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| author | nfenwick <nfenwick@pglaf.org> | 2025-02-08 01:30:47 -0800 |
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O setimo trazia este +titulo: _Ultimo._ + +A razão desta designação especial não se comprehendeu então nem depois. +Sim, era o ultimo dos sete cadernos, com a particularidade de ser o +mais grosso, mas não fazia parte do _Memorial_, diario de lembranças +que o conselheiro escrevia desde muitos annos e era a materia dos seis. +Não trazia a mesma ordem de datas, com indicação da hora e do minuto, +como usava nelles. Era uma narrativa; e, posto figure aqui o proprio +Ayres, com o seu nome e titulo de conselho, e, por allusão, algumas +aventuras, nem assim deixava de ser a narrativa extranha á materia dos +seis cadernos. _Ultimo_ porquê? + +A hypothese de que o desejo do finado fosse imprimir este caderno em +seguida aos outros, não é natural, salvo se queria obrigar a leitura +dos seis, em que tratava de si, antes que lhe conhecessem esta outra +historia, escripta com um pensamento interior e unico, atravez das +paginas diversas. Nesse caso, era a vaidade do homem que falava, mas +a vaidade não fazia parte dos seus defeitos. Quando fizesse, valia a +pena satisfazel-a? Elle não representou papel eminente neste mundo; +percorreu a carreira diplomatica, e aposentou-se. Nos lazeres do +officio, escreveu o _Memorial_, que, aparado das paginas mortas ou +escuras, apenas daria (e talvez dê) para matar o tempo da barça de +Petropolis. + +Tal foi a razão de se publicar sómente a narrativa. Quanto ao titulo, +fôram lembrados varios, em que o assumpto se pudesse resumir, _Ab ovo_, +por exemplo, apesar do latim; venceu, porém, a ideia de lhe dar estes +dous nomes que o proprio Ayres citou uma vez: + +ESAÚ E JACOB + + + +Dico, che quando l'anima mal nata... + +DANTE. + + + +CAPITULO PRIMEIRO + + +Cousas futuras! + + +Era a primeira vez que as duas iam ao morro do Castello. Começaram de +subir pelo lado da rua do Carmo. Muita gente ha no Rio de Janeiro que +nunca lá foi, muita haverá morrido, muita mais nascerá e morrerá sem lá +pôr os pés. Nem todos podem dizer que conhecem uma cidade inteira. Um +velho inglez, que aliás andára terras e terras, confiava-me ha muitos +annos em Londres que de Londres só conhecia bem o seu club, e era o que +lhe bastava da metropole e do mundo. + +Natividade e Perpetua conheciam outras partes, além de Botafogo, mas +o morro do Castello, por mais que ouvissem falar delle e da cabocla +que lá reinava em 1811, era-lhes tão extranho e remoto como o club. O +ingreme, o desegual, o mal calçado da ladeira mortificavam os pés ás +duas pobres donas. Não obstante, continuavam a subir, como se fosse +penitencia, devagarinho, cara no chão, veu para baixo. A manhã trazia +certo movimento; mulheres, homens, creanças que desciam ou subiam, +lavadeiras e soldados, algum empregado, algum logista, algum padre, +todos olhavam espantados para ellas, que aliás vestiam com grande +simplicidade; mas lia um donaire que se não perde, e não era vulgar +naquellas alturas. A mesma lentidão do andar, comparada á rapidez das +outras pessoas, fazia desconfiar que era a primeira vez que alli iam. +Uma creoula perguntou a um sargento: «Você quer vêr que ellas vão á +cabocla?» E ambos pararam a distancia, tomados daquelle invencivel +desejo de conhecer a vida alheia, que é muita vez toda a necessidade +humana. + +Com effeito, as duas senhoras buscavam disfarçadamente o numero da casa +da cabocla, até que deram com elle. A casa era como as outras, trepada +no morro. Subia-se por uma escadinha, estreita, sombria, adequada á +aventura. Quizeram entrar depressa, mas esbarraram com dous sujeitos +que vinham saindo, e coseram-se ao portal. Um delles perguntou-lhes +familiarmente se iam consultar a adivinha. + +--Perdem o seu tempo, concluiu furioso, e hão de ouvir muito +disparate... + +--É mentira delle, emendou o outro rindo; a cabocla sabe muito bem onde +tem o nariz. + +Hesitaram um pouco; mas, logo depois advertiram que as palavras do +primeiro eram signal certo da videncia e da franqueza da adivinha; nem +todos teriam a mesma sorte alegre. A dos meninos de Natividade podia +ser miseravel, e então... Em quanto cogitavam passou fóra um carteiro, +que as fez subir mais depressa, para escapar a outros olhos. Tinham fé, +mas tinham tambem vexame da opinião, como um devoto que se benzesse ás +escondidas. + +Velho caboclo, pae da adivinha, conduziu as senhoras á sala. Esta era +simples, as paredes nuas, nada que lembrasse mysterio ou incutisse +pavor, nenhum petrecho symbolico, nenhum bicho empalhado, esqueleto ou +desenho de aleijões. Quando muito um registo da Conceição collado á +parede podia lembrar um mysterio, apesar de encardido e roido, mas não +mettia medo. Sobre uma cadeira, uma viola. + +--Minha filha já vem, disse o velho. As senhoras como se chamam? + +Natividade deu o nome de baptismo sómente, Maria, como um veu mais +espesso que o que trazia no rosto, e recebeu um cartão,--porque a +consulta era só de uma,--com o numero 1,012. Não ha que pasmar do +algarismo; a freguezia era numerosa, e vinha de muitos mezes. Tambem +não ha que dizer do costume, que é velho e velhissimo. Relê Eschylo, +meu amigo, relê as _Eumenides_, lá verás a Pythia, chamando os que iam +á consulta: «Se ha aqui Hellenos, venham, approximem-se, segundo o uso, +_na ordem marcada pela sorte..._» A sorte outr'ora, a numeração agora, +tudo é que a verdade se ajuste á prioridade, e ninguem perca a sua vez +de audiencia. Natividade guardou o bilhete, e ambas fôram á janella. + +A falar verdade, temiam o seu tanto, Perpetua menos que Natividade. +A aventura parecia audaz, e algum perigo possivel. Não ponho aqui os +seus gestos; imaginae que eram inquietos e desconcertados. Nenhuma +dizia nada. Natividade confessou depois que tinha um nó na garganta. +Felizmente, a cabocla não se demorou muito; ao cabo de trez ou quatro +minutos, o pae a trouxe pela mão, erguendo a cortina do fundo. + +--Entra, Barbara. + +Barbara entrou, emquanto o pae pegou da viola e passou ao patamar de +pedra, á porta da esquerda. Era uma creaturinha leve e breve, saia +bordada, chinelinha no pé. Não se lhe podia negar um corpo airoso. +Os cabellos, apanhados no alto da cabeça por um pedaço de fita +enxovalhada, faziam-lhe um solideu natural, cuja borla era supprida por +um raminho de arruda. Já vae nisto um pouco de sacerdotiza. O mysterio +estava nos olhos. Estes eram opacos, não sempre nem tanto que não +fossem tambem lucidos e agudos, e neste ultimo estado eram egualmente +compridos; tão compridos e tão agudos que entravam pela gente abaixo, +revolviam o coração e tornavam cá fóra, promptos para nova entrada e +outro revolvimento. Não te minto dizendo que as duas sentiram tal ou +qual fascinação. Barbara interrogou-as; Natividade disse ao que vinha +e entregou-lhe os retratos dos filhos e os cabellos cortados, por lhe +haverem dito que bastava. + +--Basta, confirmou Barbara. Os meninos são seu filhos? + +--São. + +--Cara de um é cara de outro. + +--São gemeos; nasceram ha pouco mais de um anno. + +--As senhoras podem sentar-se. + +Natividade disse baixinho á outra que «a cabocla era sympathica», não +tão baixo que esta não pudesse ouvir tambem; e dahi pôde ser que ella, +receiosa da predicção, quizesse aquillo mesmo para obter um bom destino +aos filhos. A cabocla foi sentar-se á mesa redonda que estava no centro +da sala, virada para as duas. Poz os cabellos e os retratos defronte de +si. Olhou alternadamente para elles e para a mãe, fez algumas perguntas +a esta, e ficou a mirar os retratos e os cabellos, bôca aberta, +sobrancelhas cerradas. Custa-me dizer que accendeu um cigarro, mas +digo, porque é verdade, e o fumo concorda com o officio. Fóra, o pae +roçava os dedos na viola, murmurando uma cantiga do sertão do norte: + + Menina da saia branca, + Saltadeira de riacho... + +Emquanto o fumo do cigarro ia subindo, a cara da adivinha mudava de +expressão, radiante ou sombria, ora interrogativa, ora explicativa. +Barbara inclinava-se aos retratos, apertava uma madeixa de cabellos em +cada mão, e fitava-as, e cheirava-as, e escutava-as, sem a affectação +que por ventura aches nesta linha. Taes gestos não se poderiam contar +naturalmente. Natividade não tirava os olhos della, como se quizesse +lel-a por dentro. E não foi sem grande espanto que lhe ouviu perguntar +se os meninos tinham brigado antes de nascer. + +--Brigado? + +--Brigado, sim, senhora. + +--Antes de nascer? + +--Sim, senhora, pergunto se não teriam brigado no ventre de sua mãe; +não se lembra? + +Natividade, que não tivera a gestação socegada, respondeu que +effectivamente sentira movimentos extraordinarios, repetidos, e dôres, +e insomnias... Mas então que era? Brigariam porquê? A cabocla não +respondeu. Ergueu-se pouco depois, e andou á volta da mesa, lenta, +como somnambula, os olhos abertos e fixos; depois entrou a dividil-os +novamente entre a mãe e os retratos. Agitava-se agora mais, respirando +grosso. Toda ella, cara e braços, hombros e pernas, toda era pouca para +arrancar a palavra ao Destino. Emfim, parou, sentou-se exhausta, até +que se ergueu de salto e foi ter com as duas, tão radiante, os olhos +tão vivos e callidos, que a mãe ficou pendente delles, e não se poude +ter que lhe não pegasse das mãos e lhe perguntasse anciosa: + +--Então? Diga, posso ouvir tudo. + +Barbara, cheia de alma e riso, deu um respiro de gosto. A primeira +palavra parece que lhe chegou á bôca, mas recolheu-se ao coração, +virgem dos labios della e de alheios ouvidos. Natividade instou pela +resposta, que lhe dissesse tudo, sem falta... + +--Cousas futuras! murmurou finalmente a cabocla. + +--Mas, cousas feias? + +--Oh! não! não! Cousas bonitas, cousas futuras! + +--Mas isso não basta; diga-me o resto. Esta senhora é minha irmã e de +segredo, mas se é preciso sair, ella sae; eu fico, diga-me a mim só... +Serão felizes? + +--Sim. + +--Serão grandes? + +--Serão grandes, oh! grandes! Deus ha de dar-lhes muitos beneficios. +Elles hão de subir, subir, subir... Brigaram no ventre de sua mãe, que +tem? Cá fóra tambem se briga. Seus filhos serão gloriosos. É só o que +lhe digo. Quanto á qualidade da gloria, cousas futuras! + +Lá dentro, a voz do caboclo velho ainda uma vez continuava a cantiga do +sertão: + + Trepa-me neste coqueiro. + Bota-me os cocos abaixo. + +E a filha, não tendo mais que dizer, ou não sabendo que explicar, dava +aos quadris o gesto da toada, que o velho repetia lá dentro: + + Menina da saia branca, + Saltadeira de riacho, + Trepa-me neste coqueiro, + Bota-me os cocos abaixo. + Quebra coco, sinhá, + Lá no cocá, + Se te dá na cabeça, + Hade rachá; + Muito heide me ri, + Muito heide gostá, + Lelê, coco, nayá. + + + + +CAPITULO II + + +Melhor de descer que de subir + + +Todos os oraculos tem o falar dobrado, mas entendem-se. Natividade +acabou entendendo a cabocla, apesar de lhe não ouvir mais nada; bastou +saber que as cousas futuras seriam bonitas, e os filhos grandes e +gloriosos para ficar alegre e tirar da bolsa uma nota de cincoenta mil +reis. Era cinco vezes o preço do costume, e valia tanto ou mais que as +ricas dadivas de Créso á Pythia. Arrecadou os retratos e os cabellos, +e as duas sairam, em quanto a cabocla ia para os fundos, á espera de +outros. Já havia alguns freguezes á porta, com os numeros de ordem, e +ellas desceram rapidamente, escondendo a cara. + +Perpetua compartia as alegrias da irmã, as pedras tambem, o muro do +lado do mar, as camisas penduradas ás janellas, as cascas de banana +no chão. Os mesmos sapatos de um _irmão das almas_, que ia a dobrar +a esquina da rua da Misericordia para a de S. José, pareciam rir de +alegria, quando realmente gemiam de cançasso. Natividade estava tão +fóra de si que, ao ouvir-lhe pedir: «Para a missa das almas!» tirou da +bolsa uma nota de dous mil reis, nova era folha, e deitou-a á bacia. A +irmã chamou-lhe a attenção para o engano, mas não era engano, era para +as almas do purgatorio. + +E seguiram lepidas para o _coupé_, que as esperava no espaço que fica +entre a egreja de S. José e a camara dos deputados. Não tinham querido +que o carro as levasse até ao principio da ladeira, para que o cocheiro +e o lacaio não desconfiassem da consulta. Toda a gente falava então da +cabocla do Castello, era o assumpto da cidade; attribuiam-lhe um poder +infinito, uma serie de milagres, sortes, achados, casamentos. Se as +descobrissem, estavam perdidas, embora muita gente boa lá fosse. Ao +vel-as dando a esmola ao irmão das almas, o lacaio trepou á almofada e +o cocheiro tocou os cavallos, a carruagem veiu buscal-as, e guiou para +Botafogo. + + + + +CAPITULO III + + +A esmola da felicidade + + +--Deus lhe accrescente, minha senhora devota! exclamou o irmão das +almas ao ver a nota cair em cima de dous nickeis de tostão e alguns +vintens antigos. Deus lhe dê todas as felicidades do céu e da terra, +e as almas do purgatorio peçam a Maria Santissima que recommende a +senhora dona a seu bemdito filho! + +Quando a sorte ri, toda a natureza ri tambem, e o coração ri como +tudo o mais. Tal foi a explicação que, por outras palavras menos +especulativas, deu o irmão das almas aos dous mil reis. A suspeita +de ser a nota falsa não chegou a tomar pé no cerebro deste: foi +allucinação rapida. Comprehendeu que as damas eram felizes, e, tendo o +uso de pensar alto, disse piscando o olho, emquanto ellas entravam no +carro: + +--Aquellas duas viram passarinho verde, com certeza. + +Sem rodeios, suppoz que as duas senhoras vinham de alguma aventura +amorosa, e deduziu isto de trez factos, que sou obrigado a enfileirar +aqui para não deixar este homem sob a suspeita de calumniador gratuito. +O primeiro foi a alegria dellas, o segundo o valor da esmola, o +terceiro o carro que as esperava a um canto, como se ellas quizessem +esconder do cocheiro o ponto dos namorados. Não concluas tu que elle +tivesse sido cocheiro algum dia, e andasse a conduzir moças antes de +servir ás almas. Tambem não creias que fosse outr'ora rico e adultero, +aberto de mãos, quando vinha de dizer adeus ás suas amigas. _Ni cet +excès d'honneur, ni cette indignité._ Era um pobre diabo sem mais +officio que a devoção. Demais, não teria tido tempo; contava apenas +vinte e sete annos. + +Comprimentou as senhoras, quando o carro passou. Depois ficou a olhar +para a nota tão fresca, tão valiosa, nota que almas nunca viram sair +das mãos delle. Foi subindo a rua de S. José. Já não tinna animo de +pedir; a nota fazia-se ouro, e a ideia de ser falsa voltou-lhe ao +cerebro, e agora mais frequente, até que se lhe pegou por alguns +instantes. Se fosse falsa... «Para a missa das almas!» gemeu á porta de +uma quitanda, e deram-lhe um vintem,--um vintem sujo e triste, ao pé da +nota tão novinha que parecia sair do prelo. Seguia-se um corredor de +sobrado. Entrou, subiu, pediu, deram-lhedous vintens,--o dobro da outra +moeda no valor e no azinhavre. + +E a nota sempre limpa, uns dous mil reis que pareciam vinte. Não, não +era falsa. No corredor pegou della, mirou-a bem; era verdadeira. De +repente, ouviu abrir a cancella em cima, e uns passos rapidos. Elle, +mais rapido, amarrotou a nota e metteu-a na algibeira das calças; +ficaram só os vintens azinhavrados e tristes, o obolo da viuva. Saiu, +foi á primeira officina, á primeira loja, ao primeiro corredor, pedindo +longa e lastimosamente: + +--Para a missa das almas! + +Na egreja, ao tirar a opa, depois de entregar a bacia ao sacristão, +ouviu uma voz debil como de almas remotas que lhe perguntavam se os +dous mil reis... Os dous mil reis, dizia outra voz menos debil, eram +naturalmente delle, que, em primeiro logar, tambem tinha alma, e, em +segundo logar, não recebera nunca tão grande esmola. Quem quer dar +tanto vae á egreja ou compra uma vela, não põe assim uma nota na bacia +das esmolas pequenas. + +Se minto, não é de intenção. Em verdade, as palavras não sairam assim +articuladas e claras, nem as debeis, nem as menos debeis; todas faziam +uma zoeira aos ouvidos da consciencia. Traduzi-as em lingua falada, +afim de ser entendido das pessoas que me lêem; não sei como se poderia +transcrever para o papel um rumor surdo e outro menos surdo, um atraz +de outro e todos confusos para o fim, até que o segundo ficou só: «não +tirou a nota a ninguem... a dona é que a poz na bacia por sua mão... +tambem elle era alma...» À porta da sacristia que dava para a rua, ao +deixar cair o reposteiro azul escuro debruado de amarello, não ouviu +mais nada. Viu um mendigo que lhe estendia o chapeo roto e sebento; +metteu vagarosamente a mão no bolso do collete, tambem roto, e aventou +uma moedinha de cobre que deitou ao chapeo do mendigo, rapido, ás +escondidas, como quer o Evangelho. Eram dous vintens; ficavam-lhe +mil novecentos e noventa e oito reis. E o mendigo, como elle saisse +depressa, mandou-lhe atraz estas palavras de agradecimento, parecidas +com as suas: + +--Deus lhe accrescente, meu senhor, e lhe dê... + + + + +CAPITULO IV + + +A missa do _coupé_ + + +Natividade ia pensando na cabocla do Castello, na predicção da grandeza +e na noticia da briga. Tornava a lembrar-se que, de facto, a gestação +não fôra socegada; mas só lhe ficava a sorte da gloria e da grandeza. A +briga lá ia, se a houve; o futuro, sim, esse é que era o principal ou +tudo. Não deu pela praia de Santa Luzia. No largo da Lapa interrogou a +irmã sobre o que pensava da adivinha. Perpetua respondeu que bem, que +acreditava, e ambas concordaram que ella parecia falar dos proprios +filhos, tal era o enthusiasmo. Perpetua ainda a reprehendeu pelos +cincoenta mil reis dados em paga; bastavam vinte. + +--Não faz mal. Cousas futuras! + +--Que cousas serão? + +--Não sei; futuras. + +Mergulharam,outra vez no silencio. Ao entrar no Cattete, Natividade +recordou a manhã em que alli passou, naquelle mesmo _coupé_, e confiou +ao marido o estado de gravidez. Voltavam de uma missa de defunto, na +egreja de S. Domingos... + +«Na egreja de S. Domingos diz-se hoje uma missa por alma de João de +Mello, fallecido em Maricá.» Tal foi o annuncio que ainda agora pódes +ler em algumas folhas de 1869. Não me ficou o dia, o mez foi agosto. O +annuncio está certo, foi aquillo mesmo, sem mais nada, nem o nome da +pessoa ou pessoas que mandaram dizer a missa, nem hora, nem convite. +Não se disse sequer que o defunto era escrivão, officio que só perdeu +com a morte. Emfim, parece que até lhe tiraram um nome; elle era, se +estou bem informado, João de Mello e Barros. + +Não se sabendo quem mandava dizer a missa, ninguem lá foi. A egreja +escolhida deu ainda menos relevo ao acto; não era vistosa, nem buscada, +mas velhota, sem galas nem gente, mettida ao canto de um pequeno largo, +adequada á missa recondita e anonyma. + +Às oito horas parou um _coupé_ á porta; o lacaio desceu, abriu a +portinhola, desbarretou-se e perfilou-se. Saiu um senhor e deu a mão +a uma senhora, a senhora saiu e tomou o braço ao senhor, atravessaram +o pedacinho de largo e entraram na egreja. Na sacristia era tudo +espanto. A alma que a taes sitios attrahira um carro de luxo, cavallos +de raça, e duas pessoas tão finas não seria como as outras almas alli +suffragadas. A missa foi ouvida sem pesames nem lagrimas. Quando +acabou, o senhor foi á sacristia dar as esportulas. O sacristão, +agasalhando na algibeira a nota de dez mil reis que recebeu, achou que +ella provava a sublimidade do defunto; mas que defunto era esse? O +mesmo pensaria a caixa das almas, se pensasse, quando a luva da senhora +deixou cair dentro uma pratinha de cinco tostões. Já então havia na +egreja meia duzia de creanças maltrapilhas, e, fóra, alguma gente ás +portas e no largo, esperando. O senhor, chegando á porta, relanceou +os olhos, ainda que vagamente, e viu que era objecto de curiosidade. +A senhora trazia os seus no chão. E os dous entraram no carro, com o +mesmo gesto, o lacaio bateu a portinhola e partiram. + +A gente local não falou de outra cousa naquelle e nos dias seguintes. +Sacristão e visinhos relembravam o _coupé_, com orgulho. Era a missa do +_coupé._ As outras missas vieram vindo, todas a pé, algumas de sapato +roto, não raras descalças, capinhas velhas, morins estragados, missas +de chita, ao domingo, missas de tamancos. Tudo voltou ao costume, mas a +missa do _coupé_ viveu na memoria por muitos mezes. Afinal não se falou +mais nella; esqueceu como um baile. + +Pois o _coupé_ era este mesmo. A missa foi mandada dizer por aquelle +senhor, cujo nome é Santos, e o defunto era seu parente, ainda que +pobre. Tambem elle foi pobre; tambem elle nasceu em Maricá. Vindo para +o Rio de Janeiro, por occasião da _febre das acções_ (1855), dizem que +revellou grandes qualidades para ganhar dinheiro depressa. Ganhou logo +muito, e fel-o perder a outros. Casou em 1859 com esta Natividade, que +ia então nos vinte annos e não tinha dinheiro, mas era bella e amava +apaixonadamente. A Fortuna os abençoou com a riqueza. Annos depois +tinham elles uma casa nobre, carruagem, cavallos e relações novas e +distinctas. Dos dous parentes pobres de Natividade morreu o pae em +1866; restava-lhe uma irmã. Santos tinha alguns em Maricá, a quem nunca +mandou dinheiro, fosse mesquinhez, fosse habilidade. Mesquinhez não +creio; elle gastava largo e dava muitas esmolas. Habilidade seria; +tirava-lhes o gosto de vir cá pedir-lhe mais. + +Não lhe valeu isto com João de Mello, que um dia appareceu aqui, a +pedir-lhe emprego. Queria ser, como elle, director de banco. Santos +arranjou-lhe depressa um logar de escrivão do civel em Maricá, e +despachou-o com os melhores conselhos deste mundo. + +João de Mello retirou-se com a escrevania, e dizem que uma grande +paixão tambem. Natividade era a mais bella mulher daquelle tempo. No +fim, com os seus cabellos quasi sexagenarios, fazia crêr na tradicção. +João de Mello ficou allucinado quando a viu; ella conheceu isso, e +portou-se bem. Não lhe fechou o rosto, é verdade, e era mais bella +assim que zangada; tambem não lhe fechou os olhos, que eram negros +e callidos. Só lhe fechou o coração, um coração que devia amar como +nenhum outro, foi a conclusão de João de Mello uma noite em que a viu +ir decotada a um baile. Teve impeto de pegar della, descer, voar, +perderem-se... + +Em vez disso, uma escrevania e Maricá; era um abysmo. Caiu nelle; +trez dias depois saiu do Rio de Janeiro para não voltar. A principio +escreveu muitas cartas ao parente, com a esperança de que ella as lesse +tambem, e comprehendesse que algumas palavras eram para si. Mas Santos +não lhe deu resposta, e o tempo e a ausencia acabaram por fazer de João +de Mello um excellente escrivão. Morreu de uma pneumonia. + +Que o motivo da pratinha de Natividade deitada á caixa das almas fosse +pagar a adoração do defunto não digo que sim, nem que não; faltam-me +pormenores. Mas póde ser que sim, porque esta senhora era não menos +grata que honesta. Quanto ás larguezas do marido, não esqueças que o +parente era defunto, e o defunto um parente menos. + + + + +CAPITULO V + + +Ha contradicções explicaveis + + +Não me peças a causa de tanto encolhimento no annuncio e na missa, +e tanta publicidade na carruagem, lacaio e libré. Ha contradicções +explicaveis. Um bom autor, que inventasse a sua historia, ou prezasse +a logica apparente dos acontecimentos, levaria o casal Santos a pé ou +em caleça de praça ou de aluguel; mas eu, amigo, eu sei como as cousas +se passaram, e refiro-as taes quaes. Quando muito, explico-as, com a +condição de que tal costume não pegue. Explicações comem tempo e papel, +demoram a acção e acabam por enfadar. O melhor é ler com attenção. + +Quanto á contradicção de que se trata aqui, é de ver que naquelle +recanto de um larguinho modesto, nenhum conhecido daria com elles, +ao passo que elles gozariam o assombro local; tal foi a reflexão de +Santos, se se póde dar semelhante nome a um movimento interior que +leva a gente a fazer antes uma cousa que outra. Resta a missa; a missa +em si mesma bastava que fosse sabida no céu e em Maricá. Propriamente +vestiram-se para o céu. O luxo do casal temperava a pobreza da oração; +era uma especie de homenagem ao finado. Se a alma de João de Mello os +visse de cima, alegrar-se-hia do apuro em que elles fôram rezar por um +pobre escrivão. Não sou eu que o digo; Santos é que o pensou. + + + + +CAPITULO VI + + +Maternidade + + +A principio, vieram calados. Quando muito, Natividade queixou-se da +egreja, que lhe sujára o vestido. + +--Venho cheia de pulgas, continuou ella: porque não fômos a S. +Francisco de Paula ou á Gloria, que estão mais perto, e são limpas? + +Santos trocou as mãos á conversa, e falou das ruas mal calçadas, que +faziam dar solavancos ao carro. Com certeza, quebravam-lhe as molas. + +Natividade não replicou, mergulhou no silencio, como naquelle outro +capitulo, vinte mezes depois, quando tornava do Castello com a irmã. +Os olhos não tinham a nota de deslumbramento que trariam então; iam +parados e sombrios, como de manhã e na vespera. Santos, que já reparára +nisso, perguntou-lhe o que é que tinha; ella não sei se lhe respondeu +de palavra; se alguma disse, foi tão breve e surda que inteiramente se +perdeu. Talvez não passasse de um simples gesto de olhos, um suspiro, +ou cousa assim. Fosse o que fosse, quando o _coupé_ chegou ao meio do +Cattete, os dous levavam as mãos presas, e a expressão do rosto era de +abençoados. Não davam sequer pela gente das ruas; não davam talvez por +si mesmos. + +Leitor, não é muito que percebas a causa daquella expressão e desses +dedos abotoados. Já lá ficou dita atraz, quando era melhor deixar que +a adivinhasses; mas provavelmente não a adivinharias, não que tenhas +o entendimento curto ou escuro, mas porque o homem varia do homem, +e tu talvez ficasses com egual expressão, simplesmente por saber +que ias dançar sabbado. Santos não dançava; preferia o voltarete, +como distracção. A causa era virtuosa, como sabes; Natividade estava +gravida, acabava de o dizer ao marido. + +Aos trinta annos não era cedo nem tarde; era imprevisto. Santos sentiu +mais que ella o prazer da vida nova. Eis ahi vinha a realidade do sonho +de dez annos, uma creatura tirada da coxa de Abrahão, como diziam +aquelles bons judeus, que a gente queimou mais tarde, e agora empresta +generosamente o seu dinheiro ás companhias e ás nações. Levam juro por +elle; mas os hebraismos são dados de graça. Aquelle é desses. Santos, +que só conhecia a parte do emprestimo, sentia inconscientemente a do +hebraismo, e deleitava-se com elle. A emoção atava-lhe a lingua; os +olhos que estendia á esposa e a cobriam eram de patriarcha; o sorriso +parecia chover luz sobre a pessoa amada, abençoada e formosa entre as +formosas. + +Natividade não foi logo, logo, assim; a pouco e pouco é que veiu +sendo vencida e tinha já a expressão da esperança e da maternidade. +Nos primeiros dias, os symptomas desconcertaram a nossa amiga. É duro +dizel-o, mas é verdade. Lá se iam bailes e festas, lá ia a liberdade e +a folga. Natividade andava já na alta roda do tempo; acabou de entrar +por ella, com tal arte que parecia haver alli nascido. Carteava-se +com grandes damas, era familiar de muitas, tuteava algumas. Nem tinha +só esta casa de Botafogo, mas tambem outra em Petropolis; nem só +carro, mas tambem camarote no Theatro-Lyrico, não contando os bailes +do Cassino Fluminense, os das amigas e os seus; todo o repertorio, em +summa, da vida elegante. Era nomeada nas gazetas, pertencia áquella +duzia de nomes planetarios que figuram no meio da plebe de estrellas. O +marido era capitalista e director de um banco. + +No meio disso, a que vinha agora uma creança deformal-a por mezes, +obrigal-a a recolher-se, pedir-lhe as noites, adoecer dos dentes e o +resto? Tal foi a primeira sensação da mãe, e o primeiro impeto foi +esmagar o germen. Criou raiva ao marido. A segunda sensação foi melhor. +A maternidade, chegando ao meio dia, era como uma aurora nova e fresca. +Natividade viu a figura do filho ou filha brincando na relva da chacara +ou no regaço da aia, com trez annos de edade, e este quadro daria aos +trinta e quatro annos que teria então um aspecto de vinte e poucos... + +Foi o que a reconciliou com o marido. Não exagero; tambem não quero mal +a esta senhora. Algumas teriam medo, a maior parte amor. A conclusão é +que, por uma ou por outra porta, amor ou vaidade, o que o embryão quer +é entrar na vida. Cesar ou João Fernandes, tudo é viver, assegurar a +dynastia e sair do mundo o mais tarde que puder. + +O casal ia calado. Ao desembocar na praia de Botafogo, a enseada trouxe +o gosto de costume. A casa descobria-se a distancia, magnifica; Santos +deleitou-se de a ver, mirou-se nella, cresceu com ella, subiu por ella. +A estatueta de Narciso no meio do jardim, sorriu á entrada delles, +a areia fez-se relva, duas andorinhas cruzaram por cima do repuxo, +figurando no ar a alegria de ambos. A mesma ceremonia á descida. Santos +ainda parou alguns instantes para ver o _coupé_ dar a volta, sair e +tornar á cocheira; depois seguiu a mulher que entrava no saguão. + + + + +CAPITULO VII + + +Gestação + + +Em cima, esperava por elles Perpetua, aquella irmã de Natividade, que a +acompanhou ao Castello, e lá ficou no carro, onde as deixei para narrar +os antecedentes dos meninos. + +--Então? Houve muita gente? + +--Não, ninguem; pulgas. + +Perpetua tambem não entendera a escolha da egreja. Quanto á +concurrencia, sempre lhe pareceu que seria pouca ou nenhuma; mas o +cunhado vinha entrando, e ella calou o resto. Era pessoa circumspecta, +que não se perdia por um dito ou gesto descuidado. Entretanto, foi-lhe +impossivel calar o espanto, quando viu o cunhado entrar e dar á mulher +um abraço longo e terno, abrochado por um beijo. + +--Que é isso? exclamou espantada. + +Sem reparar no vexame da mulher, Santos deu um abraço á cunhada, e ia a +dar-lhe um beijo tambem, se ella não recuasse a tempo e com força. + +--Mas que é isso? Você tirou a sorte grande de Hespanha? + +--Não, cousa melhor, gente nova. + +Santos conservára alguns gestos e modos de dizer dos primeiros annos, +taes que o leitor não chamará propriamente familiares; tambem não é +preciso chamar-lhes nada. Perpetua, affeita a elles, acabou sorrindo e +dando-lhe parabens. Já então Natividade os deixára para se ir despir. +Santos, meio arrependido da expansão, fez-se serio e conversou da missa +e da egreja. Concordou que esta era decrepita e mettida a um canto, +mas allegou razões espirituaes. Que a oração era sempre oração, onde +quer que a alma falasse a Deus. Que a missa, a rigor, não precisava +estrictamente de altar; o rito e o padre bastavam ao sacrificio. Talvez +essas razões não fossem propriamente delle, mas ouvidas a alguem, +decoradas sem esforço e repetidas com convicção. A cunhada opinou +de cabeça que sim. Depois falaram do parente morto e concordaram +piamente que era um asno;--não disseram este nome, mas a totalidade das +apreciações vinha a dar nelle, accrescentado de honesto e honestissimo. + +--Era uma perola, concluiu Santos. + +Foi a ultima palavra da necrologia; paz aos mortos. Dalli em deante, +vingou a soberania da creança que alvorecia. Não alteraram os habitos, +nos primeiros tempos, e as visitas e os bailes continuaram como +d'antes, até que pouco a pouco, Natividade se fechou totalmente em +casa. As amigas iam vel-a. Os amigos iam visital-os ou jogar cartas com +o marido. + +Natividade queria um filho, Santos uma filha, e cada um pleiteava a sua +escolha com tão boas razões, que acabavam trocando de parecer. Então +ella ficava com a filha, e vestia-lhe as melhores rendas e cambraias, +emquanto elle enfiava uma beca no joven advogado, dava-lhe um logar +no parlamento, outro no ministerio. tambem lhe ensinava a enriquecer +depressa; e ajudal-o-hia começando por uma caderneta na Caixa +Economica, desde o dia em que nascesse até os vinte e um annos. Alguma +vez, ás noites, se estavam sós, Santos pegava de um lapis e desenhava a +figura do filho, com bigodes,--ou então riscava uma menina vaporosa. + +--Deixa, Agostinho, disse-lhe a mulher uma noite; você sempre ha de ser +creança. + +E pouco depois, deu por si a desenhar de palavra a figura do filho +ou filha, e ambos escolhiam a côr dos olhos, os cabellos, a tez, a +estatura. Vês que tambem ella era creança. A maternidade tem dessas +incoherencias, a felicidade tambem, e porfim a esperança, que é a +meninice do mundo. + +A perfeição seria nascer um casal. Assim os desejos do pae e da mãe +ficariam satisfeitos. Santos pensou em fazer sobre isso uma consulta +spirita. Começava a ser iniciado nessa religião, e tinha a fé noviça e +firme. Mas a mulher oppoz-se; a consultar alguem, antes a cabocla do +Castello, a adivinha celebre do tempo, que descobria as cousas perdidas +e predizia as futuras. Entretanto, recusava tambem, por desnecessario. +A que vinha consultar sobre uma duvida, que dalli a mezes estaria +esclarecida? Santos achou, em relação á cabocla, que seria imitar as +crendices da gente réles; mas a cunhada acudiu que não, e citou um +caso recente de pessoa distincta, um juiz municipal, cuja nomeação foi +annunciada pela cabocla. + +--Talvez o ministro da justiça goste da cabocla, explicou Santos. + +As duas riram da graça, e assim se fechou uma vez o capitulo da +adivinha, pura se abrir muis tarde. Por agora é deixar que o feto se +desenvolva, a creança se agite e se atire, como impaciente de nascer. +Em verdade, a mãe padeceu muito durante a gestação, e principalmente +nas ultimas semanas. Cuidava trazer um general que iniciava a campanha +da vida, a não ser um casal que aprendia a desamar de vespera. + + + + +CAPITULO VIII + + +Nem casal, nem general + + +Nem casal, nem general. No dia sete de abril de 1870 veiu á luz um par +de varões tão eguaes, que antes pareciam a sombra um do outro, se não +era simplesmente a impressão do olho, que via dobrado. + +Tudo esperavam, menos os dous gemeos, e nem por ser o espanto grande, +foi menor o amor. Entende-se isto sem ser preciso insistir, assim +como se entende que a mãe désse aos dous filhos aquelle pão inteiro +e dividido do poeta; eu accrescento que o pae fazia a mesma cousa. +Viveu os primeiros tempos a contemplar os meninos, a comparal-os, a +medil-os, a pesal-os. Tinham o mesmo peso e cresciam por egual medida. +A mudança ia-se fazendo por um só teor. O rosto comprido, cabellos +castanhos, dedos finos e taes que, cruzados os da mão direita de um com +os da esquerda de outro, não se podia saber que eram de duas pessoas. +Viriam a ter genio differente, mas por ora eram os mesmos extranhões. +Começaram a sorrir no mesmo dia. O mesmo dia os viu baptizar. + +Antes do parto, tinham combinado em dar o nome do pae ou da mãe, +segundo fosse o sexo da creança. Sendo um par de rapazes, e não havendo +a fórma masculina do nome materno, não quiz o pae que figurasse só +o delle, e metteram-se a catar outros. A mãe propunha francezes ou +inglezes, conforme os romances que lia. Algumas novellas russas em moda +suggeriram nomes slavos. O pae acceitava uns e outros, mas consultava +a terceiros, e não acertava com opinião definitiva. Geralmente, os +consultados trariam outro nome, que não era acceito em casa. Tambem +veiu a antiga onomastica luzitana, mas sem melhor fortuna. Um dia, +estando Perpetua á missa, rezou o _Credo_, advertiu nas palavras: +«....os santos apostolos S. Pedro e S. Paulo», e mal pôde acabar a +oração. Tinha descoberto os nomes; eram simples e gemeos. Os paes +concordaram com ella e a pendencia acabou. + +A alegria de Perpetua foi quasi tamanha como a do pae e da mãe, se +não maior. Maior não foi, nem tão profunda, mas foi grande, ainda que +rapida. O achado dos nomes valia quasi que pela feitura das creanças. +Viuva, sem filhos, não se julgava incapaz de os ter, e era alguma +cousa nomeal-os. Contava mais cinco ou seis annos que a irmã. Casara +com um tenente de artilharia que morreu capitão na guerra do Paraguay. +Era mais baixa que alta, e era gorda, ao contrario de Natividade que, +sem ser magra, não tinha as mesmas carnes, e era alta e recta. Ambas +vendiam saúde. + +--Pedro e Paulo, disse Perpetua á irmã e ao cunhado, quando rezei estes +dous nomes senti uma cousa no coração... + +--Você será madrinha de um, disse a irmã. + +Os pequenos, que se distinguiam por uma fita de côr, passaram a receber +medalhas de ouro, uma com a imagem de S. Pedro, outra com a de S. +Paulo. A confusão não cedeu logo, mas tarde, lento e pouco, ficando tal +semelhança que os advertidos se enganavam muita vez ou sempre. A mãe +é que não precisou de grandes signaes externos para saber quem eram +aquelles dous pedaços de si mesma. As amas, apesar de os distinguirem +entre si, não deixavam de querer mal uma á outra, pelo motivo da +semelhança dos «seus filhos de criação». Cada uma affirmava que o seu +era mais bonito. Natividade concordava com ambas. + +Pedro seria medico, Paulo advogado; tal foi a primeira escolha das +profissões. Mas logo depois trocaram de carreira. Tambem pensaram em +dar um delles á engenharia. A marinha sorria á mãe, pela distincção +particular da escola. Tinha só o inconveniente da primeira viagem +remota; mas Natividade pensou em metter empenhos com o ministro. Santos +falava em fazer um delles banqueiro, ou ambos. Assim passavam as horas +vadias. Intimos da casa entravam nos calculos. Houve quem os fizesse +ministros, dezembargadores, bispos, cardeaes... + +--Não peço tanto, dizia o pae. + +Natividade não dizia nada ao pé de extranhos, apenas sorria, como se +tratasse de folguedo de São João, um lançar de dados e ler no livro de +sortes a quadra correspondente ao numero. Não importa; lá dentro de si +cobiçava algum brilhante destino aos filhos. Cria deveras, esperava, +rezava ás noites, pedia ao céu que os fizesse grandes homens. + +Uma das amas, parece que a de Pedro, sabendo daquellas ancias e +conversas, perguntou a Natividade por que é que não ia consultar a +cabocla do Castello. Affirmou que ella adivinhava tudo, o que era e o +que viria a ser; conhecia o numero da sorte grande, não dizia qual era +nem comprava bilhete para não roubar os escolhidos de Nosso Senhor. +Parece que era mandada de Deus. + +A outra ama confirmou as noticias e accrescentou novas. Conhecia +pessoas que tinham perdido e achado joias e escravos. A policia mesma, +quando não acabava de apanhar um criminoso, ia ao Castello falar á +cabocla e descia sabendo; por isso é que não a botava para fóra, como +os invejosos andavam a pedir. Muita gente não embarcava sem subir +primeiro ao morro. A cabocla explicava sonhos e pensamentos, curava de +quebranto... + +Ao jantar, Natividade repetiu ao marido a lembrança das amas. Santos +encolheu os hombros. Depois examinou rindo a sabedoria da cabocla; +principalmente a sorte grande era incrivel que, conhecendo o numero, +não comprasse bilhete. Natividade achou que era o mais difficil +de explicar, mas podia ser invenção do povo. _On ne prête qu'aux +riches_, accrescentou rindo. O marido, que estivera na vespera com um +dezembargador, repetiu as palavras delle que «emquanto a policia não +puzesse côbro ao escandalo...» O dezembargador não concluira. Santos +concluiu com um gesto vago. + +--Mas você é spirita, ponderou a mulher. + +--Perdão, não confundamos, replicou elle com gravidade. + +Sim, podia consentir n'uma consulta spirita; já pensara nella. Algum +espirito podia dizer-lhe a verdade em vez de uma adivinha de farça... +Natividade defendeu a cabocla. Pessoas da sociedade falavam della a +serio. Não queria confessar ainda que tinha fé, mas tinha. Recusando +ir outr'ora, foi naturalmente a insufficiencia do motivo que lhe deu +a força negativa. Que importava saber o sexo do filho? Conhecer o +destino dos dous era mais imperioso e util. Velhas ideias que lhe +incutiram em creança vinham agora emergindo do cerebro e descendo ao +coração. Imaginava ir com os pequenos ao morro do Castello, a titulo +de passeio... Para que? Para confirmal-a na esperança de que seriam +grandes homens. Não lhe passara pela cabeça a predicção contraria. +Talvez a leitora, no mesmo caso, ficasse aguardando o destino; mas a +leitora, além de não crêr (nem todos crêem) póde ser que não conte mais +de vinte a vinte e dous annos de edade, e terá a paciencia de esperar. +Natividade, de si para si, confessava os trinta e um, e temia não ver a +grandeza dos filhos. Podia ser que a visse, pois tambem se morre velha, +e alguma vez de velhice, mas acaso teria o mesmo gosto? + +Ao serão, a materia da palestra foi a cabocla do Castello, por +iniciativa de Santos, que repetia as opiniões da vespera e do jantar. +Das visitas algumas contavam o que ouviam della. Natividade não dormiu +aquella noite sem obter do marido que a deixasse ir com a irmã á +cabocla. Não se perdia nada; bastava levar os retratos dos meninos e um +pouco dos cabellos. As amas não saberiam nada da aventura. + +No dia aprazado metteram-se as duas no carro, entre sete e oito horas +com pretexto de passeio, e lá se fôram para a rua da Misericordia. +Sabes já que alli se apearam, entre a egreja de S. José e a Camara dos +deputados, e subiram aquella até á rua do Carmo, onde esta pega com +a ladeira do Castello. Indo a subir, hesitaram, mas a mãe era mãe, e +já agora faltava pouco para ouvir o destino. Viste que subiram, que +desceram, deram os dous mil reis ás almas, entraram no carro e voltaram +para Botafogo. + + + + +CAPITULO IX + + +Vista de palacio + + +No Cattete, o _coupé_ e uma victoria cruzaram-se e pararam a um tempo. +Um homem saltou da victoria e caminhou para o _coupé._ Era o marido de +Natividade, que ia agora para o escriptorio, um pouco mais tarde que de +costume, por haver esperado a volta da mulher. Ia pensando nella e nos +negocios da praça, nos meninos e na lei Rio Branco, então discutida na +Camara dos deputados; o banco era credor da lavoura. Tambem pensava na +cabocla do Castello e no que teria dito á mulher... + +Ao passar pelo palacio Nova-Friburgo, levantou os olhos para elle com +o desejo do costume, uma cobiça de possuil-o, sem prever os altos +destinos que o palacio viria a ter na Republica; mas quem então previa +nada? Quem prevê cousa nenhuma? Para Santos a questão era só possuil-o, +dar alli grandes festas unicas, celebradas nas gazetas, narradas na +cidade entre amigos e inimigos, cheios de admiração, de rancor ou de +inveja. Não pensava nas saudades que as matronas futura contariam ás +suas netas, menos ainda nos livros de chronicas, escriptos e impressos +neste outro seculo. Santos não tinha a imaginação da posteridade. Via o +presente e suas maravilhas. + +Já lhe não bastava o que era. A casa de Botafogo, posto que bella, +não era um palacio, e depois, não estava tão exposta como aqui no +Cattete, passagem obrigada de toda a gente, que olharia para as grandes +janellas, as grandes portas, as grandes aguias no alto, de azas +abertas. Quem viesse pelo lado do mar, veria as costas do palacio, os +jardins e os lagos... Oh! goso infinito! Santos imaginava os bronzes, +marmores, luzes, flores, danças, carruagens, musicas, ceias... Tudo +isso foi pensado depressa, porque a victoria, embora não corresse (os +cavallos tinham ordem de moderar a andadura), todavia, não atrazava as +rodas para que os sonhos de Santos acabassem. Assim foi que, antes de +chegar á praça da Gloria, a victoria avistou o _coupé_ da familia, e as +duas carragens pararam, a curta distancia uma da outra, como ficou dito. + + + + +CAPITULO X + + +O juramento + + +Tambem ficou dito que o marido saiu da victoria e caminhou para o +_coupé_, onde a mulher e a cunhada, adivinhando que elle vinha ter com +ellas, sorriam de ante-mão. + +--Não lhe digas nada, aconselhou Perpetua. + +A cabeça de Santos appareceu logo, com as suissas curtas, o cabello +rente, o bigode rapado. Era homem sympathico. Quieto, não ficava mal. A +agitação com que chegou, parou e falou tirou-lhe a gravidade com que ia +no carro, as mãos postas sobre o castão de ouro da bengala, e a bengala +entre os joelhos. + +--Então? então? perguntou. + +--Logo digo. + +--Mas que foi? + +--Logo. + +--Bem ou mal? Dize só se bem. + +--Bem. Cousas futuras. + +--É pessoa séria? + +--Séria, sim; até logo, repetiu Natividade estendendo-lhe os dedos. + +Mas o marido não podia despegar-se do _coupé_; queria saber alli mesmo +tudo, as perguntas e as respostas, a gente que lá estava á espera, e se +era o mesmo destino para os dous, ou se cada um tinha o seu. Nada disso +foi escripto como aqui vae, devagar, para que a ruim letra do autor +não faça mal á sua prosa. Não, senhor; as palavras de Santos sairam de +atropello, umas sobre outras, embrulhadas, sem principio ou sem fim. +A bella esposa tinha já as orelhas tão affeitas ao falar do marido, +mórmente em lances de emoção ou curiosidade, que entendia tudo, e ia +dizendo que não. A cabeça e o dedo sublinhavam a negativa. Santos não +teve remedio e despediu-se. + +Em caminho, advertiu que, não crendo na cabocla, era ocioso instar pela +predicção. Era mais; era dar razão á mulher. Prometteu não indagar nada +quando voltasse. Não prometteu esquecer, e dahi a teima com que pensou +muitas vezes no oraculo. De resto, ellas lhe diriam tudo sem que elle +perguntasse nada, e esta certeza trouxe a paz do dia. + +Não concluas daqui que os freguezes do banco padecessem alguma +desattenção aos seus negocios. Tudo correu bem, como se elle não +tivesse mulher nem filhos ou não houvesse Castello nem cabocla. Não +era só a mão que fazia o seu officio, assignando; a bôca ia falando, +mandando, chamando e rindo, se era preciso. Não obstante, a ancia +existia e as figuras passavam e repassavam deante delle; no intervallo +de duas letras, Santos resolvia uma cousa ou outra, se não eram ambas +a um tempo. Entrando no carro, á tarde, agarrou-se inteiramente ao +oraculo. Trazia as mãos sobre o castão, a bengala entre os joelhos, +como de manhã, mas vinha pensando os destino dos filhos. + +Quando chegou a casa, viu Natividade a contemplar os meninos, ambos +nos berços, as amas ao pé, um pouco admiradas da insistencia com que +ella os procurava desde manhã. Não era só fital-os, ou perder os olhos +no espaço e no tempo; era beijal-os tambem e apertal-os ao coração. +Esqueceu-me dizer que, de manhã, Perpetua mudou primeiro de roupa que a +irmã e foi achal-a deante dos berços, vestida como viera do Castello. + +--Logo vi que você estava com os grandes homens, disse ella. + +--Estou, mas não sei em que é que elles serão grandes. + +--Seja em que fôr, vamos almoçar. + +Ao almoço e durante o dia, falaram muita vez da cabocla e da predicção. +Agora, ao ver entrar o marido, Natividade leu-lhe a dissimulação nos +olhos. Quiz calar e esperar, mas estava tão anciosa de lhe dizer tudo, +e era tão boa, que resolveu o contrario. Unicamente não teve o tempo +de cumpril-o; antes mesmo de começar, já elle acabava de perguntar o +que era. Natividade referiu a subida, a consulta, a resposta e o resto; +descreveu a cabocla e o pae. + +--Mas então grandes destinos? + +--Cousas futuras, repetiu ella. + +--Seguramente futuras. Só a pergunta da briga é que não entendo. Brigar +porquê? E brigar como? E teriam deveras brigado? + +Natividade recordou os seus padecimentos do tempo da gestação, +confessando que não falou mais delles para o não affligir; naturalmente +é o que a outra adivinhou que fosse briga. + +--Mas briga porquê? + +--Isso não sei, nem creio que fosse nada mau. + +--Vou consultar... + +--Consultar a quem? + +--Uma pessoa. + +--Já sei, o seu amigo Placido. + +--Se fosse só amigo não consultava, mas elle é o meu chefe e mestre, +tem uma vista clara e comprida, dada pelo céu... Consulto só por +hypothese, não digo os nossos nomes... + +--Não! não! não! + +--Só por hypothese. + +--Não, Agostinho, não fale disto. Não interrogue ninguem a meu +respeito, ouviu? Ande, prometta que não falará disto a ninguem, +spiritas nem amigos. O melhor é calar. Basta saber que terão sorte +feliz. Grandes homens, cousas futuras... Jure, Agostinho. + +--Mas você não foi em pessoa á cabocla? + +--Não me conhece, nem de nome; viu-me uma vez, não me tornará a ver. +Ande, jure! + +--Você é exquisita. Vá lá, prometto. Que tem que falasse, assim, por +acaso? + +--Não quero. Jure! + +--Pois isto é cousa de juramento? + +--Sem isso, não confio, disse ella sorrindo. + +--Juro. + +--Jure por Deus Nosso Senhor! + +--Juro por Deus Nosso Senhor. + + + + +CAPITULO XI + + +Um caso unico! + + +Santos cria na santidade do juramento; por isso, resistiu, mas emfim +cedeu e jurou. Entretanto, o pensamento não lhe saiu mais da briga +uterina dos filhos. Quiz esquecel-a. Jogou essa noite, como de +costume; na seguinte, foi ao theatro; na outra a uma visita; e tornou +ao voltarete do costume, e a briga sempre com elle. Era um mysterio. +Talvez fosse um caso unico... Unico! Um caso unico! A singularidade +do caso fel-o aggarrar-se mais á ideia, ou a ideia a elle; não posso +explicar melhor este phenomeno intimo, passado lá onde não entra olho +de homem, nem bastam reflexões ou conjecturas. Nem por isso durou muito +tempo. No primeiro domingo, Santos pegou em si, e foi á casa do doutor +Placido, rua do Senador Vergueiro, uma casa baixa, de trez janellas, +com muito terreno para o lado do mar. Creio que já não existe: datava +do tempo em que a rua era o Caminho Velho, para differençar do Caminho +Novo. + +Perdoa estas minucias. A acção podia ir sem ellas, mas eu quero que +saibas que casa era, e que rua, e mais digo que alli havia uma especie +de club, templo ou o que quer que era spirita. Placido fazia de +sacerdote e presidente a um tempo. Era um velho de grandes barbas, olho +azul e brilhante, enfiado em larga camisola de seda. Põe-lhe uma vara +na mão, e fica um magico, mas, em verdade, as barbas e a camisola não +as trazia por lhe darem tal aspecto. Ao contrario de Santos, que teria +trocado dez vezes a cara, se não fôra a opposição da mulher, Placido +usava as barbas inteiras desde moço e a camisola ha dez annos. + +--Venha, venha, disse elle, ande ajudar-me a converter o nosso amigo +Ayres; ha meia hora que procuro incutir-lhe as verdades eternas, mas +elle resiste. + +--Não, não, não resisto, acudiu um homem de cerca de quarenta annos, +estendendo a mão ao recem-chegado. + + + + +CAPITULO XII + + +Esse Ayres + + +Esse Ayres que ahi apparece conserva ainda agora algumas das virtudes +d'aquelle tempo, e quasi nenhum vicio. Não attribuas tal estado a +qualquer proposito. Nem creias que vae nisto um pouco de homenagem á +modestia da pessoa. Não, senhor, é verdade pura e natural effeito. +Apesar dos quarenta annos, ou quarenta e dous, e talvez por isso mesmo, +era um bello typo de homem. Diplomata de carreira, chegára dias antes +do Pacifico, com uma licença de seis mezes. + +Não me demoro em descrevel-o. Imagina só que trazia o callo do officio, +o sorriso approvador, a fala branda e cautelosa, o ar da occasião, a +expressão adequada, tudo tão bem distribuido que era um gosto ouvil-o +e vel-o. Talvez a pelle da cara rapada estivesse prestes a mostrar os +primeiros signaes do tempo. Ainda assim o bigode, que era moço na côr e +no apuro com que acabava em ponta fina e rija, daria um ar de frescura +ao rosto, quando o meio seculo chegasse. O mesmo faria o cabello, +vagamente grisalho, apartado ao centro. No alto da cabeça havia um +inicio de calva. Na botoeira uma flor eterna. + +Tempo houve,--foi por occasião da anterior licença, sendo elle apenas +secretario de legação,--tempo houve em que tambem elle gostou de +Nativividade. Não foi propriamente paixão; não era homem disso. Gostou +della, como de outras joias e raridades, mas tão depressa viu que +não era acceito, trocou de conversação. Não era frouxidão ou frieza. +Gostava assaz de mulheres e ainda mais se eram bonitas. A questão para +elle é que nem as queria á força, nem curava de as persuadir. Não era +general para escala á vista, nem para assedios demorados; contentava-se +de simples passeios militares,--longos ou breves, conforme o tempo +fosse claro ou turvo. Em summa, extremamente cordato. + +Coincidencia interessante; foi por esse tempo que Santos pensou em +casal-o com a cunhada, recentemente viuva. Esta parece que queria. +Natividade oppoz se, nunca se soube porquê. Não eram ciumes; invejas +não creio que fossem. O simples desejo de o não ver entrar na familia +pela porta lateral é apenas uma figura, que vale qualquer das primeiras +hypotheses negadas. O desgosto de cedel-o a outra, ou tel-os felizes ao +pé de si, não podia ser, posto que o coração seja o abysmo dos abysmos. +Supponhamos que era com o fim de o punir por havel-a amado. + +Póde ser; em todo caso, o maior obstaculo viria delle mesmo. Posto que +viuvo, Ayres não foi propriamente casado. Não amava o casamento. Casou +por necessidade do officio; cuidou que era melhor ser diplomata casado +que solteiro, e pediu a primeira moça que lhe pareceu adequada ao seu +destino. Enganou-se: a differença de temperamento e de espirito era tal +que elle, ainda vivendo com a mulher, era como se vivesse só. Não se +affligiu com a perda; tinha o feitio do solteirão. + +Era cordato, repito, embora esta palavra não exprima exactamente o +que quero dizer. Tinha o coração disposto a acceitar tudo, não por +inclinação á harmonia, senão por tedio á controversia. Para conhecer +esta aversão, bastava tel-o visto entrar, antes, em visita ao casal +Santos. Pessoas de fóra e da familia conversavam da cabocla do Castello. + +--Chega a proposito, conselheiro, disse Perpetua. Que pensa o senhor da +cabocla do Castello? + +Ayres não pensava nada, mas percebeu que os outros pensavam alguma +cousa, e fez um gesto de dous sexos. Como insistissem, não escolheu +nenhuma das duas opiniões, achou outra, media, que contentou a +ambos os lados, cousa rara em opiniões medias. Sabes que o destino +dellas é serem desdenhadas. Mas este Ayres,--José da Costa Marcondes +Ayres,--tinha que nas controversias uma opinião dubia ou media póde +trazer a opportunidade de uma pilula, e compunha as suas de tal geito, +que o enfermo, se não sarava, não morria, e é o mais que fazem pilulas. +Não lhe queiras mal por isso; a droga amarga engole-se com assucar. +Ayres opinou com pausa, delicadeza, circumloquios, limpando o monoculo +ao lenço de seda, pingando as palavras graves e obscuras, fitando os +olhos no ar, como quem busca uma lembrança, e achava a lembrança, e +arredondava com ella o parecer. Um dos ouvintes acceitou-o logo, outro +divergiu um pouco e acabou de accordo, assim terceiro, e quarto, e a +sala toda. + +Não cuides que não era sincero, era-o. Quando não acertava de ter a +mesma opinião, e valia a pena escrever a sua, escrevia-a. Usava tambem +guardar por escripto as descobertas, observações, reflexões, criticas e +anecdotas, tendo para isso uma serie de cadernos, a que dava o nome de +_Memorial._ Naquella noite escreveu estas linhas: + +«Noite em casa da familia Santos, sem voltarete. Falou-se na cabocla do +Castello. Desconfio que Natividade ou a irmã quer consultal-a; não será +de certo a meu respeito. + +«Natividade e um padre Guedes que lá estava, gordo e maduro, eram as +unicas pessoas interessantes da noite. O resto insipido, mas insipido +por necessidade, não podendo ser outra cousa mais que insipido. Quando +o padre e Natividade me deixavam entregue a insipidez dos outros, +eu tentava fugir-lhe pela memoria, recordando sensações, revivendo +quadros, viagens, pessoas. Foi assim que pensei na Capponi, a quem vi +hoje pelas costas, na rua da Quitanda. Conheci-a aqui no finado Hotel +de D. Pedro, lá vão annos. Era dançarina; eu mesmo já a tinha visto +dançar em Veneza. Pobre Capponi! Andando, o pé esquerdo saia-lhe do +sapato e mostrava no calcanhar da meia um buraquinho de saudade. + +«Afinal tornei á eterna insipidez dos outros. Não acabo de crêr como é +que esta senhora, aliás tão fina, pôde organisar noites como a de hoje. +Não é que os outros não buscassem ser interessantes, e, se intenções +valessem, nenhum livro os valeria; mas não o eram, por mais que +tentassem. Emfim, lá vão; esperemos outras noites que tragam melhores +sujeitos sem esforço algum. O que o berço dá só a cova o tira, diz um +velho adagio nosso. Eu posso, truncando um verso ao meu Dante, escrever +de taes insipidos: + + Dico, che quando l'anima mal nata... + + + + +CAPITULO XIII + + +A epigraphe + + +Ora, alli está justamente a epigraphe do livro, se eu lhe quizesse pôr +alguma, e não me occorresse outra. Não é sómente um meio de completar +as pessoas da narração com as ideias que deixarem, mas ainda um par de +lunetas para que o leitor do livro penetre o que fôr menos claro ou +totalmente escuro. + +Por outro lado, ha proveito em irem as pessoas da minha historia +collaborando nella, ajudando o autor, por uma lei de solidariedade, +especie de troca de serviços, entre o enxadrista e os seus trebelhos. + +Se acceitas a comparação, distinguirás o rei e a dama, o bispo e o +cavallo, sem que o cavallo possa fazer de torre, nem a torre de pião. +Ha ainda a differença da côr, branca e preta, mas esta não tira o +poder da marcha de cada peça, e afinal umas e outras podem ganhar a +partida, e assim vae o mundo. Talvez conviesse pôr aqui, de quando +em quando, como nas publicações do jogo, um diagramma das posições +bellas ou difficeis. Não havendo taboleiro, é um grande auxilio este +processo para acompanhar os lances, mas tambem póde ser que tenhas +visão bastante para reproduzir na memoria as situações diversas. Creio +que sim. Fóra com diagrammas! Tudo irá como se realmente visses jogar a +partida entre pessoa e pessoa, ou mais claramente, entre Deus e o Diabo. + + + + +CAPITULO XIV + + +A licção do discipulo + + +--Fique, fique, conselheiro, disse Santos apertando a mão ao diplomata. +Aprenda as verdades eternas. + +--Verdades eternas pedem horas eternas, ponderou este, consultando o +relogio. + +Um tal Ayres não era facil de convencer. Placido falou-lhe de leis +scientificas para excluir qualquer macula de seita, e Santos foi +com elle. Toda a terminologia spirita saiu fóra, e mais os casos, +phenomenos, mysterios, testemunhos, attestados verbaes e escriptos... +Santos acudiu com um exemplo: dous espiritos podiam tornar juntos a +este mundo; e, se brigassem antes de nascer? + +--Antes de nascer, creanças não brigam, replicou Ayres, temperando o +sentido affirmativo com a intonação dubitativa. + +--Então nega que dous espiritos...? Essa cá me fica, conselheiro! Pois +que impede que dous espiritos?... + +Ayres viu o abysmo da controversia, e forrou- se á vertigem por uma +concessão, dizendo: + +--Esaú e Jacob brigaram no seio materno, isso é verdade. Conhece-se a +causa do conflicto. Quanto a outros, dado que briguem tambem, tudo está +em saber a causa do conflicto, e não a sabendo, porque a Providencia +a esconde da noticia humana... Se fosse uma causa espiritual, por +exemplo... + +--Por exemplo? + +--Por exemplo, se as duas creanças quizerem ajoelhar-se ao mesmo tempo +para adorar o Creador. Ahi está um caso de conflicto, mas de conflicto +espiritual, cujos processos escapam á sagacidade humana. Tambem poderia +ser um motivo temporal. Supponhamos a necessidade de se acotovellarem +para ficar melhor accommodados; é uma hypothese que a sciencia +acceitaria; isto é, não sei... Ha ainda o caso de quererem ambos a +primogenitura. + +--Para que? perguntou Placido. + +--Com quanto este privilegio esteja hoje limitado ás familias regias, +á camara dos Iords e não sei se mais, tem todavia um valor symbolico. +O simples gosto de nascer primeiro, sem outra vantagem social ou +politica, póde dar-se por instincto, principalmente se as creanças se +destinarem a galgar os altos deste mundo. + +Santos afiou o ouvido neste ponto, lembrando-se das «cousas futuras». +Ayres disse ainda algumas palavras bonitas, e accrescentou outras +feias, admittindo que a briga podia ser prenuncio de graves conflictos +na terra; mas logo temperou esse conceito com este outro: + +--Não importa; não esqueçamos o que dizia um antigo, que «a guerra é a +mãe de todas as cousas». Nia minha opinião, Empedocles, referindo-se +á guerra, não o fez só no sentido technico. O amor, que é a primeira +das artes da paz, póde-se dizer que é um duello, não de morte, mas de +vida,--concluiu Ayres sorrindo leve, como falava baixo, e despediu-se. + + + + +CAPITULO XV + + +_Teste David cum Sibylla_ + + +--E então? disse Santos. Não é que o conselheiro, em vez de aprender, +ensina-nos? Eu acho que elle deu algumas razões boas. + +--Quando menos, plausiveis, completou mestre Placido. + +--Foi pena que se despedisse, continuou Santos, mas felizmente o +meu caso é com o senhor. Venho consultal-o, e as suas luzes são as +verdadeiras do mundo. + +Placido agradeceu sorrindo. Não era