do seculo passado o gôsto, o apuro, a filosofia -d’este nosso; transplantando para o presente -o estudo, a boa fé, o saber do passado; -e legando ao futuro thesouros que andou desencantando -das antiguidades remotissimas. Menos -arremessados são meus dezejos, e mais seguros, -que só quero levar meus leitores a com -este bom velho encetarem conhecimento.</p> - -<p>Corre a primavera do anno de 1814 ou 15, -que eu certo o não sei. A morada de Elpino, -que em um dos mais desafrontados altos de Lisboa -está formosamente situada, longe do bolicio, -como bem cabia á sua indole pacifica e -genio estudioso, he um templo de Musas, religiosamente -vedado aos olhos e vozes de profanos, -isto he dos máos e ignorantes, unicos -de todos os entes para quem sua porta e animo -não erão hospedeiros. Por aquellas salas, -gravemente ataviadas á laia dos nossos antigos, -de sedas e arrazes, alcatifas, tremós, espaldares -e soberbos quadros dos mais perigrinos pintores, -reina o silencio, e uma lembrança dos<span class="pagenum"><a id="Page_326"></a>[326]</span> -antigos e abundosos tempos de nossos avós, -que tanto conforma com os nobres e portuguezes -pensamentos de suas poesias, as quaes se -raras vezes voão sublimes, nunca, nem por sombras, -desmentem da boa moral e sã filosofia. -Aqui o bom Elpino nos recebe cordialmente, -a meus irmãos e a mim; os filhos do seu amigo -são seus amigos, os estudiosos das Musas -portuguezas e romanas são os seus amores. O -ancião, que ainda entre sabios podéra ser ouvido -como oraculo, remoça-se conversando com -meninos, apouca-se para que o melhor comprehendão, -orna-lhes a moral e o estudo com -quantas flores sabe; do centro da gloria lhes -ensina por onde se abre o caminho que para lá -conduz; e pelo grande espirito e persuasão com -que falla, talvez consegue crear algumas vehementes -vocações literarias. Outras vezes nos -convida para a bibliotheca, suas delicias, e nos -acompanha com a alegria na boca. Os seus -olhos, como que ao fim de tanto lêr ja quizessem -descançar para sempre, não lhe alumião -o caminho; e semilhante áquelle grande -Bardo Ossian, a quem velho e cego, piedosa -conduzia a moça Malvina para os logares -usados de sua inspiração, no hombro de uma -menina, sua afilhada e leitora, segurava o bom -de Elpino uma das mãos, emquanto com a -outra arrimada a um bordão, palpava o caminho, -e se ajudava em seu quebrado andar.</p> - -<p>Era a bibliotheca o íntimo retiro d’este ermitão -do Parnaso, fugida para longe das casas,<span class="pagenum"><a id="Page_327"></a>[327]</span> -pôsto que tão quietas, e frescamente assentada -em meio de muitas sombras, verduras e -aromas de seu jardim, hortas e pomares. Grandissima -cópia de livros, longamente procurados -e custosamente juntos, e entre os quaes se -estremavão no numero e riqueza os Gregos, os -Romanos, e os antigos Portuguezes, alí estavão -juntos, entre o susurro estudioso das ramas -e os cantares descuidosos dos passaros. Um -Apollo de marmore com a sua lira em punho, -parecia estar-se mui bem cabido e contente no -meio d’aquelle seu alcaçar, cercado de tantos -seus cultores, servido por tão venerando Sacerdote. -Lembranças são estas que trago colhidas -de minha infancia, e que transplanto para aqui, -por não querer que se percão.</p> - -<p>Áquelle Homem, n’aquellas tardes, e debaixo -d’aquelle této, devo a grande veneração -que ainda hoje consagro aos meus livros latinos, -não poucos dos quaes mos deu elle proprio; -e tocados de suas mãos poeticas, me -inspirão ainda agora poesia e virtude, até cerrados, -e n’elles confio que me hajão de servir -de pranchas, com que n’este pélago de freneticas -e descompostas innovações, me não deixe, -como tantos que mais valião do que eu, totalmente -sossobrar. Nos seus ouvidos indulgentes -lançava não só as primicias dos meus versos, -mas ainda as traças e esperanças de obras -que borbulhavão de uma seiba virgem de quatorze -annos. Escutava elle tudo com desvellada -benevolencia, umas vezes apontando-me melhores<span class="pagenum"><a id="Page_328"></a>[328]</span> -caminhos ou mais faceis, outras desviando-me -de commettimentos maiores que meus -annos e forças; agora revelando-me regras, logo -insinuando-mas com exemplos, com que sempre -fiel e muito a ponto lhe acudia a memoria. -Não he verdade que ha em tudo isto um não -sei que, por onde o que o pratíca não póde -menos ser de um grande homem? Oxalá meus -esforços melhor houvessem respondido a suas -diligencias, ou me não houvesse elle desamparado -no começo da carreira, para a qual apenas -me aparelhou! Sim, porque embora me -hajão a vaidade, a gratidão péde que eu publique, -foi este Pontifice das Musas que me -iniciou no seu culto, e no seu paternal enthusiasmo -me disse—Tu serás poeta.—Scena -digna de um pincel eloquente: um ancião coroado -de louros, e cego como Homero, sagrando -ao culto da mais bella das Artes, um menino -cego como elle!</p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="footnotes"> - -<div class="chapter"> - -<h2 class="nobreak">NOTAS</h2> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_1" href="#FNanchor_1" class="label">[1]</a> Alguma vez publicarei o que acerca d’isto disputamos -por Cartas, de Lisboa para Coimbra, o Padre José Agostinho -de Macedo e eu. Negava aquelle escriptor, de incontrastavel -talento, que a Poesia Allemã e Suissa mais fosse do -que a nossa rica em graças naturaes, e amena frescura, antes -affirmava que a nossa a excedia grandemente. Ou não escrevia -elle deveras, ou se convenceo do erro, como será de -ver das Cartas, quando ellas aparecerem. O motivo porque -até hoje as tenho dos publicos olhos resguardadas, outro não -foi senão recêo de que se me attribuisse a vãgloria a publicação -de uma disputa em que tamanho sujeito me cedeo, -principalmente sendo notorio que o favor que em seus escritos -deu ás minhas primeiras tentativas poeticas e infantis, -jamais o denegou com o andar do tempo, antes o reforçou -com mui graciosos louvores.