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-The Project Gutenberg EBook of Sinapismos, by Zinão
-
-This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and most
-other parts of the world at no cost and with almost no restrictions
-whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of
-the Project Gutenberg License included with this eBook or online at
-www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you'll have
-to check the laws of the country where you are located before using this ebook.
-
-Title: Sinapismos
-
-Author: Zinão
-
-Release Date: April 25, 2020 [EBook #61936]
-
-Language: Portuguese
-
-Character set encoding: UTF-8
-
-*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK SINAPISMOS ***
-
-
-
-
-Produced by Chris Curnow, Júlio Reis and the Online
-Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This
-file was produced from images generously made available
-by The Internet Archive/Canadian Libraries)
-
-
-
-
-
-
-
- _Numero 49_
-
- _Sinapismos_
-
-
-
-
- _Zinão_
-
- _Ridendo..._
-
- _Sinapismos_
-
- Valença do Minho
- 1889
-
-
-
-
-DUAS PALAVRAS
-
-(A SERIO)
-
-
-Essas paginas são para rir.
-
-Originou-as a curiosidade que despertaram alguns artigos humoristicos,
-publicados sob o titulo de _Ridendo_.
-
-Ha n’ellas referencias pessoaes, como não póde deixar de ser, para que
-os periodos não tenham a aridez dos discursos do sr. conselheiro Adriano
-Machado; mas são referencias á vida social e á parte que n’ella tomam as
-individualidades, que chamo ao tablado da ironia.
-
-Respeito sempre a vida particular e isso que ha de mais nobre e sagrado
-na sociedade—a familia.
-
-O leitor verificará que, na composição dos artigos, segui um processo
-de critica differente do usado, até hoje, nas polemicas litterarias e
-politicas da nossa terra.
-
-Suscitada uma questão, exgottam os adversarios os argumentos mais ou
-menos concludentes, que as suas intelligencias lhes fornecem; depois,
-invariavelmente, vem a critica estulta e pueril da redacção dos periodos,
-sua composição grammatical, ortographia, etc., e conclue-se com as
-allusões á vida particular, em termos de collareja e argumentação de
-viella. Temos visto muito d’isso por cá...
-
-N’essas paginas ha artigos inoffensivos e ha periodos, em que a ironia
-é violenta—desde já o declaro—porque foram inspirados no affecto, que
-a esta terra consagro e no vehemente desejo que nutro, de que ella se
-liberte da ignobil inercia, que a domina e de influencias ridiculas, que
-a amesquinham.
-
-Descarna-se n’elles, com o escalpello do sarcasmo, a parte d’este
-organismo que a podridão ataca, applicando-se, como cauterio, o ridiculo
-e a gargalhada, como desinfectante; mas não influe n’essa operação a
-sensualidade brutal do estripador londrino, ou a ferocidade selvagem da
-sanguinolenta tragedia de Pantin. Ha a insensibilidade e a firmeza de
-pulso, que a Sciencia recommenda ao operador quando, para salvar orgãos
-essenciaes á vida, lhe impõe a immediata extirpação e cauterio violento
-d’outros, que o mal apodrece.
-
-Essas linhas foram, pois, pautadas pela dignidade e nunca n’ellas
-predominou a influencia de resentimentos mesquinhos, ou a intenção de
-referencias offensivas, que seriam torpes, como anonymas.
-
-Eis o meu programma e se alguma vez se desfivelar a mascara do Zinão,
-oxalá que uma erronea interpretação do que se vae ler, não faça afrouxar
-a acção nervosa, que hoje me extende a mão de muitos amigos, que figuram
-n’essas paginas.
-
- * * * * *
-
-Passo a afinar a rabeca.
-
-Valença—Novembro, 1889.
-
- _Zinão._
-
-
-
-
-Aos pobres de Valença
-
-
-Entrevados, paralyticos, cegos, escrofulosos, tisicos, hydropicos,
-
- —Velhos, mulheres e creanças,
-
-que sois o producto dos residuos—_caput mortuum_—da Humanidade e por
-ahi vos arrastaes, penosamente, aos sabbados, disputando, á dentada, o
-magro _chabo_ que ás descarnadas mãos, em publico e notorio arrôto de
-rothschildica generosidade, vos arremessam os poderosos Cresus da nossa
-terra;
-
-—miseros, que tivestes a desventura de ver a luz do dia coada pelas
-frestas da mansarda, quando esses mesmos atomos e moleculas a que deveis
-a vida, atrazando-se, ou adeantando-se no seu labutar constante, podiam
-gerar-vos entre arminhos e flôres, entre aromas e caricias;
-
-—precitos, que dormitaes, tiritando e gemendo com fome, enroscados, como
-cães, na ampla escadaria da Assemblea, em noites de baile e de festa e
-vos vêdes apartados, como reprobos, isolados como hydrophobos, do ruidoso
-e alegre tumultuar da vida, em que ha risos, mulheres formosas, affectos
-e diamantes;
-
-—párias, que a doença algemou ao catre da dôr, e a quem a luz
-formosissima da alvorada vae encontrar no estertor da agonia, nas
-convulsões do soffrimento, nas infernaes torturas da miseria—essa mesma
-luz que desperta e illumina a caravana alegre, quando, exhuberante de
-vida, de mocidade e de prazer segue, ruidosa, ao Faro, para respirar o
-oxygenio das montanhas e admirar as sorridentes paisagens da Natureza,
-d’essa desalmada Mãe, que para vós só teve quadros sombrios, horrores,
-vendavaes de infortunio, abysmos de soffrimento;
-
-—famintos, que espreitaes com olhos soffregos os doirados salões de
-Pantagruel e de Gargantua, e vos sentis deslumbrados com o faiscar dos
-crystaes, alcoolisados com os aromas das iguarias, estonteados com o
-espumar do _Champagne_, até que o lacaio vos atire o osso que o mastim
-disputa, ou vos expulse a chicote, para que a miseria dos farrapos
-nojentos, o fetido dos membros descarnados, a pallidez cadaverica da
-face, não vão perturbar a alegria dos convivas, recordando-lhes que
-ha por este mundo gente que nasce, vive e morre, sem conhecer o que é
-_Champagne frappé, Punch à la romaine, ou Riz de veau à la Tartare_;
-
-—imprudentes, que vos atreveis a bater á porta do Hospital depois das
-oito da noite, como se a Caridade não tivesse mais que fazer, do que
-estar á vossa espera, e por ahi appareceis, depois, mortos nas muralhas,
-com o ventre para o ar, olhos esbugalhados, membros hirtos, esverdeados,
-cheirando mal;
-
-—reprobos, que nem entrada tendes nos templos, onde imaginaes que, por
-lá estar Christo, se egualam as condições, ignorando que o Christo da
-missa do meio-dia não é vosso, mas o dos argentarios que, para illudirem
-a consciencia e satisfazerem as exigencias da vaidade e as apparencias
-da hypocrisia, lhe dão capas de velludo e corôas de oiro; lhe fazem
-companhia nas longas noites do inverno, distrahindo-o com essas immoraes
-bambochatas das Novenas e da Semana Santa, com a somnolenta melopêa da
-padralhada, com as intrigas e confidencias amorosas, com o cochichar
-mordaz do beaterio, que entre _Torres eburnea_ e _Mater castissima_,
-discute a confecção de um vestido da Torrona, ou do Blanco—e lhe fazem
-venias, e batem no peito, e andam por ahi, de porta em porta, ostentando
-cynicamente crenças, que não possuem, crenças, que não comprehendem, a
-pedir em nome de Christo, que é o symbolo do amor e da humildade, os
-_cinco tostões_ da subscripção, quando á mesma hora, infelizes, olhaes,
-soluçando, para a escudella vazia e as creanças vos mordem os peitos,
-porque já não tendes leite, nem o calor da vida...
-
- Velhos, mulheres e creanças,
-
- escutae:
-
-Ahi tendes esse livro.
-
-Lêde-o, ou dae-o a ler. E se entre os ricos e os felizes da vida esses
-periodos não se crystallizarem no oiro da esmola—encontrareis ahi
-lenitivo para os vossos infortunios, porque ficareis sabendo, que nas
-regiões, onde só imaginaes venturas, oiro e risos tambem ha, como entre
-vós, pustulas—da vaidade, aleijões—do ridiculo, febres—da ambição,
-contracções—da hypocrisia, doenças e disformidades mais dolorosas e
-repugnantes do que as vossas, porque não inspiram compaixão nem dôr, mas,
-apenas, tedio, ironia e a gargalhada.
-
-
-
-
-I
-
-O Microbio[1]
-
-
-Tivemos á porta o Microbio.
-
-Eu já o esperava.
-
-A gente, para falar a verdade, porta-se mal cá por baixo e o Padre
-Eterno deve, com justa razão, encrespar as sobrancelhas com uma boa dóse
-de mau humor, quando o globo terraqueo, no seu incessante rebolar por
-essas immensidades, lhe apresentar á vista a formidolosa praça e os seus
-arrabaldes.
-
-Aquelle nefando e escandalosissimo caso, que tanto alarmou a fé das
-christandades e a religiosidade das beatas da nossa terra—a prisão
-da Santa, arremessada aos baldões para os ferros de El-Rei e para a
-jurisdicção autocratica do Borralho, de sucia com os desobedientes e
-reaccionarios philarmonicos de Ganfey—deve tel-o incommodado seriamente.
-
-Mas ha mais. É recente outro caso mais escandaloso ainda, que aqui, á
-puridade, vou referir.
-
-Na vizinha villa de Monsão perpetrou-se, ha pouco, um gravissimo
-attentado contra a Moral, contra o respeito ás coisas sagradas e
-seriedade das nossas crenças religiosas.
-
-Ao que parece, o conspicuo Senado não prestou a devida attenção á guarda
-da Santa Coca e esta, já enfastiada com as interminaveis polemicas e
-diatribes dos srs. padre Simão, Caetano José Dias e outros respeitaveis
-jornalistas, escapou-se á sorrelfa, internando-se nas terras da Galliza
-até Redondella, onde foi visitar a Coca da localidade.
-
-Ora, segundo se conclue, esta era de sexo differente e, de incestuosa
-copula, resultou uma Coquinha, que os nossos bons vizinhos tiveram
-a imprudencia de apresentar em publico na ultima procissão de
-Corpus-Christi, com grande gaudio dos atheus e suprema indignação do
-ferrador da localidade, contractado para S. Jorge, que, em altos brados,
-reclamava maior salario, visto que ajustára a lucta contra uma só Coca e
-não contra duas!
-
-E permitti que vos diga, respeitavel Senado monsanense, á fé de
-Deu-la-deu, que foi incorrecto o vosso proceder! Contra Cocas com familia
-deve-se, indubitavelmente (as pandectas o determinam, artigo 1:007),
-pagar mais caro o S. Jorge.
-
-Ora, com todos estes desacatos, repito, o Padre Eterno deve trazer-nos de
-ponta e claro é que, mais tarde ou mais cedo, cá teriamos o castigo:—ou
-qualquer das pragas do Egypto, ou nova Exposição de Rosas, ou novo
-consulado do João Cabral, ou mais dois falladores, como os srs. Abilio e
-Leopoldo.
-
-Do Mal, o menos. Veio o Microbio.
-
-As planicies do Ganges já deram o que tinham a dar. O Egypto, a India, a
-China, a America Central são insupportaveis n’esta epocha, com as suas
-elevadissimas temperaturas. O Microbio é d’uma organisação especial, que
-dispõe de todos os recursos para facil e rapida locomoção; anda sobre as
-aguas, como Ulysses, de chinelos de liga, e no ar, como nós, no sobrado
-das nossas casas. Requereu, pois, licença para uma viagem ao extrangeiro
-e o Padre Eterno, extendendo o index, indicou-lhe o caminho.
-
-Microbio preparou-se convenientemente com repetidas abluções
-hydroterapicas, como o sr. Albino; abotoou o seu guarda-pó; sobraçou o
-guarda-chuva; despediu-se da familia e, de mala de viagem e guia Baedeker
-na mão, atirou-se cá para o Occidente e parou em Vigo.
-
-Pelas condições economicas da viagem, que não teve caracter official,
-nem reclamos, nem discursos de congratulação dos Presidentes das Camaras
-e das Juntas de Parochia, este Microbio deve ser differente, do que
-visitou a Hespanha em 85. Deve ser um Microbio burguez, pacato, com
-inscripções, rheumatismo e dinheiros a juro; talvez Juiz de Paz, ou
-quarenta-maior contribuinte do seu concelho; deve usar suspensorios,
-botas de cano; tomar rapé e dormir com barretinho de algodão; deve ser um
-Microbio sensato, austero e de bons costumes; de principios e convicções
-firmes, assim como o sr. Agostinho; bom chefe de familia, temente a Deus,
-inimigo de _Malzabetes_ e de romarias, onde qualquer Pau-real amolga
-impunemente a massa cerebral, ou a mioleira da humanidade.
-
-Em Vigo apresentou-se, pois, modestamente com um pequeno sequito de
-gastrites, gastro-enterites e algo de typhos; mas apesar do incognito
-rigoroso e da modestia d’esta apresentação, souberam da sua chegada, em
-Lisboa, os conspicuos Membros da Junta de Saude.
-
-Aquelles respeitabilissimos Esculapios, Argos vigilantes, a quem estão
-confiadas as nossas existencias, aborrecidos já da longa inacção em que
-vivem desde 1851, limitados a rubricar diariamente o fornecimento dos
-cemiterios da capital, de que se encarregam com inexcedivel pontualidade,
-arregalaram, de jubilosos, os olhinhos, vendo em perspectiva um Microbio
-legitimo, genuino, naturalisado americano pelo sr. dr. Arezes. Tocaram a
-rebate no paiz.
-
-Os pharmacópolas açodaram-se em abundantes preparativos de tonicos,
-diaforeticos e antisepticos.
-
-Koch, Pasteur, Brouardel, Proust, Fauvel, Ferran, Raspail foram
-consultados em laboriosas vigilias.
-
-As tropas, emocionadas pelo santo amor da Patria, prepararam-se para o
-holocausto no Cordão sanitario,—que tão boas libras produziu em 1885.
-
-Os amanuenses, prevendo uma valente _razzia_ entre os chefes cacheticos e
-tropegos, saboreavam as delicias d’uma rapida promoção.
-
-Maridos, com vida atribulada, suspiravam voltados para o septentrião...
-Tudo se preparava, emfim, para receber o Microbio.
-
-Entretanto, palitava elle a sua ociosidade, em Vigo, com alguns
-artilheiros, que ainda se não sabe, ao certo, se foram victimados pela
-febre, se pela gangrena originada no _excesso de limpeza_, em que
-viviam...
-
-Informado dos preparativos, que no nosso paiz se faziam para o receber,
-Microbio Bacilla malhumorou-se.
-
-Antipathizou com a calva luzidia do sr. dr. Meira, encarregado
-officialmente de o saudar em nome do governo lusitano.
-
-Alterou repentinamente o itinerario e... foi-se.
-
-Lá desappareceram com elle as fagueiras esperanças dos amanuenses, dos
-maridos infelizes e as cóleras dos senhorios de Valença, que em 85 foram,
-violenta e despoticamente, espoliados dos seus direitos de propriedade
-por um governo futre e poucaroupa, que teve o descaro de pagar, como
-aluguel de nove mezes, uns miseros centos de mil reis, que representam o
-dobro do valor das propriedades.
-
-Lá desappareceram as rações de 1.ª classe e aquellas encantadas folhas
-de kilometros, que deram aos tropegos membros locomotores de amigos
-meus, obesos e adiposos, a agilidade e ligeireza do mais leve e reputado
-andarilho...
-
-D’esta vez, ainda, déste xaque-mate ao Padre Eterno, oh grande doutor
-Lourenço!
-
- * * * * *
-
-Augustus Sampaius, senhor da Balagotia; Intendente geral dos serviços
-phyloxericos, digo,[2] antimicrobicos da fronteira; Commissario geral
-dos inoffensivos Cerberos da policia concelhia e, como tal, terror dos
-Troppmans e Jacks adventicios; Chefe da Repartição do expediente do sr.
-Administrador (que Deus Guarde); Director da Repartição Municipal de
-Hygiene e Secção annexa das toleradas, artes _julianas_ e _valladicas_;
-Inspector do serviço das bombas e de segurança publica; Fiscal dos pesos
-e medidas; Secretario perpetuo das Juntas de Parochia; Orçamentologo
-official das Confrarias e Irmandades sertanejas; Irmão do SS. Sacramento;
-Mesario e Ex-definidor da Santa Casa da Misericordia; Mordomo da
-Senhora do Faro, da Senhora Santa Luzia milagrosa e outras Senhoras
-d’aquem e além mar, terras da Urgeira e Taião; Mestre de cerimonias
-nas contradanças lithurgicas das nossas festas de Egreja: Estatistico
-distincto dos fogos, productos, criminalidade, bipedes e quadrupedes do
-Concelho; Numismatico abalisado; Agricultor emerito; Actor consummado;
-phantasista original e querido das damas, em debuxos de lettras para
-lenços de namoro—homem que representas, na vida social da nossa terra,
-a mais completa e complexa, a mais genial expressão da actividade
-humana—Augustus Sampaius, senhor da Balagotia—eu te saudo!
-
-Ao fallar no Micobrio, que tanto apavorou os conspicuos Esculapios da
-Junta de saude, e que tão ridentes esperanças fez agora despontar, no
-horisonte ennublado de muitas finanças oscillantes, eu não posso esquecer
-o teu nome, porque foi a ti, ao teu provado zelo, assaz reconhecida
-sollicitude, desempenada actividade que a Patria, eu e a minha prole
-devemos a desejada immunidade do terrivel Bacilla, na campanha de 85.
-
-Commove-se-me profundamente a alma; inundam-se-me os olhos de lagrimas;
-sensibilizo-me, como se te ouvisse no palco com as lamentações de pae
-tyranno e infeliz; foge-me dos labios o riso, como se te aturasse o
-_espirito_ n’essas libertinas extravagancias a que te dás no Carnaval,
-encadernado de _princez_, ou á _antiga_, com os ouropeis e a farrapada do
-teu guarda-roupa—(boceta pandorica de frioleiras e de traça)—percorrendo
-as casas sérias, com grande gaudio das matronas do teu tempo e abundante
-colheita de mystificações, intrigas, pançadas de riso, chavenas de chá e
-tostas com manteiga—quando me recordo, oh Balagotio illustre, dos teus
-serviços no cordão sanitario!
-
-Noites tempestuosas que passaste; asperezas do inverno; longas
-caminhadas; chuva, vento, frio, fome e sêde; graves perturbações nas
-funcções digestivas; fraqueza nas contracções peristalticas, occasionando
-incommodas e demoradas accumulações no cœcum; nas longas noites de vigia,
-ao avizinhar-se vulto sombrio e suspeito, afrouxamentos instantaneos
-do _sphingter_ com defecações abundantes, enfraquecedoras; fartas
-exhalações de acido carbonico e hydrogenios carbonado e sulfurado—e
-tudo isto pelo amor da humanidade, provocado pelo mais desinteressado
-altruismo, inspirado na mais acrisolada philanthropia e, depois ainda,
-aggravado com os arrancos da tua dyspepsia chronica e com a ingratidão da
-Patria de quem, contrariado, espezinhado na pureza dos teus sentimentos
-humanitarios, tiveste de receber, a _fortiori_, umas mesquinhas dezenas
-de libras!
-
-Tu, Balagotio amigo, engrossaste o longo martyrologio, da Patria.
-Salvaste-a e continuas ahi esquecido, ignorado, com a tua dyspepsia e o
-teu barretinho de seda preto, condemnado a um eterno roçar de canhões
-do casibeque na mesa da Administração, sem uma commenda, sem veneras
-hespanholas, que se vendem ao alqueire, sem um viscondado sequer!
-
-Mas eu, conterraneo illustre, não serei tambem ingrato. Já que esse
-_Zé Barros pequenino_ foi insensivel aos vehementes protestos do teu
-amor, e te não fez Commissario das Policias, com pingue gratificação de
-categoria; já que o teu Chefe no Cordão se não compadece dos olhinhos de
-ternura e piedade, com que tu, cem vezes por dia, lhe fitas a janella, eu
-te protegerei, cidadão benemerito e prestantissimo.
-
-Tu soffres. Essa dyspepsia cruel, quando se não fala em Microbio, mina-te
-a existencia, curva-te o tronco, descora-te a face, dissemina no teu
-organismo os germens de uma anemia lenta e perigosa.
-
-Brown Sequard nada te póde fazer.
-
-A Deus nada posso pedir a teu favor, porque tu tambem foste connivente,
-com esse feroz Attila do Registro predial, na prisão da Santa.
-
-Nada temos a esperar do Céo, mas recorremos ao Olympo, que outr’ora fazia
-tão bons milagres, como o Senhor S. Campio, que sua uma vez por anno, ou
-a Senhora da Cabeça, que, para mostrar competencia na cura de fracturas
-da dita, reune traiçoeiramente na sua festa, quantos caceteiros comem
-boroa e feijão, por estas boas vinte leguas em redondo.
-
-Pois bem! Que Jupiter ouça os meus rogos. Já que as delicadissimas
-funcções do teu organismo te consentem apenas o leite, como alimento, que
-Elle te mande Io, para que tu, nas suas cem tetas, possas de noite e de
-dia chupar a vida, novas forças, novos elementos e os teus tecidos tomem,
-a breve trecho, a salutar obesidade do sr. João Ignacio, do saudoso
-doutor Pacheco, ou do nosso prestantissimo deputado, o sr. Visconde da
-Torre!
-
-Setembro 1889.
-
-
-
-
-II
-
-Passe-Calles
-
-
-Oh Justininho!
-
- dá cá o braço...
-
-Ora aqui tem V. Ex.ª um rapaz, que se o Marianno não atira para o Pico,
-era muito capaz de se guindar ao pico da popularidade, cá na terra.
-
-Ainda não conheci quem mais sympathias tivesse entre Clero, Nobreza e
-Povo; mas tambem, ainda não conheci rapaz mais sensato, conciliador e
-serviçal.
-
-Para chamar á paz um casal amuado; para prégar Moral ás creadas de
-servir; para uma visita de pesames, a rigor, com o _resigne-se V. Ex.ª
-com a vontade do Altissimo_ engatilhado; para dirigir um baile nos
-_tricanés_; para entreter senhoras nas reuniões da Semana Santa, em S.
-Estevão, ou nas do Carnaval, na Assemblea; para acompanhar familias
-á missa das onze; para representar a Associação artistica; para umas
-funcções serias de secretario (tinha o monopolio); para a descripção d’um
-baile no _Mensageiro das salas_; para dirigir a eleição das comadres, a
-coisa mais redondamente patusca e interessante, que gentes da Coroada
-teem produzido—não ha, não houve, nem nunca haverá quem o eguale.
-
-Quando passava na rua de S. João, todo tesinho e perliquitetes, apesar da
-magreza e do nariz, diziam d’elle
-
-as meninas—é muito engraçado,
-
-as mamãs—é muito sympathico.
-
-os papás—é muito bom moço.
-
-os velhotes—é... é... é... o Justininho.
-
- * * * * *
-
-Estava nos bailes como em sua casa. Só tinha um defeito para homem de
-sala: dançava pouco e mal.
-
-E eu digo porque.
-
-N’um baile da Assemblea reuniram-se, em quadrilha de _Lanceiros_ (a
-mesma que David dançou ao pé da Arca) os srs. dr. Lopes, dr. Ladislau,
-Padre Cunha e Justininho.
-
-Justininho gostava de florear nas marcas. Ordenou um _chevaliers au
-milieu_, e os quatro Cavalheiros, enthusiasmados com as damas, com a
-musica, com as luzes e com as flôres, avançaram com _ropia_.
-
-Eu não sei bem, como aquillo foi. O que sei, é que se chocaram, que
-se enarigangaram, e de tal fórma foram abalados os respectivos e
-respeitaveis vomeres e cornetos, que o sangue espirrou, e os quatro
-Cavalheiros foram retirados, em braços, da sala.
-
-As senhoras desmaiaram. O baile acabou.
-
-Foi o diabo.
-
-D’ali em deante, tanto o sr. dr. Lopes, como o sr. Padre Cunha e o
-Justininho (V. Ex.ª deve ter notado isso) dão-se pouco a danças. Quem
-continuou foi o Ladislau, porque esse, no tremendo choque foi o mais
-feliz. Como é pequeno e de baixa estatura, o seu nariz não abalroou com
-os outros; roçou no umbigo do sr. Padre Cunha e enfraqueceu o choque.
-
-É verdade: aqui está mais uma vantagem que a gente tem, em dar falta ao
-estalão.
-
-E ainda o sr. dr. Pestana se entristece e zanga, quando o alfaiate lhe
-pede noventa centimetros para umas calças, e lhe assevéra, que não
-necessita de um metro e dez, como os outros senhores!
-
- * * * * *
-
-Sou amigo do Justininho, mas já lhe roguei uma valente praga; e talvez
-fosse por isso, que elle _tocou rabeca_ com o Pereira.
-
-Eu conto o caso, porque não é de segredo:
-
-Lavrava por ahi essa epidemia, peor do que cem microbios, das charadas.
-
-Nas Assembleas, nos Clubs, nas lojas, nas mercearias, nas boticas e nas
-nossas casas, não se tratava d’outra coisa.
-
-O Almanach de Lembranças, essa escarradeira de quanto semsaborão existe
-n’estes reinos, ilhas adjacentes, terras do sabiá e da Tijuca, espalhára,
-por toda a parte, os germens da maldicta mania.
-
-Havia enigmas; charadas antigas, novas, novissimas, com premio, sem dito,
-em prosa e em verso; de—nas costas—1, sem indicação syllabica; emfim, de
-toda a raça e feitio.
-
-Descobrira-se, que para espalhar o flato e para aquecer os pés, no
-inverno, não havia melhor remedio do que: charadas, quino e _trinta e um_
-de bocca.
-
-Justininho deve uma boa parte da sua popularidade, entre as damas, á
-facilidade com que _matava_ charadas. Em se lhe dizendo:
-
- O que é, que é
- Que toca de dia
- No alto da torre
- de Santa Maria?
-
-respondia logo, immediatamente:
-
-—É um sino.
-
-Ora, uma noite,—isto foi, talvez, ha doze annos—estava eu á mesa do
-trabalho com a familia.
-
-Minha mulher fazia meia. Minha sogra lá estava com as charadas.
-
-O rapaz mais novo—o Toneca—estudava a licção de francez. O outro—o
-Zéca—andava com a Avó á cata de decifrações.
-
-Eu estava a turrar com somno, mastigando entre bocejos, uns periodos
-muito alambicados, em fórma de lambedor, com que Justininho descrevia um
-baile, no folhetim do _Noticioso_.
-
-Soavam todos aquelles estafados bordões de—gentilissimas
-damas—corações feridos—sorrisos angelicos—amores—gruta dos
-ditos—arrufos—horas fugitivas—recordações saudosas—rainha do
-baile—reticencias—etc.—etc.—etc.—.
-
-V. Ex.ª deve conhecer tudo isto, porque de mil bailes, que tem havido em
-Valença, appareceram mil descripções eguaes.
-
-São como os necrologios do sr. Verissimo de Moraes. Estão sempre
-promptos. A questão está em se dar o nome do perecido. Ás vezes, ha o
-seu engano, mas escapa.
-
-Por exemplo:
-
-Ha annos, morreu n’esta villa um velhote com 90 janeiros.
-
-Estomago fraqueiro e arruinado, atacára á noite uma pratada de arroz com
-lampreia e... arrefeceram-lhe os pés.
-
-Tambem, foi uma infelicidade, porque, se o sr. dr. Pacheco (diga-se a
-verdade) chega mais cedo uma hora, o homem, em vez de morrer ás 10,
-arrefeceria ás 9.
-
-No dia seguinte, dizia o _Noticioso_:
-
-«_Mais um anjo, alando-se para as ethereas regiões, fugiu hontem da
-terra, roubado cruelmente, pela terrivel Parca, aos affectos dos seus
-carinhosos paes._
-
-_Polycarpo Bezerra, aquella encantadora e gentil creança, que era o
-enlevo_... etc.»
-
-Ora, Policarpo Bezerra, era exactamente a _creança_ de 90 janeiros, que a
-lampreia victimára! Os barbaros dos typographos, se haviam de aproveitar
-a chapa dos adultos, serviram-se da que havia para as creanças.
-
-Isto succede.
-
- * * * * *
-
-Mas, como estava dizendo, eu turrava com somno, á espera do chá.
-
-De repente, levanta-se o Zéca e diz:
-
- Oh Papá! Que é, que é
- Que, pela calada,
- Gosta de dar
- O Marquez de Vallada?
-
-—_Cou_,[3] diz o Toneca, que acabava de tirar no Diccionario a palavra
-pescoço. (Só o soube depois).
-
-Levantei-me indignado, enfurecido com aquelle enorme desacato á Moral e á
-Decencia, praticado nas minhas barbas!
-
-A decifração da charada foi immediata e violenta para os rapazes: duas
-valentes bofetadas!
-
-Indignação geral da familia. Minha sogra levanta-se irada e chama-me
-tyranno!
-
-Retorqui-lhe que aquillo era escandaloso, antimoral e era uma falta de
-respeito á gente graduada, porque o sr. Marquez era um Marquez, estava no
-seu direito de dar o que quizesse, e ninguem tinha que lá metter o nariz.
-
-Augmentou o barulho, porque os rapazes, defendidos pela mãe e pela avó,
-cada vez berravam mais.
-
-Levantou-se minha mulher, chamou-os, e lá foi tudo a chorar.
-
-No dia seguinte, minha sogra, fiel ás tradições, quiz requerer o
-divorcio. Andei amuado oito dias. Data, até, d’essa occasião, o meu
-reconhecimento á Isabelinha, creada de sala...
-
-Só quando fiz as pazes com minha mulher, é que conheci a origem da
-resposta do Zéca e a coincidencia do _significado_.
-
-O Toneca, como é mais agarotado, lêra o _Pimpão_ e appetecêra-lhe tambem,
-sem saber o que dizia, _metter_ a sua farpinha no senhor Marquez.
-
-Mas, tudo isto não teria succedido, se não fosse o diabo do folhetim e se
-o Justininho não tivesse a mania de chroniqueiro de saias.
-
-Veja V. Ex.ª, como se perturba a paz d’um lar e o socego d’uma familia
-honesta!
-
- * * * * *
-
-Mas, effectivamente, o Justininho, para charadas, era d’uma perspicacia
-sibyllina. Como elle, só a Sociedade charadista dos Terriveis de Villa
-Real.
-
-A gente reunia-se á noite na Assemblea. O Club, n’esse tempo, estava
-ainda no embryão das sociedades pacatas, porque o sr. dr. Pacheco, se bem
-que já andasse, como o povo diz, com a barriga á bocca, ainda o não tinha
-dado á luz.
-
-Ou se faziam charadas, ou se jogava o quino. Duas distracções innocentes
-e engraçadissimas! Que saudosas noites! Que piadas! Que pilherias e
-facecias!
-
-Que espirito fino, alegre, saltitante, amenisava aquellas horas!
-
-Quem mexia sempre nas bolas era o Melim. Uma mania como outra qualquer.
-
-Cartão, dez réis; _corda_, sessenta réis.
-
-Marcava-se a feijão carrapato.
-
-Quem recebia as pagas, dava os trocos e quebrados, era o sr. Agostinho.
-
-Cada _quinada_ era recheada de surpresas, ancias, esperanças e decepções!
-
-—Trinta e tres, dizia o Melim.
-
-—Annos de Christo, exclamava sr. João Ignacio, erguendo-se, todo
-contentinho, para gosar o effeito da pilheria.
-
-Andavamos aos tombos com riso, e quem poderia resistir?
-
-—Vinte e dois!
-
-—Patinhos a nadar—berrava o sr. Baptista.
-
-Ai que demonios aquelles! A gente até chorava!
-
-—Trinta e sete!
-
-—João Pimentel Castanheira—lembrava o sr. Elias.
-
-Não se podia continuar; estava decidido! Pois se até a ceia nos queria
-trepar á bocca!
-
-—Venha a precisa, ó vizinho e chegue-se cá, que quero bulir nas bolas,
-dizia o sr. dr. Pacheco.
-
-—Oh diabo! Isso não, que podem ver as irmãs da Caridade, aconselhava eu,
-sempre prudente e cauteloso.
-
-—Sessenta e seis!
-
-—Quinei!—berrava o sr. escrivão Brito.
-
-—Ora sebo!—murmurava tristemente o sr. dr. Evaristo. E eu que já tinha
-cinco quadras! Bem se vê, que os padres não nasceram para trabalhos com
-bolas.
-
-Estavamos todos tristes, como a noite.
-
-—Alto! Foi rebate falso. Siga!—dizia o sr. Brito todo rejubilante pela
-facecia, e casquinando frouxos d’aquelle seu riso, tão patusco e tão
-original: ki-i, ki-i, ki-i...
-
-Afinal, quem quinava sempre era o Leopoldo. Este diabo, lá com os
-capellães arranja-se sempre bem...
-
- * * * * *
-
-Reunia-se, pois, gente fina e perspicaz.
-
-—o Veiga, que viu no Jardim das Plantas uma _ziboia_, com sessenta metros
-de comprimento;
-
-—o Izidoro que, como V. Ex.ª sabe, descobriu as aguas de S. Pedro, é
-amigo do amigo Lopo e tem a Grão-cruz da Sociedade de Geographia e da
-ordem do Sol, do Japão;
-
-—o Serrão, que viu um comboyo, que levava dez regimentos de infanteria,
-dez de cavallaria, oito de artilheria, um de engenharia; tudo em
-armas, officiaes a cavallo, etc., etc. (Isto foi no tempo d’uma guerra
-qualquer).
-
-—o Machado, que, assistindo a um baile da Assemblea até ás duas horas da
-madrugada, apparecia, ás cinco, na praia d’Ancora; lá ao longe, entre as
-brumas do mar, dentro d’uma bateira, e já em regresso da ilha da Madeira.
-
-—o Maximino, que sem perceber uma palavra da lingua de Milton, encontrou
-uma _ingleza_, com quem se entendeu muito bem.
-
-—o Leopoldo, que viu e apalpou os pendulos e o ponteiro do relogio, que
-ficou entupido, nas alturas do coccyx, ao larapio da rua do Ouvidor.
-
-—o Abilio, que conheceu o pae da mãe, do tio, do pae do dito larapio—Rua
-da Quitanda, 23, sobreloja.
-
-Emfim, tudo gente fina e perspicaz.
-
-É verdade: tambem lá estava sua Excellencia, o Senhor Governador e sua
-Excellencia, o Senhor Vice.
-
-Na Academia real das Sciencias não havia melhores cabeças; nem na Camara
-dos deputados, se exceptuarmos os srs. Oliveira Mattos e Visconde da
-Torre.
-
- * * * * *
-
-Para arranjar charadas, quem tinha mais gosto e geito era o sr. Polycarpo
-Monteiro. Pelos modos, carteava-se com o mano de Lisboa, a tal respeito.
-
-Elle pensava um pouco e dizia:
-
- Que é, que é
- Que faz: pum! pum!
- Quando lhe arrima
- O Vinte e um?
-
-Justininho escrevia, logo, qualquer coisa n’um papelinho; collocava-o
-debaixo do seu chapéosinho e... sorria.
-
-Nós andavamos ás aranhas.
-
-Tira d’aqui, põe acolá...
-
- Nada!
-
-O Senhor Governador, forte em Mathematicas, punha logo o caso em equação:
-
- 2 pum + 21 = _x_
-
-tirava os logarithmos, deduzia todas as formulas da triangulação:
-
- Nada!
-
-O sr. Zagallo, que não estava para contas, lembrava-se dos nomes de todas
-as terras de Hespanha, por onde transitou no tempo das guerras...
-
- Nada!
-
-Ninguem falava. Ouvia-se o zunir d’um mosquitinho.
-
-De repente bradam duas vozes:
-
-Adivinhei!
-
-—É o chapéo alto do meu subordinado Durães—dizia o sr. Borges.
-
-—Não é, não senhor. É um chapéo, mas o do sr. Monteiro, dizia o Senhor
-Vice-Governador, que já, n’aquelle tempo, era o homem mais fino cá da
-terra.
-
-É! Não é! Levantou-se uma questão dos demonios.
-
-—Fala o Justininho!—bradamos nós, como quem recorre a um Juiz.
-
-Justininho abriu o papelinho e mostrou, sorrindo:
-
- Zabumba!
-
-Rompeu nova celeuma. Ninguem queria ceder. A final, depois de muito
-berrar, descobriu-se que todos tinham razão.
-
-Havia alli um caso, como o da Santissima Trindade: tres pessoas
-distinctas e um só Deus verdadeiro. Eram tambem tres coisas, todas
-distinctas, todas eguaes e uma só verdadeira: o zabumba—do Justininho.
-
- * * * * *
-
-N’outra noite, o sr. Polycarpo, entrou na Assemblea, muito contente, e
-esfregando as mãos, debaixo do seu chale-manta.
-
-Trazia uma charada muito difficil, que lhe levára seis horas a compôr.
-
-O sr. C. Barros offereceu logo, como premio, um exemplar do seu drama:
-_Marilia_, ou a _Moira dos bosques_.
-
-Reuniu-se o povo todo, e ouviu:
-
- Quem é, quem é,
- Que faz a desobriga
- E, sendo capellão
- Tambem é rapariga?
-
-Esta, é que nos deu agua pela barba. Fazer de homem e de mulher, é que
-nunca podemos comprehender.
-
-O maroto do Leopoldo, esse, parece que a percebeu. Sorriu-se, porque
-tinha entrado n’aquella occasião e, pelos modos, vinha de se confessar...
-
-Trazia no chale-manta palheiras da muralha...
-
-Foi o Abilio, que o traz de ponta, quem descobriu isso.
-
-Ninguem matou a charada, mas desconfio que alli andou tambem influencia
-do premio... Parece-me que afugentou um pouco as ideias.
-
-Isto é mera supposição.
-
- * * * * *
-
-Depois d’essa, appareceu outra do sr. Zagallo, mas _matou-se_ logo. Foi:
-
- O que é que é
- Que dá _sól_ e _dó_
- E se o Cruz lhe bufa
- Faz: Pó, Pó!
-
-V. Ex.ª certamente, já adivinhou.
-
-É um _figle_. Não teve graça.
-
-Pois o sr. General podia apresentar coisa melhor. Bastava que nos
-dissesse:
-
- Ora digam cá,
- Sem hesitar
- Se hoje na camara
- Occupo logar?
-
-Claro é que ninguem responderia, a não ser que se verificasse o conteudo
-do mais recente, do que tivesse ainda a tinta fresquinha, dos officios
-com que sua Ex.ª, oito vezes por mez, participa ao Senado que,
-
- por motivos justificados—sahe
- que,
- por justificados motivos—entra
- e vice-versa
- e versa-vice.
-
- * * * * *
-
-Este sr. Zagallo, na Camara, lembra-me o Conego Vaz.
-
-Eu fui sempre muito agarotado e por isso me não admirei, do que queria
-fazer o Tonéca ao Marquez de Vallada. Se por ahi houver alguma mamã, com
-filha casadoira, disponivel—francamente—que não tenha saudades da minha
-pessoa, porque lhe não serviria, ainda que fosse _numero um_.
-
-Quando não podia dar a minha _gazeta_ á aula do Conego, escapava-me
-sempre que podia, cá para fóra, para a muralha, onde os Guerreiros e os
-Garções jogavam o pião e o _escabicha_.
-
-Juntos, eramos insupportaveis. O Ignacio Soares e o Zé, quando passavam
-por nós, tiravam com todo o respeito o seu chapéosinho e tratavam-nos
-por Excellencia, mas ainda assim, levavam o seu puxão de orelhas porque,
-quando estavam encarrapitados na varanda de ferro, e se lhes dizia cá de
-baixo:
-
- Presos como os macacos!
-
-cuspiam, e atiravam com botas velhas.
-
-O Zé, hoje é homem de genio e palpita-me que, na Politica, ainda chega a
-ser importante; mas n’aquelle tempo andava com o _hora, horae_, e isto de
-latim é coisa, que debilita muito a gente.
-
- * * * * *
-
-Como estava dizendo, quando me juntava aos Guerreiros e aos Garções,
-andava tudo, por ahi, n’uma dobadoira.
-
-Pelo Maio, já tinhamos organisado uma inspecção rigorosa á producção do
-concelho.
-
-Era-mos, assim, uma especie de agronomos.
-
-Se nos perguntassem:
-
-Quem é, que n’este anno vem a ter:
-
-melhores peras?—o Chico Veiga.
-
-melhores melancias?—o Boticario.
-
-melhores melões?—o Ascencio.
-
-melhores uvas?—O senhor José Rodrigues.
-
-A este senhor José Rodrigues sempre tivemos muito respeito. Quando, por
-acaso, nos encontrava perto do Prazo, ou da Boavista, (a gente, já se
-vê, andava a _passear innocentemente_) falava logo em tiros, mortes,
-carabinas, punhaes, ratoeiras, facadas, cães de Castro Laboreiro... o
-diabo!
-
-Por isso, não era como os outros:
-
- o Chico Veiga,
- o Boticario,
- ou o Ascencio;
-
-era: o Senhor José Rodrigues.
-
-A final, foi sempre um santo, e pagava o seu tributo em bellas uvas e
-bons melões, como os outros.
-
-Eu falei no boticario...
-
-Era assim nos outros tempos, mas hoje é camarista e chama-se—o sr.
-Fontoura.
-
-Este senhor é que nos pregou um susto! Eu conto, se não me torno massador
-para V. Ex.ª
-
- * * * * *
-
-As propriedades, como disse, estavam debaixo da nossa vigilancia
-permanente.
-
-Logo que a uva principiava a pintar, a pera a mudar de côr, a melancia a
-ganhar casca—dava-mos assaltos medonhos!
-
-Uma vez, combinamos o ataque ás melancias do sr. Fontoura. Ainda estavam
-verdes, mas duas, ou tres, principiavam a carregar na côr.
-
-O calor abrazava. Era necessario ser um Santo, para resistir á tentação.
-
-Á hora combinada, entramos na propriedade, cautelosamente,
-sorrateiramente, como quem anda aos grillos.
-
-Tinhamos, já, duas melancias cortadas e tratava-mos de metter a unha, em
-certa parte das outras (de que eu não digo o nome, porque póde ser lido
-por senhoras) para verificar se estava molle ou rija, quando ouvimos
-gritos de _agarra! agarra!_ e logo, após, o estampido d’um tiro!
-
-Eu não posso explicar o que succedeu. Parece que nos agarraram pela golla
-da jaqueta e nos levaram, pelo ar, até á Esplanada!
-
-Alli paramos, porque já não havia ar no mundo para os nossos pulmões.
-Consideramos no caso...
-
-Apalpamo-nos cuidadosamente, demoradamente. Estendemos primeiramente uma
-perna; depois outra; depois um braço.
-
-Cuspimos. Passamos a mão pela cabeça.
-
-Não havia sangue.
-
-Serenamos. Voltou-nos a voz.
-
-Só então verifiquei que, no auge da afflicção, _sem querer_, tinha
-trazido as melancias!
-
-Não estava tudo perdido. O que é o instincto da conservação!
-
-Ainda nos incommodava a ideia, de que o sr. Fontoura fosse fazer queixa
-ás familias—o que significaria uma valente tapona.
-
-Felizmente não succedeu isso, porque elle, no auge do seu furor, (do qual
-V. Ex.ª pode fazer idea, quando o ouve ameaçar céos e terra, clamando, á
-porta da pharmacia, contra os seus devedores) não nos conheceu.
-
-Parece que Deus não o dispoz para a nobre carreira das armas, porque, ao
-apontar a espingarda, fez como os pretos e os soldados brazileiros—voltou
-a cabeça.
-
-Quando novamente olhou, diz elle, que só viu fumo. Não era só fumo; eram
-nuvens de pó, que nós levantavamos.
-
-Eu contei agora este caso, porque somos todos de maioridade, paes de
-filhos, eleitores, elegiveis, e já não temos receio de tapona em casa.
-Mas, até hoje, tem estado debaixo d’um certo segredo.
-
-Como d’aquelle endiabrado rancho sahiram tão bons paes de familia, é que
-eu não sei.
-
-São effeitos da edade.
-
-A gente muda muito.
-
-Eu conheço pessoas, que na juventude faziam o que podiam. Chegaram,
-mesmo, a dar nome; e que agora, sendo uns santos, em certas occasiões
-embicam com qualquer coisa, e nem sequer consentem, que no theatro se
-aqueçam os pés.
-
-Isto vae tambem muito dos genios... e dos corações.
-
-São como Deus os quer.
-
-Valha-me Nosso Senhor Jesus Christo...
-
- * * * * *
-
-Mas, veja V. Ex.ª como eu perdi o fio ao discurso! Tudo isto veiu a lume,
-para dizer que o sr. Zagallo, na Camara, me lembrava a aula do Conego Vaz.
-
-Eu queria-me safar, como disse, e, volta e meia, dizia ao Conego,
-levantando o dedo:
-
-—Senhor Mestre, dá licença de ir lá fóra?
-
-O Conego, ou dizia: vá,—ou:
-
-—Está lá gente.
-
-Mas aquillo tanto vez se repetia, que o Conego principiou a desconfiar
-que era doença, como teve o sr. Sampaio nas noites do cordão sanitario,
-doença que tanto dinheiro deu a ganhar á lavadeira...
-
-Uma vez disse-me elle: Oh, senhor! Eu não sei para que cá vem. Nunca
-tenho a certeza se o senhor está fóra, ou dentro. Ao menos, quando sahir,
-deixe aqui ficar um papelinho.
-
-E foi d’este papelinho que me lembrei, com os officios do sr. Zagallo.
-
- * * * * *
-
-Voltemos ao Justininho.
-
-Justininho escrevia nas gazetas. Inventou o _Mensageiro das salas_,
-aquella interessante secção, que eu nunca deixo de ler, em todos os
-jornaes, porque é muito mais barato remedio, do que o Sedlitz Chanteaud.
-
-Foi tambem elle, quem arranjou as seguintes classificações para as
-differentes posições sociaes:
-
- Juizes integerrimos.
- Delegados meritissimos e dignissimos.
- Medicos habeis.[4]
- Negociantes probos e honrados.
- Bispos e Padres virtuosos prelados.
- Proprietarios abastados.
- Cavalheiros de fino trato.
- Officiaes do exercito illustrados e briosos.
- Galopins eleitoraes valentes candilhos.
-
- Meninas galantes.
- Noivas gentis e encantadoras.
- Senhoras solteiras gentilissimas damas.
- ditas casadas virtuosas esposas.
- ditas viuvas inconsolaveis.
- Quarentonas interessantes senhoras.
- Jarrões respeitaveis damas.
-
- Creanças que nascem robustos meninos.
- ditas que vivem interessantes filhinhos.
- ditas que morrem innocentes anjinhos.
- ditas que, nem nascem,
- nem morrem, nem vivem mallogrados.[5]
-
- Estudantes intelligentes e esperançosos.
- Meninas... de fallar infelizes peccadoras.
-
- * * * * *
-
-Como V. Ex.ª vê, aqui ha para tudo.
-
-É pedir por bocca.
-
-Esta classificação teve voga. Foi adoptada em Monsão, em Caminha pelo
-sr. Ricardinho, em Cerveira pelo sr. Romeu, em Vianna pelo sr. Eugenio
-Martins, em Paris pelo sr. Xavier de Carvalho, etc.
-
-Nas ilhas Sandwich é que eu não sei, mas vou sabel-o.
-
-Ora, nós podiamos fazer um contracto com as redacções: abatiam uns
-tantos por cento nas assignaturas e mandavam depois, sem adjectivos, os
-Cavalheiros, os Padres, as Meninas... de fallar, etc., que a gente cá se
-punha... a dispôr os _virtuosos e finos tratos_.
-
-Esta evidentissima e valiosa manifestação do progresso intellectual do
-nosso jornalismo deve-se, como disse, ao Justininho.
-
- * * * * *
-
-Justininho era correspondente de varios jornaes.
-
-Tinha um estylo especial, caracteristico, archaico, indigesto, tirante a
-classico.
-
-Por exemplo: se fosse necessario dizer n’um jornal, que a esposa do meu
-amigo Fabricio dera á luz um rapaz, e que já estava prompta para outro,
-eu empregaria, pouco mais ou menos, essas palavras.
-
-Justininho diria:
-
-_Como prenoticiamos, a virtuosa consorte do nosso dilecto amigo
-Fabricio, probo e honrado negociante d’esta formidolosa Praça, deu á
-luz na preterita terça feira, um robusto e interessante menino, que
-presentemente é o enlevo dos seus tão extremosos, quão apreciaveis
-progenitores, e o encanto de todos os que hoje gozam a doçura ineffavel,
-d’aquelle pequenino ser._
-
-_A parturiente encontra-se já, graças ao Altissimo, liberta de perigo,
-devendo, tambem, a sua rapida convalescença ao desvelo e intelligentes
-cuidados do distincto e perito facultativo, o sr. dr. Pacheco._[6]
-
-_A suas ex.ᵃˢ endereçamos, em nome da redacção, os nossos emboras; e
-seja permittido ao auctor d’estas mal esboçadas linhas, incluir as suas
-cordiaes felicitações, que já algures exprimiu, como o mais obscuro, o
-mais somenos admirador das excelsas virtudes, que exuberantemente adornam
-suas Ex.ᵃˢ_[7]
-
- * * * * *
-
-Ora aqui tem V. Ex.ª o que é uma imaginação fertil, e a triste figura que
-faz um pobre Fabiano, como eu, quando escreve nas gazetas.
-
-O sr. Verissimo de Moraes, em tal caso, escreveria, ou não escreveria o
-mesmo.
-
-Se fosse convidado para a festa do baptisado, usava exactamente
-d’aquelles termos, e accrescentava:
-
-_Todos os convidados d’aquella esplendurosa e inolvidavel festa se
-retiraram altamente penhorados, com a maneira fina e delicada, e
-inexcedivel amabilidade—que só a verdadeira fidalguia de sentimentos e
-nobreza de caracter podem conceder—com que o Ex.ᵐᵒ Sr. Fabricio e sua
-Ex.ᵐᵃ Esposa acolheram as pessoas, que tiveram a honra de entrar em sua
-casa._
-
-_Que perduravel ventura, e immensas felicidades, bafejem o berço do
-penhor de tantos affectos..._
-
-Se não fosse convidado, o parto e o baptisado seriam assim annunciados:
-
-_A esposa do sr. Fabricio deu á luz um rapaz, que hontem, ás seis e meia
-da tarde, foi baptisado na egreja parochial de S. Estevão._
-
-E eu faria o mesmo, se tivesse jornal. A gente trata bem, quem bem a
-trata. Isto já era assim no tempo de Noé e ainda não havia gazetas.
-
-N’esta classe de gazeteiros, quem rasoavelmente se distingue, é o Aurelio.
-
-Tem um estylo _á_ Victor Hugo e _á_ Guerra Junqueiro.
-
-Isso explica-se muito facilmente.
-
-Está provado que a Materia anda n’este mundo, em constante giro; e que
-as moleculas, que actualmente estão no corpo A, podem muito bem estar,
-ámanhã, no corpo B.
-
-E sendo assim, não admira que na massa cerebral aureliana, se anichem
-algumas cellulasitas vagabundas e patuscas dos grandes poetas.
-
-Recordo-me, ainda, d’aquella grande questão, que elle sustentou, no
-_Primeiro de Janeiro_, contra o Exercito, por causa do Real d’Agua.
-
-Ahi vae um trecho e diga-me V. Ex.ª, se lhe não parece que está lendo a
-_Morte de D. João_, ou a _Legenda dos Seculos_:
-
- A lei é só uma com a espada da Justiça!
- Palpitam corações nobres, sob as dobras da jaqueta,
- Como palpitam e se orgulham debaixo da fardeta.
- Quer se cinja uma espada, quer o cabo da rabiça,
- Ha leis a obedecer. E com vontade, ou com magua,
- Das batatas e do bacalhau que gastaes da Cooperativa,
- Haveis de pagar, inteira, completa e positiva
- A decima que todos pagam: os direitos do Real d’Agua![8]
-
-Aurelio tem, tambem, incontestavel merecimento no theatro; mas nas
-doiradas espheras em que, entre nós, a Arte alli se expande e libra,
-nunca a minha nervosidade e a dynamica do meu espirito foram, tão
-extraordinariamente abaladas, como n’essa saudosa noite, em que aos
-meus olhos e sentidos, se patenteou a intuição artistica mais nitida,
-a percepção psychologica mais frisante, que tenho logrado admirar nos
-palcos dos grandes centros civilizados.
-
-Alludo á magistral execução e genial relevo que, na _Morgadinha de Val
-d’Amores_, deram aos seus papeis, os meus amigos Machado e Romano.
-
-V. Ex.ª deve recordar-se...
-
-Representava-se o _auto_ entre moiros e christãos. Figuravam reis,
-prophetas, anjos, _princezes_, pagens, _donzellas_, pastores e
-pastorinhas.
-
-Das bandas do Oriente surgem: Manassés—o propheta, e Adonis—o _princez_.
-
-As meias da sopeira, solidamente atadas, com tres voltas de fio de vela
-e nó cego, acima da articulação do femur com a tibia, desenhavam-lhes
-as linhas bamboleantes do pernil, escassamente roliço para despertar
-sensações eroticas; o pé, pequenino e adamado, encafuava se, gentilmente,
-n’um cambado sapato de entrada _abaixo_, com fivela doirada; o calção
-retesado limitava-lhes a curvatura das nadegas; dos hombros pendia-lhes
-graciosa quinzeninha de velludo defuncteiro; na cabeça, um carapucinho
-patusco, com o seu tope arrebitado.
-
-Nas faces mimosas e assetinadas, espetára a mão endiabrada do Rocha
-ferozes matacões de caprina pellugem, e enfarruscára as sobrancelhas
-avelludadas, com repetidas fricções de rolha queimada, embebida no azeite
-do purgueira.
-
-Marchavam com fronte altaneira, nariz repontante, seguidos pela sua côrte
-de paradas-velhas, ao compasso do hymno picaresco, que o meu amigo Argar,
-com a sua finissima intuição artistica, tão caracteristicamente soube
-conceber, adaptar e colorir.
-
-Ao apparecimento de tão illustres personagens—um propheta e um
-_princez_—abalaram-se os alicerces do edificio, com a violenta
-expansibilidade dos applausos. Ao longo da medulla espinal, desde o bolbo
-rachidiano até á cauda equina, corriam-nos vibrações de enthusiasmo; as
-senhoras choravam; os homens arremessavam os chapéos; os paradas-velhas
-e esplanadas do _loiceiro_, impregnando o ambiente, no sonoro
-explodir do seu arrebatamento, de exhalações duvidosas e aromas assaz
-compromettedores, irrompiam em galhofeiras invectivas de affectuoso e
-_intimo_ conhecimento, com os pagens e as _donzellas_ da real côrte:
-
-—Vira para lá a rabáda, oh Transmontana!
-
-—Tens o rancho á espera, oh 35 da 4.ª
-
-—Pica o pé, oh Estrella!
-
-..............................
-
-E na intima audição do meu espirito, entre os fulgores e as scintillações
-d’aquelle gloriosissimo triumpho, subjectivou-me, subito, o Senso:
-
-Oh filho! Quanto póde a... Arte!
-
-..............................
-
-Mas... onde diabo está o Justininho?
-
- * * * * *
-
-Justininho era o fiel depositario, o mais denodado paladino das gloriosas
-tradições, que apresentam Valença, como a terra da provincia, em que ha
-mais convivencia, e em que as senhoras se apresentam, melhor, n’um baile.
-É uma superioridade, esta, como qualquer outra. Cornelia, Joanna d’Arc,
-Filippa de Vilhena, Deu-la-deu e outras matronas distinguiram-se a seu
-modo. São feitios.
-
-Foi elle, tambem, o inventor d’aquella celebre phrase, ainda hoje acceite
-e adoptada, quando necessitamos occultar a nossa inercia, as nossas
-fraquezas, ou a nossa ingenuidade provinciana. _Valença é madrasta para
-os seus e mãe para os estranhos._
-
-Nunca pude comprehender o que Justininho, e outros sectarios da sua
-eschola philosophica, querem dizer na sua—n’uma terra, que não acceitou
-o legado do Conde de Ferreira, em que a Politica é o que sabemos,
-e em que os jovens engraçados, que hoje possue, se riem franca e
-desassombradamente, quando, nos bailes da Assemblea, uma senhora
-tem a infelicidade de cahir, ou quando, nos bailes de Tuy, onde são
-obsequiosamente acolhidos, mettem os cotovellos á cara dos infelizes
-pares, que de perto os seguem.[9]
-
-São tambem opiniões... e feitios.
-
-Ainda hei-de interrogar, sobre este ponto, os srs. Abreu e Oliveira, que
-são os homens que, por aqui, vejo mais nos casos de fallar de tudo e de
-todos, com auctoridade e competencia. Esses senhores devem saber muitas
-coisas e todas a fundo. Basta observar aquella constante concentração de
-espirito, e completa indifferença, com que encaram este mundo.
-
-São cerebros, que, indubitavelmente, trabalham na resolução de grandes
-problemas sociaes.
-
-Lembram-me tanto Mr. Prudhomme...
-
- * * * * *
-
-Justininho tinha muitos diplomas de Socio Honorario e de dito benemerito;
-tinha pennas d’oiro e de prata, etc. Era um perfeito rapaz de sala;
-recitava poesias; tinha album para ellas; conhecia uma infinidade de
-marcas no jogo do Senhor Abbade; e, para os rapazes, tinha uma grande
-habilidade: assobiava magistralmente.
-
-Atacando um _spartito_ de Mozart, de Verdi, de Gounod, ou a cadencia
-das valsas de Strauss, de Metra, ou de Waldteufel, aquelle assobio
-tinha a malleabilidade d’um rouxinol, a limpidez das notas da Patti, o
-crystallino da escala de Gayarre, ou do Masini. Quando, em noites de
-luar, Justininho passava na rua de S. João, todas as janellas se abriam
-para dar passagem, até aos leitos conjugaes, ás ondas sonoras, deslocadas
-pelo assobio.
-
- * * * * *
-
-Ora, como V. Ex.ª deve ter verificado, não lhe faltavam condições para
-inspirar sympathia e, certamente, vae ficar admirado, quando lhe disser,
-que havia quem embirrasse com elle!
-
-Era o sr. Coronel Almeida. Chamou-lhe, por ironia, _importante_ cá da
-terra.
-
-Ignoro as razões, que originaram a antipathia de sua Ex.ª
-
-Tambem por cá havia muita gente, que embirrava com o sr. Coronel. O
-Isidoro diz que elle era um homem muito fino; mas o Agostinho torce o
-nariz e Agostinho é homem, que se não engana, que é consultado pelas
-pessoas mais importantes da nossa terra, homem que sabe o que diz, e que
-não dá _ponto sem nó_.
-
-Seria bom, ou mau, como quizerem. O que eu digo, é que era muito feio;
-mais feio ainda, do que o sr. dr. Salgado!
-
-Devo ao sr. Coronel um grande serviço e um grande desgosto.
-
-Conto o primeiro:
-
- * * * * *
-
-Eu tinha ido ouvir um sermão do Padre Capellão, em que sua
-Reverendissima, desviando-se, completamente, no estylo, na fórma,
-na sublimidade das ideas, na concepção das imagens, no arrojado da
-Phantasia, da vulgar Oratoria do Palmeirão e quejandos, me descreveu,
-d’uma fórma completamente original, intuitiva e concludente, em face da
-moderna Sciencia, a maneira como o animal homem appareceu n’este mundo.
-
-Foi no Eden. Eva tinha ido aos grillos, mas estes, sahindo rebeldes á
-_palheira_ e, como ella não conhecia ainda o outro meio _natural_ de
-os fazer abandonar a toca, andou por montes e valles, cançou-se, e...
-adormeceu.
-
-Veiu então Nosso Senhor, tirou-lhe uma costella, bufou-lhe e sahiu, já
-prompto e acabado, o nosso primeiro Pae.
-
-Ora, isto satisfez completamente o meu espirito; dissipou todas as
-duvidas, porque é, realmente, uma das mais... respeitaveis e maravilhosas
-concepções dos livros sagrados.
-
-Mas, passado pouco tempo, soube eu que, lá fóra, andavam ás turras
-differentes sabios por causa de novas theorias de evolução, selecção
-natural, transformismo, etc., sustentadas por Darwin e Lamark e
-combatidas por Linneu e Cuvier.
-
-Alvoroçou-se a minha curiosidade e tratei de estudar a questão, com a
-attenção devida á sua importancia.
-
-Durante muito tempo, nunca tirei o caso a limpo. Se passava por o sr.
-José Luiz,[10] dizia com os meus botões: vou com Darwin; se passava por o
-sr. Velloso dizia: vou com Cuvier.
-
-Assim estive muito tempo, hesitando, e sem saber se, realmente, o meu
-coccyx foi sempre o extremo da columna vertebral, ou se em tempos
-remotos, esteve ligado a algum appendice, que hoje tem um nome muito
-sympathico ao sr. Marquez de Vallada.
-
-Chegou o sr. Coronel a Valença e entrou a verdade no meu espirito. Fez-se
-a luz! Venceu Darwin.
-
-Indubitavelmente, inquestionavelmente, o sr. Almeida não teve a mesma
-origem, que teve o sr. Velloso; a não ser, que se possa admittir uma
-hypothese, mas com essa nada tenho, porque não entra no meu programma. É
-questão de portas a dentro:—que houvesse troca nas vias da expedição...
-
- * * * * *
-
-Agora conto o desgosto:
-
-Já lá vão quinze annos! Minha mulher andava, com licença de V. Ex.ª, no
-seu estado interessante.
-
-Uma noite, para lhe combater a insomnia, li-lhe uma historia do Egypto,
-em que figurava o grande Sesostris, que morreu, como se sabe, ha perto de
-4:000 annos e de que existe a mumia n’um museu qualquer.
-
-Havia, n’essa historia, mortes, egypcios de barriga furada, pharaós com
-as tripas de fóra, creanças desventradas, velhos postejados—uma matança
-de arrepiar carnes e cabellos.
-
-O livro tinha gravuras e n’uma pagina, via-se o grande Sesostris
-mumificado por aquelles processos, ainda hoje ignorados, dos antigos
-egypcios.
-
-Minha mulher não gostou e affligiu-se. Fechei o livro e abri a porta,
-para ir cumprir uma necessidade urgente.
-
-N’isto, passa na rua o sr. Coronel, e logo que minha mulher o vê, desata
-a berrar:
-
-—Ai o Sesostris! Ai o Sesostris!
-
-Teve uma syncope e, depois, dôres violentas.
-
-D’alli a duas horas a sr.ª Maria do Hospital aproximava-se de mim e,
-com aquella amabilidade, delicadeza e fino trato que, infelizmente, lhe
-conhecemos, dizia-me estas terriveis e significativas palavras:
-
-—Senhor, nada de affligir, porque a _fabrica_ ainda cá fica; mas esta...
-deu-a para fóra!
-
-..............................
-
-Comprehendi. E no auge da minha dôr, para explosão da minha cólera, só
-pude exclamar:
-
-Raios partam o Sesostris!
-
- * * * * *
-
-Deixemos coisas tristes...
-
-Eu fallei no Velloso...
-
-Este Candido Velloso, com os seus olhos negros, com o seu collete
-branco, o seu collar decotado, a sua perna bem lançada e elegante, o
-seu pequenino bigode _á mosqueteiro_, e com o oiro do seu uniforme, é o
-terror dos Paes de familia d’esta região peninsular.
-
-João, é Candido e candido; meigo, carinhoso, delicado, para o bello
-sexo. Tem a sensibilidade d’um bardo; a alma sonhadora d’um menestrel; o
-espirito cavalheiresco d’um paladino; a pureza immaculada d’um Abeillard;
-o lyrismo d’um Romeu; a altivez d’um Quichote—todos os attractivos,
-emfim, d’um João com Dom e ás direitas.
-
-Cinco seculos antes, e Velloso seria um dos onze companheiros de Magriço,
-n’aquella cavalheiresca aventura da côrte ingleza.
-
-Apparece em toda a parte, onde ha senhoras. Corteja, sorri, offerece os
-seus serviços e conta coisas, que entretêm.
-
-A sua organisação affectiva é poderosissima. Com o amôr, as contracções
-dos ventriculos, para a diastole e para a systole, realisam-se com uma
-força equivalente a 750 kilogrammetros por segundo.
-
-O seu coração é um enorme _caravanserail_. Tem cem auriculas e cem
-ventriculos, com a capacidade de 64 metros cubicos cada um. Os amôres
-cabem lá dentro vestidos, calçados e com guarda-chuva aberto.
-
-Cada um tem o seu quarto numerado. Ao levantar-se, Velloso, passa em
-revista todos os seus affectos e escolhe para o dia.
-
-Não revela preferencias, para não originar baralhas. Ás vezes desapparece
-da circulação, porque os Papás valencianos e tudenses, aterrados,
-inquietos, vão ter com o sr. Silva Pereira e exigem-lhe a deportação do
-incendiario.
-
-Lá vae para Castro Laboreiro. Quando é necessario por cá, basta
-pronunciar baixinho, esta palavra:—baile. No aureo tempo, em que João
-Morães era enthusiasta pelas danças e promovia aquellas _apatuscadas
-reuniões-familiares_, em que a gente ía á Assemblêa, para apprender
-a fazer meia, ou para ajudar a dobar maçarocas e novelos ás
-senhoras—acontecia ás vezes o seguinte:
-
-João Morães lembrava-se d’um baile. Só no seu cerebro se definia essa
-idea. Matutava sobre o caso. Fechava-se no gabinete e, concentrando todas
-as suas faculdades, principiava o orçamento.
-
-Calculava e annotava:
-
- =Chá= (póde ser comprado aos homens do papel, que o
- vendem a 800, o kilo) $372
-
- =Assucar= (Metade do _pilé_ e metade do mascavado) $723
-
- =Pão para fatias= (Cada peça dá 20, cada _cornucho_
- dá 12) 1$207
-
- =Manteiga para as tostas= (Vende-a o Coisa a 200,
- o kilo, com ranço; póde ser misturada) $247
-
- =Carqueja e lumes de pau= $015
-
- =Agua de Colonia= para o _toilette_ das damas (1
- quartilho, de Tuy) $060
-
- =Pó d’arroz= (e farinha) $030
-
- =Aluguel do= _Panorama_, ao Albino $120
-
- =Illuminação= (nas escadas póde ser de sebo) 1$473
-
- =Contracto= com 3 cavalheiros para cearem em casa 3$900
-
- =Roscas de Tuy= para os quatrocentos meninos e
- meninas, que costumam vir aos bailes 12$747
-
- =Gratificação ás amas=, que tomem conta dos que
- ainda mamem 1$500
-
- =Piões e faniqueiras= para os mais velhinhos se
- entreterem no salão $140
-
- =Musica de Ganfey= para tocar á porta o hymno
- real, quando entrar o Representante do Rei,
- Nosso Senhor 6$000
-
- =Gratificação= a 4 artilheiros para, armados,
- guardarem os taboleiros, na passagem do corredor 2$000
-
- =Brinde= ao Aurelio para recitar uma poesia tragica:
- valor de $700
-
- =Idem= ao Roldão para marcar as quadrilhas: valor de $720
-
- =Gratificação= a 6 creados $300
-
-Total 30 mil e tanto. Por cabeça—tanto. João Morães verificava. Tirava
-a prova dos nove. N’isto, batiam discretamente á porta. João abria e
-cahia-lhe o Velloso nos braços, offegante, pallido. Vinha do Castro
-Laboreiro a pé, a cavallo, no comboyo.
-
-—_Sei que projectas um baile. Ahi tens a minha quota. Risca; e olha lá—oh
-menino—vê se arranjas isso depressa. Passam-se tão bem aquellas horas..._
-
-Este João deve ficar na terra. Deve ser expropriado por utilidade
-publica. Barcellos, que se arranje lá, como quizer. O Velloso Candido é
-que para lá não volta. _D. Joões_ temos muitos por cá; agora, candidos,
-ha só um, que é elle; e esses, é que se apreciam, porque não fazem mal.
-
-Velloso Candido! Trata de te matrimoniar, filho.
-
-Oh diabo!... E a Mé...?
-
- * * * * *
-
-Em Politica, Justininho foi sempre, como eu—um desgraçado. O mais que
-podia conseguir, (e n’isso levou-me a palma) era um convite para fazer
-parte das mesas eleitoraes. Pois arranjou popularidade nas aldeias. Os
-lavradores respeitavam-n’o e affirmavam, que tinha _lume_ no ôlho.
-
-Em leis do Real d’agua e da Contribuição do Registro era um Salomão.
-
-Ahi vae um exemplo:
-
-Os guardas do fisco trouxeram-lhe, preso, um camponio, que tentára
-introduzir na villa, sem direitos, um garrafão com meio almude de vinho.
-
-Perguntou o desgraçado quanto tinha a pagar e, aterrado com a multa e
-tantos por cento, nas barbas honradas da auctoridade, levou o garrafão á
-bocca e despejou-o d’um trago.
-
-Nada se podia fazer, porque o Regulamento não previne esse caso.
-
-Sahiu o homem, mas ao virar a primeira esquina, sentindo-se afflicto,
-levou as mãos á bocca e despejou o vinho.
-
-Justininho vê isso e manda-o novamente prender. Intima-o a pagar direitos
-e multas correspondentes.
-
-—Mas eu bebi o vinho, senhor!
-
-—Bebeu, mas deixou-o ficar na villa, dentro de barreiras. Alli está,
-introduzido sem pagamento de direitos. Art. 1007.º do Regulamento de 6 de
-Maio de 1884. Pague!
-
-—Mas eu _esgumitei-o_[11], senhor!
-
-—O dito Regulamento, no seu paragrapho de isenções, não lembra esse caso.
-Pague!
-
-E pagou, que não houve volta a dar-lhe. Nem sete doutores o salvavam.
-
- * * * * *
-
-Ora aqui está, o que pude _apanhar_ ao Justininho d’outros tempos. Hoje
-está homem sério, como eu; já nem escreve nas gazetas, o que é realmente
-para lastimar, porque nem a gente sabe quantos robustos meninos, por ahi
-nascem.
-
- Justininho,
-
- boas noites.
-
-
-
-
-III
-
-Carta a Sua Excellencia, o sr. Governador... de Paysandu
-
-
- Senhor!
-
-Tenho a honra de me apresentar a V. Ex.ª
-
-Sou o Zinão.
-
-Quarenta annos; casado, e com bom comportamento moral, civil e religioso.
-
-Nunca tive contas com o Borralho, nem com o Assiz dos Algarves, nem com o
-Julinho.
-
-Sou de muito bom genio; depois que vi as caras feias, que fazem os srs.
-Barros e João Monteiro, quando se zangam, abracei immediatamente as
-doutrinas philosophicas da eschola optimista, e digo com Leibnitz: «Tudo
-vae bem n’este mundo, que é o melhor possivel.»
-
-Sou irmão da Misericordia e approvei a admissão das irmãs de Caridade,
-porque em coisas de religião sou muito temente a Deus, como o sr. José
-Narciso. Tenho bulla, porque se a não tivesse, quero dizer, se a não
-pagasse, diz a Santa Madre Egreja, que era peccado comer carne.
-
-Vou á missa e á desobriga; além d’isso, sendo amigo intimo do sr.
-Baptista e, como affirma o dictado, os amigos dos meus amigos, meus
-amigos são, tambem sou das relações intimas da Senhora do Faro, que
-tem tomado chá na casa d’elle, e com quem este senhor se trata por tu,
-jogando, nas noites de inverno, a bisca e o 31 de bocca.
-
-Tambem sou militar, porque pertenço á terceira reserva.
-
-Respeito a mulher do meu proximo. Sou economico; tenho chapéos ainda mais
-antigos, que os do sr. Polycarpo.
-
-Como portuguez, amo a minha patria; odeio os ibericos, como o sr. João
-Ignacio.
-
-Em Politica sou legitimista, como o sr. Santa Clara, porque ninguem me
-tira da cabeça, que estes reinos pertencem ao sr. D. Miguel e a mais
-ninguem.
-
-Tenho sido, por vezes, Juiz de Paz e, se na minha terra me não guindei,
-ainda, ás alturas a que chegaram os srs. Joaquim, que se carteia com o
-Ministro do Reino, ou o sr. Illydio Dias, que com a sua Bibliotheco-mania
-telegrapha ao Rei, como amigo velho, quem viver verá, que talvez consiga
-roubar-lhes o pennacho.
-
-Ora aqui está a minha folha corrida; e por ella já Vossa Excellencia vê,
-que sou homem sério e que, se não moro na rua de S. João, podia muito bem
-lá morar.
-
- Excellentissimo Senhor!
-
-Dizem-me que Vossa Excellencia está prestes a deixar-nos, para ir
-fulgurar na brilhante constellação dos nossos generaes; e não quero que
-isso succeda, sem apresentar a Vossa Excellencia a homenagem sincera
-do meu respeito e enthusiastica veneração, porque considero Vossa
-Excellencia, como um dos melhores Governadores, a quem, para felicidade
-d’estes povos e d’estes reinos, Sua Magestade tem havido por bem confiar
-o _governo_ d’esta Praça.
-
-Na pleiade de homens illustres que, ha doze annos para cá, teem
-_governado_ Valença, Vossa Excellencia destaca-se pelo seu senso,
-illustração, excessiva modestia e desprendimento das glorias do mundo,
-que tão tentadoras e offuscantes são, quando, após annos de lucta, de
-vigilias, de laboriosas lucubrações de espirito, de penosissimo labutar
-das funcções cerebraes com senos, cosenos, raizes quadradas de _a_ e
-ditas cubicas de _b_, chega a gente a alcandorar-se nos inaccessiveis
-pinaculos d’uma tão elevada posição social.
-
-Os dois illustres antecessores, que precederam Vossa Excellencia,
-eram e são muito boas pessoas; mas alargavam demasiadamente a esphera
-das dependencias da Praça, de fórma que faziam incluir no seu
-Estado-maior uma certa pessoa, clara já, talvez, á perspicacia de
-Vossa Excellencia—pessoa que, até alli, tinha a seu cargo o caridoso e
-humanitario mistér de desobrigar pessoas serias, como eu, Excellentissimo
-Senhor, e que, depois da chegada de Suas Excellencias, se viram na dura
-necessidade de, ou desviar para outra applicação a sua potencia vital,
-como, por exemplo, para o estudo de construcções, principiando com a
-rudimentar disposição das traves nos tectos, ou a curtir... as suas
-maguas pelas muralhas, entregando, assim, o organismo á terrivel atonia
-d’essa perigosa enfermidade, que a todos ataca na puberdade. (Vossa
-Excellencia tambem devia dar o seu contingente...)
-
-Ora, o tal monopolio, Excellentissimo Senhor, tornou-se muito funesto á
-povoação. Foi, até, na epocha d’elle, e por causa d’elle, que aconteceu
-aquella grande desgraça ao sr. Abilio Araujo...
-
-Eu sou muito amigo de Vossa Excellencia e Vossa Excellencia tambem é meu
-amigo. Sou d’aquelles que, no dia do Anno Novo, apanham o seu quinhão nas
-_boas festas_ que Vossa Excellencia, lá das alturas, se digna dar, como
-os antigos senhores feudaes, á burguezada e aos paradas-velhas, cá da
-terra.
-
-Depois, venero Vossa Excellencia, porque é um homem energico, que tem,
-como o povo diz (e realmente tem) cabellinhos na venta (com o devido
-respeito).
-
-Aquella felicissima resposta, que Vossa Excellencia deu ao Padre
-Magalhães, quando elle foi pedir para a Semana Santa com o innocente sr.
-Joaquim e com o ingenuo Abbade das Gandras, foi fulminante de espirito;
-foi á Pombal, á Richelieu, á Pitt, á Bismarck, á Duque d’Olivares; teve
-a potencia explosiva d’uma bomba á Orsini, ou d’um petardo nihilista,
-preparado chimicamente, com os mais poderosos elementos endothermicos.
-
-Disse-se, por ahi, que Vossa Excellencia procedera mal; porque, se queria
-dar carambola ao _Noticioso,_ que lhe chamára General não sei de que, não
-devia escolher para bola vermelha um homem que ia de preto, que tinha
-entrado na sua sala de visitas, onde, até a pretalhada do Bonga, que
-pouco sabe de hospitalidade, recebe e trata bem a gente.
-
-Accusaram Vossa Excellencia de ter faltado, n’essa occasião, aos mais
-rudimentares preceitos da delicadeza e até se asseverou, fazendo justiça
-ao caracter de Vossa Excellencia, que a tal resposta foi soprada ao
-ouvido, por Sua Excellencia, o Senhor Vice.
-
-Eu não sou d’essa opinião. Vossa Excellencia respondeu e respondeu
-muito bem. N’isto de militanças praceiras, não ha attenções, nem
-hospitalidades, nem sala de visitas, ha... o regulamento do Conde de
-Lippe! Quem o não acatar... leva a sua conta, e assim é que deve ser.
-
-O Padre devia ficar ainda mais pequeno do que é, mas Vossa Excellencia
-tambem escapou de boa! Se elle tem ao lado o Sant’Anna, lá do Porto,
-Vossa Excellencia bem podia gritar por Sua Excellencia, o Senhor Vice...
-
-Então o caso era serio!
-
- * * * * *
-
-Depois, quem não ha-de respeitar Vossa Excellencia, com a sua
-variadissima illustração?
-
-Nunca me hei-de esquecer d’aquelle esplendido discurso, que Vossa
-Excellencia, de improviso, pronunciou na Assemblea, em 20 de janeiro de
-1887, quando tomou conta da Presidencia. Sei-o de cór; e tão profunda foi
-a impressão, que causou no meu espirito, que até n’elle ficaram gravados
-os ápartes e as interrupções.
-
-Se Vossa Excellencia dá licença, eu repito alguns periodos. Os ápartes,
-para falar a verdade, são ainda para mim um tanto enigmaticos, mas deve
-haver por ahi, quem os possa explicar a Vossa Excellencia.
-
-Ahi vae uma tirada:[12]
-
- «... As prestimosas agremiações, como esta, com que as
- Sociedades modernas procuram deleitar e amenizar os espiritos,
- após as laboriosissimas horas da lucta e contrariedades da
- vida, nascem, crescem e desenvolvem-se, como essas enormes,
- vas- (_o sr. capitão Marques da Costa:—Vaz? É o amigo Lopo?
- Então appoiado!_) tas e florescentes ilhas do Atlantico e
- Pacifico, formadas pela organisação rudimentar das algas
- marinhas e de myriadas de seres microscopicos, da familia dos
- polypos, classe dos coelenterados, grande grupo dos radiados,
- ou zoophitos. (_Os srs. Roldão, Polycarpo Monteiro, Zagallo e
- outros cavalheiros versados em sciencias naturaes:—muito bem!_)
-
- «Da Natureza, meus senhores, deliciam-nos as suaves fragancias
- das flores: a modestia da violeta; a pureza immaculada do
- lirio; o murmurar dos bosques, os seios tumidos (_o sr. José
- Lopes, da Principal:—appoiado!_) da donzella, os alvores da
- madrugada e o canto das avesinhas. (_Os srs. Alberto Marques,
- Gaspar Durães, Justino Guerra e outros poetas e prosadores da
- estafada eschola romantica:—muito bem!_)
-
- «Pois na vida social, as horas fugitivas, que aqui deslizam
- em encantador e aprazivel convivio, com os Cavalheiros de
- fino trato (_o sr. Verissimo de Morães:—appoiado!_) e com as
- amaveis, airosas e donairosas e gentilissimas damas d’esta
- formidolosa Praça (_os srs. Justino Guerra, Eugenio Martins e
- Soares Romeu, interessantes collaboradores do interessantissimo
- «Mensageiro das salas»:—appoiado!_) ou com as encantadoras
- hijas da hidalga y noble Espãna (_o sr. D. Ramon:—Ká! Muy bien!
- Maunifico! Precioso. Ká! Seño Gobernador: Viva la gracia! Ká!_)
- bellas, como uma virgem de Murillo e castas, como a esposa de
- Jacob, de que me não recorda agora o nome (_diversas pessoas
- serias:—appoiado!_) quando as cingimos em suave enleio, no
- vertiginoso redemoinhar da valsa (_o sr. Salazar Muscoso:
- muitobemmuitobemmuitobem!_)[13] ou quando as brindamos com
- preciosas iguarias e delicados vinhos _(os srs. C. Oliveira,
- Verissimo de Morães, um Cavalheiro de Tuy e outro de Monsão,
- que não tive a honra de conhecer:—appoiado!_) essas horas,
- repito, representam em a nossa vida social aquellas alegrias da
- Natureza!
-
- «Não ter alma para sentir isto, meus senhores, como muito bem
- disse o nosso grande ex-historiador[14] Alexandre Herculano, é
- proprio d’um ser doentio; é, como vulgarmente se diz, proprio
- de gente pequena. (_Protestos ruidosos dos srs. dr. Ladislau,
- Alvaro Garção e P. Magalhães.—O sr. dr. Pestana:—peço a palavra
- para explicações._)
-
- Trabalhar, pois, para esta Sociedade é uma acção de elevado
- patriotismo; (_o sr. José Lopes, da Principal:—muito bem!_)
- é uma acção de larga influencia regeneradora (_protestos dos
- srs. Alvares d’Oliveira, P. Cunha e Agostinho_) para os nossos
- costumes; é um symptoma da benefica evolução progressista;
- _(protestos dos srs. Appollinario, Camisão e do dito sr.
- Agostinho)_ é, emfim, como ainda ha pouco me disse, e disse
- muito bem, o sr. Capellão (_o sr. Leopoldo Gomes:—qual d’elles?
- Então Vossa Excellencia também gasta? Por isso eu estive á
- espera!..._) que aqui me ouve, uma missão altamente honrosa e
- humanitaria!
-
- «Por isso, meus senhores, unamos os nossos esforços e como
- os polypos e as algas.................... as algas....
- .................»
-
-Que Vossa Excellencia me perdõe o que vou dizer, mas... perdi o fio
-ao discurso e o melhor é ficar por aqui, porque, n’estas questões de
-Historia, não quero _metter_ de minha casa.
-
-_Verba volant, scripta manent..._[15]
-
- * * * * *
-
-Eu atrapalho-me sempre, quando falo de Vossa Excellencia, que representa
-para mim o que ha de mais alto, mais nobre e augusto, nas elevadas
-jerarchias e coisas serias da minha terra.
-
-Quando encontro Sua Excellencia nas ruas da vizinha cidade de Tuy,
-pisando com arrogancia e altivez, genuinamente portuguezas, o solo
-d’aquelles odiosos Filippes, seguido automaticamente, á distancia
-regulamentar, por alentado e escolhido artilheiro, como estabelece o
-regulamento de Sua Excellencia, o Senhor Conde de Lippe, eu tremo de
-respeito e envergonho-me de mim mesmo—pobre e mesquinho verme da terra.
-
-Quando assisto á entrada de Sua Excellencia, solemne, magestoso,
-omnipotente, rutilante de oiro e pedrarias, constellado de _crachás_,
-faiscante de venéras,—no templo de Santa Maria, em festividade da Semana
-Santa, para mandar prevenir as auctoridades civis e ecclesiasticas, que
-superintendem no cerimonial, que está alli, para, como unico e fiel
-representante de Sua Magestade El-rei, n’estes burgos,[16] depôr o osculo
-de respeito nos chagados pés do Senhor dos Passos, exactamente como, á
-mesma hora, faz o mesmo Augusto Senhor Rei, no templo da Graça—quando o
-vejo aproximar vagarosamente da veneranda imagem, n’aquelle passo grave,
-solemne e arrastado de solas, com que os prophetas de barba de guita e
-cara borrada com pós de sapato, acompanham em Tuy o sagrado esquife,
-e o ouço depôr o respeitoso osculo, confundindo assim, em edificante
-e enternecedora homenagem, a magestade dos céos com a magestade da
-terra—quando sigo, depois, Sua Excellencia na retirada do templo, rodeado
-do seu luzido e brilhante Estado-Maior, essa pleiade de homens illustres,
-que representam o que ha de mais intelligente, nobre e indispensavel
-nas instituições militares do meu paiz, homens encanecidos em mil
-batalhas contra columnas cerradas de algarismos, cifras e cifrões de
-indomitas contas de feijão e batata, do rancho geral, ou dos cadernos
-da arrecadação dos puxa-frictores, morteiros, colubrinas, missagras,
-lanternetas, chapuzes, cepos, boldriés, sacres, caçoletas, falconetes,
-lanadas, cucharras, soquetes, munhões, sotroços, trinque-bales, tira
-e mette-buchas e outros tarecos velhos, que nas dependencias da Praça
-são do exclusivo dominio e usofructo dos ratos e aranhões, formando,
-no seu conjuncto, collecção superior, em inutilidade, á feira da
-Ladra—quando eu vejo tudo isso, meu Senhor, sinto-me mais pequeno do
-que um feijão fradinho; mais sumido, do que um certo parasita que Vossa
-Excellencia, d’essas alturas em que vive, não enxerga, mas com o qual,
-eu, infelizmente, estou relacionado, desde que commetti a imprudencia
-de (com licença de Vossa Excellencia) verter aguas, detraz das portas do
-Meio, onde tambem o faz a soldadesca!
-
-Vossa Excellencia deslumbra-me; offusca-me; tem para mim as proporções
-d’um semi-Deus; mas quer Vossa Excellencia saber, respeitabilissimo
-Senhor?
-
-Ha, por ahi, gente tão nescia, tão ignorante, tão alheia ao mechanismo
-d’esta complicada engrenagem das instituições sociaes, que chega a
-perguntar (perdõe-lhe Vossa Excellencia) para que serve o Governo da
-Praça, alliando, ainda, á ignorancia, a grosseria de lastimar que, do que
-a gente paga nas decimas, do que se rouba ao trabalho honrado e aspero
-do lavrador e do padeiro, se desviem 500 e tantos mil reis mensaes,
-obra de sete contos por anno, para ter ahi (que malcreados!) n’um
-rasoavel sybaritismo, cinco ou seis servidores da patria, equiparados
-escandalosamente (dizem elles) em honras e proventos, ao official, que
-nos corpos atura, diariamente, o brutal trabalho do quartel, com enorme
-responsabilidade, com necessidade de instrucção e arriscado a, d’um
-momento para outro, receber ordem para expôr a caixa craneana á bala
-do trabuco assassino, que anda a monte, ou ao zagalote do bacamarte
-desordeiro e avinhado, nas grandes borgas eleitoraes.
-
-Eu, até, já ouvi dizer, Excellentissimo Senhor, que se isso era por causa
-das procissões, das missas pela alma do Senhor D. Pedro IV, ou
-da recepção das musicas gallegas, o Governo podia muito bem contractar,
-para tal effeito, os _gigantones_ de Tuy, ou os _barbacenas_ da Guarda
-romana, porque eram de mais apparato, era outra limpeza e ficava muito
-mais barato.
-
-Mas quer Vossa Excellencia saber ainda mais? Ha, até, n’esta terra de
-cafres, quem reponte com a posição original que Vossa Excellencia dá
-á sua boquilha, quando, nas ruas, se delicia com os aromas d’um bom
-charuto! Como se Vossa Excellencia, pelo simples facto de não ter Tosão,
-d’Oiro, que dá honras de principe e direitos a poder fazer a gente o
-que quizer, não tenha a plenissima faculdade de trazer uma coisa (a
-boquilha), como muito bem lhe appetecer, horisontal, ou ao dependuro,
-e como se esta ultima posição não fosse, realmente, a mais decente e
-apropriada á edade de Vossa Excellencia!
-
-Ora diga-me Vossa Excellencia, agora que desceu commigo a estes profundos
-abysmos da ignorancia popular, se é, ou não, necessario applicar, de
-vez em quando, a estes barbaros, umas espadeiradas á Macedo, ou quatro
-_mimos_ com o historico chicote do Bruto, digo, do Barão do Rio Zezere...
-
- Excellentissimo Senhor!
-
-Eu folgo de ter encontrado pretexto, para manifestar o meu respeito e
-veneração a Vossa Excellencia, mas, como esta já vae longa, abrevio o
-muito que lhe tinha a dizer e contar.
-
-Não se incommode Vossa Excellencia com as más linguas. Nosso Senhor Jesus
-Christo perdoou aos que não sabiam o que faziam. As realezas da terra,
-meu Senhor, são representantes legitimos da realeza dos céos. Affonso
-Henriques, quando em Ourique dava tapona na moirama, a folhas tantas,
-olhou para o céo e de lá fizeram-lhe um signal com a cruz, que queria
-dizer: _vences_. Constantino, quando se viu atrapalhado com os barbaros,
-olhou tambem para lá e o Padre Eterno fez-lhe o que a gente faz, quando
-está sentado na praia com o namoro, deante do futuro sogro e da rabujenta
-futura sogra e, não podendo dizer á rapariga: _amo-te, oh filha!_ escreve
-sorrateiramente essas palavras na areia, com a ponta da bengala. Pois o
-Padre Eterno foi-se ás areias do céo e, com a vergastinha com que tosa a
-canalhada miuda dos anjos e seraphins, escreveu tambem disfarçadamente:
-
-_In hoc signo vincis._
-
-Ainda ha mais exemplos, mas eu sou muito fraco em mnemonica.
-
-Ora, sendo as realezas da terra representantes da realeza dos céos, e
-sendo Vossa Excellencia representante da nossa realeza, como muito e
-muito bem disse e declarou, ao annunciar o seu osculo nos chagados pés do
-Senhor dos Passos, _ergo_, por irrefutavel syllogismo, Vossa Excellencia
-é tambem representante n’esta terra, de Nosso Senhor Jesus Christo! Isto
-não falha.
-
-Por conseguinte, Vossa Excellencia póde e deve perdoar, aos que não sabem
-o que dizem.
-
-Eu não lhe aconselho isto com interesse directo, meu Senhor. Vossa
-Excellencia nada tem que me perdoar.
-
-Eu adoro tanto as instituições da minha Patria, reputo tão necessarias e
-consentaneas, com as aspirações da epocha hodierna, as disposições dos
-regulamentos do sr. Conde de Lippe (que o diabo levou ha perto de 200
-annos e podia, mesmo, ter levado logo ao nascer) das quaes, a mais branda
-e attenciosa é mandar varar por uma bala[17] o desgraçado, que tenha
-o atrevimento de—utilizando-se da unica applicação d’essas muralhas e
-torturado com as ancias e arrancos de urgentissima necessidade corporea,
-sem poder esperar um unico segundo,—baixar as calças, (permitta-me Vossa
-Excellencia a liberdade que vae expressa, ainda assim, em portuguez
-de lei, do que usava o Padre Antonio Vieira) que, se tivesse alguma
-importancia politica, se fosse homem de prestigio e d’estes que valem
-uma eleição, como os srs. Joaquim, Cardoso e seu amigo P. Cunha, Alvares
-d’Oliveira, Santa Clara e Agostinho que, unidos todos no mesmo partido,
-belliscados para a victoria do mesmo candidato, são capazes de levar
-á urna, não digo 6, mas, talvez, para cima de 3 votos, se fosse homem
-d’essas craveiras, repito, era capaz de ir a Lisboa, apresentar-me ao
-sr. Zé Luciano, ao Senhor Rei, se tanto fosse necessario, e reclamar
-energicamente, como indispensavel ao brilho das nossas instituições, ao
-prestigio do nosso exercito, á manutenção da nossa dignidade nacional,
-mais um segundo Governador, com um segundo... (não me lembro do nome...
-ah!) Estado Maior.
-
-Sómente estabeleceria uma condição:—baseada no muito apreço, em que
-tenho os grandes homens da minha Patria; convencido da necessidade de
-haver aqui, na fronteira, nas barbas do hespanhol, quem dignamente possa
-representar o paiz—e seria: que, para fazer pár com Vossa Excellencia,
-não me dariam outro bis-Governador, que não fosse o grande, o saudoso, o
-inimitavel
-
- Zé da Rosa!!
-
- * * * * *
-
-E se tal conseguisse, ai que alegria a minha, quando encontrasse Vossa
-Excellencia na rua de S. João, com a gravidade propria a um representante
-de Sua Magestade El-Rei, de braço dado ao sr. Zé da Rosa, outro
-representante de Sua Magestade (a Rainha, não meu Senhor?), seguidos
-por Sua Excellencia o Senhor Vice, com o seu chapéo de pennas de
-capão, e com a espada politica de Brenno, ao lado do outro Senhor Vice
-(quem devia ser? O sr. Roldão, por exemplo. É da arma de cavallaria...)
-e depois, atraz, o Senhor Baptista da Senhora do Faro com os outros
-Estados-Maiores; e depois ainda, atraz, muita gente, a sociedade do
-_Provarei_, o Fileiras, o João de Ganfey, o Senhor Martinho, que deitava
-_la coca_, o Capellão (o n.º 2), todos os paradas-velhas, etc., etc.
-
-Com que arrebatamento então, meu Senhor, eu perderia as estribeiras
-e, mandando para o diabo a minha seriedade de Juiz de Paz, de irmão
-da Misericordia, de pae de filhos, como eu saltaria para a frente de
-_Vocellencias_ e perdido, enthusiasmado, louco, distribuindo pançadinhas
-e piparotes e atando nas Excellentissimas trazeiras este raboleva de
-ridiculo,—que é a suprema essencia de toda essa grotesca mascarada, com
-que gargalhada homerica, ensurdecedora, colossal, lhes não bradaria:
-
-—Oh que rica tropa fandanga!
-
-—Quebra esquina, minhá gente!
-
-Com o respeito devido a um Representante de Sua Magestade El-Rei, sauda
-_Vocellencia_ o
-
- _Zinão_.
-
-
-
-
-IV
-
-Uma descoberta do Dr. Charcot
-
-
-Accedendo a frequentes reclamações diplomaticas do governo de Sua
-Magestade, o Imperador do Brazil, resolvera o Governo de Sua Magestade
-El-Rei de Portugal, que o primeiro fôsse auctorizado a expulsar
-dois cidadãos portuguezes que, segundo officialmente se asseverava,
-incalculavel prejuizo estavam causando ao regular movimento dos
-negocios commerciaes e, portanto, ao desenvolvimento material d’aquelle
-florescente imperio.
-
-Não se fundamentava a necessidade da expulsão na cumplicidade em crimes
-politicos; attentados contra o Imperador, ou imperial familia; propaganda
-de ideas reaccionarias; troça ás preciosas producções poeticas de Sua
-Magestade; capoeirada nos chimpanzés da policia urbana, ou assuada ao
-Senhor Conde d’Eu.
-
-Allegava-se, unicamente, que esses individuos, penetrando nas repartições
-do Estado, nos estabelecimentos commerciaes, nos grandes edificios de
-industria, nas escholas, nas egrejas, nos clubs, nos passeios publicos,
-nas chacaras e nos _xadrezes_, em qualquer parte—emfim—interrompiam as
-manifestações da actividade d’aquelle labôrioso povo e creanças, mulheres
-e homens abandonavam, immediatamente, o exercicio de qualquer mestér,
-fugindo espavoridos e como fustigados, por mal extranho e desconhecido.
-
-A origem d’aquella nociva influencia, a natureza dos phenomenos que
-ella produzia, a complexidade dos seus effeitos, escaparam, sempre, á
-perspicacia dos doutos Galenos das terras do sabiá, porque as mesmas
-propriedades repulsivas obstavam ao demorado exame, que o caso requeria.
-
-Annunciava, n’essa epocha, o eminente Pasteur os seus primeiros trabalhos
-sobre Microbiologia, que tão poderosa influencia vieram exercer na
-orientação das sciencias medicas; e não faltou, no estudo investigador
-dos clinicos d’alem-mar, a applicação das novissimas theorias, com
-pacientes trabalhos de microscopio, observações por analyse e por
-synthese e outros processos que a Chimica medica aconselha e, até,
-com demoradas experiencias nas fezes em acção sobre os orgãos das
-cinco funcções especiaes da sensibilidade, incluindo a pituitaria e a
-membrana, onde se ramifica o nervo de Wrisberg.
-
-Lembrou-se alguem de classificar aquelles phenomenos, como _suggestões
-motrizes_ do moderno Hypnotismo; mas Charcot, Richer e Bernheim,
-consultados sobre o caso, oppozeram-se á diagnose, visto que elles
-se manifestavam sempre com a mesma intensidade, isto é, que todos os
-individuos soffriam egual influencia repulsiva e não se evidenciavam as
-differenças na sensibilidade á hypnose, que nos _sujets_ estabelece,
-como caracteristico, a diversidade de circumstancias physiologicas e
-pathologicas.
-
-Nada se podia descobrir.
-
-Havia no organismo dos dois individuos uma propriedade repulsiva,
-identica á das tremelgas, ordem dos selacios, grupo dos peixes
-cartilaginosos; mas desconheciam-se os elementos constitutivos d’essas
-propriedades e elles continuavam a exercer, em toda a parte, e a toda a
-hora, a sua funestissima influencia.
-
-Uma unica circumstancia se pôde descobrir, graças á perspicacia do mais
-reputado Esculapio da Tijuca, a quem se deve a preciosa descoberta
-da cataplasma de linhaça e foi: que diminuia, consideravelmente, a
-intensidade d’aquelles phenomenos, quando se isolavam os dois individuos,
-ou quando permaneciam incommunicaveis.
-
-Utilizando-se d’esta descoberta, o Governo do Imperador, attendendo aos
-laços de sangue e affecto, que unem os dois paizes, resolveu exportar a
-praga em epocha e vapor differentes. Assim se fez, com effeito.
-
-O governo portuguez, assustado com o flagello, que subitamente cahia no
-solo da Patria, reuniu immediatamente a Junta de Saude e, por indicação
-d’esta, foram os dois compatriotas enviados a Pariz—onde, n’outras
-espheras e com outros horisontes se dilata a intelligencia humana—para lá
-serem submettidos á analyse dos grandes Mestres da Sciencia.
-
-Após demorada observação e attento exame, o eminente Charcot, encontrou,
-emfim, a resolução do problema, que largamente foi demonstrada no
-_Boletim da Academia de Medicina de Pariz_, (mez de novembro de 1876)
-e, com prodigioso interesse, escutada por selecto auditorio, na mesma
-Academia, em sessão extraordinaria de 27 de dezembro, do mesmo anno.
-
-Não tendo aqui, presente, a lucida exposição do eminente sabio,
-limito-me a reproduzir, e certamente d’uma maneira deficiente e
-incompleta—attendendo á escassez dos meus conhecimentos scientificos—a
-theoria, em que Charcot baseou a explicação do estranho phenomeno.
-
- * * * * *
-
-V. Ex.ª sabe, como a moderna Sciencia explica, na Acustica, a producção e
-a propagação do som.
-
-«O som é o resultado d’um movimento vibratorio, communicado á materia
-ponderavel»—eis a base da theoria, hoje adoptada e conhecida por «theoria
-das ondulações».
-
-Conhece, tambem, o mechanismo da voz humana. A voz provem da acção do ar
-nas cordas vocaes. O ar, que sahe dos pulmões, produz, n’essas cordas,
-vibrações, mais ou menos rapidas, que transmittindo-se ás paredes da
-larynge se tornam sonoras, e que, depois, a acção combinada da lingua,
-das maxillas e dos labios, altera modifica e articula.
-
-Conhecido é, tambem, o mechanismo da audição. As vibrações executadas
-pelas cordas e transmittidas, em ondas, ao ar exterior, chegam-nos ao
-pavilhão do ouvido e vêm, pelo tubo auditivo, actuar na membrana do
-tympano. Seguem, depois, até ao ouvido medio, no ar n’elle contido, e,
-pela cadeia do estribo, do martello, da bigorna e do osso lenticular,
-reproduzem-se, ainda, nas membranas das janellas redonda e oval,
-communicam-se ao liquido, que existe no ouvido interno e d’alli, pelos
-filetes do nervo acustico, ao cerebro.[18]
-
-A potencia das vibrações, o deslocamento, mais ou menos violento, das
-ondas sonoras depende, portanto, alem d’outras circumstancias, da força
-com que os pulmões fornecem o ar, e da maior ou menor vibratilidade das
-cordas vocaes. Por isso, vêmos individuos com voz forte e penetrante,
-como o sr. Barros, e outros, com voz debil e sumida, como o sr. Nunes de
-Azevedo, que difficilmente se percebe.
-
-Ora succedia que, por uma disposição especial dos pulmões, da larynge
-e das cordas vocaes, aquella força expulsiva do ar e a vibratilidade
-das cordas, existiam nos dois individuos em grau extraordinario e ainda
-desconhecido para os mais eminentes physiologistas. D’essa disposição
-especial resultava, tambem, que a voz, já potente e forte, obtinha,
-ainda, consideravel augmento de intensidade com a reflexão nas paredes da
-larynge, attingindo o que em Acustica se denomina _resonancia_.
-
-Quando as vozes não encontravam obstaculo, pouco se conhecia esse
-augmento de intensidade, porque, então, se perdiam na atmosphera; mas,
-se as ondas deslocadas por cada uma se encontravam, era tal a violencia
-do choque e das vibrações, d’elle provenientes, que só a poderemos
-comparar, nos grandes phenomenos da Natureza, á rapidez e violencia
-das ondas do Oceano quando, açoitadas por furioso vendaval, avançam,
-chocam-se, equilibram-se com medonha expansão de força, recuam para
-formar novo salto, até que uma perde a força resistente, e a outra vence,
-esmigalhando, com espantoso ruido, tudo o que se oppõe á sua passagem.
-
-Este effeito destruidor soffriam todas as peças dos apparelhos auditivos,
-que o circulo da primeira projecção podia abranger.
-
-As membranas do tympano dilatavam-se n’uma dolorosa expansibilidade; o
-martello batia desesperadamente na bigorna com o mesmo furor, com que
-Mestre Borralho batia a sola, quando não era director dos Presidios
-civis; o estribo andava aos saltos, como anda em corcel fogoso, quando,
-no meio da batalha, entre o rugir da artilheria e o sibilar das balas,
-perde o cavalleiro e parte, desvairado e furioso.
-
-Na trompa de Eustachio desencadeava-se um verdadeiro cyclone.
-
-Nem as trombetas de Josaphat, n’esse terrivel dia do Juizo final, poderão
-egualar o infernal ruido, que supportavam os apparelhos auditivos.
-
-Depois, para aggravar o flagello, dotára Deus os dois individos com
-uma extraordinaria loquacidade, e constante verborrhea que, de dia
-e de noite, lhes agitavam nervosamente os labios para questionarem,
-discutirem, argumentarem sobre tudo e sobre todos, em portuguez, em
-francez, em latim, em allemão, em quantas linguas vieram de Babel.
-
-Era sempre de funestos resultados, de dolorosas consequencias a sua
-presença, e por isso, homens, mulheres e creanças fugiam, prestes, ao
-sentil-os, interrompendo todas as manifestações da sua actividade e todo
-o exercicio dos seus mestéres.
-
-Desculpavel fôra, pois, o proceder do Governo brazileiro, expulsando os
-nossos compatriotas.
-
- * * * * *
-
-Ora aqui tem V. Ex.ª, sem exaggero, sem alterações da verdade (que, por
-ahi, n’este assumpto, tanto tem sido alterada) subordinada a rigorosa
-demonstração scientifica—a razão, porque regressaram a esta terra, e
-se respeitam, e se evitam, a ponto de viverem separados pelas grossas
-muralhas da Praça, os nossos amigos:
-
- Leopoldo Gomes
- e
- Abilio Lucas.
-
- * * * * *
-
-Evitam-se e respeitam-se—disse eu, e demonstro.
-
-Um vive dentro, outro fóra. Um foi a Paris em 75; outro em 79. Quando um
-é da Camara, o outro é da Commissão do Recenseamento. Abilio é socio da
-Assemblea e frequenta-a; Leopoldo despede-se. Entra novamente Leopoldo;
-Abilio deixa de frequentar aquella casa. Leopoldo conta a historia
-dos relogios; Abilio sorri maliciosamente e insinua a duvida; explica
-Abilio o remedio, que descobrira o ilheu, para salvar a _senhora mãe_;
-Leopoldo mastiga em secco e pisca o ôlho para os circumstantes. Um
-faz-se agricultor e trata de terras no Arraial, em Picões, na Esplanada;
-o outro faz-se politico e «_provarei_». Entra o segundo na Politica
-activa; desvia-se o primeiro, e trata de terras em Gondomil—polo opposto.
-Um, gosta do _Capellão_ e _fala-lhe_ a miudo, como homem temente a Deus;
-outro, não se dá com esse _ministro do Senhor_ e rosna-se, até, que tem
-as suas questões com elle. Um, move-se, agita-se, apparece de manhã na
-villa, ao meio dia em Monsão, á tarde em Gandra e sempre a pé; outro,
-limita o exercicio dos seus membros locomotores á loja do sr. José Lopes,
-ou do sr. José Seixas.
-
-É evidente, palpavel, esta incompatibilidade, esta heterogeneidade de
-individualidades, que se origina na intima convicção, que elles teem da
-sua influencia destruidora e no accordo, ou _modus-vivendi_, que, para
-mutua conveniencia, secretamente estipularam, ao fixarem a residencia na
-terra, em que nasceram.
-
- * * * * *
-
-Quando, ha annos, estive em Paris, no regresso da minha viagem de
-estudo pelo Oriente—á Mongolia, ao Turkestan, a Niphon, a King-Ki-Tao
-e outros centros da Asia—onde fui recolher materiaes e elementos
-comparativos de civilização, com os da minha terra, para a composição
-d’este livro, encontrei-me, na Academia de Medicina de Paris, com o sr.
-Zagallo, que alli estudava, commissionado pela Excellentissima Camara
-d’esta villa, a organisação do serviço de Hygiene publica, indicado,
-por aquella faculdade, á municipalidade parisiense;—missão, essa, que
-Sua Excellencia, tão brilhantemente desempenhou, e que tão beneficos
-resultados produziu para esta povoação, como se prova com esse elegante,
-commodo e original _water-closet_ do jardim publico.
-
-Tive, n’essa occasião, a honra de ser recebido pelo eminente dr. Charcot.
-
-Falando no meu paiz, alludiu o illustre clinico aos dois portuguezes,
-que em 74 examinára, por recommendação do Governo; e foi grande a sua
-admiração, quando lhe affirmei, que com elles vivia em Valença, e que,
-ha dez annos, permaneciam na mesma localidade, se bem que, nas condições
-especiaes de isolamento, que já referi.
-
-Mas, a minha asserção tocou para Charcot as raias do inverosimil, quando,
-á supposição, que me apresentou, da existencia inevitavel de graves
-doenças e perturbações no apparelho auditivo dos meus conterraneos,
-sujeitos á convivencia e aos perigosos effeitos da presença e
-communicabilidade d’aquelles amigos, eu lhe affiancei que não eram essas
-enfermidades, as que mais avultavam nas estatisticas da secção de Hygiene
-municipal.
-
-Charcot fazia bem em duvidar. Eu faltei á verdade, e a isso me levou a
-amizade, que a esses Cavalheiros me liga, e a repugnancia, que tive, em
-tornar odiosa, para o eminente sabio, a existencia de dois patricios, que
-tanto prezo, acato e... respeito.
-
-Mas V. Ex.ª sabe o que por cá vae...
-
-
-
-
-V
-
-Perfis
-
-
-Abilio
-
-Examinando-os, apreciando-os isoladamente, reconheço os valiosos serviços
-que os meus amigos—Abilio e Leopoldo—teem prestado ao desenvolvimento
-material e intellectual da nossa terra; e não se esquiva a minha
-consciencia a declarar, que são uteis e, mesmo, indispensaveis, entre
-nós, as suas individualidades.
-
-Abilio entrou, por um generosissimo impulso de gratidão, na Politica
-activa de Valença.
-
-Accusam-n’o de violento, de precipitado, de faccioso, ou, como diz o
-povo, de... petroleiro. Eu classifico todo o seu proceder politico, como
-o de um innocente noviço, ou ingenuo collegial.
-
-É um homem, meus senhores, que trabalhando ha seis annos em eleições,
-n’esta terra, independente em Politica, como se sabe, tem sustentado
-a creancice de seguir um só partido e respeitar uma só opinião—a dos
-regeneradores!!!
-
-Ora isto, em Valença, se não indica falta de senso, revela excesso de
-ingenuidade e para esta ultima hypothese me inclino, porque não admitto
-que, para umas manifestações da mentalidade humana, haja falta de senso e
-isso se não dê com as outras.
-
-Abilio é, pois, um ingenuo politico e—o que mais é—um ingenuo faccioso.
-Referindo-se á administração progressista, tem a eloquencia de Danton, a
-arrebatadora oratoria de Robespierre, a impetuosa dialectica de Cassagnac.
-
-É violento, incisivo, caustico.
-
-N’aquellas medonhas explosões de colera, fere, trucida, chacina,
-esposteja nas hordas contrarias, como S. Thiago na moirama.
-
-Chega a rubro a temperatura da sua palavra.
-
-«É preciso, meus senhores, mostrar ao povo os seus direitos, para
-que elle saiba expulsar, a chicote, das cadeiras do poder e _de tudo
-aquillo_, esses bandidos, sem eira nem beira, que estão delapidando os
-dinheiros publicos e _tudo aquillo_, que representa o trabalho honrado do
-povo, o suor do seu rosto, _tudo aquillo_, que ganha para o sustento dos
-seus e de _tudo aquillo_, que lhe pertence.
-
-As nossas finanças vão, de cada vez, a peor, _tudo aquillo_, que
-representa a riqueza da nação vae parar, vae sumir-se n’esse insondavel
-abysmo de ladroeiras, de arranjos, de afilhados, de _metades, de tudo
-aquillo_.»
-
-..............................
-
-N’este periodo de excitação, Abilio deixa-se apoderar, tanto, da sua
-convicção partidaria, perde, de tal fórma, a cabeça, que se esquece de
-tudo e de todos, concentrando todo o seu ser, toda a sua vitalidade
-na idea e na palavra, com que, mais rapidamente, possa inutilizar o
-adversario.
-
-É assim que, ás vezes, o vemos sahir de casa, arrebatado, irado contra
-algum _arranjo_, que lhe foram annunciar, e entrar, precipitadamente,
-na sala das sessões da nossa Excellentissima Camara, com uma bota
-branca, outra preta; assoar-se a uma luva, suppondo-a um lenço;
-metter o cigarro na bocca pelo lado acceso; tirar rapé d’uma caixa de
-phosphoros—perfeitamente allucinado, colerico, perdido!
-
-Originam-lhe inimigos estes arrebatamentos; mas se o Papa, como unico
-correspondente, cá na terra, do Padre Eterno, me enviasse o livro das
-informações particulares, que hão-de influir no tremendo dia de Juizo e
-d’onde dependerá, ou a nossa absolvição, ou a condemnação ás caldeiras
-de Pero Botelho, em que fazem caras tão feias aquelles bispos mitrados,
-que por ahi vemos nas _alminhas_ dos caminhos ruraes, na folha corrida
-do Abilio, eu não hesitaria—desassombradamente o declaro, sem pretenções
-a adulador, sem interesse occulto presente ou futuro, sem desejar
-provar a _Paraty_, ou tencionar pedir dinheiro emprestado—em exprimir o
-conceito e a consideração, que este homem me merece, sobretudo quando a
-lente da minha observação se desvia um pouco do campo, que lhe tracei
-para a critica e m’o apresenta no outro, que respeito em todos: a
-familia,—n’estas cinco palavras:
-
- É um homem de bem.
-
-E ao escrever isto, com plena consciencia e convicção, vem-me á
-lembrança, _não sei como, nem porque_, a constante recommendação, que o
-meu tutor me fazia, quando, ao partir para os estudos, me introduzia na
-mão, com uma generosidade vanderbiltica, coisa de dois patacos em cobre,
-com estas reflexões de moral preventiva:
-
-—Ahi tens dinheiro... Tem juizo; foge dos cafés, das ruas de movimento
-e... das más companhias.
-
-... das más companhias...
-
-Para fugir d’ellas, e dos seus perigos, é que se fundou a sociedade dos
-_Provareis_...
-
-Valha-me Nosso Senhor Jesus Christo!
-
- Que tentações...
-
-
-Leopoldo
-
-Leopoldo é um homem de costumes austeros. Podia muito bem morar na rua de
-S. João, ao lado do sr. Joaquim.
-
-Tem predilecção pelos estudos archeologicos e o seu nome é citado, com
-respeito, na Sociedade Martins Sarmento.
-
-É homem versado em anthropologia. Possue as obras de Cuvier e de
-Quatrefages.
-
-Conhece diversas linguas, mortas e _vivas_, e enthusiasma-se, quando as
-vê manejar _com pericia_, como lhe succedeu em Paris, com aquelles sêres
-pertencentes á classe dos mammiferos, ordem dos carnivoros, familia dos
-_canis familiaris_.[19]
-
-Tem ideas avançadas em materia religiosa. Sustentou, ha tempos, uma
-questão de philosophia racional, relativa a crenças, tendo por oppositor
-o sr. Tenente Silva e com tal arte se houve, que fez calar este
-cavalheiro!!!
-
-É copiosamente lido em sciencias naturaes e, concedendo-se-lhe vinte e
-quatro horas de praso, apparece armado de ponto em branco, com quantas
-theorias antigas e modernas se debatem entre sabios.
-
-Como polemista, tem um grande merecimento: não deixa falar o adversario,
-o que é de incontestavel vantagem para quem... padece do peito.
-
-Acceita as theorias de Lamarck e de Darwin; crê na existencia do homem
-terciario e, se Carlos Ribeiro o não classifica, talvez ainda viessemos a
-ter o Anthropopithecus Leopoldi.
-
-É homem illustrado. Foi á China, ao Japão, ao Perú, a toda a parte. Fez
-encavacar Pio IX, deu uma pitada a Grevy, um piparote a Crispi, bateu na
-pança de Gladstone, offereceu rebuçados a Bismarck.
-
-Não vae feito com as realezas. O verdadeiro fóco, para que elle faz
-convergir a sua actividade intellectual, é a Sociologia, na parte
-repressiva da immoralidade e na que estuda a protecção aos menores.
-
-S. Vicente de Paulo merece-lhe entranhado culto.
-
-Tem sido, por vezes, camarista e no desempenho das importantissimas
-funcções d’esse elevado cargo, evidenciou, sempre, a mais extraordinaria
-actividade.
-
-Todos se recordam, ainda, d’essa memoravel sessão, em que elle
-apresentou, defendeu e discutiu dezenove propostas! O caso foi falado nas
-gazetas, mas, como as edições, na nossa terra, se exgottam rapidamente,
-eu vou reproduzir essas propostas e repetir as considerações, com que
-foram acompanhadas:
-
- * * * * *
-
-Plena sessão camararia. Galerias concorridas. Tachygraphos a postos.
-
-Leopoldo, de casaca e gravata branca, sobe, solemne e grave, ao estrado;
-faz uma delicada venia ao sr. Zagallo; deixa passar um minuto de longo
-silencio e severa concentração dos espiritos; ergue a fronte, agita os
-labios e exclama:
-
- Senhor Presidente!
-
- Respeitaveis collegas e senhores.
-
- Illustrado auditorio!
-
- Eminentes publicistas e philosophos, consultando os trabalhos
- recentemente publicados nas nações mais civilizadas, teem
- evidentemente demonstrado a enorme differença e aterradora
- diminuição que, de anno para anno, se nota nas estatisticas da
- reproducção humana.
-
- Os excessos perniciosos da Civilização, com o cortejo de gosos
- corporeos e sensuaes de toda a especie, enfraquecem a raça,
- definham o individuo, tornando-o inapto para aquella funcção,
- aliás importantissima para a estabilidade das nações e para o
- desenvolvimento da riqueza publica.
-
- Com effeito, senhores; que seriam os preciosos filões d’oiro
- da California, os jazigos, não menos preciosos, da hulha; que
- seriam esses uberrimos territorios da America, se não fosse o
- homem, para com o seu braço e a sua intelligencia arrancar da
- Terra tanta riqueza e tanta maravilha?
-
- O que seria da Agricultura? O que seria do Commercio e da
- Industria?
-
- Senhores!—Abrem-se, presentemente, á actividade do homem,
- novos campos, novos e dilatados horisontes n’essas, até hoje,
- mysteriosas e legendarias regiões africanas. O Brazil, a Europa
- do futuro, extende a sua acção civilizadora por essas enormes
- provincias, até hoje, despovoadas e desertas.
-
- Braços, muitos braços: homens, muitos homens—eis o
- _desideratum_ para este importantissimo problema do futuro.
-
- Verdadeiramente benemerito, pois, se torna da Patria, da
- Civilização e da Humanidade todo aquelle que, directa ou
- indirectamente, contribuir para valer áquella necessidade,
- aggravada, ainda, com o enorme desfalque, que as estatisticas
- accusam.
-
- Como homens do seculo XIX, que possuem a completa
- intuição dos seus deveres sociaes, temos, até hoje, prestado
- bom serviço a tão sagrada causa[20] e aos vossos sentimentos
- humanitarios e illustração recorro agora, pedindo attenção para
- as propostas que, sobre tão momentoso assumpto, vou ter a honra
- de apresentar[21].
-
- 1.ª
-
- Proponho a fundação d’um hospicio para expostos, que ponha
- côbro aos frequentes actos de barbaridade, que por ahi
- diariamente se commettem, com a exposição de creanças nos
- portaes e nas muralhas.
-
- 2.ª
-
- Fica a Camara auctorisada a contractar provisoriamente,
- na vizinha villa de Coura, seis robustas camponezas, para
- exercerem as funcções de amas.
-
- 3.ª
-
- Como actual fiscal do pelouro dos expostos, sou auctorisado a
- fiscalizar, os trabalhos das ditas amas e a verificar se, fiel
- e rigorosamente, são aptas, para todo o serviço.
-
- 4.ª
-
- É expressamente prohibida, para manutenção da Moral no interior
- do mesmo Hospicio, a entrada a qualquer pessoa do sexo
- masculino, com excepção do vereador do pelouro—que sou eu—e
- isso, para o exercicio das funcções mencionadas no precedente
- artigo.
-
- 5.ª
-
- Fica expressamente determinado, na acta d’esta sessão, que
- nunca poderão exercer as attribuições de fiscal do Hospicio,
- os ex.ᵐᵒˢ srs. Abilio, Vieira e José Seixas, attendendo,
- simplesmente, a que para tal cargo se exige uma actividade
- inconcussa, zelo inexcedivel, o que esses Cavalheiros não
- poderão offerecer, porque não são livres, como eu, que estou
- solteiro.
-
- 6.ª
-
- Como consequencia do artigo 4.º, não pode haver Capellão no
- Hospicio, que pode ser substituido por irmãs de Caridade,
- para os exercicios da religião. Para a sua competencia
- n’esse mestér, consultará a Camara o muito digno Capellão do
- Hospital, o sr. Padre Melim, varão de excelsas virtudes e
- preclaro entendimento.
-
- 7.ª
-
- Será limitado o numero de expostos, que o Hospicio possa
- recolher; mas ao Vereador do pelouro—que sou eu—é concedida
- a faculdade de admittir as que faça, encontrar pelos guardas
- nocturnos, em perigoso estado de saude.
-
- 8.ª
-
- Como consequencia ainda do artigo 4.º, não poderá haver medico
- no Hospicio e, para tratamento das creanças e das doenças, ou
- quaesquer, accidentes, a que podem estar sujeitas as amas,
- no exercicio, das suas funcções activas, será contractada a
- Senhora Dona Maria do Hospital.
-
- 9.ª
-
- É auctorisado o Fiscal do Hospicio—que sou eu—a, para rigorosa
- e permanente fiscalisação, poder passar as noites, quando o
- entender necessario, com as creanças e, com as amas.
-
- 10.ª
-
- Se no fim de seis, oito ou, nove mezes, qualquer das amas
- apresentar symptomas de doença grave, dilatações, de tecidos,
- etc., cessará o contracto provisorio e o Fiscal—que sou
- eu—arranjará, logo, outra que a substitua.
-
- 11.ª
-
- Em urgente caso de perigo, só o Sr. Dr. Pacheco pode ter
- entrada no Hospicio, attendendo a que é impotente, a
- maledicencia, quando d’elle se refere; e a que bem publica
- e notoria é a sua honestidade, como por ahi firmemente o
- attestam os seus _dois creados_, e todas as pessoas com quem
- intimamente vive, que são unanimes em apontar S. Ex.ª, como um
- real modelo de virtude.
-
- 12.ª
-
- É auctorisado o Fiscal—que sou eu—a contractar, para o serviço
- interno, tres raparigas das suas relações e de que já conheça,
- praticamente, as aptidões e trabalhos.
-
- 13.ª
-
- Fica revogada toda a legislação em contrario.
-
- 14.ª
-
- PELOURO DE HYGIENE PUBLICA—SECÇÃO DO COMMERCIO E INDUSTRIA
-
- É permittida a matricula a diversas pessoas de determinado
- sexo, para a industria do methodico uso e regular acção de
- determinadas funcções da vida vegetativa.
-
- 15.ª
-
- É expressamente prohibida a entrada na villa, a individuos
- extranhos e de sexo differente, que venham prejudicar, com
- illegal concorrencia e depreciação de valores, a industria da
- terra. Esta prohibição será extensiva até, ao proprio Julio
- Cesar, (apesar da protecção da _gente graduada_.) se elle
- resuscitar.
-
- 16.ª
-
- É nomeada uma commissão, composta do fiscal do Hospicio—que
- sou eu—do sr. J. Narciso e do sr. Joaquim, para organisar
- uma tabella de preços d’aquelles trabalhos, nas diversas
- variedades, que tal Industria hoje possue.
-
- 17.ª
-
- Fica expressamente determinado, que não poderão fazer parte
- d’esta Commissão os ex.ᵐᵒˢ srs. dr. João Moraes, Alpoim,
- J. Soares e Albino, porque por vezes, publicamente, teem
- manifestado uma tendencia para elevar, demasiadamente, os
- valores dos productos de tal Industria, o que é nocivo para a
- povoação.
-
- 18.ª
-
- É nomeado, para Inspector sanitario d’esta secção, o sr.
- Augusto Sampaio.
-
- 19.ª E ULTIMA
-
- A presidencia d’esta nova instituição municipal será
- offerecida, como manifestação de consideração e respeito, ao
- Senhor Marquez de Vallada.[22]
-
-Escusado será dizer que todas as propostas foram approvadas e por
-unanimidade.
-
-
-Albininho...
-
-Pertencia-te agora a vez... Davas para vinte folhas; mas salvas-te d’esta.
-
-Ha poucos mezes, ainda, corriam as lagrimas n’essas barbas brancas...
-
-Cahiu-me uma nas costas da mão e, em casa, fiz-lhe a analyse chimica.
-
-Deu-me: agua, albumina, chloreto de sodio; encontrei moleculas d’um
-outro elemento, que é a base da affinidade social:—o affecto da familia.
-Percebi, tambem, vestigios d’uma grande dôr.
-
-Respeito-a...
-
-Mas, quando os atomos d’essa lagrima se desaggregarem, por evaporação, e
-continuarem na Natureza o giro constante e permanente da Materia, então,
-se me appareces... entras na berlinda.
-
-Não te entristeças, que este livro é para rir e, quem o escreve, é um dos
-teus amigos.
-
- Vira a folha e...
-
- vamos a outros.
-
-
-
-
-VI
-
-Coisas de Egreja
-
-
-Beatas—Procissões e Romarias
-
-Terminára a faina do dia.
-
-O fogo que elevára a temperatura nos grandes caldeirões do Olympo, onde
-se manipulava a Humanidade, consumia, apenas, carvões isolados que, pouco
-a pouco, se transformavam em cinzas.
-
-Os cyclopes, destacados por Vulcano para essa secção da grandiosa fabrica
-da Natureza, que o proprio Jupiter dirigia, raspavam, apressadamente, nos
-grandes extendedores, a massa, que ficara collada, e deitavam-n’a, como
-inutil, nos baldes do lixo e da immundicie.
-
-Jupiter encastellava o dinheiro das ferias; fechava a escrevaninha;
-trocava a japona da fabrica pelo manto de arminho, e dispunha-se a
-sahir, tocando de passagem a sineta, para se fechar o estabelecimento.
-
-Mas n’isto, principiou a elevar-se do caldeirão que estava proximo,
-cheiro activo e nauseabundo, (como o do esturro em guisado francez) que,
-espalhando-se na atmosphera, seriamente incommodou a regia pituitaria.
-
-Aproximou-se Jupiter e olhou.
-
-No fundo do pote, já com a côr do carbonisado, estrugia o resto da massa
-que ficára, da que n’esse dia se tinha dosado para a preparação dos
-hypocritas. Pouco valor aquillo tinha, porque era da mistella mais vulgar
-e mais facil de preparar; mas Jupiter não perdia ensejo de incutir nos
-seus operarios os deveres d’uma administração rigorosa e economica.
-
-Ordenou, pois, a dois cyclopes que trouxessem do barril do lixo algumas
-aparas, recommendando que preferissem as mal-cheirosas e de côr escura,
-que pertenciam á massa dos invejosos e dos usurarios.
-
-Avivaram o fogo; deitaram os novos elementos no caldeirão; remexeram com
-o cabo d’uma vassoira, porque a ferramenta já estava guardada e limpa; e,
-depois de cinco minutos de ebullição, Jupiter provou a mixordia. Estava
-sobre o insipido.
-
-Deitou-lhe umas pitaditas de sal e de pimenta, com que preparava os
-maldizentes.
-
-Provou de novo. Estava picante de mais.
-
-Temperou, então, com o betume dos ociosos; e deixou ferver tudo, durante
-outros cinco minutos.
-
-Os cyclopes retiraram o caldeirão. Trouxeram os moldes; vazaram n’elles a
-massa, que se conservava no estado pastoso e esperaram.
-
-Pouco tempo depois, Jupiter aproximou-se; arrotou, e dos moldes sahiram
-duas coisas, duas formas humanas, com movimento, côr e vida.
-
-Eram duas mulheres.
-
-Ora Jupiter não se podia demorar, porque combinára, para aquella hora,
-uma entrevista com Europa, e os cyclopes principiavam a murmurar, porque
-dera a hora e tinham as familias á espera.
-
-Assim, mandou Jupiter abrir o postigo do Olympo, empurrou até lá as
-mulheres e atirou com ellas, cá para baixo, com um valente pontapé.
-
-Por esse ether fóra, assustaram-se as creaturas; agarraram-se uma
-á outra afflictivamente; principiaram a rezar a _Magnificat_, a
-_Ladainha_, e assim foram cahir sobre o telhado d’uma egreja, aterrando o
-escorropicha-galhetas, que se deliciava, occultamente, com os restos do
-precioso sangue de Christo.
-
-Aqui tem V. Ex.ª como chegaram as beatas ao globo terraqueo, e ahi fica a
-formula da sua composição molecular: aparas de hypocritas, de usurarios,
-de invejosos, de maldizentes e de ociosos.
-
-Representando esses elementos pelos respectivos symbolos, poderemos
-estabelecer:
-
- H⁵ + M⁴ + I³ + O² + U = Beatas
-
- * * * * *
-
-Aquellas moleculas da Hypocrisia e da Ociosidade deram-lhes facil e
-rapida admissão na sociedade.
-
-Casaram; reproduziram-se; e, em pouco tempo, estava a raça
-extraordinariamente desenvolvida e disseminada por toda a parte, desde a
-cidade populosa e civilizada, até á aldeia humilde e rude.
-
-Cá as temos e cá as aturamos... Submettendo-as agora, para as descrever,
-a rigorosa analyse, encontrei-lhes todas as propriedades dos primitivos
-elementos.
-
-Vão á missa das sete—_uma missinha que faz muito arranjo, porque dá tempo
-de arranjar a casa e de se mandar, á praça, cedo_.
-
-Rezam; inspeccionam tudo o que se faz e tudo o que entra na egreja;
-communicam e transmittem as novidades do soalheiro; e, entre o cochichar
-do _Padre Nosso_, segue uma enfiada de casos novos e de commentarios:
-
-Padre Nosso, que estaes no céo (_e o vestido novo que hontem levou a X
-ao jardim! É da Torrona. Ficou a dever. O Blanco é que as canta..._)
-santificado seja o Vosso Nome (_acabou o namoro da filha do Y, porque a
-Mãe bateu-lhe. Diz que o rapaz gosta muito de mulherinhas_) venha a nós
-o vosso reino e seja feita (_sahiu a creada da casa do W. Oh menina!
-Sempre ella conta coisas... Diz que tem a casa como um ôvo! Comem todos
-os dias prato de meio!_) a vossa vontade, assim na terra, como no ceu
-(_Lá entrou o Velloso... que raio de homem! Tem mais de vinte namoros.
-É como o Prado! Elle é elegante, isso é! Já lhe reparaste nas pernas?_)
-o Pão nosso de cada dia nos dae, Senhor, perdoae-nos (_oh... Faltava
-aquelle... o Leopoldo. Tambem já podia casar... Para o que anda por ahi a
-fazer..._) as nossas dividas, assim na terra, como (_agora é o dos pombos
-correios... Tambem é fresco, com aquella cara de santo..._)
-
-Sanctus, Sanctus, Sanctus, Dominus Deus...
-
-Como V. Ex.ª póde suppôr, a _fervorosa_ oração foi cortada pelo badalo do
-sachrista, que tocou a Santos. Se elle não interrompe, o que teriamos nós
-de ouvir...
-
- * * * * *
-
-Este beaterio é muito casto e excessivamente pudibundo.
-
-Na egreja de S. Estevão ha uma Virgem do Leite, que, se não é, realmente,
-uma preciosidade artistica, é, com certeza, a melhor tela que existe em
-Valença, não falando—já se vê—n’aquellas caras de malagueta e colorau,
-todas com a mesma fórma e feitio, que o sr. Julião exporta, mensalmente,
-para as salas nobres dos hospitaes minhotos, a soberano por caveira, com
-dez por cento de abatimento, por duzia.
-
-Pois o beaterio escandalizou-se com a nudez dos peitos da imagem, isto é,
-repugnou-lhe que se visse o que na mulher representa a sua missão mais
-nobre, mais elevada e mais santa—a maternidade. E a instancias d’esses
-respeitaveis camafeus, muito castos e muito pudibundos, mas que nunca
-faltam á Rosinha Ferreira, quando ella representa; e mandam logo de manhã
-comprar bilhete, e dão pançadinhas com riso, e coram (não de pudôr) e se
-apimentam, e se agitam, nervosas, na cadeira, quando Lili conta as suas
-coisas—a instancias e reclamações d’essa gente, repito, uma auctoridade
-ecclesiastica, que eu agora respeito, porque já não está entre vivos,
-mandou, por um caiador de Arão, borrar os peitos da imagem!!!