novo o elogio, ao contrario; mas +elle estava tão acostumado a ouvil-o que o sorriso era já agora um +sestro. Não podia deixar de pagar com essa moeda aos seus discipulos. + +--Trata-se... + +--Trata-se disto. Aquella hypothese que eu formulei é um facto real; +succedeu com os meus filhos... + +--Como? + +--É o que me parece, e vim justamente para que me explique. Nunca lhe +falei por temer que achasse absurdo, mas tenho pensado, e suspeito que +tal briga se deu, e que é um caso extraordinario. + +Santos expoz então a consulta, gravemente, com um gesto particular que +tinha de arregalar os olhos para arregalar a novidade. Não esqueceu nem +escondeu nada; contou a propria ida da mulher ao Castello, com desdem, +é verdade, mas ponto por ponto. Placido ouvia attento, perguntando, +voltando atraz, e acabou por meditar alguns minutos. Emfim, declarou +que o phenomeno, caso se houvesse dado, era raro, se não unico, mas +possivel. Já o facto de se chamarem Pedro e Paulo indicava alguma +rivalidade, porque esses dous apostolos brigaram tambem. + +--Perdão, mas o baptismo... + +--Foi posterior, sei, mas os nomes podem ter sido predestinados, +tanto mais que a escolha dos nomes veiu, como o senhor me disse, por +inspiração á tia dos meninos. + +--Justamente. + +--D. Perpetua é muito devota. + +--Muito. + +--Creio que os proprios espiritos de S. Pedro e S. Paulo houvessem +escolhido aquella senhora para inspirar os nomes que estão no Credo; +advirta que ella reza muitas vezes o Credo, mas foi naquella occasião +que se lembrou delles. + +--Exacto, exacto! + +O doutor foi á estante e tirou uma Biblia, encadernada em couro, com +grandes fechos de metal. Abriu a Epistola de S. Paulo _aos Galatas_, e +leu a passagem do capitulo II, versículo 11, em que o apostolo conta +que, indo a Antiochia, onde estava S. Pedro, «resistiu-lhe na cara». + +Santos leu e teve uma ideia. As ideias querem-se festejadas, quando +são bellas, e examinadas, quando novas; a delle era a um tempo nova e +bella. Deslumbrado, ergueu a mão e deu uma palmada na folha, bradando: + +--Sem contar que este numero _onze_ do versiculo, composto de dous +algarismos eguaes, 1 e 1, é um numero gemeo, não lhe parece? + +--Justamente. E mais: o capitulo é o segundo, isto é, dous, que é o +proprio numero dos irmãos gemeos. + +Mysterio engendra mysterio. Havia mais de um elo intimo, substancial, +escondido, que ligava tudo. Briga, Pedro e Paulo, irmãos gemeos, +numeros gemeos, tudo eram aguas de mysterio que elles agora rasgavam, +nadando e bracejando com força. Santos foi mais ao fundo; não seriam +os dous meninos os proprios espiritos de S. Pedro e de S. Paulo, que +renasciam agora, e elle, pae dos dous apostolos?... A fé transfigura; +Santos tinha um ar quasi divino, trepou em si mesmo, e os olhos +ordinariamente sem expressão, pareciam entornar a chamma da vida. Pae +de apostolos! e que apostolos! Placido esteve quasi, quasi a crêr +tambem, achava-se dentro de um mar torvo, soturno, onde as vozes +do infinito se perdiam, mas logo lhe acudia que os espiritos de S. +Pedro e S. Paulo tinham chegado á perfeição; não tornariam cá. Não +importa; seriam outros, grandes e nobres. Os seus destinos podiam ser +brilhantes; tinha razão a cabocla, sem saber o que dizia. + +--Deixe ás senhoras as suas crenças da meninice, concluiu; se ellas tem +fé na tal mulher do Castello, e acham que é um vehiculo de verdade, +não as desminta por ora. Diga-lhes que eu estou de accordo com o seu +oraculo. _Teste David cum Sibylla._ + +--Digo, digo! escreva a phrase. + +Placido foi á secretaria, escreveu o verso, e deu-lhe o papel, mas já +então Santos advertira que mostral-o á mulher era confessar a consulta +spirita, e naturalmente o perjurio. Referiu ao amigo os escrupulos de +Natividade e pediu que calassem tudo. + +--Estando com ella, não lhe diga o que se passou entre nós. + +Saiu logo depois, arrependido da indiscrição, mas deslumbrado da +revelação. Ia cheio de numeros da Escriptura, de Pedro e Paulo, de Esaú +e Jacob. O ar da rua não espanou a poeira do mysterio; ao contrario, +o céu azul, a praia socegada, os montes verdes como que o cercavam e +cobriam de um veu mais transparente e infinito. A rixa dos meninos, +facto raro ou unico, era uma distincção divina. Contrariamente á +esposa, que cuidava sómente da grandeza futura dos filhos, Santos +pensava no conflicto passado. + +Entrou em casa, correu aos pequenos, e acarinhou-os com tão estranha +expressão, que a mãe desconfiou alguma cousa, e quiz saber o que era. + +--Não é nada, respondeu elle rindo. + +--É alguma cousa, anda, acaba. + +--Que ha de ser? + +--Seja o que fôr, Agostinho, acaba. + +Santos pediu-lhe que se não zangasse, e contou tudo, a sorte, a rixa, +a Escriptura, os apostolos, o symbolo, tudo tão espalhadamente, que +ella mal pôde entender, mas entendeu ao final, e replicou com os dentes +cerrados: + +--Ah! você! você! + +--Perdoa, amiguinha; estava tão ancioso de saber a verdade... E nota +que eu creio na cabocla, e o doutor tambem; elle até me escreveu isto +em latim, concluiu tirando e lendo o papelinho: _Teste David cum +Sibylla._ + + + + +CAPITULO XVI + + +Paternalismo + + +D'ahi a pouco, Santos pegou na mão da mulher, que a deixou ir á toa, +sem apertar a delle; ambos fitavam os meninos, tendo esquecido a zanga +para só ficarem paes. + +Já não era spiritismo, nem outra religião nova; era a mais velha de +todas, fundada por Adão e Eva, á qual chama, se queres, paternalismo. +Rezavam sem palavras, persignavam-se sem dedos, uma especie de +ceremonia quieta e muda, que abrangia o passado e o futuro. Qual delles +era o padre, qual o sacristão, não sei, nem é preciso. A missa é que +era a mesma, e o evangelho começava como o de S. João (emendado): «No +principio era o amor, e o amor se fez carne». Mas venhamos aos nossos +gemeos. + + + + +CAPITULO XVII + + +Tudo o que restrinjo + + +Os gemeos, não tendo que fazer, iam mamando. Nesse officio portavam-se +sem rivalidade, a não ser quando as amas estavam ás boas, e elles +mamavam ao pé um do outro; cada qual então parecia querer mostrar que +mamava mais e melhor, passeando os dedos pelo seio amigo, e chupando +com alma. Ellas, á sua parte tinham gloria dos peitos e os comparavam +entre si; os pequenos, fartos, soltavam afinal os bicos e riam para +ellas. + +Se não fosse a necessidade de pôr os meninos em pé, crescidos e homens, +espraiava este capitulo. Realmente, o espectaculo, posto que commum, +era bello. Os peraltas nutriam-se ao contrario dos paes, sem as artes +do cozinheiro, nem a vista das comidas e bebidas, todas postas em +crystaes e porcelanas para emendar ou colorir a dura necessidade de +comer. A elles nem se lhes via a comida; a boca ligada ao peito não +deixava apparecer o leite. A natureza mostrava-se satisfeita pelo riso +ou pelo somno. Quando era o somno, cada uma levava o seu menino ao +berço, e ia cuidar de outra cousa. Este cotejo dar-me-ia trez ou quatro +paginas solidas. + +Uma pagina bastava para os chocalhos que embellezavam os pequenos, +como se fosse a propria musica do céu. Elles sorriam, estendiam as +mãos, alguma vez zangavam-se com as negaças, mas tanto que lh'os davam, +calavam-se, e se não podiam tocar não se zangavam por isso. A proposito +de chocalhos, diria que esses instrumentos não deixam memoria de si; +alguem que os veja em mãos de creanças, se parecer que lhe lembram os +seus, cae logo no engano, e adverte que a recordação ha de ser mais +recente, alguma arenga do anno passado, se não foi a vacca de leite da +vespera. + +A operação de desmamar podia fazer-se em meia linha, mas as lástimas +das amas, as despedidas, as bichas de ouro que a mãe deu a cada uma +dellas, como um presente final, tudo isso exigia uma boa pagina ou +mais. Poucas linhas bastariam para as amas seccas, porquanto não diria +se eram altas nem baixas, feias ou bonitas. Eram mansas, zelosas do +officio, amigas dos pequenos, e logo uma da outra. Cavallinhos de +pau, bandeirolas, theatros de bonecos, barretinas e tambores, toda a +quinquilharia da infancia occuparia muito mais que o logar de seus +nomes. + +Tudo isso restrinjo só para não enfadar a leitora curiosa de ver os +meus meninos homens e acabados. Vamos vel-os, querida. Com pouco, estão +crescidos e fortes. Depois, entrego-os a si mesmos; elles que abram a +ferro ou lingua, ou simples cotovellos, o caminho da vida e do mundo. + + + + +CAPITULO XVIII + + +De como vieram crescendo + + +Eil -os que vem crescendo. A semelhança, sem os confundir já, +continuava a ser grande. Os mesmos olhos claros e attentos, a mesma +bôca cheia de graça, as mãos finas, e uma côr viva nas faces que as +fazia crêr pintadas de sangue. Eram sadios; exceptuada a crise dos +dentes, não tiveram molestia alguma, porque eu não conto uma ou outra +indigestão de doces, que os paes lhes davam, ou elles tiravam ás +escondidas. Eram ambos gulosos, Pedro mais que Paulo, e Paulo mais que +ninguem. + +Aos sete annos eram duas obras-primas, ou antes uma só em dous volumes, +como quizeres. Em verdade, não havia por toda aquella praia, nem por +Flamengos ou Glorias, Cajus e outras redondezas, não havia uma, quanto +mais duas creanças tão graciosas. Nota que eram tambem robustos. Pedro +com um murro derrubava Paulo; em compensação, Paulo com um ponta-pé +deitava Pedro ao chão. Corriam muito na chacara por aposta. Alguma vez +quizeram trepar ás arvores, mas a mãe não consentia; não era bonito. +Contentavam-se de espiar cá de baixo a fructa. + +Paulo era mais aggressivo, Pedro mais dissimulado, e, como ambos +acabavam por comer a fructa das arvores, era um moleque que a ia buscar +acima, fosse a cascudo de um ou com promessa de outro. A promessa não +se cumpria nunca; o cascudo, por ser antecipado, cumpria-se sempre, +e ás vezes com repetição depois do serviço. Não digo com isto que um +e outro dos gemeos não soubessem aggredir e dissimular; a differença +é que cada um sabia melhor o seu gosto, cousa tão obvia que custa +escrever. + +Obedeciam aos paes sem grande esforço, posto fossem teimosos. Nem +mentiam mais que outros meninos da cidade. Ao cabo, a mentira é +alguma vez meia virtude. Assim é que, quando elles disseram não ter +visto furtar um relogio da mãe, presente do pae, quando eram noivos, +mentiram conscientemente, porque a criada que o tirou foi apanhada por +elles em plena acção de furto. Mas era tão amiga delles! e com taes +lagrimas lhes pediu que não dissessem a ninguem, que os gemeos negaram +absolutamente ter visto nada. Contavam sete annos. Aos nove, quando já +a moça ia longe, é que descobriram, não sei a que proposito, o caso +escondido. A mãe quiz saber porque é que elles calaram outrora; não +souberam explicar-se, mas é claro que o silencio de 1878 foi obra da +affeição e da piedade, e dahi a meia-virtude, porque é alguma cousa +pagar amor com amor. Quanto á revelação de 1880 só se póde explicar +pela distancia do tempo. Já não estava presente a boa Miquelina; talvez +ja estivesse morta. Demais, veiu tão naturalmente a referencia... + +--Mas, porque é que vocês até agora não me disseram? teimava a mãe. + +Não sabendo mais que razão déssem, um delles, creio que Pedro, resolveu +accusar o irmão: + +--Foi elle, mamãe! + +--Eu? redarguiu Paulo. Foi elle, mamãe, elle é que não disse nada. + +--Foi você! + +--Foi você! não minta! + +--Mentiroso é elle! + +Cresceram um para o outro. Natividade acudiu prestemente, não tanto +que impedisse a troca dos primeiros murros. Segurou-lhes os braços a +tempo de evitar outros, e, em vez de os castigar ou ameaçar, beijou-os +com tamanha ternura que elles não acharam melhor occasião de lhe pedir +doce. Tiveram doce; tiveram tambem um passeio, á tarde, no carrinho do +pae. + +Na volta estavam amigos ou reconciliados. Contaram á mãe o passeio, a +gente da rua, as outras creanças que olhavam para elles com inveja, uma +que mettia o dedo na bôca, outro no nariz, e as moças que estavam ás +janellas, algumas que os acharam bonitos. Neste ultimo ponto divergiam, +porque cada um delles tomava para si só as admirações; mas a mãe +interveiu: + +--Foi para ambos. Vocês são tão parecidos, que não podia ser senão para +ambos. E sabem porque é que as moças elogiaram vocês? Foi por ver que +iam amigos, chegadinhos um ao outro. Meninos bonitos não brigam, ainda +menos sendo irmãos. Quero vel-os quietos e amigos, brincando juntos sem +rusga nem nada. Estão entendendo? + +Pedro respondeu que sim; Paulo esperou que a mãe repetisse a pergunta, +e deu egual resposta. Emfim, porque esta mandasse, abraçaram-se, mas +foi um abraçar sem gosto, sem força, quasi sem braços; encostaram-se um +ao outro, estenderam as mãos ás costas do irmão, e deixaram-n'as cair. + +De noite, na alcova, cada um delles concluiu para si que devia os +obsequios daquella tarde, o doce, os beijos e o carro, á briga que +tiveram, e que outra briga podia render tanto ou mais. Sem palavras, +como um romance ao piano, resolveram ir á cara um do outro, na primeira +occasião. Isto que devia ser um laço armado á ternura da mãe, trouxe +ao coração de ambos uma sensação particular, que não era só consolo e +desforra do socco recebido naquelle dia, mas tambem satisfação de um +desejo intimo, profundo, necessario. Sem odio, disseram ainda algumas +palavras de cama a cama, riram de uma ou outra lembrança da rua, ate +que o somno entrou com os seus pés de lã e bico calado, e tomou conta +da alcova inteira. + + + + +CAPITULO XIX + + +Apenas duas.--Quarenta annos. Terceira causa + + +Um dos meus proposrtos neste livro é não lhe pôr lagrimas. Entretanto, +não posso calar as duas que rebentaram certa vez dos olhos de +Natividade, depois de uma rixa dos pequenos. Apenas duas, e fôram +morrer-lhe aos cantos da bôca. Tão depressa as verteu como as engoliu, +renovando ás avessas e por palavras mudas o fecho daquellas historias +de creanças: «entrou por uma porta, saiu pela outra, manda el-rei +nosso senhor que nos conte outra.» E a segunda creança contava segunda +historia, a terceira terceira, a quarta quarta, até que vinha o +fastio ou o somno. Pessoas que datam do tempo em que se contavam taes +historias affirmam que creanças não punham naquella formula nenhuma +monarchica, fosse absoluta, fosse constitucional; era um modo de ligar +o seu _Decameron_ dellas, herdado do velho reino portuguez, quando os +reis mandavam o que queriam, e a nação dizia que era muito bem. + +Engolidas as duas lagrimas, Natividade riu da propria fraqueza. Não +se chamou tola, porque esses desabafos raramente se usam, ainda em +particular; mas no secreto do coração, lá muito ao fundo, onde não +penetra olho de homem, creio que sentiu alguma cousa parecida com isso. +Não tendo prova clara, limito-me a defender a nossa dona. + +Em verdade, qualquer outra viveria a tremer pela sorte dos filhos, +uma vez que houvera a rixa anterior e interior. Agora as lutas eram +mais frequentes, as mãos cada vez mais aptas, e tudo fazia receiar que +elles acabassem estripando-se um ao outro... Mas aqui surgia a ideia da +grandeza e da prosperidade,--cousas futuras!--e esta esperança era como +um lenço que enxugasse os olhos da bella senhora. As Sibyllas não terão +dito só do mal, nem os Prophetas, mas ainda do bem, e principalmente +delle. + +Com esse lenço verde enxugou ella os olhos, e teria outros lenços, +se aquelle ficasse roto ou enxovalhado; um, por exemplo, não verde +como a esperança, mas azul, como a alma della. Ainda lhes não disse +que a alma de Natividade era azul. Ahi fica. Um azul celeste, claro e +transparente, que alguma vez se embruscava, raro tempestuava, e nunca a +noite escurecia. + +Não, leitor, não me esqueceu a edade da nossa amiga; lembra-me como se +fosse hoje. Chegou assim aos quarenta annos. Não importa; o céu é mais +velho e não trocou de côr. Uma vez que lhe não attribuas ao azul da +alma nenhuma significação romantica, estás na conta. Quando muito, no +dia em que perfez aquella edade, a nossa dona sentiu um calefrio. Que +passára? Nada, um dia mais que na vespera, algumas horas apenas. Toda +uma questão de numero, menos que numero, o nome do numero, esta palavra +_quarenta_, eis o mal unico. Dahi a melancolia com que ella disse ao +marido, agradecendo o mimo do anniversario: «Estou velha, Agostinho!» +Santos quiz esganal-a brincando. + +Pois faria mal se a esganasse. Natividade ainda tinha as fôrmas do +tempo anterior á concepção, a mesma flexibilidade, a mesma graça miuda +e viva. Conservava o donaire dos trinta. A costureira punha em relevo +todos os pensamentos restantes da figura, e ainda lhe emprestava alguns +do seu bolsinho. A cintura teimava em não querer engrossar, e os +quadris e o collo eram do mesmo estofador antigo. + +Ha dessas regiões em que o verão se confunde com o outono, como se dá +na nossa terra, onde as duas estações só differem pela temperatura. +Nella nem pela temperatura. Maio tinha o calor de janeiro. Ella, aos +quarenta annos, era a mesma senhora verde, com a mesmissima alma azul. + +Esta côr vinha-lhe do pae e do avô, mas o pae morreu cedo, antes do +avô, que chegara aos oitenta e quatro. Nessa edade cria sinceramente +que todas as delicias deste mundo, desde o café de manhã até os somnos +socegados haviam sido inventados sómente para elle. O melhor cozinheiro +da terra nascera na China, para o unico fim de deixar familia, patria, +lingua, religião, tudo, e vir assar-lhe as costelletas e fazer-lhe o +chá. As estrellas davam ás _suas_ noites una aspecto esplendido, o luar +tambem, e a chuva, se chovia, era para que elle descançasse do sol. Lá +está agora no cemiterio de S. Francisco Xavier; se alguem pudesse ouvir +a voz dos mortos, dentro das sepulturas, ouviria a delle, bradando que +é tempo de fechar a porta ao cemiterio e não deixar entrar ninguem, uma +vez que elle já lá descança para todo sempre. Morreu azul; se chegasse +aos cem annos, nao teria outra côr. + +Ora, se a natureza queria poupar esta senhora, a riqueza dava a mão á +natureza, e de uma e de outra saía a mais bella côr que alma de gente +póde ter. Tudo concorria assim para lhe seccarem os olhos depressa, +como vimos atraz. Se ella bebeu aquellas duas lagrimas solitarias, +pudera ter bebido outras pela edade adeante, e isto é ainda uma +prova daquelle matiz espiritual; mostrará assim que as tem poucas, e +engole-as para poupal-as. + +Mas ha ainda uma terceira causa que dava a esta senhora o sentimento da +côr azul, causa tão particular que merecia ir em capitulo seu, mas não +vae, por economia. Era a isenção, era o ter atravessado a vida intacta +e pura. O cabo das Tormentas converteu-se em cabo da Boa Esperança, +e ella venceu a primeira e a segunda mocidade, sem que os ventos lhe +derribassem a nau, nem as ondas a engolissem. Não negaria que alguma +lufada mais rija pudera levar-lhe a vela do traquete, como no caso +de João de Mello, ou ainda peor, no de Ayres, mas fôram bocejos de +Adamastor. Concertou a vela depressa e o gigante ficou atraz cercado de +Thetis, emquanto ella seguiu o caminho da India. Agora lembrava-se da +viagem prospera. Honrava-se dos ventos inuteis e perdidos. A memoria +trazia-lhe o sabor do perigo passado. Eis aqui a terra encoberta, os +dous filhos nados, criados e amados da fortuna. + + + + +CAPITULO XX + + +A joia + + +Os quarenta e um annos não lhe trouxeram arrepio. Já estava acostumada +á casa dos quarenta. Sentiu sim, um grande espanto; acordou e não viu o +presente do costume, a «sorpreza» do marido ao pé da cama. Não a achou +no toucador; abriu gavetas, espiou, nada. Creu que o marido esquecera +a data e ficou triste; era a primeira vez! Desceu olhando; nada. No +gabinete estava o marido, calado, mettido comsigo, a ler jornaes, mal +lhe estendeu a mão. Os rapazes, apesar de ser domingo, estudavam a um +canto; vieram dar-lhe o beijo do costume e tornaram aos livros. A mãe +ainda relanceou os olhos pelo gabinete, a ver se achava algum mimo, um +painel, um vestido, foi tudo vão. Embaixo de uma das folhas do dia que +estava na cadeira fronteira á do marido podia ser que... Nada. Então +sentou-se, e, abrindo a folha, ia dizendo comsigo: «Será possivel que +não se lembre do dia de hoje? Será possivel?» Os olhos entraram a ler á +toa, saltando as noticias, tornando atraz... + +Defronte o marido espreitava a mulher, sem absolutamente importar-lhe o +que parecia ler. Assim se passaram alguns minutos. De repente, Santos +viu uma expressão nova no rosto de Natividade; os olhos della pareciam +crescer, a bôca entre-abriu-se, a cabeça ergueu-se, a delle tambem, +ambos deixaram a cadeira, deram dous passos e cairam nos braços um do +outro, como dous namorados desesperados de amor. Um, dous, trez, muitos +beijos. Pedro e Paulo, espantados, estavam ao canto, de pé. O pae, +quando pôde falar, disse-lhes: + +--Venham beijar a mão da senhora baroneza de Santos. + +Não entenderam logo. Natividade não sabia que fizesse; dava a mão aos +filhos, ao marido, e tornava ao jornal para ler e reler que no despacho +imperial da vespera o Sr. Agostinho José dos Santos fôra agraciado com +o titulo de Barão de Santos. Comprehendeu tudo. O presente do dia era +aquelle; o ourives desta vez foi o imperador. + +--Vão, vão, agora podem ir brincar, disse o pae aos filhos. + +E os rapazes sairam a espalhar a noticia pela casa. Os criados ficaram +felizes com a mudança dos amos. Os proprios escravos pareciam receber +uma parcella de liberdade e condecoravam-se com ella: «Nhã Baroneza!» +exclamavam saltando. E João puxava Maria, batendo castanholas com os +dedos: «Gente, quem é esta creoula? Sou escrava de Nhã Baroneza!» + +Mas o imperador não foi o unico ourives. Santos tirou do bolso uma +caixinha, com um broche em que a corôa nova rutilava de brilhantes. +Natividade agradeceu-lhe a joia e consentiu em pol-a, para que o marido +a visse. Santos sentia-se autor da joia, inventor da fórma e das +pedras; mas deixou logo que ella a tirasse e guardasse, e pegou das +gazetas, para lhe mostrar que em todas vinha a noticia, algumas com +adjectivo, _conceituado_ aqui, alli _distincto_, etc. + +Quando Perpetua entrou no gabinete, achou-os andando de um lado para +outro, com os braços passados pela cintura, conversando, calando, +mirando os pés. Tambem ella deu e recebeu abraços. + +Toda a casa estava alegre. Na chacara as arvores pareciam mais verdes +que nunca, os botões do jardim explicavam as folhas, e o sol cobria a +terra de uma claridade infinita. O céu, para collaborar com o resto, +ficou azul o dia inteiro. Logo cedo entraram a vir cartões e cartas +de parabens. Mais tarde visitas. Homens do foro, homens do commercio, +homens de sociedade, muitas senhoras, algumas titulares tambem, vieram +ou mandaram. Devedores de Santos acudiram depressa, outros preferiram +continuar o esquecimento. Nomes houve que elles só puderam reconhecer á +força de grande pesquiza e muito almanaque. + + + + +CAPITULO XXI + + +Um ponto escuro + + +Sei que ha um ponto escuro no capitulo que passou; escrevo este para +esclarecel-o. + +Quando a esposa inquiriu dos antecendentes e circumstancias do +despacho, Santos deu as explicações pedidas. Nem todas seriam +estrictamente exactas; o tempo é um rato roedor das cousas, que as +diminue ou altera no sentido de lhes dar outro aspecto. Demais, a +materia era tão propicia ao alvoroço que facilmente traria confusão á +memoria. Ha, nos mais graves acontecimentos, muitos pormenores que se +perdem, outros que a imaginação inventa para supprir os perdidos, e nem +por isso a historia morre. + +Resta saber (é o ponto escuro) como é que Santos pôde calar por longos +dias um negocio tão importante para elle e para a esposa. Em verdade, +esteve mais de uma vez a dizer por palavra ou por gesto, se achasse +algum, aquelle segredo de poucos; mas, sempre havia uma força maior que +lhe tapava a bôca. Ao que parece, foi a expectação de uma alegria nova +e inesperada que lhe deu a alma de pacientar. + +Naquella scena do gabinete tudo foi composto de antemão, o silencio, +a indifferença, os filhos que elle poz alli, estudando ao domingo, +só para o effeito daquella phrase: «Venham beijar a mão da senhora +baroneza de Santos!» + + + + +CAPITULO XXII + + +Agora um salto + + +Que os dous gemeos participassem da lua de mel nobiliaria dos paes +não é cousa que se precise escrever. O amor que lhes tinham bastava +a explical-o, mas accresce que, havendo o titulo produzido em outros +meninos dous sentimentos oppostos, um de estima, outro de inveja, Pedro +e Paulo concluiram ter recebido com elle um merito especial. Quando, +mais tarde, Paulo adoptou a opinião republicana nunca envolveu aquella +distincção da familia na condemnação das instituições. Os estados de +alma que daqui nasceram davam materia a um capitulo especial, se eu não +preferisse agora um salto, e ir a 1886. O salto é grande, mas o tempo é +um tecido invisivel em que se póde bordar tudo, uma flor, um passaro, +uma dama, um castello, um tumulo. Tambem se póde bordar nada. Nada em +cima de invisivel é a mais subtil obra deste mundo, e acaso do outro. + + + + +CAPITULO XXIII + + +Quando tiverem barbas + + +Naquelle anno, uma noite de agosto, como estivessem algumas pessoas na +casa de Botafogo, succedeu que uma dellas, não sei se homem ou mulher, +perguntou aos dous irmãos que edade tinham. + +Paulo respondeu: + +--Nasci no anniversario do dia em que Pedro I caiu do throno. + +E Pedro: + +--Nasci no anniversario do dia em que Sua Majestade subiu ao throno. + +As respostas foram simultaneas, não successivas, tanto que a pessoa +pediu-lhes que falasse cada um por sua vez. A mãe explicou: + +--Nasceram no dia 7 de Abril de 1870. + +Pedro repetiu vagarosamente: + +--Nasci no dia em que Sua Majestade subiu ao throno. + +E Paulo, em seguida: + +--Nasci no dia em que Pedro I caiu do throno. + +Natividade reprehendeu a Paulo a sua resposta subversiva. Paulo +explicou-se, Pedro contestou a explicação e deu outra, e a sala viraria +club, se a mãe não os accommodasse por esta maneira: + +--Isto hão de ser grupos de collegio; vocês não estão em edade de falar +em politica. Quando tiverem barbas. + +As barbas não queriam vir, por mais que elles chamassem o buço com +os dedos, mas as opiniões politicas e outras vinham e cresciam. Não +eram propriamente opiniões, não tinham raizes grandes nem pequenas. +Eram (mal comparando) gravatas de côr particular, que elles atavam +ao pescoço, á espera que a côr cançasse e viesse outra. Naturalmente +cada um tinha a sua. Tambem se póde crêr que a de cada um era, mais +ou menos, adequada á pessoa. Como recebiam as mesmas approvações e +distincções nos exames, faltava-lhes materia a invejas; e, se a ambição +os dividisse algum dia, não era por ora aguia nem condor, ou sequer +filhote; quando muito, um ovo. No collegio de Pedro II todos lhes +queriam bem. + +As barbas é que não queriam vir. Que é que se lhes ha de fazer quando +as barbas não querem vir? Esperar que venham por seu pé, que appareçam, +que cresçam, que embranqueçam, como é seu costume dellas, salvo as que +não embranquecem nunca, ou só em parte e temporariamente. Tudo isto é +sabido e banal, mas dá ensejo a dizer de duas barbas do ultimo genero, +celebres naquelle tempo, e ora totalmente esquecidas. Não tendo outro +logar em que fale dellas, aproveito este capitulo, e o leitor que volte +a pagina, se prefere ir atraz da historia. Eu ficarei durante algumas +linhas, recordando as duas barbas mortas, sem as entender agora, como +não as entendemos então, as mais inexplicaveis barbas do mundo. + +A primeira daquellas barbas era de um amigo de Pedro, um capucho, +um italiano, frei ***. Podia escrever-lhe o nome,--ninguem mais o +conheceria,--mas prefiro esse signal trino, numero de mysterio, +expresso por estrellas, que são os olhos do céu. Trata-se de um frade. +Pedro não lhe conheceu a barba preta, mas já grisalha, longa e basta, +adornando uma cabeça mascula e formosa. A bôca era risonha, os olhos +rutilos. Ria por ella e por elles, tão docemente que mettia a gente +no coração. Tinha o peito largo, as espaduas fortes. O pé nú, atado +á sandalia, mostrava aguentar um corpo de Hercules. Tudo isso meigo +e espiritual, como uma pagina evangelica. A fé era viva, a affeição +segura, a paciencia infinita. + +Frei *** despediu-se um dia de Pedro. Ia ao interior, Minas, Rio +Janeiro, S. Paulo,--creio que ao Paraná tambem,--viagem espiritual, +como a de outros confrades, e lá ficou por um semestre ou mais. Quando +voltou trouxe-nos a todos grande alegria e maior espanto. A barba +estava negra, não sei se tanto ou mais que d'antes, mas negrissima +e brilhantissima. Não explicou a mudança, nem ninguem lhe perguntou +por ella; podia ser milagre ou capricho da natureza; tambem podia ser +correcção de homem, posto que o ultimo caso fosse mais difficil de +crêr que o primeiro. Durou nove mezes esta côr; feita outra viagem por +trinta dias, a barba appareceu de prata ou de neve, como vos parecer +mais branca. + +Quanto á segunda de taes barbas, foi ainda mais espantosa. Não era +de frade, mas de maltrapilho, um sujeito que vivia de dividas, e na +mocidade corrigira um velho rifão da nossa lingua por esta maneira: +«Paga o que deves, vê o que te _não_ fica.» + +Chegou aos cincoenta annos sem dinheiro, sem emprego, sem amigos. A +roupa teria a mesma edade, os sapatos não menor que ella. A barba é que +não chegou aos cincoenta; elle pintava-a de negro e mal, provavelmente +por não ser a tinta de primeira qualidade e não possuir espelho. Andava +só, descia ou subia muita vez a mesma rua. Um dia dobrou a esquina da +Vida e caiu na praça da Morte, com as barbas enxovalhadas, por não +haver quem lh'as pintasse na Santa Casa. + +_Or, benè_, para falar como o meu capucho, porque é que este e o +maltrapilho voltaram do grisalho ao negro? A leitora que adivinhe, se +póde: dou-lhe vinte capitulos para alcançal-o. Talvez eu, por essas +alturas, lobrigue alguma explicação, mas por ora não sei nem aventuro +nada. Vá que malignos attribuam a frei *** alguma paixão profana; ainda +assim não se comprehende que elle se descobrisse por aquelle modo. +Quanto ao maltrapilho, a que damas queria elle agradar, a ponto de +trocar alguma vez o pão pela tinta? Que um e outro cedessem ao desejo +de prender a mocidade fugitiva, póde ser. O frade, lido na Escriptura, +sabendo que Israel chorou pelas cebolas do Egypto, teria tambem +chorado, e as suas lagrimas cairam negras. Póde ser, repito. Este +desejo de capturar o tempo é uma necessidade da alma e dos queixos; mas +ao tempo dá Deus _habeas-corpus._ + + + + +CAPITULO XXIV + + +Robespierre e Luiz XVI + + +Tanto cresceram as opiniões de Pedro e Paulo que, um dia, chegaram a +incorporar-se em alguma cousa. Iam descendo pela rua da Carioca. Havia +alli uma loja de vidraceiro, com espelhos de vario tamanho, e, mais que +espelhos, tambem tinha retratos velhos e gravuras baratas, com e sem +caixilho. Pararam alguns instantes, olhando á toa. Logo depois, Pedro +viu pendurado um retrato de Luiz XVI, entrou e comprou-o por oitocentos +reis; era uma simples gravura atada ao mostrador por um barbante. +Paulo quiz ter egual fortuna, adequada ás suas opiniões, e descobriu +um Robespierre. Como o logista pedisse por este mil e duzentos, Pedro +exaltou-se um pouco. + +--Então o senhor vende mais barato um rei, e um rei martyr? + +--Ha de perdoar, mas é que esta outra gravura custou-me mais caro, +redarguiu o velho logista. Nós vendemos conforme o preço da compra. +Veja; está mais nova. + +--Lá isso, não, acudiu Paulo. São do mesmo tempo; mas é que este vale +mais que aquelle. + +--Ouvi dizer que tambem era rei... + +--Qual, rei! responderam os dous. + +--Ou quiz sel-o, não sei bem... Que eu de historias, apenas conheço +a dos mouros que aprendi na minha terra com a avó, alguns bocados em +verso. E elle ainda ha mouras lindas; por exemplo, esta; apesar do +nome, creio que era moura, ou ainda é, se vive... Mal lhe saiba ao +marido! + +Foi a um canto e trouxe um retrato de Madame de Stael, com o famoso +turbante na cabeça. Ó effeito da belleza! Os rapazes esqueceram por um +instante as opiniões politicas e ficaram a olhar longamente a figura +de Corinna. O logista, apesar dos seus setenta annos, tinha os olhos +babados. Cuidou de sublinhar as formas, a cabeça, a bôca um tanto +grossa, mas expressiva, e dizia que não era caro. Como nenhum quizesse +compral-a, talvez por ser só uma, disse-lhes que ainda tinha outro, mas +esse era «uma pouca vergonha,» phrase que os deuses lhe perdoariam, +quando soubessem que elle não quiz mais que abrir o appetite aos +freguezes. E foi a um armario, tirou de lá, e trouxe uma Diana, núa +como vivia cá em baixo, outr'ora, nos mattos. Nem por isso a vendeu. +Teve de contentar-se com os retratos politicos. + +Quiz ainda ver se colhia algum dinheiro, vendendo-lhes um retrato de +Pedro I, encaixilhado, que pendia da parede; mas, Pedro recusou por não +ter dinheiro disponivel, e Paulo disse que não daria um vintem pela +«cara de traidores». Antes não dissesse nada! O logista, tão depressa +lhe ouviu a resposta como despiu as fôrmas obsequiosas, vestiu outras +indignadas, e bradou que sim, senhor, que o moço tinha razão. + +--Tem muita razão. Foi um traidor, mau filho. mau irmão, mau tudo. +Fez todo o mal que pôde a este mundo; e no inferno, onde está, se a +religião não mente, deve ainda fazer mal ao Diabo. Este moço falou ha +pouco em rei martyr,--continuou mostrando-lhes um retrato de D. Miguel +de Bragança, meio perfil, sobrecasaca, mão ao peito,--este é que foi +um verdadeiro martyr daquelle, que lhe roubou o throno, que não era +seu, para dal-o a quem não pertencia; e foi morrer á mingua o meu pobre +rei e senhor, dizem que na Allemanha, ou não sei onde. Ah! _malhados!_ +Ah! filhos do Diabo! Os senhores não podem imaginar o que era aquella +canalha de liberaes. Liberaes! Liberaes do alheio! + +--É tudo a mesma farinha, reflexionou Paulo. + +--Eu não sei se elles eram de farinha, sei que levaram muita pancada. +Venceram, mas apanharam deveras. Meu pobre rei! + +Pedro quiz responder ao remoque do irmão, e propoz comprar o retrato +de Pedro I. Quando o logista tornou a si, começou a negociar a venda, +mas não poderam entender-se no preço; Pedro dava os mesmos oitocentos +reis do outro, o logista pedia dous mil reis. Notava-lhe que estava +encaixilhado, e Luiz XVI não; além disso, era mais novo. E vinha á +porta, a buscar melhor luz, chamava-lhe a attenção para o rosto, +os olhos principalmente, que bella expressão que tinham! E o manto +imperial... + +--Que lhe custa dar dous mil reis? + +--Dou-lhe dez tostões; serve? + +--Não serve. Mais que isso me custou elle. + +--Pois então... + +--Veja sempre. Pois isto não vale até trez mil reis? 0 papel não está +encardido; a gravura é fina. + +--Dez tostões, já disse. + +--Não, senhor. Olhe, por dez tostões leve este de D. Miguel; o papel +está bem conservado, e, com pouco dinheiro, manda lhe pôr um caixilho. +Vá; dez tostões. + +--Se eu já estou arrependido... Dez tostões pelo imperador. + +--Ah! isso não! Custou-me mil e setecentos, ha trez semanas; ganho uns +trezentos reis, quasi nada. Ganho menos com o senhor D. Miguel, mas +tambem concordo que é menos procurado. Este de D. Pedro I, se passar +amanhã, talvez já o não ache. Vá, sim? + +--Eu passo depois. + +Paulo já ia andando e mirando Robespierre; Pedro alcançou-o. + +--Olhe, leve por sete tostões o senhor D. Miguel! + +Pedro abanou a cabeça. + +--Seis tostões serve? + +Pedro, ao lado do irmão, desenrolára a sua gravura. O velho logista +quiz ainda bradar: «Cinco tostões!» mas iam já longe, e ficava mal +negociar assim. + + + + +CAPITULO XXV + + +D. Miguel + + +--Assim como assim, ficou pensando o velho, não ha de ser enrolado e +guardado que o hei de vender; vou mandal-o encaixilhar; põem-se-lhe +aqui umas taboinhas velhas... + +D. Miguel voltou para elle os olhos turvos de tristeza e reproche; +assim lhe pareceu ao vidraceiro, mas podia ter sido illusão. Em todo +caso, pareceu tambem que os olhos tornavam ao seu logar, fitando á +direita, ao longe... Para onde? Para onde ha justiça eterna, cuidou +naturalmente o dono. Como estivesse a contemplal-o, á porta, parou um +homem, entrou, e olhou com interesse para o retrato. O logista reparou +na expressão; podia ser algum miguelista, mas tambem podia ser um +colleccionador... + +--Quanto pede o senhor por isto? + +--Isto? Ha de perdoar; quer saber quanto peço pelo meu rico senhor +D. Miguel? Não peço muito, está um tanto encardido, mas ainda se lhe +aprecia bem a figura. Que soberba que ella é! Não é caro; dou-lhe pelo +custo; se estivesse encaixilhado, valeria uns quatro mil reis. Leve-o +por trez. + +O freguez tirou tranquillamente o dinheiro do bolso, emquanto o velho +enrolava o retrato, e, trocados um por outro, despediram-se cortezes e +satisfeitos; o logista, depois de ir até a porta, tornou á cadeira do +costume. Talvez pensasse no mal a que escapára, se vendesse o retrato +por dez tostões. Em todo caso, ficou a olhar para fóra, para longe, +para onde ha justiça eterna... Trez mil reis! + + + + +CAPITULO XXVI + + +A luta dos retratos + + +Quasi que não é preciso dizer o destino dos retratos do rei e do +convencional. Cada um dos pequenos pregou o seu á cabeceira da cama. +Pouco durou esta situação, porque ambos faziam pirraças ás pobres +gravuras, que não tinham culpa de nada. Eram orelhas de burro, nomes +feios, desenhos de animaes, até que um dia Paulo rasgou a de Pedro, +e Pedro a de Paulo. Naturalmente, vingaram-se a murro; a mãe ouviu +rumor e subiu apressada. Conteve os filhos, mas já os achou arranhados +e recolheu-se triste. Nunca mais acabaria aquella maldição de +rivalidade? Fez esta pergunta calada, atirada á cama, a cara mettida no +travesseiro, que desta vez ficou secco, mas a alma chorou. + +Natividade confiava na educação, mas a educação, por mais que ella +a apurasse, apenas quebrava as arestas ao caracter dos pequenos, o +essencial ficava; as paixões embryonarias trabalhavam por viver, +crescer, romper, taes quaes ella sentira os dous no proprio seio, +durante a gestação... E recordava a crise de então, acabando por +maldizer da cabocla do Castello. Realmente, a cabocla devia ter calado; +o mal calado não se muda, mas não se sabe. Agora, póde ser que isto +de não calar confirme a opinião de que a cabocla era mandada por Deus +para dizer a verdade aos homens. E afinal o que é que ella disse a +Natividade? Não fez mais que uma pergunta mysteriosa; a predicção é que +foi luminosa e clara... E outra vez as palavras do Castello resoaram +aos ouvidos da mãe, e a imaginação fez o resto. Cousas futuras! Eil-os +grandes e sublimes. Algumas brigas em pequenos, que importa? Natividade +sorriu, ergueu-se, foi á porta, deu com o filho Pedro, que vinha +explicar-se. + +--Mamãe, Paulo é mau. Se mamãe ouvisse os horrores que elle solta pela +bôca fóra, mamãe morria de medo. Custa-me muito não ir á cara delle; +ainda lhe não tirei um olho... + +--Meu filho, não fales assim, é teu irmão. + +--Pois que não se metta commigo, não me aborreça. Que blasphemias que +elle dizia! Como eu rezava por alma de Luiz XVI, elle, para machucar-me +bem, rezava a Robespierre; compoz uma ladainha chamando santo ao outro +e cantarolava baixinho para que papae nem mamãe ouvissem. Eu sempre lhe +dei alguns cascudos... + +--Ahi está! + +--Mas é que elle é que me dava primeiro, porque eu punha orelhas de +burro em Robespierre... Então, eu havia de apanhar calado? + +--Nem calado, nem falando. + +--Então, como? Apanhar sempre, não é? + +--Não, senhor; não quero pancadas; o melhor é que esqueçam tudo e se +queiram bem. Você não vê como seus paes se querem? As brigas acabaram +de todo. Não quero ouvir rusgas nem queixas. Afinal que tem vocês com +um sujeito mau que morreu ha tantos annos? + +--É o que eu digo, mas elle não se emenda. + +--Ha de emendar-se; os estudos fazem esquecer creancices. Você tambem +quando fôr medico tem muito que brigar com as molestias e a morte; é +melhor que andar dando pancada em seu irmão... Que é lá isso? Não quero +arremeços, Pedro! Socegue, ouça-me. + +--Mamãe é sempre contra mim. + +--Não sou contra nenhum, sou por ambos, ambos são meus filhos. E +demais gemeos. Anda cá, Pedro. Não penses que eu desapprovo as tuas +opiniões politicas. Até gósto; são as minhas, são as nossas. Paulo ha +de tel-as tambem. Na edade delle acceita-se quanta tolice ha, mas o +tempo corrige. Olha, Pedro, a minha esperança é que vocês sejam grandes +homens, mas com a condição de serem tambem grandes amigos. + +--Eu estou prompto a ser grande homem, assentiu Pedro com ingenuidade, +quasi com resignação. + +--E grande amigo tambem. + +--Se elle fôr, serei. + +--Grandes homens! exclamou Natividade, dando-lhe dous abraços, um para +elle, outro para o irmão quando viesse. + +Mas Paulo veiu logo, e recebeu o abraço inteiro e de verdade. Vinha +tambem queixar-se, e sempre resmungou alguma cousa, mas a mãe não quiz +ouvil-o, e falou outra vez a linguagem das grandezas. Paulo consentiu +tambem em ser grande. + +--Você será medico, disse Natividade a Pedro, e você advogado. Quero +ver quem faz as melhores curas, e ganha as peiores demandas. + +--Eu, disseram ambos a um tempo. + +--Patetas! Cada um terá a sua carreira especial, a sua sciencia +differente. Já estão curados do nariz? Já; não ha mais sangue. Agora o +primeiro que ferir seu irmão será degradado. + +Foi um recurso habil separal-os; um ficava no Rio, estudando medicina, +outro ia para S. Paulo, estudar direito. O tempo faria o resto, não +contando que cada um casava e iria com a mulher para o seu lado. Era a +paz perpetua; mais tarde viria a perpetua amizade. + + + + +CAPITULO XXVII + + +De uma reflexão intempestiva + + +Eis aqui entra uma reflexão da leitora: «Mas se duas velhas gravuras os +levam a murro e sangue, contentar-se-hão elles com a sua esposa? Não +quererão a mesma e unica mulher?» + +O que a senhora deseja, amiga minha, é chegar já ao capitulo do amor +ou dos amores, que é o seu interesse particular nos livros. Dahi a +habilidade da pergunta, como se dissesse: «Olhe que o senhor ainda nos +não mostrou a dama ou damas que têm de ser amadas ou pleiteadas por +estes dous jovens inimigos. Já estou cançada de saber que os rapazes +não se dão ou se dão mal; é a segunda ou terceira vez que assisto ás +blandicias da mãe ou aos seus ralhos amigos. Vamos depressa ao amor, ás +duas, se não é uma só a pessoa...» + +Francamente, eu não gosto de gente que venha adivinhando e compondo um +livro que está sendo escripto com methodo. A insistencia da leitora em +falar de uma só mulher chega a ser impertinente. Supponha que elles +devéras gostem de uma só pessoa; não parecerá que eu conto o que a +leitora me lembrou, quando a verdade é que eu apenas escrevo o que +succedeu e póde ser confirmado por dezenas de testemunhas? Não, senhora +minha, não puz a penna na mão, á espreita do que me viessem suggerindo. +Se quer compôr o livro, aqui tem a penna, aqui tem papel, aqui tem um +admirador; mas, se quer ler sómente, deixe-se estar quieta, vá de linha +em linha; dou-lhe que boceje entre dous capitulos, mas espere o resto, +tenha confiança no relator destas aventuras. + + + + +CAPITULO XXVIII + + +O resto é certo + + +Sim, houve uma pessoa, mais moça que elles, um a dous annos, que os +agrilhoou, á força de costume ou de natureza, se não foi de ambas as +cousas. Antes d'essa, póde ser que houvesse outras e mais velhas que +elles, mas de taes não rezam as notas que servem a este livro. Se +brigaram por ellas, não ficou memoria disso, mas é possivel, dado que +tivessem tido as mesmas preferencias; no caso contrario tambem, como +succedia aos cavalleiros que defendiam a sua dama. + +Conjecturas tudo. Era natural que, assim bonitos, eguaes, elegantes, +dados á vida e ao passeio, á conversação e á dança, finalmente +herdeiros, era natural que mais de uma menina gostasse delles. As que +os viam passar a cavallo, praia fóra ou rua acima, ficavam namoradas +daquella ordem perfeita de aspecto e de movimento. Os proprios cavallos +eram eguaesinhos, quasi gemeos, e batiam as patas com o mesmo rythmo, +a mesma força e a mesma graça. Não creias que o gesto da cauda e das +crinas fosse simultaneo nos dous animaes; não é verdade e póde fazer +duvidar do resto. Pois o resto é certo. + + + +CAPITULO XXIX + + +A pessoa mais moça + + +A pessoa mais moça não entra já neste capitulo por uma razão valiosa, +que é a conveniencia de apresentar primeiro os paes. Não é que se +não possa vel-a bem sem elles; póde-se, os trez são diversos, acaso +contrarios, e, por mais especial que a acheis, não é preciso que os +paes estejam presentes. Nem sempre os filhos reproduzem os paes. Camões +affirmou que de certo pae só se podia esperar tal filho, e a sciencia +confirma esta regra poetica. Pela minha parte creio na sciencia como na +poesia, mas ha excepções, amigo. Succede, ás vezes, que a natureza faz +outra cousa, e nem por isso as plantas deixam de crescer e as estrellas +de luzir. O que se deve crêr sem erro é que Deus é Deus; e, se alguma +rapariga arabe me estiver lendo, ponha-lhe Allah. Todas as linguas vão +dar ao céu. + + + + +CAPITULO XXX + + +A gente Baptista + + +A gente Baptista conheceu a gente Santos em não sei que fazenda da +provincia do Rio. Não foi Maricá, embora alli tivesse nascido o pae dos +gemeos; seria em qualquer outro municipio. Fosse qual fosse, alli é que +se conheceram as duas familias, e como morassem proximas em Botafogo, a +assiduidade e a sympathia vieram ajudando o caso fortuito. + +Baptista, o pae da donzella, era homem de quarenta e tantos annos, +advogado do civel, ex-presidente de provincia e membro do partido +conservador. A ida á fazenda tivera por objecto exactamente uma +conferencia politica para fins eleitoraes, mas tão esteril que elle +tornou de lá sem, ao menos, um ramo de esperança. Apesar de ter amigos +no governo, não alcançára nada, nem deputação, nem presidencia. +Interrompêra a carreira desde que foi exonerado daquelle cargo «a +pedido», disse o decreto, mas as queixas do exonerado fariam crêr outra +cousa. De facto, perdera as eleições, e attribuia a esse desastre +politico a demissão do cargo. + +--Não sei o que é que elle queria que eu fizesse mais, dizia Baptista +falando do ministro. Cerquei egrejas; nenhum amigo pediu policia que eu +não mandasse; processei talvez umas vinte pessoas, outras foram para a +cadeia sem processo. Havia de enforcar gente? Ainda assim houve duas +mortes no Ribeirão das Moças. + +O final era excessivo, porque as mortes não fôram obra delle; quando +muito, elle mandou abafar o inquerito, si se póde chamar inquerito a +uma simples conversação sobre a ferocidade dos dous defuntos. Em summa, +as eleições fôram incruentas. + +Baptista dizia que por causa das eleições perdera a presidencia, +mas corria outra versão, um negocio de aguas, concessão feita a um +hespanhol, a pedido do irmão da esposa do presidente. O pedido era +verdadeiro, a imputação de socio é que era falsa. Não importa; tanto +bastou para que a folha da opposição dissesse que houve naquillo um +bom «arranjo de familia», accrescentando que, como era de aguas, devia +ser negocio limpo. A folha da administração retorquiu que, se aguas +havia, não eram bastantes para lavar o sujo do carvão deixado pela +ultima presidencia liberal, um fornecimento de palacio. Não era exacto; +a folha da opposição reviveu o processo antigo e mostrou que a defeza +fôra cabal. Podia parar aqui, mas continuou que, «como agora estavamos +em Hespanha», o presidente emendou o poeta hespanhol, autor daquelle +epitaphio: + + Cuñados y juntos: + Es cierto que estan difuntos; + +e emendou-o por não ser obrigado a matar ninguem, antes deu vida a si e +aos seus, dizendo pela nossa lingua: + + Cunhados e cunhadissimos; + É certo que são vivissimos! + +Baptista acudiu depressa ao mal, declarando sem effeito a concessão, +mas isso mesmo serviu á opposição para novos arremeços: «Temos a +confissão do reu!» foi o titulo do primeiro artigo que rendeu á folha +da opposição o acto do presidente. Os correspondentes tinham já +escripto para o Rio de Janeiro falando da concessão, e o governo acabou +por demittir o seu delegado. Em verdade, só os politicos cuidaram do +negocio. D. Claudia apenas alludia á campanha da imprensa, que foi +violentissima. + +--Não valia a pena sair daqui, disse Natividade. + +--Lá isso não, baroneza! + +E D. Claudia affirmou que valia. Soffre-se, mas paciencia. Era tão bom +chegar á provincia! Tudo annunciado, as visitas a bordo, o desembarque, +a posse, os comprimentos... Ver a magistratura, o funcionalismo, a +officialidade, muita calva, muito cabello branco, a flor da terra, +emfim, com as suas cortezias longas e demoradas, todas em angulo ou em +curva, e os louvores impressos. As mesmas descomposturas da opposição +eram agradaveis. Ouvir chamar tyranno ao marido, que ella sabia ter +um coração de pomba, ia bem á alma della. A sêde de sangue que se lhe +attribuia, elle que nem bebia vinho, o guante de ferro de um homem +que era uma luva de pellica, a immoralidade, a desfaçatez, a falta de +brio, todos os nomes injustos, mas fortes, que ella gostava de ler, +como verdades eternas, onde iam elles agora? A folha da opposição era +a primeira que D. Claudia lia em palacio. Sentia-se vergastada tambem +e tinha nisso uma grande volupia, como si fosse na propria pelle; +almoçava melhor. Onde iam os lategos daquelle tempo? Agora mal podia +ler o nome delle impresso no fim de algumas razões do foro, ou então na +lista das pessoas que iam visitar o imperador. + +--Nem sempre, explicou D. Claudia; Baptista é muito acanhado; vae de +longe em longe a S. Christovão, para não parecer que se faz lembrado, +como se isto fosse crime; ao contrario, não ir nunca é que póde parecer +arrufo. Note que o imperador nunca deixou de recebel-o com muita +benevolencia, e a mim tambem. Nunca esqueceu o meu nome. Já deixei de +lá ir dous annos, e quando appareci, perguntou-me logo: «Como vae, D. +Claudia?» + +Afóra essas saudades do poder, D. Claudia era uma creatura feliz. A +viveza das palavras e das maneiras, os olhos que pareciam não ver nada +á força de não pararem nunca, e o sorriso benevolo, e a admiração +constante, tudo nella era ajustado a curar as melancolias alheias. +Quando beijava ou mirava as amigas era como se as quizesse comer vivas, +comer de amor, não de odio, mettel-as em si, muito em si, no mais fundo +de si. + +Baptista não tinha as mesmas expansões. Era alto e o ar socegado dava +um bom aspecto de governo. Só lhe faltava acção, mas a mullher podia +inspirar-lh'a; nunca deixou de consultal-a nas crises da presidencia. +Agora mesmo, se lhe désse ouvidos, já teria ido pedir alguma cousa +ao governo, mas neste ponto era firme, de uma firmeza que nascia da +fraqueza: «Hão de chamar-me, deixa estar,» dizia elle a D. Claudia, +quando apparecia alguma vaga de governo provincial. Certo é que elle +sentia a necessidade de tornar á vida activa. Nelle a politica era +menos uma opinião que uma sarna; precisava coçar-se a miudo e com força. + + + + +CAPITULO XXXI + + +Flora + + +Tal era aquelle casal de politicos. Um filho, se elles tivessem um +filho varão, podia ser a fusão das suas qualidades oppostas, e talvez +um homem de Estado. Mas o céu negou-lhes essa consolação dynastica. + +Tinham uma filha unica, que era tudo o contrario d'elles. Nem a paixão +de D. Claudia, nem o aspecto governamental de Baptista distinguia a +alma ou a figura da joven Flora. Quem a conhecesse por esses dias, +poderia comparal-a a um vaso quebradiço ou á flor de uma só manhã, e +teria materia para uma doce elegia. Já então possuia os olhos grandes +e claros, menos sabedores, mas dotados de um mover particular, que +não era o espalhado da mãe, nem o apagado do pae, antes mavioso e +pensativo, tão cheio de graça que faria amavel a cara de um avarento. +Põe-lhe o nariz aquilino, rasga-lhe a bôca meio risonha, formando tudo +um rosto comprido, alisa-lhe os cabellos ruivos, e ahi tens a moça +Flora. + +Nasceu em agosto de 1871. A mãe, que datava por ministerios, nunca +negou a edade da filha: + +--Flora nasceu no ministerio Rio-Branco, e foi sempre tão facil de +aprender, que já no ministerio Sinimbú sabia ler escrever correntemente. + +Era retrahida e modesta, avêssa a festas publicas, e difficilmente +consentiu em aprender a dançar. Gostava de musica, e mais do piano que +do canto. Ao piano, entregue a si mesma, era capaz de não comer um +dia inteiro. Ha ahi o seu tanto de exagerado, mas a hyperbole é deste +mundo, e as orelhas da gente andam já tão entupidas que só á força de +muita rhetorica se póde metter por ellas um sopro de verdade. + +Até aqui nada ha que extraordinariamente distinga esta moça das outras, +suas contemporaneas, desde que a modestia vae com a graça, e em certa +edade é tão natural o devaneio como a travessura. Flora, aos quinze +annos, dava-lhe para se metter comsigo. Ayres, que a conheceu por esse +tempo, em casa de Natividade, acreditava que a moça viria a ser uma +inexplicavel. + +--Como diz? inquiriu a mãe. + +--Verdadeiramente, não digo nada, emendou Ayres; mas, se me permitte +dizer alguma cousa, direi que esta moça resume as raras prendas de sua +mãe. + +--Mas eu não sou inexplicavel, replicou D. Claudia sorrindo. + +--Ao contrario, minha senhora. Tudo está, porem, na definição que +dermos a esta palavra. Talvez não haja nenhuma certa. Supponhamos uma +creatura para quem não exista perfeição na terra, e julgue que a mais +bella alma não passa de um ponto de vista; se tudo muda com o o ponto +de vista, a perfeição... + +--A perfeição é copas, insinuou Santos. + +Era um convite ao voltarete. Ayres não teve animo de acceitar, tão +inquieta lhe pareceu Flora, com os olhos nelle, interrogativos, +curiosos de saber porque é que ella era ou viria a ser inexplicavel. +Além disso, preferia a conversação das mulheres. É delle esta phrase do +_Memorial:_ «Na mulher, o sexo corrige a banalidade; no homem, aggrava.» + +Não foi preciso acceitar nem recusar o convite de Santos; chegaram dous +habituados do jogo, e com elles Baptista, que estava na saleta proxima, +Santos foi ao recreio de todas as noites. Um daquelles era o velho +Placido, doutor em spiritismo; o segundo era um corretor da praça, +chamado Lopes, que amava as cartas pelas cartas, e sentia menos perder +dinheiro que partidas. Lá se fôram ao voltarete, emquanto Ayres ficava +no salão, a ouvir a um canto as damas, sem que os olhos de Flora se +despegassem d'elle. + + + + +CAPITULO XXXII + + +O aposentado + + +Já então este ex-ministro estava aposentado. Regressou ao Rio de +Janeiro, depois de um ultimo olhar ás cousas vistas, para aqui viver +o resto dos seus dias. Podia fazel-o em qualquer cidade, era homem de +todos os climas, mas tinha particular amor á sua terra, e por ventura +estava cançado de outras. Não attribuia a esta tantas calamidades. A +febre amarella, por exemplo, á força de a desmentir lá fóra, perdeu-lhe +a fé, e cá dentro, quando via publicados alguns casos, estava já +corrompido por aquelle credo que attribue todas as molestias a uma +variedade de nomes. Talvez porque era homem sadio. + +Não mudára inteiramente; era o mesmo ou quasi. Encalveceu mais, é +certo, terá menos carnes, algumas rugas; ao cabo, uma velhice rija de +sessenta annos. Os bigodes continuam a trazer as pontas finas e agudas. +O passo é firme, o gesto grave, com aquelle toque de galanteria, que +nunca perdeu. Na botoeira, a mesma flor eterna. + +Tambem a cidade não lhe pareceu que houvesse mudado muito. Achou algum +movimento mais, alguma opera menos, cabeças brancas, pessoas defuntas; +mas a velha cidade era a mesma. A propria casa delle no Cattete estava +bem conservada. Ayres despediu o inquilino, tão polidamente como se +recebesse o ministro dos negocios estrangeiros, e metteu-se nella a si +e a um criado, por mais que a irmã teimasse em leval-o para Andarahy. + +--Não, mana Rita, deixe-me ficar no meu canto. + +--Mas eu sou a sua ultima parenta, disse ella. + +--De sangue e de coração, isso é, concordou elle; póde accrescentar que +a melhor de todas e a mais pia. Onde estão aquelles cabellos...? Não +precisa baixar os olhos. Você os cortou para metter no caixão de seu +finado marido. Os que ahi estão embranqueceram; mas os que lá ficaram +eram pretos, e mais de uma viuva os teria guardado todos para as +segundas nupcias. + +Rita gostou de ouvir aquella referencia. Outr'ora, não; pouco depois de +viuva, tinha vexame de um acto tão sincero; achava-se quasi ridicula. +Que valia cortar os cabellos por haver perdido o melhor dos maridos? +Mas, andando o tempo, entrou a ver que fizera bem, a approvar que lh'o +dissessem, e, na intimidade, a lembral-o. Agora serviu a allusão para +replicar: + +--Pois se eu sou isso, porque é que você prefere viver com extranhos? + +--Que extranhos? Não vou viver com ninguem. Viverei com o Cattete, o +largo do Machado, a praia de Botafogo e a do Flamengo, não falo das +pessoas que lá moram, mas das ruas, das casas, dos chafarizes e das +lojas. Ha lá cousas exquisitas, mas sei eu se venho achar em Andarahy +uma casa de pernas para o ar, por exemplo? Contentemo-nos do que +sabemos. Lá os meus pés andam por si. Ha alli cousas petrificadas e +pessoas immortaes, como aquelle Custodio da confeitaria, lembra-se? + +--Lembra-me, a _Confeitaria do Imperio._ + +--Ha quarenta annos que a estabeleceu; era ainda no tempo em que os +carros pagavam imposto de passagem. Pois o diabo está velho, mas não +acaba; ainda me ha de enterrar. Parece rapaz; apparece-me lá todas as +semanas. + +--Você tambem parece rapaz. + +--Não brinque, mana; eu estou acabado. Sou um velho gamenho, pôde ser; +mas não é por agradar a moças, é porque me ficou este geito... E a +proposito, porque não vae você morar commigo? + +--Ah! é para saber que tambem eu gosto de estar commigo. Irei lá de vez +em quando, mas já não saio d'aqui, se não para o cemiterio. + +Ajustaram visitar um ao outro; Ayres viria jantar ás quinta-feiras. +D. Rita ainda lhe falou dos casos de molestia d'elle, ao que Ayres +replicou que não adoecia nunca, mas se adoecesse viria para Andarahy; +o coração della era o melhor dos hospitaes. Talvez que em todas essas +recusas houvesse tambem a necessidade de fugir á contradicção, porque a +irmã sabia inventar occasiões de dissidencia. Naquelle mesmo dia (era +ao almoço) elle achou o café delicioso, mas a irmã disse que era ruim, +obrigando-o a um grande esforço para tornar atraz e achal-o detestavel. + +A principio, Ayres cumpriu a solidão, separou-se da sociedade, +metteu-se em casa, não apparecia a ninguem ou a raros e de longe em +longe. Em verdade estava cançado de homens e de mulheres, de festas +e de vigilias. Fez um programma. Como era dado a letras classicas, +achou no padre Bernardes esta traducção daquelle psalmo: «Alonguei-me +fugindo e morei na soedade.» Foi a sua divisa. Santos, se lh'a dessem, +fal-a-hia esculpir, á entrada do salão, para regalo dos seus numerosos +amigos. Ayres deixou-a estar em si. Alguma vez gostava de a recitar +calado, parte pelo sentido, parte pela linguagem velha: «Alonguei-me +fugindo e morei na soedade.» + +Assim foi a principio, Às quinta-feiras ia jantar com a irmã. Às +noites passeava pelas praias, ou pelas ruas do bairro. O mais do tempo +era gasto em ler e reler, compôr o _Memorial_ ou rever o composto, +para relembrar as cousas passadas. Estas eram muitas e de feição +diversa, desde a alegria até a melancolia, enterramentos e recepções +diplomaticas, uma braçada de folhas seccas, que lhe pareciam verdes +agora. Alguma vez as pessoas eram designadas por um X ou ***, e elle +não acertava logo quem fossem, mas era um recreio procural-as, achal-as +e completal-as. + +Mandou fazer um armario envidraçado, onde metteu as reliquias da vida, +retratos velhos, mimos de governos e de particulares, um leque, uma +luva, uma fita e outras memorias femininas, medalhas e medalhões, +camafeus, pedaços de ruinas gregas e romanas, uma infinidade de cousas +que não nomeio, para não encher papel. As cartas não estavam lá, viviam +dentro de uma mala, catalogadas por letras, por cidades, por linguas, +por sexos. Quinze ou vinte davam para outros tantos capitulos e seriam +lidas com interesse e curiosidade. Um bilhete, por exemplo, um bilhete +encardido e sem data, moço como os bilhetes velhos, assignado por +iniciaes, um M e um P, que elle traduzia com saudades. Não vale a pena +dizer o nome. + + + + +CAPITULO XXXIII + + +A solidão tambem cança + + +Mas tudo cança, até a solidão. Ayres entrou a sentir uma ponta +de aborrecimento; bocejava, cochilava, tinha sede de gente viva, +extranha, qualquer que fosse, alegre ou triste. Mettia-se por bairros +excentricos, trepava aos morros, ia ás egrejas velhas, ás ruas novas, +á