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_2" href="#FNanchor_2" class="label">[2]</a> Conceder-lha-heis, se ja não tiverdes determinado emprega-la -em outro uso, ou fundar nesse sitio alguma caza de -Commissão que nada faça, ou algum quartel de guarda que -legisle sobre os destinos publicos.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_3" href="#FNanchor_3" class="label">[3]</a> O Livro <i>Le mie Prigione</i>, quanto á utilidade prática -leva, me parece, a palma á <i>Imitação</i> de Kempis. Em Kempis -apparece a descrição da caridade e piedade, em Silvio a -applicação d’ellas aos successos da vida. Kempis aconselha, -Silvio ensina a perdoar, a amar, e a ser feliz, em despeito -da fortuna: dá o exemplo d’isso, he elle proprio o exemplo.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_4" href="#FNanchor_4" class="label">[4]</a> Quem bem reparar na justiça rigorosa (de cruel a -taxaráõ alguns) com que eu proprio trato a minha Musa, -perdoar-me-ha quando por amor ás nossas letras, aponto um -defeito em meu mestre e amigo o Snr. Antonio Ribeiro dos -Santos. Inda assim, porque me não fique remordendo a consciencia, -como expiação, e mui suave, porei no fim do volume -um penhor do meu respeito e grato animo a tão grande -varão; capitulo ja impresso no <i>Jornal dos Amigos das Letras</i>, -mas por isso mesmo apenas conhecido.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_5" href="#FNanchor_5" class="label">[5]</a> Meu irmão Augusto Frederico de Castilho.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_6" href="#FNanchor_6" class="label">[6]</a> Meu irmão Adriano Ernesto de Castilho.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_7" href="#FNanchor_7" class="label">[7]</a> As Senhoras Mellos, a quem pertence a Lapa e a -Quinta das Canas.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_8" href="#FNanchor_8" class="label">[8]</a> Na <i>Primavera</i> de meu Irmão Augusto Frederico de -Castilho ha um lugar parallelo, não quanto á expressão, -mas quanto ao pensamento principal. Releva porem que em -duas couzas se advirta: a uma, que nenhum de nós foi plagiario, -nem o podiamos ser, porque todos compunhamos em -segredo; a outra, que o passo do poema, em que elle descreve -Nize a figurar de Primavera, leva grande vantagem de -valia a estes versos!</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_9" href="#FNanchor_9" class="label">[9]</a> Augusto Frederico de Castilho.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_10" href="#FNanchor_10" class="label">[10]</a> O meu amigo Jose Vitorino Freire Cardozo da Fonseca -(<i>Etmiro</i>) tinha começado em uma sua quinta na Beira um -jardim, tal como o descrevo aos seguintes versos, e que pretendia -consagrar á minha memoria. Mal haja aquelle, a quem -semelhante penhor de amizade não enternece!</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_11" href="#FNanchor_11" class="label">[11]</a> Veja-se a Quarta Edição do Diccionario chamado de -Moraes.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_12" href="#FNanchor_12" class="label">[12]</a> Lamartine no Prologo de <i>Jocelyn</i></p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_13" href="#FNanchor_13" class="label">[13]</a> Em Maio se poem o ponto aos Estudos da Universidade, -que eu n’aquelles tempos cursava. Só os que por ahi -tem passado, podem entender o alvoroço com que he recebido.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_14" href="#FNanchor_14" class="label">[14]</a> Antigo nome da Serra de Estrella d’onde nasce o -Mondego.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_15" href="#FNanchor_15" class="label">[15]</a> Por esta occazião me importa fazer um annuncio ao -Publico. Ei-lo: declaro que se esse Jornal inexperadamente -acabou, não foi minha a culpa, assim como de nenhum dos -sócios, mas somente dos acontecimentos, assim publicos como -privados da Sociedade: com elle nunca tive outras algumas -relações senão as onerosas e de trabalho, que eu tomava comtudo -com muito gôsto. Todos os sócios o sabem, mas interessa-me -que o saiba toda a gente, para me salvar de quaesquer -desasizadas reclamações.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_16" href="#FNanchor_16" class="label">[16]</a> Em podendo ser, publicarei um volume de poesias, -que lá compuz acerca d’aquella bemaventurada solidão, onde -annos vivi ignorado e contente, na residencia de meu Irmão -Augusto Frederico.</p> - -</div> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_17" href="#FNanchor_17" class="label">[17]</a> Tudo isto, que eu julgava para sempre meu, passou! -Aprouve a Deos mostrar-me só de relance a felicidade! Pouco -mais de dois annos a illustre e digna sobrinha de Nicolau -Tolentino de Almeida, a Senhora D. Maria Izabel de Baenna -Coimbra Portugal, se sacrificou toda a felicitar-me: o Pai -de todo o amor e de toda a virtude a chamou logo para o -seu seio: era aquelle um Anjo que faltava no ceo. Esta Nota -ao poema, vai como se achava feita quando ella ja me -não escrevia, senão a espaços, mas ainda se comprazia de -me ouvir dictar. Quando o seu fim era ja inevitavel, todos o -sabião e talvez ella mesma, e eu contava ainda com largos -annos de fortuna. O mesmo advirto quanto ás mais Notas e -accrescentamentos d’este Livro, que tudo estava pronto (faltando -só algumas poucas notas que não fiz nem ja farei) antes -do fatal dia um de Fevereiro passado: dois se imprimio -erradamente no Post Scriptum do Prologo. Se outrem não -tivesse conservado essa data, e me não advertisse da inexatidão -em que mal informado caí, ainda agora a podéra eu -ignorar: esse dia, as vesperas e os seguintes não tiverão para -mim nenhuma ráia nem de luz, nem do sôno, nem de alguma -outra das couzas que estremão os dias.