-
-Isto, minhas senhoras e senhores, em pleno seculo XIX, n’uma terra que
-tem dois jornaes, correspondentes varios de ditos, representantes de Sua
-Magestade El-Rei, Vigarios geraes e não geraes, Conegos Presidentes, e
-não Presidentes, Capellães, etc., etc.! E entre toda essa gente, que sabe
-ler e escrever, segundo se diz, não houve um unico homem que corresse a
-pontapés o cafre de Arão, reproduzindo-lhe com a biqueira da bota, ahi
-pelas alturas do coccyx, os borrões com que profanou a imagem!
-
- * * * * *
-
-O beaterio communga quinzenalmente e confessa-se duas vezes por semana, a
-padres velhos, surdos e rançosos.
-
-Padres novos são o diabo!
-
-Até os Patriarchas fazem das suas... Ainda não ha muito tempo, que os
-apparelhos de Morse, de Bandot, de Hugues e os telephones da Hespanha e
-França, não designavam outras palavras, alem de: _as botas?_
-
-José Luciano perguntava a Vega d’Armijo: _as botas?_ Vega d’Armijo
-perguntava a Carnot: _as botas?_ Carnot reperguntava ao Luciano: _as
-botas?_
-
-Em Pariz, Madrid e Lisboa não se falava n’outra coisa.
-
-Averiguado o caso, fôra o Patriarcha das Gandricas que, em Salamanca, se
-enamorára perdidamente dos _ojos_ negros d’uma andaluza. Gargalinho, seu
-companheiro, arrastava a aza á sopeira.
-
-A andaluza dava, com certo recato, nocturnas entrevistas. Uma vez, quando
-o Patriarcha se inebriava com os effluvios do amor... platonico, surgiu o
-protector da _niña_, de _cuchilla_ toledana em punho.
-
-O Patriarcha saltou, em meias, pela janella. Gargalinho sumiu-se debaixo
-da cama; quando de lá o tiraram, tanto puxaram pelo pescoço, que ficou
-como o do P. Alexandre.
-
-Do _Alcalde_ reclamou o Patriarcha as botas; o _Alcalde_ officiou ao
-Consul; o Consul officiou ao Ministro. Não appareceram as botas e o
-Patriarcha andou na Exposição, subiu á Eiffel, visitou o Carnot, com
-o seu inseparavel capote de forro vermelho e golla de pelle, chapéo
-braguez, chinelo de liga, calça dobrada em baixo, deixando ver os atilhos
-das ceroilas, symetricamente apartados e dispostos em cuidadosa laçada.
-Nos _boulevards_, quando elles passavam, diziam as mundanas:
-
- C’est um Hottentot et son petit:... mais quel cou, mon Dieu![23]
-
- * * * * *
-
-O Soares, no principio ainda agradou, porque dizia a sua missinha de
-Santo Antonio a muito boa hora e era pontual; mas, depois, principiou a
-desleixar-se e a vir para a egreja, tarde e a más horas.
-
-Foi o Albino, que andava sempre com elle, quem o fez peco. Principiou
-a dizer-lhe que estava _n’uma boa posição official_, que se devia
-apresentar sempre _muito limpo e lavado_, porque o conego velho nem
-_ceroilas usava_, apresentando-se _n’um desarranjo completo_, com a
-barba por fazer, amarello, _completamente deitado abaixo_, a ponto de
-a gente recear, ás vezes, _que fosse de bruços_; e que era bom, aos
-sabbados, _preparar-se e lavar-se de vespera_; levantar-se depois cedo,
-_lavar-se novamente muito lavado_, tomar a sua _chavenasinha de café_ com
-a _sua colhér de prata_; e nunca _chamar a attenção_ das más linguas,
-que estão sempre _a postos_, porque a missa sempre dava os _seus sete
-e vinte_, que já chegavam para uma _posição graduada_; mais isto, mais
-aquillo, com outros _periúdos_,—de fórma que o rapaz gastava duas horas a
-lavar-se, a vestir-se, e a gente que esperasse, _só com um café bebido_!
-
-O resultado foi perder a missa de S. Antonio, porque já não tinha
-freguezia.
-
-O Magalhães será muito boa pessoa, mas... não se dá com o sr. Joaquim.
-
-Ora o sr. Joaquim é um homem muito temente a Deus. No inverno, quando ha
-mais frio e fome, anda por ahi, de porta em porta, com a subscripção...
-da Semana Santa, para que a pobreza possa curtir... na egreja, as suas
-maguas e dôres.
-
-Alem d’isso, não se poupa a despezas, quando é Juiz da Senhora da Saude,
-da Urgeira, e vê probabilidades de (tudo pela santa religião) fazer uma
-pirraça ao diabo... do João Cabral!
-
-Um homem assim, é um philanthropo e deve andar de bem com Deus. Quem com
-elle não se dá, não se dá com Deus; ergo: Padre Magalhães não serve.
-
-Depois, prega uns sermões que ninguem entende. Parece que não fala
-portuguez!
-
-Nem, sequer, faz chorar a gente na Semana Santa!
-
-Resumindo: não serve.
-
- * * * * *
-
-Eu falei na Semana Santa...
-
-É o carnaval do beaterio. N’aquelles ultimos sete dias as beatas dão ar
-ás mantilhas, e largas á bisbilhotice, á curiosidade e... ao flato.
-
-Quinta e sexta feira santas são em Valença, para a egreja de S. Estevão,
-o mesmo que domingo gordo e terça feira de entrudo são para a Assemblea.
-
-Ha musica, serviço variado de pastilhas de chocolate, rebuçados e
-amendoas; confidencias, intrigas, sorrisos, trocas de cartas perfumadas,
-ciumes, arrufos, apertos de mão e—sobretudo—esta _cavaqueira_ intima,
-expansiva, franca e alegre d’uma verdadeira reunião de familias.
-
-A gente está alli, perfeitamente bem, e á sua vontade.
-
-Com as temperaturas da egreja e das salas da Assemblea eleva-se,
-consideravelmente, o mercurio no thermometro dos affectos, em que o zero
-é—o arrufo, e os 100°—o casamento.
-
-O Christo, já se vê, como dono da casa, lá está no alto da Cruz,
-recebendo sempre, com reconhecimento cordial, tão fervorosas e _animadas_
-manifestações de amor e respeito...
-
-As beatas arranjam, com a Semana Santa, que contar para um mez.
-
-Quando os escorropicha-galhetas abrem, de manhã, as portas do templo, já
-ellas entram apressadas e remelosas, escolhendo o melhor logar «_onde o
-bruto do povo e os pobres não incommodem, onde se esteja á vontade e se
-veja tudo_». Levam as suas pastilhas de chocolate para a debilidade, a
-caixa do rapé, o banquinho de tapete, agasalho para os pés e lenço para
-as lagrimas, que são da praxe, quando o Padre mostra o Santo Sudario.
-
-Installadas assim, com todas as commodidades (tudo pelo amor de Christo,
-que tanto soffreu na Cruz) no seu ponto de devoção e de observação, gozam
-á _tripa-forra_ não perdendo um olhar, um sorriso, um vestido novo, uma
-_tournure_ mais arrebitada...
-
-Á noite vão para casa, consideravelmente alliviadas da consciencia, mas
-pouco satisfeitas com o Magalhães, que falou em problemas sociaes, em
-pauperismo, em Philosophia da Historia, em altruismo, em protoplasma e
-outras coisas, que nem o sr. Joaquim entendeu, apesar de, por vezes,
-(certamente por delícadeza) abaixar a cabeça, como quem diz: comprehendo,
-approvo e... estou satisfeito.
-
-O Palmeirão, quando conta imbecilmente pela decima vigesima vez, a
-tragedia do Calvario—tragedia sublime e benefica para as agruras da
-nossa existencia, se todos a soubessemos comprehender, mas que por ahi
-anda como o _libretto_ estafado, nas epochas lyricas da egreja, para
-especulação, para immoralidades e para descrenças—esse percebe-se e
-agrada muito mais!
-
- * * * * *
-
-O beaterio tem uns Santos da sua particular estima.
-
-Os Santos, a final, são como a gente, com quem se lida. Ha physionomias
-que logo inspiram sympathia e ha outras que, sem a gente saber como, nem
-porque, provocam embirração.
-
-Isto é razoavel e intuitivo. Diga-me, por exemplo, V. Ex.ª quem ha-de
-gostar do S. Christovão, com aquella grande cara arrenegada, parecendo
-dizer ás gentes que, se lhe chegam a mostarda ao nariz, corre tudo
-com a vara, pela egreja fóra, como o Pau-real na feira de S. Bento da
-Porta-aberta!
-
-Assim, quando rareiam as festas e as bolsas andam exhaustas, com as
-frequentes subscripções da Assemblea, não havendo possibilidade de se
-organizar a Semana Santa, então, promove o beaterio umas novenas á
-Senhora de tal.
-
-«_São umas festasinhas muito razoaveis, porque a musica é mais alegre,
-são de dia e sempre ha probabilidades de, terminadas as ladainhas e as
-encommendações, se dar, ainda, um passeio até ao Jardim. Emfim, n’uma
-terra, que tem poucas distracções e onde a Rosinha se não póde sustentar,
-tudo se aproveita._»
-
- * * * * *
-
-O caso da Santa alarmou vivamente os animos d’estas esgrouviadas
-bisbilhoteiras.
-
-«_Parece impossivel que se não abrisse a Terra, que não viesse um raio,
-um diabo, que castigasse aquelle pedreiro-livre, aquelle atheu do
-administrador!_»
-
-O malandro que trazia a imagem e a metteu na taberna da Esplanada,
-expondo-a ás chufas e obscenidades avinhadas dos comparsas, esperando
-que o contra-regra desse o signal de subir o panno, para essa asquerosa
-comedia, da nossa asquerosissima Politica,—o malandro que, com um sebento
-balandrau, de imagem e prato na mão, por ahi chatina semanalmente, _a
-meias_, com as crenças do povo, e não hesita em transpôr os humbraes do
-bordel, _pedindo para a bemdita e milagrosa Senhora de tal_, interessando
-assim, a religião de Christo no producto que a barregan obtem da venda,
-em publico, do corpo e da honra—esse icha-corvos torpe e vil, d’uma
-ganancia mais vil e mais torpe, do que os trinta dinheiros de Judas, que
-por ahi esfarrapa as poucas crenças, que ainda existem no povo—esse:
-
-_«coitadinho! Mettia dó vêl-o. Estava amarello, aterrado. Foi preciso
-leval-o, quasi em braços, e dar-lhe café quente, porque lhe podia dar
-alguma coisa»!_
-
-Ah, baratas de sacristia! Como eu desejava possuir o açoite, com que
-Christo expulsou os phariseus e de que côr eu vos poria as nadegas...
-
- * * * * *
-
-As procissões...
-
-Eu não conheço coisa mais estupida, barbara e deshumana.
-
-Felizmente, sou, n’esta opinião, apoiado pelo espirito do seculo que,
-pouco a pouco, vae terminando com ellas.
-
-Qual é o fim das procissões?
-
-Qual a sua necessidade?
-
-São para avivar as crenças?
-
-Que ha, por esse mundo de Christo, mais ridiculo e caricato do que
-Santas Cocas, bois bentos, S. Jorges de carne ou de madeira, isto é, com
-tarracha, ou sem ella, prophetas com barbas de crina, pendões em varas
-de pinheiro por descascar, gaiteiros aos pinotes, matulões de cara
-aparvalhada e cabello empastado com gomma de pevides de marmelo?
-
-Que ha, por ahi, de mais barbaro e deshumano, senhoras de Valença, do
-que essa perigosissima exposição a que, por vaidade, condemnaes os
-membros ainda tenros das creanças, carregadas com adereços de pechisbeque
-e diamantes de vintem, peito e braços nus, tiritando e caminhando
-custosamente, com os pesitos entalados nos escarpes do _uniforme_, e
-atiradas, por essas ruas, á voracidade das bronchites e pneumonias que o
-frio origina, ou das febres e meningites que o calor provoca?
-
-Dizei-me: a Christo, se é a Christo que desejaes honrar, não seria
-mais agradavel que essas duas libras, com que entraes em ajuste d’uma
-pneumonia para vossos filhos, lhes fossem entregues para, com ellas,
-na bemdita missão da Caridade, penetrarem n’uma d’essas barracas da
-Parada-velha e as deporem nas mãos tremulas e descarnadas do pobre velho
-que tem fome e frio aos 80 annos, illuminando-lhe assim com a luz do céo,
-com a luz de Deus, aquelle tenebroso occaso de soffrimento e dôr?
-
-E quando a creança voltasse a casa, risonha e feliz, como Deus a sabe
-dispôr, ao fazer d’ella a mensageira do Bem, não seriam para vós
-mais agradaveis as lagrimas da gratidão do pobre entrevado que, como
-perolas, deslizassem ainda nas mãos pequeninas, do que esse immundo
-cartucho de papel mata-morrão com doces de farinha de milho e assucar
-mascavado—suprema delicia dos matulões da Urgeira—com que o boçal e
-estupido Juiz da festa lhe paga o papel de comparsa?
-
-Senhoras de Valença, que tendes filhos! Pensae n’isto...
-
- * * * * *
-
-A procissão, que os Paes de familia mais respeitam, é a de
-_Corpus-Christi_.
-
-Quando se approxima, é inevitavel a contribuição de chapéos novos para
-as senhoras. É uma coisa feia, na verdade, o apparecer-se n’esse dia,
-consagrado a Deus, com chapéos de inverno...
-
-Pois se o Blanco os tem tanto em conta... Já se não fala em vestidos,
-porque emfim, dá-se uma _volta_ ao do anno passado e ainda póde escapar;
-mas o chapéo é da praxe.
-
-As janellas guarnecem-se, n’esse dia, de caras bonitas. Nas ruas, vae e
-vem, chibante e taful, a juventude da terra; os aspirantes aduaneiros,
-com Velloso á frente, pimpam o oiro dos seus uniformes; barrigudos
-camaristas passam, atados á banda bicolor; ha muita gente do povo;
-colchas espaventosas, flammulas, etc., etc., e, no fim de tudo, a tropa e
-as descargas.
-
-N’este anno, então, essa ultima parte esteve magestosa. Digo a verdade:
-manobras assim, tão complicadas e com tanta tactica, só as tenho visto
-em França, no campo de Chalons, e em Portugal... no largo de S. João.
-Consta-me, até, que para o anno cá temos officiaes dos exercitos
-europeus, em commissão de estudo.
-
-Pelo menos, assim m’o asseveram Moltke, Carnot, o Czar de todas as
-Russias, o Schah da Persia e o Bey de Tunis. Se o affirmam por lisonja,
-sabendo que sou de Valença, isso é com elles.
-
-Vae pelo preço...
-
- * * * * *
-
-Agora as romarias.
-
-Diversos pensadores e philosophos consideram as romarias, como
-indispensaveis e necessarias, attendendo a que o povo que, durante seis
-dias, labuta e trabalha, necessita de descanço e distracção ao setimo,
-para que possa retemperar as forças.
-
-Concordo com isso, mas não colhe o argumento na defeza d’ellas, como
-elemento vivificador de crenças.
-
-Quem é que vae á Urgeira, a Ganfey, ao Faro, a Segadães, que não seja por
-mero divertimento, por distracção, pela novidade de um caso ruidoso e
-differente na pacata vida da provincia?
-
-Quem annuncia em casa á familia a visita á Senhora da Cabeça, ou a S.
-Campio, que isso não signifique um dia de _borga_ e de folgança?
-
-Vejamos as coisas como são, limpando o prisma da observação e da critica,
-das teias de aranha, com que a rotina, o uso e a tradição lhe mancham a
-transparencia.
-
-O que é a «Senhora da Cabeça»?
-
-Um concurso legal de caceteiros.
-
-Perguntem ao meu amigo Joaquim Queiroz, se elle de lá veiu com mais
-crenças, apesar dos esforços que os salta-pocinhas de Lara e de Lapella
-fizeram, para lh’as introduzir na massa cerebral.
-
-Perguntem a esse amigo, imprudentemente envolvido por generosa
-dedicação e por nobre arrebatamento, na batalha de _Montes Claros_, se
-essas mulheres, que uivavam como hyenas e clamavam em furia horrenda,
-contra tres homens, não eram as mesmas que se espojavam pelo adro da
-capella, e se arrastavam de joelhos nas _cinco voltas_ da promessa, com
-que, sentindo estoirar o bandulho nos arrancos de brutal indigestão,
-recorreram á fama milagreira da Santa...
-
-Perguntem-lhe se esses matulões, que á porta do Chico Mello o cercavam,
-embrutecidos pelo vinho, apertando o circulo dos varapaus ferrados,
-com gritos de chacal e esgares sensuaes de anthropophagos, não eram os
-mesmos que, horas antes, carregavam, como bestas, com o andor da Santa e
-abalavam o solo com o poisar da pata na marcha truanesca, pelos atalhos
-do logarejo.
-
-O que é _S. Campio_?
-
-A prostituição ao ar livre, sob o manto estrellado da noite, como diria
-qualquer poeta; e a charlatanice, fazendo suar o Santo e... os milheiraes.
-
- * * * * *
-
-A pequena distancia d’esta villa ha um burgo chamado—Urgeira. É feudo do
-sr. Joaquim. Descendem em linha recta, os seus habitantes, d’aquelles
-antigos cultivadores de cebolas do Egypto.
-
-Formam um elemento importante na Politica do nosso Hospital e prestam
-assaz reconhecido serviço, nas procissões da Semana Santa. Chegam em
-mesnadas, marcham bem, formam, com os seus balandraus, duas alas, já
-muito razoaveis e, além d’isso, são faceis de contentar: quaesquer tres
-patacos de borôa e zurrapa lhes enchem as panças, depois da procissão, na
-sacristia da Misericordia, provocando-lhes sonoro arrôto.
-
-No verão, rara é a noite de sabbado, em que estes pacovios não queimam
-algumas duzias de libras, com foguetes de lagrimas e bombas de dynamite.
-
-Ora, no burgo ha pobreza e ha miseria; ha velhos, que gemem na cama com o
-frio do inverno e ha creanças esfarrapadas, que chafurdam no lamaçal dos
-becos; ha aleijados, que se arrastam até á villa mendigando o _chabo_.
-
-Com esses 500, ou 600 mil réis, que annualmente se gastam em festas,
-podia a Junta de Parochia fundar um Hospicio para os velhos, e
-estabelecer uma sopa economica para os famintos.
-
-Mas a pandega? O grande brodio da vespera da festa? A _figura_ que se faz
-na procissão com a vara de Juiz?
-
- * * * * *
-
-Necessita o povo de distracções.
-
-Verdade é, mas dêem-lh’as que o civilizem e não que o embruteçam.
-Festas, Romarias e Procissões são ainda vestigios d’aquelles primitivos
-tempos, em que era necessario inveterar pelo mysticismo, pelo apparato e
-sumptuosidade das manifestações, o espirito da crença.
-
-Mas hoje, em que para o plebeu entrar no templo até á grade, onde a
-aristocracia aninha, se lhe exige roupa lavada e calçado decente; hoje,
-em que elle vae á romaria para jogar o pau, beber vinho e entregar
-fielmente á _Batota_ a féria da semana—acabem com tudo isso e deixem
-ficar a Religião nos templos, e só nos templos, d’onde nunca devera ter
-sahido.
-
-E, para divertir o povo, substituam, então, esses grotescos cortejos
-de Santos, entre espelhos de pataco e plumas de gallo, por verdadeiras
-procissões civicas, onde figurem os heroes da nossa Patria, que os temos
-tantos e tão dignos d’essa apotheose.
-
-Em vez de pulpitos ao ar livre, levantem-se tablados, onde se reproduzam
-os factos mais gloriosos das gloriosissimas epopéas que, a um paiz de tão
-acanhadas dimensões, deram a celebridade das grandes nacionalidades.
-
-Organizem-se-lhe jogos, luctas, em que se adestre no exercicio das armas
-e possa desenvolver os musculos e a energia, de que tanto necessita para
-a constante lucta da existencia.
-
-Conte-se e mostre-se ao povo o que fomos, e assim, distrahindo-o, lhe
-incutiremos os germens d’esse sentimento, que é o principal impulsor dos
-grandes feitos e das grandes civilizações—o amor da patria.[24]
-
-Basta de coisas de egreja. E agora,—beaterio da minha terra!—um Padre
-Nosso e uma Ave-Maria por este Zinão, que já está ás portas do inferno...
-mas esperando que entreis, para atrancar solidamente a porta e assim vos
-acabar com a raça!
-
- _Pater Noster..._
-
-
-
-
-VII
-
-Litteraturas
-
-(DUAS PALAVRAS)
-
-
-Claro é que, tendo subordinado o programma d’este livro ao titulo de
-_Estudos sobre a actual sociedade valenciana_, me não posso esquivar
-a fazer incidir, por momentos, na minha lente de observação, os raios
-luminosos que os nossos _homens de lettras_, semanalmente, fazem
-convergir no fóco das _lamparinas_ cá da terra.
-
-N’esta epocha, em que legalmente está em uso, reconhecida e sanccionada,
-essa nojenta e nociva convenção litteraria do _elogio-mutuo_, que tanto
-talento atrophia, que tanta intelligencia embriaga com os aromas d’um
-incenso macanjo, parvoiçada é—reconheço—o meu proposito, que significa
-perigo eminente nas cannelas, irremediavelmente condemnadas á dentuça
-dos _critiqueiros_.
-
-Limito a area da observação com as muralhas da Praça e d’ella exceptuo,
-ainda, algumas individualidades que, demasiado, me ferem a retina com
-o seu talento, e que a insignificante distancia focal da lente me não
-permitte abranger.
-
- * * * * *
-
-N’esta nossa terra, a penna serve, unicamente, para estadulho de
-deslombar politicos, ou nas protervias e diatribes, originadas em
-questiunculas ridiculas e comicas, como as da _Prisão da Santa_, ou nas
-pacholices rimadas, com que se visa á critica galhofeira.
-
-A penna photographa a Idéa. A Idéa póde evolar-se, librar-se sobre todas
-as manifestações da actividade humana, consoante as aspirações que a
-orientam e as intelligencias que a esclarecem. Póde fixar-se na Arte,
-na Sociedade, no Homem, etc. Entre nós, embirrou com a Politica e não a
-larga.
-
-Por isso, chafurda na insulsez parrana, na graçola afadistada, na
-metaphora besuntona.
-
-Ao _brazileiro barato_, ao _fidalgo sem pergaminhos_ e a outros
-escarros-piadas, que por ahi fluctuam á tona da enxurrada, corresponde
-esse constante martellar de bordões estafados, do _gaiteiro_, do _João
-Bernardo_, com que ainda hoje a fedelhada sahe á estacada, empunhando
-a babuzeira e acenando a quem passa com outro Ideal e com outras armas:
-não o insulto soez á familia, mas o sorriso caustico do epigramma á
-individualidade social.
-
-A Imaginação e a Phantasia vasam-se, por ahi, nos moldes d’uma linguagem
-mascavada, em que pullula o neologismo pretencioso, d’onde resalta a
-phrase de sensação dos ultimos figurinos, que o francez atira, por cima
-dos Pyreneus, como uma bota cambada e velha, e que o rabiscador, prestes,
-enfia nos pesunhos para, coxeante e rufião, seguir em truanesca marcha,
-campos fóra da critica e da... tolice.
-
-Esfuzia, frequentemente, o gallicismo inutil nas espalmadas linhas; é
-constante a referencia ôca á lombada das recentes publicações francezas;
-e, n’uma epocha em que o mercieiro fala na _Sapho_, de Daudet, ri com as
-frescuras de Catulle, estremece com as _Blasphemias_ de Richepin, salta
-com as pinturas realistas de Zola, entretem a familia com os Goncourt
-e auxilia a chylificação com Maupassant ou Coppee, a arlequinada do
-rabisca, não só denuncia ignorancia completa da nossa litteratura e dos
-recursos da nossa lingua, mas, ainda,—com a impropriedade dos termos,
-apanhados a dente e atacados a soquete sublinhado nos periodos—uma
-deploravel vaidade e tristissima inconsciencia.
-
-Não ha orientação litteraria, nem eschola definida, nem percepção
-nitida da idea, nem consciencia na phrase, nem centelha de imaginação
-que desperte a vibratilidade da nossa alma. Ha, d’um lado, a atrophia
-voluntaria e criminosa, a que se condemnam faculdades intellectuaes
-de superior quilate, e d’outro, a ambição ridicula e chatissima de se
-mostrar á familia—ao papá e á mana, ao titi e á prima, ao namoro e á
-sopeira—o nome em lettra redonda, claro, ou nas malhas transparentes d’um
-pseudonymo, que o sorrisinho immodesto descobre ao primeiro e desejado
-ensejo.
-
- * * * * *
-
-Poderá alguem suppôr com estas minhas reflexões, tão discordantes na
-fórma, das hosannas, que por ahi se entoam, impostas pela nojenta
-convenção do _elogio mutuo_, que nego merecimentos, ou repudio aptidões
-intellectuaes?
-
-Tal não succede.
-
-De quando em quando, aqui e acolá, mesmo n’esses a quem a vaidade e
-o pedantismo desnorteiam, descubro e reconheço os vestigios d’uma
-expontaneidade de phrase, evidente; d’um colorido de expressão, notavel;
-d’uma receptividade emocional, definida; d’uma accommodação visual para
-a analyse, apreciavel;—propriedades que, vigorizadas pelo trabalho,
-orientadas pelo estudo persistente nos bons modelos e impulsionadas para
-um Ideal, podiam educar-lhes o espirito e eleval-os, porventura, á
-consideração que ambicionam e que criminosamente lhes attribuem.
-
-O que eu desconheço é:—o trabalho; o que eu censuro é:—a inercia; o que
-eu repudio e calco aos pés, é essa perfida e nojentissima convenção,
-que faz do _cinco reis de gente_ um Adamastor, do balbuciante bebé um
-polemista, do Rosalino Candido, um Ramalho Ortigão, ou, como elles
-diriam, de Prudhomme, um Pierre Veron, ou Albert Wolff.
-
-A penna exprime a Idea. A Idea parte do cerebro. O cerebro significa a
-Intelligencia, a Alma, isto é, o conjuncto da sensações e sentimentos,
-que na sua phenomenalidade, separam o Homem do bruto.
-
-A faculdade de sentir e a expressão nitida e clara, pela penna e pela
-palavra, de todos os phenomenos da natureza psychica, são o que o homem
-tem de mais nobre.
-
-Triste é, portanto que, na critica d’um facto, na discussão d’uma idea,
-no desforço d’uma aggressão, eu vá encontrar aptidões intellectuaes com
-elementos tão apreciaveis, na choldra da Politica, ou descendo, ainda,
-tanto e tanto, que se não pejam com a pasquinada a carvão nos logares,
-onde o carrejão usualmente se encosta, para... ensalitrar as paredes.
-
- * * * * *
-
-E no grupo dos que a inercia atrophia, dos que deviam libertar-se para
-outras espheras mais luminosas e mais puras, porque já possuem na
-Imaginação e na Phantasia a vigorosa organização do condor, vejo eu um
-homem—que sabe burilar preciosamente a idea, que filigrana artisticamente
-a palavra—debater-se, na triste condição de bonifrate, movimentado pelas
-guitas dos especuladores, transformando o cerebro, d’onde arranca chispas
-d’um verdadeiro talento, na bola ensebada e porca dos jogos malabares que
-os politiqueiros por ahi exhibem, visando á esportula dos magnates.
-
-E como se não fosse profanação bastante, o manchar a penna nos bispotes,
-em que essa megéra—a Politica—diariamente evacua, ainda ha pouco manchou
-tambem os labios d’onde, palpitante, quente, phantasiosa e bella, lhe
-resalta a palavra, na dentuça cariada e porca d’um salta-pocinhas
-eleitoral agargalado!
-
-Suprema humilhação do talento!
-
-Pudesse eu agarrar-te pela golla do casaco e, applicando-te em certa
-parte do corpo duas palmadas, fazer actuar no teu espirito, incisiva e
-caustica, a affectuosa indignação, com que d’aqui te brado:
-
-Livra-te d’esse chiqueiro, _homem de Deus_![25]
-
-
-
-
-VIII
-
-Quimtilinarias[26]
-
-
-Diz algures Macaulay:
-
-«_É nas grandes crises politicas, nas grandes agitações populares, que se
-denunciam os grandes homens e se manifestam os grandes genios._»
-
-Cá temos a confirmação d’esse periodo do eminente historiador inglez.
-
-Ruge, infrene, a colera do povo por causa do _mandado_: e no meio
-d’essa espantosa effervescencia da nossa politica, ergue-se aos céos
-da posteridade, dardejando raios mortiferos de oratoria epistolar, um
-homem, até hoje ignorado na republica das lettras: Quim Fonseca!
-
-Tenho lido muita epistola e muita carta; li as epistolas de S. Paulo aos
-corinthios; as de Horacio e Cicero; as de Racine e Pascal; as de M.ᵐᵉ de
-Sevigné e de Girardin; as do Rosalino e Jayme José; mas, coisa tão puxada
-de rhetorica, tão desembolada de logica, tão _frecheira_, de estylo—é que
-ainda não pude encontrar nas litteraturas passadas e presentes, desde a
-sanskrita, até á dos papuas, ou á das gentes do Molembo-Kuango!
-
-Sempre desconfiei que, no cerebro d’este Fonseca, vascolejava algo de
-extraordinario e de superior. Quando, por ahi, aventavam deformidades
-psychicas, amesquinhantes do intellecto, affirmava eu sempre:
-
-_Fonseca tem lume no olho! O futuro o dirá._
-
-Ahi estão as suas sessenta epistolas engranzadas nas gazetas da terra,
-confirmando, plenamente, os meus presentimentos.
-
- * * * * *
-
-Estudei durante muito tempo o Quim Fonseca, auscultando as minucias da
-sua existencia social e as subtis ramificações da sua politica.
-
-Considero-o como um dos vultos mais importantes da minha terra, porque
-é o fulcro _diamantino_, onde se apoia a alavanca civilizadora (?) do
-Progresso. Impõe-se, portanto, á minha observação e ao meu respeito.
-
-Consumi annos n’esse estudo, sem poder formular uma classificação exacta
-e rigorosa.
-
-Mas, um dia, descobri que Fonseca usava... suspensorios!
-
-Ora, os suspensorios teem para mim uma grande significação; considero-os
-como elemento precioso e infallivel na investigação do caracter
-individual—elemento mais precioso e mais infallivel, do que as
-protuberancias do craneo, na theoria de Gall; os traços physionomicos na
-de Lavater, ou o volume do cerebro na de Broca. Após minuciosas analyses
-e confrontações, cheguei á conclusão, de que os suspensorios pódem
-significar: reflexão, sobriedade, economia, previdencia, sensatez, paz do
-espirito, pureza de costumes, existencia de virtudes civicas.
-
-Homem que usa suspensorios, sabe de cór quanto produz, livre do imposto
-de rendimento, o capital de doze moedas d’oiro a tres e meio por cento;
-sabe em que lua se cortam as madeiras; sabe em que epocha convém semear a
-couve penca, o rábano, a nabiça e as pevides de marmelo; sabe em que mez
-se capam os gatos; sabe salgar um porco, dispôr os presuntos no fumeiro,
-encher um chouriço; sabe _coisas_ de emphyteuta, de fóros, de aguas de
-rega, de bacellos, de alpórcas e de bens de mão-morta; sabe aparar um
-callo e applicar um crystel; conhece remedios para o gôgo e para as
-bichas; conhece as propriedades do sebo de Hollanda; sabe—emfim—de tudo
-um boccadinho, porque é encyclopedico em Sciencias caseiras e perito em
-questões de vida pratica.
-
-E V. Ex.ª, que conhece o Fonseca, diga-me, agora, se as aptidões do seu
-intellecto não estão ahi, nitidamente inventariadas.
-
- * * * * *
-
-Eu venero as commendas.
-
-Quando, em Quinta-feira santa, na vizita ás casas do Senhor, encontro
-o sr. V. de Moraes, deslumbrando a gente com a sua casaca e com
-as scintillações da Gran-cruz gallega, onde o sol poente arranca
-chispas—tiro humildemente o meu chapéo e curvo-me submisso.
-
-Venero a banda bicolor, diagonalando a obesa pança d’um senador; venero a
-vara d’um juiz de irmandade.
-
-Reconheço tambem, a importancia social dos titulos honorificos.
-
-Um Visconde foi, é, e será, sempre, um homem de massa mais afinada do
-que qualquer Zinão; um homem estremado entre a peonagem; um homem de
-sangue _cruzadico_, de alta sabença, de apurado senso. Ahi está o sr. V.
-da Torre, que, ainda de molleirinha e a fazer _tem-tem_, escrevia os
-_Preconceitos_, para... _despreconceituar_ a heraldica dos viscondados.
-
-Venero e respeito tudo isso, repito, porque, emfim, Deus que resolveu
-distinguir na sociedade umas certas pessoas, com titulos e com
-penduricalhos, lá se entende e lá tem as suas razões...
-
-Mas cá no fôro intimo, nada provoca, mais fortemente, a minha
-consideração, como umas alças, uns suspensorios, d’aquelles de tres
-cores, como a bandeira franceza—com as suas fivelas doiradas, as suas
-prezilhas de coiro unidas, symetricamente, aos quatro botões alinhados
-pelo buraquinho do umbigo.
-
- * * * * *
-
-Este meu culto ás alças já me originou grave desgosto na familia.
-
-Minha filha mais velha, D. Fagundes, namoriscava o filho do nosso
-procurador em Monsão. Ha cinco annos entra o mocinho na sala de visitas
-e, deante da rapariga, balbucia trémulo de commoção:
-
-—Louvado seja Nosso Senhor Jesus Christo!
-
-O Senhor passou bem?
-
-Eu vinha pedir a mão de sua filha D. Fagundes d’Atouguia. Tenho 25 annos;
-sou camarista na minha terra; as minhas propriedades rendem 40 carros e
-60 pipas; tenho doze contos nominaes em inscripções; vinte obrigações das
-Aguas de Melgaço e de S. Pedro, cinco acções do piano da Assemblea e dez
-do Theatro Valenciano...
-
-—Perdão, interrompi eu; e emquanto ás ultimas, pagou todas as prestações?
-
-—Não, senhor; assignei, mas só paguei a primeira prestação de 10 p. c.
-
-(O homem convem-me, disse com os meus botões, já vejo que é
-_agostinhado_.)
-
-—Serve-me para genro; mas, um esclarecimento apenas, que é o mais
-importante: o meu amigo usa suspensorios?
-
-—Ora essa! exclama o joven, acaso é isso importante no meu futuro
-marital? Pois a minha barriga é que tem de _crescer_...
-
-—Basta, senhor! Visto que ridiculariza uma coisa tão seria,—nada feito!
-Queira bater a outra porta.
-
-E Fagundes ficou solteira...
-
-Ora ella está longe de ser uma belleza e, ás vezes, tem _telha_; mas para
-Monsão servia e, servia, até, muito bem.
-
- * * * * *
-
-Recebi hontem á noite um telegramma de Bismarck, pedindo informações
-urgentes ácerca das sessenta cartas. Como sou correspondente da _Gazeta
-da Allemanha_, tratei de averiguar o caso inspirador d’aquellas
-Catili—digo—Quimtilinarias.
-
-Eis o que descobri:
-
-Na ultima reunião dos _quarenta-maiores_, o Fonseca, subitamente atacado
-de violenta verborrhea, poz em pratos limpos a historia do _mandado_,
-segredada ao bichinho do ouvido por um _amphibio_.
-
-Os senadores ficaram aterrados e os municipes bateram palmas, porque
-tinham farejado escandalo.
-
-Fonseca exaltou-se, berrou, vociferou; e, por vezes, para o acalmar no
-furor do seu zelo pelos interesses do Municipio, teve um prestimoso amigo
-de lhe molhar a palavra, com agua da Fonte de S. Sebastião, que é a mais
-fresquinha[27].
-
-A final serenou e retirou-se satisfeito.
-
-Jantou e soube-lhe bem; mesmo muito bem. Com o enthusiasmo _entrou_ de
-mais n’um arrozito de _berberichos_.
-
-Retirou-se para o seu escriptorio.
-
-Os _berberichos_ principiaram, porém, a _repontar_ com elle,
-provocando-lhe, em certo apparelho, uns beliscões diabolicos.
-
-Lembrou-se de ir convidar o Leopoldo a dar um passeio nas muralhas;
-mas, por outro lado, a rigidez e a austeridade dos seus habitos
-aconselhavam-n’o a ir ter com o Capellão, certamente para se desobrigar
-dos peccados do dia.
-
-Mas, n’isto, no lusco-fusco da sua somnolencia, viu apparecer e avançar
-o vertice d’um angulo de 25°, angulo que foi alargando, alargando,
-sustentando sempre, um dos seus lados, em parallelismo com os olhos do
-Fonseca.
-
-Linhas irregulares, verticalmente dispostas, desenharam, depois, uma
-cabeça collada a esse grande appendice angular; novas linhas configuraram
-um corpo, como appendice d’aquelle primitivo appendice.
-
-Appareceu um nariz com perninhas!
-
-Em seguida, surgiu uma coisa redonda, muito arrebitada e rechonchuda, que
-foi, tambem, crescendo, crescendo...
-
-Rebolava-se uma pança que, avançando, exclamou:—_Oh Quim! Tu falaste bem;
-mas foi e Zé, quem te deu o papel!_
-
-Approxima-se o nariz, aos saltinhos, e diz tambem, roçando pelo
-respeitavel dito, do Fonseca:
-
-—_Sim! O Zé deu-te o papel! Foi o Zé! Foi o Zé! Foi o Zé!_
-
-—_Ah, Morãeses do diabo! Bofé, que mentis! A mim, gentes de Verdoejo e
-de Taião!_
-
-E arremessando para longe as lubricas tentações, o chale-manta
-e o barretinho bordado com a sua borlinha toda repenicada, a
-dar-a-dar,—foi-se á escrevaninha e principiou a escrever uma carta;
-depois, outra; depois, outra;—total sessenta cartas!
-
-No intellecto do Fonseca deu-se, então, aquelle phenomeno da
-scissiparidade por segmentação.
-
-Cidadãos pacatos e sisudos, pouco versados na mechanica epistolar e
-affeitos á bolorenta erudição do:
-
-«_Muito estimarei que ao receber estas mal esboçadas regras, esteja
-gozando perfeita saude, em companhia de quem mais deseja, pois a minha,
-graças a Deus, ao fazer d’esta, é boa..._»
-
-sahiram-se com puxadas de estylo de rachar tudo, graças á
-communicabilidade galvanica do intellecto fonsecoide, saturado de
-rhetorica e prenhe de syllogismos irrefutaveis.
-
- * * * * *
-
-Mas vem cá—oh Fonseca—O que é, afinal, que pretendes dizer na _tua_, com
-essas sessenta epistolas?
-
-Que diabo te disse o _Noticioso_, que tão violentamente arrepiou a tua
-espinha, como se te communicasse a irritabilidade nervosa do galvanismo?
-
-Offendeste-te por elle affirmar, que na sessão dos _quarenta-maiores_,
-o teu esplendido discurso não foi improvisado e que houve, até, quem te
-desse o _ponto_?
-
-Mas—oh filho—suppões, acaso, que no intimo da alma dos nossos
-conterraneos não existe, profundamente radicada, a absoluta confiança
-nos teus dotes oratorios, embora se reconheça, sem desdoiro, que não és,
-precisamente, o que se póde chamar um Pico de Mirandola?
-
-Então não está ahi, bem pronunciado, no teu luzidio craneo, o
-extraordinario desenvolvimento da terceira circumvolução cerebral, em que
-Broca localizou a eloquencia e a arte oratoria?
-
-Olha, Quim, um conselho de amigo:
-
-As tuas sessenta epistolas,—embora, verdadeiramente, se não saiba, ainda,
-para que as escreveste e para que incommodaste tanto cidadão pacato,
-tanto cerebro, tanta caneta, tanto bico e tanto papel de chupeta—estão
-boas; isso estão. Mas ouve, filho, a respeito de litteratices, de
-cartas—isto é—de escripturas e de lettras, manda-n’os algumas, mas
-d’essas que tens com hypothecas e com fiadores.
-
-As que para ahi estás a publicar, guarda-as, para quando não tiveres quem
-te _chegue o papel_...
-
-Não maces mais a gente, que tem de aturar bissemanalmente o _Noticioso_,
-diariamente o Marilio[28] e—aos domingos,
-
- o João de Ganfey.
-
-
-
-
-IX
-
-Politiquices[29]
-
-
-Anda coisa no ar...
-
-A horas mortas, nas sombras da noite, quando as venerandas paternidades
-desatam pachorrentamente os nastros das ceroilas e extendem as
-delgadas tibias entre a alvura dos lençoes, deliciando-se com a
-voluptuosa sensação do linho—quando os technicaphilas experimentam
-a potencia dynamica do coice e a rigidez do craneo contra os muros
-e bancos de praça, e as sopeiras, sedentas de luxuria e amor, abrem
-sorrateiramente a janella para sentimentaes gargarejos com almiscarados
-artilheiros—quando o beateiro resmunga entre bocejos, n’este meio
-cá—meio lá, da somnolencia, o ultimo _Paternoster_, e dois amigos meus,
-dos respeitaveis e probos, depois do nocturno repasto, se entregam,
-extramuros, a indigestos estudos de anatomia... _patriotica_—n’essas
-horas da noite, repito, nota-se nas ruas de Valença um movimento
-desusado, extraordinario e inquietador para quem de perto conhece, como
-nós, a indole pacifica e a habitual obediencia dos nossos conterraneos ao
-toque militar das oito e meia.
-
-Cruzam-se vultos mysteriosos e sombrios, murmurando rapidamente palavras
-convencionaes; a frouxa luz dos candieiros projecta nas calçadas a sombra
-de longos _capindós_, de amplos _libertés_ com que, indubitalmente,
-conspiradores sinistros, caras patibulares e alvellicas, se disfarçam e
-acobertam.
-
-Denuncia-se, emfim, a effervescencia d’uma agitação occulta, surda, quiçá
-perigosa e violentissima, que prepara para breve, na historia d’este
-brioso povo, acontecimentos extraordinarios e imprevistos, que hão-de
-suscitar aos pósteros um ponto de exclamação tão elevado, tão grande
-e tão alto, como o sr. professor de Verdoejo, como o nariz do sr. dr.
-Ladislau, ou como um chapéo siamez que, ha um bom quarto de seculo, eu
-por ahi vejo, nos dias festivos do anno, luzidio e repontante, contra o
-ether dos céos.
-
-Mercê da perspicacia e actividade do zeloso Commissario das Policias,
-o sr. Sampaio, está já conhecida a causa de tal agitação; e á amizade,
-com que esse cavalheiro me distingue, devo eu a possibilidade de aqui a
-communicar aos meus conterraneos, para tranquillidade das damas nervosas,
-das donzellas chloroticas e hystericas, que se tenham inquietado com o
-que acabo de denunciar.
-
-Trata-se d’uma conspiração politica.
-
-Preparam-se traças; urdem-se planos; consultam-se esphinges;
-interrogam-se oraculos; assediam-se as potestades eleitoraes; arietam-se
-as opiniões renitentes; hypnotisam-se os refractarios á conversão
-desejada, e tudo com a intenção sinistra e machiavelica de attentar,
-nas proximas eleições, contra a soberania e omnipotencia do senhor
-feudal d’este burgo, de quem tudo-lo-manda, o muito alto, poderoso, e
-excellentissimo Senhor Administrador do Concelho!!
-
-Quem diria, senhores, o que no ultimo quartel do seculo teriamos de
-presenciar n’esta nossa terra tradicionalmente fiel ás instituições,
-cégamente obediente aos poderes constituidos, amante do seu Rei e de toda
-a sua Excellentissima familia (como se diz em Monsão)—n’esta terra onde,
-depois que os legendarios 7:500 bravos implantaram e regaram com o seu
-sangue o systema constitucional, inaugurando essas grotescas bambochatas,
-chamadas eleições, nunca os nossos antepassados tiveram a ousadia de
-contestar a opinião, as ideas do Senhor Administrador, embora ellas
-fossem tão extraordinarias e tão estramboticas como o dizer-se agora—por
-exemplo—que o sr. José Narciso não acceita a legitimidade dos direitos
-do Senhor D. Miguel de Bragança; que o Senhor Velloso, com o seu bigode
-negro e a alvura immaculada do seu collete branco, não é, para as damas,
-o mais esbelto e airoso joven, que terras de Portugal téem exportado
-para a nossa galeria aduaneira, ou ainda, que o Senhor Agostinho não
-significa na politica um caudilho poderoso, um sectario fiel, seguro e
-intransigente do partido progressista—regenerador—constituinte—reformista
-esquerdista—republicano—socialista.
-
-Mas, perguntarão Vossas Excellencias, não faz Valença parte d’um
-circulo? Não téem os seus habitantes, como os d’outras terras,
-semelhantemente illustres—Fornos de Algodres, Terras de Bouro, Cannas
-de Senhorim—direitos e regalias que a Carta Constitucional da Monarchia
-concede para a amplissima e plenissima liberdade da opinião, em materia
-de eleições?
-
-Verdade é.
-
-Temos os mesmos direitos e á custa do mesmo preço...
-
-Pagamos religiosamente as nossas decimas, as nossas congruas, sem
-contestações, nem aggravos, desprezando, até, com generosa e espartana
-altivez os quebrados, os dois, tres e quatro reis—uma ninharia—que o
-Senhor Recebedor, escravo dos dictames da sua consciencia, á força nos
-quer devolver.
-
-Mas, eu recorro á Historia, a que Thierry chama «espelho da verdade»
-e Michelet «guia do futuro» para affirmar e provar, _urbi et orbi_,
-a inflexivel immutabilidade das opiniões politicas da nossa terra,
-recordando factos que, fiel e genuinamente, exprimem e caracterisam a
-superior orientação, que aqui existe sobre os direitos do cidadão—factos
-que não architecto com materiaes da Phanthasia, nem illumino nas
-penumbras dos tempos remotos, porque são rigorosamente exactos e coevos
-da geração que passa.
-
-Approximava-se, ha annos, o dia em que o povo soberano, forte nos seus
-direitos, em troca do liberrimo voto a uma tarraçada de vinho, ou a
-indigestão de _calhos_ na cantina eleitoral de Mestre Pedro era chamado a
-influir nos destinos da Patria e a metter a sua colherada n’essa sordida
-e nojenta palangãna, chamada _urna_, onde com putridas exhalações,
-referve e azeda a mixordia das ambições estultas, das vaidades
-irritantes, das pressões odiosas, das promessas fementidas, e em que os
-ambiciosos e especuladores—os Pausanias e Wilsons de todos os tempos—se
-refocillam e afocinham, disputando, á dentada, o appetecido osso do
-_arranjo_...
-
-Nos campanarios sertanejos agitava-se o badalo chamando o servo da gleba
-que, de roupa domingueira e quinzena nova, se dispunha a, mais uma vez,
-com boçal inconsciencia, conspurcar o direito do voto—uma das mais bellas
-conquistas da liberdade na sua sangrenta evolução atravez de seculos de
-lucta, producto abençoado da laboriosissima reacção que n’essa enorme
-retorta, a França, na inferioridade do sudra, na degradação de ilota, nas
-algemas do escravo, na dependencia humilhante do servo—como elementos
-componentes—provocaram os raios chimicos da formosissima luz d’essa
-bemdita, mil vezes bemdita, alvorada de noventa e...
-
-Mas, perdão.
-
-Que diabo estou eu a escrever? _Ridendo_... Eis o meu programma.
-
-Ao largo, pois, logares communs de estafada Historia!
-
-Pensamentos tristes, arredae! Acoitae-vos e multiplicae-vos no cerebro
-do Padre Capellão para, nos sermões de sexta-feira santa, com que, tão
-auspiciosamente, inaugurou a sua eloquencia n’esta terra, nos descrever
-mais uma vez, com a voz embargada pelo sentimento, o martyrio da MÃE, as
-afflicções da MÃE a dôr da dita MÃE.
-
-Continuemos, pois, a rir, senhores, um riso bom, sonóro, vibrante e
-desafogado, que o riso é das poucas coisas que ainda escapam á rede
-tributaria, e representa, n’este arido deserto da vida, a frescura
-vivificante e consoladora do oasis.
-
-Ha annos, ia eu dizendo, em vesperas de eleição, teve um vizionario
-estranho a ingenuidade de tentar combater o sr. Administrador do
-Concelho, arrepiando-lhe a submissão dos eleitores, em determinadas
-freguezias.
-
-O caso engatinhou ás culminancias do desafôro; alcandorou-se nos topes do
-escandalo!
-
-Apimentaram-se os animos; esturraram-se os genios; apopleticaram-se
-os mais sisudos e conspicuos habitantes da rua de S. João—esses
-santos varões, que são na nossa terra os genuinos representantes dos
-ricos-homens e infanções dos tempos medievaes, sobrios de costumes,
-austeros no porte, d’um puritanismo feroz; tementes a Deus, ao diabo, ao
-abbade e ao sr. Joaquim Apollinario.
-
-Reuniram-se, em conclave mysterioso, os mais valentes e poderosos homens
-d’armas do partido governamental—o unico, n’estes reinos, legalmente
-constituido.
-
-Mensageiros esbaforidos chegavam, tressuando, de toda a parte com
-informações sobre os manejos do inimigo e, praça aberta á discussão,
-depois de grave ponderação e demorada concentração dos espiritos, sahiu
-d’aquellas venerandas cabeças o plano de combate que, para efficaz
-execução, para infallivel resultado, urgia communicar immediatamente, sem
-demoras, nem hesitações, a um rico-homem de Coura.
-
-—Ora, n’aquella epocha, se bem que já estivesse iniciado o caminho
-das grandes descobertas geographicas e scientificas, que constituem
-a epopeia gloriosa da humanidade, e se conhecessem já, a America, a
-Africa, o phonographo, os camarões, o xarope do dr. Gibert e o sabão do
-sr. Moutinho; existindo já Pasteur, Jenner, João da Gaiteira, Edison,
-os srs. Zé da Rosa e Roldão; se bem que a Sciencia, em todos os seus
-ramos, estivesse consideravelmente aperfeiçoada, como por exemplo, a
-Jurisprudencia em que, no Direito penal, Lombroso, Garofalo, Aubry,
-attenuavam a responsabilidade criminal, combatendo essas brutaes penas
-da forca, da guilhotina, do pôtro, e substituindo-as, quando o crime
-tinha as revoltantes particularidades de Pantin, de Fuencarral, ou de
-White-Chapel, por uma audição, mais ou menos demorada, do drama do sr.
-C. Barros, ou d’um discurso do sr. Presidente da Camara—n’essa epocha,
-repito, ainda o sr. Miguel Dantas não tinha inventado Coura, a preciosa
-povoação, que tanto deu que matutar aos srs. Fontes e Bismarck, nos
-procellosos dias da revolução de Bico.
-
-A Mesologia estava, ainda, no estado rudimentar e não tinha definido
-e aproveitado a extraordinaria influencia procreadora do clima, que
-n’aquellas uberrimas paragens, melhor do que a Physiologia de Debay, do
-que qualquer intervenção abbacial, ou leopoldica, mantem nas robustas
-camponezas uma fecundidade tal que, annullando por completo as theorias
-de Fourier, na resolução do importante problema do pauperismo, estabelece
-para a pittoresca povoação a reputação invejavel e, sobremodo honrosa, de
-fabrica permanente de amas para bebés.
-
-Coura, emfim, meus senhores, a indispensavel Coura, estava ainda no
-casulo das sociedades modernas, na pevide das povoações minhotas, no
-caroço dos baluartes eleitoraes e não podia, portanto, alli influir
-a civilização como agora, em que o luxo das edificações principia a
-abandonar o colmo na cobertura das casas, substituindo-o por umas coisas
-vermelhas e arqueadas chamadas telhas, e em que ha Correio e Telegrapho,
-com um movimento tão extraordinario e assombroso, que a gente guinda-se
-aos mastaréos da popularidade, trepa aos carrapitos de um semi-deus,
-escarrancha-se na celebridade do proprio Boulanger se, n’um só dia,
-recebe da familia duas cartas e um telegramma!!
-
-Mas... era necessario lá mandar um proprio, unico recurso d’aquelles
-felizes tempos, em que estavamos livres da Companhia real, e podiamos,
-sem despeza de testamento, nem afflicções de quem está nas garras da
-Morte, tentar qualquer viagem.
-
-E tal era a urgencia, a imprescindibilidade da communicação, que o
-portador devia ir a cavallo!
-
-Ora, esta urgencia, formulada na intervenção do rocinante e lançada á
-discussão na maior effervescencia do furôr opposicionista, despertou no
-espirito dos mais sensatos e perspicazes ricos-homens e abbades um subito
-resfriamento de enthusiasmo.
-
-Perceberam o quer que fosse de sombrio e tetrico, que baixou a zero a
-ebullição tumultuosa da sua dedicação partidaria.
-
-Como o Mane, Thecel, Phares, que entupiu Balthazar, ou a sombra de Banco
-que engasgou Macbeth, ou a estatua do Commendador, que foi para o D.
-Juan, de Molière, o que o vulto do capitão Teixeira de Moraes foi em
-noite procellosa de inverno, nas cercanias do solar da Balagota, para o
-Sr. Sampaio[30] a lembrança do cavallo aterrou os mais ousados d’aquelles
-ricos-homens, que representavam, no seu conjuncto, feudos e rendas
-superiores a muitas centenas de mil cruzados.
-
-Empallideceram, subitamente, as faces até alli purpurinas e rubras de
-excitação; baixaram-se, evitando-se, os olhos, até alli coruscantes de
-furôr; cerraram-se os labios, como se uma pressão de muitas atmospheras
-actuasse brutalmente sobre as maxillas. Os mais ousados coçavam
-nervosamente a região occipital...
-
-É que ao longe, lá muito ao longe, na sombra do magro rocinante,
-percebiam elles, já, as formas indecisas e vagas do burriqueiro,
-reclamando, com humilde postura—vergado o corpo n’aquelle respeitoso
-angulo de 65° com que o nosso homem, o supracitado Sr. Sampaio fala,
-cheio de blandicias e ternuras, ao Sr. Dr. Brito—o meio pinto da tabella
-para uma viagem a Coura.
-
-Meio pinto, senhores!
-
-Menos do que o Sr. Seixas ganhava n’uma caixa de amendoas, _quando
-mostrava a factura_; coisa de dois conselhos do Dr. João Cabral; meia
-dose florindica, pagando á Rotschild; o lucro do sr. Fontoura n’uma
-tisana de treze vintens.
-
-Meio pinto, senhores!
-
-..............................
-
-Rapida foi a dissolução do conclave. Pretextos futeis, encapotados com
-razões imprevistas, fizeram debandar, como corvos açoitados pelo furacão,
-os graves maioraes da politica concelhia.
-
-Foi o mensageiro a Coura, e durante muito tempo, nas altas e
-transcendentes concepções philosophicas, em que o animalejo
-constantemente se absorvia—(indecifraveis para nós, os mortaes, como
-a opinião politica do Sr. Vigario Geral, ou como a origem do subito
-rejuvenescimento do nosso muito querido Sr. Sampaio ao ler nos jornaes a
-palavra _Cordão_)—entrou a influir grave ponderação sobre o alcance dos
-decretos da Providencia, que se apraz em confiar de um misero sendeiro a
-salvação d’um partido, como do nada, do pó, do humus empapado da chuva,
-que demorou Grouchy, forjou o camartello possante, que em Waterloo
-esmigalhou o pedestal d’esse feroz açoite da Humanidade, chamado Napoleão.
-
-..............................
-
-Creio inutil dizer que, depois da eleição, para a gamella do burriqueiro
-havia mais um commensal... um cão![31]
-
- * * * * *
-
-Prosigamos n’este escabroso trilho da Historia em que, para fiel
-e rigorosa exposição dos factos, temos de executar os milagres do
-equilibrio de Blondin, ou de Leonne Doré, entre os exaggeros dos
-informadores apaixonados e as erroneas reflexões de commentadores pouco
-escrupulosos.
-
-Serve-nos de maromba a consciencia e oxalá ella nos guie até ao fim
-d’esta penosa caminhada, atravez da original e curiosissima politica da
-nossa terra[32].
-
- * * * * *
-
-Indubitavelmente, o dia 22 de Novembro de 1879 é um dos mais memoraveis
-para os habitantes d’esta antiga e mui nobre povoação.
-
-Essa data deve estar indelevelmente gravada no livro d’oiro dos grandes
-acontecimentos historicos; insculpida, a traços diamantinos, na epopea
-das grandes solemnidades de Valença, ao lado das procissões de S.
-Sebastião e _Corpus Christi_, grotescas mascaradas, com que no Minho se
-avivam as descrenças, digo, as crenças, a ociosidade, a pasmaceira, o ar
-marcial e aguerrido das tropas, os namoros, as bambinelas dos armadores e
-as transacções do commercio, na sua importantissima secção de: birimbaus,
-peixe frito e... limonada de cavallinho.
-
-Foi um dia festivo, solemne; d’aquelles em que o caiado das casas nos
-parece mais branco; a porcaria das ruas menos escandalosa; a atmosphera
-mais diaphana; o verde das campinas mais vivo; a abobada celeste mais
-limpida; o aroma das flôres mais penetrante; a cara dos amigos mais
-risonha—um d’estes dias, em que a gente se sente mais feliz, com menos
-dinheiro e mais tentações, e em que as fibras do coração que movem o
-badalo do enthusiasmo, bruscamente se agitam, como se ouvissemos o hymno
-da Carta, um discurso do sr. conselheiro Silvestre Ribeiro, ou como
-se os canhões da Coroada, os sinos de Santo Estevão, a bandeira real
-desfraldada aos quatro ventos, celebrassem festivamente o anniversario da
-Restauração!
-
-Acotovelava-se nas ruas uma multidão expansiva, ruidosa, com a alegria
-a pinotear na mioleira; com todos os macaquinhos do sr. Palhares, em
-borga infernal no sotão; expondo por ahi, escandalosamente, a habitual
-gravidade, de saia arregaçada e peitos descobertos, em desenfreado e
-lascivo minuete com as posições officiaes.
-
-Para exprimir tudo, emfim, havia no intimo de cada um, tanta satisfação
-e tanta alegria, como hoje sentiria o sr. Joaquim se recebesse
-auctorisação do Ministro do Reino para obsequiar o dr. Cabral com todas
-as trombetas de Josaphat, sopradas por innumeras legiões d’aquelles anjos
-e seraphins de bochechinha gorda e purpurina, que por ahi vemos em S.
-Estevão,—embora, para esse justissimo desforço de cidadão offendido nos
-seus direitos, de Juiz da Senhora da Saude, affectado nas suas crenças,
-tivesse de arredar, das suas arcas de nababo, com arrebatado impulso de
-perdulario enthusiasmo, coisa de doze vintens—captivos a troco!
-
-N’esse dia, meus senhores, era restituido o batalhão de caçadores 7 a
-Valença, chyprado ao berço da monarchia, á terra dos condes, dos conegos,
-das cruzes e dos cutileiros, por Sua Excellencia, o sr. Ministro da
-Guerra.
-
-Nada faltou no programma das recepções festivas: coroas de loiros;
-discursos do sr. Presidente da Camara; mensagens de congratulação; odes e
-alexandrinos do vate Aurelio Victor Hugo; bailes; regabofe nos presidios;
-bodo aos pobres; arcos de triumpho forrados a gazetas; musica, foguetes e
-luminarias.
-
-O enthusiasmo estonteava os cerebros; alcoolizava os espiritos;
-absinthava os animos.
-
-O sr. Francisco Durães, homem sério, pacato e já na escala para
-camarista, deitava foguetes na muralha, como qualquer _careca_ sertanejo
-em arraial da festeira Urgeira.
-
-Um camarista illustre luctava duas horas, para enfiar no par de
-luvas, que por engano lhe tinham vendido para a mesma mão—o dedo
-_mata-parasitas_ na casa do _mindinho_.
-
-O sr. Abilio, nos paroxysmos de um enorme enthusiasmo, apparecia de
-gravata branca, casaca, no pé direito uma bota de polimento, no esquerdo
-um chinelo de liga, representando a Associação Artistica!
-
-E no meio de todo este contentamento, nas expansões de todo este delirio,
-um unico nome soava, tangido constantemente pelo enthusiasmo popular,
-nas praças, nas ruas, nas lojas, nos clubs,—nome que parecia ser o fóco
-convergente para todas aquellas ruidosas manifestações, nome que n’esse
-dia tinha mais prestigio que o da Senhora do Faro, nome aureolado, nome
-querido de—Elyseu de Serpa!
-
- Victoriava-se Elyseu de Serpa
- Discursava-se sobre Elyseu de Serpa
- Telegraphava-se a Elyseu de Serpa
- Rezava-se a Elyseu de Serpa
-
-e Clero, Nobreza e Povo, fraternizando, hombreando, felicitando-se, davam
-largas á plenitude da sua gratidão a Elyseu de Serpa.
-
-Jurava-se aos deuses, pela nossa consciencia, assim dardos de Jupiter
-nos partissem, se durante a nossa existencia, embora ella attingisse
-a longevidade de um Mathusalem, que viveu, segundo diz a Biblia, 900
-annos (o que eu acredito) outro homem se sentasse nas cadeiras de S.
-Bento com o nosso mandato, porque Valença tinha contrahido com elle uma
-divida sagrada, immorredoira, imperecivel, immensa, de profunda, eterna e
-vivissima gratidão.
-
-E se alguem, mais pratico em coisas do mundo se atrevesse a revelar pouca
-confiança na estabilidade d’aquelles fervorosos protestos, recordando
-que já lá vae o tempo dos Eros, dos Scevolas, dos Martins de Freitas,
-dos Egas, etc.,—oh Christos de Villar!—corria grave risco de ser lançado
-aos fossos, empalado no pau da bandeira, ou esquartejado pelo primeiro
-magarefe, que por ahi apparecesse, em ociosa disponibilidade.
-
-Pois, meus senhores, ahi vae a Moral do conto mais um tento para a
-marca preta e um documento para a nossa historia politica. Poucos mezes
-depois, mettia o sr. dr. Lopes o seu nariz na Administração do Concelho e
-aquelle grande vulto (não o do nariz) absorvia, completamente, todos os
-enthusiasmos que descrevi!
-
-A urna entrou mais uma vez no templo, para servir de leito nas sensuaes
-orgias do voto com a immoralidade e o sr. Elyseu de Serpa, o mesmo, em
-carne e osso, a que me referi—obtinha em todas as assembleas eleitoraes
-do nosso concelho:—cinco votos!
-
-Ora, um povo que denuncia tão vehemente firmeza de convicções e de
-sentimentos, está—digam lá o que disserem—reservado para grandes destinos.
-
-Abençoado torrão este, da Patria minha!
-
- * * * * *
-
-Com os argumentos irrefutaveis, que os factos nos fornecem, estudamos até
-aqui a politica de Valença nas suas espheras mais elevadas, isto é, na
-villa e entre as camadas illustradas; e, indubitavelmente, não existe no
-nosso espirito outro sentimento, que não seja o baseado em tristissimo
-desalento...
-
-Vejamos agora, em breves palavras, antes das considerações geraes, o que
-o povo imagina e sabe de toda esta engrenagem que lhe rouba os filhos,
-dinheiro e... os votos.
-
-Ha annos, Ramos Paz, que aqui dignamente exerceu as funcções de
-Sub-Inspector de Instrucção, presidia a uma conferencia pedagogica nos
-Paços do Concelho. Extranhando as theorias apresentadas por um professor,
-sob a intervenção da auctoridade administrativa na legislação municipal,
-relativa ao professorado, perguntou alizando aquellas grandes barbas á D.
-João de Castro:
-
-—Então quem nomeia os professores?
-
-—O Sr. Administrador—respondeu o homem.
-
-—Ora essa! Então as Camaras?
-
-—As Camaras são tambem nomeadas pelo sr. Administrador—confirmou ainda,
-com a má interpretação que dera á pergunta.
-
-Meditemos, senhores.
-
-De feito; na ignorancia d’aquelle pedagogo havia uma grande verdade, que
-nós, rigorosamente, não podemos refutar.
-
-Luiz XI disse uma vez ao Parlamento, levantando o chicote:
-
-—_L’etat c’est moi!_
-
-Rodrigues Sampaio, não ha ainda muito tempo, que bradava ao paiz:
-
-«O unico poder que entre nós existe é o Rei!»
-
-Nós poderemos plagiar Luiz XI, Rodrigues Sampaio e o pedagogo,
-asseverando:
-
-N’este concelho de Valença ha só uma força, uma vontade, um poder:—o
-Senhor Administrador[33]—quer o represente a taciturnidade esphingica
-do sr. Dr. Lopes, ou a gulliverica estatura do sr. Dr. Ladislau,
-ou a inoffensiva bandido-mania do sr. Dr. Malheiro, ou a feroz
-iconoclastia do sr. Dr. Cabral, ou... a paz d’alma e de corpo do sr. Dr.
-Brandão-Malheiro-Lopes da Cunha-Cabral!
-
-Abençoado torrão este, da Patria minha!
-
- * * * * *
-
-Historiamos até aqui. Philosophemos agora, porque a Historia sem a
-Philosophia pouco vale e não póde servir, como disse Michelet, para guia
-do futuro.
-
-É evidente que não temos organização pulmonar, que desafogadamente possa
-funccionar na atmosphera das nossas liberdades civis.
-
-É evidente que, seja qual fôr o proceder da auctoridade administrativa,
-só ella póde, quer e manda; e que, no campo a que hoje Vossas
-Excellencias são chamados—as eleições—, ella exerce para qualquer
-opposição o mesmo terrifico effeito que, em dilatado feijoal, produz para
-os pardaes e pardocas, o espantalho armado com dous rabos de vassoira
-em cruz, cartola velha no vertice e casacão enfiado nos braços, com as
-mangas pendentes e á mercê do vento.
-
-E, evidenciado isto, para que precisamos nós de deputados, seja qual fôr
-a chancella que tragam? Que temos nós com o que vae por esse paiz, com o
-nariz do sr. Beirão, com a marreca do sr. Hintze, com a somnolencia do
-sr. Henrique de Macedo, ou com os chouriços do sr. José Luciano?
-
-Que necessidade temos nós de fazer perder a gravidade aos Ministros,
-pondo-os aos saltinhos de contentes, quando o sr. Zagallo, com os
-seus Mentores e correligionarios lhes officiam, annunciando que...
-deliberaram apoiar a marcha do Governo—ou que diabo lucramos com a
-mudança de ceroilas, a que os obrigamos, enviando uma representação
-dos tres mil negociantes da terra[34] contra a Companhia vinicola,
-communicando, pelo telegrapho, que estão fechadas as quitandas de Valença
-e que vate Aurelio Victor Hugo fala ás massas, em imponente e assaz
-concorrida reunião politica?
-
-Senhores! Por Deus, simplifiquemos tudo isto; todas estas inuteis
-formalidades, que são proprias para terras civilizadas. Fazem perder
-tempo, e tempo é dinheiro, como diz o bretão.
-
-Qual é, em ultima analyse, o regimen em que vivemos? O feudal.
-
-Adaptemo-nos, pois, ao que elle nos estabelece e concede. Ahi vae um
-alvitre:
-
-Sabem Vossas Excellencias o que eram as antigas _behetrias_ da epocha
-medieva: povoações que tinham o direito de escolher o senhor, que viviam
-independentes e de portas cerradas, até, aos senhores estranhos. Aqui
-estava um modelo, mas lá vae outro, talvez preferivel.
-
-Na vertente meridional dos Pyrineus ha uma amostra de estados autonomos—a
-republica de Andorra.
-
-Tem approximadamente, sem escandalosa differença, a população d’este
-Concelho. Tem legislação civil, militar e religiosa. Tem Governo civil e
-militar; Alfandega, Repartições de Fazenda; Camara; Junta de Parochia;
-o seu Cordão sanitario de quando em quando; lazareto com respectivas
-rações; reforma de matrizes; irmandades e confrarias; isto é, nicho para
-todos os pretendentes.
-
-Ora aqui está o que nos serve. É uma organização baratinha e fica em casa.
-
-Proclamemos hoje mesmo a nossa independencia! Behetriemo-nos!
-Andorriemo-nos! Entregue-se o poder a um só homem, que se denomine Rei,
-Imperador, Presidente, Syndico, Regulo, Papa, Bispo, Soba ou Cabinda!
-
-Precisamos, verdade é, d’uma auctoridade, para regular as nossas questões
-e moderar as nossas exigencias.
-
-É necessario que, quando alguem se lembrar de dizer, que as aguas
-da fonte de S. Sebastião pertencem á Camara, haja quem garanta as
-reclamações justissimas com que o sr. Joaquim prova á evidencia que
-são suas, muito suas, embora não se recorde da gaveta onde conserva as
-provas, o que póde succeder a toda a gente; quando a vizinhança do sr.
-C. Dias, incluindo a Excellentissima Camara, continue a esticar a guita
-dos limites das suas propriedades, avançando sobre a que aquelle bom e
-innocente amigo possue no Caes, haja quem faça respeitar os seus direitos
-e impedir, que nas terras da Saibreira se não possa continuar a observar
-o extraordinario effeito da dilatabilidade da Materia sob a acção dos
-raios solares, phenomeno alli tão evidente e precioso para o estudo das
-revoluções geologicas do globo; quando o sr. Agostinho se lembrar de
-mandar vir do extrangeiro casas feitas para os seus terrenos, haja quem
-lhe apresente esse doirado codigo, que é o palladio das nossas liberdades
-civis—o regulamento do Senhor Conde de Lippe dado ás gentes em 1700 e
-tantos.
-
-É preciso, emfim, um braço e uma cabeça.
-
-E quem devemos escolher?
-
-Quando me lembro que estou n’uma terra que não quiz o legado do Conde de
-Ferreira; n’uma terra em que, se a gente tiver um nariz, como os dos srs.
-Cunha ou Ladislau, e se collocar em noite de eclypse, sobre o telhado da
-sua casa, para espreitar a lua, ou escutar a harmonia das espheras, vem
-logo o estalão do Conde de Lippe verificar, se dos cabellinhos da venta
-á soleira da porta existe, realmente, maior distancia de que 4 metros, 5
-decimetros e 6 millimetros e meio do regulamento;—eu, meus senhores, para
-o poder supremo da nova organização politica que proponho, só me lembro
-de dois homens, que tenho a honra de apresentar á vossa apreciação e
-para os quaes, desde já, peço o vosso suffragio, porque estou plenamente
-convencido de que hão-de satisfazer ás exigencias e aos deveres da
-actividade, firmeza de convicções e orientação politica, que a vossa
-orientação politica, a vossa firmeza de convicções e a vossa actividade
-lhes impoem.
-
-Eil-os:
-
- O Fileiras,
-
- ou o
-
- Cachimbo dos melros.
-
-
- Em 20 de outubro de 1889.
- Dia da eleição de deputados.
-
-
-
-
-X
-
-Violetas
-
-
-As imagens até aqui reflectidas no foco da minha lente ficam delevelmente
-estereotypadas n’essas paginas, porque é indeciso o traço, debil o
-colorido, irregular o contorno e imperfeitissimo o relevo.
-
-Falta ahi a luz indispensavel á nitida percepção de todas as minucias das
-individualidades sociaes, que a minha critica envolve, porque não é dado
-a espiritos vulgares o emittil-a.
-
-Encontro na expressão escripta as difficuldades caracteristicas
-d’essa lesão cerebral, que os physiologistas incluem na classe das
-_aphasias motoras_, sob o nome de _agraphia_; e, se até aqui deplorei
-as consequencias d’essa lesão, que se oppõe á reproducção fiel das
-minhas impressões sobre a sociedade em que vivo, sincero é o meu
-pesar, reconhecendo-me incapaz de avivar a imagem d’um vulto, que já
-desappareceu sob a loisa dos tumulos, mas que deixou luminoso rasto de
-bondade e de honradez nas sombrias atmospheras onde, implacavel e feroz,
-se trava a eterna lucta pela existencia.
-
- * * * * *
-
-Schopenhauer filia-se n’essa eschola philosophica, que poderemos
-denominar _pessimista_, em que sarcasticamente se dissecam as fibras do
-coração humano, negando-se-lhe sentimentos affectivos e a possibilidade
-de alimentar aspirações puras e nobres.
-
-Na fria analyse, que o philosopho allemão nos apresenta do homem na
-sociedade e na familia, resaltam os exaggeros d’um espirito sombrio, em
-que poderosamente influiram a acção morbida de temperamento e a acção
-do _meio_: mas ha tambem nas suas paginas grandes verdades que nós,
-dissipada a má impressão originada na rudeza da phrase, intimamente não
-podemos refutar.
-
-«_O nosso mundo civilizado não passa de uma grande mascarada.
-Encontram-se n’elle cavalleiros, frades, soldados, doutores, advogados,
-padres, philosophos, que mais sei eu? Mas não são o que representam ser;
-são simples mascaras, debaixo das quaes se occultam, a maior parte das
-vezes, especuladores de dinheiro._
-
-_Um toma, assim, a mascara da justiça para melhor ferir o seu semelhante;
-outro, com o mesmo fim, escolheu a mascara do bem publico e do
-patriotismo; um terceiro a da religião, da fé immaculada._
-
-_Para toda a especie de fins secretos, mais de um se occultou sob a
-mascara da philosophia, como tambem sob a da philanthropia. Ha tambem
-mascaras vulgares, sem caracter especial, como os dominós nos bailes,
-e que se encontram por toda a parte; estes representam a rigida
-honestidade; a polidez; a sympathia sincera e a amizade fingida._»
-
-..............................
-
- * * * * *
-
-Ora, observando a nossa actual sociedade, n’esta epocha de egoismo, de
-ambições, de illegalidades, com que por ahi se conspurcam e desprestigiam
-as mais nobres instituições,—n’esta epocha de Wilsons, de Hersents, de
-bonds e de processos _da fava_—poderemos, com intima convicção, acoimar
-de exaggeradas essas linhas do pensador allemão?
-
-A consideração social chatina-se vilmente nas Bolsas, onde se expõe á
-venda com as inscripções de tres por cento. Os titulos do governo teem,
-como _bonus_, uma certa maquia de respeito publico; por consequencia,
-o valor d’este está na razão directa da quantidade total, que cada um
-possue dos outros.
-
-Quem tiver duzentos contos, póde ser um larapio e um canalha; mas, com
-certeza, é um homem de consideração.
-
- * * * * *
-
-Antonio da Silva, aquelle carpinteirito da Esplanada, ganhava dezoito
-vintens por dia; sustentava mulher e tres filhos.
-
-Adoeceu: contrahiu dividas no mercieiro, na botica e na padaria; deixou
-de pagar ao senhorio; pôz no _prego_, a pataco por corôa ao mez, o
-relogio de prata, os brincos da mulher, os cobertores do inverno e a
-ferramenta.
-
-Esteve dois mezes de cama.
-
-Voltou fraco e abatido para o trabalho. Tentou desempenhar-se. Fazia
-serões. Não poude pagar uma divida.
-
-Os credores perseguiam-no.
-
-As mulheres e os filhos não tinham roupa; tiritavam e... choravam.
-
-Um crédor requereu a penhora; levaram-lhe a cama.
-
-Na alma d’aquelle homem havia um inferno porque era honrado—o pateta!—e
-era doido pela familia.
-
-Um dia, collou a massa encephalica nas paredes da latrina com a balla do
-rewolver.
-
-—Um criminoso—disse o abbade.
-
-—Um caloteiro—disseram os do pataco por mez.
-
-—Um pobre diabo—responsaram as almas piedosas.
-
-—Um pateta de menos—resmungou a sociedade.
-
-A Santa Madre Egreja, toda Caridade e Amôr, recusou-lhe o latim da
-padralhada—esse latim tão sonoro, tão vibrante, tão repenicado, quando
-responsa o negreiro e o ladrão de gravata, que deixaram quarenta moedas,
-para missas de pinto a duzia.
-
-Foi enterrado no fosso, ao lado d’uma pileca do Guilherme; como responso,
-teve uma enfiada de pragas dos coveiros, porque estava realmente muito
-frio e ainda não tinham _matado o bicho_.
-
-—_Oh estupor—disse o Coruja—podias arrebentar a pinha no verão. Não
-tinhas agora tanto frio!_
-
-..............................
-
-Á mesma hora, Henrique de tal, Conde de Burnay, mandava _photographar_
-os bonds do sr. Hersent e mais de trezentas carruagens com fidalgos,
-bispos, padres, conegos e escorropicha-galhetas varios, acompanharam
-até aos Prazeres o cadaver d’um beneficiado na _falcatrua hersentica_,
-portuguez abrazileirado, que mantinha relações illicitas com a irmã—o
-que era publico e notorio na freguezia, alli para os lados de Penafiel—e
-que, n’uma terrifica visualidade do inferno, apartára trezentos mil
-reis, adquiridos n’esse infamissimo trafico de carne humana, para missas
-cantadas e por cantar.
-
-Viremos folha...
-
- * * * * *
-
-—Mas, Senhor Zinão,—diz Vossa Excellencia—isso é velho, é sediço, é
-estafado e massador...
-
-—Esta jeremiada veia a lume, meu Senhor, porque no meio da _reles
-pataqueirice_ da nossa actual sociedade onde pullulam os Iagos, os
-Tartufos, os Pausanias, os Wilsons, os Tamandarés—toda essa corja
-de falsarios, de perjuros e de traidores, que Dante implacavelmente
-esfarrapa e esphacela com as torturas do nono circulo—a gente póde soltar
-uma exclamação de surpreza tão ruidosa e tão violenta, como aquella
-trombetada de Rolando na batalha de Roncesvalles, quando encontra um
-homem, caminhando sempre, sem tergiversar, no caminho da Honra e da
-Dignidade.
-
-Consagro estas linhas á memoria d’um valenciano, que não deixou fortuna
-nem filhos governadores civis, ou deputados, que possam premiar esta
-homenagem com um naco do orçamento, como é da praxe pedir e conceder.
-
-Não me conhece a familia que elle deixou; e não é, portanto, o vil
-interesse, ou a lisonja porca, ou a torpissima adulação, que actuam na
-minha penna, obrigando-a a vergar-se, a perder a inflexibilidade com que,
-até aqui, tem fustigado muita importancia ridicula e chata.
-
-Ninguem, no concelho de Valença, até hoje adquiriu maior estima e maior
-consideração do que esse homem.
-
-Ninguem, como elle, poderia, mais proveitosamente, especular com o
-affectuoso prestigio, que o seu nome alcançou por essas freguezias.
-
-Era, porém, nobilissimo o seu caracter para que lhe permittisse manchar o
-nome n’esse bordel de pantomineiros e de histriões que por ahi especulam
-com a ignorancia do aldeão, fazendo do voto degrau para chegarem á
-mesa do orçamento e poderem roer as codeas babadas, que os Gargantuas
-politicos abandonam, ou lamber os productos do vomito, que a orgia e a
-indigestão provocam.
-
- * * * * *
-
-Esse homem morreu pobre; não é vergonha dizel-o; mas levem o aldeão
-acolá, ao cemiterio, mostrem-lhe todos esses mausoleus de marmore
-e de granito, e perguntem-lhe qual é o nome que, ainda hoje, mais
-affectuosamente vibra na sua alma rude, mas sincera.
-
-Dizem que as mulheres de Sparta, fazendo ajoelhar os filhos sobre o
-tumulo dos grandes heroes, alli lhes referiam os feitos gloriosos que
-insculpiram os seus nomes no livro d’oiro da Patria.
-
-Era assim que ellas preparavam a vigorosa musculatura dos futuros
-cidadãos da grande republica.
-
-Como ellas, _valencianos dignos_, quando a razão dos vossos filhos
-estiver preparada para receber os germens, que mais tarde devem
-fructificar na Honradez, apontae-lhes para essa pagina que, por
-escrupuloso respeito e por enthusiastica veneração, separo das outras,
-onde escouceiam ridiculos.
-
- * * * * *
-
-Zinão descobre-se, perante o nome que alli vêdes.
-
-
-
-
-XI
-
-Os Quadros da Collegiada
-
-
-A Arte nasceu d’esta nobilissima aspiração do espirito humano para, na
-investigação do Bello, dar á Materia a fórma das suas idêas e das suas
-crenças.
-
-O desenvolvimento intellectual de um povo e a sua influencia na obra
-da Civilização, podem estudar-se nos diversos productos, em que se
-reproduziu o genio dos seus artistas.
-
-Aos _dolmens_ e _menhires_, aos toscos instrumentos das edades
-paleonlithica e neolithica succedem essas colossaes construcções das
-margens do Nilo, as pyramides, os templos, as esphinges; os bronzes, as
-loiças e esmaltes, já de notavel perfeição, dos antigos egypcios.
-
-Surge, depois, o povo helleno com a sua admiravel architectura; com as
-formosissimas e inimitaveis estatuas de Phidias e de Lysippo; com a Venus
-de Milo e o Apollo de Belveder; com as formosas telas de Zeuxis e de
-Parrhasio; com todas as maravilhas, emfim, d’essa assombrosa civilização
-tão alta e tão brilhante, que ainda depois de passados vinte seculos,
-quando no horisonte despontavam os primeiros clarões da ridentissima
-alvorada—a Renascença—era ainda d’ella que, para geniaes concepções,
-recebiam inspiração e luz esses divinos artistas, que se chamaram Vinci,
-Raphael, Ticiano, Carrachio e Miguel Angelo.
-
-Com a Renascença accelerou-se a marcha evolutiva da Civilização; e o
-espirito do homem, depois de enriquecer as sciencias com preciosas
-descobertas, de desenvolver as industrias com novas e utilissimas
-applicações, crystallisa-se em fulgidas creações onde, com toda a nitidez
-de contornos, com toda a opulência de colorido, com toda a fidelidade
-de cambiantes e com todos os esbatidos do iris se reproduzem as mais
-extraordinarias maravilhas da formosissima Mãe—a Natureza.
-
-A Historia da Arte é a Historia da Civilização; é a Historia do Homem no
-seu _meio_, nas suas crenças, nas manifestações da sua intelligencia, nas
-aspirações da sua alma, na grandeza dos seus affectos.
-
-Estudando o Homem, estuda-se a Nação e a influencia que ella exerceu nas
-outras sociedades constituidas.
-
-São, pois, d’uma benemerencia incontestavel os esforços e os auxilios com
-que n’um paiz se tenta colleccionar, agrupar, reunir todos os elementos
-que possam reconstruir a sua historia artistica; e como essa empreza,
-de larga magnitude e importancia, só é cabalmente desempenhada pelo
-Estado, dever é do cidadão illustrado cooperar, quanto possivel, no
-desenvolvimento das instituições que possam mostrar aos extranhos o que o
-genio nacional produziu e creou.
-
-Com uma vergonhosa teimosia e deploravel inconsciencia, a esse dever se
-nega a actual Junta de Parochia de Valença, recusando-se a entregar ao
-delegado do Governo os quadros e a cadeira, que pertenceram á extincta
-collegiada de S. Estevão.
-
- * * * * *
-
- Senhores da Junta,
-
-ou antes
-
- Senhores Agostinho e Sampaio:[35]
-
-conversemos.
-
-Vossas Senhorias, n’essa manifestação volitiva, (saberão Vossas Senhorias
-que _volitiva_ significa: emanada da vontade) n’essa tenaz opposição as
-ordens do Governo, devem estribar-se n’uma razão, n’um argumento, n’uma
-conclusão qualquer. Mas eu—com franqueza—como conheço perfeitamente,
-por dentro e por fóra, (deixem-me assim dizer) o que Vossas Senhorias
-valem em materia de zelo pelas instituições, que estão dependentes das
-suas luminosas e peregrinas deliberações,—eu, que me recordo muito bem
-que Vossas Senhorias, que hoje energicamente bradam aos céos contra a
-reclamação do Governo, são exactissimamente os mesmos que, ha quatro ou
-cinco annos, deixavam estragar esses mesmos quadros e essa mesma cadeira,
-consentindo que um _Terrinha_ as borrasse com verniz de portão, depois
-de borrar, tambem, os peitos da Virgem do leite,—eu que me recordo
-ainda, que foram tambem Vossas Senhorias os _engenheiros_ n’aquella
-boçal mutilação da fachada de Santa Maria, parvoamente _restaurada_ ha
-annos,—eu, emfim, que (sem offensa) avalio a capacidade intellectual
-dos seus, aliás preciosos cerebros, como insufficiente para conter
-umas tristes cellulasitas, onde se aniche um errante atomo de intuição
-artística; porque, afinal de contas, estas coisas de Arte não são
-precisamente o mesmo que coisas de bombas, ou de receitas eventuaes e
-decimas de juros,—eu, repito, não posso explicar satisfactoriamente ao
-meu espirito a causa do proceder de Vossas Senhorias.
-
-Por zelo nos interesses da Junta não é—com toda a certeza—que Vossas
-Senhorias se revoltam contra o Governo. Isso é coisa averiguada,
-conhecida, evidente, que não admitte réplicas e a que não convém, mesmo,
-contestações.
-
-Recearão Vossas Senhorias que esses objectos, passando para as mãos do
-Estado, se _extraviem_, ou _percam_?
-
-Repillo, como absurda, a hypothese, porque só com tristissimo desalento
-veria dois funccionarios publicos suspeitarem de _larapio_ o Governo que
-lhes paga.
-
-O que é, pois, que actua nos seus cerebros?
-
-Não o sabem, mas sei-o eu.
-
-O que obriga Vossas Senhorias a esse tristissimo papel é isto:—o
-rheumatismo, o barretinho de seda preto, o cano das botas, os
-suspensorios, o alçapão das calças, a caixa do rapé, o pingo, a caspa; é
-essa maldicta enfermidade epidemica, peor do que a actual _influenza_,
-porque não ha profilaticos que a debellem, e que se origina nas
-exhalações mephiticas e deleterias dos fossos e das muralhas que teem
-musgo, ratos, corujas, toupeiras, morcegos e silvados coevos do mammuth;
-é essa coisa que sendo incorporea, invisivel, imponderavel, tem a rigidez
-bastante para encravar a roda do Progresso; que sendo inerte e fria,
-tem a temperatura sufficiente para caldear os embolos da Civilização;
-é—finalmente—a rotina!
-
-Vossas Senhorias, com essa teimosia, recordam-me (salvo o devido
-respeito) aquella conhecida anedocta do gallego:
-
-Alonso Perez y Perez ouvira dizer na sua terra que em Portugal se
-ganhava muito dinheiro, mas que era necessario pedir, exigir e reclamar
-sempre mais do que se recebesse por qualquer serviço.
-
-Perez y Perez entregou a mulher ao diabo, digo, ao Abbade e atravessou a
-fronteira, dilatando os póros de todo o corpanzil para, como ventosas de
-tentaculos cephalopodes, absorverem quantas _pesetas_ e _perras chicas_
-fosse possivel.
-
-Caminhando por essas estradas fóra, ao terceiro dia, veiu o cansaço;
-vergava-se-lhe o corpo, dobravam-se-lhe os joelhos, incharam-lhe os pés,
-pesava-lhe a cabeça: prostrado e doente, abeirou-se da valeta e cahiu
-succumbido, recordando com saudade as veigas da sua terra, a familia,
-a vacca e os bezerros, a missa do domingo, o recorte das montanhas, as
-columnas de fumo que, ao toque das Trindades, se evolavam no esbatido
-azul dos céos, o balido das ovelhas, o piar das avesinhas, todas essas
-coisas—emfim—saturadas d’um sentimentalismo feroz e piegas, que tão
-violentamente agitavam a alma do Justininho, quando elle concebia
-aquelles preciosos folhetins do _Noticioso_.
-
-N’isto, passa na estrada um almocreve com a sua enfiada de machos e,
-vendo o gallego n’aquelle misero estado, convida-o carinhosamente a
-escarranchar-se n’um dos animaes.
-
-—_E quanto xe me dá?_
-
- —pergunta o bruto.
-
- * * * * *
-
-Vossas Senhorias, n’esta estrada do Progresso, são (salvo o devido
-respeito) uns verdadeiros Alonsos.
-
-Como portuguezes, que põem luminarias á janella no 1.º de dezembro e
-no anniversario da Carta, devem amar a sua patria; como funccionarios
-publicos devem interessar-se no engrandecimento d’ella; como homens do
-seculo XIX, que usufruem todas as vantagens e liberdades que
-tanto sangue custaram, n’essa sangrenta lucta do despotismo e das trevas
-contra a luz, devem contribuir para que aos seus filhos seja entregue
-intacto, pelo menos, o inestimavel patrimonio da Civilização, que
-herdaram dos seus Papás.
-
-Ora, uns homens que por esse mundo de Christo, consagram toda a sua
-existencia no estudo dos meios, que podem elevar e engrandecer os
-povos, reconheceram a enorme utilidade das collecções artisticas, das
-bibliothecas, dos museus, de todas as instituições, onde se enthesoiram
-os productos do espirito humano na sua marcha evolutiva atravez dos
-seculos.
-
-Esses homens dizem a Vossas Senhorias:
-
-Pretendemos reconstruir a historia da Arte portugueza, reunindo e
-dispondo convenientemente, chronologicamente e por distincção de
-escholas, n’uma boa sala com ar e com luz, essas telas, que Vossas
-Senhorias por ahi inconscientemente dependuram em paredes humidas, e
-imbecilmente inutilizam, mandando, de quando em quando, envernizar, a
-brocha, pelos _Terrinhas_.
-
-O Estado toma conta d’isso que lhe pertence; e, quando Vossas Senhorias
-tiverem uns amigos hespanhoes, francezes, inglezes, turcos ou moiros,
-que lhes perguntem, fazendo obra pelos mais aperfeiçoados diccionarios
-geographicos extrangeiros, se Portugal é provincia hespanhola, ou
-ingleza—podem leval-os ao Museu nacional, onde lhes provarão que somos
-livres, que temos Historia mais brilhante que a d’elles, que temos Arte,
-que temos Civilização, que temos alma nacional que já se expandiu pelo
-mundo inteiro com o genio dos grandes heroes e dos grandes artistas.
-
-Dirão mais a Vossas Senhorias:
-
-Se tiverem filhos que necessitem de estudar a Pintura, ou as Artes
-decorativas, ahi ficam á disposição d’elles todos esses productos que
-permaneciam dispersos, ignorados e inuteis pelas egrejas sertanejas. Ahi
-encontrarão, tambem, para o estudo comparativo, exemplares da eschola
-hespanhola, com as telas de Velasquez, de Murillo e de Ribera; ahi está a
-eschola flamenga com Rubens; a hollandeza com Rembrandt; a italiana com
-Raphael, Ticiano, Tintoreto, Miguel Angelo; podem entrar, ver, estudar
-minuciosamente, copiar—nada pagam.
-
-E, apesar de todas estas incalculaveis vantagens, exclamam Vossas
-Senhorias:
-
- —_e quanto xe nos dão?_
-
- * * * * *
-
-Vossas Senhorias teem ido, por vezes, a Lisboa.
-
-Lembro-me, até, que muito antes que Succi fosse conhecido com os seus
-jejuns, já a gente por cá admirava as especialissimas propriedades da
-membrana mucosa do estomago do sr. Sampaio, que não segrega sómente succo
-gastrico, mas, tambem, succos nutritivos, como se evidenciou n’aquella
-viagem, em que Sua Senhoria, tendo sahido da Balagota com o cabazinho
-repleto de pastelinhos de bacalhau e de girimu, pitos assados, rabanadas
-e cornuchos, com elle intacto, depois d’uma ausencia de oito dias, na
-Balagota entrou.
-
-Vossas Senhorias teem ido, por vezes, repito, a Lisboa. Conhecem tudo o
-que existe na capital.
-
-Extasiaram-se perante a pujança granular do regio corcel no Terreiro do
-Paço; viram subir o balão que indica o meio-dia; ouviram o carrilhão de
-Mafra; estiveram no curro de S. Bento; admiraram o leão da Estrella e os
-macaquinhos do Jardim Zoologico; visitaram a esquadra ingleza no Tejo;
-sopesaram a _Paulo Cordeiro_; saudaram o Senhor Rei e a Senhora Rainha;
-viram as mulas do paço e o bicho municipal; conheceram o Rosa Araujo e o
-marquez de Vallada; foram a todos os theatros; mas o que—com certeza—não
-viram foi o Museu Nacional, e isso porque... não tiveram tempo.
-
-Teem ido a Lisboa, por vezes; assistiram aos festejos das bodas e dos
-baptisados reaes, aos da chegada dos reis de tal e tal; foram, até,
-engrossar a pasmaceira indigena na recepção do Principe de Galles,
-d’esse exemplar com encadernação de luxo de John Bull—o eterno larapio
-das nossas colonias, o traiçoeiro Johnston dos makololos, o perfido
-Wellington de 1828, o astucioso Canning, o desleal alliado da nossa
-Politica, o insolente comedor dos nossos dinheiros, a quem todo o bom
-portuguez devia, respeitando as conveniencias da hospitalidade, voltar,
-com despreso, as costas; mas quando n’aquella capital se realisou a
-Exposição de Arte ornamental, que foi como o livro aberto onde se
-descreveu a riquissima epopea das nossas glorias artisticas, então...
-ficaram na Balagota e na rua Direita porque... não valia a pena!
-
-..............................
-
- * * * * *
-
-Aqui tem Vossa Excellencia, sr. Macedo, os homens que se negam a
-entregar-lhe os quadros e a cadeira de S. Estevão.
-
-Segreda-se por ahi que muita coisa, reclamada pelo Governo, desapparece
-antes de entrar no Museu Nacional. Pena é que o Governo não denuncie
-os roubos, que tem encontrado quando procede ao arrolamento dos bens
-pertencentes ás collegiadas e congregações religiosas extinctas.
-
-A teimosia da Junta é mais um caso porco, para engranzar no rosario das
-vergonhas de Valença, onde já brilham a recusa da Eschola Conde Ferreira,
-a eleição do sr. Serpa... do Batalhão, a Prisão da Santa, a Questão da
-Musica e essas curiosissimas eleições...
-
-Mas Vossa Excellencia, sr. Macedo, resolve facilmente todas as duvidas;
-como ellas, em ultima analyse querem dizer:
-
- _Quanto xe nos dão?_
-
-Digne-se Vossa Excellencia mandar ao sr. Agostinho meia duzia de trutas
-leopoldicas, de S. Mamede, e obtenha Vossa Excellencia do Governo de Sua
-Magestade, que ao sr. Sampaio seja concedido o diploma do unico cargo
-rendoso, que lhe falta: o de
-
- sineiro de S. Estevão.
-
-
-
-
-XII
-
-O Senhor Deputado
-
-
-Mais uma vez manifestou o Circulo eleitoral n.º 3 a sua opinião politica
-e, pela acção liberrima e independente do suffragio popular, tem hoje uma
-cadeira em S. Bento, o sr. dr. Queiroz Ribeiro.
-
-Nos campos do partido opposicionista lavra o descontentamento com
-a decisão dos eleitores; nos arraiaes, em que tremula a bandeira
-progressista, erguem-se os clamores da victoria e entoam-se hosannas ao
-novo representante do povo.
-
-Os regeneradores negam a competencia de Sua Excellencia para tão elevado
-cargo, fundamentando a insufficiencia na pouca edade e escassa madureza
-para os negocios publicos; alguns, até, os do respeitabilissimo grupo da
-rua de S. João, exprimem e synthetisam todo o valor e força dos seus
-argumentos em tres palavras:—até faz versos!
-
-Os progressistas exaltam a aptidão intellectual do seu correligionario;
-affirmam que é um rapaz que deve _dar alguma coisa_; servem-se do
-proprio argumento dos adversarios—os versos—, impondo-o á consideração
-dos eleitores; citam os seus conhecimentos sobre Direito penal, o seu
-enthusiasmo pela _nova_ eschola italiana, etc., etc., e rematam por
-asseverar que a escolha foi felicissima.
-
-Ora eu, meus senhores, sou tambem eleitor e recenseado na freguezia
-de S. Maria dos Anjos; não estou filiado em partido militante da
-actual politica, porque sou, como os srs. José Narciso e Santa Clara:
-legitimista, genuinamente legitimista, por convicção e por tradição.
-Acceitar, n’estas condições, a faculdade do voto equivaleria a approvar
-e reconhecer, tacitamente, a legalidade dos poderes que nos regem e,
-procedendo assim, faltaria ás minhas convicções e ao respeito que tenho
-e devo ao meu Rei, a Sua Magestade Fidelissima o Senhor Dom Miguel de
-Bragança, que Deus guarde.
-
-Estou, portanto, n’um campo perfeitamente neutral e insuspeito, ao
-abrigo do tumultuar das paixões partidarias, n’uma região serena de paz
-e livre reflexão e posso, n’estas circumstancias, dar a minha opinião
-sobre a escolha dos eleitores, depois da rigorosa apreciação que fiz dos
-argumentos apresentados pelos dois partidos.
-
-Vou ter a honra de a apresentar a Vossas Excellencias.
-
-Na futura Camara electiva devem reunir-se cento e tantos deputados.
-N’esse numero entram estrellas de primeira grandeza na constellação
-brilhantissima da nossa politica. Ha talentos de raça; espiritos
-previlegiados, que honram e ennobrecem o paiz; ha oradores fluentissimos
-como os srs. Oliveira Mattos e Visconde da Torre; ha polemistas de
-irresistivel logica de argumentação, como os srs. Ferreira d’Almeida; ha
-celebridades em todos os ramos das sciencias e da publica administração.
-
-Pois, meus senhores, com verdade lhes digo, que é a seguinte a minha
-convicção:—entre todos esses homens, entre todas as individualidades
-aptas no nosso paiz para as funcções da representação popular,
-ninguem—absolutamente ninguem—nos poderia satisfazer tanto, comprehender
-as nossas ideias, adaptar-se melhor á nossa politica, interpretando-a e
-assimilando-a nas suas aspirações—como Sua Excellencia o sr. Dr. Queiroz
-Ribeiro.
-
-—Ora essa! (ouço eu bradar aos meus amigos, os srs. Joaquim e Abilio, os
-mais fogosos caudilhos da politica regeneradora), fará o favor de provar.
-
-A isso vou, meus senhores, e com argumentos leaes, solidos, porque os
-sustento com a irrefutavel demonstração, que vou estabelecer dentro do
-campo positivo das sciencias abstractas: a logica e a mathematica.
-
-Vejamos, meus senhores, o que é a Politica em Valença? O que foi, o que
-é, d’onde vem e para onde vae? Como se poderá e deverá classificar n’uma
-terra em que, se a gente vae á estação do caminho de ferro assistir á
-recepção do sr. Marianno de Carvalho, ou do sr. Barjona, ou do sr. Lopo
-Vaz, ou do sr. José Dias Ferreira, ou do sr. Rodrigues de Freitas, ou
-do sr. Consiglieri Pedroso, vê sempre na gare—além dos _engajadores_
-dos hoteis e do sr. Capellão[36]—as mesmas caras, as mesmas casacas e
-as mesmas cartolas, que, depois, vão acompanhar Suas Excellencias até
-Cerveira, com ruidosas e enthusiasticas demonstrações de adhesão e
-fidelidade partidarias?
-
-O que poderemos julgar da Politica d’um concelho em que a padralhada, com
-o seu rebanho de carneiros votantes, vae, submissa, para onde a toca a
-aguilhada da Administração, sem consciencia, nem orientação, nem ideal
-politico?
-
-N’uma terra, em que os mais importantes caudilhos teem, na opinião,
-a variabilidade constante do catavento de Santo Estevão e em que ha
-potestades eleitoraes que, vistas de Coura, são regeneradoras, vistas de
-Valença são progressistas e não são barjonaceas e republicanas, porque
-ninguem as examinou ainda de Gandra ou de S. Pedro da Torre?
-
-Estudemos os chefes, senhores, que devem representar as tradições,
-a opinião, a respeitabilidade dos partidos. Temos d’um lado—o
-progressista—o Sr. Dr. Ladislau; temos do outro—o regenerador—o Sr. Dr.
-Pestana.[37]
-
-O Sr. Dr. Ladislau sahiu, approximadamente ha seis annos, dos bancos
-da Universidade e filiou-se, franca e desassombradamente, no partido
-do sr. José Dias Ferreira; hoje obedece ao sr. José Luciano, isto é,
-duas opiniões diversas, oppostas, heterogeneas, como as que separaram
-e dividiram os guelfos dos gibelinos, os armagnacs dos borguinhões, os
-jacobinos dos girondinos, os da rosa branca dos da rosa vermelha, os
-malhados dos realistas.
-
-Ora, consultando os trabalhos estatisticos dos mais eminentes
-socialistas, sobre a longevidade da vida humana, observamos que a media
-actual é de sessenta annos. (Deus n’este caso a prolongue e livre o
-Sr. Doutor de dyspepsias hermogenicas, que tão prejudiciaes são á
-juventude...)
-
-Se quizermos, pois, avaliar rigorosamente a capacidade opinativa de
-Sua Excellencia, nada mais teremos do que estabelecer uma proporção,
-admittindo a hypothese mais favoravel—que em egual espaço de tempo não
-augmentará a volubilidade. Representando, pois, por _a_ os seis annos
-decorridos e os trinta que a Sua Excellencia faltam, por _op_ as
-opiniões conhecidas e por _x_ as desconhecidas, teremos:
-
- 6 a : 2 op :: 30 a : x.
-
-Operando, encontramos:
-
- x = 10 op.
-
-Reunindo as opiniões conhecidas, temos
-
- x = 12
-
-quer dizer: teremos de pedir, por emprestimo, alguns partidos á Hespanha,
-porque cá não os ha para tanta opinião; e, aos sessenta annos, o Sr. Dr.
-Ladislau attingirá um grau de _saturação_ partidaria muito superior á que
-hoje possue o Sr. Agostinho, que é a coisa mais perfeita e acabada em
-Politica, que terras de Valença teem produzido.
-
-Agora, o sr. dr. Pestana...
-
-Eu desejava fazer identica demonstração com referencia a Sua Excellencia,
-e tenho, para isso, elementos e factores ordenados; mas são d’uma tal
-complexidade e obrigam a operações algebricas tão complicadas, que me
-abstenho de aqui as reproduzir, limitando-mo a dar conhecimento a Vossa
-Excellencia do resultado obtido.
-
-Para o sr. dr. Ladislau tivemos: x = 10.
-
-Com o Sr. Dr. Pestana chegamos a: x = ∞ isto é, x = infinito. E como o
-infinito existe muito para lá dos limites, a que a intelligencia humana
-póde levar a analyse, está prejudicado o raciocinio.
-
-Temos, pois, n’estas condições, os dois chefes politicos da nossa terra e
-ha vinte e cinco annos, em que aqui resido, os sub-chefes, as potestades,
-os abbades e as patrulhas seguem exactamente o mesmo systema.
-
-Os que hontem eram regeneradores, são hoje progressistas, serão ámanhã
-barjonaceos e no dia seguinte socialistas. No mundo politico somos
-cosmopolitas, e Valença é para o paiz, o que a casa do Sr. Agostinho é
-para Valença—um perfeito _caravanserail_!
-
-Synthetisando, eu repito a pergunta, que deu logar a estas considerações,
-com que desejo fundamentar a minha demonstração:
-
-Como se deve classificar a nossa Politica?
-
-Politica voluvel, incolôr, de... contradança!
-
-Repito:
-
- de _contradança_.
-
-Ora aqui está, justamente, o ponto de reunião entre ella e a
-individualidade do nosso deputado. Aqui está, onde uma e outra se
-coadunam, se consubstanciam, se identificam.
-
-Em Politica somos dançarinos. Pois para representar dançarinos e para
-comprehender as suas aspirações, como o Justino Soares, ou os srs.
-Roldão e dr. João Cabral se não habilitam a um circulo, claro é que se
-devia escolher um estranho, versado e perito nos segredos da arte de
-Terpsichore. E, para satisfazer cabalmente a estas condições (creio
-que os srs. Joaquim e Abilio se não atreverão a refutar esta minha
-proposição) ninguem—absolutamente ninguem—se encontraria mais habilitado,
-do que o nosso actual representante.
-
-Isto não é uma asserção gratuita. A vizinha villa de Cerveira a
-confirmará, quando se torne necessario.
-
-Porque é que o sr. Visconde da Torre não _provou bem_, como deputado?
-Porque nunca poderia representar dignamente Valença, com o seu volumoso
-abdomen, com a abundancia do seu tecido adiposo, com o pouco desempeno
-dos seus movimentos, com a pouca elegancia (perdoe Sua Excellencia) da
-sua _linha_. Dançava pouco e mal. Era, mesmo, detestavel a sua posição
-quando, pela complicadissima tactica das danças, era obrigado a fazer um
-_en avant_. Não tinha _ropia_ nem _salero_, nem _entrain_.
-
-Mas o nosso actual representante...
-
-Que saudosas recordações não originarão estes periodos ás tricanas e
-sopeiras de Villa Nova—a chiquita!
-
-Que dulcissimas reminiscencias não entristecerão, por momentos, aquelles
-formosissimos rostos da terra das solhas!
-
-Que pranto amargo e copioso não verterá a estas horas o bom e fiel
-Maldonado, socio commandita nos bailes do sopeirame!
-
-A Meca, a terna e legendaria Meca, com que acerbo pungir, não enxugará
-das mimosas e assetinadas faces as perolas crystallinas, como as do rocio
-matutino, que a lembrança de Sua Excellencia, a cada momento lhe faz
-brotar das glandulas lacrimaes!
-
-Redomoinhar vertiginoso das valsas; suave enleio de pequeninas cinturas;
-exhalações dulcissimas; doces fragrancias de solha e azeite, bacalhau e
-alho, das formosas tricanas; noites de amor e de phantasia em que vós,
-encantadoras filhas da—_Chiquita_—vos deliciaveis com os _papos d’anjo_
-de Caminha e as _roscas_ da Galliza; noites inolvidaveis de luar, em
-que os vossos castos seios se alvoroçavam com desconhecidas sensações,
-quando Sua Excellencia, sob as janellas, acompanhado ao violão pelo fiel
-Maldonado e pela artistica cohorte dos Figaros, soltava ás brisas, com
-voz maguada e terna, as melancholicas trovas do:
-
- Gondoleiro, a noite é bella!
-
-Recordações saudosas, miragens gratas e fugitivas... adeus!
-
-Tudo se sumiu na voragem da urna eleitoral!
-
- * * * * *
-
- Eleitores do concelho de Valença!
-
-Nos annaes da benemerita Sociedade Artistica, _Harmonia e Recreio
-Cerveirense_, registra-se, como um periodo aureo de engrandecimento e
-prosperidade, a epocha em que o nosso Deputado honrou, frequentando, os
-salões da Associação.
-
-A arte de Terpsichore obteve consideravel impulso e desenvolvimento. Á
-voz auctorizada de Sua Excellencia, transformaram-se os _Lanceiros_,
-floreou-se a _Franceza_ e surgiu, vaporosa e louçã, a moderna valsa _a
-dous tempos_. Abandonaram-se marcas velhas e rançosas, substituiudo-se
-por elegantes _couronnes de dames_ e graciosos _moulinets de chevaliers_.
-
-Foi, pois, profundamente civilizadora a influencia que Sua Excellencia
-exerceu nas classes medianamente abastadas:—sopeiras e tricanas—, porque
-lhes incutiu os germens d’uma larga intuição artistica e senso esthetico,
-já com as brilhantes manifestações da arte de Terpsichore, já com mimosas
-producções musicaes, com que Sua Excellencia as deliciava, acompanhado
-pelo fiel Maldonado e—em occasiões solemnes—pela brilhantissima cohorte
-dos Figaros cerveirenses.
-
-Quem, pois, se atreverá a dizer, quem ousará ahi, dos arraiaes da
-opposição, affirmar que não foi acertada e felicissima a escolha?
-
-Concluo a demonstração, srs. Lucas e Abilio. Pódem Vossas Excellencias
-refutal-a?
-
-Eleitores do concelho de Valença! Damas e cavalheiros do Club e da
-Assemblea! Ditas e ditos do Gremio artistico; tricanagem, technicaphilas
-e paradas-velhas dos bailes do Theatro, eu—Zinão—vos felicito!
-
-E vós, vizionarios, descrentes, que por ahi apregoaes a incompetencia
-do sr. Deputado, em breve,—eu vol-o affirmo—se dissiparão as vossas
-duvidas e os vossos applausos hão-de juntar-se, fervorosos e delirantes
-ás acclamações enthusiasticas da grei progressista quando, no proximo
-carnaval, assistirdes, nos bailes do Theatro, á verdadeira consagração,
-á apotheose do nosso Deputado, vendo-o, como _par marcante_, offuscar a
-fama, até hoje immaculada, dos srs. Trincheiras e Zé do Caes, gritando
-_ás multidões_, radiante e enthusiasmado, em francez adoptado nos nossos
-tricanés:
-
-_An ivant! Chevaliers_ dão as mãos e _les Dames ó miliú_.
-
- * * * * *
-
-Ah Esteves! Ah Caetano!
-
-Que futuro brilhante e glorioso não está reservado para os vossos violões!
-
-Emquanto a nós:
-
- _vá de redrò_, Senhor Doutor!
-
-
-
-
-XIII
-
-Carta ao Zé Senso
-
-
-TERRAS DA PARVALHEIRA
-
- =Burgo de Paysandu.= Terça-feira,
- 17 de Dezembro de 1887.
-
-Meu Zé.
-
-Recebeu-se, hontem á noite, o 2.º fasciculo dos _Sinapismos_.
-
-Não sei ainda como te conte o que se passou. Ha onze horas que estou de
-cama, a caldos de gallinha e copinhos de geleia.
-
-O Dr. Pacheco só me deixa chuchar uma azinha de pito, de seis em seis
-horas, tal é o estado de fraqueza e abatimento em que me deixaram as
-violentas commoções, que hontem agitaram este pobre corpo.
-
-Vou coordenar as ideas para te descrever o caso mais extraordinario, que
-fastos de Valença podem mencionar ás gerações vindoiras.
-
-Tu sabes o que é o indigena sem illustração: corpo amanhado com borras
-de nababo, betume de Prudhomme, com leucocytos de Tartufo e cellulas
-philosophicas de Sganarello; alma ingenua, pura, immaculada, feita de
-arminho, gesso cré, grude de sapateiro e saliva de Zé Povo; no todo, uma
-mescla de tanso, de rufião e de sacripanta.
-
-Sabendo isto, certamente não te admirarás do que vaes lêr.
-
-Quando hontem á noite, já em ceroilas, punha o barretinho de dormir, ouvi
-na rua um enorme barulho: tropel desusado, gritos, rodar de carretas,
-patadas de mula, tiros, etc.
-
-Como estava em fralda, disse ao Zéca que fosse á janella vêr o que era,
-e na minha mente surgiu a idea de que teriamos uma invasão ingleza por
-causa dos makololos.
-
-—_São os mokololos? perguntei ao menino._
-
-—_Não sei, Papá. São muitos homens que passam correndo; uns com espadas,
-outros com chuços, outros com chicotes, rewolvers, punhaes, facalhões e
-espetos, gritando:_
-
- _mata! mata!_
-
-_Vão todos com o sim-senhor á mostra e levam nas nadegas duas manchas
-vermelhas, como ficam nas pernas, quando o Papá me deita sinapismos.
-Atraz d’elles vem um diabo vestido de amarello, que traz na mão esquerda
-umas disciplinas de coiro, com que os fustiga, e na direita um ferro em
-braza._
-
- * * * * *
-
-Calcei á pressa as piugas e approximei-me da janella para presenciar tão
-inesperado acontecimento. Com o ruido que fiz, abrindo-a, a multidão
-parou subitamente. Todas as cabeças se ergueram, todos os punhos se
-levantaram, fechados com crispações nervosas; abriram-se mil boccas, onde
-rangiam sinistramente os dentes; insultaram-me; chamaram-me _porco_ e
-_chulo_; berravam que me haviam de matar, de _escuchinar_, de virar de
-dentro para fóra, de arrancar as barbas, as orelhas e mais _isto_ e mais
-_aquillo_.
-
-Reparei que aquella medonha e terrivel multidão se dividia em tres grupos
-distinctos.
-
-O primeiro era composto de maltrapilhos com feitio afadistado, que uma
-collareja porca e abandalhada, a quem ouvi chamar D. Politica, segurava
-pelos cabrestos. Zurzia n’elles, com uma aguilhada de ponta d’oiro,
-El-Rei buffo, D. Milhão.
-
-O segundo era formado por _patetinhas_, d’estes infelizes, que nos
-hospitaes de alienados são conhecidos por _doidos mansos_.
-
-Guinchavam, mostravam papelinhos, davam saltinhos, faziam esgares
-burlescos, descobrindo os dentes sujos. Tinha conta n’elles, dando-lhes,
-de quando em quando, um pontapé, outra mulher em desalinho e que parecia
-soffrer de grande myopia. Conheci D. Idiotice.
-
-No terceiro, então, misturaram-se fedelhos e cães; d’estes _tótós_
-pequeninos de pello branco e encaracolado, muito nojentos e muito
-libidinosos, que mostram sempre a linguinha quando veem as amas, que
-trazem os focinhos molhados com um liquido que lembra, pelo cheiro, a cal
-e o peixe da Noruega, e que por ahi chamam, _fraldiqueiros_. Ladravam,
-davam ao rabinho, levantavam-se sobre as patinhas de traz, agitando
-para cima e para baixo a linguinha, d’onde escorria um fio de baba mal
-cheirante.
-
-Aquella multidão saturava a atmosphera de aromas insupportaveis;
-distinguiam-se os do bafio, do arroto dyspeptico; este cheiro particular
-do azebre, do mofo, da catinga, de pé gallego, de coisas lippicas e
-rançosas, que tresandam a raposinho e a chulé.
-
-No ruido ensurdecedor de tanto grito e de tanta explosão de colera,
-apenas se percebiam estas palavras:
-
- Mata! Mata o Zinão!
-
- * * * * *
-
-O meu cerebro illuminou-se, então, com aquelles vividos clarões das
-grandes angustias; pinoteavam-me na imaginação, em infernal dança
-macabra, todas as vibrações das grandes dôres; vergalhadas cyclopicas
-açoitavam-me as ideias; a alma rebentava-me com explosões terriveis,
-minada pela robulite do terror; o coração desfibrava-se esphacelado
-pelas garras do susto; as cellulas nervosas achatavam-se sob a prensa
-hydraulica do pavor; o cordão espinal estoirava, esticado pelas furias
-da raiva; as saliencias do corpo sumiam-se arietadas pela allucinação;
-na trompa de Eustachio trovejavam as maldições; na retina faiscavam
-punhaes de odio; na pituitaria abriam chagas os atomos do rancôr; as
-cordas vocaes rebentavam com a tensão da ira; as papillas da derme
-eram esmagadas pelos martellões da colera; diabos vestidos de vermelho
-arrancavam-me os cabellos; harpias esgrouviadas furavam-me a cornea;
-satanazes com rabo reviravam-me as unhas; demonios acephalos rasgavam-me
-a bocca; morcegos sinistros esfarrapavam-me as carnes; lebreus
-hydrophobos roiam-me as cannelas; corujas esfomeadas espicaçavam-me
-as orelhas; chacaes lazarentos mordiam-me as nadegas; corcodilos e
-jacarandés trituravam-me os ossos.
-
- * * * * *
-
-E no meio de toda essa _coisa_ phantastica, apocalyptica, satanica,
-horripilante, onde havia carcavões, fragoas, tenazes, forcas, venenos
-de Borgias, estyletes ervados, lanças quichotescas, navalhas de ponta
-e mola, balas de papel, espadas de pau, caçoletas e obuzes, explosões
-sulfuradas, bofes de leão, tricornios de gazeta, furores de Ugolino,
-ciumes de Othello, terrores de Machbet, perfidias de Iago, risos de
-Voltaire, astucias de Loyola, sarcasmos de Erasmo, pançadas de capoeira,
-chulipas de fadista, rugidos de Adamastor, pedradas de garoto, cobras
-e lagartos, viscosidades de lesmas, virus de serpente, commissões de
-_quinzes_ e de _paysanducos_, protestos, duellos, policias correccionaes,
-boquilhas, aguas sebastianicas, beliscões kilometricos, musas hystericas,
-zoilos epilepticos...
-
-—quando contemplava aquelle horroroso quadro em que, as tintas de Miguel
-Angelo, o pincel de Rembrandt e a phantasia de Hans Mackart, pintavam a
-sede de Tantalo, a insaciabilidade de Gargantua, a podridão de Imperia, o
-odio de D. Bibas, o servilismo do eunucho e o calcanhar d’Achilles,
-
-—entre aquelle côro infernal de uivar de feras, clamar de moiros, ulular
-de caraibas, guinchar de idiotas, urrar de quadrupedes, pinchar de
-macacos, zunir de vespas, silvar de cascaveis, ladrar de _bulldogs_,
-d’onde apenas se destacava:
-
- Mata! Mata o Zinão!
-
- —senti alguem ao meu lado.
-
-O tal diabo vermelho pinchára da rua para a janella; extendia-me o braço
-e dizia:
-
-—_Oh Coisa! dá cá um cigarro. Casca n’elles, que ainda bolem!_
-
-e desapertando a carcela das calças, voltou-se para a turba e...
-
- _esguichou-a._
-
-Já sabes, Zé amigo, quem elle era:
-
- O Ridiculo.
-
-
-
-
-XIV
-
-A Questão da Musica
-
-(LEITURA PARA HOMENS)
-
-
-Ha poucos annos, alli pelo Maio, quando a Primavera floresce os campos
-e a Natureza parece despertar, com novo vigor, da somnolencia invernal,
-Dona Politica sentiu pular o sangue nas veias, reclamando folia e brodio.
-
-Teve uns arrebiques eroticos de matrona insensivel á influencia lunar
-e amancebou-se, clandestinamente, com o Conde de Lippe e com o Senhor
-Administrador.
-
-Noitadas com um, barrigadas de camarões com outro, lá se arranjou de tal
-fórma que, d’essas relações, resultou um producto hybrido:—=A Questão da
-Musica=.
-
-Parto acabado, os amantes disputaram a paternidade do aborto:
-
-—É meu!
-
-—É teu!
-
-—Parece-se commigo!
-
-—Não se parece comtigo!
-
-Zangaram-se e ficaram de mal.
-
-Nunca mais se puderam vêr.
-
-A desavergonhada, ora sorri para um, ora para outro; acirrando, assim,
-pela sua inconstancia e bandalhice acadellada, o odio dos dois rivaes.
-
-O _mostrengo_ (sahiu femea) veiu ao mundo com todos os defeitos dos Papás
-e da Mamã: vaidosa, ridicula, traiçoeira, caprichosa e porca.
-
-Ao nascer, embirrou que não queria Musica. Papás e Mamã teem-lhe feito
-a vontade. Qualquer dia, embirra que quer Musica; teremos, então, de
-soffrer e pagar as furias dos paus-tesos, até hoje refreadas.
-
-O que por ahi não irá!
-
- * * * * *
-
-A _Comedia da Santa_, ou antes, a =Comedia da Musica=, absorveu e absorve
-toda a actividade dos nossos politicos—dos homens que se apresentam á
-consideração do povo, allegando serviços e pedindo votos.
-
-E em que diabo hão de pensar esses santos varões, se o Concelho voga em
-mar de rosas, com vento fresco e bons timoneiros?
-
-Examinemos, de relance, as instituições da nossa terra:
-
-Camara Municipal
-
-Praça de toiros com serviço permanente. Emprezario: o Senhor
-Administrador. Intelligentes: o Senhor Joaquim (por procuração), ou João
-Cabral.
-
-N’este anno, as corridas promettem. O _primeiro espada_, Senhor Abilio,
-foi occultamente a Madrid adestrar-se com Lagartijo e com Frascuelo. O
-gado, do lavrador Ladislau, é manso. Tem fraca _pinta_ e pouco _pé_. A
-casa está passada para as primeiras corridas semanaes. Ha toiros para
-curiosos.
-
- * * * * *
-
-Agora, duas tiradas a serio:
-
-A administração do nosso Municipio anda como V. Ex.ª sabe, querido
-leitor, em bolandas e ao deus-dará. Muito lhe poderia dizer a tal
-respeito; mas esta gente séria da terra, tanto me tem soprado aos ouvidos
-com aquella preventiva phrase de:
-
- _Nem todas as verdades se dizem_
-
-que, _por emquanto_, ainda me resolvo a conservar na minha carteira os
-curiosos apontamentos que d’estas coisas de Valença, cuidadosamente
-tenho colligido. Prosigamos.
-
-—Approvou-se ultimamente um novo traçado de estradas para o districto;
-todos os concelhos foram contemplados, menos o de Valença. Pelos modos,
-lá nas secretarias das Obras publicas ainda se não descobriu, ao certo,
-se isto pertence a Portugal, se á Galliza. A Camara podia elucidar
-este caso e requerer, ou instar por concessões a que tem direito. Os
-politicos, porém, teem mais em que pensar... Ainda se não decidiu a
-=Questão da Musica=.
-
-—Alli, na Esplanada, amontoam-se, sem ordem nem regularidade, as novas
-construcções. Ora, apesar da opposição dos paysanducos, a futura
-povoação de Valença ha de extender-se por esses campos fóra, e esta
-latrina acastellada com muralhas, poternas e tenalhas, passará a ter o
-merecimento historico das ruinas de Lapella, hoje excellentes para ninhos
-de morcegos, luras de toupeira e tocas de grillos.
-
-Portanto, a qualquer cerebro medianamente esclarecido parecerá urgente
-e indispensavel o levantamento d’uma planta, que desde já disponha, com
-regularidade, as arterias da futura povoação.
-
-Não se pensa em tal, nem é preciso. Temos a lei das expropriações. A
-ordem é rica, os frades são poucos e os imbecis são muitos. Ha mais em
-que pensar. Temos a =Questão da Musica=.
-
-—No centro da villa, ao lado da Ex.ᵐᵃ Camara, existe uma commua, que
-chamam: Eschola municipal.
-
-Quando quizerdes avaliar a civilização d’este povo, que se ri de vós—oh
-gentes de Monsão e de Coura!—vinde cá, embebei o lenço em agua de Colonia
-e entrae alli, na Eschola, onde sem ar, sem luz, sem condições hygienicas
-de qualquer natureza, se atrophiam diariamente dezenas de creanças.
-
-Os rapazes, cá na terra, sahem da barriga das mães, já com a caneta
-atraz da orelha para escreverem á familia; não precisamos, portanto, de
-subsidios do Conde de Ferreira, nem de utensilios escholares.
-
-Corre tudo muito bem. Só falta uma coisa: um pelourinho, alli ao
-pé da _Sexta_, com os nomes dos philanthropos que responderam aos
-testamenteiros do Conde:
-
-—_Dispensamos o subsidio; não temos terreno para a eschola; está tudo
-occupado com cacos de guerra e com o Assento dos militares!_
-
-—Diz-se que é util o saber lêr e, n’esta crença, auxilia-se em toda a
-parte a instrucção do povo, fiscalizando-se o serviço das escholas,
-animando-se as creanças e estimulando-se os professores.
-
-O pelouro da instrucção (?) no concelho de Valença é um mytho, uma coisa
-nominal e hypothetica.
-
-Regateiam, por ahi, miseravelmente, os dois patacos de expediente; e na
-Eschola, como verdadeira commua, não ha mobilia, não ha um mappa, não
-ha uma esphera, uma loisa, um diccionario. A Camara não gasta dinheiro
-n’essas ridicularias; gasta-o, mas com outras applicações, que fazem
-parte dos meus apontamentos particulares...
-
-De quando em quando o bandalho da Politica entra tambem nas Escholas; e
-d’essa visita, nascem as perseguições torpissimas e ineptas contra homens
-que, politicamente podem ter todos os defeitos, mas que para o exercicio
-do cargo que exercem, possuem incontestavel aptidão.
-
-—Construiram-se, no largo principal da terra, os Paços do Concelho. O
-edificio ficou uma gaiola de grillos, com uma unica porta, para elles não
-fugirem, quando lhes appetecer a serradela.
-
-As divisões interiores são d’uma disposição perfeitamente apatetada.
-Com as dependencias do Tribunal, repetiu-se aquelle caso dos _moinhos
-de Coura_. Lá, só pensaram na agua, quando os moinhos estavam promptos;
-cá, só depois do Tribunal concluido, é que surgiu na mente dos illustres
-senadores a necessidade _provavel_ d’uma sala para jurados.
-
-Mas o defeito remediou-se e bem.
-
-Fez-se uma especie de espigueiro, um sotão, como os que a gente tem para
-extender as batatas por causa do grelo e para lá se manda o Jury. Está
-alli muito bem, livre de correntes d’ar, e com grande vantagem para os
-curiosos da terra: muito antes que se pronuncie a sentença, já se póde
-saber, pela janella das escadas, se o réo vae para a rua, ou para o
-_cavallinho de pau_.
-
-Não ha dinheiro que pague esta commodidade.
-
-—Na Coroada, admiram os forasteiros a desconjunctada architectura d’uns
-cortelhos, onde, em nauseabunda promiscuidade, se aconchegam de noite:
-mulheres, porcos, creanças, bacorinhos, gatos com tinha e cadellas com
-sarna.
-
-Em terra menos civilizada, já o _senado_ teria estudado o meio de, por
-uma operação financeira possivel de realizar, sem graves encargos,
-transformar esses focos de immundicie em habitações economicas, mas
-hygienicas.
-
-Mas, então, V. Ex.ª não viu na Exposição de Paris, entre tantas
-maravilhas da Arte, as primitivas construcções dos differentes povos?
-Pois cá, em Valença, não precisamos de arranjar artificialmente essa
-exposição. Alli estão os _cortelhos_ da Parada velha, immundos, doentios,
-nojentos,—como nota caracteristica do nosso Progresso moral e material.
-
-—A gente das cidades tem a mania da Civilização. Abre mercados, rasga
-ruas espaçosas, aformoseia praças, alinha os edificios e varre as ruas.
-
-Com o pretexto da hygiene e da limpeza faz dinheiro até do esterco.
-
-—_Miserias humanas!—dizem os nossos camaristas. Nas ruas de Valença, o
-que cai, deixa-se ficar. Podem-nos chamar immundos, mas ao menos, não
-somos dos futres que vendem carros de lixo._
-
-Cá, a gente é assim...
-
-—O concelho precisa de estradas que unam as freguezias e facilitem
-as communicações. A estrada de A para B foi considerada, como a mais
-urgente, pela importancia (politica, já se vê) de B.
-
-Principiou-se a estrada: terraplenagens, aterros, desaterros, etc.
-
-A folhas tantas, desabou a caranguejola ministerial e o que era
-politicamente positivo em B passou para negativo. Suspendeu-se a
-construcção da estrada.
-
-Chegou o inverno: lamas, enxurradas, desmoronamentos. O que estava feito
-inutilizou-se, mas não importa: a ordem é rica, os frades são poucos e os
-imbecis são muitos. Ha mais em que pensar: a =Questão da Musica=.
-
- * * * * *
-
-
-Junta de Parochia
-
-Instituição composta de differentes membros, sob a direcção do Senhor
-Sampaio e patrocinio do Senhor Agostinho. Nada mais, creio eu, é preciso
-dizer.
-
-Essa instituição, que n’outras terras presta valiosos serviços á
-Beneficencia e á Instrucção, jaz ahi na mais abjecta inutilidade.
-
-A manifestação mais evidente da sua actividade, deu-a na importantissima
-_Questão da Porta_, com o Senhor Baptista.
-
-A Junta não tem meios; é pobre, vive da graça de Deus. Tem os telhados
-da Egreja desmantelados; não póde gastar um real em adornos, ou reparos,
-no interior do templo. Conserva, nos adros, as ossadas dos nossos
-antepassados—n’esses adros que a gente pisa, onde os cães levantam as
-pernas e dão muitas voltas, fingindo que se sentam; onde, á noite se
-baixam as calças e se praticam mil obscenidades. Alli, debaixo d’aquella
-terra e d’aquella pedra estão os craneos dos nossos parentes, craneos que
-já tiveram carne, olhos, bocca, labios que acarinharam os nossos paes;
-estão alli os restos dos braços que aconchegaram ao peito, em noites de
-amargura e de afflictiva ancia, a cabeça dos nossos avós, quando a febre
-lhes amortecia os olhos e escaldava as faces.
-
-O respeito aos mortos e o espirito da Religião impõem a urgente exhumação
-d’essas ossadas e a sua mudança para o cemiterio.
-
-Não póde ser. Não ha dinheiro; a Junta é pobrissima e tem despezas mais
-urgentes e indispensaveis, como as que se fizeram com a _Questão da
-Porta_. Pois não era um escandalo? Ainda que se empenhasse a Cruz de
-prata! Mas não foi preciso; para isso, para a Justiça, ainda a pobre
-Junta teve as trinta libras, que a questão levou...
-
-Deus, Nosso Senhor, se lembre, para desconto dos meus peccados, da
-repugnancia com que nego licença á penna, para reproduzir as ideas que,
-n’este momento, tumultuam no meu cerebro...
-
- * * * * *
-
-—Ascencio José dos Santos deixou á Junta de Parochia de Valença estas
-e aquellas propriedades, com o encargo seguinte: instituição d’um
-lausperenne mensal com tantos padres e tantas luzes, etc.
-
-Com o rendimento d’essas propriedades pagaria a Junta as despezas do
-lausperenne, applicando o restante ao desenvolvimento da Instrucção do
-Concelho.
-
-A Junta acceitou o legado, vendeu as propriedades e converteu o producto
-em inscripções que rendem, annualmente, _cento e dez mil reis_.
-
-A despeza total dos lausperennes, pagando-se generosamente, é de _doze
-libras_, ou _cincoenta e quatro mil reis annuaes_, restando, por
-consequencia, um saldo importante.
-
-A Junta de Parochia acceitou, como disse, o legado; mas os mezes passam
-e ninguem ouve falar dos lausperennes, porque não se fazem. O Senhor
-Sampaio, apesar de ser um homem muito temente a Deus, não quer gastar
-dinheiro com padres.
-
-Dispõe do que é seu e faz muito bem.
-
-Estas coisas consideram-se, cá na terra, como admissiveis e legaes. Uns
-chamam-lhes descuidos, outros desleixos, etc. Eu pouco sei de sciencias
-juridicas; mas confrontando este facto com outros, que por ahi vejo punir
-na cadeia, não ha quem me tire da cabeça, que o _descuido_ da Junta entra
-na classe d’aquelles _descuidos_, que a Lei chama: roubos.
-
-Pura e simplesmente =um roubo=; ao culto, á Lei, ás crenças d’um morto, á
-Moralidade, á fé dos contractos, ás disposições d’um testamento, que em
-toda a parte se cumprem fiel e rigorosamente.