Copacabana e á Tijuca. O mar alli, aqui o matto e a vista acordavam +nelle uma infinidade de ecos, que pareciam as proprias vozes antigas. +Tudo isso escrevia, ás noites, para se fortalecer no proposito da vida +solitaria. Mas não ha proposito contra a necessidade. + +A gente extranha tinha a vantagem de lhe tirar a solidão, sem lhe dar a +conversação. As visitas de rigor que elle fazia eram poucas, breves e +apenas faladas. E tudo isso fôram os primeiros passos. A pouco e pouco +sentiu o sabor dos costumes velhos, a nostalgia das salas, a saudade +do riso, e não tardou que o aposentado da diplomacia fosse reintegrado +no emprego da recreação. A solidão, tanto no texto biblico, como na +traducção do padre, era archaica. Ayres trocou-lhe uma palavra e o +sentido; «Alonguei-me fugindo, e morei entre a gente.» + +Assim se foi o programma da vida nova. Não é que elle já a não +entendesse nem amasse, ou que a não praticasse ainda alguma vez, a +espaços, como se faz uso de um remedio que obriga a ficar na cama ou +na alcova; mas, sarava depressa e tornava ao ar livre. Queria ver a +outra gente, ouvil-a, cheiral-a, gostal-a, apalpal-a, applicar todos os +sentidos a um mundo que podia matar o tempo, o immortal tempo. + + + + +CAPITULO XXXIV + + +Inexplicavel + + +Assim o deixámos, ha apenas dous capitulos, a um canto da sala da gente +Santos, em conversação com as senhoras. Has de lembrar-te que Flora +não despegava os olhos delle, anciosa de saber porque é que a achava +inexplicavel. A palavra rasgava-lhe o cerebro, ferindo sem penetrar. +Inexplicavel que era? Que se não explica, sabia; mas que se não explica +porquê? + +Quiz perguntal-o ao conselheiro, mas não achou occasião, e elle saiu +cedo. A primeira vez, porém, que Ayres foi a S. Clemente, Flora +pediu-lhe familiarmente o obsequio de uma definição mais desenvolvida. +Ayres sorriu e pegou na mão da mocinha, que estava de pé. Foi só o +tempo de inventar esta resposta: + +--Inexplicavel é o nome que podemos dar aos artistas que pintam sem +acabar de pintar. Botam tinta, mais tinta, outra tinta, muita tinta, +pouca tinta, nova tinta, e nunca lhes parece que a arvore é arvore, nem +a choupana choupana. Se se trata então de gente, adeus. Por mais que +os olhos da figura falem, sempre esses pintores cuidam que elles não +dizem nada. E retocam com tanta paciencia, que alguns morrem entre dous +olhos, outros matam-se de desespero. + +Flora achou a explicação obscura; e tu, amiga minha leitora, se acaso +és mais velha e mais fina que ella, póde ser que a não aches mais +clara. Elle é que não accrescentou nada, para não ficar incluido entre +os artistas daquella especie. Bateu paternalmente na palma da mão de +Flora, e perguntou pelos estudos. Os estudos iam bem; como é que não +iriam bem os estudos? E sentando-se ao pé delle, a mocinha confessou +que tinha ideia justamente de aprender desenho e pintura, mas se havia +de pôr tinta de mais ou de menos, e acabar não pintando nada, melhor +seria ficar só na musica. A musica ia bem com ella, o francez tambem, e +o inglez. + +--Pois só a musica, o inglez e o francez, concordou Ayres. + +--Mas o senhor promette que não me achará inexplicavel? pergunta ella +com doçura. + +Antes que elle respondesse, entrarám na sala os dous gemeos. Flora +esqueceu um assumpto por outro, e o velho pelos rapazes. Ayres não se +demorou mais que o tempo de a ver rir com elles, e sentir em si alguma +cousa parecida com remorsos. Remorsos de envelhecer, creio. + + + + +CAPITULO XXXV + + +Em volta da moça + + +Já então os dous gemeos cursavam, um a Faculdade de Direito, em S. +Paulo; outro a Escola de Medicina, no Rio. Não tardaria muito que +saissem formados e promptos, um para defender o direito e o torto da +gente, outro para ajudal-a a viver e a morrer. Todos os contrastes +estão no homem. + +Não era tanta a politica que os fizesse esquecer Flora, nem tanta +Flora que os fizesse esquecer a politica. Tambem não eram taes as duas +que prejudicassem estudos e recreios. Estavam na edade em que tudo se +combina sem quebra de essencia de cada cousa. Lá que viessem a amar a +pequena com egual força é o que se podia admittir desde já, sem ser +preciso que ella os attrahisse de vontade. Ao contrario, Flora ria com +ambos, sem rejeitar nem acceitar especialmente nenhum; póde ser até que +nem percebesse nada. Paulo vivia mais tempo ausente. Quando tornava +pelas férias, como que a achava mais cheia de graça. Era então que +Pedro multiplicava as suas finezas para se não deixar vencer do irmão, +que vinha prodigo dellas. E Flora recebia-as todas com o mesmo rosto +amigo. + +Note-se--e este ponto deve ser tirado á luz,--note-se que os dous +gemeos continuavam a ser parecidos e eram cada vez mais esbeltos. +Talvez perdessem estando juntos, porque a semelhança diminuia em +cada um delles a feição pessoal. Demais, Flora simulava ás vezes +confundil-os, para rir com ambos. E dizia a Pedro: + +--Dr. Paulo! + +E dizia a Paulo: + +--Dr. Pedro! + +Em vão elles mudávam da esquerda para a direita e da direita para a +esquerda. Flora mudava os nomes tambem, e os trez acabávam rindo. A +familiaridade desculpava a acção e crescia com ella. Paulo gostava mais +de conversa que de piano; Flora conversava. Pedro ia mais com o piano +que com a conversa; Flora tocava. Ou então fazia ambas as cousas, e +tocava falando, soltava a rédea aos dedos e á lingua. + +Taes artes, postas ao serviço de taes graças, eram realmente de +accender os gemeos, e foi o que succedeu pouco a pouco. A mãe della +cuido que percebeu alguma cousa; mas a principio não lhe deu grande +cuidado. Tambem ella foi menina e moça, tambem se dividiu a si sem se +dar nada a ninguem. Póde ser até que, a seu parecer, fosse um exercicio +necessario aos olhos do espirito e da cara. A questão é que estes se +não corrompessem, nem se deixassem ir atraz de cantigas, como diz o +povo, que assim exprime os feitiços de Orpheu. Ao contrario, Flora +é que fazia de Orpheu, ella é que era a cantiga. Opportunamente, +escolheria a um delles, pensava a mãe. + +A intimidade tinha intervallos grandes, além das ausencias obrigadas +de Paulo. Apesar de não sair, Pedro não a buscava sempre, nem ella ia +muita vez á casa da praia. Não se viam dias e dias. Que pensassem um no +outro, é possivel; mas não possuo o menor documento disto. A verdade +é que Pedro tinha os seus companheiros de escola, os namoros de rua +e de aventura, os partidos de theatro, os passeios á Tijuca e outros +arrabaldes. Ao demais, os dous gemeos estavam ainda no ponto de falar +della nas cartas, louval-a, descrevel-a, dizer mil cousas doces, sem +ciume. + + + + +CAPITULO XXXVI + + +A discordia não é tão feia como se pinta + + +A discordia não é tão feia como se pinta, meu amigo. Nem feia, nem +esteril. Conta só os livros que tem produzido, desde Homero até cá, sem +excluir... Sem excluir qual? Ia dizer que este, mas a Modestia acena-me +de longe que pare aqui. Paro aqui; e viva a Modestia, que mal supporta +a letra capital que lhe ponho, a letra e os vivas, mas ha de ir com +ella e com elles. Viva a Modestia, e excluamos este livro; fiquem só +os grandes livros epicos e tragicos, a que a Discordia deu vida, e +digam-me se tamanhos effeitos não provam a grandeza da causa. Não, a +discordia não é tão feia como se pinta. + +Teimo nisto para que as almas sensiveis não comecem de tremer pela moça +ou pelos rapazes. Não ha mister tremer, tanto mais que a discordia dos +dous começou por um simples accordo, naquella noite. Costeavam a praia, +calados, pensando só, até que ambos, como se falassem para si, soltaram +esta phrase unica: + +--Está ficando bem bonita. + +E voltando-se um para outro: + +--Quem? + +Ambos sorriram; acharam pico ao simultaneo da reflexão e da pergunta. +Sei que este phenomeno é tal qual o do capitulo XXV, quando elles +disseram da edade, mas não me culpem a mim; eram gemeos, podiam ter +o falar gemeo. O principal é que não se amofináram; não era ainda +amor o que sentiam. Cada um expoz a sua opinião ácerca das graças da +pequena, o gesto, a voz, os olhos e as mãos, tudo com tão boa sombra, +que excluia a ideia de rivalidade. Quando muito, divergiam na escolha +da melhor prenda, que para Pedro eram os olhos, e para Paulo a figura; +mas como acabavam achando um total harmonico, era visto que não +brigavam por isso. Nenhum delles attribuia ao outro a cousa vaga ou o +qur quer que era que principiavam a sentir, e mais pareciam esthetas +que enamorados. Aliás, a mesma politica os deixou em paz essa noite: +não brigaram por ella. Não é que não sentissem alguma cousa opposta, +á vista da praia e do céu, que estavam deliciosos. Lua cheia, agua +quieta, vozes confusas e esparsas, algum tilbury a passo ou a trote, +segundo ia vasio ou com gente. Tal ou qual brisa fresca. + +A imaginação os levou então ao futuro, a um futuro brilhante, como elle +é em tal edade. Botafogo teria um papel historico, uma enseada imperial +para Pedro, uma Veneza republicana para Paulo, sem doge, nem conselho +dos dez, ou então um doge com outro titulo, um simples presidente, que +se casaria em nome do povo com este pequenino Adriatico. Talvez o doge +fosse elle mesmo. Esta possibilidade, apesar dos annos verdes, enfunou +a alma do moço. Paulo viu-se á testa de uma republica, em que o antigo +e o moderno, o futuro e o passado se mesclassem, uma Roma nova, uma +Convenção Nacional, a Republica Franceza e os Estados-Unidos da America. + +Pedro, á sua parte, construia a meio caminho como um palacio para a +representação nacional, outro para o imperador, e via-se a si mesmo +ministro e presidente do conselho. Falava, dominava o tumulto e as +opiniões, arrancava um voto á Camara dos deputados ou então expedia +um decreto de dissolução. É uma minucia, mas merece inseril-a aqui: +Pedro, sonhando com o governo, pensava especialmente nos decretos de +dissolução. Via-se em casa, com o acto assignado, referendado, copiado, +mandado aos jornaes e ás Camaras, lido pelos secretarios, archivado +na secretaria, e os deputados saindo cabisbaixos, alguns resmungando, +outros irados. Só elle estava tranquillo, no gabinete, recebendo os +amigos que iam comprimental-o e pedir os recados para a provincia. + +Taes eram as grandes pinceladas da imaginação dos dous. As estrellas +recebiam no céu todos os pensamentos dos rapazes, a lua seguia quieta +e a vaga da praia estirava-se com a preguiça do costume. Voltaram a si +ao pé de casa. Tal ou qual impulso quiz leval-os a discutir ácerca do +tempo e da noite, da temperatura e da enseada. Algum murmurio vago póde +ser que lhes fizesse mover os beiços e começar a quebrar o silencio, +mas o silencio era tão augusto que concordáram em respeital-o. E logo +acháram de si para si, que a lua era esplendida, a enseada bella e a +temperatura divina. + + + + +CAPITULO XXXVII + + +Desaccordo no accordo + + +Não esqueça dizer que, em 1888, uma questão grave e gravissima os fez +concordar tambem, ainda que por diversa razão. A data explica o facto: +foi a emancipação dos escravos. Estavam então longe um do outro, mas a +opinião uniu-os. + +A differença unica entre elles dizia respeito á significação da +reforma, que para Pedro era um acto de justiça, e para Paulo era o +inicio da revolução. Elle mesmo o disse, concluindo um discurso em +S. Paulo, no dia 20 de maio: «A abolição é a aurora da liberdade; +esperemos o sol; emancipado o preto, resta emancipar o branco.» + +Natividade ficou attonita quando leu isto; pegou da penna e escreveu +uma carta longa e maternal. Paulo respondeu com trinta mil expressões +de ternura, declarando no fim que tudo lhe poderia sacrificar, +inclusive a vida e até a honra; as opiniões é que não. «Não, mamãe; as +opiniões é que não.» + +--As opiniões é que não, repetiu Natividade acabando de ler a carta. + +Natividade não acabava de entender os sentimentos do filho, ella que +sacrificára as opiniões aos principios, como no caso de Ayres, e +continuou a viver sem macula. Como então não sacrificar...? Não achava +explicação. Relia a phrase da carta e a do discurso; tinha medo de o +ver perder a carreira politica, se era a politica que o faria grande +homem. «Emancipado o preto, resta emancipar o branco», era uma ameaça +ao imperador e ao imperio. + +Não atinou... Nem sempre as mães atinam. Não atinou que a phrase do +discurso não era propriamente do filho; não era de ninguem. alguem a +proferiu um dia, em discurso ou conversa, em gazeta ou em viagem de +terra ou de mar. Outrem a repetiu, até que muita gente a fez sua. Era +nova, era energica, era expressiva, ficou sendo patrimonio commum. + +Ha phrases assim felizes. Nascem modestamente, como a gente pobre; +quando menos pensam, estão governando o mundo, á semelhança das ideias. +As proprias ideias nem sempre conservam o nome do pae; muitas apparecem +orphãs, nascidas de nada e de ninguem. Cada um pega dellas, verte-as +como póde, e vae leval-as á feira, onde todos as têm por suas. + + + + +CAPITULO XXXVIII + + +Chegada a proposito + + +Quando, ás duas horas da tarde do dia seguinte, Natividade se metteu no +bonde, para ir a não sei que compras na rua do Ouvidor, levava a phrase +comsigo. A vista da enseada não a distraiu, nem a gente que passava, +nem os incidentes da rua, nada; a phrase ia diante e dentro della, com +o seu aspecto e tom de ameaça. No Cattete, alguem entrou de salto, +sem fazer parar o vehiculo. Adivinha que era o conselheiro; adivinha +tambem que, posto o pé no estribo, e vendo logo adiante a nossa amiga, +caminhou para lá rapido e acceitou a ponta do banco que ella lhe +offereceu. Depois dos primeiros comprimentos: + +--Pareceu-me vel-a olhar assustada, disse Ayres. + +--Naturalmente, não imaginei que fosse capaz deste acto de gymnastica. + +--Questão de costume. As pernas saltam por si mesmas. Um dia, deixam-me +cair, as rodam passam por cima... + +--Fosse como fosse, chegou a proposito. + +--Chego sempre a proposito. Já lhe ouvi isso, uma vez, ha muitos +annos, ou foi a sua irmã... Ora, espere, não me esqueceu o motivo; +creio que falavam da cabocla do Castello. Não se lembra de uma tal ou +qual cabocla que morava no Castello, e adivinhava a sorte da gente? +Eu estava aqui de licença, e ouvi dizer cousas do arco da velha. Como +sempre tive fé em Sybillas, acreditei na cabocla. Que fim levou ella? + +Natividade olhou para elle, como receiando se teria adivinhado então +a consulta que ella fez á cabocla. Pareceu-lhe que não, sorriu e +chamou-lhe incredulo. Ayres negou que fosse incredulo; ao contrario, +sendo tolerante, professava virtualmente todas as crenças deste mundo. +E concluiu: + +--Mas, emfim, porque é que chego a proposito? + +Ou o passado, ou a pessoa, com as suas maneiras discretas e espirito +repousado, ou tudo isso junto, dava a este homem, relativamente a esta +senhora, uma confiança que ella não achava agora em ninguem, ou acharia +em poucos. Falou-lhe de uma confidencia, um papel que não mostraria ao +marido. + +--Quero um conselho, conselheiro; e demais, para que incommodar a meu +marido? Quando muito, contarei o negocio a mana Perpetua. Acho melhor +não dizer nada a Agostinho. + +Ayres concordou que não valia a pena aborrecel-o se era caso disso, e +esperou. Natividade, sem falar da cabocla, contou primeiro a rivalidade +dos filhos, já manifesta em politica, e tratando especialmente de +Paulo, repetiu-lhe a phrase da carta e perguntou o que compria fazer +mais util. Ayres entendeu que que eram ardores da mocidade. Que não +teimasse; teimando, elle mudaria de palavras, mas não de sentimentos. + +--Então crê que Paulo será sempre isto? + +--Sempre, não digo; tambem não digo o contrario. Baroneza, a senhora +exige respostas definitivas, mas diga-me o que é que ha definitivo +neste mundo, a não ser o voltarete de seu marido? Esse mesmo falha. +Ha quantos dias não sei o que é uma licença? É verdade que não tenho +apparecido. E depois, o prazer da conversação paga bem o das cartas. +Aposto que os homens casados que lá vão são de outro parecer? + +--Talvez. + +--Só os solteirões podem avaliar as ideias das mulheres. Um viuvo sem +filhos, como eu, vale por um solteirão; minto, aos sessenta annos, como +eu, vale por dous ou trez. Quanto ao joven Paulo, não pense mais no +discurso. tambem eu discursei em rapaz. + +--Já cuidei em casal-os. + +--Casar é bom, assentiu Ayres. + +--Não digo casar já, mas daqui a dous ou trez annos. Talvez faça +antes uma viagem com elles. Que lhe parece? Vamos lá, não me responda +repetindo o que eu digo. Quero o seu pensamento verdadeiro. Acha que +uma viagem?... + +--Acho que uma viagem... + +--Acabe. + +--As viagens fazem bem, mormente na edade delles. Formam-se para o +anno, não é? Pois então! Antes de começar qualquer carreira, casados ou +não, é util ver outras terras... Mas que necessidade tem a senhora de +ir com elles? + +--As mães... + +--Mas eu tambem (desculpe interrompel-a) mas eu tambem sou seu filho. +Não acha que o costume, o bom rosto, a graça, a affeição e todas as +prendas grisalhas que a adornam compõem uma especie maternidade? Eu +confesso-lhe que ficaria orphão. + +--Pois venha comnosco. + +--Ah! baroneza, para mim ja não ha mundo que valha um bilhete de +passagem. Vi tudo por varias linguas. Agora o mundo começa aqui no +caes da Gloria ou na rua do Ouvidor e acaba no cemiterio de S. João +Baptista. Ouço que ha uns mares tenebrosos para os lados da Ponta do +Cajú, mas eu sou um velho incredulo, como a senhora dizia ha pouco, +e não acceito essas noticias sem prova cabal e visual, e para ir +averigual-as, faltam-me pernas. + +--Sempre gracioso! Não as vi treparem agora? Sua irmã disse-me outro +dia que o senhor anda como aos trinta annos. + +--Rita exagera. Mas, voltando á viagem, a senhora ainda não comprou os +bilhetes? + +--Não. + +--Não os encommendou sequer? + +--Tambem não. + +--Então, pensemos em outra cousa. Cada dia traz a sua occupação, quanto +mais as semanas e os mezes. Pensemos em outra cousa, e deixe lá o Paulo +pedir a republica. + +Natividade achou comsigo que elle tinha razão; depois, pensou em +outra cousa, e esta foi a ideia do principio. Não disse logo o que +era; preferiu conversar alguns minutos. Não era difficil com este +sujeito. Uma das suas qualidades era falar com mulheres, sem descair na +banalidade nem subir ás nuvens; tinha um modo particular, que não sei +se estava na ideia, se no gesto, se na palavra. Não é que falasse mal +de ninguem, e aliás seria uma distracção. Quero crêr que não dissesse +mal por indifferença ou cautella; provisoriamente, ponhamos caridade. + +--Mas, a senhora ainda me não disse o que queria de mim, além do +conselho. Ou não quer mais nada? + +--Custa-me pedir-lhe. + +--Peça sempre. + +--Sabe que os meus dous gemeos não combinam em nada, ou só em pouco, +por mais esforços que eu tenha feito para os trazer a certa harmonia. +Agostinho não me ajuda; tem outros cuidados. Eu mesma já não me sinto +com forças, e então pensei que um amigo, um homem moderado, um homem de +sociedade, habil, fino, cautelloso, intelligente, instruido... + +--Eu, em summa? + +--Adivinhou. + +--Não adivinhei; é o meu retrato em pessoa. Mas então que lhe parece +que possa fazer? + +--Póde corrigil-os por boas maneiras, fazel-os unidos, ainda quando +discordem, e que discordem pouco ou nada. Não imagina; parece até +proposito. Não discordam da côr da lua, por exemplo, mas aos onze +annos, Pedro descobriu que as sombras da lua eram nuvens, e Paulo +que eram falhas da nossa vista, e atracaram-se; eu é que os separei. +Imagine em politica... + +--Imagine em amores, diga logo; mas não é propriamente para este caso... + +--Oh! não! + +--Para os outros é egualmente inutil, mas eu nasci para servir, ainda +inutilmente. Baroneza, o seu pedido equivale a nomear-me aio ou +preceptor... Não faça gestos; não me dou por diminuido. Comtanto que +me pague os ordenados... E não se assuste; peço pouco, pague-me em +palavras; as suas palavras são de ouro. Já lhe disse que toda a minha +acção é inutil. + +--Porque? + +--É inutil. + +--Uma pessoa de autoridade, como o senhor, póde muito, comtanto que os +ame, por que elles são bons, creia. Conhece-os bem? + +--Pouco. + +--Conheça-os mais e verá. + +Ayres concordou rindo. Para Natividade valia por uma tentativa nova. +Confiava na acção do conselheiro, e para dizer tudo... Não sei se +diga... Digo. Natividade contava com a antiga inclinação do velho +diplomata. As cans não lhe tirariam o desejo de a servir. Não sei quem +me lê nesta occasião. Se é homem, talvez não entenda logo, mas se é +mulher creio que entenderá. Se ninguem entender, paciencia; baste saber +que elle prometteu o que ella quiz, e tambem prometteu calar-se; foi a +condição que a outra lhe poz. Tudo isso polido, sincero e incredulo. + + + + +CAPITULO XXXIX + + +Um gatuno + + +Chegaram ao largo da Carioca, apearam-se e despediram-se; ella entrou +pela rua Gonçalves Dias, elle enfiou pela da Carioca. No meio desta, +Ayres encontrou um magote de gente parada, logo depois andando em +direcção ao largo. Ayres quiz arrepiar caminho, não de medo, mas de +horror. Tinha horror á multidão. Viu que a gente era pouca, cincoenta +ou sessenta pessoas, e ouviu que bradava contra a prisão de um homem. +Entrou n'um corredor, á espera que o magote passasse. Duas praças +de policia traziam o preso pelo braço. De quando em quando, este +resistia, e então era preciso arrastal-o ou forçal-o por outro methodo. +Tratava-se, ao que parece, do furto de uma carteira. + +--Não furtei nada! bradava o preso detendo o passo. É falso! +Larguem-me! sou um cidadão livre! Protesto! protesto! + +--Siga para a estação! + +--Não sigo! + +--Não siga! bradava a gente anonyma. Não siga! não siga! + +Uma das praças quiz convencer a multidão que era verdade, que o sujeito +furtara uma carteira, e o desassocego pareceu minorar um pouco; mas, +indo a praça a andar com a outra e o preso,--cada uma pegando-lhe um +dos braços, a multidão recomeçou a bradar contra a violencia. O preso +sentiu-se animado, e ora lastimoso, ora aggressivo, convidava a defeza. +Foi então que a outra praça desembainhou a espada para fazer um claro. +A gente voou, não airosamente, como a andorinha ou a pomba, em busca +do ninho ou do alimento, voou de atropello, pula aqui, pula alli, pula +acolá, para todos os lados. A espada entrou na bainha, e o preso seguiu +com as praças. Mas logo os peitos tomaram vingança das pernas, e um +clamor ingente, largo, desaffrontado, encheu a rua e a alma do preso. A +multidão fez-se outra vez compacta e caminhou para a estação policial. +Ayres seguiu caminho. + +A vozeria morreu pouco a pouco, e Ayres entrou na Secretaria do +Imperio. Não achou o ministro, parece, ou a conferencia foi curta. +Certo é que, saindo á praça, encontrou partes do magote que tornavam +commentando a prisão e o ladrão. Não diziam ladrão, mas gatuno, fiando +que era mais doce, e tanto bradavam ha pouco contra a acção das praças, +como riam agora das lastimas do preso. + +--Ora o sujeito! + +Mas então?... perguntarás tu. Ayres não perguntou nada. Ao cabo, havia +um fundo de justiça naquella manifestação dupla e contradictoria; foi o +que elle pensou. Depois, imaginou que a grita da multidão protestante +era filha de um velho instincto de resistencia á autoridade. Advertiu +que o homem, uma vez creado, desobedeceu logo ao Creador, que aliás +lhe dera um paraiso para viver; mas não ha paraiso que valha o gosto +da opposição. Que o homem se acostume ás leis, vá; que incline o collo +á força e ao bel-prazer, vá tambem; é o que se dá com a planta, quando +sopra o vento. Mas que abençoe a força e cumpra as leis sempre, sempre, +sempre, é violar a liberdade primitiva, a liberdade do velho Adão. Ia +assim cogitando o conselheiro Ayres. + +Não lhe attribuam todas essas ideias. Pensava assim, como se falasse +alto, á mesa ou na sala de alguem. Era um processo de critica mansa e +delicada, tão convencida em apparencia, que algum ouvinte, á cata de +ideias, acabava por lhe apanhar uma ou duas... + +Ia a descer pela rua Sete de Setembro, quando a lembrança da vozeria +trouxe a de outra, maior e mais remota. + + + + +CAPITULO XL + + +Recuerdos + + +Essa outra vozeria maior e mais remota não caberia aqui, se não fosse +a necessidade de explicar o gesto repentino com que Ayres parou na +calçada. Parou, tornou a si e continuou a andar com os olhos no chão e +a alma em Caracas. Foi em Caracas, onde elle servira na qualidade de +addido de legação. Estava em casa, de palestra com uma actriz da moda, +pessoa chistosa e garrida. De repente, ouviram um clamor grande, vozes +tumultuosas, vibrantes, crescentes... + +--Que rumor é este, Carmen? perguntou elle entre duas caricias. + +--Não se assuste, amigo meu; é o governo que cae. + +--Mas eu ouço acclamações... + +--Então é o governo que sobe. Não se assuste. Amanhã é tempo de ir +comprimental-o. + +Ayres deixou-se ir rio abaixo daquella memoria velha, que lhe surdia +agora do alarido de cincoenta ou sessenta pessoas. Essa especie de +lembranças tinha mais effeito nelle que outras. Recompoz a hora, o +logar e a pessoa da sevilhana. Carmen era de Sevilla. O ex-rapaz ainda +agora recordava a cantiga popular que lhe ouvia, á despedida, depois de +rectificar as ligas, compôr as saias, e cravar o pente no cabello,--no +momento em que ia deitar a mantilha, meneando o corpo com graça: + + Tienen las sevillanas, + En la mantilla, + Um letrero que dice: + Viva Sevilla! + + +Não posso dar a toada, mas Ayres ainda a trazia de cór, e vinha a +repetil-a comsigo, vagarosamente, como ia andando. Outrosim, meditava +na ausencia de vocação diplomatica. A ascenção de um governo,--de +um regimen que fosse,--com as suas ideias novas, os seus homens +frescos, leis e acclamações, valia menos para elle que o riso da joven +comediante. Onde iria ella? A sombra da moça varreu tudo o mais, a +rua, a gente, o gatuno, para ficar só deante do velho Ayres, dando aos +quadris e cantarolando a trova andaluza: + + Tienen las sevillanas + En la mantilla... + + + + +CAPITULO XLI + + +Caso do burro + + +Se Ayres obedecesse ao seu gosto, e eu a elle, nem elle continuaria a +andar, nem eu começaria este capitulo; ficariamos no outro, sem nunca +mais acabal-o. Mas não ha na memoria que dure, se outro negocio mais +forte puxa pela attenção, e um simples burro fez desapparecer Carmen e +a sua trova. + +Foi o caso que uma carroça estava parada, ao pé da travessa de S. +Francisco, sem deixar passar um carro, e o carroceiro dava muita +pancada no burro da carroça. Vulgar embora, este espectaculo fez +parar o nosso Ayres, não menos condoido do asno que do homem. A força +despendida por este era grande, porque o asno ruminava se devia ou não +sair do logar; mas, não obstante esta superioridade, apanhava que era o +diabo. Já havia algumas pessoas paradas, mirando. Cinco ou seis minutos +durou esta situação; finalmente o burro preferiu a marcha á pancada, +tirou a carroça do logar e foi andando. + +Nos olhos redondos do animal viu Ayres uma expressão profunda de +ironia e paciencia. Pareceu-lhe o gesto largo de espjrito invencivel. +Depois leu nelles este monologo: «Anda, patrão, atalha a carroça de +carga para ganhar o capim de que me alimentas. Vive de pé no chão para +comprar as minhas ferraduras. Nem por isso me impedirás que te chame um +nome feio, mas eu não te chamo nada; ficas sendo sempre o meu querido +patrão. Emquanto te esfalfas em ganhar a vida, eu vou pensando que o +teu dominio não vale muito, uma vez que me não tiras a liberdade de +teimar... + +--Vê-se, quasi que se lhe ouve a reflexão, notou Ayres comsigo. + +Depois ria de si para si, e foi andando. Inventára tanta cousa no +serviço diplomatico, que talvez inventasse o monologo do burro. Assim +foi; não lhe leu nada nos olhos, a não ser a ironia e a paciencia, mas +não se pôde ter que lhes não désse uma forma de palavra, com as suas +regras de syntaxe. A propria ironia estaria acaso na retina delle. O +olho do homem serve de photographia ao invisivel, como o ouvido serve +de eco ao silencio. Tudo é que o dono tenha um lampejo de imaginação +para ajudar a memoria a esquecer Caracas e Carmen, os seus beijos e +experiencia politica. + + + + +CAPITULO XLII + + +Uma hypothese + + +Visões e reminiscencias iam assim comendo o tempo e o espaço ao +conselheiro, a ponto de lhe fazerem esquecer o pedido de Natividade; +mas não o esqueceu de todo, e as palavras trocadas ha pouco surdiam-lhe +das pedras da rua. Considerou que não perdia muito em estudar os +rapazes. Chegou a apanhar uma hypothese, especie de andorinha, que +avoaça entre arvores, abaixo e acima, pousa aqui, pousa alli, arranca +de novo um surto e toda se despeja em movimentos. Tal foi a hypothese +vaga e colorida, a saber, que se os gemeos tivessem nascido delle +talvez não divergissem tanto nem nada, graças ao equilibrio do seu +espirito. A alma do velho entrou a ramalhar não sei que desejos +retrospectivos, e a rever essa hypothese, outra Caracas, outra Carmen, +elle pae, estes meninos seus, toda a andorinha que se dispersava n'um +farfalhar calado de gestos. + + + + +CAPITULO XLIII + + +O discurso + + +Natividade é que não teve distracções de especie alguma. Toda ella +estava nos filhos, e agora especialmente na carta e no discurso. +Começou por não dar resposta ás effusões politicas de Paulo; foi um +dos conselhos do conselheiro. Quando o filho tornou pelas ferias tinha +esquecido a carta que escrevêra. O discurso é que elle não esqueceu, +mas quem é que esquece os discursos que faz? Se são bons, a memoria os +grava em bronze; se ruins, deixam tal ou qual amargor que dura muito. O +melhor dos remedios, no segundo caso, é suppol-os excellentes, e, se a +razão não acceita esta imaginação, consultar pessoas que a acceitem, e +crêr nellas. A opinião é um velho oleo incorruptivel. + +Paulo tinha talento. O discurso daquelle dia podia peccar aqui ou alli +por alguma emphasis, e uma ou outra ideia vulgar e exhausta. Tinha +talento Paulo. Em summa, o discurso era bom. Santos achou-o excellente, +leu-o aos amigos e resolveu transcrevel-o nos jornaes. Natividade não +se oppoz, mas entendia que algumas palavras deviam ser cortadas. + +--Cortadas, porque? perguntou Santos, e ficou esperando a resposta. + +--Pois você não vê, Agostinho; estas palavras tem sentido republicano, +explicou ella relendo a phrase que a affligira. + +Santos ouviu-as ler, leu-as para si, e não deixou de lhe achar razão. +Entretanto, não havia de as supprimir. + +--Pois não se transcreve o discurso. + +--Ah! isso não! O discurso é magnifico, e não ha de morrer em S. Paulo; +é preciso que a Côrte o leia, e as provincias tambem, e até não se me +daria fazel-o traduzir em francez. Em francez, póde ser que fique ainda +melhor. + +--Mas, Agostinho, isto póde fazer mal á carreira do rapaz; o imperador +póde ser que não goste... + +Pedro, que assistia desde alguns instantes ao debate, interveiu +docemente para dizer que os receios da mãe não tinham base; era bom por +a phrase toda, e, a rigor, não difteria muito do que os liberaes diziam +em 1848. + +--Um monarchista liberal póde muito bem assignar esse trecho, concluiu +elle depois de reler as palavras do irmão. + +--Justamente! assentiu o pae. + +Natividade, que em tudo via a inimizade dos gemeos, suspeitou que o +intuito de Pedro fosse justamente comprometter Paulo. Olhou para elle +a ver se lhe descobria essa intenção torcida, mas a cara do filho +tinha então o aspecto do enthusiasmo. Pedro lia trechos do discurso, +accentuando as bellezas, repetindo as phrases mais novas, cantando as +mais redondas, revolvendo-as na bôca, tudo com tão boa sombra que a mãe +perdeu a suspeita, e a reimpressão do discurso foi resolvida. Tambem +se tirou uma edição em folheto, e o pae mandou encadernar ricamente +sete exemplares, que levou aos ministros, e um ainda mais rico para a +Regente. + +--Você diga-lhe, aconselhou Natividade, que o nosso Paulo é liberal +ardente... + +--Liberal de 1848, completou Santos lembrando as palavras de Pedro. + +Santos cumpriu tudo á risca. A entrega se fez naturalmente, e, no +palacio Isabel, a definição do «liberal de 1848» saiu mais viva que +as outras palavras, ou para diminuir o cheiro revolucionario da +phrase condemnada pela mulher, ou porque trazia valor historico. +Quando elle voltou a casa, a primeira cousa que lhe disse foi que a +Regente perguntara por ella, mas apesar de lisongeada com a lembrança, +Natividade quiz saber da impressão que lhe fizera o discurso, se já o +lêra. + +--Parece que foi boa. Disse-me que já havia lido o discurso. Nem por +isso deixei de lhe dizer que os sentimentos de Paulo eram bons; que, se +lhes notavamos certo ardor, comprehendiamos sempre que elles eram os de +um liberal de 1848... + +--Papae disse isso? perguntou Pedro. + +--Porque não, se é verdade? Paulo é o que se póde chamar um liberal de +1848, repetiu Santos querendo convencer o filho. + + + + +CAPITULO XLIV + + +O salmão + + +Pelas férias é que Paulo soube da interpretação que o pae dera á +Regente daquelle trecho do discurso. Protestou contra ella, em casa; +quiz fazel-o tambem em publico, mas Natividade interveiu a tempo. Ayres +pôz agua na fervura, dizendo ao futuro bacharel: + +--Não vale a pena, moço; o que importa é que cada um tenha a suas +ideias e se bata por ellas, até que ellas vençam. Agora que outros as +interpretem mal é cousa que não deve affligir o autor. + +--Affligir, sim, senhor; pôde parecer que é assim mesmo... Vou escrever +um artigo a proposito de qualquer cousa, e não deixarei duvidas... + +--Para que? inquiriu Ayres. + +--Não quero que supponham... + +--Mas quem duvida dos seus sentimentos? + +--Podem duvidar. + +--Ora, qual! Em todo caso, vá primeiro almoçar commigo um dia destes... +Olhe, vá domingo, e seu irmão Pedro tambem. Seremos trez á meza, um +almoço de rapazes. Beberemos certo vinho que me deu o ministro da +Allemanha... + +No domingo fôram os dous ao Cattete, menos pelo almoço que pelo +amphytrião. Ayres era amado dos dous; gostavam de ouvil-o, de +interrogal-o, pediam-lhe anecdotas politicas de outro tempo, descripção +de festas, noticias de sociedade. + +--Vivam os meus dous jovens, disse o conselheiro, vivam os meus dous +jovens que não esqueceram o amigo velho. Papae como está? E mamãe? + +--Estão bons, disse Pedro. + +Paulo accrescentou que ambos lhe mandavam lembranças. + +--E tia Perpetua? + +--Tambem está boa, disse Paulo. + +--Sempre com a homoepathia e as suas historias do Paraguay, +accrescentou Pedro. + +Pedro estava alegre, Paulo preoccupado. Depois das primeiras saudações +e noticias, Ayres notou essa differença, e achou que era bom para tirar +a monotonia da semelhança; mas, emfim, não queria caras fechadas, e +indagou do estudante de direito o que é que elle tinha. + +--Nada. + +--Não póde ser; acho-lhe um ar meio sorumbatico. Pois eu acordei +disposto a rir, e desejo que ambos riam commigo. + +Paulo rosnou uma palavra que nenhum delles entendeu e saccou do bolso +um maço de folhas de de papel. Era um artigo... + +--Um artigo? + +--Um artigo em que tiro todas as duvidas a meu respeito, e peço ao +senhor que me ouça, é pequeno. Escrevi-o a noite passada. + +Ayres propoz ouvil-o depois do almoço, mas o rapaz pediu que fosse +logo, e Pedro concordou com esto alvitre, allegando que, sobre o +almoço, podia perturbar a digestão, como ruim droga que devia ser, +naturalmente. Ayres metteu o caso á bulha e acceitou ouvir o artigo. + +--É pequeno, sete tiras. + +--Letra miuda? + +--Não, senhor; assim, assim. + +Paulo leu o artigo. Tinha por epigraphe isto de Amós: «Ouvi esta +palavra, vaccas gordas que estaes no monte de Samaria...» As vaccas +gordas eram o pessoal do regimen, explicou Paulo. Não atacava o +imperador, por attenção á mãe, mas com o principio e o pessoal era +violento e aspero. Ayres sentiu-lhe aquillo que, em tempo, se chamou «a +bossa da combatividade». Quando Paulo acabou, Pedro disse em ar de mofa: + +--Conheço tudo isso, são ideias paulistas. + +--As tuas são ideias coloniaes, replicou Paulo. + +Deste introito podiam nascer peores palavras, mas felizmente um criado +chegou á porta annunciando que o almoço estava na mesa. Ayres ergueu-se +e disse que á mesa daria a sua opinião. + +--Primeiro o almoço, tanto mais que temos um salmão, cousa especial. +Vamos a elle. + +Ayres queria cumprir deveras o officio que acceitara de Natividade. +Quem sabe se a ideia de pae espiritual dos gemeos, pae de desejo +somente, pae que não foi, que teria sido, não lhe dava uma affeição +particular e um dever mais alto que o de simples amigo? Nem é fóra de +proposito que elle buscasse sómente materia nova para as paginas nuas +de seu _Memorial._ + +Ao almoço, ainda se falou do artigo, Paulo com amor, Pedro com desdem, +Ayres sem uma nem outra cousa. O almoço ia fazendo o seu officio. Ayres +estudava os dous rapazes e suas opiniões. Talvez estas não passassem de +uma erupção de pelle da edade. E sorria, fazia-os comer e beber, chegou +a falar de moças, mas aqui os rapazes, vexados e respeitosos, não +acompanharam o ex-ministro. A politica veiu morrendo. Na verdade, Paulo +ainda se declarou capaz de derribar a monarchia com dez homens, e Pedro +de extirpar o germen republicano com um decreto. Mas o ex-ministro, sem +mais decreto que uma caçarola, nem mais homens que o seu cozinheiro, +envolveu os dous regimens no mesmo salmão delicioso. + + + + +CAPITULO XLV + + +Musa, canta... + + +No fim do almoço, Ayres deu-lhes uma citação de Homero, aliás duas, uma +para cada um, dizendo-lhes que o velho poeta os cantara separadamente, +Paulo no começo da _Illiada_: + +--«Musa, canta a colera de Achilles, filho de Peleu, colera funesta aos +gregos, que precipitou á estancia de Plutão tantas almas válidas de +heroes, entregues os corpos ás aves e aos cães...» + +Pedro estava no começo da _Odyssea_: + +--«Musa, canta aquelle heroe astuto, que errou por tantos tempos, +depois de destruida a santa Illion...» + +Era um modo de definir o caracter de ambos, e nenhum delles levou +a mal a applicação. Ao contrario, a citação poetica valia por um +diploma particular. O facto é que ambos sorriram de fé, de acceitação, +de agradecimento, sem que achassem uma palavra ou syllaba com que +desmentissem o adequado dos versos. Que elle, o conselheiro, depois de +os citar em prosa nossa, repetiu-os no proprio texto grego e os dous +gemeos sentiram-se ainda mais épicos, tão certo é que traducções não +valem originaes. O que elles fizeram foi dar um sentido deprimente ao +que era applicavel ao irmão: + +--Tem razão, Sr. conselheiro,--disse Paulo,--Pedro é um velhaco... + +--E você é um furioso... + +--Em grego, meninos, em grego e em verso, que é melhor que a nossa +lingua e a prosa do nosso tempo. + + + + +CAPITULO XLVI + + +Entre um acto e outro + + +Aquelles almoços repetiram-se, os mezes passaram, vieram férias, +acabaram-se férias, e Ayres penetrava bem os gemeos. Escrevia-os no +_Memorial_, onde se lê que a consulta ao velho Placido dizia respeito +aos dous, e mais a ida á cabocla do Castello e a briga antes de nascer, +casos velhos e obscuros que elle relembrou, ligou e decifrou. + +Emquanto os mezes passam, faze de conta que estás no theatro, entre um +acto e outro, conversando. Lá dentro preparam a scena, e os artistas +mudam de roupa. Não vás lá; deixa que a dama, no camarim, ria com os +seus amigos o que chorou cá fóra com os espectadores. Quanto ao jardim +que se está fazendo, não te exponhas a vel-o pelas costas; é pura lona +velha sem pintura, porque só a parte do espectador é que tem verdes e +flores. Deixa-te estar cá fóra no camarote desta senhora. Examina-lhe +os olhos; tem ainda as lagrimas que lhe arrancou a a dama da peça. +Fala-lhe da peça e dos artistas. Que é obscura. Que não sabem os +papeis. Ou então que que é tudo sublime. Depois percorre os camarotes +com o binoculo, distribue justiça, chama bellas ás bellas e feias ás +feias, e não te esqueças de contar anecdotas que desfeiem as bellas, +e virtudes que componham as feias. As virtudes devem ser grandes e +as anecdotas engraçadas. Tambem as ha banaes, mas a mesma banalidade +na bôca de um bom narrador faz-se rara e preciosa. E verás como as +lagrimas séccam inteiramente, e a realidade substitue a ficção. Falo +por imagem; sabes que tudo aqui é verdade pura e sem choro. + + + + +CAPITULO XLVII + + +S. Matheus, IV, 1-10 + + +Se ha muito riso quando um partido sobe, tambem ha muita lagrima do +outro que desce, e do riso e da lagrima se faz o primeiro dia da +situação, como no Genesis. Venhamos ao evangelista que serve de titulo +ao capitulo. Os liberaes fôram chamados ao poder, que os conservadores +tiveram de deixar. Não é mister dizer que o abatimento de Baptista foi +enorme. + +--Justamente agora que eu tinha esperanças, disse elle á mulher. + +--De quê? + +--Ora de quê! de uma presidencia. Não disse nada, porque podiam falhar, +mas é quasi certo que não. Tive duas conferencias, não com ministros, +mas com pessoa influente que sabia, e era negocio de esperar um mez ou +dous... + +--Presidencia boa? + +--Boa. + +--Se você tivesse trabalhado bem... + +--Se tivesse trabalhado bem, podia estar já de posse, mas vinhamos +agora a toque de caixa. + +--Isso é verdade, concordou D. Claudia olhando para o futuro. + +Baptista passeava, as mãos nas costas, os olhos no chão, suspirando, +sem prever o tempo em que os conservadores tornariam ao poder. Os +liberaes estavam fortes e resolutos. As mesmas ideias pairavam na +cabeça de D. Claudia. Este casal só não era egual na vontade; as ideias +eram muitas vezes taes que, se apparecessem cá fóra, ninguem diria +quaes eram as delle, nem quaes as della, pareciam vir de um cerebro +unico. Naquelle momento nenhum achava esperança immediata ou remota. +Uma só ideia vaga... E foi aqui que a vontade de D. Claudia fincou os +pés no chão e cresceu. Não falo só por imagem; D. Claudia levantou-se +da cadeira, rapida, e disparou esta pergunta ao marido: + +--Mas, Baptista, você o que é que espera mais dos conservadores? + +Baptista parou com um ar digno e respondeu com simplicidade: + +--Espero que subam. + +--Que subam? Espera oito ou dez annos, o fim do seculo, não é? E nessa +occasião você sabe se será aproveitado? Quem se lembrará de você? + +--Posso fundar um jornal. + +--Deixe-se de jornaes. E se morrer? + +--Morro no meu posto de honra. + +D. Claudia olhou fixa para elle. Os seus olhos miudos enterravam-se +pelos delle abaixo, como duas verrumas pacientes. Subito, levantando as +mãos abertas: + +--Baptista, você nunca foi conservador! + +O marido empallideceu e recuou, como se ouvira a propria ingratidão de +um partido. Nunca fôra conservador? Mas que era elle então, que podia +ser neste mundo? Que é que lhe dava a estima dos seus chefes? Não lhe +faltava mais nada... D. Claudia não attendeu a explicações; repetiu-lhe +as palavras, e accrescentou. + +--Você estava com elles, Como a gente está n'um baile, onde não é +preciso ter as mesmas ideias para dançar a mesma quadrilha. + +Baptista sorriu leve e rapido; amava as imagens graciosas e aquella +pareceu-lhe graciosissima, tanto que concordou logo; mas a sua estrella +inspirou-lhe uma refutação prompta. + +--Sim, mas a gente não dança com ideias, dança com pernas. + +--Dance com que fôr, a verdade é que todas as suas ideias iam para os +liberaes; lembre-se que os dissidentes na provincia accusavam a você de +apoiar os liberaes... + +--Era falso; o governo é que me recommendava moderação. Posso mostrar +cartas. + +--Qual moderação! Você é liberal. + +--Eu liberal? + +--Um liberalão, nunca foi outra cousa. + +--Pense no que diz, Claudia. Se alguem a ouvir é capaz de crêr, e dahi +a espalhar... + +--Que tem que espalhe? Espalha a verdade, espalha a justiça, porque os +seus verdadeiros amigos não o hão de deixar na rua, agora que tudo se +organisa. Você tem amigos pessoaes no ministerio; porque é que os não +procura? + +Baptista recuou com horror. Isto de subir as escadas do poder e +dizer-lhe que estava ás ordens não era concebivel sequer. D. Claudia +admittiu que não, mas um amigo faria tudo, um amigo intimo do governo +que dissesse ao Ouro-Preto: «Visconde, você porque é que não convida +o Baptista? Foi sempre liberal nas ideias. Dê-lhe uma presidencia, +pequena que seja, e...» + +Baptista fez um gesto de hombros, outro de mão que se calasse. A +mulher não se calou; foi dizendo as mesmas cousas, agora mais graves +pela insistencia e pelo tom. Na alma do marido a catastrophe era já +tremenda. Pensando bem, não recusaria passar o Rubicon; só lhe faltava +a força necessaria. Quizera querer. Quizera não ver nada, nem passado, +nem presente, nem futuro, não saber de homens nem de cousas, e obedecer +aos dados da sorte, mas não podia. + +E façamos justiça ao homem. Quando elle pensava só na fidelidade aos +amigos sentia-se melhor; a mesma fé existia, o mesmo costume, a mesma +esperança. O mal vinha de olhar para o lado de lá; e era D. Claudia que +lhe mostrava com o dedo a carreira, a alegria, a vida, a marcha certa e +longa, a presidencia, o ministerio... Elle torcia os olhos e ficava. + +A sós comsigo, Baptista pensou muita vez na situação pessoal e +politica. Apalpava-se moralmente. Claudia podia ter razão. Que é que +havia nelle propriamente conservador, a não ser esse instincto de +toda creatura, que a ajuda a levar este mundo? Viu-se conservador em +politica, porque o pae o era, o tio, os amigos da casa, o vigario da +parochia, e elle começou na escola a execrar os liberaes. E depois não +era propriamente conservador, mas _saquarema_, como os liberaes eram +_luzias._ Baptista agarrava-se agora a estas designações obsoletas e +deprimentes que mudavam o estylo aos partidos; donde vinha que hoje +não havia entre elles o grande abysmo de 1842 e 1848. E lembrava-se +do visconde de Albuquerque ou de outro senador que dizia em discurso +não haver nada mais parecido com um conservador que um liberal, e +vice-versa. E evocava exemplos, o partido progressista, Olinda, Nabuco, +Zacharias, que fôram elles senão conservadores que comprehenderam +os tempos novos e tiraram ás ideias liberaes aquelle sangue das +revoluções, para lhes pôr uma côr viva, sim, mas serena. Nem o mundo +era dos emperrados... Neste ponto passou-lhe um frio pela espinha. +Justamente nessa occasião appareceu Flora. O pae abraçou-a com amor, e +perguntou-lhe se queria ir para alguma provincia, sendo elle presidente. + +--Mas os conservadores não cairam? + +--Cairam, sim, mas suppõe que... + +--Ah! não, papae! + +--Não, porquê? + +--Não desejo sair do Rio de Janeiro. + +Talvez o Rio de Janeiro para ella fosse Botafogo, e propriamente a +casa de Natividade. O pae não apurou as causas da recusa; suppol-as +politicas, e achou novas forças para resistir ás tentações de D. +Claudia: «Vae-te, Satanaz; porque escripto está: Ao Senhor teu Deus +adorarás, e a elle servirás.» E seguiu-se como na Escriptura: «Então +o deixou o Diabo; e eis que chegaram os anjos e o serviram.» Os anjos +fôram só um, que valia por muitos; e o pae lhe disse beijando-a +carinhosamente: + +--Muito bem, muito bem, minha filha. + +--Não é, papae? + +Não, não foi a filha que tolheu a deserção do pae. Ao contrario. +Baptista, se tivesse de ceder, cederia á mulher ou ao Diabo, synonimos +neste capitulo. Não cedeu de fraqueza. Não tinha a força precisa de +trahir os amigos, por mais que estes parecessem havel-o abandonado. +Ha dessas virtudes feitas de acanho e timidez, e nem por isso menos +lucrativas, moralmente falando. Não valem só stoicos e martyres. +Virtudes meninas tambem são virtudes. É certo, porém, que a linguagem +delle, em relação aos liberaes, não era já de odio ou impaciencia; +chegava á tolerancia, roçava pela justiça. Concordava que a alternação +dos partidos era um principio de necessidade publica. O que fazia era +animar os amigos. Tornariam cedo ao poder. Mas D. Claudia opinava o +contrario; para ella, os liberaes iriam ao fim do seculo. Quando muito, +admittiu que na primeira entrada não déssem logar a um converso da +ultima hora; era preciso esperar um anno ou dous, uma vaga na camara, +uma commissão, a vice-presidencia do Rio... + + + + +CAPITULO XLVIII + + +Terpsichore + + +Nenhuma dessas cousas preoccupava Natividade. Mais depressa cuidaria +do baile da ilha Fiscal, que se realisou em novembro para honrar os +officiaes chilenos. Não é que ainda dançasse, mas sabia-lhe bem ver +dançar os outros, e tinha agora a opinião de que a dança é um prazer +dos olhos. Esta opinião é um dos effeitos daquelle mau costume de +envelhecer. Não pegues tal costume, leitora. Ha outros tambem ruins, +nenhum peor, este é o pessimo. Deixa lá dizerem philosophos que a +velhice é um estado util pela experiencia e outras vantagens. Não +envelheças, amiga minha, por mais que os annos te convidem a deixar a +primavera; quando muito, acceita o estio. O estio é bom, callido, as +noites são breves, é certo, mas as madrugadas não trazem neblina, e o +céu apparece logo azul. Assim dançarás sempre. + +Bem sei que ha gente para quem a dança é antes um prazer dos olhos. Nem +as bailadeiras são outra cousa mais que mulheres de officio. Tambem +eu, se é licito citar alguem a si mesmo, tambem eu acho que a dança é +antes prazer dos olhos que dos pés, e a razão não é só dos annos longos +e grisalhos, mas tambem outra que não digo, por não valer a pena. Ao +cabo, não estou contando a minha vida, nem as minhas opiniões, nem +nada que não seja das pessoas que entram no livro. Estas é que preciso +pôr aqui integralmente com as suas virtudes e imperfeições, se as têm. +Entende-se isto, sem ser preciso notal-o, mas não se perde nada em +repetil-o. + +Por exemplo, D. Claudia. tambem ella pensava no baile da ilha Fiscal, +sem a menor ideia de dançar, nem a razão esthetica da outra. Para ella, +o baile da ilha era um facto politico, era o baile do ministerio, +uma festa liberal, que podia abrir ao marido as portas de alguma +presidencia. Via-se já com a familia imperial. Ouvia a princeza: + +--Como vae, D. Claudia? + +--Perfeitamente bem, Serenissima senhora. + +E Baptista conversaria com o imperador, a um canto, deante dos olhos +invejosos que tentariam ouvir o dialogo, á força de os fitarem de +longe. O marido é que... Não sei que diga do marido relativamente ao +baile da ilha. Contava lá ir, mas não se acharia a gosto; póde ser que +traduzissem esse acto por meia conversão. Não é que só fossem liberaes +ao baile, tambem iriam conservadores, e aqui cabia bem o aphorismo de +D. Claudia que não é preciso ter as mesmas ideias para dançar a mesma +quadrilha. + +Santos é que não precisava de ideias para dançar. Não dançaria sequer. +Em moço dançou muito, quadrilhas, polkas, valsas, a valsa arrastada +e a valsa pulada, como diziam então, sem que eu possa definir melhor +a differença; presumo que na primeira os pés não saiam de chão, e na +segunda não caiam do ar. Tudo isso até os vinte e cinco annos. Então os +negocios pegaram delle e o metteram naquella outra contradança, em que +nem sempre se volta ao mesmo logar ou nunca se sáe delle. Santos saiu +e já sabemos onde está. UItimamente teve a fantasia de ser deputado. +Natividade abanou a cabeça, por mais que elle explicasse que não queria +ser orador nem ministro, mas tão sómente fazer da camara um degrau para +o senado, onde possuia amigos, pessoas de merecimento, e que era eterno. + +--Eterno? interrompeu ella com um sorriso fino e descorado. + +--Vitalicio, quero dizer. + +Natividade teimou que não, que a posição delle era commercial e +bancaria. Accrescentou que politica era uma cousa e industria outra. +Santos replicou, citando o barão de Mauá, que as fundiu ambas. Então a +mulher declarou por um modo secco e duro que aos sessenta annos ninguem +começa a ser deputado. + +--Mas é de passagem; os senadores são edosos. + +--Não, Agostinho, concluiu a baroneza com um gesto definitivo. + +Não conto Ayres, que provavelmente dançaria, a despeito dos annos; +tambem não falo de D. Perpetua, que nem iria lá. Pedro iria, e é +natural que dançasse, e muito, não obstante o afinco e paixão dos +seus estudos. Vivia enfeitiçado pela medicina. No quarto de dormir, +além do busto de Hyppocrates, tinha os retratos de algumas summidades +medicas da Europa, muito esqueleto gravado, muita molestia pintada, +peitos cortados verticalmente para se lhe verem os vasos, cerebros +descobertos, um cancro de lingua, alguns aleijões, cousas todas que a +mãe, por seu gosto mandaria deitar fóra, mas era a sciencia do filho, e +bastava. Contentava-se de não olhar para os quadros. + +Quanto a Flora, ainda verde para os meneios de Terpsichore, era +acanhada ou arrepiada, como dizia a mãe. E isto era o menos; o mais +era que com pouco se enfadaria, e, se não pudesse vir logo para casa, +ficaria adoentada o resto do tempo. Note-se que, estando na ilha, teria +o mar em volta, e o mar era um dos seus encantos; mas, se lhe lembrasse +o mar, e se consolasse com a esperança de o mirar, advertiria tambem +que a noite escura tolheria a consolação. Que multidão de dependencias +na vida, leitor! Umas cousas nascem de outras, enroscam-se, desatam-se, +confundem-se, perdem-se, e o tempo vai andando sem se perder a si. + +Mas donde viria o tedio a Flora, se viesse? Com Pedro no baile, não; +este era, como sabes, um dos dous que lhe queriam bem. Salvo se ella +queria principalmente ao que estava em S. Paulo. Conclusão duvidosa, +pois não é certo que preferisse um a outro. Se já a vimos falar a +ambos com a mesma sympathia, o que fazia agora a Pedro na ausencia de +Paulo, e faria a Paulo na ausencia de Pedro, não me faltará leitora que +presuma um terceiro... Um terceiro explicaria tudo, um terceiro que não +fosse ao baile, algum estudante pobre, sem outro amigo nem mais casaca +que o coração verde e quente. Pois nem esse, leitora curiosa, nem +terceiro, nem quarto, nem quinto, ninguem mais. Uma exquisitona, como +lhe chamava a mãe. + +Não importa; a exquisitona foi ao baile da ilha Fiscal com a mãe e o +pae. Assim tambem Natividade, o marido e Pedro, assim Ayres, assim a +demais gente convidada para a grande festa. Foi uma bella ideia do +governo, leitor. Dentro e fóra, do mar e de terra, era como ura sonho +veneziano; toda aquella sociedade viveu algumas horas sumptuosas, novas +para uns, saudosas para outros, e de futuro para todos,--ou, quando +menos, para a nossa amiga Natividade--e para o conservador Baptista. + +Aquella considerava o destino dos filhos,--cousas futuras! Pedro bem +podia inaugurar, como ministro, o século XX e o terceiro reinado. +Natividade imaginava outro e maior baile naquella mesma ilha. Compunha +a ornamentação, via as pessoas e as danças, toda uma festa magna que +entraria na historia. Tambem ella alli estaria, sentada a um canto, +sem se lhe dar do peso dos annos, uma vez que visse a grandeza e a +prosperidade dos filhos. Era assim que enfiara os olhos pelo tempo +adiante, descontando no presente a felicidade futura, caso viesse a +morrer antes das prophecias, Tinha a mesma sensação que ora lhe dava +aquella cesta de luzes no meio da escuridão tranquilla do mar. + +A imaginação de Baptista era menos longa que a de Natividade. Quero +dizer que ia antes do principio do seculo, Deus sabe se antes do fim +do anno. Ao som da musica, á vista das galas, ouvia umas feiticeiras +cariocas, que se pareciam com as escossezas; pelo menos, as palavras +eram analogas ás que saudaram Macbeth:--«Salve, Baptista, ex-presidente +de provincia!»--«Salve, Baptista, proximo presidente de provincia!»-- +«Salve, Baptista, tu serás ministro um dia!» A linguagem dessas +prophecias era liberal, sem sombra de solecismo. Verdade é que elle se +arrependia de as escutar, e forcejava por traduzil-as no velho idioma +conservador, mas já lhe iam faltando diccionarios. A primeira palavra +ainda trazia o sotaque antigo: «Salve, Baptista, ex-presidente de +provincia!» mas a segunda e a ultima eram ambas daquella outra lingua +liberal, que sempre lhe pareceu lingua de preto. Emfim, a mulher, +como lady Macbeth, dizia nos olhos o que esta dizia pela bôca, isto +é, que já sentia em si aquellas futurações. O mesmo lhe repetiu na +manhã seguinte, em casa. Baptista, com um sorriso disfarçado, descria +das feiticeiras, mas a memoria guardava as palavras da ilha: «Salve, +Baptista, proximo presidente!» Ao que elle respondia com um suspiro: +Não, não, filhas do Diabo... + +Ao contrario do que ficou dito atraz, Flora não se aborreceu na ilha. +Conjecturei mal, emendo-me a tempo. Podia aborrecer-se pelas razões +que lá ficara, e ainda outras que poupei ao leitor apressado; mas, em +verdade, passou bem a noite. A novidade da festa, a visinhança do mar, +os navios perdidos na sombra, a cidade defronte com os seus lampiões de +gaz, embaixo e em cima, na praia e nos outeiros, eis ahi aspectos novos +que a encantaram durante aquellas horas rapidas. + +Não lhe faltavam pares, nem conversação, nem alegria alheia e propria. +Toda ella compartia da felicidade dos outros. Via, ouvia, corria, +esquecia-se do resto para se metter comsigo. Tambem invejava a princeza +imperial, que viria a ser imperatriz um dia, com o absoluto poder de +despedir ministros e damas, visitas e requerentes, e ficar só, no +mais recondito do paço, fartando-se de contemplação ou de musica. Era +assim que Flora definia o officio de governar. Taes ideias passavam e +tornavam. De uma vez alguem lhe disse, como para lhe dar força: «Toda +alma livre é imperatriz!» + +Não foi outra voz, semelhante á das feiticeiras do pae nem ás que +falavam interiormente a Natividade, acerca dos filhos. Não; seria pôr +aqui muitas vozes de mysterio, cousa que, além do fastio da repetição, +mentiria á realidade dos factos. A voz que falou a Flora saiu da bôca +do velho Ayres, que se fôra sentar ao pé d'ella e lhe perguntara: + +--Em que é que está pensando? + +--Em nada, respondeu Flora. + +Ora, o conselheiro tinha visto no rosto da moça a expressão de alguma +cousa e insistia por ella. Flora disse como pôde a inveja que lhe +mettia a vista da princeza, não para brilhar um dia, mas para fugir ao +brilho e ao mando, sempre que quizesse ficar subdita de si mesma. Foi +então que elle lhe murmurou, como acima: + +--Toda alma livre é imperatriz. + +A phrase era boa, sonora, parecia conter a maior somma de verdade que +ha na terra e nos planetas. Valia por uma pagina de Plutarcho. Se algum +politico a ouvisse poderia guardal-a para os seus dias de opposição +ao governo, quando viesse o terceiro reinado. Foi o que elle mesmo +escreveu no _Memorial._ Com esta nota: «A meiga creatura agradeceu-me +estas cinco palavras». + + + + +CAPITULO XLIX + + +Taboleta velha + + +Toda a gente voltou da ilha com o baile na cabeça muita sonhou com +elle, alguma dormiu mal ou nada. Ayres foi dos que acordaram tarde; +eram onze horas. Ao meio dia almoçou; depois escreveu no _Memorial_ as +impressões da vespera, notou varias espaduas, fez reparos politicos e +acabou com as palavras que lá ficam no cabo do outro capitulo. Fumou, +leu, até que resolveu ir á rua do Ouvidor. Como chegasse á vidraça +de uma das janellas da frente, viu á porta da confeitaria uma figura +inesperada, o velho Custodio, cheio de melancolia. Era tão novo o +espectaculo que alli se deixou estar por alguns instantes; foi então +que o confeiteiro, levantando os olhos, deu com elle entre as cortinas, +e emquanto Ayres voltava para dentro, Custodio atravessou a rua e +entrou-lhe em casa. + +--Que suba, disse o conselheiro ao criado. + +Custodio foi recebido com a benevolencia de outros dias e um pouco mais +de interesse. Ayres queria saber o que é que o entristecia. + +--Vim para contal-o a V.-Ex.; é a taboleta. + +--Que taboleta? + +--Queira V.-Ex. ver por seus olhos, disse o confeiteiro, pedindo-lhe o +favor de ir á janella. + +--Não vejo nada. + +--Justamente, é isso mesmo. Tanto me aconselharam que fizesse reformar +a taboleta que afinal consenti, e fil-a tirar por dous empregados. A +visinhança veiu para a rua assistir ao trabalho e parecia rir de mim. +Já tinha falado a um pintor da rua da Assembléa; não ajustei o preço +porque elle queria ver primeiro a obra. Hontem, á tarde, lá foi um +caixeiro, e sabe V.