—<i>12 de Maio -de 1837.</i></p> - -</div> - -</div> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_329"></a>[329]</span></p> - -<h2 class="nobreak">INDEX.</h2> - -</div> - -<table summary="Index"> - <tr> - <td></td> - <td class="tdpg">Pag.</td> - </tr> - <tr> - <td>Ante-Prologo</td> - <td class="tdpg"><a href="#ANTE-PROLOGO">5</a></td> - </tr> - <tr> - <td>Prologo</td> - <td class="tdpg"><a href="#PROLOGO">25</a></td> - </tr> - <tr> - <td><i>Post-Scriptum</i></td> - <td class="tdpg"><a href="#Post_Scriptum">47</a></td> - </tr> - <tr> - <td>Epistola á Primavera</td> - <td class="tdpg"><a href="#EPISTOLA_A_PRIMAVERA">49</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdl1">Dedicatoria a minha Irmã</td> - <td class="tdpg"><a href="#EPISTOLA_DEDICATORIA">51</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdl1">Duas Palavras de Introdução</td> - <td class="tdpg"><a href="#EPISTOLA_INTRODUCAO">53</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdl1">Epistola</td> - <td class="tdpg"><a href="#EPISTOLA">57</a></td> - </tr> - <tr> - <td>O Dia da Primavera Poemetto</td> - <td class="tdpg"><a href="#O_DIA_DA_PRIMAVERA">75</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdl1">Dedicatoria a minha Mãi</td> - <td class="tdpg"><a href="#DIA_DEDICATORIA">77</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdl1">Historia da Festa da Primavera</td> - <td class="tdpg"><a href="#DIA_HISTORIA">79</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdl1">O Dia da Primavera Canto I</td> - <td class="tdpg"></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdl2"><i>A Manhã</i></td> - <td class="tdpg"><a href="#DIA_CANTO_I">95</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdl1">O Dia da Primavera Canto II</td> - <td class="tdpg"></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdl2"><i>A Tarde</i></td> - <td class="tdpg"><a href="#DIA_CANTO_II">111</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdl1">Notas ao Poemetto antecedente</td> - <td class="tdpg"><a href="#DIA_NOTAS">131</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdl1">Nota 1.ª (<i>Elmano e Filinto—versificação esdruxola e aguda</i> &c.)</td> - <td class="tdpg"><a href="#DIA_NOTA_1">131</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdl1">Nota 2.ª de Augusto Frederico de Castilho</td> - <td class="tdpg"><a href="#DIA_NOTA_2">162</a></td> - </tr> - <tr> - <td>Os Cantos de Abril Idillio</td> - <td class="tdpg"><a href="#OS_CANTOS_DE_ABRIL_IDILLIO">167</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdl1">Dedicatoria a meu Pai</td> - <td class="tdpg"><a href="#IDILLIO_DEDICATORIA">169</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdl1">Advertencia</td> - <td class="tdpg"><a href="#IDILLIO_ADVERTENCIA">171</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdl1">Os Cantos de Abril</td> - <td class="tdpg"><a href="#IDILLIO">173</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdl1">Nota ao Idillio (<i>Excerpto de alguns versos da primeira Edição do Idillio, rejeitados n’esta segunda</i>)</td> - <td class="tdpg"><a href="#IDILLIO_NOTA">186</a></td> - </tr> - <tr> - <td>A Festa de Maio Poemetto</td> - <td class="tdpg"><a href="#A_FESTA_DE_MAIO">189</a><span class="pagenum"><a id="Page_330"></a>[330]</span></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdl1">Dedicatoria ás Senhoras da Lapa dos Esteios</td> - <td class="tdpg"><a href="#MAIO_DEDICATORIA">191</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdl1">Historia da Festa de Maio</td> - <td class="tdpg"><a href="#MAIO_HISTORIA">193</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdl1">A Festa de Maio Canto I</td> - <td class="tdpg"><a href="#MAIO_CANTO_I">199</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdl1">—— Canto II</td> - <td class="tdpg"><a href="#MAIO_CANTO_II">225</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdl1">Notas á Festa de Maio</td> - <td class="tdpg"><a href="#MAIO_NOTAS">263</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdl1">Nota 1.ª (<i>Com a tradução para latim dos amores de Galatea no Cant. 1 da Festa de Maio</i>)</td> - <td class="tdpg"><a href="#MAIO_NOTA_1">263</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdl1">Nota 2.ª (<i>Piedade para com os animaes—alimento animal</i> &c.)</td> - <td class="tdpg"><a href="#MAIO_NOTA_2">269</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdl1">Nota 3.ª (<i>Em desaggravo das mulheres</i>)</td> - <td class="tdpg"><a href="#MAIO_NOTA_3">291</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdl1">Nota 4.ª (<i>Sôbre o 2.º Canto da Festa de Maio</i>)</td> - <td class="tdpg"><a href="#MAIO_NOTA_4">305</a></td> - </tr> - <tr> - <td>Mais Primavera</td> - <td class="tdpg"><a href="#MAIS_PRIMAVERA">309</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdl1">Advertencia</td> - <td class="tdpg"><a href="#PRIMAVERA_ADVERTENCIA">311</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdl1">Março (<i>Princípio da Primavera</i>)</td> - <td class="tdpg"><a href="#MARCO">313</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdl1">Abril</td> - <td class="tdpg"><a href="#ABRIL">317</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdl1">Maio</td> - <td class="tdpg"><a href="#MAIO">319</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdl1">Ácerca da Pessoa do Sr. Antonio Ribeiro dos Santos</td> - <td class="tdpg"><a href="#ACERCA">324</a></td> - </tr> -</table> - -<p class="titlepage">FIM</p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<h2 class="nobreak">Lista de Assignantes.</h2> - -</div> - -<ul> -<li><span class="smcap">S. M. F. A Rainha D. MARIA II.</span></li> -<li><span class="smcap">S. M. I. A Duqueza de Bragança.</span></li> -<li><span class="smcap">S. A. R. O Principe D. Fernando Augusto.</span></li> -</ul> - -<ul> -<li>A. A. A. Moreira.</li> -<li>Ab. M.