-
-E já que o vendaval do Tempo levou os ultimos sons d’essas fervorosas
-manifestações de Sentimento, que á beira do tumulo d’um homem que caíu
-fulminado defendendo os interesses de Valença, inspirou tanto necrologio
-bombastico e tanto discurso farfalhudo—já que em homenagem á memoria do
-homem que amou, como ninguem, esta terra, porque tinha na alma a rigida
-austeridade d’um caracter impolluto e sacrificava os haveres, como
-sacrificou a vida, sem pedir á Politica o salario dos seus serviços—se
-não ergueu ainda, ahi, uma voz para reclamar da Justiça o cumprimento
-rigoroso das disposições a que se obrigou a Junta de Parochia, seja-me
-permittido alterar, por momentos, a feição humoristica d’estes artigos
-para, com verdadeira indignação, dizer ás auctoridades que, n’esta
-terra, vigiam pelo cumprimento da Lei:
-
-A Junta de Parochia =rouba=, mensalmente, ao culto os lausperennes
-instituidos no legado de Ascencio José dos Santos.
-
-Esses lausperennes representam _cento e dez mil reis annuaes_, que são
-desviados para applicação illegal e ignorada.
-
-Ha, ou não ha obrigação de cumprir as disposições dos legados?
-
-Ha, ou não ha Lei que peça responsabilidades aos auctores d’estes
-_desvios_?
-
-..............................
-
-—Prosigamos, porque a rabeca desafina.
-
- * * * * *
-
-Santa Casa da Misericordia
-
-É uma Santa Casa de Politica.
-
-As eleições disputam-se (tudo por philanthropia) como as da Camara, ou do
-deputado. Impera sempre n’ellas, para suprema humilhação dos valencianos,
-a massa bruta da Urgeira, porque ha o cuidado de conservar alli a maioria
-dos _irmãos_.
-
-Quem escreve estas linhas já teve, por duas vezes, a honra de ser
-convidado para _irmão_ da Santa Casa. _Por acaso_, aconteceu sempre isso
-em vesperas de eleições. Mero _acaso_.
-
-Na ultima lucta eleitoral entrou uma fornada de 60 ou 70 _irmãos_.
-Offereciam-se os diplomas com todas as despezas pagas, e depois da
-eleição houve regabofe de castanhas e vinho branco. O moderno _carneiro
-com batatas_ ainda não estava inventado.
-
-Foi uma eleição renhida, tenazmente disputada; e, com ropias de parva
-politiquice, dotou-se a terra com mais uma loja de... barbeiro!
-
-Deus me livre de duvidar, por um momento, dos sentimentos caritativos dos
-especuladores, quero dizer, dos protectores da Santa Casa.
-
-Mas (pergunta-me um diabo que tenho aqui, ao pé de mim, e que desconfia
-de tudo), porque será que em todo o anno ninguem se lembra do Hospital
-para lhe augmentar os rendimentos, ou para alargar a sua acção benefica?
-
-Porque será que esse zelo se não manifesta agora, auxiliando os
-Provedores nos trabalhos da utilissima instituição que o legado Cruz
-fundou—o Asylo?
-
-Porque vos não reunis agora em activa propaganda,—oh cafila de
-pantomineiros!—angariando no Concelho donativos em dinheiro e em
-materiaes que habilitem a Santa Casa a, quanto antes, poder levantar esse
-edificio tão util para os infelizes?
-
-—Parece-me (diz o tal diabo) que se a Santa Casa, em vez de ter um
-capital de =cento e tantos contos=, em inscripções, escripturas com
-hypothecas, e =fiadores= com =paes=, =manos= e =cunhados=, tivesse apenas
-algumas de X, ninguem lhe disputaria as eleições.
-
-Que diz V. Ex.ª a isto, interrogando a sua consciencia?
-
-Teremos n’este caso Philantropia, Politica, ou... abandalhado Arranjo?
-
-Em coisas da Santa Casa, _por emquanto_, vem só isto á luz do dia.
-
- * * * * *
-
-Ora aqui tem V. Ex.ª um rapido e superficial exame sobre as principaes
-instituições da nossa terra.
-
-A Politica, a Hypocrisia e a Rotina imperam soberanamente em tudo que
-póde ser util em Valença. Por isso, quando a gente bate á porta de muitos
-filhos d’esta terra, que lá fóra, pela sua posição e pela sua fortuna
-podiam auxiliar novas instituições, só ouve queixas, reclamações e justos
-resentimentos.
-
-O grande homem da nossa terra seria um velhaco qualquer que em eleição
-renhida pudesse _empalmar_ o João de Gaiteira, ou o Abbade de Cerdal.
-
-Se alguem conseguisse isso, á noite, na taberna do Pedro, teria uma
-apotheose de _calhos_ e de chouriço com ovos, de rachar tudo.
-
- * * * * *
-
-—Mas, oh sr. Zinão, dirá V. Ex.ª, então não ha por ahi homens que tenham
-interesses no Concelho e que lucrem com o seu desenvolvimento?
-
-—Oh, meu senhor! V. Ex.ª sabe quem verdadeiramente mexe os pausinhos da
-nossa Politica? São os pyrotechnicos da _Questão da Santa_. São dois
-homens que teem tantos interesses no Concelho como eu, que por duas
-_perras chicas_ offereço a V. Ex.ª as minhas propriedades. São os que
-armam as _baralhas_.
-
-Não teem um palmo de terra que os interesse no desenvolvimento da
-Agricultura; não teem uma capoeira nas freguezias, que lhes faça sentir
-a necessidade de estradas; não teem relações directas ou indirectas
-com o Commercio, nem com a Industria. Entre elles e as instituições
-civis ha um abysmo. Nunca fizeram parte d’uma corporação que tratasse
-do desenvolvimento do Concelho. De administração municipal sabem tanto,
-como eu sei quem V. Ex.ª é. Influencia pessoal: como são dois, levam dois
-votos. Tem Politica de sapa. Ensaiam as comedias, põem os actores na rua,
-mas quando veem fogo nas barbas da vizinhança mettem-se em casa e fecham
-as portas.
-
-Posso francamente asseverar a V. Ex.ª que esses homens inspiram na
-povoação mais antipathias do que affectos. Elles que digam a V. Ex.ª se
-não teem a consciencia d’isso... Aos que lhes fazem a côrte oiço ás
-vezes cada arcada, em surdina...
-
-Um quer por força pôr o pé nas muralhas para trepar á tina, onde se
-tingem as meias. O outro surgiu ahi na tripode das sibyllas sem a gente
-saber _como_ nem _porque_; dizem que vê as coisas muito ao longe. Ás
-vezes adivinha, mas se dá a _palavra d’honra_... é tolice certa.
-
-Ora, como na terra dos cegos e dos dorminhocos quem tem um ôlho é rei, os
-homens por cá vão arranjando a sua vida muito honradamente e livres de
-vergonhas do mundo.
-
- * * * * *
-
-Esses dois maioraes representam os dois partidos; porque nós, meu senhor,
-nominalmente, tambem temos dois partidos, como as terras grandes. A gente
-é sempre a mesma.
-
-V. Ex.ª recorda-se do que succedeu ha quinze dias, em S. Pedro, com os
-comparsas d’aquelle _Auto_ dos Moiros e Christãos?
-
-O Zé da Cancella, o Chico da Aguilhada e o Tóne do Pernicas, no primeiro
-domingo _faziam_ de judeus. N’aquella scena em que, por ordem do
-Bento Cambádas, que era o Herodes, matam os innocentes, o publico e
-especialmente o mulherio, _escamou-se_ com elles, mandou-os _p’ro raio
-que os parta_ e correu-os a _soque_.
-
-No outro domingo nenhum d’elles quiz _fazer_ de judeu e para que a
-_peça_ se representasse, metteu-se o Senhor Abbade no caso. Os que eram
-christãos passaram para judeus e vice-versa.
-
-Cá, nas farças da nossa Politica, succede o mesmo. Quem faz de Abbade é o
-Senhor Administrador.
-
- * * * * *
-
-Ora aqui está, meu senhor, a razão porque o Concelho ganhou o titulo de
-_burgo podre_ e a razão porque a gente, quando vae offerecer o circulo
-a pessoas serias, como succedeu ha mezes, é posta no ôlho da rua pelo
-creado da casa.
-
- * * * * *
-
-Voltemos á =Questão da Musica= e encaremol-a pelo seu verdadeiro
-aspecto—o comico.
-
-Esta celeberrima questão, decomposta nos seus factores, baseia-se n’uma
-simples formalidade, n’uma pueril e ridicula ceremonia: a licença do
-Conde de Lippe, a licença do Administrador, ou uma e outra concedidas ao
-mesmo tempo.
-
-É um caso comico, como o do Hyssope.
-
-Examinemos:
-
-A Musica é a applicação artistica do som; influe poderosamente em a
-nossa natureza psychica, quer a agite com as sonatas de Beethoven, em
-que o Sentimento nos apparece burilado e subtil, como uma cinzeladura
-de Cellini, quer tumultue nas estranhas innovações de Wagner, em que a
-Harmonia, á primeira audição, nos fére de imprevista e áspera.
-
-Decomposta nos seus elementos, a Musica reduz-se a simples vibrações,
-transmittidas pelas ondas sonoras. No caso presente, visto que na
-=Questão da Musica= se trata d’um grupo de labregos, que selvaticamente
-mortificam os nossos apparelhos auditivos, essas vibrações que, pela
-instrumentação, se transformam na Harmonia, partem do organismo humano.
-
-Examinando o organismo humano, verificamos que os elementos essenciaes
-á potenciação d’essas vibrações podem, egualmente, ser fornecidos
-pelas duas extremidades do canal digestivo e modulados, ou regulados,
-pela articulação da maxilla inferior, ou pela elasticidade muscular do
-esphincter.
-
-A composição molecular d’esses elementos será pois: oxygenio, azote,
-acido carbonico e vapor de agua (caso _a_), ou: hydrogenios carbonado e
-sulfurado e acido carbonico (caso _b_).
-
-A sua acção vibratil chama-se vulgarmente sôpro, ou bufo; e n’esta ultima
-designação, que é a mais geral, para distincção dos dois casos _a_ e
-_b_ relativos á composição molecular, costuma o povo usar do genero
-masculino no primeiro caso, e do feminino no segundo.
-
-Assim, por uma rigorosa analyse, de deducção em deducção, chegamos ao
-seguinte resultado: que a essencia (caso _b_), o valor, a importancia
-d’essa celebre questão, que fez perigar a paz das nações e que, por ahi,
-inspirou tanta facecia e tanto remoque de _fino espirito_—é um simples
-caso de sôpro, é um reles caso de bufo (_b_).
-
-E continuando a empregar o methodo deductivo, visto que esse caso foi
-o producto d’uma laboriosissima gestação politica, com muita vigilia,
-muita tactica e muito estudo, por isso que foi cuidadosamente preparada
-pelos dois partidos contendores—visto que elle symbolisa e exprime os
-valimentos intellectuaes e politicos dos chefes e maioraes—afoitamente
-podemos dizer, synthetizando: tudo isso e todos elles não valem um bufo!
-(_b_)
-
-Politiquemos:
-
- * * * * *
-
-Os dois partidos prepararam com longa antecipação, no remanso dos
-gabinetes, esse estupendo acontecimento.
-
-Mediram-se as forças, calcularam-se os accidentes, preveniram-se as
-hypotheses, estudou-se cuidadosamente o terreno, escolheu-se a hora e
-inventou-se o pretexto. A malandragem de Ganfey foi assoldadada para
-deitar fogo ao rastilho.
-
-Na vespera de rebentar a bomba, descobriram-se os jogos e todos ficaram
-logrados. Um dos chefes recebia ordem para ficar ás ordens do outro;
-este, esbarrava a cabeça na estupidez do Zé Povo e nos barrancos que a
-sua inepcia cavára.
-
-Cá a gente (já se vê) n’essas alturas, arrebitava a pança com o brodio,
-a vêr os toiros de palanque; e, como elles ainda escabeceiam no curro,
-vae-lhes mettendo a sua farpa muito honradamente.
-
-Depois da explosão da _coisa_, principiou a desembestar-se por ahi a mais
-sordida mistela de pilherias apanascadas, que tiveram echo no districto,
-como se o ridiculo de tudo isso não fosse bastante para nos fustigar o
-rosto e alvoroçar o sangue.
-
-A partida perdeu-se. Quem a pagou (e foi carita) chorou sete dias e sete
-noites. Os pyrotechnicos metteram-se em copas. É da praxe: nas barracas
-do _Pim-pam-pum_, quem ageita os bonecos não paga entrada. Entra pela
-prenda...
-
- * * * * *
-
-Farpeemos...
-
-Depois d’essa dejecção politica, os campos conservam-se armados,
-medindo-se os adversarios com rancor. No meio d’elles, lá está o sôpro, o
-bufo (caso _b_)—eterno pômo de discordia.
-
-Progressistas teimam em obstar que a gente em occasião de festa, possa, á
-noite, dar a sua gaitada por essas ruas e muralhas.
-
-Regeneradores, pela penna auctorizada do Senhor Joaquim, como Juiz da
-Senhora da Saude, invectivam o Ministerio, reclamando a livre expansão do
-bufo (_b_).
-
-E agora, que estamos em maré de syndicatos, n’esta carencia de bufo
-(_b_) muito dinheiro podiam ganhar alguns senhores cá da terra e aquelle
-barqueiro de Vigo...
-
-Ha coisas que, guardadas, engarrafadas, servem para occasiões de falta e
-dão muito dinheiro...
-
- * * * * *
-
-O certo é que não se obtem licença para Musica dentro de Valença; ou
-porque seja negada por mero capricho do Senhor Administrador, ou porque a
-recuse o Lippes.
-
-Porque nós—louvado seja Nosso Senhor Jesus Christo—somos cidadãos tão
-portuguezes, como os de Coura; pagamos decima, como os de Coura; damos
-votos, como os de Coura; fazemos filhos para o exercito, como os de
-Coura, mas não temos as liberdades civis, que teem os de Coura.
-
-Pelos modos, ainda nos corre nas veias algum resto d’aquelle bulhento
-sangue dos nossos antepassados, os soldados de Viriato, que, segundo diz
-o Senhor Joseph Avelino, tanto assarapantaram o mundo com os seus feitos;
-e o Governo, em vez de uma auctoridade administrativa, manda-nos duas!
-
-—Quer V. Ex.ª dar a sua gaitada? Precisa de dar o seu _bufo_?
-
-Tem de ir pedir ao Administrador e á Praça; e antes de transitar por
-essas ruas tem de bufar, voltado para a casa do Governo. Se offerece
-as primicias do _bufo_ á Camara, ou á Administração, a Praça amua e ha
-baralha, como succedeu com a _fanfurrilha_ gallega.
-
-—Tem V. Ex.ª fogo em casa?
-
-Acodem, logo, da Praça e da Administração:
-
-—Mando eu.
-
-—Não mandas tu.
-
-—Apago eu.
-
-—Apaga tu.
-
-Levanta-se questão; tudo grita, tudo berra, e V. Ex.ª, para se livrar de
-prejuizos, o que tem a pedir ao seu Anjo da Guarda é que o deixem ficar
-sósinho com o fogo, que é mais socegadinho e pacato.
-
-—Ha _banzé_ no theatro, ou na rua? Lá os temos em disputa.
-
-De fórma que, se um dia, V. Ex.ª por esquecimento, por descuido, larga o
-seu bufo (_b_) na cara d’uma das auctoridades, e sem a devida licença,
-leva pancada dos dois.
-
-É preso. Chega um paysanduco e agarra V. Ex.ª pelo braço direito. Vem o
-Balagota e agarra-o pelo esquerdo.
-
-—Venha para a Praça!
-
-—Venha para a Administração!
-
-Puxa um; estica o outro.
-
-V. Ex.ª atrapalha-se, reclama, gesticula, bufa... (_b_)
-
-Se o faz na cara do paysanduco, mais pancada leva. Se mimoseia o
-Balagota, este põe-se ainda mais amarello do que é, e apita.
-
-Santo nome de Maria! O que ha-de a gente fazer?
-
-Sem musica, sem _bufo_ não se póde passar. Fossem-no lá prohibir ao
-Senhor A. Seixas! Estoirava... de raiva.
-
-Dentro de casa, felizmente, ainda V. Ex.ª póde mandar tocar a Musica e
-dar o seu _bufo_; mas eu estou a vêr isto de tal fórma que, d’aqui a
-pouco, se V. Ex.ª, em qualquer sitio, na sala de visitas, na cama—por
-exemplo—lhe appetece bufar, tem logo, ao seu lado, um paysanduco e o
-Balagota, procurando, investigando, cheirando, esmiuçando, por cima e por
-baixo da cama, levantando, até, a roupa para metterem os narizes (imagine
-V. Ex.ª a sua desgraça se, para essa operação, lhe apparece o nariz do
-Dr. Ladislau...) e berrando depois, irados:
-
-—_Aqui deu-se um bufo!_
-
-E V. Ex.ª terá de pedir perdão, confessar o crime, ou desculpar-se
-humildemente, dizendo:
-
-—_Não dei, não, senhor! E se dei... não foi por querer..._
-
-Ora a nossa desgraça!
-
-Oh gentes do Kalakana! que dizeis a isto?
-
- * * * * *
-
-Esta interrupção dos tubos... musicaes—claro é—vem a acabar; e com a
-mesma imbecilidade, com que actualmente os progressistas impedem a livre
-circulação do _bufo_, os regeneradores, subindo ao poder, hão-de metter
-cá dentro, quanto nedio folle por ahi haja, previamente reforçado com
-alimentos explosivos.
-
-E n’esse dia anti-pituitario, em que tenho de encontrar: uns, de vexados,
-em casa ou fugindo de corrida ao apupo; outros, de pança tesa e cara
-alegre, abraçando-se por essas ruas—e todos, supinamente idiotas e
-essencialmente ridiculos—cá me tendes, oh _bufos_ e _anti-bufos_!, para
-vos estralejar nas ventas a mais sonora gargalhada, que gentes de Valença
-teem ouvido!
-
-E tenho tambem uma idea...
-
-Emfim, vocês merecem recompensa, pelo enthusiasmo com que teem tratado
-d’essa questão, de grande valor e importancia para a terra. Mastigae já
-em secco e ouvi lá marotinhos: (mas caluda, por emquanto):
-
-Nos _cómes-e-bébes_ dos philarmonicos hei de misturar umas gottasinhas
-d’um certo elemento drastico
-
-—Oleo de Croton Tiglium—por exemplo, para que elles, nas ruidosas
-e puxadas explosões dos seus _bufos_, vos possam dar tambem—oh
-progressistas e regeneradores do pataco!—algo mais de...
-
- ...solido!
-
-Toca a aguçar a dentuça, Politiqueiros de meia-tigela!
-
-
-
-
-XV
-
-As Muralhas
-
-
-Em que condições vivemos?
-
-Com pejo hesito em denuncial-as.
-
-Vivemos acorrentados ao estupido regulamento, dado ás gentes, ha perto de
-seculo e meio, pelo Conde de Lippe.
-
-Vivemos como os forçados e os grilhetas—cercados de muralhas.
-
-O que significam, hoje, as muralhas?
-
-O retrocesso, o dominio brutal da pedra; isto é, Pasteur, Edison, Comte,
-Jenner, Spencer, Hugo, Castelar, Capello, Ivens, Herculano, Pestalozzi,
-Broca, Kossuth, Humboldt, Chevreul, Wurtz, Lesseps, Eiffel, arremessados
-para a barbarie dos tempos primitivos, para a idade paleolithica, em que
-o homem usava cuecas, cozinhava de cocoras, contava pelos dedos e pescava
-trutas á unha, porque desconhecia, ainda, a engenhosa disposição do
-anzol e a grande vantagem da minhoca.
-
-Significam os combates dos barbaros; a bruteza dos despotas; as luctas
-fratricidas; o assassinato legal; a ambição copulada pela força; a lucta
-braço a braço, arca por arca, alma a alma; a feroz e brutal sensualidade
-do vencedor, que sorve dos labios do vencido o ultimo alento; o escabujar
-do moribundo nas vascas de cruissima agonia...
-
-Significam as pontes levadiças, o embate de duas ondas humanas que
-se chocam, se enroscam, se atropelam, se mordem e se agitam por
-fim, convulsivamente, n’um montão disforme de farrapos, de carnes
-ensanguentadas, onde rouquejam as maldições, os estertores, até que as
-rodas da carreta, ou as patas ferradas d’uma mula acabem de esmagar, de
-confundir e triturar.
-
-Significam o assedio, o bombardeamento, o incendio, a fome, as mil
-privações e sobresaltos; a viuvez, a orphandade, o lucto—a morte; isto
-é: quatro pás de terra sobre um corpo amado, que jaz hirto e nú, ahi
-para qualquer canto, sobre o monturo, proximo á _Sexta_; as canções
-roucas e truanescas dos coveiros do Hamlet; o uivar sinistro da canzoada
-lazarenta, que escancara as mandibulas, esgaravatando a terra para
-esfarrapar as carnes; o crocitar lugubre dos corvos, que revolteiam
-no azul dos céos, espreitando lauto e succulento festim no rebordo
-ensanguentado das feridas...
-
-Significam a agonia lenta, afflictiva; o velar-se da vista nas sombras
-da Morte e, n’esse debil bruxolear do espirito, a visão meiga e então
-dolorosa da familia, da infancia, dos affectos que nos ligaram á vida sem
-que, collados os labios, confundidos os alentos, n’um derradeiro olhar
-e n’um derradeiro beijo, se possa desprender a alma entre almas que nos
-amaram.
-
- * * * * *
-
-Com que veneração e respeito eu conservaria uma das tuas cans, benemerito
-Pasteur, apostolo bemdito do Bem, e com que tremendo pontapé eu te
-esmigalharia o busto, se aqui o tivesse, feroz Napoleão, negro chacal da
-Morte, para quem são poucos todos os horrores e tormentos, que a genial e
-portentosa imaginação de Dante phantasiou nos seus nove circulos!
-
- * * * * *
-
-Felizmente, toda esta sentina de granito que os espiritos bellicos
-e phantasistas denominam _formidolosa Praça_, nunca teve um real de
-importancia, na historia militar do nosso paiz.
-
-Isto foi sempre o que hoje é—uma _feira da ladra_ de tarecos velhos e de
-cacada guerreira.
-
-Quando em 1809, Soult atravessou a fronteira, o aspecto d’esta
-carcassa não o atrazou um minuto na marcha. Passou ao largo, sorriu,
-atirou cá dentro meia duzia de obuzes e continuou em paz o seu caminho.
-Palpitou-lhe que não valia a pena subir a Gaviarra, porque não tinhamos
-custodias d’oiro para roubar, nem preciosidades artisticas; n’essa epocha
-não existia o muzeu do sr. Sampaio, nem se falava na mystica collecção do
-Albininho.
-
-Em 34, Napier, a cavallo n’um burro pôdre, veio de Caminha a Valença,
-seguido por um pelotão de marujos inglezes. Sem estribos, com a volta
-das meias cahidas sobre os sapatos, rindo com bom humor, berrou alli da
-Esplanada: «_Ao governador de Valença! Senhor: tenho uma esquadra em
-Caminha e se vos não entregaes, mandarei buscar cem peças de artilheria,
-cercarei a praça e a vossa guarnição será passada á espada._»[38]
-
-D’alli a um quarto de hora, Napier estava cá dentro.
-
-Depois d’isso, os grandes successos militares da nossa terra limitam-se
-a breves assedios, nas luctas civis de 37 e 47. Houve muito susto, muito
-fanico nos dois sexos, alguma granada para espalhar tristezas, e assim
-se arranjou um simulacrosito pacato e economico d’um cerco em regra,
-como o que soffreu, ha 19 annos, Strasburgo—(senhoras e senhores, que
-ainda fallaes com pavor de 37 e 47)—em que aquella desgraçada cidade
-teve constantemente, vomitando a morte e a ruina para dentro dos seus
-muros, umas 170 boccas de fogo—ninharia que devia fazer um poucochito de
-barulho...
-
-Mas apesar d’isso, de nada valeram os ultimos assedios; eu—com
-franqueza—sinto-me muito mais feliz do que os srs. Manoel Antonio de
-Barros, José e João Seixas, Santa Clara e outros que assistiram a
-essas tristes scenas das nossas dissenções politicas; e sinto-me mais
-feliz, porque, emfim, não me destinou Deus para emprezas guerreiras
-e contento-me em conhecer os effeitos e propriedades da polvora nas
-bichinhas de rabear do S. João, ou nos devaneios pyrotechnicos da palerma
-Urgeira, sem offensa para o sr. Chiquinho Veiga.
-
- * * * * *
-
-Mas vejamos qual é a necessidade de conservar essas odiosas reliquias dos
-tempos barbaros e qual a razão que se oppõe, a que nos seja permittido o
-que já conseguiram outras terras da fronteira, como Caminha, Cerveira,
-Monsão e Melgaço—o arrasamento de tão brutaes construcções.
-
-Será a posição estrategica?
-
-Condições excepcionalmente favoraveis na opposição a uma invasão
-extrangeira?
-
-O inexpugnavel d’aquella posição?
-
-Cartas na mesa, teias d’aranha limpas e jogo franco, senhores da alta
-militança, lá das Secretarias da Guerra.
-
-Toda esta coisa, com as suas muralhas, baluartes, fortes, contra-fortes,
-revelins, fossos, falsas bragas, casamatas, cortinas, tenalhas, poternas,
-escarpas, contra-escarpas, banquetas, meias-luas, taludes, pontes
-levadiças, abobadas, etc., etc., que constituem na sua complicada relação
-a arte de Vauban, toda esta coisa, repito—não vale um pataco sebento do
-sebentissimo D. João VI!
-
-E tanto não vale um pataco, que apesar do apregoado valor estrategico
-augmentar com a Ponte internacional e de os engenheiros militares
-terem lembrado, quando se construiu a linha ferrea, certas obras que
-garantissem as condições da defeza, prejudicada com os aterros e
-desaterros—até á data nada se fez, nem se fará, se Deus Nosso Senhor
-quizer.
-
-E tanto não vale um pataco, que se eu tiver em Lisboa um bom _trunfo_
-politico para empenho: se eu fôr, por exemplo, um João da Gaiteira,
-elevado politicamente em potencia votante, ao quadrado ou ao cubo,
-obterei, não só licença para construir nos arrabaldes da Praça, como,
-tambem, limite de altura superior ao que eu desejar, embora a isso se
-opponham todos os paysanducos e todos os regulamentos do sabio conde de
-Lippes.
-
-Ora, de duas, uma: é ou não é importante o valor estrategico da Praça?
-
-Não é. Dil-o a sua historia; dil-o a historia das ultimas campanhas
-europeas e encarrega-se de nol-o dizer o Governo de S. Magestade, quando
-o apertam com a tarracha do voto.
-
-Será parvoiçada suppor que, no caso d’uma invasão, o inimigo se deteria
-por um momento com as momices e os esgares d’esta desdentada carcassa.
-
-Perguntem a Strasburgo, a Verdun, a Bitche, a Toul, a Soissons, a Metz,
-a Schelestadt, para que lhes serviram as vantagens do terreno e as
-prevenções de Vauban.
-
-E sendo nullo o apregoado valor estrategico, que outra causa fundamenta
-a estupida prohibição que se oppõe á construcção de novos edificios, ao
-desenvolvimento de povoação, tornando odiosa a missão d’esse official
-que, com um curso de engenharia e com a elevada orientação scientifica,
-que hoje se obtem nas Escholas superiores, ahi está de sentinella ao
-regulamento senil que tresanda a raposinho, a catinga, e de que a rotina,
-o egoismo, e por vezes a velhacaria fazem instrumento de valimento e,
-até, de vinganças pessoaes?[39]
-
-Attende-se á probabilidade d’um cerco, d’um acampamento, e á necessidade
-de inutilizar, rapidamente, ao inimigo quaesquer pontos de abrigo?
-
-Mas, oh Molkes pataqueiros! Então prohibis que em minha casa possa
-elevar meio palmo ao cano da latrina, impedis que no meu quintal levante
-uma barraca para guardar as melancias e os nabos, e deixaes ahi cavar, a
-dezenas de metros da praça, esse desaterro, onde se abriga uma divisão
-com as respectivas familias, se tanto fôr necessario?
-
-Impedis que lá fóra, na minha horta, levante um pau com o gallo, para
-catavento, ou equilibre quatro taboas, que um cão, alçando a perna no
-exercicio de certa funcção, faz cahir, e mandaes construir essa outra
-fortaleza de granito—a estação do caminho de ferro?
-
-Admittindo, mesmo, que o inimigo se estabelecesse para cá da fronteira,
-que seria de Valença se no Faro, no Marco, ou em qualquer outra
-eminencia, elle assestasse quatro canhões Krupp, Bange, Amstrong ou
-Fraser, que arremessam projecteis com menos peso do que as vossas
-cabeças—verdade é, porque não teem tanto municio—a 12 e 16 kilometros de
-distancia?
-
-Para que nos asphyxiaes, pois, com estas montanhas de pedra, militarões
-lá das altas repartições da Lysbia, estrategicos de meia tigela, que
-por ahi inficionaes de rheumatismo, de gotta, de rapozinho e de pingo
-simontado o que póde haver de proveitoso e util nas instituições
-militares da nossa Patria?
-
- * * * * *
-
-As muralhas para nada mais servem do que para attestar aos extranhos
-que—portas a dentro—o Progresso deixou de actuar.
-
-Servem, como pittorescamente disseram, ha mezes, uns lisboetas que
-ousaram entrar cá dentro: para impedir que a porcaria e... manchem a
-belleza dos arrabaldes; servem para balde do lixo, das immundicies, e
-para os habitantes da villa satisfazerem, prompta e commodamente, um
-determinado numero de necessidades, tanto em funcções de reproducção,
-como em funcções de nutrição.
-
-Servem para a gente se desfazer das ninhadas de gatos, que a _Malteza_
-arranja em janeiro com as suas serenatas ao luar; servem para uma
-entrevista baratinha e recatada com pudibunda sopeirinha; servem para
-manter certas artes e officios; servem para fornecer o Hospital militar
-de bronchites, tysicas, pneumonias e doenças assizicas, que essas
-desgraçadas sentinellas arranjam em larga copia nas frigidissimas noites
-de inverno, quando o nordeste, que corta e açoita, as apanha amarradas
-com a trela da disciplina á carreta d’uma peça rachada, vigiando que o
-gallego não escale as muralhas e a leve para berloque da cadeia.
-
-E servem, mais, para sustentar essa coisa caduca, ridicula, inutil,
-offenbachicamente intitulada o
-
- Governo da Praça!
-
- * * * * *
-
-—Governo da Praça!
-
-Raciocinemos logicamente.
-
-Qual é a idea implicita n’este titulo?
-
-Commando, direcção na defeza da dita Praça.
-
-O que exigem estas funcções?
-
-Conhecimentos estrategicos e noções de todos os ramos da moderna Sciencia
-militar, alliados ao senso, ao valor, á prudencia, ao prestigio e á
-energia.
-
-A quem tem sido confiado tão importante cargo?
-
-Ao Zé da Rosa...
-
-Ora, meus senhores, com franqueza; eu aposto _aquillo_ de que se faziam
-as barretinas, quando não eram da pelle d’urso, se—declarada a Praça em
-estado de sitio e confiado o commando supremo com a direcção de tudo
-ao Senhor Zé da Rosa—a cavallo n’um cabo de vassoira, com um espeto de
-assar cabritos, com tres _malzabetes_, dois _paus-reaes_ e um _fileiras_,
-não tomar Valença e não levar a toque de caixa na minha frente até ás
-Bornetas, o Senhor Governador e todo o seu Excellentissimo Estado-maior!
-
-E para isto, para conservar a esta latrina uns apparatos bellicos de
-opereta, estou eu arriscado, por um descuido, por uma descarga electrica,
-a dar o meu passeio aereo até aos reinos da Lua, com a conservação
-estupida de milhares de kilos de polvora, que uma noite podem ter a
-phantasia de condemnar a minha humilde pessoa áquellas maravilhosas
-viagens de Julio Verne.
-
-Ora, além do perigo, imagine V. Ex.ª a que enormes responsabilidades,
-a que enormes complicações diplomaticas, a que enormes indemnisações o
-nosso Governo se arrisca, conservando por cá essa materia explosiva,
-que dava para tanta _bichinha de rabear_ e para tanto _caganitão_, se
-lhe quizesse dar applicação differente da que ella hoje felizmente tem:
-estoirar fragas e rasgar montanhas para facilitar o avanço da locomotiva.
-
-Imagine V. Ex.ª que em noite estrellada de agosto, Don Benito Naveas e
-sua Ex.ᵐᵃ Familia tomam socegadamente o _té_, na sua _habitacion_ de Tuy.
-
-Don Benito, fiel ao partido legitimista encarece mais uma vez a bondade
-e os merecimentos de D. Carlos, commentando tranquillamente entre
-saboreadas fumaças d’um _pitilho_ e goles de _té_, as noticias que, sobre
-o Pretendente, em o numero de _miercoles_, apresenta _La Integridad_,
-luminosa gazeta assotaina da inventora dos _malzabetes_.
-
-«_Con securidad, Don Carlos és muy bueno hombre; una gran cabeza; el
-unico rey que debia gobernar la Espana; es un hombre de religion, y que
-tal... y que sei yo..._»
-
-Subito, ouve-se um estampido medonho. A casa abala-se nos seus alicerces;
-as paredes oscillam; as traves gemem; as loiças tocam nos aparadores e
-saltam em furiosa dança macabra. Ouve-se um _crac_ medonho, fende-se o
-tecto e apparece em cima da mesa _del comedor_... quem?—o Senhor Abel
-Seixas, em pello e em cabello, tal qual estava na cama, sem chinó, pança
-sumida e olhinhos espavoridos!
-
-V. Ex.ª ri-se? Pois o caso não é para isso. Se chegam uma isca de fogo ao
-paiol, a qualquer de nós póde succeder o mesmo.
-
-E diga-me V. Ex.ª quanto teria o nosso Governo de pagar a Don Benito pela
-perturbação do seu socego e—o que é muito peor—pela alimentação d’esse
-insondavel abysmo—a barriga do snr. Seixas—emquanto este cavalheiro,
-arrancado bruscamente do seu leito e atirado por esses ares em
-escandalosa nudez, se recusasse, pudicamente, a ostentar pelas _calles_
-de Tuy, no regresso á Patria, as linhas bambaleantes das suas formas
-esculpturaes.
-
-Matutae sobre o caso, homens da Governança!
-
-
-
-
-XVI
-
-A Manifestação de 14 de Janeiro[40]
-
-(PROTESTO)
-
-
-Para cá dos limites que tracei á critica dos acontecimentos, por
-qualquer aspecto evidentes e impressionaveis na chronica politica
-d’esta terra, disponho hoje, serenamente, os apontamentos colligidos
-sobre a manifestação de 14 do corrente, para os sujeitar á analyse
-recta e imparcial, isenta de considerações pessoaes ou collectivas, sem
-tergiversações de ameaças ou de lisonjas, a que subordinei o programma
-dos _Sinapismos_.
-
-Á frente d’essa manifestação eu vi homens a quem dedico verdadeira
-amizade; que respeito nos actos da sua vida particular; que me honram
-com as suas relações, porque se impõem á consideração de Valença pelo seu
-caracter digno e pela sua honradez inconcussa.
-
-Esses homens organizaram uma manifestação popular, que annunciaram como
-patriotica e que outros classificaram como politica. Inspirada no amor da
-Patria, ou na paixão partidaria, essa manifestação, evidenciada nas ruas
-e nas praças, discutida na Imprensa como expressão dos sentimentos d’uma
-parte da população, perdeu o caracter, para mim respeitavel, d’um acto
-isolado da vida particular e adquiriu a importancia d’um facto social,
-publico e, portanto, sob o dominio da critica.
-
-Abstraio, pois, do meu espirito as relações que me unem a essas
-individualidades, e nos periodos que vou ordenar para a composição d’este
-artigo, declaro, outra vez ainda, que aprecio a manifestação promovida
-por um grupo anonymo de cidadãos e não por um grupo de individuos, d’esta
-ou d’aquella classe, d’aquella ou d’esta côr politica.
-
-A violencia da phrase com que tenha de censurar qualquer aspecto d’essa
-manifestação, que me pareça menos digno, não irá, pois, desvirtuar a
-sinceridade de relações, mais ou menos affectuosas; nem poderá, tambem,
-ser reputada como indicio de adhesão a opiniões já manifestadas por quem,
-em identicas apreciações, se deixa desorientar pelas paixões partidarias
-que levam a applaudir toda a inepcia d’um grupo em que se está filiado,
-e a estigmatizar qualquer idea, muitas vezes util e proveitosa, suggerida
-pelos contrarios.
-
-Esta é a missão do critico e praza a Deus que a consciencia nunca me
-accuse de escrever o contrario do que ella, á luz da imparcialidade e
-d’um livre criterio, dieta á minha penna.
-
-Nos periodos d’este artigo abandono a feição humoristica dos restantes.
-Tenho de me referir á crise dolorosa por que actualmente passa a alma da
-nacionalidade a que me orgulho de pertencer; e n’essa referencia, quando
-a humilhação nos ruboriza as faces e a recordação das passadas grandezas
-nos amargura e entristece, o sorriso seria uma villania e a gargalhada
-seria uma infamia.
-
- * * * * *
-
-A força inicial dos acontecimentos de 14 do corrente não se póde
-attribuir á expansão d’um sentimento patriotico, provocada pela
-recente affronta de Lord Salisbury; na agitação do grupo que promoveu
-a manifestação não vibrou a alma da Patria: tumultuou o espirito d’um
-partido.
-
-Mas de qualquer caracter, patriotico ou politico, essa manifestação,
-nas condições em que se realizou, envolvendo a bandeira nacional e a
-responsabilidade d’uma povoação, não merece classificação diversa da que
-se póde exprimir com estas palavras:
-
- foi =aviltante= para Valença.
-
-Os homens que a promoveram não teem direito á consideração e, muito
-menos, ao applauso dos seus conterraneos, porque não são patriotas
-sinceros, nem politicos dignos. São escravos inconscientes da politica
-sertaneja, d’essa degradante aberração de principios sãos, de crenças
-firmes, de convicções honestas, que desorienta, humilha e arrasta pela
-lama da indignidade, caracteres respeitaveis e talentos privilegiados.
-
-Envolveu-se n’essa _manifestação_ a responsabilidade de Valença.
-
-Pois, em nome dos brios d’um povo que é portuguez, em nome d’uma terra
-que amo, e que se faz respeitar no paiz pela auctoridade intellectual dos
-filhos que a representam nos mais elevados cargos sociaes—eu =protesto=
-contra o labeu infamante, com que o grupo organizador da manifestação de
-14 do corrente aviltou a nobilissima attitude da Patria na desaffronta
-d’um insulto e na defeza de direitos conquistados pelo sangue d’esses
-heroicos luctadores que,—transpondo novos oceanos e descobrindo novas
-constellações, arrostando os ignotos perigos do _Mar Tenebroso_ que a
-phantasia popular envolvera na nebulosa dos mythos, luctando contra
-a aspereza de inhospitos climas e contra as rudes vicissitudes da
-guerra,—ás mais remotas regiões, ás mais distantes e mysteriosas
-paragens, levaram o nome portuguez, desfraldando a bandeira, onde
-não se lia, como nas dos modernos exploradores inglezes: =Infamia= e
-=Oppressão=, mas:
-
- =Liberdade. Civilisação. Progresso.=
-
- * * * * *
-
-—Impulsionou-nos, dizem, o amor da Patria.
-
-Discutamos, então, a manifestação, sob esse aspecto.
-
- * * * * *
-
-Lord Salisbury, representante d’um povo egoista, perfido e covarde,
-cuja Historia tem a gangrena da infamia, as pustulas da devassidão e o
-excremento das villanias, fustigou com o chicote do seu _ultimatum_ as
-faces de todo o homem que se honra com o nome de _portuguez_.
-
-A grosseria avinhada do insulto, a brutalidade do attentado contra
-todos os direitos estabelecidos, a ferocidade do egoismo, a covardia da
-imposição d’uma besta superior em força, a dolosa argumentação abonatoria
-do _ultimatum_ e—sobretudo—a consciencia da nossa fraqueza e da nossa
-impotencia para a defeza energica de direitos indiscutiveis,—afistularam
-dolorosamente o coração da Patria e, de norte a sul, de oriente a
-poente, da cidade ao burgo, homens de todas as classes, de todas as
-condições e partidos, sentindo despertar, redivivo e forte, o espirito da
-nacionalidade e o orgulho d’outras eras gloriosas, ergueram-se, gritando:
-=Infamia!=—e occultaram o rosto, para que n’elle ninguem visse o rubor da
-vergonha e o vasquejar do desalento.
-
-A Imprensa, o Exercito, a Academia, a Magistratura, o Commercio, a
-Industria, os Municipios, as Sociedades recreativas, as Agremiações
-de classes, o banqueiro e o artista, o pobre e o rico,—arrebatados,
-galvanizados pela mesma chispa de acrisolado patriotismo—disputaram
-primazia de nobreza nos seus protestos.
-
-Mas no rosto de todos esses homens, na eloquencia dos seus discursos,
-no ardor das suas invectivas e no esgrimir da sua argumentação, eu vi
-sempre, evidentes, sinceros, expontaneos e fervorosos, os impulsos de
-nobilissimos sentimentos.
-
-Resaltava-lhes dos labios a indignação e, a espaços, no avincado da
-fronte e no amortecido do olhar, eu descubri o anciar d’uma grande dôr e
-o revolutear infernal do insulto humilhante, que não se póde vingar.
-
- * * * * *
-
-Um cortejo grotesco, esfarrapado, ululante, recrutado na Parada-velha e
-avolumado por essa massa anonyma e inconsciente de povo, babugem na onda
-de todas as manifestações e comparsa indispensavel em todas as farças que
-tresandem a borga e a quartilhos de vinho, precedia o grupo promotor da
-_manifestação patriotica_ valenciana.
-
-Lá na frente, um homem de cabellos brancos, agitando a bandeira da Patria.
-
-No conjuncto, uma arruaça carnavalesca, uma desordenada _fantochada_,
-scintillante de archotes, tocos de sebo e phosphoros de espera-gallego;
-ruidosa de gaiteiros e caixas de rufo, latas de petroleo, assobios de
-barro, arrotos, berros asselvajados, graçolas de bordel, acclamações
-roucas e avinhadas.
-
-Nos olhos, nas faces, na voz, no gesto dos promotores da _manifestação
-patriotica_, uma alegria evidente, saltitante, irreprimivel, estoirando
-nas expansões ensurdecedoras d’um jubilo guindado aos pinos do delirio,
-pelo sopro bestial d’uma pandorga de encarvoados hottentotes, já celebres
-na _Questão da Santa_.
-
-Abraços, fremitos de contentamento, chapeos no ar, demonstrações de
-affecto, apotheoses jogralescas, guizalhadas de truão, vivas a Deus, ao
-Rei, ao Regedor da Parochia, ao Exercito, ás Artes, ao pendão das quinas,
-a Serpa, aos abbades, ao João da Gaiteira.
-
-Á frente, um homem de cabellos brancos agitando a bandeira nacional.
-
-Dominando a turba, no frontão dos Paços do Concelho, o escudo da Patria:
-a honra portugueza aviltada, as tradições gloriosas d’um gloriosissimo
-passado, a epopea das Indias, a harpa eolia dos _Lusiadas_ vibrando,
-soluçante, com os derradeiros alentos do Infante navegador, de Vasco da
-Gama, de Alvares Cabral, de Affonso de Albuquerque, de Gonçalves Zarco,
-de Tristão Vaz, de Gonçalo Cabral, de Diogo Cam, de Bartholomeu Dias,
-de Fernão de Magalhães, de Godinho de Eredia, de Affonso de Souza, de
-D. João de Castro;—a fulgentissima constellação das nossas conquistas:
-Ceuta, Arzilla, Cabo Verde, Açores, Madeira, o Brazil, a Guiné,
-Mombaça, Quiloa, Mascate, Ormuz, Diu, Calecut, Goa, Malaca, Cananor,
-Ceylão—empallidecendo com os clarões avermelhados da archotada.
-
-E quando o nojento e sinistro abutre inglez, sulcando a escuridão da
-noite, poisava no frontão municipal e perante a _illustre_, _benemerita_
-e _patriotica_ Commissão manchava, abrindo um pouco as pernas, o escudo
-da Patria, com o excremento e com o vomito—quando em todas as povoações
-de Portugal se erguia, energico, o brado da desaffronta e, dolente, o
-gemido da humilhação—das varandas d’uma casa que pertence ao Estado e
-que representa, entre nós, a instituição mais nobre, porque é a fiel
-depositaria das nossas glorias e dos nossos direitos—essas tres palavras
-ôcas, golfadas, em comica explosão de inconcebivel calinice, sobre os
-ervaçaes de Paysandu:
-
- Viva Valença... =restaurada!=
-
-..............................
-
-Fumemos um cigarro para espalhar tristezas...............................
-
- * * * * *
-
-Continuemos.
-
-Á frente, sempre á frente, rindo, e chorando lagrimas de pathetica
-sensibilidade, um homem de cabellos brancos, agitando a bandeira da
-Patria.
-
-E ao longe, mais ao longe, para lá do Minho, essa nação cavalheiresca,
-como nenhuma, quando offendem os seus brios: a patria do Cid, de Cortés,
-de Pizarro e de Balboa; povo altivo que diz aos seus reis, em Aragão:
-_nós, que valemos tanto como vós_; que impõe a Carlos I pela
-bocca de Padilla, heroico chefe dos _cumuneros_, o codigo das suas
-liberdades; que ainda, ha pouco, se convulsionava fremente e ameaçador
-perante a reclamação _ingleza_ do Chanceller de ferro—povo rico de
-generosos enthusiasmos e enthusiasta de generosas ideas, nosso irmão
-de raça e companheiro nosso nas aventurosas emprezas d’alem mar—essa
-nobilissima Hespanha, escutando, absorta e commovida, os ruidos da
-bacchanal, o tumultuar da arruaça, o cornetear dos hymnos e a vozearia da
-magna caterva.
-
-E quando esse povo, pela bocca da sua Academia, do seu Exercito, da sua
-Marinha, das suas Sociedades de Geographia, nos enviava calorosos brados
-de affecto e nos insufflava alento e coragem—a _illustrada_, _benemerita_
-e _patriotica_ Commissão promotora da _manifestação_ erguia aos ares
-saudações á Hespanha e desfilava perante o representante d’aquella nação,
-em marcha fandanga, ao compasso esbodegado do hymno da Restauração!
-
-Á nota burlesca, a nota grosseira.
-
- * * * * *
-
-Quem hoje possue vagas noções de Historia patria, no mechanismo da sua
-evolução politica, reconhece, com verdadeiro desalento, quanto tem sido
-errado o plano das nossas allianças.
-
-Desprezaram-se as affinidades da raça, a continuidade do solo, a
-homogeneidade das aspirações, a reciprocidade dos interesses, a
-egual fertilidade do clima, a riqueza dos productos, todas essas
-especialissimas condições de independencia e de defeza que, aproveitadas
-para beneficio commum em estreita alliança de dois povos—garantidas a
-liberdade e a autonomia das instituições politicas de cada um—podiam
-tornar a Peninsula uma facha de terreno inexpugnavel e inaccessivel ás
-ambições de qualquer despota.
-
-Com o rapido exame d’um mappa, a Natureza nos indica as vantagens d’essa
-alliança com a Hespanha.
-
-As truanescas manifestações do _Primeiro de Dezembro_ invariavelmente
-ajoujadas a uma oratoria desenxabida e bolorenta, cinzelada a largos
-traços pelo escopro da Rotina, mirabolante de imagens sediças colhidas
-nos marneis paludosos d’um sentimentalismo piegas em materia de
-patriotismo—acirrando odios contra quem respeita a nossa autonomia, acata
-os nossos direitos e liberdades, e partilha, com egual dedicação, o
-nectar das nossas alegrias nas grandes consagrações civicas e o fel das
-nossas amarguras n’estes tristes dias de decadencia—devem banir-se para
-sempre em terras, como esta, que merecem cotação intellectual superior á
-de Paio Pires.
-
-Os sessenta annos do captiveiro chocalham constantemente nos cerebros
-dos gafados patriotas, para despertarem no povo o espirito da sua
-nacionalidade e a altivez da sua autonomia. Mas esse periodo sumiu-se
-nas brumas do Passado e pela heroicidade dos quarenta immortaes—o que
-é muito discutivel—ou por circumstancias occasionaes e propicias á
-nossa emancipação, ha duzentos e cincoenta annos que somos livres e
-independentes, entre as demais nações da Europa.
-
-Transmittimos aos nossos filhos esse odio á Hespanha; sobre os bancos
-das praças, golfamos, em façanhuda oratoria, rancorosas recordações
-dos Filippes, das luctas da Independencia, das agruras do captiveiro,
-do despotismo de Olivares; e, entretanto, entra-nos John Bull em casa,
-empalma-nos as mais ricas colonias, impõe-nos esses vergonhosos tratados
-de 1642, 1661, 1703 (Metwen), 1810, 1842, 1878 e esse celebre tratado de
-Lourenço Marques, em que os dois actuaes partidos da nossa politica teem
-graves responsabilidades, um porque o redigiu, outro porque o approvou,
-embora modificado.
-
-A Hespanha subjugou-nos por 60 annos. A Inglaterra subjuga-nos ha perto
-de tres seculos, dispondo da nossa Politica e absorvendo lentamente todos
-os elementos da nossa riqueza e da nossa vitalidade. Com a Hespanha não
-queremos relações, porque todos os nossos affectos são para a Inglaterra,
-que nos acorrenta a allianças, onde ha perfidias e traições, e nos
-socorre, quando lhe convém—com exercitos de bandidos que devastam e
-roubam este desgraçado paiz com sofreguidão superior á do inimigo, que
-nos forçou a pedir soccorro.
-
-A Hespanha festeja e acolhe bizarramente os nossos exploradores. A
-Inglaterra sorri desdenhosamente, orgulhosa de Stanley, o feroz Attila
-dos sertões africanos. E quando nos vê abatidos, impotentes e pobres,
-insulta-nos pelas boccas do poltrão Bright, do troca-tintas eleitoral
-Salisbury e por essa horda de bandalhos, redactores do _Times_ e do
-_Standart_, assalariados para abafarem as asquerosas applicações dos
-_Telegraph’s boys_.
-
-Todavia, quando Sua Alteza o Principe de Galles vem a Lisboa gastam-se
-centenas de contos com a sua recepção, e quando a _graciosa_
-Magestade, (que graça!) Mamã do dito Principe, solemnisa o jubileu, os
-representantes do povo portuguez curvam-se, reverentes, em respeitosos
-salamaleques, aos _graciosos_ pés da _graciosa_ Imperatriz das Indias!
-
-E no _Primeiro de Dezembro_, já se vê, grossa pancadaria de gaiteiros e
-um nunca acabar de foguetes com tres respostas.
-
-O hymno da Restauração desperta antigos rancores e origina odios, que
-a Hespanha não merece. Mandar tocar esse hymno, aqui, na fronteira,
-exactamente na occasião em que aquella nação estremece com o insulto que
-o inglez nos vibrou, não denota, sómente, grosseria, denota ignorancia.
-
-Temos, pois, já outra nota:—a da ignorancia; e como burlesca, grosseira,
-e ignorante, repetimos:
-
-a manifestação de 14 do corrente foi =aviltante= para Valença,
-
-porque aviltou a bandeira da Patria que, á frente, um homem de cabellos
-brancos agitava.
-
-Examinemos agora, respeitosamente, este homem.
-
- * * * * *
-
-Descubro-me perante elle.
-
-Tem 74 annos.
-
-É um espirito embalado pelas doiradas crenças da velhice, que se
-assemelham ás ingenuas convicções da mocidade.
-
-Tem enthusiasmos pueris e cultos idolatrados.
-
-Influe a mais rigida honestidade nos actos da sua vida particular.
-
-É um homem antigo, como diz o povo; e n’esta epocha de decadencia,
-em que na alma da nação existem, narcotisados pela mais criminosa
-indifferença e pelo mais repugnante egoismo, todos os sentimentos nobres
-e todas as crenças sans—este homem continúa caminhando impassivel para
-o occaso da vida, com os olhos fitos n’um Ideal de Honestidade e de
-Convicções—especie de mytho, com que, apontando para o Passado, tentamos
-hoje inocular no espirito dos nossos filhos o virus preservativo contra a
-Descrença e contra o Scepticismo.
-
-Este homem conserva ainda, immarcessivel, a pureza de todos os cultos e
-de todas as tradições que seus Paes lhe legaram.
-
-Crê na infallibilidade do Papa, na moralidade dos partidos, na
-sinceridade das convicções, na respeitabilidade dos conselheiros,
-na seriedade d’um _marmanjo_ sertanejo qualquer, que, sentado no
-confessionario, descança, hoje, das fadigas que lhe vergam as pernas,
-depois das arruaças politicas d’hontem.
-
-Atraz das procissões sente-se feliz e orgulhoso com o seu _habito_,
-marchando, altivo, ao lado do pantomimeiro, que em troca d’uma
-tranquibernia eleitoral chegará a ser commendador de Malta, ou Marquez,
-em dez vidas, de Paysandú, ou Chão das Pipas.
-
-É fanaticamente liberal; quando, n’um dos artigos d’este livro, por
-inoffensivo trocadilho, lhe chamei _miguelista_, teve explosões de colera
-e arrancos de indignação.
-
-Chamam-lhe: o _liberal de 34_.
-
-Soffreu com as luctas d’essa epocha e com as seguintes.
-
-Foi perseguido; andou a monte, passou fome e foi preso.
-
-Respeita as instituições vigentes. Não admitte manchas na vida politica
-de D. Pedro IV, o seu legitimo Rei. Desculpa as fragilidades
-d’esse sebento poltrão, D. João VI. Odeia os republicanos e
-ajudaria a enforcar um iberico.
-
-Por consequencia, na sua alma existe, profundamente enraizado, o amor
-da Patria; não o amor originado no funccionalismo da barriga, mas o que
-parte do coração, o que é verdadeiro, intransigente e expotaneo.
-
-Pois este homem foi ignobilmente explorado para o scenario da
-_manifestação patriotica_ e, acorrentado pela Politica, exposto por essas
-ruas ao mais degradante ridiculo.
-
-Dedilharam as cordas do seu sincero patriotismo; falaram-lhe na Patria
-offendida; mostraram-lhe a bandeira. Abraçou-se a ella, nervoso,
-soluçando, humedecendo-a com lagrimas.
-
-Empurraram-no para a rua.
-
-Quando na minha frente passou o grotesco cortejo, eu já não vi o velho
-respeitavel, nem o homem liberal. Vi um macaco vestido de azul e branco,
-com a corôa real na cabeça, pinchando e bailando ao som dos hymnos
-esmoidos pelo realejo da philarmonica africana.
-
-De quando em quando, o realejo cessava de tocar.
-
-Um patriota discursava á turba; outro extendia o prato e pedia a esmola
-dos _vivas_.
-
-O macaco ria, ou chorava.
-
-—_Viva a Reliquia!_—exclamavam á frente do cortejo.
-
-—_Viva o Relicas!_—berravam os paradas-velhas.
-
-Do liberal de 34 a Politica acerdalada fizera aquillo: uma coisa
-ridicula, comica, irrisoria, tristemente deploravel, porque tinha
-cabellos brancos. Essa _coisa_ já não era a Reliquia dos homens liberaes
-de 34; era uma _Reliquia_ falsificada, de contrabando, como seria o rabo
-do meu gato, exposto em Santo Estevão á veneração das beatas, como uma
-trança de cabello de Santa Margarida de Cortona.
-
-Á porta do Sr. Palhares, a cabeça branca d’esse velho recebia picaresca
-consagração, n’esta phantasiosa e alcoolica imagem:
-
-—_Viva a Rosa de 74 annos, estramplantada para o nosso Jardim!_
-
-E a caterva parada-velha repetia:
-
-_Viva a Rosa Relicas!_
-
-Do homem liberal ficou para Valença a: =Rosa Relicas=.
-
- * * * * *
-
-Este homem, lendo o que escrevo deve considerar-se offendido pela rudeza
-da ironia.
-
-Oxalá que a caterva dos falsos amigos, que o guindaram para o andor
-do Ridiculo, o respeitassem como eu o respeito e venerassem, como eu
-venero, a sinceridade das suas crenças!
-
- Homem de 34!
-
-Escuta:
-
-A minha idade é muito inferior a metade dos teus annos. Entrei no periodo
-activo da vida, quando já estavam suffocadas as agitações politicas a
-que assististe. Não tenho relações intimas comtigo, mas respeito-te,
-porque és dos homens que trabalharam e soffreram para eu gosar as
-liberdades d’esta epocha. Não tenho a experiencia da vida que tu tens,
-mas peço-te que attendas ao que te vou dizer, porque conheço, melhor do
-que tu, os individuos que nos rodeiam, a natureza dos seus sentimentos
-e a sinceridade das suas crenças. Quando a minha razão principiou a
-funccionar, já por ahi lavrava, intensa, a immoralidade, e os homens,
-pela irrefutavel logica dos factos, encarregaram-se de inutilizar no
-meu espirito as illusões que tu ainda conservas, porque vives um pouco
-arredado d’elles.
-
-Escuta, pois!
-
-Quem, como tu, soffreu as deploraveis consequencias das nossas dissenções
-politicas e provou o fel d’essa malfadada epocha, em que dois partidos,
-irmãos no sangue, se perseguiam com encarniçado odio, a tiro, a faca,
-a cacete e a machado,—quem, como tu, avaliou os dolorosos transes e
-as indescriptiveis angustias que infernaram a alma das familias e
-dilaceraram os affectos d’uma povoação, constantemente sobresaltada
-com a incerteza nas vidas e com a noticia das mortes,—quem conheceu os
-horrores da fome, as tristezas do exilio, os negrumes do futuro,—quem viu
-o corpo d’um portuguez baloiçar-se, sinistramente, na forca infamante,
-e viu as costas d’um homem esfarrapadas pela chibata do corneta,—quem
-teve amigos que foram assassinados a machado em Extremoz, arrastados,
-semi-vivos, pelas ruas do Porto, espingardeados nas linhas e no reducto
-dos Mortos, garrotados em Lisboa, fusilados em Vizeu,—quem viu cabeças,
-gottejando sangue, espetadas em mastros e ouviu falar das ferocidades do
-Telles-Jordão e do seu _menino_, bestiaes cerberos de S. Julião,—quem
-escutou por todo esse paiz o choro afflictivo das viuvas, o soluçar
-das creanças e o estertor dos moribundos entre as ruinas da Patria,
-ennegrecidas pela fumarada do incendio e avermelhadas pelo sangue
-fratricida,
-
- homem de 34!
-
-quem viu e ouviu tudo isso, nunca deve contribuir com a sua presença e
-com o seu applauso para acirrar o odio dos partidos, ou para estimular
-em terras pequenas, como Valença, essas divergencias de opiniões que,
-levadas pela allucinação á infamia das vinganças e ao rancor das
-represalias, podem preparar, no futuro, nova serie de horrores, como os
-que tu viste e como os que tu soffreste.
-
-Esses cabellos brancos nunca se devem prender ao Passado para trazerem á
-terra em que vives e onde tens os teus affectos de familia, o bacamarte
-assassino e o facho incendiario, em que se podem transformar esses
-archotes do teu sequito de paradas-velhas. Devem prender-se ao Passado,
-mas para de lá arrancarem com o vigor da experiencia: o conselho, o
-ensinamento, a reflexão, que podem suffocar o ardor das paixões e
-prevenir os excessos da allucinação.
-
-Tens umas convicções partidarias; acceitas um _credo_ politico.
-Respeito essas convicções e a doutrina d’esse _credo_, porque ao teu
-partido deve a Patria valiosos serviços na honrosissima cruzada do seu
-engrandecimento, d’onde emanam a paz e as liberdades que hoje fruimos.
-
-Sustenta as tuas idéas politicas, mas descreve, sempre, aos homens de
-todos os partidos o que foram as luctas e as agitações de 30 a 51.
-
-Tu és honesto, crente, sincero e bom. Não manches a respeitabilidade das
-tuas cans n’essas abandalhadas orgias, onde vês como principaes heroes,
-_exigindo musica e borga_, ministros d’uma religião de paz, de tolerancia
-e amor, afeitos ás esturdias sertanejas e acerdaladas d’uma politica de
-barriga, de arroz de forno, e de chouriço com ovos.
-
-Talvez que n’essas horas de esturdia algum pobre velho agonizasse,
-pedindo, em vão, o amparo de Christo...
-
-Como patriota, modera esses enthusiasmos, que tão violentamente agitam a
-tua alma.
-
-Crês, acaso, na intensidade d’esta explosão de colera que Lord Salisbury
-provocou?
-
-Verás como, dentro de dois mezes, não resta uma faula de todo este
-incendio. Temos á porta novas eleições; o vinho das _borgas_ se
-encarregará de apagar as labaredas.
-
-Crês na efficacia dos meios, até hoje apresentados para a nossa defeza e
-para a nossa desaffronta?
-
-_Será_ mais um triste couraçado para, em frente de Belem, chorar as
-nossas passadas grandezas.
-
-Acreditas na persistencia da lucta commercial?
-
-Dentro d’um anno, a chita e a lona virão outra vez de Manchester, porque
-lá, custa cada peça menos 2 _shillings_ e 6 _pence_ do que n’outra parte.
-Em mil peças, essa diferença produz cerca de seiscentos mil reis que, a
-juro de 6 por cento, rendem oito libras annuaes. Ora, essa diferença,
-bom homem, não se póde perder. Esta coisa de patriotismo é bonita, fica
-bem a todos; inspira discursos, que põem a gente a dançar na corda bamba
-do enthusiasmo, mas... alli, o meu visinho vende o metro da lona a sete
-menos cinco, e a que eu tenho custou sete vintens em algures. Nós—eu, tu,
-os teus amigos e os meus—vamos a quem vende mais barato. Precisamos de
-economizar, porque está tudo, como sabes, pela hora da Morte.
-
-Pensa bem e reconhecerás que, hoje, a Patria não merece essas lagrimas,
-com que humedeceste a sua bandeira.
-
-Vês este enthusiasmo na subscripção nacional?
-
-Lembras-te do que houve na subscripção do Baquet?
-
-Pois ninguem se lembra das victimas e ninguem conhece a applicação que
-teve o dinheiro que demos.
-
-Alegra-se a tua alma com este furor contra o inglez?
-
-Tens visto a excitação que se levanta por esse paiz, quando algum
-_sotaina_ arrebata, do seio da familia para a clausura do Recolhimento,
-qualquer herdeira endinheirada?
-
-Comicios—representações—protestos—morras ao Jesuita!—abaixo a reacção!—o
-diabo!
-
-Quinze dias depois, já ninguem fala em tal. A rhetorica entra novamente
-na gaveta das coisas ricas e asseadas. Depois... Quartel general em
-Abrantes.
-
-N’esta propaganda anti-ingleza só encontras enthusiasmo sincero nas
-manifestações da mocidade e na indignação dos velhos—duas epochas da
-vida, que se assemelham, como sabes.
-
-Esses que te envolveram na _manifestação patriotica_ gastaram, com a
-esturdia e com as ultimas eleições, cerca de trezentos mil reis. Vae
-saber quanto elles dão para o couraçado e para os torpedeiros.
-
-Andaram comtigo em charola e adoraram-te, de joelhos e mãos postas, como
-uma Reliquia dos homens liberaes.
-
-Ataram os seus enthusiasmos aos teus cabellos brancos e elevaram, aos
-céos da popularidade, o balão flammejante dos patriotismos. Curvam-se
-arrebatados, extasiados, sensibilizados, perante as venerandas Reliquias
-dos homens liberaes; mas—ouve lá—pergunta-lhes se alguma vez se lembraram
-d’esse pobre velho de cem annos, que desembarcou no Mindello, que teve
-a _Torre Espada_ e que para ahi viveu cego, decrepito e idiotado, com
-tristes patacos, emquanto que muito...
-
-—Bom homem! Dá cá outro cigarro...
-
- * * * * *
-
-Resumindo, meu velho, aconselho-te a que moderes esses teus enthusiasmos
-patrioticos, porque excluindo, como disse, as manifestações dos novos
-que ainda não roçaram as azas pela immoralidade d’estes tempos, todas
-essas celeumas e gritarias não valem—crê—uma das tuas lagrimas. Isto,
-emquanto a patriotismo. Ora, ácerca da Politica e dos homens que por cá
-dirigem os partidos, quando elles te agarrarem nas pernas para o andor
-da _fantochada_, faze-lhes como eu fiz aos paysanducos, que me quizeram
-matar por causa da carta ao _Restaurador_:
-
- _esguicha-os_.
-
-Olha que, politicamente falando, entre Fonsecas, Vices & Abbades, ou
-Moraeses, Agostinhos & Cunhas
-
- venha o diabo e escolha.
-
- * * * * *
-
-Agora, dá-me a bandeira e grita commigo a esses _patriotas_, que te
-querem levar para as freguezias:
-
-=Abaixo as mascaras!=
-
-Vae socegado para tua casa, e deixa-me com elles, porque lhes quero
-dizer, ainda, duas coisas, antes que saiam da Coroada.
-
- * * * * *
-
-Já podemos rir, respeitabilissima Commissão _patriotica_:
-
-Arrancadas as mascaras, _vocellencias_ ficaram o que realmente são: não
-patriotas, mas politicos de gaiteiro.
-
-Disse eu, no principio d’este artigo, que a _manifestação_, quer tivesse
-o caracter politico, quer o patriotico, aviltára Valença. Demonstrei
-a asserção relativa á segunda das classificações e vou evidenciar a
-indignidade da primeira.
-
-Estes _banzés_ de musicas, foguetes, vivas, archotadas, cómes-e-bebes,
-brindes etc., etc., podem fazer effeito entre abbades sertanejos, dos que
-não sabem verdadeiramente quaes são as leis de equilibrio que obrigam a
-gente a andar com as mãos no ar, sendo a cabeça mais pesada do que os pés.
-
-Esses regabofes trescalam, sempre, essencias do alho, do carneiro assado,
-do esturro das batatas, da vinhaça, do vomito—essencias que denunciam o
-suborno, a pressão, a compra de voto, a immoralidade, a inconsciencia e o
-servilismo.
-
-Os partidos compõem-se de homens, que nos actos da sua vida social, como
-nos actos da sua vida particular, acertam e erram.
-
-Por estes e por aquelles accidentes sobem ao poder e sahem d’elle. Uns
-e outros decretam leis inuteis, uteis e prejudiciaes, porque infallivel
-dizem que só é o Papa e, ainda assim, ha muita gente que embica com essa
-infallibilidade.
-
-O partido progressista, como o partido regenerador, tem tradições
-honrosas e tem manchas; o partido regenerador, como o partido
-progressista tem no seu seio homens dignos, que honram o paiz.
-
-Quem póde, em momentos de reflexão serena, deixar de prestar homenagem de
-gratidão e de respeito á memoria d’esse homem, que dedicou toda a sua
-existencia ao engrandecimento da Patria e que, apesar de ter palacios em
-Londres, morreu pobre e legou dividas:—Fontes Pereira de Mello?
-
-Quem póde recusar-se a honrar o nome de Anselmo Braamcamp, o cidadão
-prestante, o caracter nobilissimo, a quem o paiz tanto deve?
-
-Os defeitos da Politica portugueza, desde 32: os arranjos, as ambições,
-o desperdicio dos dinheiros publicos, o desamparo das instituições
-proveitosas, o abandono da Agricultura, da Industria, das Colonias, são
-communs, e d’elles teem eguaes responsabilidades todos os partidos.
-
-Esses defeitos vem de cima e vão para cima. Apparecem nas imposições
-eleitoraes, na recommendação governamental dos candidatos, na necessidade
-das maiorias etc.; e nascem alli, nas pretensões do Sr. Abbade, que
-precisa de livrar os mancebos X e Y do recrutamento, nas exigencias do
-magnate Fulano, que pretende uma estrada para a quinta etc.
-
-De cima vem as imposições; de baixo vão as exigencias. Ora, n’esta
-permutação de generos, por conta propria, ou á commissão, ganham sempre
-os de baixo e os de cima; e, sendo assim, claro é que deve haver um
-terceiro para os prejuízos:—ha o Paiz.
-
-Isto é coisa velha e sabida.
-
-_Vocellencias_ terão a ingenuidade de suppôr que haja alguem, n’este
-anno de Christo, que repute sinceras, emanadas d’uma profunda convicção
-politica, essas ruidosas manifestações?
-
-Na _fantochada_ de 14 o que se evidenciou foi isto: a explosão partidaria
-de quem estava _por baixo_, a pirraça aos Moraes_es_, o nectar das
-abandalhadas vinganças, os mancebos livres do recrutamento, a provocação
-da _beiça_ e outros elementos que a ignorancia gera.
-
-Quando _vocellencias_ passavam, a gente,—emfim, por delicadeza: Maria vae
-com as outras—sorria e cortejava; mas cá dentro, no escaninho da nossa
-razão, onde, á noite, guardamos a gravata e o Senso commum, appareciam
-logo, nitidas e causticas, estas palavras:
-
- =Que sucia de pataratas!=
-
- * * * * *
-
-Quando cahiu o partido regenerador, os progressistas promoveram egual
-_borga_ por essas ruas; quando, ha mezes, se realisaram as eleições, P.
-Alexandre atordoou os ouvidos da humanidade com bombas de dynamite.
-
-Toda a gente se riu das _gaitadas_ especiaes que tiveram os Srs.
-Agostinho, Dr. Ladislau e outros senhores evidentemente progressistas.
-No coice da procissão, lá iam os nossos paradas-velhas, muito lepidos e
-repontantes, nariz no ar, chinela rota e fralda de fóra.
-
-Toda a gente se riu dos foguetes do Alexandre e, até, no cerebro
-de alguem, fuzilaram, como relampagos, vividos clarões de suspeitas
-exquisitas...
-
-_Vocellencias_ apepinaram o caso, como eu apepinei, porque, emfim,
-Valença não é o mesmo que Urgeira, Cerdal ou Gandra (salvo o devido
-respeito a Montes Claros e ao Patriarcha).
-
-Passam os annos, e quando eu suppunha que na mioleira de _vocellencias_
-existia algo differente do que se suspeitou no cerebro alexandrino,
-saltam _vocellencias_ para a rua, transformando Valença no Pandemonium de
-Milton!
-
-Esses espectaculos são frequentes nos grandes centros. Organizam-se
-os cortejos nos bairros immundos, onde o _real d’agua_ obtem maior
-rendimento; onde o Rosa Araujo gasta seis contos na compra de votos; onde
-o Sentieiro e o Cagaçal conservam fechada e vigiada, durante os tres dias
-anteriores á eleição, a turba ignara dos cidadãos (?) votantes.
-
-Quando a onda da escoria se alastra pelas ruas centraes, ninguem que
-possue senso, deixa de encarar com verdadeira repugnancia a babugem do
-servilismo e da estupidez.
-
-Quem promoveu e planeou essa arruaça de 14? A Politica _pataqueira_
-que nas provincias provoca odios de familias, instiga resentimentos,
-prejudica interesses, origina represalias, prepara transferencias,
-requer perseguições judiciaes—emquanto que os candidatos protegidos e
-combatidos riem á mesa do Matta, commentando, em tom faceto, as parvas
-pretensões dos parvos magnates do circulo.
-
-Foi essa _coisa_ amanhada com a Ignorancia e com a Velhacaria que, ha
-annos, aqui inaugurou o regime das perseguições e das represalias—regime
-que ao carrejão d’hontem, hoje feito _trunfo_—concede a faculdade
-de exigir a transferencia d’um Juiz, se tal idea surgir nas torvas
-especulações da sua gafada orientação politica.
-
-Ha pouco tempo, censuravamos com phrases de verdadeira e justissima
-indignação, a transferencia d’um funccionario publico, que lucta com
-difficuldades para sustentar numerosa familia. Lá foi o desgraçado para
-_cascos de rolhas_.
-
-Existe, ainda, em nosso espirito o nojo que inspirou esse _processo de
-nullidade_ tentado contra a nomeação d’um professor, por uma corporação
-tão zelosa pela instrucção popular, que conserva fechada =ha cinco mezes=
-a unica eschola que temos para o sexo feminino!
-
-Tudo isso se classificou como indigno, como torpe, como vil.
-
-Mudam as situações; mudam as cabeças e cá temos as represalias—essas
-infamissimas represalias—annunciando, pela bocca dos bigorrilhas
-politiqueiros, novas transferencias e novas villanias para _saldo de
-contas_!
-
-Os homens da actual Politica andam açodados em mysteriosas (?)
-combinações; escoam-se nas sombras da noite, pelos becos e travessas
-que conduzem ao centro (!?!); segredam, cochicham, mostram cartas e
-telegrammas; sorriem, piscam os olhos, ostentando parvoamente á luz do
-dia as multiplices transformações d’esse implacavel Ridiculo que os
-envolve, quando a gente se lembra que são os mesmos homens do sr. Serpa e
-que todos elles, de pernas para o ar, não deitam uma duzia de votos!
-
-Em todo esse afan, em todas essas mysteriosas combinações, em todo esse
-serzir de esfarrapados planos, imagina V. Ex.ª, querido leitor, que se
-tratou alguma vez de melhorar as condições materiaes do concelho, de
-ampliar as suas instituições, ou reorganizar a sua administração? Nem uma
-palavra a tal respeito!
-
-Estudam-se, combinam-se, discutem-se _unicamente_ os meios de obter
-as transferencias de Fulanos e de Cicranos, como medida _inadiavel e
-urgentissima_. Nas horas vagas d’essas nojentas lucubrações, raspam-se as
-picheis e lavam-se as gamellas para a proxima bambochata eleitoral.
-
-Ah Saltamontes e Grices dos dois partidos! Muito dinheiro podia ganhar
-quem vos apresentasse no Colyseu!
-
-A Physiologia demonstra a hereditariedade dos defeitos organicos. A
-Politica d’esta terra é nojenta e a _manifestação_ de 14, como producto
-d’essa Politica, apresentou-se com todos os vicios da origem.
-
-Portanto, concluo, repetindo: essa _manifestação_, como patriotica ou
-como politica,
-
- foi =aviltante= para Valença.
-
- * * * * *
-
-=Nota final:=
-
-O principal heroe da _rusga_ foi um abbade. Chapéo de fadista, casaco
-de pelles, nariz de furão, ponta de cigarro na orelha—razoavel exemplar
-d’esse typo muito vulgar pelo Alto Minho:—_o capador de porcos_.
-
-Resolvo rifal-o. Bilhetes a pataco, que desde já estão á venda no
-_estabelecimento_ do compadre Pedro.
-
-Lembro a V. Ex.ª, querido leitor, que é tempo de semear as ervilhas e
-convém
-
- afugentar os pardaes.
-
-Valença 20-1-90.
-
-
-
-
-XVII
-
-A Sociedade dos Provareis
-
-(FRAGMENTO DA HISTORIA GREGA)
-
-
-Como actualmente predomina nos espiritos illustrados uma tendencia
-absoluta para a analyse e para a investigação, parece-me que não serão
-aqui mal cabidas as seguintes linhas, que esclarecem, com os informes de
-um historiador classico, o periodo, indubitavelmente mais interessante e
-curioso, da civilização grega—o seculo de Pericles.
-
-Na Litteratura e nas Artes estuda-se tenazmente o Passado, arrancando-se
-das trevas da tradição e das brumas da lenda, as producções maravilhosas
-dos grandes genios e os elementos constitutivos das grandes sociedades.
-
-Recompõe-se a organização social da velha India; analysam-se os factores
-principaes d’essa assombrosa civilização hellenica e os do immenso
-poderio da antiga e soberba Roma; acompanham-se os Carthaginezes e os
-Phenicios nas suas audaciosas correrias; reproduzem-se as maravilhas da
-Arte arabe e investigam-se pacientemente as Sciencias, n’esse glorioso
-periodo dos Omniadas, que tão brilhantes vestigios deixaram da sua
-dominação na Peninsula iberica.
-
-Assim, tudo o que actualmente póde representar para o homem illustrado,
-uma reliquia dos povos e das civilizações antigas—um livro, um
-pergaminho, um papyro, uma inscripção cuneiforme, um hieroglypho, uma
-lasca de silex, um fragmento de bronze, o dente d’um mastodonte, o
-coccyx d’um almoravide, o vomer d’um Ramsés, a tibia d’um khalifa—tem
-o mesmo valor, n’este culto pela Tradição, n’esta religião do Passado,
-que para o beaterio póde ter um ossinho de S. Francisco, um cabellinho
-da venta de S. Pancracio, ou uma unha das onze mil Virgens, que ainda
-hoje, nos grandes estabelecimentos commerciaes de reliquias sagradas e
-preventivas contra bexigas, massadores e outras coisas más, obtem elevado
-preço, apesar da enorme edição que se espalhou no mercado:—duzentos mil
-exemplares!
-
-Nas Academias, nas Sociedades de Geographia, de Anthropologia, de
-Geologia, de Linguistica, de Numismatica, e congeneres, fundadas em todas
-as capitaes e centros civilizados, já com o auxilio dos governos, já pela
-iniciativa particular, organiza-se e apresenta-se ao exame do publico
-uma verdadeira exposição retrospectiva da actividade e da intelligencia
-do homem, desde as primeiras manifestações da sua vitalidade no globo
-terraqueo, até aos nossos dias.
-
-Claro é que Valença não podia ficar indifferente a esta nova orientação
-dos espiritos cultos; e até, primeiro que n’outras terras, aqui
-rapidamente se desenvolveu o gosto pelas antiguidades, o culto ás coisas
-passadas, que o povo, na sua linguagem rude, pittorescamente classifica
-como: _mania_ de cacos velhos.
-
-Ha por ahi muitas collecções e muitos colleccionadores:
-
- * * * * *
-
-Teias de aranha, microbios, tarecos velhos e empregos, collecciona o sr.
-Sampaio. O sr. Agostinho, partidos politicos e casacophones; chinós, ovos
-de passarada e instrumentos de vento, o sr. Abel Seixas; o sr. Zagallo,
-caixas de phosphoros, officios de despedida ao Senado e santinhos;
-sermões gallegos e patacaria de D. João VI, a Assemblea; o Club, homens
-pacatos da rua de S. João; commendas e pergaminhos, o sr. Verissimo de
-Moraes; o sr. Leopoldo, machados de bronze, volumes do _Almocreve das
-petas_ e coisas das edades paleolithica e neolithica; o sr. Palhares
-collecciona moleques, macaquinhos empalhados e uma raça maldicta de
-papagaios, que o diabo inventou, para estoirar a membrana do tympano á
-desgraçada humanidade.
-
-O Albininho collecciona tudo e é um colleccionador precioso, porque
-commenta; preparando, assim, inexgotavel thesoiro para as investigações
-historicas dos posteros.
-
-Conserva cuidadosamente ordenadas por dia, mez, anno e seculo, atadas com
-fitinha de seda verde, azul, ou branca, conforme o signatario, todas as
-cartas que tem recebido, desde que traduz lettra redonda. Cada missiva
-mostra, no verso, uma nota explicativa:
-
- =14 de Outubro de 1876 (e seis)=
- Fulano de tal.
- Valença do Minho.
-
-(Pede-me _sete e vinte_ emprestados. Desculpei-me, porque anda n’um
-_desarranjo completo e, qualquer dia, vae de bruços_.)
-
- * * * * *
-
- =5 de Fevereiro de 1869 (e nove)=
- F. ou C. de tal.[41]
-
-(Pede dez tostões—Ficam-me agora a doze e cinco... Preciso de me
-desforrar.)
-
- * * * * *
-
- =4 de Maio de 1875 (e cinco)=
-
-Officio da Camara, convidando para a procissão de Corpus-Christi.
-
-(Agradeci tão _graduada_ prova de _consideração official_. Estes, não
-são como os da missa do Rei. Compareci, vestindo pela trigesima sexta
-vez a minha casaca n.º 3. Chapeo alto n.º 7, do Roxo—Lisboa—(3$570 com
-correio). Sapatos de polimento n.º 4 (5.ª prateleira, 2.ª estante, á
-direita). Gravata do Blanco (12 reales e uma perra chica; setim creme,
-com pintas de prata). Luvas n.º 207, do Baron.
-
-Offereceram-me um logar graduado, ao lado do sr. Joaquim.)
-
- * * * * *
-
-Eu tambem tenho a mania de colleccionador. É uma coisa que não fica mal;
-é da Moda e até dá um certo tom distincto.
-
-Collecciono alfarrabios, cartas de arrhas, cartapacios, papyros,
-foraes—toda essa papelada, que por ahi apparece furada pela traça,
-encarquilhada pelo tempo e com a côr que teriam os rostos d’aquelles
-esforçados campeões da Guia, quando batiam em retirada, acossados pelo
-gentio gallego.
-
-Esta mania fez com que, ha mezes, descobrisse uma verdadeira
-preciosidade, no bazar de antiguidades do sr. Maia.
-
-Imaginem V. Ex.ᵃˢ o meu contentamento quando alli encontrei, entre
-taboadas e cartilhas, rolhas e torneiras, piões de _faniqueira grande_ e
-ditos para _nicas_—um volume authentico, genuino, verdadeiro, do grande e
-immortal Plutarcho!
-
-Tremi de commoção e de respeito com tão veneranda reliquia!
-
-Li-o, reli-o e quasi treslia com elle.
-
-Referia-se ao seculo do glorioso Pericles, áquelle aureo periodo da
-civilização de Athenas e, entre as suas paginas, fui encontrar—gratissima
-surpresa!—os elementos que, com verdadeiro afan, ha muito tempo
-procurava, para estabelecer as bases da historia d’essa mysteriosa
-agremiação a que Pericles presidia, e que tão poderosamente influiu no
-engrandecimento do povo hellenico:—a _Sociedade dos Provareis_.
-
-Conhecendo o interesse que em Valença teem despertado os estudos, que
-outros auctores apresentaram, sobre esta curiosa parte da Historia
-antiga, offereço tambem o meu modesto subsidio, vertendo para a nossa
-lingua alguns periodos de Plutarcho, visto que por ahi são escassamente
-conhecidos os caracteres gregos.
-
-Para os menos versados na Historia hellenica acompanharei a traducção com
-notas explicativas.
-
-Fala Plutarcho:
-
-
-Os Provareis
-
-«N’essa epocha (465 A. de C.) era Pericles o chefe do partido popular,
-que se intitulára o partido regenerador dos costumes, pervertidos
-durante a supremacia de Cimon Narigangorum e dos aristocratas, chamados
-progressistas.
-
-Pericles era homem de compleição robusta, largo arcaboiço, avantajado
-de estatura; perspicaz, de razão escorreita, assaz prudente, sobrio de
-costumes e de variadissima erudição, graças á influencia de Zenão d’Elea,
-que fôra seu preceptor.
-
-Apesar de não ser archonte, ou stratego[42], porque apenas tinha as
-honras de polemarcho, impoz-se rapidamente á consideração do Archontado,
-ao respeito do Areopago e ás boas graças do Eponymo Lourdes Domina.
-
-A agudeza do seu espirito, o vasto alcance das suas ideas, a subtileza
-da sua estrategia e a finura da sua diplomacia, alcançaram-lhe logo no
-começo da sua interferencia no Governo... da cidade, o epitheto de
-Olympico, ou Oraculus, com que o povo geralmente o nomeava.
-
-Rodeara-se Pericles de homens illustres e poderosos, que a seu talante
-dirigia, para combater o grupo, ainda predominante na politica,
-dos partidarios de Cimon Narigangorum e do seu parente Thucydides
-Attila—grupo que constituia o principal elemento do partido dos
-eupatridas, ou progressistas, e que, por todos os meios, tentava
-condemnar ao ostracismo[43] e desluzir, com protervias e calumnias, o
-valente caudilho dos contrarios.
-
-Apesar do seu engenho e do seu valor, nem sempre lhe foi favoravel a
-sorte das armas. Nas luctas com esses inimigos, graves desgostos soffreu,
-que profunda e dolorosamente abalaram o seu espirito e o seu esforçado
-animo. Ainda hoje a Historia nos menciona a derrota de Deputarium, no
-ultimo dia da segunda decada do decimo mez, e o desbarate da Camária, no
-terceiro dia—da primeira decada, do mez undecimo[44], do mesmo anno da
-olympiada tal—em que as tropas de Pericles abandonaram armas e bagagens,
-deante do grande Narigangorum II, ex-rei da Administracónia e do
-seu parente Thucydides Attila, bojudo stratego e chefe dos _registricos_,
-povo contribuinte dos suburbios de Athenas, que usava das celebres
-_camisas de onze váras_[45] e que, por essa circumstancia, era tratado
-com toda a _consideração official_, pela gente _graduada_.
-
-Tivera, tambem, de valer-se de toda a sua diplomacia e arte para empalmar
-o pennacho, (que nos strategos do partido era distinctivo de commando) ao
-archonte Judex Candidatus, homem de pequena estatura, mas de respeitavel
-influencia, emquanto Pericles lhe não surripiou, por occultos meios, o
-apoio e a correligionariedade do poderoso Joannus Zabumborum, sabio de
-reputado merito e de grande consideração popular.
-
-Quando Pericles principiou a exercer a sua direcção politica,
-libertava-se Athenas, vagarosamente, da inercia em que até alli se
-conservara, e apurava, pouco a pouco, os seus usos e costumes; mas homens
-de tão superior talento, como elle, raras pessoas encontravam, na cidade,
-com quem podessem conviver intimamente.
-
-Escasseava a illustração; o povo não tinha consciencia dos seus direitos
-politicos. Entre os prytamos[46] da cidade e, mesmo, entre os sacerdotes
-de Zeus suscitavam-se, a miudo, questões violentas; em que do argumento
-se passava á aggressão, recorrendo-se a todas as armas, incluindo as do
-_apparelho roedor_.
-
-Dava-se pouca consideração ás auctoridades encarregadas do Governo
-da... cidade; censuravam-se as gratificações, que lhes eram arbitradas
-em occasiões de perigo, como guerras e _epidemias_; reduziam-se _as
-vias_... do accesso aos grandes strategos; preparava-se, occultamente, a
-_transferencia_... ao ostracismo para os leaes conselheiros; increpava-se
-officialmente, escandalosamente, a _admissão_ nas dependencias do
-Governo... da cidade aos adeptos do partido popular, e nem o proprio
-Pericles escapava á maledicencia da turba porque, surdamente, o povo, e
-até, a maior parte dos seus adeptos e cortezãos o accusavam de ambicioso,
-invejando-lhe os redditos, discutindo-lhe a rapidez e legalidade do
-accesso... á chefia do partido, amesquinhando a sua illustração e
-refutando a sua competencia na vasta Sciencia da lettra redonda.
-
-Muitos dos homens illustres, que o rodeavam, soffreram as consequencias
-d’essa contumaz opposição e implacavel vindicta.
-
-Phidias Cambronneia[47] Negoptius foi retirado do Governo... da cidade;
-Anaxagoras Mata Marianus foi deportado.
-
-Abstinha-se, pois, Pericles de apparecer em publico e entretinha escassas
-relações, já porque a nobreza da sua jerarchia o distanciava dos
-thetas[48] e da plebe, já porque o intimo conhecimento do seu merito e
-da sua importancia lhe aquilatavam de mesquinhos e ridiculos os demais
-proceres do Estado.
-
-Foi perante esta necessidade de se isolar, e para reforçar os elementos
-de resistencia aos rudes ataques dos seus inimigos, que elle fundou a
-Sociedade, que mais tarde o povo denominou: os _Provareis_.
-
-Com esse grupo de fieis adeptos praticava, então, largas horas em
-passeio, conferenciando demoradamente; e quando o povo folgava nos
-jogos olympicos, ou pythicos, se acotovellava no Odeon para ouvir as
-maravilhosas producções de Eschylo e de Sophocles, ou nos jardins
-publicos para se deliciar com os harmoniosos sons das magadias, cytharas,
-lyras e flautas, que compunham as orchestras d’aquelles tempos, não era
-raro o vêr-se ao longe, no _cabeço d’um oiteiro_, o grupo magestoso dos
-_Provareis_, que solemnes, graves, com movimentos vagarosos e isochronos,
-rodeavam o grande Pericles, ouvindo-o divagar philosophicamente sobre
-a miseria das coisas humanas, sobre a leviandade das gentes e sobre a
-ignorancia da ignorante humanidade!
-
-No tocante a competencia, Pericles Oraculus reunia todos os dotes
-necessarios a um completo homem de Estado. Provera-o a Natureza de
-extraordinaria actividade e de genio inventivo para todos os ramos da
-publica administração.
-
-Era copiosamente versado nas leis de Lycurgo, de Solon, de Pisistrato
-e de Lippes, tendo particular predilecção por este ultimo legislador,
-cujos regulamentos, que a plebe classificava de estupidos, a todo o
-transe defendia, como indispensaveis á conservação da cidade e dos...
-seus redditos[49].
-
-Possuia, já, noções muito positivas sobre a futura Sciencia da Economia
-politica. Considerando a Agricultura como fonte principal da riqueza d’um
-paiz, tomara a si o desenvolvel-a, dedicando-lhe particular attenção e
-cuidado.
-
-Por isso, quando com o grupo de fieis partidarios divagava pelos
-arrabaldes de Athenas, vizitava a miudo os grandes eupatridas[50]
-e, para obter noções perfeitas sobre a producção dos terrenos,
-influencia atmospherica e outras condições modificadoras, inspeccionava
-cuidadosamente as colheitas, examinava os fructos e provava... _as aguas_.
-
-O povo, sempre rude e sempre ignorante, d’essas _provas_ a que aquelles
-homens illustres frequentemente se entregavam (mormente nas tardes do
-verão) para interesse da Patria e da Agricultura que nada é, como se
-sabe, sem abundantes mananciaes que refresquem o solo e possam alimentar
-a planta—originou o titulo de _Sociedade dos Provareis_, com que,
-d’alli em deante, designava o grupo de Pericles e seus adeptos, quando
-lá ao longe, entre os atalhos das aldeias, via uma serie de pontos
-negros caminhando vagarosamente, ora para o norte, ora para o sul,
-como previamente o indicara a provavel condescendencia ou a natural
-liberalidade dos eupatridas amigos e partidarios.
-
-Pericles era tambem escriptor emerito e actor de talento. A fama das suas
-producções chega, ainda, até nós.
-
-Todos conhecem a _Prisão da Santa_, a _Licença Zagallica Muzical_ e a
-_Batalha dos Cooperativos_—comedias de fino enredo, astucioso desenlace e
-primorosa concepção.
-
-Nas horas de descanço que lhe permittia a faina da administração
-politica, ensaiava Pericles os seus adeptos _Provareis_ que depois, em
-conjuncção propria e solemne, apresentava em publico, dirigindo-os mui
-circumspectamente por detraz da cortina e colhendo applausos em barda.
-
-A comedia que obteve mais exito foi a _Prisão da Santa_. Fundava-se n’uma
-antiga lenda mencionada no Rig-Veda, dos hindus. Era o caso da prisão de
-Brahma, ao entrar n’uma velha fortaleza, contra as disposições do codigo
-de Manu, e levada depois pelos kshatrias[51] ao carcere, onde jaziam os
-infimos sudras[52].
-
-Este pueril e comico incidente, baseado n’uma simples questão de _bufo_,
-ou sopro, forneceu a Pericles recursos para ruidosamente explorar a
-estupidez das massas e o fanatismo do povo, que estrebuchava com
-arrancos de colera, quando via o feroz Attila.
-
-Como já n’essa epocha eu trabalhava para reunir materiaes, com que
-podesse encetar os projectados estudos sobre a Historia da minha
-Patria, grandes eram os desejos que nutria de poder assistir a alguma
-das reuniões d’aquelles homens illustres onde, indubitavelmente, com a
-lucidez de tão poderosos cerebros se deviam discutir os destinos e a
-Politica da confederação athenico-cerveirensis.
-
-Pude emfim conseguil-o, subornando os dmoes[53] do sacerdote Pinus
-Abbates que, mediante vinte talentos[54], consentiram em me occultar na
-adega d’uma propriedade, a doze stadios[55] ao sul de Athenas onde, como
-sitio retirado e fresco, de preferencia se reuniam os _Provareis_.
-
-Alli os ouvi; alli tive, a meio passo de distancia, todos esses
-homens illustres, que tão poderosamente tinham contribuido para o
-engrandecimento de Athenas e para a sua hegemonia na confederação.
-
-Era uma tarde calmosa; reunidos no escuro subterraneo, os _Provareis_
-mais uma vez estudaram as _aguas_ com abundantes e saboreadas libações.
-Por largo tempo ouvi um craquejar de maxillas e um glugluar de pharynges,
-indicios terriveis d’essas assombrosas devastações, que depois
-inspiravam aos servos e dmoes do Abbates estas dolorosas palavras:
-
-—_É impossivel que nas altas horas da noite, quando a pallida Phebe desce
-a visitar Endymion, Hades, o deus infernal, não mande a estas paragens
-uma praga de gafanhotos! Que prejuizo soffreram as nossas colheitas,
-grande Zeus!_
-
-Concluidas as _provas_, ergueu Pericles a fronte; poz o pennacho de
-pennas de capão, insignia de polemarcho; afivelou a catana e as esporas;
-limpou os galões brancos e, trepando a um escabello, annunciou com ar
-solemne o thema da sua conferencia:
-
- UM PROBLEMA POLITICO DA FUTURA ERA DE CHRISTO,
- SECULO XIX
-
- Amigos e Provareis[56].
-
-É commettimento facil para espiritos medianamente esclarecidos a
-resolução de problemas na Politica contemporanea. Estudando os elementos
-ethnologicos, a influencia das civilizações estranhas, as aspirações
-collectivas e as relações indestructiveis da Historia nos cyclos que as
-suas leis estabelecem, podemos fatalmente traçar a orientação a que os
-povos teem de obedecer.
-
-Abandonarei esse campo já explorado pelo vulgo e pelos espiritos d’uma
-illustração comesinha. Asphyxia o meu intellecto nos acanhados horisontes
-do Presente. Anceia o meu espirito pelas luminosas regiões do Futuro, na
-lidima aspiração d’uma visualidade perscrutadora do destino dos povos e
-da evolução das sociedades.
-
-Rasgar as trevas do porvir, prever as luctas e as contrariedades, guiar
-a incauta Humanidade nas tortuosas sendas a que o Destino a condemna,
-leval-a pela mão á beira dos abysmos para lhe bradar carinhosamente:
-_não vás além!_—é a missão que a Divindade traçou ao Genio, a isto de
-superior, de maravilhoso, de prophetico, que me distingue do vulgo, que
-me aparta da plebe, e que dá á minha individualidade, no meio d’este
-constante marulhar das paixões e da ignorancia humanas, a previdente
-luz do fanal que, entre escolhos e baixios, guia o amargurado nauta nas
-cerradas trevas de noite caliginosa.
-
-Transpondo um periodo de dois mil e quatrocentos annos no futuro da
-Humanidade, eu vou annunciar os perigos amontoados no horisonte dos povos
-que no seculo XIX d’uma nova era hão de occupar as ignotas regiões,
-que um grande mar banha e onde os phenicios já estabeleceram dominio e
-poderio.
-
-Phantasiae, amigos, que viveis commigo n’uma peninsula que, por occulta,
-o phenicio denominou Spania, e que me ouvis discreteando com os homens
-politicos d’esse futuro seculo:
-
-_Aconselho a alliança das raças latinas. O horisonte da Europa annuncia
-borrasca._
-
-_Ha negrumes para o Norte. Não receeis o teutonico; temei o slavo! Haja
-outro Metternich para esse inimigo commum._
-
-_Bismarck é um imbecil. Com a sua germanisação fez-se testamenteiro de
-Frederico, o Grande. Crispi é um visionario. Salisbury um bebedo. Sagasta
-uma nullidade. Zé Luciano um comparsa._
-
-_Na Politica internacional o melhor systema é o de Machiavel. Tenho-me
-dado bem com elle e não quero outro._
-
-_Quando, na conferencia de Berlim, me pediram conselho, disse e repeti:
-vocês reparem no russo!_
-
-_N’essas regiões do Norte a maré sobe e, qualquer dia, rompem-se os
-diques._
-
-_Teremos novas invasões. É a lei fatal da Historia: sangue novo para
-corpo velho._
-
-_Acautelem-se, porém, com o processo da inoculação; o russo é feroz._
-
-_Latinos, teutonicos, toca a reunir!_
-
-_Bismarck, deixe essas coisas d’Africa; você tem um certo fio para isto
-de Politica, mas ainda está um pouco ingenuo. Appareça lá por casa, ás
-noites, com o seu rapaz, com o Herbert. Jogaremos a bisca de tres e terei
-occasião de lhes dar umas noções politico-sociaes mais amplas._
-
-_Emin Pacha cahiu na ratoeira de Stanley. Já quebrou a cabeça com uma
-tremenda borracheira. É o resultado das más companhias. Soffre as
-consequencias da indifferença com que ouviu as minhas recommendações._
-
-_Recebi hoje carta do general Deodoro. Eu tinha vaticinado a
-transformação politica do Brazil. No organismo monarchico apodreceu mais
-aquelle membro. Cortem até ao osso para que o mal não avance._
-
-_Isto por cá, vae mal. D. Carlos escreveu-me. O rapaz anda atrapalhadote.
-A Mãe telegraphou pedindo-me para lhes ir valer. Não estou para os
-aturar._
-
-_Preferiram o Barjona para a missão de Londres. Antes de partir
-procurou-me e conferenciamos. É dos nossos e deve-se proteger._
-
-_A caracteristica evidente d’esta assombrosa phase da evolução social._
-
-..............................
-
-Subito ruido interrompeu o discurso do grande homem. A porta da adega
-abriu-se com estrepito. Assustados, os _Provareis_ rodearam Pericles,
-como as avesinhas implumes rodeiam os paes, quando no azul dos céos
-paira, ou zigzagueia o milhafre.
-
-No limiar apparecera, offegante e rubro, um paysanduco, que pronunciou
-estas palavras de magico effeito:
-
-—_Oh filhos! Venho de Tuy. A Noya «matou» hoje, e sempre tem uma «agua»,
-que é mesmo de chupeta! Póde «cortar-se» á faca._
-
- —=Á Noya! Á Noya!=
-
-exclamaram os _Provareis_; e em desordenada carreira, a grandes pernadas,
-desappareceram ao longe, furando a linha circular do horisonte.
-
-Que mysteriosa influencia seria a d’aquella Noya?
-
-..............................
-
-
-
-
-XVIII
-
-Uma recita de curiosos
-
-(FRAGMENTO)
-
-
-..............................
-
-Passou-se ao segundo acto.
-
-O panno subiu, e á luz da ribalta appareceu o Nascimento.
-
-Nascimento—diga-se a verdade—não é precisamente um Brazão.
-
-Tenho assistido, por vezes, aos trabalhos d’este actor. Brazão ri, chora,
-soluça, tem arrancos de colera, tem na voz a doçura d’uma supplica, a
-suavidade d’uma prece, a meiguice d’um carinho, o vigor d’uma maldicção,
-o rugido d’uma ameaça.
-
-A melancholia da saudade, as expansões do amor, as torturas do remorso,
-as angustias do ciume resaltam nitidas, vibrantes, envolvendo-nos a
-alma—comprimindo-a, dilatando-a—com o fluido subtil de uma verdadeira
-interpretação artistica.
-
-Por _doze vintens_, eu tenho visto o Nascimento fulgurando na gloriosa
-constellação—grande Ursa dos nossos céos artisticos—de que fazem parte:
-Sampaio, Guilherme, Aurelio, Romano, Machado, Ernesto.
-
-Com franqueza:—sem querer irritar a indisposição que no espirito do
-Nascimento violentamente se denunciou contra o Zinão, sem querer
-amesquinhar o culto idolatrado que elle nutre pela Arte dramatica, ou
-apoucar as suas aptidões—direi em homenagem á Verdade: Nascimento é um
-barbaro!
-
-É um barbaro quando pisa o palco, porque não tem naturalidade, nem
-expressão, nem relevo.
-
-Apresenta-se em todas as scenas com o mesmo fato amarello, de tecido
-africano, que o Isidoro lhe empresta; tem para todas as surprezas o mesmo
-=oh!=; para todas as dores o mesmo: =ai Jesus!=; para todas as saudações
-o mesmo: =ora viva!=; para todos os cumprimentos o mesmo: =Comoestá?
-Passoubem? Bemmuitoobrigado.=
-
-Os pés soldam-se-lhe ao pavimento: as peças das articulações unificam-se,
-como se as membranas synoviaes segregassem chumbo derretido; os musculos
-tomam a rigidez do aço, permanecendo hirtos, inteiriços, refractarios ao
-imperio da vontade e á malleabilidade dos sentimentos.
-
-Não tem flexibilidade nos movimentos, nem elasticidade nas formas
-que as diversas situações exigem, porque uma barreira de frieza e de
-immobilidade—quiçá composto de espessas cellulas philosophicas (?)—se
-oppõe á intima e immediata transmissão dos phenomenos psychicos aos
-orgãos e ramificações do systema nervoso.
-
-Predominam em todas as modulações da sua voz aquellas notas seccas,
-asperas, do: =Carregar! Alto!=
-
-Denuncia-se em todas as posições a rigidez d’aquella linha d’uma
-convexidade opisthotonica, que a _Ordenança_ militar traça para o
-=Perfilar=!
-
-E assim, Nascimento, como _Boticario_ da _Morgadinha_, como _carcereiro_
-de 1640, ou como _Mano Gaspar_ do _Mano Aniceto_—é sempre o mesmo
-Nascimento: gordinho, obeso, rechonchudo, espartilhado, vestido de
-_mabella_ africana.
-
-Todavia, estudando as minuciosidades dos seus trabalhos dramaticos,
-analysando a mechanica dos seus movimentos, comparando a dynamica
-dos sentimentos que elle tenta exprimir com as manifestações da sua
-vitalidade no convivio diario e com os actos exteriores da sua existencia
-social, eu chego á seguinte conclusão que poderá ser considerada como
-paradoxal: Nascimento, no desempenho dos seus _papeis_, na interpretação
-d’um caracter, na reproducção d’um _typo_, consome mais Sentimento do
-que o Brazão. O seu trabalho psychico é superior ao d’aquelle artista;
-na sua alma as situações definem-se, as individualidades esclarecem-se,
-as faculdades actuam. Nascimento pensa, sente e quer, como _Boticario_
-de Val d’Amores; mas o que não possue é esse colorido, ou—por assim
-dizer—essa moldura artistica que dá relevo ás interpretações e vida aos
-personagens.
-
-E como a sensibilidade affectiva é um requisito indispensavel ao actor,
-e talvez o mais essencial, porque é ella que o guia nos reconditos
-escaninhos da alma de Hamlet, Nascimento, que possue essa faculdade em
-superior grau, tem direito a ser considerado a par de Brazão, dos Rosas,
-e até, ao lado de Lekain, de Kean, de Rossi, de Irving, de Kronsweg.
-
-Vou demonstrar a existencia d’essa sensibilidade apuradissima no
-_Boticario_ da _Morgadinha_.
-
- * * * * *
-
-Nascimento tem um sanctuario:—a sua officina.
-
-Alli passa as noites e os dias, com a blusa de operario,—aplainando
-madeiras, envernizando quadros, esquadrando molduras, curando a _telha_
-dos relogios, deitando _gatos_ em terrinas quebradas, endireitando a
-_espinhela_ a leques, brocando pulseiras, parafusando engrenagens,
-limando metaes, furando boquilhas, cinzelando coronhas, soldando _rabos_
-de colheres, aguçando pinos, collando cacos, cosendo botões, deitando
-_pingos_ em panellas, enfiando agulhas, inventando flores exoticas de
-_couvelórinton_, preparando pilhas, misturando acidos, bases, metaes,
-metalloides, oxydos, protoxydos, bioxydos, azotatos, azotitos, chloratos,
-chloretos, chloritos, etc., etc.
-
-Nas horas de descanço que as suas occupações lhe permittem, sente-se
-feliz com as multiplices e encyclopedicas applicações da sua actividade
-e do seu engenho; consome, pacientemente, sessenta e quatro horas com
-o encaixe d’uma insignificante peça de metal para a sua locomovel
-microscopica; aplaina e replaina o _empeno_ d’uma taboa para a sua
-mobilia; gasta uma noite, duas noites, trez noites com o estudo analytico
-da reacção d’um acido sobre uma base.
-
-Com a applicação d’uma lei chimica, no desenvolvimento d’uma formula
-mechanica, na adaptação d’uma propriedade physica, Nascimento concentra
-todo o seu ser, toda a sua actividade mental, abandonando as distracções,
-os prazeres, e esquecendo-se até, das horas das refeições.
-
-No seu cerebro amontoam-se os projectos, chocam-se as theorias,
-amalgamam-se as applicações.
-
-Tem o arrojo de Lesseps, a tenacidade de Edison, a phantasia de Eiffel.
-
-A sua alma, o seu corpo, os seus orgãos, os seus musculos, estão alli:—no
-torno, na serra, no serrote, no brocador, no pichel da colla, no arame
-dos _gatos_.
-
-O seu engenho tem o quer que seja de epileptico: ataca trinta emprezas ao
-mesmo tempo: mobilias, machinas photographicas, installações electricas,
-bobinas, telegraphos, telephones, phonographos, campainhas de alarme,
-etc., etc.
-
-Vencidas as difficuldades, contornadas, cortadas e limadas as peças, nova
-explosão de inadiaveis projectos interrompe a conclusão dos antecedentes;
-e assim, Nascimento, fazendo tudo, nada faz, porque a epilepsia do
-engenho dá ás suas obras a incommensurabilidade do Infinito: todas
-tiveram principio e nenhuma tem fim.
-
-Como se pode explicar, pois, que, annunciada uma recita de _Santo
-Antonio_, ou da _Morgadinha_, este homem abandone immediatamente o seu
-_meio_, o seu sanctuario e enthusiasticamente se venha offerecer para
-desempenhar o _papel_ de _Mano Gaspar_, ou de _Boticario_?
-
-Pela extrema sensibilidade das suas faculdades affectivas.
-
-Nascimento lê o drama, a comedia, ou a scena _comica_; a sua alma
-vibrou, agitou-se com o caracter d’este ou d’aquelle personagem;
-identificou-se com os sentimentos do _galan_, ou do _comico_; e, possuido
-de irresistivel enthusiasmo, abandona a officina, troca o _alicate_ ou
-o _saca-trapos_ pelo caderno almaço e lá vae para as muralhas metter
-na cabeça, em giros constantes—para traz, para deante—os periodos do
-_papel_.
-
-Este enthusiasmo, em qualquer de nós—no Albino, por exemplo, que já
-representou de mulher, nos paysanducos, eximios na Comedia—seria uma
-coisa vulgar, insignificante; mas no Nascimento que nós conhecemos e
-que eu examinei na officina, revela uma enorme tensão de faculdades
-affectivas.
-
-Os trabalhos do Brazão são correctos e são artisticos; mas este
-actor adquiriu já a _physiologia_ dos sentimentos; os seus musculos
-contraem-se, por assim dizer, inconscientemente, independentes do imperio
-da vontade, como nas acções reflexas. Mostra no rosto a agitação d’um mar
-de paixões, quando na alma tem a tranquillidade d’um lago.
-
-Alem d’isso, Brazão tem o scenario de D. Maria; tem o Keil, a luva
-do Baron; o talhe elegante, o perfil distincto, a perna flexivel, o
-bigode loiro, o monoculo—todas essas pequenas coisas que emmolduram e
-aristocratizam o actor.
-
-Nascimento tem o desbotado scenario do nosso theatro, ainda saturado de
-irritantes aromas dos _meios com cebolada_ que, ha annos, o meu amigo S.
-Lima arremessava ás fauces de toda a tribu _pica-calcantes_; tem a roupa
-de _mabella_; a rigidez linear da _Ordenança_ conturbando a flexibilidade
-dos movimentos; a _reacção dos acidos_ paralysando a acção dos nervos
-centrifugos; o _ordinario marche_! pruindo compassadamente na sola dos
-pés e na barriga das pernas...
-
- * * * * *
-
-Examinado pelo prisma da Arte, Nascimento actor é—repito—um barbaro.
-Mas analysado pelo prisma do Sentimento revela-nos uma organisação
-especialissima, que seria a gloria de nossos palcos e da nossa terra, se
-um defeito organico a não prejudicasse.
-
-Nascimento ouve uma valsa de Metra, uma symphonia de Berlioz; ouve
-Rubinstein e Sarasate, a Patti e a Nilsson. Permanece mudo, quedo,
-insensivel.
-
-Tem nas mãos uma flôr mimosa: uma _Captain Christi_ ou _Bertha Mackart_;
-uma _Alba imbricata_ ou _Countess of Derby_; a violeta, o lirio, a
-sensitiva. Os dedos afastam-se e a bella flôr cae abandonada, cerrando as
-petalas...
-
-—_Não gosto de muzica; não gosto de flores_—diz o Nascimento.
-
-Poderemos acreditar na sinceridade d’estas palavras pronunciadas pelo
-homem, em quem os insipidos gracejos do _Mano Aniceto_ exercem tal
-influencia e inspiram tal enthusiasmo que, arrancando-o da sua Thebaida,
-da sua officina, o expõem, vestido de amarello, á extatica contemplação
-dos _loiceiros_?
-
-Não! Nascimento é accessivel á vibratilidade das commoções; os seus
-nervos sensitivos communicam ás cellulas cerebraes toda a intensidade dos
-enthusiasmos, mas o tal defeito organico—um enfraquecimento dos nervos
-centrifugos—oppõe-se á transmissão da força necessaria para a mechanica
-muscular e para a movimentação das situações dramaticas.
-
- * * * * *
-
-Terminou o segundo acto. Tenho de estudar os outros _curiosos_ da
-Companhia; mas ao despedir-me de ti, Nascimento, permitte um conselho:
-abandona o theatro. Trata d’esse enfraquecimento do tecido nervoso.
-
-Com seis mezes de cuidadoso regimen, póde ser que um dia, na apotheose
-das nossas glorias theatraes, como já annuncio:
-
-Sampaio—o Jeremias da Balagota...
-
-possa tambem dizer:
-
-Nascimento—o Irving valenciano.................................
-
- * * * * *
-
-
-NOTA
-
- Nascimento amigo:
-
- Este artigo já estava escripto, quando soube das tuas
- manifestações _anti-zinoicas_. Tem paciencia.
-
- _Quod scripsi, scripsi._ Não vale zangar, porque o _sinapismo_
- que te offereço é proprio para senhoras; nem queima, nem faz
- bolha.
-
- Teu constante admirador
-
- _Zinão_.
-
-
-
-
-XIX
-
-Transferencias
-
-(1886-1890)
-
-
- CODIGO PENAL, artigo 432.º «Roubo:—=subtracção de coisa
- alheia...=»
-
- CODIGO CIVIL, artigo 2167.º: «direito de
- propriedade:—=faculdade que o homem tem de applicar á
- conservação da sua existencia e ao melhoramento da sua condição
- tudo quanto para esse fim legitimamente adquiriu e de que,
- portanto, póde dispor livremente.=»
-
-A lei garante-nos a propriedade dos bens que herdamos, dos bens que
-adquirimos, dos trabalhos litterarios que produzimos, dos inventos que
-lançamos aos mercados, das concessões que obtivemos.
-
-O que é hoje um curso, uma formatura?
-
-Uma propriedade que se adquiriu em troca de valioso capital; que se
-grangeia, que se cultiva, que se aperfeiçoa, para que ella nos forneça os
-recursos necessarios ás despezas da vida.
-
-Quando a razão principia a funccionar, levam-nos ás regiões da Sciencia,
-e dizem-nos: ahi tendes esses hectares de terreno, estão asperos,
-incultos, bravios; ha por ahi cardos, abrolhos, silvados. Trabalhae,
-limpae, nivelae, lavrae, semeae e colhei. Ahi ficam dois contos para
-despezas de grangeio.
-
-No fim de dez ou doze annos temos o terreno apto para a cultura.
-Exgottamos uma boa parte do vigor da mocidade. O cerebro-arado não abriu
-sulcos só na terra; abriu-os tambem na fronte do trabalhador.
-
-Com os fructos da primeira colheita obtemos uma collocação em qualquer
-das instituições do Estado; chamam-nos: Delegado, Conservador, Official
-do Exercito, Medico municipal, Professor, etc., etc.
-
-Se no meio da improba tarefa o desanimo nos assalta, se a força de
-contrariedades imprevistas inutiliza os nossos esforços, e não podemos
-cultivar até ao fim todo o terreno que nos limitaram, contentamo-nos
-com uma pequena leira, esperando que mais tarde, pela persistencia no
-trabalho, a poderemos augmentar e desenvolver. Ficamos, então, aspirantes
-da Alfandega, escripturarios da Fazenda, amanuenses das Camaras, etc.
-
-O Estado dá-nos umas tantas libras por mez e exige-nos: honestidade, seis
-horas de trabalho diario, _direitos de mercê_, habilitações litterarias.
-É um simples contracto commutativo, com todas as garantias de segurança,
-porque uma das _partes_ é o Governo, fiscal da Lei.
-
-No decorrer da vida, circumstancias de natureza varia, sympathias
-pessoaes, assimilação de doutrinas, identidade de aspirações,
-enfeudam-nos a um Ideal, filiam-nos em um partido, aproximam-nos de um
-homem.
-
-Temos a Carta constitucional, a epopéa dos _sete mil e quinhentos_, os
-Codigos eleitoraes,—respiramos n’uma atmosphera serena de tolerancia; é
-legal e correcto o nosso proceder na vida publica e nada temos, portanto,
-que recear com a manifestação liberrima das nossas opiniões politicas.
-
-Succede, porém, que um marau qualquer, sufficientemente villão para
-rojar sem escrupulo, pela lama do servilismo, a sua dignidade de
-cidadão e para extender a consciencia, como um capacho de crina, nas
-soleiras das alfurjas onde pernoitam os politiqueiros,—por estes e por
-aquelles motivos embica com as nossas opiniões, incommoda-se com a
-nossa influencia e resolve em conciliabulo secreto da velhacaria com o
-rancor—promover a nossa transferencia para os Algarves, ou para as ilhas
-de Bijagóz.
-
-Assobia á matilha dos rafeiros eleitoraes, promette um osso aos abbades,
-mostra uma codea aos fraldiqueiros e apresenta-se, com a cainçalha
-atrelada, ao deputado do circulo.
-
-Ao espirito dos deputados—homens geralmente illustrados—repugna sempre
-a cumplicidade em taes infamias; mas perante a dentuça afilada dos
-rafeiros que ameaçam esfarrapar-lhe a candidatura nas proximas eleições,
-a dignidade hesita, vacilla e cede por fim.
-
-D’alli a oito dias, o _Diario do Governo_ annuncia a nossa transferencia
-para o regimento n.º tantos, para a Comarca tal dos Algarves, ou para a
-repartição de Fazenda X da Beira.
-
- * * * * *
-
-Sou casado, tenho tres filhos e sustento uma irman viuva. A transferencia
-obriga-me á venda da mobilia, das loiças, dos _tarecos_; e a urgencia
-d’essa venda deprecia consideravelmente o valor dos objectos.
-
-Primeiro prejuizo.
-
-As condições economicas de minha existencia são perturbadas pelos
-encargos d’um emprestimo de duzentos mil reis, que tenho de contrahir
-para as despezas da viagem, da nova installação, e que um nababo
-qualquer me empresta ao juro de seis por cento, depois de eu satisfazer
-umas pueris formalidades, umas cerimoniosas ninharias que a praxe
-recommenda—como são as assignaturas de dois bons fiadores e respectivas
-consortes, e a escriptura de hypotheca sobre boas propriedades, livres e
-allodiaes.
-
-Cumprido isto, recebo o dinheiro, e com elle, um titulo de eterno feudo
-e dependencia moral, tanto para mim como para meu filhos, ainda que,
-decorridos seis mezes depois de registada a _transacção_, eu me desfaça
-do credor, devolvendo capital e juros com muitos apertos de mão e phrases
-de eterno reconhecimento[57].
-
-Parto para a minha nova collocaçeo; despezas de caminho de ferro,
-transporte de bahus, carros, carroças, nova acquisição de moveis, de
-_tarecos_, etc., etc.; os duzentos mil reis desapparecem.
-
-Voltemos á lei:
-
- CODIGO PENAL, artigo 421.º: «=Aquelle que commetter o crime
- de furto, subtrahindo fraudulentamente uma coisa que lhe não
- pertença, será condemnado:=
-
- =1.º A prisão até seis mezes e multa até um mez, se o valor da
- coisa furtada não exceder a 10$000 reis.=
-
- =2.º A prisão até um anno e multa até dois mezes, se exceder a
- esta quantia, e não fôr superior a 40$000 reis.=
-
- =3.º A prisão correccional até dois annos e multa até seis
- mezes, se exceder a 40$000, e não fôr superior a 100$000 reis.=
-
- =4.º A prisão maior cellular de dois a oito annos, ou, em
- alternativa, a degredo temporario com multa até um anno, em
- ambos os casos, se exceder a 100$000 reis.=
-
-Associemos as idéas.
-
-V. Ex.ª tem aquella quinta em algures. Uma noite, penetram n’ella tres
-ratoneiros, arrombam o espigueiro e levam cinco alqueires de milho. Os
-cães ladram, um creado grita, o regedor acode, os ratoneiros fogem, os
-_cabos_ encontram-nos e a Borralho abre e fecha a cadeia.
-
-—_Como foi? como não foi?_
-
-—_Senhor! Tinhamos fome_...
-
-—_São uns desgraçados_,—diz o advogado de defeza.
-
-—_É preciso garantir o direito de propriedade_,—exclama o sr. Dr.
-Delegado.
-
-—_Trinta dias de cadeia_—conclue o sr. Dr. Juiz.
-
- * * * * *
-
-D’essa mesma quinta, vendeu V. Ex.ª para Monsão vinte pipas de vinho a
-quatro moedas. Vae receber o seu dinheiro—oitenta moedas—e regressa a
-Valença, á noite.
-
-Ao passar na _Tomada de Barros_, um homem com chapeo largo põe-se á
-frente dos cavallos e, de bacamarte em punho, diz ao cocheiro: _Faça
-alto!_
-
-Outro _barbaças_ enfia pelo buraco da portinhola o cano d’um revolver e
-diz: _Venha p’ra cá o bago!_
-
-Apparecem mais tres vultos embuçados e V. Ex.ª ouve aquelle _crac_ secco
-e sinistro de tres bacamartes que se armam.
-
-V. Ex.ª puxa do _Bull-dog_, ou _Abbadie_; o cocheiro aponta um revolver
-enferrujado, ouve-se uma detonação, depois outra; um grito, um rugido,
-uma praga. V. Ex.ª salta do carro, desfecha outra vez, avança, recua,
-tropeça no corpo d’um _barbaças_ que escabuja, perde o equilibrio e cae.
-
-Quando tenta levantar-se, jogam-lhe uma paulada valente, que lhe fractura
-o craneo.
-
-Não sabe do mais que se passou. D’alli a quinze dias principia V. Ex.ª
-a coordenar umas ideas vagas que em rapidos momentos lucidos surgem no
-seu cerebro. Sente-se excessivamente fraco; reconhece que está na cama;
-leva com difficuldade as mãos á cabeça, apalpa, e encontra um turbante de
-pannos humidos e ensanguentados.
-
-Balbucia uma pergunta. Recommendam-lhe silencio, que não faça esforços de
-memoria.
-
-—_Muito socego e muito juizo_, diz o Esculapio.
-
-Tres dias depois, o cerebro associa as idéas.
-
-—_Como foi isto?_—pergunta V. Ex.ª á esposa.
-
-—_Foi d’esta e d’aquella forma._
-
-—_E os homens?_
-
-—_Um morreu; tres estão presos._
-
-—_E o dinheiro?_
-
-—_Roubaram-t’o com o relogio._
-
-
-Epilogo
-
-_Está ou não provado?_ etc., etc.
-
- =dez annos de degredo.=
-
- * * * * *
-
-Ao ratoneiro que, talvez para matar a fome, levou cinco alqueires de
-milho, deu a lei—trinta dias de cadeia. Ao _barbaças_ que arriscando a
-vida, de peito descoberto, roubou o relogio e as oitenta moedas, disse o
-Codigo penal: dez annos de degredo.
-
-Ora, o milho e o dinheiro pertenciam a V. Ex.ª por indiscutivel
-direito de propriedade. A falta do primeiro originou um desequilibrio
-insignificante nas suas finanças, que foram gravemente perturbadas
-pela subtracção do segundo. V. Ex.ª teve de limitar as suas despezas
-diarias e não poude, n’aquelle anno, mandar seu filho para Coimbra, ou
-para o Collegio militar, porque faltaram os meios e não quiz contrahir
-emprestimos.
-
-A lei, garantindo a propriedade do cidadão puniu severamente os
-individuos que prejudicaram V. Ex.ª
-
-_Neminem laede_—era a formula de Kant na sua theoria sobre a Philosophia
-do Direito.
-
-Lesaram V. Ex.ª e a lei puniu.
-
- * * * * *
-
-Comparemos os factos:
-
-As vinte moedas representam o rendimento da quinta _tal_, em algures,
-que a V. Ex.ª pertence por um titulo de acquisição ou posse, legalmente
-reconhecido.
-
-Os duzentos mil reis que V. Ex.ª gasta com as despezas da sua
-transferencia e os juros ou encargos de doze mil reis annuaes, serão
-retirados do rendimento da propriedade que V. Ex.ª comprou ao Estado com
-os dois contos da formatura, ou com os _direitos de mercê_ e com o seu
-trabalho diario—compra de que possue o devido titulo que é um diploma, a
-_patente_, _etc._
-
-Associadas as idéas, comparados os factos, consideremos agora o
-_barbaças_ e o marau _transferidor_.
-
-Que differença póde haver entre o primeiro, que na _Tomada de Barros_
-reclamou, de bacamarte em punho, as vinte moedas, e o segundo que,
-desfechando o bacamarte da _transferencia_, a V. Ex.ª origina um prejuizo
-de duzentos mil reis?
-
-De qualquer d’esses factos não resultou o mesmo desequilibrio nos
-elementos economicos da sua existencia?
-
-Não significam elles o mesmo attentado contra direitos legalmente
-reconhecidos?
-
-Não houve n’elles a mesma responsabilidade, a mesma _premeditação_, a
-mesma consciencia da illegalidade?
-
-Eu de mim annuncio que só reconheço uma differença entre o João Brandão,
-o Papa-Assucar ou Zé do Telhado e _quem quer que_ fosse que promoveu
-a transferencia do sr. Camisão, e _quem quer que_ seja que promove as
-transferencias que, á puridade, por ahi se annunciam.
-
-Essa differença é a seguinte:
-
-João Brandão, Zé do Telhado e Papa-Assucar, na classe dos ladrões são
-ladrões honrados e dignos. Apresentam-se na estrada, de peito descoberto,
-fronte erguida, expondo a vida e arriscando a liberdade.
-
-Os _transferidores_ de cá são ladrões acanalhados, ratoneiros de feira,
-fadistas de café de _lépes_, traiçoeiros, covardes que se disfarçam com
-grandes capotes e se cozem ás paredes nas sombras da noite para, em
-qualquer encruzilhada, combinarem os meios de, impunemente, anavalharem o
-funccionario publico.
-
-Se eu souber que no pinhal de Ganfey se acoita uma malta de larapios, e
-se tiver necessidade de lá passar á noite, a prudencia aconselha-me a
-levar um bom cacete, para quebrar o braço a um e pôr em fuga os outros.
-
-Ora, dos _transferidores_ é que eu não me posso livrar tão facilmente. Só
-saem quando os lampeões se apagam; só transitam por viellas, mysteriosos,
-impalpaveis, sumidos. Se, por acaso, d’algum suspeito e lhe arranco o
-capote para conhecer as feições, encontro uma cara conhecida que ainda ha
-trez horas me saudava e me sorria.
-
-D’aqui a tres dias, silva a navalha nos ares.
-
- * * * * *
-
-No periodo de 1886 a 1890 instituiu-se n’esta villa o regime das
-_transferencias_ que legaliza essas infamias, estabelecendo nos
-differentes partidos politicos a necessidade das represalias summarias,
-como as disposições do codigo de Lynch.
-
-_É preciso fazer sangue, para que os campos se definam_—disse-me, ha
-annos, um Machiavel indigena. Apertei o casaco e segurei o relogio. É que
-na estrada da Velhacaria, a Politica da minha terra avizinhava-se já do
-pinhal da Azambuja em que hoje vivemos.
-
-Para esta classe de scelerados—os _transferidores_—o Direito romano, as
-Ordenações e os Codigos nada estabelecem. Mas o Direito positivo funda-se
-no Direito natural e este tira os seus principios da consciencia humana,
-em face das leis da Razão e da Moral.
-
-O legislador dá sempre ao magistrado a faculdade de ampliar, segundo os
-dictames da consciencia, ou de alterar, segundo os usos da terra, as
-disposições que estabeleceu para a repressão do facto criminoso e para a
-defeza de direitos adquiridos.
-
-Em nossa consciencia, pela illegalidade das causas e pela importancia dos
-effeitos, o caso das _quarenta moedas_ e o dos _duzentos mil reis_ teem a
-mesma classificação: um roubo.
-
-Quem rouba é ladrão; e para nivelar a condição criminosa e as
-responsabilidades do _barbaças_ e do _marau transferidor_, egualmente
-perigosos na sociedade em que vivemos, apresento o seguinte additamento
-ao Codigo penal:
-
-Artigo tantos:
-
-=Todo o homem de bem tem a liberdade de correr a pontapé pelas ruas de
-Valença, o sevandija que, directa ou indirectamente, influa em qualquer
-transferencia.=
-
-§ unico:
-
-=Fica revogada toda a legislação em contrario.=
-
-10-2-90.
-
- _Zinão_.
-
-
-
-
-XX
-
-A questão ingleza
-
-(NOTAS SOLTAS)
-
-
-Alem-mar scintilla na escuridão a iris do abutre.
-
-O leopardo rugiu, saltou, e cravou as garras ensanguentadas no velho
-Portugal.
-
-Este enorme gigante que teve no encephalo, como cellulas, os craneos
-de Camões, de Gama e de Cabral; que teve por apophyses as columnas
-de Hercules, os rochedos do Bojador, do Boa-Esperança, do Razalgate
-e do Comorim; por articulações Angola, Moçambique, Mascate, Ormuz,
-Diu, Calicut, Malacca; por veias os filões preciosos de Sofala, de
-Minas e Cyaté, do Pegu e de Narsinga; por arterias o Tejo e o Zaire, o
-Quanza e o Limpopo, o Zambeze e o Mandovi, o Ganges e o Amazonas; por
-cabellos os cedros seculares do Novo Mundo; por musculos os braços de
-mil heroes; por thorax a amplidão de todos os céos; por limite visual
-a linha de todos os horisontes; por fronteira o circulo de todos os
-quadrantes; por dominio a vastidão de todos os mares; por fanal a luz
-de todas as constellações—esse colosso que teve por servos o Çamorim e
-os rajahs da India, por thesoiro os abysmos aquaticos de Borneo e de
-Ceylão; por sonhos os mythos do Preste-Joham; por pesadelos as tragedias
-de Alcacer-Kibir e de Tanger; e que pela rigidez do seu braço, pela
-heroicidade do seu valor, conseguiu a crystallização de todas as chimeras
-e a realidade de todas as phantasias—eil-o ahi, prostrado, corroido
-pelo fanatismo religioso que ha quatro seculos lhe ulcerou os membros,
-enfraquecido pelos caprichos de monarchas perdularios, aviltado pela
-phthiriase de cortezãos servis, cancerado pela ambição insaciavel dos
-aulicos traiçoeiros, decrepito, pobre, agonisante... mas não morto!
-
-Não! Não está morta a Patria! Ha n’ella quatro milhões de cellulas; e se
-muitas são inertes ou inuteis, covardes ou egoistas, existe nas restantes
-força viva sufficiente para transmittir á musculatura do heroe decrepito
-a energia das grandes crises e o arrojo dos antigos feitos.
-
- * * * * *
-
-N’essa cloaca—a côrte ingleza—escoante de todas as sargetas, deposito de
-todas as fezes, sumidoiro de todas as immundicies que podem existir na
-alma humana, as ambições e a perfidia actuaram como acidos d’uma pilha
-sobre o metal—oiro—dos nossos terrenos da Mashona.
-
-Como reophoro transmissor d’essa electricidade cupida, partiu de
-Londres—polo negativo—o _ultimatum_ de Salisbury e tocou no coração da
-Patria.
-
-Immediatamente, outra electricidade se desenvolveu com os elementos
-positivos da Justiça e do Direito n’essa enorme pilha—a alma
-portugueza—que já actuou em todo o Universo com a intensidade das mais
-arrojadas emprezas e com a força dos mais generosos heroismos.
-
-E então, ao contacto d’esse novo fluido, de que n’um bello impulso
-de ardente enthusiasmo a Academia foi conductor, todos os membros do
-decrepito colosso se agitaram convulsivamente. Ergueu-se o heroe, d’um
-arranco, e magestoso de altivez, fremente de indignação—d’ahi, do
-promontorio de Sagres, d’onde avassallára o Mundo, arremessou para lá da
-Mancha o escarro do desprezo, unico desforço que a dignidade permitte ás
-affrontas d’um villão.
-
-Cartel de desafio não se manda a representantes de _lords_. Bright era
-_quaker_; Crawfurd, provavelmente, é castrado; condições diversas, mas
-eguaes na intenção—livrar decentemente as regiões trazeiras da bota d’um
-portuguez.
-
- * * * * *
-
-A excitação da colera e a allucinação do perigo teem por vezes
-prejudicado a imponencia da nossa attitude perante essa malta de
-esbodegados borrachões, paus-de-virar tripas encasacados, feitos de
-esperma de lupanar e de muco leucorrheico, que constituem na sua abjecta
-individualidade de _lords_ a canalha servil da côrte ingleza.
-
-_Morra a Inglaterra!_ bradamos.
-
-Não! Não se levantam gritos de exterminio contra uma nação inteira. Entre
-quarenta milhões de habitantes ha, tambem, opprimidos e oppressores.
-
-A podridão e a villania condensam-se nas altas espheras do _high-life_,
-nos palacios da City, nos corredores de Windsor Castle, no _royal box_ de
-Covent Garden, no Pelican Club, no Devonshire Club, no Turf-Club, onde
-impera, infrene, El-Rei Deboche.
-
-Cá em baixo, labuta e moireja um povo trabalhador e geme um mundo de
-parias. Nos bairros immundos de Londres, no West-End, no White-Chapel,
-dormem ao ralento, esfarrapados e nús, centenares de velhos e de creanças.