-Ex. o que me mandou dizer o pintor? Que a taboa +está velha, e precisa outra; a madeira não aguenta tinta. Lá fui ás +carreiras. Não pude convencel-o de pintar na mesma madeira; mostrou-me +que estava rachada e comida de bichos. Pois cá debaixo não se via. +Teimei que pintasse assim mesmo; respondeu-me que era artista e não +faria obra que se estragasse logo. + +--Pois reforme tudo. Pintura nova em madeira velha não vale nada. Agora +verá que dura pelo resto da nossa vida. + +--A outra tambem durava; bastava só avivar as letras. + +Era tarde, a ordem fora expedida, a madeira devia estar comprada, +serrada e pregada, pintado o fundo para então se desenhar e pintar +o titulo. Custodio não disse que o artista lhe perguntára pela côr +das letras, se vermelha, se amarella, se verde em cima de branco ou +vice-versa, e que elle, cautelosamente, indagára do preço de cada côr +para escolher as mais baratas. Não interessa saber quaes fôram. + +Quaesquer que fossem as côres, eram tintas novas, táboas novas, uma +reforma que elle, mais por economia que por affeição, não quizera +fazer; mas a affeição valia muito. Agora que ia trocar de taboleta +sentia perder algo do corpo,--cousa que outros do mesmo ou diverso ramo +de negocio não comprehenderiam, tal gosto acham em renovar as caras e +fazer crescer com ellas a nomeada. São naturezas. Ayres ia pensando em +escrever uma Philosophia das Taboletas, na qual poria taes e outras +observações, mas nunca deu começo a obra. + +--V.-Ex. hade-me perdoar o incommodo que lhe trouxe, vindo contar-lhe +isto, mas V.-Ex. é sempre tão bom commigo, fala-me com tanta amizade, +que eu me atrevi... Perdoa-me, sim? + +--Sim, homem de Deus. + +--Comquanto V.-Ex. approve a reforma da taboleta, sentirá commigo a +separação da outra, a minha amiga velha, que nunca me deixou, que eu, +nas noites de luminarias, por S. Sebastião e outras, fazia apparecer +aos olhos da gente. V.-Ex., quando se aposentou, veiu achal-a no mesmo +logar em que a deixou por occasião de ser nomeado. E tive alma para me +separar della! + +--Está bom, lá vae; agora é receber a nova, e verá como daqui a pouco +são amigos. + +Custodio saiu recuando, como era seu costume, e desceu tropego as +escadas. Deante da confeitaria deteve-se um instante, para ver o logar +onde estivera a taboleta velha. Deveras, tinha saudades. + + + + +CAPITULO L + + +O tinteiro de Evaristo + + +--...Este caso prova que tudo se póde amar muito bem, ainda um pedaço +de madeira velha. Creiam que não era só a despeza que elle naturalmente +sentia, eram tambem saudades. Ninguem se despega assim de um objecto +tão intimo, que faz parte integral da casa e da pelle, porque a +taboleta não foi sequer arriada um dia. Custodio não teve occasião de +ver se estava estragada. Vivia alli como as portadas e a parede. + +Era ao jantar, em Botafogo. Só quatro pessoas, as duas irmãs, Santos e +Ayres. Pedro fôra jantar a S. Clemente, com a familia Baptista. + +D. Perpetua approvou os sentimentos do confeiteiro. Citou, a proposito, +o tinteiro de Evaristo. A irmã sorriu para o marido, e este para a +mulher, como se dissessem: «lá vem elle!» Era um tinteiro que servira +ao famoso jornalista do primeiro reinado e da Regencia, obra simples, +feita de barro, egual aos tinteiros que a gente chã comprava nas lojas +de papel daquelle e deste tempo. O sogro de D. Perpetua, que lh'o dera +em lembrança, tivera um da mesma edade, massa e feição. + +--Veiu assim de mão em mão parar ás minhas. Não chega aos tinteiros +do mano Agostinho nem de Natividade, que são luxuosos, mas tem grande +valor para mim. + +--Sem duvida, concordou Ayres, valor historico e politico. + +--Meu sogro dizia que delle sairam os grandes artigos da _Aurora._ A +falar verdade, eu nunca li taes artigos, mas meu sogro era homem de +verdade. Conhecia a vida de Evaristo, por ouvil-a a outros, e fazia-lhe +louvores que não acabavam mais... + +Natividade buscou desviar a conversação para o baile da vespera. Tinham +já falado delle, mas não achou outro derivativo. Entretanto, o tinteiro +ainda ficou algum tempo. Não era só uma das lembranças de D. Perpetua, +reliquia de familia, era tambem uma de suas ideias. Prometteu mostral-o +ao conselheiro. Elle prometteu vel-o com muito gosto. Confessou que +tinha veneração aos objectos de uso dos grandes homens. Emfim, o jantar +acabou, e elles passaram ao salão. Ayres, falando da enseada: + +--Aqui está uma obra, que é mais velha que o tinteiro do Evaristo e a +taboleta do Custodio, e, não obstante, parece mais moça, não é verdade, +D. Perpetua? A noite é clara e quente; podia ser escura e fria, e o +effeito seria o mesmo. A enseada não differe de si. Talvez os homens +venham algum dia atulhal-a de terra e pedras para levantar casas em +cima, um bairro novo, com um grande circo destinado a corrida de +cavallos. Tudo é possível debaixo do sol e da lua. A nossa felicidade, +barão, é que morreremos antes. + +--Nao fale em morte, conselheiro. + +--A morte é uma hypothese, redarguiu Ayres, talvez uma lenda. ninguem +morre de uma boa digestão, e os seus charutos são deliciosos. + +--Estes são novos. Perecem-lhe bons? + +--Deliciosos. + +Santos estimou ouvir este louvor; achava-lhe uma intenção directa á +sua pessoa, aos seus meritos, ao seu nome, á posição que tinha na +sociedade, á casa, á chacara, ao Banco, aos colletes. É talvez muito; +seria um modo emphatico de explicar a força da ligação delle aos +charutos. Valiam pela taboleta e pelo tinteiro, com a differença que +estes significavam só affeicção e veneração, e aquelles, valendo pelo +sabor e pelo preço, tinham a superioridade do milagre, pela reproducção +de todos os dias. + +Taes eram as suspeitas que vagavam no cerebro de Ayres, emquanto elle +olhava mansamente para o amphytrião. Ayres não podia negar a si mesmo a +aversão que este lhe inspirava. Não lhe queria mal, de certo; podia até +querer-lhe bem, se houvesse um muro entre ambos. Era a pessoa, eram as +sensações, os dizeres, os gestos, o riso, a alma toda que lhe fazia mal. + + + +CAPITULO LI + + +Aqui presente + + +Perto das nove horas, ou logo depois, chegou Pedro com o casal Baptista +e Flora. + +--Vimos trazer o seu menino, disse Baptista a Natividade. + +--Obrigado, doutor, acudiu Santos, mas elle je não está em edade de +se perder por essas ruas, e, se se perder, acha-se logo, accrescentou +sorrindo. + +Natividade não gostou da graça, tratando-se do filho e ao pé della. Era +talvez excesso de pudor. Ha muito excesso nesse sentido, e o acertado +é perdoal-o. Ha tambem excessos contrarios, condescendencias faceis, +pessoas que entram com prazer na troca de allusões picantes. tambem se +devem perdoar. Em summa, o perdão chega ao céu. Perdoai-vos uns aos +outros, é a lei do Evangelho. + +Elle, o rapaz, é que não ouviu nada; interrompera a conversa que trazia +com Flora, e trocadas algumas palavras, os dous fôram reatar o fio a um +canto. Ayres reparou na attitude de ambos; ninguem mais lhes prestava +attenção. Ao cabo, a conversa era em voz surda; não os poderiam ouvir. +Ella escutava, elle falava; depois era o contrario, ella é que falava, +elle é que ouvia, tão absortos que pareciam não attender a ninguem, mas +attendiam. Possuiam o sexto sentido dos conspiradores e dos namorados. +Que conversassem de amores, é possivel; mas que conspiravam, é certo. +Quanto á materia da conspiração, podereis sabel-a depois, brevemente, +daqui a um capitulo. O proprio Ayres não descobriu nada, por mais que +quizesse fartar os olhos naquelle dialogo de mysterios. Persuadiu-se +que não era grave, porque elles sorriam com frequencia; mas podia +ser intimo, escondido, pessoal, e acaso extranho. Suppõe um fio de +anecdotas ou uma historia comprida, cousa alheia; ainda assim podia ser +delles sómente, porque ha estados da alma em que a materia da narração +é nada, o gosto de a fazer e de a ouvir é que é tudo. Tambem podia ser +isto. + +Vêde, porém, como a natureza encaminha as cousas minimas ou maximas, +mormente se a fortuna a ajuda. A conversação tão doce, ao que parecia, +começou por um enfado. A causa foi uma carta de Paulo, escripta ao +irmão, e que este se lembrou de mostrar a Flora, dizendo-lhe que tambem +a mostrára á mãe, e a mãe se zangára muito. + +--Com o senhor? + +--Com Paulo. + +--Mas que dizia a carta? + +Pedro leu-lhe o ponto principal, que era quasi toda a carta; falava da +questão militar. Já havia a «questão militar», um conflicto de generaes +e ministros, e a linguagem de Paulo era contra os ministros. + +--Mas porque é que o senhor foi mostrar essa carta a sua mãe? + +--Mamãe quiz saber o que é que elle me dizia. + +--E sua mãe zangou-se, ahi está; vae talvez reprehendel-o. + +--Tanto melhor; Paulo precisa ser emendado; mas, diga-me, porque é que +a senhora defende sempre a meu irmão? + +--Para ter o direito de defender tambem ao senhor. + +--Então elle já lhe tem falado mal de mim? + +Flora quiz dizer que sim, depois que não, afinal calou. Desconversou, +perguntando porque elles se davam mal. Pedro negou que se dessem mal. +Ao contrario, viviam bem. Não teriam as mesmas opiniões, e tambem podia +ser que tivessem o mesmo gosto... Daqui a dizer que ambos a amavam era +uma virgula; Pedro pingou o ponto final. Esse astuto era tambem timido. +Mais tarde, comprehendeu que, calando, andou melhor, e deu a si mesmo o +applauso da escolha; mas era falso, não escolhera nada. Não digo isto +para fazel-o desmerecer; sim, porque o medo acerta muitas vezes, e é +mister deixar aqui esta reflexão. + +Veiu a zanga. Flora não replicou mais nada, e, por seu gosto, não teria +jantado, a tal ponto sentia piedade do outro. Felizmente, o outro era +este mesmo, aqui presente, com os olhos presentes, as mãos presentes, +as palavras presentes. Não tardou que a zanga fugisse deante da graça, +da brandura e da adoração. Bem-aventurados os que ficam, porque elles +serão compensados. + + + +CAPITULO LII + + +Um segredo + + +Eis agora a materia da conspiração. Na rua, ao virem de S. Clemente, +foi que Pedro, gastado o melhor do tempo com a carta e o jantar, pôde +revelar á moça um segredo: + +--Titia disse lá em casa que D. Claudia lhe contára em segredo (não +diga nada) que seu pae vae ser nomeado presidente de provincia. + +--Não sei nada disso, mas não creio, porque papae é conservador. + +--D. Claudia disse a titia que elle é liberal, quasi radical. Parece +que a presidencia é certa; ella pediu segredo, e titia, quando nos +contou, tambem pediu segredo. Eu tambem lhe peço que não diga nada, mas +é verdade. + +--Verdade como? Papae não vae com liberaes; o senhor não sabe como +papae é conservador. Se elle defende os liberaes é porque é tolerante. + +--Se a provincia fosse a do Rio de Janeiro, eu gostaria, porque não era +preciso ir morar na Praia Grande, e se elle fosse, a viagem é só de +meia hora, eu podia ir lá todos os dias. + +--Era capaz? + +--Apostemos. + +Flora, depois de um instante: + +--Para que, se não ha presidencia? + +--Supponha que ha. + +--É preciso suppôr muito,--que ha presidencia e que a provincia é a do +Rio. Não, não ha nada. + +--Então supponha só metade,--que ha presidencia e que é Matto-Grosso. + +Flora teve um calefrio. Sem admittir a nomeação, tremeu ao nome da +provincia. Pedro lembrou ainda o Amazonas, Pará, Piauhy... Era o +infinito, mormente se o pae fizesse boa administração, porque não +voltaria tão cedo. Já agora a moça resistia menos, achava possivel e +abominavel, mas dizia isto para si, dentro do coração. De repente, +Pedro, quasi estacando o passo: + +--Se elle fôr, eu peço ao governo o logar de secretario e vou tambem. + +A luz intermittente das lojas reflectindo no resto da moça, á medida +que elles iam passando por ellas, ajudava a dos lampiões da rua, e +mostrava a emoção daquella promessa. Sentia-se que o coração de Flora +devia estar batendo muito. Em breve, porém, começou ella a pensar em +outra cousa. Natividade não consentiria nunca; depois, um estudante... +Não podia ser. Pensou em algum escandalo. Que elle fugisse, embarcasse, +fosse atraz della... + +Tudo isto era visto ou pensado em silencio. Flora não se admirava +de pensar tanto e tão atrevidamente; era como o peso do corpo, que +não sentia: andava, pensava, como transpirava. Não calculou sequer +o tempo que ia gastando em imaginar e desfazer ideias. Que isto lhe +désse mais prazer que desprazer, é certo. Ao pé della, Pedro ia +naturalmente cuidando, com os olhos nos pés, e os pés nas nuvens. Não +sabia que dissesse no meio de tão longo silencio. Entretanto, a solução +parecia-lhe unica. Já não pensava na presidencia do Rio. Queria-se com +ella, no ponto mais remoto do imperio, sem o irmão. A esperança de se +desterrarem assim de Paulo verdejou na alma de Pedro. Sim, Paulo não +iria tambem; a mãe não se deixaria ficar desamparada. Que perdesse um +filho, vá; mas ambos... + +A quem quer que este final do monologo pareça egoista, peço-lhe +pelas almas dos seus parentes amigos, que estão no céu, peço-lhe +que considere bem as causas. Considere o estado da alma do rapaz, +a contiguidade da moça, as raizes e as flores da paixão, a propria +edade de Pedro, o mal da terra, o bem da mesma terra. Considere mais +a vontade do céu, que vela por todas as creaturas que se querem, +salvo se uma só é que quer a outra, porque então o céu é um abysmo de +iniquidades, e não lhe importe esta imagem. Considere tudo, amigo; +deixe-me ir contando só e contando mal o que se passou naquelle curto +transito entre as duas casas. Quando lá chegaram, falavam de bôca. + +Em cima, como viste, continuaram a falar, até que o assumpto da +presidencia voltou. Flora notou então a cautelosa insistencia com +que Ayres olhava para elles, como se buscasse adivinhar a materia da +conversação. Sentia que não estivesse alli tambem, ouvindo e falando, +finalmente promettendo fazer alguma cousa por ella. Ayres podia, +sim,--era seu amigo e todos o tinham em grande conta,--podia intervir e +destruir o projecto da presidencia. + +Sem querer nem saber, diria isto mesmo com os olhos ao velho diplomata. +Retirava-os, mas elles iam de si mesmos repetir o monologo, e acaso +perguntar alguma cousa que Ayres não percebia e devia ser interessante. +Póde ser que reflectissem a angustia ou o que quer que era que lhe doia +dentro. Póde ser; a verdade é que Ayres começou a ficar curioso, e tão +depressa Pedro deixou o logar para acudir ao chamado da mãe, deixou +elle Natividade para ir falar á moça. + +Flora, já de pé, mal teve tempo de trocar duas palavras, dessas +que se não podem interromper sem dôr ou prurido, ao menos. Ayres +perguntava-lhe se nunca lhe dissera que sabia adivinhar. + +--Não, senhor. + +--Pois sei; adivinhei agora mesmo que me quer dizer um segredo. + +Flora ficou espantada. Não querendo negar nem confessar, respondeu-lhe +que só adivinhára metade. + +--A outra é...? + +--A outra é pedir-lhe um obsequio de amizade. + +--Peça. + +--Não, agora não, já nos vamos embora; mamãe e papae estão fazendo as +despedidas. Só se fôr na rua. Quer vir comnosco a S. Clemente? + +--Com o maior prazer. + + + + +CAPITULO LIII + + +De confidencias + + +Entenda-se que não. Não era com prazer maior nem menor. Era imposição +de sociedade, desde que Flora o pedira, não sei se discretamente. Que +a isto ligasse tal ou qual desejo de saber algum segredo, não serei +eu que o negue, nem tu, nem elle mesmo. Ao cabo de alguns instantes, +Ayres ia sentindo como esta pequena lhe acordava umas vozes mortas, +falhadas ou não nascidas, vozes de pae. Os gemeos não lhe deram um dia +a mesma sensação, senão porque eram filhos de Natividade. Aqui não era +a mãe, era a mesma Flora, o seu gesto, a sua fala, e por ventura a sua +fatalidade. + +--Mas quer-me parecer que desta vez ella está presa; escolheu emfim, +pensou Ayres. + +Flora falou-lhe da presidencia, mas não lhe pediu segredo, como as +outras pessoas; confessou-lhe que não queria ir daqui, fosse para onde +fosse, e acabou dizendo que tudo estava nas mãos delle. Só elle podia +despersuadir o pae de acceitar a presidencia. Ayres achou tão absurdo +este pedido que esteve quasi a rir, mas susteve-se bem. A palavra de +Flora era grave e triste. Ayres respondeu, com brandura, que não podia +nada. + +--Póde muito, todos attendem aos seus conselhos. + +--Mas eu não dou conselhos a ninguem, acudiu Ayres. Conselheiro é um +titulo que o imperador me conferiu, poi achar que o merecia, mas não +obriga a dar conselhos; a elle mesmo só lh'os darei, se m'os pedir. +Imagine agora se eu vou á casa de um homem ou mando chamal-o á minha +para lhe dizer que não seja presidente de provincia. Que razão lhe +daria? + +Não tinha razões a moça; tinha necessidade. Appellou para os talentos +do ex-ministro, que acharia uma razão boa. Nem se precisavam razões, +bastava o falar delle, a arte que Deus lhe dera de agradar a toda a +gente, de a arrastar, de influir, de obter o que quizesse. Ayres viu +que ella exagerava para o attrair, e não lhe pareceu mal. Não obstante, +contestou taes meritos e virtudes. Deus não lhe dera arte nenhuma, +disse elle, mas a moça ia sempre affirmando, em tal maneira que Ayres +suspendeu a contestação, e fez uma promessa. + +--Vou pensar; amanhã ou depois, se achar algum recurso, tentarei o +negocio. + +Era um palliativo. Era tambem um modo de fazer cessar a conversação, +estando a casa proxima. Não contava com o pae de Flora, que á fina +força lhe quiz mostrar, áquella hora, uma novidade, aliás uma velharia, +um documento de valor diplomatico. «Venha, suba, cinco minutos apenas, +conselheiro.» + +Ayres suspirou em segredo, e curvou a cabeça ao Destino. Não se luta +contra elle, dirás tu; o melhor é deixar que pegue pelos cabellos e nos +arraste até onde queira alçar-nos ou despenhar-nos. Baptista nem lhe +deu tempo de reflectir; era todo desculpas. + +--Cinco minutos e está livre de mim, mas verá que lhe pago o sacrificio. + +O gabinete era pequeno; poucos livros e bons, os moveis graves, um +retrato de Baptista com a farda de presidente, um almanaque sobre a +mesa, um mappa na parede, algumas lembranças do governo da provincia. +Emquanto Ayres circulava os olhos, Baptista foi buscar o documento. +Abriu uma gaveta, tirou uma pasta, abriu a pasta, tirou o documento, +que não estava só, mas com outros. Conhecia-se logo por ser um papel +velho, amarello, em partes roido. Era uma carta do conde de Oeyras, +escripta ao ministro de Portugal na Hollanda. + +--É o dia das antiquidades, pensou Ayres; a taboleta, o tinteiro, este +autographo... + +--A carta é importante, mas longa, disse Baptista, não podemos lel-a +agora. Quer leval-a? + +Não lhe deu tempo de responder; pegou de uma sobrecarta grande e metteu +dentro o manuscripto, com esta nota por fóra: «Ao meu excellentissimo +amigo conselheiro Ayres.» Emquanto elle fazia isto, Ayres passava +os olhos pela lombada de alguns livros. Entre elles havia dous +_Relatorios_ da presidencia de Baptista, ricamente encadernados. + +--Não me attribua esse luxo, acudiu o ex-presidente; foi um mimo da +secretaria do Governo que nunca fez isto ninguem. Era um pessoal muito +distincto. + +E foi á estante e tirou um dos relatorios para ser melhor visto. +Aberto, mostrou a impressão e as vinhetas; lido, podia mostrar o estylo +por um lado, e, por outro, a prosperidade das finanças. Baptista +limitou-se aos algarismos totaes: despeza, mil duzentos e noventa e +quatro contos, setecentos e noventa mil reis; receita, mil, quinhentos +quarenta e quatro contos duzentos e nove mil reis; saldo, duzentos e +quarenta e nove contos, quatrocentos e dezenove mil reis. Verbalmente, +explicou o saldo, que alcançou pela modificação de alguns serviços, e +por um pequeno augmento de impostos. Reduziu a divida provincial, que +achou em trezentos e oitenta e quatro contos, e deixou em trezentos e +cincoenta contos. Fez obras novas e concertos importantes; iniciou uma +ponte... + +--A encadernação corresponde á materia, disse Ayres para concluir a +visita. + +Baptista fechou o livro, e redarguiu que já agora não iria sem lhe +resolver uma consulta. + +--Tudo ás avessas, concluiu; eu de manhã resolvo consultas, agora á +noite sou eu que as faço. + +Tal foi o introito, mas do introito ao Credo ha sempre um passo +estirado, e o principal da missa para elle estava no Credo. Não +achando o texto do missal, explicou-lhe um sinete, uma penna de ouro, +um exemplar do Codigo Criminal. O Codigo, posto que velho, valia +por trinta novos, não que tivesse melhor rosto, se não que trazia +annotações manuscriptas de um grande jurista, Fulano. Tendo passado +longa parte da vida no exterior, o conselheiro mal conhecera o autor +das notas, mas desde que ouviu chamar-lhe grande, assumiu a expressão +adequada. Pegou do codigo com cuidado, leu algumas das notas com +veneração. + +Durante esse tempo, Baptista ia criando folego. Compoz uma phrase para +iniciar a consulta, e só esperava que Ayres fechasse o livro para +soltal-a; mas o outro ia demorando o exame do Codigo. Podia ser uma +pontinha de malignidade, mas não era. Os olhos de Ayres tinham uma +faculdade particular, menos particular do que parece, porque outros +a possuirão calados. Vinha a ser que elles não saíam da pagina, mas +em verdade já lhe prestava menos attenção; o tempo, a gente, a vida, +cousas passadas, surdiam a espial-o por detraz do livro com que tinham +vivido, e Ayres ia tornando a ver um Rio de Janeiro que não era este, +ou apenas o fazia lembrado. Nem cuides que eram só reos e juizes, era +o passeio, a rua, a festa, velhos patuscos e mortos, rapazes frescos +e agora enferrujados como elle. Baptista tossiu. Ayres voltou a si e +leu alguma das notas que o outro devia trazer de cór, mas eram tão +profundas! Emfim, mirou a encadernação, achou o livro bem conservado, +fechou-o e restituiu-o á bibliotheca. + +Baptista não perdeu um instante, correu inmediato ao assumpto, com medo +de o ver pegar em outro livro. + +--Confesso-lhe que tenho o temperamento conservador. + +--Tambem eu guardo presentes antigos. + +--Não é isso: refiro-me ao temperamento politico. Verdadeiramente ha +opiniões e temperamentos. Um homem póde muito bem ter o temperamento +opposto ás suas ideias. As minhas ideias, se as cotejarmos com os +programmas politicos do mundo, são antes liberaes e algumas liberrimas +O suffragio universal por exemplo, é para mim a pedra augular de um bom +regimen representativo. Ao contrario, os liberaes pediram e fizeram +o voto censitario. Hoje estou mais adiantado que elles; acceito o +que está, por ora. mas antes do fim do seculo é preciso rever alguns +artigos da Constituição, dous ou trez. + +Ayres escondia o espanto... Convidado assim áquella hora... Uma +profissão de fé politica... Baptista insistia na distincção do +temperamento e das ideias. Alguns amigos velhos, que conheciam esta +dualidade moral e mental, é que teimavam em querer que elle acceitasse +uma presidencia; elle não queria. Francamente, que lhe parecia ao +conselheiro? + +--Francamente, acho que não tem razão. + +--Que não tenho razão em quê? + +--Em recusar. + +--Propriamente, não recusei nada; ha um grande trabalho neste sentido, +e o meu desejo,--accrescentou com mais clareza,--é que os bons amigos +sagazes me digam se tal cousa é acertada; não me parece que seja... + +--Eu penso que é. + +--De maneira que, se o caso fosse com o senhor... + +--Commigo não podia ser. Sabe que eu já não sou deste mundo, e +politicamente nunca figurei em nada. A diplomacia tem este effeito que +separa o funccionario dos partidos e o deixa tão alheio a elles, que +fica impossivel de opinar com verdade, ou, quando menos, com certeza. + +--Mas não me disse que acha... + +--Acho. + +--... Que posso acceitar uma presidencia, se me offerecerem? + +--Póde; uma presidencia acceita-se. + +--Pois então saiba tudo; é a unica pessoa de sociedade com quem me abro +assim francamente. A presidencia foi-me offerecida. + +--Acceite, acceite. + +--Está acceita. + +--Já? + +--O decreto assigna-se sabbado. + +--Então acceite tambem os meus parabens. + +--Propriamente, a lembrança não foi do ministerio; ao contrario, o +ministerio não se resolveu antes de saber se effectivamente fiz uma +eleição contra os liberaes, ha annos; mas logo que soube que por não +os perseguir é que fui demittido, acceitou a indicação de chefes +politicos, e recebi pouco depois este bilhete. + +O bilhete estava no bolso, dentro da carteira. Qualquer outro, +alvoroçado com a nomeação proxima, levaria tempo a achar o bilhete +no meio dos papeis; mas Baptista possuia o tacto dos textos. Tirou +a carteira, abriu-a descançado e com os dedos saccou o bilhete do +ministro convidando-o a uma conversação. Na conversação ficou tudo +assentado. + + + + +CAPITULO LIV + + +Emfim, só! + + +Emfim, só! Quando Ayres se achou na rua, só, livre, solto, entregue +a si mesmo, sem grilhões nem considerações, respirou largo. Fez um +monologo, que d'ahi a pouco interrompeu por se lembrar de Flora. Tudo +o que ella não quizera ia acontecer; lá ia o pae a uma presidencia, e +ella com elle, e a recente inclinação ao joven Pedro vinha parar a meio +caminho. Entretanto, não se arrependia do que dissera e ainda menos do +que não dissera. Os dados estavam lançados. Agora era cuidar de outra +cousa. + + + +CAPITULO LV + + +«A mulher é a desolação do homem» + + +Ao despedir-se, fez Ayres uma reflexão, que ponho aqui, para o caso +de que algum leitor a tenha feito tambem. A reflexão foi obra de +espanto, e o espanto nasceu de ver como um homem tão difficil em ceder +ás instigações da esposa (Vae-te, Satanaz, etc.; capitulo XLVII) +deitou tão facilmente o habito ás ortigas. Não achou explicação, +nem a acharia, se não soubesse o que lhe disseram mais tarde, que +os primeiros passos da conversão do homem fôram dados pela mulher. +«A mulher é a desolação do homem», dizia não sei que philosopho +socialista, creio que Proudhon. Foi ella, a viuva da presidencia, que +por meios varios e secretos, tramou passar a segundas nupcias. Quando +elle soube do namoro, já os banhos estavam corridos; não havia mais que +consentir e casar tambem. + +Ainda assim, custou-lhe muito. O clamor dos seus aturdia-lhe de antemão +os ouvidos, a alma ia cega, tonta, mas a esposa servia-lhe de guia e +amparo, e, com poucas horas, Baptista viu claro e ficou firme. + +--Estamos á porta do terceiro reinado, ponderou D. Claudia, e +certamente o partido liberal não deixa tão cedo o poder. Os seus homens +são válidos, a inclinação dos tempos é para o liberalismo, e você +mesmo... + +--Sim, eu... suspirou Baptista. + +D. Claudia não suspirou, cantou victoria; a reticencia do marido era +a primeira figura de acquiescencia. Não lhe disse isto assim, nu e +cru; tambem não revelou alegria descomposta; falou sempre a linguagem +da razão fria e da vontade certa. Baptista, sentindo-se apoiado, +caminhou para o abysmo e deu o salto nas trevas. Não o fez sem graça, +nem com ella. Posto que a vontade que trazia fosse de emprestimo, não +lhe faltava desejo a que a vontade da esposa deu vida e alma. Dahi a +autoria de que se investiu e acabou confessando. + +Tal foi a conclusão de Ayres, segundo se lê no _Memorial._ Tal será a +do leitor, se gosta de concluir. Note que aqui lhe poupei o trabalho de +Ayres; não o obriguei a achar por si o que, de outras vezes, é obrigado +a fazer. O leitor attento, verdadeiramente ruminante, tem quatro +estomagos no cerebro, e por elles faz passar e repassar os actos e os +factos, até que deduz a verdade, que estava, ou parecia estar escondida. + + + + +CAPITULO LVI + + +O golpe + + +O dia seguinte trouxe á menina Flora a grande novidade. Sabbado seria +assignado o decreto; a presidencia era no norte. D. Claudia não lhe viu +a pallidez, nem sentiu as mãos frias, continuou a falar do caso e do +futuro, até que Flora, querendo sentar-se, quasi caiu. A mãe acudiu-lhe: + +--Que é? Que tens? + +--Nada, mamãe não é nada. + +A mãe fel-a sentar-se. + +--Foi uma tonteira, passou. + +D. Claudia deu-lhe a cheirar um pouco de vinagre, esfregou-lhe os +pulsos; Flora sorriu. + +--Este sabbado? perguntou. + +--O decreto? Sim, este sabbado. Mas não digas por ora a ninguem; são +segredos de gabinete. É cousa certa; emfim, alguem nos fez justiça; +provavelmente o imperador. Amanhã irás commigo a algumas encommendas. +Faze uma lista do que precisas. + +Flora precisava não ir e só pensava nisso. Uma vez que o decreto +estava prestes a ser assignado, não havia já desaconselhar a nomeação; +restava-lhe a ella ficar. Mas como? Todos os sonhos são proprios ao +somno de uma creança. Não era facil, mas não seria impossivel. Flora +cria tudo; não tirava o pensamento de Ayres, e já agora de Natividade +tambem. Os dous podiam fazel-o, ou antes os trez, se contardes tambem +o barão, e se vier a cunhada deste, quatro. Juntai aos quatro as cinco +estrellas do Cruzeiro, as nove musas, anjos e archanjos, virgens e +martyres... Juntai-os todos, e todos poderiam fazer esta simples acção +de impedir que Flora fosse para a provincia. Taes eram as esperanças +vagas, rapidas, que corriam a substituir as tristezas do rosto da moça, +emquanto a mãe, attribuindo o effeito ao vinagre, ajustava a rolha de +vidro ao frasco, e restituía o frasco ao toucador. + +--Faze uma lista do que precisas, repetiu á filha. + +--Não, mamãe, eu não preciso nada. + +--Precisas, sim, eu sei o que precisas. + + + + +CAPITULO LVII + + +Das encommendas + + +Não escreveria este capitulo, se elle fosse propriamente das +encommendas, mas não é. Tudo são instrumentos nas mãos da Vida. As duas +sairam de casa, urna lepida, a outra melancolica, e lá fôram a escolher +uma quantidade de objectos de viagem e de uso pessoal. D. Claudia +pensava nos vestidos da primeira recepção e de visitas; tambem ideou o +do desembarque. Tinha ordem do marido para comprar algumas gravatas. Os +chapeos, entretanto, fôram o principal artigo da lista. Ao parecer de +D. Claudia, o chapeo da mulher é que dava a nota verdadeira do gosto, +das maneiras e da cultura de uma sociedade. Não valia a pena acceitar +uma presidencia para levar chapeos sem graça, dizia ella sem convicção, +porque intimamente pensava que a presidencia dá graça a tudo. + +Estavam justamente na loja de chapeos, rua do Ouvidor, sentadas, +os olhos fóra e longe, quando a verdadeira materia deste capitulo +appareceu. Era o gemeo Paulo, que chegara pelo trem nocturno, e sabendo +que ellas andavam a compras, viera procural-as. + +--O senhor! exclamaram. + +--Cheguei esta manhã. + +Flora tinha-se levantado, com o alvoroço que lhe deu a vista inesperada +de Paulo. Elle correu a ellas, apertou-lhes as mãos, indagou da +saúde, e reconheceu que pareciam vender saúde e alegria. A impressão +era exacta; Flora tinha agora uma agitação, que contrastava cora o +abatimento daquella triste manhã, e um riso que a fazia alegre. + +--Tive sempre noticias das senhoras, que mamãe me dava, e Pedro tambem, +ás vezes. Da senhora, continuou elle falando a D. Claudia, recebi duas +cartas. Como vae o doutor? + +--Bem. + +--Ora, em fim, cá estou! + +E Paulo dividia os olhos com as duas, mas a melhor parte ia natural +mente para a filha. Pouco depois era todo e pouco para esta. D. +Claudia voltára á escolha dos chapeos, e Flora, que até então opinava +de cabeça, perdeu este ultimo gesto. Paulo sentou-se na cadeira que +um empregado lhe trouxe, e ficou a olhar para a moça; falavam de +cousas minimas, alheias ou proprias, tudo o que bastasse para os reter +disfarçadamente na contemplação um do outro. Paulo viera o mesmo que +fôra, o mesmo que Pedro, sempre com alguma nota particular, que ella +não podia achar claramente, menos ainda definir. Era um mysterio; Pedro +teria o seu. + +D. Claudia interrompia-os, de vez em quando, a proposito da escolha; +mas, tudo acaba, até a escolha de chapeos. Foram d'alli aos vestidos. +Paulo, não sabendo da presidencia, estimou esta casualidade para as +acompanhar de loja em loja. Contava anecdotas de S. Paulo, sem grande +interesse para Flora; as noticias que ella lhe dava acerca das amigas, +eram mais ou menos dispensaveis. Tudo valia pelos dous interlocutores. +A rua ajudava aquella absorpção reciproca; as pessoas que iam ou +vinham, damas ou cavalheiros, parassem ou não, serviam de ponto de +partida a alguma digressão. As digressões entraram a dar as mãos ao +silencio, e os dous seguiam com os olhos espraiados e a cabeça alta, +elle mais que ella, porque uma pontinha de melancolia começava a +espancar do rosto da moça a alegria da hora recente. + +Na rua Gonçalves Dias, indo para o largo da Carioca, Paulo viu dous +ou trez politicos de S. Paulo, republicanos, parece que fazendeiros. +Havendo-os deixado lá, admirou-se de os ver aqui, sem advertir que a +ultima vez que os vira ia já a alguma distancia. + +--Conhecem? perguntou ás duas. + +Não, não os conheciam. Paulo disse-lhes os nomes. A mãe talvez fizesse +alguma pergunta politica, mas deu por falta de um objecto, advertiu que +o não comprára, e propoz voltarem atraz. Tudo era acceito por ambos, +com docilidade, apesar do veu de tristeza, que se ia cerrando mais no +rosto da moça. Aquellas encommendas tinham já um ar de bilhetes de +passagem, não tardava o paquete, iam correr ás malas, aos arranjos, ás +despedidas, ao camarote de bordo, ao enjôo de mar, e áquelle outro de +mar e terra, que a mataria, com certeza, cuidava Flora. Dahi o silencio +crescente, que Paulo mal podia vencer, de quando em quando; e comtudo +ella estava bem com elle, gostava de lhe ouvir dizer cousas soltas, +algumas novas, outras velhas, recordações anteriores á partida daqui +para S. Paulo. + +Assim se deixaram ir, guiados por D. Claudia, quasi esquecida delles. +No meio daquella conversação truncada, mais entretida por elle que por +ella, Paulo sentia impetos de lhe perguntar, ao ouvido, na rua, se +pensára nelle, ou, ao menos, sonhára com elle algumas noites. Ouvindo +que não, daria espansão á colera, dizendo-lhe os ultimos improperios; +se ella corresse, correria tambem, até pegal-a pelas fitas do chapeo ou +pela manga do vestido, e, em vez de a esganar, dançaria com ella uma +valsa de Strauss ou uma polka de ***. Logo depois, ria destes delirios, +porque, a despeito da melancolia da moça, os olhos que ella erguia +para elle eram de quem sonhou e pensou muito na pessoa, e agora cuida +de descobrir se é a mesma do sonho e do pensamento. Assim lhe parecia +ao estudante de direito; pelo que, quando elle desviava o rosto, era +para repetir a experiencia e tornar a ver-lhe os olhos aguçados do +mesmo espirito critico e de livre exame. Quanto ao tempo que os trez +gastaram nessa agitação de compras e escolhas, visões e comparações, +não ha memoria delle, nem necessidade. Tempo é propriamente officio de +relogio, e nenhum delles consultou o relogio que trazia. + + + + +CAPITULO LVIII + + +Matar saudades + + +Ora bem, acabas de ver como Flora recebeu o irmão de Pedro; tal qual +recebia o irmão de Paulo. Ambos eram apostolos. Paulo achava-a agora +mais bonita que alguns mezes antes, e disse-lh'o n'essa mesma tarde em +S. Clemente, com esta palavra familiar e cordial: + +--A senhora enfeitou muito. + +Flora julgava a mesma cousa, relativamente ao estudante de direito; +calou a impressão. Ou a tristeza que trazia, ou qualquer outra sensação +particular, fel-a acanhada, a principio. Não tardou, porém, que achasse +outra vez o gemeo no gemeo, e que elle e ella matassem saudades. + +Como é que se matam saudades não é cousa que se explique de um modo +claro. Elle não ha ferro nem fogo, corda nem veneno, e todavia as +saudades expiram, para a resurreição, alguma vez antes do terceiro dia. +Ha quem creia que, ainda mortas, são doces, mais que doces. Esse ponto, +no nosso caso, não póde ser ventilado, nem eu quero desenvolvel-o, como +aliás cumpria. + +As saudades morreram, não todas, nem logo, logo, mas em parte e tão +vagarosamente que Paulo acceitou o convite de lá jantar. Era o dia da +chegada; Natividade quizera tel-o comsigo á mesa, ao pé de Pedro, para +cimentar a pacificação começada pela distancia. Paulo nem se deu ao +trabalho de lá mandar; deixou-se estar com a bella creatura, entre o +pae e a mãe que pensavam em outra cousa, proxima no tempo e remota no +espaço. Sabendo o que era, Flora passava do prazer ao tedio, e Paulo +não entendia essa alternação de sentimentos. De quando em quando, vendo +a mãe agitada e preoccupada, mas com outra expressão, Paulo interrogava +a filha. Em vez de dar uma explicação qualquer, Flora passou uma vez a +mão pelos olhos e ficou alguns instantes sem os descobrir. A acção do +estudante de direito, devia ser arredar-lhe a mão, encaral-a de perto, +mais perto, totalmente perto, e repetir a pergunta por um modo em que a +eloquencia do gesto dispensasse a fala. Se tal ideia teve, não saiu cá +fóra. Nem ella lhe consentiu mais tempo que o da pergunta: + +--Que é que tem? + +--Nada, respondeu Flora. + +--Tem alguma cousa, insistiu elle querendo pegar-lhe na mão. + +Não acabou o gesto, não o começou sequer; abriu e fechou os dedos +apenas, emquanto sorria para sacudir tristezas, e deixou-se estar a +matar saudades. + + + + +CAPITULO LIX + + +Noite de 14 + + +Tudo se explicou à noite, em casa da familia Santos. O ex-presidente +de provincia confessou as esperanças de uma investidura nova; a esposa +affirmou a eminencia do ato. Dahi a publicidade da noticia, que pouco +antes D. Claudia só dizia em segredo. Já não havia segredos que calar. + +Paulo soube então tudo, e Pedro, que conhecia alguns preliminares, +acabou sabendo o resto. Ambos naturalmente sentiram a separação +proxima. A dôr os fez amigos por instantes; é uma das vantagens dessa +grande e nobre sensação. Já me não lembra quem affirmava, ao contrario, +que um odio commum é o que mais liga duas pessoas. Creio que sim, mas +não descreio do meu postulado, por esta razão que uma coisa não tolhe a +outra, e ambas podem ser verdadeiras. + +Demais, a dôr não era ainda o desespero. Havia até uma consolação para +os dous gemeos; é que a moça ficaria longe de ambos. Nenhum delles +teria o gozo exclusivo ao pé da porta. Não há mal que não traga um +pouco de bem, e por isso é que o mal é util, muita vez indispensavel, +alguma vez delicioso. Os dous quizeram falar á amiguinha, em +particular, para sondal-a ácerca daquella separação, já agora certa, +mas nenhum conseguiu este desejo. Vigiavam-se, isso sim. Quando lhe +falavam, era sempre juntos, e de cousas familiares e ordinarias. O +gesto de Flora não traduzia o estado da alma; este podia ser lepido, +melancolico, ou indifferente, não vinha cá fóra. Em verdade, ella +falava pouco. Os olhos tambem não diziam muito. Mais de uma vez, Pedro +deu com ella fitando Paulo, e gemeu com a preferencia, mas tambem elle +era preferido depois, e achava compensação; Paulo então é que rangia +os dentes, figuradamente. Natividade, toda entregue á sua recepção, +que era a ultima do anno, não acompanhou de perto as agitações moraes +daquelle trio. Quando deu por ellas, chegou a sentil-as tambem. + +Pouco a pouco, a gente se foi dispersando. Não era muita, e dominava +a nota intima. Quando a maioria saiu, ficou só a porção mais intima, +trez ou quatro homens a um canto da sala, falando e rindo de ditos e +anecdotas. Não conversavam de politica, e aliás não faltaria materia. +As moças, pela segunda ou terceira vez, trocavam as impressões do +grande baile recente. Tambem falavam de musicas e theatros, das festas +proximas de Petropolis, da gente que ia naquelle anno, e da que só iria +em Janeiro. Natividade dividia-se com todos, até que, podendo ficar +alguns instantes com Ayres, confiara-lhe o seu receio ácerca do amor +dos filhos, e ao mesmo tempo o prazer que lhe trazia a esperança de uma +longa separação de Flora. O conselheiro não desdizia do receio, nem da +esperança. + +--É uma felicidade que o Baptista seja nomeado e leve a filha daqui, +disse ella. + +--Certamente, mas... + +--Mas quê? + +--Certamente a levará, mas a senhora póde não conhecer bem aquella +menina. + +--Penso que é boa. + +--Tambem eu penso assim. A bondade, porém, não tem nada com o resto +da pessoa. Flora é, como já lhe disse ha tempos, uma inexplicavel. +Agora é tarde para lhe expor os fundamentos da minha impressão; depois +lhe direi. Note que gósto muito della; acho-lhe um sabor particular +naquelle contraste de uma pessoa assim, tão humana e tão fóra do +mundo, tão etherea e tão ambiciosa, ao mesmo tempo, de uma ambição +recondita... Vá perdoando estas palavras mal embrulhadas, e até amanhã, +concluiu elle, estendendo-lhe a mão. Amanhã virei explical-as. + +--Explique-as agora, emquanto os outros parecem rir de algum dito +engraçado. + +Effectivamente, os homens riam de algum dito ou trocadilho; Ayres quiz +falar, mas reteve a lingua, e desculpou-se. A explicação era longa e +dificil, e não era urgente, disse elle. + +--Eu mesmo não sei se me entendo, baroneza, nem se penso a verdade; +póde ser. Em todo caso, minha boa amiga, até amanhã ou até Petropolis. +Quando espera subir? + +--Lá para o fim do anno. + +--Então ainda nos veremos algumas vezes. + +--Sim, e, se me não vir a mim, quero que veja os meus rapazes, que +os receba e estime. Elles o têm em grande conta; não lhe fazem senão +justiça. Pedro acha que o senhor é o espirito mais fino, e Paulo o mais +rijo da nossa terra... + +--Veja como a senhora os educa, ensinando-lhes a pensar errado, disse +Ayres sorrindo e fazendo um gesto de agradecimento. Eu rijo? + +--O mais rijo e o mais fino. + +Os ultimos habituados da casa vieram dar boa noite á dona. Dez minutos +depois, Ayres despedia-se do casal Santos. + +A noite era clara e tranquilla. Ayres recompoz uma parte do serão para +escrevel-a no _Memorial._ Poucas linhas, mas interessantes, nas quaes +Flora era a principal figura: «Que o Diabo a entenda, se puder; eu, +que sou menos que elle, não acerto de a entender nunca. Hontem parecia +querer a um, hoje quiz ao outro; pouco antes das despedidas, queria a +ambos. Encontrei outr'ora desses sentimentos alternos e simultaneos; +eu mesmo fui uma e outra cousa, e sempre me entendi a mim. Mas aquella +menina e moça... A condição dos gemeos explicará esta inclinação dupla; +póde ser tambem que alguma qualidade falte a um que sóbre a outro, +e vice-versa, e ella, pelo gosto de ambas, não acaba de escolher de +vez. É phantastico, sei; menos phantastico é se elles, destinados á +inimizade, acharem nesta mesma creatura um campo estreito de odio, +mas isto os explicaria a elles, não a ella... Seja o que fôr, a nossa +organisação politica é util; a presidencia de provincia, arredando +Flora daqui, por algum tempo, tira esta moça da situação em que se +acha, como a asna de Buridan. Quando voltar, a agua estará bebida e a +cevada comida. Um decreto ajudará a natureza.» + +Isto feito, Ayres metteu-se na cama, rezou uma ode do seu Horacio e +fechou os olhos. Nem por isso dormiu. Tentou então uma pagina do seu +Cervantes, outra do seu Erasmo, fechou novamente os olhos, até que +dormiu. Pouco foi; ás cinco horas e quarenta minutos estava de pé. Era +novembro, sabes que é dia. + + + + +CAPITULO LX + + +Manhã de 15 + + +Quando lhe acontecia o que ficou contado, era costume de Ayres sair +cedo, a espairecer. Nem sempre acertava. Desta vez foi ao Passeio +Publico. Chegou ás sete horas e meia, entrou, subiu ao terraço e olhou +para o mar. O mar estava crespo. Ayres começou a passear ao longo do +terraço, ouvindo as ondas, e chegando-se á borda, de quando em quando, +para vel-as bater e recuar. Gostava dellas assim; achava-lhes uma +especie de alma forte, que as movia para metter medo á terra. A agua, +enroscando-se em si mesma, dava-lhe uma sensação, mais que de vida, de +pessoa tambem, a que não faltavam nervos nem musculos, nem a voz que +bradava as suas coleras. + +Emfim, cançou e desceu, foi-se ao lago, ao arvoredo e passeou á toa, +revivendo homens e cousas, até que se sentou em um banco. Notou que +a pouca gente que havia alli não estava sentada, como de costume, +olhando á toa, lendo gazetas ou cochilando a vigilia de uma noite sem +cama. Estava de pé, falando entre si, e a outra que entrava ia pegando +na conversação sem conhecer os interlocutores; assim lhe pareceu, +ao menos. Ouviu umas palavras soltas, _Deodoro, batalhões, campo, +ministerio_, etc. Algumas, ditas em tom alto, vinham acaso para elle, +a ver se lhe espertavam a curiosidade, e se obtinham mais uma orelha +ás noticias. Não juro que assim fosse, porque o dia vae longe, e as +pessoas não eram conhecidas. O proprio Ayres, se tal cousa suspeitou, +não a disse a ninguem; tambem não afiou o ouvido para alcançar o resto. +Ao contrario, lembrando-lhe algo particular, escreveu a lapis uma nota +na carteira. Tanto bastou para que os curiosos se dispersassem, não sem +algum epitheto de louvor, uns ao governo, outros ao exercito: podia ser +amigo de um ou de outro. + +Quando Ayres saiu do Passeio Publico, suspeitava alguma cousa, e seguiu +até o largo da Carioca. Poucas palavras e sumidas, gente parada, caras +espantadas, vultos que arrepiavam caminho, mas nenhuma noticia clara +nem completa. Na rua do Ouvidor, soube que os militares tinham feito +uma revolução, ouviu descripções da marcha e das pessoas, e noticias +desencontradas. Voltou ao largo, onde trez tilburys o disputaram; elle +entrou no que lhe ficou mais á mão, e mandou tocar para o Cattete. +Não perguntou nada ao cocheiro; este é que lhe disse tudo e o resto. +Falou de uma revolução, de dous ministros mortos, um fugido, os demais +presos. O imperador, capturado em Petropolis, vinha descendo a serra. + +Ayres olhava para o cocheiro, cuja palavra saía deliciosa de novidade. +Não lhe era desconhecida esta creatura. Já a vira, sem o tilbury, +na rua ou na sala, á missa ou a bordo, nem sempre homem, alguma vez +mulher, vestida de seda ou do chita. Quiz saber mais, mostrou-se +interessado e curioso, e acabou perguntando se realmente houvera o que +dizia. O cocheiro contou que ouvira tudo a um homem que trouxera da +rua dos Invalidos e levára ao largo da Gloria, por signal que estava +assombrado, não podia falar, pedia-lhe que corresse, que lhe pagaria o +dobro; e pagou. + +--Talvez fosse algum implicado no barulho, suggeriu Ayres. + +--Tambem póde ser, porque elle levava o chapéo derrubado, e a principio +pensei que tinha sangue nos dedos, mas reparei e vi que era barro; com +certeza, vinha de descer algum muro. Mas, pensando bem, creio que era +sangue; barro não tem aquella côr. A verdade é que elle pagou o dobro +da viagem, e com razão, porque a cidade não está segura, e a gente +corre grande risco levando pessoas de um lado para outro... + +Chegavam justamente á porta de Ayres; este mandou parar o vehiculo, +pagou pela tabella e desceu. Subindo a escada, ia naturalmente pensando +nos acontecimentos possiveis. No alto achou o criado que sabia tudo, e +lhe perguntou se era certo... + +--O que é que não é certo, José? É mais que certo. + +--Que matáram trez ministros? + +--Não; ha só um ferido. + +--Eu ouvi que mais gente tambem, falaram em dez mortos... + +--A morte é um phenomeno egual á vida; talvez os mortos vivam. Em todo +caso, não lhes rezes por alma, porque não és bom catholico, José. + + + + +CAPITULO LXI + + +Lendo Xenophonte + + +Como é que, tendo ouvido falar da morte de dous e trez ministros, Ayres +affirmou apenas o ferimento de um, ao rectificar a noticia do criado? +Só se póde explicar de dous modos,--ou por um nobre sentimento de +piedade, ou pela opinião de que toda a noticia publica cresce de dous +terços, ao menos. Qualquer que fosse a causa, a versão do ferimento era +a unica verdadeira. Pouco depois passava pela rua do Cattete a padiola +que levava um ministro, ferido. Sabendo que os outros estavam vivos e +sãos e o imperador era esperado de Petropolis, não acreditou na mudança +de regimen que ouvira ao cocheiro de tilbury e ao criado José. Reduziu +tudo a um movimento que ia acabar com a simples mudança de pessoal. + +--Temos gabinete novo, disse comsigo. + +Almoçou tranquillo, lendo Xenophonte: «Considerava eu um dia quantas +republicas tem sido derribadas por cidadãos que desejam outra especie +de governo, e quantas monarchias e olygarchias são destruidas pela +sublevação dos povos; e de quantos sobem ao poder, uns são depressa +derribados, outros, se duram, são admirados por habeis e felizes...» +Sabes a conclusão do autor, em prol da these de que o homem é difficil +de governar; mas logo depois a pessoa de Cyro destróe aquella +conclusão, mostrando um só homem que regeu milhões de outros, os quaes +não só o temiam, mas ainda lutavam por lhe fazer as vontades. Tudo isto +em grego, e com tal pausa que elle chegou ao fim do almoço, sem chegar +ao fim do primeiro capitulo. + + + + +CAPITULO LXII + + +«Pare no D.» + + +--Mas, S. Ex. está almoçando, dizia o criado no patamar da escada a +alguem que pedia para falar ao conselheiro. + +Era falso, Ayres acabava justamente de almoçar; mas o criado sabia que +o amo gostava de saborear o charuto depois do almoço, sem interrupção. +Agora estava no canapé e ouviu o dialogo do patamar. A pessoa insistia +em dizer uma palavrinha. + +--Não póde ser. + +--Bem, eu espero; logo que S. Ex. acabe... + +--O melhor é voltar depois; não mora alli defronte? Pois volte daqui a +uma hora ou duas... + +A pessoa era o Custodio e foi para casa, mas o velho diplomata, sabendo +quem era, não esperou que acabasse o charuto; mandou-lhe dizer que +viesse. Custodio saiu, correu, subiu e entrou assombrado. + +--Que é isso, Sr. Custodio? disse-lhe Ayres. O senhor anda a fazer +revoluções? + +--Eu, senhor? Ah! senhor! Se V. Ex. soubesse... + +--Se soubesse o quê? + +Custodio explicou-se. Vá, resumamos a explicação. + +Na vespera, tendo de ir abaixo, Custodio foi á rua da Assembléa, onde +se pintava a taboleta. Era já tarde; o pintor suspendera o trabalho. Só +algumas das letras ficaram pintadas,--a palavra _Confeitaria_ e a letra +_d._ A letra _o_ e a palavra _imperio_ estavam só debuxadas a giz. +Gostou da tinta e da côr, reconciliou-se com a fórma, e apenas perdoou +a despeza. Recommendou pressa. Queria inaugurar a taboleta no domingo. + +Ao acordar de manhã não soube logo do que houvera na cidade, mas pouco +a pouco vieram vindo as noticias, viu passar um batalhão, e creu que +lhe diziam a verdade os que affirmavam a revolução e vagamente a +republica. A principio, no meio do espanto, esqueceu-lhe a taboleta. +Quando se lembrou della, viu que era preciso sustar a pintura. Escreveu +ás pressas um bilhete e mandou um caixeiro ao pintor. O bilhete dizia +só isto: «Pare no _D._» Com effeito, não era preciso pintar o resto, +que seria perdido, nem perder o principio, que podia valer. Sempre +haveria palavra que occupasse o logar das letras restantes. «Pare no D.» + +Quando o portador voltou trouxe a noticia de que a taboleta estava +prompta. + +--Você viu-a prompta? + +--Vi, patrão. + +--Tinha escripto o nome antigo? + +--Tinha, sim, senhor: «Confeitaria do imperio.» + +Custodio enfiou um casaco de alpaca e voou á rua da Assembléa. Lá +estava a taboleta, por signal que coberta com um pedaço de chita; +alguns rapazes que a tinham visto, ao passar na rua, quizeram +rasgal-a; o pintor, depois de a defender com boas palavras, achou mais +efficaz cobril-a. Levantada a cortina, Custodio leu: «_Confeitaria +do imperio._» Era o nome antigo, o proprio, o celebre, mas era a +destruição agora; não podia conservar um dia a taboleta, ainda que +fosse em becco escuro, quanto mais na rua do Cattete... + +--O senhor vae despintar tudo isto, disse elle. + +--Não entendo. Quer dizer que o senhor paga primeiro a despeza. Depois, +pinto outra cousa. + +--Mas que perde o senhor em substituir a ultima palavra por outra? A +primeira póde ficar, e mesmo o _d..._ Não leu o meu bilhete? + +--Chegou tarde. + +--E porque pintou, depois de tão graves acontecimentos? + +--O senhor tinha pressa, e eu accordei ás cinco e meia para servil-o. +Quando me deram as noticias, a taboleta estava prompta. Não me disse +que queria pendural-a domingo? Tive de pôr muito seccante na tinta, e, +além da tinta, gastei tempo e trabalho. + +Custodio quiz repudiar a obra, mas o pintor ameaçou de pôr o numero da +confeitaria e o nome do dono na taboleta, e expol-a assim, para que os +revolucionarios lhe fossem quebrar as vidraças do Cattete. Não teve +remedio se não capitular. Que esperasse; ia pensar na substituição; em +todo caso, pedia algum abate no preço. Alcançou a promessa do abate e +voltou a casa. Em caminho, pensou no que perdia mudando de titulo,--uma +casa tão conhecida, desde annos e annos! Diabos levassem a revolução! +Que nome lhe poria agora? Nisso lembrou-lhe o visinho Ayres e correu a +ouvil-o. + + + + +CAPITULO LXIII + + +Taboleta nova + + +Referido o que lá fica atraz, Custodio confessou tudo o que perdia no +titulo e na despeza, o mal que lhe trazia a conservação do nome da +casa, a impossibilidade de achar outro, um abysmo, em summa. Não sabia +que buscasse; faltava-lhe invenção e paz de espirito. Se pudesse, +liquidava a confeitaria. E afinal que tinha elle com politica? Era +um simples fabricante e vendedor de doces, estimado, afreguezado, +respeitado, e principalmente respeitador da ordem publica... + +--Mas o que é que ha? perguntou Ayres. + +--A republica está proclamada. + +--Já ha governo? + +--Penso que já; mas diga-me V. Ex. ouviu alguem accusar-me jamais de +attacar o governo? Ninguem. Entretanto... Uma fatalidade! Venha em meu +soccorro, Excellentissimo. Ajude-me a sair deste embaraço. A taboleta +está prompta, o nome todo pintado.