ᵃ J. Paiva Manso.</li> -<li>Abrahão Weelhause.</li> -<li>A. Carneiro.</li> -<li>Achilles de Pereira.</li> -<li>A. Eustaquio da Silva.</li> -<li>Ag.ᵗᵒ de Castro da Gama Lobo.</li> -<li>—— José Pereira.</li> -<li>—— Roïz da F. Soares.</li> -<li>A. J. R. Leitão.</li> -<li>Albino F. de Figueiredo.</li> -<li>Conselh.ᵒ Alexandre Alb. de Serpa Pinto. <i>4 Ex.</i></li> -<li>Alexandre Lahmeyer.</li> -<li>D. Alvaro.</li> -<li>Amaro Coutinho Pereira.</li> -<li>Anacleto José da Silva.</li> -<li>André Joaquim Ramalho.</li> -<li>—— Perez.</li> -<li>A. Neves de Sequeira.</li> -<li>Angelo Augusto Martins.</li> -<li>D. Anna C. Guimarães.</li> -<li>—— Ifig. do Valle de S. e Menezes.</li> -<li>—— Lucinda Mont.ʳᵒ</li> -<li>—— Ludovina.</li> -<li>—— Margar.ᵈᵃ Fructuoso de Ar.ᵒ</li> -<li>—— Victoria da Rocha Torres.</li> -<li>Anonimo. <i>2 Exempl.</i></li> -<li>Anselmo J.ᵉ Braamcamp.</li> -<li>Ant.ᵒ Adolfo Ferr.ᵃ Sarmento. <i>15 Exempl.</i></li> -<li>—— Adriano da Mata P.ᵗᵃ</li> -<li>—— Ag.ᵒ Per.ᵃ Lacerda.</li> -<li>—— Alves Souto.</li> -<li>—— Aluisio Jervis d’Atouguia.</li> -<li>—— Augusto Gonsalves.</li> -<li>—— B. de Brito e Cunha.</li> -<li>—— Cardoso e Silva.</li> -<li>—— C. da Costa e Sousa.</li> -<li>—— Coelho Bragante.</li> -<li>—— da Costa Paiva. 130 <i>Exempl.</i></li> -<li>—— Dias d’Azevedo.</li> -<li>—— —— Monteiro.</li> -<li>—— —— Rodão.</li> -<li>—— Diniz Couto Valente</li> -<li>—— Ezequiel d’Aguiar.</li> -<li>—— F. Mag.ᵃᵉˢ Coutᵒ</li> -<li>—— F. Mendonça Arraes.</li> -<li>—— Frz. Alves Fortuna.</li> -<li>—— Florencio Reixa.</li> -<li>—— Fr. Alv. Guimarães.</li> -<li>—— Freire Castello Br.ᶜᵒ</li> -<li>—— de Freitas.</li> -<li>—— Gaud. S.ᵃ Monteiro.</li> -<li>—— G. Barreto de Pina.</li> -<li>—— Gomes Lima.</li> -<li>—— Glz. d’Alm.ᵈᵃ Rino.</li> -<li>—— Gueifão Bello Per.ᵃ</li> -<li>—— Guilherme da Costa.</li> -<li>—— Henriques Doria.</li> -<li>—— Jacinto Santarem.</li> -<li>—— Joaquim de Abreu.</li> -<li>—— Cons.ᵒ Antᵒ Joaq.ᵐ da Costa Carv.ᵒ 6 <i>Ex.</i></li> -<li>—— Joaq.ᵐ Reis Junior.</li> -<li>—— —— da Silva.</li> -<li>—— —— Teix.ᵃ S.ᵃ</li> -<li>—— J. d’Oliveira Lima.</li> -<li>—— José d’Avila.</li> -<li>—— J.ᵉ Bot.ᵒ da Cunha.</li> -<li>—— —— Ferr.ᵃ de Sousa.</li> -<li>—— —— Glz. Basto.</li> -<li>—— —— —— Duarte.</li> -<li>—— —— de Oliveira.</li> -<li>—— J.ᵉ de Oliveira e S.ᵃ</li> -<li>—— —— R. Guim.ᵃᵉˢ 3 <i>Ex.</i></li> -<li>—— —— de Sá Camello.</li> -<li>—— —— da S.ᵃ Milheiros.</li> -<li>—— —— de Sousa Martins.</li> -<li>—— —— Teixeira Leal.</li> -<li>—— —— de Vasc.ᵒˢ 20 <i>Ex.</i></li> -<li>—— Leite Pereira Lobo.</li> -<li>—— Lopes de C. Alm.ᵈᵃ</li> -<li>—— Lour. Coelho. 5 Ex.</li> -<li>—— Luiz Nogᵃ e Freitas.</li> -<li>—— M.ᵉˡ R. Abranches.</li> -<li>—— —— Vargas.</li> -<li>—— M.ᵃ d’Almeida e S.ᵃ</li> -<li>—— —— de Campos.</li> -<li>—— —— Ferreira.</li> -<li>—— —— L. M. Queiroz.</li> -<li>—— —— Machado.</li> -<li>—— —— Thovar Lemos.</li> -<li>—— Martins dos Santos.</li> -<li>—— de Mello Breyner.</li> -<li>—— N. Roïz. Cancella.</li> -<li>—— Nunes dos Reis.</li> -<li>—— Pedro de Carvalho.</li> -<li>—— P. X. O. B. Leite.</li> -<li>—— Pereira de Faria.</li> -<li>—— Porfirio de Freitas.</li> -<li>—— Ramos Azev.ᵒ Maia.</li> -<li>—— Rib. Azev.ᵒ Bastos.</li> -<li>—— Ribeiro de Faria.</li> -<li>—— Sald.ᵃ R. Albuq.ᵉ</li> -<li>—— Samp. X. Casqueiro.</li> -<li>—— dos Santos Monteiro.</li> -<li>—— de Sá Per.ᵃ Samp.</li> -<li>—— da Silva Bastos.</li> -<li>—— da Silva Leitão.</li> -<li>—— S.ᵃ Monteiro. 2 <i>Ex.</i></li> -<li>—— Sotero Sz.ᵃ Falcão.</li> -<li>—— Thomaz Aquino S.ᵃ</li> -<li>—— Vicente de Sousa.</li> -<li>—— Vieira de Carvalho.</li> -<li>A. P. Ardisson.</li> -<li>A. P. B. de Saldanha.</li> -<li>A. R. Sealy.</li> -<li>Assemblea Lisbonense.</li> -<li>—— Portuense.</li> -<li>Associação Civilisadora.</li> -<li>Augusto.</li> -<li>—— Frederico Ferr.ᵃ</li> -<li>Dr. Augusto Lavit. 2 <i>Ex.</i></li> -<li>Augusto Maria Dermott.</li> -<li>—— Victor Sabbo.</li> -<li>Aureliano J.ᵉ de Moraes.</li> -<li>Ayres Sá Nogueira. 3 <i>Ex.</i></li> -<li>—— da Silva Coelho.</li> -<li>Balthesar Lopes do Calheiros e Menezes.</li> -<li>Bandeira—Ex-Governador do Castello. 4 <i>Ex.</i></li> -<li>Barão d’Argamaça.</li> -<li>—— de Ruivoz.</li> -<li>Barnabé F. Paula Ataide.</li> -<li>Bartholomeu dos Martires.</li> -<li>Bento Alão.</li> -<li>—— de Almeida.</li> -<li>—— G. Brito Taborda.</li> -<li>—— Guilherme Klingleofer. 3 <i>Exempl.</i></li> -<li>—— J.ᵉ Teixeira Penna.</li> -<li>—— de Moura Portugal.</li> -<li>—— Pereira.</li> -<li>Bernardino J.ᵉ dos Santos.</li> -<li>Bernardo José de Miranda.</li> -<li>Busch.</li> -<li>Dr. Cabral Teix.ᵃ Moraes.</li> -<li>Caet.ᵒ Alberto Orlandi.</li> -<li>—— J.ᵉ Alves d’Araujo.</li> -<li>—— José M.ᵃ de Sena.</li> -<li>—— Xavier Diniz.</li> -<li>C. Almeida.</li> -<li>Camillo da Silva Ferraz.</li> -<li>Candido José Roïz Vieira.</li> -<li>Cap.ᵃᵒ Engenheiro Carv.ᵒ</li> -<li>Carlos Augusto Poppe.</li> -<li>—— Gould. 5 <i>Exempl.</i></li> -<li>—— de Sá.</li> -<li>—— Vieira da Silva.</li> -<li>Carneiro.</li> -<li>Castro Almeida.</li> -<li>C. F. Altavilla.</li> -<li>Christovão M.ᵃ dos Santos.</li> -<li>Cipriano A. Rib. Freire.</li> -<li>Cipriano Dom. Vianna.</li> -<li>C. Lagrange.</li> -<li>D. Clara Clorinda Lopes Pereira de Vasconcellos.</li> -<li>Clem.ᵉ A. O. M. Alm.ᵈᵃ</li> -<li>—— Augusto Bolonha.</li> -<li>D. Clementina Adelaide da Silva Monteiro.</li> -<li>C. Massa.</li> -<li>C. M. Caula.</li> -<li>Conde da Cunha.</li> -<li>—— de Lumiares.</li> -<li>—— de Mello. 6 <i>Ex.</i></li> -<li>—— de Villa Real.</li> -<li>Condeça de Belmonte D. Jeronima.</li> -<li>—— de Mello. 2 <i>Ex.</i></li> -<li>—— de Villa Real.</li> -<li>Cosme José Dias. 10 <i>Ex.</i></li> -<li>Daniel Cesar S.ᵃ Ferraz.</li> -<li>—— Sotero Caio dos S.ᵗᵒˢ</li> -<li>D. A. R. Varella.</li> -<li>David Ubaldo S.ᵃ Leitão.</li> -<li>Diogo Ant.ᵒ de Sequeira.</li> -<li>—— Aug. C. Constancio.</li> -<li>—— P. Mtr.