-
-Agonizando pelas esquinas e escabujando nos monturos, morrem annualmente,
-=de fome=, tres a quatro mil pessoas.
-
-Das camadas que trabalham sahiram Shakspeare, Milton, Jenner, Newton,
-Davy, Graham, Bacon, Locke, Hume, Priestley, Adam Smith, Stephenson,
-Wollaston, Boyle, Shaftesbury, Harvey, Stuart Mill, Spencer.
-
-Esses homens alguma coisa fizeram em prol da humanidade e da civilização,
-e não é justo, portanto, que á sua memoria e ao seu nome lancemos o
-escarro do insulto e o estigma da maldicção.
-
-_Odio aos lords!_ deve ser o nosso grito, porque são elles, e só elles,
-os nossos espoliadores.
-
-Odio a essa aristocracia abandalhada que estrangula a Irlanda—mancha
-vergonhosa da civilização europea e que os magarefes da City por vezes
-transformam em sangrento açougue.
-
-Odio a esses lacaios de libré que nas sessões da Lords’ House vemos
-erectos, empertigados, orgulhosos, e á noite se curvam sobre os tapetes
-do _brothel_—bestiaes, apopleticos, rubros, babados, _falling on one’s
-jaws_[58] entre saias almiscaradas e amarellas com o liquido da menorrhéa.
-
-N’esse asqueroso quadro de infamias que em 85 a _Pall Mall Gazette_
-desvendou á imprensa europea ha, como actores, _lords_, só _lords_—os
-mesmos canalhas de Cleveland-Street que, ha mezes, uns áltos
-_personagens_ da côrte protegiam, suffocando a peso de oiro a publicidade
-das suas novas torpezas. São elles e só elles que fixaram o preço de 15
-a 20 libras para as _fresh-girls_—_virgo intacta_—de 13 a 14 annos, que
-hoje são as 50:000 prostitutas—_black army_ dos _trottoirs_ londrinos.
-
-São elles que para a lucta contra essas desgraçadas creanças, attrahidas
-infamemente aos subterraneos de West-End, inventaram a _black-draught_ do
-narcotico.
-
-São elles que para obterem o oiro necessario ás phantasias d’uma
-sensualidade bestial, constituiram a _Slaughter-House_ contra os
-desgraçados filhos da Irlanda; que reunidos em _Royal Companies_
-ordenaram essas medonhas carnificinas de Pendjab e dos cipayos; e que
-agora, trocando em casa de Salisbury as fardas bordadas pela jaqueta de
-_pick-pocket_, _chypram_ do mappa africano o oiro da Mashona.
-
-Esses asquerosos Tartufos, occultando cynicamente nas casacas de
-_congressistas_ philanthropicos e humanitarios a sua cupidez e insaciavel
-ambição, propozeram, ha tempos, a Portugal e ao sultão de Zanzibar um
-bloqueio na costa oriental, de Inhambane a Pembe, que impedisse—diziam—a
-importação de armas aos arabes do interior, eternos traficantes de carne
-humana.
-
-O nosso governo accedeu; o bloqueio estabeleceu-se; e poucos dias
-depois, o governador do Cabo enviava occultamente a Lobengula, feroz
-chefe dos Matabelles, com quem os arabes se entendem, 1:000 espingardas
-Martini-Henry com 300:000 cartuchos!
-
-Odio, pois, aos _lords_!
-
-Organize-se contra elles uma nova cruzada de exterminio, e que todo o
-portuguez tenha o direito de os correr a tiro, como a animal feroz,
-quando no solo honrado da Patria poisarem as suas enormes patas de tres
-toesas.
-
-São elles e só elles que nos roubam. Ahi vae a _historia do caso_
-Chire-Nyassa.
-
-Lord Fife, duque do dito Fife, é genro de Sua Alteza Real o Principe
-de Walles; casou com a princeza Luiza, uma neta da _graciosa_ rainha e
-imperatriz Victoria.
-
-Lord Fife é um pobresinho de Christo; das suas propriedades de Scotland
-e de outros bens de fortuna tem um rendimento aproximado a dois contos
-por dia, e como a sua _Ex.ᵐᵃ Consorte_ é de egual pobreza, com mais umas
-achegas, dotação, etc., nas telhas d’aquelle desgraçado casal caem umas
-quarenta libras por cada hora de cada dia.
-
-Mas succede que lá, como cá, estas coisas de nobreza custam muito
-dinheiro, porque é preciso sustentar a respeitabilidade da posição
-official, como diz o Albino, quando _entra nas idéas e no coração_ da
-gente para dispôr os _petardos_ das suas transcendentes, nebulosas e
-philosophicas reflexões sociaes.
-
-Como o povo inglez embicou, ha tempos, com o augmento da dotação da
-_Royal Family_, lord Fife, para ganhar o seu pataco, fez-se agiota,
-socio commandita da firma commercial _Samuel Scott and C.º_ e director
-da _British South Africa Company_, a quem uma _Royal Charter_ concedeu,
-ultimamente, 400:000 milhas de terreno africano com aquella liberalidade
-conhecida: _do pão do nosso compadre grossa fatia ao afilhado_.
-
-Mas as libertinagens de West-End, do Cleveland-Street, os serviços dos
-rapazinhos do telegrapho, as orgias de _champagne_, os _boat-matches_ do
-Naval Club, absorvem todos os rendimentos de lord Fife e segundo consta,
-ha poucos mezes, as finanças de His Lordship estavam por assim dizer:
-_tem-te, não caias_[59].
-
-A concessão feita a Lord Fife, a Lord Abercorn, a Lord Gifford (cá estão
-os _lords_), organizadores da _African Company_, era tão importante que
-em Londres, o _Times_ e o _Standard_, fazendo reclamo, annunciavam-na
-como: _Empreza colossal_. Todavia, as acções conservavam-se na _baixa_
-e Lord Fife, nominalmente um dos maiores accionistas, não arranjava com
-aquelle negocio para pagar um _little boy_.
-
-Surgiu então uma idéa salvadora. Os nossos terrenos na Mashona eram,
-ha muito tempo, indicados como preciosos para explorações auriferas.
-Salisbury levou _rasca na assadura_; contractou-se o patife Johnston,
-compraram-se por baixo preço todas as acções da _South Company_ e no
-dia seguinte rebentou o _ultimatum_. Em vinte e quatro horas, cada
-acção obteve um premio de setenta libras. Cinco mil acções—trezentas e
-cincoenta mil libras.
-
-_God save the Queen!_ e vamos ás _fresh-girls_!
-
-Odio pois aos lords! E como em Valença as manifestações patrioticas
-ficaram no _projecto_ d’um telegramma a Serpa Pinto, porque se repetiu,
-talvez, aquelle caso da subscripção para o _bucephalo_[60], eu proponho o
-seguinte:
-
-Que se mande a Lisboa uma commissão para escolher e contractar
-nas viellas da Baixa duas duzias de _ladies_ matrafonas, das mais
-abandalhadas e nojentas.
-
-A mesma commissão contractará, tambem, dez ou doze grumetes da marinha
-real ingleza. Esses grumetes serão vestidos, da cinta para cima, com o
-uniforme dos boletineiros telegraphicos; da cinta para baixo, uma parra.
-
-Matrafonas e grumetes, com seis barris de _cachaça_ de 90°, serão
-envolvidos por uma forte rede de arame, á qual se atará um solido cabo de
-algumas milhas.
-
-A gente vae depois alli, a Calais, põe um pé em Douvres e atira com a
-_isca_ para o Tamisa.
-
-Fica um de nós a ter conta no cabo. Póde ser—por exemplo—o Fernando
-que é o mais entendido em coisas de pesca, como o prova annualmente na
-Rapozeira com os seus _botirões_. O Braga tambem póde servir, porque tem
-habilidade para descobrir peixes.
-
-O Fernando, pois, senta-se em qualquer rochedo, fuma o seu cigarro,
-espalha as tristezas com o _Noticioso_, ou com as _latinhas_ do Cruz,
-e quando sentir que a corda estica, signal de que o peixe _pica_, puxa
-vagarosamente para terra.
-
-A meio cabo, levanta-se e vem descendo pela costa da Mancha: Dieppe,
-Havre, Cherbourg; Brest, S. Nazaire, Bordeaux; contorna o Golpho,
-Bayonne, Santander; dobra o Ortegal, Corunha, Vigo, Guardia; entra no
-Minho e vem subindo pela margem direita até ao _Pau-do-fio_.
-
-A gente põe-se cá de cima, das muralhas, e recebe o cabo. Chamam-se os
-paysanducos e toca a puxar.
-
-Fóra da agua a _isca_, veremos logo, agarrados a ella, todos os _lords_
-da _City_: Lord Fife, Lord Foife, Lord Fufe, Lord Craft, Lord Creft, etc.
-
-O _lord_ é animal amphibio, organização de batrachio; resiste bem debaixo
-d’agua, como se sabe.
-
-Paysanducos continuam a puxar e vae tudo para o largo de S. João.
-
-Os _lords_ devem apparecer esbodegados, cambaleantes, tropegos.
-
-Vem o _Parádas_ com o _bolo municipal_ e divide-o pelos borrachões.
-
-Duas horas depois, o Gamellas traz a carroça do lixo, carrega, e despeja
-na _Sexta_.
-
-Extincta, assim, a raça vil, a _City_ fica deserta; e como a Hygiene
-recommenda a collocação das fossas longe das habitações, faremos do
-_fashionable_ bairro uma sentina para uso diario.
-
- Ao norte: Para damas.
-
- Ao sul: Para homens.
-
-Para fazer a limpeza e fornecer papeis, ficarão:
-
- Mr. Jacob Bright
-
- e
-
- Mr. Oswald Crawfurd.
-
-2-3-90.
-
-
-
-
-XXI
-
-A manifestação dos artistas
-
-
-Em 28 de janeiro, a Direcção da Assembléa Recreativa promoveu uma
-manifestação patriotica, préviamente annunciada nos jornaes da terra com
-a minuciosidade espaventosa d’um programma de _S. Telmo_ ou _da Agonia_.
-
-Não é meu intento censurar essa manifestação; mas, pelo simples facto de
-ella ter sido promovida por um grupo de artistas e de homens do trabalho
-não devo excluil-a do campo critico, onde com estes artigos analyso os
-factos mais importantes na chronica valenciana.
-
-A meu vêr, essa manifestação teve uma origem que a absolve plenamente
-d’uns pequenos ridiculos que a amesquinharam. Originou-a um impulso de
-sincero patriotismo, e basta isso para escudar os promotores d’ella
-contra a rudeza da phrase com que verberei a _fantochada_ de 14.
-
-Se essa manifestação offerece alguns lados censuraveis, se teve
-peripecias irrisorias, se não me inspira hoje phrases de caloroso
-applauso e de sincera adhesão, os seus promotores devem-no,
-exclusivamente, ás impressões que nos seus espiritos deixou a grande
-_rusga_ de 14. Aproveitaram parte do programma: musica, cortejo, vivas
-arruaceiros, procissões _intra_ e _extra_-muros, etc., abandonando
-deploravelmente os meios que a Razão aconselha para, em occasiões
-identicas, se dar a qualquer manifestação um caracter significativo de
-energia, de sensatez e—sobretudo—de utilidade.
-
-Não me rio perante as bandeiras que n’esse cortejo distinguiram a Arte,
-do Commercio, como estulta e imbecilmente o fizeram alguns dos _illustres
-patriotas_, comparsas na ignobil farça dos abbades. Essas bandeiras
-significam o trabalho honrado, o homem que labuta e moireja dia e noite
-no sustento da familia, e que nunca serviu de lacaio a qualquer magnate
-eleitoral para, á custa do Estado, coçar por ahi, nas esquinas, os
-seus setenta kilos de ociosidade; significam o artista que contribue
-efficazmente para a riqueza da nação; o commerciante que concorre com
-uma boa parte dos seus interesses para as despezas das nossas mais
-uteis instituições e não o eunucho indifferente a todos os impulsos da
-Civilização e que, arrastando uma existencia ignobil, como a da lapa
-eternamente presa ao rochedo, na valla commum dos inuteis desapparece,
-sem ter conhecido outra energia e outras sensações além das que obteve,
-comendo, bebendo e dormindo.
-
-Passe, pois, o cortejo, porque perante elle, eu, descubrindo-me,
-exclamarei tambem:
-
-=Viva a patria!=
-
- * * * * *
-
-A Musica da _Santa_ veiu outra vez espancar os ares com as notas festivas
-dos hymnos, bufadas para os céos da Patria com a furia d’uma orchestra de
-Cafres.
-
-É crença arraigada no espirito do povo que não póde haver solemnidade sem
-gaiteiro.
-
-Era preciso, disseram-me, estimular, avivar o espirito da nacionalidade.
-
-Este argumento defensor dos _paus-tesos_ recorda-me as funcções luctuosas
-das antigas carpideiras, nas casas minhotas.
-
-Morria o fidalgo.
-
-Expunha-se o cadaver na sala nobre.
-
-As mulheres e as creanças acocoravam-se sobre os tapetes.
-
-Em volta do caixão perfilavam-se, tristes, sombrias e sinistras, seis
-mulheres recrutadas no auditorio dos Missionarios, entre as mais
-hystericas e lacrimosas, quando algum dos energumenos descrevia os
-horrores do caldeirão de Pero Botelho, o rechinar das carnes e os
-forcados rubros de trezentos milheiros de diabos que pinchavam sobre as
-cabeças chamuscadas dos condemnados.
-
-Vinham os amigos da familia apresentar as suas condolencias.
-
-As carpideiras irrompiam n’um chorar convulso, com todos os sons da gamma
-afflictiva, com todas as notas ascendentes e descendentes d’uma suprema
-dôr: suspiros, gemidos, gritos, berros—berros, gritos, gemidos, suspiros.
-
-Os sentimentos quando se manifestam com violencia exercem uma forte acção
-de communicabilidade a que nem todos são refractarios. Vêmos lagrimas
-nos olhos d’uma viuva, ouvimos o casquinar de sonoras gargalhadas e
-o cerebro, recebendo as impressões d’essas lagrimas e d’esses risos,
-reproduz em nossa face os sentimentos que os motivaram: rimos quando os
-outros riem e choramos quando os outros choram[61].
-
-Assim, na scena das carpideiras, ellas, a familia, as visitas, os
-creados, disputavam primazia em intensidade de sentimentos.
-
-Terminada a cerimonia, os amigos compunham no rosto os traços d’uma
-grande dôr; distribuiam pela familia arrochados abraços e violentos
-apertos de mão, exprimindo entre soluços os desejos de se tornarem
-uteis: _se fôr preciso qualquer coisa—estamos ás ordens—mandar com
-franqueza—adeus—é ordem do mundo—resignação—adeus..._
-
-Fechada a porta, fechavam-se tambem, com ella, as valvulas das glandulas
-lacrimaes; e carpideiras e doridos corriam á vasta cozinha, onde
-pantagruelicamente atafulhavam o bandulho com grossas postas de bacalhau
-cozido, abundantemente regadas por successivos cangirões de bom e
-espumante verdasco.
-
-Batiam, de novo, á porta; tudo voltava á sala.
-
-O morto lá estava; amarello, hirto, de mãos ceraceas cruzadas sobre o
-peito, muito esticado dentro da sua _roupa preta_ perolada de _agua
-benta_, exhalando fragrancias de _vinagre aromatico_, de nariz para o
-ar, onde as moscas esgaravatavam com as patitas, na doida e frenetica
-sensualidade das cocegas que ellas tanto appetecem, e que o finado, dias
-antes, tão pertinazmente lhes recusára.
-
-Então, a sensibilidade das carpideiras explodia pelo canal digestivo em
-sonoros arrotos.
-
-E n’essa sessão solemne que constituiu a segunda parte do programma—uma
-verdadeira visita de pezames pela frieza da sala, pelo tremulo discursar
-dos primeiros oradores, pela hesitação dos _mestres de cerimonia_ e pela
-presença da bandeira nacional que significava os restos mortaes dos
-nossos brios e das nossas glorias, tambem se ouviu—permitti que o diga,
-honrados artistas—um rasoavel arroto:—aquella polka final.
-
- * * * * *
-
-Durante o trajecto do cortejo, a _Musica_ tocou, por vezes, hymnos
-varios. Excluistes o da Restauração, que só os eunuchos da Rotina hoje
-podem admittir nas suas manifestações simontadas. Devieis dispensar
-tambem os outros: o da Carta e o do Rei.
-
-O primeiro lembra a libertação da tyrannia, a emancipação dos direitos
-do cidadão, a queda do absolutismo, o inicio d’uma nova era de Progresso
-intellectual que devia esmigalhar as algemas de instituições odiosas e
-impulsionar-nos na bemdita estrada da Civilização, livres das trevas e
-dos espinhos que amarguraram os dias dos nossos antepassados.
-
-Recorda, pois, um facto—a outorga da Carta—que trouxe jubilos, alegrias;
-e não é em horas de tristeza e de desalento que n’elle devemos procurar
-lenitivo.
-
-O segundo solemnisou a coroação d’um monarcha—uma festa nacional em que
-houve bailes, recepções, salvas reaes, paradas, espectaculos de gala.
-
-Pelo anterior argumento devia ser excluido.
-
-O _ultimatum_ inglez é, apenas, a primeira bala do assedio que essa côrte
-de debochados planeou contra o nosso dominio d’alem-mar.
-
-A espoliação de Bolama que elles tentaram em 38; a de Goa, Damão e Diu em
-39; a das ilhas de Lourenço Marques em 62; a redacção da _Royal Charter_
-que ultimamente concedeu a Lord Fife os terrenos a oeste de Moçambique;
-a necessidade que elles teem de possuir, na costa africana oriental, um
-bom porto que dê expansão ao desenvolvimento das colonias estabelecidas
-no interior á sombra de perfidos protectorados; as recentes ameaças sobre
-as ilhas da Madeira e sobre Lourenço Marques—revelam claramente o plano
-da usurpação violenta de que mais tarde ou mais cedo, com pretexto ou sem
-elle, Portugal será victima.
-
-Os nossos terrenos africanos, se pouco teem produzido até hoje pelo
-abandono a que os condemnamos, podem ser no futuro elemento valiosissimo
-de riqueza e de prosperidade; e na tristissima situação em que as nossas
-finanças se encontram, com o enorme desequilibrio que annualmente se
-denuncia entre a receita e a despeza, quando os encargos da divida
-absorvem, já, metade dos rendimentos, importantissimo é o problema
-colonial, porque a solução d’elle póde evitar funestissimas perturbações,
-póde evitar a ruina da Nação, e mais do que isso—a perda da sua
-independencia!
-
-E dizei-me agora, honrados artistas e commerciantes:
-
-Se no dia trinta e um de dezembro, quando fechaes o vosso balanço annual,
-reconheceis que o _passivo_ excede o _activo_—quando perante esse
-_deficit_ encaraes, com olhar vacillante, o futuro, onde vêdes sombras e
-não auroras—se no anno seguinte uma nova especulação, uma nova industria
-vos proporcionar meios com que possaes capitalizar uns centos de mil reis
-collocados depois, _á ordem_, no Roriz,—se um dia o _Primeiro de Janeiro_
-vos annunciar a quebra d’aquelle banqueiro e, com ella, a perda do vosso
-capital, a destruição completa dos elementos com que esperaveis viver com
-abastança no futuro—acaso a vossa alma se póde regosijar com o Hymno do
-Rei ou com o da Carta?
-
-Pois as situações são as mesmas.
-
-Vós e a Patria tendes annualmente um enorme passivo.
-
-O capital que estava no Roriz—o vosso futuro—é o dominio d’alem-mar—o
-futuro da Patria.
-
-A noticia da fallencia é a noticia do _ultimatum_, com esta differença
-apenas: uma originou-se na adversidade dos negocios, outra na ambição
-d’um _lord_.
-
-Vós sois a Patria; viveis n’ella; sois a alma e o braço d’ella.
-
-A Patria é tudo isso que vos rodeia: familia e amigos, affectos e
-carinhos; é tudo o que ha de bom, de generoso, de nobre e feliz na vossa
-existencia; é a limpidez d’este formosissimo céo peninsular, a risonha
-paizagem do nosso Minho, a irradiação das nossas alvoradas, o oiro dos
-nossos crepusculos, o matizado dos nossos campos; é essa dulcissima
-melancholia que ao _toque das trindades_ inunda a nossa alma com a toada
-longinqua das canções populares, é o nobre orgulho que em vossos olhos
-brilha quando escutaes a epopéa das nossas gloriosas façanhas; é essa
-formosa cabeça de velho que vos sorri, é a esposa carinhosa que vela a
-vossa doença, é a creança—esse pequenino sêr feito com raios de alvoradas
-e crystallizações de sorrisos—a quem chamaes filho[62].
-
-Quem offender a Patria—offende-vos.
-
-Quem a roubar—rouba-vos.
-
-Quem toca o hymno da Carta quando ella soffre, toca-vos o hymno do rei
-quando, com a fallencia do Roriz, reconheceis perdidas e inutilizadas as
-esperanças do vosso futuro.
-
- * * * * *
-
-Despedi, pois, os gaiteiros, amigos.
-
-Não lhes faltará que fazer.
-
-Ahi estão os paysanducos esperando a _borga_ das eleições. Lá estão os de
-Monsão que d’elles necessitam para as farças publicas do entrudo, em que
-figuram makololos e Serpa Pinto.
-
-Uns e outros: paysanducos, makololos e santascocas provam á evidencia,
-pela sua immobilidade mental, que, realmente, não havia razão para os
-sabios repellirem com tanto ardor as theorias de Darwin.
-
-Nos cerebros de todos elles, existem irrefutaveis vestigios de
-hereditariedade chimpanzéca.
-
-Distingui-vos d’elles!
-
- * * * * *
-
-Á sympathia que me inspira a vossa Assembléa deveis estes periodos,
-onde podereis encontrar phrase aspera de sinceridade, mas não phrase
-humilhante de ironia.
-
-Não vos offendaes, pois, por eu declarar que estou intimamente convencido
-de que nenhum de vós conhece exactamente o valor, a extensão, a situação
-geographica, os limites dos terrenos que a canalha dos _lords_ nos
-pretende roubar; como sinceramente creio que a mesma ignorancia existe no
-espirito da maior parte dos patriotas que promoveram a grande _rusga_ de
-14 e que por ahi, ainda hoje, erguem as mãos ao céo, falando de _roubos_,
-de _direitos indiscutiveis_, etc., etc.
-
-Tirae-me do grupo promotor da _fantochada_ umas tres ou quatro cabeças,
-e demonios me levem se as restantes vos disserem para que lado fica a
-Africa, se fica perto ou longe de Taião e se lá vivem homens civilizados
-como nós, se paysanducos, se orangotangos.
-
-Em vós, tudo desculpa essa ignorancia. Sois homens do trabalho. Quando
-o dia nasce, principiaes a lucta pela vida; quando o sol se esconde,
-procuraes no repoiso, vigor para a tarefa de ámanhã. Não podeis,
-portanto, dispensar o tempo necessario ao estudo d’estas questões que a
-Historia, a Geographia, o Direito internacional, etc., esclarecem.
-
-Essa ignorancia existe, ainda mais profunda nas camadas populares
-inferiores á vossa.
-
-Berraes, pois, que vos roubam sem conhecerdes, quanto, o que, e onde.
-
-Consultae a consciencia e dizei-me se isto assim não succede, e se não
-consideraes censuravel que um homem nas ruas grite contra um ladrão,
-ignorando os direitos que tem de o fazer e só porque ouviu as exclamações
-dos outros.
-
- * * * * *
-
-Reconhecereis, portanto, que podia condemnar a vossa manifestação de 28,
-mas se acreditaes na sinceridade d’essa sympathia que eu vos affirmei
-nutrir pela _Assembléa Recreativa_, se a opinião d’um homem que se ri
-dos que, n’outras espheras _mais illustradas_, fazem das luvas—uma coisa
-que o meu cocheiro usa—distinctivo irrefutavel _de sentimentos dignos e
-cavalheirescos_ (!) permitti que em poucas palavras vos indique a fórma
-como eu entendo que vós devieis ter organizado a manifestação.
-
-Nada de musicas; nada de procissões pelas ruas!
-
-Um de vós pediria o theatro. Tres ou quatro iriam em commissão convidar
-qualquer dos officiaes do Regimento—que os tendes ahi illustrados e
-competentissimos—para uma conferencia sobre a questão do Chire-Nyassa,
-em que vos expozesse claramente, perante um mappa, a situação dos nossos
-dominios e a legalidade dos nossos direitos.
-
-Para essa conferencia abririeis as portas ao povo, a esse eterno
-ignorante sempre explorado, porque o não educam; e se os vossos recursos
-podessem contribuir para uma verdadeira e util obra de patriotismo,
-a esse mesmo official pedirieis que vos escrevesse um pequeno volume
-onde, em linguagem chan, clara, perfeitamente intuitiva e ao alcance de
-todas as intelligencias, se desenrolasse a historia do nosso Passado e a
-historia d’essa vergonhosa alliança com a corte dos _lords_.
-
-Distribuirieis depois, oito centos ou mil exemplares d’essa publicação
-pelas freguezias do concelho, pelas escholas, pelas ruas.
-
-E então, amigos, com os brados de cólera e com as exclamações de
-desalento que a miragem das nossas gloriosas conquistas provocaria,
-poderieis compôr um hymno—um verdadeiro hymno nacional, magestoso,
-triumphante, imponente de enthusiasmos, arrebatador de generosos
-sentimentos, palpitante de sincero, energico e irresistivel Patriotismo!
-
-Poderieis então gritar:
-
-=Viva a Patria!=
-
-que eu, sobre a cabeça d’esses paysanducos que se riram de vós,
-responderia com toda a energia de minha alma:
-
-=Honra á Assembléa Recreativa!=
-
-
-
-
-XXII
-
-Carta a S. Ex.ª, o Sr. Administrador
-
-
- Ex.ᵐᵒ Sr.
-
-De caso pensado reservei para esta data, em que concluo a publicação que
-tanto tem agitado o espirito dos seus excellentissimos administrados,
-a manifestação dos sentimentos que agitaram a minha alma n’essa
-hora solemne, em que V. Ex.ª foi chamado ás graves deliberações da
-Administração concelhia.
-
-E de caso pensado o fiz, Ex.ᵐᵒ Sr., porque necessitava que o tempo, os
-factos, me fornecessem elementos com que, ao collocar a individualidade
-de V. Ex.ª n’esta curiosa galeria de celebridades valencianas, podesse
-fazer ao publico um pequeno discurso apologetico com phrases e linguagem
-differentes ás d’essas escalrichadas apotheoses das luminarias da terra,
-prenhes de _estimados cavalheiros_, de _integerrimos magistrados_, de
-_robustos meninos_ e outras minhocas que o _Noticioso_ inventa para
-enfeitar o anzol d’uma assignatura annual.
-
-Hoje, porém, Ex.ᵐᵒ Sr., que tres mezes se sumiram nas voragens do
-Tempo depois d’essa augusta solemnidade da _posse_, d’esse acto d’uma
-respeitabilidade indiscutivel em que a imponencia das nossas instituições
-civis actua sobre o espirito com a pressão de cem atmospheras—hoje, em
-que a individualidade administrativa de V. Ex.ª, evidentemente se destaca
-entre as auctoridades da minha terra, marchando a passo d’anjo no coice
-das procissões, ao lado de Sua Excellencia o Senhor Governador Pericles
-I e um pouco á frente do seu subordinado o Snr. Joaquim, muito
-digno e conspicuo Substituto—digne-se V. Ex.ª permittir que eu lhe
-dedique estas linhas, onde vou synthetisar a opinião que no meu espirito
-existe ácerca do Senhor Administrador.
-
- * * * * *
-
-Percorrendo a historia dos gloriosos feitos dos antepassados de V. Ex.ª
-n’essa cadeira administrativa—meditando sobre as diversas aptidões e
-faculdades que nas sombras do Preterito, ainda hoje illuminam os vultos
-dos prestantes e muito dignos cidadãos que eu por ahi vi atados á banda
-bicolor,—comparando os feitos immorredoiros que enaltecem os annaes da
-Administração valenciana—desde a _borralhada_ da Santa até ao exterminio
-da Rua Verde, desde a prisão d’aquelle feroz e sanguinario Troppman
-na _tomada de Barros_ até ás fornadas eleitoraes da Misericordia,—com
-os actos de V. Ex.ª, eu, Ex.ᵐᵒ Sr.—com franqueza—não posso exprimir o
-conceito que de V. Ex.ª formo com palavras differentes d’estas:
-
-V. Ex.ª é o _refugo_ dos administradores!
-
- * * * * *
-
-E d’estas palavras escriptas com a rude sinceridade que até aqui arrepia
-a linguagem dos meus escriptos, acaso poderá V. Ex.ª deduzir intenção
-desdoirante das suas aptidões intellectuaes, dos seus conhecimentos
-juridicos, das suas faculdades administrativas?
-
-Se tal succede, erra o seu excellentissimo criterio.
-
-V. Ex.ª é o _refugo_ dos administradores, porque tem uma carta de
-bacharel, porque sahiu ha poucos annos da Universidade com uma educação
-politico-scientifica imperfeita, rachitica, insufficiente para as
-funcções do elevadissimo cargo de que está investido.
-
-V. Ex.ª está saturado de ordenações, de codigos, de paragraphos
-unicos, de disposições transitorias, de _subsidios_, de cartas de lei,
-de alvarás; conhece os trabalhos e as theorias de Bentham, de Krause,
-de Kant, de Grotius, de Blackstone, de Calvo, etc., etc., mas ignora
-absolutamente e precisamente o que é mais essencial a um Administrador,
-mercê da insufficiencia dos programmas officiaes e da falsa orientação
-que na Universidade preside á incubação d’um bacharel.
-
-A educação social do individuo deve adaptar-se ás condições e exigencias
-do cargo a que se destina. Um medico aprende a curar feridas; um militar
-a fazel-as; um escrivão de fazenda a tirar camisas; um boticario a
-preparar tisanas; um paysanduco a contar cucharras; um _espirito-santo_ a
-inspirar tolices; um Zinão a reforçar sinapismos.
-
-Para lá da esphera profissional que a sua educação lhe circumscreve, o
-individuo torna-se um ser inutil, prejudicial, incommodo.
-
-É o que succede com V. Ex.ª
-
-V. Ex.ª cursou todas as cadeiras exigidas no programma official d’um
-bacharelado: direito romano, dito penal, dito commercial, dito civil,
-dito internacional. Sahiu habilitado para tudo: para defender, accusar,
-aconselhar, chicanar, fazer do direito torto e do que é torto direito, em
-questões de aguas de rega, de fóros, de fallencias, de peculatos.
-
-Para o que não sahiu habilitado é para Administrador do concelho.
-
-Tem V. Ex.ª culpa d’isso?
-
-Não. Tem-na quem organizou os programmas para a faculdade de Direito.
-
- * * * * *
-
-Na minha humilde opinião, ao curso de Direito devia accrescentar-se mais
-um anno, para trabalhos praticos na cadeira de _Politica legal_.
-
-N’esse anno, os futuros bachareis teriam de resolver, praticamente, entre
-outros, os seguintes problemas:
-
-
-1.º
-
-Empalmar uma eleição
-
-No meio da sala seria collocada a urna. Alguns alumnos representariam a
-opposição. Com os restantes constituia-se a mesa: presidente, secretrios,
-escrutinadores, olheiros, capatazes, abbades e caceteiros.
-
-O examinando teria de satisfazer ás seguintes provas, sem que a opposição
-percebesse a fraude.
-
- _a_) Introduzir rapidamente na urna um maço de listas
- governamentaes.
-
- _b_) Riscar os nomes dos eleitores reconhecidamente
- opposicionistas.
-
- _c_) Incluir na _chamada_ e fazer substituir por _mirones_
- todos os mortos da freguezia.
-
- _d_) Inutilizar imperceptivelmente com borrões de tinta as
- listas dos contrarios.
-
- _e_) Entornar um tinteiro na urna, quando a eleição se
- considerar perdida.
-
- _f_) _Armar_ uma _baralha_ na egreja; derrubar mezas, cadeiras,
- quebrar cabeças aos eleitores; dar, até, pancada nos santos e
- fugir afinal com a urna.
-
- _g_) _Empalmar_ uma acta. (Para esta prova o examinando poderia
- consultar os tratados especiaes que, sobre tal assumpto, tem
- escripto o Ex.ᵐᵒ Sr. Dr. M. Thomaz.
-
-
-2.º
-
-Uma fala aos lavradores
-
-Antes da eleição (modelo _a_):
-
- _Olé amigo! Toque. Dê cá um abraço.—Esta é a sua filha? Está
- uma fiôr; tem juizo, rapariga!—Sabe que arranjei um subsidio
- para as obras da torre? Custou, mas arranjou-se.—Você não tem
- um filho no recrutamento? Recebi hoje carta de Vianna em que me
- dizem que vae ser isento.—Aquella é a tal propriedade em que
- esses ladrões lhe lançaram quatro pintos? Eu amanhã arranjo
- isso na Fazenda; o mais que deve pagar é um pinto.—Pegue lá um
- cigarro. Com franqueza; fume á vontade, que é brandinho. Não
- tem lume? Metta á bocca... Prompto!—É verdade: já me esquecia.
- Você é dos nossos; amanhã é a eleição. Homens honrados são do
- nosso lado. Já cá o tenho na cabeceira do rol—Diabo! tenho o
- seu nome na ponta da lingua...—Zé da Portella, exactamente.
- Aqui tem uma lista. Mande para o diabo a outra canalha.—Adeus.
- Ás ordens sempre, sempre, para o que quizer.—Dé cá outro abraço
- que é de amigo. Adeus._
-
-Depois da eleição (modelo _b_):
-
- —_V. Ex.ª dá licença?_
-
- —_Entre!!_
-
- —_Louvado seja nosso..._
-
- —_Que quer!?!_
-
- —_Eu sou o Zé da Portella, aquelle..._
-
- —_Venha logo, venha logo; tenho mais que fazer._
-
-
-3.º
-
-Organizar rapidamente o orçamento d’uma «borga» eleitoral, dada a
-capacidade cubica das barrigas dos abbades e a permeabilidade alcoolica
-dos tecidos intestinaes.
-
-A resolução d’este problema requer os seguintes conhecimentos:
-
- _a_) Saber o preço dos carneiros, dos _calhos_, do vinho, das
- batatas, das resteas d’alhos, do pimentão, etc.
-
- _b_) Saber applicar o ammoniaco no caso provavel d’uma
- borracheira.
-
- _c_) Saber receitar um purgante e manejar uma seringa na
- delicada operação do crystel.
-
- _d_) Saber ouvir de confissão qualquer bruto que estoire
- repentinamente com a indigestão.
-
-
-4.º
-
-Redigir uma informação favoravel á imposição de qualquer transferencia,
-embora ella vá lançar na miseria a familia d’um funccionario honesto.
-
-Modelo:
-
- _Esta transferencia torna-se necessaria e até indispensavel á
- boa solução dos nossos negocios. O homem é regenerador. Diz
- por ahi o diabo do Marianno. Alem d’isso, embirra com o A. Ora
- este A. segura o O., que vale os seus cincoenta votos. Com o
- A. não podemos contar, porque é dos amphibios e vae para quem
- mais der. Por aqui já se rosna na transferencia e todos berram
- que é uma infamia. O homem tem oito filhos. Que isso não influa
- no animo de V. Ex.ª. Quanto mais distante fôr a sua collocação
- melhor, porque mais desafogados ficamos. Espero solução rapida.
- Resposta telegraphica. A victoria depende d’esta transferencia._
-
-
-5.º
-
-Conclusões varias sobre a elasticidade do Direito administrativo
-
- _a_) F. (governamental) _tem uma burra. Só paga decima quando
- fôr da opposição._
-
- _b_) F. (gov.) _tem um rendimento collectavel de reis 100$000.
- Reduz-se a 50$000._
-
- _c_) F. (opposição) _é professor e politico contrario.
- Retiradas as gratificações sob qualquer pretexto._
-
- _d_) F. (gov.) _requer uma policia correccional contra X. Pedra
- nos autos_.
-
- _e_) F. (op.) _é filho unico e amparo da familia. Intimado para
- em tres horas se apresentar á inspecção._
-
- _f_) F. (gov.) _é forte como um toiro e robusto como um
- Hercules. Entra ámanhã na inspecção. Isento por tisico._
-
- _g_) F. (gov.) _é gallego e intrujão. Na gazeta do partido
- illustre correligionario e probo cidadão._
-
- _h_) F. (op.) _é homem de bem; eu tambem o creio... apesar de
- que dizem por ahi (eu não acredito) que é ladrão e salteador de
- estrada._
-
-
-6.º
-
-Dirigir nos campos da politiquice, com a aguilhada da administração, o
-rebanho dos camaristas.
-
- Este problema exige dois mezes de tirocinio com os boieiros do
- Alemtejo, para se apprender a deitar o laço e a reunir á manada
- qualquer boi tresmalhado.
-
- * * * * *
-
-Ora diga-me V. Ex.ª: n’estes tres mezes em que tem empregado a sua
-actividade nas coisas da nossa administração não encontrou ainda em
-equação, sobre a sua mesa de trabalho, todos esses problemas?
-
-E resolveu-os?
-
-Não os resolveu, porque a sua consciencia e a sua dignidade esperam,
-ainda, as provas de elasticidade e de resistencia que necessitam para a
-tensão das patifarias politicas.
-
-V. Ex.ª tem feito um pessimo logar.
-
-Nem come os _calhos_ dos abbades, nem é paysanduco, nem é _provarei_, nem
-deita foguetes.
-
-Se não fosse a luminosa e providencial influencia do seu Ex.ᵐᵒ
-Substituto, homem de assaz provado engenho e competencia em assumptos de
-Direito administrativo e ilhas adjacentes, V. Ex.ª envergonhava a terra,
-o partido e os amigos, a cujo numero eu tenho a honra de pertencer.
-
-V. Ex.ª não tem _feitio_ para Administrador.
-
-Em tantos de tal (ainda V. Ex.ª não tinha na gaveta, ao lado das piugas,
-a banda azul e branca) entraram no seu escriptorio os cidadãos Zé Pita,
-Tóne do Logar e Manel Cancella.
-
-Este Manel trazia uma questão com o sogro por causa das aguas da rega.
-
-Disse da sua justiça.
-
-V. Ex.ª ouviu, pensou e aconselhou.
-
-Zé Pita, cidadão que tem as suas fumaças de doutor _lareiro_, metteu a
-colherada no caso, muito lepido e escorreito com umas objecções ao douto
-conselho de V. Ex.ª
-
-V. Ex.ª ouviu, pensou e refutou: _artigo tantos_, _paragrapho tal_, etc.
-
-Vae n’isto—o Tóne do Logar, _home_ de representação e de lettras gordas
-na freguezia, chegou-se tambem _ao rego_ da discussão, e metteu o
-bedelho, descobrindo ainda outra hypothese.
-
-V. Ex.ª ouviu, pensou e concluiu.
-
-Ficára o caso liquidado entre os quatro doutores, digo, entre V. Ex.ª e
-os tres cidadãos.
-
-—_Quanto é?_ perguntou Manel.
-
-—_Dezoito vintens!_ respondeu V. Ex.ª
-
-Ficou estarrecido o homem. Nunca imaginára pagar um conselho por mais de
-tres patacos, muito especialmente agora que o João Moraes os annunciava
-a _quatro menos cinco_, para quem se avençasse ao mez.
-
-—_Sôr Doutor... talvez seja engano de Vóssoria, mas foi só um conselho..._
-
-—_Foram tres e não um!_ respondeu V. Ex.ª com aquella cara muito
-arrenegada que ás vezes tanto assusta a gente.
-
-—_Tres, meu senhor?_
-
-—_Você não falou?_
-
-—_E depois não falou outro?_
-
-—_E não falou depois outro? Tres vezes seis, dezoito._
-
- * * * * *
-
-Justissima era a reclamação.
-
-Nem os sete sabios da Grecia poderiam contestar a legalidade e a
-exactidão d’aquella operação arithmetica.
-
-Este simples facto revela a rispida e austera execução que V. Ex.ª
-dá aos sacratissimos principios da Justiça e da Equidade e revela,
-tambem, a incompetencia de V. Ex.ª para um logar onde, tendo tres, oito,
-dez ou vinte consultas diarias, nada poderá reclamar, quando venham
-recommendadas por o sr. Joaquim, ou por outro qualquer confrade politico
-que se lembre de fazer favores e de adquirir popularidade, á custa dos
-dois contos que V. Ex.ª gastou na formatura.
-
-Para estas coisas de Politica é preciso vêr muito ao longe, ter vista de
-caçador, e V. Ex.ª mesmo como caçador, é um desastrado.
-
-Nunca me hei-de esquecer d’aquella surriada que lhe fizeram os rapazes de
-Arão, quando V. Ex.ª lá appareceu com todo o seu arsenal de guerra.
-
-Um dia, o Rocha e o Leitão suggeriram no cerebro de V. Ex.ª as glorias de
-Nemrod.
-
-Depois de jantar, sahia V. Ex.ª com todos os petrechos de caça,
-inoffensivamente mortiferos. Uma solida _escopeta_ de carregar pela
-culatra; á cinta, um grandecissimo facalhão para escuchinar javalis; no
-bolso direito, uma enorme navalha de furar lobos; a tiracollo, d’um lado
-a cartucheira com trezentas cargas de polvora e bala; do outro lado, o
-canudo de cortiça com vinte e sete furões e furoas; no bolso direito do
-collete, um revolver de oito tiros; no esquerdo, um _box_ de quebrar
-dentes a cães e vinte exemplares do _Noticioso_ para _necessidades
-urgentes_; nos pés, aquellas grossas botas de sete solas impermeaveis,
-até, no Rio Minho; aos hombros, o capindó de borracha, gemeo do outro
-com que o Albino attrae a chuva por essas ruas, em dias claros e
-formosissimos de Primavera; atraz de V. Ex.ª, ladrando, farejando,
-saltando vallados e alçando as pernas, seguia a terrivel matilha,
-recrutada na Parada-velha: podengos de todas as raças e feitios, para
-coelho, para perdiz, para lobo: o _Nilo_, a _Fuinha_, o _Gigante_,—tó,
-_Nero_!—volta, _Farrusca_!
-
-Assim disposto e precavido, seguia V. Ex.ª por essas aldéas fazendo
-tremer o solo, os ceos, a terra, os mares, com o aspecto apavorador da
-sua ferocidade venatoria.
-
-N’isto,—alli ao pé de Arão, um triste pintasilgo risca no ar uma curva e
-vae poisar no arvoredo proximo.
-
-A matilha _amarrou_.
-
-V. Ex.ª toma ar, carrega a escopeta, aponta... toma outra vez ar...
-desfecha e olha.
-
-O passarito soltára uma gargalhada de escarneo e batera as azas, voando...
-
-Quando passou sobre a cabeça de V. Ex.ª, lá do azul dos ceos cahiu uma
-coisa sobre o seu excellentissimo nariz.
-
-A qual coisa, molle, pastosa, de côr cinzenta e com o feitio retorcido
-d’um S fez exclamar a um rapazinho que, de _carrapuço_ vermelho e mãos
-nos bolsos, a distancia presenciava o caso:
-
-—_Oh que grande caçador de minhocas!_
-
-E campos fóra de Politica, Ex.ᵐᵒ Sr., quando encontro V. Ex.ª armado de
-ponto em branco com a escopeta da Administração, cartucheira presa á
-banda azul e branca, matilha de abbades e rafeiros,—quando verifico que
-V. Ex.ª nem tem animo para disparar o bacamarte d’uma transferencia, nem
-sabe empalmar uma urna, nem falsificar uma acta, nem dirigir uma borga
-de _calhos_, nem descascar uma batata, nem deitar um foguete com ropia,
-nem tocar n’um gaiteiro, nem mentir com cara seria, nem perseguir os
-professores, nem desgraçar uma familia, nem deshonrar um funccionario,
-nem amesquinhar um merito, eu, Ex.ᵐᵒ Sr., n’esta occasião em que V. Ex.ª
-por ahi anda atrapalhado com a escopeta de dois canos que nas mãos lhe
-metteram, para dar o primeiro tiro contra a opposição—não posso reprimir
-estas palavras com que, conceituando politicamente V. Ex.ª, parodio o
-rapazito d’Arão:
-
-—Oh que grande Administrador das _duzias_!
-
-Aos pés de V. Ex.ª, curva-se respeitosamente o
-
- _Zinão_.
-
-
-
-
-XXIII
-
-Compadres e Comadres
-
-
-Decididamente, não se póde ser rapaz solteiro em Valença.
-
-Segundo reza a minha cartilha, os inimigos do homem são tres: mundo,
-diabo e carne.
-
-Cá na terra, os inimigos dos rapazes são tambem de tres especies: aguas
-de Christello, bailes e comadres.
-
-Todos estes inimigos teem procedencia diversa: um nasce na Assembléa,
-outro fóra de Portas, outro na Coroada.
-
-Todos teem um caminho:—o namoro.
-
-Todos teem um fim:—o casamento.
-
-Epilogo egual para todos:—o _conjugo vos_ do Magalhães e a Sr.ª Dona
-Maria do Hospital.
-
- * * * * *
-
-Berra-se por ahi contra os jesuitas, contra os abusos dos regeneradores,
-contra as tyrannias do João Cabral, contra tudo que póde affectar o livre
-exercicio dos nossos direitos e das nossas regalias.
-
-Ninguem se lembra de requerer uma querela contra as _comadres_ da
-Coroada, que ha dezenas de annos implacavelmente lançam ao pescoço dos
-nossos mais airosos jovens as gargalheiras do casamento e a colleira de
-_paterfamilias_.
-
- * * * * *
-
-Em bella manhã de Abril entra um raio de sol na alcova; acaricia-nos o
-rosto; faz-nos cocegas no bigode e diz-nos baixinho ao ouvido: _São seis
-horas; levanta-te, calaceiro! Lá fóra cantam as aves, exhalam aromas as
-flores; está tão bonita a campina... tão risonhos estão os prados...
-tão diaphana a atmosphera e tão azul o azul dos ceos... Vem commigo. És
-livre; não precisas de ajudar a lavar os pequenos. Vamos,—veste-te, que
-eu espero cá fóra._
-
-Vinte minutos depois, respiramos por esses campos o ether das madrugadas.
-A nossa alma inebria-se; sentimo-nos alegres, bons, fortes e felizes,
-porque somos livres. Desejavamos possuir umas botas de _sete leguas_,
-como as d’aquelles contos da infancia; trepar a todos os oiteiros, subir
-a todas as collinas, saltar por todas as planicies.
-
-Phantasiamos azas como as da cotovia que se libra nos ares, cantando
-hymnos de jubilo, de liberdade, de amor.
-
-Horas depois regressamos a casa. Á entrada, a sopeira entrega-nos
-mysteriosamente uma caixinha dos collarinhos, ou dos pós da gomma,
-cuidadosamente atada com fita de seda azul.
-
-Abrimos:
-
-Dentro, muito secio e garrido, um palmito; ao lado, teso e perfilado, um
-cartão de visita:
-
- _Fulana de tal._
-
-Desde aquelle momento, o _bacillo virgula_ do matrimonio inficiona o
-nosso organismo. Perdemos a vontade de comer, damos ais, suspiramos á
-lua, fazemos versos, cantamos o _choradinho_ e principiamos a cuidar nas
-roupas brancas.
-
-Se não mudamos immediatamente de terra, unico remedio efficaz, estamos
-perdidos.
-
-Que me conste, até hoje, dos atacados pela fatal molestia só resiste um—o
-Velloso. Se escapa até aos quarenta, vae para o museu do Inglez.
-
- * * * * *
-
-Perde-se em a noite dos tempos a origem d’essa funesta cerimonia:—_a
-eleição dos compadres_.
-
-Sei que dubia é, ainda, a tradição que a localiza na Coroada; porquanto,
-auctores varios e jurisconsultos sisudos estabelecem no centro da villa a
-instituição de tão perfidas solemnidades.
-
-As pandectas da Assembléa, os folios da Collegiada, os annaes da Ex.ᵐᵃ
-Camara nada informam a tal respeito. Em vão os consulto em frequentes e
-longas vigilias.
-
-Esta prioridade de direitos na organização do escrutinio annual tem por
-vezes suscitado controversias violentas e disputas acaloradas entre os
-pacificos habitantes da rua de S. João e os da Coroada; e se não fôra a
-sisudez, prudencia, diplomacia e tino politico dos conspicuos inquilinos
-do Santo Precursor, certamente já teriamos a lamentar successos graves e
-não pouco deploraveis acontecimentos.
-
-No emtanto, a malquerença entre os dois povos existe e existe evidente.
-
-Na rua de S. João, um habitante da Coroada nunca foi um cidadão da
-villa:—foi, e é um _pelludo_ da aldéa; e a esta offensa responde a
-Coroada affirmando a superioridade dos seus costumes e dos seus habitos,
-allegando, com assaz persuasiva logica, que não tem lá, nem precisa, de
-Borralhos ou de Egyptos.
-
-A origem de tão lastimaveis dissensões está na eleição das _comadres_.
-
- * * * * *
-
-A epocha d’esta cerimonia não foi, como alguem poderá imaginar, fixada ao
-acaso. Fixou-se traiçoeiramente para o domingo de Ramos.
-
-Domingo de Ramos quer dizer: Semana santa e Paschoa—isto é—_soirées_ na
-egreja e na Assembléa e—mais ainda—chavenas de chá sem assucar preparadas
-pelo Cruz com agua do Christello.
-
-Aos olhos incautos isto nada significa, mas significa muito para o
-espirito do observador, porque lhe mostra em caminho perfeitamente livre
-e desembaraçado, juncado de rosas e saturado de aromas,—a comadre e o
-compadre amarrados um ao outro com as fitas de seda do palmito e da caixa
-das amendoas. Vão alegres, risonhos, chilreando, sorrindo, despenhar-se
-no abysmo sombrio do matrimonio, onde o Magalhães, com uma saia de mulher
-aos hombros, attencioso e mitrado, lhes desfecha quatro tretas de latim.
-
-O palmito aproxima o compadre da comadre: _agradeço a V. Ex.ª—dou-lhe os
-meus sentimentos, porque foi infeliz na sorte—merecia compadre melhor, e
-tal, etc._,—diz elle.
-
-—_Oh sr. Fulano! Por quem é!... fui até a mais feliz.—Cá espero as
-amendoas.—Olhe que é uma vergonha se as não dá.—Quero vêr, eu quero vêr
-como se porta_—diz ella.
-
-Ao despedir, um cumprimento demorado, um sorriso, um olhar... e compadre
-e comadre trocam mentalmente, na visão doirada do futuro, o grau do
-parentesco.
-
-Magalhães surge ao longe, entre nuvens côr de rosa.
-
-A sr.ª Dona Maria do Hospital pisca graciosamente o magano olho
-esquerdo...
-
- * * * * *
-
-Na quarta-feira santa, entra um rapazito no portal; bate as palmas—_sou
-eu!—faz favor?_—e entrega uma perfumada caixinha, toda alegre e catita,
-oiro e setim azul, recheada de amendoas e confeitos.
-
-No fundo espreguiça-se sorrateiramente uma carta.
-
-Rubôr ás faces, noventa pulsações por minuto, leitura tremula, arfar de
-seios, um suspiro, dois suspiros.
-
-Lê-se, relê-se e torna-se a relêr a carta.
-
-Trabalha o ferro de frisar com mais cuidado, estuda-se uma prega mais
-graciosa para a mantilha, flor ao peito para o que der e vier, e—entra a
-_comadre_ na egreja.
-
-Quando abre o livro das orações, já não atina com o _Padre-Nosso_ nem
-com a _Ave-Maria_. Com os olhos da imaginação, só vê e lê os caracteres
-seguintes:
-
- _Minha senhora._
-
-_Vel-a e amal-a, foi obra d’um momento. Quiz a fagueira sorte escolher-me
-para compadre de Vocellencia. Bemdita seja ella que me aproximou de quem,
-ha muito tempo, é o enlevo dos meus olhos, a alegria da minha alma, a
-ventura do meu coração. Tomo a ousadia de offerecer a Vocellencia as
-amendoas «inclusas». Desculpará Vocellencia. Na minha terra fazem-nas
-muito bem feitas. Doces d’ovos e amendoas são as especialidades. Se o
-Papá e a Mamã gostarem, eu mando vir mais. É bom comer poucas, porque são
-muito indigestas e fazem dôres de barriga. Serei correspondido n’este meu
-amor? Oh ceos! Quanto anhelo sabel-o! De Vocellencia_
-
- _até á morte_
-
- _V._
-
- * * * * *
-
-Durante as _licções_, n’aquelles intervallos em que o Albino canta o seu
-_macarronico_, o Padre Alexandre gargareja o melhor e o mais brunido do
-seu latim e os outros padrecas se revezam, previamente annunciados pelo
-rapaz sacrista que, de saiote vermelho, vae apagando, um a um, os treze
-tocos da girandola—compadre e comadre libram as suas almas pelas naves
-d’um mystico arroubo, ebrios de felicidade, de esperanças risonhas, e
-dulcificados fartamente com amendoas de Tuy e rebuçados de avenca.
-
-Á noite, na visita ás casas do Senhor, o compadre acompanha a comadre.
-Atraz, cochicham o futuro sogro e a futura sogra. As beatas, ao longe,
-segredam mais um casamento... Compadre e comadre já se tratam por tu.
-Fica combinado o _gargarejo_.
-
-—_Amo-te_—_boas noites_—_até amanhã_.
-
-Domingo de Paschoa.
-
-Baile na Assembléa.
-
-A _comadre_, quando alguem a pede para dançar _de roda_, está sempre
-compromettida. Só dança com o _compadre_.
-
-_Compadre_ escolhe os melhores doces para a _comadre_; rodeia de
-attenções a Mamã da dita _comadre_; entretem o cavaco com o Papá da dita
-_comadre_; é _vis-à-vis_ do Mano da dita _comadre_.
-
-As amigas da _comadre_, quando o _compadre_ está em pé, arranjam-lhe logo
-um logar ao pé da _comadre_.
-
-—_Comadrinha vae, compadrinho vem._
-
-No fim da noite, entram já na conversa as roupas de linho, de panno cru,
-as caçarolas, as panellas.
-
-Lá ao longe, muito ao longe, sempre em nuvens côr de rosa, a fugitiva
-miragem d’um cavalheiro, irreprehensivelmente encasacado, gravata e luvas
-brancas,—curvado em graciosa mesura perante o Papá e a Mamã.
-
-Um pedido—um _sim, Papá!_—uma lagrima da Mamã—um _ai!_ e um fanico.
-
-Dois mezes depois, Padre Magalhães dá o nó; e o mesmo raio do sol, que
-em Abril nos despertava, penetra indiscretamente na alcova nupcial e
-segreda-nos ao ouvido:
-
- _forte lôrpa!_
-
-Annos passados, quando compadre e comadre teem quatro filhas casadoiras,
-são elles que reclamam a eleição.
-
-Cada _palmito_ que sai de casa é um anzol.
-
-Para o Velloso—oh Paes de familia!—só a _coca_ ou o botirão.
-
- * * * * *
-
- Gentis senhoras da Coroada!
-
-Por piedade! Acabae com este tributo mais violento e mais horrivel do que
-o tributo de sete mancebos e sete donzellas que, outr’ora, Athenas pagava
-a Creta.
-
-Por piedade, senhoras!
-
-Arrebataes, annualmente, lá para cima, a melhoria dos mancebos, a nata
-da mocidade, a fina essencia da juventude, que depois abandonaes a
-essas ruas—obesos, gordurosos, crivados de callos, _paterfamilias_ de
-_cache-nez_, lenço tabaqueiro e barretinho d’algodão.
-
-D’aqui a pouco não ha um rapaz solteiro em Valença; e como as
-estatisticas demonstram que, para cada mancebo casadoiro ha, entre nós,
-vinte damas em disponibilidade, attentae que não é risonho o vosso
-futuro, porque está provado á evidencia, que os rapazes de fóra sabem
-escapar á magia dos vossos palmitos.
-
-Vêde o Velloso, o Leopoldo, o Gomes da Artilheria, o Prado, o dr. Brandão.
-
-Transijamos, pois, gentis damas:
-
-Nós estamos promptos a enviar annualmente para a Coroada, quarenta
-arrobas de amendoas e quarenta dictas de rebuçados dos melhores e dos
-mais ricos que tenham o Có-Có, e o Telmo Parada.
-
-Outrosim nos compromettemos ao pagamento d’um tributo annual de tres
-mancebos casadoiros, que vos serão entregues no domingo de Ramos, ao meio
-dia, em frente das _Alminhas_, com os respectivos bahus de roupa branca:
-camisas, ceroilas, piugas, barretinhos de dormir, pannos da barba.
-
-Para o pagamento d’este tributo organizaremos um gremio, como o dos
-negociantes, na distribuição da decima.
-
-Os tres desgraçados serão indicados pela sorte. Irão esses para as negras
-penas do matrimonio, mas, ao menos, os restantes poderão em todo o anno
-andar satisfeitos, alegres, livres de melancholias e de... _palmitos_.
-
-Sou casado tres vezes, senhoras! O Magalhães que o diga...
-
-E tanto ás defunctas consortes, como á companheira actual, quem me
-prendeu foi a vossa eleição.
-
-Por isso, quando agora vejo um palmito é o mesmo que vêr o diabo.
-
-Em nome da mocidade, protesto contra a
-
-=eleição das comadres!=
-
-
-
-
-XXIV
-
-Ultimas palavras
-
-
-Na vida social, uma povoação possue a complexidade do organismo d’um
-individuo. Pode estudar-se physiologicamente e psychologicamente.
-
-Tem sentimentos, expansões, dôres, coleras, alegrias; tem orgãos,
-musculos, enfermidades e lesões; periodos de vigor, de engrandecimento e
-de decadencia.
-
-Athenas foi a alma da civilização hellenica; Sparta teve a musculatura
-dos fortes na hegemonia das cidades gregas; Roma cingiu o mundo com os
-seus braços de ferro; na gloria dos seus triumphos e das suas conquistas
-teve a vertigem da sensualidade e do prazer; libertinou-se, effeminou-se
-e apodreceu na enxurrada das sargetas.
-
-Paris ri; e Londres, embrutecida com o _gin_, com as _fresh-girls_ e
-com os deboches de Cleveland-Street, offerece o nojento bandulho ao
-facalhão de Jack, ou escouceia no _match-box_ do Pelican Club, em que
-dois homens se esborracham a sôco, com grande gaudio d’isso que é a
-quinta essencia da pelintrice, do egoismo, da ambição, do orgulho, da
-_pataqueirice_ réles da viella e que nas altas espheras do _High-life_,
-em _Leicester Square_, no _Regent’s Park_ ou no _Covent Garden_ se
-intitula pomposamente—um _lord_!
-
- * * * * *
-
-Appliquemos aqui, aquella conhecida theoria de Broca sobre a relação
-entre o volume cerebral e a intelligencia.
-
-O volume do cerebro pode, segundo o eminente sabio, indicar maior ou
-menor desenvolvimento intellectual.
-
-Ora, o que é o cerebro?
-
-É a parte pensante do organismo.
-
-N’este individuo social—uma povoação—onde o devemos procurar?
-
-Na sua parte illustrada; nos filhos que se distinguem pelas
-manifestações da sua actividade mental, e, assim, poderemos dizer que
-o numero d’elles está para a consideração e importancia intellectual
-do individuo—povoação—como o volume do cerebro está para o
-individuo—homem.—Tanto maior, quanto mais illustrada, tanto menor quanto
-menos culta.
-
-E admittido isto, desassombradamente podemos affirmar que nenhuma outra
-povoação do paiz, com egual numero de habitantes—nas cathedras do
-Ensino superior, nas elevadas posições do Exercito, nos altos cargos da
-Magistratura, na Classe medica, na Advocacia, no Commercio e frequentando
-ainda os cursos superiores—tenha numero egual, que não superior, de
-filhos, e tão, que não mais, distinctos.
-
-Mas, honrosa como é esta superioridade tambem ignobil e infamante é a
-indolencia a que nos entregamos, com que abandonamos os nossos direitos
-politicos, com que ficamos de bocca aberta e mãos nos bolsos, na triste
-impassibilidade do fackir, assistindo, impotentes como um eunucho, a
-essa activa evolução que impulsa as mais insignificantes povoações,
-transformando-as com os benesses das modernas instituições e levando-lhes
-as arterias á hematose dos grandes centros civilizados.
-
-O titulo de _burgo podre_, com que realmente este concelho é mencionado
-em Lisboa, deve ser para nós mais degradante do que a marca a fogo do
-grilheta e do forçado.
-
-Tempo é de nos libertarmos d’essa tristissima condição de barregan, em
-eterna dependencia de qualquer tia, velhaca e rufiona que á nossa custa
-encha a pança e o _pé de meia_.
-
-Na choldra da prostituição politica do nosso paiz ha circulos que
-necessitam de caricias e de namoro; ha circulos fieis, ainda que
-rarissimos; ha-os de pernas abertas para quem mais der, e ha-os
-_pataqueiros_ destinados a desvirgar os meninos lisboetas, ou a entregar
-o corpo ao primeiro pandego, que lá de Bijagóz ou de Paio Pires, se
-lembre de passar por elles, fazendo caminho para ir ajudar a embolar os
-toiros no curro de S. Bento.
-
-Esta é a nossa triste condição.
-
- * * * * *
-
-Ha seis ou oito annos que n’este _burgo podre_ se manifestaram uns debeis
-symptomas de vigorização politica. Regosijei.
-
-Pareceu-me que ainda poderia ver Valença como as outras terras; á mesa
-do orçamento, com o seu logar marcado e o seu talher, e não como então
-estava: debaixo do banco, apanhando de quando em quando o osso esfolado e
-o pontapé do _gajo_ que a levara pela trela do voto.
-
-Vans esperanças! Antes o Passado. Appareceu effectivamente a Politica,
-mas esfomeada, esqueletica, larvada, com manhas de gato lambareiro e
-caricias de cadella aluada.
-
-Anichou-se por ahi, comendo á _tripa-forra_ e passando o tempo ao sol, de
-barriga para o ar e carcela desapertada.
-
-Tem dichotes de histrião e insultos de fadista. É insupportavelmente
-porca: onde toca deixa baba; onde poisa deixa excremento. Quando fala não
-deita perdigotos, deita escarros; quando escreve não o faz com tinta, mas
-com pus.
-
-Se graceja causa nauseas, se chora provoca o pontapé.
-
-Examinada physiologicamente encontramos-lhe deficiencia de orgãos. É
-impotente e a impotencia organica reflecte-se na alma, porque não tem
-enthusiasmos, nem aspirações, nem... vergonha.
-
-Conjuga só um verbo:—comer; só conhece um pronome:—nós.
-
-Muda de patrão de tres em tres annos. Pouco se importa com isso. Se elle
-a trata mal, agacha-se, servil e humilde; se a trata bem, esfarrapa-lhe
-uma cannela ou levanta a perna e... molha-o.
-
- * * * * *
-
-Um ataque de epilepsia politica agita actualmente os magnates eleitoraes.
-
-Está no chôco novo deputado...
-
-Indigitam-se dois filhos da terra como candidatos.
-
-A rua de S. João torce o nariz...
-
-Esta rua de S. João representa os mesmos _chimpanzés_ que, em tempos,
-rejeitaram o sr. dr. Illidio Ayres para facultativo do Hospital e o sr.
-dr. José Vieira para medico da Camara.
-
-Para que V. Ex.ª conheça bem a gente que o rodeia, sr. dr. Pestana,
-aconselho-o a que peça pormenores ácerca das discussões que o seu nome
-provocou nos _centros_.
-
-_Arrufos, gréves, amuos, etc._
-
-Diz V. Ex.ª que o Zinão é _politico_ e _má-lingua_.
-
-Contra a primeira accusação protesto respeitosamente, e rogo a V. Ex.ª
-que faça melhor conceito do meu caracter.
-
-Emquanto á segunda, direi a V. Ex.ª que tem mais a recear da _boa-lingua_
-e da _fidelidade_ dos seus _pseudo-partidarios_, do que da critica
-zinoica.
-
-Eu defendi sempre a candidatura d’um filho da terra, emquanto que os seus
-_amigos_... Informe-se, informe-se V. Ex.ª, porque talvez isso lhe seja
-proveitoso.
-
- * * * * *
-
-Os trabalhos eleitoraes teem peripecias engraçadissimas que davam para
-novo volume de _Sinapismos_.
-
-Abstenho-me, porém, de explorar esse inexgotavel filão de ridiculos,
-existente na massa cerebral—grude de sapateiro e pura secreção de
-rins—dos nossos politiqueiros.
-
-Tenho na minha frente dois filhos de Valença. Não sei, nem quero saber
-qual d’elles tem mais probabilidades de vencer.
-
-Oxalá que todas as difficuldades desappareçam; que todas as indisposições
-terminem, que todos os esforços se reunam e que esta terra possa,
-finalmente, ter em S. Bento um representante util e proveitoso, como deve
-ser qualquer dos seus filhos.
-
-Seja qual fôr o vencedor e a opinião politica que perfilhe, eu saúdo
-n’elle o valenciano que recebe o mandato dos seus patricios, e oxalá
-que a eleição de 30 de março de 1890 seja o inicio d’uma politica
-digna, purificada de trampolinices, de arruaças, de _borralhadas da
-Santa_,—independente de histriões e de tartufos, que até á data teem
-manchado a consideração d’esta terra com o infamissimo labéo de
-
- =burgo podre!=
-
-Eis o que para Valença deseja o _má-lingua_ do
-
- _Zinão_.
-
-
-
-
-NOTAS
-
-
-[1] Este artigo foi publicado, quando a Junta de Saude inventou o
-Microbio de 1889.
-
-[2] Este _digo_ não é consequencia d’uma simples abstracção do meu
-espirito. Originou-se no tratamento, ha dias applicado no posto de
-desinfecção do Caes, onde os viandantes eram considerados parreiras
-phyloxeradas e polvilhados com enxofre... a folle de sopro.
-
-É economico e não faz bem nem mal.
-
-Antes pelo contrario...
-
-[3] Isto é francez e do mais decente.
-
-[4] Com esta classificação é que foi ás nuvens o sr. dr. Pacheco. Nunca o
-vi tão zangado, a não ser quando aquelle barqueiro de Vigo lhe respondeu
-á lettra...
-
-[5] Salvo seja.
-
-[6] Para partos era o melhor clinico que cá havia. As senhoras viam-lhe a
-barriga e... suppunham logo simultaneidade de soffrimento.
-
-[7] Justininho.—Desculpa se foi tolice. Faz como o sr. Illydio
-Dias:—declaração nos jornaes. Eu cá não me zango.
-
-[8] A metrificação é livre, como a setta no ar.
-
-N’estas coisas de versos, sigo a opinião do Capitão-mór da _Morgadinha_:
-o papel é para se escrever e não para se estragar com versos de quatro
-syllabas.
-
-[9] O que arde cura, diz o _Pimpão_ e confirma a sagrada Escriptura.
-
-[10] Podemos fallar á vontade, que isto é grego para o sr. Joaquim...
-
-[11] Do natural.
-
-[12] Copia do natural. Recommendo aos leitores que tomem um bocado d’ar;
-especialmente aos que soffrem d’asthma.
-
-[13] Ortographia sonica.
-
-[14] Historico.
-
-[15] Um bocado de latim, no meio d’estas coisas, faz sempre bom effeito,
-porque dá á gente um tom de sabio. Se foi asneira Vossa Excellencia
-desculpará... Do que me ficou do Conego Vaz, foi o melhor que pude
-arranjar. Vossa Excellencia tem cara de quem sabe muito latim.
-
-[16] Historico. Anno de Nosso Senhor Jesus Christo 1886.
-
-[17] Para vergonha nossa, direi que tão bello regulamento é o que ainda
-vigora n’esta terra. Em leis civilisadas, ou Valença, ou as terras do
-Kalakana...
-
-[18] Esmiuço, aqui, materia conhecida, para boa comprehensão d’alguns,
-menos versados em Sciencias naturaes. Em questões de tanta magnitude,
-toda a clareza é pouca.
-
-[19] Nem tudo se póde dizer claramente. Ha sempre quem dê mau sentido ás
-coisas...
-
-[20] A camara, n’essa occasião, era composta dos srs. Zagallo, Vieira,
-José Seixas, J. Lopes, Albino, J. Narciso e do orador.
-
-[21] Peço attenção para a redacção das propostas.
-
-[22] Ao verificar a impressão d’estas propostas vejo, com desgosto, que
-os typographos espalharam por ahi, sem nexo nem intenção, bastantes
-pontos, compromettedores para a candidez e honestidade de costumes
-d’alguns Cavalheiros. Ahi fica a declaração para os salvar da intenção
-criminosa.
-
-São coisas que succedem...
-
-[23] Sinto que as acanhadas dimensões d’este volume me não permitiam
-incluir um artigo, que esbocei, ácerca da origem do Patriarcha. Tem por
-titulo: _Aventuras do Patriarcha dos Gandricos e do seu amigo Gargalinho,
-em Paris da França_. É um estudo realista. Faço, porém, obra para dois
-tostões...
-
-[24] Não vá este artigo fundamentar suspeitas, ácerca das crenças
-do auctor. Zinão respeita a Religião e perfilha o que ella tem de
-sensato; mas só a admitte no Templo—depois de varrido de hypocritas, de
-traficantes, de escorropicha-galhetas e de icha-corvos—com um Evangelho e
-um Sacerdocio: a Caridade.
-
-[25] Depois do que expuz, acerca do _elogio-mutuo_, n’estas paginas, onde
-manuseio ridiculos, poderá alguem attribuir-me intenções provocadoras da
-tal _convenção_, com a referencia que ahi faço a um homem, que, entre nós
-destramente maneja a penna.
-
-Declaro que, n’estas e n’outras referencias, digo o que penso e o que
-sinto; sem pretenções a adulador, independente de preconceitos, de
-considerações pessoaes e das imposições dogmaticas com que, por ahi, se
-celebra e incensa muita _coisa_ vulgar e ôca.
-
-Não preparo o exito dos _Sinapismos_ com a offerta de exemplares ás
-redacções, ou aos amigos, que as frequentam, com aquelles galanteadores
-e irresistiveis offerecimentos de: _ao distinctissimo escriptor_, _ao
-precioso estylista_, _etc._, com que se arma ao reclamo,—porque d’este
-não necessito.
-
-Não viso á honra de ser considerado entre os litteratos, e por isso
-occulto o meu nome; não escrevo por especulação, e por isso offereço aos
-pobres qualquer producto do meu trabalho.
-
-Dos defeitos da obra, que são muitos, salvo-me com este desinteresse e
-com esta independencia de opinião.
-
-Não me dotou Deus com _feitio_ para incensar vulgaridades pretenciosas,
-nem tambem com orgulho e vaidade para repudiar, ou amesquinhar meritos.
-
-Entre a Critica e a minha individualidade está essa mascara:—Zinão. Se
-aquella me fôr hostil, respeital-a-hei no que tiver de sensato; se me fôr
-favoravel, francamente, não lh’o agradecerei, porque não peço elogios.
-
-Que este livro proporcione a quem o ler alguns minutos de distracção; que
-essa distracção valha _uns tostões_ e que d’esses tostões possa apartar
-_uns cobres_, que mitiguem alguma dôr—eis o que ambiciono d’este ignorado
-laboratorio, onde preparo os _Sinapismos_.
-
-[26] Não posso ficar calado perante um tão extraordinario acontecimento,
-como esse que o sr. Joaquim debate na imprensa, com as suas sessenta
-epistolas. Altero, pois, a ordem dos capitulos, que já estavam no prelo,
-para não perder a opportunidade d’estas linhas coordenadas á pressa,
-entre as espiraes azuladas de dois _Princezas_, de seis ao vintem.
-
-[27]
-
- Isto sem pimenta não tem graça.
- Foi só uma pitadinha...
-
-[28] Este _Marilio dos bosques_ já deu _sorte_ com os _Sinapismos_.
-D’estes é que eu queria mais...
-
-Uma pergunta: se Cuvier agora trabalhasse na sua zooclassificação, onde
-incluiria o Marilio?
-
-Oh Marilio!—tu respondeste com um peccado ao entregador dos
-_Sinapismos_...
-
-Approxima-te.
-
- Vira-te para cá...
- Agora para lá
- Pôe-te de _banda_...
- ..................
- ........... olha! Vae-te embora.
-
-[29] Já publicado.
-
-[30] Cumpre-me declarar, para respeitabilidade das instituições de
-segurança publica da nossa terra, que o sr. Sampaio não exercia,
-n’aquella epocha, as funcções de Commissario das Policias.
-
-[31] Consta-me que este cão foi depois resgatado pelo sr. dr. Pestana.
-Sua ex.ª está aqui e póde dizel-o...
-
-[32] São indigestos estes periodos. Talvez, até, que Vossa Excellencia,
-approximando a pituitaria, sinta os vestigios do mau halito, que essa
-casquilha matrona, D. Politica, exhalava, quando a auscultei para
-conhecer as causas da atonia que a consome.
-
-No entanto, queira Vossa Excellencia lêr. Talvez que, com estes
-sinapismos, a creatura melhore e lhe suba a côr ao rosto, indicio de...
-saude.
-
-Se Vossa Excellencia tal perceber, pôde haver cura.
-
-Eu (aqui á puridade) duvido.
-
-[33] Vejam-se os acontecimentos politicos de 21 de Outubro e 3 de
-Novembro e todos os outros d’esta especie.
-
-[34] No tocante a corpo commercial ou Valença, ou... Manchester.
-
-[35] Especializo estes cavalheiros porque são os mais calorosos n’esta
-questão.
-
-[36] Agua vae...
-
-[37] Classificando politicamente estes dois cavalheiros, declaro, para
-facilidade das futuras investigações historicas, que me refiro ao
-momento actual, e que faço obra pelo que ouço dizer e não pelas suas
-consciencias, que são inaccessiveis.
-
-[38] _Portugal contemporaneo_, do sr. Oliveira Martins.
-
-[39] Alludo á infamissima vingança que, ha annos, se perpetrou na
-habitação d’um cidadão, alli para os lados da Ponte.
-
-[40] Estava a publicação n’estas alturas, quando em Valença se resolveu a
-_Questão da Musica_, nas condições que eu previ.
-
-A _rusga_ foi, porém, tão desenfreada e, sobretudo, d’uma tal
-inopportunidade que não merece _sinapismo_: merece ventosa.
-
-[41] Estes F. ou C. são—já se vê—epicenos.
-
-[42] _Stratego_—posto militar, com honras de general. O _Archontado_
-era um dos poderes do Estado. Tinha nove membros; o terceiro, que
-commandava o exercito, chamava-se _Polemarcho_, mas, além d’este, havia
-os polemarchos inferiores, que tinham o posto inferior aos _strategos_.
-
-_Areopago_ era um tribunal civil, que eu aqui compararei—por exemplo—á
-nossa Excellentissima Camara.
-
-Intitulava-se o _Senado do Areopago_.
-
-_Eponymo_—era o mais graduado dos _archontes_ e, portanto, o chefe do
-partido, digo, do Estado.
-
-[43] _Ostracismo_—era a condemnação ao exilio... equivalente ás actuaes
-transferencias.
-
-[44] Aproximadamente 20 de Outubro e 3 de Novembro, pela nossa divisão do
-anno.
-
-[45] Estas camisas só eram usadas pelos fanaticos religiosos, porque
-arrancavam o coiro e... o cabello.
-
-[46] _Prytamos_—cidadãos poderosos.
-
-[47] Este nome é derivado d’um verbo: _cambronnear_, que teve uma leve
-referencia em Waterloo. Vem do sanskrito e conjuga-se: eu cambronneio, tu
-cambronneias, etc. Indica uma funcção organica.
-
-[48] Os _thetas_ constituiam a classe mais inferior dos cidadãos
-athenienses.
-
-[49] Não pude comprehender no texto se aquelle possessivo _seus_ se
-refere á cidade, se a Pericles.
-
-[50] _Eupatridas_—Proprietarios.
-
-[51] Kshatrias:—guerreiros da antiga India.
-
-[52] Sudras:—escravos.
-
-[53] Dmoes:—escravos para o serviço domestico.
-
-[54] Talentos:—moeda grega de valor variavel.
-
-[55] Coisa de tres kilometros...
-
-[56] Recordo aos meus leitores que este Pericles foi o iniciador, por
-suggestão, da eschola prudhommica.
-
-[57] Segundo as theorias recentemente apresentadas por philantropicos
-e honradissimos Cresus, o dever dinheiro é _coisa_ pouco escorreita de
-dignidade. A honradez não gasta da mesma tinta com que se acceita uma
-lettra. Um titulo de divida—documento d’uma transacção—é assim como a
-_marca a fogo_ que nas ancas do potro indica o nome do creador. O potro
-vende-se, recebe-se o dinheiro, mas o creador quando o encontra diz
-sempre: _aquelle é dos meus_.
-
-[58] Por decencia vejo-me obrigado a _inglezar_ esta e outras phrases.
-Saiba, porém, o leitor que todas ellas, significando as mais abjectas
-phantasias de Lord Deboche, foram publicadas nas columnas da _Pall Mall
-Gazette_, em quatro numeros de julho de 1885.
-
-[59] Só para bebedeiras não chegam cinco libras diarias a qualquer
-d’esses animaes. O duque de Edimburgo, por exemplo, exgotta ao jantar
-quatro garrafas de champagne e dois litros de cognac.
-
-[60] Pag. 155.
-
-[61] Direi, de passagem, que isto nem sempre succede. Notam-se, ás vezes,
-umas anomalias, uns desvios da força nervosa que partindo do cerebro,
-vae actuar n’outros musculos, produzindo manifestações de sentimentos
-oppostos aos que nos impressionaram.
-
-Por exemplo:
-
-Quando vamos ao theatro e ouvimos o sr. Sampaio _jeremiando_ o seu papel
-n’aquelle plangente e lugubre rhythmo d’uma _licção_ de _quarta-feira de
-trevas_ e vemos que elle tenta reproduzir com o rosto, com o gesto, com
-os olhos, as amarguras da sua alma atribulada por esta ou por aquella
-situação dramatica—nós não choramos; rimos e rimos a valer, com tanto
-mais furor, quanto mais afflictiva é a attitude do sr. Balagota.
-
-Outro exemplo:
-
-Quando o sr. Joaquim, depois de ler os _Sinapismos_, solta umas
-casquinadas de riso tirante a verdadeiro e lhe ouvimos dizer que sim,
-que o Zinão tem muita graça e desde que elle, Zinão, anda na rua, elle,
-sr. Joaquim, põe mais uma tranca na porta, a gente—em vez de rebolar
-no chão aos tombos com riso provocado por tão espirituosa facecia—fica
-muito séria, e até sente o quer que seja que instinctivamente vae
-enfiando em cada mão o dedo _mata-parasitas_ entre o _fura-bolos_ e
-o _maior-de-todos_, n’aquella posição com que o meu amigo M. Silva
-se previne cautelosamente contra os numerosos _amigos_ que no dia da
-Cruz—uma vez por anno, felizmente—lhe vão festejar a garrafeira.
-
-Spencer explica isto na sua _Physiologie du rire_:
-
-_La decharge de la force nerveuse peut se tourner en excitation pour
-d’autres nerfs qui n’ont pas de relation directe avec les membres et,
-ainsi, amener d’autres sentiments et idées._
-
-A individualidade do sr. Sampaio no convivio diario, por quaesquer razões
-desperta o riso; e a individualidade do sr. Joaquim, pela sua auctoridade
-_vice-administrativa_ e mais predicados ingenitos provoca a seriedade e o
-tal cruzamento dos dedos.
-
-Convivendo diariamente com estes cavalheiros, as impressões que elles
-nos causam vão, por assim dizer, armazenar-se em nosso cerebro,
-condensando-se e augmentando de intensidade em força nervosa.
-
-Quando, pelas facecias, ou pelas jeremiadas, elles nos communicam uma
-impressão mais forte, ha uma expansão brusca e violenta de força nervosa
-_armazenada_, que vae actuar em nervos e musculos correspondentes a
-sentimentos diversos.
-
-[62] Oh padre capellão: que rica _tirada_ para _um juramento de
-bandeiras_...
-
-Só falta: _é a terra que cobre os ossos de nossos avós!_
-
-
-
-
-Indice
-
-
- Paginas
-
- Duas palavras 5
-
- Aos pobres de Valença 9
-
- I—O microbio 13
-
- II—Passe-Calles 23
-
- III—Carta a Sua Ex. ª o Sr. Governador de Paysandu 63
-
- IV—Uma descoberta do dr. Charcot 79
-
- V—Perfis 91
-
- VI—Coisas de egreja 105
-
- VII—Litteraturas 127
-
- VIII—Quimtilinarias 135
-
- IX—Politiquices 145
-
- X—Violetas 169
-
- XI—Os quadros da Collegiada 177
-
- XII—O senhor deputado 189
-
- XIII—Carta ao Zé Senso 201
-
- XIV—A Questão da Musica 209
-
- XV—As muralhas 235
-
- XVI—A manifestação de 14 de janeiro 247
-
- XVII—A Sociedade dos Provareis 279
-
- XVIII—Uma recita de curiosos 299
-
- XIX—Transferencias 309
-
- XX—A questão ingleza 321
-
- XXI—A manifestação dos artistas 333
-
- XXII—Carta a Sua Ex. ª o Sr. Administrador 347
-
- XXIII—Compadres e comadres 363
-
- XXIV—Ultimas palavras 375
-
-
-
-
-Emendas
-
-
- PAG. LINH. ONDE SE LÊ LEIA-SE
-
- 54 24 d’uma fórma d’um modo
- 112 22 origem viagem
- 127 16 eminente imminente
- 162 10 e 16 Luiz XI Luiz XIV
- 177 11 paleonlithica paleolithica
- 180 12 as borrasse os borrasse
- 205 22 corcodilo crocodilo
- 239 5 nada valeram nada valerem
- 318 25 anavalharem anavalhar
-
-
-A perspicacia e benignidade do leitor confiamos outras irregularidades
-que n’essas paginas possa encontrar.
-
-
-
-
-
-End of the Project Gutenberg EBook of Sinapismos, by Zinão
-
-*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK SINAPISMOS ***
-
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-1.E.8.
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- The Project Gutenberg eBook of Sinapismos, by Zinão.
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-<body>
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-
-<pre>
-
-The Project Gutenberg EBook of Sinapismos, by Zinão
-
-This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and most
-other parts of the world at no cost and with almost no restrictions
-whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of
-the Project Gutenberg License included with this eBook or online at
-www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you'll have
-to check the laws of the country where you are located before using this ebook.
-
-Title: Sinapismos
-
-Author: Zinão
-
-Release Date: April 25, 2020 [EBook #61936]
-
-Language: Portuguese
-
-Character set encoding: UTF-8
-
-*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK SINAPISMOS ***
-
-
-
-
-Produced by Chris Curnow, Júlio Reis and the Online
-Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This
-file was produced from images generously made available
-by The Internet Archive/Canadian Libraries)
-
-
-
-
-
-
-</pre>
-
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_1" id="Pag_1">[1]</a></span></p>
-
-<div class="front-matter">
-
-<p class="mt3 right"><i>Numero <span class="u">49</span></i></p>
-
-<h1><i>Sinapismos</i></h1>
-
-</div>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_2" id="Pag_2">[2]</a></span></p>
-
-<hr class="chap" />
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_3" id="Pag_3">[3]</a></span></p>
-
-<div class="front-matter">
-
-<p class="titlepage"><i>Zinão</i></p>
-
-<p class="right"><i>Ridendo...</i></p>
-
-<p class="titlepage larger u"><i>Sinapismos</i></p>
-
-<p class="titlepage"><span class="gothic">Valença do Minho</span><br />
-1889</p>
-
-</div>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_4" id="Pag_4">[4]</a></span></p>
-
-<hr class="chap" />
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_5" id="Pag_5">[5]</a></span></p>
-
-<h2 id="DUAS_PALAVRAS">DUAS PALAVRAS<br />
-<span class="smaller">(A SERIO)</span></h2>
-
-<p>Essas paginas são para rir.</p>
-
-<p>Originou-as a curiosidade que despertaram alguns
-artigos humoristicos, publicados sob o titulo de <i>Ridendo</i>.</p>
-
-<p>Ha n’ellas referencias pessoaes, como não póde
-deixar de ser, para que os periodos não tenham a
-aridez dos discursos do sr. conselheiro Adriano Machado;
-mas são referencias á vida social e á parte
-que n’ella tomam as individualidades, que chamo ao
-tablado da ironia.</p>
-
-<p>Respeito sempre a vida particular e isso que ha
-de mais nobre e sagrado na sociedade—a familia.</p>
-
-<p>O leitor verificará que, na composição dos artigos,
-segui um processo de critica differente do usado, até<span class="pagenum"><a name="Pag_6" id="Pag_6">[6]</a></span>
-hoje, nas polemicas litterarias e politicas da nossa
-terra.</p>
-
-<p>Suscitada uma questão, exgottam os adversarios
-os argumentos mais ou menos concludentes, que as
-suas intelligencias lhes fornecem; depois, invariavelmente,
-vem a critica estulta e pueril da redacção dos
-periodos, sua composição grammatical, ortographia,
-etc., e conclue-se com as allusões á vida particular,
-em termos de collareja e argumentação de viella. Temos
-visto muito d’isso por cá...</p>
-
-<p>N’essas paginas ha artigos inoffensivos e ha periodos,
-em que a ironia é violenta—desde já o declaro—porque
-foram inspirados no affecto, que a
-esta terra consagro e no vehemente desejo que nutro,
-de que ella se liberte da ignobil inercia, que a
-domina e de influencias ridiculas, que a amesquinham.</p>
-
-<p>Descarna-se n’elles, com o escalpello do sarcasmo,
-a parte d’este organismo que a podridão ataca, applicando-se,
-como cauterio, o ridiculo e a gargalhada,
-como desinfectante; mas não influe n’essa operação a
-sensualidade brutal do estripador londrino, ou a ferocidade
-selvagem da sanguinolenta tragedia de Pantin.
-Ha a insensibilidade e a firmeza de pulso, que a
-Sciencia recommenda ao operador quando, para salvar
-orgãos essenciaes á vida, lhe impõe a immediata
-extirpação e cauterio violento d’outros, que o mal
-apodrece.</p>
-
-<p>Essas linhas foram, pois, pautadas pela dignidade<span class="pagenum"><a name="Pag_7" id="Pag_7">[7]</a></span>
-e nunca n’ellas predominou a influencia de resentimentos
-mesquinhos, ou a intenção de referencias offensivas,
-que seriam torpes, como anonymas.</p>
-
-<p>Eis o meu programma e se alguma vez se desfivelar
-a mascara do Zinão, oxalá que uma erronea
-interpretação do que se vae ler, não faça afrouxar a
-acção nervosa, que hoje me extende a mão de muitos
-amigos, que figuram n’essas paginas.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Passo a afinar a rabeca.</p>
-
-<p class="mt3 smaller">Valença—Novembro, 1889.</p>
-
-<p class="mt3 right"><i>Zinão.</i></p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_8" id="Pag_8">[8]</a></span></p>
-
-<hr class="chap" />
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_9" id="Pag_9">[9]</a></span></p>
-
-<h2 id="Aos_pobres_de_Valenca">Aos pobres de Valença</h2>
-
-<p>Entrevados, paralyticos, cegos, escrofulosos, tisicos,
-hydropicos,</p>
-
-<p class="right">—Velhos, mulheres e creanças,</p>
-
-<p class="noindent">que sois o producto dos residuos—<i>caput mortuum</i>—da
-Humanidade e por ahi vos arrastaes, penosamente,
-aos sabbados, disputando, á dentada, o magro <i>chabo</i>
-que ás descarnadas mãos, em publico e notorio arrôto
-de rothschildica generosidade, vos arremessam os poderosos
-Cresus da nossa terra;</p>
-
-<p class="noindent">—miseros, que tivestes a desventura de ver a luz do
-dia coada pelas frestas da mansarda, quando esses<span class="pagenum"><a name="Pag_10" id="Pag_10">[10]</a></span>
-mesmos atomos e moleculas a que deveis a vida, atrazando-se,
-ou adeantando-se no seu labutar constante,
-podiam gerar-vos entre arminhos e flôres, entre aromas
-e caricias;</p>
-
-<p class="noindent">—precitos, que dormitaes, tiritando e gemendo com
-fome, enroscados, como cães, na ampla escadaria da
-Assemblea, em noites de baile e de festa e vos vêdes
-apartados, como reprobos, isolados como hydrophobos,
-do ruidoso e alegre tumultuar da vida, em
-que ha risos, mulheres formosas, affectos e diamantes;</p>
-
-<p class="noindent">—párias, que a doença algemou ao catre da dôr, e a
-quem a luz formosissima da alvorada vae encontrar
-no estertor da agonia, nas convulsões do soffrimento,
-nas infernaes torturas da miseria—essa mesma luz
-que desperta e illumina a caravana alegre, quando,
-exhuberante de vida, de mocidade e de prazer segue,
-ruidosa, ao Faro, para respirar o oxygenio das montanhas
-e admirar as sorridentes paisagens da Natureza,
-d’essa desalmada Mãe, que para vós só teve
-quadros sombrios, horrores, vendavaes de infortunio,
-abysmos de soffrimento;</p>
-
-<p class="noindent">—famintos, que espreitaes com olhos soffregos os doirados
-salões de Pantagruel e de Gargantua, e vos
-sentis deslumbrados com o faiscar dos crystaes, alcoolisados
-com os aromas das iguarias, estonteados<span class="pagenum"><a name="Pag_11" id="Pag_11">[11]</a></span>
-com o espumar do <i>Champagne</i>, até que o lacaio vos
-atire o osso que o mastim disputa, ou vos expulse a
-chicote, para que a miseria dos farrapos nojentos, o
-fetido dos membros descarnados, a pallidez cadaverica
-da face, não vão perturbar a alegria dos convivas,
-recordando-lhes que ha por este mundo gente que
-nasce, vive e morre, sem conhecer o que é <i>Champagne
-frappé, Punch à la romaine, ou Riz de veau à la
-Tartare</i>;</p>
-
-<p class="noindent">—imprudentes, que vos atreveis a bater á porta do
-Hospital depois das oito da noite, como se a Caridade
-não tivesse mais que fazer, do que estar á vossa
-espera, e por ahi appareceis, depois, mortos nas muralhas,
-com o ventre para o ar, olhos esbugalhados,
-membros hirtos, esverdeados, cheirando mal;</p>
-
-<p class="noindent">—reprobos, que nem entrada tendes nos templos,
-onde imaginaes que, por lá estar Christo, se egualam
-as condições, ignorando que o Christo da missa do
-meio-dia não é vosso, mas o dos argentarios que, para
-illudirem a consciencia e satisfazerem as exigencias
-da vaidade e as apparencias da hypocrisia, lhe dão
-capas de velludo e corôas de oiro; lhe fazem companhia
-nas longas noites do inverno, distrahindo-o com
-essas immoraes bambochatas das Novenas e da Semana
-Santa, com a somnolenta melopêa da padralhada,
-com as intrigas e confidencias amorosas, com
-o cochichar mordaz do beaterio, que entre <i>Torres<span class="pagenum"><a name="Pag_12" id="Pag_12">[12]</a></span>
-eburnea</i> e <i>Mater castissima</i>, discute a confecção de
-um vestido da Torrona, ou do Blanco—e lhe fazem
-venias, e batem no peito, e andam por ahi, de porta
-em porta, ostentando cynicamente crenças, que não
-possuem, crenças, que não comprehendem, a pedir em
-nome de Christo, que é o symbolo do amor e da humildade,
-os <i>cinco tostões</i> da subscripção, quando á
-mesma hora, infelizes, olhaes, soluçando, para a escudella
-vazia e as creanças vos mordem os peitos,
-porque já não tendes leite, nem o calor da vida...</p>
-
-<p class="right">Velhos, mulheres e creanças,</p>
-
-<p class="right">escutae:</p>
-
-<p>Ahi tendes esse livro.</p>
-
-<p>Lêde-o, ou dae-o a ler. E se entre os ricos e os
-felizes da vida esses periodos não se crystallizarem
-no oiro da esmola—encontrareis ahi lenitivo para
-os vossos infortunios, porque ficareis sabendo, que
-nas regiões, onde só imaginaes venturas, oiro e risos
-tambem ha, como entre vós, pustulas—da vaidade,
-aleijões—do ridiculo, febres—da ambição, contracções—da
-hypocrisia, doenças e disformidades mais dolorosas
-e repugnantes do que as vossas, porque não
-inspiram compaixão nem dôr, mas, apenas, tedio, ironia
-e a gargalhada.</p>
-
-<hr class="chap" />
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_13" id="Pag_13">[13]</a></span></p>
-
-<h2 id="I">I<br />
-<span class="smaller">O Microbio<a name="FNanchor_1" id="FNanchor_1"></a><a href="#Footnote_1" class="fnanchor">[1]</a></span></h2>
-
-<p>Tivemos á porta o Microbio.</p>
-
-<p>Eu já o esperava.</p>
-
-<p>A gente, para falar a verdade, porta-se mal cá
-por baixo e o Padre Eterno deve, com justa razão,
-encrespar as sobrancelhas com uma boa dóse de mau
-humor, quando o globo terraqueo, no seu incessante
-rebolar por essas immensidades, lhe apresentar á
-vista a formidolosa praça e os seus arrabaldes.</p>
-
-<p>Aquelle nefando e escandalosissimo caso, que tanto
-alarmou a fé das christandades e a religiosidade das
-beatas da nossa terra—a prisão da Santa, arremessada<span class="pagenum"><a name="Pag_14" id="Pag_14">[14]</a></span>
-aos baldões para os ferros de El-Rei e para a
-jurisdicção autocratica do Borralho, de sucia com os
-desobedientes e reaccionarios philarmonicos de Ganfey—deve
-tel-o incommodado seriamente.</p>
-
-<p>Mas ha mais. É recente outro caso mais escandaloso
-ainda, que aqui, á puridade, vou referir.</p>
-
-<p>Na vizinha villa de Monsão perpetrou-se, ha pouco,
-um gravissimo attentado contra a Moral, contra o
-respeito ás coisas sagradas e seriedade das nossas
-crenças religiosas.</p>
-
-<p>Ao que parece, o conspicuo Senado não prestou a
-devida attenção á guarda da Santa Coca e esta, já
-enfastiada com as interminaveis polemicas e diatribes
-dos srs. padre Simão, Caetano José Dias e
-outros respeitaveis jornalistas, escapou-se á sorrelfa,
-internando-se nas terras da Galliza até Redondella,
-onde foi visitar a Coca da localidade.</p>
-
-<p>Ora, segundo se conclue, esta era de sexo differente
-e, de incestuosa copula, resultou uma Coquinha,
-que os nossos bons vizinhos tiveram a imprudencia
-de apresentar em publico na ultima procissão de
-Corpus-Christi, com grande gaudio dos atheus e suprema
-indignação do ferrador da localidade, contractado
-para S. Jorge, que, em altos brados, reclamava
-maior salario, visto que ajustára a lucta contra uma
-só Coca e não contra duas!</p>
-
-<p>E permitti que vos diga, respeitavel Senado monsanense,
-á fé de Deu-la-deu, que foi incorrecto o vosso
-proceder! Contra Cocas com familia deve-se, indubitavelmente<span class="pagenum"><a name="Pag_15" id="Pag_15">[15]</a></span>
-(as pandectas o determinam, artigo 1:007),
-pagar mais caro o S. Jorge.</p>
-
-<p>Ora, com todos estes desacatos, repito, o Padre
-Eterno deve trazer-nos de ponta e claro é que, mais
-tarde ou mais cedo, cá teriamos o castigo:—ou qualquer
-das pragas do Egypto, ou nova Exposição de
-Rosas, ou novo consulado do João Cabral, ou mais
-dois falladores, como os srs. Abilio e Leopoldo.</p>
-
-<p>Do Mal, o menos. Veio o Microbio.</p>
-
-<p>As planicies do Ganges já deram o que tinham a
-dar. O Egypto, a India, a China, a America Central
-são insupportaveis n’esta epocha, com as suas elevadissimas
-temperaturas. O Microbio é d’uma organisação
-especial, que dispõe de todos os recursos para
-facil e rapida locomoção; anda sobre as aguas, como
-Ulysses, de chinelos de liga, e no ar, como nós,
-no sobrado das nossas casas. Requereu, pois, licença
-para uma viagem ao extrangeiro e o Padre Eterno,
-extendendo o index, indicou-lhe o caminho.</p>
-
-<p>Microbio preparou-se convenientemente com repetidas
-abluções hydroterapicas, como o sr. Albino;
-abotoou o seu guarda-pó; sobraçou o guarda-chuva;
-despediu-se da familia e, de mala de viagem e guia
-Baedeker na mão, atirou-se cá para o Occidente e
-parou em Vigo.</p>
-
-<p>Pelas condições economicas da viagem, que não
-teve caracter official, nem reclamos, nem discursos
-de congratulação dos Presidentes das Camaras e das
-Juntas de Parochia, este Microbio deve ser differente,<span class="pagenum"><a name="Pag_16" id="Pag_16">[16]</a></span>
-do que visitou a Hespanha em 85. Deve ser
-um Microbio burguez, pacato, com inscripções, rheumatismo
-e dinheiros a juro; talvez Juiz de Paz, ou
-quarenta-maior contribuinte do seu concelho; deve
-usar suspensorios, botas de cano; tomar rapé e dormir
-com barretinho de algodão; deve ser um Microbio
-sensato, austero e de bons costumes; de principios e
-convicções firmes, assim como o sr. Agostinho; bom
-chefe de familia, temente a Deus, inimigo de <i>Malzabetes</i>
-e de romarias, onde qualquer Pau-real amolga
-impunemente a massa cerebral, ou a mioleira da
-humanidade.</p>
-
-<p>Em Vigo apresentou-se, pois, modestamente com
-um pequeno sequito de gastrites, gastro-enterites e
-algo de typhos; mas apesar do incognito rigoroso e
-da modestia d’esta apresentação, souberam da sua
-chegada, em Lisboa, os conspicuos Membros da Junta
-de Saude.</p>
-
-<p>Aquelles respeitabilissimos Esculapios, Argos vigilantes,
-a quem estão confiadas as nossas existencias,
-aborrecidos já da longa inacção em que vivem
-desde 1851, limitados a rubricar diariamente o fornecimento
-dos cemiterios da capital, de que se encarregam
-com inexcedivel pontualidade, arregalaram,
-de jubilosos, os olhinhos, vendo em perspectiva um
-Microbio legitimo, genuino, naturalisado americano
-pelo sr. dr. Arezes. Tocaram a rebate no paiz.</p>
-
-<p>Os pharmacópolas açodaram-se em abundantes
-preparativos de tonicos, diaforeticos e antisepticos.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_17" id="Pag_17">[17]</a></span></p>
-
-<p>Koch, Pasteur, Brouardel, Proust, Fauvel, Ferran,
-Raspail foram consultados em laboriosas vigilias.</p>
-
-<p>As tropas, emocionadas pelo santo amor da Patria,
-prepararam-se para o holocausto no Cordão sanitario,—que
-tão boas libras produziu em 1885.</p>
-
-<p>Os amanuenses, prevendo uma valente <i>razzia</i> entre
-os chefes cacheticos e tropegos, saboreavam as
-delicias d’uma rapida promoção.</p>
-
-<p>Maridos, com vida atribulada, suspiravam voltados
-para o septentrião... Tudo se preparava, emfim,
-para receber o Microbio.</p>
-
-<p>Entretanto, palitava elle a sua ociosidade, em
-Vigo, com alguns artilheiros, que ainda se não sabe,
-ao certo, se foram victimados pela febre, se pela
-gangrena originada no <i>excesso de limpeza</i>, em que viviam...</p>
-
-<p>Informado dos preparativos, que no nosso paiz
-se faziam para o receber, Microbio Bacilla malhumorou-se.</p>
-
-<p>Antipathizou com a calva luzidia do sr. dr. Meira,
-encarregado officialmente de o saudar em nome
-do governo lusitano.</p>
-
-<p>Alterou repentinamente o itinerario e... foi-se.</p>
-
-<p>Lá desappareceram com elle as fagueiras esperanças
-dos amanuenses, dos maridos infelizes e as
-cóleras dos senhorios de Valença, que em 85 foram,
-violenta e despoticamente, espoliados dos seus direitos
-de propriedade por um governo futre e poucaroupa,<span class="pagenum"><a name="Pag_18" id="Pag_18">[18]</a></span>
-que teve o descaro de pagar, como aluguel de
-nove mezes, uns miseros centos de mil reis, que representam
-o dobro do valor das propriedades.</p>
-
-<p>Lá desappareceram as rações de 1.ª classe e
-aquellas encantadas folhas de kilometros, que deram
-aos tropegos membros locomotores de amigos meus,
-obesos e adiposos, a agilidade e ligeireza do mais
-leve e reputado andarilho...</p>
-
-<p>D’esta vez, ainda, déste xaque-mate ao Padre
-Eterno, oh grande doutor Lourenço!</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Augustus Sampaius, senhor da Balagotia; Intendente
-geral dos serviços phyloxericos, digo,<a name="FNanchor_2" id="FNanchor_2"></a><a href="#Footnote_2" class="fnanchor">[2]</a> antimicrobicos
-da fronteira; Commissario geral dos inoffensivos
-Cerberos da policia concelhia e, como tal,
-terror dos Troppmans e Jacks adventicios; Chefe da
-Repartição do expediente do sr. Administrador (que
-Deus Guarde); Director da Repartição Municipal de
-Hygiene e Secção annexa das toleradas, artes <i>julianas</i>
-e <i>valladicas</i>; Inspector do serviço das bombas e
-de segurança publica; Fiscal dos pesos e medidas;<span class="pagenum"><a name="Pag_19" id="Pag_19">[19]</a></span>
-Secretario perpetuo das Juntas de Parochia; Orçamentologo
-official das Confrarias e Irmandades sertanejas;
-Irmão do SS. Sacramento; Mesario e Ex-definidor
-da Santa Casa da Misericordia; Mordomo da
-Senhora do Faro, da Senhora Santa Luzia milagrosa
-e outras Senhoras d’aquem e além mar, terras da
-Urgeira e Taião; Mestre de cerimonias nas contradanças
-lithurgicas das nossas festas de Egreja: Estatistico
-distincto dos fogos, productos, criminalidade,
-bipedes e quadrupedes do Concelho; Numismatico
-abalisado; Agricultor emerito; Actor consummado;
-phantasista original e querido das damas, em debuxos
-de lettras para lenços de namoro—homem que
-representas, na vida social da nossa terra, a mais
-completa e complexa, a mais genial expressão da
-actividade humana—Augustus Sampaius, senhor da
-Balagotia—eu te saudo!</p>
-
-<p>Ao fallar no Micobrio, que tanto apavorou os
-conspicuos Esculapios da Junta de saude, e que tão
-ridentes esperanças fez agora despontar, no horisonte
-ennublado de muitas finanças oscillantes, eu não
-posso esquecer o teu nome, porque foi a ti, ao teu
-provado zelo, assaz reconhecida sollicitude, desempenada
-actividade que a Patria, eu e a minha prole
-devemos a desejada immunidade do terrivel Bacilla,
-na campanha de 85.</p>
-
-<p>Commove-se-me profundamente a alma; inundam-se-me
-os olhos de lagrimas; sensibilizo-me, como
-se te ouvisse no palco com as lamentações de pae<span class="pagenum"><a name="Pag_20" id="Pag_20">[20]</a></span>
-tyranno e infeliz; foge-me dos labios o riso, como se
-te aturasse o <i>espirito</i> n’essas libertinas extravagancias
-a que te dás no Carnaval, encadernado de <i>princez</i>,
-ou á <i>antiga</i>, com os ouropeis e a farrapada do
-teu guarda-roupa—(boceta pandorica de frioleiras e
-de traça)—percorrendo as casas sérias, com grande
-gaudio das matronas do teu tempo e abundante colheita
-de mystificações, intrigas, pançadas de riso,
-chavenas de chá e tostas com manteiga—quando me
-recordo, oh Balagotio illustre, dos teus serviços no
-cordão sanitario!</p>
-
-<p>Noites tempestuosas que passaste; asperezas do
-inverno; longas caminhadas; chuva, vento, frio, fome
-e sêde; graves perturbações nas funcções digestivas;
-fraqueza nas contracções peristalticas, occasionando
-incommodas e demoradas accumulações no cœcum;
-nas longas noites de vigia, ao avizinhar-se vulto
-sombrio e suspeito, afrouxamentos instantaneos do
-<i>sphingter</i> com defecações abundantes, enfraquecedoras;
-fartas exhalações de acido carbonico e hydrogenios
-carbonado e sulfurado—e tudo isto pelo
-amor da humanidade, provocado pelo mais desinteressado
-altruismo, inspirado na mais acrisolada philanthropia
-e, depois ainda, aggravado com os arrancos
-da tua dyspepsia chronica e com a ingratidão da
-Patria de quem, contrariado, espezinhado na pureza
-dos teus sentimentos humanitarios, tiveste de receber,
-a <i>fortiori</i>, umas mesquinhas dezenas de libras!</p>
-
-<p>Tu, Balagotio amigo, engrossaste o longo martyrologio,<span class="pagenum"><a name="Pag_21" id="Pag_21">[21]</a></span>
-da Patria. Salvaste-a e continuas ahi esquecido,
-ignorado, com a tua dyspepsia e o teu barretinho
-de seda preto, condemnado a um eterno roçar de
-canhões do casibeque na mesa da Administração,
-sem uma commenda, sem veneras hespanholas, que
-se vendem ao alqueire, sem um viscondado sequer!</p>
-
-<p>Mas eu, conterraneo illustre, não serei tambem
-ingrato. Já que esse <i>Zé Barros pequenino</i> foi insensivel
-aos vehementes protestos do teu amor, e te não
-fez Commissario das Policias, com pingue gratificação
-de categoria; já que o teu Chefe no Cordão se não
-compadece dos olhinhos de ternura e piedade, com
-que tu, cem vezes por dia, lhe fitas a janella, eu te
-protegerei, cidadão benemerito e prestantissimo.</p>
-
-<p>Tu soffres. Essa dyspepsia cruel, quando se não
-fala em Microbio, mina-te a existencia, curva-te o
-tronco, descora-te a face, dissemina no teu organismo
-os germens de uma anemia lenta e perigosa.</p>
-
-<p>Brown Sequard nada te póde fazer.</p>
-
-<p>A Deus nada posso pedir a teu favor, porque tu
-tambem foste connivente, com esse feroz Attila do
-Registro predial, na prisão da Santa.</p>
-
-<p>Nada temos a esperar do Céo, mas recorremos
-ao Olympo, que outr’ora fazia tão bons milagres,
-como o Senhor S. Campio, que sua uma vez por anno,
-ou a Senhora da Cabeça, que, para mostrar competencia
-na cura de fracturas da dita, reune traiçoeiramente
-na sua festa, quantos caceteiros comem
-boroa e feijão, por estas boas vinte leguas em redondo.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_22" id="Pag_22">[22]</a></span></p>
-
-<p>Pois bem! Que Jupiter ouça os meus rogos. Já
-que as delicadissimas funcções do teu organismo te
-consentem apenas o leite, como alimento, que Elle
-te mande Io, para que tu, nas suas cem tetas, possas
-de noite e de dia chupar a vida, novas forças, novos
-elementos e os teus tecidos tomem, a breve trecho, a
-salutar obesidade do sr. João Ignacio, do saudoso
-doutor Pacheco, ou do nosso prestantissimo deputado,
-o sr. Visconde da Torre!</p>
-
-<p class="mt3 smaller">Setembro 1889.</p>
-
-<hr class="chap" />
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_23" id="Pag_23">[23]</a></span></p>
-
-<h2 id="II">II<br />
-<span class="smaller">Passe-Calles</span></h2>
-
-<p>Oh Justininho!</p>
-
-<p class="center">dá cá o braço...</p>
-
-<p>Ora aqui tem V. Ex.ª um rapaz, que se o Marianno
-não atira para o Pico, era muito capaz de se
-guindar ao pico da popularidade, cá na terra.</p>
-
-<p>Ainda não conheci quem mais sympathias tivesse
-entre Clero, Nobreza e Povo; mas tambem,
-ainda não conheci rapaz mais sensato, conciliador e
-serviçal.</p>
-
-<p>Para chamar á paz um casal amuado; para prégar
-Moral ás creadas de servir; para uma visita de
-pesames, a rigor, com o <i>resigne-se V. Ex.ª com a<span class="pagenum"><a name="Pag_24" id="Pag_24">[24]</a></span>
-vontade do Altissimo</i> engatilhado; para dirigir um
-baile nos <i>tricanés</i>; para entreter senhoras nas reuniões
-da Semana Santa, em S. Estevão, ou nas do
-Carnaval, na Assemblea; para acompanhar familias
-á missa das onze; para representar a Associação artistica;
-para umas funcções serias de secretario (tinha
-o monopolio); para a descripção d’um baile no
-<i>Mensageiro das salas</i>; para dirigir a eleição das comadres,
-a coisa mais redondamente patusca e interessante,
-que gentes da Coroada teem produzido—não
-ha, não houve, nem nunca haverá quem o
-eguale.</p>
-
-<p>Quando passava na rua de S. João, todo tesinho
-e perliquitetes, apesar da magreza e do nariz,
-diziam d’elle</p>
-
-<p>as meninas—é muito engraçado,</p>
-
-<p>as mamãs—é muito sympathico.</p>
-
-<p>os papás—é muito bom moço.</p>
-
-<p>os velhotes—é... é... é... o Justininho.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Estava nos bailes como em sua casa. Só tinha
-um defeito para homem de sala: dançava pouco e
-mal.</p>
-
-<p>E eu digo porque.</p>
-
-<p>N’um baile da Assemblea reuniram-se, em quadrilha<span class="pagenum"><a name="Pag_25" id="Pag_25">[25]</a></span>
-de <i>Lanceiros</i> (a mesma que David dançou ao
-pé da Arca) os srs. dr. Lopes, dr. Ladislau, Padre
-Cunha e Justininho.</p>
-
-<p>Justininho gostava de florear nas marcas. Ordenou
-um <i>chevaliers au milieu</i>, e os quatro Cavalheiros,
-enthusiasmados com as damas, com a musica, com
-as luzes e com as flôres, avançaram com <i>ropia</i>.</p>
-
-<p>Eu não sei bem, como aquillo foi. O que sei, é
-que se chocaram, que se enarigangaram, e de tal
-fórma foram abalados os respectivos e respeitaveis
-vomeres e cornetos, que o sangue espirrou, e os quatro
-Cavalheiros foram retirados, em braços, da sala.</p>
-
-<p>As senhoras desmaiaram. O baile acabou.</p>
-
-<p>Foi o diabo.</p>
-
-<p>D’ali em deante, tanto o sr. dr. Lopes, como o
-sr. Padre Cunha e o Justininho (V. Ex.ª deve ter
-notado isso) dão-se pouco a danças. Quem continuou
-foi o Ladislau, porque esse, no tremendo choque foi
-o mais feliz. Como é pequeno e de baixa estatura, o
-seu nariz não abalroou com os outros; roçou no umbigo
-do sr. Padre Cunha e enfraqueceu o choque.</p>
-
-<p>É verdade: aqui está mais uma vantagem que a
-gente tem, em dar falta ao estalão.</p>
-
-<p>E ainda o sr. dr. Pestana se entristece e zanga,
-quando o alfaiate lhe pede noventa centimetros para
-umas calças, e lhe assevéra, que não necessita de
-um metro e dez, como os outros senhores!</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_26" id="Pag_26">[26]</a></span></p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Sou amigo do Justininho, mas já lhe roguei uma
-valente praga; e talvez fosse por isso, que elle <i>tocou
-rabeca</i> com o Pereira.</p>
-
-<p>Eu conto o caso, porque não é de segredo:</p>
-
-<p>Lavrava por ahi essa epidemia, peor do que cem
-microbios, das charadas.</p>
-
-<p>Nas Assembleas, nos Clubs, nas lojas, nas mercearias,
-nas boticas e nas nossas casas, não se tratava
-d’outra coisa.</p>
-
-<p>O Almanach de Lembranças, essa escarradeira
-de quanto semsaborão existe n’estes reinos, ilhas
-adjacentes, terras do sabiá e da Tijuca, espalhára,
-por toda a parte, os germens da maldicta mania.</p>
-
-<p>Havia enigmas; charadas antigas, novas, novissimas,
-com premio, sem dito, em prosa e em verso;
-de—nas costas—1, sem indicação syllabica; emfim,
-de toda a raça e feitio.</p>
-
-<p>Descobrira-se, que para espalhar o flato e para
-aquecer os pés, no inverno, não havia melhor remedio
-do que: charadas, quino e <i>trinta e um</i> de bocca.</p>
-
-<p>Justininho deve uma boa parte da sua popularidade,
-entre as damas, á facilidade com que <i>matava</i>
-charadas. Em se lhe dizendo:</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_27" id="Pag_27">[27]</a></span></p>
-
-<div class="poetry-container">
-<div class="poetry">
-<div class="verse">O que é, que é</div>
-<div class="verse">Que toca de dia</div>
-<div class="verse">No alto da torre</div>
-<div class="verse">de Santa Maria?</div>
-</div>
-</div>
-
-<p class="noindent">respondia logo, immediatamente:</p>
-
-<p>—É um sino.</p>
-
-<p>Ora, uma noite,—isto foi, talvez, ha doze annos—estava
-eu á mesa do trabalho com a familia.</p>
-
-<p>Minha mulher fazia meia. Minha sogra lá estava
-com as charadas.</p>
-
-<p>O rapaz mais novo—o Toneca—estudava a licção
-de francez. O outro—o Zéca—andava com a Avó
-á cata de decifrações.</p>
-
-<p>Eu estava a turrar com somno, mastigando entre
-bocejos, uns periodos muito alambicados, em fórma
-de lambedor, com que Justininho descrevia um baile,
-no folhetim do <i>Noticioso</i>.</p>
-
-<p>Soavam todos aquelles estafados bordões de—gentilissimas
-damas—corações feridos—sorrisos angelicos—amores—gruta
-dos ditos—arrufos—horas
-fugitivas—recordações saudosas—rainha do
-baile—reticencias—etc.—etc.—etc.—.</p>
-
-<p>V. Ex.ª deve conhecer tudo isto, porque de mil
-bailes, que tem havido em Valença, appareceram mil
-descripções eguaes.</p>
-
-<p>São como os necrologios do sr. Verissimo de Moraes.
-Estão sempre promptos. A questão está em se<span class="pagenum"><a name="Pag_28" id="Pag_28">[28]</a></span>
-dar o nome do perecido. Ás vezes, ha o seu engano,
-mas escapa.</p>
-
-<p>Por exemplo:</p>
-
-<p>Ha annos, morreu n’esta villa um velhote com
-90 janeiros.</p>
-
-<p>Estomago fraqueiro e arruinado, atacára á noite
-uma pratada de arroz com lampreia e... arrefeceram-lhe
-os pés.</p>
-
-<p>Tambem, foi uma infelicidade, porque, se o sr.
-dr. Pacheco (diga-se a verdade) chega mais cedo
-uma hora, o homem, em vez de morrer ás 10, arrefeceria
-ás 9.</p>
-
-<p>No dia seguinte, dizia o <i>Noticioso</i>:</p>
-
-<p>«<i>Mais um anjo, alando-se para as ethereas regiões,
-fugiu hontem da terra, roubado cruelmente, pela terrivel
-Parca, aos affectos dos seus carinhosos paes.</i></p>
-
-<p><i>Polycarpo Bezerra, aquella encantadora e gentil
-creança, que era o enlevo</i>... etc.»</p>
-
-<p>Ora, Policarpo Bezerra, era exactamente a <i>creança</i>
-de 90 janeiros, que a lampreia victimára! Os barbaros
-dos typographos, se haviam de aproveitar a
-chapa dos adultos, serviram-se da que havia para
-as creanças.</p>
-
-<p>Isto succede.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Mas, como estava dizendo, eu turrava com somno,
-á espera do chá.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_29" id="Pag_29">[29]</a></span></p>
-
-<p>De repente, levanta-se o Zéca e diz:</p>
-
-<div class="poetry-container">
-<div class="poetry">
-<div class="verse">Oh Papá! Que é, que é</div>
-<div class="verse">Que, pela calada,</div>
-<div class="verse">Gosta de dar</div>
-<div class="verse">O Marquez de Vallada?</div>
-</div>
-</div>
-
-<p>—<i>Cou</i>,<a name="FNanchor_3" id="FNanchor_3"></a><a href="#Footnote_3" class="fnanchor">[3]</a> diz o Toneca, que acabava de tirar no
-Diccionario a palavra pescoço. (Só o soube depois).</p>
-
-<p>Levantei-me indignado, enfurecido com aquelle
-enorme desacato á Moral e á Decencia, praticado nas
-minhas barbas!</p>
-
-<p>A decifração da charada foi immediata e violenta
-para os rapazes: duas valentes bofetadas!</p>
-
-<p>Indignação geral da familia. Minha sogra levanta-se
-irada e chama-me tyranno!</p>
-
-<p>Retorqui-lhe que aquillo era escandaloso, antimoral
-e era uma falta de respeito á gente graduada,
-porque o sr. Marquez era um Marquez, estava no
-seu direito de dar o que quizesse, e ninguem tinha
-que lá metter o nariz.</p>
-
-<p>Augmentou o barulho, porque os rapazes, defendidos
-pela mãe e pela avó, cada vez berravam mais.</p>
-
-<p>Levantou-se minha mulher, chamou-os, e lá foi
-tudo a chorar.</p>
-
-<p>No dia seguinte, minha sogra, fiel ás tradições,
-quiz requerer o divorcio. Andei amuado oito dias.<span class="pagenum"><a name="Pag_30" id="Pag_30">[30]</a></span>
-Data, até, d’essa occasião, o meu reconhecimento á
-Isabelinha, creada de sala...</p>
-
-<p>Só quando fiz as pazes com minha mulher, é que
-conheci a origem da resposta do Zéca e a coincidencia
-do <i>significado</i>.</p>
-
-<p>O Toneca, como é mais agarotado, lêra o <i>Pimpão</i>
-e appetecêra-lhe tambem, sem saber o que dizia,
-<i>metter</i> a sua farpinha no senhor Marquez.</p>
-
-<p>Mas, tudo isto não teria succedido, se não fosse
-o diabo do folhetim e se o Justininho não tivesse a
-mania de chroniqueiro de saias.</p>
-
-<p>Veja V. Ex.ª, como se perturba a paz d’um lar e
-o socego d’uma familia honesta!</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Mas, effectivamente, o Justininho, para charadas,
-era d’uma perspicacia sibyllina. Como elle, só a Sociedade
-charadista dos Terriveis de Villa Real.</p>
-
-<p>A gente reunia-se á noite na Assemblea. O Club,
-n’esse tempo, estava ainda no embryão das sociedades
-pacatas, porque o sr. dr. Pacheco, se bem que
-já andasse, como o povo diz, com a barriga á bocca,
-ainda o não tinha dado á luz.</p>
-
-<p>Ou se faziam charadas, ou se jogava o quino.
-Duas distracções innocentes e engraçadissimas! Que
-saudosas noites! Que piadas! Que pilherias e facecias!</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_31" id="Pag_31">[31]</a></span></p>
-
-<p>Que espirito fino, alegre, saltitante, amenisava
-aquellas horas!</p>
-
-<p>Quem mexia sempre nas bolas era o Melim. Uma
-mania como outra qualquer.</p>
-
-<p>Cartão, dez réis; <i>corda</i>, sessenta réis.</p>
-
-<p>Marcava-se a feijão carrapato.</p>
-
-<p>Quem recebia as pagas, dava os trocos e quebrados,
-era o sr. Agostinho.</p>
-
-<p>Cada <i>quinada</i> era recheada de surpresas, ancias,
-esperanças e decepções!</p>
-
-<p>—Trinta e tres, dizia o Melim.</p>
-
-<p>—Annos de Christo, exclamava sr. João Ignacio,
-erguendo-se, todo contentinho, para gosar o effeito
-da pilheria.</p>
-
-<p>Andavamos aos tombos com riso, e quem poderia
-resistir?</p>
-
-<p>—Vinte e dois!</p>
-
-<p>—Patinhos a nadar—berrava o sr. Baptista.</p>
-
-<p>Ai que demonios aquelles! A gente até chorava!</p>
-
-<p>—Trinta e sete!</p>
-
-<p>—João Pimentel Castanheira—lembrava o sr.
-Elias.</p>
-
-<p>Não se podia continuar; estava decidido! Pois se
-até a ceia nos queria trepar á bocca!</p>
-
-<p>—Venha a precisa, ó vizinho e chegue-se cá, que
-quero bulir nas bolas, dizia o sr. dr. Pacheco.</p>
-
-<p>—Oh diabo! Isso não, que podem ver as irmãs da
-Caridade, aconselhava eu, sempre prudente e cauteloso.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_32" id="Pag_32">[32]</a></span></p>
-
-<p>—Sessenta e seis!</p>
-
-<p>—Quinei!—berrava o sr. escrivão Brito.</p>
-
-<p>—Ora sebo!—murmurava tristemente o sr. dr.
-Evaristo. E eu que já tinha cinco quadras! Bem se
-vê, que os padres não nasceram para trabalhos com
-bolas.</p>
-
-<p>Estavamos todos tristes, como a noite.</p>
-
-<p>—Alto! Foi rebate falso. Siga!—dizia o sr. Brito
-todo rejubilante pela facecia, e casquinando frouxos
-d’aquelle seu riso, tão patusco e tão original: ki-i,
-ki-i, ki-i...</p>
-
-<p>Afinal, quem quinava sempre era o Leopoldo.
-Este diabo, lá com os capellães arranja-se sempre
-bem...</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Reunia-se, pois, gente fina e perspicaz.</p>
-
-<p>—o Veiga, que viu no Jardim das Plantas uma <i>ziboia</i>,
-com sessenta metros de comprimento;</p>
-
-<p>—o Izidoro que, como V. Ex.ª sabe, descobriu as
-aguas de S. Pedro, é amigo do amigo Lopo e tem a
-Grão-cruz da Sociedade de Geographia e da ordem
-do Sol, do Japão;</p>
-
-<p>—o Serrão, que viu um comboyo, que levava dez regimentos
-de infanteria, dez de cavallaria, oito de artilheria,
-um de engenharia; tudo em armas, officiaes
-a cavallo, etc., etc. (Isto foi no tempo d’uma guerra
-qualquer).</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_33" id="Pag_33">[33]</a></span></p>
-
-<p>—o Machado, que, assistindo a um baile da Assemblea
-até ás duas horas da madrugada, apparecia, ás
-cinco, na praia d’Ancora; lá ao longe, entre as brumas
-do mar, dentro d’uma bateira, e já em regresso
-da ilha da Madeira.</p>
-
-<p>—o Maximino, que sem perceber uma palavra da
-lingua de Milton, encontrou uma <i>ingleza</i>, com quem
-se entendeu muito bem.</p>
-
-<p>—o Leopoldo, que viu e apalpou os pendulos e o
-ponteiro do relogio, que ficou entupido, nas alturas
-do coccyx, ao larapio da rua do Ouvidor.</p>
-
-<p>—o Abilio, que conheceu o pae da mãe, do tio, do
-pae do dito larapio—Rua da Quitanda, 23, sobreloja.</p>
-
-<p>Emfim, tudo gente fina e perspicaz.</p>
-
-<p>É verdade: tambem lá estava sua Excellencia, o
-Senhor Governador e sua Excellencia, o Senhor Vice.</p>
-
-<p>Na Academia real das Sciencias não havia melhores
-cabeças; nem na Camara dos deputados, se
-exceptuarmos os srs. Oliveira Mattos e Visconde da
-Torre.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Para arranjar charadas, quem tinha mais gosto
-e geito era o sr. Polycarpo Monteiro. Pelos modos,
-carteava-se com o mano de Lisboa, a tal respeito.</p>
-
-<p>Elle pensava um pouco e dizia:</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_34" id="Pag_34">[34]</a></span></p>
-
-<div class="poetry-container">
-<div class="poetry">
-<div class="verse">Que é, que é</div>
-<div class="verse">Que faz: pum! pum!</div>
-<div class="verse">Quando lhe arrima</div>
-<div class="verse">O Vinte e um?</div>
-</div>
-</div>
-
-<p>Justininho escrevia, logo, qualquer coisa n’um papelinho;
-collocava-o debaixo do seu chapéosinho e...
-sorria.</p>
-
-<p>Nós andavamos ás aranhas.</p>
-
-<p>Tira d’aqui, põe acolá...</p>
-
-<p class="center">Nada!</p>
-
-<p>O Senhor Governador, forte em Mathematicas,
-punha logo o caso em equação:</p>
-
-<p class="center smaller">2 pum + 21 = <i>x</i></p>
-
-<p class="noindent">tirava os logarithmos, deduzia todas as formulas da
-triangulação:</p>
-
-<p class="center">Nada!</p>
-
-<p>O sr. Zagallo, que não estava para contas, lembrava-se
-dos nomes de todas as terras de Hespanha,
-por onde transitou no tempo das guerras...</p>
-
-<p class="center">Nada!</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_35" id="Pag_35">[35]</a></span></p>
-
-<p>Ninguem falava. Ouvia-se o zunir d’um mosquitinho.</p>
-
-<p>De repente bradam duas vozes:</p>
-
-<p>Adivinhei!</p>
-
-<p>—É o chapéo alto do meu subordinado Durães—dizia
-o sr. Borges.</p>
-
-<p>—Não é, não senhor. É um chapéo, mas o do
-sr. Monteiro, dizia o Senhor Vice-Governador, que
-já, n’aquelle tempo, era o homem mais fino cá da
-terra.</p>
-
-<p>É! Não é! Levantou-se uma questão dos demonios.</p>
-
-<p>—Fala o Justininho!—bradamos nós, como quem
-recorre a um Juiz.</p>
-
-<p>Justininho abriu o papelinho e mostrou, sorrindo:</p>
-
-<p class="center smaller">Zabumba!</p>
-
-<p>Rompeu nova celeuma. Ninguem queria ceder. A
-final, depois de muito berrar, descobriu-se que todos
-tinham razão.</p>
-
-<p>Havia alli um caso, como o da Santissima Trindade:
-tres pessoas distinctas e um só Deus verdadeiro.
-Eram tambem tres coisas, todas distinctas,
-todas eguaes e uma só verdadeira: o zabumba—do
-Justininho.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_36" id="Pag_36">[36]</a></span></p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>N’outra noite, o sr. Polycarpo, entrou na Assemblea,
-muito contente, e esfregando as mãos, debaixo
-do seu chale-manta.</p>
-
-<p>Trazia uma charada muito difficil, que lhe levára
-seis horas a compôr.</p>
-
-<p>O sr. C. Barros offereceu logo, como premio, um
-exemplar do seu drama: <i>Marilia</i>, ou a <i>Moira dos bosques</i>.</p>
-
-<p>Reuniu-se o povo todo, e ouviu:</p>
-
-<div class="poetry-container">
-<div class="poetry">
-<div class="verse">Quem é, quem é,</div>
-<div class="verse">Que faz a desobriga</div>
-<div class="verse">E, sendo capellão</div>
-<div class="verse">Tambem é rapariga?</div>
-</div>
-</div>
-
-<p>Esta, é que nos deu agua pela barba. Fazer de
-homem e de mulher, é que nunca podemos comprehender.</p>
-
-<p>O maroto do Leopoldo, esse, parece que a percebeu.
-Sorriu-se, porque tinha entrado n’aquella occasião
-e, pelos modos, vinha de se confessar...</p>
-
-<p>Trazia no chale-manta palheiras da muralha...</p>
-
-<p>Foi o Abilio, que o traz de ponta, quem descobriu
-isso.</p>
-
-<p>Ninguem matou a charada, mas desconfio que alli<span class="pagenum"><a name="Pag_37" id="Pag_37">[37]</a></span>
-andou tambem influencia do premio... Parece-me
-que afugentou um pouco as ideias.</p>
-
-<p>Isto é mera supposição.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Depois d’essa, appareceu outra do sr. Zagallo,
-mas <i>matou-se</i> logo. Foi:</p>
-
-<div class="poetry-container">
-<div class="poetry">
-<div class="verse">O que é que é</div>
-<div class="verse">Que dá <i>sól</i> e <i>dó</i></div>
-<div class="verse">E se o Cruz lhe bufa</div>
-<div class="verse">Faz: Pó, Pó!</div>
-</div>
-</div>
-
-<p>V. Ex.ª certamente, já adivinhou.</p>
-
-<p>É um <i>figle</i>. Não teve graça.</p>
-
-<p>Pois o sr. General podia apresentar coisa melhor.