--«Confeitaria do Imperio», a tinta é +viva e bonita. O pintor teima em que lhe pague o trabalho, para então +fazer outro. Eu, se a obra não estivesse acabada, mudava de titulo, por +mais que me custasse, mas hei de perder o dinheiro que gastei? V. Ex. +crê que, se ficar «Imperio,» venham quebrar-me as as vidraças? + +--Isso não sei. + +--Realmente, não ha motivo: é o nome da casa, nome de trinta annos. +ninguem a conhece de outro modo... + +--Mas póde pôr «Confeitaria da Republica...» + +--Lembrou-me isso, em caminho, mas tambem me lembrou que, se daqui a +um ou dous mezes, houver nova reviravolta, fico no ponto em que estou +hoje, e perco outra vez o dinheiro. + +--Tem razão... Sente-se. + +--Estou bem. + +--Sente-se e fume um charuto. + +Custudio recusou o charuto, não fumava. Acceitou a cadeira. Estava +no gabinete de trabalho, em que algumas curiosidades lhe chamariam a +attenção, se não fosse o atordoamento do espirito. Continuou a implorar +o soccorro do visinho. S. Ex., com a grande intelligencia que Deus lhe +dera, podia salval-o. Ayres propoz-lhe um meio termo, um titulo que +iria com ambas as hypotheses,--«Confeitaria do governo». + +--Tanto serve para um regimen como para outro. + +--Não digo que não, e, a não ser a despeza perdida... Ha, porém, uma +razão contra. V. Ex. sabe que nenhum governo deixa de ter opposição. As +opposições, quando descerem á rua, podem implicar commigo, imaginar que +as desafio, e quebrarem-me a taboleta; entretanto, o que eu procuro é o +respeito de todos. + +Ayres comprehendeu bem que o terror ia com a avareza. Certo, o visinho +não queria barulhos á porta, nem malquerenças gratuitas, nem odios de +quem quer que fosse; mas, não o affligia menos a despeza que teria de +fazer de quando em quando, se não achasse titulo definitivo, popular +e imparcial. Perdendo o que tinha, já perdia a celebridade, além de +perder a pintura e pagar mais dinheiro. Ninguem lhe compraria uma +taboleta condemnada. Já era muito ter o nome e o titulo no _Almanack_ +de Laemmert, onde podia lel-o algum abelhudo e ir com outros, punil-o +do que estava impresso desde o principio do anno... + +--Isso não, interrompeu Ayres; o senhor não ha de recolher a edição de +um almanaque. + +E depois de alguns instantes: + +--Olhe, dou-lhe uma ideia, que póde ser aproveitada, e, se não a achar +boa, tenho outra á mão, e será a ultima. Mas eu creio que qualquer +dellas serve. Deixe a taboleta pintada como está, e á direita, na +ponta, por baixo do titulo, mande escrever estas palayras que explicam +o titulo: «Fundada em 1860.» Não foi em 1860 que abriu a casa? + +--Foi, respondeu Custodio. + +--Pois... + +Custodio reflectia. Não se lhe podia ler _sim_ nem _não_; attonito, +a bôca entre-aberta, não olhava para o diplomata, nem para o chão, +nem para as paredes ou moveis, mas para o ar. Como Ayres insistisse, +elle acordou e confessou que a ideia era boa. Realmente, mantinha o +titulo e tirava-lhe o sedicioso, que crescia com o fresco da pintura. +Entretanto, a outra ideia podia ser egual ou melhor, e quizera comparar +as duas. + +--A outra ideia não tem a vantagem de pôr a data á fundação da +casa, tem só a de definir o titulo, que fica sendo o mesmo, de uma +maneira alheia ao regimen. Deixe-lhe estar a palavra _imperio_ e +accrescente-lhe em baixo, ao centro, estas duas, que não precisam +ser graúdas: _das leis._ Olhe, assim, concluiu Ayres sentando-se á +secretaria, e escrevendo em uma tira de papel o que dizia. + +Custodio leu, releu e achou que a ideia era util; sim, não lhe parecia +má. Só lhe viu um defeito; sendo as letras de baixo menores, podiam +não ser lidas tão depressa e claramente, com as de cima, e estas é que +se metteriam pelos olhos ao que passasse. Dahi a que algum politico ou +sequer inimigo pessoal não entendesse logo e... A primeira ideia, bem +considerada, tinha o mesmo mal, e ainda este outro: pareceria que o +confeiteiro, marcando a data da fundação, fazia timbre em ser antigo. +Quem sabe se não era peor que nada? + +--Tudo é peor que nada. + +--Procuremos. + +Ayres achou outro titulo, o nome da rua, «Confeitaria do Cattete», sem +advertir que, havendo outra confeitaria na mesma rua, era attribuir +exclusivamente á do Custodio a designação local. Quando o visinho lhe +fez tal ponderação, Ayres achou-a justa, e gostou de ver a delicadeza +de sentimentos do homem; mas logo depois descubriu que o que fez +falar o Custodio foi a ideia de que esse titulo ficava commum ás duas +casas. Muita gente não atinaria com o titulo escripto, e compraria +na primeira que lhe ficassse á mão, de maneira que só elle faria as +despezas da pintura, e ainda por cima perdia a freguezia. Ao perceber +isto, Ayres não admirou menos a sagacidade de um homem que em meio de +tantas tribulações, contava os maus fructos de um equivoco. Disse-lhe +então que o melhor seria pagar a despeza feita e não pôr nada, a não +ser que preferisse o seu proprio nome: «Confeitaria do Custodio.» +Muita gente certamente lhe não conhecia a casa por outra designação. +Um nome, o proprio nome do dono, não tinha significação politica ou +figuração historica, odio nem amor, nada que chamasse a attenção dos +dous regimens, e conseguintemente que puzesse em perigo os seus pasteis +de Santa Clara, menos ainda a vida do proprietario e dos empregados. +Porque é que não adoptava esse alvitre? Gastava alguma cousa com a +troca de uma palavra por outra, _Custodio_ em vez de _Imperio_, mas as +revoluções trazem sempre despezas. + +--Sim, vou pensar, Excellentissimo. Talvez convenha esperar um ou dous +dias, a ver em que param as modas, disse Custodio agradecendo. + +Curvou-se, recuou e saiu. Ayres foi á janella para vel-o atravessar a +rua. Imaginou que elle levaria da casa do ministro aposentado um lustre +particular que faria esquecer por instantes a crise da taboleta. Nem +tudo são despezas na vida, e a gloria das relações podia amaciar as +agruras deste mundo. Não acertou desta vez. Custodio atravessou a rua, +sem parar nem olhar para traz, e enfiou pela confeitaria dentro com +todo o seu desespero. + + + + +CAPITULO LXIV + + +Paz! + + +Que, em meio de tão graves successos, Ayres tivesse bastante pausa e +claridade para imaginar tal descoberta no visinho, só se póde explicar +pela incredulidade com que recebera as noticias. A propria afflicção de +Custodio não lhe dera fé. Vira nascer e morrer muito boato falso. Uma +de suas maximas é que o homem vive para espalhar a primeira invenção +de rua, e que tudo se fará crêr a cem pessoas juntas ou separadas. Só +ás duas horas da tarde, quando Santos lhe entrou em casa, acreditou na +queda do imperio. + +--É verdade, conselheiro, vi descer as tropas pela rua do Ouvidor, ouvi +as acclamações á republica. As lojas estão fechadas, os bancos tambem, +e o peor é se se não abrem mais, se vamos cair na desordem publica; é +uma calamidade. + +Ayres quiz aquietar-lhe o coração. Nada se mudaria; o regimen, sim, era +possivel, mas tambem se muda de roupa sem trocar de pelle. Commercio +é preciso. Os bancos são indispensaveis. No sabbado, ou quando muito +na segunda feira, tudo voltaria ao que era na vespera, menos a +constituição. + +--Não sei, tenho medo, conselheiro. + +--Não tenha medo. A baroneza já sabe o que ha? + +--Quando eu sai de casa, não sabia, mas agora é provavel. + +--Pois vá tranquillisal-a; naturalmente está afflicta. + +Santos receiava os fuzilamentos; por exemplo, se fuzilassem o +imperador, e com elle as pessoas de sociedade? Recordou que o Terror... +Ayres tirou-lhe o Terror da cabeça. As occasiões fazem as revoluções, +disse elle, sem intenção de rimar, mas gostou que rimasse, para +dar fórma fixa á ideia. Depois lembrou a indole branda do povo. O +povo mudaria de governo, sem tocar nas pessoas. Haveria lances de +generosidade. Para provar o que dizia referiu um caso que lhe contara +um velho amigo, o marechal Beaurepaire Rohan. Era no tempo da Regencia. +O imperador fôra ao theatro de S. Pedro de Alcantara. No fim do +espectaculo, o amigo, então moço, ouviu grande rumor do lado da egreja +de S. Francisco, e correu a saber o que era. Falou a um homem, que +bradava indignado, e soube delle que o cocheiro do imperador não tirara +o chapeo no momento em que este chegára á porta para entrar no coche; +o homem accrescentou: «Eu sou _ré..._» Naquelle tempo os republicanos +por brevidade eram assim chamados. «Eu sou _ré_, mas não consinto que +faltem ao respeito a este menino!» + +Nenhuma feição de Santos mostrou apreciar ou entender aquelle rasgo +anonymo. Ao contrario, todo elle parecia entregue ao presente, ao +momento, ao commercio fechado, aos bancos sem operações, ao receio de +uma suspensão total de negocios, durante prazo indeterminado. Cruzava e +descruzava as pernas. Afinal ergueu-se e suspirou. + +--Então, parece-lhe...? + +--Que descance. + +Santos acceitou o conselho, mas vae muito do acceitar ao cumprir, e a +apparencia era mui diversa do coração. O coração batia-lhe. A cabeça +via esboroar-se tudo. Quiz despedir-se, mas fez duas ou trez investidas +antes de pousar o pé fora do gabinete e caminhar para a escada. Instava +pela certeza. Com quanto tivesse visto e ouvido a republica, podia +ser... Em todo caso, a paz é que era necessaria, e haveria paz? Ayres +inclinava-se a crêr que sim, e novamente o convidou a descançar. + +--Até logo, concluiu. + +--Porque não vae lá jantar comnosco? + +--Tenho de jantar com um amigo, no Hotel dos Estrangeiros. Depois, +talvez, ou amanhã. Vá, vá tranquillisar a baroneza, e os rapazes. Os +rapazes estarão em paz? Esses brigam, com certeza; vá pol-os em ordem. + +--O senhor podia ajudar-me nisso. Vá lá de noite. + +--Póde ser; se puder, vou. Amanhã com certeza. + +Santos saiu; tinha o carro á espera, entrou e seguiu para Botafogo. Não +levava a paz comsigo, não a poderia dar á mulher, nem á cunhada, nem +aos filhos. Quizera chegar a casa, por medo da rua, mas quizera tambem +ficar na rua, por não saber que palavras nem que conselhos daria aos +seus. + +O espaço do carro era pequeno e bastante para um homem; mas, emfim, +não viviria alli a tarde inteira. Ao demais, a rua estava quieta. Via +gente á porta das lojas. No largo do Machado viu outra que ria, alguma +calada, havia espanto, mas não havia propriamente susto. + + + + +CAPITULO LXV + + +Entre os filhos + + +Quando Santos chegou a casa, Natividade estava inquieta, sem noticia +exacta e definitiva dos acontecimentos. Não sabia da republica. Não +sabia do marido nem dos filhos. Aquelle saira antes dos primeiros +rumores, estes iam fazer a mesma cousa, logo que os boatos chegaram. O +primeiro gesto da mãe foi para impedir que os filhos saissem, mas não +pôde, era tarde. Não os podendo reter, pegou-se com a Virgem Maria, +afim de que os poupasse, e esperou. A irmã fez o mesmo. Era perto de +meio dia; foi então que os minutos entraram a parecer seculos. + +A ancia da mãe era naturalmente maior que a da tia. Natividade via +andar o tempo com ferros aos pés. Não havia alvoroço que atasse um par +de azas áquellas horas longas do relogio da casa, nem aos do cinto, o +della e o da irmã; todos elles coxeavam de ambos os ponteiros. Emfim, +ouviu na areia do jardim as rodas de um carro; era Santos. + +Natividade acudiu ao patamar da escada. Santos subiu, e as mãos de +ambos estenderam-se e agarraram-se. Longa vida conjunta acaba por fazer +da ternura uma coisa grave e espiritual. Entretanto, parece que o gesto +do marido não foi original, mas secundario, filho ou imitativo do da +mulher. Póde ser que a corda da sensibilidade fosse menos vibrante na +lira dele que na della, posto que muitos anos atraz, aquele outro gesto +no _coupé_, quando voltavam da missa de S. Domingos, lembras-te?... +Sobre isto escrevi agora algumas linhas, que não ficariam mal, se as +acabasse, mas recuo a tempo, e risco-as. Não vale a pena ir à cata das +palavras riscadas. Menos vale supri-las. + +Que nos bastam as quatro mãos apertadas. Natividade perguntou pelos +filhos. Santos opinou que não tivesse medo. Não havia nada; tudo +parecia estar como no dia anterior, as ruas socegadas, as caras mudas. +Não correria sangue, o commercio ia continuar. Toda a animação de Ayres +tinha agora brotado nele, com a mesma verdura e o mesmo estylo. + +Os filhos chegaram tarde, cada um por sua vez, e Pedro mais cedo que +Paulo. A melancolia de um ia com a alma da casa, a alegria de outro +destoava desta, mas tais eram uma e outra que, apesar da expansão da +segunda, não houve repressão nem briga. Ao jantar, falaram pouco. +Paulo referia os sucessos amorosamente. Conversara com alguns +co-religionarios e soube do que se passára á noite e de manhã, a +marcha e a reunião dos batalhões no campo, as palavras de Ouro Preto +ao marechal Floriano, a resposta deste, a aclamação da Republica. A +familia ouvia e perguntava, não discutia, e esta moderação contrastava +com a gloria de Paulo. O silencio de Pedro principalmente era como um +desafio. Não sabia Paulo que a propria mãe é que o pedira ao irmão com +muitos beijos, motivo que em tal momento, ia com o aperto do coração do +rapaz. + +O coração de Paulo, ao contrario, era livre, deixava circular o sangue, +como a felicidade. Os sentimentos republicanos, em que os principios +se incrustavam viviam alli tão fortes e quentes, que mal deixavam ver +o abatimento de Pedro e o acanhamento da outra gente sua. Ao fim do +jantar, bebeu á Republica, mas calado, sem ostentação, apenas olhando +paaa o tecto, e levantando o copo um tantinho mais que de costume. +Ninguem replicou por outro gesto ou palavra. + +Certamente, o moço Pedro quiz dizer alguma phrase de piedade +relativamente ao regimen imperial e ás pessoas de Bragança, mas a +mãe quasi que não tirava os olhos delle, como impondo ou pedindo +silencio. De mais, elle não cria nada mudado; a despeito de decretos +e proclamações, Pedro imaginava que tudo podia ficar como d'antes, +alterado apenas o pessoal do governo. Custa pouco, dizia elle baixinho +á mãe, ao deixarem a mesa; é só o imperador falar ao Deodoro. + +Paulo saiu, logo depois do jantar, promettendo vir cedo. A mãe, +receiosa de o ver mettido em barulhos, não queria que elle saisse; mas +outro receio fel-a consentir, e este era que os dous irmãos brigassem +finalmente. Assim um medo vence a outro, e a gente acaba por dar o +que negou. Não é menos certo que ella raciocinou alguns minutos antes +de resolver, do mesmo modo que eu escrevi uma pagina antes da que vou +escrever agora; mas ambos nós, Natividade e eu, acabamos por deixar que +os actos se praticassem, sem opposição della, nem commentario meu. + + + +CAPITULO LXVI + + +O basto e a espadilha + + +Vieram amigos da casa, trazendo noticias e boatos. Variavam pouco e +geralmente não havia opinião segura acerca do resultado. Ninguem sabia +se a victoria do movimento era um bem, se um mal, apenas sabiam que +era um facto. Dalli a ingenuidade com que alguem propoz o voltarete +do costume, e a boa vontade de outros em acceital-o. Santos, embora +declarase que não jogava, mandou pôr as cartas e os tentos, mas os +outros opinaram que sempre faltava um parceiro, e sem elle, não +havia graça. Quiz resistir; não era bonito que no proprio dia em que +o regimen caira ou ia cair, entregasse o espirito a recreações de +sociedade... Não pensou isto em voz alta nem baixa, mas comsigo, e +talvez o leu no rosto da mulher. Acharia um pretexto para resistir, +se buscasse algum, mas amigos e cartas não deixavam buscar nada. +Santos acabou acceitando. Provalmente era essa mesma a inclinação +intima. Muitas ha que precisam ser attrahidas cá fora, como um favor +ou concessão da pessoa. Emfim, o basto e a espadilha fizeram naquella +noite o seu officio, como as mariposas e as ratos, os ventos e as +ondas, o lume das estrellas e o somno dos cidadãos. + + + + +CAPITULO LXVII + + +A noite inteira + + +Saindo de casa, Paulo foi á de um amigo, e os dous entraram a buscar +outros da mesma edade e egual intimidade. Fôram aos jornaes, ao quartel +do Campo, e passaram algum tempo deante da casa de Deodoro. Gostavam +de ver os soldados, a pé ou a cavallo, pediam licença, falavam-lhes, +offereciam cigarros. Era a unica concessão destes; nenhum lhes contou o +que se passara, nem todos saberiam nada. + +Não importa, iam cheios de si. Paulo era o mais enthusiasta e convicto. +Aos outros valia só a mocidade, que é utn programma, mas o filho de +Santos tinha frescas todas as ideias do novo regimen, e possuia ainda +outras que não via acceitar; bater-se-ia por ellas. Trazia até a desejo +de achar alguem na rua, que soltasse um grito, já agora sedicioso, para +íhe quebrar a cabeça com a bengala. Note-se que esquecera ou perdera a +bengala. Não deu por falta della; se désse, bastavam-lhe os braços e as +mãos. + +Propoz cantarem a _Marselheza_; os outros não quizeram ir tão longe, +não por medo, senão de cançados. Paulo, que resistia mais que elles á +fadiga, lembrou-lhes esperar a aurora. + +--Vamos esperal-a do alto de um morro, ou da praia do Flamengo; teremos +tempo de dormir amanhã. + +--Eu não posso, disse um. + +Os outros repetiram a recusa, e assentaram de ir para suas casas. Era +perto de duas horas. Paulo acompanhou-os a todos, e só depois de ver o +ultimo recolhido foi sósinho para Botafogo. + +Quando entrou, deu com a mãe que esperava por elle, inquieta e +arrependida de o haver deixado sair. Paulo não achou desculpa e +censurou a mãe por não dormir, á espera delle. Natividade confessou que +não teria somno, antes de o saber em casa são e salvo. Falavam baixo e +pouco; tendo-se beijado antes, beijaram-se depois e despediram-se. + +--Olha, disse Natividade, se achares Pedro acordado não lhe contes nem +lhe perguntes nada; dorme, e amanhã saberemos tudo e o mais que se +passar esta noite. + +Paulo entrou no quarto pé ante pé. Era ainda aquelle vasto quarto +em que os dous gemeos brigaram por causa de duas velhas gravuras, +Robespierre e Luiz XVI. Agora, havia mais que os retratos, uma +revolução de poucas horas e um governo fresco. Obedecendo ao conselho +da mãe, Paulo não quiz saber se Pedro dormia, posto desconfiasse que +não. Effectivamente, não. Pedro viu as cautellas de Paulo, e cumpriu +tambem os conselhos da mãe; fingiu que não via nada. Até ahi os +conselhos; mas um pouco de gloria fez com que Paulo cantarolasse entre +os dentes, baixinho, para si, a primeira estrophe da _Marselheza_ que +os amigos tinham recusado fóra: + + Allons, enfants de la patrie, + Le jour de gloire est arrivé! + +Pedro percebeu antes pela toada que pela letra, e concluiu que a +intenção do outro era affligil-o. Não era, mas podia ser. Vacillou +entre a réplica e o silencio, até que uma ideia fantastica lhe +atravessou o cerebro, cantarolar, tambem baixinho, a segunda parte +da estrophe: «_Entendez-vous dans vos campagnes..._», que allude ás +tropas estrangeiras, mas desviada do natural sentido historico, para +restringil-a ás tropas nacionaes. Era um desforço vago, a ideia passou +depressa. Pedro contentou-se de simular a indifferença suprema do +somno. Paulo não acabou a estrophe; despiu-se agitado, sem tirar o +pensamento da victoria dos seus sonhos politicos. Não se metteu logo +na cama; foi primeiro á do irmão, a ver se dormia. Pedro respirava +tão naturalmente, como se não perdera nada. Teve impeto de acordal-o, +bradar-lhe que perdera tudo, se alguma cousa era a instituição +derribada. Recuou a tempo e foi metter-se entre os lençóes. + +Nenhum dormia. Emquanto o somno não chegava, iam pensando nos +acontecimentos do dia, ambos espantados de como fôram faceis e rapidos. +Depois cogitavam no dia seguinte e nos effeitos ulteriores. Não admira +que não chegassem á mesma conclusão. + +--Como diabo é que elles fizeram isto, sem que ninguem désse pela +cousa? reflectia Paulo. Podia ter sido mais turbulento. Conspiração +houve, de certo, mas uma barricada não faria mal. Seja como fôr, +venceu-se a campanha. O que é preciso é não deixar esfriar o ferro, +batel-o sempre, e renoval-o. Deodoro é uma bella figura. Dizem que a +entrada do marechal no quartel, e a saida, puxando os batalhões, fôram +esplendidas. Talvez faceis de mais; é que o regimen estava pôdre e caiu +por si... + +Emquanto a cabeça de Paulo ia formulando essas ideias, a de Pedro ia +pensando o contrario; chamava ao movimento um crime. + +--Um crime e um disparate, além de ingratidão; o imperador devia ter +pegado os principaes cabeças e mandal-os executar. Infelizmente, as +tropas iam com elles. Mas nem tudo acabou. Isto é fogo de palha; +daqui a pouco está apagado, e o que antes era torna a ser. Eu acharei +duzentos rapazes bons e promptos, e desfaremos esta caranquejola. A +apparencia é que dá um ar de solidez, mas isto é nada. Hão de ver que +o imperador não sae daqui, e, ainda que não queira, ha de governar; +ou governará a filha, e, na falta della, o neto. Tambem elle ficou +menino e governou. Amanhã é tempo; por ora tudo são flores. Ha ainda um +punhado de homens... + +A reticencia final dos discursos de ambos quer dizer que as ideias +se iam tornando esgarçadas, nevoentas e repetidas, até que se +perderam e elles dormiram. Durante o somno, cessou a rovolução e a +contra-revolução, não houve monarchia nem republica, D. Pedro II nem +marechal Deodoro, nada que cheirasse a politica. Um e outro sonharam +com a bella enseada de Botafogo, um céu claro, uma tarde clara e uma só +pessoa: Flora. + + + + +CAPITULO LXVIII + + +De manhã + + +Flora abriu os olhos de ambos, e esvaiu-se tão depressa que elles mal +puderam ver a harpa do vestido e ouvir uma palavrinha meiga e remota. +Olharam um para o outro, sem rancor apparente. O receio de um e a +esperança de outro deram tregoas. Correram aos jornaes. Paulo, meio +tonto, temia alguma traição sobre a madrugada. Pedro tinha uma ideia +vaga de restauração, e contava ler nas folhas um decreto imperial da +amnistia. Nem traição nem decreto, A esperança e o receio fugiram deste +mundo. + + + + +CAPITULO LXIX + + +Ao piano + + +Emquanto elles sonhavam com Flora, esta não sonhou com a republica. +Teve uma daquellas noites em que a imaginação dorme tambem, sem olhos +nem ouvjdos, ou, quando muito, a retina não deixa ver claro, e as +orelhas confundem o som de um rio com o latir de um cão remoto. Não +posso dar melhor definição, nem ella é precisa; cada um de nós terá +tido dessas noites mudas e apagadas. + +Não sonhou sequer com musica; e, aliás tocára antes algumas das suas +paginas queridas. Não as tocou somente por gostar dellas, senão +por fugir á consternação dos paes, que era grande. Nenhum d'estes +podia crêr que as instituições tivessem caido, outras nascido, tudo +mudado. D. Claudia ainda appellava para o dia seguinte e perguntava +ao marido se vira bem, e o que é que vira; elle mordia os beições, +batia na perna, erguia-se, dava alguns passos, e tornava a narrar os +acontecimentos, as noticias colladas ás portas dos jornaes, a prisão +dos ministros, a situação, tudo extincto, extincto, extincto... + +Flora não era avessa á piedade, nem á esperança, como sabeis; mas +não ia com a agitação dos paes, e metteu-se com o seu piano e as +suas musicas. Escolheu não sei que sonata. Tanto bastou para lhe +tirar o presente. A musica tinha para ella a vantagem de não ser +presente, passado ou futuro; era uma cousa fóra do tempo e do espaço, +uma idealidade pura. Quando parava, succedia-lhe ouvir alguma +phrase solta do pae ou da mãe: «...Mas como foi que...?»--«Tudo ás +escondidas...»--«Ha sangue?» Às vezes um delles fazia algum gesto, +e ella não via o gesto. O pae, com a alma tropega, falava muito e +incoherente. A mãe trazia outro vigor. Já lhe succedia calar por +instantes, como se pensasse, ao contrario do marido que, em se calando, +coçava a cabeça, apertava as mãos ou suspirava, quando não ameaçava o +tecto com o punho. + +--_Lá, lá, dó, ré, sol, ré, ré, lá_, ia dizendo o piano da filha, por +essas ou por outras notas, mas eram notas que vibravam para fugir aos +homens e suas dissensões. + +Tambem se póde achar na sonata de Flora uma especie de accordo com +a hora presente. Não havia governo definitivo. A alma da moça ia +com esse primeiro albor do dia, ou com esse derradeiro crepusculo +da tarde,--como queiras,--em que nada é tão claro ou tão escuro que +convide a deixar a cama ou accender velas. Quando muito, ia haver +um governo provisorio. Flora não entendia de fórmas nem de nomes. A +sonata trazia a sensação da falta absoluta de governo, a anarchia da +innocencia primitiva naquelle recanto do Paraiso que o homem perdeu +por desobediente, e um dia ganhará, quando a perfeição trouxer a +ordem eterna e unica. Não haverá então progresso nem regresso, mas +estabilidade. O seio de Abrahão agazalhará todas as cousas e pessoas, e +a vida será um céu aberto. Era o que as teclas lhe diziam sem palavras, +_ré, ré, lá, sol, lá, lá, dó..._ + + + + +CAPITULO LXX + + +De uma conclusão errada + + +Os successos vieram vindo, á medida que as flores iam nascendo. Destas +houve que serviram ao ultimo baile do anno. Outras morreram na vespera. +Poetas de um e outro regimen tiraram imagem do facto para cantarem a +alegria e a melancolia do mundo. A differença é que a segunda abafava +os seus suspiros, em quanto a primeira levava longe os seus tripudios. +O metal das trompas dava outro som que o das harpas. As flores é que +continuavam a nascer e morrer, egual e regularmente. + +D. Claudia colheu as rosas do ultimo baile do anno, primeiro da +Republica, e adornou a filha com ellas. Flora obedeceu e acceitou-as. +Pae de familia antes de tudo, Baptista acompanhou a esposa e a +filha ao baile. Tambem lá foi Paulo, pela moça e pelo regimen. Se, +em conversa com o ex-presidente de provincia, disse todo o bem que +pensava do Governo Provisorio, não lhe ouviu palavras de accordo nem de +contestação. Não entrou mais fundo na confissão do homem, porque a moça +o attraia, e elle gostava mais della que do pae. + +Flora viu uma semelhança entre o baile da ilha Fiscal e este, apesar de +particular e modesto. Este era dado por pessoa que vinha dos tempos da +propaganda e um dos ministros lá esteve, ainda que só meia hora. Dahi a +ausencia de Pedro, apesar de convidado. Flora sentiu a falta de Pedro, +como sentira a de Paulo na ilha; tal era a semelhança das duas festas. +Ambas traziam a ausencia de um gemeo. + +--Porque é que seu irmão não veiu? perguntou ella. + +Paulo enfiou; depois de alguns instantes: + +--Pedro é teimoso, disse. Teimou em recusar o convite. Crê naturalmente +que a monarchia levou a arte de dançar. Não faça caso; é um lunatico. + +--Não diga isso. + +--Acha tambem que a dança se foi com o imperio? + +--Não, a prova é que estamos dançando. Não; digo que lhe não chame +nomes feios. + +--Parece-lhe então que Pedro é um rapaz de juizo? + +--Certamente, como o senhor. + +--Mas... + +Paulo ia a perguntar-lhe qual d'elles, tendo ella de jurar por um ou +por outro, lhe mereceria o juramento; mas recuou a tempo. Então ella +falou do calor, e elle achou que sim, que estava quente. Acharia que +estava frio, se ella se queixasse de frio. Flora, se só cedesse á +vista, era tambem capaz de acceitar todas as opiniões de Paulo, para ir +com elle. Em verdade, Paulo tinha agora um ar brilhante e petulante, +olhava por cima, firme em que os seus escriptos de um anno é que haviam +feito a Republica, posto que incompleta, sem certas ideias que expozera +e defendera, e teriam de vir um dia, breve. Tal ia dizendo á moça, e +ella escutava com prazer, sem opinião; era só o gosto de o escutar. +Quando a lembrança de Pedro surgia na cabeça da moça, a tristeza +empanava a alegria, mas a alegria vencia depressa a outra, e assim +acabou o baile. Então as duas, tristeza e alegria, agazalharam-se no +coração de Flora, como as suas gemeas que eram. + +O baile acabou. O capitulo é que não acaba sem que deixe um pouco de +espaço a quem quizer pensar naquella creatura. Pae nem mãe podiam +entendel-a, os rapazes tambem não, e provavelmente Santos e Natividade +menos que ninguem. Tu, mestra de amores ou alumna delles, tu que +escutas a diversos, conclues que ella era... Custa pôr o nome do +officio. Se não fosse a obrigação de contar a historia com as proprias +palavras, preferia calal-o, mas tu sabes qual é elle, e aqui fica. +Conclues que Flora era namoradeira, e conclues mal. + +Leitora, é melhor negar já isto que esperar pelo tempo. Flora não +conhecia as doçuras do namoro, e menos ainda se podia dizer namoradeira +de officio. A namoradeira de officio é a planta das esperanças, +e alguma vez das realidades, se a vocação o impõe e a occasião o +permitte. Tambem é preciso ter em lembrança aquillo de um publicista, +filho de Minas e do outro seculo, que acabou senador, e escrevia contra +os ministros adversarios: «Pitangueira não dá manga.» Não, Flora não +dava para namorados. + +A prova disto é que no Estado em que viveu alguns mezes de 1801, com o +pae e a mãe, para o fim que direi adiante, ninguem alcançou o menor dos +seus olhares amigos ou sequer complacentes. Mais de um rapaz consumiu +o tempo em se fazer visto e attrahido della. Mais de uma gravata, mais +de uma bengala, mais de uma luneta levaram-lhe as côres, os gestos e os +vidros, sem obter outra cousa que a attenção cortez e acaso uma palavra +sem valor. + +Flora só se lembrava dos gemeos. Se nenhum delles a esqueceu, ella não +os perdeu de memoria, Ao contrario, escrevia por todos os correios a +Natividade para se fazer lembrada de ambos. As cartas falavam pouco da +terra ou da gente, e não diziam mal nem bem. Usavam muito a palavra +saudades, que cada um dos dous gemeos lia para si. Tambem elles a +escreviam nas cartas que mandavam a D. Claudia e a Baptista, com a +mesma intenção duplicada e e mysteriosa, que ella entendia muito bem. + +Taes eram de longe, ella e elles. A rixa velha, que os desunia na vida, +continuava a desunil-os no amor. Podiam amar cada um a sua moça, casar +com ella e ter os seus filhos, mas preferiam amar a mesma, e não ver +o mundo por outros olhos, nem ouvir melhor verbo, nem diversa musica, +antes, durante e depois da commissão do Baptista. + + + + +CAPITULO LXXI + + +A commissão + + +Lá me escapou a palavra. Sim, foi uma commissão dada ao pae, e da qual +não sei nada, nem ella. Negocio reservado. Flora chamava-lhe commissão +do inferno. O pae, sem ir tão fundo, concordava mentalmente com ella; +verbalmente, desmentia a definição. + +--Não digas isso, Flora; é commissão de confiança para fins nobremente +politicos. + +Creio que sim, mas dahi a saber o objecto especial e real, ia largo +espaço. Tambem não se sabe como foi parar ás mãos de Baptista aquelle +recado do governo. Sabe-se que elle não desprezou a escolha, quando +um amigo intimo correu a chamal-o ao palacio do generalissimo. Viu +que era reconhecer nelle muita finura e capacidade de trabalho. Não +é menos certo, porém, que a commissão entrava a aborrecel-o, posto +que na correspondencia official dissesse exactamente o contrario. Se +taes papeis mostrassem sempre o coração da gente, Baptista, cujas +instrucções eram, aliás, de concordia, parecia querer levar a concordia +a ferro e fogo; mas o estylo não é o homem. O coração de Baptista +fechava-se, quando elle escrevia, e deixava ir a mão adiante, com a +chave do coração apertada... «Já é tempo, suspirava o musculo, já é +tempo de um logar de governador.» + +Quanto a D. Claudia, nao queria ver acabada a commissão, que restituia +ao esposo a acção politica; faltava-lhe sómente uma cousa, opposição. +Nenhum jornal dizia mal delle. Aquelle prazer de ler todas as manhãs +as descomposturas dos adversarios, lel-as e relel-as com os seus nomes +feios, como lategos de muitas pontas, que lhe rascavam as carnes e +a excitavam ao mesmo tempo, esse prazer não lhe dava a commissão +reservada. Ao contrario, havia uma especie de aposta em achar o +commissario justo, equitativo e conciliador, digno de admiração, typo +civico, caracter sem macula. Tudo isto ella conheceu outr'ora, mas para +lhe achar sabor foi sempre preciso que viesse entremeado de ralhos +e calumnias. Sem elles, era agua ensossa. Tambem não tinha aquella +parte de ceremonias a que obrigava o summo cargo, mas não lhe faltavam +attenções, e era alguma cousa. + + + + +CAPITULO LXXII + + +O regresso + + +Quando o marechal Deodoro dissolveu o congresso nacional, em 3 de +novembro, Baptista recordou o tempo dos manifestos liberaes, e quiz +fazer um. Chegou a principial-o, em segredo, empregando as belIas +phrases que trazia de cór, citações latinas, duas ou trez apostrophes. +D. Claudia reteve-o á beira do abysmo, com razões claras e robustas. +Antes de tudo, o golpe de Estado podia ser um beneficio. Serve-se muita +vez a liberdade parecendo suffocal-a. Depois, era o mesmo homem que a +havia proclamado que convidava agora a nação a dizer o que queria, e +a emendar a constituição, salvo nas partes essenciaes. A palavra do +generalissimo, como a sua espada, bastava a defender e consummar a obra +principiada. D. Claudia não tinha estylo proprio, mas sabia communicar +o calor do discurso ao coração de um homem de boa vontade. Baptista, +depois de a escutar e pensar, bateu-lhe no hombro imperativamente. + +--Tens razão, filha. + +Não rasgou o papel escripto; queria guardal-o como simples lembrança, +e a prova é que ia escrever uma carta ao presidente. D. Claudia tambem +lhe tirou esta ideia da cabeça. Não havia necessidade de lhe mandar o +seu suffragio; bastava conservar-se na commissão. + +--O governo não está satisfeito com você? + +--Está. + +--Vendo que você se conserva, conclue que approva tudo, e basta. + +--Sim, Claudia, concordou elle após alguns instantes. Ao contrario, +qualquer cousa que escrevesse contra a assembléa sediciosa que o +presidente acaba de dissolver, pareceria falta de piedade. Paz aos +mortos! Tens razão, filha. + +Conservou-se calado, operando, fiel ás instrucções recebidas. Vinte +dias depois, o marechal Deodoro passava o governo ás mãos do marechal +Floriano, o congresso era restabelecido e todos os decretos do dia 3 +annullados. + +Ao saber de taes factos, Baptista pensou morrer. Ficou sem fala por +alguns instantes, e D. Claudia não achou a menor parcella de animo +que lhe désse. Nenhum contára com a marcha rapida dos acontecimentos, +uns sobre outros, com tal atropello que parecia um bando de gente que +fugia. Vinte dias apenas; vinte dias de força e socego, esperanças e +grande futuro. Um dia mais e tudo ruiu como casa velha. + +Agora é que Baptista comprehendeu o erro de haver dado ouvidos á +esposa. Se tem acabado e publicado o manifesto no dia 4 ou 5, estaria +com um documento de resistencia na mão para reivindicar um posto de +honra qualquer,--ou só estima que fosse. Releu o manifesto; chegou a +pensar em imprimil-o, embora incompleto. Tinha conceitos bons, como +este; «O dia da oppressão é a vespera da liberdade.» Citava a bella +Roland caminhando para a guilhotina; «Ó liberdade, quantos crimes em +teu nome!» D. Claudia fez-lhe ver que era tarde, e elle concordou. + +--Sim, é tarde. Naquelle dia é que não era tarde, vinha á hora propria, +para o effeito certo. + +Baptista amarrotou o papel distrahidaraente; depois alisou-o e +guardou-o. Em seguida, fez um exame de consciencia, profundo e sincero. +Não devia ter cedido; a resistencia era o melhor; se tem resistido ás +palavras da mulher, a situação seria outra. Apalpou-se, achou que sim, +que podia muito bem haver-lhe trancado os ouvidos e passado adiante. +Insistiu muito neste ponto. Se pudesse, faria voltar atraz o tempo, e +mostraria como é que a alma escolhe de si mesma o melhor dos partidos. +Não era preciso saber nada do que anteriormente succedeu; a consciencia +dizia-lhe que, era situação identica á do dia 3, faria outra cousa... +Oh! com certeza! faria cousa muito diversa, e mudaria o seu destino. + +Um officio ou telegrarama veiu arrancar Baptista á commissão politica +e reservada, A volta para o Rio de Janeiro foi breve e triste, sem os +epithetos que o haviam regalado por alguns mezes, nem acompanhamento de +amigos. Só uma pessoa vinha alegre, a filha, que rezara todas as noites +pela terminação daquelle exilio. + +--Parece que estás contente com o desastre de teu pae, disse-lhe a mãe +já a bordo. + +--Não, mamãe; alegro-me de ver que acabou esta canceira. Papae póde +muito bem fazer politica no Rio de Janeiro, onde é muito apreciado, +A senhora verá. Eu, se fosse papae, apenas desembarcasse, ia logo ao +marechal explicar tudo, mostrar as instrucções e dizer o que tinha +feito; dizia mais que a dispensa veiu muito a proposito, afim de não +parecer que ficara amofinado. Depois pedia-lhe para trabalhar lá +mesmo... + +D. Claudia, a despeito do amargor dos tempos, gostou de ver que a filha +pensava e dava conselhos em politica. Não advertiu, como fez o leitor, +que a alma do discurso da moça era não sair da capital, fazer aqui +mesmo o seu congresso, que em breve seria uma só assembléa legislativa, +como no Rio Grande do Sul; mas a qual das cantaras, Pedro ou Paulo, +caberia esse unico poder politico? Eis o que ella mesma não sabia. + +Ambos se lhe apresentaram a bordo, logo que o paquete entrou no +porto do Rio de Janeiro. Não fôram em duas lanchas, fôram na mesmo, +e saltaram com tal presteza para a escada, que escaparam de cair ao +mar. Talvez fosse o melhor desfecho do livro. Ainda assim não acaba +mal o capitulo, porque a razão da presteza com que elles saltaram para +a escada foi a ambição de ser o primeiro que comprimentasse a moça; +aposta de amor, que ainda uma vez os egualou na alma della. Emfim +chegaram, e não consta qual effectivamente a cumprimentou primeiro; +póde ser que ambos. + + + + +CAPITULO LXXIII + + +Um El-Dorado + + +No caes Pharoux esperavam por elles trez carruagens,--dous _coupés_ e +um _landau_, com trez bellas parelhas de cavallos. A gente Baptista +ficou lisonjeada com a fineza da gente Santos, e entrou no _landau._ Os +gemeos foram cada um no seu _coupé._ A primeira carruagem tinha o seu +cocheiro e o seu lacaio, fardados de castanho, botões de metal branco, +em que se podiam ver as armas da casa. Cada uma das outras tinha +apenas o cocheiro, com egual libré. E todas trez se puzeram a andar, +estas atraz daquella, os animaes batendo rijo e compassado, a golpes +certos, como se houvessem ensaiado, por longos dias, aquella recepção. +De quando em quando, encontravam outros trens, outras librés, outras +parelhas, a mesma belleza e o mesmo luxo. + +A capital offerecia ainda aos recem-chegados um espectaculo magnifico. +Vivia-se dos restos daquelle deslumbramento e agitação, epopeia de ouro +da cidade e do mundo, porque a impressão total é que o mundo inteiro +era assim mesmo. Certo, não lhe esqueceste o nome, encilhamento, a +grande quadra das emprezas e companhias de toda especie. Quem não viu +aquillo não viu nada. Cascatas de ideias, de invenções, de concessões +rolavam todos os dias, sonoras e vistosas para se fazerem contos de +reis, centenas de contos, milhares, milhares de milhares, milhares +de milhares de milhares de contos de reis. Todos os papeis, aliás +acções, saíam frescos e eternos do prelo. Eram estradas de ferro, +bancos, fabricas, minas, estaleiros, navegação, edificação, exportação, +importação, ensaques, emprestimos, todas as uniões, todas as regiões, +tudo o que esses nomes comportam e mais o que esqueceram. Tudo andava +nas ruas e praças, com estatutos, organisadores e listas. Letras +grandes enchiam as folhas publicas, os titulos succediam-se, sem que se +repetissem, raro morria, e só morria o que era frouxo, mas a principio +nada era frouxo. Cada acção trazia a vida intensa e liberal, alguma vez +immortal, que se multiplicava daquella outra vida com que a alma acolhe +as religiões novas. Nasciam as acções a preço alto, mais numerosas que +as antigas crias da escravidão, e com dividendos infinitos. + +Pessoas do tempo, querendo exagerar a riqueza, dizem que o dinheiro +brotava do chão, mas não é verdade. Quando muito, caia do céu. Candido +e Cacambo... Ai, pobre Cacambo nosso! Sabes que é o nome daquelle +indio que Basilio da Gama cantou no _Uruguay._ Voltaire pegou delle +para o metter no seu livro, e a ironia do philosopho venceu a doçura +do poeta. Pobre José Basilio! tinhas contra ti o assumpto estreito e a +lingua escusa. O grande homem não te arrebatou Lindoya, felizmente, mas +Cacambo é delle, mais delle que teu, patricio da minha alma. + +Candido e Cacambo, ia eu dizendo, ao entrarem no El-Dorado, conta +Voltaire que viram creanças brincando na rua com rodelas de ouro, +esmeralda e rubi; apanharam algumas, e na primeira hospedaria em que +comeram quizeram pagar o jantar com duas dellas. Sabes que o dono da +casa riu ás bandeiras despregadas, já por quererem pagar-lhe com pedras +do calçamento, já porque alli ninguem pagava o que comia; era o governo +que pagava tudo. Foi essa hilaridade do hospedeiro, com a liberalidade +attribuida ao Estado, que fez crêr eguaes phenomenos entre nós, mas é +tudo mentira. + +O que parece ser verdade é que as nossas carruagens brotavam do chão. +Ás tardes, quando uma centena dellas se ia enfileirar no largo de S. +Francisco de Paula, á espera das pessoas, era um gosto subir a rua +do Ouvidor, parar e contemplal-as. As parelhas arrancavam os olhos á +gente; todas pareciam descer das rhapsodias de Homero, posto fossem +corceis de paz. As carruagens tambem. Juno certamente as apparelhára +com suas correias de ouro, freios de ouro, redeas de ouro, tudo de +ouro incorruptivel. Mas nem ella nem Minerva entravam nos vehiculos de +ouro para os fins da guerra contra Illion. Tudo alli respirava a paz. +Cocheiros e lacaios, barbeados e graves, esperando tezos e compostos, +davam uma bella ideia do officio. Nenhum aguardava o patrão, deitado +no interior dos carros, com as pernas de fóra. A impressão que davam +era de uma disciplina rigida e elegante, aprendida em alta escola e +conservada pela dignidade do individuo. + +«Casos ha,--escrevia o nosso Ayres--em que a impassibilidade do +cocheiro na boléa contrasta com a agitação do dono no interior da +carruagem, fazendo crêr que é o patrão que, por desfastio, trepou á +boléa e leva o cocheiro a passear.» + + + + +CAPITULO LXXIV + + +A allusão do texto + + +Antes de continuar, é preciso dizer que o nosso Ayres não se referia +vagamente ou de modo generico a algumas pessoas, mas a uma só pessoa +particular. Chamava-se então Nobrega; outr'ora não se chamava nada, era +aquelle simples andador das almas que encontrou Natividade e Perpetua +na rua de S. José, esquina da da Misericordia. Não esqueceste que a +recente mãe deitou uma nota de dous mil reis á bacia do andador. A nota +era nova e bella; passou da bacia á algibeira, no fundo de um corredor, +não sem algum combate. + +Poucos mezes depois, Nobrega abandonou as almas a si mesmas, e foi a +outros purgatorios, para os quaes achou outras opas, outras bacias e +finalmente outras notas, esmolas de piedade feliz. Quero dizer que foi +a outras carreiras. Com pouco deixou a cidade, e não se sabe se tambem +o paiz. Quando tornou, trazia alguns pares de contos de reis, que a +fortuna dobrou, redobrou e tresdobrou. Emfim, alvoreceu a famosa quadra +do «encilhamento». Esta foi a grande opa, a grande bacia, a grande +esmola, o grande purgatorio. Quem já sabia do andador das almas? A +antiga roda perdera-se na obscuridade e na morte. Elle era outro; as +feições não eram as mesmas, senão as que o tempo lhe veiu compondo e +melhorando. + +Se a grande bacia, ou qualqer das outras recebeu notas que tivessem o +destino da primeira, é o que se não sabe, mas é possivel. Foi por esse +tempo que Ayres o viu de carro, quasi a sair pela portinhola fóra, +comprimentando muito, espiando tudo. Como o cocheiro e o lacaio (creio +que eram escossezes) salvassem a dignidade pessoal da casa, Ayres fez a +observação do fim do outro capitulo, sem nenhuma intenção geral. + +Posto não achasse já nenhum conhecido antigo, Nobrega tinha medo de +tornar ao bairro, onde andára a pedir para as primeiras almas. Um dia, +porém, taes fôram as saudades delle que pensou em affrontar o perigo e +lá foi. Tinha cocegas de mirar as ruas e as pessoas, recordava as casas +e as lojas, um barbeiro, os sobrados de grade de pau, onde appareciam +taes e taes moças... Quando ia a ceder, teve outra vez medo e enfiou +por outra parte. Só passava de carro; depois quiz ver tudo a pé, +devagar, parando, se fosse possivel, e revivendo o extincto. + +Lá se foi a pé; desceu pela rua de S. José, dobrou a da Misericordia, +foi parar á praia de Santa Luzia, tornou pela rua de D. Manuel, enfiou +de becco em becco. A principio olhava de esguelha, rapido, os olhos no +chão. Aqui via a loja de barbeiro, e o barbeiro era outro. Dos sobrados +de grade de pau debruçaram-se ainda moças, velhas e meninas e nenhuma +era a mesma. Nobrega foi-se animando e. encarando. Talvez esta velha +fosse moça, ha vinte annos; a moça talvez mamasse, e dá agora de mamar +a outra creança. Nobrega acabou parando e andando de vagar. + +Voltou mais vezes. Só as casas, que eram as mesmas, pareciam +reconhecel-o, e algumas quasi que lhe falavam. Não é poesia. O +ex-andador sentia necessidade de ser conhecido das pedras, ouvir-se +admirar dellas, contar-lhes a vida, obrigal-as a comparar o modesto +de outr'ora com o garrido de hoje, e escutar-lhes as palavras +mudas: «Vejam, manas, é elle mesmo.» Passava por,ellas, fitava-as, +interrogava-as, quasi ria, quasi as tocava para sacudil-as com força: +«Falem, diabos, falem!» + +Não confiaria de homem aquelle passado, mas ás paredes mudas, ás +grades velhas, ás portas gretadas, aos lampiões antigos, se os havia +ainda, tudo o que fosse discreto, a tudo quizera dar olhos, ouvidos e +bôca, uma bôca que só elle escutasse, e que proclamasse a prosperidade +daquelle velho andador. + +Uma vez, viu a matriz de S. José aberta e entrou. A egreja era a mesma; +aqui estão os altares, aqui está a solidão, aqui está o silencio. +Persignou-se, mas não orou; olhava só a um lado e outro, andando na +direcção do altar-mór. Tinha receio de ver apparecer o sacristão, podia +ser o mesmo, e conhecel-o. Ouviu passos, recuou depressa e saiu. + +Ao subir pela rua de S. José, encostou-se á parede, para deixar passar +uma carroça. A carroça subiu a calçada, elle refugiou-se n'um corredor. +O corredor podia ser qualquer; aquelle era o proprio em que elle fez +a operação da nota de dous mil reis de Natividade. Olhou bem, era o +mesmo. Ao fundo estavam os trez ou quatro degráos da primeira escada +que dobrava á esquerda e pegava com a grande. Sorriu do acaso, reviu +por um instante aquella manhã, viu no ar a nota de dous mil reis. +Outras lhe teriam vindo ás mãos por maneiras assim faceis, mas nunca +lhe esqueceu aquella graciosa folha gravada com tantos symbolos, +numeros, datas e promessas, entregue por uma senhora desconhecida, sabe +Deus se a propria Santa Rita de Cassia. Era a sua particular devoção. +Sem duvida, trocou a nota e gastou-a, mas as partes dispersas não fôram +senão levar a outras notas um convite para a algibeira do dono, e todas +acudiram a mancheias, obedientes e caladas, para que não as ouvissem +crescer. + +Por mais que elle olhasse pela vida dentro, não achava egual obsequio +do céu, ou sequer do inferno. Mais tarde, se alguma joia lhe levou os +olhos, não lhe levou as mãos. Tinha aprendido a respeitar o alheio, ou +ganhára com que o comprar. A nota de dous mil reis... Um dia, ousando +mais, chamou-lhe presente de Nosso Senhor. + +Não, leitor, não me apanhas em contradicção. Eu bem sei que a principio +o andador das almas attribuiu a nota ao prazer que a dama traria de +alguma aventura. Ainda me lembram as palavras delle: «Aquellas duas +viram passarinho verde!» Mas se agora attribuia a nota á protecção da +santa, não mentia então nem agora. Era difficil atinar com a verdade. +A unica verdade certa eram os dous mil reis. Nem se póde dizer que era +a mesma em ambos os tempos. Então, a nota de dous mil reis equivalia, +pelo menos, a vinte (lembra-te dos sapatos velhos do homem); agora não +subia de uma gorgeta de cocheiro. + +Tambem não ha contradicção em pôr a santa agora e a namorada outr'ora. +Era mais natural o contrario, quando era maior a intimidade delle com +egreja. Mas, leitor dos meus peccados, amava-se muito em 1871, como +já se amava em 1861, 1851 e 1841, não menos que em 1881, 1891 e 1901. +O seculo dirá o resto. E depois, é preciso não esquecer que a opinião +do andador das almas ácerca de Natividade foi anterior ao gesto do +corredor, quando elle agazalhou a nota na algibeira. É duvidoso que, +depois do gesto, a opinião fosse a mesma. + + + + +CAPITULO LXXV + + +Proverbio errado + + +Pessoa a quem li confidencialmente o capitulo passado, escreve-me +dizendo que a causa de tudo foi a cabocla do Castello. Sem as suas +predicções grandiosas, a esmola de Natividade seria minima ou nenhuma, +e o gesto do corredor não se daria por falta de nota. «A occasião faz o +ladrão», conclue o meu correspondente. + +Não conclue mal. Ha todavia alguma injustiça ou esquecimento porque as +razões do gesto do corredor fôram todas pias. Além disso, o proverbio +póde estar errado. Uma das affirmações de Ayres, que tambem gostava de +estudar adagios, é que esse não estava certo. + +--Não é a occasião que faz o ladrão, dizia elle a alguem; o proverbio +está errado. A fórma exacta deve ser esta: «A occasião faz o furto; o +ladrão nasce feito.» + + + + +CAPITULO LXXVI + + +Talvez fosse a mesma! + + +Nobrega saiu emfim do corredor, mas foi obrigado a deter-se, porque uma +mulher lhe estendia a mão: + +--Meu senhor, uma esmolinha por amor de Deus! + +Nobrega metteu a mão no bolso do collete e pegou um nickel, entre dous +que lá havia, um de tostão, outro de dous. Pegou o primeiro, mas indo a +darlh'o, mudou de ideia; não deu o nickel; disse á velha que esperasse, +e entrou mais fundo no corredor. De costas para a rua, introduziu a mão +na algibeira das calças e saccou um maço de dinheiro; procurou e achou +uma nota de dous mil reis, não nova, antes velha, tão velha como a +mendiga que a recebeu espantada, mas tu sabes que o dinheiro não perde +com a velhice. + +--Tome lá, murmurou elle. + +Quando a mendiga voltou do espanto, Nobrega acabava de restituir o +maço á algibeira e ia a querer sair. O que a mendiga então disse veiu +entremeado de lagrimas: + +--Meu senhor! Obrigada, meu senhor! Deus lhe pague! A Virgem +Santissima... + +E beijava a nota, e queria beijar a mão que lhe dera a esmola, mas +elle a escondeu, como no Evangelho, murmurando que não, que se fosse +embora. Em verdade, a palavra da mendiga tinha um som quasi mystico, +uma especie de melodia do céu, um côro de anjos, e fazia bem fitar-lhe +os olhos encarquilhados, a mão tremula, segurando a nota. Nobrega não +esperou que ella se fosse, saiu, desceu a rua, com as bençãos da mulher +atraz de si; dobrou a esquina, a passo rapido, e ahi foi pensando não +se sabe em quê. + +Atravessou a praça, passou a cathedral e a egreja do Carmo, e chegou +ao Carceller, onde entregou as botas a um italiano para que lh'as +engraxasse. Mentalmente, olhava para cima ou para baixo, para a direita +ou para esquerda,--em todo caso para longe,--e acabou murmurando +esta phrase, que tanto podia referir-se á nota. como á mendiga, mas +provavelmente era á nota: + +--Talvez fosse a mesma! + +Nenhum obsequio, por infimo que seja, esquece ao beneficiado. Ha +excepções. tambem ha casos em que a memoria dos obsequios afflige, +persegue e morde, como os mosquitos; mas não é regra. A regra é +guardal-os na memoria, como as joias nos seus escrinios; comparação +justa, porque o obsequio é muita vez alguma joia, que o obsequiado +esqueceu de restituir. + + + + +CAPITULO LXXVII + + +Hospedagem + + +A família Baptista foi aposentada em casa de Santos. Natividade não +pôde ir a bordo, e o marido estava occupado em «lançar uma companhia»; +mandaram recado pelos filhos que a casa de Botafogo tinha já os quartos +preparados. Desde que o carro se poz a andar, Baptista confessou que ia +ficar constrangido por alguns dias. + +--N'uma casa de pensão era melhor, até que nos despejassem a de S. +Clemente. + +--Que queria você? Não havia remedio senão acceitar, ponderou a mulher. + +Flora não disse nada, mas sentia o contrario do pae e da mãe. Pensar +não pensou; ia tão atordoada com a vista dos rapazes que as ideias não +se enfileiraram naquella forma logica do pensamento. A propria sensação +não era nitida. Era uma mistura de oppressivo e delicioso, de turvo e +claro, uma felicidade truncada, uma afflicção consoladora, e o mais que +puderes achar no capitulo das contradicções. Eu nada mais lhe ponho. +Nem ella saberia dizer o que sentia. Teve allucinações extraordinarias. + +Agora o que é mister dizer é que a ideia da hospedagem cabe toda aos +dous jovens doutores. Que elles eram já doutores, posto não houvessem +ainda encetado a carreira de advogado nem de medico. Viviam do amor +da mãe e da bolsa do pae, inexgotaveis ambos. O pae abanou as orelhas +á lembrança, mas os gemeos insistiram pelo obsequio, a tal ponto que +a mãe, contente de os ver de accordo, saiu do silencio e concordou +com elles. A ideia de ter a pequena ao pé de si, por alguns dias, e +discernir qual era o melhor acceito, e o que devéras a amava, póde ser +que tambem influisse na adopção do voto, mas não affirmo nada a tal +respeito. Tambem não asseguro que tivesse grande gosto em agazalhar a +mãe e o pae de Flora. Não obstante, o encontro foi cordial de parte a +parte. Foi um abraçar, um beijar, um perguntar, um trocar de mimos que +não acabava mais. Todos estavam mais gordos, outra côr, outro ar. Flora +era um encanto para Natividade e Perpetua; nenhuma destas sabia aonde +iria parar aquella moça tão senhoril, tão esbelta, tão... + +--Não digam o resto, interrompeu a moça sorrindo; eu tenho a mesma +opinião. + +Santos recebeu-os, á tarde, com a mesma cordialidade,--talvez menos +apparente, mas tudo se desculpa a quem anda com grandes negocios. + +--Uma ideia sublime, disse elle ao pae de Flora; a que lancei hoje foi +das melhores, e as acções valem já ouro. Trata-se de lã de carneiro, +e começa pela criação deste mammifero nos campos do Paraná. Em cinco +annos poderemos vestir a America e a Europa. Viu o programma nos +jornaes? + +--Não, não leio jornaes daquir desde que embarquei. + +--Pois verá! + +No dia seguinte, antes de almoçar, mostrou ao hospede o programma e os +estatutos. As acções eram maços e maços, e Santos ia dizendo o valor +de cada um. Baptista sommava mal, em regra; daquella vez, peor. Mas os +algarismos cresciam á vista, trepavam uns nos outros, enchiam o espaço, +desde o chão até ás janellas, e precipitavam-se por ellas abaixo, com +um rumor de ouro que ensurdecia. Baptista saiu d'alli fascinado, e foi +repetir tudo á mulher. + + + + +CAPITULO LXXVIII + + +Visita ao marechal + + +D. Claudia, quando elle acabou, perguntou-lhe com simplicidade: + +--Você vae hoje ao marechal? + +Baptista, caindo em si: + +--Naturalmente. + +Tinham ajustado que elle iria ter com o presidente da Republica +explicar-lhe a commissão que exercera, toda reservada, e, sem embargo, +imparcial. Diria o espirito de concordia com que andou e a estima que +adquiriu. Em seguida, falaria da conveniencia de um governo que, pela +fortaleza e pela liberdade, excedesse o do generalissimo; e uma phrase +final bem estudada. + +--Isso na occasião, disse Baptista. + +--Não, é melhor leval-a feita. Eu lembrei-me desta: «Creia V. Ex. que +Deus está com os fortes e os bons.» + +--Sim, não é má. + +--Você póde accrescentar um gesto que indique céu. + +--Isso é que não. Você sabe que eu não dou para gestos, não sou actor. +Eu, sem mexer um pé, inspiro respeito. + +D. Claudia dispensou o gesto; não era essencial. Quiz que elle +escrevesse a phrase, mas já estava de cór. Baptista tinha boa memoria. + +Naquelle mesmo dia, Baptista foi ao marechal Floriano. Não disse nada +ás pessoas da casa; contaria tudo na volta. D. Claudia tambem calou, +era por pouco tempo; ficou esperando anciosa. Esperou duas mortaes +horas, chegou a imaginar que lhe tivessem encarcerado o esposo, por +intrigas. Não era devota, mas o medo inspira devoção, e ella rezou +comsigo. Emfim, chegou Baptista. Ella correu a recebel-o, alvoroçada, +pegou-lhe na mão e recolheram-se ao quarto. Perpetua (vêde o que são +testemunhos pessoaes na historia!) exclamou enternecida: + +--Parecem dous pombinhos! + +Baptista contou que a recepção foi melhor do que esperava, comquanto o +marechal não lhe dissesse nada, mas escutou-o com interesse. A phrase? +A phrase saiu bem, apenas com uma emenda. Não estando certo se elle +preferia _bons a fortes_, ou se _fortes a bons..._ + +--Deviam ser as duas palavras, interrompeu a mulher. + +--Sim, mas lembrou-me empregar uma terceira: «Creia V. Ex. que Deus +está com os dignos!» + +Com effeito, a ultima palavra podia abranger as duas, e trazia esta +vantagem de dar á phrase um arranjo pessoal delle. + +--Mas o marechal que disse? + +--Não disse nada; ouviu-me com attenção obsequiosa e chegou a +sorrir,--um sorriso leve, um sorriso de accordo... + +--Ou seria... Quem sabe... Você não andou bem, de certo. Commigo elle +diria alguma cousa. Você expoz tudo, conforme tinhamos combinado? + +--Tudo. + +--Expoz as razões da commissão, o desempenho, a nossa moderação...? + +--Tudo, Claudia. + +--E o aperto de mão do marechal? + +--Não estendeu a mão, a principio; fez um gesto de cabeça; eu é que +estendi a minha, dizendo: Sempre ás ordens de V. Ex. + +--E elle? + +--Elle apertou-me a mão. + +--Apertou bem? + +--Você sabe, não podia ser um apertão de amigo, mas deve ter sido +cordial. + +--E nenhuma palavra? Um _passe bem_, ao menos? + +--Não, nem era preciso. Cortejei-o e saí. + +D. Claudia deixou-se estar pensando. A recepção não lhe pareceu que +fosse má, mas podia ser melhor. Com ella, seria muito melhor. + + + + +CAPITULO LXXIX + + +Fusão, diffusão, confusão... + + +Atraz falei das allucinações de Flora. Realmente, eram extraordinarias. + +Em caminho, depois do desembarque, não obstante virem os gemeos +separados e sós, cada um no seu _coupé_, scismou que os ouvia +falar; primeira parte da allucinação. Segunda parte: as duas vozes +confundiam-se, de tão eguaes que eram, e acabaram sendo uma só. Afinal, +a imaginação fez dos dous moços uma pessoa unica. + +Este phenomeno não creio que possa ser commum. Ao contrario, não +faltará quem absolutamente me não creia, e supponha invenção pura o que +é verdade purissima. Ora, é de saber que, durante a commissão do pae, +Flora ouviu mais de uma vez as duas vozes que se fundiam na mesma voz e +mesma creatura. E agora, na casa de Botafogo, repetia-se o phenomeno. +Quando ouvia os dous, sem os ver, a imaginação acabava a fusão do +ouvido pela da vista, e um só homem lhe dizia palavras extraordinarias. + +Tudo isto não é menos extraordinario, concordo. Se eu consultasse o meu +gosto, nem os dous rapazes fariam um só mancebo, nem a moça seria uma +só donzella. Corrigiria a natureza desdobrando Flora. Não podendo ser +assim, consinto na unificação de Pedro e Paulo. Porquanto, esse effeito +de visão repetia-se ao pé delles, tal qual na ausencia, quando ella se +deixava esquecer do logar, e soltava a redea a si mesma. Ao piano, á +palestra, ao passeio na chacara, á mesa de jantar, tinha dessas visões +repentinas e breves, e das quaes ella mesma sorria, a principio. + +Se alguem quizer explicar este phenomeno pela lei da hereditariedade, +suppondo que elle era a forma affectiva da variação politica da mãe +de Flora, não achará apoio em mim, e creio que em ninguem. São cousas +diversas. Conheceis os motivos de D. Claudia; a filha teria outros +que ella propria não sabia. O unico ponto de semelhança é que, tanto +na mãe como na filha, o phenomeno era agora mais frequente, mas em +relação á primeira vinha do atropello dos acontecimentos exteriores. +Nenhuma revolução se faz como a simples passagem de uma sala a outra; +as mesmas revoluções chamadas de palacio trazem alguma agitação que +fica por certo prazo, até que a agua volte ao nivel. D. Claudia cedia á +inquietação dos tempos. + +A filha obedeceria a outra causa qualquer, que se não podia descobrir +logo, nem sequer entender. Era um espectaculo mysterioso, vago, +obscuro, em que ás figuras visiveis se faziam impalpaveis, o dobrado +ficava unico, o unico desdobrado, uma fusão, uma confusão, uma +diffusão... + + + +CAPITULO LXXX + + +Transfusão, emfim + + +Uma transfusão, tudo o que puder definir melhor, pela repetição e +graduação das fórmas e dos estados, aquelle particular phenomeno, pódes +empregal-o no outro e neste capitulo. + +Dito o phenomeno, é preciso dizer tambem que Flora, a principio, +achava-lhe graça. Minto; nos primeiros tempos, como estava longe, não +lhe achou nada; depois, sentiu uma especie de susto ou vertigem, mas +logo que se acostumou a passar de dous a um e de um a dous, pareceu-lhe +graciosa a alternação, e chegava a evocal-a com o proposito de divertir +a vista. Afinal nem isto era preciso, a alternação fazia-se de si +mesma. Umas vezes era mais lenta que outras, alguma instantanea. Não +eram tão frequentes que confinassem com o delirio. Emfim, ella se foi +acostumando e deleitando. + +Uma ou outra vez, na cama, antes de dormir, repetia-se o phenomeno, +depois de muita resistencia da parte della, que não queria perder +o somno. Mas o somno vinha, e o sonho completava a vigilia. Flora +passeava então pelo braço do mesmo garção amado, Paulo se não Pedro, e +ambos iam admirar estrellas e montanhas, ou então o mar, que suspirava +ou tempestuava, e as flores e as ruinas. Não era raro ficarem os dous +a sós, deante de uma nesga de céu, claro de luar, ou todo repregado +de estrellas como um panno azul escuro. Era á janella, suppõe; vinha +de fóra a cantiga dos ventos mansos, um espelho grande, pendente da +parede, reproduzia as figuras della e delle, confirmando a imaginação +della. Como era sonho, a imaginação trazia espectaculos desconhecidos, +taes e tantos que mal se podia crêr bastasse o espaço de uma noite. E +bastava. E sobrava. Succedia que Flora acordava de repente, perdia o +quadro e o vulto, e persuadia-se que era tudo illusão, e raro então +dormia. Se era cedo, erguia-se, andava, cançava-se, até adormecer +novamente e sonhar outra cousa. + +Outras vezes, a visão ficava sem o sonho, e diante della uma só figura +esbelta, com a mesma voz namorada, o mesmo gesto supplice. Uma noite, +indo a deitar-lhe os braços sobre os hombros com o fim inconsciente +de cruzar os dedos atraz do pescoço, a realidade, posto que ausente, +clamou pelos seus fóros, e o unico moço se desdobrou na duas pessoas +semelhantes. + +A differença deu ás duas visões de acordada um tal cunho de +fantasmagoria que Flora teve medo e pensou no Diabo. + + + + +CAPITULO LXXXI + + +Ai, duas almas... + + +Anda, Flora, ajuda-me, citando alguma cousa, verso ou prosa, que +exprima a tua situação. Cita Goethe, amiga minha, cita um verso do +Fausto, adequado: + + Ai, duas almas no meu seio moram! + +A mãe dos gemeos, a bella Natividade podia havel-o citado tambem, antes +delles nascerem, quando ella os sentia lutando dentro em si mesma: + + Ai, duas almas no meu seio moram! + +Nisto as duas se parecem,--uma os concebeu, outra os recolheu. +Agora, como é que se dá ou se dará a escolha de Flora, nem o proprio +Mephistopheles nol-o explicaria de modo claro e certo. O verso basta: + + Ai, duas almas no meu seio moram! + +Talvez aquelle velho Placido, que lá deixamos nas primeiras paginas, +chegasse a deslindar estas outras. Doutor em materias escuras e +complicadas, sabia muito bem o valor dos numeros, a significação dos +gestos não só visiveis como invisiveis, a estatistica da eternidade, +a divisibilidade do infinito. Era já morto deste alguns annos. Has de +lembrar-te que elle, consultado pelo pae de Pedro e Paulo, acerca da +hostilidade original dos gemeos, explicou-a promptamente. Morreu no seu +officio; expunha a trez discipulos novos a correspondencia das letras +vogaes com os sentidos do homem, quando caiu de bruços e expirou. + +Já então os adversarios de Placido,--que os tinha na propria +seita,--affirmavam haver elle aberrado da doutrina, e, por natural +effeito, enlouquecido. Santos nunca se deixou ir com esses divergentes +da casa commum, que acabaram formando outra egrejinha em outro bairro, +onde pregavam que a correspondencia exacta não era entre as vogaes e +os sentidos, mas entre os sentidos e as vogaes. Esta outra formula, +parecendo mais clara, fez com que muitos discipulos da primeira hora +acompanhassem os da ultima, e proclamem agora, como conclusão final, +que o homem é um alphabeto de sensações. + +Venceram estes, ficando mui poucos fieis á doutrina do velho Placido. +Evocado algum tempo depois de morto, confessou elle ainda uma vez a sua +formula, como a unica das unicas, e excommungou a quantos prégassem +o contrario. Aliás, os dissidentes já o haviam excommungado tambem, +declarando abominavel a sua memoria, com aquelle odio rijo, que +fortalece alguma vez o homem contra a frouxidão da piedade. + +Talvez o velho Placido deslindasse o problema em cinco minutos. Mas +para isso era preciso evocal-o, e o discipulo Santos cuidava agora de +umas liquidações ultimas e lucrativas. Não só de fé vive o homem, mas +tambem de pão e seus compostos e similares. + + + + +CAPITULO LXXXII + + +Em S. Clemente + + +Ao cabo de poucas semanas, a familia Baptista saiu da casa Santos, +e tornou á rua de S. Clemente. A despedida foi terna, as saudades +começaram antes da separação, mas a affeição, o costume, a estima,--a +necessidade, em summa, de se verem a miudo compensaram a melancolia, e +a gente Baptista levou promessa de que a gente Santos iria vel-a dahi a +poucos dias. + +Os gemeos cumpriram cedo a promessa. Um delles, parece que Paulo, foi +lá nessa mesma noite com recado da mãe para saber se tinham chegado +bem. Disseram-lhe que sim, accrescentando Baptista, para abreviar a +visita, que estavam bastante cançados. Os olhos de Flora desmentiram +esta affirmação; mas dentro em pouco achavam-se não menos tristes que +alegres. A alegria vinha da promptidão de Paulo, a tristeza da ausencia +de Pedro. Quizera-os ambos naturalmente; mas, como é que as duas +sensações se mostravam a um tempo, eis o que não entenderás bem nem +mal. Certamente, os olhos iam diversas vezes para a porta, e uma vez +pareceu á moça ouvir rumor na escada; tudo illusão. Mas estes gestos, +que Paulo não viu, tão contente estava de se haver adiantado ao irmão, +não eram taes que a fizessem esquecer o irmão presente. + +Paulo saiu tarde, não só para o fim de aproveitar a ausencia de Pedro, +mas ainda porque Flora o fazia demorar, com o intuito de ver se o outro +chegava. Assim que, a mesma dualidade de sensação enchia os olhos da +moça, até á hora da despedida, em que a parte triste foi maior que a +alegre, pois que eram duas ausencias, em vez de uma. Conclue o que +quizeres, minha dona; ella recolheu-se para dormir, e reconheceu que, +se se não dorme com uma tristeza na alma, muito menos com duas. + + + + +CAPITULO LXXXIII + + +A grande noite + + +Ha muito remedio contra a insomnia. O mais vulgar é contar de um +até mil, dous mil, trez mil ou mais, se a insomnia não ceder logo. +É remedio que ainda não fez dormir ninguem, ao que parece, mas não +importa. Até agora, todas as applicações efficazes contra a tisica vão +de par com a noção de que a tisica é incuravel. Convem que os homens +affirmem o que não sabem, e, por officio, o contrario do que sabem; +assim se fórma esta outra incuravel, a Esperança. + +Flora, incuravel tambem, se não preferes a definição de inexplicavel, +que lhe deu Ayres, a graciosa Flora teve naquella noite a sua insomnia. +Mas foi um tanto culpa sua. Em vez de se deitar quietinha e dormir com +os anjos, achou melhor velar com um ou dous delles, e gastar uma parte +da noite, á janella ou sentada, a recordar e a pensar, a cotejar e a +completar, mettida no roupão de linho, com os cabellos atados para +dormir. + +A principio pensou no que lá estivera, e evocou todas as suas graças, +realçadas pela virtude particular de a ter ido ver á noite, sem embargo +de se terem visto de manhã. Sentia-se grata. Toda a conversação foi +alli repetida na solidão da alcova, com as intonações diversas, o vario +assumpto, e as interrupções frequentes, ora dos outros, ora della +mesma. Ella, em verdade, só interrompia, para pensar no ausente,--e +portanto não fazia mais que converter o dialogo em monologo, o qual por +sua vez acabava em silencio e contemplação. + +Agora, pensando em Paulo, queria saber porque é