ᵒ Bandeira.</li> -<li>Domingo Garcia Peres.</li> -<li>Domingos Fr. Santos Lim.</li> -<li>—— Monteiro de Albuquerque e Amaral.</li> -<li>—— Ribeiro de Faria.</li> -<li>—— —— dos S.ᵗᵒˢ</li> -<li>Duque da Terceira.</li> -<li>Duqueza da Terceira.</li> -<li>C.ᵉˡ E. C. C. F. Furtado.</li> -<li>Eduardo Frederico Lour.ᵒ</li> -<li>Emilia C. de Figueiredo.</li> -<li>D. Emilia Martinini.</li> -<li>Epifanio Fr. de Miranda.</li> -<li>Ernesto Adolfo de Freitas.</li> -<li>—— M. V. Montenegro.</li> -<li>—— José Ferreira.</li> -<li>D. Faustina M.ᵃ das Dominações Simões.</li> -<li>F. C. de M.</li> -<li>Feliciano Alm.ᵈᵃ Vidal.</li> -<li>Fernando Affonso Giraldes de Mello e Sampaio.</li> -<li>Fernando Theod. Arnaut.</li> -<li>F. L. Bettencourt.</li> -<li>Figueiredo. 13 <i>Exempl.</i></li> -<li>Filippe Folque.</li> -<li>Fortunato José Barreiros.</li> -<li>—— —— N. M. e Mello.</li> -<li>D. Francisca de Noronha.</li> -<li>Fran.ᶜᵒ Abrantes.</li> -<li>—— Adrião Pereira.</li> -<li>—— Affonso da Costa Chaves e Mello. 12 <i>Ex.</i></li> -<li>—— Alves Souto.</li> -<li>—— —— Alm.ᵈᵃ Reixa.</li> -<li>—— Ant.ᵒ de Pinho.</li> -<li>—— —— Cerqueira S.ᵃ</li> -<li>—— —— F. S.ᵃ Ferrão.</li> -<li>—— —— dos Santos.</li> -<li>—— de Assis Almeida.</li> -<li>—— —— —— Alm.ᵈᵃ C.ᵗᵉ Real.</li> -<li>P. Francisco d’Assis Biga.</li> -<li>Fran.ᶜᵒ Brito P. Almeida.</li> -<li>—— Candido Mend.ᵃ</li> -<li>—— de Castro Freire.</li> -<li>—— C. Judice Samora.</li> -<li>—— da Conc.ᵃᵒ Soares.</li> -<li>—— Dias Brandão.</li> -<li>—— Eduardo Andrade.</li> -<li>—— Fabião de Mend.ᶜᵃ</li> -<li>—— Gaspar Lahmeyer.</li> -<li>—— Gomes Loureiro.</li> -<li>—— Joaq.ᵐ da Cunha Travassos Cast.ᵒ Branco.</li> -<li>—— —— da Fonseca.</li> -<li>—— —— dos Santos.</li> -<li>—— J.ᵉ de Freitas.</li> -<li>—— J.ᵉ de Sousa Nunes.</li> -<li>—— —— Tavares Junior.</li> -<li>—— Luiz de Sousa.</li> -<li>—— da Mãi dos Homens Annes de Carvalho.</li> -<li>—— M.ᵉˡ C. Pimenta.</li> -<li>—— —— de Negreiros.</li> -<li>—— M. Silvr.ᵃ Menezes.</li> -<li>—— —— de S.ˢᵃ Brandão.</li> -<li>—— —— de Maris Coelho.</li> -<li>—— M. Walsh. 4 <i>Ex.</i></li> -<li>—— Nunes da Silva.</li> -<li>—— Paula Costa Feio.</li> -<li>—— —— Seg. Lemos.</li> -<li>—— —— S.ˢᵃ V. Boas.</li> -<li>—— —— V. Campos.</li> -<li>—— —— Zuzarte.</li> -<li>—— P. Taboada Junior.</li> -<li>—— P.ᵗᵒ de Magalhães.</li> -<li>—— Raim. d’Andrade.</li> -<li>—— da Silva Falcão.</li> -<li>—— Vieira S. Barradas.</li> -<li>Frederico Aug.ᵗᵒ Martha.</li> -<li>Fructuoso Dias Mendes.</li> -<li>—— —— de Paiva Card.ᵒ</li> -<li>F. Z. Fer.ᵃ d’Ar.ᵒ 5 <i>Ex.</i></li> -<li>Dr. G. Centazzi.</li> -<li>Gabriel Fran.ᶜᵒ Ribeiro.</li> -<li>—— Lopes de Lima.</li> -<li>G. A. Pereira de Sousa.</li> -<li>Gaspar dos Reis e Sousa.</li> -<li>—— Schindler.</li> -<li>D. Genoveva Victoria da Rocha Farinho.</li> -<li>D. Gervasia Joaquina de Sousa Falcão.</li> -<li>Greg.ᵒ Mag.ᵃᵉˢ Collaço.</li> -<li>Guilherme Ignacio Basto.</li> -<li>H. D. Wems.</li> -<li>Henriq. J. Passos Chaves.</li> -<li>Hermano Estanisláo Orlandi.</li> -<li>H. Hodgson. 10 <i>Exempl.</i></li> -<li>H. J. Moser.</li> -<li>H. O. Maya. 2 <i>Exempl.</i></li> -<li>Honorio Ces. Mendonça.</li> -<li>Ignacio Cabral Arez da Silveira Barros.</li> -<li>Vice Almirante Ignacio da Costa Quintella.</li> -<li>—— José de Sá.</li> -<li>—— P. Qt.ᵃ Emaus.</li> -<li>D. Ignez Raim. Prado.</li> -<li>D. Ildefonso Olheiro.</li> -<li>Isidoro H. C. Semmedo.</li> -<li>Izidro Costa.</li> -<li>Jacinto de Freitas Oliv.ʳᵃ</li> -<li>—— José de Mattos.</li> -<li>—— José de Sá Lima.</li> -<li>—— de Sousa Falcão.</li> -<li>—— —— —— —— 2 <i>Exempl.</i></li> -<li>Jacomo Pereira de Carv.ᵒ</li> -<li>J. Bento Pereira.</li> -<li>J. B. Massa.</li> -<li>J. B. S. L. de Almeida Garrett.</li> -<li>J. C. Bastos.</li> -<li>Jeronimo José da Silva.</li> -<li>—— Perᵃ Vasconc.ᵒˢ</li> -<li>—— —— da S.ᵃ Cardoso.</li> -<li>J. F. Danin.</li> -<li>J. F. Passos.</li> -<li>J. F. R. S. de Azevedo.</li> -<li>J. F. Thomaz.</li> -<li>J. G. Toussaint.</li> -<li>J. J. A. Redondo.</li> -<li>J. J. da C. J.</li> -<li>J. J. Loureiro.</li> -<li>J. J. Manitti.</li> -<li>J. M. Chaves.</li> -<li>J. M. F. Dias.</li> -<li>J. M. S. Freire.</li> -<li>João A. de S.ˢᵃ Queiroga.</li> -<li>—— A. Lobo de Moira.</li> -<li>—— Anastacio Simões.</li> -<li>—— Antonio Biga Nunes.</li> -<li>—— —— Colasso da S.ᵃ 2 <i>Exempl.</i></li> -<li>—— —— Marques.</li> -<li>—— —— Pereira.</li> -<li>—— Bap.ᵗᵃ da Costa.</li> -<li>—— —— da Cunha Fer.ᵃ</li> -<li>—— —— e Mafaos.</li> -<li>—— —— Sabo Junior.</li> -<li>P.ᵉ João Baptista da S.ᵃ</li> -<li>João Bpt.ᵃ S.ᵃ Malafaia.</li> -<li>—— Bento da Costa.</li> -<li>—— Bonifacio Guimarães.</li> -<li>D. João da Camara.</li> -<li>João Coelho de Gibraltar.</li> -<li>—— —— da Silva.</li> -<li>—— Dias X. do Loureiro.</li> -<li>—— Ferr.ᵃ Azev.ᵈᵒ Junior.</li> -<li>—— —— Camp. 10 <i>Ex.</i></li> -<li>—— —— dos S.ᵗᵒˢ S.ᵃ J.</li> -<li>P. João Franc.ᵒ B. Lança.</li> -<li>João Gomes Roldão.</li> -<li>—— —— dos Santos.</li> -<li>Dr. João Gonç. Miranda.</li> -<li>Dr. João Gonç. M. Robalo.</li> -<li>João Guilherme Caldeira.</li> -<li>—— Ignacio Curvo.</li> -<li>—— Januario V. Rezende.</li> -<li>—— José da Assumpção.</li> -<li>—— —— Ferr.ᵃ de Sousa.</li> -<li>—— —— Freitas Aragão.</li> -<li>—— —— Machado Ferr.ᵃ</li> -<li>—— Lameira M. V. Lobos.</li> -<li>—— Lourenço Ferr.ᵃ Braga. 4 <i>Exempl.</i></li> -<li>—— Luiz de Sousa Falcão.</li> -<li>—— —— Talone.</li> -<li>—— Manoel de Aral.</li> -<li>P.ᵉ João Maria Cardeira.</li> -<li>João Maria Feijó.</li> -<li>D. João Martins Falcão.</li> -<li>João da Matta e Silva.</li> -<li>—— Mend. A. Barbarino.</li> -<li>—— Neves Gomes Eliseu.</li> -<li>—— Nogueira Gandra.</li> -<li>—— Nunes da Silva.</li> -<li>—— Pedro Coelho.</li> -<li>—— —— Heitor Alcant.ᵃ</li> -<li>—— —— Nol. Cunha.</li> -<li>—— Per.ᵃ Queiroz Basto. 20 <i>Exempl.</i></li> -<li>—— Silva Fonseca.</li> -<li>—— Procopio Tavares.