-Bastava que nos dissesse:</p>
-
-<div class="poetry-container">
-<div class="poetry">
-<div class="verse">Ora digam cá,</div>
-<div class="verse">Sem hesitar</div>
-<div class="verse">Se hoje na camara</div>
-<div class="verse">Occupo logar?</div>
-</div>
-</div>
-
-<p>Claro é que ninguem responderia, a não ser que
-se verificasse o conteudo do mais recente, do que tivesse
-ainda a tinta fresquinha, dos officios com que
-sua Ex.ª, oito vezes por mez, participa ao Senado que,</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_38" id="Pag_38">[38]</a></span></p>
-
-<p class="center">por motivos justificados—sahe<br />
-que,<br />
-por justificados motivos—entra<br />
-e vice-versa<br />
-e versa-vice.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Este sr. Zagallo, na Camara, lembra-me o Conego
-Vaz.</p>
-
-<p>Eu fui sempre muito agarotado e por isso me não
-admirei, do que queria fazer o Tonéca ao Marquez de
-Vallada. Se por ahi houver alguma mamã, com filha
-casadoira, disponivel—francamente—que não tenha
-saudades da minha pessoa, porque lhe não serviria,
-ainda que fosse <i>numero um</i>.</p>
-
-<p>Quando não podia dar a minha <i>gazeta</i> á aula do
-Conego, escapava-me sempre que podia, cá para fóra,
-para a muralha, onde os Guerreiros e os Garções jogavam
-o pião e o <i>escabicha</i>.</p>
-
-<p>Juntos, eramos insupportaveis. O Ignacio Soares
-e o Zé, quando passavam por nós, tiravam com todo
-o respeito o seu chapéosinho e tratavam-nos por Excellencia,
-mas ainda assim, levavam o seu puxão de
-orelhas porque, quando estavam encarrapitados na
-varanda de ferro, e se lhes dizia cá de baixo:</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_39" id="Pag_39">[39]</a></span></p>
-
-<p class="center">Presos como os macacos!</p>
-
-<p class="noindent">cuspiam, e atiravam com botas velhas.</p>
-
-<p>O Zé, hoje é homem de genio e palpita-me que,
-na Politica, ainda chega a ser importante; mas
-n’aquelle tempo andava com o <i>hora, horae</i>, e isto de
-latim é coisa, que debilita muito a gente.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Como estava dizendo, quando me juntava aos
-Guerreiros e aos Garções, andava tudo, por ahi, n’uma
-dobadoira.</p>
-
-<p>Pelo Maio, já tinhamos organisado uma inspecção
-rigorosa á producção do concelho.</p>
-
-<p>Era-mos, assim, uma especie de agronomos.</p>
-
-<p>Se nos perguntassem:</p>
-
-<p>Quem é, que n’este anno vem a ter:</p>
-
-<p>melhores peras?—o Chico Veiga.</p>
-
-<p>melhores melancias?—o Boticario.</p>
-
-<p>melhores melões?—o Ascencio.</p>
-
-<p>melhores uvas?—O senhor José Rodrigues.</p>
-
-<p>A este senhor José Rodrigues sempre tivemos
-muito respeito. Quando, por acaso, nos encontrava
-perto do Prazo, ou da Boavista, (a gente, já se vê,
-andava a <i>passear innocentemente</i>) falava logo em tiros,<span class="pagenum"><a name="Pag_40" id="Pag_40">[40]</a></span>
-mortes, carabinas, punhaes, ratoeiras, facadas,
-cães de Castro Laboreiro... o diabo!</p>
-
-<p>Por isso, não era como os outros:</p>
-
-<p class="center">o Chico Veiga,<br />
-o Boticario,<br />
-ou o Ascencio;</p>
-
-<p class="noindent">era: o Senhor José Rodrigues.</p>
-
-<p>A final, foi sempre um santo, e pagava o seu tributo
-em bellas uvas e bons melões, como os outros.</p>
-
-<p>Eu falei no boticario...</p>
-
-<p>Era assim nos outros tempos, mas hoje é camarista
-e chama-se—o sr. Fontoura.</p>
-
-<p>Este senhor é que nos pregou um susto! Eu conto,
-se não me torno massador para V. Ex.ª</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>As propriedades, como disse, estavam debaixo da
-nossa vigilancia permanente.</p>
-
-<p>Logo que a uva principiava a pintar, a pera a
-mudar de côr, a melancia a ganhar casca—dava-mos
-assaltos medonhos!</p>
-
-<p>Uma vez, combinamos o ataque ás melancias do
-sr. Fontoura. Ainda estavam verdes, mas duas, ou
-tres, principiavam a carregar na côr.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_41" id="Pag_41">[41]</a></span></p>
-
-<p>O calor abrazava. Era necessario ser um Santo,
-para resistir á tentação.</p>
-
-<p>Á hora combinada, entramos na propriedade, cautelosamente,
-sorrateiramente, como quem anda aos
-grillos.</p>
-
-<p>Tinhamos, já, duas melancias cortadas e tratava-mos
-de metter a unha, em certa parte das outras (de
-que eu não digo o nome, porque póde ser lido por
-senhoras) para verificar se estava molle ou rija,
-quando ouvimos gritos de <i>agarra! agarra!</i> e logo,
-após, o estampido d’um tiro!</p>
-
-<p>Eu não posso explicar o que succedeu. Parece
-que nos agarraram pela golla da jaqueta e nos levaram,
-pelo ar, até á Esplanada!</p>
-
-<p>Alli paramos, porque já não havia ar no mundo
-para os nossos pulmões. Consideramos no caso...</p>
-
-<p>Apalpamo-nos cuidadosamente, demoradamente.
-Estendemos primeiramente uma perna; depois outra;
-depois um braço.</p>
-
-<p>Cuspimos. Passamos a mão pela cabeça.</p>
-
-<p>Não havia sangue.</p>
-
-<p>Serenamos. Voltou-nos a voz.</p>
-
-<p>Só então verifiquei que, no auge da afflicção, <i>sem
-querer</i>, tinha trazido as melancias!</p>
-
-<p>Não estava tudo perdido. O que é o instincto da
-conservação!</p>
-
-<p>Ainda nos incommodava a ideia, de que o sr.
-Fontoura fosse fazer queixa ás familias—o que significaria
-uma valente tapona.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_42" id="Pag_42">[42]</a></span></p>
-
-<p>Felizmente não succedeu isso, porque elle, no
-auge do seu furor, (do qual V. Ex.ª pode fazer
-idea, quando o ouve ameaçar céos e terra, clamando,
-á porta da pharmacia, contra os seus devedores)
-não nos conheceu.</p>
-
-<p>Parece que Deus não o dispoz para a nobre carreira
-das armas, porque, ao apontar a espingarda, fez
-como os pretos e os soldados brazileiros—voltou a
-cabeça.</p>
-
-<p>Quando novamente olhou, diz elle, que só viu
-fumo. Não era só fumo; eram nuvens de pó, que nós
-levantavamos.</p>
-
-<p>Eu contei agora este caso, porque somos todos
-de maioridade, paes de filhos, eleitores, elegiveis,
-e já não temos receio de tapona em casa. Mas, até
-hoje, tem estado debaixo d’um certo segredo.</p>
-
-<p>Como d’aquelle endiabrado rancho sahiram tão
-bons paes de familia, é que eu não sei.</p>
-
-<p>São effeitos da edade.</p>
-
-<p>A gente muda muito.</p>
-
-<p>Eu conheço pessoas, que na juventude faziam o
-que podiam. Chegaram, mesmo, a dar nome; e que
-agora, sendo uns santos, em certas occasiões embicam
-com qualquer coisa, e nem sequer consentem,
-que no theatro se aqueçam os pés.</p>
-
-<p>Isto vae tambem muito dos genios... e dos corações.</p>
-
-<p>São como Deus os quer.</p>
-
-<p>Valha-me Nosso Senhor Jesus Christo...</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_43" id="Pag_43">[43]</a></span></p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Mas, veja V. Ex.ª como eu perdi o fio ao discurso!
-Tudo isto veiu a lume, para dizer que o sr.
-Zagallo, na Camara, me lembrava a aula do Conego
-Vaz.</p>
-
-<p>Eu queria-me safar, como disse, e, volta e meia,
-dizia ao Conego, levantando o dedo:</p>
-
-<p>—Senhor Mestre, dá licença de ir lá fóra?</p>
-
-<p>O Conego, ou dizia: vá,—ou:</p>
-
-<p>—Está lá gente.</p>
-
-<p>Mas aquillo tanto vez se repetia, que o Conego
-principiou a desconfiar que era doença, como teve o
-sr. Sampaio nas noites do cordão sanitario, doença
-que tanto dinheiro deu a ganhar á lavadeira...</p>
-
-<p>Uma vez disse-me elle: Oh, senhor! Eu não sei
-para que cá vem. Nunca tenho a certeza se o senhor
-está fóra, ou dentro. Ao menos, quando sahir, deixe
-aqui ficar um papelinho.</p>
-
-<p>E foi d’este papelinho que me lembrei, com os
-officios do sr. Zagallo.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Voltemos ao Justininho.</p>
-
-<p>Justininho escrevia nas gazetas. Inventou o <i>Mensageiro
-das salas</i>, aquella interessante secção, que eu<span class="pagenum"><a name="Pag_44" id="Pag_44">[44]</a></span>
-nunca deixo de ler, em todos os jornaes, porque é
-muito mais barato remedio, do que o Sedlitz Chanteaud.</p>
-
-<p>Foi tambem elle, quem arranjou as seguintes
-classificações para as differentes posições sociaes:</p>
-
-<table summary="classificações para as differentes posições sociaes">
- <tr>
- <td>Juizes</td>
- <td>integerrimos.</td>
- </tr>
- <tr>
- <td>Delegados</td>
- <td>meritissimos e dignissimos.</td>
- </tr>
- <tr>
- <td>Medicos</td>
- <td>habeis.<a name="FNanchor_4" id="FNanchor_4"></a><a href="#Footnote_4" class="fnanchor">[4]</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td>Negociantes</td>
- <td>probos e honrados.</td>
- </tr>
- <tr>
- <td>Bispos e Padres</td>
- <td>virtuosos prelados.</td>
- </tr>
- <tr>
- <td>Proprietarios</td>
- <td>abastados.</td>
- </tr>
- <tr>
- <td>Cavalheiros</td>
- <td>de fino trato.</td>
- </tr>
- <tr>
- <td>Officiaes do exercito</td>
- <td>illustrados e briosos.</td>
- </tr>
- <tr>
- <td>Galopins eleitoraes</td>
- <td>valentes candilhos.</td>
- </tr>
- <tr class="new-row">
- <td>Meninas</td>
- <td>galantes.</td>
- </tr>
- <tr>
- <td>Noivas</td>
- <td>gentis e encantadoras.</td>
- </tr>
- <tr>
- <td>Senhoras solteiras</td>
- <td>gentilissimas damas.</td>
- </tr>
- <tr>
- <td>ditas casadas</td>
- <td>virtuosas esposas.</td>
- </tr>
- <tr>
- <td>ditas viuvas</td>
- <td>inconsolaveis.</td>
- </tr>
- <tr>
- <td>Quarentonas</td>
- <td>interessantes senhoras.</td>
- </tr>
- <tr>
- <td>Jarrões</td>
- <td>respeitaveis damas.</td>
- </tr>
- <tr class="new-row">
- <td>Creanças que nascem</td>
- <td>robustos meninos.</td>
- </tr>
- <tr>
- <td><span class="pagenum"><a name="Pag_45" id="Pag_45">[45]</a></span>ditas que vivem</td>
- <td>interessantes filhinhos.</td>
- </tr>
- <tr>
- <td>ditas que morrem</td>
- <td>innocentes anjinhos.</td>
- </tr>
- <tr>
- <td>ditas que, nem nascem,<br />nem morrem, nem vivem</td>
- <td>mallogrados.<a name="FNanchor_5" id="FNanchor_5"></a><a href="#Footnote_5" class="fnanchor">[5]</a></td>
- </tr>
- <tr class="new-row">
- <td>Estudantes</td>
- <td>intelligentes e esperançosos.</td>
- </tr>
- <tr>
- <td>Meninas... de fallar</td>
- <td>infelizes peccadoras.</td>
- </tr>
-</table>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Como V. Ex.ª vê, aqui ha para tudo.</p>
-
-<p>É pedir por bocca.</p>
-
-<p>Esta classificação teve voga. Foi adoptada em
-Monsão, em Caminha pelo sr. Ricardinho, em Cerveira
-pelo sr. Romeu, em Vianna pelo sr. Eugenio
-Martins, em Paris pelo sr. Xavier de Carvalho, etc.</p>
-
-<p>Nas ilhas Sandwich é que eu não sei, mas vou sabel-o.</p>
-
-<p>Ora, nós podiamos fazer um contracto com as redacções:
-abatiam uns tantos por cento nas assignaturas
-e mandavam depois, sem adjectivos, os Cavalheiros,
-os Padres, as Meninas... de fallar, etc., que
-a gente cá se punha... a dispôr os <i>virtuosos e finos
-tratos</i>.</p>
-
-<p>Esta evidentissima e valiosa manifestação do progresso
-intellectual do nosso jornalismo deve-se, como
-disse, ao Justininho.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_46" id="Pag_46">[46]</a></span></p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Justininho era correspondente de varios jornaes.</p>
-
-<p>Tinha um estylo especial, caracteristico, archaico,
-indigesto, tirante a classico.</p>
-
-<p>Por exemplo: se fosse necessario dizer n’um jornal,
-que a esposa do meu amigo Fabricio dera á luz
-um rapaz, e que já estava prompta para outro, eu
-empregaria, pouco mais ou menos, essas palavras.</p>
-
-<p>Justininho diria:</p>
-
-<p><i>Como prenoticiamos, a virtuosa consorte do nosso
-dilecto amigo Fabricio, probo e honrado negociante
-d’esta formidolosa Praça, deu á luz na preterita terça
-feira, um robusto e interessante menino, que presentemente
-é o enlevo dos seus tão extremosos, quão
-apreciaveis progenitores, e o encanto de todos os que
-hoje gozam a doçura ineffavel, d’aquelle pequenino
-ser.</i></p>
-
-<p><i>A parturiente encontra-se já, graças ao Altissimo,
-liberta de perigo, devendo, tambem, a sua rapida convalescença
-ao desvelo e intelligentes cuidados do distincto
-e perito facultativo, o sr. dr. Pacheco.</i><a name="FNanchor_6" id="FNanchor_6"></a><a href="#Footnote_6" class="fnanchor">[6]</a></p>
-
-<p><i>A suas ex.ᵃˢ endereçamos, em nome da redacção,
-os nossos emboras; e seja permittido ao auctor d’estas
-mal esboçadas linhas, incluir as suas cordiaes felicitações,<span class="pagenum"><a name="Pag_47" id="Pag_47">[47]</a></span>
-que já algures exprimiu, como o mais obscuro, o
-mais somenos admirador das excelsas virtudes, que
-exuberantemente adornam suas Ex.ᵃˢ</i><a name="FNanchor_7" id="FNanchor_7"></a><a href="#Footnote_7" class="fnanchor">[7]</a></p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Ora aqui tem V. Ex.ª o que é uma imaginação
-fertil, e a triste figura que faz um pobre Fabiano,
-como eu, quando escreve nas gazetas.</p>
-
-<p>O sr. Verissimo de Moraes, em tal caso, escreveria,
-ou não escreveria o mesmo.</p>
-
-<p>Se fosse convidado para a festa do baptisado,
-usava exactamente d’aquelles termos, e accrescentava:</p>
-
-<p><i>Todos os convidados d’aquella esplendurosa e inolvidavel
-festa se retiraram altamente penhorados, com a
-maneira fina e delicada, e inexcedivel amabilidade—que
-só a verdadeira fidalguia de sentimentos e nobreza
-de caracter podem conceder—com que o Ex.ᵐᵒ Sr. Fabricio
-e sua Ex.ᵐᵃ Esposa acolheram as pessoas, que tiveram
-a honra de entrar em sua casa.</i></p>
-
-<p><i>Que perduravel ventura, e immensas felicidades,
-bafejem o berço do penhor de tantos affectos...</i></p>
-
-<p>Se não fosse convidado, o parto e o baptisado seriam
-assim annunciados:</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_48" id="Pag_48">[48]</a></span></p>
-
-<p><i>A esposa do sr. Fabricio deu á luz um rapaz, que
-hontem, ás seis e meia da tarde, foi baptisado na egreja
-parochial de S. Estevão.</i></p>
-
-<p>E eu faria o mesmo, se tivesse jornal. A gente
-trata bem, quem bem a trata. Isto já era assim no
-tempo de Noé e ainda não havia gazetas.</p>
-
-<p>N’esta classe de gazeteiros, quem rasoavelmente
-se distingue, é o Aurelio.</p>
-
-<p>Tem um estylo <i>á</i> Victor Hugo e <i>á</i> Guerra Junqueiro.</p>
-
-<p>Isso explica-se muito facilmente.</p>
-
-<p>Está provado que a Materia anda n’este mundo,
-em constante giro; e que as moleculas, que actualmente
-estão no corpo A, podem muito bem estar,
-ámanhã, no corpo B.</p>
-
-<p>E sendo assim, não admira que na massa cerebral
-aureliana, se anichem algumas cellulasitas vagabundas
-e patuscas dos grandes poetas.</p>
-
-<p>Recordo-me, ainda, d’aquella grande questão, que
-elle sustentou, no <i>Primeiro de Janeiro</i>, contra o
-Exercito, por causa do Real d’Agua.</p>
-
-<p>Ahi vae um trecho e diga-me V. Ex.ª, se lhe
-não parece que está lendo a <i>Morte de D. João</i>, ou a
-<i>Legenda dos Seculos</i>:</p>
-
-<div class="poetry-container">
-<div class="poetry">
-<div class="verse">A lei é só uma com a espada da Justiça!</div>
-<div class="verse">Palpitam corações nobres, sob as dobras da jaqueta,</div>
-<div class="verse">Como palpitam e se orgulham debaixo da fardeta.</div>
-<div class="verse"><span class="pagenum"><a name="Pag_49" id="Pag_49">[49]</a></span>Quer se cinja uma espada, quer o cabo da rabiça,</div>
-<div class="verse">Ha leis a obedecer. E com vontade, ou com magua,</div>
-<div class="verse">Das batatas e do bacalhau que gastaes da Cooperativa,</div>
-<div class="verse">Haveis de pagar, inteira, completa e positiva</div>
-<div class="verse">A decima que todos pagam: os direitos do Real d’Agua!<a name="FNanchor_8" id="FNanchor_8"></a><a href="#Footnote_8" class="fnanchor">[8]</a></div>
-</div>
-</div>
-
-<p>Aurelio tem, tambem, incontestavel merecimento
-no theatro; mas nas doiradas espheras em que, entre
-nós, a Arte alli se expande e libra, nunca a minha
-nervosidade e a dynamica do meu espirito foram,
-tão extraordinariamente abaladas, como n’essa saudosa
-noite, em que aos meus olhos e sentidos, se
-patenteou a intuição artistica mais nitida, a percepção
-psychologica mais frisante, que tenho logrado
-admirar nos palcos dos grandes centros civilizados.</p>
-
-<p>Alludo á magistral execução e genial relevo que,
-na <i>Morgadinha de Val d’Amores</i>, deram aos seus
-papeis, os meus amigos Machado e Romano.</p>
-
-<p>V. Ex.ª deve recordar-se...</p>
-
-<p>Representava-se o <i>auto</i> entre moiros e christãos.
-Figuravam reis, prophetas, anjos, <i>princezes</i>, pagens,
-<i>donzellas</i>, pastores e pastorinhas.</p>
-
-<p>Das bandas do Oriente surgem: Manassés—o
-propheta, e Adonis—o <i>princez</i>.</p>
-
-<p>As meias da sopeira, solidamente atadas, com
-tres voltas de fio de vela e nó cego, acima da articulação
-do femur com a tibia, desenhavam-lhes as<span class="pagenum"><a name="Pag_50" id="Pag_50">[50]</a></span>
-linhas bamboleantes do pernil, escassamente roliço
-para despertar sensações eroticas; o pé, pequenino e
-adamado, encafuava se, gentilmente, n’um cambado
-sapato de entrada <i>abaixo</i>, com fivela doirada; o calção
-retesado limitava-lhes a curvatura das nadegas;
-dos hombros pendia-lhes graciosa quinzeninha de
-velludo defuncteiro; na cabeça, um carapucinho patusco,
-com o seu tope arrebitado.</p>
-
-<p>Nas faces mimosas e assetinadas, espetára a mão
-endiabrada do Rocha ferozes matacões de caprina
-pellugem, e enfarruscára as sobrancelhas avelludadas,
-com repetidas fricções de rolha queimada, embebida
-no azeite do purgueira.</p>
-
-<p>Marchavam com fronte altaneira, nariz repontante,
-seguidos pela sua côrte de paradas-velhas, ao
-compasso do hymno picaresco, que o meu amigo
-Argar, com a sua finissima intuição artistica, tão
-caracteristicamente soube conceber, adaptar e colorir.</p>
-
-<p>Ao apparecimento de tão illustres personagens—um
-propheta e um <i>princez</i>—abalaram-se os alicerces
-do edificio, com a violenta expansibilidade dos
-applausos. Ao longo da medulla espinal, desde o bolbo
-rachidiano até á cauda equina, corriam-nos vibrações
-de enthusiasmo; as senhoras choravam; os homens
-arremessavam os chapéos; os paradas-velhas
-e esplanadas do <i>loiceiro</i>, impregnando o ambiente,
-no sonoro explodir do seu arrebatamento, de exhalações
-duvidosas e aromas assaz compromettedores,<span class="pagenum"><a name="Pag_51" id="Pag_51">[51]</a></span>
-irrompiam em galhofeiras invectivas de affectuoso e
-<i>intimo</i> conhecimento, com os pagens e as <i>donzellas</i>
-da real côrte:</p>
-
-<p>—Vira para lá a rabáda, oh Transmontana!</p>
-
-<p>—Tens o rancho á espera, oh 35 da 4.ª</p>
-
-<p>—Pica o pé, oh Estrella!</p>
-
-<p>..............................</p>
-
-<p>E na intima audição do meu espirito, entre os
-fulgores e as scintillações d’aquelle gloriosissimo
-triumpho, subjectivou-me, subito, o Senso:</p>
-
-<p>Oh filho! Quanto póde a... Arte!</p>
-
-<p>..............................</p>
-
-<p>Mas... onde diabo está o Justininho?</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Justininho era o fiel depositario, o mais denodado
-paladino das gloriosas tradições, que apresentam Valença,
-como a terra da provincia, em que ha mais
-convivencia, e em que as senhoras se apresentam,
-melhor, n’um baile. É uma superioridade, esta, como
-qualquer outra. Cornelia, Joanna d’Arc, Filippa de
-Vilhena, Deu-la-deu e outras matronas distinguiram-se
-a seu modo. São feitios.</p>
-
-<p>Foi elle, tambem, o inventor d’aquella celebre
-phrase, ainda hoje acceite e adoptada, quando necessitamos<span class="pagenum"><a name="Pag_52" id="Pag_52">[52]</a></span>
-occultar a nossa inercia, as nossas fraquezas,
-ou a nossa ingenuidade provinciana. <i>Valença é madrasta
-para os seus e mãe para os estranhos.</i></p>
-
-<p>Nunca pude comprehender o que Justininho, e
-outros sectarios da sua eschola philosophica, querem
-dizer na sua—n’uma terra, que não acceitou o legado
-do Conde de Ferreira, em que a Politica é o que sabemos,
-e em que os jovens engraçados, que hoje possue,
-se riem franca e desassombradamente, quando,
-nos bailes da Assemblea, uma senhora tem a infelicidade
-de cahir, ou quando, nos bailes de Tuy, onde
-são obsequiosamente acolhidos, mettem os cotovellos
-á cara dos infelizes pares, que de perto os seguem.<a name="FNanchor_9" id="FNanchor_9"></a><a href="#Footnote_9" class="fnanchor">[9]</a></p>
-
-<p>São tambem opiniões... e feitios.</p>
-
-<p>Ainda hei-de interrogar, sobre este ponto, os srs.
-Abreu e Oliveira, que são os homens que, por aqui,
-vejo mais nos casos de fallar de tudo e de todos, com
-auctoridade e competencia. Esses senhores devem saber
-muitas coisas e todas a fundo. Basta observar
-aquella constante concentração de espirito, e completa
-indifferença, com que encaram este mundo.</p>
-
-<p>São cerebros, que, indubitavelmente, trabalham
-na resolução de grandes problemas sociaes.</p>
-
-<p>Lembram-me tanto Mr. Prudhomme...</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_53" id="Pag_53">[53]</a></span></p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Justininho tinha muitos diplomas de Socio Honorario
-e de dito benemerito; tinha pennas d’oiro e de
-prata, etc. Era um perfeito rapaz de sala; recitava
-poesias; tinha album para ellas; conhecia uma infinidade
-de marcas no jogo do Senhor Abbade; e, para
-os rapazes, tinha uma grande habilidade: assobiava
-magistralmente.</p>
-
-<p>Atacando um <i>spartito</i> de Mozart, de Verdi, de
-Gounod, ou a cadencia das valsas de Strauss, de Metra,
-ou de Waldteufel, aquelle assobio tinha a malleabilidade
-d’um rouxinol, a limpidez das notas da Patti,
-o crystallino da escala de Gayarre, ou do Masini.
-Quando, em noites de luar, Justininho passava na
-rua de S. João, todas as janellas se abriam para dar
-passagem, até aos leitos conjugaes, ás ondas sonoras,
-deslocadas pelo assobio.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Ora, como V. Ex.ª deve ter verificado, não lhe
-faltavam condições para inspirar sympathia e, certamente,
-vae ficar admirado, quando lhe disser, que
-havia quem embirrasse com elle!</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_54" id="Pag_54">[54]</a></span></p>
-
-<p>Era o sr. Coronel Almeida. Chamou-lhe, por ironia,
-<i>importante</i> cá da terra.</p>
-
-<p>Ignoro as razões, que originaram a antipathia de
-sua Ex.ª</p>
-
-<p>Tambem por cá havia muita gente, que embirrava
-com o sr. Coronel. O Isidoro diz que elle era um homem
-muito fino; mas o Agostinho torce o nariz e
-Agostinho é homem, que se não engana, que é consultado
-pelas pessoas mais importantes da nossa terra,
-homem que sabe o que diz, e que não dá <i>ponto sem nó</i>.</p>
-
-<p>Seria bom, ou mau, como quizerem. O que eu digo,
-é que era muito feio; mais feio ainda, do que o sr.
-dr. Salgado!</p>
-
-<p>Devo ao sr. Coronel um grande serviço e um
-grande desgosto.</p>
-
-<p>Conto o primeiro:</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Eu tinha ido ouvir um sermão do Padre Capellão,
-em que sua Reverendissima, desviando-se, completamente,
-no estylo, na fórma, na sublimidade das ideas,
-na concepção das imagens, no arrojado da Phantasia,
-da vulgar Oratoria do Palmeirão e quejandos, me
-descreveu, d’uma fórma completamente original, intuitiva
-e concludente, em face da moderna Sciencia,
-a maneira como o animal homem appareceu n’este
-mundo.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_55" id="Pag_55">[55]</a></span></p>
-
-<p>Foi no Eden. Eva tinha ido aos grillos, mas estes,
-sahindo rebeldes á <i>palheira</i> e, como ella não conhecia
-ainda o outro meio <i>natural</i> de os fazer abandonar
-a toca, andou por montes e valles, cançou-se,
-e... adormeceu.</p>
-
-<p>Veiu então Nosso Senhor, tirou-lhe uma costella,
-bufou-lhe e sahiu, já prompto e acabado, o nosso primeiro
-Pae.</p>
-
-<p>Ora, isto satisfez completamente o meu espirito;
-dissipou todas as duvidas, porque é, realmente, uma
-das mais... respeitaveis e maravilhosas concepções
-dos livros sagrados.</p>
-
-<p>Mas, passado pouco tempo, soube eu que, lá fóra,
-andavam ás turras differentes sabios por causa de novas
-theorias de evolução, selecção natural, transformismo,
-etc., sustentadas por Darwin e Lamark e
-combatidas por Linneu e Cuvier.</p>
-
-<p>Alvoroçou-se a minha curiosidade e tratei de estudar
-a questão, com a attenção devida á sua importancia.</p>
-
-<p>Durante muito tempo, nunca tirei o caso a limpo.
-Se passava por o sr. José Luiz,<a name="FNanchor_10" id="FNanchor_10"></a><a href="#Footnote_10" class="fnanchor">[10]</a> dizia com os
-meus botões: vou com Darwin; se passava por o sr.
-Velloso dizia: vou com Cuvier.</p>
-
-<p>Assim estive muito tempo, hesitando, e sem saber
-se, realmente, o meu coccyx foi sempre o extremo
-da columna vertebral, ou se em tempos remotos,<span class="pagenum"><a name="Pag_56" id="Pag_56">[56]</a></span>
-esteve ligado a algum appendice, que hoje tem
-um nome muito sympathico ao sr. Marquez de Vallada.</p>
-
-<p>Chegou o sr. Coronel a Valença e entrou a verdade
-no meu espirito. Fez-se a luz! Venceu Darwin.</p>
-
-<p>Indubitavelmente, inquestionavelmente, o sr. Almeida
-não teve a mesma origem, que teve o sr. Velloso;
-a não ser, que se possa admittir uma hypothese,
-mas com essa nada tenho, porque não entra no
-meu programma. É questão de portas a dentro:—que
-houvesse troca nas vias da expedição...</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Agora conto o desgosto:</p>
-
-<p>Já lá vão quinze annos! Minha mulher andava,
-com licença de V. Ex.ª, no seu estado interessante.</p>
-
-<p>Uma noite, para lhe combater a insomnia, li-lhe
-uma historia do Egypto, em que figurava o grande
-Sesostris, que morreu, como se sabe, ha perto de
-4:000 annos e de que existe a mumia n’um museu
-qualquer.</p>
-
-<p>Havia, n’essa historia, mortes, egypcios de barriga
-furada, pharaós com as tripas de fóra, creanças desventradas,
-velhos postejados—uma matança de arrepiar
-carnes e cabellos.</p>
-
-<p>O livro tinha gravuras e n’uma pagina, via-se o
-grande Sesostris mumificado por aquelles processos,
-ainda hoje ignorados, dos antigos egypcios.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_57" id="Pag_57">[57]</a></span></p>
-
-<p>Minha mulher não gostou e affligiu-se. Fechei o
-livro e abri a porta, para ir cumprir uma necessidade
-urgente.</p>
-
-<p>N’isto, passa na rua o sr. Coronel, e logo que minha
-mulher o vê, desata a berrar:</p>
-
-<p>—Ai o Sesostris! Ai o Sesostris!</p>
-
-<p>Teve uma syncope e, depois, dôres violentas.</p>
-
-<p>D’alli a duas horas a sr.ª Maria do Hospital
-aproximava-se de mim e, com aquella amabilidade,
-delicadeza e fino trato que, infelizmente, lhe conhecemos,
-dizia-me estas terriveis e significativas palavras:</p>
-
-<p>—Senhor, nada de affligir, porque a <i>fabrica</i> ainda
-cá fica; mas esta... deu-a para fóra!</p>
-
-<p>..............................</p>
-
-<p>Comprehendi. E no auge da minha dôr, para explosão
-da minha cólera, só pude exclamar:</p>
-
-<p>Raios partam o Sesostris!</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Deixemos coisas tristes...</p>
-
-<p>Eu fallei no Velloso...</p>
-
-<p>Este Candido Velloso, com os seus olhos negros,
-com o seu collete branco, o seu collar decotado, a
-sua perna bem lançada e elegante, o seu pequenino
-bigode <i>á mosqueteiro</i>, e com o oiro do seu uniforme, é
-o terror dos Paes de familia d’esta região peninsular.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_58" id="Pag_58">[58]</a></span></p>
-
-<p>João, é Candido e candido; meigo, carinhoso, delicado,
-para o bello sexo. Tem a sensibilidade d’um
-bardo; a alma sonhadora d’um menestrel; o espirito
-cavalheiresco d’um paladino; a pureza immaculada
-d’um Abeillard; o lyrismo d’um Romeu; a altivez
-d’um Quichote—todos os attractivos, emfim, d’um
-João com Dom e ás direitas.</p>
-
-<p>Cinco seculos antes, e Velloso seria um dos onze
-companheiros de Magriço, n’aquella cavalheiresca
-aventura da côrte ingleza.</p>
-
-<p>Apparece em toda a parte, onde ha senhoras.
-Corteja, sorri, offerece os seus serviços e conta coisas,
-que entretêm.</p>
-
-<p>A sua organisação affectiva é poderosissima. Com
-o amôr, as contracções dos ventriculos, para a diastole
-e para a systole, realisam-se com uma força
-equivalente a 750 kilogrammetros por segundo.</p>
-
-<p>O seu coração é um enorme <i>caravanserail</i>. Tem
-cem auriculas e cem ventriculos, com a capacidade
-de 64 metros cubicos cada um. Os amôres cabem lá
-dentro vestidos, calçados e com guarda-chuva aberto.</p>
-
-<p>Cada um tem o seu quarto numerado. Ao levantar-se,
-Velloso, passa em revista todos os seus affectos
-e escolhe para o dia.</p>
-
-<p>Não revela preferencias, para não originar baralhas.
-Ás vezes desapparece da circulação, porque os
-Papás valencianos e tudenses, aterrados, inquietos,
-vão ter com o sr. Silva Pereira e exigem-lhe a deportação
-do incendiario.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_59" id="Pag_59">[59]</a></span></p>
-
-<p>Lá vae para Castro Laboreiro. Quando é necessario
-por cá, basta pronunciar baixinho, esta palavra:—baile.
-No aureo tempo, em que João Morães
-era enthusiasta pelas danças e promovia aquellas
-<i>apatuscadas reuniões-familiares</i>, em que a gente ía á
-Assemblêa, para apprender a fazer meia, ou para
-ajudar a dobar maçarocas e novelos ás senhoras—acontecia
-ás vezes o seguinte:</p>
-
-<p>João Morães lembrava-se d’um baile. Só no seu
-cerebro se definia essa idea. Matutava sobre o caso.
-Fechava-se no gabinete e, concentrando todas as suas
-faculdades, principiava o orçamento.</p>
-
-<p>Calculava e annotava:</p>
-
-<table summary="O orçamento de João Morães">
- <tr>
- <td><b>Chá</b> <span class="smaller">(póde ser comprado aos homens do papel, que o vendem a 800, o kilo)</span></td>
- <td class="tdpg">$372</td>
- </tr>
- <tr>
- <td><b>Assucar</b> <span class="smaller">(Metade do <i>pilé</i> e metade do mascavado)</span></td>
- <td class="tdpg">$723</td>
- </tr>
- <tr>
- <td><b>Pão para fatias</b> <span class="smaller">(Cada peça dá 20, cada <i>cornucho</i> dá 12)</span></td>
- <td class="tdpg">1$207</td>
- </tr>
- <tr>
- <td><b>Manteiga para as tostas</b> <span class="smaller">(Vende-a o Coisa a 200, o kilo, com ranço; póde ser misturada)</span></td>
- <td class="tdpg">$247</td>
- </tr>
- <tr>
- <td><b>Carqueja e lumes de pau</b></td>
- <td class="tdpg">$015</td>
- </tr>
- <tr>
- <td><b>Agua de Colonia</b> <span class="smaller">para o <i>toilette</i> das damas (1 quartilho, de Tuy)</span></td>
- <td class="tdpg">$060</td>
- </tr>
- <tr>
- <td><b>Pó d’arroz</b> <span class="smaller">(e farinha)</span></td>
- <td class="tdpg">$030</td>
- </tr>
- <tr>
- <td><b>Aluguel do</b> <span class="smaller"><i>Panorama</i>, ao Albino</span></td>
- <td class="tdpg">$120</td>
- </tr>
- <tr>
- <td><b>Illuminação</b> <span class="smaller">(nas escadas póde ser de sebo)</span></td>
- <td class="tdpg">1$473</td>
- </tr>
- <tr>
- <td><b>Contracto</b> <span class="smaller">com 3 cavalheiros para cearem em casa</span></td>
- <td class="tdpg">3$900</td>
- </tr>
- <tr>
- <td><b>Roscas de Tuy</b> <span class="smaller">para os quatrocentos meninos e meninas, que costumam vir aos bailes</span></td>
- <td class="tdpg">12$747</td>
- </tr>
- <tr>
- <td><b>Gratificação ás amas</b>, <span class="smaller">que tomem conta dos que ainda mamem</span></td>
- <td class="tdpg">1$500</td>
- </tr>
- <tr>
- <td><span class="pagenum"><a name="Pag_60" id="Pag_60">[60]</a></span><b>Piões e faniqueiras</b> <span class="smaller">para os mais velhinhos se entreterem no salão</span></td>
- <td class="tdpg">$140</td>
- </tr>
- <tr>
- <td><b>Musica de Ganfey</b> <span class="smaller">para tocar á porta o hymno real, quando entrar o Representante do Rei, Nosso Senhor</span></td>
- <td class="tdpg">6$000</td>
- </tr>
- <tr>
- <td><b>Gratificação</b> <span class="smaller">a 4 artilheiros para, armados, guardarem os taboleiros, na passagem do corredor</span></td>
- <td class="tdpg">2$000</td>
- </tr>
- <tr>
- <td><b>Brinde</b> <span class="smaller">ao Aurelio para recitar uma poesia tragica: valor de</span></td>
- <td class="tdpg">$700</td>
- </tr>
- <tr>
- <td><b>Idem</b> <span class="smaller">ao Roldão para marcar as quadrilhas: valor de</span></td>
- <td class="tdpg">$720</td>
- </tr>
- <tr>
- <td><b>Gratificação</b> <span class="smaller">a 6 creados</span></td>
- <td class="tdpg">$300</td>
- </tr>
-</table>
-
-<p>Total 30 mil e tanto. Por cabeça—tanto. João
-Morães verificava. Tirava a prova dos nove. N’isto,
-batiam discretamente á porta. João abria e cahia-lhe
-o Velloso nos braços, offegante, pallido. Vinha do
-Castro Laboreiro a pé, a cavallo, no comboyo.</p>
-
-<p>—<i>Sei que projectas um baile. Ahi tens a minha
-quota. Risca; e olha lá—oh menino—vê se arranjas
-isso depressa. Passam-se tão bem aquellas horas...</i></p>
-
-<p>Este João deve ficar na terra. Deve ser expropriado
-por utilidade publica. Barcellos, que se arranje
-lá, como quizer. O Velloso Candido é que para lá não
-volta. <i>D. Joões</i> temos muitos por cá; agora, candidos,
-ha só um, que é elle; e esses, é que se apreciam,
-porque não fazem mal.</p>
-
-<p>Velloso Candido! Trata de te matrimoniar, filho.</p>
-
-<p>Oh diabo!... E a Mé...?</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_61" id="Pag_61">[61]</a></span></p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Em Politica, Justininho foi sempre, como eu—um
-desgraçado. O mais que podia conseguir, (e n’isso
-levou-me a palma) era um convite para fazer parte
-das mesas eleitoraes. Pois arranjou popularidade nas
-aldeias. Os lavradores respeitavam-n’o e affirmavam,
-que tinha <i>lume</i> no ôlho.</p>
-
-<p>Em leis do Real d’agua e da Contribuição do Registro
-era um Salomão.</p>
-
-<p>Ahi vae um exemplo:</p>
-
-<p>Os guardas do fisco trouxeram-lhe, preso, um camponio,
-que tentára introduzir na villa, sem direitos,
-um garrafão com meio almude de vinho.</p>
-
-<p>Perguntou o desgraçado quanto tinha a pagar e,
-aterrado com a multa e tantos por cento, nas barbas
-honradas da auctoridade, levou o garrafão á
-bocca e despejou-o d’um trago.</p>
-
-<p>Nada se podia fazer, porque o Regulamento não
-previne esse caso.</p>
-
-<p>Sahiu o homem, mas ao virar a primeira esquina,
-sentindo-se afflicto, levou as mãos á bocca e despejou
-o vinho.</p>
-
-<p>Justininho vê isso e manda-o novamente prender.
-Intima-o a pagar direitos e multas correspondentes.</p>
-
-<p>—Mas eu bebi o vinho, senhor!</p>
-
-<p>—Bebeu, mas deixou-o ficar na villa, dentro de<span class="pagenum"><a name="Pag_62" id="Pag_62">[62]</a></span>
-barreiras. Alli está, introduzido sem pagamento de
-direitos. Art. 1007.º do Regulamento de 6 de Maio
-de 1884. Pague!</p>
-
-<p>—Mas eu <i>esgumitei-o</i><a name="FNanchor_11" id="FNanchor_11"></a><a href="#Footnote_11" class="fnanchor">[11]</a>, senhor!</p>
-
-<p>—O dito Regulamento, no seu paragrapho de
-isenções, não lembra esse caso. Pague!</p>
-
-<p>E pagou, que não houve volta a dar-lhe. Nem
-sete doutores o salvavam.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Ora aqui está, o que pude <i>apanhar</i> ao Justininho
-d’outros tempos. Hoje está homem sério, como eu;
-já nem escreve nas gazetas, o que é realmente para
-lastimar, porque nem a gente sabe quantos robustos
-meninos, por ahi nascem.</p>
-
-<p class="center">Justininho,</p>
-
-<p class="right">boas noites.</p>
-
-<hr class="chap" />
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_63" id="Pag_63">[63]</a></span></p>
-
-<h2 id="III">III<br />
-<span class="smaller">Carta a Sua Excellencia,
-o sr. Governador... de Paysandu</span></h2>
-
-<p class="mt3 right">Senhor!</p>
-
-<p>Tenho a honra de me apresentar a V. Ex.ª</p>
-
-<p>Sou o Zinão.</p>
-
-<p>Quarenta annos; casado, e com bom comportamento
-moral, civil e religioso.</p>
-
-<p>Nunca tive contas com o Borralho, nem com o
-Assiz dos Algarves, nem com o Julinho.</p>
-
-<p>Sou de muito bom genio; depois que vi as caras
-feias, que fazem os srs. Barros e João Monteiro,
-quando se zangam, abracei immediatamente as doutrinas
-philosophicas da eschola optimista, e digo com
-Leibnitz: «Tudo vae bem n’este mundo, que é o melhor
-possivel.»</p>
-
-<p>Sou irmão da Misericordia e approvei a admissão<span class="pagenum"><a name="Pag_64" id="Pag_64">[64]</a></span>
-das irmãs de Caridade, porque em coisas de religião
-sou muito temente a Deus, como o sr. José Narciso.
-Tenho bulla, porque se a não tivesse, quero dizer,
-se a não pagasse, diz a Santa Madre Egreja, que era
-peccado comer carne.</p>
-
-<p>Vou á missa e á desobriga; além d’isso, sendo amigo
-intimo do sr. Baptista e, como affirma o dictado,
-os amigos dos meus amigos, meus amigos são, tambem
-sou das relações intimas da Senhora do Faro,
-que tem tomado chá na casa d’elle, e com quem este
-senhor se trata por tu, jogando, nas noites de inverno,
-a bisca e o 31 de bocca.</p>
-
-<p>Tambem sou militar, porque pertenço á terceira
-reserva.</p>
-
-<p>Respeito a mulher do meu proximo. Sou economico;
-tenho chapéos ainda mais antigos, que os do
-sr. Polycarpo.</p>
-
-<p>Como portuguez, amo a minha patria; odeio os
-ibericos, como o sr. João Ignacio.</p>
-
-<p>Em Politica sou legitimista, como o sr. Santa
-Clara, porque ninguem me tira da cabeça, que estes
-reinos pertencem ao sr. D. Miguel e a mais ninguem.</p>
-
-<p>Tenho sido, por vezes, Juiz de Paz e, se na minha
-terra me não guindei, ainda, ás alturas a que
-chegaram os srs. Joaquim, que se carteia com o Ministro
-do Reino, ou o sr. Illydio Dias, que com a sua
-Bibliotheco-mania telegrapha ao Rei, como amigo velho,
-quem viver verá, que talvez consiga roubar-lhes
-o pennacho.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_65" id="Pag_65">[65]</a></span></p>
-
-<p>Ora aqui está a minha folha corrida; e por ella
-já Vossa Excellencia vê, que sou homem sério e que,
-se não moro na rua de S. João, podia muito bem lá
-morar.</p>
-
-<p class="mt3 right">Excellentissimo Senhor!</p>
-
-<p>Dizem-me que Vossa Excellencia está prestes a
-deixar-nos, para ir fulgurar na brilhante constellação
-dos nossos generaes; e não quero que isso succeda,
-sem apresentar a Vossa Excellencia a homenagem
-sincera do meu respeito e enthusiastica veneração,
-porque considero Vossa Excellencia, como um dos
-melhores Governadores, a quem, para felicidade d’estes
-povos e d’estes reinos, Sua Magestade tem havido
-por bem confiar o <i>governo</i> d’esta Praça.</p>
-
-<p>Na pleiade de homens illustres que, ha doze annos
-para cá, teem <i>governado</i> Valença, Vossa Excellencia
-destaca-se pelo seu senso, illustração, excessiva modestia
-e desprendimento das glorias do mundo, que
-tão tentadoras e offuscantes são, quando, após annos
-de lucta, de vigilias, de laboriosas lucubrações de espirito,
-de penosissimo labutar das funcções cerebraes
-com senos, cosenos, raizes quadradas de <i>a</i> e ditas cubicas
-de <i>b</i>, chega a gente a alcandorar-se nos inaccessiveis
-pinaculos d’uma tão elevada posição social.</p>
-
-<p>Os dois illustres antecessores, que precederam
-Vossa Excellencia, eram e são muito boas pessoas;
-mas alargavam demasiadamente a esphera das dependencias<span class="pagenum"><a name="Pag_66" id="Pag_66">[66]</a></span>
-da Praça, de fórma que faziam incluir no
-seu Estado-maior uma certa pessoa, clara já, talvez,
-á perspicacia de Vossa Excellencia—pessoa que, até
-alli, tinha a seu cargo o caridoso e humanitario mistér
-de desobrigar pessoas serias, como eu, Excellentissimo
-Senhor, e que, depois da chegada de Suas Excellencias,
-se viram na dura necessidade de, ou desviar
-para outra applicação a sua potencia vital, como,
-por exemplo, para o estudo de construcções, principiando
-com a rudimentar disposição das traves nos
-tectos, ou a curtir... as suas maguas pelas muralhas,
-entregando, assim, o organismo á terrivel atonia
-d’essa perigosa enfermidade, que a todos ataca na puberdade.
-(Vossa Excellencia tambem devia dar o seu
-contingente...)</p>
-
-<p>Ora, o tal monopolio, Excellentissimo Senhor, tornou-se
-muito funesto á povoação. Foi, até, na epocha
-d’elle, e por causa d’elle, que aconteceu aquella
-grande desgraça ao sr. Abilio Araujo...</p>
-
-<p class="tb">Eu sou muito amigo de Vossa Excellencia e
-Vossa Excellencia tambem é meu amigo. Sou d’aquelles
-que, no dia do Anno Novo, apanham o seu quinhão
-nas <i>boas festas</i> que Vossa Excellencia, lá das
-alturas, se digna dar, como os antigos senhores
-feudaes, á burguezada e aos paradas-velhas, cá da
-terra.</p>
-
-<p>Depois, venero Vossa Excellencia, porque é um
-homem energico, que tem, como o povo diz (e realmente<span class="pagenum"><a name="Pag_67" id="Pag_67">[67]</a></span>
-tem) cabellinhos na venta (com o devido respeito).</p>
-
-<p>Aquella felicissima resposta, que Vossa Excellencia
-deu ao Padre Magalhães, quando elle foi pedir
-para a Semana Santa com o innocente sr. Joaquim e
-com o ingenuo Abbade das Gandras, foi fulminante
-de espirito; foi á Pombal, á Richelieu, á Pitt, á Bismarck,
-á Duque d’Olivares; teve a potencia explosiva
-d’uma bomba á Orsini, ou d’um petardo nihilista, preparado
-chimicamente, com os mais poderosos elementos
-endothermicos.</p>
-
-<p>Disse-se, por ahi, que Vossa Excellencia procedera
-mal; porque, se queria dar carambola ao <i>Noticioso,</i>
-que lhe chamára General não sei de que, não
-devia escolher para bola vermelha um homem que ia
-de preto, que tinha entrado na sua sala de visitas,
-onde, até a pretalhada do Bonga, que pouco sabe de
-hospitalidade, recebe e trata bem a gente.</p>
-
-<p>Accusaram Vossa Excellencia de ter faltado,
-n’essa occasião, aos mais rudimentares preceitos da
-delicadeza e até se asseverou, fazendo justiça ao caracter
-de Vossa Excellencia, que a tal resposta foi soprada
-ao ouvido, por Sua Excellencia, o Senhor Vice.</p>
-
-<p>Eu não sou d’essa opinião. Vossa Excellencia respondeu
-e respondeu muito bem. N’isto de militanças
-praceiras, não ha attenções, nem hospitalidades, nem
-sala de visitas, ha... o regulamento do Conde de
-Lippe! Quem o não acatar... leva a sua conta, e assim
-é que deve ser.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_68" id="Pag_68">[68]</a></span></p>
-
-<p>O Padre devia ficar ainda mais pequeno do que
-é, mas Vossa Excellencia tambem escapou de boa! Se
-elle tem ao lado o Sant’Anna, lá do Porto, Vossa Excellencia
-bem podia gritar por Sua Excellencia, o Senhor
-Vice...</p>
-
-<p>Então o caso era serio!</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Depois, quem não ha-de respeitar Vossa Excellencia,
-com a sua variadissima illustração?</p>
-
-<p>Nunca me hei-de esquecer d’aquelle esplendido
-discurso, que Vossa Excellencia, de improviso, pronunciou
-na Assemblea, em 20 de janeiro de 1887,
-quando tomou conta da Presidencia. Sei-o de cór; e
-tão profunda foi a impressão, que causou no meu espirito,
-que até n’elle ficaram gravados os ápartes e
-as interrupções.</p>
-
-<p>Se Vossa Excellencia dá licença, eu repito alguns
-periodos. Os ápartes, para falar a verdade, são ainda
-para mim um tanto enigmaticos, mas deve haver por
-ahi, quem os possa explicar a Vossa Excellencia.</p>
-
-<p>Ahi vae uma tirada:<a name="FNanchor_12" id="FNanchor_12"></a><a href="#Footnote_12" class="fnanchor">[12]</a></p>
-
-<div class="blockquote smaller">
-
-<p>«... As prestimosas agremiações, como esta, com que as
-Sociedades modernas procuram deleitar e amenizar os espiritos,<span class="pagenum"><a name="Pag_69" id="Pag_69">[69]</a></span>
-após as laboriosissimas horas da lucta e contrariedades da vida,
-nascem, crescem e desenvolvem-se, como essas enormes, vas- (<i>o
-sr. capitão Marques da Costa:—Vaz? É o amigo Lopo?
-Então appoiado!</i>) tas e florescentes ilhas do Atlantico e Pacifico,
-formadas pela organisação rudimentar das algas marinhas
-e de myriadas de seres microscopicos, da familia dos polypos,
-classe dos coelenterados, grande grupo dos radiados, ou
-zoophitos. (<i>Os srs. Roldão, Polycarpo Monteiro, Zagallo e
-outros cavalheiros versados em sciencias naturaes:—muito
-bem!</i>)</p>
-
-<p>«Da Natureza, meus senhores, deliciam-nos as suaves fragancias
-das flores: a modestia da violeta; a pureza immaculada
-do lirio; o murmurar dos bosques, os seios tumidos (<i>o sr. José
-Lopes, da Principal:—appoiado!</i>) da donzella, os alvores da
-madrugada e o canto das avesinhas. (<i>Os srs. Alberto Marques,
-Gaspar Durães, Justino Guerra e outros poetas e prosadores
-da estafada eschola romantica:—muito bem!</i>)</p>
-
-<p>«Pois na vida social, as horas fugitivas, que aqui deslizam
-em encantador e aprazivel convivio, com os Cavalheiros de fino
-trato (<i>o sr. Verissimo de Morães:—appoiado!</i>) e com as
-amaveis, airosas e donairosas e gentilissimas damas d’esta formidolosa
-Praça (<i>os srs. Justino Guerra, Eugenio Martins e
-Soares Romeu, interessantes collaboradores do interessantissimo
-«Mensageiro das salas»:—appoiado!</i>) ou com as
-encantadoras hijas da hidalga y noble Espãna (<i>o sr. D. Ramon:—Ká!
-Muy bien! Maunifico! Precioso. Ká! Seño
-Gobernador: Viva la gracia! Ká!</i>) bellas, como uma virgem
-de Murillo e castas, como a esposa de Jacob, de que me não
-recorda agora o nome (<i>diversas pessoas serias:—appoiado!</i>)
-quando as cingimos em suave enleio, no vertiginoso redemoinhar
-da valsa (<i>o sr. Salazar Muscoso: muitobemmuitobemmuitobem!</i>)<a name="FNanchor_13" id="FNanchor_13"></a><a href="#Footnote_13" class="fnanchor">[13]</a>
-ou quando as brindamos com preciosas iguarias e
-delicados vinhos <i>(os srs. C. Oliveira, Verissimo de Morães,
-um Cavalheiro de Tuy e outro de Monsão, que não tive a
-honra de conhecer:—appoiado!</i>) essas horas, repito, representam
-em a nossa vida social aquellas alegrias da Natureza!</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_70" id="Pag_70">[70]</a></span></p>
-
-<p>«Não ter alma para sentir isto, meus senhores, como muito
-bem disse o nosso grande ex-historiador<a name="FNanchor_14" id="FNanchor_14"></a><a href="#Footnote_14" class="fnanchor">[14]</a> Alexandre Herculano,
-é proprio d’um ser doentio; é, como vulgarmente se diz,
-proprio de gente pequena. (<i>Protestos ruidosos dos srs. dr.
-Ladislau, Alvaro Garção e P. Magalhães.—O sr. dr. Pestana:—peço
-a palavra para explicações.</i>)</p>
-
-<p>Trabalhar, pois, para esta Sociedade é uma acção de elevado
-patriotismo; (<i>o sr. José Lopes, da Principal:—muito
-bem!</i>) é uma acção de larga influencia regeneradora (<i>protestos
-dos srs. Alvares d’Oliveira, P. Cunha e Agostinho</i>) para os
-nossos costumes; é um symptoma da benefica evolução progressista;
-<i>(protestos dos srs. Appollinario, Camisão e do
-dito sr. Agostinho)</i> é, emfim, como ainda ha pouco me disse,
-e disse muito bem, o sr. Capellão (<i>o sr. Leopoldo Gomes:—qual
-d’elles? Então Vossa Excellencia também gasta? Por
-isso eu estive á espera!...</i>) que aqui me ouve, uma missão
-altamente honrosa e humanitaria!</p>
-
-<p>«Por isso, meus senhores, unamos os nossos esforços e como
-os polypos e as algas.................... as algas.....................»</p>
-
-</div>
-
-<p>Que Vossa Excellencia me perdõe o que vou dizer,
-mas... perdi o fio ao discurso e o melhor é ficar
-por aqui, porque, n’estas questões de Historia, não
-quero <i>metter</i> de minha casa.</p>
-
-<p><i>Verba volant, scripta manent...</i><a name="FNanchor_15" id="FNanchor_15"></a><a href="#Footnote_15" class="fnanchor">[15]</a></p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_71" id="Pag_71">[71]</a></span></p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Eu atrapalho-me sempre, quando falo de Vossa
-Excellencia, que representa para mim o que ha de
-mais alto, mais nobre e augusto, nas elevadas jerarchias
-e coisas serias da minha terra.</p>
-
-<p>Quando encontro Sua Excellencia nas ruas da vizinha
-cidade de Tuy, pisando com arrogancia e altivez,
-genuinamente portuguezas, o solo d’aquelles
-odiosos Filippes, seguido automaticamente, á distancia
-regulamentar, por alentado e escolhido artilheiro,
-como estabelece o regulamento de Sua Excellencia,
-o Senhor Conde de Lippe, eu tremo de respeito e envergonho-me
-de mim mesmo—pobre e mesquinho
-verme da terra.</p>
-
-<p>Quando assisto á entrada de Sua Excellencia, solemne,
-magestoso, omnipotente, rutilante de oiro e
-pedrarias, constellado de <i>crachás</i>, faiscante de venéras,—no
-templo de Santa Maria, em festividade da
-Semana Santa, para mandar prevenir as auctoridades
-civis e ecclesiasticas, que superintendem no cerimonial,
-que está alli, para, como unico e fiel representante
-de Sua Magestade El-rei, n’estes burgos,<a name="FNanchor_16" id="FNanchor_16"></a><a href="#Footnote_16" class="fnanchor">[16]</a> depôr
-o osculo de respeito nos chagados pés do Senhor
-dos Passos, exactamente como, á mesma hora, faz o<span class="pagenum"><a name="Pag_72" id="Pag_72">[72]</a></span>
-mesmo Augusto Senhor Rei, no templo da Graça—quando
-o vejo aproximar vagarosamente da veneranda
-imagem, n’aquelle passo grave, solemne e arrastado
-de solas, com que os prophetas de barba de
-guita e cara borrada com pós de sapato, acompanham
-em Tuy o sagrado esquife, e o ouço depôr o respeitoso
-osculo, confundindo assim, em edificante e enternecedora
-homenagem, a magestade dos céos com a
-magestade da terra—quando sigo, depois, Sua Excellencia
-na retirada do templo, rodeado do seu luzido
-e brilhante Estado-Maior, essa pleiade de homens
-illustres, que representam o que ha de mais
-intelligente, nobre e indispensavel nas instituições
-militares do meu paiz, homens encanecidos em mil
-batalhas contra columnas cerradas de algarismos, cifras
-e cifrões de indomitas contas de feijão e batata,
-do rancho geral, ou dos cadernos da arrecadação
-dos puxa-frictores, morteiros, colubrinas, missagras,
-lanternetas, chapuzes, cepos, boldriés, sacres,
-caçoletas, falconetes, lanadas, cucharras, soquetes,
-munhões, sotroços, trinque-bales, tira e mette-buchas
-e outros tarecos velhos, que nas dependencias da
-Praça são do exclusivo dominio e usofructo dos ratos
-e aranhões, formando, no seu conjuncto, collecção superior,
-em inutilidade, á feira da Ladra—quando eu
-vejo tudo isso, meu Senhor, sinto-me mais pequeno
-do que um feijão fradinho; mais sumido, do que um
-certo parasita que Vossa Excellencia, d’essas alturas
-em que vive, não enxerga, mas com o qual, eu, infelizmente,<span class="pagenum"><a name="Pag_73" id="Pag_73">[73]</a></span>
-estou relacionado, desde que commetti a
-imprudencia de (com licença de Vossa Excellencia)
-verter aguas, detraz das portas do Meio, onde tambem
-o faz a soldadesca!</p>
-
-<p>Vossa Excellencia deslumbra-me; offusca-me; tem
-para mim as proporções d’um semi-Deus; mas quer
-Vossa Excellencia saber, respeitabilissimo Senhor?</p>
-
-<p>Ha, por ahi, gente tão nescia, tão ignorante, tão
-alheia ao mechanismo d’esta complicada engrenagem
-das instituições sociaes, que chega a perguntar (perdõe-lhe
-Vossa Excellencia) para que serve o Governo
-da Praça, alliando, ainda, á ignorancia, a grosseria
-de lastimar que, do que a gente paga nas decimas,
-do que se rouba ao trabalho honrado e aspero do lavrador
-e do padeiro, se desviem 500 e tantos mil
-reis mensaes, obra de sete contos por anno, para ter
-ahi (que malcreados!) n’um rasoavel sybaritismo, cinco
-ou seis servidores da patria, equiparados escandalosamente
-(dizem elles) em honras e proventos, ao official,
-que nos corpos atura, diariamente, o brutal trabalho
-do quartel, com enorme responsabilidade, com
-necessidade de instrucção e arriscado a, d’um momento
-para outro, receber ordem para expôr a caixa
-craneana á bala do trabuco assassino, que anda a
-monte, ou ao zagalote do bacamarte desordeiro e avinhado,
-nas grandes borgas eleitoraes.</p>
-
-<p>Eu, até, já ouvi dizer, Excellentissimo Senhor,
-que se isso era por causa das procissões, das missas
-pela alma do Senhor D. Pedro <span class="smcapuc">IV</span>, ou da recepção<span class="pagenum"><a name="Pag_74" id="Pag_74">[74]</a></span>
-das musicas gallegas, o Governo podia muito bem
-contractar, para tal effeito, os <i>gigantones</i> de Tuy, ou
-os <i>barbacenas</i> da Guarda romana, porque eram de
-mais apparato, era outra limpeza e ficava muito mais
-barato.</p>
-
-<p>Mas quer Vossa Excellencia saber ainda mais?
-Ha, até, n’esta terra de cafres, quem reponte com a
-posição original que Vossa Excellencia dá á sua boquilha,
-quando, nas ruas, se delicia com os aromas
-d’um bom charuto! Como se Vossa Excellencia, pelo
-simples facto de não ter Tosão, d’Oiro, que dá honras
-de principe e direitos a poder fazer a gente o
-que quizer, não tenha a plenissima faculdade de trazer
-uma coisa (a boquilha), como muito bem lhe appetecer,
-horisontal, ou ao dependuro, e como se esta
-ultima posição não fosse, realmente, a mais decente
-e apropriada á edade de Vossa Excellencia!</p>
-
-<p>Ora diga-me Vossa Excellencia, agora que desceu
-commigo a estes profundos abysmos da ignorancia
-popular, se é, ou não, necessario applicar, de vez em
-quando, a estes barbaros, umas espadeiradas á Macedo,
-ou quatro <i>mimos</i> com o historico chicote do
-Bruto, digo, do Barão do Rio Zezere...</p>
-
-<p class="mt3 right">Excellentissimo Senhor!</p>
-
-<p>Eu folgo de ter encontrado pretexto, para manifestar
-o meu respeito e veneração a Vossa Excellencia,<span class="pagenum"><a name="Pag_75" id="Pag_75">[75]</a></span>
-mas, como esta já vae longa, abrevio o muito
-que lhe tinha a dizer e contar.</p>
-
-<p>Não se incommode Vossa Excellencia com as más
-linguas. Nosso Senhor Jesus Christo perdoou aos que
-não sabiam o que faziam. As realezas da terra, meu
-Senhor, são representantes legitimos da realeza dos
-céos. Affonso Henriques, quando em Ourique dava
-tapona na moirama, a folhas tantas, olhou para o
-céo e de lá fizeram-lhe um signal com a cruz, que
-queria dizer: <i>vences</i>. Constantino, quando se viu atrapalhado
-com os barbaros, olhou tambem para lá e
-o Padre Eterno fez-lhe o que a gente faz, quando
-está sentado na praia com o namoro, deante do futuro
-sogro e da rabujenta futura sogra e, não podendo
-dizer á rapariga: <i>amo-te, oh filha!</i> escreve
-sorrateiramente essas palavras na areia, com a ponta
-da bengala. Pois o Padre Eterno foi-se ás areias
-do céo e, com a vergastinha com que tosa a canalhada
-miuda dos anjos e seraphins, escreveu tambem
-disfarçadamente:</p>
-
-<p><i>In hoc signo vincis.</i></p>
-
-<p>Ainda ha mais exemplos, mas eu sou muito fraco
-em mnemonica.</p>
-
-<p>Ora, sendo as realezas da terra representantes
-da realeza dos céos, e sendo Vossa Excellencia representante
-da nossa realeza, como muito e muito
-bem disse e declarou, ao annunciar o seu osculo nos
-chagados pés do Senhor dos Passos, <i>ergo</i>, por irrefutavel
-syllogismo, Vossa Excellencia é tambem representante<span class="pagenum"><a name="Pag_76" id="Pag_76">[76]</a></span>
-n’esta terra, de Nosso Senhor Jesus Christo!
-Isto não falha.</p>
-
-<p>Por conseguinte, Vossa Excellencia póde e deve
-perdoar, aos que não sabem o que dizem.</p>
-
-<p>Eu não lhe aconselho isto com interesse directo,
-meu Senhor. Vossa Excellencia nada tem que me perdoar.</p>
-
-<p>Eu adoro tanto as instituições da minha Patria,
-reputo tão necessarias e consentaneas, com as aspirações
-da epocha hodierna, as disposições dos regulamentos
-do sr. Conde de Lippe (que o diabo
-levou ha perto de 200 annos e podia, mesmo, ter
-levado logo ao nascer) das quaes, a mais branda e
-attenciosa é mandar varar por uma bala<a name="FNanchor_17" id="FNanchor_17"></a><a href="#Footnote_17" class="fnanchor">[17]</a> o desgraçado,
-que tenha o atrevimento de—utilizando-se
-da unica applicação d’essas muralhas e torturado
-com as ancias e arrancos de urgentissima necessidade
-corporea, sem poder esperar um unico segundo,—baixar
-as calças, (permitta-me Vossa Excellencia
-a liberdade que vae expressa, ainda assim, em portuguez
-de lei, do que usava o Padre Antonio Vieira)
-que, se tivesse alguma importancia politica, se fosse
-homem de prestigio e d’estes que valem uma eleição,
-como os srs. Joaquim, Cardoso e seu amigo P. Cunha,
-Alvares d’Oliveira, Santa Clara e Agostinho que,
-unidos todos no mesmo partido, belliscados para a<span class="pagenum"><a name="Pag_77" id="Pag_77">[77]</a></span>
-victoria do mesmo candidato, são capazes de levar á
-urna, não digo 6, mas, talvez, para cima de 3 votos,
-se fosse homem d’essas craveiras, repito, era capaz
-de ir a Lisboa, apresentar-me ao sr. Zé Luciano, ao
-Senhor Rei, se tanto fosse necessario, e reclamar
-energicamente, como indispensavel ao brilho das
-nossas instituições, ao prestigio do nosso exercito, á
-manutenção da nossa dignidade nacional, mais um
-segundo Governador, com um segundo... (não me
-lembro do nome... ah!) Estado Maior.</p>
-
-<p>Sómente estabeleceria uma condição:—baseada
-no muito apreço, em que tenho os grandes homens
-da minha Patria; convencido da necessidade de haver
-aqui, na fronteira, nas barbas do hespanhol, quem
-dignamente possa representar o paiz—e seria:
-que, para fazer pár com Vossa Excellencia, não me
-dariam outro bis-Governador, que não fosse o grande,
-o saudoso, o inimitavel</p>
-
-<p class="right">Zé da Rosa!!</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>E se tal conseguisse, ai que alegria a minha,
-quando encontrasse Vossa Excellencia na rua de S.
-João, com a gravidade propria a um representante
-de Sua Magestade El-Rei, de braço dado ao sr. Zé
-da Rosa, outro representante de Sua Magestade (a
-Rainha, não meu Senhor?), seguidos por Sua Excellencia
-o Senhor Vice, com o seu chapéo de pennas<span class="pagenum"><a name="Pag_78" id="Pag_78">[78]</a></span>
-de capão, e com a espada politica de Brenno, ao lado
-do outro Senhor Vice (quem devia ser? O sr. Roldão,
-por exemplo. É da arma de cavallaria...) e depois,
-atraz, o Senhor Baptista da Senhora do Faro
-com os outros Estados-Maiores; e depois ainda,
-atraz, muita gente, a sociedade do <i>Provarei</i>, o Fileiras,
-o João de Ganfey, o Senhor Martinho, que
-deitava <i>la coca</i>, o Capellão (o n.º 2), todos os paradas-velhas,
-etc., etc.</p>
-
-<p>Com que arrebatamento então, meu Senhor, eu
-perderia as estribeiras e, mandando para o diabo a
-minha seriedade de Juiz de Paz, de irmão da Misericordia,
-de pae de filhos, como eu saltaria para a
-frente de <i>Vocellencias</i> e perdido, enthusiasmado,
-louco, distribuindo pançadinhas e piparotes e atando
-nas Excellentissimas trazeiras este raboleva de ridiculo,—que
-é a suprema essencia de toda essa grotesca
-mascarada, com que gargalhada homerica, ensurdecedora,
-colossal, lhes não bradaria:</p>
-
-<p>—Oh que rica tropa fandanga!</p>
-
-<p>—Quebra esquina, minhá gente!</p>
-
-<p>Com o respeito devido a um Representante de
-Sua Magestade El-Rei, sauda <i>Vocellencia</i> o</p>
-
-<p class="mt3 right"><i>Zinão</i>.</p>
-
-<hr class="chap" />
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_79" id="Pag_79">[79]</a></span></p>
-
-<h2 id="IV">IV<br />
-<span class="smaller">Uma descoberta do Dr. Charcot</span></h2>
-
-<p>Accedendo a frequentes reclamações diplomaticas
-do governo de Sua Magestade, o Imperador do Brazil,
-resolvera o Governo de Sua Magestade El-Rei
-de Portugal, que o primeiro fôsse auctorizado a expulsar
-dois cidadãos portuguezes que, segundo officialmente
-se asseverava, incalculavel prejuizo estavam
-causando ao regular movimento dos negocios
-commerciaes e, portanto, ao desenvolvimento material
-d’aquelle florescente imperio.</p>
-
-<p>Não se fundamentava a necessidade da expulsão
-na cumplicidade em crimes politicos; attentados contra
-o Imperador, ou imperial familia; propaganda de
-ideas reaccionarias; troça ás preciosas producções
-poeticas de Sua Magestade; capoeirada nos chimpanzés<span class="pagenum"><a name="Pag_80" id="Pag_80">[80]</a></span>
-da policia urbana, ou assuada ao Senhor Conde
-d’Eu.</p>
-
-<p>Allegava-se, unicamente, que esses individuos,
-penetrando nas repartições do Estado, nos estabelecimentos
-commerciaes, nos grandes edificios de industria,
-nas escholas, nas egrejas, nos clubs, nos
-passeios publicos, nas chacaras e nos <i>xadrezes</i>, em
-qualquer parte—emfim—interrompiam as manifestações
-da actividade d’aquelle labôrioso povo e
-creanças, mulheres e homens abandonavam, immediatamente,
-o exercicio de qualquer mestér, fugindo espavoridos
-e como fustigados, por mal extranho e
-desconhecido.</p>
-
-<p>A origem d’aquella nociva influencia, a natureza
-dos phenomenos que ella produzia, a complexidade
-dos seus effeitos, escaparam, sempre, á perspicacia dos
-doutos Galenos das terras do sabiá, porque as mesmas
-propriedades repulsivas obstavam ao demorado
-exame, que o caso requeria.</p>
-
-<p>Annunciava, n’essa epocha, o eminente Pasteur
-os seus primeiros trabalhos sobre Microbiologia, que
-tão poderosa influencia vieram exercer na orientação
-das sciencias medicas; e não faltou, no estudo investigador
-dos clinicos d’alem-mar, a applicação das
-novissimas theorias, com pacientes trabalhos de microscopio,
-observações por analyse e por synthese e
-outros processos que a Chimica medica aconselha e,
-até, com demoradas experiencias nas fezes em acção
-sobre os orgãos das cinco funcções especiaes da sensibilidade,<span class="pagenum"><a name="Pag_81" id="Pag_81">[81]</a></span>
-incluindo a pituitaria e a membrana, onde
-se ramifica o nervo de Wrisberg.</p>
-
-<p>Lembrou-se alguem de classificar aquelles phenomenos,
-como <i>suggestões motrizes</i> do moderno Hypnotismo;
-mas Charcot, Richer e Bernheim, consultados
-sobre o caso, oppozeram-se á diagnose, visto
-que elles se manifestavam sempre com a mesma intensidade,
-isto é, que todos os individuos soffriam
-egual influencia repulsiva e não se evidenciavam as
-differenças na sensibilidade á hypnose, que nos <i>sujets</i>
-estabelece, como caracteristico, a diversidade de circumstancias
-physiologicas e pathologicas.</p>
-
-<p>Nada se podia descobrir.</p>
-
-<p>Havia no organismo dos dois individuos uma propriedade
-repulsiva, identica á das tremelgas, ordem
-dos selacios, grupo dos peixes cartilaginosos; mas
-desconheciam-se os elementos constitutivos d’essas
-propriedades e elles continuavam a exercer, em toda
-a parte, e a toda a hora, a sua funestissima influencia.</p>
-
-<p>Uma unica circumstancia se pôde descobrir, graças
-á perspicacia do mais reputado Esculapio da Tijuca,
-a quem se deve a preciosa descoberta da cataplasma
-de linhaça e foi: que diminuia, consideravelmente,
-a intensidade d’aquelles phenomenos, quando
-se isolavam os dois individuos, ou quando permaneciam
-incommunicaveis.</p>
-
-<p>Utilizando-se d’esta descoberta, o Governo do Imperador,
-attendendo aos laços de sangue e affecto,
-que unem os dois paizes, resolveu exportar a praga<span class="pagenum"><a name="Pag_82" id="Pag_82">[82]</a></span>
-em epocha e vapor differentes. Assim se fez, com
-effeito.</p>
-
-<p>O governo portuguez, assustado com o flagello, que
-subitamente cahia no solo da Patria, reuniu immediatamente
-a Junta de Saude e, por indicação d’esta,
-foram os dois compatriotas enviados a Pariz—onde,
-n’outras espheras e com outros horisontes se dilata
-a intelligencia humana—para lá serem submettidos
-á analyse dos grandes Mestres da Sciencia.</p>
-
-<p>Após demorada observação e attento exame, o
-eminente Charcot, encontrou, emfim, a resolução do
-problema, que largamente foi demonstrada no <i>Boletim
-da Academia de Medicina de Pariz</i>, (mez de novembro
-de 1876) e, com prodigioso interesse, escutada
-por selecto auditorio, na mesma Academia, em
-sessão extraordinaria de 27 de dezembro, do mesmo
-anno.</p>
-
-<p>Não tendo aqui, presente, a lucida exposição do
-eminente sabio, limito-me a reproduzir, e certamente
-d’uma maneira deficiente e incompleta—attendendo
-á escassez dos meus conhecimentos scientificos—a
-theoria, em que Charcot baseou a explicação do estranho
-phenomeno.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>V. Ex.ª sabe, como a moderna Sciencia explica, na
-Acustica, a producção e a propagação do som.</p>
-
-<p>«O som é o resultado d’um movimento vibratorio,<span class="pagenum"><a name="Pag_83" id="Pag_83">[83]</a></span>
-communicado á materia ponderavel»—eis a base da
-theoria, hoje adoptada e conhecida por «theoria das
-ondulações».</p>
-
-<p>Conhece, tambem, o mechanismo da voz humana.
-A voz provem da acção do ar nas cordas vocaes. O
-ar, que sahe dos pulmões, produz, n’essas cordas, vibrações,
-mais ou menos rapidas, que transmittindo-se
-ás paredes da larynge se tornam sonoras, e que,
-depois, a acção combinada da lingua, das maxillas e
-dos labios, altera modifica e articula.</p>
-
-<p>Conhecido é, tambem, o mechanismo da audição.
-As vibrações executadas pelas cordas e transmittidas,
-em ondas, ao ar exterior, chegam-nos ao pavilhão do
-ouvido e vêm, pelo tubo auditivo, actuar na membrana
-do tympano. Seguem, depois, até ao ouvido
-medio, no ar n’elle contido, e, pela cadeia do estribo,
-do martello, da bigorna e do osso lenticular, reproduzem-se,
-ainda, nas membranas das janellas redonda
-e oval, communicam-se ao liquido, que existe no ouvido
-interno e d’alli, pelos filetes do nervo acustico,
-ao cerebro.<a name="FNanchor_18" id="FNanchor_18"></a><a href="#Footnote_18" class="fnanchor">[18]</a></p>
-
-<p>A potencia das vibrações, o deslocamento, mais
-ou menos violento, das ondas sonoras depende, portanto,
-alem d’outras circumstancias, da força com que
-os pulmões fornecem o ar, e da maior ou menor vibratilidade
-das cordas vocaes. Por isso, vêmos individuos<span class="pagenum"><a name="Pag_84" id="Pag_84">[84]</a></span>
-com voz forte e penetrante, como o sr. Barros,
-e outros, com voz debil e sumida, como o sr. Nunes
-de Azevedo, que difficilmente se percebe.</p>
-
-<p>Ora succedia que, por uma disposição especial
-dos pulmões, da larynge e das cordas vocaes, aquella
-força expulsiva do ar e a vibratilidade das cordas,
-existiam nos dois individuos em grau extraordinario
-e ainda desconhecido para os mais eminentes physiologistas.
-D’essa disposição especial resultava, tambem,
-que a voz, já potente e forte, obtinha, ainda, consideravel
-augmento de intensidade com a reflexão nas
-paredes da larynge, attingindo o que em Acustica se
-denomina <i>resonancia</i>.</p>
-
-<p>Quando as vozes não encontravam obstaculo,
-pouco se conhecia esse augmento de intensidade, porque,
-então, se perdiam na atmosphera; mas, se as
-ondas deslocadas por cada uma se encontravam, era
-tal a violencia do choque e das vibrações, d’elle provenientes,
-que só a poderemos comparar, nos grandes
-phenomenos da Natureza, á rapidez e violencia das
-ondas do Oceano quando, açoitadas por furioso vendaval,
-avançam, chocam-se, equilibram-se com medonha
-expansão de força, recuam para formar novo
-salto, até que uma perde a força resistente, e a outra
-vence, esmigalhando, com espantoso ruido, tudo
-o que se oppõe á sua passagem.</p>
-
-<p>Este effeito destruidor soffriam todas as peças dos
-apparelhos auditivos, que o circulo da primeira projecção
-podia abranger.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_85" id="Pag_85">[85]</a></span></p>
-
-<p>As membranas do tympano dilatavam-se n’uma
-dolorosa expansibilidade; o martello batia desesperadamente
-na bigorna com o mesmo furor, com que
-Mestre Borralho batia a sola, quando não era director
-dos Presidios civis; o estribo andava aos saltos,
-como anda em corcel fogoso, quando, no meio da batalha,
-entre o rugir da artilheria e o sibilar das balas,
-perde o cavalleiro e parte, desvairado e furioso.</p>
-
-<p>Na trompa de Eustachio desencadeava-se um verdadeiro
-cyclone.</p>
-
-<p>Nem as trombetas de Josaphat, n’esse terrivel
-dia do Juizo final, poderão egualar o infernal ruido,
-que supportavam os apparelhos auditivos.</p>
-
-<p>Depois, para aggravar o flagello, dotára Deus os
-dois individos com uma extraordinaria loquacidade,
-e constante verborrhea que, de dia e de noite, lhes
-agitavam nervosamente os labios para questionarem,
-discutirem, argumentarem sobre tudo e sobre todos,
-em portuguez, em francez, em latim, em allemão,
-em quantas linguas vieram de Babel.</p>
-
-<p>Era sempre de funestos resultados, de dolorosas
-consequencias a sua presença, e por isso, homens,
-mulheres e creanças fugiam, prestes, ao sentil-os,
-interrompendo todas as manifestações da sua actividade
-e todo o exercicio dos seus mestéres.</p>
-
-<p>Desculpavel fôra, pois, o proceder do Governo
-brazileiro, expulsando os nossos compatriotas.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_86" id="Pag_86">[86]</a></span></p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Ora aqui tem V. Ex.ª, sem exaggero, sem alterações
-da verdade (que, por ahi, n’este assumpto,
-tanto tem sido alterada) subordinada a rigorosa demonstração
-scientifica—a razão, porque regressaram
-a esta terra, e se respeitam, e se evitam, a ponto
-de viverem separados pelas grossas muralhas da
-Praça, os nossos amigos:</p>
-
-<p class="center">Leopoldo Gomes<br />
-e<br />
-Abilio Lucas.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Evitam-se e respeitam-se—disse eu, e demonstro.</p>
-
-<p>Um vive dentro, outro fóra. Um foi a Paris em
-75; outro em 79. Quando um é da Camara, o outro
-é da Commissão do Recenseamento. Abilio é socio
-da Assemblea e frequenta-a; Leopoldo despede-se.
-Entra novamente Leopoldo; Abilio deixa de frequentar
-aquella casa. Leopoldo conta a historia dos
-relogios; Abilio sorri maliciosamente e insinua a
-duvida; explica Abilio o remedio, que descobrira o
-ilheu, para salvar a <i>senhora mãe</i>; Leopoldo mastiga<span class="pagenum"><a name="Pag_87" id="Pag_87">[87]</a></span>
-em secco e pisca o ôlho para os circumstantes. Um
-faz-se agricultor e trata de terras no Arraial, em
-Picões, na Esplanada; o outro faz-se politico e «<i>provarei</i>».
-Entra o segundo na Politica activa; desvia-se
-o primeiro, e trata de terras em Gondomil—polo
-opposto. Um, gosta do <i>Capellão</i> e <i>fala-lhe</i> a
-miudo, como homem temente a Deus; outro, não
-se dá com esse <i>ministro do Senhor</i> e rosna-se, até,
-que tem as suas questões com elle. Um, move-se,
-agita-se, apparece de manhã na villa, ao meio dia
-em Monsão, á tarde em Gandra e sempre a pé; outro,
-limita o exercicio dos seus membros locomotores
-á loja do sr. José Lopes, ou do sr. José Seixas.</p>
-
-<p>É evidente, palpavel, esta incompatibilidade, esta
-heterogeneidade de individualidades, que se origina
-na intima convicção, que elles teem da sua influencia
-destruidora e no accordo, ou <i>modus-vivendi</i>, que,
-para mutua conveniencia, secretamente estipularam,
-ao fixarem a residencia na terra, em que nasceram.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Quando, ha annos, estive em Paris, no regresso
-da minha viagem de estudo pelo Oriente—á Mongolia,
-ao Turkestan, a Niphon, a King-Ki-Tao e outros
-centros da Asia—onde fui recolher materiaes
-e elementos comparativos de civilização, com os da
-minha terra, para a composição d’este livro, encontrei-me,<span class="pagenum"><a name="Pag_88" id="Pag_88">[88]</a></span>
-na Academia de Medicina de Paris, com o
-sr. Zagallo, que alli estudava, commissionado pela
-Excellentissima Camara d’esta villa, a organisação
-do serviço de Hygiene publica, indicado, por aquella
-faculdade, á municipalidade parisiense;—missão, essa,
-que Sua Excellencia, tão brilhantemente desempenhou,
-e que tão beneficos resultados produziu para
-esta povoação, como se prova com esse elegante,
-commodo e original <i>water-closet</i> do jardim publico.</p>
-
-<p>Tive, n’essa occasião, a honra de ser recebido
-pelo eminente dr. Charcot.</p>
-
-<p>Falando no meu paiz, alludiu o illustre clinico
-aos dois portuguezes, que em 74 examinára, por
-recommendação do Governo; e foi grande a sua admiração,
-quando lhe affirmei, que com elles vivia
-em Valença, e que, ha dez annos, permaneciam na
-mesma localidade, se bem que, nas condições especiaes
-de isolamento, que já referi.</p>
-
-<p>Mas, a minha asserção tocou para Charcot as
-raias do inverosimil, quando, á supposição, que me
-apresentou, da existencia inevitavel de graves doenças
-e perturbações no apparelho auditivo dos meus
-conterraneos, sujeitos á convivencia e aos perigosos
-effeitos da presença e communicabilidade d’aquelles
-amigos, eu lhe affiancei que não eram essas enfermidades,
-as que mais avultavam nas estatisticas da
-secção de Hygiene municipal.</p>
-
-<p>Charcot fazia bem em duvidar. Eu faltei á verdade,
-e a isso me levou a amizade, que a esses Cavalheiros<span class="pagenum"><a name="Pag_89" id="Pag_89">[89]</a></span>
-me liga, e a repugnancia, que tive, em
-tornar odiosa, para o eminente sabio, a existencia
-de dois patricios, que tanto prezo, acato e... respeito.</p>
-
-<p>Mas V. Ex.ª sabe o que por cá vae...</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_90" id="Pag_90">[90]</a></span></p>
-
-<hr class="chap" />
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_91" id="Pag_91">[91]</a></span></p>
-
-<h2 id="V">V<br />
-<span class="smaller">Perfis</span></h2>
-
-<h3>Abilio</h3>
-
-<p>Examinando-os, apreciando-os isoladamente, reconheço
-os valiosos serviços que os meus amigos—Abilio
-e Leopoldo—teem prestado ao desenvolvimento
-material e intellectual da nossa terra; e não
-se esquiva a minha consciencia a declarar, que são
-uteis e, mesmo, indispensaveis, entre nós, as suas individualidades.</p>
-
-<p>Abilio entrou, por um generosissimo impulso de
-gratidão, na Politica activa de Valença.</p>
-
-<p>Accusam-n’o de violento, de precipitado, de faccioso,
-ou, como diz o povo, de... petroleiro. Eu classifico
-todo o seu proceder politico, como o de um
-innocente noviço, ou ingenuo collegial.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_92" id="Pag_92">[92]</a></span></p>
-
-<p>É um homem, meus senhores, que trabalhando
-ha seis annos em eleições, n’esta terra, independente
-em Politica, como se sabe, tem sustentado a creancice
-de seguir um só partido e respeitar uma só opinião—a
-dos regeneradores!!!</p>
-
-<p>Ora isto, em Valença, se não indica falta de senso,
-revela excesso de ingenuidade e para esta ultima
-hypothese me inclino, porque não admitto que, para
-umas manifestações da mentalidade humana, haja
-falta de senso e isso se não dê com as outras.</p>
-
-<p>Abilio é, pois, um ingenuo politico e—o que mais
-é—um ingenuo faccioso. Referindo-se á administração
-progressista, tem a eloquencia de Danton, a arrebatadora
-oratoria de Robespierre, a impetuosa dialectica
-de Cassagnac.</p>
-
-<p>É violento, incisivo, caustico.</p>
-
-<p>N’aquellas medonhas explosões de colera, fere,
-trucida, chacina, esposteja nas hordas contrarias,
-como S. Thiago na moirama.</p>
-
-<p>Chega a rubro a temperatura da sua palavra.</p>
-
-<p>«É preciso, meus senhores, mostrar ao povo os
-seus direitos, para que elle saiba expulsar, a chicote,
-das cadeiras do poder e <i>de tudo aquillo</i>, esses bandidos,
-sem eira nem beira, que estão delapidando os
-dinheiros publicos e <i>tudo aquillo</i>, que representa o
-trabalho honrado do povo, o suor do seu rosto, <i>tudo
-aquillo</i>, que ganha para o sustento dos seus e de <i>tudo
-aquillo</i>, que lhe pertence.</p>
-
-<p>As nossas finanças vão, de cada vez, a peor, <i>tudo<span class="pagenum"><a name="Pag_93" id="Pag_93">[93]</a></span>
-aquillo</i>, que representa a riqueza da nação vae parar,
-vae sumir-se n’esse insondavel abysmo de ladroeiras,
-de arranjos, de afilhados, de <i>metades, de tudo aquillo</i>.»</p>
-
-<p>..............................</p>
-
-<p>N’este periodo de excitação, Abilio deixa-se apoderar,
-tanto, da sua convicção partidaria, perde, de
-tal fórma, a cabeça, que se esquece de tudo e de todos,
-concentrando todo o seu ser, toda a sua vitalidade
-na idea e na palavra, com que, mais rapidamente,
-possa inutilizar o adversario.</p>
-
-<p>É assim que, ás vezes, o vemos sahir de casa,
-arrebatado, irado contra algum <i>arranjo</i>, que lhe foram
-annunciar, e entrar, precipitadamente, na sala
-das sessões da nossa Excellentissima Camara, com
-uma bota branca, outra preta; assoar-se a uma luva,
-suppondo-a um lenço; metter o cigarro na bocca pelo
-lado acceso; tirar rapé d’uma caixa de phosphoros—perfeitamente
-allucinado, colerico, perdido!</p>
-
-<p>Originam-lhe inimigos estes arrebatamentos; mas
-se o Papa, como unico correspondente, cá na terra,
-do Padre Eterno, me enviasse o livro das informações
-particulares, que hão-de influir no tremendo dia
-de Juizo e d’onde dependerá, ou a nossa absolvição,
-ou a condemnação ás caldeiras de Pero Botelho, em
-que fazem caras tão feias aquelles bispos mitrados,
-que por ahi vemos nas <i>alminhas</i> dos caminhos ruraes,
-na folha corrida do Abilio, eu não hesitaria—desassombradamente
-o declaro, sem pretenções a
-adulador, sem interesse occulto presente ou futuro,<span class="pagenum"><a name="Pag_94" id="Pag_94">[94]</a></span>
-sem desejar provar a <i>Paraty</i>, ou tencionar pedir dinheiro
-emprestado—em exprimir o conceito e a
-consideração, que este homem me merece, sobretudo
-quando a lente da minha observação se desvia um
-pouco do campo, que lhe tracei para a critica e m’o
-apresenta no outro, que respeito em todos: a familia,—n’estas
-cinco palavras:</p>
-
-<p class="right">É um homem de bem.</p>
-
-<p>E ao escrever isto, com plena consciencia e convicção,
-vem-me á lembrança, <i>não sei como, nem porque</i>,
-a constante recommendação, que o meu tutor
-me fazia, quando, ao partir para os estudos, me introduzia
-na mão, com uma generosidade vanderbiltica,
-coisa de dois patacos em cobre, com estas reflexões
-de moral preventiva:</p>
-
-<p>—Ahi tens dinheiro... Tem juizo; foge dos cafés,
-das ruas de movimento e... das más companhias.</p>
-
-<p>... das más companhias...</p>
-
-<p>Para fugir d’ellas, e dos seus perigos, é que se
-fundou a sociedade dos <i>Provareis</i>...</p>
-
-<p>Valha-me Nosso Senhor Jesus Christo!</p>
-
-<p class="right">Que tentações...</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_95" id="Pag_95">[95]</a></span></p>
-
-<h3>Leopoldo</h3>
-
-<p>Leopoldo é um homem de costumes austeros. Podia
-muito bem morar na rua de S. João, ao lado do
-sr. Joaquim.</p>
-
-<p>Tem predilecção pelos estudos archeologicos e o
-seu nome é citado, com respeito, na Sociedade Martins
-Sarmento.</p>
-
-<p>É homem versado em anthropologia. Possue as
-obras de Cuvier e de Quatrefages.</p>
-
-<p>Conhece diversas linguas, mortas e <i>vivas</i>, e enthusiasma-se,
-quando as vê manejar <i>com pericia</i>,
-como lhe succedeu em Paris, com aquelles sêres
-pertencentes á classe dos mammiferos, ordem dos
-carnivoros, familia dos <i>canis familiaris</i>.<a name="FNanchor_19" id="FNanchor_19"></a><a href="#Footnote_19" class="fnanchor">[19]</a></p>
-
-<p>Tem ideas avançadas em materia religiosa. Sustentou,
-ha tempos, uma questão de philosophia racional,
-relativa a crenças, tendo por oppositor o sr.
-Tenente Silva e com tal arte se houve, que fez calar
-este cavalheiro!!!</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_96" id="Pag_96">[96]</a></span></p>
-
-<p>É copiosamente lido em sciencias naturaes e,
-concedendo-se-lhe vinte e quatro horas de praso,
-apparece armado de ponto em branco, com quantas
-theorias antigas e modernas se debatem entre sabios.</p>
-
-<p>Como polemista, tem um grande merecimento:
-não deixa falar o adversario, o que é de incontestavel
-vantagem para quem... padece do peito.</p>
-
-<p>Acceita as theorias de Lamarck e de Darwin;
-crê na existencia do homem terciario e, se Carlos
-Ribeiro o não classifica, talvez ainda viessemos a
-ter o Anthropopithecus Leopoldi.</p>
-
-<p>É homem illustrado. Foi á China, ao Japão, ao
-Perú, a toda a parte. Fez encavacar Pio IX, deu
-uma pitada a Grevy, um piparote a Crispi, bateu
-na pança de Gladstone, offereceu rebuçados a Bismarck.</p>
-
-<p>Não vae feito com as realezas. O verdadeiro
-fóco, para que elle faz convergir a sua actividade
-intellectual, é a Sociologia, na parte repressiva da
-immoralidade e na que estuda a protecção aos menores.</p>
-
-<p>S. Vicente de Paulo merece-lhe entranhado culto.</p>
-
-<p>Tem sido, por vezes, camarista e no desempenho
-das importantissimas funcções d’esse elevado cargo,
-evidenciou, sempre, a mais extraordinaria actividade.</p>
-
-<p>Todos se recordam, ainda, d’essa memoravel sessão,
-em que elle apresentou, defendeu e discutiu
-dezenove propostas! O caso foi falado nas gazetas,<span class="pagenum"><a name="Pag_97" id="Pag_97">[97]</a></span>
-mas, como as edições, na nossa terra, se exgottam
-rapidamente, eu vou reproduzir essas propostas e
-repetir as considerações, com que foram acompanhadas:</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Plena sessão camararia. Galerias concorridas. Tachygraphos
-a postos.</p>
-
-<p>Leopoldo, de casaca e gravata branca, sobe, solemne
-e grave, ao estrado; faz uma delicada venia
-ao sr. Zagallo; deixa passar um minuto de longo
-silencio e severa concentração dos espiritos; ergue
-a fronte, agita os labios e exclama:</p>
-
-<div class="blockquote smaller">
-
-<p class="right">Senhor Presidente!</p>
-
-<p>Respeitaveis collegas e senhores.</p>
-
-<p class="right">Illustrado auditorio!</p>
-
-<p>Eminentes publicistas e philosophos, consultando os trabalhos
-recentemente publicados nas nações mais civilizadas, teem
-evidentemente demonstrado a enorme differença e aterradora
-diminuição que, de anno para anno, se nota nas estatisticas da
-reproducção humana.</p>
-
-<p>Os excessos perniciosos da Civilização, com o cortejo de
-gosos corporeos e sensuaes de toda a especie, enfraquecem a
-raça, definham o individuo, tornando-o inapto para aquella funcção,
-aliás importantissima para a estabilidade das nações e para
-o desenvolvimento da riqueza publica.</p>
-
-<p>Com effeito, senhores; que seriam os preciosos filões d’oiro<span class="pagenum"><a name="Pag_98" id="Pag_98">[98]</a></span>
-da California, os jazigos, não menos preciosos, da hulha; que
-seriam esses uberrimos territorios da America, se não fosse o
-homem, para com o seu braço e a sua intelligencia arrancar
-da Terra tanta riqueza e tanta maravilha?</p>
-
-<p>O que seria da Agricultura? O que seria do Commercio e
-da Industria?</p>
-
-<p>Senhores!—Abrem-se, presentemente, á actividade do homem,
-novos campos, novos e dilatados horisontes n’essas, até
-hoje, mysteriosas e legendarias regiões africanas. O Brazil, a Europa
-do futuro, extende a sua acção civilizadora por essas enormes
-provincias, até hoje, despovoadas e desertas.</p>
-
-<p>Braços, muitos braços: homens, muitos homens—eis o <i>desideratum</i>
-para este importantissimo problema do futuro.</p>
-
-<p>Verdadeiramente benemerito, pois, se torna da Patria, da
-Civilização e da Humanidade todo aquelle que, directa ou indirectamente,
-contribuir para valer áquella necessidade, aggravada,
-ainda, com o enorme desfalque, que as estatisticas accusam.</p>
-
-<p>Como homens do seculo <span class="smcapuc">XIX</span>, que possuem a completa intuição
-dos seus deveres sociaes, temos, até hoje, prestado bom serviço
-a tão sagrada causa<a name="FNanchor_20" id="FNanchor_20"></a><a href="#Footnote_20" class="fnanchor">[20]</a> e aos vossos sentimentos humanitarios
-e illustração recorro agora, pedindo attenção para as propostas
-que, sobre tão momentoso assumpto, vou ter a honra de
-apresentar<a name="FNanchor_21" id="FNanchor_21"></a><a href="#Footnote_21" class="fnanchor">[21]</a>.</p>
-
-<p class="center">1.ª</p>
-
-<p>Proponho a fundação d’um hospicio para expostos, que ponha
-côbro aos frequentes actos de barbaridade, que por ahi diariamente
-se commettem, com a exposição de creanças nos portaes
-e nas muralhas.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_99" id="Pag_99">[99]</a></span></p>
-
-<p class="center">2.ª</p>
-
-<p>Fica a Camara auctorisada a contractar provisoriamente,
-na vizinha villa de Coura, seis robustas camponezas, para exercerem
-as funcções de amas.</p>
-
-<p class="center">3.ª</p>
-
-<p>Como actual fiscal do pelouro dos expostos, sou auctorisado
-a fiscalizar, os trabalhos das ditas amas e a verificar se, fiel e
-rigorosamente, são aptas, para todo o serviço.</p>
-
-<p class="center">4.ª</p>
-
-<p>É expressamente prohibida, para manutenção da Moral no
-interior do mesmo Hospicio, a entrada a qualquer pessoa do sexo
-masculino, com excepção do vereador do pelouro—que sou eu—e
-isso, para o exercicio das funcções mencionadas no precedente
-artigo.</p>
-
-<p class="center">5.ª</p>
-
-<p>Fica expressamente determinado, na acta d’esta sessão, que
-nunca poderão exercer as attribuições de fiscal do Hospicio, os
-ex.ᵐᵒˢ srs. Abilio, Vieira e José Seixas, attendendo, simplesmente,
-a que para tal cargo se exige uma actividade inconcussa,
-zelo inexcedivel, o que esses Cavalheiros não poderão offerecer,
-porque não são livres, como eu, que estou solteiro.</p>
-
-<p class="center">6.ª</p>
-
-<p>Como consequencia do artigo 4.º, não pode haver Capellão
-no Hospicio, que pode ser substituido por irmãs de Caridade,
-para os exercicios da religião. Para a sua competencia n’esse
-mestér, consultará a Camara o muito digno Capellão do Hospital,<span class="pagenum"><a name="Pag_100" id="Pag_100">[100]</a></span>
-o sr. Padre Melim, varão de excelsas virtudes e preclaro
-entendimento.</p>
-
-<p class="center">7.ª</p>
-
-<p>Será limitado o numero de expostos, que o Hospicio possa
-recolher; mas ao Vereador do pelouro—que sou eu—é concedida
-a faculdade de admittir as que faça, encontrar pelos
-guardas nocturnos, em perigoso estado de saude.</p>
-
-<p class="center">8.ª</p>
-
-<p>Como consequencia ainda do artigo 4.º, não poderá haver
-medico no Hospicio e, para tratamento das creanças e das doenças,
-ou quaesquer, accidentes, a que podem estar sujeitas as
-amas, no exercicio, das suas funcções activas, será contractada
-a Senhora Dona Maria do Hospital.</p>
-
-<p class="center">9.ª</p>
-
-<p>É auctorisado o Fiscal do Hospicio—que sou eu—a, para
-rigorosa e permanente fiscalisação, poder passar as noites,
-quando o entender necessario, com as creanças e, com as
-amas.</p>
-
-<p class="center">10.ª</p>
-
-<p>Se no fim de seis, oito ou, nove mezes, qualquer das
-amas apresentar symptomas de doença grave, dilatações, de
-tecidos, etc., cessará o contracto provisorio e o Fiscal—que sou
-eu—arranjará, logo, outra que a substitua.</p>
-
-<p class="center">11.ª</p>
-
-<p>Em urgente caso de perigo, só o Sr. Dr. Pacheco pode ter
-entrada no Hospicio, attendendo a que é impotente, a maledicencia,
-quando d’elle se refere; e a que bem publica e notoria é a<span class="pagenum"><a name="Pag_101" id="Pag_101">[101]</a></span>
-sua honestidade, como por ahi firmemente o attestam os seus
-<i>dois creados</i>, e todas as pessoas com quem intimamente vive,
-que são unanimes em apontar S. Ex.ª, como um real modelo de
-virtude.</p>
-
-<p class="center">12.ª</p>
-
-<p>É auctorisado o Fiscal—que sou eu—a contractar, para o
-serviço interno, tres raparigas das suas relações e de que já
-conheça, praticamente, as aptidões e trabalhos.</p>
-
-<p class="center">13.ª</p>
-
-<p>Fica revogada toda a legislação em contrario.</p>
-
-<p class="center">14.ª</p>
-
-<p class="center">PELOURO DE HYGIENE PUBLICA—SECÇÃO DO COMMERCIO
-E INDUSTRIA</p>
-
-<p>É permittida a matricula a diversas pessoas de determinado
-sexo, para a industria do methodico uso e regular acção de
-determinadas funcções da vida vegetativa.</p>
-
-<p class="center">15.ª</p>
-
-<p>É expressamente prohibida a entrada na villa, a individuos
-extranhos e de sexo differente, que venham prejudicar, com illegal
-concorrencia e depreciação de valores, a industria da terra.
-Esta prohibição será extensiva até, ao proprio Julio Cesar,
-(apesar da protecção da <i>gente graduada</i>.) se elle resuscitar.</p>
-
-<p class="center">16.ª</p>
-
-<p>É nomeada uma commissão, composta do fiscal do Hospicio—que
-sou eu—do sr. J. Narciso e do sr. Joaquim, para organisar<span class="pagenum"><a name="Pag_102" id="Pag_102">[102]</a></span>
-uma tabella de preços d’aquelles trabalhos, nas diversas
-variedades, que tal Industria hoje possue.</p>
-
-<p class="center">17.ª</p>
-
-<p>Fica expressamente determinado, que não poderão fazer
-parte d’esta Commissão os ex.ᵐᵒˢ srs. dr. João Moraes, Alpoim,
-J. Soares e Albino, porque por vezes, publicamente, teem manifestado
-uma tendencia para elevar, demasiadamente, os valores
-dos productos de tal Industria, o que é nocivo para a povoação.</p>
-
-<p class="center">18.ª</p>
-
-<p>É nomeado, para Inspector sanitario d’esta secção, o sr. Augusto
-Sampaio.</p>
-
-<p class="center">19.ª <span class="smcap">e ultima</span></p>
-
-<p>A presidencia d’esta nova instituição municipal será offerecida,
-como manifestação de consideração e respeito, ao Senhor
-Marquez de Vallada.<a name="FNanchor_22" id="FNanchor_22"></a><a href="#Footnote_22" class="fnanchor">[22]</a></p>
-
-</div>
-
-<p>Escusado será dizer que todas as propostas foram
-approvadas e por unanimidade.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_103" id="Pag_103">[103]</a></span></p>
-
-<h3>Albininho...</h3>
-
-<p>Pertencia-te agora a vez... Davas para vinte folhas;
-mas salvas-te d’esta.</p>
-
-<p>Ha poucos mezes, ainda, corriam as lagrimas
-n’essas barbas brancas...</p>
-
-<p>Cahiu-me uma nas costas da mão e, em casa,
-fiz-lhe a analyse chimica.</p>
-
-<p>Deu-me: agua, albumina, chloreto de sodio; encontrei
-moleculas d’um outro elemento, que é a base
-da affinidade social:—o affecto da familia. Percebi,
-tambem, vestigios d’uma grande dôr.</p>
-
-<p>Respeito-a...</p>
-
-<p>Mas, quando os atomos d’essa lagrima se desaggregarem,
-por evaporação, e continuarem na Natureza
-o giro constante e permanente da Materia,
-então, se me appareces... entras na berlinda.</p>
-
-<p>Não te entristeças, que este livro é para rir e,
-quem o escreve, é um dos teus amigos.</p>
-
-<p class="center">Vira a folha e...</p>
-
-<p class="right">vamos a outros.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_104" id="Pag_104">[104]</a></span></p>
-
-<hr class="chap" />
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_105" id="Pag_105">[105]</a></span></p>
-
-<h2 id="VI">VI<br />
-<span class="smaller">Coisas de Egreja</span></h2>
-
-<h3>Beatas—Procissões e Romarias</h3>
-
-<p>Terminára a faina do dia.</p>
-
-<p>O fogo que elevára a temperatura nos grandes
-caldeirões do Olympo, onde se manipulava a Humanidade,
-consumia, apenas, carvões isolados que,
-pouco a pouco, se transformavam em cinzas.</p>
-
-<p>Os cyclopes, destacados por Vulcano para essa
-secção da grandiosa fabrica da Natureza, que o proprio
-Jupiter dirigia, raspavam, apressadamente, nos
-grandes extendedores, a massa, que ficara collada, e
-deitavam-n’a, como inutil, nos baldes do lixo e da
-immundicie.</p>
-
-<p>Jupiter encastellava o dinheiro das ferias; fechava
-a escrevaninha; trocava a japona da fabrica pelo<span class="pagenum"><a name="Pag_106" id="Pag_106">[106]</a></span>
-manto de arminho, e dispunha-se a sahir, tocando de
-passagem a sineta, para se fechar o estabelecimento.</p>
-
-<p>Mas n’isto, principiou a elevar-se do caldeirão
-que estava proximo, cheiro activo e nauseabundo,
-(como o do esturro em guisado francez) que, espalhando-se
-na atmosphera, seriamente incommodou a
-regia pituitaria.</p>
-
-<p>Aproximou-se Jupiter e olhou.</p>
-
-<p>No fundo do pote, já com a côr do carbonisado,
-estrugia o resto da massa que ficára, da que n’esse
-dia se tinha dosado para a preparação dos hypocritas.
-Pouco valor aquillo tinha, porque era da mistella
-mais vulgar e mais facil de preparar; mas Jupiter
-não perdia ensejo de incutir nos seus operarios os
-deveres d’uma administração rigorosa e economica.</p>
-
-<p>Ordenou, pois, a dois cyclopes que trouxessem do
-barril do lixo algumas aparas, recommendando que
-preferissem as mal-cheirosas e de côr escura, que
-pertenciam á massa dos invejosos e dos usurarios.</p>
-
-<p>Avivaram o fogo; deitaram os novos elementos
-no caldeirão; remexeram com o cabo d’uma vassoira,
-porque a ferramenta já estava guardada e limpa; e,
-depois de cinco minutos de ebullição, Jupiter provou
-a mixordia. Estava sobre o insipido.</p>
-
-<p>Deitou-lhe umas pitaditas de sal e de pimenta,
-com que preparava os maldizentes.</p>
-
-<p>Provou de novo. Estava picante de mais.</p>
-
-<p>Temperou, então, com o betume dos ociosos; e
-deixou ferver tudo, durante outros cinco minutos.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_107" id="Pag_107">[107]</a></span></p>
-
-<p>Os cyclopes retiraram o caldeirão. Trouxeram os
-moldes; vazaram n’elles a massa, que se conservava
-no estado pastoso e esperaram.</p>
-
-<p>Pouco tempo depois, Jupiter aproximou-se; arrotou,
-e dos moldes sahiram duas coisas, duas formas
-humanas, com movimento, côr e vida.</p>
-
-<p>Eram duas mulheres.</p>
-
-<p>Ora Jupiter não se podia demorar, porque combinára,
-para aquella hora, uma entrevista com Europa,
-e os cyclopes principiavam a murmurar, porque
-dera a hora e tinham as familias á espera.</p>
-
-<p>Assim, mandou Jupiter abrir o postigo do Olympo,
-empurrou até lá as mulheres e atirou com ellas,
-cá para baixo, com um valente pontapé.</p>
-
-<p>Por esse ether fóra, assustaram-se as creaturas;
-agarraram-se uma á outra afflictivamente; principiaram
-a rezar a <i>Magnificat</i>, a <i>Ladainha</i>, e assim foram
-cahir sobre o telhado d’uma egreja, aterrando o escorropicha-galhetas,
-que se deliciava, occultamente,
-com os restos do precioso sangue de Christo.</p>
-
-<p>Aqui tem V. Ex.ª como chegaram as beatas ao
-globo terraqueo, e ahi fica a formula da sua composição
-molecular: aparas de hypocritas, de usurarios,
-de invejosos, de maldizentes e de ociosos.</p>
-
-<p>Representando esses elementos pelos respectivos
-symbolos, poderemos estabelecer:</p>
-
-<p class="center">H⁵ + M⁴ + I³ + O² + U = Beatas</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_108" id="Pag_108">[108]</a></span></p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Aquellas moleculas da Hypocrisia e da Ociosidade
-deram-lhes facil e rapida admissão na sociedade.</p>
-
-<p>Casaram; reproduziram-se; e, em pouco tempo,
-estava a raça extraordinariamente desenvolvida e
-disseminada por toda a parte, desde a cidade populosa
-e civilizada, até á aldeia humilde e rude.</p>
-
-<p>Cá as temos e cá as aturamos... Submettendo-as
-agora, para as descrever, a rigorosa analyse,
-encontrei-lhes todas as propriedades dos primitivos
-elementos.</p>
-
-<p>Vão á missa das sete—<i>uma missinha que faz
-muito arranjo, porque dá tempo de arranjar a casa e
-de se mandar, á praça, cedo</i>.</p>
-
-<p>Rezam; inspeccionam tudo o que se faz e tudo o
-que entra na egreja; communicam e transmittem as
-novidades do soalheiro; e, entre o cochichar do <i>Padre
-Nosso</i>, segue uma enfiada de casos novos e de
-commentarios:</p>
-
-<p>Padre Nosso, que estaes no céo (<i>e o vestido novo
-que hontem levou a X ao jardim! É da Torrona. Ficou
-a dever. O Blanco é que as canta...</i>) santificado
-seja o Vosso Nome (<i>acabou o namoro da filha do Y,
-porque a Mãe bateu-lhe. Diz que o rapaz gosta muito
-de mulherinhas</i>) venha a nós o vosso reino e seja
-feita (<i>sahiu a creada da casa do W. Oh menina!<span class="pagenum"><a name="Pag_109" id="Pag_109">[109]</a></span>
-Sempre ella conta coisas... Diz que tem a casa como
-um ôvo! Comem todos os dias prato de meio!</i>) a vossa
-vontade, assim na terra, como no ceu (<i>Lá entrou o
-Velloso... que raio de homem! Tem mais de vinte namoros.
-É como o Prado! Elle é elegante, isso é! Já
-lhe reparaste nas pernas?</i>) o Pão nosso de cada
-dia nos dae, Senhor, perdoae-nos (<i>oh... Faltava
-aquelle... o Leopoldo. Tambem já podia casar...
-Para o que anda por ahi a fazer...</i>) as nossas dividas,
-assim na terra, como (<i>agora é o dos pombos correios...
-Tambem é fresco, com aquella cara de santo...</i>)</p>
-
-<p>Sanctus, Sanctus, Sanctus, Dominus Deus...</p>
-
-<p class="tb">Como V. Ex.ª póde suppôr, a <i>fervorosa</i> oração foi
-cortada pelo badalo do sachrista, que tocou a Santos.
-Se elle não interrompe, o que teriamos nós de ouvir...</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Este beaterio é muito casto e excessivamente pudibundo.</p>
-
-<p>Na egreja de S. Estevão ha uma Virgem do
-Leite, que, se não é, realmente, uma preciosidade artistica,
-é, com certeza, a melhor tela que existe em
-Valença, não falando—já se vê—n’aquellas caras
-de malagueta e colorau, todas com a mesma fórma e
-feitio, que o sr. Julião exporta, mensalmente, para<span class="pagenum"><a name="Pag_110" id="Pag_110">[110]</a></span>
-as salas nobres dos hospitaes minhotos, a soberano
-por caveira, com dez por cento de abatimento, por
-duzia.</p>
-
-<p>Pois o beaterio escandalizou-se com a nudez dos
-peitos da imagem, isto é, repugnou-lhe que se visse
-o que na mulher representa a sua missão mais nobre,
-mais elevada e mais santa—a maternidade. E a
-instancias d’esses respeitaveis camafeus, muito castos
-e muito pudibundos, mas que nunca faltam á Rosinha
-Ferreira, quando ella representa; e mandam logo de
-manhã comprar bilhete, e dão pançadinhas com riso,
-e coram (não de pudôr) e se apimentam, e se agitam,
-nervosas, na cadeira, quando Lili conta as suas coisas—a
-instancias e reclamações d’essa gente, repito,
-uma auctoridade ecclesiastica, que eu agora respeito,
-porque já não está entre vivos, mandou, por um
-caiador de Arão, borrar os peitos da imagem!!!</p>
-
-<p>Isto, minhas senhoras e senhores, em pleno seculo
-XIX, n’uma terra que tem dois jornaes, correspondentes
-varios de ditos, representantes de Sua Magestade
-El-Rei, Vigarios geraes e não geraes, Conegos Presidentes,
-e não Presidentes, Capellães, etc., etc.! E
-entre toda essa gente, que sabe ler e escrever, segundo
-se diz, não houve um unico homem que corresse
-a pontapés o cafre de Arão, reproduzindo-lhe
-com a biqueira da bota, ahi pelas alturas do coccyx,
-os borrões com que profanou a imagem!</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_111" id="Pag_111">[111]</a></span></p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>O beaterio communga quinzenalmente e confessa-se
-duas vezes por semana, a padres velhos, surdos
-e rançosos.</p>
-
-<p>Padres novos são o diabo!</p>
-
-<p>Até os Patriarchas fazem das suas... Ainda não
-ha muito tempo, que os apparelhos de Morse, de
-Bandot, de Hugues e os telephones da Hespanha e
-França, não designavam outras palavras, alem de:
-<i>as botas?</i></p>
-
-<p>José Luciano perguntava a Vega d’Armijo: <i>as botas?</i>
-Vega d’Armijo perguntava a Carnot: <i>as botas?</i>
-Carnot reperguntava ao Luciano: <i>as botas?</i></p>
-
-<p>Em Pariz, Madrid e Lisboa não se falava n’outra
-coisa.</p>
-
-<p>Averiguado o caso, fôra o Patriarcha das Gandricas
-que, em Salamanca, se enamorára perdidamente
-dos <i>ojos</i> negros d’uma andaluza. Gargalinho, seu companheiro,
-arrastava a aza á sopeira.</p>
-
-<p>A andaluza dava, com certo recato, nocturnas entrevistas.
-Uma vez, quando o Patriarcha se inebriava
-com os effluvios do amor... platonico, surgiu o protector
-da <i>niña</i>, de <i>cuchilla</i> toledana em punho.</p>
-
-<p>O Patriarcha saltou, em meias, pela janella. Gargalinho
-sumiu-se debaixo da cama; quando de lá o
-tiraram, tanto puxaram pelo pescoço, que ficou como
-o do P. Alexandre.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_112" id="Pag_112">[112]</a></span></p>
-
-<p>Do <i>Alcalde</i> reclamou o Patriarcha as botas; o <i>Alcalde</i>
-officiou ao Consul; o Consul officiou ao Ministro.
-Não appareceram as botas e o Patriarcha andou
-na Exposição, subiu á Eiffel, visitou o Carnot, com
-o seu inseparavel capote de forro vermelho e golla
-de pelle, chapéo braguez, chinelo de liga, calça dobrada
-em baixo, deixando ver os atilhos das ceroilas,
-symetricamente apartados e dispostos em cuidadosa
-laçada. Nos <i>boulevards</i>, quando elles passavam, diziam
-as mundanas:</p>
-
-<div class="blockquote">
-
-<p>C’est um Hottentot et son petit:... mais quel cou, mon
-Dieu!<a name="FNanchor_23" id="FNanchor_23"></a><a href="#Footnote_23" class="fnanchor">[23]</a></p>
-
-</div>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>O Soares, no principio ainda agradou, porque dizia
-a sua missinha de Santo Antonio a muito boa
-hora e era pontual; mas, depois, principiou a desleixar-se
-e a vir para a egreja, tarde e a más horas.</p>
-
-<p>Foi o Albino, que andava sempre com elle, quem
-o fez peco. Principiou a dizer-lhe que estava <i>n’uma
-boa posição official</i>, que se devia apresentar sempre
-<i>muito limpo e lavado</i>, porque o conego velho nem <i>ceroilas<span class="pagenum"><a name="Pag_113" id="Pag_113">[113]</a></span>
-usava</i>, apresentando-se <i>n’um desarranjo completo</i>,
-com a barba por fazer, amarello, <i>completamente
-deitado abaixo</i>, a ponto de a gente recear, ás vezes,
-<i>que fosse de bruços</i>; e que era bom, aos sabbados,
-<i>preparar-se e lavar-se de vespera</i>; levantar-se depois
-cedo, <i>lavar-se novamente muito lavado</i>, tomar a sua
-<i>chavenasinha de café</i> com a <i>sua colhér de prata</i>; e
-nunca <i>chamar a attenção</i> das más linguas, que estão
-sempre <i>a postos</i>, porque a missa sempre dava os <i>seus
-sete e vinte</i>, que já chegavam para uma <i>posição graduada</i>;
-mais isto, mais aquillo, com outros <i>periúdos</i>,—de
-fórma que o rapaz gastava duas horas a lavar-se,
-a vestir-se, e a gente que esperasse, <i>só com
-um café bebido</i>!</p>
-
-<p>O resultado foi perder a missa de S. Antonio,
-porque já não tinha freguezia.</p>
-
-<p>O Magalhães será muito boa pessoa, mas... não
-se dá com o sr. Joaquim.</p>
-
-<p>Ora o sr. Joaquim é um homem muito temente a
-Deus. No inverno, quando ha mais frio e fome, anda
-por ahi, de porta em porta, com a subscripção... da
-Semana Santa, para que a pobreza possa curtir...
-na egreja, as suas maguas e dôres.</p>
-
-<p>Alem d’isso, não se poupa a despezas, quando é
-Juiz da Senhora da Saude, da Urgeira, e vê probabilidades
-de (tudo pela santa religião) fazer uma pirraça
-ao diabo... do João Cabral!</p>
-
-<p>Um homem assim, é um philanthropo e deve andar
-de bem com Deus. Quem com elle não se dá,<span class="pagenum"><a name="Pag_114" id="Pag_114">[114]</a></span>
-não se dá com Deus; ergo: Padre Magalhães não
-serve.</p>
-
-<p>Depois, prega uns sermões que ninguem entende.
-Parece que não fala portuguez!</p>
-
-<p>Nem, sequer, faz chorar a gente na Semana Santa!</p>
-
-<p>Resumindo: não serve.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Eu falei na Semana Santa...</p>
-
-<p>É o carnaval do beaterio. N’aquelles ultimos sete
-dias as beatas dão ar ás mantilhas, e largas á bisbilhotice,
-á curiosidade e... ao flato.</p>
-
-<p>Quinta e sexta feira santas são em Valença, para
-a egreja de S. Estevão, o mesmo que domingo gordo
-e terça feira de entrudo são para a Assemblea.</p>
-
-<p>Ha musica, serviço variado de pastilhas de chocolate,
-rebuçados e amendoas; confidencias, intrigas,
-sorrisos, trocas de cartas perfumadas, ciumes, arrufos,
-apertos de mão e—sobretudo—esta <i>cavaqueira</i>
-intima, expansiva, franca e alegre d’uma verdadeira
-reunião de familias.</p>
-
-<p>A gente está alli, perfeitamente bem, e á sua
-vontade.</p>
-
-<p>Com as temperaturas da egreja e das salas da
-Assemblea eleva-se, consideravelmente, o mercurio
-no thermometro dos affectos, em que o zero é—o arrufo,
-e os 100°—o casamento.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_115" id="Pag_115">[115]</a></span></p>
-
-<p>O Christo, já se vê, como dono da casa, lá está
-no alto da Cruz, recebendo sempre, com reconhecimento
-cordial, tão fervorosas e <i>animadas</i> manifestações
-de amor e respeito...</p>
-
-<p>As beatas arranjam, com a Semana Santa, que
-contar para um mez.</p>
-
-<p>Quando os escorropicha-galhetas abrem, de manhã,
-as portas do templo, já ellas entram apressadas
-e remelosas, escolhendo o melhor logar «<i>onde o
-bruto do povo e os pobres não incommodem, onde se
-esteja á vontade e se veja tudo</i>». Levam as suas pastilhas
-de chocolate para a debilidade, a caixa do rapé,
-o banquinho de tapete, agasalho para os pés e lenço
-para as lagrimas, que são da praxe, quando o Padre
-mostra o Santo Sudario.</p>
-
-<p>Installadas assim, com todas as commodidades
-(tudo pelo amor de Christo, que tanto soffreu na
-Cruz) no seu ponto de devoção e de observação,
-gozam á <i>tripa-forra</i> não perdendo um olhar, um sorriso,
-um vestido novo, uma <i>tournure</i> mais arrebitada...</p>
-
-<p>Á noite vão para casa, consideravelmente alliviadas
-da consciencia, mas pouco satisfeitas com o Magalhães,
-que falou em problemas sociaes, em pauperismo,
-em Philosophia da Historia, em altruismo, em
-protoplasma e outras coisas, que nem o sr. Joaquim
-entendeu, apesar de, por vezes, (certamente por delícadeza)
-abaixar a cabeça, como quem diz: comprehendo,
-approvo e... estou satisfeito.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_116" id="Pag_116">[116]</a></span></p>
-
-<p>O Palmeirão, quando conta imbecilmente pela
-decima vigesima vez, a tragedia do Calvario—tragedia
-sublime e benefica para as agruras da nossa
-existencia, se todos a soubessemos comprehender,
-mas que por ahi anda como o <i>libretto</i> estafado, nas
-epochas lyricas da egreja, para especulação, para
-immoralidades e para descrenças—esse percebe-se
-e agrada muito mais!</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>O beaterio tem uns Santos da sua particular estima.</p>
-
-<p>Os Santos, a final, são como a gente, com quem
-se lida. Ha physionomias que logo inspiram sympathia
-e ha outras que, sem a gente saber como, nem
-porque, provocam embirração.</p>
-
-<p>Isto é razoavel e intuitivo. Diga-me, por exemplo,
-V. Ex.ª quem ha-de gostar do S. Christovão,
-com aquella grande cara arrenegada, parecendo dizer
-ás gentes que, se lhe chegam a mostarda ao
-nariz, corre tudo com a vara, pela egreja fóra, como
-o Pau-real na feira de S. Bento da Porta-aberta!</p>
-
-<p>Assim, quando rareiam as festas e as bolsas andam
-exhaustas, com as frequentes subscripções da
-Assemblea, não havendo possibilidade de se organizar
-a Semana Santa, então, promove o beaterio
-umas novenas á Senhora de tal.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_117" id="Pag_117">[117]</a></span></p>
-
-<p>«<i>São umas festasinhas muito razoaveis, porque
-a musica é mais alegre, são de dia e sempre ha probabilidades
-de, terminadas as ladainhas e as encommendações,
-se dar, ainda, um passeio até ao Jardim.
-Emfim, n’uma terra, que tem poucas distracções e
-onde a Rosinha se não póde sustentar, tudo se aproveita.</i>»</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>O caso da Santa alarmou vivamente os animos
-d’estas esgrouviadas bisbilhoteiras.</p>
-
-<p>«<i>Parece impossivel que se não abrisse a Terra,
-que não viesse um raio, um diabo, que castigasse
-aquelle pedreiro-livre, aquelle atheu do administrador!</i>»</p>
-
-<p>O malandro que trazia a imagem e a metteu na
-taberna da Esplanada, expondo-a ás chufas e obscenidades
-avinhadas dos comparsas, esperando que o
-contra-regra desse o signal de subir o panno, para
-essa asquerosa comedia, da nossa asquerosissima Politica,—o
-malandro que, com um sebento balandrau,
-de imagem e prato na mão, por ahi chatina semanalmente,
-<i>a meias</i>, com as crenças do povo, e não
-hesita em transpôr os humbraes do bordel, <i>pedindo
-para a bemdita e milagrosa Senhora de tal</i>, interessando
-assim, a religião de Christo no producto que
-a barregan obtem da venda, em publico, do corpo
-e da honra—esse icha-corvos torpe e vil, d’uma ganancia<span class="pagenum"><a name="Pag_118" id="Pag_118">[118]</a></span>
-mais vil e mais torpe, do que os trinta dinheiros
-de Judas, que por ahi esfarrapa as poucas
-crenças, que ainda existem no povo—esse:</p>
-
-<p><i>«coitadinho! Mettia dó vêl-o. Estava amarello, aterrado.
-Foi preciso leval-o, quasi em braços, e dar-lhe
-café quente, porque lhe podia dar alguma coisa»!</i></p>
-
-<p class="tb">Ah, baratas de sacristia! Como eu desejava possuir
-o açoite, com que Christo expulsou os phariseus
-e de que côr eu vos poria as nadegas...</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>As procissões...</p>
-
-<p>Eu não conheço coisa mais estupida, barbara e
-deshumana.</p>
-
-<p>Felizmente, sou, n’esta opinião, apoiado pelo espirito
-do seculo que, pouco a pouco, vae terminando
-com ellas.</p>
-
-<p>Qual é o fim das procissões?</p>
-
-<p>Qual a sua necessidade?</p>
-
-<p>São para avivar as crenças?</p>
-
-<p>Que ha, por esse mundo de Christo, mais ridiculo
-e caricato do que Santas Cocas, bois bentos,
-S. Jorges de carne ou de madeira, isto é, com tarracha,
-ou sem ella, prophetas com barbas de crina,
-pendões em varas de pinheiro por descascar, gaiteiros<span class="pagenum"><a name="Pag_119" id="Pag_119">[119]</a></span>
-aos pinotes, matulões de cara aparvalhada e cabello
-empastado com gomma de pevides de marmelo?</p>
-
-<p>Que ha, por ahi, de mais barbaro e deshumano,
-senhoras de Valença, do que essa perigosissima exposição
-a que, por vaidade, condemnaes os membros
-ainda tenros das creanças, carregadas com adereços
-de pechisbeque e diamantes de vintem, peito e braços
-nus, tiritando e caminhando custosamente, com
-os pesitos entalados nos escarpes do <i>uniforme</i>, e atiradas,
-por essas ruas, á voracidade das bronchites e
-pneumonias que o frio origina, ou das febres e meningites
-que o calor provoca?</p>
-
-<p>Dizei-me: a Christo, se é a Christo que desejaes
-honrar, não seria mais agradavel que essas duas libras,
-com que entraes em ajuste d’uma pneumonia
-para vossos filhos, lhes fossem entregues para, com
-ellas, na bemdita missão da Caridade, penetrarem
-n’uma d’essas barracas da Parada-velha e as deporem
-nas mãos tremulas e descarnadas do pobre velho
-que tem fome e frio aos 80 annos, illuminando-lhe
-assim com a luz do céo, com a luz de Deus,
-aquelle tenebroso occaso de soffrimento e dôr?</p>
-
-<p>E quando a creança voltasse a casa, risonha e
-feliz, como Deus a sabe dispôr, ao fazer d’ella a
-mensageira do Bem, não seriam para vós mais agradaveis
-as lagrimas da gratidão do pobre entrevado
-que, como perolas, deslizassem ainda nas mãos pequeninas,
-do que esse immundo cartucho de papel
-mata-morrão com doces de farinha de milho e assucar<span class="pagenum"><a name="Pag_120" id="Pag_120">[120]</a></span>
-mascavado—suprema delicia dos matulões da
-Urgeira—com que o boçal e estupido Juiz da festa
-lhe paga o papel de comparsa?</p>
-
-<p>Senhoras de Valença, que tendes filhos! Pensae
-n’isto...</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>A procissão, que os Paes de familia mais respeitam,
-é a de <i>Corpus-Christi</i>.</p>
-
-<p>Quando se approxima, é inevitavel a contribuição
-de chapéos novos para as senhoras. É uma coisa feia,
-na verdade, o apparecer-se n’esse dia, consagrado a
-Deus, com chapéos de inverno...</p>
-
-<p>Pois se o Blanco os tem tanto em conta... Já se
-não fala em vestidos, porque emfim, dá-se uma <i>volta</i>
-ao do anno passado e ainda póde escapar; mas o
-chapéo é da praxe.</p>
-
-<p>As janellas guarnecem-se, n’esse dia, de caras
-bonitas. Nas ruas, vae e vem, chibante e taful, a juventude
-da terra; os aspirantes aduaneiros, com Velloso
-á frente, pimpam o oiro dos seus uniformes;
-barrigudos camaristas passam, atados á banda bicolor;
-ha muita gente do povo; colchas espaventosas,
-flammulas, etc., etc., e, no fim de tudo, a tropa e as
-descargas.</p>
-
-<p>N’este anno, então, essa ultima parte esteve magestosa.
-Digo a verdade: manobras assim, tão complicadas
-e com tanta tactica, só as tenho visto em<span class="pagenum"><a name="Pag_121" id="Pag_121">[121]</a></span>
-França, no campo de Chalons, e em Portugal... no
-largo de S. João. Consta-me, até, que para o anno
-cá temos officiaes dos exercitos europeus, em commissão
-de estudo.</p>
-
-<p>Pelo menos, assim m’o asseveram Moltke, Carnot,
-o Czar de todas as Russias, o Schah da Persia e o
-Bey de Tunis. Se o affirmam por lisonja, sabendo
-que sou de Valença, isso é com elles.</p>
-
-<p>Vae pelo preço...</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Agora as romarias.</p>
-
-<p>Diversos pensadores e philosophos consideram as
-romarias, como indispensaveis e necessarias, attendendo
-a que o povo que, durante seis dias, labuta e
-trabalha, necessita de descanço e distracção ao setimo,
-para que possa retemperar as forças.</p>
-
-<p>Concordo com isso, mas não colhe o argumento
-na defeza d’ellas, como elemento vivificador de crenças.</p>
-
-<p>Quem é que vae á Urgeira, a Ganfey, ao Faro,
-a Segadães, que não seja por mero divertimento, por
-distracção, pela novidade de um caso ruidoso e differente
-na pacata vida da provincia?</p>
-
-<p>Quem annuncia em casa á familia a visita á Senhora
-da Cabeça, ou a S. Campio, que isso não signifique
-um dia de <i>borga</i> e de folgança?</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_122" id="Pag_122">[122]</a></span></p>
-
-<p>Vejamos as coisas como são, limpando o prisma
-da observação e da critica, das teias de aranha, com
-que a rotina, o uso e a tradição lhe mancham a
-transparencia.</p>
-
-<p>O que é a «Senhora da Cabeça»?</p>
-
-<p>Um concurso legal de caceteiros.</p>
-
-<p>Perguntem ao meu amigo Joaquim Queiroz, se
-elle de lá veiu com mais crenças, apesar dos esforços
-que os salta-pocinhas de Lara e de Lapella fizeram,
-para lh’as introduzir na massa cerebral.</p>
-
-<p>Perguntem a esse amigo, imprudentemente envolvido
-por generosa dedicação e por nobre arrebatamento,
-na batalha de <i>Montes Claros</i>, se essas mulheres,
-que uivavam como hyenas e clamavam em furia
-horrenda, contra tres homens, não eram as mesmas
-que se espojavam pelo adro da capella, e se arrastavam
-de joelhos nas <i>cinco voltas</i> da promessa, com
-que, sentindo estoirar o bandulho nos arrancos de
-brutal indigestão, recorreram á fama milagreira da
-Santa...</p>
-
-<p>Perguntem-lhe se esses matulões, que á porta do
-Chico Mello o cercavam, embrutecidos pelo vinho,
-apertando o circulo dos varapaus ferrados, com gritos
-de chacal e esgares sensuaes de anthropophagos,
-não eram os mesmos que, horas antes, carregavam,
-como bestas, com o andor da Santa e abalavam o
-solo com o poisar da pata na marcha truanesca,
-pelos atalhos do logarejo.</p>
-
-<p>O que é <i>S. Campio</i>?</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_123" id="Pag_123">[123]</a></span></p>
-
-<p>A prostituição ao ar livre, sob o manto estrellado
-da noite, como diria qualquer poeta; e a charlatanice,
-fazendo suar o Santo e... os milheiraes.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>A pequena distancia d’esta villa ha um burgo
-chamado—Urgeira. É feudo do sr. Joaquim. Descendem
-em linha recta, os seus habitantes, d’aquelles
-antigos cultivadores de cebolas do Egypto.</p>
-
-<p>Formam um elemento importante na Politica do
-nosso Hospital e prestam assaz reconhecido serviço,
-nas procissões da Semana Santa. Chegam em mesnadas,
-marcham bem, formam, com os seus balandraus,
-duas alas, já muito razoaveis e, além d’isso,
-são faceis de contentar: quaesquer tres patacos de
-borôa e zurrapa lhes enchem as panças, depois da
-procissão, na sacristia da Misericordia, provocando-lhes
-sonoro arrôto.</p>
-
-<p>No verão, rara é a noite de sabbado, em que estes
-pacovios não queimam algumas duzias de libras,
-com foguetes de lagrimas e bombas de dynamite.</p>
-
-<p>Ora, no burgo ha pobreza e ha miseria; ha velhos,
-que gemem na cama com o frio do inverno e
-ha creanças esfarrapadas, que chafurdam no lamaçal
-dos becos; ha aleijados, que se arrastam até á villa
-mendigando o <i>chabo</i>.</p>
-
-<p>Com esses 500, ou 600 mil réis, que annualmente<span class="pagenum"><a name="Pag_124" id="Pag_124">[124]</a></span>
-se gastam em festas, podia a Junta de Parochia
-fundar um Hospicio para os velhos, e estabelecer
-uma sopa economica para os famintos.</p>
-
-<p>Mas a pandega? O grande brodio da vespera da
-festa? A <i>figura</i> que se faz na procissão com a vara
-de Juiz?</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Necessita o povo de distracções.</p>
-
-<p>Verdade é, mas dêem-lh’as que o civilizem e não
-que o embruteçam. Festas, Romarias e Procissões
-são ainda vestigios d’aquelles primitivos tempos, em
-que era necessario inveterar pelo mysticismo, pelo
-apparato e sumptuosidade das manifestações, o espirito
-da crença.</p>
-
-<p>Mas hoje, em que para o plebeu entrar no templo
-até á grade, onde a aristocracia aninha, se lhe exige
-roupa lavada e calçado decente; hoje, em que elle
-vae á romaria para jogar o pau, beber vinho e entregar
-fielmente á <i>Batota</i> a féria da semana—acabem
-com tudo isso e deixem ficar a Religião nos
-templos, e só nos templos, d’onde nunca devera ter
-sahido.</p>
-
-<p>E, para divertir o povo, substituam, então, esses
-grotescos cortejos de Santos, entre espelhos de pataco
-e plumas de gallo, por verdadeiras procissões
-civicas, onde figurem os heroes da nossa Patria, que
-os temos tantos e tão dignos d’essa apotheose.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_125" id="Pag_125">[125]</a></span></p>
-
-<p>Em vez de pulpitos ao ar livre, levantem-se tablados,
-onde se reproduzam os factos mais gloriosos
-das gloriosissimas epopéas que, a um paiz de tão
-acanhadas dimensões, deram a celebridade das grandes
-nacionalidades.</p>
-
-<p>Organizem-se-lhe jogos, luctas, em que se adestre
-no exercicio das armas e possa desenvolver os musculos
-e a energia, de que tanto necessita para a
-constante lucta da existencia.</p>
-
-<p>Conte-se e mostre-se ao povo o que fomos, e assim,
-distrahindo-o, lhe incutiremos os germens d’esse
-sentimento, que é o principal impulsor dos grandes
-feitos e das grandes civilizações—o amor da
-patria.<a name="FNanchor_24" id="FNanchor_24"></a><a href="#Footnote_24" class="fnanchor">[24]</a></p>
-
-<p>Basta de coisas de egreja.