que o não escolhia para +noivo. Tinha uma qualidade a mais, a nota aventurosa do caracter, e +esta feição não lhe desprazia. Inexplicavel ou não, deixava-se levar +pelos impotos do rapaz, que queria trocar o mundo e o tempo por outros +mais puros e felizes. Aquella cabeça, apenas masculina, era destinada +a mudar a marcha do sol, que andava errado. A lua tambem. A lua pedia +um contacto mais frequente com os homens, menos quartos, não descendo o +minguante do metade. Visivel todas as noites, sem que isso acarretasse +a decadencia das estrellas, continuaria modestamente o officio do sol, +e faria sonhar os olhos insomnes ou só cançados de dormir. Tudo isso +cumpriria a alma de Paulo, faminta de perfeição. Era um bom marido, em +summa. Flora cerrou as palpebras, para vel-o melhor, o achou-o a seus +pés, com as mãos della entre as suas, risonho e extatico. + +--Paulo! meu querido Paulo! + +Inclinou-se, para vel-o de mais perto, e não perdeu o tempo nem a +intenção. Visto assim, era mais bello que simplesmente couversando +das cousas vulgares e passageiras. Enfiou os olhos nos olhos, e +achou-se dentro da alma do rapaz. O que lá viu não soube dizel-o bem; +foi tudo tão novo e radiante que a pobre retina de moça não podia +fitar nada com segurança nem continuidade. As ideias faiscavam como +saindo de um fogareiro á força de abano, as sensações batiam-se em +duelo, as reminiscencias subiam frescas, algumas saudades, e ambições +principalmente, umas ambições de azas largas, que faziam vento só com +agital-as. Sobre toda essa mescla e confusão chovia ternura, muita +ternura... + +Flora recolheu os olhos, Paulo estava na mesma postura; mas do lado +da porta, mettido na penumbra, a figura de Pedro apparecia, não menos +bella, mas um tanto triste. Flora sentiu-se tocada daquella tristeza. +Parece que, se amasse exclusivamente o primeiro, o segundo podia +chorar lagrimas de sangue, sem lhe merecer a menor sympathia. Que o +amor, conforme as nymphas antigas e modernas, não tem piedade. Quando +ha piedade para outro, dizem ellas, é que o amor ainda não nasceu de +verdade, ou já morreu de todo, e assim o coração não lhe importa vestir +essa primeira camisa do affecto. Perdoa a figura; não é nobre, nem +clara, mas a situação não me dá tempo de ir á cata de outra. + +Pedro approximou-se, a passo lento, ajoelhou-se tambem e tomou-lhe +as mãos que Paulo apertava entre as suas. Paulo ergueu-se e sumiu-se +pela outra porta. O quarto tinha duas. A cama ficava entre ellas. +Talvez Paulo fosse bramindo de colera; ella é que não ouviu nada, tão +docemente vivo era o gesto de Pedro, já agora sem melancolia, e os +olhos tão extaticos como os do irmão. Não eram taes que saissem, como +os deste, ás aventuras. Tinham a quietação de quem não queria mais sol +nem lua que esses que andam ahi, que se contenta de ambos, e, se os +acha divinos, não cuida de os trocar por novos. Era a ordem, se queres, +a estabilidade, o accordo entre si e as cousas, não menos sympathicos +ao coração da moça, ou por trazerem a ideia de perpetua ventura, ou por +darem a sensação de uma alma capaz de resistir. + +Nem por isso os olhos de Flora deixaram de penetrar os de Pedro, até +chegar á alma do rapaz. O motivo secreto desta outra entrada podia +ser o escrupulo de cotejar as duas para julgal-as, se não era sómente +o desejo de não parecer menos curiosa de uma que de outra. Ambas as +razões são boas, mas talvez nenhuma fosse verdadeira. O gosto de fitar +os olhos de Pedro era tão natural que não exigia intenção particular +nenhuma, e bastava fital-os para escorregar e cair dentro da alma +namorada. Era gemea da outra; não lhe viu mais nem menos que nesta. + +Unicamente,--e aqui toco o ponto escabroso do capitulo,--achou cá +alguma cousa indefinivel que não sentira lá; em compensação sentiu lá +outra que não se lhe deparou cá. Indefinivel, não esqueças. E escabroso +porque nada ha peor que falar de sensações sem nome. Crêde-me, amigo +meu, e tu, não menos amiga minha, crêde-me que eu preferia contar as +rendas do roupão da moça, os cabellos apanhados atraz, os fios do +tapete, as taboas do tecto e porfim os estalinhos da lamparina que vae +morrendo... Seria enfadonho, mas entendia-se. + +Sim, a lamparina ia morrendo, mas ainda podia dar luz ao regresso de +Paulo. Quando Flora o viu entrar e ajoelhar-se outra vez, ao pé do +irmão, e ambos dividirem entre si as mãos della, mansos e cordatos, +ficou longa mente attonita. Obra de um credo, como diziam os nossos +antigos, quando havia mais religião que relogios. Voltando a si, +puxou as mãos, estendeu-as depois sobre a cabeça delles, como se lhes +apalpasse a differença, o _quid_, o algo, o indefinivel. A lamparina ia +morrendo... Pedro e Paulo falavam-lhe por exclamações, por exhortações, +por supplicas, a que ella respondia mal e tortamente, não que os não +entendesse, mas por não os aggravar, ou acaso por não saber a qual +delles diria melhor. A ultima hypothese tem ar de ser a mais provavel. +Em todo caso, é o prologo do que succedeu, quando a lamparina chegou +aos ultimos arrancos. + +Tudo se mistura, á meia claridade; tal seria a causa da fusão dos +vultos, que de dous que eram, ficaram sendo um só. Flora, não tendo +visto sair nenhum dos gemeos, mal podia crêr que formassem agora uma +só pessoa, mas acabou crêndo, mormente depois que esta unica pessoa +solitaria parecia completal-a interiormente, melhor que nenhuma das +outras em separado. Era muito fazer e desfazer, mudar e transmudar. +Pensou enganar-se, mas não; era uma só pessoa, feita das duas e de si +mesma, que sentia bater nella o coração. Estava tão cançada de emoções +que tentou erguer-se e ir fóra, mas não pôde; as pernas pareciam de +chumbo e colladas ao solo. Assim esteve, até que a lamparina, ao canto, +morreu de todo. Flora teve um sobresalto na poltrona, e ergueu-se: + +--Que é isto? + +A lamparina apagou-se. Foi accendel-a. Viu então que estava sem um nem +outro, sem dous nem um só fundido de ambos. Toda a fantasmagoria se +desfizera. A lamparina (agora nova) alumiava o seu quarto de dormir, +e á imaginação creára tudo. Foi o que ella suppoz, e o leitor sabe. +Flora comprehendeu que era tarde, e um gallo confirmou essa opinião, +cantando; outros gallos fizeram a mesma cousa. + +--Ora, meus Deus! exclamou a filha de Baptista. + +Metteu-se na cama, e, se não dormiu logo, tambem não se demorou muito; +não tardou a estar com os anjos. Sonhou com o canto dos gallos, uma +carroça, um lago, uma scena de viagem do mar, um discurso e um artigo. +O artigo era de verdade. A mãe veiu acordal-a, ás dez horas da manhã, +chamando-lhe dorminhoca, e alli mesmo, na cama, lhe leu uma folha da +manhã que recommendava o marido ao governo. Flora ouviu satisfeita; +acabara a grande noite. + + + + +CAPITULO LXXXIV + + +O velho segredo + + +Natividade dormiu tranquilla, em Botafogo, mas acordou pensando nos +filhos e na moça de S. Clemente. Viera reparando nos trez. Parecera-lhe +antes que Flora não acceitava um nem outro, logo depois que os +acceitava a ambos, e mais tarde um e outro alternadamente. Concluiu +que ainda não sentiria nada particular e decisivo; naturalmente iria +com os tempos, a ver qual destes a merecia deveras. Elles é que +pareciam sentir egual inclinação e egual ciume. Dahi alguma possivel +catastrophe. A separação não supprimiria tudo; mas, além de que, +separadas as familias, nem tudo seria presente a seus olhos, as visitas +podiam ser menos frequentes e até raras. Tinha assim o que quizera. + +Ao demais, ia chegando o tempo de ir para Petropolis; propriamente, +chegára. Natividade cuidava de subir com os filhos. Sempre haveria lá +no alto damas elegantes, diversões, alegria. Podia ser até que elles +achassem noivas, e bastava uma para um. O que ficasse sem ella teria +a liberdade de desposar Flora. Calculos de mãe; vieram outros que os +modificaram, e outros que os restauraram. Quem fôr mãe que lhe atire a +primeira pedra. + +Nenhuma outra mãe atirou a primeira pedra á nossa amiga. Quero crêr +que a razão disto não foi senão a propria discrição de Natividade. +Suspeitas e calculos iam ficando no coração della. Calou tudo e esperou. + +Ao cabo, Flora cada vez gostava mais de Natividade. Queria-lhe como se +ella fosse sua mãe, duplamente mãe, uma vez que não escolhera ainda +nenhum dos filhos. A causa podia ser que as duas indoles se ajustassem +melhor que entre Flora e D. Claudia. A principio, sentiu não sei que +inveja amiga, antes desejo, quando via que as fórmas da outra, embora +arruinadas pelo tempo, ainda conservavam alguma linha da esculptura +antiga. Pouco a pouco, foi descobrindo em si mesma o introito de uma +belleza, que devia ser longa e fina, e de uma vida, que podia ser +grande... + +Flora conhecia a predicção da cabocla do Castello, relativamente aos +dous gemeos. A predicção não era já segredo para ninguem. Santos falara +della em tempo, apenas occultando a subida de Natividade ao Castello; +emendou a verdade, dizendo que a cabocla é que viera a Botafogo. O +resto foi revelado em confiança, como ao finado Placido, e ainda depois +de alguma luta. Trez ou quatro vezes investiu e recuou. Um dia, a +lingua deu sete voltas na bôca, e o segredo saiu medroso e sussurrado, +mas perdeu o medo pelo gosto de mostrar que os rapazes seriam grandes. +Emfim, o segredo foi esquecendo. Mas Perpetua, por isto ou aquillo, +contou-o agora á moça Baptista, que a ouviu incredula. Que podia saber +a cabocla do futuro? + +--Sabia, e a prova é que adivinhou outras cousas, que não posso contar +e eram verdadeiras. Você não imagina como o diacho da cabocla via +longe. E tinha uns olhos de espetar o coração. + +--Não acredito, D. Perpetua. Pois agora o futuro da gente... E grandes +como? + +--Isso não disse por mais que Natividade lhe perguntasse; disse só +que seriam grandes e subiriam muito. Talvez venham a ser ministros de +Estado. + +Perpetua parecia haver comprado os olhos á cabocla. Enfiava-os pela +amiga abaixo, até o coração, que aliás não batia com força nem +apressado, mas tão regular como de costume. Entretanto, não sendo +impossivel que os dous rapazes chegassem aos altos deste mundo, Flora +deixou de objectar e acceitou a predicção, sem outra palavra mais que +um gesto,--sabes, creio,--um gesto de boca, fazendo descair os cantos +della, levantando os hombros levemente, e espalmando as mãos, como se +dissesse: Emfim, póde ser. + +Perpetua accresceptou que, mudado o regimen, era natural que Paulo +chegasse primeiro á grandeza,--e aqui espetou bem os olhos. Era um +modo de de apanhar os sentimentos de Flora, acenando-lhe com a elevação +de Paulo, pois bem podia ser que viesse a amar antes o destino que a +pessoa. Não achou nada. Flora continuou a não se deixar ler. Não lhe +attribuas isto a calculo, não era calculo. Seriamente, não pensava em +nada acima de si. + + + + +CAPITULO LXXXV + + +Trez constituições + + +--Você crê deveras que venhamos a ser grandes homens? perguntára Pedro +a Paulo, antes da queda do imperio. + +--Não sei; você pode vir a ser, quando menos, primeiro ministro. + +Depois de 15 de novembro, Paulo retorquiu a pergunta, e Pedro respondeu +como o irmão, emendando o resto: + +--Não sei; você póde vir a ser presidente da republica. + +Já lá iam dous annos. Agora pensavam mais em Flora que na subida. A +boa moral pede que ponhamos a cousa publica acima das pessoaes, mas os +moços nisto se parecem com velhos e varões de outra edade, que muita +vez pensam mais em si que em todos. Ha excepções, nobres algumas, +outras nobilissimas. A historia guarda muitas dellas, e os poetas, +epicos e tragicos, estão cheios de casos e modelos de abnegação. + +Praticamente, seria exigir muito de Pedro e Paulo que cuidassem mais +da constituição de 24 de fevereiro que da moça Baptista. Pensavam em +ambas, é verdade, e a primeira já dera logar a alguma troca de palavras +acerbas. A constituição, se fosse gente viva, e estivesse ao pé delles, +ouviria os ditos mais contrarios deste mundo, porque Pedro ia ao ponto +de a achar um poço de iniquidades, e Paulo a propria Minerva nascida +da cabeça de Jove. Falo por metaphora para não descair do estylo. Em +verdade, elles empregavam palavras menos nobres e mais emphaticas, e +acabavam trocando as primeiras entre si. Na rua, onde o encontro de +manifestações politicas era commum, e as noticias á porta dos jornaes +frequente, tudo era occasião de debate. + +Quando, porém, a imagem de Flora apparecia entre elles por imaginação, +o debate esmorecia, mas as injurias continuavam e até cresciam, +sem confissão do novo motivo, que era ainda maior que o primeiro. +Effectivamente, elles iam chegando ao ponto em que dariam as duas +constituições, a republicana e a imperial, pelo amor exclusivo da moça, +se tanto fosse exigido. Cada um faria com ella a sua constituição, +melhor que outra qualquer deste mundo. + + + + +CAPITULO LXXXVI + + +Antes que me esqueça + + +Uma cousa é preciso dizer antes que me esqueça. Sabes que os dous +gemeos eram bellos e continuavam parecidos; por esse lado não suppunham +ter motivo de inveja entre si. Ao contrario, um e outro achavam em si +qualquer cousa que accentuava, senão melhorava, as graças communs. Não +era verdade, mas não é a verdade que vence, é a convicção. Convence-te +de uma ideia, e morrerás por ella, escreveu Ayres por esse tempo no +_Memorial_, e accrescentou: «nem é outra a grandeza dos sacrificios, +mas se a verdade acerta com a convicção, então nasce o sublime, e atraz +delle o util...» Não acabou ou não explicou esta phrase. + + + + +CAPITULO LXXXVII + + +Entre Ayres e Flora + + +Aquella citação do velho Ayres faz-me lembrar um ponto em que elle e a +moça Flora divergiam ainda mais que na edade. Já contei que ella, antes +da commissão do pae, defendia Pedro e Paulo, conforme estes diziam mal +um do outro, Naturalmente fazia agora a mesma cousa, mas a mudança do +regimen trouxe occasião de defender tambem monarchistas e republicanos, +segundo ouvia as opiniões de Paulo ou de Pedro. Espirito de conciliação +ou de justiça, applacava a ira ou o desdem do interlocutor: «Não diga +isso... São patriotas tambem... Convem desculpar algum excesso...» +Eram só phrases, sem impeto de paixão nem estimulo de principios; e o +interlocutor concluia sempre: + +--A senhora é boa. + +Ora, o costume de Ayres era o opposto dessa contradicção benigna. +Has-de lembrar-te que elle usava sempre concordar com o interlocutor, +não por desdem da pessoa, mas para não dissentir nem brigar. Tinha +observado que as convicções, quando contrariadas, descompõem o rosto +á gente, e não queria ver a cara dos outros assim, nem dar á sua um +aspecto abominavel. Se lucrasse alguma cousa, vá; mas, não lucrando +nada, preferia ficar em paz com Deus e os homens. Dahi a arranjo de +gestos e phrases affirmativas que deixavam os partidos quietos, e mais +quieto a si mesmo. + +Um dia, como ella estivesse com Flora, falou daquelle costume della, +dizendo-lhe que parecia estudado. Flora negou que o fosse; era +inclinação natural defender os ausentes, que não podiam responder por +nada; demais, applacava assim um dos gemeos com quem falasse, e depois +o outro. + +--Tambem concordo. + +--E porque ha de o senhor concordar sempre? perguntou ella sorrindo. + +--Posso concordar com a senhora, porque é uma delicia ir com as suas +opiniões, e seria mau gosto rebatel-as, mas, em verdade, não ha +calculo. Com os mais, se concordo, é porque elles só dizem o que eu +penso. + +--Ja o tenho achado em contradicção. + +--Póde ser. A vida e o mundo não são outra cousa. A senhora não saberá +isto bem, porque é moça e ingenua, mas creia que a vantagem é toda +sua. A ingenuidade é o melhor livro e a mocidade a melhor escola. Vá +desculpando esta minha pedanteria; alguma vez é um mal necessario. + +--Não se accuse, conselheiro. O senhor sabe que eu não creio nada +contra a sua palavra, nem contra a sua pessoa; a propria contradicção +que lhe acho é agradavel. + +--Tambem concordo. + +--Concorda com tudo. + +--Olha aqui, Flora; dá licença, conselheiro? + +Esqueceu-me dizer que esta conversação era á porta de uma loja de +fazendas e modas, rua do Ouvidor. Ayres ia na direcção do largo de S. +Francisco de Paula e viu a mãe e a filha dentro, sentadas, a escolher +um tecido. Entrou, comprimentou-as, e veiu á porta com a filha. O +chamado de D. Claudia interrompeu a conversação por alguns instantes. +Ayres ficou a olhar para a rua, onde subiam e desciam mulheres de todas +as classes, homens de todos os officios, sem contar as pessoas paradas +de ambos os lados e no centro. Não havia borborinho grande, nem socego +puro, um meio termo. + +Talvez algumas pessoas fossem conhecidas de Ayres e o comprimentassem; +mas este tinha a alma tão mettida em si mesma que, se falou a uma ou +duas, foi o mais. De quando em quando, voltava a cabeça para dentro, +onde Flora e a mãe faziam a sua consulta. Ouvia as palavras trocadas +ainda agora. Sentia-se curioso de saber se finalmente a moça escolhia +a um dos gemeos, e qual destes. Vá tudo; tinha já pezar que não fosse +algum, posto não lhe importasse saber se Pedro ou Paulo. Quizera vel-a +feliz, se a felicidade era o casamento, e feliz o marido, sem embargo +da exclusão; o excluido seria consolado. Agora, se era por amor delles, +se della, é o que propriamente se não póde dizer com verdade. Quando +muito, para levantar a ponta do veu, seria preciso entrar na alma +delle, ainda mais fundo que elle mesmo. Lá se descobriria acaso, entre +as ruinas de meio celibato, uma flôr descorada e tardia de paternidade, +ou, mais propriamente, de saudade della... + +Flora trouxe novamente a rosa fresca e rubra da primeira hora. Não +falaram mais de contradicção, mas da rua, da gente e do dia. Nenhuma +palavra ácerca de Pedro ou Paulo. + + + + +CAPITULO LXXXVIII + + +Não, não, não + + +Elles, onde quer que estivessem naquelle momento, podiam falar ou não. +A verdade é que, se nenhum consentia em deixar a moça, tambem nenhum +contava obtel-a, por mais que a achassem inclinada. Tinham já combinado +que o rejeitado acceitaria a sorte, e deixaria o campo ao vencedor. Não +chegando a victoria, não sabiam como resolver a batalha. Esperar, seria +o mais facil, se a paixão não crescesse, mas a paixão crescia. + +Talvez não fosse exactamente paixão, se dermos a esta palavra o sentido +de violencia; mas, se lhe reconhecermos uma forte inclinação de amor, +um amor adolescente ou pouco mais, era o caso. Pedro e Paulo cederiam a +mão da pequena, se houvessem de consultar só a razão, e mais de uma vez +estiveram a pique de o fazer; raro lampejo, que para logo desapparecia. +A ausencia era já insoffrivel, a presença necessaria. Se não fôra o que +aconteceu e se contará por essas paginas adiante, haveria materia para +não acabar mais o livro; era só dizer que sim e que não, e o que estes +pensaram e sentiram, e o que ella sentia e pensou, até que o editor +dissesse: basta! Seria um livro de moral e de verdade, mas a historia +começada ficaria sem fim. Não, não, não... Força é continual-a e +acabal-a. Comecemos por dizer o que os dous gemeos ajustaram entre si, +poucos dias depois daquelle sonho ou delirio da moça Flora, á noite, no +quarto. + + + +CAPITULO LXXXIX + + +O dragão + + +Vejamos o que é que estes ajustaram. Vinham de estar com Ayres no +theatro, uma noite, matando o tempo. Conheceis este dragão; toda a +gente lhe tem dado os mais fundos golpes que póde, elle esperneia, +expira e renasce. Assim se fez naquella noite. Não sei que theatro foi, +nem que peça, nem que genero; fosse o que fosse, a questão era matar o +tempo, e os trez o deixaram estirado no chão. + +Fôram dallí a um _restaurant._ Ayres disse-lhes que, antigamente, +em rapaz, acabava a noite com amigos da mesma edade. Era o tempo de +Offenbach e dá opereta. Contou anecdotas, disse as peças, descreveu +as damas e os partidos, quasi deu por si repetindo um trecho, musica +e palavras. Pedro e Paulo ouviam com attenção, mas não sentiam nada +do que espertava os écos da alma do diplomata. Ao contrario, tinham +vontade de rir. Que lhes importava a noticia da um velho café da rua +Uruguayana, trocado depois em theatro, agora em nada, uma gente que +viveu e brilhou, passou e acabou antes que elles viessem ao mundo? O +mundo começou vinte annos antes daquella noite, e não acabaria mais, +como um viveiro de moços eternos que era. + +Ayres sorriu, porquanto elle tambem assim cuidou, aos vinte e dous +annos de edade, e ainda se lembrava do sorriso do pae, já velho, quando +lhe disse algo parecido com isso. Mais tarde, tendo adquerido do tempo +a noção idealista que ora possuia, comprehendeu que tal dragão era +juntamente vivo e defunto, e tanto valia matal-o como nutril-o. Não +obstante, as recordações eram doces, e muitas dellas viviam ainda +frescas, como se viessem da vespera. + +A differença da edade era grande, não podia entrar em pormenores com +elles. Ficou só em lembranças, e cuidou de outra cousa. Pedro e Paulo, +entretanto, receiosos de que elle os adivinhasse e comprehendesse o +desprezo que lhes inspiravam as saudades de tempos remotos e extranhos, +pediram-lhe informações, e elle deu as que podia, sem intimidade. + +Ao cabo, a conversação valeu mais que este resumo, e a separação não +custou pouco. Paulo ainda lhe pediu Offenbach, Pedro uma descripção das +paradas de 7 de setembro e 2 de dezembro; mas o diplomata achou meio de +saltar ao presente e particularmente a Flora, que louvou como uma bella +creatura. Os olhos de ambos concordaram que era bellissima. Tambem +louvou as qualidades moraes, a finura do espirito, taes dotes que Pedro +e Paulo reconheceram tambem, e dahi a conversação, e porfim o ajuste a +que me referi no começo deste capitulo e pede outro. + + + +CAPITULO XC + + +O ajuste + + +--Quanto a mim, um de vocês gosta della, senão ambos, disse Ayres. + +Pedro mordeu os beiços, Paulo consultou o relogio; iam já na rua. +Ayres concluiu o que sabia, que sim, que ambos, e não trepidou em +dizel-o, accrescentando que a moça não era como a Republica, que um +podia defender e outro atacar; cumpria ganhal-a ou perdel-a de vez. +Que fariam elles, dada a escolha? Ou já estava feita a escolha, e o +preterido teimava em a torcer para si? + +Nenhum, falou logo, posto que ambos sentissem necessidade de explicar +alguma cousa. Tinham que a escolha não era clara ou decisiva. +Outrosim, que lhes cabia o direito de esperar a preferencia, e fariam +o diabo para alcançal-a. Taes e outras ideias vagavam silenciosamente +nelles, sem sair cá fóra. A razão percebe-se, e devia ser mais de +uma,--primeiro, a materia da conversação,--depois, a gravidade do +interlocutor. Por mais que Ayres abrisse as portas á franqueza dos +rapazes, estes eram rapazes e elle velho. Mas o assumpto em si era tão +seductor, o coração, apesar de tudo, tão indiscreto, que não houve +remedio se não falar, mas falar negando. + +--Não me neguem, interrompeu Ayres; a gente madura sabe as manhas da +gente nova, e adivinha com facilidade o que ella faz. Nem é preciso +adivinhar; basta ver e ouvir. Vocês gostam della. + +Elles sorriam, mas já agora com tal amargor e acanhamento que mostravam +o desgosto da rivalidade, aliás sabida delles. Tal rivalidade era +tambem sabida de outros, devia sel-o de Flora, e a situação lhes +parecia agora mais complicada e fechada que d'antes. + +Tinham chegado ao largo da Carioca, era uma hora da noite. Uma victoria +da Santos esperava alli os rapazes, a conselho e por ordem da mãe, +que buscava todas as occasiões e meios de os fazer andar juntos e +familiares. Teimava em emendara natureza. Levava-os muita vez a +passeio, ao theatro, a visitas. Naquella noite, como soubesse que iam +ao theatro, mandou aprestar a victoria que os conduziu para a cidade, e +ficou á espera delles. + +--Entre, conselheiro, disse Pedro, o carro dá para, trez: eu vou no +banquinho da frente. + +Entraram e partiram. + +--Bem, continuou Ayres, é certo que vocês gostam della, e egualmente +certo que ella ainda não escolheu entre os dous. Provavelmente, +não sabe que faça. Um terceiro resolveria a crise porque vocês se +consolariam depressa; tambem eu me consolei em rapaz. Não havendo +terceiro, e não se podendo prolongar a situação, porque é que vocês não +combinam alguma cousa? + +--Combinar quê? perguntou Pedro sorrindo. + +--Qualquer cousa. Combinem um modo de cortar este nó gordio. Cada um +que siga a sua vocação. Você Pedro, tentará primeiro desatal-o; se elle +não puder, Paulo, você pegue da espada de Alexandre, e dê-lhe o golpe. +Fica tudo feito e acabado. Então o destino, que os espera, com duas +bellas creaturas, virá trazel-as pela mão a um e a outro, e tudo se +compõe na terra como no céu. + +Ayres disse mais cousas antes de se apear á porta da casa. Apeado, +ainda lhes perguntou: + +--Estamos de accordo? + +Os dous responderam de cabeça affirmativamente, e, ficando sós, não +disseram nada. Que fossem pensando, é natural, e porventura o tempo +lhes pareceu curto entre o Cattete e Botafogo. Chegaram á casa, subiram +a escada do jardim, falaram da temperatura, que Pedro achava deliciosa +e Paulo abominavel, mas não disseram assim para não irritar um ao +outro. A esperança do ajuste é que os levava á moderação relativa e +passageira. Vivam os fructos pendentes do dia seguinte! + +Cá estava o quarto á espera delles, um brinco de arranjo e graça, de +commodidade e repouso. Era a mãe que dava os últimos retoques todos +os dias; ella cuidava das flôres que seriam postas nos vasinhos de +porcellana, e ella mesma as ia tirar á noite e pôr fóra das janellas +para que elles não as respirassem dormindo. Cá estavam as velas ao pé +das duas camas, mettidas nos seus castiçaes de prata, um com o nome de +Pedro, outro com o de Paulo, gravados. Tapetinhos de suas mãos, laços +dados por ella nos cortinados, finalmente o retrato della e o do marido +pendurados á parede, entre as duas camas, naquelle mesmo logar em que +estiveram os de Luiz XVI e Robespierre, comprados na rua da Carioca. + +Ao pé de cada um dos castiçaes acharam um biIhetinho de Natividade. +Aqui está o que ella dizia: «Algum de vocês quer ir commigo á missa, +amanhã? Faz annos que seu avô morreu, e Perpetua está adoentada.» +Natividade esquecera de lhes falar antes, e, aliás, andava bem sem +elles, mormente de carruagem; mas gostava de os ter comsigo. + +Pedro e Paulo riram do convite e da fórma, e um delles propoz que, +para agradar á mãe, fossem ambos á missa. A acceitação da proposta +veiu prompta; já não era harmonia, era uma especie de dialogo na mesma +pessoa. O céu parecia escrever o tratado de paz que ambos teriam de +assignar; ou, se preferes, a natureza corrigia as indoles, e os dous +rixosos começavam a ajustar o ser e o parecer. Tambem não juro isto, +digo o que se póde crêr só pelo aspecto das cousas. + +--Vamos á missa, repetiram. + +Seguiu-se um grande silencio. Cada um ruminava o ajuste e o modo +de o propor. Emfim, de cama a cama, disseram o que lhes parecia +melhor, propuzeram, discutiram, emendaram e concluiram sem escriptura +de tabellião, apenas por acceitação de palavra. Poucas clausulas. +Confessando que não podiam assegurar a escolha de Flora, concordaram em +esperar por ella durante um prazo curto; trez mezes. Dada a escolha, o +rejeitado obrigava-se a não tentar mais nada. Como tivessem a certeza +final da escolha, o accordo era facil; cada um não faria mais que +excluir o outro. Não obstante, se ao fim do prazo, nenhuma escolha +houvesse, cumpria adoptar uma clausula ultima. A primeira que acudiu +foi deixarem ambos o campo, mas não os seduziu. Lembrou-lhes recorrer +á sorte, e aquelle que fosse designado por ella, deixaria o campo ao +rival. Assim passou uma hora de conversação, após a qual, cuidaram de +dormir. + + + + +CAPITULO XCI + + +Nem só a verdade se deve ás mães + + +Às nove horas da manhã seguinte, Natividade estava prompta para ir á +missa que mandava dizer na matriz da Gloria; nenhum dos filhos se lhe +apresentou. + +--Parece que dormem. + +E duas, trez, quatro, cinco vezes, foi até á porta do quarto a ver +se ouvia rumor, como resposta ao bilhete que deixara. Nada. Concluiu +que teriam entrado tarde. Só não atinou que dormissem sobre o ajuste, +nem que ajuste era. Uma vez que o fizessem em cama fôfa, tudo ia bem. +Emfim, acabou de calçar as luvas, desceu, entrou no carro e foi para a +egreja. + +A missa era anniversaria, como dizia o bilhete. Uso velho; o pae +tinha a sua missa, a mãe outra, os irmãos e parentes outras. Não +lhe esqueciam datas obituarias, como não lhe esqueciam natalicias, +quaesquer que fossem, amigas ou parentas; trazia-as todas de cór. Doce +memoria! Ha pessoas a quem não ajudas, e chegam a brigar comsigo e com +outros por abandono teu. Felizes os que tu proteges; esses sabem o +que é 24 de março, 10 de agosto, 2 de abril, 7 e 31 de outubro, 10 de +novembro, o anno todo, suas tristezas e alegrias particulares. + +Voltando á casa, viu Natividade os dous filhos no jardim, á espera +della. Elles correram a abrir-lhe a portinhola do carro, e depois de a +apearem e lhe beijarem a mão, explicaram a falta. Tinham resolvido ir +ambos, mas o somno... + +--O somno e a preguiça, concluiu a mãe rindo. + +--Foi só o somno, disse Pedro. + +--Accordamos agora mesmo, acabou Paulo. + +Disputaram dar-lhe o braço; Natividade os satisfez dando um braço a +cada um. Em casa, ao mudar de roupa, Natividade reflectiu que, se Flora +lhes tivesse feito algum pedido, elles accordariam cedo, por mais tarde +que se deitassem; a memoria serviria de despertador. Passou-lhe uma +sombra rapida, mas depressa se reconciliou com a differença. Assim que, +não foi por ciume, mas para os trazer a outras seducções e separal-os +da guerra ante a bella Flora, que a mãe teimou em levar os filhos para +Petropolis. Subiriam na primeira semana de janeiro. A estação seria +excellente; annunciou festas, citou nomes, notou-lhes que Petropolis +era a cidade da paz. O governo póde mudar cá embaixo e nas provincias... + +--Que provincias, mamãe? atalhou Paulo. + +Natividade sorriu e emendou. + +--Nos Estados. Vae desculpando os descuidos de tua mãe. Bem sei que +são Estados; não são como as provindas antigas, não esperam que o +presidente lhes vá aqui da Côrte... + +--Que Côrte, baroneza? + +Agora os dous riram, mãe e filho. Passado o riso, Natividade continuou: + +--Petropolis é a cidade da paz; é, como dizia outro dia o conselheiro +Ayres, é a cidade neutra, é a cidade das nações. Se a capital do Estado +fosse alli, não haveria deposição de governo. Petropolis,--vejam vocês +que o nome, apesar da origem, ficou e ficará,--é de todos. A estação +dizem que vae ser encantadora... + +--Eu não sei se posso ir já, disse Paulo. + +--Nem eu, acudiu Pedro. + +Ainda uma vez estavam de accordo, mas aqui o accordo trazia +provavelmente o divorcio, reflectiu a mãe, e o prazer que lhe deram +aquellas duas palavras morreu depressa. Perguntou-lhes que razão +tinham para ficar e até quando. Se estivessem estabelecidos com o seu +consultorio medico e a sua banca de advogado, era bem; mas, se nenhum +delles começara ainda a carreira, que fariam cá embaixo, quando ella e +o marido... + +--Justamente; eu tenho que fazer uns estudos de clinica na Santa Casa, +respondeu Pedro. + +Paulo explicou-se. Não ia praticar a advocacia, mas precisava de +consultar certos documentos do século XVII na Bibliotheca Nacional; ia +escrever uma historia das terras possuidas. + +Nada era verdade, mas nem só a verdade se deve dizer ás mães. +Natividade ponderou que elles podiam fazer tudo entre as duas barças +de Petropolis; desciam, almoçavam, trabalhavam, e ás quatro horas +subiriam, como a demais gente. Em cima achariam visitas, musica, +bailes, mil cousas bellas, sem contar as manhãs, a temperatura e os +domingos. Elles defenderam o estudo, como sendo melhor por muitas horas +seguidas. + +Natividade não teimou. Mais depressa ficaria esperando que os filhos +acabassem os documentos da Bibliotheca e a clinica da Santa Casa. Esta +ideia fel-a attentar para a necessidade de ver estabelecidos o joven +medico e o joven advogado. Trabalhariam com outros profissionaes de +reputação e iriam adiante e acima. Talvez a carreira scientifica lhes +désse a grandeza annunciada pela cabocla do Castello, e não a politica +ou outra. Em tudo se podia resplandecer e subir. Aqui fez a critica de +si mesma, quando imaginou que Baptista abriria a carreira politica de +algum delles, sem advertir que o pae de Flora mal continuaria a propria +carreira, aliás obscura. Mas a ideia do mando tornava a óccupar a +cabeça da mãe, e cheios della os olhos fitavam ora Pedro, ora Paulo. + +Chegaram a accordo. Elles subiriam aos sabbados e desceriam ás +segundas; o mesmo por occasião de dias santos e festas de gala. +Natividade contava com o costume e as attracções. + +Na barca e em Petropolis era objecto de conversação a differença entre +os filhos, que só iam lá uma vez por semana, e o pae, que trazia tantos +negocios ás costas, e subia todas as tardes. Que fariam elles cá em +baixo, quando alguns olhos podiam attrail-os e agarral-os lá em cima? +Natividade defendia os gemeos, dizendo que um ia á Santa Casa e outro +á Bibliotheca Nacional, e estudavam muito, ás noites. A explicação era +acceitavel, mas, além de fazer perder um assumpto aos bonitos dentes do +verão, podia ser invenção dos rapazes; naturalmente, iriam ás moças. + +A verdade é que elles faziam rumor em Petropolis, durante as poucas +horas que lá passavam. Além do mais, tinham a semelhança e a graça. +As mães diziam bonitas cousas á mãe delles, e indagavam da razão +verdadeira que os prendia á capital, não assim como eu digo, nu e cru, +mas com arte fina e insidiosa, arte perdida, porque a mãe insistia na +Bibliotheca e na Santa Casa. Deste geito, a mentira, já servida em +primeira mão, era servida em segunda, e nem por isso melhor acceita. + + + + +CAPITULO XCII + + +Segredo acordado + + +Emfim, que segredo ha que se não descubra? Sagacidade, boa vontade, +curiosidade, chama-lhe o que quizeres, ha uma força que deita cá para +fóra tudo o que as pessoas cuidam de esconder. Os proprios segredos +cançam de calar,--calar ou dormir; fiquemos com este outro verbo, +que serve melhor á imagem. Cançam, e ajudam a seu modo aquillo que +imputamos á indiscrição alheia. + +Quando elles abrem os olhos, faz-lhes mal a escuridão. Um raio de sol +basta. Então pedem aos deuses (porque os segredos são pagãos) um quasi +nada de crepusculo, aurora ou tarde, posto que a aurora prometta dia, +emquanto a tarde cae outra vez na noite, mas tarde que seja, tudo é +respirar claridade. Que os segredos, amiga minha, tambem são gente; +nascem, vivem e morrem. Agora o que succede, quando um olhar de sol +penetra na solidão delles, é que difficilmente sae mais, e geralmente +cresce, rasga, alaga, e os traz pela orelha cá para fóra. Vexados da +grande luz, elles a principio andam de ouvido em ouvido, cochichados, +alguma vez escriptos em bilhetes, ainda que tão vagamente e sem nomes, +que mal se adivinhará quaes sejam. É o periodo da infancia, que passa +depressa; a mocidade pula por cima da adolescencia, e elles apparecem +fortes e derramados, sabidos como gazetas. Emfim, se a velhice chega, +e elles não se vexam dos cabellos brancos, tomam conta do mundo, e +acaso conseguem, não digo esquecer, mas aborrecer; entram na familia do +proprio sol, que quando nasce é para todos, segundo dizia uma taboleta +da minha infancia. + +Taboletas da minha infancia, ai, taboletas! Quizera acabar por ellas +este capitulo, mas o assumpto não teria nobreza nem interesse, e +ainda uma vez interromperiamos a nossa historia. Fiquemos no segredo +divulgado; é quanto basta. Uma veranista elegante não dissimulou o seu +espanto ao saber que os dous irmãos combinavam n'um ponto que faria +romper os maiores amigos deste mundo. Um secretario de legação insinuou +que podia ser brincadeira dos dous. + +--Ou dos trez, accrescentou outra veranista. + +Iam de passeio á Quitandinha, a cavallo. Ayres acompanhava-os, e não +dizia nada. Quando lhe perguntaram se Flora era bonita, respondeu que +sim, e falou da temperatura. A primeira veranista perguntou-lhe se era +capaz de supportar aquella situação. Ayres respirou, como quem vem de +longe, e declarou que aos pés de um padre seria obrigado a mentir, +taes eram os seus peccados; mas alli, na estrada, ao ar livre, entre +senhoras, confessou que matara mais de um rival. Que se lembrasse +trazia sete mortes ás costas, com varias armas. As senhoras riam; elle +falava soturno. Só uma vez escapou de morrer primeiro, e inventou uma +anecdota napolitana. Fez a apologia do punhal. Um que tivera, ha muitos +annos, o melhor aço do mundo, foi obrigado a dal-o de presente a um +bandido, seu amigo, quando lhe provou que completára na vespera o seu +vigesimo nono assassinato. + +--Aqui está para o trigesimo, disse-lhe entregando a arma. + +Poucos dias depois soube que o bandido, com aquelle punhal, matara o +marido de uma senhora, e depois a senhora, a quem amava sem ventura. + +--Deixei-o com trinta e um crimes de primeira ordem. + +As damas continuavam a rir; elle conseguiu assim desviar a conversação +de Flora e seus namorados. + + + + +CAPITULO XCIII + + +Não ata nem desata + + +Emquanto indagavam della em Petropolis, a situação moral de Flora era +a mesma,--o mesmo conflicto de affinidades, o mesmo equilibrio de +preferencias. Cessado o conflicto, roto o equilibrio, a solução viria +de prompto, e, por mais que doesse a um dos namorados, venceria o +outro, a menos que interviesse o punhal da anecdota de Ayres. + +Assim passaram algumas semanas desde a subida de Natividade. Quando +Ayres vinha ao Rio de Janeiro, não deixava de ir vel-a a S. Clemente, +onde a achava qual era d'antes, salvo um pouco de silencio em que +a viu mettida uma vez. No dia seguinte recebeu uma carta de Flora, +pedindo-lhe desculpa da desattenção, se a houve, e mandando-lhe +saudades. «Mamãe pede que a recommende tambem ao senhor e á familia da +baroneza.» Esta recommendação exprimia o consentimento obtido da mãe +para que lhe escrevesse a carta. Quando elle tornou ao Rio, correu a S. +Clemente e Flora pagou-lhe com alegria grande o silencio daquella outra +manhã. Todavia, não era espontanea nem constante; tinha seus cochilos +de melancolia. Ayres voltou ainda algumas vezes na mesma semana. Flora +apparecia-lhe com a alegria costumada, e, para o fim, a mesma alteração +dos ultimos dias. + +Talvez a causa daquellas syncopes da conversação fosse a viagem que +o espirito da moça fazia á casa da gente Santos. Uma das vezes, o +espirito voltou para dizer estas palavras ao coração: «Quem és tu, que +não atas nem desatas? Melhor é que os deixes de vez. Não será difficil +a acção, porque a lembrança de um acabará por destruir a de outro, e +ambas se irão perder com o vento, que arrasta as folhas velhas e novas, +além das particulas de cousas, tão leves e pequenas, que escapam ao +olho humano. Anda, esquece-os; se os não pódes esquecer, faze por não +os ver mais; o tempo e a distancia farão o resto.» + +Tudo estava acabado. Era só escrever no coração as palavras do +espirito, para que lhe servissem de lembrança. Flora escreveu-as, com a +mão tremula e a vista turva; logo que acabou, viu que as palavras não +combinavam, as letras confundiam-se, depois iam morrendo, não todas, +mas salteadamente, até que o musculo as lançou de si. No valor e no +impeto podia comparar o coração ao gemeo Paulo; o espirito, pela arte +e subtileza, seria o gemeo Pedro. Foi o que ella achou no fim de algum +tempo, e com isso explicou o inexplicavel. + +Apesar de tudo, não acabava de entender a situação, e resolveu acabar +com ella ou comsigo. Todo esse dia foi inquieto e complicado. Flora +pensou em ir ao theatro para que os gemeos não a achassem á noite. Iria +cedo, antes da hora da visita. A mãe mandou comprar o camarote, e o pae +approvou a diversão, quando veiu jantar, mas a filha acabou com dôr de +cabeça, e o camarote ficou perdido. + +--Vou mandal-o aos jovens Santos, insinuou Baptista. + +D. Claudia oppôz-see guardou o camarote. A razão era de mãe; posto lhe +tardasse a escolha e o casamento, ella queria vel-os alli comsigo, +falando, rindo, debatendo que fosse, com os olhos pendentes da filha. +Baptista não entendeu logo nem depois; mas para não desagradar á +esposa, deixou de obsequiar os rapazes. Uma occasião tão boa! Não +era muito para elles que possuiam com que despender, e despendiam; o +obsequio estava na lembrança, e tambem na cartinha que lhes escreveria, +mandando o camarote. Chegou a redigil-a de cabeça, apesar de já inutil. +A mulher, ao vel-o calado e serio, cuidou que fosse zanga e quiz fazer +as pazes; o marido arredou-a brandamente com a mão. Redigia a cartinha, +punha no texto um gracejo sizudo, dobrava o papel e lançava-lhe este +sobrescripto gemeo: «Aos jovens apostolos Pedro e Paulo.» O trabalho +intellectual tornou mais dura a opposiçâo de D. Claudia. Uma cartinha +tão bonita! + + + + +CAPITULO XCIV + + +Gestos oppostos + + +Como póde um só tecto cobrir tão diversos pensamentos? Assim é tambem +este céu claro ou brusco,--outro tecto vastissimo que os cobre com o +mesmo zelo da gallinha aos seus pintos... Nem esqueça o proprio craneo +do homem, que os cobre igualmente, não só diversos, senão oppostos. + +Flora, no quarto, não cuidava então de bilhetes nem camarotes; tambem +não acudia á dôr de cabeça, que não tinha. Se falou nella foi por ser +uma razão proxima e acceitavel, breve ou longa, conforme a necessidade +da occasião. Não supponhas que está rezando, embora tenha alli um +oratorio e um crucifixo. Não viria pedir a Jesus que lhe livrasse a +alma daquella inclinação desencontrada. Posta á beira da cama, os +olhos no chão, pensava naturalmente em alguma cousa grave, se não era +nada, que tambem agarra os olhos e o pensamento de uma pessoa. Mordeu +os beiços sem raiva; metteu a cabeça entre as mãos, como se quizesse +concertar os cabellos, mas os cabellos estavam e ficavam como dantes. + +Quando se levantou era totalmente noite, e accendeu uma vela. Não +queria gaz. Queria uma claridade branda que désse pouca vida ao quarto +e aos seus moveis, que deixasse algumas partes na meia escuridade. +O espelho, se fosse a elle, não lhe repetiria a belleza de todos os +dias, com a vela posta em cima de uma papeleira antiga, a distancia. +Mostrar-lhe-hia a nota de pallidez e de melancolia, é verdade, mas a +nossa amiguinha não se sabia pallida, nem se sentia melancolica. Tinha +na tristeza desvairada daquella occasião uma pontinha de abatimento. + +Como tudo isso se combinava, não sei, nem ella mesma. Ao contrario, +Flora parecia, ás vezes, tomada de um espanto, outras de uma +inquietação vaga, e, se buscava o repouso de uma cadeira de balanço, +era para o deixar logo. Ouviu bater oito horas. Dahi a pouco, entrariam +provavelmente Pedro e Paulo. Teve lembrança de ir dizer á mãe que a não +mandasse chamar; estava de cama. Esta ideia não durou o que me custa +escrevel-a, e aliás já lá vae na outra linha. Recuou a tempo. + +--É um desproposito, disse comsigo; basta não apparecer. Mamãe dirá +que estou adoentada, tanto que perdemos o theatro, e, se vier aqui, +digo-lhe que não posso apparecer... + +As ultimas palavras sairam-lhe de viva voz, para maior firmeza da +resolução. Projectou reclinar-se já na cama; depois achou melhor +fazel-o quando ouvisse o passo da mãe no corredor. Todas essas +alternativas podiam vir de si mesmas; entretanto, não é impossivel que +fosse tambem um modo de sacudir quaesquer lembranças aborreciveis. A +moça temia ir atraz dellas. + + + + +CAPITULO XCV + + +O terceiro + + +Temendo ir atraz dellas, que havia de fazer Flora? Abriu uma das +janellas do quarto, que dava para a rua, encostou-se á grade e enfiou +os olhos para baixo e para cima. Viu a noite sem estrellas, pouca +gente que passava, calada ou conversando, algumas salas abertas, com +luzes, uma com piano. Não viu certa figura de homem na calçada opposta, +parada, olhando para a casa de Baptista. Nem a viu, nem lhe importaria +saber quem fosse. A figura é que tão depressa a viu como estremeceu e +não despegou mais os olhos della, nem os pés do chão. + +Lembras-te daquella veranista de Petropolis que attribuiu um terceiro +namorado á nossa amiguinha? «Um dos trez», disse ella. Pois aqui +está o terceiro namorado, e póde ser que ainda appareça outro. Este +mundo é dos namorados. Tudo se póde dispensar nelle; dia virá em que +se dispensem até os governos, a anarchia se organisará de si mesma, +como nos primeiros dias do paraiso. Quanto á comida, virá de Boston +ou de Nova-York um processo para que a gente se nutra com a simples +respiração do ar. Os namorados é que serão perpetuos. + +Aquelle era official de secretaria. Geralmente os empregados de +secretaria casam cedo. Gouvêa era solteiro, andava ás moças. Um +domingo, á missa, reparou na filha do ex-presidente, e saiu da egreja +tão apaixonado que não quiz outra promoção. Tinha gostado de muitas, +acompanhou algumas, esta foi a primeira que o feriu devéras. Pensava +nella dia e noite. A rua de S. Clemente era o caminho que o levava e +trazia da Repartição. Se a via, olhava muito para ella, detinha-se a +distancia, á porta de uma casa, ou então fingia acompanhar com os olhos +um carro que passava, e tirava-os do carro para a moça. + +Quando amanuense, fizéra versos; nomeado official, perdeu o costume, +mas um dos effeitos da paixão foi restituir-lh'o. Comsigo, em casa +da mãe, gastava papel e tinta a metrificar as esperanças. Os versos +escorriam da penna, a rima com elles, e as estrophes vinham seguindo +direitas e alinhadas, como companhias de batalhão; o titulo seria +o coronel, a epigraphe a musica, uma vez que regulava a marcha dos +pensamentos. Bastaria essa força á conquista? Gouvêa imprimiu alguns em +jornaes, com esta dedicatoria: _A alguem._ Nem assim a praça se rendia. + +Uma vez deu-lhe na cabeça mandar uma declaração de amor. Paixão +concebe despropositos. Escreveu duas cartas, sem o mesmo estylo, antes +contrario. A primeira era de poeta; dava-lhe _tu_, como nos versos, +adjectivava muito, chamava-lhe deusa por afiusão ao nome de Flora, e +citava Musset e Casimiro de Abreu. A segunda carta foi um desforço +do official sobre o amanuense. Saiu-lhe ao estylo das informações e +dos officios, grave, respeitoso, com Excellencias. Comparando as duas +cartas, não acabou de escolher nenhuma. Não foi só o texto diverso +e contrario, foi principalmente a falta de autorisação que o levou +a rasgar as cartas. Flora não o conhecia; quando menos, fugia de o +conhecer. Os olhos della, se encontravam os delle, retiravam-se logo +indifferentes. Uma só vez cuidou que traziam a intenção de perdoar. Que +esse breve raio de luz lhe desabotoasse as flores da esperança (começo +a falar como a primeira carta) era possivel e até certo; tão certo que +lhe fez perder o ponto na Repartição. Felizmente, era optimo empregado; +o director ampliou o quarto de hora de tolerancia, e attendeu á dôr de +cabeça, causa de triste insomnia. + +--Dormi sobre a madrugada, acabou o official. + +--Assigne. + +Senão quando, morre-lhe o padrinho ao Gouvêa, e em testamento deixou +ao afilhado trez contos de reis. Qualquer acharia nisso um beneficio, +Gouvêa achou dous: o legado e a occasião de travar relações com o pae +de Flora. Correu a pedir-lhe que acceitasse a procuração de legatario, +ajustando logo os honorarios e as despezas. Com pouco, foi procural-o á +casa, e para que o advogado désse a noticia do constituinte á familia, +empregou muitos ditos subtis e graciosos, contou anecdotas do padrinho, +expoz conceitos philosophicos e um programma de marido. Descreveu +tambem a situação administrativa, a promoção eminente, os louvores +recebidos, commissões e gratificações, tudo o que o distinguia de +outros companheiros. De resto, ninguem na Repartição lhe queria mal. +Aquelles mesmos que se creram prejudicados, acabavam confessando que +era justa a preferencia dada ao Gouvêa. Não seria tudo exacto; elle o +cria assim, ao menos, e, se não cria tudo, não desmentiu nada. Perdeu +tempo e trabalho. Flora não soube da conversação. + +Nem soube da conversação, nem deu agora pelo vulto, como lá disse. +tambem disse que a noite era escura. Accrescento que começou a pingar +fino e a ventar fresco. Gouvêa trazia guarda-chuva e ia a abril-o, mas +recuou. O que se passou na alma delle foi uma luta egual á dos dous +textos da carta. O official queria abrigar-se da chuva, o amanuense +queria apanhal-a, isto é, o poeta renascia contra as intemperies, +sem medo ao mal, prestes a morrer por sua dama, como nos tempos +da cavallaria. Guarda-chuva era ridiculo; poupar-se á constipação +desmentia a adoração. Tal foi a luta e o desfecho; venceu o amanuense, +emquanto a chuva ia pingando grosso, e outra gente passava abrigada e +depressa. Flora entrou e fechou a janella. O amanuense esperou ainda +algum tempo, até que o official abriu o guarda-chuva e fez como os +outros. Em casa achou a triste consolação da mãe. + + + + +CAPITULO XCVI + + +Retraimento + + +Aquella noite acabou sem incidente. Os gemeos viéram, Flora não +appareceu, e no dia seguinte duas cartinhas perguntavam a D. Claudia +como passára a filha. A mãe respondeu que bem. Nem por isso Flora os +recebeu com a alegria do costume. Tinha alguma cousa que a fazia falar +pouco. Pediram-lhe musica, tocou; foi bom, porque era um meio de se +metter comsigo. Não respondeu aos apertos de mão, como elles suppunham +que fazia até ha pouco. Assim foi essa noite, assim fôram as outras. +Ora um, ora outro chegava primeiro, imaginando que a presença do rival +é que tolhia a moça; mas a precedencia não valia nada. + + + + +CAPITULO XCVII + + +Um Christo particular + + +Tudo isso lhe custava tanto, que ella acabou pedindo ao seu Christo +um logar de governador para o pae,--ou qualquer commissão fóra daqui. +Jesus-Christo não distribue os governos deste mundo. O povo é que +os entrega a quem merece, por meio de cedulas fechadas, mettidas +dentro de uma urna de madeira, contadas, abertas, lidas, sommadas e +multiplicadas. A commissão podia vir, isso sim; a questão era saber +se Jesus-Christo acudirá a todos os que lhe pedem a mesma cousa. +Os commissarios seriam infinitamente mais que as commissões. Esta +objecção foi logo expellida do espirito de Flora, porque ella pedia ao +seu Christo, um de marfim velho, deixa da avó, um Christo que nunca +lhe negou nada, e a quem as outras pessoas não vinham importunar +com supplicas. A propria mãe tinha o seu particular, confidente de +ambições, consolo de desenganos; não recorria ao da filha. Tal era a fé +ingenua da moça. + +Certarmente, já lhe havia pedido que a livrasse daquella complicação de +sentimentos, que não acabavam de ceder um ao outro, daquella hesitação +cançativa, daquelle empuxar para ambos os lados. Não foi ouvida. A +causa seria talvez por não haver dado ao pedido a fórma clara que aqui +lhe ponho, com escandalo do leitor. Effectivamente, não era facil +pedir assim por palavras seguidas, faladas ou só pensadas; Flora não +formulou a supplica. Poz os olhos na imagem e esqueceu-se de si, para +que a imagem lêsse dentro della o seu desejo. Era demais; requerer o +favor do céu e obrigal-o a adivinhar o que era... Assim cuidou Flora, +e resolveu emendar a mão. Não chegou lá; não ousou dizer a Jesus o que +não dizia a si mesma. Pensava nos dous, sem confessar a nenhum. Sentia +a contradicção, sem ousar encaral-a por muito tempo. + + + + +CAPITULO XCVIII + + +O medico Ayres + + +Um dia pareceu á mãe que a filha andava nervosa. Interrogou-a e +apenas descobriu que Flora padecia de vertigens e esquecimentos. Foi +justamente um dia em que Ayres lá appareceu de visita, com recados de +Natividade. A mãe falou-lhe primeiro e confiou-lhe os seus sustos. +Pediu-lhe que a interrogasse tambem. Ayres fez de medico, e, quando +a moça appareceu e a mãe os deixou na sala, cuidou de a interrogar +cautelosamente. + +Vão proposito, porque ella mesma iniciou a conversação, queixando-se de +dôr de cabeça. Ayres observou que dôr de cabeça era molestia de moça +bonita, e, tendo confessado que este dito era banal, descobriu-lhe o +motivo. Não queria perder a occasião de lhe dizer o que toda a gente +sabia e dizia, não só aqui, como em Petropolis. + +--Porque não vae a Petropolis? concluiu. + +--Espero fazer outra viagem mais longa, muito longa... + +--Para o outro mundo, aposto? + +--Acertou. + +--Já tem bilhete de passagem? + +--Comprarei no dia do embarque. + +--Talvez não ache. Ha grande concurrencia para aquellas paragens; +melhor é comprar antes, e, se quer, eu me encarrego disso; comprarei +outro para mim, e iremos juntos. A travessia, quando não ha conhecidos, +deve ser fastidiosa; ás vezes, os proprios conhecidos aborrecem, como +succede neste mundo. As saudades da vida é que são agradaveis. A gente +de bordo é vulgar, mas o commandante impõe confiança. Não abre a bôca, +dá as suas ordens por gestos, e não consta que haja naufragado. + +--O senhor está caçoando commigo; eu creio até que estou com febre. + +--Deixe ver. + +Flora estendeu-lhe o pulso; elle, com ar profundo: + +--Está; febre de quarenta e sete grãos, a mão está ardendo, mas isto +mesmo prova que não é nada, porque aquellas viagens fazem-se com as +mãos frias. Ha de ser constipação, fale a sua mãe. + +--Mamãe não cura. + +--Póde curar, ha remedios caseiros; em todo caso, peça-lhe, e ella póde +mandar chamar um medico. + +--Medico dá tizanas, e eu não gósto de tizanas. + +--Nem eu, mas tolero-as. Porque não experimenta a homoeopathia, que não +tem gosto, como a allopathia? + +--Qual é a que lhe parece melhor? + +--A melhor? Só Deus é grande. + +Flora sorriu, de um sorriso pallido, e o conselheiro percebeu algo que +não era tristeza de passagem ou de creança. Novamente lhe falou de +Petropolis, mas não insistiu. Petropolis era a aggravação do momento +actual. + +--Petropolis tem o mal das chuvas, continuou. Eu, se fosse a senhora, +saía desta casa e desta rua; vá para outro bairro, casa amiga, com sua +mãe ou sem ella... + +--Para onde? perguntou Flora anciosa. + +E ficou a olhar, esperando. Não tinha casa amiga, ou não se lembrava, e +queria que elle mesmo escolhesse alguma, onde quer que fosse, e quanto +mais longe, melhor. Foi o que elle leu nos olhos parados. É ler muito, +mas os bons diplomatas guardam o talento de saber tudo o que lhes diz +um rosto calado, e até o contrario. Ayres fôra diplomata excellente, +apesar da aventura de Caracas, se não é que essa mesma lhe aguçou a +vocação de descobrir e encobrir. Toda a diplomacia está nestes dous +verbos parentes. + + + + +CAPITULO XCIX + + +A titulo de ares novos... + + +--Vou arranjar-lhe uma casa boa, disse elle, á despedida. + +Desde que estava em Petropolis, Ayres não ia jantar a Andarahy, com a +irmã, ás quintas-feiras, segundo ajustára e consta do cap. XXXII. Agora +foi lá, e cinco dias depois Flora transferia-se para a casa della, a +titulo de ares novos. D. Rita não consentiu que D. Claudia lhe levasse +a filha, ella mesma a foi buscar a S. Clemente, e Ayres acompanhou as +trez. + +A mocidade de Flora na casa de D. Rita foi como uma rosa nascida ao pé +de paredão velho. O paredão remoçou. A simples flôr, ainda que pallida, +alegrou o barro gretado e as pedras despidas. D. Rita vivia encantada; +Flora pagava o agazalho da dona da casa com tanta ingenuidade e graça, +que esta acabou por lhe dizer que a roubaria á mãe e ao pae, e foi +ainda occasião de riso para as duas. + +«Você me deu um lindo presente com esta moça, escrevia D. Rita ao +irmão; foi uma alma nova, e veiu em boa occasião, porque a minha anda +já caduca. É muito docilzinha, conversa, toca e desenha que faz gosto, +tem aqui tirado riscos de varias cousas, e eu saio com ella para lhe +mostrar vistas apreciaveis. Às vezes, apresenta uma cara triste, +olha vagamente, e suspira; mas eu pergunto-lhe se são saudades de S. +Clemente, ella sorri e faz ura gesto de indifferença. Não lhe falo dos +nervos, para não a affligir, mas creio que vae melhor...» + +Flora tambem escreveu as conselheiro Ayres, e as duas cartas chegaram +á mesma hora a Petropolis. A de Flora era um agradecimento grande e +cordial, mal entremeado de alguma palavra saudosa; confirmava assim +a carta da outra, posto não a houvesse lido. Ayres comparou-as, +lendo duas vezes a da moça para ver se ella escondia mais do que +transparencia do papel. Em summa, confiava no remedio. + +--Não os vendo, esquece-os, pensou elle; e se na visinhança houver +alguem que pense em gostar della, é possivel que acabe casando. + +Respondeu a ambas, na mesma noite, dizendo-lhes que na quinta-feira +iria almoçar com ellas. A D. Claudia escreveu mandando-lhe a carta da +irmã, e foi passar a noite em casa de Natividade, a quem deu a ler as +cinco cartas. Natividade approvou tudo. Notava só que os filhos não lhe +escreviam, e deviam estar desesperados. + +--A Santa Casa cura, e a Bibliotheca Nacional tambem, retorquiu Ayres. + +Na quinta feira, Ayres desceu e foi almoçar a Andarahy. Achou-as como +as tinha lido nas cartas. Interrogou-as separadamente para ouvir por +bôca as confissões do papel; eram as mesmas. D. Rita parecia ainda +mais encantada. Talvez a causa recente fosse a confidencia que fez a +moça, na vespera. Como falassem de cabellos, D. Rita referiu o que +tambem consta do cap. XXXII, isto é, que cortára os seus para os metter +no caixão do marido, quando o levaram a enterrar. Flora não a deixou +acabar; pegou-lhe das mãos e apertou-as muito. + +--Nenhuma outra viuva faria isto, disse ella. + +Aqui foi D. Rita que lhe pegou nas mãos, pôl-as sobre os seus hombros, +e concluiu o gesto por um abraço. Todas as pessoas louvaram-lhe a +abnegação do acto; esta era a primeira que a achou unica. E dahi outro +abraço longo, mais longo... + + + + +CAPITULO C + + +Duas cabeças + + +Tão longo foi o abraço que tomou o resto ao capitulo. Este começa +sem elle nem outro. O mesmo aperto de mão de Ayres e Flora, se foi +demorado, tambem acabou. O almoço fez gastar algum tempo mais que de +costume, porque Ayres, além de conversador emerito, não se fartava de +ouvir as duas, principalmente a moça. Achava-lhe um toque de languidez, +abatimento ou cousa proxima, que não encontro no meu vocabulario. + +Flora mostrou-lhe os desenhos que fizera, paisagens, figuras, um pedaço +da estrada da Tijuca, um chafariz antigo, um _Principio de casa._ Era +umas dessas casas, que alguem começou muitos annos antes, e ninguem +acabou, ficando só duas ou trez paredes, ruina sem historia. Havia +ainda outros desenhos, uma revoada de passaros, um vaso á janella. +Ayres ia folheando, cheio de curiosidade e paciencia; a intenção da +obra suppria a perfeição, e a fidelidade devia ser approximada. Emfim, +a moça atou os cordões á pasta. Ayres, parecendo-lhe que ficara um +desenho ultimo r escondido, pediu que lh'o mostrasse. + +--É um esboço, não vale a pena. + +--Tudo vale a pena; quero acompanhar as tentativas da artista; deixe +ver. + +--Não vale a pena... + +Ayres insistiu; ella não pôde recusar mais tempo, abriu a pasta, +e tirou um pedaço de papel grosso em que estavam desenhadas duas +cabeças juntas e eguaes. Não teriam a perfeição desejada por ella; não +obstante, dispensavam os nomes. Ayres considerou a obra, durante alguns +minutos, e duas ou trez vezes levantou os olhos para a autora. Flora +já os esperava, interrogativa; queria ouvir o louvor ou a critica, mas +não ouviu nada. Ayres acabou de observar as duas cabeças, e pousou o +desenho entre os papeis. + +--Não lhe dizia que era um esboço? perguntou Flora, a ver se lhe +arrancava uma palavra. + +Mas o ex-ministro preferiu não dizer nada. Em vez de achar quasi +extincta a influencia dos gemeos, vinha dar com ella feita consolação +da ausencia, tão viva que bastava a memoria, sem presença dos modelos. +As duas cabeças estavam ligadas por um vinculo escondido. Flora, +vendo continuar o silencio de Ayres, comprehendeu acaso parte do que +lhe passava no espirito. Com um gesto prompto, pegou do desenho e +deu-lh'o. Não lhe disse nada, menos ainda escreveu qualquer palavra. +Qualquer que fosse, seria indiscreta. De mais, era o unico desenho +a que ella não pôz assignatura. Deu-lh'o como se fôra um penhor de +arrependimento. Em seguida, atou novamente as fitas da pasta, emquanto +Ayres, rasgava calado o desenho e mettia os pedaços no bolso. Flora +ficou por um instante parada, bôca entre-aberta, mas logo lhe apertou +a mão, agradecida. Não pôde evitar que lhe caissem duas pequeninas +lagrimas,--como outras tantas fitas que lhe atavam para sempre a pasta +do passado. + +A imagem não é boa, nem verdadeira; foi a que acudiu ao conselheiro, +andando, ao voltar de Andarahy. Chegou a escrevel-a no _Memorial_, +depois