</li> -<li>—— Saecadura Botte Corte Real. 2 <i>Exempl.</i></li> -<li>—— da Silva Falcão.</li> -<li>D. João Silva Pessanha.</li> -<li>João da Silva Serrão.</li> -<li>—— de Sousa Falcão.</li> -<li>—— Vic.ᵗᵉ P.ᵗᵉˡ Mald.ᵈᵒ</li> -<li>—— de V.ˡᵃ N.ᵛᵃ de Vasc.ˡᵒˢ Correia de Barros.</li> -<li>Joaq.ᵐ Xavier da Maia.</li> -<li>—— Ant.ᵒ Aguiar. 5 <i>Ex.</i></li> -<li>—— —— Barbosa Torres.</li> -<li>—— —— da Costa.</li> -<li>—— —— da Fonseca.</li> -<li>—— —— Tenreiro.</li> -<li>—— —— Vidal da Gama.</li> -<li>—— Augusto Burlamaqui Marecos.</li> -<li>—— Barreto de Castilho.</li> -<li>—— Corrêa Moreira.</li> -<li>—— Felix Moreira 6 <i>Ex.</i></li> -<li>—— Francisco Danim.</li> -<li>—— G.ᵐᵉˢ V.ʳᵃ Gaio.</li> -<li>—— José Bernardes.</li> -<li>—— —— Costa Macedo.</li> -<li>—— —— Costa Portugal.</li> -<li>—— —— da Cunha.</li> -<li>—— —— Dias Lopes de Vasconcellos. 3 <i>Exemp.</i></li> -<li>—— —— Figueira.</li> -<li>—— —— Gião.</li> -<li>—— —— Lobo.</li> -<li>—— —— Marques Cald.ᵃ</li> -<li>—— Julio da S.ᵛᵃ Ferraz.</li> -<li>Cons.ʳᵒ Joaq. Larcher.</li> -<li>Joaq. Lucio Arbues M.ʳᵃ</li> -<li>—— das Neves Franco.</li> -<li>—— Pedro Abreu Lima.</li> -<li>—— Romão Lob.ᵗᵒ Pires.</li> -<li>—— da Silva Cordeiro.</li> -<li>—— da Silva Machado.</li> -<li>—— Torquato Alvares Ribeiro. <i>6 Exemp.</i></li> -<li>—— Victor S.ᵃ Gosmão.</li> -<li>—— Urbano de Sampaio.</li> -<li>D. Joaq.ⁿᵃ Carlota Fons.ᶜᵃ</li> -<li>Jorge Oom.</li> -<li>José Anastasio Pereira.</li> -<li>—— Antonio de Almeida.</li> -<li>—— —— de Castro.</li> -<li>—— —— Cob.ʳᵒ d’Azevedo Gentil.</li> -<li>—— —— Mello Ar.ʲᵒ</li> -<li>—— —— da Silveira.</li> -<li>—— —— Soares M.ᵈᵉˢ</li> -<li>—— d’Ar.ʲᵒ Coutinho V.ⁿᵃ</li> -<li>—— —— Machado.</li> -<li>—— Aug.ᵗᵒ Correa Leal.</li> -<li>—— Bernardino Frazão.</li> -<li>—— de Brito.</li> -<li>—— Caetano Rebello.</li> -<li>—— Candido Alz. Torres Barata Araujo e Lima.</li> -<li>—— Carlos Cerveira Val.ᵗᵉ</li> -<li>—— —— da Costa P.ʳᵃ</li> -<li>—— —— Guimarães.</li> -<li>B.ᵉˡ José Cesar da Silveira.</li> -<li>José C. M.</li> -<li>—— do Coração de Jesus.</li> -<li>—— Crispim da Cunha.</li> -<li>—— Ricardo P.ʳᵃ Cabral.</li> -<li>—— Roïz. da S.ᵃ Vianna.</li> -<li>—— dos Santos Nazareth.</li> -<li>—— Servulo Costa e S.ᵃˢ</li> -<li>—— Silverio da Fonseca.</li> -<li>—— Silvestre de Andrade.</li> -<li>—— Sousa Falcão Senior.</li> -<li>—— —— —— Junior.</li> -<li>—— Tello Mag.ᵃᵉˢ Collaço.</li> -<li>—— Vaz Araujo Veiga.</li> -<li>José Victorino Freire da Fonseca Cardoso.</li> -<li>—— —— Zuzarte Coelho da Silveira.</li> -<li>Jovencio Pedroso Oliv.ʳᵃ</li> -<li>J. Paulo da Silva.</li> -<li>J. P. N. X. de L. Brito.</li> -<li>J. P. R. G.</li> -<li>J. R. Blanco.</li> -<li>J. R. Manco.</li> -<li>J. R. Pinto.</li> -<li>K. Pinto.</li> -<li>L. A. M. Brandão.</li> -<li>L. J. de Gouvea.</li> -<li>Leandro Capistrano d’Almeida Figueiredo.</li> -<li>Lourenço de Almeida.</li> -<li>—— Justiniano Lima.</li> -<li>—— M. Telles Mattos.</li> -<li>L. T. H. de Brederode.</li> -<li>Luciano S. Carv.ᵒ para si e seus amigos 40 <i>Ex.</i></li> -<li>Luiza Mathey.</li> -<li>Luiz A. Bello Reis Junior.</li> -<li>—— Antonio de Freitas.</li> -<li>—— B. Ribeiro Vianna.</li> -<li>—— Caet.ᵒ Guerra Santos.</li> -<li>—— C. Alm.ᵈᵃ Botelho.</li> -<li>—— da Costa Pereira.</li> -<li>—— —— —— Pinto.</li> -<li>—— Joaquim de Sampaio.</li> -<li>—— José da Silva.</li> -<li>D. Luiz M.ᵃ da Camara.</li> -<li>Luiz de Mello Breyner.</li> -<li>—— —— —— Corrêa.</li> -<li>—— Miguel d’Azevedo.</li> -<li>—— O. da Costa.</li> -<li>M.ᵉˡ Alves do Rio Junior.</li> -<li>—— Antonio Rodrigues.</li> -<li>—— —— Vianna.</li> -<li>—— Bento Rodrigues.</li> -<li>D. Manoel da Camara.</li> -<li>M.ᵉˡ de Castro Pereira.</li> -<li>—— —— —— e Silva.</li> -<li>—— Coelho Bragante.</li> -<li>—— Felix Oliv. Pinheiro.</li> -<li>—— Ferreira Borges.</li> -<li>—— Francisco Dias.</li> -<li>—— —— —— das Neves.</li> -<li>—— Gonçalves Pombo.</li> -<li>—— I. Cunha Menezes.</li> -<li>—— I. Moreira Freire.</li> -<li>—— Joaq.ᵐ Cardoso Castello Branco. 2 <i>Ex.</i></li> -<li>—— —— Fortes.</li> -<li>—— —— Freire.</li> -<li>—— —— Moreira.</li> -<li>—— —— Pereira Silva.</li> -<li>—— —— Santiago.</li> -<li>—— José Cordeiro Galão.</li> -<li>—— —— Esteves Campos.</li> -<li>—— —— da Motta.</li> -<li>—— Maria da Rocha.</li> -<li>D. M.ᵉˡ M. Sousa Falcão.</li> -<li>M.ᵉˡ Per.ᵃ Lima Tavares.</li> -<li>—— Ramos.</li> -<li>—— Roïz Costa Salgado.</li> -<li>—— dos Santos.</li> -<li>—— Thomaz S.ˢᵃ Menezes.</li> -<li>—— de Vasconcellos.</li> -<li>—— Urbano.</li> -<li>Marcellino Ant.ᵒ Moraes.</li> -<li>D. M.ᵃ B. C. Vilella.</li> -<li>—— —— C. S.ˢᵃ Falcão.</li> -<li>—— —— Carlota Vidal Gama Lobo.</li> -<li>—— —— Carmo Guimarães.</li> -<li>—— —— C. Guimarães.</li> -<li>—— —— Clara Braamcamp.</li> -<li>—— —— F. Paes de Mattos.</li> -<li>—— —— H. Sousa Falcão.</li> -<li>—— —— José Ozorio.</li> -<li>—— —— J. Sanches Brito.</li> -<li>—— —— Luiza d’Albuquerque. 2 <i>Exempl.</i></li> -<li>—— —— Magdalena Sousa.</li> -<li>—— —— Manoel Vidal da Gama Lobo.</li> -<li>—— —— M. Silva Falcão.</li> -<li>—— —— R. Sousa Falcão Ferreri.</li> -<li>—— —— Vicencia de Mello.</li> -<li>—— —— Xavier Falcão.</li> -<li>D. Margarida Silva Machado Figueiredo.</li> -<li>D. Marianna C. Ribeiro.</li> -<li>—— —— G. Pereira de Beça.</li> -<li>—— —— Noronha.</li> -<li>—— —— da Silva Machado Figueiredo.</li> -<li>Marquez de Fronteira.</li> -<li>—— de Saldanha.</li> -<li>M. F. da Costa.</li> -<li>Miguel Ferreira da Costa.</li> -<li>—— Fran.ᶜᵒ Saldanha.</li> -<li>—— João Coelho.</li> -<li>—— Joaquim Pires.</li> -<li>—— J.ᵉ Okeeffe. 2 <i>Ex.</i></li> -<li>—— M.ᵃ Gomes de Andrade e Leiros.</li> -<li>M. J. M. Dantas. 2 <i>Ex.</i></li> -<li>M. T. H. de Brederode.</li> -<li>N. H. Klingelhoufer. 3 <i>Exempl.</i></li> -<li>D. Nicasio Canete y Moral.</li> -<li>Nicoláo Maria Nobre.</li> -<li>Nicoláo C. P.ᵗᵒ Queiros.</li> -<li>—— S. James.</li> -<li>Nuno José Gonçalves.