-E agora,—beaterio da minha terra!—um
-Padre Nosso e uma Ave-Maria
-por este Zinão, que já está ás portas do inferno...
-mas esperando que entreis, para atrancar solidamente
-a porta e assim vos acabar com a raça!</p>
-
-<p class="right"><i>Pater Noster...</i></p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_126" id="Pag_126">[126]</a></span></p>
-
-<hr class="chap" />
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_127" id="Pag_127">[127]</a></span></p>
-
-<h2 id="VII">VII<br />
-<span class="smaller">Litteraturas<br />
-<span class="smaller">(DUAS PALAVRAS)</span></span></h2>
-
-<p>Claro é que, tendo subordinado o programma
-d’este livro ao titulo de <i>Estudos sobre a actual sociedade
-valenciana</i>, me não posso esquivar a fazer
-incidir, por momentos, na minha lente de observação,
-os raios luminosos que os nossos <i>homens de lettras</i>,
-semanalmente, fazem convergir no fóco das
-<i>lamparinas</i> cá da terra.</p>
-
-<p>N’esta epocha, em que legalmente está em uso,
-reconhecida e sanccionada, essa nojenta e nociva
-convenção litteraria do <i>elogio-mutuo</i>, que tanto talento
-atrophia, que tanta intelligencia embriaga com
-os aromas d’um incenso macanjo, parvoiçada é—reconheço—o
-meu proposito, que significa perigo eminente<span class="pagenum"><a name="Pag_128" id="Pag_128">[128]</a></span>
-nas cannelas, irremediavelmente condemnadas
-á dentuça dos <i>critiqueiros</i>.</p>
-
-<p>Limito a area da observação com as muralhas da
-Praça e d’ella exceptuo, ainda, algumas individualidades
-que, demasiado, me ferem a retina com o seu
-talento, e que a insignificante distancia focal da lente
-me não permitte abranger.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>N’esta nossa terra, a penna serve, unicamente,
-para estadulho de deslombar politicos, ou nas protervias
-e diatribes, originadas em questiunculas ridiculas
-e comicas, como as da <i>Prisão da Santa</i>, ou nas
-pacholices rimadas, com que se visa á critica galhofeira.</p>
-
-<p>A penna photographa a Idéa. A Idéa póde evolar-se,
-librar-se sobre todas as manifestações da actividade
-humana, consoante as aspirações que a orientam
-e as intelligencias que a esclarecem. Póde fixar-se
-na Arte, na Sociedade, no Homem, etc. Entre
-nós, embirrou com a Politica e não a larga.</p>
-
-<p>Por isso, chafurda na insulsez parrana, na graçola
-afadistada, na metaphora besuntona.</p>
-
-<p>Ao <i>brazileiro barato</i>, ao <i>fidalgo sem pergaminhos</i>
-e a outros escarros-piadas, que por ahi fluctuam á
-tona da enxurrada, corresponde esse constante martellar
-de bordões estafados, do <i>gaiteiro</i>, do <i>João Bernardo</i>,<span class="pagenum"><a name="Pag_129" id="Pag_129">[129]</a></span>
-com que ainda hoje a fedelhada sahe á estacada,
-empunhando a babuzeira e acenando a quem
-passa com outro Ideal e com outras armas: não o insulto
-soez á familia, mas o sorriso caustico do epigramma
-á individualidade social.</p>
-
-<p>A Imaginação e a Phantasia vasam-se, por ahi,
-nos moldes d’uma linguagem mascavada, em que pullula
-o neologismo pretencioso, d’onde resalta a phrase
-de sensação dos ultimos figurinos, que o francez
-atira, por cima dos Pyreneus, como uma bota cambada
-e velha, e que o rabiscador, prestes, enfia nos
-pesunhos para, coxeante e rufião, seguir em truanesca
-marcha, campos fóra da critica e da... tolice.</p>
-
-<p>Esfuzia, frequentemente, o gallicismo inutil nas
-espalmadas linhas; é constante a referencia ôca á
-lombada das recentes publicações francezas; e, n’uma
-epocha em que o mercieiro fala na <i>Sapho</i>, de Daudet,
-ri com as frescuras de Catulle, estremece com
-as <i>Blasphemias</i> de Richepin, salta com as pinturas
-realistas de Zola, entretem a familia com os Goncourt
-e auxilia a chylificação com Maupassant ou
-Coppee, a arlequinada do rabisca, não só denuncia
-ignorancia completa da nossa litteratura e dos recursos
-da nossa lingua, mas, ainda,—com a impropriedade
-dos termos, apanhados a dente e atacados
-a soquete sublinhado nos periodos—uma deploravel
-vaidade e tristissima inconsciencia.</p>
-
-<p>Não ha orientação litteraria, nem eschola definida,
-nem percepção nitida da idea, nem consciencia<span class="pagenum"><a name="Pag_130" id="Pag_130">[130]</a></span>
-na phrase, nem centelha de imaginação que desperte
-a vibratilidade da nossa alma. Ha, d’um lado,
-a atrophia voluntaria e criminosa, a que se condemnam
-faculdades intellectuaes de superior quilate, e
-d’outro, a ambição ridicula e chatissima de se mostrar
-á familia—ao papá e á mana, ao titi e á prima,
-ao namoro e á sopeira—o nome em lettra redonda,
-claro, ou nas malhas transparentes d’um pseudonymo,
-que o sorrisinho immodesto descobre ao primeiro e
-desejado ensejo.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Poderá alguem suppôr com estas minhas reflexões,
-tão discordantes na fórma, das hosannas, que
-por ahi se entoam, impostas pela nojenta convenção
-do <i>elogio mutuo</i>, que nego merecimentos, ou repudio
-aptidões intellectuaes?</p>
-
-<p>Tal não succede.</p>
-
-<p>De quando em quando, aqui e acolá, mesmo n’esses
-a quem a vaidade e o pedantismo desnorteiam,
-descubro e reconheço os vestigios d’uma expontaneidade
-de phrase, evidente; d’um colorido de expressão,
-notavel; d’uma receptividade emocional, definida;
-d’uma accommodação visual para a analyse, apreciavel;—propriedades
-que, vigorizadas pelo trabalho,
-orientadas pelo estudo persistente nos bons modelos
-e impulsionadas para um Ideal, podiam educar-lhes<span class="pagenum"><a name="Pag_131" id="Pag_131">[131]</a></span>
-o espirito e eleval-os, porventura, á consideração que
-ambicionam e que criminosamente lhes attribuem.</p>
-
-<p>O que eu desconheço é:—o trabalho; o que eu
-censuro é:—a inercia; o que eu repudio e calco aos
-pés, é essa perfida e nojentissima convenção, que faz
-do <i>cinco reis de gente</i> um Adamastor, do balbuciante
-bebé um polemista, do Rosalino Candido, um Ramalho
-Ortigão, ou, como elles diriam, de Prudhomme,
-um Pierre Veron, ou Albert Wolff.</p>
-
-<p>A penna exprime a Idea. A Idea parte do cerebro.
-O cerebro significa a Intelligencia, a Alma, isto
-é, o conjuncto da sensações e sentimentos, que na sua
-phenomenalidade, separam o Homem do bruto.</p>
-
-<p>A faculdade de sentir e a expressão nitida e
-clara, pela penna e pela palavra, de todos os phenomenos
-da natureza psychica, são o que o homem
-tem de mais nobre.</p>
-
-<p>Triste é, portanto que, na critica d’um facto, na
-discussão d’uma idea, no desforço d’uma aggressão,
-eu vá encontrar aptidões intellectuaes com elementos
-tão apreciaveis, na choldra da Politica, ou descendo,
-ainda, tanto e tanto, que se não pejam com a
-pasquinada a carvão nos logares, onde o carrejão
-usualmente se encosta, para... ensalitrar as paredes.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_132" id="Pag_132">[132]</a></span></p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>E no grupo dos que a inercia atrophia, dos que
-deviam libertar-se para outras espheras mais luminosas
-e mais puras, porque já possuem na Imaginação
-e na Phantasia a vigorosa organização do condor,
-vejo eu um homem—que sabe burilar preciosamente
-a idea, que filigrana artisticamente a palavra—debater-se,
-na triste condição de bonifrate, movimentado
-pelas guitas dos especuladores, transformando
-o cerebro, d’onde arranca chispas d’um verdadeiro
-talento, na bola ensebada e porca dos jogos
-malabares que os politiqueiros por ahi exhibem, visando
-á esportula dos magnates.</p>
-
-<p>E como se não fosse profanação bastante, o manchar
-a penna nos bispotes, em que essa megéra—a
-Politica—diariamente evacua, ainda ha pouco manchou
-tambem os labios d’onde, palpitante, quente,
-phantasiosa e bella, lhe resalta a palavra, na dentuça
-cariada e porca d’um salta-pocinhas eleitoral agargalado!</p>
-
-<p>Suprema humilhação do talento!</p>
-
-<p>Pudesse eu agarrar-te pela golla do casaco e,
-applicando-te em certa parte do corpo duas palmadas,<span class="pagenum"><a name="Pag_133" id="Pag_133">[133]</a></span>
-fazer actuar no teu espirito, incisiva e caustica,
-a affectuosa indignação, com que d’aqui te brado:</p>
-
-<p>Livra-te d’esse chiqueiro, <i>homem de Deus</i>!<a name="FNanchor_25" id="FNanchor_25"></a><a href="#Footnote_25" class="fnanchor">[25]</a></p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_134" id="Pag_134">[134]</a></span></p>
-
-<hr class="chap" />
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_135" id="Pag_135">[135]</a></span></p>
-
-<h2 id="VIII">VIII<br />
-<span class="smaller">Quimtilinarias<a name="FNanchor_26" id="FNanchor_26"></a><a href="#Footnote_26" class="fnanchor">[26]</a></span></h2>
-
-<p>Diz algures Macaulay:</p>
-
-<p>«<i>É nas grandes crises politicas, nas grandes agitações
-populares, que se denunciam os grandes homens
-e se manifestam os grandes genios.</i>»</p>
-
-<p>Cá temos a confirmação d’esse periodo do eminente
-historiador inglez.</p>
-
-<p>Ruge, infrene, a colera do povo por causa do
-<i>mandado</i>: e no meio d’essa espantosa effervescencia
-da nossa politica, ergue-se aos céos da posteridade,<span class="pagenum"><a name="Pag_136" id="Pag_136">[136]</a></span>
-dardejando raios mortiferos de oratoria epistolar, um
-homem, até hoje ignorado na republica das lettras:
-Quim Fonseca!</p>
-
-<p>Tenho lido muita epistola e muita carta; li as
-epistolas de S. Paulo aos corinthios; as de Horacio
-e Cicero; as de Racine e Pascal; as de M.ᵐᵉ de Sevigné
-e de Girardin; as do Rosalino e Jayme José;
-mas, coisa tão puxada de rhetorica, tão desembolada
-de logica, tão <i>frecheira</i>, de estylo—é que ainda não
-pude encontrar nas litteraturas passadas e presentes,
-desde a sanskrita, até á dos papuas, ou á das gentes
-do Molembo-Kuango!</p>
-
-<p>Sempre desconfiei que, no cerebro d’este Fonseca,
-vascolejava algo de extraordinario e de superior.
-Quando, por ahi, aventavam deformidades psychicas,
-amesquinhantes do intellecto, affirmava eu sempre:</p>
-
-<p><i>Fonseca tem lume no olho! O futuro o dirá.</i></p>
-
-<p class="tb">Ahi estão as suas sessenta epistolas engranzadas
-nas gazetas da terra, confirmando, plenamente,
-os meus presentimentos.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Estudei durante muito tempo o Quim Fonseca,
-auscultando as minucias da sua existencia social e
-as subtis ramificações da sua politica.</p>
-
-<p>Considero-o como um dos vultos mais importantes<span class="pagenum"><a name="Pag_137" id="Pag_137">[137]</a></span>
-da minha terra, porque é o fulcro <i>diamantino</i>,
-onde se apoia a alavanca civilizadora (?) do Progresso.
-Impõe-se, portanto, á minha observação e ao
-meu respeito.</p>
-
-<p>Consumi annos n’esse estudo, sem poder formular
-uma classificação exacta e rigorosa.</p>
-
-<p>Mas, um dia, descobri que Fonseca usava... suspensorios!</p>
-
-<p>Ora, os suspensorios teem para mim uma grande
-significação; considero-os como elemento precioso e
-infallivel na investigação do caracter individual—elemento
-mais precioso e mais infallivel, do que as
-protuberancias do craneo, na theoria de Gall; os
-traços physionomicos na de Lavater, ou o volume do
-cerebro na de Broca. Após minuciosas analyses e
-confrontações, cheguei á conclusão, de que os suspensorios
-pódem significar: reflexão, sobriedade, economia,
-previdencia, sensatez, paz do espirito, pureza
-de costumes, existencia de virtudes civicas.</p>
-
-<p>Homem que usa suspensorios, sabe de cór quanto
-produz, livre do imposto de rendimento, o capital de
-doze moedas d’oiro a tres e meio por cento; sabe em
-que lua se cortam as madeiras; sabe em que epocha
-convém semear a couve penca, o rábano, a nabiça e
-as pevides de marmelo; sabe em que mez se capam
-os gatos; sabe salgar um porco, dispôr os presuntos
-no fumeiro, encher um chouriço; sabe <i>coisas</i> de emphyteuta,
-de fóros, de aguas de rega, de bacellos, de
-alpórcas e de bens de mão-morta; sabe aparar um<span class="pagenum"><a name="Pag_138" id="Pag_138">[138]</a></span>
-callo e applicar um crystel; conhece remedios para
-o gôgo e para as bichas; conhece as propriedades do
-sebo de Hollanda; sabe—emfim—de tudo um boccadinho,
-porque é encyclopedico em Sciencias caseiras
-e perito em questões de vida pratica.</p>
-
-<p>E V. Ex.ª, que conhece o Fonseca, diga-me, agora,
-se as aptidões do seu intellecto não estão ahi,
-nitidamente inventariadas.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Eu venero as commendas.</p>
-
-<p>Quando, em Quinta-feira santa, na vizita ás casas
-do Senhor, encontro o sr. V. de Moraes, deslumbrando
-a gente com a sua casaca e com as scintillações
-da Gran-cruz gallega, onde o sol poente arranca
-chispas—tiro humildemente o meu chapéo e curvo-me
-submisso.</p>
-
-<p>Venero a banda bicolor, diagonalando a obesa
-pança d’um senador; venero a vara d’um juiz de irmandade.</p>
-
-<p>Reconheço tambem, a importancia social dos titulos
-honorificos.</p>
-
-<p>Um Visconde foi, é, e será, sempre, um homem
-de massa mais afinada do que qualquer Zinão; um
-homem estremado entre a peonagem; um homem de
-sangue <i>cruzadico</i>, de alta sabença, de apurado senso.
-Ahi está o sr. V. da Torre, que, ainda de molleirinha<span class="pagenum"><a name="Pag_139" id="Pag_139">[139]</a></span>
-e a fazer <i>tem-tem</i>, escrevia os <i>Preconceitos</i>, para...
-<i>despreconceituar</i> a heraldica dos viscondados.</p>
-
-<p>Venero e respeito tudo isso, repito, porque, emfim,
-Deus que resolveu distinguir na sociedade umas
-certas pessoas, com titulos e com penduricalhos, lá
-se entende e lá tem as suas razões...</p>
-
-<p>Mas cá no fôro intimo, nada provoca, mais fortemente,
-a minha consideração, como umas alças, uns
-suspensorios, d’aquelles de tres cores, como a bandeira
-franceza—com as suas fivelas doiradas, as suas
-prezilhas de coiro unidas, symetricamente, aos quatro
-botões alinhados pelo buraquinho do umbigo.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Este meu culto ás alças já me originou grave
-desgosto na familia.</p>
-
-<p>Minha filha mais velha, D. Fagundes, namoriscava
-o filho do nosso procurador em Monsão. Ha cinco
-annos entra o mocinho na sala de visitas e, deante
-da rapariga, balbucia trémulo de commoção:</p>
-
-<p>—Louvado seja Nosso Senhor Jesus Christo!</p>
-
-<p>O Senhor passou bem?</p>
-
-<p>Eu vinha pedir a mão de sua filha D. Fagundes
-d’Atouguia. Tenho 25 annos; sou camarista na minha
-terra; as minhas propriedades rendem 40 carros e
-60 pipas; tenho doze contos nominaes em inscripções;
-vinte obrigações das Aguas de Melgaço e<span class="pagenum"><a name="Pag_140" id="Pag_140">[140]</a></span>
-de S. Pedro, cinco acções do piano da Assemblea e
-dez do Theatro Valenciano...</p>
-
-<p>—Perdão, interrompi eu; e emquanto ás ultimas,
-pagou todas as prestações?</p>
-
-<p>—Não, senhor; assignei, mas só paguei a primeira
-prestação de 10 p. c.</p>
-
-<p>(O homem convem-me, disse com os meus botões,
-já vejo que é <i>agostinhado</i>.)</p>
-
-<p>—Serve-me para genro; mas, um esclarecimento
-apenas, que é o mais importante: o meu amigo usa
-suspensorios?</p>
-
-<p>—Ora essa! exclama o joven, acaso é isso importante
-no meu futuro marital? Pois a minha barriga
-é que tem de <i>crescer</i>...</p>
-
-<p>—Basta, senhor! Visto que ridiculariza uma coisa
-tão seria,—nada feito! Queira bater a outra porta.</p>
-
-<p class="tb">E Fagundes ficou solteira...</p>
-
-<p>Ora ella está longe de ser uma belleza e, ás vezes,
-tem <i>telha</i>; mas para Monsão servia e, servia,
-até, muito bem.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Recebi hontem á noite um telegramma de Bismarck,
-pedindo informações urgentes ácerca das sessenta
-cartas. Como sou correspondente da <i>Gazeta
-da Allemanha</i>, tratei de averiguar o caso inspirador
-d’aquellas Catili—digo—Quimtilinarias.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_141" id="Pag_141">[141]</a></span></p>
-
-<p>Eis o que descobri:</p>
-
-<p>Na ultima reunião dos <i>quarenta-maiores</i>, o Fonseca,
-subitamente atacado de violenta verborrhea,
-poz em pratos limpos a historia do <i>mandado</i>, segredada
-ao bichinho do ouvido por um <i>amphibio</i>.</p>
-
-<p>Os senadores ficaram aterrados e os municipes
-bateram palmas, porque tinham farejado escandalo.</p>
-
-<p>Fonseca exaltou-se, berrou, vociferou; e, por vezes,
-para o acalmar no furor do seu zelo pelos interesses
-do Municipio, teve um prestimoso amigo de
-lhe molhar a palavra, com agua da Fonte de S. Sebastião,
-que é a mais fresquinha<a name="FNanchor_27" id="FNanchor_27"></a><a href="#Footnote_27" class="fnanchor">[27]</a>.</p>
-
-<p>A final serenou e retirou-se satisfeito.</p>
-
-<p>Jantou e soube-lhe bem; mesmo muito bem. Com
-o enthusiasmo <i>entrou</i> de mais n’um arrozito de <i>berberichos</i>.</p>
-
-<p>Retirou-se para o seu escriptorio.</p>
-
-<p>Os <i>berberichos</i> principiaram, porém, a <i>repontar</i> com
-elle, provocando-lhe, em certo apparelho, uns beliscões
-diabolicos.</p>
-
-<p>Lembrou-se de ir convidar o Leopoldo a dar um
-passeio nas muralhas; mas, por outro lado, a rigidez
-e a austeridade dos seus habitos aconselhavam-n’o a
-ir ter com o Capellão, certamente para se desobrigar
-dos peccados do dia.</p>
-
-<p>Mas, n’isto, no lusco-fusco da sua somnolencia,<span class="pagenum"><a name="Pag_142" id="Pag_142">[142]</a></span>
-viu apparecer e avançar o vertice d’um angulo de
-25°, angulo que foi alargando, alargando, sustentando
-sempre, um dos seus lados, em parallelismo com
-os olhos do Fonseca.</p>
-
-<p>Linhas irregulares, verticalmente dispostas, desenharam,
-depois, uma cabeça collada a esse grande
-appendice angular; novas linhas configuraram um
-corpo, como appendice d’aquelle primitivo appendice.</p>
-
-<p>Appareceu um nariz com perninhas!</p>
-
-<p>Em seguida, surgiu uma coisa redonda, muito arrebitada
-e rechonchuda, que foi, tambem, crescendo,
-crescendo...</p>
-
-<p>Rebolava-se uma pança que, avançando, exclamou:—<i>Oh
-Quim! Tu falaste bem; mas foi e Zé,
-quem te deu o papel!</i></p>
-
-<p>Approxima-se o nariz, aos saltinhos, e diz tambem,
-roçando pelo respeitavel dito, do Fonseca:</p>
-
-<p class="tb">—<i>Sim! O Zé deu-te o papel! Foi o Zé! Foi o Zé! Foi o Zé!</i></p>
-
-<p class="tb">—<i>Ah, Morãeses do diabo! Bofé, que mentis! A
-mim, gentes de Verdoejo e de Taião!</i></p>
-
-<p class="tb">E arremessando para longe as lubricas tentações,
-o chale-manta e o barretinho bordado com a sua borlinha
-toda repenicada, a dar-a-dar,—foi-se á escrevaninha
-e principiou a escrever uma carta; depois,
-outra; depois, outra;—total sessenta cartas!</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_143" id="Pag_143">[143]</a></span></p>
-
-<p>No intellecto do Fonseca deu-se, então, aquelle
-phenomeno da scissiparidade por segmentação.</p>
-
-<p>Cidadãos pacatos e sisudos, pouco versados na mechanica
-epistolar e affeitos á bolorenta erudição do:</p>
-
-<p>«<i>Muito estimarei que ao receber estas mal esboçadas
-regras, esteja gozando perfeita saude, em companhia
-de quem mais deseja, pois a minha, graças a
-Deus, ao fazer d’esta, é boa...</i>»</p>
-
-<p>sahiram-se com puxadas de estylo de rachar tudo,
-graças á communicabilidade galvanica do intellecto
-fonsecoide, saturado de rhetorica e prenhe de syllogismos
-irrefutaveis.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Mas vem cá—oh Fonseca—O que é, afinal, que
-pretendes dizer na <i>tua</i>, com essas sessenta epistolas?</p>
-
-<p>Que diabo te disse o <i>Noticioso</i>, que tão violentamente
-arrepiou a tua espinha, como se te communicasse
-a irritabilidade nervosa do galvanismo?</p>
-
-<p>Offendeste-te por elle affirmar, que na sessão dos
-<i>quarenta-maiores</i>, o teu esplendido discurso não foi
-improvisado e que houve, até, quem te desse o <i>ponto</i>?</p>
-
-<p>Mas—oh filho—suppões, acaso, que no intimo
-da alma dos nossos conterraneos não existe, profundamente
-radicada, a absoluta confiança nos teus
-dotes oratorios, embora se reconheça, sem desdoiro,
-que não és, precisamente, o que se póde chamar
-um Pico de Mirandola?</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_144" id="Pag_144">[144]</a></span></p>
-
-<p>Então não está ahi, bem pronunciado, no teu luzidio
-craneo, o extraordinario desenvolvimento da
-terceira circumvolução cerebral, em que Broca localizou
-a eloquencia e a arte oratoria?</p>
-
-<p>Olha, Quim, um conselho de amigo:</p>
-
-<p>As tuas sessenta epistolas,—embora, verdadeiramente,
-se não saiba, ainda, para que as escreveste
-e para que incommodaste tanto cidadão pacato, tanto
-cerebro, tanta caneta, tanto bico e tanto papel de
-chupeta—estão boas; isso estão. Mas ouve, filho, a
-respeito de litteratices, de cartas—isto é—de escripturas
-e de lettras, manda-n’os algumas, mas d’essas
-que tens com hypothecas e com fiadores.</p>
-
-<p>As que para ahi estás a publicar, guarda-as,
-para quando não tiveres quem te <i>chegue o papel</i>...</p>
-
-<p>Não maces mais a gente, que tem de aturar bissemanalmente
-o <i>Noticioso</i>, diariamente o Marilio<a name="FNanchor_28" id="FNanchor_28"></a><a href="#Footnote_28" class="fnanchor">[28]</a>
-e—aos domingos,</p>
-
-<p class="right">o João de Ganfey.</p>
-
-<hr class="chap" />
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_145" id="Pag_145">[145]</a></span></p>
-
-<h2 id="IX">IX<br />
-<span class="smaller">Politiquices<a name="FNanchor_29" id="FNanchor_29"></a><a href="#Footnote_29" class="fnanchor">[29]</a></span></h2>
-
-<p>Anda coisa no ar...</p>
-
-<p>A horas mortas, nas sombras da noite, quando
-as venerandas paternidades desatam pachorrentamente
-os nastros das ceroilas e extendem as delgadas
-tibias entre a alvura dos lençoes, deliciando-se
-com a voluptuosa sensação do linho—quando os
-technicaphilas experimentam a potencia dynamica
-do coice e a rigidez do craneo contra os muros e
-bancos de praça, e as sopeiras, sedentas de luxuria
-e amor, abrem sorrateiramente a janella para sentimentaes
-gargarejos com almiscarados artilheiros—quando
-o beateiro resmunga entre bocejos, n’este
-meio cá—meio lá, da somnolencia, o ultimo <i>Paternoster</i>,<span class="pagenum"><a name="Pag_146" id="Pag_146">[146]</a></span>
-e dois amigos meus, dos respeitaveis e probos,
-depois do nocturno repasto, se entregam, extramuros,
-a indigestos estudos de anatomia... <i>patriotica</i>—n’essas
-horas da noite, repito, nota-se nas
-ruas de Valença um movimento desusado, extraordinario
-e inquietador para quem de perto conhece,
-como nós, a indole pacifica e a habitual obediencia
-dos nossos conterraneos ao toque militar das oito e
-meia.</p>
-
-<p>Cruzam-se vultos mysteriosos e sombrios, murmurando
-rapidamente palavras convencionaes; a
-frouxa luz dos candieiros projecta nas calçadas a
-sombra de longos <i>capindós</i>, de amplos <i>libertés</i> com
-que, indubitalmente, conspiradores sinistros, caras
-patibulares e alvellicas, se disfarçam e acobertam.</p>
-
-<p>Denuncia-se, emfim, a effervescencia d’uma agitação
-occulta, surda, quiçá perigosa e violentissima,
-que prepara para breve, na historia d’este brioso
-povo, acontecimentos extraordinarios e imprevistos,
-que hão-de suscitar aos pósteros um ponto de exclamação
-tão elevado, tão grande e tão alto, como o sr.
-professor de Verdoejo, como o nariz do sr. dr. Ladislau,
-ou como um chapéo siamez que, ha um bom
-quarto de seculo, eu por ahi vejo, nos dias festivos
-do anno, luzidio e repontante, contra o ether dos
-céos.</p>
-
-<p>Mercê da perspicacia e actividade do zeloso
-Commissario das Policias, o sr. Sampaio, está já conhecida
-a causa de tal agitação; e á amizade, com<span class="pagenum"><a name="Pag_147" id="Pag_147">[147]</a></span>
-que esse cavalheiro me distingue, devo eu a possibilidade
-de aqui a communicar aos meus conterraneos,
-para tranquillidade das damas nervosas, das
-donzellas chloroticas e hystericas, que se tenham inquietado
-com o que acabo de denunciar.</p>
-
-<p>Trata-se d’uma conspiração politica.</p>
-
-<p>Preparam-se traças; urdem-se planos; consultam-se
-esphinges; interrogam-se oraculos; assediam-se
-as potestades eleitoraes; arietam-se as opiniões
-renitentes; hypnotisam-se os refractarios á conversão
-desejada, e tudo com a intenção sinistra e machiavelica
-de attentar, nas proximas eleições, contra
-a soberania e omnipotencia do senhor feudal d’este
-burgo, de quem tudo-lo-manda, o muito alto, poderoso,
-e excellentissimo Senhor Administrador do
-Concelho!!</p>
-
-<p>Quem diria, senhores, o que no ultimo quartel
-do seculo teriamos de presenciar n’esta nossa terra
-tradicionalmente fiel ás instituições, cégamente obediente
-aos poderes constituidos, amante do seu Rei
-e de toda a sua Excellentissima familia (como se
-diz em Monsão)—n’esta terra onde, depois que os
-legendarios 7:500 bravos implantaram e regaram com
-o seu sangue o systema constitucional, inaugurando
-essas grotescas bambochatas, chamadas eleições,
-nunca os nossos antepassados tiveram a ousadia de
-contestar a opinião, as ideas do Senhor Administrador,
-embora ellas fossem tão extraordinarias e tão
-estramboticas como o dizer-se agora—por exemplo—que<span class="pagenum"><a name="Pag_148" id="Pag_148">[148]</a></span>
-o sr. José Narciso não acceita a legitimidade
-dos direitos do Senhor D. Miguel de Bragança; que
-o Senhor Velloso, com o seu bigode negro e a alvura
-immaculada do seu collete branco, não é, para
-as damas, o mais esbelto e airoso joven, que terras
-de Portugal téem exportado para a nossa galeria
-aduaneira, ou ainda, que o Senhor Agostinho não
-significa na politica um caudilho poderoso, um sectario
-fiel, seguro e intransigente do partido progressista—regenerador—constituinte—reformista
-esquerdista—republicano—socialista.</p>
-
-<p>Mas, perguntarão Vossas Excellencias, não faz
-Valença parte d’um circulo? Não téem os seus habitantes,
-como os d’outras terras, semelhantemente
-illustres—Fornos de Algodres, Terras de Bouro,
-Cannas de Senhorim—direitos e regalias que a
-Carta Constitucional da Monarchia concede para a
-amplissima e plenissima liberdade da opinião, em
-materia de eleições?</p>
-
-<p>Verdade é.</p>
-
-<p>Temos os mesmos direitos e á custa do mesmo
-preço...</p>
-
-<p>Pagamos religiosamente as nossas decimas, as
-nossas congruas, sem contestações, nem aggravos,
-desprezando, até, com generosa e espartana altivez
-os quebrados, os dois, tres e quatro reis—uma ninharia—que
-o Senhor Recebedor, escravo dos dictames
-da sua consciencia, á força nos quer devolver.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_149" id="Pag_149">[149]</a></span></p>
-
-<p>Mas, eu recorro á Historia, a que Thierry chama
-«espelho da verdade» e Michelet «guia do futuro»
-para affirmar e provar, <i>urbi et orbi</i>, a inflexivel immutabilidade
-das opiniões politicas da nossa terra,
-recordando factos que, fiel e genuinamente, exprimem
-e caracterisam a superior orientação, que aqui existe
-sobre os direitos do cidadão—factos que não architecto
-com materiaes da Phanthasia, nem illumino
-nas penumbras dos tempos remotos, porque são rigorosamente
-exactos e coevos da geração que passa.</p>
-
-<p>Approximava-se, ha annos, o dia em que o povo
-soberano, forte nos seus direitos, em troca do liberrimo
-voto a uma tarraçada de vinho, ou a indigestão
-de <i>calhos</i> na cantina eleitoral de Mestre Pedro
-era chamado a influir nos destinos da Patria e a metter
-a sua colherada n’essa sordida e nojenta palangãna,
-chamada <i>urna</i>, onde com putridas exhalações,
-referve e azeda a mixordia das ambições estultas,
-das vaidades irritantes, das pressões odiosas, das
-promessas fementidas, e em que os ambiciosos e especuladores—os
-Pausanias e Wilsons de todos os
-tempos—se refocillam e afocinham, disputando, á
-dentada, o appetecido osso do <i>arranjo</i>...</p>
-
-<p>Nos campanarios sertanejos agitava-se o badalo
-chamando o servo da gleba que, de roupa domingueira
-e quinzena nova, se dispunha a, mais uma
-vez, com boçal inconsciencia, conspurcar o direito
-do voto—uma das mais bellas conquistas da liberdade
-na sua sangrenta evolução atravez de seculos<span class="pagenum"><a name="Pag_150" id="Pag_150">[150]</a></span>
-de lucta, producto abençoado da laboriosissima reacção
-que n’essa enorme retorta, a França, na inferioridade
-do sudra, na degradação de ilota, nas algemas
-do escravo, na dependencia humilhante do
-servo—como elementos componentes—provocaram
-os raios chimicos da formosissima luz d’essa bemdita,
-mil vezes bemdita, alvorada de noventa e...</p>
-
-<p>Mas, perdão.</p>
-
-<p>Que diabo estou eu a escrever? <i>Ridendo</i>... Eis
-o meu programma.</p>
-
-<p>Ao largo, pois, logares communs de estafada
-Historia!</p>
-
-<p>Pensamentos tristes, arredae! Acoitae-vos e multiplicae-vos
-no cerebro do Padre Capellão para, nos
-sermões de sexta-feira santa, com que, tão auspiciosamente,
-inaugurou a sua eloquencia n’esta terra,
-nos descrever mais uma vez, com a voz embargada
-pelo sentimento, o martyrio da MÃE, as afflicções da
-MÃE a dôr da dita MÃE.</p>
-
-<p>Continuemos, pois, a rir, senhores, um riso bom,
-sonóro, vibrante e desafogado, que o riso é das poucas
-coisas que ainda escapam á rede tributaria, e
-representa, n’este arido deserto da vida, a frescura
-vivificante e consoladora do oasis.</p>
-
-<p>Ha annos, ia eu dizendo, em vesperas de eleição,
-teve um vizionario estranho a ingenuidade de
-tentar combater o sr. Administrador do Concelho,
-arrepiando-lhe a submissão dos eleitores, em determinadas
-freguezias.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_151" id="Pag_151">[151]</a></span></p>
-
-<p>O caso engatinhou ás culminancias do desafôro;
-alcandorou-se nos topes do escandalo!</p>
-
-<p>Apimentaram-se os animos; esturraram-se os genios;
-apopleticaram-se os mais sisudos e conspicuos
-habitantes da rua de S. João—esses santos varões,
-que são na nossa terra os genuinos representantes
-dos ricos-homens e infanções dos tempos medievaes,
-sobrios de costumes, austeros no porte, d’um puritanismo
-feroz; tementes a Deus, ao diabo, ao abbade
-e ao sr. Joaquim Apollinario.</p>
-
-<p>Reuniram-se, em conclave mysterioso, os mais
-valentes e poderosos homens d’armas do partido governamental—o
-unico, n’estes reinos, legalmente
-constituido.</p>
-
-<p>Mensageiros esbaforidos chegavam, tressuando,
-de toda a parte com informações sobre os manejos
-do inimigo e, praça aberta á discussão, depois de
-grave ponderação e demorada concentração dos espiritos,
-sahiu d’aquellas venerandas cabeças o plano
-de combate que, para efficaz execução, para infallivel
-resultado, urgia communicar immediatamente,
-sem demoras, nem hesitações, a um rico-homem de
-Coura.</p>
-
-<p>—Ora, n’aquella epocha, se bem que já estivesse
-iniciado o caminho das grandes descobertas geographicas
-e scientificas, que constituem a epopeia gloriosa
-da humanidade, e se conhecessem já, a America,
-a Africa, o phonographo, os camarões, o xarope
-do dr. Gibert e o sabão do sr. Moutinho; existindo<span class="pagenum"><a name="Pag_152" id="Pag_152">[152]</a></span>
-já Pasteur, Jenner, João da Gaiteira, Edison, os
-srs. Zé da Rosa e Roldão; se bem que a Sciencia,
-em todos os seus ramos, estivesse consideravelmente
-aperfeiçoada, como por exemplo, a Jurisprudencia
-em que, no Direito penal, Lombroso, Garofalo, Aubry,
-attenuavam a responsabilidade criminal, combatendo
-essas brutaes penas da forca, da guilhotina,
-do pôtro, e substituindo-as, quando o crime tinha as
-revoltantes particularidades de Pantin, de Fuencarral,
-ou de White-Chapel, por uma audição, mais ou
-menos demorada, do drama do sr. C. Barros, ou
-d’um discurso do sr. Presidente da Camara—n’essa
-epocha, repito, ainda o sr. Miguel Dantas não tinha
-inventado Coura, a preciosa povoação, que tanto
-deu que matutar aos srs. Fontes e Bismarck, nos
-procellosos dias da revolução de Bico.</p>
-
-<p>A Mesologia estava, ainda, no estado rudimentar
-e não tinha definido e aproveitado a extraordinaria
-influencia procreadora do clima, que n’aquellas uberrimas
-paragens, melhor do que a Physiologia de Debay,
-do que qualquer intervenção abbacial, ou leopoldica,
-mantem nas robustas camponezas uma fecundidade
-tal que, annullando por completo as theorias
-de Fourier, na resolução do importante problema
-do pauperismo, estabelece para a pittoresca povoação
-a reputação invejavel e, sobremodo honrosa, de
-fabrica permanente de amas para bebés.</p>
-
-<p>Coura, emfim, meus senhores, a indispensavel
-Coura, estava ainda no casulo das sociedades modernas,<span class="pagenum"><a name="Pag_153" id="Pag_153">[153]</a></span>
-na pevide das povoações minhotas, no caroço
-dos baluartes eleitoraes e não podia, portanto, alli
-influir a civilização como agora, em que o luxo das
-edificações principia a abandonar o colmo na cobertura
-das casas, substituindo-o por umas coisas vermelhas
-e arqueadas chamadas telhas, e em que ha
-Correio e Telegrapho, com um movimento tão extraordinario
-e assombroso, que a gente guinda-se aos
-mastaréos da popularidade, trepa aos carrapitos de
-um semi-deus, escarrancha-se na celebridade do proprio
-Boulanger se, n’um só dia, recebe da familia
-duas cartas e um telegramma!!</p>
-
-<p>Mas... era necessario lá mandar um proprio,
-unico recurso d’aquelles felizes tempos, em que estavamos
-livres da Companhia real, e podiamos, sem
-despeza de testamento, nem afflicções de quem está
-nas garras da Morte, tentar qualquer viagem.</p>
-
-<p>E tal era a urgencia, a imprescindibilidade da
-communicação, que o portador devia ir a cavallo!</p>
-
-<p>Ora, esta urgencia, formulada na intervenção do
-rocinante e lançada á discussão na maior effervescencia
-do furôr opposicionista, despertou no espirito
-dos mais sensatos e perspicazes ricos-homens e abbades
-um subito resfriamento de enthusiasmo.</p>
-
-<p>Perceberam o quer que fosse de sombrio e tetrico,
-que baixou a zero a ebullição tumultuosa da
-sua dedicação partidaria.</p>
-
-<p>Como o Mane, Thecel, Phares, que entupiu Balthazar,
-ou a sombra de Banco que engasgou Macbeth,<span class="pagenum"><a name="Pag_154" id="Pag_154">[154]</a></span>
-ou a estatua do Commendador, que foi para o D. Juan,
-de Molière, o que o vulto do capitão Teixeira de
-Moraes foi em noite procellosa de inverno, nas cercanias
-do solar da Balagota, para o Sr. Sampaio<a name="FNanchor_30" id="FNanchor_30"></a><a href="#Footnote_30" class="fnanchor">[30]</a>
-a lembrança do cavallo aterrou os mais ousados
-d’aquelles ricos-homens, que representavam, no seu
-conjuncto, feudos e rendas superiores a muitas centenas
-de mil cruzados.</p>
-
-<p>Empallideceram, subitamente, as faces até alli
-purpurinas e rubras de excitação; baixaram-se, evitando-se,
-os olhos, até alli coruscantes de furôr; cerraram-se
-os labios, como se uma pressão de muitas
-atmospheras actuasse brutalmente sobre as maxillas.
-Os mais ousados coçavam nervosamente a região
-occipital...</p>
-
-<p>É que ao longe, lá muito ao longe, na sombra do
-magro rocinante, percebiam elles, já, as formas indecisas
-e vagas do burriqueiro, reclamando, com humilde
-postura—vergado o corpo n’aquelle respeitoso
-angulo de 65° com que o nosso homem, o supracitado
-Sr. Sampaio fala, cheio de blandicias e ternuras,
-ao Sr. Dr. Brito—o meio pinto da tabella para
-uma viagem a Coura.</p>
-
-<p>Meio pinto, senhores!</p>
-
-<p>Menos do que o Sr. Seixas ganhava n’uma caixa
-de amendoas, <i>quando mostrava a factura</i>; coisa de<span class="pagenum"><a name="Pag_155" id="Pag_155">[155]</a></span>
-dois conselhos do Dr. João Cabral; meia dose florindica,
-pagando á Rotschild; o lucro do sr. Fontoura
-n’uma tisana de treze vintens.</p>
-
-<p>Meio pinto, senhores!</p>
-
-<p>..............................</p>
-
-<p>Rapida foi a dissolução do conclave. Pretextos
-futeis, encapotados com razões imprevistas, fizeram
-debandar, como corvos açoitados pelo furacão, os
-graves maioraes da politica concelhia.</p>
-
-<p>Foi o mensageiro a Coura, e durante muito tempo,
-nas altas e transcendentes concepções philosophicas,
-em que o animalejo constantemente se absorvia—(indecifraveis
-para nós, os mortaes, como a opinião
-politica do Sr. Vigario Geral, ou como a origem do
-subito rejuvenescimento do nosso muito querido Sr.
-Sampaio ao ler nos jornaes a palavra <i>Cordão</i>)—entrou
-a influir grave ponderação sobre o alcance dos
-decretos da Providencia, que se apraz em confiar de
-um misero sendeiro a salvação d’um partido, como
-do nada, do pó, do humus empapado da chuva, que
-demorou Grouchy, forjou o camartello possante, que
-em Waterloo esmigalhou o pedestal d’esse feroz
-açoite da Humanidade, chamado Napoleão.</p>
-
-<p>..............................</p>
-
-<p>Creio inutil dizer que, depois da eleição, para a
-gamella do burriqueiro havia mais um commensal...
-um cão!<a name="FNanchor_31" id="FNanchor_31"></a><a href="#Footnote_31" class="fnanchor">[31]</a></p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_156" id="Pag_156">[156]</a></span></p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Prosigamos n’este escabroso trilho da Historia
-em que, para fiel e rigorosa exposição dos factos, temos
-de executar os milagres do equilibrio de Blondin,
-ou de Leonne Doré, entre os exaggeros dos informadores
-apaixonados e as erroneas reflexões de
-commentadores pouco escrupulosos.</p>
-
-<p>Serve-nos de maromba a consciencia e oxalá ella
-nos guie até ao fim d’esta penosa caminhada, atravez
-da original e curiosissima politica da nossa
-terra<a name="FNanchor_32" id="FNanchor_32"></a><a href="#Footnote_32" class="fnanchor">[32]</a>.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Indubitavelmente, o dia 22 de Novembro de 1879
-é um dos mais memoraveis para os habitantes d’esta
-antiga e mui nobre povoação.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_157" id="Pag_157">[157]</a></span></p>
-
-<p>Essa data deve estar indelevelmente gravada no
-livro d’oiro dos grandes acontecimentos historicos;
-insculpida, a traços diamantinos, na epopea das grandes
-solemnidades de Valença, ao lado das procissões
-de S. Sebastião e <i>Corpus Christi</i>, grotescas mascaradas,
-com que no Minho se avivam as descrenças,
-digo, as crenças, a ociosidade, a pasmaceira, o ar
-marcial e aguerrido das tropas, os namoros, as bambinelas
-dos armadores e as transacções do commercio,
-na sua importantissima secção de: birimbaus,
-peixe frito e... limonada de cavallinho.</p>
-
-<p>Foi um dia festivo, solemne; d’aquelles em que o
-caiado das casas nos parece mais branco; a porcaria
-das ruas menos escandalosa; a atmosphera mais diaphana;
-o verde das campinas mais vivo; a abobada
-celeste mais limpida; o aroma das flôres mais penetrante;
-a cara dos amigos mais risonha—um d’estes
-dias, em que a gente se sente mais feliz, com menos
-dinheiro e mais tentações, e em que as fibras do coração
-que movem o badalo do enthusiasmo, bruscamente
-se agitam, como se ouvissemos o hymno da
-Carta, um discurso do sr. conselheiro Silvestre Ribeiro,
-ou como se os canhões da Coroada, os sinos
-de Santo Estevão, a bandeira real desfraldada aos
-quatro ventos, celebrassem festivamente o anniversario
-da Restauração!</p>
-
-<p>Acotovelava-se nas ruas uma multidão expansiva,
-ruidosa, com a alegria a pinotear na mioleira;
-com todos os macaquinhos do sr. Palhares, em borga<span class="pagenum"><a name="Pag_158" id="Pag_158">[158]</a></span>
-infernal no sotão; expondo por ahi, escandalosamente,
-a habitual gravidade, de saia arregaçada e peitos
-descobertos, em desenfreado e lascivo minuete
-com as posições officiaes.</p>
-
-<p>Para exprimir tudo, emfim, havia no intimo de
-cada um, tanta satisfação e tanta alegria, como hoje
-sentiria o sr. Joaquim se recebesse auctorisação do
-Ministro do Reino para obsequiar o dr. Cabral com
-todas as trombetas de Josaphat, sopradas por innumeras
-legiões d’aquelles anjos e seraphins de bochechinha
-gorda e purpurina, que por ahi vemos em S.
-Estevão,—embora, para esse justissimo desforço de
-cidadão offendido nos seus direitos, de Juiz da Senhora
-da Saude, affectado nas suas crenças, tivesse de
-arredar, das suas arcas de nababo, com arrebatado
-impulso de perdulario enthusiasmo, coisa de doze
-vintens—captivos a troco!</p>
-
-<p>N’esse dia, meus senhores, era restituido o batalhão
-de caçadores 7 a Valença, chyprado ao berço
-da monarchia, á terra dos condes, dos conegos, das
-cruzes e dos cutileiros, por Sua Excellencia, o sr.
-Ministro da Guerra.</p>
-
-<p>Nada faltou no programma das recepções festivas:
-coroas de loiros; discursos do sr. Presidente da
-Camara; mensagens de congratulação; odes e alexandrinos
-do vate Aurelio Victor Hugo; bailes; regabofe
-nos presidios; bodo aos pobres; arcos de
-triumpho forrados a gazetas; musica, foguetes e luminarias.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_159" id="Pag_159">[159]</a></span></p>
-
-<p>O enthusiasmo estonteava os cerebros; alcoolizava
-os espiritos; absinthava os animos.</p>
-
-<p>O sr. Francisco Durães, homem sério, pacato e
-já na escala para camarista, deitava foguetes na muralha,
-como qualquer <i>careca</i> sertanejo em arraial da
-festeira Urgeira.</p>
-
-<p>Um camarista illustre luctava duas horas, para
-enfiar no par de luvas, que por engano lhe tinham
-vendido para a mesma mão—o dedo <i>mata-parasitas</i>
-na casa do <i>mindinho</i>.</p>
-
-<p>O sr. Abilio, nos paroxysmos de um enorme enthusiasmo,
-apparecia de gravata branca, casaca, no
-pé direito uma bota de polimento, no esquerdo um
-chinelo de liga, representando a Associação Artistica!</p>
-
-<p>E no meio de todo este contentamento, nas expansões
-de todo este delirio, um unico nome soava, tangido
-constantemente pelo enthusiasmo popular, nas
-praças, nas ruas, nas lojas, nos clubs,—nome que parecia
-ser o fóco convergente para todas aquellas ruidosas
-manifestações, nome que n’esse dia tinha mais
-prestigio que o da Senhora do Faro, nome aureolado,
-nome querido de—Elyseu de Serpa!</p>
-
-<table>
- <tr>
- <td>Victoriava-se</td>
- <td>Elyseu de Serpa</td>
- </tr>
- <tr>
- <td>Discursava-se sobre</td>
- <td>Elyseu de Serpa</td>
- </tr>
- <tr>
- <td>Telegraphava-se a</td>
- <td>Elyseu de Serpa</td>
- </tr>
- <tr>
- <td>Rezava-se a</td>
- <td>Elyseu de Serpa</td>
- </tr>
-</table>
-
-<p class="noindent">e Clero, Nobreza e Povo, fraternizando, hombreando,
-felicitando-se, davam largas á plenitude da sua gratidão
-a Elyseu de Serpa.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_160" id="Pag_160">[160]</a></span></p>
-
-<p>Jurava-se aos deuses, pela nossa consciencia, assim
-dardos de Jupiter nos partissem, se durante a
-nossa existencia, embora ella attingisse a longevidade
-de um Mathusalem, que viveu, segundo diz a
-Biblia, 900 annos (o que eu acredito) outro homem
-se sentasse nas cadeiras de S. Bento com o nosso
-mandato, porque Valença tinha contrahido com elle
-uma divida sagrada, immorredoira, imperecivel, immensa,
-de profunda, eterna e vivissima gratidão.</p>
-
-<p>E se alguem, mais pratico em coisas do mundo se
-atrevesse a revelar pouca confiança na estabilidade
-d’aquelles fervorosos protestos, recordando que já lá
-vae o tempo dos Eros, dos Scevolas, dos Martins de
-Freitas, dos Egas, etc.,—oh Christos de Villar!—corria
-grave risco de ser lançado aos fossos, empalado
-no pau da bandeira, ou esquartejado pelo primeiro
-magarefe, que por ahi apparecesse, em ociosa
-disponibilidade.</p>
-
-<p>Pois, meus senhores, ahi vae a Moral do conto
-mais um tento para a marca preta e um documento
-para a nossa historia politica. Poucos mezes depois,
-mettia o sr. dr. Lopes o seu nariz na Administração
-do Concelho e aquelle grande vulto (não o do nariz)
-absorvia, completamente, todos os enthusiasmos que
-descrevi!</p>
-
-<p>A urna entrou mais uma vez no templo, para servir
-de leito nas sensuaes orgias do voto com a immoralidade
-e o sr. Elyseu de Serpa, o mesmo, em
-carne e osso, a que me referi—obtinha em todas as<span class="pagenum"><a name="Pag_161" id="Pag_161">[161]</a></span>
-assembleas eleitoraes do nosso concelho:—cinco votos!</p>
-
-<p>Ora, um povo que denuncia tão vehemente firmeza
-de convicções e de sentimentos, está—digam
-lá o que disserem—reservado para grandes destinos.</p>
-
-<p>Abençoado torrão este, da Patria minha!</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Com os argumentos irrefutaveis, que os factos
-nos fornecem, estudamos até aqui a politica de Valença
-nas suas espheras mais elevadas, isto é, na
-villa e entre as camadas illustradas; e, indubitavelmente,
-não existe no nosso espirito outro sentimento,
-que não seja o baseado em tristissimo desalento...</p>
-
-<p>Vejamos agora, em breves palavras, antes das
-considerações geraes, o que o povo imagina e sabe
-de toda esta engrenagem que lhe rouba os filhos,
-dinheiro e... os votos.</p>
-
-<p>Ha annos, Ramos Paz, que aqui dignamente exerceu
-as funcções de Sub-Inspector de Instrucção, presidia
-a uma conferencia pedagogica nos Paços do
-Concelho. Extranhando as theorias apresentadas por
-um professor, sob a intervenção da auctoridade administrativa
-na legislação municipal, relativa ao professorado,
-perguntou alizando aquellas grandes barbas
-á D. João de Castro:</p>
-
-<p>—Então quem nomeia os professores?</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_162" id="Pag_162">[162]</a></span></p>
-
-<p>—O Sr. Administrador—respondeu o homem.</p>
-
-<p>—Ora essa! Então as Camaras?</p>
-
-<p>—As Camaras são tambem nomeadas pelo sr.
-Administrador—confirmou ainda, com a má interpretação
-que dera á pergunta.</p>
-
-<p>Meditemos, senhores.</p>
-
-<p>De feito; na ignorancia d’aquelle pedagogo havia
-uma grande verdade, que nós, rigorosamente, não
-podemos refutar.</p>
-
-<p>Luiz XI disse uma vez ao Parlamento, levantando
-o chicote:</p>
-
-<p>—<i>L’etat c’est moi!</i></p>
-
-<p>Rodrigues Sampaio, não ha ainda muito tempo,
-que bradava ao paiz:</p>
-
-<p>«O unico poder que entre nós existe é o Rei!»</p>
-
-<p>Nós poderemos plagiar Luiz XI, Rodrigues Sampaio
-e o pedagogo, asseverando:</p>
-
-<p>N’este concelho de Valença ha só uma força,
-uma vontade, um poder:—o Senhor Administrador<a name="FNanchor_33" id="FNanchor_33"></a><a href="#Footnote_33" class="fnanchor">[33]</a>—quer
-o represente a taciturnidade esphingica
-do sr. Dr. Lopes, ou a gulliverica estatura do
-sr. Dr. Ladislau, ou a inoffensiva bandido-mania do
-sr. Dr. Malheiro, ou a feroz iconoclastia do sr. Dr.
-Cabral, ou... a paz d’alma e de corpo do sr. Dr.
-Brandão-Malheiro-Lopes da Cunha-Cabral!</p>
-
-<p>Abençoado torrão este, da Patria minha!</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_163" id="Pag_163">[163]</a></span></p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Historiamos até aqui. Philosophemos agora, porque
-a Historia sem a Philosophia pouco vale e não
-póde servir, como disse Michelet, para guia do futuro.</p>
-
-<p>É evidente que não temos organização pulmonar,
-que desafogadamente possa funccionar na atmosphera
-das nossas liberdades civis.</p>
-
-<p>É evidente que, seja qual fôr o proceder da auctoridade
-administrativa, só ella póde, quer e manda;
-e que, no campo a que hoje Vossas Excellencias são
-chamados—as eleições—, ella exerce para qualquer
-opposição o mesmo terrifico effeito que, em dilatado
-feijoal, produz para os pardaes e pardocas, o espantalho
-armado com dous rabos de vassoira em cruz,
-cartola velha no vertice e casacão enfiado nos braços,
-com as mangas pendentes e á mercê do vento.</p>
-
-<p>E, evidenciado isto, para que precisamos nós de
-deputados, seja qual fôr a chancella que tragam? Que
-temos nós com o que vae por esse paiz, com o nariz
-do sr. Beirão, com a marreca do sr. Hintze,
-com a somnolencia do sr. Henrique de Macedo, ou
-com os chouriços do sr. José Luciano?</p>
-
-<p>Que necessidade temos nós de fazer perder a
-gravidade aos Ministros, pondo-os aos saltinhos de
-contentes, quando o sr. Zagallo, com os seus Mentores<span class="pagenum"><a name="Pag_164" id="Pag_164">[164]</a></span>
-e correligionarios lhes officiam, annunciando
-que... deliberaram apoiar a marcha do Governo—ou
-que diabo lucramos com a mudança de ceroilas,
-a que os obrigamos, enviando uma representação dos
-tres mil negociantes da terra<a name="FNanchor_34" id="FNanchor_34"></a><a href="#Footnote_34" class="fnanchor">[34]</a> contra a Companhia
-vinicola, communicando, pelo telegrapho, que
-estão fechadas as quitandas de Valença e que vate
-Aurelio Victor Hugo fala ás massas, em imponente
-e assaz concorrida reunião politica?</p>
-
-<p>Senhores! Por Deus, simplifiquemos tudo isto; todas
-estas inuteis formalidades, que são proprias para
-terras civilizadas. Fazem perder tempo, e tempo é
-dinheiro, como diz o bretão.</p>
-
-<p>Qual é, em ultima analyse, o regimen em que vivemos?
-O feudal.</p>
-
-<p>Adaptemo-nos, pois, ao que elle nos estabelece e
-concede. Ahi vae um alvitre:</p>
-
-<p>Sabem Vossas Excellencias o que eram as antigas
-<i>behetrias</i> da epocha medieva: povoações que tinham
-o direito de escolher o senhor, que viviam independentes
-e de portas cerradas, até, aos senhores estranhos.
-Aqui estava um modelo, mas lá vae outro, talvez
-preferivel.</p>
-
-<p>Na vertente meridional dos Pyrineus ha uma
-amostra de estados autonomos—a republica de Andorra.</p>
-
-<p>Tem approximadamente, sem escandalosa differença,<span class="pagenum"><a name="Pag_165" id="Pag_165">[165]</a></span>
-a população d’este Concelho. Tem legislação
-civil, militar e religiosa. Tem Governo civil e militar;
-Alfandega, Repartições de Fazenda; Camara;
-Junta de Parochia; o seu Cordão sanitario de quando
-em quando; lazareto com respectivas rações; reforma
-de matrizes; irmandades e confrarias; isto é,
-nicho para todos os pretendentes.</p>
-
-<p>Ora aqui está o que nos serve. É uma organização
-baratinha e fica em casa.</p>
-
-<p>Proclamemos hoje mesmo a nossa independencia!
-Behetriemo-nos! Andorriemo-nos! Entregue-se o poder
-a um só homem, que se denomine Rei, Imperador,
-Presidente, Syndico, Regulo, Papa, Bispo, Soba
-ou Cabinda!</p>
-
-<p>Precisamos, verdade é, d’uma auctoridade, para
-regular as nossas questões e moderar as nossas exigencias.</p>
-
-<p>É necessario que, quando alguem se lembrar de
-dizer, que as aguas da fonte de S. Sebastião pertencem
-á Camara, haja quem garanta as reclamações
-justissimas com que o sr. Joaquim prova á evidencia
-que são suas, muito suas, embora não se recorde
-da gaveta onde conserva as provas, o que póde
-succeder a toda a gente; quando a vizinhança do sr.
-C. Dias, incluindo a Excellentissima Camara, continue
-a esticar a guita dos limites das suas propriedades,
-avançando sobre a que aquelle bom e innocente
-amigo possue no Caes, haja quem faça respeitar os
-seus direitos e impedir, que nas terras da Saibreira<span class="pagenum"><a name="Pag_166" id="Pag_166">[166]</a></span>
-se não possa continuar a observar o extraordinario
-effeito da dilatabilidade da Materia sob a acção dos
-raios solares, phenomeno alli tão evidente e precioso
-para o estudo das revoluções geologicas do globo;
-quando o sr. Agostinho se lembrar de mandar vir
-do extrangeiro casas feitas para os seus terrenos,
-haja quem lhe apresente esse doirado codigo, que é
-o palladio das nossas liberdades civis—o regulamento
-do Senhor Conde de Lippe dado ás gentes em
-1700 e tantos.</p>
-
-<p>É preciso, emfim, um braço e uma cabeça.</p>
-
-<p>E quem devemos escolher?</p>
-
-<p>Quando me lembro que estou n’uma terra que
-não quiz o legado do Conde de Ferreira; n’uma
-terra em que, se a gente tiver um nariz, como os
-dos srs. Cunha ou Ladislau, e se collocar em noite
-de eclypse, sobre o telhado da sua casa, para espreitar
-a lua, ou escutar a harmonia das espheras, vem
-logo o estalão do Conde de Lippe verificar, se dos
-cabellinhos da venta á soleira da porta existe, realmente,
-maior distancia de que 4 metros, 5 decimetros
-e 6 millimetros e meio do regulamento;—eu,
-meus senhores, para o poder supremo da nova organização
-politica que proponho, só me lembro de
-dois homens, que tenho a honra de apresentar á
-vossa apreciação e para os quaes, desde já, peço o
-vosso suffragio, porque estou plenamente convencido
-de que hão-de satisfazer ás exigencias e aos deveres
-da actividade, firmeza de convicções e orientação<span class="pagenum"><a name="Pag_167" id="Pag_167">[167]</a></span>
-politica, que a vossa orientação politica, a vossa
-firmeza de convicções e a vossa actividade lhes
-impoem.</p>
-
-<p>Eil-os:</p>
-
-<p class="center">O Fileiras,<br />
-ou o<br />
-Cachimbo dos melros.</p>
-
-<p class="smaller hanging">Em 20 de outubro de 1889.<br />
-Dia da eleição de deputados.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_168" id="Pag_168">[168]</a></span></p>
-
-<hr class="chap" />
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_169" id="Pag_169">[169]</a></span></p>
-
-<h2 id="X">X<br />
-<span class="smaller">Violetas</span></h2>
-
-<p>As imagens até aqui reflectidas no foco da minha
-lente ficam delevelmente estereotypadas n’essas
-paginas, porque é indeciso o traço, debil o colorido,
-irregular o contorno e imperfeitissimo o relevo.</p>
-
-<p>Falta ahi a luz indispensavel á nitida percepção
-de todas as minucias das individualidades sociaes,
-que a minha critica envolve, porque não é dado a
-espiritos vulgares o emittil-a.</p>
-
-<p>Encontro na expressão escripta as difficuldades
-caracteristicas d’essa lesão cerebral, que os physiologistas
-incluem na classe das <i>aphasias motoras</i>, sob
-o nome de <i>agraphia</i>; e, se até aqui deplorei as
-consequencias d’essa lesão, que se oppõe á reproducção
-fiel das minhas impressões sobre a sociedade<span class="pagenum"><a name="Pag_170" id="Pag_170">[170]</a></span>
-em que vivo, sincero é o meu pesar, reconhecendo-me
-incapaz de avivar a imagem d’um vulto, que já
-desappareceu sob a loisa dos tumulos, mas que deixou
-luminoso rasto de bondade e de honradez nas
-sombrias atmospheras onde, implacavel e feroz, se
-trava a eterna lucta pela existencia.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Schopenhauer filia-se n’essa eschola philosophica,
-que poderemos denominar <i>pessimista</i>, em que sarcasticamente
-se dissecam as fibras do coração humano,
-negando-se-lhe sentimentos affectivos e a possibilidade
-de alimentar aspirações puras e nobres.</p>
-
-<p>Na fria analyse, que o philosopho allemão nos
-apresenta do homem na sociedade e na familia, resaltam
-os exaggeros d’um espirito sombrio, em que
-poderosamente influiram a acção morbida de temperamento
-e a acção do <i>meio</i>: mas ha tambem nas
-suas paginas grandes verdades que nós, dissipada a
-má impressão originada na rudeza da phrase, intimamente
-não podemos refutar.</p>
-
-<p class="tb">«<i>O nosso mundo civilizado não passa de uma
-grande mascarada. Encontram-se n’elle cavalleiros,
-frades, soldados, doutores, advogados, padres, philosophos,
-que mais sei eu? Mas não são o que representam
-ser; são simples mascaras, debaixo das quaes se<span class="pagenum"><a name="Pag_171" id="Pag_171">[171]</a></span>
-occultam, a maior parte das vezes, especuladores de
-dinheiro.</i></p>
-
-<p><i>Um toma, assim, a mascara da justiça para
-melhor ferir o seu semelhante; outro, com o mesmo
-fim, escolheu a mascara do bem publico e do patriotismo;
-um terceiro a da religião, da fé immaculada.</i></p>
-
-<p><i>Para toda a especie de fins secretos, mais de um
-se occultou sob a mascara da philosophia, como tambem
-sob a da philanthropia. Ha tambem mascaras vulgares,
-sem caracter especial, como os dominós nos bailes,
-e que se encontram por toda a parte; estes representam
-a rigida honestidade; a polidez; a sympathia
-sincera e a amizade fingida.</i>»</p>
-
-<p>..............................</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Ora, observando a nossa actual sociedade, n’esta
-epocha de egoismo, de ambições, de illegalidades,
-com que por ahi se conspurcam e desprestigiam as
-mais nobres instituições,—n’esta epocha de Wilsons,
-de Hersents, de bonds e de processos <i>da fava</i>—poderemos,
-com intima convicção, acoimar de exaggeradas
-essas linhas do pensador allemão?</p>
-
-<p>A consideração social chatina-se vilmente nas
-Bolsas, onde se expõe á venda com as inscripções
-de tres por cento. Os titulos do governo teem, como
-<i>bonus</i>, uma certa maquia de respeito publico; por<span class="pagenum"><a name="Pag_172" id="Pag_172">[172]</a></span>
-consequencia, o valor d’este está na razão directa da
-quantidade total, que cada um possue dos outros.</p>
-
-<p>Quem tiver duzentos contos, póde ser um larapio
-e um canalha; mas, com certeza, é um homem de
-consideração.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Antonio da Silva, aquelle carpinteirito da Esplanada,
-ganhava dezoito vintens por dia; sustentava
-mulher e tres filhos.</p>
-
-<p>Adoeceu: contrahiu dividas no mercieiro, na botica
-e na padaria; deixou de pagar ao senhorio; pôz
-no <i>prego</i>, a pataco por corôa ao mez, o relogio de
-prata, os brincos da mulher, os cobertores do inverno
-e a ferramenta.</p>
-
-<p>Esteve dois mezes de cama.</p>
-
-<p>Voltou fraco e abatido para o trabalho. Tentou
-desempenhar-se. Fazia serões. Não poude pagar
-uma divida.</p>
-
-<p>Os credores perseguiam-no.</p>
-
-<p>As mulheres e os filhos não tinham roupa; tiritavam
-e... choravam.</p>
-
-<p>Um crédor requereu a penhora; levaram-lhe a
-cama.</p>
-
-<p>Na alma d’aquelle homem havia um inferno porque
-era honrado—o pateta!—e era doido pela familia.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_173" id="Pag_173">[173]</a></span></p>
-
-<p>Um dia, collou a massa encephalica nas paredes
-da latrina com a balla do rewolver.</p>
-
-<p>—Um criminoso—disse o abbade.</p>
-
-<p>—Um caloteiro—disseram os do pataco por mez.</p>
-
-<p>—Um pobre diabo—responsaram as almas piedosas.</p>
-
-<p>—Um pateta de menos—resmungou a sociedade.</p>
-
-<p>A Santa Madre Egreja, toda Caridade e Amôr,
-recusou-lhe o latim da padralhada—esse latim tão
-sonoro, tão vibrante, tão repenicado, quando responsa
-o negreiro e o ladrão de gravata, que deixaram
-quarenta moedas, para missas de pinto a duzia.</p>
-
-<p>Foi enterrado no fosso, ao lado d’uma pileca do
-Guilherme; como responso, teve uma enfiada de pragas
-dos coveiros, porque estava realmente muito frio
-e ainda não tinham <i>matado o bicho</i>.</p>
-
-<p>—<i>Oh estupor—disse o Coruja—podias arrebentar
-a pinha no verão. Não tinhas agora tanto frio!</i></p>
-
-<p>..............................</p>
-
-<p>Á mesma hora, Henrique de tal, Conde de Burnay,
-mandava <i>photographar</i> os bonds do sr. Hersent
-e mais de trezentas carruagens com fidalgos, bispos,
-padres, conegos e escorropicha-galhetas varios, acompanharam
-até aos Prazeres o cadaver d’um beneficiado
-na <i>falcatrua hersentica</i>, portuguez abrazileirado,
-que mantinha relações illicitas com a irmã—o que
-era publico e notorio na freguezia, alli para os lados
-de Penafiel—e que, n’uma terrifica visualidade do<span class="pagenum"><a name="Pag_174" id="Pag_174">[174]</a></span>
-inferno, apartára trezentos mil reis, adquiridos n’esse
-infamissimo trafico de carne humana, para missas
-cantadas e por cantar.</p>
-
-<p>Viremos folha...</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>—Mas, Senhor Zinão,—diz Vossa Excellencia—isso
-é velho, é sediço, é estafado e massador...</p>
-
-<p>—Esta jeremiada veia a lume, meu Senhor, porque
-no meio da <i>reles pataqueirice</i> da nossa actual
-sociedade onde pullulam os Iagos, os Tartufos, os
-Pausanias, os Wilsons, os Tamandarés—toda essa
-corja de falsarios, de perjuros e de traidores, que
-Dante implacavelmente esfarrapa e esphacela com
-as torturas do nono circulo—a gente póde soltar
-uma exclamação de surpreza tão ruidosa e tão violenta,
-como aquella trombetada de Rolando na batalha
-de Roncesvalles, quando encontra um homem,
-caminhando sempre, sem tergiversar, no caminho da
-Honra e da Dignidade.</p>
-
-<p>Consagro estas linhas á memoria d’um valenciano,
-que não deixou fortuna nem filhos governadores civis,
-ou deputados, que possam premiar esta homenagem
-com um naco do orçamento, como é da praxe
-pedir e conceder.</p>
-
-<p>Não me conhece a familia que elle deixou; e não
-é, portanto, o vil interesse, ou a lisonja porca, ou a<span class="pagenum"><a name="Pag_175" id="Pag_175">[175]</a></span>
-torpissima adulação, que actuam na minha penna,
-obrigando-a a vergar-se, a perder a inflexibilidade
-com que, até aqui, tem fustigado muita importancia
-ridicula e chata.</p>
-
-<p>Ninguem, no concelho de Valença, até hoje adquiriu
-maior estima e maior consideração do que esse
-homem.</p>
-
-<p>Ninguem, como elle, poderia, mais proveitosamente,
-especular com o affectuoso prestigio, que o
-seu nome alcançou por essas freguezias.</p>
-
-<p>Era, porém, nobilissimo o seu caracter para que
-lhe permittisse manchar o nome n’esse bordel de
-pantomineiros e de histriões que por ahi especulam
-com a ignorancia do aldeão, fazendo do voto degrau
-para chegarem á mesa do orçamento e poderem roer
-as codeas babadas, que os Gargantuas politicos abandonam,
-ou lamber os productos do vomito, que a orgia
-e a indigestão provocam.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Esse homem morreu pobre; não é vergonha dizel-o;
-mas levem o aldeão acolá, ao cemiterio, mostrem-lhe
-todos esses mausoleus de marmore e de granito,
-e perguntem-lhe qual é o nome que, ainda hoje,
-mais affectuosamente vibra na sua alma rude, mas
-sincera.</p>
-
-<p>Dizem que as mulheres de Sparta, fazendo ajoelhar<span class="pagenum"><a name="Pag_176" id="Pag_176">[176]</a></span>
-os filhos sobre o tumulo dos grandes heroes, alli
-lhes referiam os feitos gloriosos que insculpiram os
-seus nomes no livro d’oiro da Patria.</p>
-
-<p>Era assim que ellas preparavam a vigorosa musculatura
-dos futuros cidadãos da grande republica.</p>
-
-<p>Como ellas, <i>valencianos dignos</i>, quando a razão
-dos vossos filhos estiver preparada para receber os
-germens, que mais tarde devem fructificar na Honradez,
-apontae-lhes para essa pagina que, por escrupuloso
-respeito e por enthusiastica veneração, separo
-das outras, onde escouceiam ridiculos.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Zinão descobre-se, perante o nome que alli vêdes.</p>
-
-<hr class="chap" />
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_177" id="Pag_177">[177]</a></span></p>
-
-<h2 id="XI">XI<br />
-<span class="smaller">Os Quadros da Collegiada</span></h2>
-
-<p>A Arte nasceu d’esta nobilissima aspiração do
-espirito humano para, na investigação do Bello, dar
-á Materia a fórma das suas idêas e das suas crenças.</p>
-
-<p>O desenvolvimento intellectual de um povo e a
-sua influencia na obra da Civilização, podem estudar-se
-nos diversos productos, em que se reproduziu o
-genio dos seus artistas.</p>
-
-<p>Aos <i>dolmens</i> e <i>menhires</i>, aos toscos instrumentos
-das edades paleonlithica e neolithica succedem essas
-colossaes construcções das margens do Nilo, as pyramides,
-os templos, as esphinges; os bronzes, as
-loiças e esmaltes, já de notavel perfeição, dos antigos
-egypcios.</p>
-
-<p>Surge, depois, o povo helleno com a sua admiravel<span class="pagenum"><a name="Pag_178" id="Pag_178">[178]</a></span>
-architectura; com as formosissimas e inimitaveis
-estatuas de Phidias e de Lysippo; com a Venus de
-Milo e o Apollo de Belveder; com as formosas telas
-de Zeuxis e de Parrhasio; com todas as maravilhas,
-emfim, d’essa assombrosa civilização tão alta e tão
-brilhante, que ainda depois de passados vinte seculos,
-quando no horisonte despontavam os primeiros
-clarões da ridentissima alvorada—a Renascença—era
-ainda d’ella que, para geniaes concepções, recebiam
-inspiração e luz esses divinos artistas, que se
-chamaram Vinci, Raphael, Ticiano, Carrachio e Miguel
-Angelo.</p>
-
-<p>Com a Renascença accelerou-se a marcha evolutiva
-da Civilização; e o espirito do homem, depois
-de enriquecer as sciencias com preciosas descobertas,
-de desenvolver as industrias com novas e utilissimas
-applicações, crystallisa-se em fulgidas creações
-onde, com toda a nitidez de contornos, com toda
-a opulência de colorido, com toda a fidelidade de
-cambiantes e com todos os esbatidos do iris se reproduzem
-as mais extraordinarias maravilhas da formosissima
-Mãe—a Natureza.</p>
-
-<p>A Historia da Arte é a Historia da Civilização;
-é a Historia do Homem no seu <i>meio</i>, nas suas crenças,
-nas manifestações da sua intelligencia, nas aspirações
-da sua alma, na grandeza dos seus affectos.</p>
-
-<p>Estudando o Homem, estuda-se a Nação e a influencia
-que ella exerceu nas outras sociedades constituidas.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_179" id="Pag_179">[179]</a></span></p>
-
-<p>São, pois, d’uma benemerencia incontestavel os
-esforços e os auxilios com que n’um paiz se tenta
-colleccionar, agrupar, reunir todos os elementos que
-possam reconstruir a sua historia artistica; e como
-essa empreza, de larga magnitude e importancia, só
-é cabalmente desempenhada pelo Estado, dever é do
-cidadão illustrado cooperar, quanto possivel, no desenvolvimento
-das instituições que possam mostrar aos
-extranhos o que o genio nacional produziu e creou.</p>
-
-<p>Com uma vergonhosa teimosia e deploravel inconsciencia,
-a esse dever se nega a actual Junta de
-Parochia de Valença, recusando-se a entregar ao
-delegado do Governo os quadros e a cadeira, que
-pertenceram á extincta collegiada de S. Estevão.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p class="center">Senhores da Junta,</p>
-
-<p class="noindent">ou antes</p>
-
-<p class="right">Senhores Agostinho e Sampaio:<a name="FNanchor_35" id="FNanchor_35"></a><a href="#Footnote_35" class="fnanchor">[35]</a></p>
-
-<p class="noindent">conversemos.</p>
-
-<p>Vossas Senhorias, n’essa manifestação volitiva,
-(saberão Vossas Senhorias que <i>volitiva</i> significa:
-emanada da vontade) n’essa tenaz opposição as ordens
-do Governo, devem estribar-se n’uma razão,<span class="pagenum"><a name="Pag_180" id="Pag_180">[180]</a></span>
-n’um argumento, n’uma conclusão qualquer. Mas eu—com
-franqueza—como conheço perfeitamente, por
-dentro e por fóra, (deixem-me assim dizer) o que
-Vossas Senhorias valem em materia de zelo pelas
-instituições, que estão dependentes das suas luminosas
-e peregrinas deliberações,—eu, que me recordo
-muito bem que Vossas Senhorias, que hoje energicamente
-bradam aos céos contra a reclamação do Governo,
-são exactissimamente os mesmos que, ha quatro
-ou cinco annos, deixavam estragar esses mesmos
-quadros e essa mesma cadeira, consentindo que um
-<i>Terrinha</i> as borrasse com verniz de portão, depois
-de borrar, tambem, os peitos da Virgem do leite,—eu
-que me recordo ainda, que foram tambem Vossas
-Senhorias os <i>engenheiros</i> n’aquella boçal mutilação
-da fachada de Santa Maria, parvoamente <i>restaurada</i>
-ha annos,—eu, emfim, que (sem offensa) avalio
-a capacidade intellectual dos seus, aliás preciosos
-cerebros, como insufficiente para conter umas tristes
-cellulasitas, onde se aniche um errante atomo de intuição
-artística; porque, afinal de contas, estas coisas
-de Arte não são precisamente o mesmo que coisas
-de bombas, ou de receitas eventuaes e decimas
-de juros,—eu, repito, não posso explicar satisfactoriamente
-ao meu espirito a causa do proceder de
-Vossas Senhorias.</p>
-
-<p>Por zelo nos interesses da Junta não é—com
-toda a certeza—que Vossas Senhorias se revoltam
-contra o Governo. Isso é coisa averiguada, conhecida,<span class="pagenum"><a name="Pag_181" id="Pag_181">[181]</a></span>
-evidente, que não admitte réplicas e a que não
-convém, mesmo, contestações.</p>
-
-<p>Recearão Vossas Senhorias que esses objectos,
-passando para as mãos do Estado, se <i>extraviem</i>, ou
-<i>percam</i>?</p>
-
-<p>Repillo, como absurda, a hypothese, porque só
-com tristissimo desalento veria dois funccionarios
-publicos suspeitarem de <i>larapio</i> o Governo que lhes
-paga.</p>
-
-<p>O que é, pois, que actua nos seus cerebros?</p>
-
-<p>Não o sabem, mas sei-o eu.</p>
-
-<p>O que obriga Vossas Senhorias a esse tristissimo
-papel é isto:—o rheumatismo, o barretinho de seda
-preto, o cano das botas, os suspensorios, o alçapão
-das calças, a caixa do rapé, o pingo, a caspa; é essa
-maldicta enfermidade epidemica, peor do que a actual
-<i>influenza</i>, porque não ha profilaticos que a debellem,
-e que se origina nas exhalações mephiticas e deleterias
-dos fossos e das muralhas que teem musgo, ratos,
-corujas, toupeiras, morcegos e silvados coevos
-do mammuth; é essa coisa que sendo incorporea, invisivel,
-imponderavel, tem a rigidez bastante para
-encravar a roda do Progresso; que sendo inerte e
-fria, tem a temperatura sufficiente para caldear os
-embolos da Civilização; é—finalmente—a rotina!</p>
-
-<p>Vossas Senhorias, com essa teimosia, recordam-me
-(salvo o devido respeito) aquella conhecida anedocta
-do gallego:</p>
-
-<p>Alonso Perez y Perez ouvira dizer na sua terra<span class="pagenum"><a name="Pag_182" id="Pag_182">[182]</a></span>
-que em Portugal se ganhava muito dinheiro, mas
-que era necessario pedir, exigir e reclamar sempre
-mais do que se recebesse por qualquer serviço.</p>
-
-<p>Perez y Perez entregou a mulher ao diabo, digo,
-ao Abbade e atravessou a fronteira, dilatando os póros
-de todo o corpanzil para, como ventosas de tentaculos
-cephalopodes, absorverem quantas <i>pesetas</i> e
-<i>perras chicas</i> fosse possivel.</p>
-
-<p>Caminhando por essas estradas fóra, ao terceiro
-dia, veiu o cansaço; vergava-se-lhe o corpo, dobravam-se-lhe
-os joelhos, incharam-lhe os pés, pesava-lhe
-a cabeça: prostrado e doente, abeirou-se da valeta
-e cahiu succumbido, recordando com saudade as
-veigas da sua terra, a familia, a vacca e os bezerros,
-a missa do domingo, o recorte das montanhas, as
-columnas de fumo que, ao toque das Trindades, se
-evolavam no esbatido azul dos céos, o balido das
-ovelhas, o piar das avesinhas, todas essas coisas—emfim—saturadas
-d’um sentimentalismo feroz e piegas,
-que tão violentamente agitavam a alma do Justininho,
-quando elle concebia aquelles preciosos folhetins
-do <i>Noticioso</i>.</p>
-
-<p>N’isto, passa na estrada um almocreve com a sua
-enfiada de machos e, vendo o gallego n’aquelle misero
-estado, convida-o carinhosamente a escarranchar-se
-n’um dos animaes.</p>
-
-<p>—<i>E quanto xe me dá?</i></p>
-
-<p class="mt3 right">—pergunta o bruto.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_183" id="Pag_183">[183]</a></span></p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Vossas Senhorias, n’esta estrada do Progresso,
-são (salvo o devido respeito) uns verdadeiros Alonsos.</p>
-
-<p>Como portuguezes, que põem luminarias á janella
-no 1.º de dezembro e no anniversario da Carta, devem
-amar a sua patria; como funccionarios publicos
-devem interessar-se no engrandecimento d’ella; como
-homens do seculo <span class="smcapuc">XIX</span>, que usufruem todas as vantagens
-e liberdades que tanto sangue custaram, n’essa
-sangrenta lucta do despotismo e das trevas contra a
-luz, devem contribuir para que aos seus filhos seja
-entregue intacto, pelo menos, o inestimavel patrimonio
-da Civilização, que herdaram dos seus Papás.</p>
-
-<p>Ora, uns homens que por esse mundo de Christo,
-consagram toda a sua existencia no estudo dos meios,
-que podem elevar e engrandecer os povos, reconheceram
-a enorme utilidade das collecções artisticas,
-das bibliothecas, dos museus, de todas as instituições,
-onde se enthesoiram os productos do espirito
-humano na sua marcha evolutiva atravez dos seculos.</p>
-
-<p>Esses homens dizem a Vossas Senhorias:</p>
-
-<p>Pretendemos reconstruir a historia da Arte portugueza,
-reunindo e dispondo convenientemente, chronologicamente
-e por distincção de escholas, n’uma<span class="pagenum"><a name="Pag_184" id="Pag_184">[184]</a></span>
-boa sala com ar e com luz, essas telas, que Vossas
-Senhorias por ahi inconscientemente dependuram em
-paredes humidas, e imbecilmente inutilizam, mandando,
-de quando em quando, envernizar, a brocha,
-pelos <i>Terrinhas</i>.</p>
-
-<p>O Estado toma conta d’isso que lhe pertence; e,
-quando Vossas Senhorias tiverem uns amigos hespanhoes,
-francezes, inglezes, turcos ou moiros, que lhes
-perguntem, fazendo obra pelos mais aperfeiçoados
-diccionarios geographicos extrangeiros, se Portugal
-é provincia hespanhola, ou ingleza—podem leval-os
-ao Museu nacional, onde lhes provarão que somos
-livres, que temos Historia mais brilhante que a d’elles,
-que temos Arte, que temos Civilização, que temos
-alma nacional que já se expandiu pelo mundo
-inteiro com o genio dos grandes heroes e dos grandes
-artistas.</p>
-
-<p>Dirão mais a Vossas Senhorias:</p>
-
-<p>Se tiverem filhos que necessitem de estudar a
-Pintura, ou as Artes decorativas, ahi ficam á disposição
-d’elles todos esses productos que permaneciam
-dispersos, ignorados e inuteis pelas egrejas sertanejas.
-Ahi encontrarão, tambem, para o estudo comparativo,
-exemplares da eschola hespanhola, com as
-telas de Velasquez, de Murillo e de Ribera; ahi está
-a eschola flamenga com Rubens; a hollandeza com
-Rembrandt; a italiana com Raphael, Ticiano, Tintoreto,
-Miguel Angelo; podem entrar, ver, estudar minuciosamente,
-copiar—nada pagam.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_185" id="Pag_185">[185]</a></span></p>
-
-<p>E, apesar de todas estas incalculaveis vantagens,
-exclamam Vossas Senhorias:</p>
-
-<p class="mt3 center">—<i>e quanto xe nos dão?</i></p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Vossas Senhorias teem ido, por vezes, a Lisboa.</p>
-
-<p>Lembro-me, até, que muito antes que Succi fosse
-conhecido com os seus jejuns, já a gente por cá admirava
-as especialissimas propriedades da membrana
-mucosa do estomago do sr. Sampaio, que não segrega
-sómente succo gastrico, mas, tambem, succos nutritivos,
-como se evidenciou n’aquella viagem, em que
-Sua Senhoria, tendo sahido da Balagota com o cabazinho
-repleto de pastelinhos de bacalhau e de girimu,
-pitos assados, rabanadas e cornuchos, com elle
-intacto, depois d’uma ausencia de oito dias, na Balagota
-entrou.</p>
-
-<p>Vossas Senhorias teem ido, por vezes, repito, a
-Lisboa. Conhecem tudo o que existe na capital.</p>
-
-<p>Extasiaram-se perante a pujança granular do regio
-corcel no Terreiro do Paço; viram subir o balão
-que indica o meio-dia; ouviram o carrilhão de Mafra;
-estiveram no curro de S. Bento; admiraram o
-leão da Estrella e os macaquinhos do Jardim Zoologico;
-visitaram a esquadra ingleza no Tejo; sopesaram
-a <i>Paulo Cordeiro</i>; saudaram o Senhor Rei e a<span class="pagenum"><a name="Pag_186" id="Pag_186">[186]</a></span>
-Senhora Rainha; viram as mulas do paço e o bicho
-municipal; conheceram o Rosa Araujo e o marquez
-de Vallada; foram a todos os theatros; mas o que—com
-certeza—não viram foi o Museu Nacional, e
-isso porque... não tiveram tempo.</p>
-
-<p>Teem ido a Lisboa, por vezes; assistiram aos
-festejos das bodas e dos baptisados reaes, aos da
-chegada dos reis de tal e tal; foram, até, engrossar
-a pasmaceira indigena na recepção do Principe de
-Galles, d’esse exemplar com encadernação de luxo
-de John Bull—o eterno larapio das nossas colonias,
-o traiçoeiro Johnston dos makololos, o perfido Wellington
-de 1828, o astucioso Canning, o desleal alliado
-da nossa Politica, o insolente comedor dos nossos
-dinheiros, a quem todo o bom portuguez devia, respeitando
-as conveniencias da hospitalidade, voltar,
-com despreso, as costas; mas quando n’aquella capital
-se realisou a Exposição de Arte ornamental, que
-foi como o livro aberto onde se descreveu a riquissima
-epopea das nossas glorias artisticas, então... ficaram
-na Balagota e na rua Direita porque... não
-valia a pena!</p>
-
-<p>..............................</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Aqui tem Vossa Excellencia, sr. Macedo, os homens
-que se negam a entregar-lhe os quadros e a
-cadeira de S. Estevão.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_187" id="Pag_187">[187]</a></span></p>
-
-<p>Segreda-se por ahi que muita coisa, reclamada
-pelo Governo, desapparece antes de entrar no Museu
-Nacional. Pena é que o Governo não denuncie os
-roubos, que tem encontrado quando procede ao arrolamento
-dos bens pertencentes ás collegiadas e congregações
-religiosas extinctas.</p>
-
-<p>A teimosia da Junta é mais um caso porco, para
-engranzar no rosario das vergonhas de Valença,
-onde já brilham a recusa da Eschola Conde Ferreira,
-a eleição do sr. Serpa... do Batalhão, a Prisão da
-Santa, a Questão da Musica e essas curiosissimas
-eleições...</p>
-
-<p>Mas Vossa Excellencia, sr. Macedo, resolve facilmente
-todas as duvidas; como ellas, em ultima analyse
-querem dizer:</p>
-
-<p class="center"><i>Quanto xe nos dão?</i></p>
-
-<p>Digne-se Vossa Excellencia mandar ao sr. Agostinho
-meia duzia de trutas leopoldicas, de S. Mamede,
-e obtenha Vossa Excellencia do Governo de Sua
-Magestade, que ao sr. Sampaio seja concedido o diploma
-do unico cargo rendoso, que lhe falta: o de</p>
-
-<p class="mt3 right">sineiro de S. Estevão.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_188" id="Pag_188">[188]</a></span></p>
-
-<hr class="chap" />
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_189" id="Pag_189">[189]</a></span></p>
-
-<h2 id="XII">XII<br />
-<span class="smaller">O Senhor Deputado</span></h2>
-
-<p>Mais uma vez manifestou o Circulo eleitoral n.º 3
-a sua opinião politica e, pela acção liberrima e independente
-do suffragio popular, tem hoje uma cadeira
-em S. Bento, o sr. dr. Queiroz Ribeiro.</p>
-
-<p>Nos campos do partido opposicionista lavra o
-descontentamento com a decisão dos eleitores; nos
-arraiaes, em que tremula a bandeira progressista,
-erguem-se os clamores da victoria e entoam-se hosannas
-ao novo representante do povo.</p>
-
-<p>Os regeneradores negam a competencia de Sua
-Excellencia para tão elevado cargo, fundamentando
-a insufficiencia na pouca edade e escassa madureza
-para os negocios publicos; alguns, até, os do respeitabilissimo
-grupo da rua de S. João, exprimem e<span class="pagenum"><a name="Pag_190" id="Pag_190">[190]</a></span>
-synthetisam todo o valor e força dos seus argumentos
-em tres palavras:—até faz versos!</p>
-
-<p>Os progressistas exaltam a aptidão intellectual
-do seu correligionario; affirmam que é um rapaz que
-deve <i>dar alguma coisa</i>; servem-se do proprio argumento
-dos adversarios—os versos—, impondo-o á
-consideração dos eleitores; citam os seus conhecimentos
-sobre Direito penal, o seu enthusiasmo pela
-<i>nova</i> eschola italiana, etc., etc., e rematam por asseverar
-que a escolha foi felicissima.</p>
-
-<p>Ora eu, meus senhores, sou tambem eleitor e recenseado
-na freguezia de S. Maria dos Anjos; não
-estou filiado em partido militante da actual politica,
-porque sou, como os srs. José Narciso e Santa Clara:
-legitimista, genuinamente legitimista, por convicção
-e por tradição. Acceitar, n’estas condições, a faculdade
-do voto equivaleria a approvar e reconhecer,
-tacitamente, a legalidade dos poderes que nos regem
-e, procedendo assim, faltaria ás minhas convicções e
-ao respeito que tenho e devo ao meu Rei, a Sua Magestade
-Fidelissima o Senhor Dom Miguel de Bragança,
-que Deus guarde.</p>
-
-<p>Estou, portanto, n’um campo perfeitamente neutral
-e insuspeito, ao abrigo do tumultuar das paixões
-partidarias, n’uma região serena de paz e livre
-reflexão e posso, n’estas circumstancias, dar a minha
-opinião sobre a escolha dos eleitores, depois da rigorosa
-apreciação que fiz dos argumentos apresentados
-pelos dois partidos.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_191" id="Pag_191">[191]</a></span></p>
-
-<p>Vou ter a honra de a apresentar a Vossas Excellencias.</p>
-
-<p>Na futura Camara electiva devem reunir-se cento
-e tantos deputados. N’esse numero entram estrellas
-de primeira grandeza na constellação brilhantissima
-da nossa politica. Ha talentos de raça; espiritos previlegiados,
-que honram e ennobrecem o paiz; ha oradores
-fluentissimos como os srs. Oliveira Mattos e
-Visconde da Torre; ha polemistas de irresistivel logica
-de argumentação, como os srs. Ferreira d’Almeida;
-ha celebridades em todos os ramos das sciencias
-e da publica administração.</p>
-
-<p>Pois, meus senhores, com verdade lhes digo, que
-é a seguinte a minha convicção:—entre todos esses
-homens, entre todas as individualidades aptas no
-nosso paiz para as funcções da representação popular,
-ninguem—absolutamente ninguem—nos poderia
-satisfazer tanto, comprehender as nossas ideias, adaptar-se
-melhor á nossa politica, interpretando-a e
-assimilando-a nas suas aspirações—como Sua Excellencia
-o sr. Dr. Queiroz Ribeiro.</p>
-
-<p>—Ora essa! (ouço eu bradar aos meus amigos,
-os srs. Joaquim e Abilio, os mais fogosos caudilhos
-da politica regeneradora), fará o favor de provar.</p>
-
-<p>A isso vou, meus senhores, e com argumentos
-leaes, solidos, porque os sustento com a irrefutavel
-demonstração, que vou estabelecer dentro do
-campo positivo das sciencias abstractas: a logica e a
-mathematica.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_192" id="Pag_192">[192]</a></span></p>
-
-<p>Vejamos, meus senhores, o que é a Politica em
-Valença? O que foi, o que é, d’onde vem e para onde
-vae? Como se poderá e deverá classificar n’uma terra
-em que, se a gente vae á estação do caminho de ferro
-assistir á recepção do sr. Marianno de Carvalho, ou
-do sr. Barjona, ou do sr. Lopo Vaz, ou do sr. José
-Dias Ferreira, ou do sr. Rodrigues de Freitas, ou do
-sr. Consiglieri Pedroso, vê sempre na gare—além
-dos <i>engajadores</i> dos hoteis e do sr. Capellão<a name="FNanchor_36" id="FNanchor_36"></a><a href="#Footnote_36" class="fnanchor">[36]</a>—as
-mesmas caras, as mesmas casacas e as mesmas cartolas,
-que, depois, vão acompanhar Suas Excellencias
-até Cerveira, com ruidosas e enthusiasticas demonstrações
-de adhesão e fidelidade partidarias?</p>
-
-<p>O que poderemos julgar da Politica d’um concelho
-em que a padralhada, com o seu rebanho de carneiros
-votantes, vae, submissa, para onde a toca a
-aguilhada da Administração, sem consciencia, nem
-orientação, nem ideal politico?</p>
-
-<p>N’uma terra, em que os mais importantes caudilhos
-teem, na opinião, a variabilidade constante do
-catavento de Santo Estevão e em que ha potestades
-eleitoraes que, vistas de Coura, são regeneradoras,
-vistas de Valença são progressistas e não são barjonaceas
-e republicanas, porque ninguem as examinou
-ainda de Gandra ou de S. Pedro da Torre?</p>
-
-<p>Estudemos os chefes, senhores, que devem representar
-as tradições, a opinião, a respeitabilidade dos<span class="pagenum"><a name="Pag_193" id="Pag_193">[193]</a></span>
-partidos. Temos d’um lado—o progressista—o Sr.
-Dr. Ladislau; temos do outro—o regenerador—o
-Sr. Dr. Pestana.<a name="FNanchor_37" id="FNanchor_37"></a><a href="#Footnote_37" class="fnanchor">[37]</a></p>
-
-<p>O Sr. Dr. Ladislau sahiu, approximadamente ha
-seis annos, dos bancos da Universidade e filiou-se,
-franca e desassombradamente, no partido do sr. José
-Dias Ferreira; hoje obedece ao sr. José Luciano, isto
-é, duas opiniões diversas, oppostas, heterogeneas,
-como as que separaram e dividiram os guelfos dos
-gibelinos, os armagnacs dos borguinhões, os jacobinos
-dos girondinos, os da rosa branca dos da rosa
-vermelha, os malhados dos realistas.</p>
-
-<p>Ora, consultando os trabalhos estatisticos dos
-mais eminentes socialistas, sobre a longevidade da
-vida humana, observamos que a media actual é de
-sessenta annos. (Deus n’este caso a prolongue e livre
-o Sr. Doutor de dyspepsias hermogenicas, que tão
-prejudiciaes são á juventude...)</p>
-
-<p>Se quizermos, pois, avaliar rigorosamente a capacidade
-opinativa de Sua Excellencia, nada mais
-teremos do que estabelecer uma proporção, admittindo
-a hypothese mais favoravel—que em egual espaço
-de tempo não augmentará a volubilidade. Representando,
-pois, por <i>a</i> os seis annos decorridos e os<span class="pagenum"><a name="Pag_194" id="Pag_194">[194]</a></span>
-trinta que a Sua Excellencia faltam, por <i>op</i> as opiniões
-conhecidas e por <i>x</i> as desconhecidas, teremos:</p>
-
-<p class="center smaller">6 a : 2 op :: 30 a : x.</p>
-
-<p>Operando, encontramos:</p>
-
-<p class="center smaller">x = 10 op.</p>
-
-<p>Reunindo as opiniões conhecidas, temos</p>
-
-<p class="center smaller">x = 12</p>
-
-<p class="noindent">quer dizer: teremos de pedir, por emprestimo, alguns
-partidos á Hespanha, porque cá não os ha para
-tanta opinião; e, aos sessenta annos, o Sr. Dr. Ladislau
-attingirá um grau de <i>saturação</i> partidaria muito
-superior á que hoje possue o Sr. Agostinho, que é a
-coisa mais perfeita e acabada em Politica, que terras
-de Valença teem produzido.</p>
-
-<p>Agora, o sr. dr. Pestana...</p>
-
-<p>Eu desejava fazer identica demonstração com referencia
-a Sua Excellencia, e tenho, para isso, elementos
-e factores ordenados; mas são d’uma tal complexidade
-e obrigam a operações algebricas tão complicadas,
-que me abstenho de aqui as reproduzir,
-limitando-mo a dar conhecimento a Vossa Excellencia
-do resultado obtido.</p>
-
-<p>Para o sr. dr. Ladislau tivemos: x = 10.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_195" id="Pag_195">[195]</a></span></p>
-
-<p>Com o Sr. Dr. Pestana chegamos a: x = ∞
-isto é, x = infinito. E como o infinito existe muito
-para lá dos limites, a que a intelligencia humana
-póde levar a analyse, está prejudicado o raciocinio.</p>
-
-<p>Temos, pois, n’estas condições, os dois chefes politicos
-da nossa terra e ha vinte e cinco annos, em
-que aqui resido, os sub-chefes, as potestades, os
-abbades e as patrulhas seguem exactamente o mesmo
-systema.</p>
-
-<p>Os que hontem eram regeneradores, são hoje
-progressistas, serão ámanhã barjonaceos e no dia seguinte
-socialistas. No mundo politico somos cosmopolitas,
-e Valença é para o paiz, o que a casa do Sr.
-Agostinho é para Valença—um perfeito <i>caravanserail</i>!</p>
-
-<p>Synthetisando, eu repito a pergunta, que deu logar
-a estas considerações, com que desejo fundamentar
-a minha demonstração:</p>
-
-<p>Como se deve classificar a nossa Politica?</p>
-
-<p>Politica voluvel, incolôr, de... contradança!</p>
-
-<p>Repito:</p>
-
-<p class="center">de <i>contradança</i>.</p>
-
-<p>Ora aqui está, justamente, o ponto de reunião
-entre ella e a individualidade do nosso deputado.
-Aqui está, onde uma e outra se coadunam, se consubstanciam,
-se identificam.</p>
-
-<p>Em Politica somos dançarinos. Pois para representar
-dançarinos e para comprehender as suas aspirações,<span class="pagenum"><a name="Pag_196" id="Pag_196">[196]</a></span>
-como o Justino Soares, ou os srs. Roldão e
-dr. João Cabral se não habilitam a um circulo, claro
-é que se devia escolher um estranho, versado e perito
-nos segredos da arte de Terpsichore. E, para
-satisfazer cabalmente a estas condições (creio que os
-srs. Joaquim e Abilio se não atreverão a refutar esta
-minha proposição) ninguem—absolutamente ninguem—se
-encontraria mais habilitado, do que o
-nosso actual representante.</p>
-
-<p>Isto não é uma asserção gratuita. A vizinha villa
-de Cerveira a confirmará, quando se torne necessario.</p>
-
-<p>Porque é que o sr. Visconde da Torre não <i>provou
-bem</i>, como deputado? Porque nunca poderia representar
-dignamente Valença, com o seu volumoso
-abdomen, com a abundancia do seu tecido adiposo,
-com o pouco desempeno dos seus movimentos, com a
-pouca elegancia (perdoe Sua Excellencia) da sua <i>linha</i>.
-Dançava pouco e mal. Era, mesmo, detestavel a
-sua posição quando, pela complicadissima tactica das
-danças, era obrigado a fazer um <i>en avant</i>. Não tinha
-<i>ropia</i> nem <i>salero</i>, nem <i>entrain</i>.</p>
-
-<p>Mas o nosso actual representante...</p>
-
-<p>Que saudosas recordações não originarão estes
-periodos ás tricanas e sopeiras de Villa Nova—a
-chiquita!</p>
-
-<p>Que dulcissimas reminiscencias não entristecerão,
-por momentos, aquelles formosissimos rostos da terra
-das solhas!</p>
-
-<p>Que pranto amargo e copioso não verterá a estas<span class="pagenum"><a name="Pag_197" id="Pag_197">[197]</a></span>
-horas o bom e fiel Maldonado, socio commandita nos
-bailes do sopeirame!</p>
-
-<p>A Meca, a terna e legendaria Meca, com que acerbo
-pungir, não enxugará das mimosas e assetinadas
-faces as perolas crystallinas, como as do rocio matutino,
-que a lembrança de Sua Excellencia, a cada
-momento lhe faz brotar das glandulas lacrimaes!</p>
-
-<p>Redomoinhar vertiginoso das valsas; suave enleio
-de pequeninas cinturas; exhalações dulcissimas; doces
-fragrancias de solha e azeite, bacalhau e alho,
-das formosas tricanas; noites de amor e de phantasia
-em que vós, encantadoras filhas da—<i>Chiquita</i>—vos
-deliciaveis com os <i>papos d’anjo</i> de Caminha e as <i>roscas</i>
-da Galliza; noites inolvidaveis de luar, em que
-os vossos castos seios se alvoroçavam com desconhecidas
-sensações, quando Sua Excellencia, sob as janellas,
-acompanhado ao violão pelo fiel Maldonado e
-pela artistica cohorte dos Figaros, soltava ás brisas,
-com voz maguada e terna, as melancholicas trovas do:</p>
-
-<div class="poetry-container">
-<div class="poetry">
-<div class="verse">Gondoleiro, a noite é bella!</div>
-</div>
-</div>
-
-<p>Recordações saudosas, miragens gratas e fugitivas...
-adeus!</p>
-
-<p>Tudo se sumiu na voragem da urna eleitoral!</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_198" id="Pag_198">[198]</a></span></p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p class="right">Eleitores do concelho de Valença!</p>
-
-<p>Nos annaes da benemerita Sociedade Artistica,
-<i>Harmonia e Recreio Cerveirense</i>, registra-se, como
-um periodo aureo de engrandecimento e prosperidade,
-a epocha em que o nosso Deputado honrou,
-frequentando, os salões da Associação.</p>
-
-<p>A arte de Terpsichore obteve consideravel impulso
-e desenvolvimento. Á voz auctorizada de Sua
-Excellencia, transformaram-se os <i>Lanceiros</i>, floreou-se
-a <i>Franceza</i> e surgiu, vaporosa e louçã, a moderna
-valsa <i>a dous tempos</i>. Abandonaram-se marcas velhas
-e rançosas, substituiudo-se por elegantes <i>couronnes
-de dames</i> e graciosos <i>moulinets de chevaliers</i>.</p>
-
-<p>Foi, pois, profundamente civilizadora a influencia
-que Sua Excellencia exerceu nas classes medianamente
-abastadas:—sopeiras e tricanas—, porque
-lhes incutiu os germens d’uma larga intuição artistica
-e senso esthetico, já com as brilhantes manifestações
-da arte de Terpsichore, já com mimosas producções
-musicaes, com que Sua Excellencia as deliciava,
-acompanhado pelo fiel Maldonado e—em occasiões
-solemnes—pela brilhantissima cohorte dos Figaros
-cerveirenses.</p>
-
-<p>Quem, pois, se atreverá a dizer, quem ousará<span class="pagenum"><a name="Pag_199" id="Pag_199">[199]</a></span>
-ahi, dos arraiaes da opposição, affirmar que não foi
-acertada e felicissima a escolha?</p>
-
-<p>Concluo a demonstração, srs. Lucas e Abilio. Pódem
-Vossas Excellencias refutal-a?</p>
-
-<p>Eleitores do concelho de Valença! Damas e cavalheiros
-do Club e da Assemblea! Ditas e ditos do
-Gremio artistico; tricanagem, technicaphilas e paradas-velhas
-dos bailes do Theatro, eu—Zinão—vos
-felicito!</p>
-
-<p>E vós, vizionarios, descrentes, que por ahi apregoaes
-a incompetencia do sr. Deputado, em breve,—eu
-vol-o affirmo—se dissiparão as vossas duvidas
-e os vossos applausos hão-de juntar-se, fervorosos e
-delirantes ás acclamações enthusiasticas da grei progressista
-quando, no proximo carnaval, assistirdes,
-nos bailes do Theatro, á verdadeira consagração, á
-apotheose do nosso Deputado, vendo-o, como <i>par
-marcante</i>, offuscar a fama, até hoje immaculada, dos
-srs. Trincheiras e Zé do Caes, gritando <i>ás multidões</i>,
-radiante e enthusiasmado, em francez adoptado nos
-nossos tricanés:</p>
-
-<p><i>An ivant! Chevaliers</i> dão as mãos e <i>les Dames ó
-miliú</i>.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_200" id="Pag_200">[200]</a></span></p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Ah Esteves! Ah Caetano!</p>
-
-<p>Que futuro brilhante e glorioso não está reservado
-para os vossos violões!</p>
-
-<p class="tb">Emquanto a nós:</p>
-
-<p class="right"><i>vá de redrò</i>, Senhor Doutor!</p>
-
-<hr class="chap" />
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_201" id="Pag_201">[201]</a></span></p>
-
-<h2 id="XIII">XIII<br />
-<span class="smaller">Carta ao Zé Senso</span></h2>
-
-<p class="center"><span class="smcap">Terras da Parvalheira</span></p>
-
-<p class="right"><b>Burgo de Paysandu.</b> Terça-feira,<br />
-17 de Dezembro de 1887.</p>
-
-<p>Meu Zé.</p>
-
-<p class="tb">Recebeu-se, hontem á noite, o 2.º fasciculo dos
-<i>Sinapismos</i>.</p>
-
-<p>Não sei ainda como te conte o que se passou.
-Ha onze horas que estou de cama, a caldos de gallinha
-e copinhos de geleia.</p>
-
-<p>O Dr. Pacheco só me deixa chuchar uma azinha
-de pito, de seis em seis horas, tal é o estado de fraqueza
-e abatimento em que me deixaram as violentas
-commoções, que hontem agitaram este pobre
-corpo.</p>
-
-<p>Vou coordenar as ideas para te descrever o caso
-mais extraordinario, que fastos de Valença podem
-mencionar ás gerações vindoiras.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_202" id="Pag_202">[202]</a></span></p>
-
-<p>Tu sabes o que é o indigena sem illustração:
-corpo amanhado com borras de nababo, betume de
-Prudhomme, com leucocytos de Tartufo e cellulas
-philosophicas de Sganarello; alma ingenua, pura,
-immaculada, feita de arminho, gesso cré, grude de
-sapateiro e saliva de Zé Povo; no todo, uma mescla
-de tanso, de rufião e de sacripanta.</p>
-
-<p>Sabendo isto, certamente não te admirarás do
-que vaes lêr.</p>
-
-<p>Quando hontem á noite, já em ceroilas, punha o
-barretinho de dormir, ouvi na rua um enorme barulho:
-tropel desusado, gritos, rodar de carretas, patadas
-de mula, tiros, etc.</p>
-
-<p>Como estava em fralda, disse ao Zéca que fosse
-á janella vêr o que era, e na minha mente surgiu a
-idea de que teriamos uma invasão ingleza por causa
-dos makololos.</p>
-
-<p>—<i>São os mokololos? perguntei ao menino.</i></p>
-
-<p>—<i>Não sei, Papá. São muitos homens que passam
-correndo; uns com espadas, outros com chuços, outros
-com chicotes, rewolvers, punhaes, facalhões e espetos,
-gritando:</i></p>
-
-<p class="center"><i>mata! mata!</i></p>
-
-<p><i>Vão todos com o sim-senhor á mostra e levam nas
-nadegas duas manchas vermelhas, como ficam nas pernas,
-quando o Papá me deita sinapismos. Atraz d’elles
-vem um diabo vestido de amarello, que traz na<span class="pagenum"><a name="Pag_203" id="Pag_203">[203]</a></span>
-mão esquerda umas disciplinas de coiro, com que os
-fustiga, e na direita um ferro em braza.</i></p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Calcei á pressa as piugas e approximei-me da
-janella para presenciar tão inesperado acontecimento.
-Com o ruido que fiz, abrindo-a, a multidão parou subitamente.
-Todas as cabeças se ergueram, todos os
-punhos se levantaram, fechados com crispações nervosas;
-abriram-se mil boccas, onde rangiam sinistramente
-os dentes; insultaram-me; chamaram-me
-<i>porco</i> e <i>chulo</i>; berravam que me haviam de matar,
-de <i>escuchinar</i>, de virar de dentro para fóra, de arrancar
-as barbas, as orelhas e mais <i>isto</i> e mais
-<i>aquillo</i>.</p>
-
-<p>Reparei que aquella medonha e terrivel multidão
-se dividia em tres grupos distinctos.</p>
-
-<p>O primeiro era composto de maltrapilhos com
-feitio afadistado, que uma collareja porca e abandalhada,
-a quem ouvi chamar D. Politica, segurava
-pelos cabrestos. Zurzia n’elles, com uma aguilhada
-de ponta d’oiro, El-Rei buffo, D. Milhão.</p>
-
-<p>O segundo era formado por <i>patetinhas</i>, d’estes
-infelizes, que nos hospitaes de alienados são conhecidos
-por <i>doidos mansos</i>.</p>
-
-<p>Guinchavam, mostravam papelinhos, davam saltinhos,
-faziam esgares burlescos, descobrindo os dentes<span class="pagenum"><a name="Pag_204" id="Pag_204">[204]</a></span>
-sujos. Tinha conta n’elles, dando-lhes, de quando
-em quando, um pontapé, outra mulher em desalinho
-e que parecia soffrer de grande myopia. Conheci
-D. Idiotice.</p>
-
-<p>No terceiro, então, misturaram-se fedelhos e cães;
-d’estes <i>tótós</i> pequeninos de pello branco e encaracolado,
-muito nojentos e muito libidinosos, que mostram
-sempre a linguinha quando veem as amas, que
-trazem os focinhos molhados com um liquido que
-lembra, pelo cheiro, a cal e o peixe da Noruega, e
-que por ahi chamam, <i>fraldiqueiros</i>. Ladravam, davam
-ao rabinho, levantavam-se sobre as patinhas
-de traz, agitando para cima e para baixo a linguinha,
-d’onde escorria um fio de baba mal cheirante.</p>
-
-<p>Aquella multidão saturava a atmosphera de aromas
-insupportaveis; distinguiam-se os do bafio, do
-arroto dyspeptico; este cheiro particular do azebre,
-do mofo, da catinga, de pé gallego, de coisas lippicas
-e rançosas, que tresandam a raposinho e a chulé.</p>
-
-<p>No ruido ensurdecedor de tanto grito e de tanta
-explosão de colera, apenas se percebiam estas palavras:</p>
-
-<p class="center">Mata! Mata o Zinão!</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>O meu cerebro illuminou-se, então, com aquelles
-vividos clarões das grandes angustias; pinoteavam-me<span class="pagenum"><a name="Pag_205" id="Pag_205">[205]</a></span>
-na imaginação, em infernal dança macabra, todas
-as vibrações das grandes dôres; vergalhadas
-cyclopicas açoitavam-me as ideias; a alma rebentava-me
-com explosões terriveis, minada pela robulite
-do terror; o coração desfibrava-se esphacelado pelas
-garras do susto; as cellulas nervosas achatavam-se
-sob a prensa hydraulica do pavor; o cordão espinal
-estoirava, esticado pelas furias da raiva; as saliencias
-do corpo sumiam-se arietadas pela allucinação;
-na trompa de Eustachio trovejavam as maldições;
-na retina faiscavam punhaes de odio; na pituitaria
-abriam chagas os atomos do rancôr; as cordas vocaes
-rebentavam com a tensão da ira; as papillas
-da derme eram esmagadas pelos martellões da colera;
-diabos vestidos de vermelho arrancavam-me os
-cabellos; harpias esgrouviadas furavam-me a cornea;
-satanazes com rabo reviravam-me as unhas; demonios
-acephalos rasgavam-me a bocca; morcegos sinistros
-esfarrapavam-me as carnes; lebreus hydrophobos
-roiam-me as cannelas; corujas esfomeadas
-espicaçavam-me as orelhas; chacaes lazarentos mordiam-me
-as nadegas; corcodilos e jacarandés trituravam-me
-os ossos.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>E no meio de toda essa <i>coisa</i> phantastica, apocalyptica,
-satanica, horripilante, onde havia carcavões,<span class="pagenum"><a name="Pag_206" id="Pag_206">[206]</a></span>
-fragoas, tenazes, forcas, venenos de Borgias, estyletes
-ervados, lanças quichotescas, navalhas de ponta
-e mola, balas de papel, espadas de pau, caçoletas e
-obuzes, explosões sulfuradas, bofes de leão, tricornios
-de gazeta, furores de Ugolino, ciumes de Othello,
-terrores de Machbet, perfidias de Iago, risos de Voltaire,
-astucias de Loyola, sarcasmos de Erasmo, pançadas
-de capoeira, chulipas de fadista, rugidos de
-Adamastor, pedradas de garoto, cobras e lagartos,
-viscosidades de lesmas, virus de serpente, commissões
-de <i>quinzes</i> e de <i>paysanducos</i>, protestos, duellos,
-policias correccionaes, boquilhas, aguas sebastianicas,
-beliscões kilometricos, musas hystericas, zoilos
-epilepticos...</p>
-
-<p>—quando contemplava aquelle horroroso quadro em
-que, as tintas de Miguel Angelo, o pincel de Rembrandt
-e a phantasia de Hans Mackart, pintavam a
-sede de Tantalo, a insaciabilidade de Gargantua, a
-podridão de Imperia, o odio de D. Bibas, o servilismo
-do eunucho e o calcanhar d’Achilles,</p>
-
-<p>—entre aquelle côro infernal de uivar de feras, clamar
-de moiros, ulular de caraibas, guinchar de idiotas,
-urrar de quadrupedes, pinchar de macacos, zunir
-de vespas, silvar de cascaveis, ladrar de <i>bulldogs</i>,
-d’onde apenas se destacava:</p>
-
-<p class="center">Mata! Mata o Zinão!</p>
-
-<p class="right">—senti alguem ao meu lado.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_207" id="Pag_207">[207]</a></span></p>
-
-<p>O tal diabo vermelho pinchára da rua para a janella;
-extendia-me o braço e dizia:</p>
-
-<p class="tb">—<i>Oh Coisa! dá cá um cigarro. Casca n’elles, que
-ainda bolem!</i></p>
-
-<p class="tb">e desapertando a carcela das calças, voltou-se
-para a turba e...</p>
-
-<p class="right"><i>esguichou-a.</i></p>
-
-<p class="tb">Já sabes, Zé amigo, quem elle era:</p>
-
-<p class="mt3 right">O Ridiculo.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_208" id="Pag_208">[208]</a></span></p>
-
-<hr class="chap" />
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_209" id="Pag_209">[209]</a></span></p>
-
-<h2 id="XIV">XIV<br />
-<span class="smaller">A Questão da Musica<br />
-<span class="smaller">(LEITURA PARA HOMENS)</span></span></h2>
-
-<p>Ha poucos annos, alli pelo Maio, quando a Primavera
-floresce os campos e a Natureza parece despertar,
-com novo vigor, da somnolencia invernal,
-Dona Politica sentiu pular o sangue nas veias, reclamando
-folia e brodio.</p>
-
-<p>Teve uns arrebiques eroticos de matrona insensivel
-á influencia lunar e amancebou-se, clandestinamente,
-com o Conde de Lippe e com o Senhor Administrador.</p>
-
-<p>Noitadas com um, barrigadas de camarões com
-outro, lá se arranjou de tal fórma que, d’essas relações,
-resultou um producto hybrido:—<b>A Questão
-da Musica</b>.</p>
-
-<p>Parto acabado, os amantes disputaram a paternidade
-do aborto:</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_210" id="Pag_210">[210]</a></span></p>
-
-<p>—É meu!</p>
-
-<p>—É teu!</p>
-
-<p>—Parece-se commigo!</p>
-
-<p>—Não se parece comtigo!</p>
-
-<p>Zangaram-se e ficaram de mal.</p>
-
-<p>Nunca mais se puderam vêr.</p>
-
-<p>A desavergonhada, ora sorri para um, ora para
-outro; acirrando, assim, pela sua inconstancia e bandalhice
-acadellada, o odio dos dois rivaes.</p>
-
-<p>O <i>mostrengo</i> (sahiu femea) veiu ao mundo com
-todos os defeitos dos Papás e da Mamã: vaidosa, ridicula,
-traiçoeira, caprichosa e porca.</p>
-
-<p>Ao nascer, embirrou que não queria Musica. Papás
-e Mamã teem-lhe feito a vontade. Qualquer dia,
-embirra que quer Musica; teremos, então, de soffrer
-e pagar as furias dos paus-tesos, até hoje refreadas.</p>
-
-<p>O que por ahi não irá!</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>A <i>Comedia da Santa</i>, ou antes, a <b>Comedia da
-Musica</b>, absorveu e absorve toda a actividade dos
-nossos politicos—dos homens que se apresentam á
-consideração do povo, allegando serviços e pedindo
-votos.</p>
-
-<p>E em que diabo hão de pensar esses santos varões,
-se o Concelho voga em mar de rosas, com vento
-fresco e bons timoneiros?</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_211" id="Pag_211">[211]</a></span></p>
-
-<p>Examinemos, de relance, as instituições da nossa
-terra:</p>
-
-<p>Camara Municipal</p>
-
-<p>Praça de toiros com serviço permanente. Emprezario:
-o Senhor Administrador. Intelligentes: o Senhor
-Joaquim (por procuração), ou João Cabral.</p>
-
-<p>N’este anno, as corridas promettem. O <i>primeiro
-espada</i>, Senhor Abilio, foi occultamente a Madrid
-adestrar-se com Lagartijo e com Frascuelo. O gado,
-do lavrador Ladislau, é manso. Tem fraca <i>pinta</i> e
-pouco <i>pé</i>. A casa está passada para as primeiras corridas
-semanaes. Ha toiros para curiosos.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Agora, duas tiradas a serio:</p>
-
-<p class="tb">A administração do nosso Municipio anda como
-V. Ex.ª sabe, querido leitor, em bolandas e ao deus-dará.
-Muito lhe poderia dizer a tal respeito; mas
-esta gente séria da terra, tanto me tem soprado aos
-ouvidos com aquella preventiva phrase de:</p>
-
-<p class="center"><i>Nem todas as verdades se dizem</i></p>
-
-<p class="noindent">que, <i>por emquanto</i>, ainda me resolvo a conservar na
-minha carteira os curiosos apontamentos que d’estas<span class="pagenum"><a name="Pag_212" id="Pag_212">[212]</a></span>
-coisas de Valença, cuidadosamente tenho colligido.
-Prosigamos.</p>
-
-<p>—Approvou-se ultimamente um novo traçado de
-estradas para o districto; todos os concelhos foram
-contemplados, menos o de Valença. Pelos modos, lá
-nas secretarias das Obras publicas ainda se não descobriu,
-ao certo, se isto pertence a Portugal, se á
-Galliza. A Camara podia elucidar este caso e requerer,
-ou instar por concessões a que tem direito. Os
-politicos, porém, teem mais em que pensar... Ainda
-se não decidiu a <b>Questão da Musica</b>.</p>
-
-<p>—Alli, na Esplanada, amontoam-se, sem ordem
-nem regularidade, as novas construcções. Ora, apesar
-da opposição dos paysanducos, a futura povoação
-de Valença ha de extender-se por esses campos fóra,
-e esta latrina acastellada com muralhas, poternas e
-tenalhas, passará a ter o merecimento historico das
-ruinas de Lapella, hoje excellentes para ninhos de
-morcegos, luras de toupeira e tocas de grillos.</p>
-
-<p>Portanto, a qualquer cerebro medianamente esclarecido
-parecerá urgente e indispensavel o levantamento
-d’uma planta, que desde já disponha, com
-regularidade, as arterias da futura povoação.</p>
-
-<p>Não se pensa em tal, nem é preciso. Temos a lei
-das expropriações. A ordem é rica, os frades são
-poucos e os imbecis são muitos. Ha mais em que
-pensar. Temos a <b>Questão da Musica</b>.</p>
-
-<p>—No centro da villa, ao lado da Ex.ᵐᵃ Camara,
-existe uma commua, que chamam: Eschola municipal.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_213" id="Pag_213">[213]</a></span></p>
-
-<p>Quando quizerdes avaliar a civilização d’este
-povo, que se ri de vós—oh gentes de Monsão e de
-Coura!—vinde cá, embebei o lenço em agua de Colonia
-e entrae alli, na Eschola, onde sem ar, sem
-luz, sem condições hygienicas de qualquer natureza,
-se atrophiam diariamente dezenas de creanças.</p>
-
-<p>Os rapazes, cá na terra, sahem da barriga das
-mães, já com a caneta atraz da orelha para escreverem
-á familia; não precisamos, portanto, de subsidios
-do Conde de Ferreira, nem de utensilios escholares.</p>
-
-<p>Corre tudo muito bem. Só falta uma coisa: um
-pelourinho, alli ao pé da <i>Sexta</i>, com os nomes dos
-philanthropos que responderam aos testamenteiros do
-Conde:</p>
-
-<p>—<i>Dispensamos o subsidio; não temos terreno para
-a eschola; está tudo occupado com cacos de guerra e
-com o Assento dos militares!</i></p>
-
-<p class="tb">—Diz-se que é util o saber lêr e, n’esta crença,
-auxilia-se em toda a parte a instrucção do povo, fiscalizando-se
-o serviço das escholas, animando-se as
-creanças e estimulando-se os professores.</p>
-
-<p>O pelouro da instrucção (?) no concelho de Valença
-é um mytho, uma coisa nominal e hypothetica.</p>
-
-<p>Regateiam, por ahi, miseravelmente, os dois patacos
-de expediente; e na Eschola, como verdadeira
-commua, não ha mobilia, não ha um mappa, não ha<span class="pagenum"><a name="Pag_214" id="Pag_214">[214]</a></span>
-uma esphera, uma loisa, um diccionario. A Camara
-não gasta dinheiro n’essas ridicularias; gasta-o, mas
-com outras applicações, que fazem parte dos meus
-apontamentos particulares...</p>
-
-<p>De quando em quando o bandalho da Politica
-entra tambem nas Escholas; e d’essa visita, nascem
-as perseguições torpissimas e ineptas contra homens
-que, politicamente podem ter todos os defeitos, mas
-que para o exercicio do cargo que exercem, possuem
-incontestavel aptidão.</p>
-
-<p class="tb">—Construiram-se, no largo principal da terra, os
-Paços do Concelho. O edificio ficou uma gaiola de
-grillos, com uma unica porta, para elles não fugirem,
-quando lhes appetecer a serradela.</p>
-
-<p>As divisões interiores são d’uma disposição perfeitamente
-apatetada. Com as dependencias do Tribunal,
-repetiu-se aquelle caso dos <i>moinhos de Coura</i>.
-Lá, só pensaram na agua, quando os moinhos estavam
-promptos; cá, só depois do Tribunal concluido,
-é que surgiu na mente dos illustres senadores a necessidade
-<i>provavel</i> d’uma sala para jurados.</p>
-
-<p>Mas o defeito remediou-se e bem.</p>
-
-<p>Fez-se uma especie de espigueiro, um sotão, como
-os que a gente tem para extender as batatas por
-causa do grelo e para lá se manda o Jury. Está alli
-muito bem, livre de correntes d’ar, e com grande
-vantagem para os curiosos da terra: muito antes que
-se pronuncie a sentença, já se póde saber, pela janella<span class="pagenum"><a name="Pag_215" id="Pag_215">[215]</a></span>
-das escadas, se o réo vae para a rua, ou para
-o <i>cavallinho de pau</i>.</p>
-
-<p>Não ha dinheiro que pague esta commodidade.</p>
-
-<p class="tb">—Na Coroada, admiram os forasteiros a desconjunctada
-architectura d’uns cortelhos, onde, em nauseabunda
-promiscuidade, se aconchegam de noite:
-mulheres, porcos, creanças, bacorinhos, gatos com
-tinha e cadellas com sarna.</p>
-
-<p>Em terra menos civilizada, já o <i>senado</i> teria estudado
-o meio de, por uma operação financeira possivel
-de realizar, sem graves encargos, transformar
-esses focos de immundicie em habitações economicas,
-mas hygienicas.</p>
-
-<p>Mas, então, V. Ex.ª não viu na Exposição de Paris,
-entre tantas maravilhas da Arte, as primitivas
-construcções dos differentes povos? Pois cá, em Valença,
-não precisamos de arranjar artificialmente essa
-exposição. Alli estão os <i>cortelhos</i> da Parada velha,
-immundos, doentios, nojentos,—como nota caracteristica
-do nosso Progresso moral e material.</p>
-
-<p class="tb">—A gente das cidades tem a mania da Civilização.
-Abre mercados, rasga ruas espaçosas, aformoseia
-praças, alinha os edificios e varre as ruas.</p>
-
-<p>Com o pretexto da hygiene e da limpeza faz dinheiro
-até do esterco.</p>
-
-<p>—<i>Miserias humanas!—dizem os nossos camaristas.
-Nas ruas de Valença, o que cai, deixa-se ficar.<span class="pagenum"><a name="Pag_216" id="Pag_216">[216]</a></span>
-Podem-nos chamar immundos, mas ao menos, não somos
-dos futres que vendem carros de lixo.</i></p>
-
-<p>Cá, a gente é assim...</p>
-
-<p class="tb">—O concelho precisa de estradas que unam as
-freguezias e facilitem as communicações. A estrada
-de A para B foi considerada, como a mais urgente,
-pela importancia (politica, já se vê) de B.</p>
-
-<p>Principiou-se a estrada: terraplenagens, aterros,
-desaterros, etc.</p>
-
-<p>A folhas tantas, desabou a caranguejola ministerial
-e o que era politicamente positivo em B passou
-para negativo. Suspendeu-se a construcção da estrada.</p>
-
-<p>Chegou o inverno: lamas, enxurradas, desmoronamentos.
-O que estava feito inutilizou-se, mas não
-importa: a ordem é rica, os frades são poucos e os
-imbecis são muitos. Ha mais em que pensar: a
-<b>Questão da Musica</b>.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<h3>Junta de Parochia</h3>
-
-<p>Instituição composta de differentes membros, sob
-a direcção do Senhor Sampaio e patrocinio do Senhor
-Agostinho. Nada mais, creio eu, é preciso dizer.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_217" id="Pag_217">[217]</a></span></p>
-
-<p>Essa instituição, que n’outras terras presta valiosos
-serviços á Beneficencia e á Instrucção, jaz ahi
-na mais abjecta inutilidade.</p>
-
-<p>A manifestação mais evidente da sua actividade,
-deu-a na importantissima <i>Questão da Porta</i>, com o
-Senhor Baptista.</p>
-
-<p>A Junta não tem meios; é pobre, vive da graça
-de Deus. Tem os telhados da Egreja desmantelados;
-não póde gastar um real em adornos, ou reparos, no
-interior do templo. Conserva, nos adros, as ossadas
-dos nossos antepassados—n’esses adros que a gente
-pisa, onde os cães levantam as pernas e dão muitas
-voltas, fingindo que se sentam; onde, á noite se baixam
-as calças e se praticam mil obscenidades. Alli,
-debaixo d’aquella terra e d’aquella pedra estão os
-craneos dos nossos parentes, craneos que já tiveram
-carne, olhos, bocca, labios que acarinharam os nossos
-paes; estão alli os restos dos braços que aconchegaram
-ao peito, em noites de amargura e de afflictiva
-ancia, a cabeça dos nossos avós, quando a febre
-lhes amortecia os olhos e escaldava as faces.</p>
-
-<p>O respeito aos mortos e o espirito da Religião impõem
-a urgente exhumação d’essas ossadas e a sua
-mudança para o cemiterio.</p>
-
-<p>Não póde ser. Não ha dinheiro; a Junta é pobrissima
-e tem despezas mais urgentes e indispensaveis,
-como as que se fizeram com a <i>Questão da Porta</i>.