riscou-a, e escreveu uma reflexão menos definitiva: «Talvez seja +uma lagrima para cada gemeo.» + +--Póde acabar com o tempo, pensou elle indo para a barca de Petropolis. +Não importa; é um caso embrulhado. + + + + +CAPITULO CI + + +O caso embrulhado + + +Tambem os gemeos achavam o caso embrulhado. Quando iam a S. Clemente, +tinham noticias da moça, sem que lhes déssem certeza do regresso. O +tempo andava; não tardaria que consultassem a sorte, como dous antigos. + +A rigor, não contavam as semanas de interrupção, uma vez que a +escolha se não dava, e elles podiam trazer da consulta o contrario da +inclinação definitiva da moça. Reflexão justa, posto que interessada. +Cada um delles não queria mais que prolongar a batalha, esperando +vencel-a. Entretanto, não confiavam um do outro este pensamento gemeo, +como elles. Ambos se iam sentindo exclusivos, a affeição tinha agora o +seu pudor e necessidade de calar. Já não falavam de Flora. + +Nem só de Flora. Crescendo a opposição, recorriam ao silencio. +Evitavam-se; se podiam, não comiam juntos; se comiam juntos, diziam +pouco ou nada. Às vezes, falavam para tirar aos criados qualquer +suspeita, mas não advertiam que falavam mal e forçadamente, e que os +criados iam commentar as palavras e a expressão delles na copa. A +satisfação com que estes communicavam os seus achados e conclusões +é das poucas que adoçam o serviço domestico, geralmente rude. Não +chegavam, porém, ao ponto de concluir tudo o que os ia tornando +cada vez mais avessos, a ponto de odio que crescia com a ausencia +da mãe. Era mais que Flora, como sabeis; eram as proprias pessoas +inconciliaveis. Um dia houve na copa e na cozinha grande novidade, +Pedro, a pretexto de sentir mais calor que Paulo, mudou de quarto e foi +dormir mal em outro não menos quente que o primeiro. + + + + +CAPITULO CII + + +Visão pede meia sombra + + +Entretanto, a bella moça não os tirava da mesma alcova sua, por mais +que buscasse devéras fugir-lhes. A memoria os trazia pela mão, elles +entravam e ficavam. Iam depois embora, ou de si mesmos, ou empurrados +por ella. Quando tornavam, era de sorpresa. Um dia, Flora aproveitou a +presença para fazer um desenho egual ao que dera ao conselheiro, mais +perfeito agora, muito mais acabado. + +Tambem cançava. Então saía do quarto e ia para o piano. Elles iam com +ella, sentavam-se aos lados ou ficavam defronte, em pé, e ouviam com +attenção religiosa, ora um nocturno, ora uma tarantella. Flora tocava +ao sabor de ambos, sem deliberação; os dedos é que obedeciam á mecanica +da alma. Para os não ver, inclinava a cabeça sobre o teclado; mas o +campo da visão os guardava, se não era a respiração que se fazia sentir +defronte ou dos lados. Tal era a subtileza dos seus sentidos. + +Se fechava o piano e descia ao jardim, succedia muita vez que os ia +achar alli, passeando, e a comprimentavam com tão boa sombra, que ella +esquecia por instantes a impaciencia. Depois, sem que os mandasse, +iam embora. Nos primeiros tempos. Flora tinha medo que a houvessem +abandonado de todo, e chamava-os dentro de si. Ambos tornavam logo, tão +doceis, que ella acabou de se convencer que a fuga não era fuga. nem +elles sentiam desprezo, e não os evocou mais. No jardim era mais rapido +o desapparecimento, talvez pela extrema claridade do logar. Visão pede +meia sombra. + + + + +CAPITULO CIII + + +O quarto + + +Sei, sei, trez vezes sei que ha muitas visões dessas nas paginas que lá +ficam. Ulysses confessa a Alcinoos que lhe é enfadonho contar as mesmas +cousas. Tambem a mim. Sou, porém, obrigado a ellas, porque sem ellas +a nossa Flora seria menos Flora, seria outra pessoa que não conheci. +Conheci esta, com as suas obsessões ou como quer que lhes chames. + +Nem por isso, nem ainda porque houvesse colhido algum abatimento e +nervos, deixava Flora de enfeitar muito, de se fazer mais linda, e ter +mais de um namorado incognito, que suspirava por ella. Não faltava quem +a admirasse de passagem, e fosse vel-a, quando menos, no banco verde, á +porta do jardim, ao pé da irmã de Ayres. Póde ser que conhecesse algum, +Gouvêa, por exemplo; em verdade, era como se os não visse. + +Um delles valia mais que todos pela carruagem,--tirada por uma bella +parelha de cavallos,--capitalista do bairro. A casa delle era um +palacete, os moveis feitos na Europa, estylo imperio, apparelhos de +Sèvres e de prata, tapetes de Smyrna, e uma vasta camara com dous +leitos, um de solteiro, outro de casados. O segundo esperava a esposa. + +--A esposa ha de ser esta, pensou elle um dia, ao ver Flora. + +Era maduro; trazia o rosto batido dos ventos da vida, a despeito das +muitas aguas de toucador; ao corpo faltava aprumo, e as maneiras não +tinham graça nem naturalidade. Era o Nobrega, aquelle da nota de dous +mil reis, nota fecunda, que deitou de si muitas outras, mais de dous +mil contos de reis. Para as notas recentes, a avó perdia-se na noite +dos tempos. Agora os tempos eram claros, a manhã doce e pura. + +Quando viu a moça, e fez a reflexão que lá fica, extranhou-se a si +proprio. Vira outras damas, e mais de uma com escriptos nos olhos, +dizendo-lhe o vasio do coração. Esta era a primeira que veramente lhe +prendeu a vontade e lhe deteve o pensamento. Tornou a vêl-a; a gente +visinha notou porv'entura a frequencia recente do capitalista. Emfim, +Nobrega acabou por se fazer entrado na casa de D. Rita, com desgosto +dos seus habituados, que assim se viam esquecidos do amphytrião. +Nobrega, entretanto, dera ordens bastantes para que fossem todos +servidos e agazalhados, como se elle estivesse presente. + +A ausencia não lhe faria perder as loas dos amigos. Ao contrario, os +servos podiam dar testemunho do que todos elles pensavam do «grande +homem.» Tal era o nome que lhe applicara o secretario particular, e +pegou. Nobrega sabia pouca orthographia, nenhuma syntaxe, licções +uteis, de certo, mas que não valiam a moral, e a moral, diziam todos, +acompanhando o secretario, era o seu principal e maior merito. O fiel +escriba accrescentava, que sendo preciso despir a camisa e dal-a a um +mendigo, Nobrega o faria, ainda que a camisa fosse bordada. + +Agora mesmo, este amor era, ao cabo, um movimento de caridade. Em pouco +tempo, aquelle gosto de relance passou a grande paixão, tão grande que +elle não a pôde conter, e resolveu confessal-a. Hesitou se o faria á +propria moça ou á dona da casa. Não tinha animo para uma nem outra. Uma +carta suppria tudo, mas a carta pedia lingua, calor e respeito. Se, ao +menos, o gesto de Flora lhe dissesse alguma cousa, ainda que pouca, vá; +a carta seria então uma resposta. Mas não lhe dizia nada o gesto da +moça. Era só cortez e gracioso; não ia além dessas duas expressões. + +D. Rita percebeu a inclinação de Nobrega e achou que era a melhor +solução da vida para a hospede. Todas as incertezas, angustias +e melancolias vinham acabar nos braços de um ricasso, estimado, +respeitado, dentro de um palacete com uma carruagem ás ordens... Ella +mesma punha em relevo este premio grande da loteria de Hespanha. + +Emfim, o secretario de Nobrega redigiu com a melhor linguagem que +possuia uma carta em que o capitalista pedia a D. Rita o favor de +consultar a moça amada. + +--Não escreva palavrinhas doces, recommendou elle ao secretario. Gósto +dessa moça com um sentimento de protecção, antes que outra cousa. Não é +carta de namorado. Estylo grave... + +--Uma carta secca, concluiu o secretario. + +--Totalmente secca, não, emendou Nobrega, uma carta lisongeira, sem +esquecer que não sou creança. + +Assim se cumpriu. Ia a cumprir-se demais; Nobrega achou que o estylo +podia ser um tanto ameno; não fazia mal pôr duas ou trez palavras +apropriadas ao objecto, _belleza, coração, sentimento..._ Assim se +cumpriu fmalmente, e a carta foi levada ao seu destino. D. Rita ficou +contentissima. Justamente o que ella queria. Tinha o plano feito de +concluir, por acto seu, uma historia melancolica, a que daria, por +derradeira pagina, conclusão deslumbrante. Não pensou em dizel-o +primeiro ao irmão, pela razão de querer que elle recebesse a noticia +completa, tudo feito e acabado. Releu a carta; dispoz-se a ir logo, +mas ha pessoas para quem o adagio que diz que «o melhor da festa é +esperar por ella», resume todo o prazer da vida. D. Rita tinha essa +opinião. Todavia, entendeu que taes cartas não são das que se guardam +largo tempo, nem aliás das que se communicam sem cautella. Esperou +vinte e quatro horas. Na manhã seguinte, depois de almoçadas, leu a +carta á moça. O natural é que Flora ficasse espantada. Ficou, mas não +tardou que risse, de um riso franco e sonoro, como ainda não rira em +Andarahy. D. Rita ficou espantadissima. Suppunha que, não a pessoa, +mas as vantagens e circumstancias pleiteassem a favor do candidato. +Esquecia os seus cabellos entregues á sepultura do marido. Deu +conselhos á moça, poz em relevo a posição do pretendente, o presente e +o futuro, a situação esplendida que lhe dava este casamento, e por fim +as qualidades moraes de Nobrega. A moça escutou calada, e acabou rindo +outra vez. + +--A senhora sabe se serei feliz? perguntou. + +--Creio que sim; agora, o futuro é que confirmará ou não. + +--Esperemos que o futuro chegue, comquanto me pareça muito demorado. +Não nego as qualidades daquelle homem, parece bom, e trata-me bem, mas +eu não quero casar, D. Rita. + +--Realmente, a edade... Mas nem, ao menos, quer pensar alguns dias? + +--Está pensado. + +D. Rita ainda esperou um dia. A resposta negativa, dado que Flora +viesse a mudar de opinião, podia ser uma desgraça para esta. Uso os +proprios termos della, comsigo, _grande desgraça, posição esplendida, +sentimento profundo._ D. Rita ia aos extremos, deante daquelle +rico-homem dos ultimos annos do seculo. + + + + +CAPITULO CIV + + +A resposta + + +Não querendo dar a resposta nua e crua, D. Rita consultou a moça, que +lhe respondeu simplesmente: + +--Diga que não pretendo casar. + +Quando Nobrega recebeu as poucas linhas que D. Rita lhe mandou, ficou +assombrado. Não contava com recusa. Ao contrario, era tão certa a +acceitação que elle tinha já um programma do noivado. Imaginava a +moça, os olhos timidos, a bôca cerrada, o veu que lhe cobriria a linda +carinha, a delicadeza delle, as palavras que lhe diria entrando em +casa. Tinha já composto uma invocação á Mãe Santíssima, para que os +fizesse felizes. «Dou-lhe carro, dizia comsigo, joias, muitas joias, as +melhores joias do mundo... » Nobrega não fazia ideia exacta do mundo; +era uma expressão. «Hei de dar-lhe tudo, sapatinhos de seda, meias de +seda, que eu mesmo lhe calçarei...» Estremecia de cór, ao calçar-lhe as +meias. Beijava-lhe os pés e os joelhos. + +Tinha imaginado que ella, ao ler a carta, devia ficar tão pasmada e +agradecida, que nos primeiros instantes não pudera responder a D. +Rita; mas logo depois as palavras sairiam do coração ás golfadas. +«Sim, senhora, queria, acceitava; não pensara em outra cousa.» +Escreveria logo ao pae e á mãe para lhes pedir licença; elles viriam +correndo, incredulos, mas, vendo a carta, ouvindo a filha e D. Rita, +não duvidariam da verdade, e dariam o consentimento. Talvez o pae +lh'o fosse dar em pessoa. E nada, nada, nada, absolutamente nada, uma +simples recusa, uma recusa atrevida, porque em fim quem era ella, +apesar da belleza? Uma creatura sem vintem, modestamente vestida, sem +brincos, nunca lhe vira brincos ás orelhas, duas perolasinhas que +fossem. E porque é que lhe furaram as orelhas, se não tinham brincos +que lhe dar? Considerou que ás mais pobres meninas do mundo furam as +orelhas para os brincos que lhes possam cair do céu. E vem esta, e +recusa os mais ricos brincos que o céu ia chover sobre ella... + +Ao jantar, os amigos da casa notaram que elle estava preoccupado. +De noite, elle e o secretario sairam a pé. Nobrega buscou em si o +gesto mais frio e indifferente que pôde, quasi alegre, e annunciou ao +secretario que Flora não queria casar. Não se descreve a admiração do +secretario, em seguida a consternação, finalmente a indignação. Nobrega +respondia magnanimo: + +--Não foi por mal; foi talvez por se julgar abaixo, muito abaixo da +fortuna. Creia que é boa moça. Póde ser tambem, quem sabe? Por ter sido +um mau conselho do coração. Aquella moça é doente. + +--Doente? + +--Não affirmo; digo que póde ser. + +O secretario affirmou. + +--Só a doença, disse elle, explicará a ingratidão, por que o acto é de +pura ingratidão. + +Aqui tornou a nota da indignação, nota sincera, como as outras. Nobrega +gostou de ouvil-a; era um compadecimento. No fim, cumpriu a ideia que +trazia ao sair de casa; augmentou-lhe o ordenado. Podia ser a paga +da sympathia; o beneficiado foi mais longe, achou que era o preço do +silencio, e ninguem soube de nada. + + + + +CAPITULO CV + + +A realidade + + +A molestia, dada por explicação á recusa do casamento, passou á +realidade dahi a dias. Flora adoeceu levemente; D. Rita, para não +alarmar os paes, cuidou de a tratar com remedios caseiros; depois, +mandou chamar um medico, o seu medico, e a cara que este fez não +foi boa, antes má. D. Rita, que costumava ler a gravidade das suas +molestias no rosto delle, e sempre as achava gravissimas, cuidou de +avisar os paes da moça. Os paes viéram logo. Natividade tambem desceu +de Petropolis, não de vez; em cima, tinham medo de algum movimento +cá embaixo. Veiu a visitar a moça, e, a pedido desta, ficou alguns +dias.--Só a senhora me póde curar, disse Flora; não creio nos remedios +que me dão. As suas palavras é que são boas, e os seus carinhos... +Mamãe tambem, e D. Rita, mas não sei, ha uma differença, uma cousa... +Veja: parece-me que até já rio. + +--Já, já; ria mais. + +Flora sorriu, ainda que daquelle sorriso descorado que apparece na +bôca do enfermo, quando a molestia consente, ou elle fórça a seriedade +propria da dôr. Natividade dizia-lhe palavras de animação; fel-a +prometter que iria convalecer em Petropolis. A enfermidade começou a +ceder. D. Claudia acceitou a offerta de D. Rita, e lá ficou aposentada. +Natividade ia á noite para Botafogo e voltava de manhã. Ayres descia de +Petropolis um dia sim, um dia não. + +Tambem os gemeos lá iam saber da enferma. Agora mais que d'antes, +sentiam a fortaleza do vinculo que os prendia á moça. Pedro, já medico, +ainda que sem pratica, punha mais autoridade nas perguntas, concluia +melhor dos symptomas, mas as esperanças e os receios eram de ambos. +Algumas vezes, falavam mais alto que de costume e de conveniencia. A +razão, por egoista que fosse, era perdoavel. Suppõe que os cartões de +visita falassem; alguns, mais soffregos, proclamariam os seus nomes, +para que soubessem logo da presença, da cortezia e da anciedade. Tal +cuidado da parte dos dous era inutil, porque ella sabia delles e +recebia as lembranças que lhe deixavam. + +Flora ia assim passando os dias. Queria Natividade sempre ao pé de si, +pela razão que já deu, e por outra que não disse, nem porventura soube, +mas podemos suspeital-a e imprimir. Estava alli o ventre abençoado que +gerára os dous gemeos. De instincto, achava nella algo particular. +Quanto ao influxo que exercia nella, por essa ou qualquer outra causa, +não a sabia Natividade; contentava-se em ver que, ainda agora, e em tal +crise, Flora não perdera a amizade que lhe tinha. Passavam as horas +juntas, falando, se não fazia mal falar, ou então uma com as mãos +da outra entre as suas. Quando Flora adormecia, Natividade ficava a +contemplal-a, com o rosto pallido, os olhos fundos, as mãos quentes, +mas sem perder a graça dos dias da saúde. As outras entravam no quarto, +pé ante pé, esticavam os pescoços para vel-a dormir, falavam por gestos +ou tão baixo que só o coração as adivinharia. + +Quando pareceu melhorar, Flora pediu um pouco mais de luz e de céu. Uma +das duas janellas foi então escancarada, e a enferma encheu-se de vida +e riso. Não é que a Febre se fosse de todo. Essa bruxa livida estava ao +canto do quarto, com os olhos espetados nella; mas, ou de cançada, ou +por obrigação imposta, cochilava a miudo, e longamente. Então a enferma +sentia só o calor do Mal, que o medico graduava em trinta e nove ou +trinta e nove e meio, depois de consultar o thermometro. A Febre, ao +ver esse gesto, ria sem escandalo, ria para si. + + + + +CAPITULO CVI + + +Ambos quaes? + + +Ficámos no ponto cm que uma das janellas do quarto augmentou a dóse +do luz e de céu que Flora pediu, sem embargo da febre, aliás pouca. O +mais que se passou valia a pena de um livro. Não foi logo, logo, gastou +longas horas e alguns dias. Houve tempo bastante para que entre a vida +e Flora se fizesse a reconciliação ou a despedida. Uma e outra podiam +ser extensas; tambem podiam ser curtas. Conheci um homem que adoeceu +velho, se não de velho, e despendeu no rompimento final um tempo quasi +infinito. Já pedia a morte, mas quando via o rosto descarnado da +derradeira amiga espiar da porta entre-aberta, voltava o seu para outro +lado e engrolava uma cantiga da infancia, para enganal-a e viver. + +Flora não recorria a taes cantigas, aliás tão proximas. Quando via o +céu e um pedaço de sol no muro, deleitava-se naturalmente, e uma vez +quiz desenhar, mas não lh'o consentiram. Se a morte a espiava da porta, +tinha um calefrio, é verdade, e fechava os olhos. Ao abril-os fitava a +triste figura, sem lhe fugir nem chamar por ella. + +--Você amanhã está prompta, e de hoje a oito dias, ou antes, vamos para +Petropolis, disse Natividade disfarçando as lagrimas, mas a voz fazia o +officio dos olhos. + +--Petropolis? suspirou a doente. + +--Lá terá muito que desenhar. + +Eram sete horas da manhã. Na vespera, quando os gemeos sairam de lá, já +tarde, os receios da morte cresciam; mas não bastam receios, é preciso +que a realidade venha atraz delles; dahi as esperanças. Tambem não +bastam esperanças, a realidade é sempre urgente. A madrugada trouxe +algum socego; ás sete horas, depois daquellas palavras de Natividade, +Flora pôde dormir. + +Quando Pedro e Paulo voltaram a Andarahy, a enferma estava acordada, +e o medico, sem dar grandes esperanças, mandou fazer applicações, que +declarou energicas. Todos tinham signaes de lagrimas. De noite, Ayres +appareceu trazendo noticias de agitação na cidade. + +--Que é? + +--Não sei; uns falam de manifestações ao marechal Deodoro, outros de +conspiração contra o marechal Floriano. Ha alguma cousa. + +Natividade pediu aos filhos que se não mettessem em barulhos; ambos +prometteram e cumpriram. Ao ver o aspecto de algumas ruas, grupos, +patrulhas, armas, duas metralhadoras, Itamaraty illuminado, tiveram a +curiosidade de saber o que houve e havia; vaga suggestão, que não durou +dous minutos. Correram a metter-se em casa, e a dormir mal a noite. Na +manhã seguinte os criados levaram os jornaes com as noticias da vespera. + +--Veiu algum recado de Andarahy? perguntou um. + +--Não, senhor. + +Ainda quizeram ler, por alto, alguma cousa. Não puderam; estavam +anciosos de sair de casa e saber noticias da noite. Posto levassem os +jornaes comsigo, não leram claramente nem seguidamente. Viram nomes de +pessoas prezas, um decreto, movimento de gente e de tropas, tão confuso +tudo, que deram por si na casa de D. Rita, antes de entender o que +houvera. Flora ainda vivia. + +--Mamãe, a senhora está mais triste hoje que estes dias. + +--Não fales tanto, minha filha, acudiu D. Claudia. Triste estou sempre +que adoeces. Fica boa e verás. + +--Fica, fica boa, interveiu Natividade. Eu em moça, tive uma doença +egual que me prostrou por duas semanas, até que me levantei, quando já +ninguem esperava. + +--Então já não esperam que me levante? + +Natividade quiz rir da conclusão tão prompta, com o fim de a animar. A +doente fechou os olhos, abriu-os dahi a pouco, e pediu que vissem se +estava com febre. Viram; tinha, tinha muita. + +--Abram-me a janella toda. + +--Não sei se fará bem, ponderou D. Rita. + +--Mal não faz, disse Natividade. + +E foi abrir, não toda, mas metade da janella. Flora, posto que já mui +caida, fez esforço e voltou-se para o lado da luz. Nessa posição ficou +sem dar de si; os olhos, a principio vagos, entraram a parar, até que +ficaram fixos. A gente entrava no quarto devagar, e abafando os passos, +trazendo recados e levando-os; fóra, espreitavam o medico. + +--Demora-se; já devia cá estar, dizia Baptista. + +Pedro era medico, propoz-se a ir ver a enferma; Paulo, não podendo +entrar tambem, ponderou que seria desagradavel ao medico assistente; +além disso, faltava-lhe pratica. Um e outro queriam assistir ao +passamento de Flora, se tinha de vir. A mãe, que os ouviu, saiu á sala, +e, sabendo o que era, respondeu negativamente. Não podiam entrar; era +melhor que fossem chamar o medico. + +--Quem é? perguntou Flora, ao vel-a tornar ao quarto. + +--São os meus filhos que queriam entrar ambos. + +--Ambos quaes? perguntou Flora. + +Esta palavra fez crêr que era o delirio que começava, se não é que +acabava, porque, em verdade, Flora não proferiu mais nada. Natividade +ia pelo delirio. Ayres, quando lhe repetiram o dialogo, rejeitou o +delirio. + +A morte não tardou. Veiu mais depressa do que se receiava agora. +Todas e o pae acudiram a rodear o leito, onde os signaes da agonia se +precipitavam. Flora acabou como uma dessas tardes rapidas, não tanto +que não façam ir doendo as saudades do dia; acabou tão serenamente +que a expressão do rosto, quando lhe fecharam os olhos, era menos de +defunta que de esculptura. As janellas, escancaradas, deixavam entrar o +sol e o céu. + + + + +CAPITULO CVII + + +Estado de sitio + + +Não ha novidade nos enterros. Aquelle teve a circumstancia de percorrer +as ruas em estado de sitio. Bem pensado, a morte não é outra cousa +mais que uma cessação da liberdade de viver, cessação perpetua, ao +passo que o decreto daquelle dia valeu só por 72 horas. Ao cabo de 72 +horas, todas as liberdades seriam restauradas, menos a de reviver. Quem +morreu, morreu. Era o caso de Flora; mas que crime teria commettido +aquella moça, além do de viver, e porventura o de amar, não se sabe a +quem, mas amar? Perdoai estas perguntas obscuras, que se não ajustam, +antes se contrariam. A razão é que não recordo este obito sem pena, e +ainda trago o enterro á vista... + + + + +CAPITULO CVIII + + +Velhas ceremonias + + +Aqui vae a sair o caixão. Todos tiram o chapeu, logo que elle assoma +á porta. Gente que passa, pára. Das janellas debruça-se a visinhança, +em algumas atopeta-se, por serem as familias maiores que o espaço; ás +portas, os criados. Todos os olhos examinam as pessoas que pegam nas +alças do caixão, Baptista, Santos, Ayres, Pedro, Paulo, Nobrega. + +Este, posto já não frequentasse a casa, mandara saber da enferma, e +foi convidado a carregar o gracioso corpo. No carro, em que levava o +secretario, e era puxado pela mais bella parelha do prestito, quasi +unica, lembrava Nobrega ao secretario. + +--Não lhe dizia eu que ella era doente? Era muito doente. + +--Muito. + +Não vou ao ponto de affirmar que teve prazer com a morte de Flora, +só por havel-o feito acertar na noticia da doença, estando ella +perfeitamente sã. Mas que ninguem fosse seu marido, foi uma especie +de consolação. Houve mais; suppondo que ella o tivesse acceitado e +casassem, pensava agora no esplendido enterro que lhe faria. Desenhava +na imaginação o carro, o mais rico de todos, os cavallos e as suas +plumas negras, o caixão, uma infinidade de cousas que, á força de +compôr, cuidava feitas. Depois o tumulo; marmore, letras de ouro... O +secretario para o arrancar á tristeza, falava dos objectos da rua. + +--V. Ex. lembra-se do chafariz que havia aqui ha annos? + +--Não, resmungava Nobrega. + +Ainda uma vez, não ha novidade nos enterros. Dahi o provavel tedio dos +coveiros, abrindo e fechando covas todos os dias. Não cantam, como os +de _Hamlet_, que temperam as tristezas do officio com as trovas do +mesmo officio. Trazem o caixão da cal e a colher para os convidados, +e para si as pás com que deitam a terra para dentro da cova. O pae +e alguns amigos ficaram ao pé da cova de Flora, a ver cair a terra, +a principio com aquelle baque soturno, depois com aquelle vagar +cançativo, por mais que os pobres homens se apressem. Enifim, caiu toda +a terra, e elles puzeram em cima as grinaldas dos paes e dos amigos: +«_À nossa querida filha»;--«À nossa santa amiguinha Flora a saudosa +amiga Natividade»;--À Flora, um amigo velho_», etc. Tudo feito, vieram +saindo; o pae, entre Ayres e Santos, que lhe davam o braço, cambaleava. +Ao portão, foram tomando os carros e partindo. Não deram pela falta de +Pedro e Paulo que ficaram ao pé da cova. + + + + +CAPITULO CIX + + +Ao pé da cova + + +Nenhum delles contou o tempo gasto naquelle logar. Sabem só que foi de +silencio, de contemplação e de saudade. Não digo, para os não vexar +agora, mas é possivel que chorassem tambem. Tinham um lenço na mão, +enxugavam os olhos; depois com os braços caidos, as mãos prendendo o +chapeo, olhavam apparentemente para as flôres que cobriam a sepultura, +mas na realidade para a creatura que lá estava embaixo. + +Emfim, cuidaram de arrancar-se dalli, e despedir-se da defunta, não se +sabe com que palavras, nem se eram as mesmas; o sentido seria egual. +Como estivessem defronte um do outro, acudiu-lhes a ideia de um aperto +de mão por cima da cova. Era uma promessa, um juramento. Juntaram-se +e vieram descendo, calados. Antes de chegar ao portão, reduziram á +palavra o gesto das mãos feito sobre a cova. Que juravam a conciliação +perpetua. + +--Ella nos separou, disse Pedro; agora, que desappareceu, que nos una. + +Paulo confirmou de cabeça. + +--Talvez morresse para isso mesmo, accrescentou. + +Depois, abraçaram-se. Gesto nem palavra traziam emphasis ou affectação; +eram simples e sinceros. A sombra de Flora de certo os viu, ouviu e +inscreveu aquella promessa de reconciliação nas taboas da eternidade. +Ambos, por um impulso commum, voltaram os olhos para ver ainda uma +vez a cova de Flora, mas a cova ficava longe e encoberta por grandes +sepulchros, cruzes, collumnas, um mundo inteiro de gente passada, quasi +esquecida. O cemiterio tinha um ar meio alegre, com todas aquellas +grinaldas de flôres, baixo-relevos, bustos, e a côr branca dos marmores +e da cal. Comparado á cova recente, parecia um renascimento de vida, +que ficou deslembrada a um canto da cidade. + +Custou-lhes sair do cemiterio. Não suppunham estar tão presos á +defunta. Cada um d'elles ouvia a mesma voz, com egual doçura e palavras +especiaes. Tinham chegado ao portão e o carro veiu buscal-os. A cara do +cocheiro era radiosa. + +Não se explica esta expressão do cocheiro, se não porque, inquieto da +demora, não cuidando que os dous freguezes ficassem tanto tempo ao pé +da cova, entrara a receiar que tivessem aceitado o convite de algum +amigo e voltado para casa. Tinha já resolvido esperar poucos minutos +mais, e ir embora; mas a gorjeta? A gorjeta foi dobrada, como a dôr e o +amor; digamos, gemea. + + + + +CAPITULO CX + + +Que vôa + + +Assim como o carro veiu voando do cemiterio, assim voará este capitulo, +destinado a dizer primeira que a mãe dos gemeos conseguiu leval-os para +Petropolis. Já não allegaram a clinica da Santa Caza nem os documentos +da Bibliotheca Nacional. Clinica e documentos repousam agora na cova +n... Não ponho o numero, para que algum curioso, se achar este livro na +dita Bibliotheca, se dê ao trabalho de investigar e completar o texto. +Basta o nome da defunta, que lá ficou dito e redito. + +Vôe este capitulo, como o trem de Mauá, serra acima, até á cidade do +repouso, do luxo e da galanteria. Vá Natividade com os filhos, e Ayres +com os trez. Em cima, á noite, voltando este á casa do barão, pôde +ver os effeitos da paz jurada, a conciliação final. Não sabia nada do +pacto dos dous moços. Pae nem mãe sabiam cousa nenhuma. Foi um segredo +guardado no silencio e no desejo sincero de commemorar uma creatura que +os ligára, morrendo. + +Natividade vivia agora enamorada dos filhos. Levava-os a toda parte, +ou guardava-os para si, afim de os gostar mais deliciosamente, de os +approvar por actos, de auxiliar a obra correctiva do tempo. Noticias +e boatos do Rio de Janeiro eram objecto de conversação nas casas a +que estes iam, sem os convidar a sair da abstenção voluntaria. As +recreações pouco a pouco os tomaram, algum passeio de carro ou a +cavallo, e outras diversões os traziam unidos. + +Assim chegaram ao tempo em que a familia Santos desceu, ainda que a +contra-gosto de Natividade. Ella temia que, mais perto do governo, a +discordia politica acabasse com a recente harmonia dos filhos, mas não +podia lá ficar. A outra gente vinha descendo. Santos queria os seus +velhos habitos, e deu algumas razões boas, que Natividade ouviu depois +ao proprio Ayres. Podia ser um encontro de ideias, mas se estas eram +boas, deviam ser acceitas. + +Natividade confiava ao tempo a perfeição da obra; Cria no tempo. Eu, +em menino, sempre o vi pintado como um velho de barbas brancas e foice +na mão, que me mettia medo. Quanto a ti, amigo meu, ou amiga minha, +segundo fôr o sexo da pessoa que me lê, se não fôrem duas, e os sexos +ambos,--um casal de noivos, por exemplo,--curiosos de saber como é +que Pedro e Paulo puderam estar no mesmo Credo... Não falemos desse +mysterio.... Contenta-te de saber que elles tinham em mente cumprir o +juramento daquelle logar e occasião. O tempo trouxe o fim da estação, +como nos outros annos, e Petropolis deixou Petropolis. + + + +CAPITULO CXI + + +Um resumo de esperanças + + +«Quando um não quer, dous não brigam» tal é o velho proverbio que ouvi +em rapaz, a melhor edade para ouvir proverbios. Na edade madura elles +devem já fazer parte da bagagem da vida, fructos da experiencia antiga +e commum. Eu cria neste; mas não foi elle que me deu a resolução de não +brigar nunca. Foi por achal-o em mim que lhe dei credito. Ainda que +não existisse, era a mesma cousa. Quanto ao modo de não querer, não +respondo, não sei. Ninguem me constrangia. Todos os temperamentos iam +commigo; poucas divergencias tive, e perdi só uma ou duas amizades, tão +pacificamente aliás, que os amigos perdidos não deixaram de me tirar o +chapeo. Um delles pediu-me perdão no testamento. + +No caso dos gemeos eram ambos que não queriam; parecia-lhes ouvir uma +voz de fóra ou de alto que lhes pedia constantemente a paz. Força +maior, portanto, e troca de formula: «Se nenhum quer, nenhum briga.» + +Naturalmente os actos do governo eram approvados e desapprovados, mas +a certeza de que podia accender-Ihes novamente os odios fazia com que +as opiniões de Pedro e de Paulo ficassem entre os seus amigos pessoaes. +Não pensavam nada á vista um do outro. Divergencias de theatro ou de +rua, eram sopitadas logo, por mais que lhes doesse o silencio. Não +doeria tanto a Pedro, como a Paulo, mas sempre era padecer alguma +cousa. Mudando de pensamento, esqueciam de todo, e o riso da mãe era a +paga de ambos. + +A carreira differente ia separal-os depressa, comquanto a residencia +commum os trouxesse unidos. Tudo se podia combinar; os interesses +do officio serviriam a este effeito, as relações pessoaes tambem, e +afinal o uso, que vale por muito. Vou aqui resumindo, como posso, as +esperanças de Natividade. Outras havia a que chamarei conjugaes; os +rapazes porém, não pareciain inclinados a ellas, e a mãe, quem lhe +apalpasse o coração sentiria já um anticipado ciume das noras. + + + +CAPITULO CXII + + +O primeiro mez + + +Na vespera do dia em que se completou o primeiro mez da morte de Flora, +Pedro teve uma ideia, que não communicou ao irmão. Não perderia nada em +fazel-o, porque Paulo teve a mesma ideia, e tambem a calou. Della nasce +este capitulo. + +A pretexto de ir visitar um doente, Pedro saiu de casa, antes das +sete horas. Paulo saiu pouco depois, sem pretexto algum. Pia leitora, +adivinhas que ambos fôram ao cemiterio; não adivinhas, nem é facil +adivinhar que cada um delles levava uma grinalda. Não digo que fossem +das mesmas flores, não só para respeitar a verdade, senão tambem para +afastar qualquer ideia intencional de symetria na acção e no acaso. +Uma era de myosotis, outra creio que de perpetuas. Qual fosse a de um, +qual a do outro, não se sabe nem interessa á narração. Nenhuma tinha +letreiro. + +Quando Paulo chegou ao cemiterio, e viu de longe o irmão, teve +a sensação de pessoa roubada. Cuidava ser unico e era ultimo. A +presumpção, porém, de que Pedro não levára nada, uma folha sequer, +consolou-o da antecipação da visita. Esperou alguns instantes; +advertindo que podia ser visto, desviou-se do caminho, metteu-se por +entre sepulturas, até ir collocar-se atraz daquella. Ahi esperou cerca +de um quarto de hora. Pedro não se queria arrancar dalli; parecia falar +e escutar. Emfim, despediu-se e desceu. + +Paulo, vagorosamente, caminhou para a sepultura. Indo a depositar a +grinalda, viu alli outra posta de fresco, e entendendo que era do +irmão, teve impeto de ir atraz delle e pedir-lhe contas da lembrança e +da visita. Não lhe leves a mal o impeto; passou immediatamente. O que +elle fez foi collocar a coroa que levava no lado correspondente aos +pés da defunta, para não a irmanar com a outra, que estava do lado da +cabeça. + +Não viu, não adivinhou sequer que Pedro naturalmente pararia um +instante, para voltar a cara e mandar um derradeiro olhar á moça +enterrada. Assim foi, mas quando Pedro deu com o irmão, no mesmo logar +que elle, os olhos no chão, teve tambem o seu impulso de ir buscal-o +e trazel-o daquella cova sagrada. Preferiu esconder-se e esperar. Os +gestos de piedade, quaesquer que fossem, elle os deu primeiro á querida +commum. Foi o primeiro em evocar a sombra de Flora, falar-lhe, ouvil-a, +gemer com ella a separação eterna. Viera adiante do outro; lembrara-se +della mais cedo. + +Assim consolado, podia seguir caminho; Paulo, se saisse atraz delle, +e o visse, entenderia que fizera a sua visita em segundo logar, e +receberia um golpe grande. Deu alguns passos na direcção do portão, +estacou, recuou e novamente se escondeu. Queria ver os gestos delle, +ver se rezava, se se benzia, para desmentil-o quando lhe ouvisse mofar +das ceremonias ecclesiasticas. Logo sentiu que era um erro; não iria +confessar a ninguem que o vira rezando ao pé da cova de Flora. Ao +contrario, era capaz de o desmentir,--ou, quando menos, fazer um gesto +de incredulidade... + +Emquanto estas imaginações lhe passavam pela cabeça, desfazendo-se +umas ás outras, discursando sem palavras, acceitando, repellindo, +esperando, os olhos não se retiravam do irmão, nem este da sepultura. +Paulo não fazia gesto, não mexia os labios, tinha os braços cruzados, +o chapeo na mão. Não obstante, podia estar rezando. Tambem podia +falar calado, para a sombra ou para a memoria da defunta. A verdade é +que não saiu do logar. Então Pedro viu que a conversação, evocação, +adoração, o que quer que fosse que atava Paulo á sepultura, vinha sendo +muito mais demorado que as suas orações. Não marcára o seu tempo, mas +evidentemente o de Paulo era já maior. Descontando a impaciencia, +que sempre faz crescer os minutos, ainda assim parecia certo que +Paulo gastava mais saudades que elle. Deste modo, ganhava na extensão +da visita o que perdera na chegada ao cemiterio. Pedro, á sua vez, +achou-se roubado. + +Quiz sair; mas, uma força, que elle não sabia explicar, não lhe +consentia levantar os pés, nem tirar os olhos do gemeo. A custo, pôde +emfim trazer a estes e fazel-os andar de volta pelas outras campas, +onde leu alguns epitaphios. Um de 1865 não se podia ler bem se era +tributo de amor filial ou conjugal, maternal ou paternal, por estar +já apagado o adjectivo. Tributo era, tinha a formula adoptada pelos +marmoristas, para poupar estylo aos freguezes. Notando que o adjectivo +estava comido do tempo, Pedro disse comsigo que o seu amor é que era um +substantivo perpetuo, não precisando mais nada para se definir. + +Pensou outras cousas com que foi disfarçando a humilhação. Fizera tudo +ás carreiras. Se se demorasse mais, era o outro que estaria agora +á espreita. O tempo andava, o sol batia no rosto do irmão, e este +não arredava pé. Emfim, deu mostras de deixar a cova, mas foi para +rodeal-a, e deter-se em todos os quatro lados, como se buscasse o +melhor logar de ver ou evocar a pessoa guardada no fundo. + +Tudo feito, Paulo arredou-se, desceu e saiu, levando as maldições +de Pedro. Este teve uma ideia que desprezou logo, e tu farias o +mesmo, amigo leitor; foi tornar á sepultura e emendar ao tempo gasto +anteriormente outro pedaço maior. Desprezada a ideia, vagou alguns +minutos, até que saiu, sem achar sombra de Paulo. + + + +CAPITULO CXIII + + +Uma Beatriz para dous + + +Flora, se visse os gestos de ambos, é provavel que descesse do céu, e +buscasse maneira de os ouvir perpetuamente, uma Beatriz para dous. Mas +não viu ou não lhe pareceu bem descer. Talvez não achasse necessidade +de tornar cá, para servir de madrinha a um duello que deixara em meio. + +Quanto a este, se ia continuar, não era pela mesma injuria. Não +esqueças que foi ao pé daquella mesma campa que os dous fizeram as +pazes eternas, e, posto não lh'as desfizesse a campa, é certo que +accendeu um pouco da ira antiga. Dir-me-has, e com apparencia de razão, +que, se enterrada ainda os separava, mais os separaria se alli descesse +em espirito. Puro engano, amigo. No começo, ao menos, elles jurariam o +que ella mandasse. + + + + +CAPITULO CXIV + + +Consultorio e banca + + +Mezes depois, Pedro abria consultorio medico, aonde iam pessoas +doentes, Paulo banca de advogado, que procuravam os carecidos de +justiça. Um promettia saude, outro ganho de causa, e acertavam +muita vez, porque não lhes faltava talento nem fortuna. Demais, não +trabalhavam sós, mas cada qual com um collega de nomeada e pratico. + +No meio dos successos do tempo, entre os quaes avultavam a rebellião +da esquadra e os combates do sul, a fuzilaria contra a cidade, os +discursos inflammados, prisões, musicas e outros rumores, não lhes +faltava campo em que divergissem. Nem era preciso politica.. Cresciam +agora mais em numero as occasiões e as materias. Ainda quando +combinassem de acaso e de apparencia, era para discordar logo e de vez, +não deliberamente, mas por não poder ser de outro modo. + +Tinham perdido o accordo, feito pela razão, jurado pelo amor, em honra +da moça defunta e da mãe viva. Mal se podiam ver, mal ou peor ouvir. +Cuidaram de evitar tudo o que o logar e a occasião ajustassem para +os separar mais. Desta maneira, a profissão torceu-lhes o caminho e +dividiu as relações de ambos. Natividade apenas daria pela má vontade +dos filhos, desde que os dous pareciam apostados em lhe querer bem, +mas dava por ella, e tentava ligal-os apertadamente e de todo. Santos +folgava de se prolongar pela medicina e pela advocacia dos filhos. +Só receiava que Paulo, dada a inclinação partidaria, buscasse noiva +jacobina. Não ousando dizer-lhe nada a tal respeito, refugiava-se na +religião, e não ouvia missa que lhe não mettesse uma oração particular +e secreta, para obter a protecção do céu. + + + + + +CAPITULO CXV + + +Troca de opiniões + + +Se não quando, viu Natividade os primeiros signaes de uma troca de +inclinação, que mais parecia proposito que effeito natural. Entretanto, +era naturalissimo. Paulo entrou a fazer opposição ao governo, ao passo +que Pedro moderava o tom e o sentido, e acabava acceitando o regimen +republicano, objecto de tantas desavenças. + +A acceitação por parte deste não foi rapida nem total; era, porém, +bastante para sentir que não havia entre elle e o novo governo um +abysmo. Naturalmente o tempo e a reflexão consummaram este effeito no +espirito de Pedro, a não admittir que tambem nelle vingasse a ambição +de um grande destino, esperança da mãe. Natividade, com effeito, ficou +deliciada. Tambem ella mudara, se havia que mudar na simples alma +materna para quem todos os regimens valiam pela gloria dos filhos. +Pedro, aliás, não se dava todo, restringia alguma cousa ás pessoas e +ao systema, mas acceitava o principio, e bastava; o resto viria com a +edade, dizia ella. + +A opposição de Paulo não era ao principio, mas á execução. Não é esta +a republica dos meus sonhos, dizia elle; e dispunha-se a reformal-a em +trez tempos, com a fina flor das instituições humanas, não presentes +nem passadas, mas futuras. Quando falava dellas, via-se-lhe a convicção +nos labios e nos olhos, estes alongados, como alma de propheta. Era +outro ensejo de se não entenderem os dous. D. Claudia tinha que era +calculo de ambos para se não juntarem nunca;--opinião que Natividade +acceitaria, finalmente, se não fôra a de Ayres. + +Tambem este notára a mudança, e estava prestes a acceitar a explicação, +por aquella razão de commodidade que achava em concordar com as +opiniões alheias; não se cançava nem aborrecia. Tanto melhor, se o +accordo se fazia com um simples gesto. Desta vez, porém, valeu a pessoa. + +--Não, baroneza, disse elle, não creia em propositos. + +--Mas que póde ser então? + +Ayres gastou algum tempo na escolha das palavras, afim de lhe não +sairem pedantescas nem insignificantes; queria dizer o que pensava. +Às vezes, falar não custa menos que pensar. Ao fim de trez minutos, +segredou a Natividade: + +--A razão parece-me ser que o espirito de inquietação reside em Paulo, +e o de conservação em Pedro. Um já se contenta do que está, outro +acha que é pouco e pouquissimo, e quizera ir ao ponto a que não fôram +homens. Em summa, não lhes importam formas de governo, comtanto que a +sociedade fique firme ou se atire para diante. Se não concorda commigo, +concorde com D. Claudia. + +Ayres não tinha aquelle triste peccado dos opiniaticos; não lhe +importava ser ou não acceito. Não é a primeira vez que o digo, mas +provavelmente é a ultima. Em verdade, a mãe dos gemeos não quiz +outra explicação. Nem por isso a discordia morreria entre elles, que +apenas trocavam de armas para continuar o mesmo duello. Ouvindo esta +conclusão, Ayres fez um gesto affirmativo, e chamou a attenção de +Natividade para a côr do céu, que era a mesma, antes e depois da chuva. +Suppondo que havia nisto algo symbolico, ella entrou a procural-o, e o +mesmo farias tú, leitor, se lá estivesses; mas não havia nada. + +--Tenha confiança, baroneza, proseguiu elle pouco depois. Conte com +as circumstancias, que tambem são fadas. Conte mais com o imprevisto. +O imprevisto é uma especie de deus avulso, ao qual é preciso dar +algumas acções de graças; póde ter voto decisivo na assembléa dos +acontecimentos. Supponha um despota, uma côrte, uma mensagem. A côrte +discute a mensagem, a mensagem canonisa o despota. Cada cortezão toma +a si definir uma das virtudes do despota, a mansidão, a piedade, a +justiça, a modestia... Chega a vez da grandeza da alma; chega tambem a +noticia de que o despota morreu de apoplexia, que um cidadão assumiu +o poder e a liberdade foi proclamada do alto do throno. A mensagem é +approvada e copiada. Um amanuense basta para trocar as mãos á Historia; +tudo é que o nome do novo chefe seja conhecido, e o contrario é +impossivel; ninguem trepa ao solio sem isso, nem a senhora sabe o que é +memoria de amanuense. Como nas missas funebres, só se troca o nome do +encommendado,--Petrus, Paulus... + +--Oh! não agoure meus filhos! exclamou Natividade. + + + + +CAPITULO CXVI + + +De regresso + + +--Então foram eleitos deputados? + +--Fôram; tomam assento quinta-feira. Se não fôssem meus filhos, diria +que os vem achar mais bellos do que os deixou, ha um anno. + +--Diga, diga, baroneza; faça de conta que são meus filhos. + +Ayres voltava de Europa, aonde fôra com promessa de ficar seis mezes +apenas. Enganou-se; gastou onze. Natividade é que lhe pôz um anno para +arredondar a ausencia, que sentira devéras, como D. Rita. O sangue em +uma, o costume na outra, custou-lhes a supportar a separação. Elle fôra +a pretexto de aguas, e, por mais que lhe recommendassem as do Brasil, +não as quiz experimentar. Não estava acostumado ás denominações locaes. +Tinha esta impressão que as aguas de Carlsbad ou Vichy, sem estes +nomes, não curariam tanto. D. Rita insinuou que elle ia para ver como +estavam as moças que deixou, e concluiu: + +--Hão de estar tão velhas, como você. + +--Quem sabe se mais? O officio dellas é envelhecer, redarguiu o +conselheiro. + +Quiz rir, mas não pôde ir além da ameaça. Não era a lembrança da +propria velhice, nem da caducidade alheia, era a injustiça da sorte que +lhe tomou a vista interior. As moças elle sabia muito bem que cediam +ao tempo, como as cidades e as instituições, e ainda mais depressa que +ellas. Nem todas iriam logo cedo, a cumprir a sentença que attribue ao +amor dos deuses a morte prematura das pessoas; mas viu algumas dessas, +e agora lhe lembrou a meiga Flora, que lá se fôra com as suas graças +finas... Não passou da ameaça de riso. + +Quizeram retel-o as duas, Santos tambem, que perdia nelle uma figura +certa das suas noites; mas o nosso homem resistiu, embarcou e partiu. +Como escrevia sempre á irmã e aos amigos, dava a causa exacta da +demora, e não eram amores, salvo se mentia, mas passara a edade de +mentir. Affirmou, sim, que recuperara algumas forças, e assim o pareceu +quando desembarcou, onze mezes depois, no caes Pharoux. Trazia o mesmo +ar de velho elegante, fresco e bem posto. + +--Mas então eleitos? + +--Eleitos; tomam assento quinta-feira. + + + + +CAPITULO CXVII + + +Posse das cadeiras + + +Quinta-feira, quando os gemeos tomaram assento na camara, Natividade +e Perpetua fôram ver a ceremonia. Pedro ou Paulo arranjou-lhes uma +tribuna. A mãe desejou que Ayres fosse tambem. Quando este alli chegou, +já as achou sentadas, Natividade a fitar com a luneta o presidente e +os deputados. Um destes falava sobre a acta,e ninguem lhe prestava +attenção. Ayres sentou-se um pouco mais dentro, e após alguns minutos, +disse a Natividade: + +--A senhora escreveu-me que eram candidatos de dous partidos contrarios. + +Natividade confirmou a noticia; fôram eleitos em opposição um ao +outro. Ambos apoiavam a Republica, mas Paulo queria mais do que ella +era, e Pedro achava que era bastante e sobeja. Mostravam-se sinceros, +ardentes, ambiciosos; eram bem acceitos dos amigos, estudiosos, +instruidos... + +--Amam-se finalmente? + +--Amam-se em mim, respondeu ella depois de formular essa phrase na +cabeça. + +--Pois basta esse terreno amigo. + +--Amigo, mas caduco; amanhã posso faltar-lhes. + +--Não falta; a senhora tem muitos e muitos annos de vida. Faça uma +viagem á Europa com elles, e verá que regressa ainda mais robusta. Eu +sinto-me duplicado, por mais que me custe á modestia, mas a modestia +perdoa tudo. E depois, quando os vir encarreirados e grandes homens... + +--Porque é que a politica os ha de separar? + +--Sim, podiam ser grandes na sciencia, um grande medico, um grande +jurisconsulto... + +Natividade não quiz confessar que a sciencia não bastava. A gloria +scientifica parecia-lhe comparativamente obscura; era calada, de +gabinete, entendida de poucos. Politica, não. Quizera só a politica, +mas que não brigassem, que se amassem, que subissem de mãos dadas... +Assim ia pensando comsigo, emquanto Ayres, abrindo mão da sciencia, +acabou declarando que, sem amor, não se faria nada. + +--Paixão, disse elle, é meio caminho andado. + +--A politica é a paixão delles; paixão e ambição. Talvez já pensem na +presidencia da Republica. + +--Já? + +--Não... isto é, sim; guarde segredo. Interroguei-os separadamente; +confessaram-me que este era o seu sonho imperial. Resta saber o que +fará um, se o outro subir primeiro. + +--Derrubal-o-ha, naturalmente. + +--Não graceje, conselheiro. + +--Não é gracejo, baroneza. A senhora cuida que a politica os desune; +francamente, não. A politica é um incidente, como a moça Flora foi +outro... + +--Ainda se lembram della. + +--Ainda? + +--Foram á missa anniversaria, e desconfio que fôram tambem +ao cemiterio, não juntos, nem á mesma hora. Se fôram, é que +verdadeiramente gostavam della; logo, não foi um incidente. + +Sem embargo do que Natividade lhe merecia, Ayres não insistiu na +opinião, antes deu mais relevo á della, com o proprio facto da visita +ao cemiterio. + +--Não sei se fôram, emendou Natividade; desconfio. + +--Devem ter ido; elles gostavam realmente da pequena. Tambem ella +gostava delles; a differença é que, não alcançando unifical-os, como +os via em si, preferiu fechar os olhos. Não lhe importe o mysterio. Ha +outros mais escuros. + +--Parece que vae entrar a ceremonia, disse Perpetua que olhava para o +recinto. + +--Chegue-se para a frente, conselheiro. + +A ceremonia era a do costume. Natividade cuidou que ia vel-os entrar +juntos e affirmarem juntos o compromisso regimental. Viriam assim +como os trouxera no ventre e na vida. Contentou-se de os admirar +separadamente, Paulo primeiro, Pedro depois, ambos graves, e ouviu-lhes +cá de cima repetira formula com voz clara e segura. A ceremonia foi +curiosa para as galerias, graças á semelhança dos dous; para a mãe foi +commovedora. + +--Estão legisladores, disse Ayres no fim. + +Natividade tinha os olhos gloriosos. Ergueu-se e pediu ao velho amigo +que as acompanhasse á carruagem. No corredor acharam os dous recentes +deputados, que vinham ter com a mãe Não consta qual delles a beijou +primeiro; não havendo regimento interno nesta outra camara, póde ser +que fossem ambos a um tempo, mettendo-lhes ella a cara entre as bocas, +uma face para cada um. A verdade é que o fizeram com egual ternura. +Depois voltaram ao recinto. + + + + +CAPITULO CXVIII + + +Cousas passadas, cousas futuras + + +Indo a entrar na carruagem, Natividade deu com a egreja de S. José, ao +lado, e um pedaço do morro do Castello, a distancia. Estacou. + +--Que é? perguntou Ayres. + +--Nada, respondeu ella entrando e estendendo-lhe a mão. Até logo? + +--Até logo. + +A vista da egreja e do morro despertou nella todas as scenas e palavras +que lá ficaram transcriptas nos dous ou trez primeiros capitulos. +Não esqueceste que foi ao pé da egreja, entre esta e a camara, que o +_coupé_ esperou então por ella e pela irmã. + +--Você lembra-se, Perpetua? disse Natividade, quando o carro começou a +andar. + +--De que? + +--Não se lembra que foi alli que ficou o carro, quando fômos á cabocla +do Castello? + +Perpetua lembrava-se. Natividade advertiu ques devia ser alli perto a +ladeira por onde subiram com difficuldade e curiosidade, até á casa da +cabocla, no meio da outra gente, que descia ou subia tambem. A casa era +á direita, tinha a escada de pedra... + +Descança, amigo, não repito as paginas. Ella é que não podia deixar de +as evocar, nem impedir que viessem de si mesmas. Tudo reapparecia com +a frescura antiga. Não esquecera a figurinha da cabocla, quando o pae +a fez entrar na sala: entra, Barbara. A ideia de estar agora madura e +longe, restituida ao Estado, que deixou Provincia, rica onde nasceu +pobre, não acudiu á nossa amiga. Não, toda ella voltou áquella manhã +de 1871. A caboclinha era esta mesma creatura leve e breve, com os +cabellos atados no alto da cabeça, olhando, falando, dansando... Cousas +passadas. + +Quando a carruagem ia a dobrar a praia de Santa Luzia, ladeando a Santa +Casa, Natividade teve ideia, mas só ideia, de voltar e ir ter á ladeira +do Castello, subir por ella, a ver se achava a adivinha no mesmo logar. +Contar-lhe-hia que os dous meninos de mama, que ella predisse seriam +grandes, eram já deputados e acabavam de tomar assento na camara. +Quando cumpririam elles o seu destino? Viveria o tempo de os ver +grandes homens, ainda que muito velha? + +A presidencia da Republica não podia ser para dous, mas um teria a +vice-presidencia, e se este a achasse pouco, trocariam mais tarde os +cargos. Nem faltavam grandezas. Ainda se lembrava das palavras que +ouviu á cabocla, quando lhe perguntou pela especie de grandeza que +caberia aos filhos. Cousas futuras! respondeu a Pythia do Norte, com +tal voz que nunca lhe esqueceu. Agora mesmo parece-lhe que a ouve, mas +é illusão. Quando muito, são as rodas do carro que vão rolando e as +patas dos cavallos que batem: Cousas futuras! cousas futuras! + + + + +CAPITULO CXIX + + +Que annuncia os seguintes + + +Todas as historias, se as cortam em fatias, acabam com um capitulo +ultimo e outro penultimo, mas nenhum autor os confessa taes; todos +preferem dar-lhes um titulo proprio. Eu adopto o methodo opposto; +escrevo no alto de cada um dos capitulos seguintes os seus nomes de +remate, e, sem dizer a materia particular de nenhum, indico o kilometro +em que estamos da linha. Isto suppondo que a historia seja um trem de +ferro. A minha não é propriamente isso. Poderia ser uma canoa, se lhe +tivesse posto aguas e ventos, mas tu viste que só andamos por terra, +a pé ou de carro, e mais cuidosos da gente que do chão. Não é trem +nem barco; é uma historia simples, acontecida e por acontecer; o que +poderás ver nos dous capitulos que faltam, e são curtos. + + + + +CAPITULO CXX + + +Penultimo + + +Este é ainda um obito. Ja lá ficou defunta a joven Flora, aqui vae +morta a velha Natividade. Chamo-lhe velha, porque li a certidão de +baptismo; mas, em verdade, nem os filhos deputados, nem os cabellos +brancos davam a esta senhora o aspecto correspondente á edade. A +elegancia, que era o seu sexto sentido, enganava os tempos de tal +maneira que ella conservava, não digo a frescura, mas a graça antiga. + +Não morreu sem ter uma conferencia particular com os dous filhos,--tão +particular, que nem o marido assistiu a ella. Tambem não instou por +isso. Verdade, verdade, Santos andava a chorar pelos cantos; mal +poderia reter as lagrimas, se ouvisse a mulher fazer aos filhos os seus +finaes pedidos. Porquanto, os medicos já a haviam desenganado. Se eu +não visse nesses officiaes da saúde os escrutadores da vida e da morte, +podia torcer a penna, e, contra a predicção scientifica, fazer escapar +Natividade. Commetteria uma acção facil e réles, além de mentirosa. +Não, senhor, ella morreu sem falta, poucas semanas depois daquella +sessão da camara. Morreu de typho. + +Tão secreta foi a conferencia della e dos filhos que estes não quizeram +contal-a a ninguem, salvo ao conselheiro Ayres, que a adivinhou em +parte. Paulo e Pedro confessaram a outra parte, pedindo-lhe silencio. + +--Não juraram calar? + +--Positivamente, não, disse um. + +--Juramos só o que ella nos pediu, explicou o outro. + +--Pois então podem contal-o a mim. Eu serei discreto como um tumulo. + +Ayres sabia que os tumulos não são discretos. Se não dizem nada, é +porque diriam sempre a mesma historia; dahi a fama de discrição. Não é +virtude, é falta de novidade. + +Ora, o que a mãe fez, quando elles entraram e fecharam a porta do +quarto, foi pedir-lhes que ficasse cada um do lado da cama e lhe +estendessem a dextra. Juntou-as sem força e fechou-as nas suas mãos +ardentes. Depois, com a voz expirante e os olhos accesos apenas de +febre, pediu-lhes um favor grande e unico. Elles iam chorando e +calando, porventura adivinhando o favor. + +--Um favor derradeiro, insistiu ella. + +--Diga, mamãe. + +--Vocês vão ser amigos. Sua mãe padecerá no outro mundo, se os não +vir amigos neste. Peço pouco; a vossa vida custou-me muito, a criação +tambem, e a minha esperança era vel-os grandes homens. Deus não quer, +paciencia. Eu é que quero saber que não deixo dous ingratos. Anda, +Pedro, anda, Paulo, jurem que serão amigos. + +Os moços choravam. Se não falavam, é porque a voz não lhes queria sair +da garganta. Quando pôde, saiu tremula, mas clara e forte: + +--Juro, mamãe! + +--Juro, mamãe! + +--Amigos para todo sempre? + +--Sim. + +--Não quero outras saudades. Estas sómente, a amizade verdadeira, e que +se não quebre nunca mais. + +Natividade ainda conservou as mãos delles presas, sentiu-as tremulas de +commoção, e esteve calada alguns instantes. + +--Posso morrer tranquilla. + +--Não, mamãe não morre, interromperam ambos. Parece que a mãe quiz +sorrir a esta palavra de confiança, mas a bôca não respondeu á +intenção, antes fez um tregeito que assustou os filhos. Paulo correu a +pedir soccorro. Santos entrou desorientado no quarto, a tempo de ouvir +á esposa algumas palavras suspiradas e derradeiras. A agonia começou +logo, e durou algumas horas. Contadas todas as horas de agonia que tem +havido no mundo, quantos seculos farão? Desses terão sido tenebrosos +alguns, outros melancolicos, muitos desesperados, raros enfadonhos. +Emflm, a morte chega, por muito que se demore, e arranca a pessoa ao +pranto ou ao silencio. + + + + + +ÍNDICE + + + + I -- Cousas futuras! + II -- Melhor de descer que de subir + III -- A esmola da felicidade + IV -- A missa do _coupé_ + V -- Ha contradicções explicaveis + VI -- Maternidade + VII -- Gestação + VIII -- Nem casal, nem general + IX -- Vista de palacio + X -- O juramento + XI -- Um caso unico! + XII -- Esse Ayres + XIII -- A epigraphe + XIV -- A licção do discipulo + XV -- _Teste David cum Sibylla_ + XVI -- Paternalismo + XVII -- Tudo o que restrinjo + XVIII -- De como vieram crescendo + XIX -- Apenas duas.