</li> -<li>Pedro A. N. Domingues.</li> -<li>D. Pedro Cunha Menezes.</li> -<li>Pedro Jacome de Calheiros e Menezes.</li> -<li>—— José de Oliveira.</li> -<li>—— M.ᵃ Costa Almeida.</li> -<li>—— Paulo Ferr.ᵃ Sousa.</li> -<li>—— —— Vasconcellos.</li> -<li>—— P.ᵗᵒ Moraes Sarm.ᵗᵒ</li> -<li>Bacharel Pedro dos Santos Freire.</li> -<li>Pedro da Silva Ferraz.</li> -<li>—— de Sousa Cardoso.</li> -<li>P. G. Toussaint.</li> -<li>P. M. Lagan. 4 <i>Exempl.</i></li> -<li>Prior da Magdalena.</li> -<li>—— de Marv.ᵃ de Sant.ᵉᵐ</li> -<li>—— do Milagre de Sant.ᵉᵐ</li> -<li>Quintino Teixeira Carv.ᵒ</li> -<li>D. Quiteria da Silva Machado Figueiredo.</li> -<li>Rafael Antonio de Brito Pimenta d’Almeida.</li> -<li>—— Archanjo de Carv.ᵒ</li> -<li>Reis e Irmão.</li> -<li>Roberto Wanzeller.</li> -<li>Rodrigo de Azevedo Sousa da Camara.</li> -<li>—— José Dias Lopes de Vasconcellos.</li> -<li>—— Limpo Rav.ᶜᵒ Pereira de Lacerda.</li> -<li>Rosa Coelho de Gibraltar.</li> -<li>D. Rosa Dioguina Lopes Pereira de Vasconcellos.</li> -<li>Sebastião André Xavier.</li> -<li>—— Casqueiro Vieira Gago.</li> -<li>—— de Gargamala.</li> -<li>—— J. Villaça Gama.</li> -<li>—— Xavier Botelho.</li> -<li>Servulo M.ᵃ de Carvalho.</li> -<li>S. J. de Gouvea.</li> -<li>Silencio Christão Barros.</li> -<li>Simplicio Moura Mach.ᵈᵒ</li> -<li>Tertuliano Turibio Lobato Pinto Ferreira.</li> -<li>D. Ther.ᵃ Hedeviges Leite de Moraes Castilho.</li> -<li>—— —— Maria Botelho.</li> -<li>—— —— Miquelina Alves de Sousa.</li> -<li>—— —— Theodora da Soledade Martins.</li> -<li>—— —— Xavier Botelho.</li> -<li>Thomaz Aq.ᵒ S.ˢᵃ 2 <i>Ex.</i></li> -<li>—— Pinto Saavedra.</li> -<li>—— Rufino Monteiro.</li> -<li>Thomé A. Frnz. Roxo.</li> -<li>Torcato Francisco Carn.ʳᵒ</li> -<li>D. Vasco Guterre Cunha.</li> -<li>Vicente Altavilla.</li> -<li>—— Pires da Gama.</li> -<li>D. Vic.ᵗᵉ Segur. Menezes.</li> -<li>Victorino José Gomes.</li> -<li>—— Manoel de Oliveira Mascarenhas.</li> -<li>Visconde do Porto Covo. 2 <i>Exempl.</i></li> -<li>Vital Jorge Maia Canhão.</li> -</ul> - -<div style='display:block; margin-top:4em'>*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A PRIMAVERA ***</div> -<div style='text-align:left'> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Updated editions will replace the previous one—the old editions will -be renamed. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright -law means that no one owns a United States copyright in these works, -so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United -States without permission and without paying copyright -royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part -of this license, apply to copying and distributing Project -Gutenberg™ electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG™ -concept and trademark. 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Redistribution is subject to the trademark -license, especially commercial redistribution. -</div> - -<div style='margin:0.83em 0; font-size:1.1em; text-align:center'>START: FULL LICENSE<br /> -<span style='font-size:smaller'>THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE<br /> -PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK</span> -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -To protect the Project Gutenberg™ mission of promoting the free -distribution of electronic works, by using or distributing this work -(or any other work associated in any way with the phrase “Project -Gutenberg”), you agree to comply with all the terms of the Full -Project Gutenberg™ License available with this file or online at -www.gutenberg.org/license. -</div> - -<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'> -Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg™ electronic works -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg™ -electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to -and accept all the terms of this license and intellectual property -(trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all -the terms of this agreement, you must cease using and return or -destroy all copies of Project Gutenberg™ electronic works in your -possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a -Project Gutenberg™ electronic work and you do not agree to be bound -by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the person -or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -1.B. “Project Gutenberg” is a registered trademark. It may only be -used on or associated in any way with an electronic work by people who -agree to be bound by the terms of this agreement. 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The following sentence, with active links to, or other -immediate access to, the full Project Gutenberg™ License must appear -prominently whenever any copy of a Project Gutenberg™ work (any work -on which the phrase “Project Gutenberg” appears, or with which the -phrase “Project Gutenberg” is associated) is accessed, displayed, -performed, viewed, copied or distributed: -</div> - -<blockquote> - <div style='display:block; margin:1em 0'> - This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and most - other parts of the world at no cost and with almost no restrictions - whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms - of the Project Gutenberg License included with this eBook or online - at <a href="https://www.gutenberg.org">www.gutenberg.org</a>. 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If any disclaimer or limitation set forth in this agreement -violates the law of the state applicable to this agreement, the -agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or -limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or -unenforceability of any provision of this agreement shall not void the -remaining provisions. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the -trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone -providing copies of Project Gutenberg™ electronic works in -accordance with this agreement, and any volunteers associated with the -production, promotion and distribution of Project Gutenberg™ -electronic works, harmless from all liability, costs and expenses, -including legal fees, that arise directly or indirectly from any of -the following which you do or cause to occur: (a) distribution of this -or any Project Gutenberg™ work, (b) alteration, modification, or -additions or deletions to any Project Gutenberg™ work, and (c) any -Defect you cause. -</div> - -<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'> -Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg™ -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Project Gutenberg™ is synonymous with the free distribution of -electronic works in formats readable by the widest variety of -computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It -exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations -from people in all walks of life. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Volunteers and financial support to provide volunteers with the -assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg™’s -goals and ensuring that the Project Gutenberg™ collection will -remain freely available for generations to come. In 2001, the Project -Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure -and permanent future for Project Gutenberg™ and future -generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary -Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see -Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org. -</div> - -<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'> -Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit -501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the -state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal -Revenue Service. The Foundation’s EIN or federal tax identification -number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary -Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by -U.S. federal laws and your state’s laws. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -The Foundation’s business office is located at 809 North 1500 West, -Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up -to date contact information can be found at the Foundation’s website -and official page at www.gutenberg.org/contact -</div> - -<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'> -Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Project Gutenberg™ depends upon and cannot survive without widespread -public support and donations to carry out its mission of -increasing the number of public domain and licensed works that can be -freely distributed in machine-readable form accessible by the widest -array of equipment including outdated equipment. Many small donations -($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt -status with the IRS. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -The Foundation is committed to complying with the laws regulating -charities and charitable donations in all 50 states of the United -States. Compliance requirements are not uniform and it takes a -considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up -with these requirements. We do not solicit donations in locations -where we have not received written confirmation of compliance. To SEND -DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state -visit <a href="https://www.gutenberg.org/donate/">www.gutenberg.org/donate</a>. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -While we cannot and do not solicit contributions from states where we -have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition -against accepting unsolicited donations from donors in such states who -approach us with offers to donate. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -International donations are gratefully accepted, but we cannot make -any statements concerning tax treatment of donations received from -outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Please check the Project Gutenberg web pages for current donation -methods and addresses. Donations are accepted in a number of other -ways including checks, online payments and credit card donations. To -donate, please visit: www.gutenberg.org/donate -</div> - -<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'> -Section 5. General Information About Project Gutenberg™ electronic works -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Professor Michael S. Hart was the originator of the Project -Gutenberg™ concept of a library of electronic works that could be -freely shared with anyone. For forty years, he produced and -distributed Project Gutenberg™ eBooks with only a loose network of -volunteer support. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Project Gutenberg™ eBooks are often created from several printed -editions, all of which are confirmed as not protected by copyright in -the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not -necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper -edition. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Most people start at our website which has the main PG search -facility: <a href="https://www.gutenberg.org">www.gutenberg.org</a>. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -This website includes information about Project Gutenberg™, -including how to make donations to the Project Gutenberg Literary -Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to -subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. -</div> - -</div> - -</body> -</html> diff --git a/old/65021-h/images/cover.jpg b/old/65021-h/images/cover.jpg Binary files differdeleted file mode 100644 index cc353a9..0000000 --- a/old/65021-h/images/cover.jpg +++ /dev/null |