-Pois não era um escandalo? Ainda que se empenhasse
-a Cruz de prata! Mas não foi preciso; para<span class="pagenum"><a name="Pag_218" id="Pag_218">[218]</a></span>
-isso, para a Justiça, ainda a pobre Junta teve as
-trinta libras, que a questão levou...</p>
-
-<p class="tb">Deus, Nosso Senhor, se lembre, para desconto dos
-meus peccados, da repugnancia com que nego licença
-á penna, para reproduzir as ideas que, n’este momento,
-tumultuam no meu cerebro...</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>—Ascencio José dos Santos deixou á Junta de
-Parochia de Valença estas e aquellas propriedades,
-com o encargo seguinte: instituição d’um lausperenne
-mensal com tantos padres e tantas luzes, etc.</p>
-
-<p>Com o rendimento d’essas propriedades pagaria
-a Junta as despezas do lausperenne, applicando o
-restante ao desenvolvimento da Instrucção do Concelho.</p>
-
-<p>A Junta acceitou o legado, vendeu as propriedades
-e converteu o producto em inscripções que rendem,
-annualmente, <i>cento e dez mil reis</i>.</p>
-
-<p>A despeza total dos lausperennes, pagando-se
-generosamente, é de <i>doze libras</i>, ou <i>cincoenta e quatro
-mil reis annuaes</i>, restando, por consequencia, um
-saldo importante.</p>
-
-<p>A Junta de Parochia acceitou, como disse, o legado;
-mas os mezes passam e ninguem ouve falar
-dos lausperennes, porque não se fazem. O Senhor<span class="pagenum"><a name="Pag_219" id="Pag_219">[219]</a></span>
-Sampaio, apesar de ser um homem muito temente a
-Deus, não quer gastar dinheiro com padres.</p>
-
-<p>Dispõe do que é seu e faz muito bem.</p>
-
-<p>Estas coisas consideram-se, cá na terra, como admissiveis
-e legaes. Uns chamam-lhes descuidos, outros
-desleixos, etc. Eu pouco sei de sciencias juridicas;
-mas confrontando este facto com outros, que por
-ahi vejo punir na cadeia, não ha quem me tire da
-cabeça, que o <i>descuido</i> da Junta entra na classe
-d’aquelles <i>descuidos</i>, que a Lei chama: roubos.</p>
-
-<p>Pura e simplesmente <b>um roubo</b>; ao culto, á
-Lei, ás crenças d’um morto, á Moralidade, á fé dos
-contractos, ás disposições d’um testamento, que em
-toda a parte se cumprem fiel e rigorosamente.</p>
-
-<p>E já que o vendaval do Tempo levou os ultimos
-sons d’essas fervorosas manifestações de Sentimento,
-que á beira do tumulo d’um homem que caíu fulminado
-defendendo os interesses de Valença, inspirou
-tanto necrologio bombastico e tanto discurso farfalhudo—já
-que em homenagem á memoria do homem
-que amou, como ninguem, esta terra, porque tinha
-na alma a rigida austeridade d’um caracter impolluto
-e sacrificava os haveres, como sacrificou a vida,
-sem pedir á Politica o salario dos seus serviços—se
-não ergueu ainda, ahi, uma voz para reclamar da
-Justiça o cumprimento rigoroso das disposições a
-que se obrigou a Junta de Parochia, seja-me permittido
-alterar, por momentos, a feição humoristica d’estes
-artigos para, com verdadeira indignação, dizer<span class="pagenum"><a name="Pag_220" id="Pag_220">[220]</a></span>
-ás auctoridades que, n’esta terra, vigiam pelo cumprimento
-da Lei:</p>
-
-<p class="tb">A Junta de Parochia <b>rouba</b>, mensalmente, ao
-culto os lausperennes instituidos no legado de Ascencio
-José dos Santos.</p>
-
-<p>Esses lausperennes representam <i>cento e dez mil
-reis annuaes</i>, que são desviados para applicação illegal
-e ignorada.</p>
-
-<p>Ha, ou não ha obrigação de cumprir as disposições
-dos legados?</p>
-
-<p>Ha, ou não ha Lei que peça responsabilidades
-aos auctores d’estes <i>desvios</i>?</p>
-
-<p>..............................</p>
-
-<p>—Prosigamos, porque a rabeca desafina.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<h3>Santa Casa da Misericordia</h3>
-
-<p>É uma Santa Casa de Politica.</p>
-
-<p>As eleições disputam-se (tudo por philanthropia)
-como as da Camara, ou do deputado. Impera sempre
-n’ellas, para suprema humilhação dos valencianos, a
-massa bruta da Urgeira, porque ha o cuidado de
-conservar alli a maioria dos <i>irmãos</i>.</p>
-
-<p>Quem escreve estas linhas já teve, por duas vezes,<span class="pagenum"><a name="Pag_221" id="Pag_221">[221]</a></span>
-a honra de ser convidado para <i>irmão</i> da Santa
-Casa. <i>Por acaso</i>, aconteceu sempre isso em vesperas
-de eleições. Mero <i>acaso</i>.</p>
-
-<p>Na ultima lucta eleitoral entrou uma fornada de
-60 ou 70 <i>irmãos</i>. Offereciam-se os diplomas com todas
-as despezas pagas, e depois da eleição houve
-regabofe de castanhas e vinho branco. O moderno
-<i>carneiro com batatas</i> ainda não estava inventado.</p>
-
-<p>Foi uma eleição renhida, tenazmente disputada;
-e, com ropias de parva politiquice, dotou-se a terra
-com mais uma loja de... barbeiro!</p>
-
-<p>Deus me livre de duvidar, por um momento, dos
-sentimentos caritativos dos especuladores, quero dizer,
-dos protectores da Santa Casa.</p>
-
-<p>Mas (pergunta-me um diabo que tenho aqui, ao
-pé de mim, e que desconfia de tudo), porque será
-que em todo o anno ninguem se lembra do Hospital
-para lhe augmentar os rendimentos, ou para alargar
-a sua acção benefica?</p>
-
-<p>Porque será que esse zelo se não manifesta agora,
-auxiliando os Provedores nos trabalhos da utilissima
-instituição que o legado Cruz fundou—o Asylo?</p>
-
-<p>Porque vos não reunis agora em activa propaganda,—oh
-cafila de pantomineiros!—angariando no
-Concelho donativos em dinheiro e em materiaes que
-habilitem a Santa Casa a, quanto antes, poder levantar
-esse edificio tão util para os infelizes?</p>
-
-<p>—Parece-me (diz o tal diabo) que se a Santa
-Casa, em vez de ter um capital de <b>cento e tantos<span class="pagenum"><a name="Pag_222" id="Pag_222">[222]</a></span>
-contos</b>, em inscripções, escripturas com hypothecas,
-e <b>fiadores</b> com <b>paes</b>, <b>manos</b> e <b>cunhados</b>,
-tivesse apenas algumas de X, ninguem lhe
-disputaria as eleições.</p>
-
-<p>Que diz V. Ex.ª a isto, interrogando a sua consciencia?</p>
-
-<p>Teremos n’este caso Philantropia, Politica, ou...
-abandalhado Arranjo?</p>
-
-<p>Em coisas da Santa Casa, <i>por emquanto</i>, vem só
-isto á luz do dia.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Ora aqui tem V. Ex.ª um rapido e superficial
-exame sobre as principaes instituições da nossa terra.</p>
-
-<p>A Politica, a Hypocrisia e a Rotina imperam soberanamente
-em tudo que póde ser util em Valença.
-Por isso, quando a gente bate á porta de muitos filhos
-d’esta terra, que lá fóra, pela sua posição e pela
-sua fortuna podiam auxiliar novas instituições, só
-ouve queixas, reclamações e justos resentimentos.</p>
-
-<p>O grande homem da nossa terra seria um velhaco
-qualquer que em eleição renhida pudesse <i>empalmar</i>
-o João de Gaiteira, ou o Abbade de Cerdal.</p>
-
-<p>Se alguem conseguisse isso, á noite, na taberna
-do Pedro, teria uma apotheose de <i>calhos</i> e de chouriço
-com ovos, de rachar tudo.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_223" id="Pag_223">[223]</a></span></p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>—Mas, oh sr. Zinão, dirá V. Ex.ª, então não ha
-por ahi homens que tenham interesses no Concelho
-e que lucrem com o seu desenvolvimento?</p>
-
-<p>—Oh, meu senhor! V. Ex.ª sabe quem verdadeiramente
-mexe os pausinhos da nossa Politica? São
-os pyrotechnicos da <i>Questão da Santa</i>. São dois homens
-que teem tantos interesses no Concelho como
-eu, que por duas <i>perras chicas</i> offereço a V. Ex.ª as
-minhas propriedades. São os que armam as <i>baralhas</i>.</p>
-
-<p>Não teem um palmo de terra que os interesse no
-desenvolvimento da Agricultura; não teem uma capoeira
-nas freguezias, que lhes faça sentir a necessidade
-de estradas; não teem relações directas ou indirectas
-com o Commercio, nem com a Industria.
-Entre elles e as instituições civis ha um abysmo.
-Nunca fizeram parte d’uma corporação que tratasse
-do desenvolvimento do Concelho. De administração
-municipal sabem tanto, como eu sei quem V. Ex.ª é.
-Influencia pessoal: como são dois, levam dois votos.
-Tem Politica de sapa. Ensaiam as comedias, põem
-os actores na rua, mas quando veem fogo nas barbas
-da vizinhança mettem-se em casa e fecham as portas.</p>
-
-<p>Posso francamente asseverar a V. Ex.ª que esses
-homens inspiram na povoação mais antipathias do
-que affectos. Elles que digam a V. Ex.ª se não teem<span class="pagenum"><a name="Pag_224" id="Pag_224">[224]</a></span>
-a consciencia d’isso... Aos que lhes fazem a côrte
-oiço ás vezes cada arcada, em surdina...</p>
-
-<p>Um quer por força pôr o pé nas muralhas para
-trepar á tina, onde se tingem as meias. O outro surgiu
-ahi na tripode das sibyllas sem a gente saber
-<i>como</i> nem <i>porque</i>; dizem que vê as coisas muito ao
-longe. Ás vezes adivinha, mas se dá a <i>palavra d’honra</i>...
-é tolice certa.</p>
-
-<p>Ora, como na terra dos cegos e dos dorminhocos
-quem tem um ôlho é rei, os homens por cá vão arranjando
-a sua vida muito honradamente e livres de
-vergonhas do mundo.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Esses dois maioraes representam os dois partidos;
-porque nós, meu senhor, nominalmente, tambem
-temos dois partidos, como as terras grandes. A gente
-é sempre a mesma.</p>
-
-<p>V. Ex.ª recorda-se do que succedeu ha quinze
-dias, em S. Pedro, com os comparsas d’aquelle <i>Auto</i>
-dos Moiros e Christãos?</p>
-
-<p>O Zé da Cancella, o Chico da Aguilhada e o Tóne
-do Pernicas, no primeiro domingo <i>faziam</i> de judeus.
-N’aquella scena em que, por ordem do Bento Cambádas,
-que era o Herodes, matam os innocentes, o
-publico e especialmente o mulherio, <i>escamou-se</i> com<span class="pagenum"><a name="Pag_225" id="Pag_225">[225]</a></span>
-elles, mandou-os <i>p’ro raio que os parta</i> e correu-os a
-<i>soque</i>.</p>
-
-<p>No outro domingo nenhum d’elles quiz <i>fazer</i> de
-judeu e para que a <i>peça</i> se representasse, metteu-se
-o Senhor Abbade no caso. Os que eram christãos
-passaram para judeus e vice-versa.</p>
-
-<p>Cá, nas farças da nossa Politica, succede o mesmo.
-Quem faz de Abbade é o Senhor Administrador.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Ora aqui está, meu senhor, a razão porque o
-Concelho ganhou o titulo de <i>burgo podre</i> e a razão
-porque a gente, quando vae offerecer o circulo a pessoas
-serias, como succedeu ha mezes, é posta no ôlho
-da rua pelo creado da casa.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Voltemos á <b>Questão da Musica</b> e encaremol-a
-pelo seu verdadeiro aspecto—o comico.</p>
-
-<p>Esta celeberrima questão, decomposta nos seus
-factores, baseia-se n’uma simples formalidade, n’uma
-pueril e ridicula ceremonia: a licença do Conde de
-Lippe, a licença do Administrador, ou uma e outra
-concedidas ao mesmo tempo.</p>
-
-<p>É um caso comico, como o do Hyssope.</p>
-
-<p>Examinemos:</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_226" id="Pag_226">[226]</a></span></p>
-
-<p>A Musica é a applicação artistica do som; influe
-poderosamente em a nossa natureza psychica, quer
-a agite com as sonatas de Beethoven, em que o Sentimento
-nos apparece burilado e subtil, como uma
-cinzeladura de Cellini, quer tumultue nas estranhas
-innovações de Wagner, em que a Harmonia, á
-primeira audição, nos fére de imprevista e áspera.</p>
-
-<p>Decomposta nos seus elementos, a Musica reduz-se
-a simples vibrações, transmittidas pelas ondas sonoras.
-No caso presente, visto que na <b>Questão da
-Musica</b> se trata d’um grupo de labregos, que selvaticamente
-mortificam os nossos apparelhos auditivos,
-essas vibrações que, pela instrumentação, se
-transformam na Harmonia, partem do organismo humano.</p>
-
-<p>Examinando o organismo humano, verificamos
-que os elementos essenciaes á potenciação d’essas
-vibrações podem, egualmente, ser fornecidos pelas
-duas extremidades do canal digestivo e modulados,
-ou regulados, pela articulação da maxilla inferior, ou
-pela elasticidade muscular do esphincter.</p>
-
-<p>A composição molecular d’esses elementos será
-pois: oxygenio, azote, acido carbonico e vapor de
-agua (caso <i>a</i>), ou: hydrogenios carbonado e sulfurado
-e acido carbonico (caso <i>b</i>).</p>
-
-<p>A sua acção vibratil chama-se vulgarmente sôpro,
-ou bufo; e n’esta ultima designação, que é a mais
-geral, para distincção dos dois casos <i>a</i> e <i>b</i> relativos
-á composição molecular, costuma o povo usar do genero<span class="pagenum"><a name="Pag_227" id="Pag_227">[227]</a></span>
-masculino no primeiro caso, e do feminino no
-segundo.</p>
-
-<p>Assim, por uma rigorosa analyse, de deducção em
-deducção, chegamos ao seguinte resultado: que a essencia
-(caso <i>b</i>), o valor, a importancia d’essa celebre
-questão, que fez perigar a paz das nações e que, por
-ahi, inspirou tanta facecia e tanto remoque de <i>fino
-espirito</i>—é um simples caso de sôpro, é um reles
-caso de bufo (<i>b</i>).</p>
-
-<p>E continuando a empregar o methodo deductivo,
-visto que esse caso foi o producto d’uma laboriosissima
-gestação politica, com muita vigilia, muita tactica
-e muito estudo, por isso que foi cuidadosamente
-preparada pelos dois partidos contendores—visto
-que elle symbolisa e exprime os valimentos intellectuaes
-e politicos dos chefes e maioraes—afoitamente
-podemos dizer, synthetizando: tudo isso e todos
-elles não valem um bufo! (<i>b</i>)</p>
-
-<p>Politiquemos:</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Os dois partidos prepararam com longa antecipação,
-no remanso dos gabinetes, esse estupendo acontecimento.</p>
-
-<p>Mediram-se as forças, calcularam-se os accidentes,
-preveniram-se as hypotheses, estudou-se cuidadosamente
-o terreno, escolheu-se a hora e inventou-se<span class="pagenum"><a name="Pag_228" id="Pag_228">[228]</a></span>
-o pretexto. A malandragem de Ganfey foi assoldadada
-para deitar fogo ao rastilho.</p>
-
-<p>Na vespera de rebentar a bomba, descobriram-se
-os jogos e todos ficaram logrados. Um dos chefes recebia
-ordem para ficar ás ordens do outro; este, esbarrava
-a cabeça na estupidez do Zé Povo e nos
-barrancos que a sua inepcia cavára.</p>
-
-<p>Cá a gente (já se vê) n’essas alturas, arrebitava
-a pança com o brodio, a vêr os toiros de palanque;
-e, como elles ainda escabeceiam no curro, vae-lhes
-mettendo a sua farpa muito honradamente.</p>
-
-<p>Depois da explosão da <i>coisa</i>, principiou a desembestar-se
-por ahi a mais sordida mistela de pilherias
-apanascadas, que tiveram echo no districto,
-como se o ridiculo de tudo isso não fosse bastante
-para nos fustigar o rosto e alvoroçar o sangue.</p>
-
-<p>A partida perdeu-se. Quem a pagou (e foi carita)
-chorou sete dias e sete noites. Os pyrotechnicos metteram-se
-em copas. É da praxe: nas barracas do <i>Pim-pam-pum</i>,
-quem ageita os bonecos não paga entrada.
-Entra pela prenda...</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Farpeemos...</p>
-
-<p>Depois d’essa dejecção politica, os campos conservam-se
-armados, medindo-se os adversarios com
-rancor. No meio d’elles, lá está o sôpro, o bufo (caso
-<i>b</i>)—eterno pômo de discordia.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_229" id="Pag_229">[229]</a></span></p>
-
-<p>Progressistas teimam em obstar que a gente em
-occasião de festa, possa, á noite, dar a sua gaitada
-por essas ruas e muralhas.</p>
-
-<p>Regeneradores, pela penna auctorizada do Senhor
-Joaquim, como Juiz da Senhora da Saude, invectivam
-o Ministerio, reclamando a livre expansão do
-bufo (<i>b</i>).</p>
-
-<p>E agora, que estamos em maré de syndicatos,
-n’esta carencia de bufo (<i>b</i>) muito dinheiro podiam
-ganhar alguns senhores cá da terra e aquelle barqueiro
-de Vigo...</p>
-
-<p>Ha coisas que, guardadas, engarrafadas, servem
-para occasiões de falta e dão muito dinheiro...</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>O certo é que não se obtem licença para Musica
-dentro de Valença; ou porque seja negada por mero
-capricho do Senhor Administrador, ou porque a recuse
-o Lippes.</p>
-
-<p>Porque nós—louvado seja Nosso Senhor Jesus
-Christo—somos cidadãos tão portuguezes, como os
-de Coura; pagamos decima, como os de Coura; damos
-votos, como os de Coura; fazemos filhos para o
-exercito, como os de Coura, mas não temos as liberdades
-civis, que teem os de Coura.</p>
-
-<p>Pelos modos, ainda nos corre nas veias algum
-resto d’aquelle bulhento sangue dos nossos antepassados,<span class="pagenum"><a name="Pag_230" id="Pag_230">[230]</a></span>
-os soldados de Viriato, que, segundo diz o
-Senhor Joseph Avelino, tanto assarapantaram o
-mundo com os seus feitos; e o Governo, em vez de
-uma auctoridade administrativa, manda-nos duas!</p>
-
-<p>—Quer V. Ex.ª dar a sua gaitada? Precisa de
-dar o seu <i>bufo</i>?</p>
-
-<p>Tem de ir pedir ao Administrador e á Praça; e
-antes de transitar por essas ruas tem de bufar, voltado
-para a casa do Governo. Se offerece as primicias
-do <i>bufo</i> á Camara, ou á Administração, a Praça
-amua e ha baralha, como succedeu com a <i>fanfurrilha</i>
-gallega.</p>
-
-<p>—Tem V. Ex.ª fogo em casa?</p>
-
-<p>Acodem, logo, da Praça e da Administração:</p>
-
-<p>—Mando eu.</p>
-
-<p>—Não mandas tu.</p>
-
-<p>—Apago eu.</p>
-
-<p>—Apaga tu.</p>
-
-<p>Levanta-se questão; tudo grita, tudo berra, e
-V. Ex.ª, para se livrar de prejuizos, o que tem a pedir
-ao seu Anjo da Guarda é que o deixem ficar sósinho
-com o fogo, que é mais socegadinho e pacato.</p>
-
-<p>—Ha <i>banzé</i> no theatro, ou na rua? Lá os temos
-em disputa.</p>
-
-<p>De fórma que, se um dia, V. Ex.ª por esquecimento,
-por descuido, larga o seu bufo (<i>b</i>) na cara
-d’uma das auctoridades, e sem a devida licença, leva
-pancada dos dois.</p>
-
-<p>É preso. Chega um paysanduco e agarra V. Ex.ª<span class="pagenum"><a name="Pag_231" id="Pag_231">[231]</a></span>
-pelo braço direito. Vem o Balagota e agarra-o pelo
-esquerdo.</p>
-
-<p>—Venha para a Praça!</p>
-
-<p>—Venha para a Administração!</p>
-
-<p>Puxa um; estica o outro.</p>
-
-<p>V. Ex.ª atrapalha-se, reclama, gesticula, bufa... (<i>b</i>)</p>
-
-<p>Se o faz na cara do paysanduco, mais pancada
-leva. Se mimoseia o Balagota, este põe-se ainda mais
-amarello do que é, e apita.</p>
-
-<p>Santo nome de Maria! O que ha-de a gente fazer?</p>
-
-<p>Sem musica, sem <i>bufo</i> não se póde passar. Fossem-no
-lá prohibir ao Senhor A. Seixas! Estoirava...
-de raiva.</p>
-
-<p>Dentro de casa, felizmente, ainda V. Ex.ª póde
-mandar tocar a Musica e dar o seu <i>bufo</i>; mas eu
-estou a vêr isto de tal fórma que, d’aqui a pouco, se
-V. Ex.ª, em qualquer sitio, na sala de visitas, na
-cama—por exemplo—lhe appetece bufar, tem logo,
-ao seu lado, um paysanduco e o Balagota, procurando,
-investigando, cheirando, esmiuçando, por cima e
-por baixo da cama, levantando, até, a roupa para
-metterem os narizes (imagine V. Ex.ª a sua desgraça
-se, para essa operação, lhe apparece o nariz do Dr.
-Ladislau...) e berrando depois, irados:</p>
-
-<p>—<i>Aqui deu-se um bufo!</i></p>
-
-<p>E V. Ex.ª terá de pedir perdão, confessar o crime,
-ou desculpar-se humildemente, dizendo:</p>
-
-<p>—<i>Não dei, não, senhor! E se dei... não foi por
-querer...</i></p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_232" id="Pag_232">[232]</a></span></p>
-
-<p>Ora a nossa desgraça!</p>
-
-<p>Oh gentes do Kalakana! que dizeis a isto?</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Esta interrupção dos tubos... musicaes—claro é—vem
-a acabar; e com a mesma imbecilidade, com
-que actualmente os progressistas impedem a livre
-circulação do <i>bufo</i>, os regeneradores, subindo ao poder,
-hão-de metter cá dentro, quanto nedio folle por
-ahi haja, previamente reforçado com alimentos explosivos.</p>
-
-<p>E n’esse dia anti-pituitario, em que tenho de encontrar:
-uns, de vexados, em casa ou fugindo de
-corrida ao apupo; outros, de pança tesa e cara alegre,
-abraçando-se por essas ruas—e todos, supinamente
-idiotas e essencialmente ridiculos—cá me
-tendes, oh <i>bufos</i> e <i>anti-bufos</i>!, para vos estralejar
-nas ventas a mais sonora gargalhada, que gentes de
-Valença teem ouvido!</p>
-
-<p>E tenho tambem uma idea...</p>
-
-<p>Emfim, vocês merecem recompensa, pelo enthusiasmo
-com que teem tratado d’essa questão, de
-grande valor e importancia para a terra. Mastigae
-já em secco e ouvi lá marotinhos: (mas caluda, por
-emquanto):</p>
-
-<p>Nos <i>cómes-e-bébes</i> dos philarmonicos hei de misturar
-umas gottasinhas d’um certo elemento drastico</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_233" id="Pag_233">[233]</a></span></p>
-
-<p>—Oleo de Croton Tiglium—por exemplo, para que
-elles, nas ruidosas e puxadas explosões dos seus <i>bufos</i>,
-vos possam dar tambem—oh progressistas e regeneradores
-do pataco!—algo mais de...</p>
-
-<p class="mt3 right">...solido!</p>
-
-<p class="mt3">Toca a aguçar a dentuça, Politiqueiros de meia-tigela!</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_234" id="Pag_234">[234]</a></span></p>
-
-<hr class="chap" />
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_235" id="Pag_235">[235]</a></span></p>
-
-<h2 id="XV">XV<br />
-<span class="smaller">As Muralhas</span></h2>
-
-<p>Em que condições vivemos?</p>
-
-<p>Com pejo hesito em denuncial-as.</p>
-
-<p>Vivemos acorrentados ao estupido regulamento,
-dado ás gentes, ha perto de seculo e meio, pelo Conde
-de Lippe.</p>
-
-<p>Vivemos como os forçados e os grilhetas—cercados
-de muralhas.</p>
-
-<p>O que significam, hoje, as muralhas?</p>
-
-<p>O retrocesso, o dominio brutal da pedra; isto é,
-Pasteur, Edison, Comte, Jenner, Spencer, Hugo, Castelar,
-Capello, Ivens, Herculano, Pestalozzi, Broca,
-Kossuth, Humboldt, Chevreul, Wurtz, Lesseps, Eiffel,
-arremessados para a barbarie dos tempos primitivos,
-para a idade paleolithica, em que o homem
-usava cuecas, cozinhava de cocoras, contava pelos
-dedos e pescava trutas á unha, porque desconhecia,<span class="pagenum"><a name="Pag_236" id="Pag_236">[236]</a></span>
-ainda, a engenhosa disposição do anzol e a grande
-vantagem da minhoca.</p>
-
-<p>Significam os combates dos barbaros; a bruteza
-dos despotas; as luctas fratricidas; o assassinato legal;
-a ambição copulada pela força; a lucta braço a
-braço, arca por arca, alma a alma; a feroz e brutal
-sensualidade do vencedor, que sorve dos labios do
-vencido o ultimo alento; o escabujar do moribundo
-nas vascas de cruissima agonia...</p>
-
-<p>Significam as pontes levadiças, o embate de duas
-ondas humanas que se chocam, se enroscam, se atropelam,
-se mordem e se agitam por fim, convulsivamente,
-n’um montão disforme de farrapos, de carnes
-ensanguentadas, onde rouquejam as maldições,
-os estertores, até que as rodas da carreta, ou as patas
-ferradas d’uma mula acabem de esmagar, de confundir
-e triturar.</p>
-
-<p>Significam o assedio, o bombardeamento, o incendio,
-a fome, as mil privações e sobresaltos; a viuvez,
-a orphandade, o lucto—a morte; isto é: quatro pás
-de terra sobre um corpo amado, que jaz hirto e nú,
-ahi para qualquer canto, sobre o monturo, proximo
-á <i>Sexta</i>; as canções roucas e truanescas dos coveiros
-do Hamlet; o uivar sinistro da canzoada lazarenta,
-que escancara as mandibulas, esgaravatando a terra
-para esfarrapar as carnes; o crocitar lugubre dos
-corvos, que revolteiam no azul dos céos, espreitando
-lauto e succulento festim no rebordo ensanguentado
-das feridas...</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_237" id="Pag_237">[237]</a></span></p>
-
-<p>Significam a agonia lenta, afflictiva; o velar-se
-da vista nas sombras da Morte e, n’esse debil bruxolear
-do espirito, a visão meiga e então dolorosa da
-familia, da infancia, dos affectos que nos ligaram á
-vida sem que, collados os labios, confundidos os alentos,
-n’um derradeiro olhar e n’um derradeiro beijo,
-se possa desprender a alma entre almas que nos
-amaram.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Com que veneração e respeito eu conservaria uma
-das tuas cans, benemerito Pasteur, apostolo bemdito
-do Bem, e com que tremendo pontapé eu te esmigalharia
-o busto, se aqui o tivesse, feroz Napoleão, negro
-chacal da Morte, para quem são poucos todos os
-horrores e tormentos, que a genial e portentosa imaginação
-de Dante phantasiou nos seus nove circulos!</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Felizmente, toda esta sentina de granito que os
-espiritos bellicos e phantasistas denominam <i>formidolosa
-Praça</i>, nunca teve um real de importancia, na
-historia militar do nosso paiz.</p>
-
-<p>Isto foi sempre o que hoje é—uma <i>feira da ladra</i>
-de tarecos velhos e de cacada guerreira.</p>
-
-<p>Quando em 1809, Soult atravessou a fronteira, o<span class="pagenum"><a name="Pag_238" id="Pag_238">[238]</a></span>
-aspecto d’esta carcassa não o atrazou um minuto na
-marcha. Passou ao largo, sorriu, atirou cá dentro
-meia duzia de obuzes e continuou em paz o seu caminho.
-Palpitou-lhe que não valia a pena subir a Gaviarra,
-porque não tinhamos custodias d’oiro para
-roubar, nem preciosidades artisticas; n’essa epocha
-não existia o muzeu do sr. Sampaio, nem se falava
-na mystica collecção do Albininho.</p>
-
-<p>Em 34, Napier, a cavallo n’um burro pôdre, veio
-de Caminha a Valença, seguido por um pelotão de
-marujos inglezes. Sem estribos, com a volta das
-meias cahidas sobre os sapatos, rindo com bom humor,
-berrou alli da Esplanada: «<i>Ao governador de
-Valença! Senhor: tenho uma esquadra em Caminha
-e se vos não entregaes, mandarei buscar cem peças de
-artilheria, cercarei a praça e a vossa guarnição será
-passada á espada.</i>»<a name="FNanchor_38" id="FNanchor_38"></a><a href="#Footnote_38" class="fnanchor">[38]</a></p>
-
-<p>D’alli a um quarto de hora, Napier estava cá
-dentro.</p>
-
-<p>Depois d’isso, os grandes successos militares da
-nossa terra limitam-se a breves assedios, nas luctas
-civis de 37 e 47. Houve muito susto, muito fanico
-nos dois sexos, alguma granada para espalhar tristezas,
-e assim se arranjou um simulacrosito pacato e
-economico d’um cerco em regra, como o que soffreu,
-ha 19 annos, Strasburgo—(senhoras e senhores, que
-ainda fallaes com pavor de 37 e 47)—em que aquella<span class="pagenum"><a name="Pag_239" id="Pag_239">[239]</a></span>
-desgraçada cidade teve constantemente, vomitando
-a morte e a ruina para dentro dos seus muros, umas
-170 boccas de fogo—ninharia que devia fazer um
-poucochito de barulho...</p>
-
-<p>Mas apesar d’isso, de nada valeram os ultimos
-assedios; eu—com franqueza—sinto-me muito mais
-feliz do que os srs. Manoel Antonio de Barros, José
-e João Seixas, Santa Clara e outros que assistiram
-a essas tristes scenas das nossas dissenções politicas;
-e sinto-me mais feliz, porque, emfim, não me destinou
-Deus para emprezas guerreiras e contento-me
-em conhecer os effeitos e propriedades da polvora
-nas bichinhas de rabear do S. João, ou nos devaneios
-pyrotechnicos da palerma Urgeira, sem offensa para
-o sr. Chiquinho Veiga.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Mas vejamos qual é a necessidade de conservar
-essas odiosas reliquias dos tempos barbaros e qual a
-razão que se oppõe, a que nos seja permittido o que
-já conseguiram outras terras da fronteira, como Caminha,
-Cerveira, Monsão e Melgaço—o arrasamento
-de tão brutaes construcções.</p>
-
-<p>Será a posição estrategica?</p>
-
-<p>Condições excepcionalmente favoraveis na opposição
-a uma invasão extrangeira?</p>
-
-<p>O inexpugnavel d’aquella posição?</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_240" id="Pag_240">[240]</a></span></p>
-
-<p>Cartas na mesa, teias d’aranha limpas e jogo
-franco, senhores da alta militança, lá das Secretarias
-da Guerra.</p>
-
-<p>Toda esta coisa, com as suas muralhas, baluartes,
-fortes, contra-fortes, revelins, fossos, falsas bragas,
-casamatas, cortinas, tenalhas, poternas, escarpas, contra-escarpas,
-banquetas, meias-luas, taludes, pontes
-levadiças, abobadas, etc., etc., que constituem na sua
-complicada relação a arte de Vauban, toda esta coisa,
-repito—não vale um pataco sebento do sebentissimo
-D. João VI!</p>
-
-<p>E tanto não vale um pataco, que apesar do apregoado
-valor estrategico augmentar com a Ponte internacional
-e de os engenheiros militares terem lembrado,
-quando se construiu a linha ferrea, certas
-obras que garantissem as condições da defeza, prejudicada
-com os aterros e desaterros—até á data nada
-se fez, nem se fará, se Deus Nosso Senhor quizer.</p>
-
-<p>E tanto não vale um pataco, que se eu tiver em
-Lisboa um bom <i>trunfo</i> politico para empenho: se eu
-fôr, por exemplo, um João da Gaiteira, elevado politicamente
-em potencia votante, ao quadrado ou ao
-cubo, obterei, não só licença para construir nos arrabaldes
-da Praça, como, tambem, limite de altura superior
-ao que eu desejar, embora a isso se opponham
-todos os paysanducos e todos os regulamentos do sabio
-conde de Lippes.</p>
-
-<p>Ora, de duas, uma: é ou não é importante o valor
-estrategico da Praça?</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_241" id="Pag_241">[241]</a></span></p>
-
-<p>Não é. Dil-o a sua historia; dil-o a historia das ultimas
-campanhas europeas e encarrega-se de nol-o
-dizer o Governo de S. Magestade, quando o apertam
-com a tarracha do voto.</p>
-
-<p>Será parvoiçada suppor que, no caso d’uma invasão,
-o inimigo se deteria por um momento com as momices
-e os esgares d’esta desdentada carcassa.</p>
-
-<p>Perguntem a Strasburgo, a Verdun, a Bitche, a
-Toul, a Soissons, a Metz, a Schelestadt, para que lhes
-serviram as vantagens do terreno e as prevenções de
-Vauban.</p>
-
-<p>E sendo nullo o apregoado valor estrategico, que
-outra causa fundamenta a estupida prohibição que se
-oppõe á construcção de novos edificios, ao desenvolvimento
-de povoação, tornando odiosa a missão d’esse
-official que, com um curso de engenharia e com a elevada
-orientação scientifica, que hoje se obtem nas Escholas
-superiores, ahi está de sentinella ao regulamento
-senil que tresanda a raposinho, a catinga, e
-de que a rotina, o egoismo, e por vezes a velhacaria
-fazem instrumento de valimento e, até, de vinganças
-pessoaes?<a name="FNanchor_39" id="FNanchor_39"></a><a href="#Footnote_39" class="fnanchor">[39]</a></p>
-
-<p>Attende-se á probabilidade d’um cerco, d’um
-acampamento, e á necessidade de inutilizar, rapidamente,
-ao inimigo quaesquer pontos de abrigo?</p>
-
-<p>Mas, oh Molkes pataqueiros! Então prohibis que<span class="pagenum"><a name="Pag_242" id="Pag_242">[242]</a></span>
-em minha casa possa elevar meio palmo ao cano da
-latrina, impedis que no meu quintal levante uma barraca
-para guardar as melancias e os nabos, e deixaes
-ahi cavar, a dezenas de metros da praça, esse desaterro,
-onde se abriga uma divisão com as respectivas
-familias, se tanto fôr necessario?</p>
-
-<p>Impedis que lá fóra, na minha horta, levante um
-pau com o gallo, para catavento, ou equilibre quatro
-taboas, que um cão, alçando a perna no exercicio de
-certa funcção, faz cahir, e mandaes construir essa
-outra fortaleza de granito—a estação do caminho
-de ferro?</p>
-
-<p>Admittindo, mesmo, que o inimigo se estabelecesse
-para cá da fronteira, que seria de Valença se
-no Faro, no Marco, ou em qualquer outra eminencia,
-elle assestasse quatro canhões Krupp, Bange, Amstrong
-ou Fraser, que arremessam projecteis com menos
-peso do que as vossas cabeças—verdade é, porque
-não teem tanto municio—a 12 e 16 kilometros
-de distancia?</p>
-
-<p>Para que nos asphyxiaes, pois, com estas montanhas
-de pedra, militarões lá das altas repartições da
-Lysbia, estrategicos de meia tigela, que por ahi inficionaes
-de rheumatismo, de gotta, de rapozinho e
-de pingo simontado o que póde haver de proveitoso
-e util nas instituições militares da nossa Patria?</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_243" id="Pag_243">[243]</a></span></p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>As muralhas para nada mais servem do que para
-attestar aos extranhos que—portas a dentro—o
-Progresso deixou de actuar.</p>
-
-<p>Servem, como pittorescamente disseram, ha mezes,
-uns lisboetas que ousaram entrar cá dentro: para
-impedir que a porcaria e... manchem a belleza dos
-arrabaldes; servem para balde do lixo, das immundicies,
-e para os habitantes da villa satisfazerem, prompta
-e commodamente, um determinado numero de necessidades,
-tanto em funcções de reproducção, como
-em funcções de nutrição.</p>
-
-<p>Servem para a gente se desfazer das ninhadas
-de gatos, que a <i>Malteza</i> arranja em janeiro com as
-suas serenatas ao luar; servem para uma entrevista
-baratinha e recatada com pudibunda sopeirinha; servem
-para manter certas artes e officios; servem
-para fornecer o Hospital militar de bronchites, tysicas,
-pneumonias e doenças assizicas, que essas desgraçadas
-sentinellas arranjam em larga copia nas
-frigidissimas noites de inverno, quando o nordeste,
-que corta e açoita, as apanha amarradas com a trela
-da disciplina á carreta d’uma peça rachada, vigiando
-que o gallego não escale as muralhas e a leve para
-berloque da cadeia.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_244" id="Pag_244">[244]</a></span></p>
-
-<p>E servem, mais, para sustentar essa coisa caduca,
-ridicula, inutil, offenbachicamente intitulada o</p>
-
-<p class="center">Governo da Praça!</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>—Governo da Praça!</p>
-
-<p class="tb">Raciocinemos logicamente.</p>
-
-<p>Qual é a idea implicita n’este titulo?</p>
-
-<p>Commando, direcção na defeza da dita Praça.</p>
-
-<p>O que exigem estas funcções?</p>
-
-<p>Conhecimentos estrategicos e noções de todos os
-ramos da moderna Sciencia militar, alliados ao senso,
-ao valor, á prudencia, ao prestigio e á energia.</p>
-
-<p>A quem tem sido confiado tão importante cargo?</p>
-
-<p>Ao Zé da Rosa...</p>
-
-<p>Ora, meus senhores, com franqueza; eu aposto
-<i>aquillo</i> de que se faziam as barretinas, quando não
-eram da pelle d’urso, se—declarada a Praça em estado
-de sitio e confiado o commando supremo com a direcção
-de tudo ao Senhor Zé da Rosa—a cavallo n’um
-cabo de vassoira, com um espeto de assar cabritos,
-com tres <i>malzabetes</i>, dois <i>paus-reaes</i> e um <i>fileiras</i>, não
-tomar Valença e não levar a toque de caixa na minha
-frente até ás Bornetas, o Senhor Governador e todo
-o seu Excellentissimo Estado-maior!</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_245" id="Pag_245">[245]</a></span></p>
-
-<p>E para isto, para conservar a esta latrina uns apparatos
-bellicos de opereta, estou eu arriscado, por um
-descuido, por uma descarga electrica, a dar o meu passeio
-aereo até aos reinos da Lua, com a conservação
-estupida de milhares de kilos de polvora, que uma
-noite podem ter a phantasia de condemnar a minha
-humilde pessoa áquellas maravilhosas viagens de Julio
-Verne.</p>
-
-<p>Ora, além do perigo, imagine V. Ex.ª a que enormes
-responsabilidades, a que enormes complicações
-diplomaticas, a que enormes indemnisações o nosso
-Governo se arrisca, conservando por cá essa materia
-explosiva, que dava para tanta <i>bichinha de rabear</i>
-e para tanto <i>caganitão</i>, se lhe quizesse dar applicação
-differente da que ella hoje felizmente tem: estoirar
-fragas e rasgar montanhas para facilitar o
-avanço da locomotiva.</p>
-
-<p>Imagine V. Ex.ª que em noite estrellada de agosto,
-Don Benito Naveas e sua Ex.ᵐᵃ Familia tomam
-socegadamente o <i>té</i>, na sua <i>habitacion</i> de Tuy.</p>
-
-<p>Don Benito, fiel ao partido legitimista encarece
-mais uma vez a bondade e os merecimentos de D. Carlos,
-commentando tranquillamente entre saboreadas
-fumaças d’um <i>pitilho</i> e goles de <i>té</i>, as noticias que,
-sobre o Pretendente, em o numero de <i>miercoles</i>, apresenta
-<i>La Integridad</i>, luminosa gazeta assotaina da
-inventora dos <i>malzabetes</i>.</p>
-
-<p>«<i>Con securidad, Don Carlos és muy bueno hombre;
-una gran cabeza; el unico rey que debia gobernar la<span class="pagenum"><a name="Pag_246" id="Pag_246">[246]</a></span>
-Espana; es un hombre de religion, y que tal... y que
-sei yo...</i>»</p>
-
-<p>Subito, ouve-se um estampido medonho. A casa
-abala-se nos seus alicerces; as paredes oscillam; as
-traves gemem; as loiças tocam nos aparadores e saltam
-em furiosa dança macabra. Ouve-se um <i>crac</i> medonho,
-fende-se o tecto e apparece em cima da mesa
-<i>del comedor</i>... quem?—o Senhor Abel Seixas, em
-pello e em cabello, tal qual estava na cama, sem chinó,
-pança sumida e olhinhos espavoridos!</p>
-
-<p>V. Ex.ª ri-se? Pois o caso não é para isso. Se chegam
-uma isca de fogo ao paiol, a qualquer de nós
-póde succeder o mesmo.</p>
-
-<p>E diga-me V. Ex.ª quanto teria o nosso Governo
-de pagar a Don Benito pela perturbação do seu socego
-e—o que é muito peor—pela alimentação d’esse
-insondavel abysmo—a barriga do snr. Seixas—emquanto
-este cavalheiro, arrancado bruscamente do seu
-leito e atirado por esses ares em escandalosa nudez,
-se recusasse, pudicamente, a ostentar pelas <i>calles</i> de
-Tuy, no regresso á Patria, as linhas bambaleantes
-das suas formas esculpturaes.</p>
-
-<p>Matutae sobre o caso, homens da Governança!</p>
-
-<hr class="chap" />
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_247" id="Pag_247">[247]</a></span></p>
-
-<h2 id="XVI">XVI<br />
-<span class="smaller">A Manifestação de 14 de Janeiro<a name="FNanchor_40" id="FNanchor_40"></a><a href="#Footnote_40" class="fnanchor">[40]</a><br />
-<span class="smaller">(PROTESTO)</span></span></h2>
-
-<p>Para cá dos limites que tracei á critica dos acontecimentos,
-por qualquer aspecto evidentes e impressionaveis
-na chronica politica d’esta terra, disponho
-hoje, serenamente, os apontamentos colligidos sobre
-a manifestação de 14 do corrente, para os sujeitar á
-analyse recta e imparcial, isenta de considerações pessoaes
-ou collectivas, sem tergiversações de ameaças
-ou de lisonjas, a que subordinei o programma dos <i>Sinapismos</i>.</p>
-
-<p>Á frente d’essa manifestação eu vi homens a quem
-dedico verdadeira amizade; que respeito nos actos da<span class="pagenum"><a name="Pag_248" id="Pag_248">[248]</a></span>
-sua vida particular; que me honram com as suas relações,
-porque se impõem á consideração de Valença
-pelo seu caracter digno e pela sua honradez inconcussa.</p>
-
-<p>Esses homens organizaram uma manifestação popular,
-que annunciaram como patriotica e que outros
-classificaram como politica. Inspirada no amor da Patria,
-ou na paixão partidaria, essa manifestação, evidenciada
-nas ruas e nas praças, discutida na Imprensa
-como expressão dos sentimentos d’uma parte da população,
-perdeu o caracter, para mim respeitavel, d’um
-acto isolado da vida particular e adquiriu a importancia
-d’um facto social, publico e, portanto, sob o dominio
-da critica.</p>
-
-<p>Abstraio, pois, do meu espirito as relações que
-me unem a essas individualidades, e nos periodos que
-vou ordenar para a composição d’este artigo, declaro,
-outra vez ainda, que aprecio a manifestação promovida
-por um grupo anonymo de cidadãos e não
-por um grupo de individuos, d’esta ou d’aquella classe,
-d’aquella ou d’esta côr politica.</p>
-
-<p>A violencia da phrase com que tenha de censurar
-qualquer aspecto d’essa manifestação, que me pareça
-menos digno, não irá, pois, desvirtuar a sinceridade
-de relações, mais ou menos affectuosas; nem poderá,
-tambem, ser reputada como indicio de adhesão a opiniões
-já manifestadas por quem, em identicas apreciações,
-se deixa desorientar pelas paixões partidarias
-que levam a applaudir toda a inepcia d’um grupo em<span class="pagenum"><a name="Pag_249" id="Pag_249">[249]</a></span>
-que se está filiado, e a estigmatizar qualquer idea,
-muitas vezes util e proveitosa, suggerida pelos contrarios.</p>
-
-<p>Esta é a missão do critico e praza a Deus que a
-consciencia nunca me accuse de escrever o contrario
-do que ella, á luz da imparcialidade e d’um livre criterio,
-dieta á minha penna.</p>
-
-<p>Nos periodos d’este artigo abandono a feição humoristica
-dos restantes. Tenho de me referir á crise
-dolorosa por que actualmente passa a alma da nacionalidade
-a que me orgulho de pertencer; e n’essa referencia,
-quando a humilhação nos ruboriza as faces e
-a recordação das passadas grandezas nos amargura e
-entristece, o sorriso seria uma villania e a gargalhada
-seria uma infamia.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>A força inicial dos acontecimentos de 14 do corrente
-não se póde attribuir á expansão d’um sentimento
-patriotico, provocada pela recente affronta de
-Lord Salisbury; na agitação do grupo que promoveu
-a manifestação não vibrou a alma da Patria: tumultuou
-o espirito d’um partido.</p>
-
-<p>Mas de qualquer caracter, patriotico ou politico,
-essa manifestação, nas condições em que se realizou,
-envolvendo a bandeira nacional e a responsabilidade<span class="pagenum"><a name="Pag_250" id="Pag_250">[250]</a></span>
-d’uma povoação, não merece classificação diversa da
-que se póde exprimir com estas palavras:</p>
-
-<p class="center">foi <b>aviltante</b> para Valença.</p>
-
-<p>Os homens que a promoveram não teem direito á
-consideração e, muito menos, ao applauso dos seus
-conterraneos, porque não são patriotas sinceros, nem
-politicos dignos. São escravos inconscientes da politica
-sertaneja, d’essa degradante aberração de principios
-sãos, de crenças firmes, de convicções honestas, que
-desorienta, humilha e arrasta pela lama da indignidade,
-caracteres respeitaveis e talentos privilegiados.</p>
-
-<p>Envolveu-se n’essa <i>manifestação</i> a responsabilidade
-de Valença.</p>
-
-<p>Pois, em nome dos brios d’um povo que é portuguez,
-em nome d’uma terra que amo, e que se faz
-respeitar no paiz pela auctoridade intellectual dos filhos
-que a representam nos mais elevados cargos sociaes—eu
-<b>protesto</b> contra o labeu infamante, com
-que o grupo organizador da manifestação de 14 do
-corrente aviltou a nobilissima attitude da Patria na
-desaffronta d’um insulto e na defeza de direitos conquistados
-pelo sangue d’esses heroicos luctadores que,—transpondo
-novos oceanos e descobrindo novas constellações,
-arrostando os ignotos perigos do <i>Mar Tenebroso</i>
-que a phantasia popular envolvera na nebulosa
-dos mythos, luctando contra a aspereza de inhospitos
-climas e contra as rudes vicissitudes da guerra,—ás<span class="pagenum"><a name="Pag_251" id="Pag_251">[251]</a></span>
-mais remotas regiões, ás mais distantes e mysteriosas
-paragens, levaram o nome portuguez, desfraldando
-a bandeira, onde não se lia, como nas dos modernos
-exploradores inglezes: <b>Infamia</b> e <b>Oppressão</b>,
-mas:</p>
-
-<p class="center"><b>Liberdade. Civilisação. Progresso.</b></p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>—Impulsionou-nos, dizem, o amor da Patria.</p>
-
-<p>Discutamos, então, a manifestação, sob esse aspecto.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Lord Salisbury, representante d’um povo egoista,
-perfido e covarde, cuja Historia tem a gangrena da
-infamia, as pustulas da devassidão e o excremento das
-villanias, fustigou com o chicote do seu <i>ultimatum</i> as
-faces de todo o homem que se honra com o nome de
-<i>portuguez</i>.</p>
-
-<p>A grosseria avinhada do insulto, a brutalidade do
-attentado contra todos os direitos estabelecidos, a ferocidade
-do egoismo, a covardia da imposição d’uma
-besta superior em força, a dolosa argumentação abonatoria
-do <i>ultimatum</i> e—sobretudo—a consciencia
-da nossa fraqueza e da nossa impotencia para a defeza
-energica de direitos indiscutiveis,—afistularam<span class="pagenum"><a name="Pag_252" id="Pag_252">[252]</a></span>
-dolorosamente o coração da Patria e, de norte a sul,
-de oriente a poente, da cidade ao burgo, homens de
-todas as classes, de todas as condições e partidos,
-sentindo despertar, redivivo e forte, o espirito da nacionalidade
-e o orgulho d’outras eras gloriosas, ergueram-se,
-gritando: <b>Infamia!</b>—e occultaram o
-rosto, para que n’elle ninguem visse o rubor da vergonha
-e o vasquejar do desalento.</p>
-
-<p>A Imprensa, o Exercito, a Academia, a Magistratura,
-o Commercio, a Industria, os Municipios, as Sociedades
-recreativas, as Agremiações de classes, o
-banqueiro e o artista, o pobre e o rico,—arrebatados,
-galvanizados pela mesma chispa de acrisolado
-patriotismo—disputaram primazia de nobreza nos seus
-protestos.</p>
-
-<p>Mas no rosto de todos esses homens, na eloquencia
-dos seus discursos, no ardor das suas invectivas
-e no esgrimir da sua argumentação, eu vi sempre,
-evidentes, sinceros, expontaneos e fervorosos, os impulsos
-de nobilissimos sentimentos.</p>
-
-<p>Resaltava-lhes dos labios a indignação e, a espaços,
-no avincado da fronte e no amortecido do olhar,
-eu descubri o anciar d’uma grande dôr e o revolutear
-infernal do insulto humilhante, que não se póde vingar.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_253" id="Pag_253">[253]</a></span></p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Um cortejo grotesco, esfarrapado, ululante, recrutado
-na Parada-velha e avolumado por essa massa
-anonyma e inconsciente de povo, babugem na onda
-de todas as manifestações e comparsa indispensavel
-em todas as farças que tresandem a borga e a quartilhos
-de vinho, precedia o grupo promotor da <i>manifestação
-patriotica</i> valenciana.</p>
-
-<p class="tb">Lá na frente, um homem de cabellos brancos,
-agitando a bandeira da Patria.</p>
-
-<p class="tb">No conjuncto, uma arruaça carnavalesca, uma
-desordenada <i>fantochada</i>, scintillante de archotes, tocos
-de sebo e phosphoros de espera-gallego; ruidosa
-de gaiteiros e caixas de rufo, latas de petroleo, assobios
-de barro, arrotos, berros asselvajados, graçolas
-de bordel, acclamações roucas e avinhadas.</p>
-
-<p>Nos olhos, nas faces, na voz, no gesto dos promotores
-da <i>manifestação patriotica</i>, uma alegria evidente,
-saltitante, irreprimivel, estoirando nas expansões
-ensurdecedoras d’um jubilo guindado aos pinos
-do delirio, pelo sopro bestial d’uma pandorga de
-encarvoados hottentotes, já celebres na <i>Questão da
-Santa</i>.</p>
-
-<p>Abraços, fremitos de contentamento, chapeos no<span class="pagenum"><a name="Pag_254" id="Pag_254">[254]</a></span>
-ar, demonstrações de affecto, apotheoses jogralescas,
-guizalhadas de truão, vivas a Deus, ao Rei, ao Regedor
-da Parochia, ao Exercito, ás Artes, ao pendão
-das quinas, a Serpa, aos abbades, ao João da Gaiteira.</p>
-
-<p class="tb">Á frente, um homem de cabellos brancos agitando
-a bandeira nacional.</p>
-
-<p class="tb">Dominando a turba, no frontão dos Paços do Concelho,
-o escudo da Patria: a honra portugueza aviltada,
-as tradições gloriosas d’um gloriosissimo passado,
-a epopea das Indias, a harpa eolia dos <i>Lusiadas</i>
-vibrando, soluçante, com os derradeiros alentos
-do Infante navegador, de Vasco da Gama, de Alvares
-Cabral, de Affonso de Albuquerque, de Gonçalves
-Zarco, de Tristão Vaz, de Gonçalo Cabral, de Diogo
-Cam, de Bartholomeu Dias, de Fernão de Magalhães,
-de Godinho de Eredia, de Affonso de Souza, de D.
-João de Castro;—a fulgentissima constellação das
-nossas conquistas: Ceuta, Arzilla, Cabo Verde, Açores,
-Madeira, o Brazil, a Guiné, Mombaça, Quiloa,
-Mascate, Ormuz, Diu, Calecut, Goa, Malaca, Cananor,
-Ceylão—empallidecendo com os clarões avermelhados
-da archotada.</p>
-
-<p>E quando o nojento e sinistro abutre inglez, sulcando
-a escuridão da noite, poisava no frontão municipal
-e perante a <i>illustre</i>, <i>benemerita</i> e <i>patriotica</i> Commissão
-manchava, abrindo um pouco as pernas, o escudo<span class="pagenum"><a name="Pag_255" id="Pag_255">[255]</a></span>
-da Patria, com o excremento e com o vomito—quando
-em todas as povoações de Portugal se
-erguia, energico, o brado da desaffronta e, dolente,
-o gemido da humilhação—das varandas d’uma casa
-que pertence ao Estado e que representa, entre nós,
-a instituição mais nobre, porque é a fiel depositaria
-das nossas glorias e dos nossos direitos—essas tres
-palavras ôcas, golfadas, em comica explosão de inconcebivel
-calinice, sobre os ervaçaes de Paysandu:</p>
-
-<p class="center">Viva Valença... <b>restaurada!</b></p>
-
-<p>..............................</p>
-
-<p>Fumemos um cigarro para espalhar tristezas...............................</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Continuemos.</p>
-
-<p>Á frente, sempre á frente, rindo, e chorando lagrimas
-de pathetica sensibilidade, um homem de cabellos
-brancos, agitando a bandeira da Patria.</p>
-
-<p class="tb">E ao longe, mais ao longe, para lá do Minho,
-essa nação cavalheiresca, como nenhuma, quando
-offendem os seus brios: a patria do Cid, de Cortés,<span class="pagenum"><a name="Pag_256" id="Pag_256">[256]</a></span>
-de Pizarro e de Balboa; povo altivo que diz aos seus
-reis, em Aragão: <i>nós, que valemos tanto como vós</i>;
-que impõe a Carlos <span class="smcapuc">I</span> pela bocca de Padilla, heroico
-chefe dos <i>cumuneros</i>, o codigo das suas liberdades;
-que ainda, ha pouco, se convulsionava fremente e
-ameaçador perante a reclamação <i>ingleza</i> do Chanceller
-de ferro—povo rico de generosos enthusiasmos
-e enthusiasta de generosas ideas, nosso irmão
-de raça e companheiro nosso nas aventurosas emprezas
-d’alem mar—essa nobilissima Hespanha, escutando,
-absorta e commovida, os ruidos da bacchanal,
-o tumultuar da arruaça, o cornetear dos hymnos e a
-vozearia da magna caterva.</p>
-
-<p>E quando esse povo, pela bocca da sua Academia,
-do seu Exercito, da sua Marinha, das suas Sociedades
-de Geographia, nos enviava calorosos brados de
-affecto e nos insufflava alento e coragem—a <i>illustrada</i>,
-<i>benemerita</i> e <i>patriotica</i> Commissão promotora da
-<i>manifestação</i> erguia aos ares saudações á Hespanha
-e desfilava perante o representante d’aquella nação,
-em marcha fandanga, ao compasso esbodegado do
-hymno da Restauração!</p>
-
-<p class="tb">Á nota burlesca, a nota grosseira.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Quem hoje possue vagas noções de Historia patria,
-no mechanismo da sua evolução politica, reconhece,<span class="pagenum"><a name="Pag_257" id="Pag_257">[257]</a></span>
-com verdadeiro desalento, quanto tem sido
-errado o plano das nossas allianças.</p>
-
-<p>Desprezaram-se as affinidades da raça, a continuidade
-do solo, a homogeneidade das aspirações, a
-reciprocidade dos interesses, a egual fertilidade do
-clima, a riqueza dos productos, todas essas especialissimas
-condições de independencia e de defeza que,
-aproveitadas para beneficio commum em estreita alliança
-de dois povos—garantidas a liberdade e a
-autonomia das instituições politicas de cada um—podiam
-tornar a Peninsula uma facha de terreno
-inexpugnavel e inaccessivel ás ambições de qualquer
-despota.</p>
-
-<p>Com o rapido exame d’um mappa, a Natureza nos
-indica as vantagens d’essa alliança com a Hespanha.</p>
-
-<p>As truanescas manifestações do <i>Primeiro de Dezembro</i>
-invariavelmente ajoujadas a uma oratoria
-desenxabida e bolorenta, cinzelada a largos traços
-pelo escopro da Rotina, mirabolante de imagens sediças
-colhidas nos marneis paludosos d’um sentimentalismo
-piegas em materia de patriotismo—acirrando
-odios contra quem respeita a nossa autonomia, acata
-os nossos direitos e liberdades, e partilha, com egual
-dedicação, o nectar das nossas alegrias nas grandes
-consagrações civicas e o fel das nossas amarguras
-n’estes tristes dias de decadencia—devem banir-se
-para sempre em terras, como esta, que merecem cotação
-intellectual superior á de Paio Pires.</p>
-
-<p>Os sessenta annos do captiveiro chocalham constantemente<span class="pagenum"><a name="Pag_258" id="Pag_258">[258]</a></span>
-nos cerebros dos gafados patriotas, para
-despertarem no povo o espirito da sua nacionalidade
-e a altivez da sua autonomia. Mas esse periodo sumiu-se
-nas brumas do Passado e pela heroicidade
-dos quarenta immortaes—o que é muito discutivel—ou
-por circumstancias occasionaes e propicias á
-nossa emancipação, ha duzentos e cincoenta annos
-que somos livres e independentes, entre as demais
-nações da Europa.</p>
-
-<p>Transmittimos aos nossos filhos esse odio á Hespanha;
-sobre os bancos das praças, golfamos, em façanhuda
-oratoria, rancorosas recordações dos Filippes,
-das luctas da Independencia, das agruras do captiveiro,
-do despotismo de Olivares; e, entretanto,
-entra-nos John Bull em casa, empalma-nos as mais
-ricas colonias, impõe-nos esses vergonhosos tratados
-de 1642, 1661, 1703 (Metwen), 1810, 1842, 1878
-e esse celebre tratado de Lourenço Marques, em que
-os dois actuaes partidos da nossa politica teem graves
-responsabilidades, um porque o redigiu, outro
-porque o approvou, embora modificado.</p>
-
-<p>A Hespanha subjugou-nos por 60 annos. A Inglaterra
-subjuga-nos ha perto de tres seculos, dispondo
-da nossa Politica e absorvendo lentamente todos os
-elementos da nossa riqueza e da nossa vitalidade.
-Com a Hespanha não queremos relações, porque todos
-os nossos affectos são para a Inglaterra, que nos
-acorrenta a allianças, onde ha perfidias e traições, e
-nos socorre, quando lhe convém—com exercitos de<span class="pagenum"><a name="Pag_259" id="Pag_259">[259]</a></span>
-bandidos que devastam e roubam este desgraçado
-paiz com sofreguidão superior á do inimigo, que nos
-forçou a pedir soccorro.</p>
-
-<p>A Hespanha festeja e acolhe bizarramente os
-nossos exploradores. A Inglaterra sorri desdenhosamente,
-orgulhosa de Stanley, o feroz Attila dos sertões
-africanos. E quando nos vê abatidos, impotentes
-e pobres, insulta-nos pelas boccas do poltrão Bright,
-do troca-tintas eleitoral Salisbury e por essa horda
-de bandalhos, redactores do <i>Times</i> e do <i>Standart</i>,
-assalariados para abafarem as asquerosas applicações
-dos <i>Telegraph’s boys</i>.</p>
-
-<p>Todavia, quando Sua Alteza o Principe de Galles
-vem a Lisboa gastam-se centenas de contos com
-a sua recepção, e quando a <i>graciosa</i> Magestade, (que
-graça!) Mamã do dito Principe, solemnisa o jubileu,
-os representantes do povo portuguez curvam-se, reverentes,
-em respeitosos salamaleques, aos <i>graciosos</i>
-pés da <i>graciosa</i> Imperatriz das Indias!</p>
-
-<p>E no <i>Primeiro de Dezembro</i>, já se vê, grossa
-pancadaria de gaiteiros e um nunca acabar de foguetes
-com tres respostas.</p>
-
-<p class="tb">O hymno da Restauração desperta antigos rancores
-e origina odios, que a Hespanha não merece.
-Mandar tocar esse hymno, aqui, na fronteira, exactamente
-na occasião em que aquella nação estremece
-com o insulto que o inglez nos vibrou, não denota,
-sómente, grosseria, denota ignorancia.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_260" id="Pag_260">[260]</a></span></p>
-
-<p>Temos, pois, já outra nota:—a da ignorancia; e
-como burlesca, grosseira, e ignorante, repetimos:</p>
-
-<p class="tb">a manifestação de 14 do corrente foi <b>aviltante</b>
-para Valença,</p>
-
-<p class="noindent tb">porque aviltou a bandeira da Patria que, á frente,
-um homem de cabellos brancos agitava.</p>
-
-<p>Examinemos agora, respeitosamente, este homem.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Descubro-me perante elle.</p>
-
-<p>Tem 74 annos.</p>
-
-<p>É um espirito embalado pelas doiradas crenças
-da velhice, que se assemelham ás ingenuas convicções
-da mocidade.</p>
-
-<p>Tem enthusiasmos pueris e cultos idolatrados.</p>
-
-<p>Influe a mais rigida honestidade nos actos da sua
-vida particular.</p>
-
-<p>É um homem antigo, como diz o povo; e n’esta
-epocha de decadencia, em que na alma da nação existem,
-narcotisados pela mais criminosa indifferença e
-pelo mais repugnante egoismo, todos os sentimentos
-nobres e todas as crenças sans—este homem continúa
-caminhando impassivel para o occaso da vida,
-com os olhos fitos n’um Ideal de Honestidade e de
-Convicções—especie de mytho, com que, apontando<span class="pagenum"><a name="Pag_261" id="Pag_261">[261]</a></span>
-para o Passado, tentamos hoje inocular no espirito
-dos nossos filhos o virus preservativo contra a Descrença
-e contra o Scepticismo.</p>
-
-<p>Este homem conserva ainda, immarcessivel, a pureza
-de todos os cultos e de todas as tradições que
-seus Paes lhe legaram.</p>
-
-<p>Crê na infallibilidade do Papa, na moralidade dos
-partidos, na sinceridade das convicções, na respeitabilidade
-dos conselheiros, na seriedade d’um <i>marmanjo</i>
-sertanejo qualquer, que, sentado no confessionario,
-descança, hoje, das fadigas que lhe vergam as
-pernas, depois das arruaças politicas d’hontem.</p>
-
-<p>Atraz das procissões sente-se feliz e orgulhoso
-com o seu <i>habito</i>, marchando, altivo, ao lado do pantomimeiro,
-que em troca d’uma tranquibernia eleitoral
-chegará a ser commendador de Malta, ou Marquez,
-em dez vidas, de Paysandú, ou Chão das Pipas.</p>
-
-<p>É fanaticamente liberal; quando, n’um dos artigos
-d’este livro, por inoffensivo trocadilho, lhe chamei
-<i>miguelista</i>, teve explosões de colera e arrancos de indignação.</p>
-
-<p>Chamam-lhe: o <i>liberal de 34</i>.</p>
-
-<p>Soffreu com as luctas d’essa epocha e com as seguintes.</p>
-
-<p>Foi perseguido; andou a monte, passou fome e
-foi preso.</p>
-
-<p>Respeita as instituições vigentes. Não admitte
-manchas na vida politica de D. Pedro <span class="smcapuc">IV</span>, o seu legitimo
-Rei. Desculpa as fragilidades d’esse sebento poltrão,<span class="pagenum"><a name="Pag_262" id="Pag_262">[262]</a></span>
-D. João <span class="smcapuc">VI</span>. Odeia os republicanos e ajudaria a
-enforcar um iberico.</p>
-
-<p>Por consequencia, na sua alma existe, profundamente
-enraizado, o amor da Patria; não o amor originado
-no funccionalismo da barriga, mas o que parte
-do coração, o que é verdadeiro, intransigente e expotaneo.</p>
-
-<p>Pois este homem foi ignobilmente explorado para
-o scenario da <i>manifestação patriotica</i> e, acorrentado
-pela Politica, exposto por essas ruas ao mais degradante
-ridiculo.</p>
-
-<p>Dedilharam as cordas do seu sincero patriotismo;
-falaram-lhe na Patria offendida; mostraram-lhe a
-bandeira. Abraçou-se a ella, nervoso, soluçando, humedecendo-a
-com lagrimas.</p>
-
-<p>Empurraram-no para a rua.</p>
-
-<p>Quando na minha frente passou o grotesco cortejo,
-eu já não vi o velho respeitavel, nem o homem
-liberal. Vi um macaco vestido de azul e branco, com
-a corôa real na cabeça, pinchando e bailando ao som
-dos hymnos esmoidos pelo realejo da philarmonica
-africana.</p>
-
-<p>De quando em quando, o realejo cessava de tocar.</p>
-
-<p>Um patriota discursava á turba; outro extendia
-o prato e pedia a esmola dos <i>vivas</i>.</p>
-
-<p>O macaco ria, ou chorava.</p>
-
-<p>—<i>Viva a Reliquia!</i>—exclamavam á frente do
-cortejo.</p>
-
-<p>—<i>Viva o Relicas!</i>—berravam os paradas-velhas.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_263" id="Pag_263">[263]</a></span></p>
-
-<p>Do liberal de 34 a Politica acerdalada fizera
-aquillo: uma coisa ridicula, comica, irrisoria, tristemente
-deploravel, porque tinha cabellos brancos.
-Essa <i>coisa</i> já não era a Reliquia dos homens liberaes
-de 34; era uma <i>Reliquia</i> falsificada, de contrabando,
-como seria o rabo do meu gato, exposto em Santo
-Estevão á veneração das beatas, como uma trança de
-cabello de Santa Margarida de Cortona.</p>
-
-<p>Á porta do Sr. Palhares, a cabeça branca d’esse
-velho recebia picaresca consagração, n’esta phantasiosa
-e alcoolica imagem:</p>
-
-<p class="tb">—<i>Viva a Rosa de 74 annos, estramplantada
-para o nosso Jardim!</i></p>
-
-<p class="tb">E a caterva parada-velha repetia:</p>
-
-<p class="tb"><i>Viva a Rosa Relicas!</i></p>
-
-<p class="tb">Do homem liberal ficou para Valença a: <b>Rosa
-Relicas</b>.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Este homem, lendo o que escrevo deve considerar-se
-offendido pela rudeza da ironia.</p>
-
-<p>Oxalá que a caterva dos falsos amigos, que o
-guindaram para o andor do Ridiculo, o respeitassem<span class="pagenum"><a name="Pag_264" id="Pag_264">[264]</a></span>
-como eu o respeito e venerassem, como eu venero, a
-sinceridade das suas crenças!</p>
-
-<p class="mt3 right">Homem de 34!</p>
-
-<p>Escuta:</p>
-
-<p>A minha idade é muito inferior a metade dos teus
-annos. Entrei no periodo activo da vida, quando já
-estavam suffocadas as agitações politicas a que assististe.
-Não tenho relações intimas comtigo, mas
-respeito-te, porque és dos homens que trabalharam e
-soffreram para eu gosar as liberdades d’esta epocha.
-Não tenho a experiencia da vida que tu tens, mas
-peço-te que attendas ao que te vou dizer, porque conheço,
-melhor do que tu, os individuos que nos rodeiam,
-a natureza dos seus sentimentos e a sinceridade
-das suas crenças. Quando a minha razão principiou
-a funccionar, já por ahi lavrava, intensa, a
-immoralidade, e os homens, pela irrefutavel logica
-dos factos, encarregaram-se de inutilizar no meu espirito
-as illusões que tu ainda conservas, porque vives
-um pouco arredado d’elles.</p>
-
-<p>Escuta, pois!</p>
-
-<p>Quem, como tu, soffreu as deploraveis consequencias
-das nossas dissenções politicas e provou o fel
-d’essa malfadada epocha, em que dois partidos, irmãos
-no sangue, se perseguiam com encarniçado odio, a
-tiro, a faca, a cacete e a machado,—quem, como tu,
-avaliou os dolorosos transes e as indescriptiveis angustias<span class="pagenum"><a name="Pag_265" id="Pag_265">[265]</a></span>
-que infernaram a alma das familias e dilaceraram
-os affectos d’uma povoação, constantemente
-sobresaltada com a incerteza nas vidas e com a noticia
-das mortes,—quem conheceu os horrores da
-fome, as tristezas do exilio, os negrumes do futuro,—quem
-viu o corpo d’um portuguez baloiçar-se, sinistramente,
-na forca infamante, e viu as costas d’um
-homem esfarrapadas pela chibata do corneta,—quem
-teve amigos que foram assassinados a machado em
-Extremoz, arrastados, semi-vivos, pelas ruas do Porto,
-espingardeados nas linhas e no reducto dos Mortos,
-garrotados em Lisboa, fusilados em Vizeu,—quem
-viu cabeças, gottejando sangue, espetadas em
-mastros e ouviu falar das ferocidades do Telles-Jordão
-e do seu <i>menino</i>, bestiaes cerberos de S. Julião,—quem
-escutou por todo esse paiz o choro afflictivo
-das viuvas, o soluçar das creanças e o estertor dos
-moribundos entre as ruinas da Patria, ennegrecidas
-pela fumarada do incendio e avermelhadas pelo sangue
-fratricida,</p>
-
-<p class="right">homem de 34!</p>
-
-<p class="noindent">quem viu e ouviu tudo isso, nunca deve contribuir
-com a sua presença e com o seu applauso para acirrar
-o odio dos partidos, ou para estimular em terras
-pequenas, como Valença, essas divergencias de opiniões
-que, levadas pela allucinação á infamia das
-vinganças e ao rancor das represalias, podem preparar,<span class="pagenum"><a name="Pag_266" id="Pag_266">[266]</a></span>
-no futuro, nova serie de horrores, como os que
-tu viste e como os que tu soffreste.</p>
-
-<p>Esses cabellos brancos nunca se devem prender
-ao Passado para trazerem á terra em que vives e
-onde tens os teus affectos de familia, o bacamarte
-assassino e o facho incendiario, em que se podem
-transformar esses archotes do teu sequito de paradas-velhas.
-Devem prender-se ao Passado, mas para de
-lá arrancarem com o vigor da experiencia: o conselho,
-o ensinamento, a reflexão, que podem suffocar o
-ardor das paixões e prevenir os excessos da allucinação.</p>
-
-<p>Tens umas convicções partidarias; acceitas um
-<i>credo</i> politico. Respeito essas convicções e a doutrina
-d’esse <i>credo</i>, porque ao teu partido deve a Patria valiosos
-serviços na honrosissima cruzada do seu engrandecimento,
-d’onde emanam a paz e as liberdades
-que hoje fruimos.</p>
-
-<p>Sustenta as tuas idéas politicas, mas descreve,
-sempre, aos homens de todos os partidos o que foram
-as luctas e as agitações de 30 a 51.</p>
-
-<p>Tu és honesto, crente, sincero e bom. Não manches
-a respeitabilidade das tuas cans n’essas abandalhadas
-orgias, onde vês como principaes heroes, <i>exigindo
-musica e borga</i>, ministros d’uma religião de
-paz, de tolerancia e amor, afeitos ás esturdias sertanejas
-e acerdaladas d’uma politica de barriga, de arroz
-de forno, e de chouriço com ovos.</p>
-
-<p>Talvez que n’essas horas de esturdia algum pobre<span class="pagenum"><a name="Pag_267" id="Pag_267">[267]</a></span>
-velho agonizasse, pedindo, em vão, o amparo de
-Christo...</p>
-
-<p>Como patriota, modera esses enthusiasmos, que
-tão violentamente agitam a tua alma.</p>
-
-<p>Crês, acaso, na intensidade d’esta explosão de
-colera que Lord Salisbury provocou?</p>
-
-<p>Verás como, dentro de dois mezes, não resta uma
-faula de todo este incendio. Temos á porta novas
-eleições; o vinho das <i>borgas</i> se encarregará de apagar
-as labaredas.</p>
-
-<p>Crês na efficacia dos meios, até hoje apresentados
-para a nossa defeza e para a nossa desaffronta?</p>
-
-<p><i>Será</i> mais um triste couraçado para, em frente
-de Belem, chorar as nossas passadas grandezas.</p>
-
-<p>Acreditas na persistencia da lucta commercial?</p>
-
-<p>Dentro d’um anno, a chita e a lona virão outra
-vez de Manchester, porque lá, custa cada peça menos
-2 <i>shillings</i> e 6 <i>pence</i> do que n’outra parte. Em
-mil peças, essa diferença produz cerca de seiscentos
-mil reis que, a juro de 6 por cento, rendem oito libras
-annuaes. Ora, essa diferença, bom homem, não
-se póde perder. Esta coisa de patriotismo é bonita,
-fica bem a todos; inspira discursos, que põem a gente
-a dançar na corda bamba do enthusiasmo, mas... alli,
-o meu visinho vende o metro da lona a sete menos
-cinco, e a que eu tenho custou sete vintens em algures.
-Nós—eu, tu, os teus amigos e os meus—vamos a
-quem vende mais barato. Precisamos de economizar,
-porque está tudo, como sabes, pela hora da Morte.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_268" id="Pag_268">[268]</a></span></p>
-
-<p>Pensa bem e reconhecerás que, hoje, a Patria
-não merece essas lagrimas, com que humedeceste a
-sua bandeira.</p>
-
-<p>Vês este enthusiasmo na subscripção nacional?</p>
-
-<p>Lembras-te do que houve na subscripção do Baquet?</p>
-
-<p>Pois ninguem se lembra das victimas e ninguem
-conhece a applicação que teve o dinheiro que demos.</p>
-
-<p>Alegra-se a tua alma com este furor contra o
-inglez?</p>
-
-<p>Tens visto a excitação que se levanta por esse
-paiz, quando algum <i>sotaina</i> arrebata, do seio da familia
-para a clausura do Recolhimento, qualquer
-herdeira endinheirada?</p>
-
-<p>Comicios—representações—protestos—morras
-ao Jesuita!—abaixo a reacção!—o diabo!</p>
-
-<p>Quinze dias depois, já ninguem fala em tal. A
-rhetorica entra novamente na gaveta das coisas ricas
-e asseadas. Depois... Quartel general em Abrantes.</p>
-
-<p>N’esta propaganda anti-ingleza só encontras enthusiasmo
-sincero nas manifestações da mocidade e
-na indignação dos velhos—duas epochas da vida,
-que se assemelham, como sabes.</p>
-
-<p>Esses que te envolveram na <i>manifestação patriotica</i>
-gastaram, com a esturdia e com as ultimas eleições,
-cerca de trezentos mil reis. Vae saber quanto
-elles dão para o couraçado e para os torpedeiros.</p>
-
-<p>Andaram comtigo em charola e adoraram-te, de<span class="pagenum"><a name="Pag_269" id="Pag_269">[269]</a></span>
-joelhos e mãos postas, como uma Reliquia dos homens
-liberaes.</p>
-
-<p>Ataram os seus enthusiasmos aos teus cabellos
-brancos e elevaram, aos céos da popularidade, o balão
-flammejante dos patriotismos. Curvam-se arrebatados,
-extasiados, sensibilizados, perante as venerandas
-Reliquias dos homens liberaes; mas—ouve lá—pergunta-lhes
-se alguma vez se lembraram d’esse
-pobre velho de cem annos, que desembarcou no Mindello,
-que teve a <i>Torre Espada</i> e que para ahi viveu
-cego, decrepito e idiotado, com tristes patacos,
-emquanto que muito...</p>
-
-<p class="tb">—Bom homem! Dá cá outro cigarro...</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Resumindo, meu velho, aconselho-te a que moderes
-esses teus enthusiasmos patrioticos, porque excluindo,
-como disse, as manifestações dos novos que
-ainda não roçaram as azas pela immoralidade d’estes
-tempos, todas essas celeumas e gritarias não valem—crê—uma
-das tuas lagrimas. Isto, emquanto a patriotismo.
-Ora, ácerca da Politica e dos homens que por
-cá dirigem os partidos, quando elles te agarrarem
-nas pernas para o andor da <i>fantochada</i>, faze-lhes como
-eu fiz aos paysanducos, que me quizeram matar por
-causa da carta ao <i>Restaurador</i>:</p>
-
-<p class="right"><i>esguicha-os</i>.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_270" id="Pag_270">[270]</a></span></p>
-
-<p>Olha que, politicamente falando, entre Fonsecas,
-Vices &amp; Abbades, ou Moraeses, Agostinhos &amp; Cunhas</p>
-
-<p class="right">venha o diabo e escolha.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Agora, dá-me a bandeira e grita commigo a esses
-<i>patriotas</i>, que te querem levar para as freguezias:</p>
-
-<p class="tb"><b>Abaixo as mascaras!</b></p>
-
-<p class="tb">Vae socegado para tua casa, e deixa-me com elles,
-porque lhes quero dizer, ainda, duas coisas, antes
-que saiam da Coroada.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Já podemos rir, respeitabilissima Commissão <i>patriotica</i>:</p>
-
-<p>Arrancadas as mascaras, <i>vocellencias</i> ficaram o que
-realmente são: não patriotas, mas politicos de gaiteiro.</p>
-
-<p>Disse eu, no principio d’este artigo, que a <i>manifestação</i>,
-quer tivesse o caracter politico, quer o patriotico,<span class="pagenum"><a name="Pag_271" id="Pag_271">[271]</a></span>
-aviltára Valença. Demonstrei a asserção relativa
-á segunda das classificações e vou evidenciar
-a indignidade da primeira.</p>
-
-<p>Estes <i>banzés</i> de musicas, foguetes, vivas, archotadas,
-cómes-e-bebes, brindes etc., etc., podem fazer
-effeito entre abbades sertanejos, dos que não sabem
-verdadeiramente quaes são as leis de equilibrio que
-obrigam a gente a andar com as mãos no ar, sendo
-a cabeça mais pesada do que os pés.</p>
-
-<p>Esses regabofes trescalam, sempre, essencias do
-alho, do carneiro assado, do esturro das batatas, da
-vinhaça, do vomito—essencias que denunciam o suborno,
-a pressão, a compra de voto, a immoralidade,
-a inconsciencia e o servilismo.</p>
-
-<p>Os partidos compõem-se de homens, que nos actos
-da sua vida social, como nos actos da sua vida particular,
-acertam e erram.</p>
-
-<p>Por estes e por aquelles accidentes sobem ao poder
-e sahem d’elle. Uns e outros decretam leis inuteis,
-uteis e prejudiciaes, porque infallivel dizem que
-só é o Papa e, ainda assim, ha muita gente que embica
-com essa infallibilidade.</p>
-
-<p>O partido progressista, como o partido regenerador,
-tem tradições honrosas e tem manchas; o partido
-regenerador, como o partido progressista tem no seu
-seio homens dignos, que honram o paiz.</p>
-
-<p>Quem póde, em momentos de reflexão serena,
-deixar de prestar homenagem de gratidão e de respeito
-á memoria d’esse homem, que dedicou toda a<span class="pagenum"><a name="Pag_272" id="Pag_272">[272]</a></span>
-sua existencia ao engrandecimento da Patria e que,
-apesar de ter palacios em Londres, morreu pobre e
-legou dividas:—Fontes Pereira de Mello?</p>
-
-<p>Quem póde recusar-se a honrar o nome de Anselmo
-Braamcamp, o cidadão prestante, o caracter
-nobilissimo, a quem o paiz tanto deve?</p>
-
-<p>Os defeitos da Politica portugueza, desde 32: os
-arranjos, as ambições, o desperdicio dos dinheiros
-publicos, o desamparo das instituições proveitosas,
-o abandono da Agricultura, da Industria, das Colonias,
-são communs, e d’elles teem eguaes responsabilidades
-todos os partidos.</p>
-
-<p>Esses defeitos vem de cima e vão para cima. Apparecem
-nas imposições eleitoraes, na recommendação
-governamental dos candidatos, na necessidade
-das maiorias etc.; e nascem alli, nas pretensões do
-Sr. Abbade, que precisa de livrar os mancebos X e
-Y do recrutamento, nas exigencias do magnate Fulano,
-que pretende uma estrada para a quinta etc.</p>
-
-<p>De cima vem as imposições; de baixo vão as exigencias.
-Ora, n’esta permutação de generos, por conta
-propria, ou á commissão, ganham sempre os de
-baixo e os de cima; e, sendo assim, claro é que deve
-haver um terceiro para os prejuízos:—ha o Paiz.</p>
-
-<p>Isto é coisa velha e sabida.</p>
-
-<p><i>Vocellencias</i> terão a ingenuidade de suppôr que
-haja alguem, n’este anno de Christo, que repute
-sinceras, emanadas d’uma profunda convicção politica,
-essas ruidosas manifestações?</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_273" id="Pag_273">[273]</a></span></p>
-
-<p>Na <i>fantochada</i> de 14 o que se evidenciou foi isto:
-a explosão partidaria de quem estava <i>por baixo</i>, a
-pirraça aos Moraes<i>es</i>, o nectar das abandalhadas vinganças,
-os mancebos livres do recrutamento, a provocação
-da <i>beiça</i> e outros elementos que a ignorancia
-gera.</p>
-
-<p>Quando <i>vocellencias</i> passavam, a gente,—emfim,
-por delicadeza: Maria vae com as outras—sorria e
-cortejava; mas cá dentro, no escaninho da nossa razão,
-onde, á noite, guardamos a gravata e o Senso
-commum, appareciam logo, nitidas e causticas, estas
-palavras:</p>
-
-<p class="center"><b>Que sucia de pataratas!</b></p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Quando cahiu o partido regenerador, os progressistas
-promoveram egual <i>borga</i> por essas ruas; quando,
-ha mezes, se realisaram as eleições, P. Alexandre
-atordoou os ouvidos da humanidade com bombas de
-dynamite.</p>
-
-<p>Toda a gente se riu das <i>gaitadas</i> especiaes que
-tiveram os Srs. Agostinho, Dr. Ladislau e outros senhores
-evidentemente progressistas. No coice da procissão,
-lá iam os nossos paradas-velhas, muito lepidos
-e repontantes, nariz no ar, chinela rota e fralda de
-fóra.</p>
-
-<p>Toda a gente se riu dos foguetes do Alexandre<span class="pagenum"><a name="Pag_274" id="Pag_274">[274]</a></span>
-e, até, no cerebro de alguem, fuzilaram, como relampagos,
-vividos clarões de suspeitas exquisitas...</p>
-
-<p><i>Vocellencias</i> apepinaram o caso, como eu apepinei,
-porque, emfim, Valença não é o mesmo que Urgeira,
-Cerdal ou Gandra (salvo o devido respeito a
-Montes Claros e ao Patriarcha).</p>
-
-<p>Passam os annos, e quando eu suppunha que na
-mioleira de <i>vocellencias</i> existia algo differente do que
-se suspeitou no cerebro alexandrino, saltam <i>vocellencias</i>
-para a rua, transformando Valença no Pandemonium
-de Milton!</p>
-
-<p class="tb">Esses espectaculos são frequentes nos grandes
-centros. Organizam-se os cortejos nos bairros immundos,
-onde o <i>real d’agua</i> obtem maior rendimento;
-onde o Rosa Araujo gasta seis contos na compra de
-votos; onde o Sentieiro e o Cagaçal conservam fechada
-e vigiada, durante os tres dias anteriores á
-eleição, a turba ignara dos cidadãos (?) votantes.</p>
-
-<p>Quando a onda da escoria se alastra pelas ruas
-centraes, ninguem que possue senso, deixa de encarar
-com verdadeira repugnancia a babugem do servilismo
-e da estupidez.</p>
-
-<p class="tb">Quem promoveu e planeou essa arruaça de 14?
-A Politica <i>pataqueira</i> que nas provincias provoca
-odios de familias, instiga resentimentos, prejudica
-interesses, origina represalias, prepara transferencias,
-requer perseguições judiciaes—emquanto que<span class="pagenum"><a name="Pag_275" id="Pag_275">[275]</a></span>
-os candidatos protegidos e combatidos riem á mesa
-do Matta, commentando, em tom faceto, as parvas
-pretensões dos parvos magnates do circulo.</p>
-
-<p>Foi essa <i>coisa</i> amanhada com a Ignorancia e com
-a Velhacaria que, ha annos, aqui inaugurou o regime
-das perseguições e das represalias—regime que
-ao carrejão d’hontem, hoje feito <i>trunfo</i>—concede a
-faculdade de exigir a transferencia d’um Juiz, se tal
-idea surgir nas torvas especulações da sua gafada
-orientação politica.</p>
-
-<p class="tb">Ha pouco tempo, censuravamos com phrases de
-verdadeira e justissima indignação, a transferencia
-d’um funccionario publico, que lucta com difficuldades
-para sustentar numerosa familia. Lá foi o
-desgraçado para <i>cascos de rolhas</i>.</p>
-
-<p>Existe, ainda, em nosso espirito o nojo que inspirou
-esse <i>processo de nullidade</i> tentado contra a
-nomeação d’um professor, por uma corporação tão
-zelosa pela instrucção popular, que conserva fechada
-<b>ha cinco mezes</b> a unica eschola que temos
-para o sexo feminino!</p>
-
-<p>Tudo isso se classificou como indigno, como
-torpe, como vil.</p>
-
-<p>Mudam as situações; mudam as cabeças e cá
-temos as represalias—essas infamissimas represalias—annunciando,
-pela bocca dos bigorrilhas politiqueiros,
-novas transferencias e novas villanias
-para <i>saldo de contas</i>!</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_276" id="Pag_276">[276]</a></span></p>
-
-<p class="tb">Os homens da actual Politica andam açodados
-em mysteriosas (?) combinações; escoam-se nas sombras
-da noite, pelos becos e travessas que conduzem
-ao centro (!?!); segredam, cochicham, mostram cartas
-e telegrammas; sorriem, piscam os olhos, ostentando
-parvoamente á luz do dia as multiplices transformações
-d’esse implacavel Ridiculo que os envolve,
-quando a gente se lembra que são os mesmos homens
-do sr. Serpa e que todos elles, de pernas para
-o ar, não deitam uma duzia de votos!</p>
-
-<p>Em todo esse afan, em todas essas mysteriosas
-combinações, em todo esse serzir de esfarrapados
-planos, imagina V. Ex.ª, querido leitor, que se tratou
-alguma vez de melhorar as condições materiaes do
-concelho, de ampliar as suas instituições, ou reorganizar
-a sua administração? Nem uma palavra a
-tal respeito!</p>
-
-<p>Estudam-se, combinam-se, discutem-se <i>unicamente</i>
-os meios de obter as transferencias de Fulanos e de
-Cicranos, como medida <i>inadiavel e urgentissima</i>. Nas
-horas vagas d’essas nojentas lucubrações, raspam-se
-as picheis e lavam-se as gamellas para a proxima
-bambochata eleitoral.</p>
-
-<p class="tb">Ah Saltamontes e Grices dos dois partidos! Muito
-dinheiro podia ganhar quem vos apresentasse no Colyseu!</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_277" id="Pag_277">[277]</a></span></p>
-
-<p>A Physiologia demonstra a hereditariedade dos
-defeitos organicos. A Politica d’esta terra é nojenta
-e a <i>manifestação</i> de 14, como producto d’essa Politica,
-apresentou-se com todos os vicios da origem.</p>
-
-<p>Portanto, concluo, repetindo: essa <i>manifestação</i>,
-como patriotica ou como politica,</p>
-
-<p class="center">foi <b>aviltante</b> para Valença.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p><b>Nota final:</b></p>
-
-<p>O principal heroe da <i>rusga</i> foi um abbade. Chapéo
-de fadista, casaco de pelles, nariz de furão,
-ponta de cigarro na orelha—razoavel exemplar
-d’esse typo muito vulgar pelo Alto Minho:—<i>o capador
-de porcos</i>.</p>
-
-<p>Resolvo rifal-o. Bilhetes a pataco, que desde já
-estão á venda no <i>estabelecimento</i> do compadre Pedro.</p>
-
-<p>Lembro a V. Ex.ª, querido leitor, que é tempo
-de semear as ervilhas e convém</p>
-
-<p class="right">afugentar os pardaes.</p>
-
-<p class="smaller">Valença 20-1-90.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_278" id="Pag_278">[278]</a></span></p>
-
-<hr class="chap" />
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_279" id="Pag_279">[279]</a></span></p>
-
-<h2 id="XVII">XVII<br />
-<span class="smaller">A Sociedade dos Provareis<br />
-<span class="smaller">(FRAGMENTO DA HISTORIA GREGA)</span></span></h2>
-
-<p>Como actualmente predomina nos espiritos illustrados
-uma tendencia absoluta para a analyse e para
-a investigação, parece-me que não serão aqui mal
-cabidas as seguintes linhas, que esclarecem, com os
-informes de um historiador classico, o periodo, indubitavelmente
-mais interessante e curioso, da civilização
-grega—o seculo de Pericles.</p>
-
-<p>Na Litteratura e nas Artes estuda-se tenazmente
-o Passado, arrancando-se das trevas da tradição e
-das brumas da lenda, as producções maravilhosas dos
-grandes genios e os elementos constitutivos das grandes
-sociedades.</p>
-
-<p>Recompõe-se a organização social da velha India;
-analysam-se os factores principaes d’essa assombrosa<span class="pagenum"><a name="Pag_280" id="Pag_280">[280]</a></span>
-civilização hellenica e os do immenso poderio da antiga
-e soberba Roma; acompanham-se os Carthaginezes
-e os Phenicios nas suas audaciosas correrias; reproduzem-se
-as maravilhas da Arte arabe e investigam-se
-pacientemente as Sciencias, n’esse glorioso
-periodo dos Omniadas, que tão brilhantes vestigios
-deixaram da sua dominação na Peninsula iberica.</p>
-
-<p>Assim, tudo o que actualmente póde representar
-para o homem illustrado, uma reliquia dos povos e
-das civilizações antigas—um livro, um pergaminho,
-um papyro, uma inscripção cuneiforme, um hieroglypho,
-uma lasca de silex, um fragmento de bronze, o
-dente d’um mastodonte, o coccyx d’um almoravide, o
-vomer d’um Ramsés, a tibia d’um khalifa—tem o
-mesmo valor, n’este culto pela Tradição, n’esta religião
-do Passado, que para o beaterio póde ter um
-ossinho de S. Francisco, um cabellinho da venta de
-S. Pancracio, ou uma unha das onze mil Virgens, que
-ainda hoje, nos grandes estabelecimentos commerciaes
-de reliquias sagradas e preventivas contra bexigas,
-massadores e outras coisas más, obtem elevado
-preço, apesar da enorme edição que se espalhou
-no mercado:—duzentos mil exemplares!</p>
-
-<p>Nas Academias, nas Sociedades de Geographia,
-de Anthropologia, de Geologia, de Linguistica, de
-Numismatica, e congeneres, fundadas em todas as
-capitaes e centros civilizados, já com o auxilio dos
-governos, já pela iniciativa particular, organiza-se
-e apresenta-se ao exame do publico uma verdadeira<span class="pagenum"><a name="Pag_281" id="Pag_281">[281]</a></span>
-exposição retrospectiva da actividade e da intelligencia
-do homem, desde as primeiras manifestações da
-sua vitalidade no globo terraqueo, até aos nossos
-dias.</p>
-
-<p>Claro é que Valença não podia ficar indifferente
-a esta nova orientação dos espiritos cultos; e até,
-primeiro que n’outras terras, aqui rapidamente se
-desenvolveu o gosto pelas antiguidades, o culto ás
-coisas passadas, que o povo, na sua linguagem rude,
-pittorescamente classifica como: <i>mania</i> de cacos velhos.</p>
-
-<p>Ha por ahi muitas collecções e muitos colleccionadores:</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Teias de aranha, microbios, tarecos velhos e empregos,
-collecciona o sr. Sampaio. O sr. Agostinho,
-partidos politicos e casacophones; chinós, ovos de
-passarada e instrumentos de vento, o sr. Abel Seixas;
-o sr. Zagallo, caixas de phosphoros, officios de
-despedida ao Senado e santinhos; sermões gallegos e
-patacaria de D. João VI, a Assemblea; o Club, homens
-pacatos da rua de S. João; commendas e pergaminhos,
-o sr. Verissimo de Moraes; o sr. Leopoldo,
-machados de bronze, volumes do <i>Almocreve das petas</i>
-e coisas das edades paleolithica e neolithica; o
-sr. Palhares collecciona moleques, macaquinhos empalhados
-e uma raça maldicta de papagaios, que o<span class="pagenum"><a name="Pag_282" id="Pag_282">[282]</a></span>
-diabo inventou, para estoirar a membrana do tympano
-á desgraçada humanidade.</p>
-
-<p>O Albininho collecciona tudo e é um colleccionador
-precioso, porque commenta; preparando, assim,
-inexgotavel thesoiro para as investigações historicas
-dos posteros.</p>
-
-<p>Conserva cuidadosamente ordenadas por dia, mez,
-anno e seculo, atadas com fitinha de seda verde,
-azul, ou branca, conforme o signatario, todas as cartas
-que tem recebido, desde que traduz lettra redonda.
-Cada missiva mostra, no verso, uma nota explicativa:</p>
-
-<p class="center"><b>14 de Outubro de 1876 (e seis)</b><br />
-<span class="smaller">Fulano de tal.<br />
-Valença do Minho.</span></p>
-
-<p class="smaller">(Pede-me <i>sete e vinte</i> emprestados. Desculpei-me, porque
-anda n’um <i>desarranjo completo e, qualquer dia, vae de bruços</i>.)</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p class="center"><b>5 de Fevereiro de 1869 (e nove)</b><br />
-<span class="smaller">F. ou C. de tal.<a name="FNanchor_41" id="FNanchor_41"></a><a href="#Footnote_41" class="fnanchor">[41]</a></span></p>
-
-<p class="smaller">(Pede dez tostões—Ficam-me agora a doze e cinco... Preciso
-de me desforrar.)</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_283" id="Pag_283">[283]</a></span></p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p class="center"><b>4 de Maio de 1875 (e cinco)</b></p>
-
-<p class="smaller">Officio da Camara, convidando para a procissão de Corpus-Christi.</p>
-
-<p class="smaller">(Agradeci tão <i>graduada</i> prova de <i>consideração official</i>.
-Estes, não são como os da missa do Rei. Compareci, vestindo
-pela trigesima sexta vez a minha casaca n.º 3. Chapeo alto
-n.º 7, do Roxo—Lisboa—(3$570 com correio). Sapatos de polimento
-n.º 4 (5.ª prateleira, 2.ª estante, á direita). Gravata do
-Blanco (12 reales e uma perra chica; setim creme, com pintas
-de prata). Luvas n.º 207, do Baron.</p>
-
-<p class="smaller">Offereceram-me um logar graduado, ao lado do sr. Joaquim.)</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Eu tambem tenho a mania de colleccionador. É
-uma coisa que não fica mal; é da Moda e até dá
-um certo tom distincto.</p>
-
-<p>Collecciono alfarrabios, cartas de arrhas, cartapacios,
-papyros, foraes—toda essa papelada, que por
-ahi apparece furada pela traça, encarquilhada pelo
-tempo e com a côr que teriam os rostos d’aquelles
-esforçados campeões da Guia, quando batiam em retirada,
-acossados pelo gentio gallego.</p>
-
-<p>Esta mania fez com que, ha mezes, descobrisse
-uma verdadeira preciosidade, no bazar de antiguidades
-do sr. Maia.</p>
-
-<p>Imaginem V. Ex.ᵃˢ o meu contentamento quando
-alli encontrei, entre taboadas e cartilhas, rolhas e<span class="pagenum"><a name="Pag_284" id="Pag_284">[284]</a></span>
-torneiras, piões de <i>faniqueira grande</i> e ditos para <i>nicas</i>—um
-volume authentico, genuino, verdadeiro, do
-grande e immortal Plutarcho!</p>
-
-<p>Tremi de commoção e de respeito com tão veneranda
-reliquia!</p>
-
-<p>Li-o, reli-o e quasi treslia com elle.</p>
-
-<p>Referia-se ao seculo do glorioso Pericles, áquelle
-aureo periodo da civilização de Athenas e, entre as
-suas paginas, fui encontrar—gratissima surpresa!—os
-elementos que, com verdadeiro afan, ha muito
-tempo procurava, para estabelecer as bases da historia
-d’essa mysteriosa agremiação a que Pericles presidia,
-e que tão poderosamente influiu no engrandecimento
-do povo hellenico:—a <i>Sociedade dos Provareis</i>.</p>
-
-<p>Conhecendo o interesse que em Valença teem despertado
-os estudos, que outros auctores apresentaram,
-sobre esta curiosa parte da Historia antiga,
-offereço tambem o meu modesto subsidio, vertendo
-para a nossa lingua alguns periodos de Plutarcho,
-visto que por ahi são escassamente conhecidos os caracteres
-gregos.</p>
-
-<p>Para os menos versados na Historia hellenica
-acompanharei a traducção com notas explicativas.</p>
-
-<p>Fala Plutarcho:</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_285" id="Pag_285">[285]</a></span></p>
-
-<h3>Os Provareis</h3>
-
-<p>«N’essa epocha (465 A. de C.) era Pericles o chefe
-do partido popular, que se intitulára o partido regenerador
-dos costumes, pervertidos durante a supremacia
-de Cimon Narigangorum e dos aristocratas,
-chamados progressistas.</p>
-
-<p>Pericles era homem de compleição robusta, largo
-arcaboiço, avantajado de estatura; perspicaz, de razão
-escorreita, assaz prudente, sobrio de costumes e de
-variadissima erudição, graças á influencia de Zenão
-d’Elea, que fôra seu preceptor.</p>
-
-<p>Apesar de não ser archonte, ou stratego<a name="FNanchor_42" id="FNanchor_42"></a><a href="#Footnote_42" class="fnanchor">[42]</a>, porque
-apenas tinha as honras de polemarcho, impoz-se
-rapidamente á consideração do Archontado, ao respeito
-do Areopago e ás boas graças do Eponymo
-Lourdes Domina.</p>
-
-<p>A agudeza do seu espirito, o vasto alcance das
-suas ideas, a subtileza da sua estrategia e a finura da
-sua diplomacia, alcançaram-lhe logo no começo da
-sua interferencia no Governo... da cidade, o epitheto<span class="pagenum"><a name="Pag_286" id="Pag_286">[286]</a></span>
-de Olympico, ou Oraculus, com que o povo geralmente
-o nomeava.</p>
-
-<p>Rodeara-se Pericles de homens illustres e poderosos,
-que a seu talante dirigia, para combater o grupo,
-ainda predominante na politica, dos partidarios de
-Cimon Narigangorum e do seu parente Thucydides
-Attila—grupo que constituia o principal elemento do
-partido dos eupatridas, ou progressistas, e que, por
-todos os meios, tentava condemnar ao ostracismo<a name="FNanchor_43" id="FNanchor_43"></a><a href="#Footnote_43" class="fnanchor">[43]</a>
-e desluzir, com protervias e calumnias, o valente
-caudilho dos contrarios.</p>
-
-<p>Apesar do seu engenho e do seu valor, nem sempre
-lhe foi favoravel a sorte das armas. Nas luctas
-com esses inimigos, graves desgostos soffreu, que profunda
-e dolorosamente abalaram o seu espirito e o
-seu esforçado animo. Ainda hoje a Historia nos menciona
-a derrota de Deputarium, no ultimo dia da segunda
-decada do decimo mez, e o desbarate da Camária,
-no terceiro dia—da primeira decada, do mez
-undecimo<a name="FNanchor_44" id="FNanchor_44"></a><a href="#Footnote_44" class="fnanchor">[44]</a>, do mesmo anno da olympiada tal—em
-que as tropas de Pericles abandonaram armas e bagagens,
-deante do grande Narigangorum <span class="smcapuc">II</span>, ex-rei da
-Administracónia e do seu parente Thucydides Attila,
-bojudo stratego e chefe dos <i>registricos</i>, povo contribuinte
-dos suburbios de Athenas, que usava das celebres<span class="pagenum"><a name="Pag_287" id="Pag_287">[287]</a></span>
-<i>camisas de onze váras</i><a name="FNanchor_45" id="FNanchor_45"></a><a href="#Footnote_45" class="fnanchor">[45]</a> e que, por essa circumstancia,
-era tratado com toda a <i>consideração official</i>,
-pela gente <i>graduada</i>.</p>
-
-<p>Tivera, tambem, de valer-se de toda a sua diplomacia
-e arte para empalmar o pennacho, (que nos
-strategos do partido era distinctivo de commando) ao
-archonte Judex Candidatus, homem de pequena estatura,
-mas de respeitavel influencia, emquanto Pericles
-lhe não surripiou, por occultos meios, o apoio e
-a correligionariedade do poderoso Joannus Zabumborum,
-sabio de reputado merito e de grande consideração
-popular.</p>
-
-<p>Quando Pericles principiou a exercer a sua direcção
-politica, libertava-se Athenas, vagarosamente,
-da inercia em que até alli se conservara, e apurava,
-pouco a pouco, os seus usos e costumes; mas homens
-de tão superior talento, como elle, raras pessoas encontravam,
-na cidade, com quem podessem conviver
-intimamente.</p>
-
-<p>Escasseava a illustração; o povo não tinha consciencia
-dos seus direitos politicos. Entre os prytamos<a name="FNanchor_46" id="FNanchor_46"></a><a href="#Footnote_46" class="fnanchor">[46]</a>
-da cidade e, mesmo, entre os sacerdotes de Zeus
-suscitavam-se, a miudo, questões violentas; em que do
-argumento se passava á aggressão, recorrendo-se a todas
-as armas, incluindo as do <i>apparelho roedor</i>.</p>
-
-<p>Dava-se pouca consideração ás auctoridades encarregadas<span class="pagenum"><a name="Pag_288" id="Pag_288">[288]</a></span>
-do Governo da... cidade; censuravam-se
-as gratificações, que lhes eram arbitradas em occasiões
-de perigo, como guerras e <i>epidemias</i>; reduziam-se
-<i>as vias</i>... do accesso aos grandes strategos; preparava-se,
-occultamente, a <i>transferencia</i>... ao ostracismo
-para os leaes conselheiros; increpava-se officialmente,
-escandalosamente, a <i>admissão</i> nas dependencias
-do Governo... da cidade aos adeptos do partido
-popular, e nem o proprio Pericles escapava á maledicencia
-da turba porque, surdamente, o povo, e até, a
-maior parte dos seus adeptos e cortezãos o accusavam
-de ambicioso, invejando-lhe os redditos, discutindo-lhe
-a rapidez e legalidade do accesso... á chefia
-do partido, amesquinhando a sua illustração e
-refutando a sua competencia na vasta Sciencia da
-lettra redonda.</p>
-
-<p>Muitos dos homens illustres, que o rodeavam, soffreram
-as consequencias d’essa contumaz opposição e
-implacavel vindicta.</p>
-
-<p>Phidias Cambronneia<a name="FNanchor_47" id="FNanchor_47"></a><a href="#Footnote_47" class="fnanchor">[47]</a> Negoptius foi retirado do
-Governo... da cidade; Anaxagoras Mata Marianus
-foi deportado.</p>
-
-<p>Abstinha-se, pois, Pericles de apparecer em publico
-e entretinha escassas relações, já porque a nobreza
-da sua jerarchia o distanciava dos thetas<a name="FNanchor_48" id="FNanchor_48"></a><a href="#Footnote_48" class="fnanchor">[48]</a> e<span class="pagenum"><a name="Pag_289" id="Pag_289">[289]</a></span>
-da plebe, já porque o intimo conhecimento do seu
-merito e da sua importancia lhe aquilatavam de mesquinhos
-e ridiculos os demais proceres do Estado.</p>
-
-<p>Foi perante esta necessidade de se isolar, e para
-reforçar os elementos de resistencia aos rudes ataques
-dos seus inimigos, que elle fundou a Sociedade, que
-mais tarde o povo denominou: os <i>Provareis</i>.</p>
-
-<p>Com esse grupo de fieis adeptos praticava, então,
-largas horas em passeio, conferenciando demoradamente;
-e quando o povo folgava nos jogos olympicos,
-ou pythicos, se acotovellava no Odeon para ouvir as
-maravilhosas producções de Eschylo e de Sophocles,
-ou nos jardins publicos para se deliciar com os harmoniosos
-sons das magadias, cytharas, lyras e flautas,
-que compunham as orchestras d’aquelles tempos, não
-era raro o vêr-se ao longe, no <i>cabeço d’um oiteiro</i>, o
-grupo magestoso dos <i>Provareis</i>, que solemnes, graves,
-com movimentos vagarosos e isochronos, rodeavam o
-grande Pericles, ouvindo-o divagar philosophicamente
-sobre a miseria das coisas humanas, sobre a leviandade
-das gentes e sobre a ignorancia da ignorante
-humanidade!</p>
-
-<p>No tocante a competencia, Pericles Oraculus reunia
-todos os dotes necessarios a um completo homem
-de Estado. Provera-o a Natureza de extraordinaria
-actividade e de genio inventivo para todos os ramos
-da publica administração.</p>
-
-<p>Era copiosamente versado nas leis de Lycurgo,
-de Solon, de Pisistrato e de Lippes, tendo particular<span class="pagenum"><a name="Pag_290" id="Pag_290">[290]</a></span>
-predilecção por este ultimo legislador, cujos regulamentos,
-que a plebe classificava de estupidos, a todo
-o transe defendia, como indispensaveis á conservação
-da cidade e dos... seus redditos<a name="FNanchor_49" id="FNanchor_49"></a><a href="#Footnote_49" class="fnanchor">[49]</a>.</p>
-
-<p>Possuia, já, noções muito positivas sobre a futura
-Sciencia da Economia politica. Considerando a Agricultura
-como fonte principal da riqueza d’um paiz,
-tomara a si o desenvolvel-a, dedicando-lhe particular
-attenção e cuidado.</p>
-
-<p>Por isso, quando com o grupo de fieis partidarios
-divagava pelos arrabaldes de Athenas, vizitava a
-miudo os grandes eupatridas<a name="FNanchor_50" id="FNanchor_50"></a><a href="#Footnote_50" class="fnanchor">[50]</a> e, para obter noções
-perfeitas sobre a producção dos terrenos, influencia
-atmospherica e outras condições modificadoras, inspeccionava
-cuidadosamente as colheitas, examinava
-os fructos e provava... <i>as aguas</i>.</p>
-
-<p>O povo, sempre rude e sempre ignorante, d’essas
-<i>provas</i> a que aquelles homens illustres frequentemente
-se entregavam (mormente nas tardes do verão)
-para interesse da Patria e da Agricultura que
-nada é, como se sabe, sem abundantes mananciaes
-que refresquem o solo e possam alimentar a planta—originou
-o titulo de <i>Sociedade dos Provareis</i>, com
-que, d’alli em deante, designava o grupo de Pericles
-e seus adeptos, quando lá ao longe, entre os atalhos
-das aldeias, via uma serie de pontos negros caminhando<span class="pagenum"><a name="Pag_291" id="Pag_291">[291]</a></span>
-vagarosamente, ora para o norte, ora para o
-sul, como previamente o indicara a provavel condescendencia
-ou a natural liberalidade dos eupatridas
-amigos e partidarios.</p>
-
-<p>Pericles era tambem escriptor emerito e actor
-de talento. A fama das suas producções chega, ainda,
-até nós.</p>
-
-<p>Todos conhecem a <i>Prisão da Santa</i>, a <i>Licença
-Zagallica Muzical</i> e a <i>Batalha dos Cooperativos</i>—comedias
-de fino enredo, astucioso desenlace e primorosa
-concepção.</p>
-
-<p>Nas horas de descanço que lhe permittia a faina
-da administração politica, ensaiava Pericles os seus
-adeptos <i>Provareis</i> que depois, em conjuncção propria
-e solemne, apresentava em publico, dirigindo-os
-mui circumspectamente por detraz da cortina e colhendo
-applausos em barda.</p>
-
-<p>A comedia que obteve mais exito foi a <i>Prisão da
-Santa</i>. Fundava-se n’uma antiga lenda mencionada
-no Rig-Veda, dos hindus. Era o caso da prisão de
-Brahma, ao entrar n’uma velha fortaleza, contra as
-disposições do codigo de Manu, e levada depois pelos
-kshatrias<a name="FNanchor_51" id="FNanchor_51"></a><a href="#Footnote_51" class="fnanchor">[51]</a> ao carcere, onde jaziam os infimos
-sudras<a name="FNanchor_52" id="FNanchor_52"></a><a href="#Footnote_52" class="fnanchor">[52]</a>.</p>
-
-<p>Este pueril e comico incidente, baseado n’uma
-simples questão de <i>bufo</i>, ou sopro, forneceu a Pericles
-recursos para ruidosamente explorar a estupidez<span class="pagenum"><a name="Pag_292" id="Pag_292">[292]</a></span>
-das massas e o fanatismo do povo, que estrebuchava
-com arrancos de colera, quando via o feroz
-Attila.</p>
-
-<p>Como já n’essa epocha eu trabalhava para reunir
-materiaes, com que podesse encetar os projectados
-estudos sobre a Historia da minha Patria, grandes
-eram os desejos que nutria de poder assistir a alguma
-das reuniões d’aquelles homens illustres onde, indubitavelmente,
-com a lucidez de tão poderosos cerebros
-se deviam discutir os destinos e a Politica da
-confederação athenico-cerveirensis.</p>
-
-<p>Pude emfim conseguil-o, subornando os dmoes<a name="FNanchor_53" id="FNanchor_53"></a><a href="#Footnote_53" class="fnanchor">[53]</a>
-do sacerdote Pinus Abbates que, mediante vinte talentos<a name="FNanchor_54" id="FNanchor_54"></a><a href="#Footnote_54" class="fnanchor">[54]</a>,
-consentiram em me occultar na adega
-d’uma propriedade, a doze stadios<a name="FNanchor_55" id="FNanchor_55"></a><a href="#Footnote_55" class="fnanchor">[55]</a> ao sul de Athenas
-onde, como sitio retirado e fresco, de preferencia
-se reuniam os <i>Provareis</i>.</p>
-
-<p>Alli os ouvi; alli tive, a meio passo de distancia,
-todos esses homens illustres, que tão poderosamente
-tinham contribuido para o engrandecimento de Athenas
-e para a sua hegemonia na confederação.</p>
-
-<p>Era uma tarde calmosa; reunidos no escuro subterraneo,
-os <i>Provareis</i> mais uma vez estudaram as
-<i>aguas</i> com abundantes e saboreadas libações. Por
-largo tempo ouvi um craquejar de maxillas e um glugluar
-de pharynges, indicios terriveis d’essas assombrosas<span class="pagenum"><a name="Pag_293" id="Pag_293">[293]</a></span>
-devastações, que depois inspiravam aos servos
-e dmoes do Abbates estas dolorosas palavras:</p>
-
-<p class="tb">—<i>É impossivel que nas altas horas da noite,
-quando a pallida Phebe desce a visitar Endymion,
-Hades, o deus infernal, não mande a estas paragens
-uma praga de gafanhotos! Que prejuizo soffreram as
-nossas colheitas, grande Zeus!</i></p>
-
-<p class="tb">Concluidas as <i>provas</i>, ergueu Pericles a fronte;
-poz o pennacho de pennas de capão, insignia de polemarcho;
-afivelou a catana e as esporas; limpou os galões
-brancos e, trepando a um escabello, annunciou
-com ar solemne o thema da sua conferencia:</p>
-
-<p class="center">UM PROBLEMA POLITICO DA FUTURA ERA DE CHRISTO,
-SECULO XIX</p>
-
-<p class="right">Amigos e Provareis<a name="FNanchor_56" id="FNanchor_56"></a><a href="#Footnote_56" class="fnanchor">[56]</a>.</p>
-
-<p>É commettimento facil para espiritos medianamente
-esclarecidos a resolução de problemas na Politica
-contemporanea. Estudando os elementos ethnologicos,
-a influencia das civilizações estranhas, as aspirações<span class="pagenum"><a name="Pag_294" id="Pag_294">[294]</a></span>
-collectivas e as relações indestructiveis da
-Historia nos cyclos que as suas leis estabelecem, podemos
-fatalmente traçar a orientação a que os povos
-teem de obedecer.</p>
-
-<p>Abandonarei esse campo já explorado pelo vulgo
-e pelos espiritos d’uma illustração comesinha. Asphyxia
-o meu intellecto nos acanhados horisontes do Presente.
-Anceia o meu espirito pelas luminosas regiões
-do Futuro, na lidima aspiração d’uma visualidade perscrutadora
-do destino dos povos e da evolução das sociedades.</p>
-
-<p>Rasgar as trevas do porvir, prever as luctas e as
-contrariedades, guiar a incauta Humanidade nas tortuosas
-sendas a que o Destino a condemna, leval-a
-pela mão á beira dos abysmos para lhe bradar carinhosamente:
-<i>não vás além!</i>—é a missão que a Divindade
-traçou ao Genio, a isto de superior, de maravilhoso,
-de prophetico, que me distingue do vulgo,
-que me aparta da plebe, e que dá á minha individualidade,
-no meio d’este constante marulhar das paixões
-e da ignorancia humanas, a previdente luz do
-fanal que, entre escolhos e baixios, guia o amargurado
-nauta nas cerradas trevas de noite caliginosa.</p>
-
-<p>Transpondo um periodo de dois mil e quatrocentos
-annos no futuro da Humanidade, eu vou annunciar
-os perigos amontoados no horisonte dos povos
-que no seculo XIX d’uma nova era hão de occupar as
-ignotas regiões, que um grande mar banha e onde os
-phenicios já estabeleceram dominio e poderio.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_295" id="Pag_295">[295]</a></span></p>
-
-<p>Phantasiae, amigos, que viveis commigo n’uma
-peninsula que, por occulta, o phenicio denominou
-Spania, e que me ouvis discreteando com os homens
-politicos d’esse futuro seculo:</p>
-
-<p class="tb"><i>Aconselho a alliança das raças latinas. O horisonte
-da Europa annuncia borrasca.</i></p>
-
-<p><i>Ha negrumes para o Norte. Não receeis o teutonico;
-temei o slavo! Haja outro Metternich para esse
-inimigo commum.</i></p>
-
-<p class="tb"><i>Bismarck é um imbecil. Com a sua germanisação
-fez-se testamenteiro de Frederico, o Grande. Crispi é
-um visionario. Salisbury um bebedo. Sagasta uma nullidade.
-Zé Luciano um comparsa.</i></p>
-
-<p class="tb"><i>Na Politica internacional o melhor systema é o de
-Machiavel. Tenho-me dado bem com elle e não quero
-outro.</i></p>
-
-<p class="tb"><i>Quando, na conferencia de Berlim, me pediram
-conselho, disse e repeti: vocês reparem no russo!</i></p>
-
-<p><i>N’essas regiões do Norte a maré sobe e, qualquer
-dia, rompem-se os diques.</i></p>
-
-<p><i>Teremos novas invasões. É a lei fatal da Historia:
-sangue novo para corpo velho.</i></p>
-
-<p><i>Acautelem-se, porém, com o processo da inoculação;
-o russo é feroz.</i></p>
-
-<p><i>Latinos, teutonicos, toca a reunir!</i></p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_296" id="Pag_296">[296]</a></span></p>
-
-<p class="tb"><i>Bismarck, deixe essas coisas d’Africa; você tem
-um certo fio para isto de Politica, mas ainda está um
-pouco ingenuo. Appareça lá por casa, ás noites, com o
-seu rapaz, com o Herbert. Jogaremos a bisca de tres
-e terei occasião de lhes dar umas noções politico-sociaes
-mais amplas.</i></p>
-
-<p class="tb"><i>Emin Pacha cahiu na ratoeira de Stanley. Já
-quebrou a cabeça com uma tremenda borracheira. É
-o resultado das más companhias. Soffre as consequencias
-da indifferença com que ouviu as minhas
-recommendações.</i></p>
-
-<p class="tb"><i>Recebi hoje carta do general Deodoro. Eu tinha
-vaticinado a transformação politica do Brazil. No
-organismo monarchico apodreceu mais aquelle membro.
-Cortem até ao osso para que o mal não avance.</i></p>
-
-<p class="tb"><i>Isto por cá, vae mal. D. Carlos escreveu-me. O rapaz
-anda atrapalhadote. A Mãe telegraphou pedindo-me
-para lhes ir valer. Não estou para os aturar.</i></p>
-
-<p class="tb"><i>Preferiram o Barjona para a missão de Londres.
-Antes de partir procurou-me e conferenciamos. É dos
-nossos e deve-se proteger.</i></p>
-
-<p class="tb"><i>A caracteristica evidente d’esta assombrosa phase
-da evolução social.</i></p>
-
-<p>..............................</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_297" id="Pag_297">[297]</a></span></p>
-
-<p>Subito ruido interrompeu o discurso do grande
-homem. A porta da adega abriu-se com estrepito.
-Assustados, os <i>Provareis</i> rodearam Pericles, como as
-avesinhas implumes rodeiam os paes, quando no
-azul dos céos paira, ou zigzagueia o milhafre.</p>
-
-<p>No limiar apparecera, offegante e rubro, um paysanduco,
-que pronunciou estas palavras de magico
-effeito:</p>
-
-<p class="tb">—<i>Oh filhos! Venho de Tuy. A Noya «matou»
-hoje, e sempre tem uma «agua», que é mesmo de chupeta!
-Póde «cortar-se» á faca.</i></p>
-
-<p class="center">—<b>Á Noya! Á Noya!</b></p>
-
-<p class="noindent">exclamaram os <i>Provareis</i>; e em desordenada carreira,
-a grandes pernadas, desappareceram ao longe, furando
-a linha circular do horisonte.</p>
-
-<p class="tb">Que mysteriosa influencia seria a d’aquella Noya?</p>
-
-<p>..............................</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_298" id="Pag_298">[298]</a></span></p>
-
-<hr class="chap" />
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_299" id="Pag_299">[299]</a></span></p>
-
-<h2 id="XVIII">XVIII<br />
-<span class="smaller">Uma recita de curiosos<br />
-<span class="smaller">(FRAGMENTO)</span></span></h2>
-
-<p>..............................</p>
-
-<p>Passou-se ao segundo acto.</p>
-
-<p>O panno subiu, e á luz da ribalta appareceu o
-Nascimento.</p>
-
-<p>Nascimento—diga-se a verdade—não é precisamente
-um Brazão.</p>
-
-<p>Tenho assistido, por vezes, aos trabalhos d’este
-actor. Brazão ri, chora, soluça, tem arrancos de colera,
-tem na voz a doçura d’uma supplica, a suavidade
-d’uma prece, a meiguice d’um carinho, o vigor
-d’uma maldicção, o rugido d’uma ameaça.</p>
-
-<p>A melancholia da saudade, as expansões do amor,
-as torturas do remorso, as angustias do ciume resaltam
-nitidas, vibrantes, envolvendo-nos a<span class="pagenum"><a name="Pag_300" id="Pag_300">[300]</a></span>
-alma—comprimindo-a, dilatando-a—com o fluido subtil de
-uma verdadeira interpretação artistica.</p>
-
-<p>Por <i>doze vintens</i>, eu tenho visto o Nascimento
-fulgurando na gloriosa constellação—grande Ursa
-dos nossos céos artisticos—de que fazem parte:
-Sampaio, Guilherme, Aurelio, Romano, Machado,
-Ernesto.</p>
-
-<p>Com franqueza:—sem querer irritar a indisposição
-que no espirito do Nascimento violentamente
-se denunciou contra o Zinão, sem querer
-amesquinhar o culto idolatrado que elle nutre pela
-Arte dramatica, ou apoucar as suas aptidões—direi
-em homenagem á Verdade: Nascimento é um barbaro!</p>
-
-<p>É um barbaro quando pisa o palco, porque não
-tem naturalidade, nem expressão, nem relevo.</p>
-
-<p>Apresenta-se em todas as scenas com o mesmo
-fato amarello, de tecido africano, que o Isidoro lhe
-empresta; tem para todas as surprezas o mesmo
-<b>oh!</b>; para todas as dores o mesmo: <b>ai Jesus!</b>;
-para todas as saudações o mesmo: <b>ora viva!</b>;
-para todos os cumprimentos o mesmo: <b>Comoestá?
-Passoubem? Bemmuitoobrigado.</b></p>
-
-<p>Os pés soldam-se-lhe ao pavimento: as peças
-das articulações unificam-se, como se as membranas
-synoviaes segregassem chumbo derretido; os musculos
-tomam a rigidez do aço, permanecendo hirtos,
-inteiriços, refractarios ao imperio da vontade
-e á malleabilidade dos sentimentos.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_301" id="Pag_301">[301]</a></span></p>
-
-<p>Não tem flexibilidade nos movimentos, nem elasticidade
-nas formas que as diversas situações exigem,
-porque uma barreira de frieza e de immobilidade—quiçá
-composto de espessas cellulas philosophicas
-(?)—se oppõe á intima e immediata transmissão
-dos phenomenos psychicos aos orgãos e ramificações
-do systema nervoso.</p>
-
-<p>Predominam em todas as modulações da sua voz
-aquellas notas seccas, asperas, do: <b>Carregar!
-Alto!</b></p>
-
-<p>Denuncia-se em todas as posições a rigidez
-d’aquella linha d’uma convexidade opisthotonica,
-que a <i>Ordenança</i> militar traça para o <b>Perfilar</b>!</p>
-
-<p>E assim, Nascimento, como <i>Boticario</i> da <i>Morgadinha</i>,
-como <i>carcereiro</i> de 1640, ou como <i>Mano Gaspar</i>
-do <i>Mano Aniceto</i>—é sempre o mesmo Nascimento:
-gordinho, obeso, rechonchudo, espartilhado,
-vestido de <i>mabella</i> africana.</p>
-
-<p>Todavia, estudando as minuciosidades dos seus
-trabalhos dramaticos, analysando a mechanica dos
-seus movimentos, comparando a dynamica dos sentimentos
-que elle tenta exprimir com as manifestações
-da sua vitalidade no convivio diario e com os
-actos exteriores da sua existencia social, eu chego á
-seguinte conclusão que poderá ser considerada como
-paradoxal: Nascimento, no desempenho dos seus
-<i>papeis</i>, na interpretação d’um caracter, na reproducção
-d’um <i>typo</i>, consome mais Sentimento do
-que o Brazão. O seu trabalho psychico é superior ao<span class="pagenum"><a name="Pag_302" id="Pag_302">[302]</a></span>
-d’aquelle artista; na sua alma as situações definem-se,
-as individualidades esclarecem-se, as faculdades
-actuam. Nascimento pensa, sente e quer, como
-<i>Boticario</i> de Val d’Amores; mas o que não possue é
-esse colorido, ou—por assim dizer—essa moldura
-artistica que dá relevo ás interpretações e vida aos
-personagens.</p>
-
-<p>E como a sensibilidade affectiva é um requisito
-indispensavel ao actor, e talvez o mais essencial,
-porque é ella que o guia nos reconditos escaninhos
-da alma de Hamlet, Nascimento, que possue essa
-faculdade em superior grau, tem direito a ser considerado
-a par de Brazão, dos Rosas, e até, ao lado
-de Lekain, de Kean, de Rossi, de Irving, de Kronsweg.</p>
-
-<p>Vou demonstrar a existencia d’essa sensibilidade
-apuradissima no <i>Boticario</i> da <i>Morgadinha</i>.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Nascimento tem um sanctuario:—a sua officina.</p>
-
-<p>Alli passa as noites e os dias, com a blusa de
-operario,—aplainando madeiras, envernizando quadros,
-esquadrando molduras, curando a <i>telha</i> dos relogios,
-deitando <i>gatos</i> em terrinas quebradas, endireitando
-a <i>espinhela</i> a leques, brocando pulseiras, parafusando
-engrenagens, limando metaes, furando boquilhas,
-cinzelando coronhas, soldando <i>rabos</i> de colheres,
-aguçando pinos, collando cacos, cosendo botões,<span class="pagenum"><a name="Pag_303" id="Pag_303">[303]</a></span>
-deitando <i>pingos</i> em panellas, enfiando agulhas,
-inventando flores exoticas de <i>couvelórinton</i>, preparando
-pilhas, misturando acidos, bases, metaes, metalloides,
-oxydos, protoxydos, bioxydos, azotatos, azotitos,
-chloratos, chloretos, chloritos, etc., etc.</p>
-
-<p>Nas horas de descanço que as suas occupações
-lhe permittem, sente-se feliz com as multiplices e
-encyclopedicas applicações da sua actividade e do
-seu engenho; consome, pacientemente, sessenta e
-quatro horas com o encaixe d’uma insignificante
-peça de metal para a sua locomovel microscopica;
-aplaina e replaina o <i>empeno</i> d’uma taboa para a sua
-mobilia; gasta uma noite, duas noites, trez noites
-com o estudo analytico da reacção d’um acido sobre
-uma base.</p>
-
-<p>Com a applicação d’uma lei chimica, no desenvolvimento
-d’uma formula mechanica, na adaptação
-d’uma propriedade physica, Nascimento concentra
-todo o seu ser, toda a sua actividade mental, abandonando
-as distracções, os prazeres, e esquecendo-se
-até, das horas das refeições.</p>
-
-<p>No seu cerebro amontoam-se os projectos, chocam-se
-as theorias, amalgamam-se as applicações.</p>
-
-<p>Tem o arrojo de Lesseps, a tenacidade de Edison,
-a phantasia de Eiffel.</p>
-
-<p>A sua alma, o seu corpo, os seus orgãos, os seus
-musculos, estão alli:—no torno, na serra, no serrote,
-no brocador, no pichel da colla, no arame dos
-<i>gatos</i>.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_304" id="Pag_304">[304]</a></span></p>
-
-<p>O seu engenho tem o quer que seja de epileptico:
-ataca trinta emprezas ao mesmo tempo: mobilias,
-machinas photographicas, installações electricas,
-bobinas, telegraphos, telephones, phonographos, campainhas
-de alarme, etc., etc.</p>
-
-<p>Vencidas as difficuldades, contornadas, cortadas
-e limadas as peças, nova explosão de inadiaveis projectos
-interrompe a conclusão dos antecedentes; e
-assim, Nascimento, fazendo tudo, nada faz, porque a
-epilepsia do engenho dá ás suas obras a incommensurabilidade
-do Infinito: todas tiveram principio e
-nenhuma tem fim.</p>
-
-<p>Como se pode explicar, pois, que, annunciada
-uma recita de <i>Santo Antonio</i>, ou da <i>Morgadinha</i>,
-este homem abandone immediatamente o seu <i>meio</i>,
-o seu sanctuario e enthusiasticamente se venha
-offerecer para desempenhar o <i>papel</i> de <i>Mano Gaspar</i>,
-ou de <i>Boticario</i>?</p>
-
-<p>Pela extrema sensibilidade das suas faculdades
-affectivas.</p>
-
-<p>Nascimento lê o drama, a comedia, ou a scena
-<i>comica</i>; a sua alma vibrou, agitou-se com o caracter
-d’este ou d’aquelle personagem; identificou-se com
-os sentimentos do <i>galan</i>, ou do <i>comico</i>; e, possuido
-de irresistivel enthusiasmo, abandona a officina,
-troca o <i>alicate</i> ou o <i>saca-trapos</i> pelo caderno almaço
-e lá vae para as muralhas metter na cabeça, em
-giros constantes—para traz, para deante—os periodos
-do <i>papel</i>.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_305" id="Pag_305">[305]</a></span></p>
-
-<p>Este enthusiasmo, em qualquer de nós—no Albino,
-por exemplo, que já representou de mulher,
-nos paysanducos, eximios na Comedia—seria uma
-coisa vulgar, insignificante; mas no Nascimento que
-nós conhecemos e que eu examinei na officina, revela
-uma enorme tensão de faculdades affectivas.</p>
-
-<p>Os trabalhos do Brazão são correctos e são artisticos;
-mas este actor adquiriu já a <i>physiologia</i>
-dos sentimentos; os seus musculos contraem-se, por
-assim dizer, inconscientemente, independentes do imperio
-da vontade, como nas acções reflexas. Mostra
-no rosto a agitação d’um mar de paixões, quando na
-alma tem a tranquillidade d’um lago.</p>
-
-<p>Alem d’isso, Brazão tem o scenario de D. Maria;
-tem o Keil, a luva do Baron; o talhe elegante,
-o perfil distincto, a perna flexivel, o bigode loiro, o
-monoculo—todas essas pequenas coisas que emmolduram
-e aristocratizam o actor.</p>
-
-<p>Nascimento tem o desbotado scenario do nosso
-theatro, ainda saturado de irritantes aromas dos
-<i>meios com cebolada</i> que, ha annos, o meu amigo
-S. Lima arremessava ás fauces de toda a tribu
-<i>pica-calcantes</i>; tem a roupa de <i>mabella</i>; a rigidez
-linear da <i>Ordenança</i> conturbando a flexibilidade dos
-movimentos; a <i>reacção dos acidos</i> paralysando a
-acção dos nervos centrifugos; o <i>ordinario marche</i>!
-pruindo compassadamente na sola dos pés e na
-barriga das pernas...</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_306" id="Pag_306">[306]</a></span></p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Examinado pelo prisma da Arte, Nascimento actor
-é—repito—um barbaro. Mas analysado pelo prisma
-do Sentimento revela-nos uma organisação especialissima,
-que seria a gloria de nossos palcos e da
-nossa terra, se um defeito organico a não prejudicasse.</p>
-
-<p>Nascimento ouve uma valsa de Metra, uma symphonia
-de Berlioz; ouve Rubinstein e Sarasate, a
-Patti e a Nilsson. Permanece mudo, quedo, insensivel.</p>
-
-<p>Tem nas mãos uma flôr mimosa: uma <i>Captain
-Christi</i> ou <i>Bertha Mackart</i>; uma <i>Alba imbricata</i> ou
-<i>Countess of Derby</i>; a violeta, o lirio, a sensitiva.
-Os dedos afastam-se e a bella flôr cae abandonada,
-cerrando as petalas...</p>
-
-<p>—<i>Não gosto de muzica; não gosto de flores</i>—diz
-o Nascimento.</p>
-
-<p>Poderemos acreditar na sinceridade d’estas palavras
-pronunciadas pelo homem, em quem os insipidos
-gracejos do <i>Mano Aniceto</i> exercem tal influencia
-e inspiram tal enthusiasmo que, arrancando-o da
-sua Thebaida, da sua officina, o expõem, vestido de
-amarello, á extatica contemplação dos <i>loiceiros</i>?</p>
-
-<p>Não! Nascimento é accessivel á vibratilidade das
-commoções; os seus nervos sensitivos communicam
-ás cellulas cerebraes toda a intensidade dos enthusiasmos,
-mas o tal defeito organico—um enfraquecimento<span class="pagenum"><a name="Pag_307" id="Pag_307">[307]</a></span>
-dos nervos centrifugos—oppõe-se á transmissão
-da força necessaria para a mechanica muscular
-e para a movimentação das situações dramaticas.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Terminou o segundo acto. Tenho de estudar os
-outros <i>curiosos</i> da Companhia; mas ao despedir-me
-de ti, Nascimento, permitte um conselho: abandona
-o theatro. Trata d’esse enfraquecimento do tecido
-nervoso.</p>
-
-<p>Com seis mezes de cuidadoso regimen, póde ser
-que um dia, na apotheose das nossas glorias theatraes,
-como já annuncio:</p>
-
-<p class="tb">Sampaio—o Jeremias da Balagota...</p>
-
-<p class="noindent tb">possa tambem dizer:</p>
-
-<p class="tb">Nascimento—o Irving valenciano.................................</p>
-
-<h3>NOTA</h3>
-
-<div class="smaller">
-
-<p class="right">Nascimento amigo:</p>
-
-<p>Este artigo já estava escripto, quando soube das tuas manifestações
-<i>anti-zinoicas</i>. Tem paciencia.</p>
-
-<p><i>Quod scripsi, scripsi.</i> Não vale zangar, porque o <i>sinapismo</i> que te
-offereço é proprio para senhoras; nem queima, nem faz bolha.</p>
-
-<p class="center">Teu constante admirador</p>
-
-<p class="right"><i>Zinão</i>.</p>
-
-</div>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_308" id="Pag_308">[308]</a></span></p>
-
-<hr class="chap" />
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_309" id="Pag_309">[309]</a></span></p>
-
-<h2 id="XIX">XIX<br />
-<span class="smaller">Transferencias<br />
-<span class="smaller">(1886-1890)</span></span></h2>
-
-<div class="blockquote">
-
-<p class="hanging">CODIGO PENAL, artigo 432.º «Roubo:—<b>subtracção de
-coisa alheia...</b>»</p>
-
-<p class="hanging">CODIGO CIVIL, artigo 2167.º: «direito de propriedade:—<b>faculdade
-que o homem tem de applicar á conservação
-da sua existencia e ao melhoramento
-da sua condição tudo quanto para
-esse fim legitimamente adquiriu e de que,
-portanto, póde dispor livremente.</b>»</p>
-
-</div>
-
-<p>A lei garante-nos a propriedade dos bens que
-herdamos, dos bens que adquirimos, dos trabalhos
-litterarios que produzimos, dos inventos que lançamos
-aos mercados, das concessões que obtivemos.</p>
-
-<p>O que é hoje um curso, uma formatura?</p>
-
-<p>Uma propriedade que se adquiriu em troca de
-valioso capital; que se grangeia, que se cultiva, que
-se aperfeiçoa, para que ella nos forneça os recursos
-necessarios ás despezas da vida.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_310" id="Pag_310">[310]</a></span></p>
-
-<p>Quando a razão principia a funccionar, levam-nos
-ás regiões da Sciencia, e dizem-nos: ahi tendes esses
-hectares de terreno, estão asperos, incultos, bravios;
-ha por ahi cardos, abrolhos, silvados. Trabalhae,
-limpae, nivelae, lavrae, semeae e colhei. Ahi ficam
-dois contos para despezas de grangeio.</p>
-
-<p>No fim de dez ou doze annos temos o terreno apto
-para a cultura. Exgottamos uma boa parte do vigor
-da mocidade. O cerebro-arado não abriu sulcos só na
-terra; abriu-os tambem na fronte do trabalhador.</p>
-
-<p>Com os fructos da primeira colheita obtemos uma
-collocação em qualquer das instituições do Estado;
-chamam-nos: Delegado, Conservador, Official do Exercito,
-Medico municipal, Professor, etc., etc.</p>
-
-<p>Se no meio da improba tarefa o desanimo nos
-assalta, se a força de contrariedades imprevistas
-inutiliza os nossos esforços, e não podemos cultivar
-até ao fim todo o terreno que nos limitaram, contentamo-nos
-com uma pequena leira, esperando que mais
-tarde, pela persistencia no trabalho, a poderemos
-augmentar e desenvolver. Ficamos, então, aspirantes
-da Alfandega, escripturarios da Fazenda, amanuenses
-das Camaras, etc.</p>
-
-<p>O Estado dá-nos umas tantas libras por mez e
-exige-nos: honestidade, seis horas de trabalho diario,
-<i>direitos de mercê</i>, habilitações litterarias. É um simples
-contracto commutativo, com todas as garantias
-de segurança, porque uma das <i>partes</i> é o Governo,
-fiscal da Lei.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_311" id="Pag_311">[311]</a></span></p>
-
-<p>No decorrer da vida, circumstancias de natureza
-varia, sympathias pessoaes, assimilação de doutrinas,
-identidade de aspirações, enfeudam-nos a um Ideal,
-filiam-nos em um partido, aproximam-nos de um homem.</p>
-
-<p>Temos a Carta constitucional, a epopéa dos <i>sete
-mil e quinhentos</i>, os Codigos eleitoraes,—respiramos
-n’uma atmosphera serena de tolerancia; é legal e
-correcto o nosso proceder na vida publica e nada
-temos, portanto, que recear com a manifestação liberrima
-das nossas opiniões politicas.</p>
-
-<p>Succede, porém, que um marau qualquer, sufficientemente
-villão para rojar sem escrupulo, pela
-lama do servilismo, a sua dignidade de cidadão e
-para extender a consciencia, como um capacho de
-crina, nas soleiras das alfurjas onde pernoitam os
-politiqueiros,—por estes e por aquelles motivos embica
-com as nossas opiniões, incommoda-se com a
-nossa influencia e resolve em conciliabulo secreto
-da velhacaria com o rancor—promover a nossa
-transferencia para os Algarves, ou para as ilhas
-de Bijagóz.</p>
-
-<p>Assobia á matilha dos rafeiros eleitoraes, promette
-um osso aos abbades, mostra uma codea aos
-fraldiqueiros e apresenta-se, com a cainçalha atrelada,
-ao deputado do circulo.</p>
-
-<p>Ao espirito dos deputados—homens geralmente
-illustrados—repugna sempre a cumplicidade em taes
-infamias; mas perante a dentuça afilada dos rafeiros<span class="pagenum"><a name="Pag_312" id="Pag_312">[312]</a></span>
-que ameaçam esfarrapar-lhe a candidatura nas proximas
-eleições, a dignidade hesita, vacilla e cede
-por fim.</p>
-
-<p>D’alli a oito dias, o <i>Diario do Governo</i> annuncia
-a nossa transferencia para o regimento n.º tantos,
-para a Comarca tal dos Algarves, ou para a repartição
-de Fazenda X da Beira.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Sou casado, tenho tres filhos e sustento uma
-irman viuva. A transferencia obriga-me á venda da
-mobilia, das loiças, dos <i>tarecos</i>; e a urgencia d’essa
-venda deprecia consideravelmente o valor dos objectos.</p>
-
-<p>Primeiro prejuizo.</p>
-
-<p>As condições economicas de minha existencia são
-perturbadas pelos encargos d’um emprestimo de duzentos
-mil reis, que tenho de contrahir para as
-despezas da viagem, da nova installação, e que um
-nababo qualquer me empresta ao juro de seis por
-cento, depois de eu satisfazer umas pueris formalidades,
-umas cerimoniosas ninharias que a praxe
-recommenda—como são as assignaturas de dois
-bons fiadores e respectivas consortes, e a escriptura
-de hypotheca sobre boas propriedades, livres e allodiaes.</p>
-
-<p>Cumprido isto, recebo o dinheiro, e com elle, um<span class="pagenum"><a name="Pag_313" id="Pag_313">[313]</a></span>
-titulo de eterno feudo e dependencia moral, tanto
-para mim como para meu filhos, ainda que, decorridos
-seis mezes depois de registada a <i>transacção</i>, eu
-me desfaça do credor, devolvendo capital e juros
-com muitos apertos de mão e phrases de eterno reconhecimento<a name="FNanchor_57" id="FNanchor_57"></a><a href="#Footnote_57" class="fnanchor">[57]</a>.</p>
-
-<p>Parto para a minha nova collocaçeo; despezas de
-caminho de ferro, transporte de bahus, carros, carroças,
-nova acquisição de moveis, de <i>tarecos</i>, etc.,
-etc.; os duzentos mil reis desapparecem.</p>
-
-<p class="tb">Voltemos á lei:</p>
-
-<div class="blockquote">
-
-<p class="hanging">CODIGO PENAL, artigo 421.º: «<b>Aquelle que commetter
-o crime de furto, subtrahindo fraudulentamente
-uma coisa que lhe não pertença,
-será condemnado:</b></p>
-
-<p class="hanging"><b>1.º A prisão até seis mezes e multa até um
-mez, se o valor da coisa furtada não exceder
-a 10$000 reis.</b></p>
-
-<p class="hanging"><b>2.º A prisão até um anno e multa até dois mezes,
-se exceder a esta quantia, e não fôr superior
-a 40$000 reis.</b></p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_314" id="Pag_314">[314]</a></span></p>
-
-<p class="hanging"><b>3.º A prisão correccional até dois annos e multa
-até seis mezes, se exceder a 40$000, e não
-fôr superior a 100$000 reis.</b></p>
-
-<p class="hanging"><b>4.º A prisão maior cellular de dois a oito annos,
-ou, em alternativa, a degredo temporario
-com multa até um anno, em ambos os
-casos, se exceder a 100$000 reis.</b></p>
-
-</div>
-
-<p class="tb">Associemos as idéas.</p>
-
-<p class="tb">V. Ex.ª tem aquella quinta em algures. Uma
-noite, penetram n’ella tres ratoneiros, arrombam o
-espigueiro e levam cinco alqueires de milho. Os
-cães ladram, um creado grita, o regedor acode, os
-ratoneiros fogem, os <i>cabos</i> encontram-nos e a Borralho
-abre e fecha a cadeia.</p>
-
-<p>—<i>Como foi? como não foi?</i></p>
-
-<p>—<i>Senhor! Tinhamos fome</i>...</p>
-
-<p>—<i>São uns desgraçados</i>,—diz o advogado de defeza.</p>
-
-<p>—<i>É preciso garantir o direito de propriedade</i>,—exclama
-o sr. Dr. Delegado.</p>
-
-<p>—<i>Trinta dias de cadeia</i>—conclue o sr. Dr. Juiz.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>D’essa mesma quinta, vendeu V. Ex.ª para Monsão
-vinte pipas de vinho a quatro moedas. Vae receber
-o seu dinheiro—oitenta moedas—e regressa a
-Valença, á noite.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_315" id="Pag_315">[315]</a></span></p>
-
-<p>Ao passar na <i>Tomada de Barros</i>, um homem com
-chapeo largo põe-se á frente dos cavallos e, de bacamarte
-em punho, diz ao cocheiro: <i>Faça alto!</i></p>
-
-<p>Outro <i>barbaças</i> enfia pelo buraco da portinhola o
-cano d’um revolver e diz: <i>Venha p’ra cá o bago!</i></p>
-
-<p>Apparecem mais tres vultos embuçados e V. Ex.ª
-ouve aquelle <i>crac</i> secco e sinistro de tres bacamartes
-que se armam.</p>
-
-<p>V. Ex.ª puxa do <i>Bull-dog</i>, ou <i>Abbadie</i>; o cocheiro
-aponta um revolver enferrujado, ouve-se uma detonação,
-depois outra; um grito, um rugido, uma praga.
-V. Ex.ª salta do carro, desfecha outra vez, avança,
-recua, tropeça no corpo d’um <i>barbaças</i> que escabuja,
-perde o equilibrio e cae.</p>
-
-<p>Quando tenta levantar-se, jogam-lhe uma paulada
-valente, que lhe fractura o craneo.</p>
-
-<p>Não sabe do mais que se passou. D’alli a quinze
-dias principia V. Ex.ª a coordenar umas ideas vagas
-que em rapidos momentos lucidos surgem no seu
-cerebro. Sente-se excessivamente fraco; reconhece
-que está na cama; leva com difficuldade as mãos
-á cabeça, apalpa, e encontra um turbante de pannos
-humidos e ensanguentados.</p>
-
-<p>Balbucia uma pergunta. Recommendam-lhe silencio,
-que não faça esforços de memoria.</p>
-
-<p>—<i>Muito socego e muito juizo</i>, diz o Esculapio.</p>
-
-<p>Tres dias depois, o cerebro associa as idéas.</p>
-
-<p>—<i>Como foi isto?</i>—pergunta V. Ex.ª á esposa.</p>
-
-<p>—<i>Foi d’esta e d’aquella forma.</i></p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_316" id="Pag_316">[316]</a></span></p>
-
-<p>—<i>E os homens?</i></p>
-
-<p>—<i>Um morreu; tres estão presos.</i></p>
-
-<p>—<i>E o dinheiro?</i></p>
-
-<p>—<i>Roubaram-t’o com o relogio.</i></p>
-
-<h3>Epilogo</h3>
-
-<p><i>Está ou não provado?</i> etc., etc.</p>
-
-<p class="right"><b>dez annos de degredo.</b></p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Ao ratoneiro que, talvez para matar a fome, levou
-cinco alqueires de milho, deu a lei—trinta dias
-de cadeia. Ao <i>barbaças</i> que arriscando a vida, de
-peito descoberto, roubou o relogio e as oitenta moedas,
-disse o Codigo penal: dez annos de degredo.</p>
-
-<p class="tb">Ora, o milho e o dinheiro pertenciam a V. Ex.ª
-por indiscutivel direito de propriedade. A falta do
-primeiro originou um desequilibrio insignificante nas
-suas finanças, que foram gravemente perturbadas
-pela subtracção do segundo. V. Ex.ª teve de limitar
-as suas despezas diarias e não poude, n’aquelle anno,
-mandar seu filho para Coimbra, ou para o Collegio
-militar, porque faltaram os meios e não quiz contrahir
-emprestimos.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_317" id="Pag_317">[317]</a></span></p>
-
-<p>A lei, garantindo a propriedade do cidadão puniu
-severamente os individuos que prejudicaram V. Ex.ª</p>
-
-<p><i>Neminem laede</i>—era a formula de Kant na sua
-theoria sobre a Philosophia do Direito.</p>
-
-<p>Lesaram V. Ex.ª e a lei puniu.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Comparemos os factos:</p>
-
-<p>As vinte moedas representam o rendimento da
-quinta <i>tal</i>, em algures, que a V. Ex.ª pertence por
-um titulo de acquisição ou posse, legalmente reconhecido.</p>
-
-<p>Os duzentos mil reis que V. Ex.ª gasta com as
-despezas da sua transferencia e os juros ou encargos
-de doze mil reis annuaes, serão retirados do rendimento
-da propriedade que V. Ex.ª comprou ao Estado
-com os dois contos da formatura, ou com os <i>direitos
-de mercê</i> e com o seu trabalho diario—compra
-de que possue o devido titulo que é um diploma, a
-<i>patente</i>, <i>etc.</i></p>
-
-<p class="tb">Associadas as idéas, comparados os factos, consideremos
-agora o <i>barbaças</i> e o marau <i>transferidor</i>.</p>
-
-<p>Que differença póde haver entre o primeiro, que
-na <i>Tomada de Barros</i> reclamou, de bacamarte em
-punho, as vinte moedas, e o segundo que, desfechando
-o bacamarte da <i>transferencia</i>, a V. Ex.ª origina
-um prejuizo de duzentos mil reis?</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_318" id="Pag_318">[318]</a></span></p>
-
-<p>De qualquer d’esses factos não resultou o mesmo
-desequilibrio nos elementos economicos da sua existencia?</p>
-
-<p>Não significam elles o mesmo attentado contra
-direitos legalmente reconhecidos?</p>
-
-<p>Não houve n’elles a mesma responsabilidade, a
-mesma <i>premeditação</i>, a mesma consciencia da illegalidade?</p>
-
-<p>Eu de mim annuncio que só reconheço uma differença
-entre o João Brandão, o Papa-Assucar ou Zé
-do Telhado e <i>quem quer que</i> fosse que promoveu a
-transferencia do sr. Camisão, e <i>quem quer que</i> seja
-que promove as transferencias que, á puridade, por
-ahi se annunciam.</p>
-
-<p>Essa differença é a seguinte:</p>
-
-<p>João Brandão, Zé do Telhado e Papa-Assucar,
-na classe dos ladrões são ladrões honrados e dignos.
-Apresentam-se na estrada, de peito descoberto, fronte
-erguida, expondo a vida e arriscando a liberdade.</p>
-
-<p>Os <i>transferidores</i> de cá são ladrões acanalhados,
-ratoneiros de feira, fadistas de café de <i>lépes</i>, traiçoeiros,
-covardes que se disfarçam com grandes capotes
-e se cozem ás paredes nas sombras da noite
-para, em qualquer encruzilhada, combinarem os meios
-de, impunemente, anavalharem o funccionario publico.</p>
-
-<p>Se eu souber que no pinhal de Ganfey se acoita
-uma malta de larapios, e se tiver necessidade de lá
-passar á noite, a prudencia aconselha-me a levar<span class="pagenum"><a name="Pag_319" id="Pag_319">[319]</a></span>
-um bom cacete, para quebrar o braço a um e pôr
-em fuga os outros.</p>
-
-<p>Ora, dos <i>transferidores</i> é que eu não me posso
-livrar tão facilmente. Só saem quando os lampeões
-se apagam; só transitam por viellas, mysteriosos, impalpaveis,
-sumidos. Se, por acaso, d’algum suspeito
-e lhe arranco o capote para conhecer as feições,
-encontro uma cara conhecida que ainda ha trez horas
-me saudava e me sorria.</p>
-
-<p>D’aqui a tres dias, silva a navalha nos ares.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>No periodo de 1886 a 1890 instituiu-se n’esta
-villa o regime das <i>transferencias</i> que legaliza essas
-infamias, estabelecendo nos differentes partidos politicos
-a necessidade das represalias summarias, como
-as disposições do codigo de Lynch.</p>
-
-<p><i>É preciso fazer sangue, para que os campos se
-definam</i>—disse-me, ha annos, um Machiavel indigena.
-Apertei o casaco e segurei o relogio. É que
-na estrada da Velhacaria, a Politica da minha terra
-avizinhava-se já do pinhal da Azambuja em que hoje
-vivemos.</p>
-
-<p>Para esta classe de scelerados—os <i>transferidores</i>—o
-Direito romano, as Ordenações e os Codigos
-nada estabelecem. Mas o Direito positivo funda-se
-no Direito natural e este tira os seus principios da<span class="pagenum"><a name="Pag_320" id="Pag_320">[320]</a></span>
-consciencia humana, em face das leis da Razão e da
-Moral.</p>
-
-<p>O legislador dá sempre ao magistrado a faculdade
-de ampliar, segundo os dictames da consciencia,
-ou de alterar, segundo os usos da terra, as disposições
-que estabeleceu para a repressão do facto
-criminoso e para a defeza de direitos adquiridos.</p>
-
-<p>Em nossa consciencia, pela illegalidade das causas
-e pela importancia dos effeitos, o caso das <i>quarenta
-moedas</i> e o dos <i>duzentos mil reis</i> teem a mesma
-classificação: um roubo.</p>
-
-<p>Quem rouba é ladrão; e para nivelar a condição
-criminosa e as responsabilidades do <i>barbaças</i> e do
-<i>marau transferidor</i>, egualmente perigosos na sociedade
-em que vivemos, apresento o seguinte additamento
-ao Codigo penal:</p>
-
-<p class="tb">Artigo tantos:</p>
-
-<p class="tb"><b>Todo o homem de bem tem a liberdade de
-correr a pontapé pelas ruas de Valença, o sevandija
-que, directa ou indirectamente, influa
-em qualquer transferencia.</b></p>
-
-<p class="tb">§ unico:</p>
-
-<p class="tb"><b>Fica revogada toda a legislação em contrario.</b></p>
-
-<p class="smaller">10-2-90.</p>
-
-<p class="right"><i>Zinão</i>.</p>
-
-<hr class="chap" />
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_321" id="Pag_321">[321]</a></span></p>
-
-<h2 id="XX">XX<br />
-<span class="smaller">A questão ingleza<br />
-<span class="smaller">(NOTAS SOLTAS)</span></span></h2>
-
-<p>Alem-mar scintilla na escuridão a iris do abutre.</p>
-
-<p>O leopardo rugiu, saltou, e cravou as garras ensanguentadas
-no velho Portugal.</p>
-
-<p>Este enorme gigante que teve no encephalo,
-como cellulas, os craneos de Camões, de Gama e de
-Cabral; que teve por apophyses as columnas de Hercules,
-os rochedos do Bojador, do Boa-Esperança, do
-Razalgate e do Comorim; por articulações Angola,
-Moçambique, Mascate, Ormuz, Diu, Calicut, Malacca;
-por veias os filões preciosos de Sofala, de Minas e
-Cyaté, do Pegu e de Narsinga; por arterias o Tejo
-e o Zaire, o Quanza e o Limpopo, o Zambeze e o
-Mandovi, o Ganges e o Amazonas; por cabellos os
-cedros seculares do Novo Mundo; por musculos os<span class="pagenum"><a name="Pag_322" id="Pag_322">[322]</a></span>
-braços de mil heroes; por thorax a amplidão de todos
-os céos; por limite visual a linha de todos os horisontes;
-por fronteira o circulo de todos os quadrantes;
-por dominio a vastidão de todos os mares; por
-fanal a luz de todas as constellações—esse colosso
-que teve por servos o Çamorim e os rajahs da India,
-por thesoiro os abysmos aquaticos de Borneo e de
-Ceylão; por sonhos os mythos do Preste-Joham; por
-pesadelos as tragedias de Alcacer-Kibir e de Tanger;
-e que pela rigidez do seu braço, pela heroicidade
-do seu valor, conseguiu a crystallização de todas as
-chimeras e a realidade de todas as phantasias—eil-o
-ahi, prostrado, corroido pelo fanatismo religioso que
-ha quatro seculos lhe ulcerou os membros, enfraquecido
-pelos caprichos de monarchas perdularios, aviltado
-pela phthiriase de cortezãos servis, cancerado
-pela ambição insaciavel dos aulicos traiçoeiros, decrepito,
-pobre, agonisante... mas não morto!</p>
-
-<p>Não! Não está morta a Patria! Ha n’ella quatro
-milhões de cellulas; e se muitas são inertes ou inuteis,
-covardes ou egoistas, existe nas restantes força
-viva sufficiente para transmittir á musculatura do
-heroe decrepito a energia das grandes crises e o arrojo
-dos antigos feitos.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>N’essa cloaca—a côrte ingleza—escoante de todas
-as sargetas, deposito de todas as fezes, sumidoiro<span class="pagenum"><a name="Pag_323" id="Pag_323">[323]</a></span>
-de todas as immundicies que podem existir na alma
-humana, as ambições e a perfidia actuaram como acidos
-d’uma pilha sobre o metal—oiro—dos nossos
-terrenos da Mashona.</p>
-
-<p>Como reophoro transmissor d’essa electricidade
-cupida, partiu de Londres—polo negativo—o <i>ultimatum</i>
-de Salisbury e tocou no coração da Patria.</p>
-
-<p>Immediatamente, outra electricidade se desenvolveu
-com os elementos positivos da Justiça e do Direito
-n’essa enorme pilha—a alma portugueza—que
-já actuou em todo o Universo com a intensidade das
-mais arrojadas emprezas e com a força dos mais generosos
-heroismos.</p>
-
-<p>E então, ao contacto d’esse novo fluido, de que
-n’um bello impulso de ardente enthusiasmo a Academia
-foi conductor, todos os membros do decrepito colosso
-se agitaram convulsivamente. Ergueu-se o heroe,
-d’um arranco, e magestoso de altivez, fremente
-de indignação—d’ahi, do promontorio de Sagres,
-d’onde avassallára o Mundo, arremessou para lá da
-Mancha o escarro do desprezo, unico desforço que a
-dignidade permitte ás affrontas d’um villão.</p>
-
-<p class="tb">Cartel de desafio não se manda a representantes
-de <i>lords</i>. Bright era <i>quaker</i>; Crawfurd, provavelmente,
-é castrado; condições diversas, mas eguaes
-na intenção—livrar decentemente as regiões trazeiras
-da bota d’um portuguez.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_324" id="Pag_324">[324]</a></span></p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>A excitação da colera e a allucinação do perigo
-teem por vezes prejudicado a imponencia da nossa
-attitude perante essa malta de esbodegados borrachões,
-paus-de-virar tripas encasacados, feitos de esperma
-de lupanar e de muco leucorrheico, que constituem
-na sua abjecta individualidade de <i>lords</i> a canalha
-servil da côrte ingleza.</p>
-
-<p><i>Morra a Inglaterra!</i> bradamos.</p>
-
-<p>Não! Não se levantam gritos de exterminio contra
-uma nação inteira. Entre quarenta milhões
-de habitantes ha, tambem, opprimidos e oppressores.</p>
-
-<p>A podridão e a villania condensam-se nas altas
-espheras do <i>high-life</i>, nos palacios da City, nos corredores
-de Windsor Castle, no <i>royal box</i> de Covent
-Garden, no Pelican Club, no Devonshire Club, no
-Turf-Club, onde impera, infrene, El-Rei Deboche.</p>
-
-<p>Cá em baixo, labuta e moireja um povo trabalhador
-e geme um mundo de parias. Nos bairros immundos
-de Londres, no West-End, no White-Chapel,
-dormem ao ralento, esfarrapados e nús, centenares
-de velhos e de creanças.</p>
-
-<p>Agonizando pelas esquinas e escabujando nos
-monturos, morrem annualmente, <b>de fome</b>, tres a
-quatro mil pessoas.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_325" id="Pag_325">[325]</a></span></p>
-
-<p>Das camadas que trabalham sahiram Shakspeare,
-Milton, Jenner, Newton, Davy, Graham, Bacon, Locke,
-Hume, Priestley, Adam Smith, Stephenson, Wollaston,
-Boyle, Shaftesbury, Harvey, Stuart Mill,
-Spencer.</p>
-
-<p>Esses homens alguma coisa fizeram em prol da
-humanidade e da civilização, e não é justo, portanto,
-que á sua memoria e ao seu nome lancemos o escarro
-do insulto e o estigma da maldicção.</p>
-
-<p><i>Odio aos lords!</i> deve ser o nosso grito, porque
-são elles, e só elles, os nossos espoliadores.</p>
-
-<p>Odio a essa aristocracia abandalhada que estrangula
-a Irlanda—mancha vergonhosa da civilização
-europea e que os magarefes da City por vezes transformam
-em sangrento açougue.</p>
-
-<p>Odio a esses lacaios de libré que nas sessões da
-Lords’ House vemos erectos, empertigados, orgulhosos,
-e á noite se curvam sobre os tapetes do <i>brothel</i>—bestiaes,
-apopleticos, rubros, babados, <i>falling
-on one’s jaws</i><a name="FNanchor_58" id="FNanchor_58"></a><a href="#Footnote_58" class="fnanchor">[58]</a> entre saias almiscaradas e amarellas
-com o liquido da menorrhéa.</p>
-
-<p>N’esse asqueroso quadro de infamias que em 85
-a <i>Pall Mall Gazette</i> desvendou á imprensa europea
-ha, como actores, <i>lords</i>, só <i>lords</i>—os mesmos canalhas
-de Cleveland-Street que, ha mezes, uns áltos<span class="pagenum"><a name="Pag_326" id="Pag_326">[326]</a></span>
-<i>personagens</i> da côrte protegiam, suffocando a peso de
-oiro a publicidade das suas novas torpezas. São elles
-e só elles que fixaram o preço de 15 a 20 libras
-para as <i>fresh-girls</i>—<i>virgo intacta</i>—de 13 a 14 annos,
-que hoje são as 50:000 prostitutas—<i>black army</i>
-dos <i>trottoirs</i> londrinos.</p>
-
-<p>São elles que para a lucta contra essas desgraçadas
-creanças, attrahidas infamemente aos subterraneos
-de West-End, inventaram a <i>black-draught</i> do
-narcotico.</p>
-
-<p>São elles que para obterem o oiro necessario ás
-phantasias d’uma sensualidade bestial, constituiram
-a <i>Slaughter-House</i> contra os desgraçados filhos da
-Irlanda; que reunidos em <i>Royal Companies</i> ordenaram
-essas medonhas carnificinas de Pendjab e dos
-cipayos; e que agora, trocando em casa de Salisbury
-as fardas bordadas pela jaqueta de <i>pick-pocket</i>, <i>chypram</i>
-do mappa africano o oiro da Mashona.</p>
-
-<p>Esses asquerosos Tartufos, occultando cynicamente
-nas casacas de <i>congressistas</i> philanthropicos e
-humanitarios a sua cupidez e insaciavel ambição,
-propozeram, ha tempos, a Portugal e ao sultão de
-Zanzibar um bloqueio na costa oriental, de Inhambane
-a Pembe, que impedisse—diziam—a importação
-de armas aos arabes do interior, eternos traficantes
-de carne humana.</p>
-
-<p>O nosso governo accedeu; o bloqueio estabeleceu-se;
-e poucos dias depois, o governador do Cabo
-enviava occultamente a Lobengula, feroz chefe dos<span class="pagenum"><a name="Pag_327" id="Pag_327">[327]</a></span>
-Matabelles, com quem os arabes se entendem, 1:000
-espingardas Martini-Henry com 300:000 cartuchos!</p>
-
-<p>Odio, pois, aos <i>lords</i>!</p>
-
-<p>Organize-se contra elles uma nova cruzada de
-exterminio, e que todo o portuguez tenha o direito
-de os correr a tiro, como a animal feroz, quando no
-solo honrado da Patria poisarem as suas enormes
-patas de tres toesas.</p>
-
-<p>São elles e só elles que nos roubam. Ahi vae a
-<i>historia do caso</i> Chire-Nyassa.</p>
-
-<p class="tb">Lord Fife, duque do dito Fife, é genro de Sua
-Alteza Real o Principe de Walles; casou com a princeza
-Luiza, uma neta da <i>graciosa</i> rainha e imperatriz
-Victoria.</p>
-
-<p>Lord Fife é um pobresinho de Christo; das suas
-propriedades de Scotland e de outros bens de fortuna
-tem um rendimento aproximado a dois contos
-por dia, e como a sua <i>Ex.ᵐᵃ Consorte</i> é de egual pobreza,
-com mais umas achegas, dotação, etc., nas telhas
-d’aquelle desgraçado casal caem umas quarenta
-libras por cada hora de cada dia.</p>
-
-<p>Mas succede que lá, como cá, estas coisas de nobreza
-custam muito dinheiro, porque é preciso sustentar
-a respeitabilidade da posição official, como
-diz o Albino, quando <i>entra nas idéas e no coração</i>
-da gente para dispôr os <i>petardos</i> das suas transcendentes,
-nebulosas e philosophicas reflexões sociaes.</p>
-
-<p>Como o povo inglez embicou, ha tempos, com o<span class="pagenum"><a name="Pag_328" id="Pag_328">[328]</a></span>
-augmento da dotação da <i>Royal Family</i>, lord Fife,
-para ganhar o seu pataco, fez-se agiota, socio commandita
-da firma commercial <i>Samuel Scott and C.º</i>
-e director da <i>British South Africa Company</i>, a quem
-uma <i>Royal Charter</i> concedeu, ultimamente, 400:000
-milhas de terreno africano com aquella liberalidade
-conhecida: <i>do pão do nosso compadre grossa fatia ao
-afilhado</i>.</p>
-
-<p>Mas as libertinagens de West-End, do Cleveland-Street,
-os serviços dos rapazinhos do telegrapho, as
-orgias de <i>champagne</i>, os <i>boat-matches</i> do Naval Club,
-absorvem todos os rendimentos de lord Fife e segundo
-consta, ha poucos mezes, as finanças de His
-Lordship estavam por assim dizer: <i>tem-te, não
-caias</i><a name="FNanchor_59" id="FNanchor_59"></a><a href="#Footnote_59" class="fnanchor">[59]</a>.</p>
-
-<p>A concessão feita a Lord Fife, a Lord Abercorn,
-a Lord Gifford (cá estão os <i>lords</i>), organizadores da
-<i>African Company</i>, era tão importante que em Londres,
-o <i>Times</i> e o <i>Standard</i>, fazendo reclamo, annunciavam-na
-como: <i>Empreza colossal</i>. Todavia, as acções
-conservavam-se na <i>baixa</i> e Lord Fife, nominalmente
-um dos maiores accionistas, não arranjava com aquelle
-negocio para pagar um <i>little boy</i>.</p>
-
-<p>Surgiu então uma idéa salvadora. Os nossos terrenos
-na Mashona eram, ha muito tempo, indicados
-como preciosos para explorações auriferas. Salisbury<span class="pagenum"><a name="Pag_329" id="Pag_329">[329]</a></span>
-levou <i>rasca na assadura</i>; contractou-se o patife
-Johnston, compraram-se por baixo preço todas as
-acções da <i>South Company</i> e no dia seguinte rebentou
-o <i>ultimatum</i>. Em vinte e quatro horas, cada acção
-obteve um premio de setenta libras. Cinco mil acções—trezentas
-e cincoenta mil libras.</p>
-
-<p class="tb"><i>God save the Queen!</i> e vamos ás <i>fresh-girls</i>!</p>
-
-<p class="tb">Odio pois aos lords! E como em Valença as manifestações
-patrioticas ficaram no <i>projecto</i> d’um telegramma
-a Serpa Pinto, porque se repetiu, talvez,
-aquelle caso da subscripção para o <i>bucephalo</i><a name="FNanchor_60" id="FNanchor_60"></a><a href="#Footnote_60" class="fnanchor">[60]</a>, eu
-proponho o seguinte:</p>
-
-<p class="tb">Que se mande a Lisboa uma commissão para escolher
-e contractar nas viellas da Baixa duas duzias
-de <i>ladies</i> matrafonas, das mais abandalhadas e nojentas.</p>
-
-<p>A mesma commissão contractará, tambem, dez ou
-doze grumetes da marinha real ingleza. Esses grumetes
-serão vestidos, da cinta para cima, com o uniforme
-dos boletineiros telegraphicos; da cinta para
-baixo, uma parra.</p>
-
-<p>Matrafonas e grumetes, com seis barris de <i>cachaça</i>
-de 90°, serão envolvidos por uma forte rede de arame,
-á qual se atará um solido cabo de algumas milhas.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_330" id="Pag_330">[330]</a></span></p>
-
-<p>A gente vae depois alli, a Calais, põe um pé em
-Douvres e atira com a <i>isca</i> para o Tamisa.</p>
-
-<p>Fica um de nós a ter conta no cabo. Póde ser—por
-exemplo—o Fernando que é o mais entendido
-em coisas de pesca, como o prova annualmente na
-Rapozeira com os seus <i>botirões</i>. O Braga tambem
-póde servir, porque tem habilidade para descobrir
-peixes.</p>
-
-<p>O Fernando, pois, senta-se em qualquer rochedo,
-fuma o seu cigarro, espalha as tristezas com o <i>Noticioso</i>,
-ou com as <i>latinhas</i> do Cruz, e quando sentir
-que a corda estica, signal de que o peixe <i>pica</i>, puxa
-vagarosamente para terra.</p>
-
-<p>A meio cabo, levanta-se e vem descendo pela
-costa da Mancha: Dieppe, Havre, Cherbourg; Brest,
-S. Nazaire, Bordeaux; contorna o Golpho, Bayonne,
-Santander; dobra o Ortegal, Corunha, Vigo, Guardia;
-entra no Minho e vem subindo pela margem direita
-até ao <i>Pau-do-fio</i>.</p>
-
-<p>A gente põe-se cá de cima, das muralhas, e recebe
-o cabo. Chamam-se os paysanducos e toca a puxar.</p>
-
-<p>Fóra da agua a <i>isca</i>, veremos logo, agarrados a
-ella, todos os <i>lords</i> da <i>City</i>: Lord Fife, Lord Foife,
-Lord Fufe, Lord Craft, Lord Creft, etc.</p>
-
-<p>O <i>lord</i> é animal amphibio, organização de batrachio;
-resiste bem debaixo d’agua, como se sabe.</p>
-
-<p>Paysanducos continuam a puxar e vae tudo para
-o largo de S. João.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_331" id="Pag_331">[331]</a></span></p>
-
-<p>Os <i>lords</i> devem apparecer esbodegados, cambaleantes,
-tropegos.</p>
-
-<p>Vem o <i>Parádas</i> com o <i>bolo municipal</i> e divide-o
-pelos borrachões.</p>
-
-<p>Duas horas depois, o Gamellas traz a carroça do
-lixo, carrega, e despeja na <i>Sexta</i>.</p>
-
-<p>Extincta, assim, a raça vil, a <i>City</i> fica deserta; e
-como a Hygiene recommenda a collocação das fossas
-longe das habitações, faremos do <i>fashionable</i> bairro
-uma sentina para uso diario.</p>
-
-<p class="center">Ao norte: Para damas.</p>
-
-<p class="center">Ao sul: Para homens.</p>
-
-<p>Para fazer a limpeza e fornecer papeis, ficarão:</p>
-
-<p class="center">Mr. Jacob Bright<br />
-e<br />
-Mr. Oswald Crawfurd.</p>
-
-<p class="smaller">2-3-90.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_332" id="Pag_332">[332]</a></span></p>
-
-<hr class="chap" />
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_333" id="Pag_333">[333]</a></span></p>
-
-<h2 id="XXI">XXI<br />
-<span class="smaller">A manifestação dos artistas</span></h2>
-
-<p>Em 28 de janeiro, a Direcção da Assembléa Recreativa
-promoveu uma manifestação patriotica, préviamente
-annunciada nos jornaes da terra com a minuciosidade
-espaventosa d’um programma de <i>S. Telmo</i>
-ou <i>da Agonia</i>.</p>
-
-<p>Não é meu intento censurar essa manifestação;
-mas, pelo simples facto de ella ter sido promovida
-por um grupo de artistas e de homens do trabalho
-não devo excluil-a do campo critico, onde com estes
-artigos analyso os factos mais importantes na chronica
-valenciana.</p>
-
-<p>A meu vêr, essa manifestação teve uma origem
-que a absolve plenamente d’uns pequenos ridiculos
-que a amesquinharam. Originou-a um impulso de sincero
-patriotismo, e basta isso para escudar os promotores<span class="pagenum"><a name="Pag_334" id="Pag_334">[334]</a></span>
-d’ella contra a rudeza da phrase com que
-verberei a <i>fantochada</i> de 14.</p>
-
-<p>Se essa manifestação offerece alguns lados censuraveis,
-se teve peripecias irrisorias, se não me inspira
-hoje phrases de caloroso applauso e de sincera
-adhesão, os seus promotores devem-no, exclusivamente,
-ás impressões que nos seus espiritos deixou a
-grande <i>rusga</i> de 14. Aproveitaram parte do programma:
-musica, cortejo, vivas arruaceiros, procissões
-<i>intra</i> e <i>extra</i>-muros, etc., abandonando deploravelmente
-os meios que a Razão aconselha para, em
-occasiões identicas, se dar a qualquer manifestação
-um caracter significativo de energia, de sensatez e—sobretudo—de
-utilidade.</p>
-
-<p>Não me rio perante as bandeiras que n’esse cortejo
-distinguiram a Arte, do Commercio, como estulta
-e imbecilmente o fizeram alguns dos <i>illustres patriotas</i>,
-comparsas na ignobil farça dos abbades. Essas
-bandeiras significam o trabalho honrado, o homem
-que labuta e moireja dia e noite no sustento
-da familia, e que nunca serviu de lacaio a qualquer
-magnate eleitoral para, á custa do Estado, coçar por
-ahi, nas esquinas, os seus setenta kilos de ociosidade;
-significam o artista que contribue efficazmente
-para a riqueza da nação; o commerciante que concorre
-com uma boa parte dos seus interesses para as
-despezas das nossas mais uteis instituições e não o
-eunucho indifferente a todos os impulsos da Civilização
-e que, arrastando uma existencia ignobil, como<span class="pagenum"><a name="Pag_335" id="Pag_335">[335]</a></span>
-a da lapa eternamente presa ao rochedo, na valla
-commum dos inuteis desapparece, sem ter conhecido
-outra energia e outras sensações além das que
-obteve, comendo, bebendo e dormindo.</p>
-
-<p>Passe, pois, o cortejo, porque perante elle, eu,
-descubrindo-me, exclamarei tambem:</p>
-
-<p class="tb"><b>Viva a patria!</b></p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>A Musica da <i>Santa</i> veiu outra vez espancar os
-ares com as notas festivas dos hymnos, bufadas para
-os céos da Patria com a furia d’uma orchestra de
-Cafres.</p>
-
-<p>É crença arraigada no espirito do povo que não
-póde haver solemnidade sem gaiteiro.</p>
-
-<p>Era preciso, disseram-me, estimular, avivar o espirito
-da nacionalidade.</p>
-
-<p>Este argumento defensor dos <i>paus-tesos</i> recorda-me
-as funcções luctuosas das antigas carpideiras,
-nas casas minhotas.</p>
-
-<p>Morria o fidalgo.</p>
-
-<p>Expunha-se o cadaver na sala nobre.</p>
-
-<p>As mulheres e as creanças acocoravam-se sobre
-os tapetes.</p>
-
-<p>Em volta do caixão perfilavam-se, tristes, sombrias
-e sinistras, seis mulheres recrutadas no auditorio<span class="pagenum"><a name="Pag_336" id="Pag_336">[336]</a></span>
-dos Missionarios, entre as mais hystericas e lacrimosas,
-quando algum dos energumenos descrevia
-os horrores do caldeirão de Pero Botelho, o rechinar
-das carnes e os forcados rubros de trezentos milheiros
-de diabos que pinchavam sobre as cabeças chamuscadas
-dos condemnados.</p>
-
-<p>Vinham os amigos da familia apresentar as suas
-condolencias.</p>
-
-<p>As carpideiras irrompiam n’um chorar convulso,
-com todos os sons da gamma afflictiva, com todas as
-notas ascendentes e descendentes d’uma suprema
-dôr: suspiros, gemidos, gritos, berros—berros, gritos,
-gemidos, suspiros.</p>
-
-<p>Os sentimentos quando se manifestam com violencia
-exercem uma forte acção de communicabilidade
-a que nem todos são refractarios. Vêmos lagrimas nos
-olhos d’uma viuva, ouvimos o casquinar de sonoras
-gargalhadas e o cerebro, recebendo as impressões
-d’essas lagrimas e d’esses risos, reproduz em nossa
-face os sentimentos que os motivaram: rimos quando
-os outros riem e choramos quando os outros choram<a name="FNanchor_61" id="FNanchor_61"></a><a href="#Footnote_61" class="fnanchor">[61]</a>.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_337" id="Pag_337">[337]</a></span></p>
-
-<p>Assim, na scena das carpideiras, ellas, a familia,
-as visitas, os creados, disputavam primazia em intensidade
-de sentimentos.</p>
-
-<p>Terminada a cerimonia, os amigos compunham no
-rosto os traços d’uma grande dôr; distribuiam pela
-familia arrochados abraços e violentos apertos de
-mão, exprimindo entre soluços os desejos de se tornarem
-uteis: <i>se fôr preciso qualquer coisa—estamos<span class="pagenum"><a name="Pag_338" id="Pag_338">[338]</a></span>
-ás ordens—mandar com franqueza—adeus—é ordem
-do mundo—resignação—adeus...</i></p>
-
-<p>Fechada a porta, fechavam-se tambem, com ella,
-as valvulas das glandulas lacrimaes; e carpideiras e
-doridos corriam á vasta cozinha, onde pantagruelicamente
-atafulhavam o bandulho com grossas postas de
-bacalhau cozido, abundantemente regadas por successivos
-cangirões de bom e espumante verdasco.</p>
-
-<p>Batiam, de novo, á porta; tudo voltava á sala.</p>
-
-<p>O morto lá estava; amarello, hirto, de mãos ceraceas
-cruzadas sobre o peito, muito esticado dentro
-da sua <i>roupa preta</i> perolada de <i>agua benta</i>, exhalando
-fragrancias de <i>vinagre aromatico</i>, de nariz para
-o ar, onde as moscas esgaravatavam com as patitas,
-na doida e frenetica sensualidade das cocegas que
-ellas tanto appetecem, e que o finado, dias antes, tão
-pertinazmente lhes recusára.</p>
-
-<p>Então, a sensibilidade das carpideiras explodia
-pelo canal digestivo em sonoros arrotos.</p>
-
-<p class="tb">E n’essa sessão solemne que constituiu a segunda
-parte do programma—uma verdadeira visita de pezames
-pela frieza da sala, pelo tremulo discursar dos
-primeiros oradores, pela hesitação dos <i>mestres de cerimonia</i>
-e pela presença da bandeira nacional que significava
-os restos mortaes dos nossos brios e das
-nossas glorias, tambem se ouviu—permitti que o
-diga, honrados artistas—um rasoavel arroto:—aquella
-polka final.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_339" id="Pag_339">[339]</a></span></p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Durante o trajecto do cortejo, a <i>Musica</i> tocou,
-por vezes, hymnos varios. Excluistes o da Restauração,
-que só os eunuchos da Rotina hoje podem admittir
-nas suas manifestações simontadas. Devieis dispensar
-tambem os outros: o da Carta e o do Rei.</p>
-
-<p>O primeiro lembra a libertação da tyrannia, a
-emancipação dos direitos do cidadão, a queda do absolutismo,
-o inicio d’uma nova era de Progresso intellectual
-que devia esmigalhar as algemas de instituições
-odiosas e impulsionar-nos na bemdita estrada
-da Civilização, livres das trevas e dos espinhos
-que amarguraram os dias dos nossos antepassados.</p>
-
-<p>Recorda, pois, um facto—a outorga da Carta—que
-trouxe jubilos, alegrias; e não é em horas de
-tristeza e de desalento que n’elle devemos procurar
-lenitivo.</p>
-
-<p>O segundo solemnisou a coroação d’um monarcha—uma
-festa nacional em que houve bailes, recepções,
-salvas reaes, paradas, espectaculos de gala.</p>
-
-<p>Pelo anterior argumento devia ser excluido.</p>
-
-<p class="tb">O <i>ultimatum</i> inglez é, apenas, a primeira bala do
-assedio que essa côrte de debochados planeou contra
-o nosso dominio d’alem-mar.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_340" id="Pag_340">[340]</a></span></p>
-
-<p>A espoliação de Bolama que elles tentaram em
-38; a de Goa, Damão e Diu em 39; a das ilhas de
-Lourenço Marques em 62; a redacção da <i>Royal Charter</i>
-que ultimamente concedeu a Lord Fife os terrenos
-a oeste de Moçambique; a necessidade que elles
-teem de possuir, na costa africana oriental, um bom
-porto que dê expansão ao desenvolvimento das colonias
-estabelecidas no interior á sombra de perfidos
-protectorados; as recentes ameaças sobre as ilhas
-da Madeira e sobre Lourenço Marques—revelam
-claramente o plano da usurpação violenta de que
-mais tarde ou mais cedo, com pretexto ou sem elle,
-Portugal será victima.</p>
-
-<p>Os nossos terrenos africanos, se pouco teem produzido
-até hoje pelo abandono a que os condemnamos,
-podem ser no futuro elemento valiosissimo de
-riqueza e de prosperidade; e na tristissima situação
-em que as nossas finanças se encontram, com o enorme
-desequilibrio que annualmente se denuncia entre
-a receita e a despeza, quando os encargos da divida
-absorvem, já, metade dos rendimentos, importantissimo
-é o problema colonial, porque a solução d’elle
-póde evitar funestissimas perturbações, póde evitar
-a ruina da Nação, e mais do que isso—a perda da
-sua independencia!</p>
-
-<p>E dizei-me agora, honrados artistas e commerciantes:</p>
-
-<p>Se no dia trinta e um de dezembro, quando fechaes
-o vosso balanço annual, reconheceis que o<span class="pagenum"><a name="Pag_341" id="Pag_341">[341]</a></span>
-<i>passivo</i> excede o <i>activo</i>—quando perante esse <i>deficit</i>
-encaraes, com olhar vacillante, o futuro, onde vêdes
-sombras e não auroras—se no anno seguinte uma
-nova especulação, uma nova industria vos proporcionar
-meios com que possaes capitalizar uns centos de
-mil reis collocados depois, <i>á ordem</i>, no Roriz,—se
-um dia o <i>Primeiro de Janeiro</i> vos annunciar a quebra
-d’aquelle banqueiro e, com ella, a perda do vosso
-capital, a destruição completa dos elementos com
-que esperaveis viver com abastança no futuro—acaso
-a vossa alma se póde regosijar com o Hymno
-do Rei ou com o da Carta?</p>
-
-<p>Pois as situações são as mesmas.</p>
-
-<p>Vós e a Patria tendes annualmente um enorme
-passivo.</p>
-
-<p>O capital que estava no Roriz—o vosso futuro—é
-o dominio d’alem-mar—o futuro da Patria.</p>
-
-<p>A noticia da fallencia é a noticia do <i>ultimatum</i>,
-com esta differença apenas: uma originou-se na adversidade
-dos negocios, outra na ambição d’um <i>lord</i>.</p>
-
-<p>Vós sois a Patria; viveis n’ella; sois a alma e o
-braço d’ella.</p>
-
-<p>A Patria é tudo isso que vos rodeia: familia e
-amigos, affectos e carinhos; é tudo o que ha de bom,
-de generoso, de nobre e feliz na vossa existencia; é
-a limpidez d’este formosissimo céo peninsular, a risonha
-paizagem do nosso Minho, a irradiação das
-nossas alvoradas, o oiro dos nossos crepusculos, o
-matizado dos nossos campos; é essa dulcissima melancholia<span class="pagenum"><a name="Pag_342" id="Pag_342">[342]</a></span>
-que ao <i>toque das trindades</i> inunda a nossa
-alma com a toada longinqua das canções populares,
-é o nobre orgulho que em vossos olhos brilha quando
-escutaes a epopéa das nossas gloriosas façanhas; é
-essa formosa cabeça de velho que vos sorri, é a esposa
-carinhosa que vela a vossa doença, é a creança—esse
-pequenino sêr feito com raios de alvoradas e
-crystallizações de sorrisos—a quem chamaes filho<a name="FNanchor_62" id="FNanchor_62"></a><a href="#Footnote_62" class="fnanchor">[62]</a>.</p>
-
-<p>Quem offender a Patria—offende-vos.</p>
-
-<p>Quem a roubar—rouba-vos.</p>
-
-<p>Quem toca o hymno da Carta quando ella soffre,
-toca-vos o hymno do rei quando, com a fallencia do
-Roriz, reconheceis perdidas e inutilizadas as esperanças
-do vosso futuro.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Despedi, pois, os gaiteiros, amigos.</p>
-
-<p>Não lhes faltará que fazer.</p>
-
-<p>Ahi estão os paysanducos esperando a <i>borga</i> das
-eleições. Lá estão os de Monsão que d’elles necessitam
-para as farças publicas do entrudo, em que figuram
-makololos e Serpa Pinto.</p>
-
-<p>Uns e outros: paysanducos, makololos e santascocas<span class="pagenum"><a name="Pag_343" id="Pag_343">[343]</a></span>
-provam á evidencia, pela sua immobilidade
-mental, que, realmente, não havia razão para os sabios
-repellirem com tanto ardor as theorias de
-Darwin.</p>
-
-<p>Nos cerebros de todos elles, existem irrefutaveis
-vestigios de hereditariedade chimpanzéca.</p>
-
-<p>Distingui-vos d’elles!</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Á sympathia que me inspira a vossa Assembléa
-deveis estes periodos, onde podereis encontrar phrase
-aspera de sinceridade, mas não phrase humilhante
-de ironia.</p>
-
-<p>Não vos offendaes, pois, por eu declarar que estou
-intimamente convencido de que nenhum de vós
-conhece exactamente o valor, a extensão, a situação
-geographica, os limites dos terrenos que a canalha
-dos <i>lords</i> nos pretende roubar; como sinceramente
-creio que a mesma ignorancia existe no espirito da
-maior parte dos patriotas que promoveram a grande
-<i>rusga</i> de 14 e que por ahi, ainda hoje, erguem as
-mãos ao céo, falando de <i>roubos</i>, de <i>direitos indiscutiveis</i>,
-etc., etc.</p>
-
-<p>Tirae-me do grupo promotor da <i>fantochada</i> umas
-tres ou quatro cabeças, e demonios me levem se as
-restantes vos disserem para que lado fica a Africa,
-se fica perto ou longe de Taião e se lá vivem homens<span class="pagenum"><a name="Pag_344" id="Pag_344">[344]</a></span>
-civilizados como nós, se paysanducos, se orangotangos.</p>
-
-<p>Em vós, tudo desculpa essa ignorancia. Sois homens
-do trabalho. Quando o dia nasce, principiaes a
-lucta pela vida; quando o sol se esconde, procuraes
-no repoiso, vigor para a tarefa de ámanhã. Não podeis,
-portanto, dispensar o tempo necessario ao estudo
-d’estas questões que a Historia, a Geographia,
-o Direito internacional, etc., esclarecem.</p>
-
-<p>Essa ignorancia existe, ainda mais profunda nas
-camadas populares inferiores á vossa.</p>
-
-<p>Berraes, pois, que vos roubam sem conhecerdes,
-quanto, o que, e onde.</p>
-
-<p>Consultae a consciencia e dizei-me se isto assim
-não succede, e se não consideraes censuravel que um
-homem nas ruas grite contra um ladrão, ignorando
-os direitos que tem de o fazer e só porque ouviu as
-exclamações dos outros.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Reconhecereis, portanto, que podia condemnar a
-vossa manifestação de 28, mas se acreditaes na sinceridade
-d’essa sympathia que eu vos affirmei nutrir
-pela <i>Assembléa Recreativa</i>, se a opinião d’um homem
-que se ri dos que, n’outras espheras <i>mais illustradas</i>,
-fazem das luvas—uma coisa que o meu cocheiro usa—distinctivo
-irrefutavel <i>de sentimentos dignos e cavalheirescos</i><span class="pagenum"><a name="Pag_345" id="Pag_345">[345]</a></span>
-(!) permitti que em poucas palavras vos indique
-a fórma como eu entendo que vós devieis ter
-organizado a manifestação.</p>
-
-<p class="tb">Nada de musicas; nada de procissões pelas ruas!</p>
-
-<p>Um de vós pediria o theatro. Tres ou quatro iriam
-em commissão convidar qualquer dos officiaes do Regimento—que
-os tendes ahi illustrados e competentissimos—para
-uma conferencia sobre a questão do
-Chire-Nyassa, em que vos expozesse claramente,
-perante um mappa, a situação dos nossos dominios e
-a legalidade dos nossos direitos.</p>
-
-<p>Para essa conferencia abririeis as portas ao povo,
-a esse eterno ignorante sempre explorado, porque o
-não educam; e se os vossos recursos podessem contribuir
-para uma verdadeira e util obra de patriotismo,
-a esse mesmo official pedirieis que vos escrevesse
-um pequeno volume onde, em linguagem chan,
-clara, perfeitamente intuitiva e ao alcance de todas
-as intelligencias, se desenrolasse a historia do nosso
-Passado e a historia d’essa vergonhosa alliança com
-a corte dos <i>lords</i>.</p>
-
-<p>Distribuirieis depois, oito centos ou mil exemplares
-d’essa publicação pelas freguezias do concelho,
-pelas escholas, pelas ruas.</p>
-
-<p>E então, amigos, com os brados de cólera e com
-as exclamações de desalento que a miragem das nossas
-gloriosas conquistas provocaria, poderieis compôr
-um hymno—um verdadeiro hymno nacional, magestoso,<span class="pagenum"><a name="Pag_346" id="Pag_346">[346]</a></span>
-triumphante, imponente de enthusiasmos, arrebatador
-de generosos sentimentos, palpitante de sincero,
-energico e irresistivel Patriotismo!</p>
-
-<p>Poderieis então gritar:</p>
-
-<p class="tb"><b>Viva a Patria!</b></p>
-
-<p class="noindent tb">que eu, sobre a cabeça d’esses paysanducos que se
-riram de vós, responderia com toda a energia de minha
-alma:</p>
-
-<p class="tb"><b>Honra á Assembléa Recreativa!</b></p>
-
-<hr class="chap" />
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_347" id="Pag_347">[347]</a></span></p>
-
-<h2 id="XXII">XXII<br />
-<span class="smaller">Carta a S. Ex.ª, o Sr. Administrador</span></h2>
-
-<p class="right">Ex.ᵐᵒ Sr.</p>
-
-<p>De caso pensado reservei para esta data, em que
-concluo a publicação que tanto tem agitado o espirito
-dos seus excellentissimos administrados, a manifestação
-dos sentimentos que agitaram a minha
-alma n’essa hora solemne, em que V. Ex.ª foi chamado
-ás graves deliberações da Administração concelhia.</p>
-
-<p>E de caso pensado o fiz, Ex.ᵐᵒ Sr., porque necessitava
-que o tempo, os factos, me fornecessem
-elementos com que, ao collocar a individualidade de
-V. Ex.ª n’esta curiosa galeria de celebridades valencianas,
-podesse fazer ao publico um pequeno discurso
-apologetico com phrases e linguagem differentes ás
-d’essas escalrichadas apotheoses das luminarias da<span class="pagenum"><a name="Pag_348" id="Pag_348">[348]</a></span>
-terra, prenhes de <i>estimados cavalheiros</i>, de <i>integerrimos
-magistrados</i>, de <i>robustos meninos</i> e outras minhocas
-que o <i>Noticioso</i> inventa para enfeitar o anzol
-d’uma assignatura annual.</p>
-
-<p>Hoje, porém, Ex.ᵐᵒ Sr., que tres mezes se sumiram
-nas voragens do Tempo depois d’essa augusta
-solemnidade da <i>posse</i>, d’esse acto d’uma respeitabilidade
-indiscutivel em que a imponencia das nossas
-instituições civis actua sobre o espirito com a pressão
-de cem atmospheras—hoje, em que a individualidade
-administrativa de V. Ex.ª, evidentemente se
-destaca entre as auctoridades da minha terra, marchando
-a passo d’anjo no coice das procissões, ao
-lado de Sua Excellencia o Senhor Governador Pericles
-<span class="smcapuc">I</span> e um pouco á frente do seu subordinado o Snr.
-Joaquim, muito digno e conspicuo Substituto—digne-se
-V. Ex.ª permittir que eu lhe dedique estas
-linhas, onde vou synthetisar a opinião que no meu
-espirito existe ácerca do Senhor Administrador.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Percorrendo a historia dos gloriosos feitos dos
-antepassados de V. Ex.ª n’essa cadeira administrativa—meditando
-sobre as diversas aptidões e faculdades
-que nas sombras do Preterito, ainda hoje illuminam
-os vultos dos prestantes e muito dignos cidadãos
-que eu por ahi vi atados á banda bicolor,—comparando<span class="pagenum"><a name="Pag_349" id="Pag_349">[349]</a></span>
-os feitos immorredoiros que enaltecem
-os annaes da Administração valenciana—desde a
-<i>borralhada</i> da Santa até ao exterminio da Rua Verde,
-desde a prisão d’aquelle feroz e sanguinario Troppman
-na <i>tomada de Barros</i> até ás fornadas eleitoraes
-da Misericordia,—com os actos de V. Ex.ª, eu,
-Ex.ᵐᵒ Sr.—com franqueza—não posso exprimir o
-conceito que de V. Ex.ª formo com palavras differentes
-d’estas:</p>
-
-<p class="tb">V. Ex.ª é o <i>refugo</i> dos administradores!</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>E d’estas palavras escriptas com a rude sinceridade
-que até aqui arrepia a linguagem dos meus
-escriptos, acaso poderá V. Ex.ª deduzir intenção desdoirante
-das suas aptidões intellectuaes, dos seus
-conhecimentos juridicos, das suas faculdades administrativas?</p>
-
-<p>Se tal succede, erra o seu excellentissimo criterio.</p>
-
-<p>V. Ex.ª é o <i>refugo</i> dos administradores, porque
-tem uma carta de bacharel, porque sahiu ha poucos
-annos da Universidade com uma educação politico-scientifica
-imperfeita, rachitica, insufficiente para as
-funcções do elevadissimo cargo de que está investido.</p>
-
-<p>V. Ex.ª está saturado de ordenações, de codigos,<span class="pagenum"><a name="Pag_350" id="Pag_350">[350]</a></span>
-de paragraphos unicos, de disposições transitorias,
-de <i>subsidios</i>, de cartas de lei, de alvarás; conhece
-os trabalhos e as theorias de Bentham, de Krause,
-de Kant, de Grotius, de Blackstone, de Calvo, etc.,
-etc., mas ignora absolutamente e precisamente o
-que é mais essencial a um Administrador, mercê
-da insufficiencia dos programmas officiaes e da falsa
-orientação que na Universidade preside á incubação
-d’um bacharel.</p>
-
-<p>A educação social do individuo deve adaptar-se
-ás condições e exigencias do cargo a que se destina.
-Um medico aprende a curar feridas; um militar
-a fazel-as; um escrivão de fazenda a tirar camisas;
-um boticario a preparar tisanas; um paysanduco
-a contar cucharras; um <i>espirito-santo</i> a inspirar
-tolices; um Zinão a reforçar sinapismos.</p>
-
-<p>Para lá da esphera profissional que a sua educação
-lhe circumscreve, o individuo torna-se um ser
-inutil, prejudicial, incommodo.</p>
-
-<p>É o que succede com V. Ex.ª</p>
-
-<p>V. Ex.ª cursou todas as cadeiras exigidas no
-programma official d’um bacharelado: direito romano,
-dito penal, dito commercial, dito civil, dito internacional.
-Sahiu habilitado para tudo: para defender,
-accusar, aconselhar, chicanar, fazer do direito
-torto e do que é torto direito, em questões de aguas
-de rega, de fóros, de fallencias, de peculatos.</p>
-
-<p>Para o que não sahiu habilitado é para Administrador
-do concelho.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_351" id="Pag_351">[351]</a></span></p>
-
-<p>Tem V. Ex.ª culpa d’isso?</p>
-
-<p>Não. Tem-na quem organizou os programmas
-para a faculdade de Direito.</p>
-
-<div class="tb">*</div>
-
-<p>Na minha humilde opinião, ao curso de Direito
-devia accrescentar-se mais um anno, para trabalhos
-praticos na cadeira de <i>Politica legal</i>.</p>
-
-<p>N’esse anno, os futuros bachareis teriam de resolver,
-praticamente, entre outros, os seguintes problemas:</p>
-
-<h3>1.º<br />
-Empalmar uma eleição</h3>
-
-<p>No meio da sala seria collocada a urna. Alguns
-alumnos representariam a opposição. Com os restantes
-constituia-se a mesa: presidente, secretrios,
-escrutinadores, olheiros, capatazes, abbades e caceteiros.</p>
-
-<p>O examinando teria de satisfazer ás seguintes
-provas, sem que a opposição percebesse a fraude.</p>
-
-<div class="blockquote">
-
-<p><i>a</i>) Introduzir rapidamente na urna um maço de listas governamentaes.</p>
-
-<p><i>b</i>) Riscar os nomes dos eleitores reconhecidamente opposicionistas.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_352" id="Pag_352">[352]</a></span></p>
-
-<p><i>c</i>) Incluir na <i>chamada</i> e fazer substituir por <i>mirones</i> todos os
-mortos da freguezia.</p>
-
-<p><i>d</i>) Inutilizar imperceptivelmente com borrões de tinta as listas
-dos contrarios.</p>
-
-<p><i>e</i>) Entornar um tinteiro na urna, quando a eleição se considerar
-perdida.</p>
-
-<p><i>f</i>) <i>Armar</i> uma <i>baralha</i> na egreja; derrubar mezas, cadeiras,
-quebrar cabeças aos eleitores; dar, até, pancada nos santos
-e fugir afinal com a urna.</p>
-
-<p><i>g</i>) <i>Empalmar</i> uma acta. (Para esta prova o examinando poderia
-consultar os tratados especiaes que, sobre tal assumpto,
-tem escripto o Ex.ᵐᵒ Sr. Dr. M. Thomaz.</p>
-
-</div>
-
-<h3>2.º<br />
-Uma fala aos lavradores</h3>
-
-<p>Antes da eleição (modelo <i>a</i>):</p>
-
-<div class="blockquote">
-
-<p><i>Olé amigo! Toque. Dê cá um abraço.—Esta é a sua
-filha? Está uma fiôr; tem juizo, rapariga!—Sabe que arranjei
-um subsidio para as obras da torre? Custou, mas
-arranjou-se.—Você não tem um filho no recrutamento?
-Recebi hoje carta de Vianna em que me dizem que vae ser
-isento.—Aquella é a tal propriedade em que esses ladrões
-lhe lançaram quatro pintos? Eu amanhã arranjo isso na
-Fazenda; o mais que deve pagar é um pinto.—Pegue lá<span class="pagenum"><a name="Pag_353" id="Pag_353">[353]</a></span>
-um cigarro. Com franqueza; fume á vontade, que é brandinho.
-Não tem lume? Metta á bocca... Prompto!—É verdade:
-já me esquecia. Você é dos nossos; amanhã é a eleição.
-Homens honrados são do nosso lado. Já cá o tenho na
-cabeceira do rol—Diabo! tenho o seu nome na ponta da lingua...—Zé
-da Portella, exactamente. Aqui tem uma lista.
-Mande para o diabo a outra canalha.—Adeus. Ás ordens
-sempre, sempre, para o que quizer.—Dé cá outro abraço
-que é de amigo. Adeus.</i></p>
-
-</div>
-
-<p>Depois da eleição (modelo <i>b</i>):</p>
-
-<div class="blockquote">
-
-<p>—<i>V. Ex.ª dá licença?</i></p>
-
-<p>—<i>Entre!!</i></p>
-
-<p>—<i>Louvado seja nosso...</i></p>
-
-<p>—<i>Que quer!?!</i></p>
-
-<p>—<i>Eu sou o Zé da Portella, aquelle...</i></p>
-
-<p>—<i>Venha logo, venha logo; tenho mais que fazer.</i></p>
-
-</div>
-
-<h3>3.º<br />
-Organizar rapidamente o orçamento d’uma
-«borga» eleitoral, dada a capacidade cubica
-das barrigas dos abbades e a permeabilidade
-alcoolica dos tecidos intestinaes.</h3>
-
-<p>A resolução d’este problema requer os seguintes
-conhecimentos:</p>
-
-<div class="blockquote">
-
-<p><i>a</i>) Saber o preço dos carneiros, dos <i>calhos</i>, do vinho, das batatas,
-das resteas d’alhos, do pimentão, etc.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_354" id="Pag_354">[354]</a></span></p>
-
-<p><i>b</i>) Saber applicar o ammoniaco no caso provavel d’uma borracheira.</p>
-
-<p><i>c</i>) Saber receitar um purgante e manejar uma seringa na delicada
-operação do crystel.</p>
-
-<p><i>d</i>) Saber ouvir de confissão qualquer bruto que estoire repentinamente
-com a indigestão.</p>
-
-</div>
-
-<h3>4.º<br />
-Redigir uma informação favoravel á imposição
-de qualquer transferencia, embora ella vá
-lançar na miseria a familia d’um funccionario
-honesto.</h3>
-
-<p>Modelo:</p>
-
-<div class="blockquote">
-
-<p><i>Esta transferencia torna-se necessaria e até indispensavel
-á boa solução dos nossos negocios. O homem é regenerador.
-Diz por ahi o diabo do Marianno. Alem d’isso, embirra
-com o A. Ora este A. segura o O., que vale os seus cincoenta
-votos. Com o A. não podemos contar, porque é dos amphibios
-e vae para quem mais der. Por aqui já se rosna na
-transferencia e todos berram que é uma infamia. O homem
-tem oito filhos. Que isso não influa no animo de V. Ex.ª.
-Quanto mais distante fôr a sua collocação melhor, porque
-mais desafogados ficamos. Espero solução rapida. Resposta
-telegraphica. A victoria depende d’esta transferencia.</i></p>
-
-</div>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_355" id="Pag_355">[355]</a></span></p>
-
-<h3>5.º<br />
-Conclusões varias sobre a elasticidade
-do Direito administrativo</h3>
-
-<div class="blockquote">
-
-<p><i>a</i>) F. (governamental) <i>tem uma burra. Só paga decima
-quando fôr da opposição.</i></p>
-
-<p><i>b</i>) F. (gov.) <i>tem um rendimento collectavel de reis 100$000.
-Reduz-se a 50$000.</i></p>
-
-<p><i>c</i>) F. (opposição) <i>é professor e politico contrario. Retiradas
-as gratificações sob qualquer pretexto.</i></p>
-
-<p><i>d</i>) F. (gov.) <i>requer uma policia correccional contra X. Pedra
-nos autos</i>.</p>
-
-<p><i>e</i>) F. (op.) <i>é filho unico e amparo da familia. Intimado
-para em tres horas se apresentar á inspecção.</i></p>
-
-<p><i>f</i>) F. (gov.) <i>é forte como um toiro e robusto como um Hercules.
-Entra ámanhã na inspecção. Isento por tisico.</i></p>
-
-<p><i>g</i>) F. (gov.) <i>é gallego e intrujão. Na gazeta do partido
-illustre correligionario e probo cidadão.</i></p>
-
-<p><i>h</i>) F. (op.) <i>é homem de bem; eu tambem o creio... apesar
-de que dizem por ahi (eu não acredito) que é ladrão
-e salteador de estrada.</i></p>
-
-</div>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_356" id="Pag_356">[356]</a></span></p>
-
-<h3>6.º<br />
-Dirigir nos campos da politiquice, com a aguilhada
-da administração, o rebanho dos camaristas.</h3>
-
-<div class="blockquote">
-
-<p>Este problema exige dois mezes de tirocinio com os boieiros
-do Alemtejo, para se apprender a deitar o laço e a reunir á manada
-qualquer boi tresmalhado.</p>
-
-</div>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Ora diga-me V. Ex.ª: n’estes tres mezes em que
-tem empregado a sua actividade nas coisas da nossa
-administração não encontrou ainda em equação, sobre
-a sua mesa de trabalho, todos esses problemas?</p>
-
-<p>E resolveu-os?</p>
-
-<p>Não os resolveu, porque a sua consciencia e a
-sua dignidade esperam, ainda, as provas de elasticidade
-e de resistencia que necessitam para a tensão
-das patifarias politicas.</p>
-
-<p>V. Ex.ª tem feito um pessimo logar.</p>
-
-<p>Nem come os <i>calhos</i> dos abbades, nem é paysanduco,
-nem é <i>provarei</i>, nem deita foguetes.</p>
-
-<p>Se não fosse a luminosa e providencial influencia
-do seu Ex.ᵐᵒ Substituto, homem de assaz provado
-engenho e competencia em assumptos de Direito
-administrativo e ilhas adjacentes, V. Ex.ª envergonhava<span class="pagenum"><a name="Pag_357" id="Pag_357">[357]</a></span>
-a terra, o partido e os amigos, a cujo
-numero eu tenho a honra de pertencer.</p>
-
-<p>V. Ex.ª não tem <i>feitio</i> para Administrador.</p>
-
-<p class="tb">Em tantos de tal (ainda V. Ex.ª não tinha na
-gaveta, ao lado das piugas, a banda azul e branca)
-entraram no seu escriptorio os cidadãos Zé Pita,
-Tóne do Logar e Manel Cancella.</p>
-
-<p>Este Manel trazia uma questão com o sogro por
-causa das aguas da rega.</p>
-
-<p>Disse da sua justiça.</p>
-
-<p>V. Ex.ª ouviu, pensou e aconselhou.</p>
-
-<p>Zé Pita, cidadão que tem as suas fumaças de
-doutor <i>lareiro</i>, metteu a colherada no caso, muito
-lepido e escorreito com umas objecções ao douto conselho
-de V. Ex.ª</p>
-
-<p>V. Ex.ª ouviu, pensou e refutou: <i>artigo tantos</i>,
-<i>paragrapho tal</i>, etc.</p>
-
-<p>Vae n’isto—o Tóne do Logar, <i>home</i> de representação
-e de lettras gordas na freguezia, chegou-se
-tambem <i>ao rego</i> da discussão, e metteu o bedelho,
-descobrindo ainda outra hypothese.</p>
-
-<p>V. Ex.ª ouviu, pensou e concluiu.</p>
-
-<p>Ficára o caso liquidado entre os quatro doutores,
-digo, entre V. Ex.ª e os tres cidadãos.</p>
-
-<p>—<i>Quanto é?</i> perguntou Manel.</p>
-
-<p>—<i>Dezoito vintens!</i> respondeu V. Ex.ª</p>
-
-<p>Ficou estarrecido o homem. Nunca imaginára
-pagar um conselho por mais de tres patacos, muito<span class="pagenum"><a name="Pag_358" id="Pag_358">[358]</a></span>
-especialmente agora que o João Moraes os annunciava
-a <i>quatro menos cinco</i>, para quem se avençasse
-ao mez.</p>
-
-<p>—<i>Sôr Doutor... talvez seja engano de Vóssoria,
-mas foi só um conselho...</i></p>
-
-<p>—<i>Foram tres e não um!</i> respondeu V. Ex.ª com
-aquella cara muito arrenegada que ás vezes tanto
-assusta a gente.</p>
-
-<p>—<i>Tres, meu senhor?</i></p>
-
-<p>—<i>Você não falou?</i></p>
-
-<p>—<i>E depois não falou outro?</i></p>
-
-<p>—<i>E não falou depois outro? Tres vezes seis, dezoito.</i></p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Justissima era a reclamação.</p>
-
-<p>Nem os sete sabios da Grecia poderiam contestar
-a legalidade e a exactidão d’aquella operação
-arithmetica.</p>
-
-<p class="tb">Este simples facto revela a rispida e austera
-execução que V. Ex.ª dá aos sacratissimos principios
-da Justiça e da Equidade e revela, tambem, a incompetencia
-de V. Ex.ª para um logar onde, tendo
-tres, oito, dez ou vinte consultas diarias, nada poderá
-reclamar, quando venham recommendadas por
-o sr. Joaquim, ou por outro qualquer confrade politico
-que se lembre de fazer favores e de adquirir<span class="pagenum"><a name="Pag_359" id="Pag_359">[359]</a></span>
-popularidade, á custa dos dois contos que V. Ex.ª
-gastou na formatura.</p>
-
-<p class="tb">Para estas coisas de Politica é preciso vêr muito
-ao longe, ter vista de caçador, e V. Ex.ª mesmo
-como caçador, é um desastrado.</p>
-
-<p>Nunca me hei-de esquecer d’aquella surriada que
-lhe fizeram os rapazes de Arão, quando V. Ex.ª lá
-appareceu com todo o seu arsenal de guerra.</p>
-
-<p class="tb">Um dia, o Rocha e o Leitão suggeriram no cerebro
-de V. Ex.ª as glorias de Nemrod.</p>
-
-<p>Depois de jantar, sahia V. Ex.ª com todos os petrechos
-de caça, inoffensivamente mortiferos. Uma
-solida <i>escopeta</i> de carregar pela culatra; á cinta, um
-grandecissimo facalhão para escuchinar javalis; no
-bolso direito, uma enorme navalha de furar lobos; a
-tiracollo, d’um lado a cartucheira com trezentas cargas
-de polvora e bala; do outro lado, o canudo de
-cortiça com vinte e sete furões e furoas; no bolso
-direito do collete, um revolver de oito tiros; no esquerdo,
-um <i>box</i> de quebrar dentes a cães e vinte
-exemplares do <i>Noticioso</i> para <i>necessidades urgentes</i>;
-nos pés, aquellas grossas botas de sete solas impermeaveis,
-até, no Rio Minho; aos hombros, o capindó
-de borracha, gemeo do outro com que o Albino
-attrae a chuva por essas ruas, em dias claros e formosissimos
-de Primavera; atraz de V. Ex.ª, ladrando,
-farejando, saltando vallados e alçando as pernas, seguia<span class="pagenum"><a name="Pag_360" id="Pag_360">[360]</a></span>
-a terrivel matilha, recrutada na Parada-velha:
-podengos de todas as raças e feitios, para coelho,
-para perdiz, para lobo: o <i>Nilo</i>, a <i>Fuinha</i>, o <i>Gigante</i>,—tó,
-<i>Nero</i>!—volta, <i>Farrusca</i>!</p>
-
-<p>Assim disposto e precavido, seguia V. Ex.ª por
-essas aldéas fazendo tremer o solo, os ceos, a terra,
-os mares, com o aspecto apavorador da sua ferocidade
-venatoria.</p>
-
-<p>N’isto,—alli ao pé de Arão, um triste pintasilgo
-risca no ar uma curva e vae poisar no arvoredo
-proximo.</p>
-
-<p>A matilha <i>amarrou</i>.</p>
-
-<p>V. Ex.ª toma ar, carrega a escopeta, aponta...
-toma outra vez ar... desfecha e olha.</p>
-
-<p>O passarito soltára uma gargalhada de escarneo
-e batera as azas, voando...</p>
-
-<p>Quando passou sobre a cabeça de V. Ex.ª, lá do
-azul dos ceos cahiu uma coisa sobre o seu excellentissimo
-nariz.</p>
-
-<p>A qual coisa, molle, pastosa, de côr cinzenta e
-com o feitio retorcido d’um S fez exclamar a um rapazinho
-que, de <i>carrapuço</i> vermelho e mãos nos bolsos,
-a distancia presenciava o caso:</p>
-
-<p>—<i>Oh que grande caçador de minhocas!</i></p>
-
-<p class="tb">E campos fóra de Politica, Ex.ᵐᵒ Sr., quando
-encontro V. Ex.ª armado de ponto em branco com
-a escopeta da Administração, cartucheira presa á
-banda azul e branca, matilha de abbades e rafeiros,—quando<span class="pagenum"><a name="Pag_361" id="Pag_361">[361]</a></span>
-verifico que V. Ex.ª nem tem animo para
-disparar o bacamarte d’uma transferencia, nem sabe
-empalmar uma urna, nem falsificar uma acta, nem
-dirigir uma borga de <i>calhos</i>, nem descascar uma batata,
-nem deitar um foguete com ropia, nem tocar
-n’um gaiteiro, nem mentir com cara seria, nem perseguir
-os professores, nem desgraçar uma familia,
-nem deshonrar um funccionario, nem amesquinhar
-um merito, eu, Ex.ᵐᵒ Sr., n’esta occasião em que
-V. Ex.ª por ahi anda atrapalhado com a escopeta de
-dois canos que nas mãos lhe metteram, para dar o
-primeiro tiro contra a opposição—não posso reprimir
-estas palavras com que, conceituando politicamente
-V. Ex.ª, parodio o rapazito d’Arão:</p>
-
-<p class="tb">—Oh que grande Administrador das <i>duzias</i>!</p>
-
-<p class="tb">Aos pés de V. Ex.ª, curva-se respeitosamente o</p>
-
-<p class="mt3 right"><i>Zinão</i>.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_362" id="Pag_362">[362]</a></span></p>
-
-<hr class="chap" />
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_363" id="Pag_363">[363]</a></span></p>
-
-<h2 id="XXIII">XXIII<br />
-<span class="smaller">Compadres e Comadres</span></h2>
-
-<p>Decididamente, não se póde ser rapaz solteiro
-em Valença.</p>
-
-<p>Segundo reza a minha cartilha, os inimigos do
-homem são tres: mundo, diabo e carne.</p>
-
-<p>Cá na terra, os inimigos dos rapazes são tambem
-de tres especies: aguas de Christello, bailes e
-comadres.</p>
-
-<p>Todos estes inimigos teem procedencia diversa:
-um nasce na Assembléa, outro fóra de Portas, outro
-na Coroada.</p>
-
-<p>Todos teem um caminho:—o namoro.</p>
-
-<p>Todos teem um fim:—o casamento.</p>
-
-<p>Epilogo egual para todos:—o <i>conjugo vos</i> do
-Magalhães e a Sr.ª Dona Maria do Hospital.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_364" id="Pag_364">[364]</a></span></p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Berra-se por ahi contra os jesuitas, contra os
-abusos dos regeneradores, contra as tyrannias do
-João Cabral, contra tudo que póde affectar o livre
-exercicio dos nossos direitos e das nossas regalias.</p>
-
-<p>Ninguem se lembra de requerer uma querela
-contra as <i>comadres</i> da Coroada, que ha dezenas de
-annos implacavelmente lançam ao pescoço dos nossos
-mais airosos jovens as gargalheiras do casamento
-e a colleira de <i>paterfamilias</i>.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Em bella manhã de Abril entra um raio de
-sol na alcova; acaricia-nos o rosto; faz-nos cocegas
-no bigode e diz-nos baixinho ao ouvido: <i>São seis
-horas; levanta-te, calaceiro! Lá fóra cantam as aves,
-exhalam aromas as flores; está tão bonita a campina...
-tão risonhos estão os prados... tão diaphana
-a atmosphera e tão azul o azul dos ceos... Vem commigo.
-És livre; não precisas de ajudar a lavar os
-pequenos. Vamos,—veste-te, que eu espero cá fóra.</i></p>
-
-<p>Vinte minutos depois, respiramos por esses campos
-o ether das madrugadas. A nossa alma inebria-se;
-sentimo-nos alegres, bons, fortes e felizes,
-porque somos livres. Desejavamos possuir umas botas
-de <i>sete leguas</i>, como as d’aquelles contos da infancia;
-trepar a todos os oiteiros, subir a todas as
-collinas, saltar por todas as planicies.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_365" id="Pag_365">[365]</a></span></p>
-
-<p>Phantasiamos azas como as da cotovia que se
-libra nos ares, cantando hymnos de jubilo, de liberdade,
-de amor.</p>
-
-<p class="tb">Horas depois regressamos a casa. Á entrada, a
-sopeira entrega-nos mysteriosamente uma caixinha
-dos collarinhos, ou dos pós da gomma, cuidadosamente
-atada com fita de seda azul.</p>
-
-<p>Abrimos:</p>
-
-<p>Dentro, muito secio e garrido, um palmito; ao
-lado, teso e perfilado, um cartão de visita:</p>
-
-<p class="center"><i>Fulana de tal.</i></p>
-
-<p>Desde aquelle momento, o <i>bacillo virgula</i> do matrimonio
-inficiona o nosso organismo. Perdemos a
-vontade de comer, damos ais, suspiramos á lua, fazemos
-versos, cantamos o <i>choradinho</i> e principiamos
-a cuidar nas roupas brancas.</p>
-
-<p>Se não mudamos immediatamente de terra, unico
-remedio efficaz, estamos perdidos.</p>
-
-<p>Que me conste, até hoje, dos atacados pela fatal
-molestia só resiste um—o Velloso. Se escapa até
-aos quarenta, vae para o museu do Inglez.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Perde-se em a noite dos tempos a origem d’essa
-funesta cerimonia:—<i>a eleição dos compadres</i>.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_366" id="Pag_366">[366]</a></span></p>
-
-<p>Sei que dubia é, ainda, a tradição que a localiza
-na Coroada; porquanto, auctores varios e jurisconsultos
-sisudos estabelecem no centro da villa a instituição
-de tão perfidas solemnidades.</p>
-
-<p>As pandectas da Assembléa, os folios da Collegiada,
-os annaes da Ex.ᵐᵃ Camara nada informam
-a tal respeito. Em vão os consulto em frequentes e
-longas vigilias.</p>
-
-<p>Esta prioridade de direitos na organização do
-escrutinio annual tem por vezes suscitado controversias
-violentas e disputas acaloradas entre os pacificos
-habitantes da rua de S. João e os da Coroada;
-e se não fôra a sisudez, prudencia, diplomacia
-e tino politico dos conspicuos inquilinos do
-Santo Precursor, certamente já teriamos a lamentar
-successos graves e não pouco deploraveis acontecimentos.</p>
-
-<p>No emtanto, a malquerença entre os dois povos
-existe e existe evidente.</p>
-
-<p>Na rua de S. João, um habitante da Coroada
-nunca foi um cidadão da villa:—foi, e é um <i>pelludo</i>
-da aldéa; e a esta offensa responde a Coroada affirmando
-a superioridade dos seus costumes e dos seus
-habitos, allegando, com assaz persuasiva logica, que
-não tem lá, nem precisa, de Borralhos ou de Egyptos.</p>
-
-<p>A origem de tão lastimaveis dissensões está na
-eleição das <i>comadres</i>.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_367" id="Pag_367">[367]</a></span></p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>A epocha d’esta cerimonia não foi, como alguem
-poderá imaginar, fixada ao acaso. Fixou-se traiçoeiramente
-para o domingo de Ramos.</p>
-
-<p>Domingo de Ramos quer dizer: Semana santa e
-Paschoa—isto é—<i>soirées</i> na egreja e na Assembléa
-e—mais ainda—chavenas de chá sem assucar
-preparadas pelo Cruz com agua do Christello.</p>
-
-<p>Aos olhos incautos isto nada significa, mas significa
-muito para o espirito do observador, porque
-lhe mostra em caminho perfeitamente livre e desembaraçado,
-juncado de rosas e saturado de aromas,—a
-comadre e o compadre amarrados um ao outro
-com as fitas de seda do palmito e da caixa das amendoas.
-Vão alegres, risonhos, chilreando, sorrindo, despenhar-se
-no abysmo sombrio do matrimonio, onde
-o Magalhães, com uma saia de mulher aos hombros,
-attencioso e mitrado, lhes desfecha quatro tretas de
-latim.</p>
-
-<p class="tb">O palmito aproxima o compadre da comadre:
-<i>agradeço a V. Ex.ª—dou-lhe os meus sentimentos,
-porque foi infeliz na sorte—merecia compadre melhor,
-e tal, etc.</i>,—diz elle.</p>
-
-<p>—<i>Oh sr. Fulano! Por quem é!... fui até a mais
-feliz.—Cá espero as amendoas.—Olhe que é uma
-vergonha se as não dá.—Quero vêr, eu quero vêr
-como se porta</i>—diz ella.</p>
-
-<p>Ao despedir, um cumprimento demorado, um sorriso,
-um olhar... e compadre e comadre trocam mentalmente,<span class="pagenum"><a name="Pag_368" id="Pag_368">[368]</a></span>
-na visão doirada do futuro, o grau do parentesco.</p>
-
-<p>Magalhães surge ao longe, entre nuvens côr de
-rosa.</p>
-
-<p>A sr.ª Dona Maria do Hospital pisca graciosamente
-o magano olho esquerdo...</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Na quarta-feira santa, entra um rapazito no portal;
-bate as palmas—<i>sou eu!—faz favor?</i>—e entrega
-uma perfumada caixinha, toda alegre e catita,
-oiro e setim azul, recheada de amendoas e confeitos.</p>
-
-<p>No fundo espreguiça-se sorrateiramente uma
-carta.</p>
-
-<p>Rubôr ás faces, noventa pulsações por minuto,
-leitura tremula, arfar de seios, um suspiro, dois suspiros.</p>
-
-<p>Lê-se, relê-se e torna-se a relêr a carta.</p>
-
-<p>Trabalha o ferro de frisar com mais cuidado, estuda-se
-uma prega mais graciosa para a mantilha,
-flor ao peito para o que der e vier, e—entra a <i>comadre</i>
-na egreja.</p>
-
-<p>Quando abre o livro das orações, já não atina
-com o <i>Padre-Nosso</i> nem com a <i>Ave-Maria</i>. Com os
-olhos da imaginação, só vê e lê os caracteres seguintes:</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_369" id="Pag_369">[369]</a></span></p>
-
-<p class="right"><i>Minha senhora.</i></p>
-
-<p><i>Vel-a e amal-a, foi obra d’um momento. Quiz a
-fagueira sorte escolher-me para compadre de Vocellencia.
-Bemdita seja ella que me aproximou de quem, ha
-muito tempo, é o enlevo dos meus olhos, a alegria da
-minha alma, a ventura do meu coração. Tomo a ousadia
-de offerecer a Vocellencia as amendoas «inclusas».
-Desculpará Vocellencia. Na minha terra fazem-nas
-muito bem feitas. Doces d’ovos e amendoas são
-as especialidades. Se o Papá e a Mamã gostarem, eu
-mando vir mais. É bom comer poucas, porque são
-muito indigestas e fazem dôres de barriga. Serei correspondido
-n’este meu amor? Oh ceos! Quanto anhelo
-sabel-o! De Vocellencia</i></p>
-
-<p class="right"><i>até á morte</i></p>
-
-<p class="right"><i>V.</i></p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Durante as <i>licções</i>, n’aquelles intervallos em que
-o Albino canta o seu <i>macarronico</i>, o Padre Alexandre
-gargareja o melhor e o mais brunido do seu latim
-e os outros padrecas se revezam, previamente
-annunciados pelo rapaz sacrista que, de saiote vermelho,
-vae apagando, um a um, os treze tocos da girandola—compadre
-e comadre libram as suas almas
-pelas naves d’um mystico arroubo, ebrios de felicidade,<span class="pagenum"><a name="Pag_370" id="Pag_370">[370]</a></span>
-de esperanças risonhas, e dulcificados fartamente
-com amendoas de Tuy e rebuçados de avenca.</p>
-
-<p>Á noite, na visita ás casas do Senhor, o compadre
-acompanha a comadre. Atraz, cochicham o futuro
-sogro e a futura sogra. As beatas, ao longe, segredam
-mais um casamento... Compadre e comadre já
-se tratam por tu. Fica combinado o <i>gargarejo</i>.</p>
-
-<p>—<i>Amo-te</i>—<i>boas noites</i>—<i>até amanhã</i>.</p>
-
-<p class="tb">Domingo de Paschoa.</p>
-
-<p>Baile na Assembléa.</p>
-
-<p>A <i>comadre</i>, quando alguem a pede para dançar
-<i>de roda</i>, está sempre compromettida. Só dança com
-o <i>compadre</i>.</p>
-
-<p><i>Compadre</i> escolhe os melhores doces para a <i>comadre</i>;
-rodeia de attenções a Mamã da dita <i>comadre</i>;
-entretem o cavaco com o Papá da dita <i>comadre</i>;
-é <i>vis-à-vis</i> do Mano da dita <i>comadre</i>.</p>
-
-<p>As amigas da <i>comadre</i>, quando o <i>compadre</i> está
-em pé, arranjam-lhe logo um logar ao pé da <i>comadre</i>.</p>
-
-<p>—<i>Comadrinha vae, compadrinho vem.</i></p>
-
-<p>No fim da noite, entram já na conversa as roupas
-de linho, de panno cru, as caçarolas, as panellas.</p>
-
-<p>Lá ao longe, muito ao longe, sempre em nuvens
-côr de rosa, a fugitiva miragem d’um cavalheiro,
-irreprehensivelmente encasacado, gravata e luvas
-brancas,—curvado em graciosa mesura perante o
-Papá e a Mamã.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_371" id="Pag_371">[371]</a></span></p>
-
-<p>Um pedido—um <i>sim, Papá!</i>—uma lagrima da
-Mamã—um <i>ai!</i> e um fanico.</p>
-
-<p>Dois mezes depois, Padre Magalhães dá o nó; e
-o mesmo raio do sol, que em Abril nos despertava,
-penetra indiscretamente na alcova nupcial e segreda-nos
-ao ouvido:</p>
-
-<p class="right"><i>forte lôrpa!</i></p>
-
-<p>Annos passados, quando compadre e comadre
-teem quatro filhas casadoiras, são elles que reclamam
-a eleição.</p>
-
-<p>Cada <i>palmito</i> que sai de casa é um anzol.</p>
-
-<p>Para o Velloso—oh Paes de familia!—só a
-<i>coca</i> ou o botirão.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p class="right">Gentis senhoras da Coroada!</p>
-
-<p>Por piedade! Acabae com este tributo mais violento
-e mais horrivel do que o tributo de sete mancebos
-e sete donzellas que, outr’ora, Athenas pagava
-a Creta.</p>
-
-<p>Por piedade, senhoras!</p>
-
-<p>Arrebataes, annualmente, lá para cima, a melhoria
-dos mancebos, a nata da mocidade, a fina essencia
-da juventude, que depois abandonaes a essas ruas—obesos,
-gordurosos, crivados de callos, <i>paterfamilias</i>
-de <i>cache-nez</i>, lenço tabaqueiro e barretinho d’algodão.</p>
-
-<p>D’aqui a pouco não ha um rapaz solteiro em Valença;<span class="pagenum"><a name="Pag_372" id="Pag_372">[372]</a></span>
-e como as estatisticas demonstram que, para
-cada mancebo casadoiro ha, entre nós, vinte damas
-em disponibilidade, attentae que não é risonho o
-vosso futuro, porque está provado á evidencia, que
-os rapazes de fóra sabem escapar á magia dos vossos
-palmitos.</p>
-
-<p>Vêde o Velloso, o Leopoldo, o Gomes da Artilheria,
-o Prado, o dr. Brandão.</p>
-
-<p>Transijamos, pois, gentis damas:</p>
-
-<p>Nós estamos promptos a enviar annualmente para
-a Coroada, quarenta arrobas de amendoas e quarenta
-dictas de rebuçados dos melhores e dos mais ricos
-que tenham o Có-Có, e o Telmo Parada.</p>
-
-<p>Outrosim nos compromettemos ao pagamento d’um
-tributo annual de tres mancebos casadoiros, que vos
-serão entregues no domingo de Ramos, ao meio dia,
-em frente das <i>Alminhas</i>, com os respectivos bahus de
-roupa branca: camisas, ceroilas, piugas, barretinhos
-de dormir, pannos da barba.</p>
-
-<p>Para o pagamento d’este tributo organizaremos
-um gremio, como o dos negociantes, na distribuição
-da decima.</p>
-
-<p>Os tres desgraçados serão indicados pela sorte.
-Irão esses para as negras penas do matrimonio, mas,
-ao menos, os restantes poderão em todo o anno andar
-satisfeitos, alegres, livres de melancholias e de...
-<i>palmitos</i>.</p>
-
-<p>Sou casado tres vezes, senhoras! O Magalhães
-que o diga...</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_373" id="Pag_373">[373]</a></span></p>
-
-<p>E tanto ás defunctas consortes, como á companheira
-actual, quem me prendeu foi a vossa eleição.</p>
-
-<p>Por isso, quando agora vejo um palmito é o
-mesmo que vêr o diabo.</p>
-
-<p class="tb">Em nome da mocidade, protesto contra a</p>
-
-<p class="center tb"><b>eleição das comadres!</b></p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_374" id="Pag_374">[374]</a></span></p>
-
-<hr class="chap" />
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_375" id="Pag_375">[375]</a></span></p>
-
-<h2 id="XXIV">XXIV<br />
-<span class="smaller">Ultimas palavras</span></h2>
-
-<p>Na vida social, uma povoação possue a complexidade
-do organismo d’um individuo. Pode estudar-se
-physiologicamente e psychologicamente.</p>
-
-<p>Tem sentimentos, expansões, dôres, coleras, alegrias;
-tem orgãos, musculos, enfermidades e lesões;
-periodos de vigor, de engrandecimento e de decadencia.</p>
-
-<p>Athenas foi a alma da civilização hellenica; Sparta
-teve a musculatura dos fortes na hegemonia das
-cidades gregas; Roma cingiu o mundo com os seus
-braços de ferro; na gloria dos seus triumphos e das
-suas conquistas teve a vertigem da sensualidade e
-do prazer; libertinou-se, effeminou-se e apodreceu na
-enxurrada das sargetas.</p>
-
-<p><span class="pagenum"><a name="Pag_376" id="Pag_376">[376]</a></span></p>
-
-<p>Paris ri; e Londres, embrutecida com o <i>gin</i>, com
-as <i>fresh-girls</i> e com os deboches de Cleveland-Street,
-offerece o nojento bandulho ao facalhão de Jack, ou
-escouceia no <i>match-box</i> do Pelican Club, em que
-dois homens se esborracham a sôco, com grande
-gaudio d’isso que é a quinta essencia da pelintrice,
-do egoismo, da ambição, do orgulho, da <i>pataqueirice</i>
-réles da viella e que nas altas espheras do <i>High-life</i>,
-em <i>Leicester Square</i>, no <i>Regent’s Park</i> ou no <i>Covent
-Garden</i> se intitula pomposamente—um <i>lord</i>!</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Appliquemos aqui, aquella conhecida theoria de
-Broca sobre a relação entre o volume cerebral e a
-intelligencia.</p>
-
-<p>O volume do cerebro pode, segundo o eminente
-sabio, indicar maior ou menor desenvolvimento intellectual.</p>
-
-<p>Ora, o que é o cerebro?</p>
-
-<p>É a parte pensante do organismo.</p>
-
-<p>N’este individuo social—uma povoação—onde o
-devemos procurar?</p>
-
-<p>Na sua parte illustrada; nos filhos que se distinguem
-pelas manifestações da sua actividade mental,
-e, assim, poderemos dizer que o numero d’elles está
-para a consideração e importancia intellectual do individuo—povoação—como
-o volume do cerebro está<span class="pagenum"><a name="Pag_377" id="Pag_377">[377]</a></span>
-para o individuo—homem.—Tanto maior, quanto
-mais illustrada, tanto menor quanto menos culta.</p>
-
-<p>E admittido isto, desassombradamente podemos
-affirmar que nenhuma outra povoação do paiz, com
-egual numero de habitantes—nas cathedras do Ensino
-superior, nas elevadas posições do Exercito, nos
-altos cargos da Magistratura, na Classe medica, na
-Advocacia, no Commercio e frequentando ainda os
-cursos superiores—tenha numero egual, que não
-superior, de filhos, e tão, que não mais, distinctos.</p>
-
-<p>Mas, honrosa como é esta superioridade tambem
-ignobil e infamante é a indolencia a que nos entregamos,
-com que abandonamos os nossos direitos politicos,
-com que ficamos de bocca aberta e mãos nos
-bolsos, na triste impassibilidade do fackir, assistindo,
-impotentes como um eunucho, a essa activa evolução
-que impulsa as mais insignificantes povoações, transformando-as
-com os benesses das modernas instituições
-e levando-lhes as arterias á hematose dos grandes
-centros civilizados.</p>
-
-<p>O titulo de <i>burgo podre</i>, com que realmente este
-concelho é mencionado em Lisboa, deve ser para nós
-mais degradante do que a marca a fogo do grilheta
-e do forçado.</p>
-
-<p>Tempo é de nos libertarmos d’essa tristissima
-condição de barregan, em eterna dependencia de
-qualquer tia, velhaca e rufiona que á nossa custa
-encha a pança e o <i>pé de meia</i>.</p>
-
-<p>Na choldra da prostituição politica do nosso paiz<span class="pagenum"><a name="Pag_378" id="Pag_378">[378]</a></span>
-ha circulos que necessitam de caricias e de namoro;
-ha circulos fieis, ainda que rarissimos; ha-os de pernas
-abertas para quem mais der, e ha-os <i>pataqueiros</i>
-destinados a desvirgar os meninos lisboetas, ou a
-entregar o corpo ao primeiro pandego, que lá de
-Bijagóz ou de Paio Pires, se lembre de passar por
-elles, fazendo caminho para ir ajudar a embolar os
-toiros no curro de S. Bento.</p>
-
-<p>Esta é a nossa triste condição.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Ha seis ou oito annos que n’este <i>burgo podre</i> se
-manifestaram uns debeis symptomas de vigorização
-politica. Regosijei.</p>
-
-<p>Pareceu-me que ainda poderia ver Valença como
-as outras terras; á mesa do orçamento, com o seu
-logar marcado e o seu talher, e não como então estava:
-debaixo do banco, apanhando de quando em
-quando o osso esfolado e o pontapé do <i>gajo</i> que a
-levara pela trela do voto.</p>
-
-<p>Vans esperanças! Antes o Passado. Appareceu
-effectivamente a Politica, mas esfomeada, esqueletica,
-larvada, com manhas de gato lambareiro e caricias
-de cadella aluada.</p>
-
-<p>Anichou-se por ahi, comendo á <i>tripa-forra</i> e passando
-o tempo ao sol, de barriga para o ar e carcela
-desapertada.</p>
-
-<p>Tem dichotes de histrião e insultos de fadista. É<span class="pagenum"><a name="Pag_379" id="Pag_379">[379]</a></span>
-insupportavelmente porca: onde toca deixa baba;
-onde poisa deixa excremento. Quando fala não deita
-perdigotos, deita escarros; quando escreve não o faz
-com tinta, mas com pus.</p>
-
-<p>Se graceja causa nauseas, se chora provoca o
-pontapé.</p>
-
-<p>Examinada physiologicamente encontramos-lhe
-deficiencia de orgãos. É impotente e a impotencia
-organica reflecte-se na alma, porque não tem enthusiasmos,
-nem aspirações, nem... vergonha.</p>
-
-<p>Conjuga só um verbo:—comer; só conhece um
-pronome:—nós.</p>
-
-<p>Muda de patrão de tres em tres annos. Pouco se
-importa com isso. Se elle a trata mal, agacha-se,
-servil e humilde; se a trata bem, esfarrapa-lhe uma
-cannela ou levanta a perna e... molha-o.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Um ataque de epilepsia politica agita actualmente
-os magnates eleitoraes.</p>
-
-<p>Está no chôco novo deputado...</p>
-
-<p>Indigitam-se dois filhos da terra como candidatos.</p>
-
-<p>A rua de S. João torce o nariz...</p>
-
-<p>Esta rua de S. João representa os mesmos <i>chimpanzés</i>
-que, em tempos, rejeitaram o sr. dr. Illidio
-Ayres para facultativo do Hospital e o sr. dr. José
-Vieira para medico da Camara.</p>
-
-<p>Para que V. Ex.ª conheça bem a gente que o rodeia,<span class="pagenum"><a name="Pag_380" id="Pag_380">[380]</a></span>
-sr. dr. Pestana, aconselho-o a que peça pormenores
-ácerca das discussões que o seu nome provocou
-nos <i>centros</i>.</p>
-
-<p><i>Arrufos, gréves, amuos, etc.</i></p>
-
-<p>Diz V. Ex.ª que o Zinão é <i>politico</i> e <i>má-lingua</i>.</p>
-
-<p>Contra a primeira accusação protesto respeitosamente,
-e rogo a V. Ex.ª que faça melhor conceito do
-meu caracter.</p>
-
-<p>Emquanto á segunda, direi a V. Ex.ª que tem
-mais a recear da <i>boa-lingua</i> e da <i>fidelidade</i> dos seus
-<i>pseudo-partidarios</i>, do que da critica zinoica.</p>
-
-<p>Eu defendi sempre a candidatura d’um filho da
-terra, emquanto que os seus <i>amigos</i>... Informe-se,
-informe-se V. Ex.ª, porque talvez isso lhe seja proveitoso.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Os trabalhos eleitoraes teem peripecias engraçadissimas
-que davam para novo volume de <i>Sinapismos</i>.</p>
-
-<p>Abstenho-me, porém, de explorar esse inexgotavel
-filão de ridiculos, existente na massa cerebral—grude
-de sapateiro e pura secreção de rins—dos
-nossos politiqueiros.</p>
-
-<p>Tenho na minha frente dois filhos de Valença.
-Não sei, nem quero saber qual d’elles tem mais probabilidades
-de vencer.</p>
-
-<p>Oxalá que todas as difficuldades desappareçam;
-que todas as indisposições terminem, que todos os<span class="pagenum"><a name="Pag_381" id="Pag_381">[381]</a></span>
-esforços se reunam e que esta terra possa, finalmente,
-ter em S. Bento um representante util e proveitoso,
-como deve ser qualquer dos seus filhos.</p>
-
-<p>Seja qual fôr o vencedor e a opinião politica que
-perfilhe, eu saúdo n’elle o valenciano que recebe o
-mandato dos seus patricios, e oxalá que a eleição de
-30 de março de 1890 seja o inicio d’uma politica
-digna, purificada de trampolinices, de arruaças, de
-<i>borralhadas da Santa</i>,—independente de histriões e
-de tartufos, que até á data teem manchado a consideração
-d’esta terra com o infamissimo labéo de</p>
-
-<p class="center"><b>burgo podre!</b></p>
-
-<p>Eis o que para Valença deseja o <i>má-lingua</i> do</p>
-
-<p class="mt3 right"><i>Zinão</i>.</p>
-
-<hr class="chap" />
-
-<div class="footnotes">
-
-<h2>NOTAS</h2>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_1" id="Footnote_1"></a><a href="#FNanchor_1"><span class="label">[1]</span></a> Este artigo foi publicado, quando a Junta de Saude inventou o Microbio
-de 1889.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_2" id="Footnote_2"></a><a href="#FNanchor_2"><span class="label">[2]</span></a> Este <i>digo</i> não é consequencia d’uma simples abstracção do meu espirito.
-Originou-se no tratamento, ha dias applicado no posto de desinfecção
-do Caes, onde os viandantes eram considerados parreiras phyloxeradas
-e polvilhados com enxofre... a folle de sopro.</p>
-
-<p>É economico e não faz bem nem mal.</p>
-
-<p>Antes pelo contrario...</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_3" id="Footnote_3"></a><a href="#FNanchor_3"><span class="label">[3]</span></a> Isto é francez e do mais decente.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_4" id="Footnote_4"></a><a href="#FNanchor_4"><span class="label">[4]</span></a> Com esta classificação é que foi ás nuvens o sr. dr. Pacheco. Nunca
-o vi tão zangado, a não ser quando aquelle barqueiro de Vigo lhe respondeu
-á lettra...</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_5" id="Footnote_5"></a><a href="#FNanchor_5"><span class="label">[5]</span></a> Salvo seja.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_6" id="Footnote_6"></a><a href="#FNanchor_6"><span class="label">[6]</span></a> Para partos era o melhor clinico que cá havia. As senhoras viam-lhe
-a barriga e... suppunham logo simultaneidade de soffrimento.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_7" id="Footnote_7"></a><a href="#FNanchor_7"><span class="label">[7]</span></a> Justininho.—Desculpa se foi tolice. Faz como o sr. Illydio Dias:—declaração
-nos jornaes. Eu cá não me zango.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_8" id="Footnote_8"></a><a href="#FNanchor_8"><span class="label">[8]</span></a> A metrificação é livre, como a setta no ar.</p>
-
-<p>N’estas coisas de versos, sigo a opinião do Capitão-mór da <i>Morgadinha</i>:
-o papel é para se escrever e não para se estragar com versos de
-quatro syllabas.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_9" id="Footnote_9"></a><a href="#FNanchor_9"><span class="label">[9]</span></a> O que arde cura, diz o <i>Pimpão</i> e confirma a sagrada Escriptura.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_10" id="Footnote_10"></a><a href="#FNanchor_10"><span class="label">[10]</span></a> Podemos fallar á vontade, que isto é grego para o sr. Joaquim...</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_11" id="Footnote_11"></a><a href="#FNanchor_11"><span class="label">[11]</span></a> Do natural.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_12" id="Footnote_12"></a><a href="#FNanchor_12"><span class="label">[12]</span></a> Copia do natural. Recommendo aos leitores que tomem um bocado
-d’ar; especialmente aos que soffrem d’asthma.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_13" id="Footnote_13"></a><a href="#FNanchor_13"><span class="label">[13]</span></a> Ortographia sonica.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_14" id="Footnote_14"></a><a href="#FNanchor_14"><span class="label">[14]</span></a> Historico.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_15" id="Footnote_15"></a><a href="#FNanchor_15"><span class="label">[15]</span></a> Um bocado de latim, no meio d’estas coisas, faz sempre bom
-effeito, porque dá á gente um tom de sabio. Se foi asneira Vossa Excellencia
-desculpará... Do que me ficou do Conego Vaz, foi o melhor que
-pude arranjar. Vossa Excellencia tem cara de quem sabe muito latim.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_16" id="Footnote_16"></a><a href="#FNanchor_16"><span class="label">[16]</span></a> Historico. Anno de Nosso Senhor Jesus Christo 1886.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_17" id="Footnote_17"></a><a href="#FNanchor_17"><span class="label">[17]</span></a> Para vergonha nossa, direi que tão bello regulamento é o que
-ainda vigora n’esta terra. Em leis civilisadas, ou Valença, ou as terras do
-Kalakana...</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_18" id="Footnote_18"></a><a href="#FNanchor_18"><span class="label">[18]</span></a> Esmiuço, aqui, materia conhecida, para boa comprehensão d’alguns,
-menos versados em Sciencias naturaes. Em questões de tanta magnitude,
-toda a clareza é pouca.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_19" id="Footnote_19"></a><a href="#FNanchor_19"><span class="label">[19]</span></a> Nem tudo se póde dizer claramente. Ha sempre quem dê mau
-sentido ás coisas...</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_20" id="Footnote_20"></a><a href="#FNanchor_20"><span class="label">[20]</span></a> A camara, n’essa occasião, era composta dos srs. Zagallo, Vieira,
-José Seixas, J. Lopes, Albino, J. Narciso e do orador.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_21" id="Footnote_21"></a><a href="#FNanchor_21"><span class="label">[21]</span></a> Peço attenção para a redacção das propostas.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_22" id="Footnote_22"></a><a href="#FNanchor_22"><span class="label">[22]</span></a> Ao verificar a impressão d’estas propostas vejo, com desgosto,
-que os typographos espalharam por ahi, sem nexo nem intenção, bastantes
-pontos, compromettedores para a candidez e honestidade de costumes
-d’alguns Cavalheiros. Ahi fica a declaração para os salvar da intenção
-criminosa.</p>
-
-<p>São coisas que succedem...</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_23" id="Footnote_23"></a><a href="#FNanchor_23"><span class="label">[23]</span></a> Sinto que as acanhadas dimensões d’este volume me não permitiam
-incluir um artigo, que esbocei, ácerca da origem do Patriarcha. Tem
-por titulo: <i>Aventuras do Patriarcha dos Gandricos e do seu amigo Gargalinho,
-em Paris da França</i>. É um estudo realista. Faço, porém, obra
-para dois tostões...</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_24" id="Footnote_24"></a><a href="#FNanchor_24"><span class="label">[24]</span></a> Não vá este artigo fundamentar suspeitas, ácerca das crenças do
-auctor. Zinão respeita a Religião e perfilha o que ella tem de sensato; mas
-só a admitte no Templo—depois de varrido de hypocritas, de traficantes,
-de escorropicha-galhetas e de icha-corvos—com um Evangelho e um Sacerdocio:
-a Caridade.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_25" id="Footnote_25"></a><a href="#FNanchor_25"><span class="label">[25]</span></a> Depois do que expuz, acerca do <i>elogio-mutuo</i>, n’estas paginas,
-onde manuseio ridiculos, poderá alguem attribuir-me intenções provocadoras
-da tal <i>convenção</i>, com a referencia que ahi faço a um homem, que,
-entre nós destramente maneja a penna.</p>
-
-<p>Declaro que, n’estas e n’outras referencias, digo o que penso e o que
-sinto; sem pretenções a adulador, independente de preconceitos, de considerações
-pessoaes e das imposições dogmaticas com que, por ahi, se celebra
-e incensa muita <i>coisa</i> vulgar e ôca.</p>
-
-<p>Não preparo o exito dos <i>Sinapismos</i> com a offerta de exemplares ás
-redacções, ou aos amigos, que as frequentam, com aquelles galanteadores
-e irresistiveis offerecimentos de: <i>ao distinctissimo escriptor</i>, <i>ao precioso
-estylista</i>, <i>etc.</i>, com que se arma ao reclamo,—porque d’este não necessito.</p>
-
-<p>Não viso á honra de ser considerado entre os litteratos, e por isso
-occulto o meu nome; não escrevo por especulação, e por isso offereço aos
-pobres qualquer producto do meu trabalho.</p>
-
-<p>Dos defeitos da obra, que são muitos, salvo-me com este desinteresse
-e com esta independencia de opinião.</p>
-
-<p>Não me dotou Deus com <i>feitio</i> para incensar vulgaridades pretenciosas,
-nem tambem com orgulho e vaidade para repudiar, ou amesquinhar
-meritos.</p>
-
-<p>Entre a Critica e a minha individualidade está essa mascara:—Zinão.
-Se aquella me fôr hostil, respeital-a-hei no que tiver de sensato; se me fôr
-favoravel, francamente, não lh’o agradecerei, porque não peço elogios.</p>
-
-<p>Que este livro proporcione a quem o ler alguns minutos de distracção;
-que essa distracção valha <i>uns tostões</i> e que d’esses tostões possa apartar
-<i>uns cobres</i>, que mitiguem alguma dôr—eis o que ambiciono d’este ignorado
-laboratorio, onde preparo os <i>Sinapismos</i>.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_26" id="Footnote_26"></a><a href="#FNanchor_26"><span class="label">[26]</span></a> Não posso ficar calado perante um tão extraordinario acontecimento,
-como esse que o sr. Joaquim debate na imprensa, com as suas
-sessenta epistolas. Altero, pois, a ordem dos capitulos, que já estavam no
-prelo, para não perder a opportunidade d’estas linhas coordenadas á pressa,
-entre as espiraes azuladas de dois <i>Princezas</i>, de seis ao vintem.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_27" id="Footnote_27"></a><a href="#FNanchor_27"><span class="label">[27]</span></a></p>
-
-<div class="poetry-container">
-<div class="poetry">
-<div class="verse">Isto sem pimenta não tem graça.</div>
-<div class="verse">Foi só uma pitadinha...</div>
-</div>
-</div>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_28" id="Footnote_28"></a><a href="#FNanchor_28"><span class="label">[28]</span></a> Este <i>Marilio dos bosques</i> já deu <i>sorte</i> com os <i>Sinapismos</i>. D’estes
-é que eu queria mais...</p>
-
-<p>Uma pergunta: se Cuvier agora trabalhasse na sua zooclassificação,
-onde incluiria o Marilio?</p>
-
-<p>Oh Marilio!—tu respondeste com um peccado ao entregador dos <i>Sinapismos</i>...</p>
-
-<p>Approxima-te.</p>
-
-<div class="poetry-container">
-<div class="poetry">
-<div class="verse">Vira-te para cá...</div>
-<div class="verse">Agora para lá</div>
-<div class="verse">Pôe-te de <i>banda</i>...</div>
-<div class="verse">..................</div>
-<div class="verse">........... olha! Vae-te embora.</div>
-</div>
-</div>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_29" id="Footnote_29"></a><a href="#FNanchor_29"><span class="label">[29]</span></a> Já publicado.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_30" id="Footnote_30"></a><a href="#FNanchor_30"><span class="label">[30]</span></a> Cumpre-me declarar, para respeitabilidade das instituições de segurança
-publica da nossa terra, que o sr. Sampaio não exercia, n’aquella
-epocha, as funcções de Commissario das Policias.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_31" id="Footnote_31"></a><a href="#FNanchor_31"><span class="label">[31]</span></a> Consta-me que este cão foi depois resgatado pelo sr. dr. Pestana.
-Sua ex.ª está aqui e póde dizel-o...</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_32" id="Footnote_32"></a><a href="#FNanchor_32"><span class="label">[32]</span></a> São indigestos estes periodos. Talvez, até, que Vossa Excellencia,
-approximando a pituitaria, sinta os vestigios do mau halito, que essa casquilha
-matrona, D. Politica, exhalava, quando a auscultei para conhecer
-as causas da atonia que a consome.</p>
-
-<p>No entanto, queira Vossa Excellencia lêr. Talvez que, com estes sinapismos,
-a creatura melhore e lhe suba a côr ao rosto, indicio de... saude.</p>
-
-<p>Se Vossa Excellencia tal perceber, pôde haver cura.</p>
-
-<p>Eu (aqui á puridade) duvido.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_33" id="Footnote_33"></a><a href="#FNanchor_33"><span class="label">[33]</span></a> Vejam-se os acontecimentos politicos de 21 de Outubro e 3 de Novembro
-e todos os outros d’esta especie.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_34" id="Footnote_34"></a><a href="#FNanchor_34"><span class="label">[34]</span></a> No tocante a corpo commercial ou Valença, ou... Manchester.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_35" id="Footnote_35"></a><a href="#FNanchor_35"><span class="label">[35]</span></a> Especializo estes cavalheiros porque são os mais calorosos n’esta
-questão.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_36" id="Footnote_36"></a><a href="#FNanchor_36"><span class="label">[36]</span></a> Agua vae...</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_37" id="Footnote_37"></a><a href="#FNanchor_37"><span class="label">[37]</span></a> Classificando politicamente estes dois cavalheiros, declaro, para
-facilidade das futuras investigações historicas, que me refiro ao momento
-actual, e que faço obra pelo que ouço dizer e não pelas suas consciencias,
-que são inaccessiveis.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_38" id="Footnote_38"></a><a href="#FNanchor_38"><span class="label">[38]</span></a> <i>Portugal contemporaneo</i>, do sr. Oliveira Martins.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_39" id="Footnote_39"></a><a href="#FNanchor_39"><span class="label">[39]</span></a> Alludo á infamissima vingança que, ha annos, se perpetrou na habitação
-d’um cidadão, alli para os lados da Ponte.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_40" id="Footnote_40"></a><a href="#FNanchor_40"><span class="label">[40]</span></a> Estava a publicação n’estas alturas, quando em Valença se resolveu
-a <i>Questão da Musica</i>, nas condições que eu previ.</p>
-
-<p>A <i>rusga</i> foi, porém, tão desenfreada e, sobretudo, d’uma tal inopportunidade
-que não merece <i>sinapismo</i>: merece ventosa.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_41" id="Footnote_41"></a><a href="#FNanchor_41"><span class="label">[41]</span></a> Estes F. ou C. são—já se vê—epicenos.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_42" id="Footnote_42"></a><a href="#FNanchor_42"><span class="label">[42]</span></a> <i>Stratego</i>—posto militar, com honras de general. O <i>Archontado</i>
-era um dos poderes do Estado. Tinha nove membros; o terceiro, que commandava
-o exercito, chamava-se <i>Polemarcho</i>, mas, além d’este, havia os
-polemarchos inferiores, que tinham o posto inferior aos <i>strategos</i>.</p>
-
-<p><i>Areopago</i> era um tribunal civil, que eu aqui compararei—por exemplo—á
-nossa Excellentissima Camara.</p>
-
-<p>Intitulava-se o <i>Senado do Areopago</i>.</p>
-
-<p><i>Eponymo</i>—era o mais graduado dos <i>archontes</i> e, portanto, o chefe
-do partido, digo, do Estado.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_43" id="Footnote_43"></a><a href="#FNanchor_43"><span class="label">[43]</span></a> <i>Ostracismo</i>—era a condemnação ao exilio... equivalente ás
-actuaes transferencias.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_44" id="Footnote_44"></a><a href="#FNanchor_44"><span class="label">[44]</span></a> Aproximadamente 20 de Outubro e 3 de Novembro, pela nossa
-divisão do anno.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_45" id="Footnote_45"></a><a href="#FNanchor_45"><span class="label">[45]</span></a> Estas camisas só eram usadas pelos fanaticos religiosos, porque
-arrancavam o coiro e... o cabello.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_46" id="Footnote_46"></a><a href="#FNanchor_46"><span class="label">[46]</span></a> <i>Prytamos</i>—cidadãos poderosos.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_47" id="Footnote_47"></a><a href="#FNanchor_47"><span class="label">[47]</span></a> Este nome é derivado d’um verbo: <i>cambronnear</i>, que teve uma
-leve referencia em Waterloo. Vem do sanskrito e conjuga-se: eu cambronneio,
-tu cambronneias, etc. Indica uma funcção organica.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_48" id="Footnote_48"></a><a href="#FNanchor_48"><span class="label">[48]</span></a> Os <i>thetas</i> constituiam a classe mais inferior dos cidadãos athenienses.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_49" id="Footnote_49"></a><a href="#FNanchor_49"><span class="label">[49]</span></a> Não pude comprehender no texto se aquelle possessivo <i>seus</i> se
-refere á cidade, se a Pericles.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_50" id="Footnote_50"></a><a href="#FNanchor_50"><span class="label">[50]</span></a> <i>Eupatridas</i>—Proprietarios.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_51" id="Footnote_51"></a><a href="#FNanchor_51"><span class="label">[51]</span></a> Kshatrias:—guerreiros da antiga India.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_52" id="Footnote_52"></a><a href="#FNanchor_52"><span class="label">[52]</span></a> Sudras:—escravos.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_53" id="Footnote_53"></a><a href="#FNanchor_53"><span class="label">[53]</span></a> Dmoes:—escravos para o serviço domestico.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_54" id="Footnote_54"></a><a href="#FNanchor_54"><span class="label">[54]</span></a> Talentos:—moeda grega de valor variavel.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_55" id="Footnote_55"></a><a href="#FNanchor_55"><span class="label">[55]</span></a> Coisa de tres kilometros...</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_56" id="Footnote_56"></a><a href="#FNanchor_56"><span class="label">[56]</span></a> Recordo aos meus leitores que este Pericles foi o iniciador, por
-suggestão, da eschola prudhommica.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_57" id="Footnote_57"></a><a href="#FNanchor_57"><span class="label">[57]</span></a> Segundo as theorias recentemente apresentadas por philantropicos
-e honradissimos Cresus, o dever dinheiro é <i>coisa</i> pouco escorreita de
-dignidade. A honradez não gasta da mesma tinta com que se acceita uma
-lettra. Um titulo de divida—documento d’uma transacção—é assim como
-a <i>marca a fogo</i> que nas ancas do potro indica o nome do creador. O potro
-vende-se, recebe-se o dinheiro, mas o creador quando o encontra diz sempre:
-<i>aquelle é dos meus</i>.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_58" id="Footnote_58"></a><a href="#FNanchor_58"><span class="label">[58]</span></a> Por decencia vejo-me obrigado a <i>inglezar</i> esta e outras phrases.
-Saiba, porém, o leitor que todas ellas, significando as mais abjectas phantasias
-de Lord Deboche, foram publicadas nas columnas da <i>Pall Mall Gazette</i>,
-em quatro numeros de julho de 1885.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_59" id="Footnote_59"></a><a href="#FNanchor_59"><span class="label">[59]</span></a> Só para bebedeiras não chegam cinco libras diarias a qualquer
-d’esses animaes. O duque de Edimburgo, por exemplo, exgotta ao jantar
-quatro garrafas de champagne e dois litros de cognac.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_60" id="Footnote_60"></a><a href="#FNanchor_60"><span class="label">[60]</span></a> Pag. 155.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_61" id="Footnote_61"></a><a href="#FNanchor_61"><span class="label">[61]</span></a> Direi, de passagem, que isto nem sempre succede. Notam-se, ás
-vezes, umas anomalias, uns desvios da força nervosa que partindo do cerebro,
-vae actuar n’outros musculos, produzindo manifestações de sentimentos
-oppostos aos que nos impressionaram.</p>
-
-<p>Por exemplo:</p>
-
-<p>Quando vamos ao theatro e ouvimos o sr. Sampaio <i>jeremiando</i> o seu
-papel n’aquelle plangente e lugubre rhythmo d’uma <i>licção</i> de <i>quarta-feira
-de trevas</i> e vemos que elle tenta reproduzir com o rosto, com o gesto, com
-os olhos, as amarguras da sua alma atribulada por esta ou por aquella situação
-dramatica—nós não choramos; rimos e rimos a valer, com tanto
-mais furor, quanto mais afflictiva é a attitude do sr. Balagota.</p>
-
-<p>Outro exemplo:</p>
-
-<p>Quando o sr. Joaquim, depois de ler os <i>Sinapismos</i>, solta umas casquinadas
-de riso tirante a verdadeiro e lhe ouvimos dizer que sim, que o
-Zinão tem muita graça e desde que elle, Zinão, anda na rua, elle, sr. Joaquim,
-põe mais uma tranca na porta, a gente—em vez de rebolar no chão
-aos tombos com riso provocado por tão espirituosa facecia—fica muito séria,
-e até sente o quer que seja que instinctivamente vae enfiando em
-cada mão o dedo <i>mata-parasitas</i> entre o <i>fura-bolos</i> e o <i>maior-de-todos</i>,
-n’aquella posição com que o meu amigo M. Silva se previne cautelosamente
-contra os numerosos <i>amigos</i> que no dia da Cruz—uma vez por
-anno, felizmente—lhe vão festejar a garrafeira.</p>
-
-<p>Spencer explica isto na sua <i>Physiologie du rire</i>:</p>
-
-<p><i>La decharge de la force nerveuse peut se tourner en excitation pour
-d’autres nerfs qui n’ont pas de relation directe avec les membres et, ainsi,
-amener d’autres sentiments et idées.</i></p>
-
-<p>A individualidade do sr. Sampaio no convivio diario, por quaesquer
-razões desperta o riso; e a individualidade do sr. Joaquim, pela sua auctoridade
-<i>vice-administrativa</i> e mais predicados ingenitos provoca a seriedade
-e o tal cruzamento dos dedos.</p>
-
-<p>Convivendo diariamente com estes cavalheiros, as impressões que
-elles nos causam vão, por assim dizer, armazenar-se em nosso cerebro,
-condensando-se e augmentando de intensidade em força nervosa.</p>
-
-<p>Quando, pelas facecias, ou pelas jeremiadas, elles nos communicam
-uma impressão mais forte, ha uma expansão brusca e violenta de força
-nervosa <i>armazenada</i>, que vae actuar em nervos e musculos correspondentes
-a sentimentos diversos.</p>
-
-</div>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a name="Footnote_62" id="Footnote_62"></a><a href="#FNanchor_62"><span class="label">[62]</span></a> Oh padre capellão: que rica <i>tirada</i> para <i>um juramento de bandeiras</i>...</p>
-
-<p>Só falta: <i>é a terra que cobre os ossos de nossos avós!</i></p>
-
-</div>
-
-</div>
-
-<hr class="chap" />
-
-<h2>Indice</h2>
-
-<table summary="Indice">
- <tr>
- <td></td>
- <td></td>
- <td></td>
- <td class="tdpg">Paginas</td>
- </tr>
- <tr>
- <td></td>
- <td></td>
- <td>Duas palavras</td>
- <td class="tdpg"><a href="#DUAS_PALAVRAS">5</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td></td>
- <td></td>
- <td>Aos pobres de Valença</td>
- <td class="tdpg"><a href="#Aos_pobres_de_Valenca">9</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr">I</td>
- <td>—</td>
- <td>O microbio</td>
- <td class="tdpg"><a href="#I">13</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr">II</td>
- <td>—</td>
- <td>Passe-Calles</td>
- <td class="tdpg"><a href="#II">23</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr">III</td>
- <td>—</td>
- <td>Carta a Sua Ex. ª o Sr. Governador de Paysandu</td>
- <td class="tdpg"><a href="#III">63</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr">IV</td>
- <td>—</td>
- <td>Uma descoberta do dr. Charcot</td>
- <td class="tdpg"><a href="#IV">79</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr">V</td>
- <td>—</td>
- <td>Perfis</td>
- <td class="tdpg"><a href="#V">91</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr">VI</td>
- <td>—</td>
- <td>Coisas de egreja</td>
- <td class="tdpg"><a href="#VI">105</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr">VII</td>
- <td>—</td>
- <td>Litteraturas</td>
- <td class="tdpg"><a href="#VII">127</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr">VIII</td>
- <td>—</td>
- <td>Quimtilinarias</td>
- <td class="tdpg"><a href="#VIII">135</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr">IX</td>
- <td>—</td>
- <td>Politiquices</td>
- <td class="tdpg"><a href="#IX">145</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr">X</td>
- <td>—</td>
- <td>Violetas</td>
- <td class="tdpg"><a href="#X">169</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr">XI</td>
- <td>—</td>
- <td>Os quadros da Collegiada</td>
- <td class="tdpg"><a href="#XI">177</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr">XII</td>
- <td>—</td>
- <td>O senhor deputado</td>
- <td class="tdpg"><a href="#XII">189</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr">XIII</td>
- <td>—</td>
- <td>Carta ao Zé Senso</td>
- <td class="tdpg"><a href="#XIII">201</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr">XIV</td>
- <td>—</td>
- <td>A Questão da Musica</td>
- <td class="tdpg"><a href="#XIV">209</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr">XV</td>
- <td>—</td>
- <td>As muralhas</td>
- <td class="tdpg"><a href="#XV">235</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr">XVI</td>
- <td>—</td>
- <td>A manifestação de 14 de janeiro</td>
- <td class="tdpg"><a href="#XVI">247</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr">XVII</td>
- <td>—</td>
- <td>A Sociedade dos Provareis</td>
- <td class="tdpg"><a href="#XVII">279</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr">XVIII</td>
- <td>—</td>
- <td>Uma recita de curiosos</td>
- <td class="tdpg"><a href="#XVIII">299</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr">XIX</td>
- <td>—</td>
- <td>Transferencias</td>
- <td class="tdpg"><a href="#XIX">309</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr">XX</td>
- <td>—</td>
- <td>A questão ingleza</td>
- <td class="tdpg"><a href="#XX">321</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr">XXI</td>
- <td>—</td>
- <td>A manifestação dos artistas</td>
- <td class="tdpg"><a href="#XXI">333</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr">XXII</td>
- <td>—</td>
- <td>Carta a Sua Ex. ª o Sr. Administrador</td>
- <td class="tdpg"><a href="#XXII">347</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr">XXIII</td>
- <td>—</td>
- <td>Compadres e comadres</td>
- <td class="tdpg"><a href="#XXIII">363</a></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr">XXIV</td>
- <td>—</td>
- <td>Ultimas palavras</td>
- <td class="tdpg"><a href="#XXIV">375</a></td>
- </tr>
-</table>
-
-<hr class="chap" />
-
-<h2>Emendas</h2>
-
-<table summary="Emendas">
- <tr>
- <th>PAG.</th>
- <th>LINH.</th>
- <th>ONDE SE LÊ</th>
- <th>LEIA-SE</th>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr"><a href="#Pag_54">54</a></td>
- <td class="tdr">24</td>
- <td>d’uma fórma</td>
- <td>d’um modo</td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr"><a href="#Pag_112">112</a></td>
- <td class="tdr">22</td>
- <td>origem</td>
- <td>viagem</td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr"><a href="#Pag_127">127</a></td>
- <td class="tdr">16</td>
- <td>eminente</td>
- <td>imminente</td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr"><a href="#Pag_162">162</a></td>
- <td class="tdr">10 e 16</td>
- <td>Luiz <span class="smcapuc">XI</span></td>
- <td>Luiz <span class="smcapuc">XIV</span></td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr"><a href="#Pag_177">177</a></td>
- <td class="tdr">11</td>
- <td>paleonlithica</td>
- <td>paleolithica</td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr"><a href="#Pag_180">180</a></td>
- <td class="tdr">12</td>
- <td>as borrasse</td>
- <td>os borrasse</td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr"><a href="#Pag_205">205</a></td>
- <td class="tdr">22</td>
- <td>corcodilo</td>
- <td>crocodilo</td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr"><a href="#Pag_239">239</a></td>
- <td class="tdr">5</td>
- <td>nada valeram</td>
- <td>nada valerem</td>
- </tr>
- <tr>
- <td class="tdr"><a href="#Pag_318">318</a></td>
- <td class="tdr">25</td>
- <td>anavalharem</td>
- <td>anavalhar</td>
- </tr>
-</table>
-
-<p>A perspicacia e benignidade do leitor confiamos outras irregularidades
-que n’essas paginas possa encontrar.</p>
-
-
-
-
-
-
-
-
-<pre>
-
-
-
-
-
-End of the Project Gutenberg EBook of Sinapismos, by Zinão
-
-*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK SINAPISMOS ***
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