--Quarenta annos. Terceira causa + XX -- A joia + XXI -- Um ponto escuro + XXII -- Agora um salto + XXIII -- Quando tiverem barbas + XXIV -- Robespierre e Luiz XVI + XXV -- D. Miguel + XXVI -- A luta dos retratos + XXVII -- De uma reflexão intempestiva + XXVIII -- O resto é certo + XXIX -- A pessoa mais moça + XXX -- A gente Baptista + XXXI -- Flora + XXXII -- O aposentado + XXXIII -- A solidão tambem cança + XXXIV -- Inexplicavel + XXXV -- Em volta da moça + XXXVI -- A discordia não é tão feia como se pinta + XXXVII -- Desaccordo no accordo + XXXVIII -- Chegada a proposito + XXXIX -- Um gatuno + XL -- Recuerdos + XLI -- Caso do burro + XLII -- Uma hypothese + XLIII -- O discurso + XLIV -- O salmão + XLV -- Musa, canta... + XLVI -- Entre um acto e outro + XLVII -- S. Matheus, IV, 1-10 + XLVIII -- Terpsichore + XLIX -- Taboleta velha + L -- O tinteiro de Evaristo + LI -- Aqui presente + LII -- Um segredo + LIII -- De confidencias + LIV -- Emfim, só! + LV -- «A mulher é a desolação do homem» + LVI -- O golpe + LVII -- Das encommendas + LVIII -- Matar saudades + LIX -- Noite de 14 + LX -- Manhã de 15 + LXI -- Lendo Xenophonte + LXII -- «Pare no D.» + LXIII -- Taboleta nova + LXIV -- Paz! + LXV -- Entre os filhos + LXVI -- O basto e a espadilha + LXVII -- A noite inteira + LXVIII -- De manhã + LXIX -- Ao piano + LXX -- De uma conclusão errada + LXXI -- A commissão + LXXII -- O regresso + LXXIII -- Um El-Dorado + LXXIV -- A allusão do texto + LXXV -- Proverbio errado + LXXVI -- Talvez fosse a mesma! + LXXVII -- Hospedagem + LXXVIII -- Visita ao marechal + LXXIX -- Fusão, diffusão, confusão... + LXXX -- Transfusão, emfim + LXXXI -- Ai, duas almas... + LXXXII -- Em S. Clemente + LXXXIII -- A grande noite + LXXXIV -- O velho segredo + LXXXV -- Trez constituições + LXXXVI -- Antes que me esqueça + LXXXVII -- Entre Ayres e Flora + LXXXVIII -- Não, não, não + LXXXIX -- O dragão + XC -- O ajuste + XCI -- Nem só a verdade se deve ás mães + XCII -- Segredo acordado + XCIII -- Não ata nem desata + XCIV -- Gestos oppostos + XCV -- O terceiro + XCVI -- Retraimento + XCVII -- Um Christo particular + XCVIII -- O medico Ayres + XCIX -- A titulo de ares novos... + C -- Duas cabeças + CI -- O caso embrulhado + CII -- Visão pede meia sombra + CIII -- O quarto + CIV -- A resposta + CV -- A realidade + CVI -- Ambos quaes? + CVII -- Estado de sitio + CVIII -- Velhas cerimonias + CIX -- Ao pé da cova + CX -- Que vôa + CXI -- Um resumo de esperanças + CXII -- O primeiro mez + CXIII -- Uma Beatriz para dous + CXIV -- Consultorio e banca + CXV -- Troca de opiniões + CXVI -- De regresso + CXVII -- Posse das cadeiras + CXVIII -- Cousas passadas, cousas futuras + CXIX -- Que annuncia os seguintes + CXX -- Penultimo + + + + + + + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of Esau e Jacob, by Machado de Assis + +*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK 56737 *** diff --git a/56737-8.txt b/56737-8.txt deleted file mode 100644 index 724339b..0000000 --- a/56737-8.txt +++ /dev/null @@ -1,9674 +0,0 @@ -The Project Gutenberg EBook of Esau e Jacob, by Machado de Assis - -This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and most -other parts of the world at no cost and with almost no restrictions -whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of -the Project Gutenberg License included with this eBook or online at -www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you'll have -to check the laws of the country where you are located before using this ebook. - -Title: Esau e Jacob - -Author: Machado de Assis - -Release Date: March 14, 2018 [EBook #56737] - -Language: Portuguese - -Character set encoding: ISO-8859-1 - -*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK ESAU E JACOB *** - - - - -Produced by Laura Natal Rodrigues & Marc D'Hooghe at Free Literature - - - - -ESA E JACOB - -POR - -MACHADO DE ASSIS - -(_da Academia Brasileira_) - -LIVRARIA GARNIER - -109, RUA DO OUVIDOR, 109 - -6, RUE DES SAINTS-PRES, 6 - -RIO DE JANEIRO - -PARIS - - - - -Indice - -ADVERTNCIA - - -Quando o conselheiro Ayres falleceu, acharam-se lhe na secretaria sete -cadernos manuscriptos, rijamente encapados em papelo. Cada um dos -primeiros seis tinha o seu numero de ordem, por algarismos romanos, I, -II, III, IV, V, VI, escriptos a tinta encarnada. O setimo trazia este -titulo: _Ultimo._ - -A razo desta designao especial no se comprehendeu ento nem depois. -Sim, era o ultimo dos sete cadernos, com a particularidade de ser o -mais grosso, mas no fazia parte do _Memorial_, diario de lembranas -que o conselheiro escrevia desde muitos annos e era a materia dos seis. -No trazia a mesma ordem de datas, com indicao da hora e do minuto, -como usava nelles. Era uma narrativa; e, posto figure aqui o proprio -Ayres, com o seu nome e titulo de conselho, e, por alluso, algumas -aventuras, nem assim deixava de ser a narrativa extranha materia dos -seis cadernos. _Ultimo_ porqu? - -A hypothese de que o desejo do finado fosse imprimir este caderno em -seguida aos outros, no natural, salvo se queria obrigar a leitura -dos seis, em que tratava de si, antes que lhe conhecessem esta outra -historia, escripta com um pensamento interior e unico, atravez das -paginas diversas. Nesse caso, era a vaidade do homem que falava, mas -a vaidade no fazia parte dos seus defeitos. Quando fizesse, valia a -pena satisfazel-a? Elle no representou papel eminente neste mundo; -percorreu a carreira diplomatica, e aposentou-se. Nos lazeres do -officio, escreveu o _Memorial_, que, aparado das paginas mortas ou -escuras, apenas daria (e talvez d) para matar o tempo da bara de -Petropolis. - -Tal foi a razo de se publicar smente a narrativa. Quanto ao titulo, -fram lembrados varios, em que o assumpto se pudesse resumir, _Ab ovo_, -por exemplo, apesar do latim; venceu, porm, a ideia de lhe dar estes -dous nomes que o proprio Ayres citou uma vez: - -ESA E JACOB - - - -Dico, che quando l'anima mal nata... - -DANTE. - - - -CAPITULO PRIMEIRO - - -Cousas futuras! - - -Era a primeira vez que as duas iam ao morro do Castello. Comearam de -subir pelo lado da rua do Carmo. Muita gente ha no Rio de Janeiro que -nunca l foi, muita haver morrido, muita mais nascer e morrer sem l -pr os ps. Nem todos podem dizer que conhecem uma cidade inteira. Um -velho inglez, que alis andra terras e terras, confiava-me ha muitos -annos em Londres que de Londres s conhecia bem o seu club, e era o que -lhe bastava da metropole e do mundo. - -Natividade e Perpetua conheciam outras partes, alm de Botafogo, mas -o morro do Castello, por mais que ouvissem falar delle e da cabocla -que l reinava em 1811, era-lhes to extranho e remoto como o club. O -ingreme, o desegual, o mal calado da ladeira mortificavam os ps s -duas pobres donas. No obstante, continuavam a subir, como se fosse -penitencia, devagarinho, cara no cho, veu para baixo. A manh trazia -certo movimento; mulheres, homens, creanas que desciam ou subiam, -lavadeiras e soldados, algum empregado, algum logista, algum padre, -todos olhavam espantados para ellas, que alis vestiam com grande -simplicidade; mas lia um donaire que se no perde, e no era vulgar -naquellas alturas. A mesma lentido do andar, comparada rapidez das -outras pessoas, fazia desconfiar que era a primeira vez que alli iam. -Uma creoula perguntou a um sargento: Voc quer vr que ellas vo -cabocla? E ambos pararam a distancia, tomados daquelle invencivel -desejo de conhecer a vida alheia, que muita vez toda a necessidade -humana. - -Com effeito, as duas senhoras buscavam disfaradamente o numero da casa -da cabocla, at que deram com elle. A casa era como as outras, trepada -no morro. Subia-se por uma escadinha, estreita, sombria, adequada -aventura. Quizeram entrar depressa, mas esbarraram com dous sujeitos -que vinham saindo, e coseram-se ao portal. Um delles perguntou-lhes -familiarmente se iam consultar a adivinha. - ---Perdem o seu tempo, concluiu furioso, e ho de ouvir muito -disparate... - --- mentira delle, emendou o outro rindo; a cabocla sabe muito bem onde -tem o nariz. - -Hesitaram um pouco; mas, logo depois advertiram que as palavras do -primeiro eram signal certo da videncia e da franqueza da adivinha; nem -todos teriam a mesma sorte alegre. A dos meninos de Natividade podia -ser miseravel, e ento... Em quanto cogitavam passou fra um carteiro, -que as fez subir mais depressa, para escapar a outros olhos. Tinham f, -mas tinham tambem vexame da opinio, como um devoto que se benzesse s -escondidas. - -Velho caboclo, pae da adivinha, conduziu as senhoras sala. Esta era -simples, as paredes nuas, nada que lembrasse mysterio ou incutisse -pavor, nenhum petrecho symbolico, nenhum bicho empalhado, esqueleto ou -desenho de aleijes. Quando muito um registo da Conceio collado -parede podia lembrar um mysterio, apesar de encardido e roido, mas no -mettia medo. Sobre uma cadeira, uma viola. - ---Minha filha j vem, disse o velho. As senhoras como se chamam? - -Natividade deu o nome de baptismo smente, Maria, como um veu mais -espesso que o que trazia no rosto, e recebeu um carto,--porque a -consulta era s de uma,--com o numero 1,012. No ha que pasmar do -algarismo; a freguezia era numerosa, e vinha de muitos mezes. Tambem -no ha que dizer do costume, que velho e velhissimo. Rel Eschylo, -meu amigo, rel as _Eumenides_, l vers a Pythia, chamando os que iam - consulta: Se ha aqui Hellenos, venham, approximem-se, segundo o uso, -_na ordem marcada pela sorte..._ A sorte outr'ora, a numerao agora, -tudo que a verdade se ajuste prioridade, e ninguem perca a sua vez -de audiencia. Natividade guardou o bilhete, e ambas fram janella. - -A falar verdade, temiam o seu tanto, Perpetua menos que Natividade. -A aventura parecia audaz, e algum perigo possivel. No ponho aqui os -seus gestos; imaginae que eram inquietos e desconcertados. Nenhuma -dizia nada. Natividade confessou depois que tinha um n na garganta. -Felizmente, a cabocla no se demorou muito; ao cabo de trez ou quatro -minutos, o pae a trouxe pela mo, erguendo a cortina do fundo. - ---Entra, Barbara. - -Barbara entrou, emquanto o pae pegou da viola e passou ao patamar de -pedra, porta da esquerda. Era uma creaturinha leve e breve, saia -bordada, chinelinha no p. No se lhe podia negar um corpo airoso. -Os cabellos, apanhados no alto da cabea por um pedao de fita -enxovalhada, faziam-lhe um solideu natural, cuja borla era supprida por -um raminho de arruda. J vae nisto um pouco de sacerdotiza. O mysterio -estava nos olhos. Estes eram opacos, no sempre nem tanto que no -fossem tambem lucidos e agudos, e neste ultimo estado eram egualmente -compridos; to compridos e to agudos que entravam pela gente abaixo, -revolviam o corao e tornavam c fra, promptos para nova entrada e -outro revolvimento. No te minto dizendo que as duas sentiram tal ou -qual fascinao. Barbara interrogou-as; Natividade disse ao que vinha -e entregou-lhe os retratos dos filhos e os cabellos cortados, por lhe -haverem dito que bastava. - ---Basta, confirmou Barbara. Os meninos so seu filhos? - ---So. - ---Cara de um cara de outro. - ---So gemeos; nasceram ha pouco mais de um anno. - ---As senhoras podem sentar-se. - -Natividade disse baixinho outra que a cabocla era sympathica, no -to baixo que esta no pudesse ouvir tambem; e dahi pde ser que ella, -receiosa da predico, quizesse aquillo mesmo para obter um bom destino -aos filhos. A cabocla foi sentar-se mesa redonda que estava no centro -da sala, virada para as duas. Poz os cabellos e os retratos defronte de -si. Olhou alternadamente para elles e para a me, fez algumas perguntas -a esta, e ficou a mirar os retratos e os cabellos, bca aberta, -sobrancelhas cerradas. Custa-me dizer que accendeu um cigarro, mas -digo, porque verdade, e o fumo concorda com o officio. Fra, o pae -roava os dedos na viola, murmurando uma cantiga do serto do norte: - - Menina da saia branca, - Saltadeira de riacho... - -Emquanto o fumo do cigarro ia subindo, a cara da adivinha mudava de -expresso, radiante ou sombria, ora interrogativa, ora explicativa. -Barbara inclinava-se aos retratos, apertava uma madeixa de cabellos em -cada mo, e fitava-as, e cheirava-as, e escutava-as, sem a affectao -que por ventura aches nesta linha. Taes gestos no se poderiam contar -naturalmente. Natividade no tirava os olhos della, como se quizesse -lel-a por dentro. E no foi sem grande espanto que lhe ouviu perguntar -se os meninos tinham brigado antes de nascer. - ---Brigado? - ---Brigado, sim, senhora. - ---Antes de nascer? - ---Sim, senhora, pergunto se no teriam brigado no ventre de sua me; -no se lembra? - -Natividade, que no tivera a gestao socegada, respondeu que -effectivamente sentira movimentos extraordinarios, repetidos, e dres, -e insomnias... Mas ento que era? Brigariam porqu? A cabocla no -respondeu. Ergueu-se pouco depois, e andou volta da mesa, lenta, -como somnambula, os olhos abertos e fixos; depois entrou a dividil-os -novamente entre a me e os retratos. Agitava-se agora mais, respirando -grosso. Toda ella, cara e braos, hombros e pernas, toda era pouca para -arrancar a palavra ao Destino. Emfim, parou, sentou-se exhausta, at -que se ergueu de salto e foi ter com as duas, to radiante, os olhos -to vivos e callidos, que a me ficou pendente delles, e no se poude -ter que lhe no pegasse das mos e lhe perguntasse anciosa: - ---Ento? Diga, posso ouvir tudo. - -Barbara, cheia de alma e riso, deu um respiro de gosto. A primeira -palavra parece que lhe chegou bca, mas recolheu-se ao corao, -virgem dos labios della e de alheios ouvidos. Natividade instou pela -resposta, que lhe dissesse tudo, sem falta... - ---Cousas futuras! murmurou finalmente a cabocla. - ---Mas, cousas feias? - ---Oh! no! no! Cousas bonitas, cousas futuras! - ---Mas isso no basta; diga-me o resto. Esta senhora minha irm e de -segredo, mas se preciso sair, ella sae; eu fico, diga-me a mim s... -Sero felizes? - ---Sim. - ---Sero grandes? - ---Sero grandes, oh! grandes! Deus ha de dar-lhes muitos beneficios. -Elles ho de subir, subir, subir... Brigaram no ventre de sua me, que -tem? C fra tambem se briga. Seus filhos sero gloriosos. s o que -lhe digo. Quanto qualidade da gloria, cousas futuras! - -L dentro, a voz do caboclo velho ainda uma vez continuava a cantiga do -serto: - - Trepa-me neste coqueiro. - Bota-me os cocos abaixo. - -E a filha, no tendo mais que dizer, ou no sabendo que explicar, dava -aos quadris o gesto da toada, que o velho repetia l dentro: - - Menina da saia branca, - Saltadeira de riacho, - Trepa-me neste coqueiro, - Bota-me os cocos abaixo. - Quebra coco, sinh, - L no coc, - Se te d na cabea, - Hade rach; - Muito heide me ri, - Muito heide gost, - Lel, coco, nay. - - - - -CAPITULO II - - -Melhor de descer que de subir - - -Todos os oraculos tem o falar dobrado, mas entendem-se. Natividade -acabou entendendo a cabocla, apesar de lhe no ouvir mais nada; bastou -saber que as cousas futuras seriam bonitas, e os filhos grandes e -gloriosos para ficar alegre e tirar da bolsa uma nota de cincoenta mil -reis. Era cinco vezes o preo do costume, e valia tanto ou mais que as -ricas dadivas de Crso Pythia. Arrecadou os retratos e os cabellos, -e as duas sairam, em quanto a cabocla ia para os fundos, espera de -outros. J havia alguns freguezes porta, com os numeros de ordem, e -ellas desceram rapidamente, escondendo a cara. - -Perpetua compartia as alegrias da irm, as pedras tambem, o muro do -lado do mar, as camisas penduradas s janellas, as cascas de banana -no cho. Os mesmos sapatos de um _irmo das almas_, que ia a dobrar -a esquina da rua da Misericordia para a de S. Jos, pareciam rir de -alegria, quando realmente gemiam de canasso. Natividade estava to -fra de si que, ao ouvir-lhe pedir: Para a missa das almas! tirou da -bolsa uma nota de dous mil reis, nova era folha, e deitou-a bacia. A -irm chamou-lhe a atteno para o engano, mas no era engano, era para -as almas do purgatorio. - -E seguiram lepidas para o _coup_, que as esperava no espao que fica -entre a egreja de S. Jos e a camara dos deputados. No tinham querido -que o carro as levasse at ao principio da ladeira, para que o cocheiro -e o lacaio no desconfiassem da consulta. Toda a gente falava ento da -cabocla do Castello, era o assumpto da cidade; attribuiam-lhe um poder -infinito, uma serie de milagres, sortes, achados, casamentos. Se as -descobrissem, estavam perdidas, embora muita gente boa l fosse. Ao -vel-as dando a esmola ao irmo das almas, o lacaio trepou almofada e -o cocheiro tocou os cavallos, a carruagem veiu buscal-as, e guiou para -Botafogo. - - - - -CAPITULO III - - -A esmola da felicidade - - ---Deus lhe accrescente, minha senhora devota! exclamou o irmo das -almas ao ver a nota cair em cima de dous nickeis de tosto e alguns -vintens antigos. Deus lhe d todas as felicidades do cu e da terra, -e as almas do purgatorio peam a Maria Santissima que recommende a -senhora dona a seu bemdito filho! - -Quando a sorte ri, toda a natureza ri tambem, e o corao ri como -tudo o mais. Tal foi a explicao que, por outras palavras menos -especulativas, deu o irmo das almas aos dous mil reis. A suspeita -de ser a nota falsa no chegou a tomar p no cerebro deste: foi -allucinao rapida. Comprehendeu que as damas eram felizes, e, tendo o -uso de pensar alto, disse piscando o olho, emquanto ellas entravam no -carro: - ---Aquellas duas viram passarinho verde, com certeza. - -Sem rodeios, suppoz que as duas senhoras vinham de alguma aventura -amorosa, e deduziu isto de trez factos, que sou obrigado a enfileirar -aqui para no deixar este homem sob a suspeita de calumniador gratuito. -O primeiro foi a alegria dellas, o segundo o valor da esmola, o -terceiro o carro que as esperava a um canto, como se ellas quizessem -esconder do cocheiro o ponto dos namorados. No concluas tu que elle -tivesse sido cocheiro algum dia, e andasse a conduzir moas antes de -servir s almas. Tambem no creias que fosse outr'ora rico e adultero, -aberto de mos, quando vinha de dizer adeus s suas amigas. _Ni cet -excs d'honneur, ni cette indignit._ Era um pobre diabo sem mais -officio que a devoo. Demais, no teria tido tempo; contava apenas -vinte e sete annos. - -Comprimentou as senhoras, quando o carro passou. Depois ficou a olhar -para a nota to fresca, to valiosa, nota que almas nunca viram sair -das mos delle. Foi subindo a rua de S. Jos. J no tinna animo de -pedir; a nota fazia-se ouro, e a ideia de ser falsa voltou-lhe ao -cerebro, e agora mais frequente, at que se lhe pegou por alguns -instantes. Se fosse falsa... Para a missa das almas! gemeu porta de -uma quitanda, e deram-lhe um vintem,--um vintem sujo e triste, ao p da -nota to novinha que parecia sair do prelo. Seguia-se um corredor de -sobrado. Entrou, subiu, pediu, deram-lhedous vintens,--o dobro da outra -moeda no valor e no azinhavre. - -E a nota sempre limpa, uns dous mil reis que pareciam vinte. No, no -era falsa. No corredor pegou della, mirou-a bem; era verdadeira. De -repente, ouviu abrir a cancella em cima, e uns passos rapidos. Elle, -mais rapido, amarrotou a nota e metteu-a na algibeira das calas; -ficaram s os vintens azinhavrados e tristes, o obolo da viuva. Saiu, -foi primeira officina, primeira loja, ao primeiro corredor, pedindo -longa e lastimosamente: - ---Para a missa das almas! - -Na egreja, ao tirar a opa, depois de entregar a bacia ao sacristo, -ouviu uma voz debil como de almas remotas que lhe perguntavam se os -dous mil reis... Os dous mil reis, dizia outra voz menos debil, eram -naturalmente delle, que, em primeiro logar, tambem tinha alma, e, em -segundo logar, no recebera nunca to grande esmola. Quem quer dar -tanto vae egreja ou compra uma vela, no pe assim uma nota na bacia -das esmolas pequenas. - -Se minto, no de inteno. Em verdade, as palavras no sairam assim -articuladas e claras, nem as debeis, nem as menos debeis; todas faziam -uma zoeira aos ouvidos da consciencia. Traduzi-as em lingua falada, -afim de ser entendido das pessoas que me lem; no sei como se poderia -transcrever para o papel um rumor surdo e outro menos surdo, um atraz -de outro e todos confusos para o fim, at que o segundo ficou s: no -tirou a nota a ninguem... a dona que a poz na bacia por sua mo... -tambem elle era alma... porta da sacristia que dava para a rua, ao -deixar cair o reposteiro azul escuro debruado de amarello, no ouviu -mais nada. Viu um mendigo que lhe estendia o chapeo roto e sebento; -metteu vagarosamente a mo no bolso do collete, tambem roto, e aventou -uma moedinha de cobre que deitou ao chapeo do mendigo, rapido, s -escondidas, como quer o Evangelho. Eram dous vintens; ficavam-lhe -mil novecentos e noventa e oito reis. E o mendigo, como elle saisse -depressa, mandou-lhe atraz estas palavras de agradecimento, parecidas -com as suas: - ---Deus lhe accrescente, meu senhor, e lhe d... - - - - -CAPITULO IV - - -A missa do _coup_ - - -Natividade ia pensando na cabocla do Castello, na predico da grandeza -e na noticia da briga. Tornava a lembrar-se que, de facto, a gestao -no fra socegada; mas s lhe ficava a sorte da gloria e da grandeza. A -briga l ia, se a houve; o futuro, sim, esse que era o principal ou -tudo. No deu pela praia de Santa Luzia. No largo da Lapa interrogou a -irm sobre o que pensava da adivinha. Perpetua respondeu que bem, que -acreditava, e ambas concordaram que ella parecia falar dos proprios -filhos, tal era o enthusiasmo. Perpetua ainda a reprehendeu pelos -cincoenta mil reis dados em paga; bastavam vinte. - ---No faz mal. Cousas futuras! - ---Que cousas sero? - ---No sei; futuras. - -Mergulharam,outra vez no silencio. Ao entrar no Cattete, Natividade -recordou a manh em que alli passou, naquelle mesmo _coup_, e confiou -ao marido o estado de gravidez. Voltavam de uma missa de defunto, na -egreja de S. Domingos... - -Na egreja de S. Domingos diz-se hoje uma missa por alma de Joo de -Mello, fallecido em Maric. Tal foi o annuncio que ainda agora pdes -ler em algumas folhas de 1869. No me ficou o dia, o mez foi agosto. O -annuncio est certo, foi aquillo mesmo, sem mais nada, nem o nome da -pessoa ou pessoas que mandaram dizer a missa, nem hora, nem convite. -No se disse sequer que o defunto era escrivo, officio que s perdeu -com a morte. Emfim, parece que at lhe tiraram um nome; elle era, se -estou bem informado, Joo de Mello e Barros. - -No se sabendo quem mandava dizer a missa, ninguem l foi. A egreja -escolhida deu ainda menos relevo ao acto; no era vistosa, nem buscada, -mas velhota, sem galas nem gente, mettida ao canto de um pequeno largo, -adequada missa recondita e anonyma. - -s oito horas parou um _coup_ porta; o lacaio desceu, abriu a -portinhola, desbarretou-se e perfilou-se. Saiu um senhor e deu a mo -a uma senhora, a senhora saiu e tomou o brao ao senhor, atravessaram -o pedacinho de largo e entraram na egreja. Na sacristia era tudo -espanto. A alma que a taes sitios attrahira um carro de luxo, cavallos -de raa, e duas pessoas to finas no seria como as outras almas alli -suffragadas. A missa foi ouvida sem pesames nem lagrimas. Quando -acabou, o senhor foi sacristia dar as esportulas. O sacristo, -agasalhando na algibeira a nota de dez mil reis que recebeu, achou que -ella provava a sublimidade do defunto; mas que defunto era esse? O -mesmo pensaria a caixa das almas, se pensasse, quando a luva da senhora -deixou cair dentro uma pratinha de cinco tostes. J ento havia na -egreja meia duzia de creanas maltrapilhas, e, fra, alguma gente s -portas e no largo, esperando. O senhor, chegando porta, relanceou -os olhos, ainda que vagamente, e viu que era objecto de curiosidade. -A senhora trazia os seus no cho. E os dous entraram no carro, com o -mesmo gesto, o lacaio bateu a portinhola e partiram. - -A gente local no falou de outra cousa naquelle e nos dias seguintes. -Sacristo e visinhos relembravam o _coup_, com orgulho. Era a missa do -_coup._ As outras missas vieram vindo, todas a p, algumas de sapato -roto, no raras descalas, capinhas velhas, morins estragados, missas -de chita, ao domingo, missas de tamancos. Tudo voltou ao costume, mas a -missa do _coup_ viveu na memoria por muitos mezes. Afinal no se falou -mais nella; esqueceu como um baile. - -Pois o _coup_ era este mesmo. A missa foi mandada dizer por aquelle -senhor, cujo nome Santos, e o defunto era seu parente, ainda que -pobre. Tambem elle foi pobre; tambem elle nasceu em Maric. Vindo para -o Rio de Janeiro, por occasio da _febre das aces_ (1855), dizem que -revellou grandes qualidades para ganhar dinheiro depressa. Ganhou logo -muito, e fel-o perder a outros. Casou em 1859 com esta Natividade, que -ia ento nos vinte annos e no tinha dinheiro, mas era bella e amava -apaixonadamente. A Fortuna os abenoou com a riqueza. Annos depois -tinham elles uma casa nobre, carruagem, cavallos e relaes novas e -distinctas. Dos dous parentes pobres de Natividade morreu o pae em -1866; restava-lhe uma irm. Santos tinha alguns em Maric, a quem nunca -mandou dinheiro, fosse mesquinhez, fosse habilidade. Mesquinhez no -creio; elle gastava largo e dava muitas esmolas. Habilidade seria; -tirava-lhes o gosto de vir c pedir-lhe mais. - -No lhe valeu isto com Joo de Mello, que um dia appareceu aqui, a -pedir-lhe emprego. Queria ser, como elle, director de banco. Santos -arranjou-lhe depressa um logar de escrivo do civel em Maric, e -despachou-o com os melhores conselhos deste mundo. - -Joo de Mello retirou-se com a escrevania, e dizem que uma grande -paixo tambem. Natividade era a mais bella mulher daquelle tempo. No -fim, com os seus cabellos quasi sexagenarios, fazia crr na tradico. -Joo de Mello ficou allucinado quando a viu; ella conheceu isso, e -portou-se bem. No lhe fechou o rosto, verdade, e era mais bella -assim que zangada; tambem no lhe fechou os olhos, que eram negros -e callidos. S lhe fechou o corao, um corao que devia amar como -nenhum outro, foi a concluso de Joo de Mello uma noite em que a viu -ir decotada a um baile. Teve impeto de pegar della, descer, voar, -perderem-se... - -Em vez disso, uma escrevania e Maric; era um abysmo. Caiu nelle; -trez dias depois saiu do Rio de Janeiro para no voltar. A principio -escreveu muitas cartas ao parente, com a esperana de que ella as lesse -tambem, e comprehendesse que algumas palavras eram para si. Mas Santos -no lhe deu resposta, e o tempo e a ausencia acabaram por fazer de Joo -de Mello um excellente escrivo. Morreu de uma pneumonia. - -Que o motivo da pratinha de Natividade deitada caixa das almas fosse -pagar a adorao do defunto no digo que sim, nem que no; faltam-me -pormenores. Mas pde ser que sim, porque esta senhora era no menos -grata que honesta. Quanto s larguezas do marido, no esqueas que o -parente era defunto, e o defunto um parente menos. - - - - -CAPITULO V - - -Ha contradices explicaveis - - -No me peas a causa de tanto encolhimento no annuncio e na missa, -e tanta publicidade na carruagem, lacaio e libr. Ha contradices -explicaveis. Um bom autor, que inventasse a sua historia, ou prezasse -a logica apparente dos acontecimentos, levaria o casal Santos a p ou -em calea de praa ou de aluguel; mas eu, amigo, eu sei como as cousas -se passaram, e refiro-as taes quaes. Quando muito, explico-as, com a -condio de que tal costume no pegue. Explicaes comem tempo e papel, -demoram a aco e acabam por enfadar. O melhor ler com atteno. - -Quanto contradico de que se trata aqui, de ver que naquelle -recanto de um larguinho modesto, nenhum conhecido daria com elles, -ao passo que elles gozariam o assombro local; tal foi a reflexo de -Santos, se se pde dar semelhante nome a um movimento interior que -leva a gente a fazer antes uma cousa que outra. Resta a missa; a missa -em si mesma bastava que fosse sabida no cu e em Maric. Propriamente -vestiram-se para o cu. O luxo do casal temperava a pobreza da orao; -era uma especie de homenagem ao finado. Se a alma de Joo de Mello os -visse de cima, alegrar-se-hia do apuro em que elles fram rezar por um -pobre escrivo. No sou eu que o digo; Santos que o pensou. - - - - -CAPITULO VI - - -Maternidade - - -A principio, vieram calados. Quando muito, Natividade queixou-se da -egreja, que lhe sujra o vestido. - ---Venho cheia de pulgas, continuou ella: porque no fmos a S. -Francisco de Paula ou Gloria, que esto mais perto, e so limpas? - -Santos trocou as mos conversa, e falou das ruas mal caladas, que -faziam dar solavancos ao carro. Com certeza, quebravam-lhe as molas. - -Natividade no replicou, mergulhou no silencio, como naquelle outro -capitulo, vinte mezes depois, quando tornava do Castello com a irm. -Os olhos no tinham a nota de deslumbramento que trariam ento; iam -parados e sombrios, como de manh e na vespera. Santos, que j reparra -nisso, perguntou-lhe o que que tinha; ella no sei se lhe respondeu -de palavra; se alguma disse, foi to breve e surda que inteiramente se -perdeu. Talvez no passasse de um simples gesto de olhos, um suspiro, -ou cousa assim. Fosse o que fosse, quando o _coup_ chegou ao meio do -Cattete, os dous levavam as mos presas, e a expresso do rosto era de -abenoados. No davam sequer pela gente das ruas; no davam talvez por -si mesmos. - -Leitor, no muito que percebas a causa daquella expresso e desses -dedos abotoados. J l ficou dita atraz, quando era melhor deixar que -a adivinhasses; mas provavelmente no a adivinharias, no que tenhas -o entendimento curto ou escuro, mas porque o homem varia do homem, -e tu talvez ficasses com egual expresso, simplesmente por saber -que ias danar sabbado. Santos no danava; preferia o voltarete, -como distraco. A causa era virtuosa, como sabes; Natividade estava -gravida, acabava de o dizer ao marido. - -Aos trinta annos no era cedo nem tarde; era imprevisto. Santos sentiu -mais que ella o prazer da vida nova. Eis ahi vinha a realidade do sonho -de dez annos, uma creatura tirada da coxa de Abraho, como diziam -aquelles bons judeus, que a gente queimou mais tarde, e agora empresta -generosamente o seu dinheiro s companhias e s naes. Levam juro por -elle; mas os hebraismos so dados de graa. Aquelle desses. Santos, -que s conhecia a parte do emprestimo, sentia inconscientemente a do -hebraismo, e deleitava-se com elle. A emoo atava-lhe a lingua; os -olhos que estendia esposa e a cobriam eram de patriarcha; o sorriso -parecia chover luz sobre a pessoa amada, abenoada e formosa entre as -formosas. - -Natividade no foi logo, logo, assim; a pouco e pouco que veiu -sendo vencida e tinha j a expresso da esperana e da maternidade. -Nos primeiros dias, os symptomas desconcertaram a nossa amiga. duro -dizel-o, mas verdade. L se iam bailes e festas, l ia a liberdade e -a folga. Natividade andava j na alta roda do tempo; acabou de entrar -por ella, com tal arte que parecia haver alli nascido. Carteava-se -com grandes damas, era familiar de muitas, tuteava algumas. Nem tinha -s esta casa de Botafogo, mas tambem outra em Petropolis; nem s -carro, mas tambem camarote no Theatro-Lyrico, no contando os bailes -do Cassino Fluminense, os das amigas e os seus; todo o repertorio, em -summa, da vida elegante. Era nomeada nas gazetas, pertencia quella -duzia de nomes planetarios que figuram no meio da plebe de estrellas. O -marido era capitalista e director de um banco. - -No meio disso, a que vinha agora uma creana deformal-a por mezes, -obrigal-a a recolher-se, pedir-lhe as noites, adoecer dos dentes e o -resto? Tal foi a primeira sensao da me, e o primeiro impeto foi -esmagar o germen. Criou raiva ao marido. A segunda sensao foi melhor. -A maternidade, chegando ao meio dia, era como uma aurora nova e fresca. -Natividade viu a figura do filho ou filha brincando na relva da chacara -ou no regao da aia, com trez annos de edade, e este quadro daria aos -trinta e quatro annos que teria ento um aspecto de vinte e poucos... - -Foi o que a reconciliou com o marido. No exagero; tambem no quero mal -a esta senhora. Algumas teriam medo, a maior parte amor. A concluso -que, por uma ou por outra porta, amor ou vaidade, o que o embryo quer - entrar na vida. Cesar ou Joo Fernandes, tudo viver, assegurar a -dynastia e sair do mundo o mais tarde que puder. - -O casal ia calado. Ao desembocar na praia de Botafogo, a enseada trouxe -o gosto de costume. A casa descobria-se a distancia, magnifica; Santos -deleitou-se de a ver, mirou-se nella, cresceu com ella, subiu por ella. -A estatueta de Narciso no meio do jardim, sorriu entrada delles, -a areia fez-se relva, duas andorinhas cruzaram por cima do repuxo, -figurando no ar a alegria de ambos. A mesma ceremonia descida. Santos -ainda parou alguns instantes para ver o _coup_ dar a volta, sair e -tornar cocheira; depois seguiu a mulher que entrava no saguo. - - - - -CAPITULO VII - - -Gestao - - -Em cima, esperava por elles Perpetua, aquella irm de Natividade, que a -acompanhou ao Castello, e l ficou no carro, onde as deixei para narrar -os antecedentes dos meninos. - ---Ento? Houve muita gente? - ---No, ninguem; pulgas. - -Perpetua tambem no entendera a escolha da egreja. Quanto -concurrencia, sempre lhe pareceu que seria pouca ou nenhuma; mas o -cunhado vinha entrando, e ella calou o resto. Era pessoa circumspecta, -que no se perdia por um dito ou gesto descuidado. Entretanto, foi-lhe -impossivel calar o espanto, quando viu o cunhado entrar e dar mulher -um abrao longo e terno, abrochado por um beijo. - ---Que isso? exclamou espantada. - -Sem reparar no vexame da mulher, Santos deu um abrao cunhada, e ia a -dar-lhe um beijo tambem, se ella no recuasse a tempo e com fora. - ---Mas que isso? Voc tirou a sorte grande de Hespanha? - ---No, cousa melhor, gente nova. - -Santos conservra alguns gestos e modos de dizer dos primeiros annos, -taes que o leitor no chamar propriamente familiares; tambem no -preciso chamar-lhes nada. Perpetua, affeita a elles, acabou sorrindo e -dando-lhe parabens. J ento Natividade os deixra para se ir despir. -Santos, meio arrependido da expanso, fez-se serio e conversou da missa -e da egreja. Concordou que esta era decrepita e mettida a um canto, -mas allegou razes espirituaes. Que a orao era sempre orao, onde -quer que a alma falasse a Deus. Que a missa, a rigor, no precisava -estrictamente de altar; o rito e o padre bastavam ao sacrificio. Talvez -essas razes no fossem propriamente delle, mas ouvidas a alguem, -decoradas sem esforo e repetidas com convico. A cunhada opinou -de cabea que sim. Depois falaram do parente morto e concordaram -piamente que era um asno;--no disseram este nome, mas a totalidade das -apreciaes vinha a dar nelle, accrescentado de honesto e honestissimo. - ---Era uma perola, concluiu Santos. - -Foi a ultima palavra da necrologia; paz aos mortos. Dalli em deante, -vingou a soberania da creana que alvorecia. No alteraram os habitos, -nos primeiros tempos, e as visitas e os bailes continuaram como -d'antes, at que pouco a pouco, Natividade se fechou totalmente em -casa. As amigas iam vel-a. Os amigos iam visital-os ou jogar cartas com -o marido. - -Natividade queria um filho, Santos uma filha, e cada um pleiteava a sua -escolha com to boas razes, que acabavam trocando de parecer. Ento -ella ficava com a filha, e vestia-lhe as melhores rendas e cambraias, -emquanto elle enfiava uma beca no joven advogado, dava-lhe um logar -no parlamento, outro no ministerio. tambem lhe ensinava a enriquecer -depressa; e ajudal-o-hia comeando por uma caderneta na Caixa -Economica, desde o dia em que nascesse at os vinte e um annos. Alguma -vez, s noites, se estavam ss, Santos pegava de um lapis e desenhava a -figura do filho, com bigodes,--ou ento riscava uma menina vaporosa. - ---Deixa, Agostinho, disse-lhe a mulher uma noite; voc sempre ha de ser -creana. - -E pouco depois, deu por si a desenhar de palavra a figura do filho -ou filha, e ambos escolhiam a cr dos olhos, os cabellos, a tez, a -estatura. Vs que tambem ella era creana. A maternidade tem dessas -incoherencias, a felicidade tambem, e porfim a esperana, que a -meninice do mundo. - -A perfeio seria nascer um casal. Assim os desejos do pae e da me -ficariam satisfeitos. Santos pensou em fazer sobre isso uma consulta -spirita. Comeava a ser iniciado nessa religio, e tinha a f novia e -firme. Mas a mulher oppoz-se; a consultar alguem, antes a cabocla do -Castello, a adivinha celebre do tempo, que descobria as cousas perdidas -e predizia as futuras. Entretanto, recusava tambem, por desnecessario. -A que vinha consultar sobre uma duvida, que dalli a mezes estaria -esclarecida? Santos achou, em relao cabocla, que seria imitar as -crendices da gente rles; mas a cunhada acudiu que no, e citou um -caso recente de pessoa distincta, um juiz municipal, cuja nomeao foi -annunciada pela cabocla. - ---Talvez o ministro da justia goste da cabocla, explicou Santos. - -As duas riram da graa, e assim se fechou uma vez o capitulo da -adivinha, pura se abrir muis tarde. Por agora deixar que o feto se -desenvolva, a creana se agite e se atire, como impaciente de nascer. -Em verdade, a me padeceu muito durante a gestao, e principalmente -nas ultimas semanas. Cuidava trazer um general que iniciava a campanha -da vida, a no ser um casal que aprendia a desamar de vespera. - - - - -CAPITULO VIII - - -Nem casal, nem general - - -Nem casal, nem general. No dia sete de abril de 1870 veiu luz um par -de vares to eguaes, que antes pareciam a sombra um do outro, se no -era simplesmente a impresso do olho, que via dobrado. - -Tudo esperavam, menos os dous gemeos, e nem por ser o espanto grande, -foi menor o amor. Entende-se isto sem ser preciso insistir, assim -como se entende que a me dsse aos dous filhos aquelle po inteiro -e dividido do poeta; eu accrescento que o pae fazia a mesma cousa. -Viveu os primeiros tempos a contemplar os meninos, a comparal-os, a -medil-os, a pesal-os. Tinham o mesmo peso e cresciam por egual medida. -A mudana ia-se fazendo por um s teor. O rosto comprido, cabellos -castanhos, dedos finos e taes que, cruzados os da mo direita de um com -os da esquerda de outro, no se podia saber que eram de duas pessoas. -Viriam a ter genio differente, mas por ora eram os mesmos extranhes. -Comearam a sorrir no mesmo dia. O mesmo dia os viu baptizar. - -Antes do parto, tinham combinado em dar o nome do pae ou da me, -segundo fosse o sexo da creana. Sendo um par de rapazes, e no havendo -a frma masculina do nome materno, no quiz o pae que figurasse s -o delle, e metteram-se a catar outros. A me propunha francezes ou -inglezes, conforme os romances que lia. Algumas novellas russas em moda -suggeriram nomes slavos. O pae acceitava uns e outros, mas consultava -a terceiros, e no acertava com opinio definitiva. Geralmente, os -consultados trariam outro nome, que no era acceito em casa. Tambem -veiu a antiga onomastica luzitana, mas sem melhor fortuna. Um dia, -estando Perpetua missa, rezou o _Credo_, advertiu nas palavras: -....os santos apostolos S. Pedro e S. Paulo, e mal pde acabar a -orao. Tinha descoberto os nomes; eram simples e gemeos. Os paes -concordaram com ella e a pendencia acabou. - -A alegria de Perpetua foi quasi tamanha como a do pae e da me, se -no maior. Maior no foi, nem to profunda, mas foi grande, ainda que -rapida. O achado dos nomes valia quasi que pela feitura das creanas. -Viuva, sem filhos, no se julgava incapaz de os ter, e era alguma -cousa nomeal-os. Contava mais cinco ou seis annos que a irm. Casara -com um tenente de artilharia que morreu capito na guerra do Paraguay. -Era mais baixa que alta, e era gorda, ao contrario de Natividade que, -sem ser magra, no tinha as mesmas carnes, e era alta e recta. Ambas -vendiam sade. - ---Pedro e Paulo, disse Perpetua irm e ao cunhado, quando rezei estes -dous nomes senti uma cousa no corao... - ---Voc ser madrinha de um, disse a irm. - -Os pequenos, que se distinguiam por uma fita de cr, passaram a receber -medalhas de ouro, uma com a imagem de S. Pedro, outra com a de S. -Paulo. A confuso no cedeu logo, mas tarde, lento e pouco, ficando tal -semelhana que os advertidos se enganavam muita vez ou sempre. A me - que no precisou de grandes signaes externos para saber quem eram -aquelles dous pedaos de si mesma. As amas, apesar de os distinguirem -entre si, no deixavam de querer mal uma outra, pelo motivo da -semelhana dos seus filhos de criao. Cada uma affirmava que o seu -era mais bonito. Natividade concordava com ambas. - -Pedro seria medico, Paulo advogado; tal foi a primeira escolha das -profisses. Mas logo depois trocaram de carreira. Tambem pensaram em -dar um delles engenharia. A marinha sorria me, pela distinco -particular da escola. Tinha s o inconveniente da primeira viagem -remota; mas Natividade pensou em metter empenhos com o ministro. Santos -falava em fazer um delles banqueiro, ou ambos. Assim passavam as horas -vadias. Intimos da casa entravam nos calculos. Houve quem os fizesse -ministros, dezembargadores, bispos, cardeaes... - ---No peo tanto, dizia o pae. - -Natividade no dizia nada ao p de extranhos, apenas sorria, como se -tratasse de folguedo de So Joo, um lanar de dados e ler no livro de -sortes a quadra correspondente ao numero. No importa; l dentro de si -cobiava algum brilhante destino aos filhos. Cria deveras, esperava, -rezava s noites, pedia ao cu que os fizesse grandes homens. - -Uma das amas, parece que a de Pedro, sabendo daquellas ancias e -conversas, perguntou a Natividade por que que no ia consultar a -cabocla do Castello. Affirmou que ella adivinhava tudo, o que era e o -que viria a ser; conhecia o numero da sorte grande, no dizia qual era -nem comprava bilhete para no roubar os escolhidos de Nosso Senhor. -Parece que era mandada de Deus. - -A outra ama confirmou as noticias e accrescentou novas. Conhecia -pessoas que tinham perdido e achado joias e escravos. A policia mesma, -quando no acabava de apanhar um criminoso, ia ao Castello falar -cabocla e descia sabendo; por isso que no a botava para fra, como -os invejosos andavam a pedir. Muita gente no embarcava sem subir -primeiro ao morro. A cabocla explicava sonhos e pensamentos, curava de -quebranto... - -Ao jantar, Natividade repetiu ao marido a lembrana das amas. Santos -encolheu os hombros. Depois examinou rindo a sabedoria da cabocla; -principalmente a sorte grande era incrivel que, conhecendo o numero, -no comprasse bilhete. Natividade achou que era o mais difficil -de explicar, mas podia ser inveno do povo. _On ne prte qu'aux -riches_, accrescentou rindo. O marido, que estivera na vespera com um -dezembargador, repetiu as palavras delle que emquanto a policia no -puzesse cbro ao escandalo... O dezembargador no concluira. Santos -concluiu com um gesto vago. - ---Mas voc spirita, ponderou a mulher. - ---Perdo, no confundamos, replicou elle com gravidade. - -Sim, podia consentir n'uma consulta spirita; j pensara nella. Algum -espirito podia dizer-lhe a verdade em vez de uma adivinha de fara... -Natividade defendeu a cabocla. Pessoas da sociedade falavam della a -serio. No queria confessar ainda que tinha f, mas tinha. Recusando -ir outr'ora, foi naturalmente a insufficiencia do motivo que lhe deu -a fora negativa. Que importava saber o sexo do filho? Conhecer o -destino dos dous era mais imperioso e util. Velhas ideias que lhe -incutiram em creana vinham agora emergindo do cerebro e descendo ao -corao. Imaginava ir com os pequenos ao morro do Castello, a titulo -de passeio... Para que? Para confirmal-a na esperana de que seriam -grandes homens. No lhe passara pela cabea a predico contraria. -Talvez a leitora, no mesmo caso, ficasse aguardando o destino; mas a -leitora, alm de no crr (nem todos crem) pde ser que no conte mais -de vinte a vinte e dous annos de edade, e ter a paciencia de esperar. -Natividade, de si para si, confessava os trinta e um, e temia no ver a -grandeza dos filhos. Podia ser que a visse, pois tambem se morre velha, -e alguma vez de velhice, mas acaso teria o mesmo gosto? - -Ao sero, a materia da palestra foi a cabocla do Castello, por -iniciativa de Santos, que repetia as opinies da vespera e do jantar. -Das visitas algumas contavam o que ouviam della. Natividade no dormiu -aquella noite sem obter do marido que a deixasse ir com a irm -cabocla. No se perdia nada; bastava levar os retratos dos meninos e um -pouco dos cabellos. As amas no saberiam nada da aventura. - -No dia aprazado metteram-se as duas no carro, entre sete e oito horas -com pretexto de passeio, e l se fram para a rua da Misericordia. -Sabes j que alli se apearam, entre a egreja de S. Jos e a Camara dos -deputados, e subiram aquella at rua do Carmo, onde esta pega com -a ladeira do Castello. Indo a subir, hesitaram, mas a me era me, e -j agora faltava pouco para ouvir o destino. Viste que subiram, que -desceram, deram os dous mil reis s almas, entraram no carro e voltaram -para Botafogo. - - - - -CAPITULO IX - - -Vista de palacio - - -No Cattete, o _coup_ e uma victoria cruzaram-se e pararam a um tempo. -Um homem saltou da victoria e caminhou para o _coup._ Era o marido de -Natividade, que ia agora para o escriptorio, um pouco mais tarde que de -costume, por haver esperado a volta da mulher. Ia pensando nella e nos -negocios da praa, nos meninos e na lei Rio Branco, ento discutida na -Camara dos deputados; o banco era credor da lavoura. Tambem pensava na -cabocla do Castello e no que teria dito mulher... - -Ao passar pelo palacio Nova-Friburgo, levantou os olhos para elle com -o desejo do costume, uma cobia de possuil-o, sem prever os altos -destinos que o palacio viria a ter na Republica; mas quem ento previa -nada? Quem prev cousa nenhuma? Para Santos a questo era s possuil-o, -dar alli grandes festas unicas, celebradas nas gazetas, narradas na -cidade entre amigos e inimigos, cheios de admirao, de rancor ou de -inveja. No pensava nas saudades que as matronas futura contariam s -suas netas, menos ainda nos livros de chronicas, escriptos e impressos -neste outro seculo. Santos no tinha a imaginao da posteridade. Via o -presente e suas maravilhas. - -J lhe no bastava o que era. A casa de Botafogo, posto que bella, -no era um palacio, e depois, no estava to exposta como aqui no -Cattete, passagem obrigada de toda a gente, que olharia para as grandes -janellas, as grandes portas, as grandes aguias no alto, de azas -abertas. Quem viesse pelo lado do mar, veria as costas do palacio, os -jardins e os lagos... Oh! goso infinito! Santos imaginava os bronzes, -marmores, luzes, flores, danas, carruagens, musicas, ceias... Tudo -isso foi pensado depressa, porque a victoria, embora no corresse (os -cavallos tinham ordem de moderar a andadura), todavia, no atrazava as -rodas para que os sonhos de Santos acabassem. Assim foi que, antes de -chegar praa da Gloria, a victoria avistou o _coup_ da familia, e as -duas carragens pararam, a curta distancia uma da outra, como ficou dito. - - - - -CAPITULO X - - -O juramento - - -Tambem ficou dito que o marido saiu da victoria e caminhou para o -_coup_, onde a mulher e a cunhada, adivinhando que elle vinha ter com -ellas, sorriam de ante-mo. - ---No lhe digas nada, aconselhou Perpetua. - -A cabea de Santos appareceu logo, com as suissas curtas, o cabello -rente, o bigode rapado. Era homem sympathico. Quieto, no ficava mal. A -agitao com que chegou, parou e falou tirou-lhe a gravidade com que ia -no carro, as mos postas sobre o casto de ouro da bengala, e a bengala -entre os joelhos. - ---Ento? ento? perguntou. - ---Logo digo. - ---Mas que foi? - ---Logo. - ---Bem ou mal? Dize s se bem. - ---Bem. Cousas futuras. - --- pessoa sria? - ---Sria, sim; at logo, repetiu Natividade estendendo-lhe os dedos. - -Mas o marido no podia despegar-se do _coup_; queria saber alli mesmo -tudo, as perguntas e as respostas, a gente que l estava espera, e se -era o mesmo destino para os dous, ou se cada um tinha o seu. Nada disso -foi escripto como aqui vae, devagar, para que a ruim letra do autor -no faa mal sua prosa. No, senhor; as palavras de Santos sairam de -atropello, umas sobre outras, embrulhadas, sem principio ou sem fim. -A bella esposa tinha j as orelhas to affeitas ao falar do marido, -mrmente em lances de emoo ou curiosidade, que entendia tudo, e ia -dizendo que no. A cabea e o dedo sublinhavam a negativa. Santos no -teve remedio e despediu-se. - -Em caminho, advertiu que, no crendo na cabocla, era ocioso instar pela -predico. Era mais; era dar razo mulher. Prometteu no indagar nada -quando voltasse. No prometteu esquecer, e dahi a teima com que pensou -muitas vezes no oraculo. De resto, ellas lhe diriam tudo sem que elle -perguntasse nada, e esta certeza trouxe a paz do dia. - -No concluas daqui que os freguezes do banco padecessem alguma -desatteno aos seus negocios. Tudo correu bem, como se elle no -tivesse mulher nem filhos ou no houvesse Castello nem cabocla. No -era s a mo que fazia o seu officio, assignando; a bca ia falando, -mandando, chamando e rindo, se era preciso. No obstante, a ancia -existia e as figuras passavam e repassavam deante delle; no intervallo -de duas letras, Santos resolvia uma cousa ou outra, se no eram ambas -a um tempo. Entrando no carro, tarde, agarrou-se inteiramente ao -oraculo. Trazia as mos sobre o casto, a bengala entre os joelhos, -como de manh, mas vinha pensando os destino dos filhos. - -Quando chegou a casa, viu Natividade a contemplar os meninos, ambos -nos beros, as amas ao p, um pouco admiradas da insistencia com que -ella os procurava desde manh. No era s fital-os, ou perder os olhos -no espao e no tempo; era beijal-os tambem e apertal-os ao corao. -Esqueceu-me dizer que, de manh, Perpetua mudou primeiro de roupa que a -irm e foi achal-a deante dos beros, vestida como viera do Castello. - ---Logo vi que voc estava com os grandes homens, disse ella. - ---Estou, mas no sei em que que elles sero grandes. - ---Seja em que fr, vamos almoar. - -Ao almoo e durante o dia, falaram muita vez da cabocla e da predico. -Agora, ao ver entrar o marido, Natividade leu-lhe a dissimulao nos -olhos. Quiz calar e esperar, mas estava to anciosa de lhe dizer tudo, -e era to boa, que resolveu o contrario. Unicamente no teve o tempo -de cumpril-o; antes mesmo de comear, j elle acabava de perguntar o -que era. Natividade referiu a subida, a consulta, a resposta e o resto; -descreveu a cabocla e o pae. - ---Mas ento grandes destinos? - ---Cousas futuras, repetiu ella. - ---Seguramente futuras. S a pergunta da briga que no entendo. Brigar -porqu? E brigar como? E teriam deveras brigado? - -Natividade recordou os seus padecimentos do tempo da gestao, -confessando que no falou mais delles para o no affligir; naturalmente - o que a outra adivinhou que fosse briga. - ---Mas briga porqu? - ---Isso no sei, nem creio que fosse nada mau. - ---Vou consultar... - ---Consultar a quem? - ---Uma pessoa. - ---J sei, o seu amigo Placido. - ---Se fosse s amigo no consultava, mas elle o meu chefe e mestre, -tem uma vista clara e comprida, dada pelo cu... Consulto s por -hypothese, no digo os nossos nomes... - ---No! no! no! - ---S por hypothese. - ---No, Agostinho, no fale disto. No interrogue ninguem a meu -respeito, ouviu? Ande, prometta que no falar disto a ninguem, -spiritas nem amigos. O melhor calar. Basta saber que tero sorte -feliz. Grandes homens, cousas futuras... Jure, Agostinho. - ---Mas voc no foi em pessoa cabocla? - ---No me conhece, nem de nome; viu-me uma vez, no me tornar a ver. -Ande, jure! - ---Voc exquisita. V l, prometto. Que tem que falasse, assim, por -acaso? - ---No quero. Jure! - ---Pois isto cousa de juramento? - ---Sem isso, no confio, disse ella sorrindo. - ---Juro. - ---Jure por Deus Nosso Senhor! - ---Juro por Deus Nosso Senhor. - - - - -CAPITULO XI - - -Um caso unico! - - -Santos cria na santidade do juramento; por isso, resistiu, mas emfim -cedeu e jurou. Entretanto, o pensamento no lhe saiu mais da briga -uterina dos filhos. Quiz esquecel-a. Jogou essa noite, como de -costume; na seguinte, foi ao theatro; na outra a uma visita; e tornou -ao voltarete do costume, e a briga sempre com elle. Era um mysterio. -Talvez fosse um caso unico... Unico! Um caso unico! A singularidade -do caso fel-o aggarrar-se mais ideia, ou a ideia a elle; no posso -explicar melhor este phenomeno intimo, passado l onde no entra olho -de homem, nem bastam reflexes ou conjecturas. Nem por isso durou muito -tempo. No primeiro domingo, Santos pegou em si, e foi casa do doutor -Placido, rua do Senador Vergueiro, uma casa baixa, de trez janellas, -com muito terreno para o lado do mar. Creio que j no existe: datava -do tempo em que a rua era o Caminho Velho, para differenar do Caminho -Novo. - -Perdoa estas minucias. A aco podia ir sem ellas, mas eu quero que -saibas que casa era, e que rua, e mais digo que alli havia uma especie -de club, templo ou o que quer que era spirita. Placido fazia de -sacerdote e presidente a um tempo. Era um velho de grandes barbas, olho -azul e brilhante, enfiado em larga camisola de seda. Pe-lhe uma vara -na mo, e fica um magico, mas, em verdade, as barbas e a camisola no -as trazia por lhe darem tal aspecto. Ao contrario de Santos, que teria -trocado dez vezes a cara, se no fra a opposio da mulher, Placido -usava as barbas inteiras desde moo e a camisola ha dez annos. - ---Venha, venha, disse elle, ande ajudar-me a converter o nosso amigo -Ayres; ha meia hora que procuro incutir-lhe as verdades eternas, mas -elle resiste. - ---No, no, no resisto, acudiu um homem de cerca de quarenta annos, -estendendo a mo ao recem-chegado. - - - - -CAPITULO XII - - -Esse Ayres - - -Esse Ayres que ahi apparece conserva ainda agora algumas das virtudes -d'aquelle tempo, e quasi nenhum vicio. No attribuas tal estado a -qualquer proposito. Nem creias que vae nisto um pouco de homenagem -modestia da pessoa. No, senhor, verdade pura e natural effeito. -Apesar dos quarenta annos, ou quarenta e dous, e talvez por isso mesmo, -era um bello typo de homem. Diplomata de carreira, chegra dias antes -do Pacifico, com uma licena de seis mezes. - -No me demoro em descrevel-o. Imagina s que trazia o callo do officio, -o sorriso approvador, a fala branda e cautelosa, o ar da occasio, a -expresso adequada, tudo to bem distribuido que era um gosto ouvil-o -e vel-o. Talvez a pelle da cara rapada estivesse prestes a mostrar os -primeiros signaes do tempo. Ainda assim o bigode, que era moo na cr e -no apuro com que acabava em ponta fina e rija, daria um ar de frescura -ao rosto, quando o meio seculo chegasse. O mesmo faria o cabello, -vagamente grisalho, apartado ao centro. No alto da cabea havia um -inicio de calva. Na botoeira uma flor eterna. - -Tempo houve,--foi por occasio da anterior licena, sendo elle apenas -secretario de legao,--tempo houve em que tambem elle gostou de -Nativividade. No foi propriamente paixo; no era homem disso. Gostou -della, como de outras joias e raridades, mas to depressa viu que -no era acceito, trocou de conversao. No era frouxido ou frieza. -Gostava assaz de mulheres e ainda mais se eram bonitas. A questo para -elle que nem as queria fora, nem curava de as persuadir. No era -general para escala vista, nem para assedios demorados; contentava-se -de simples passeios militares,--longos ou breves, conforme o tempo -fosse claro ou turvo. Em summa, extremamente cordato. - -Coincidencia interessante; foi por esse tempo que Santos pensou em -casal-o com a cunhada, recentemente viuva. Esta parece que queria. -Natividade oppoz se, nunca se soube porqu. No eram ciumes; invejas -no creio que fossem. O simples desejo de o no ver entrar na familia -pela porta lateral apenas uma figura, que vale qualquer das primeiras -hypotheses negadas. O desgosto de cedel-o a outra, ou tel-os felizes ao -p de si, no podia ser, posto que o corao seja o abysmo dos abysmos. -Supponhamos que era com o fim de o punir por havel-a amado. - -Pde ser; em todo caso, o maior obstaculo viria delle mesmo. Posto que -viuvo, Ayres no foi propriamente casado. No amava o casamento. Casou -por necessidade do officio; cuidou que era melhor ser diplomata casado -que solteiro, e pediu a primeira moa que lhe pareceu adequada ao seu -destino. Enganou-se: a differena de temperamento e de espirito era tal -que elle, ainda vivendo com a mulher, era como se vivesse s. No se -affligiu com a perda; tinha o feitio do solteiro. - -Era cordato, repito, embora esta palavra no exprima exactamente o -que quero dizer. Tinha o corao disposto a acceitar tudo, no por -inclinao harmonia, seno por tedio controversia. Para conhecer -esta averso, bastava tel-o visto entrar, antes, em visita ao casal -Santos. Pessoas de fra e da familia conversavam da cabocla do Castello. - ---Chega a proposito, conselheiro, disse Perpetua. Que pensa o senhor da -cabocla do Castello? - -Ayres no pensava nada, mas percebeu que os outros pensavam alguma -cousa, e fez um gesto de dous sexos. Como insistissem, no escolheu -nenhuma das duas opinies, achou outra, media, que contentou a -ambos os lados, cousa rara em opinies medias. Sabes que o destino -dellas serem desdenhadas. Mas este Ayres,--Jos da Costa Marcondes -Ayres,--tinha que nas controversias uma opinio dubia ou media pde -trazer a opportunidade de uma pilula, e compunha as suas de tal geito, -que o enfermo, se no sarava, no morria, e o mais que fazem pilulas. -No lhe queiras mal por isso; a droga amarga engole-se com assucar. -Ayres opinou com pausa, delicadeza, circumloquios, limpando o monoculo -ao leno de seda, pingando as palavras graves e obscuras, fitando os -olhos no ar, como quem busca uma lembrana, e achava a lembrana, e -arredondava com ella o parecer. Um dos ouvintes acceitou-o logo, outro -divergiu um pouco e acabou de accordo, assim terceiro, e quarto, e a -sala toda. - -No cuides que no era sincero, era-o. Quando no acertava de ter a -mesma opinio, e valia a pena escrever a sua, escrevia-a. Usava tambem -guardar por escripto as descobertas, observaes, reflexes, criticas e -anecdotas, tendo para isso uma serie de cadernos, a que dava o nome de -_Memorial._ Naquella noite escreveu estas linhas: - -Noite em casa da familia Santos, sem voltarete. Falou-se na cabocla do -Castello. Desconfio que Natividade ou a irm quer consultal-a; no ser -de certo a meu respeito. - -Natividade e um padre Guedes que l estava, gordo e maduro, eram as -unicas pessoas interessantes da noite. O resto insipido, mas insipido -por necessidade, no podendo ser outra cousa mais que insipido. Quando -o padre e Natividade me deixavam entregue a insipidez dos outros, -eu tentava fugir-lhe pela memoria, recordando sensaes, revivendo -quadros, viagens, pessoas. Foi assim que pensei na Capponi, a quem vi -hoje pelas costas, na rua da Quitanda. Conheci-a aqui no finado Hotel -de D. Pedro, l vo annos. Era danarina; eu mesmo j a tinha visto -danar em Veneza. Pobre Capponi! Andando, o p esquerdo saia-lhe do -sapato e mostrava no calcanhar da meia um buraquinho de saudade. - -Afinal tornei eterna insipidez dos outros. No acabo de crr como -que esta senhora, alis to fina, pde organisar noites como a de hoje. -No que os outros no buscassem ser interessantes, e, se intenes -valessem, nenhum livro os valeria; mas no o eram, por mais que -tentassem. Emfim, l vo; esperemos outras noites que tragam melhores -sujeitos sem esforo algum. O que o bero d s a cova o tira, diz um -velho adagio nosso. Eu posso, truncando um verso ao meu Dante, escrever -de taes insipidos: - - Dico, che quando l'anima mal nata... - - - - -CAPITULO XIII - - -A epigraphe - - -Ora, alli est justamente a epigraphe do livro, se eu lhe quizesse pr -alguma, e no me occorresse outra. No smente um meio de completar -as pessoas da narrao com as ideias que deixarem, mas ainda um par de -lunetas para que o leitor do livro penetre o que fr menos claro ou -totalmente escuro. - -Por outro lado, ha proveito em irem as pessoas da minha historia -collaborando nella, ajudando o autor, por uma lei de solidariedade, -especie de troca de servios, entre o enxadrista e os seus trebelhos. - -Se acceitas a comparao, distinguirs o rei e a dama, o bispo e o -cavallo, sem que o cavallo possa fazer de torre, nem a torre de pio. -Ha ainda a differena da cr, branca e preta, mas esta no tira o -poder da marcha de cada pea, e afinal umas e outras podem ganhar a -partida, e assim vae o mundo. Talvez conviesse pr aqui, de quando -em quando, como nas publicaes do jogo, um diagramma das posies -bellas ou difficeis. No havendo taboleiro, um grande auxilio este -processo para acompanhar os lances, mas tambem pde ser que tenhas -viso bastante para reproduzir na memoria as situaes diversas. Creio -que sim. Fra com diagrammas! Tudo ir como se realmente visses jogar a -partida entre pessoa e pessoa, ou mais claramente, entre Deus e o Diabo. - - - - -CAPITULO XIV - - -A lico do discipulo - - ---Fique, fique, conselheiro, disse Santos apertando a mo ao diplomata. -Aprenda as verdades eternas. - ---Verdades eternas pedem horas eternas, ponderou este, consultando o -relogio. - -Um tal Ayres no era facil de convencer. Placido falou-lhe de leis -scientificas para excluir qualquer macula de seita, e Santos foi -com elle. Toda a terminologia spirita saiu fra, e mais os casos, -phenomenos, mysterios, testemunhos, attestados verbaes e escriptos... -Santos acudiu com um exemplo: dous espiritos podiam tornar juntos a -este mundo; e, se brigassem antes de nascer? - ---Antes de nascer, creanas no brigam, replicou Ayres, temperando o -sentido affirmativo com a intonao dubitativa. - ---Ento nega que dous espiritos...? Essa c me fica, conselheiro! Pois -que impede que dous espiritos?... - -Ayres viu o abysmo da controversia, e forrou- se vertigem por uma -concesso, dizendo: - ---Esa e Jacob brigaram no seio materno, isso verdade. Conhece-se a -causa do conflicto. Quanto a outros, dado que briguem tambem, tudo est -em saber a causa do conflicto, e no a sabendo, porque a Providencia -a esconde da noticia humana... Se fosse uma causa espiritual, por -exemplo... - ---Por exemplo? - ---Por exemplo, se as duas creanas quizerem ajoelhar-se ao mesmo tempo -para adorar o Creador. Ahi est um caso de conflicto, mas de conflicto -espiritual, cujos processos escapam sagacidade humana. Tambem poderia -ser um motivo temporal. Supponhamos a necessidade de se acotovellarem -para ficar melhor accommodados; uma hypothese que a sciencia -acceitaria; isto , no sei... Ha ainda o caso de quererem ambos a -primogenitura. - ---Para que? perguntou Placido. - ---Com quanto este privilegio esteja hoje limitado s familias regias, - camara dos Iords e no sei se mais, tem todavia um valor symbolico. -O simples gosto de nascer primeiro, sem outra vantagem social ou -politica, pde dar-se por instincto, principalmente se as creanas se -destinarem a galgar os altos deste mundo. - -Santos afiou o ouvido neste ponto, lembrando-se das cousas futuras. -Ayres disse ainda algumas palavras bonitas, e accrescentou outras -feias, admittindo que a briga podia ser prenuncio de graves conflictos -na terra; mas logo temperou esse conceito com este outro: - ---No importa; no esqueamos o que dizia um antigo, que a guerra a -me de todas as cousas. Nia minha opinio, Empedocles, referindo-se - guerra, no o fez s no sentido technico. O amor, que a primeira -das artes da paz, pde-se dizer que um duello, no de morte, mas de -vida,--concluiu Ayres sorrindo leve, como falava baixo, e despediu-se. - - - - -CAPITULO XV - - -_Teste David cum Sibylla_ - - ---E ento? disse Santos. No que o conselheiro, em vez de aprender, -ensina-nos? Eu acho que elle deu algumas razes boas. - ---Quando menos, plausiveis, completou mestre Placido. - ---Foi pena que se despedisse, continuou Santos, mas felizmente o -meu caso com o senhor. Venho consultal-o, e as suas luzes so as -verdadeiras do mundo. - -Placido agradeceu sorrindo. No era novo o elogio, ao contrario; mas -elle estava to acostumado a ouvil-o que o sorriso era j agora um -sestro. No podia deixar de pagar com essa moeda aos seus discipulos. - ---Trata-se... - ---Trata-se disto. Aquella hypothese que eu formulei um facto real; -succedeu com os meus filhos... - ---Como? - --- o que me parece, e vim justamente para que me explique. Nunca lhe -falei por temer que achasse absurdo, mas tenho pensado, e suspeito que -tal briga se deu, e que um caso extraordinario. - -Santos expoz ento a consulta, gravemente, com um gesto particular que -tinha de arregalar os olhos para arregalar a novidade. No esqueceu nem -escondeu nada; contou a propria ida da mulher ao Castello, com desdem, - verdade, mas ponto por ponto. Placido ouvia attento, perguntando, -voltando atraz, e acabou por meditar alguns minutos. Emfim, declarou -que o phenomeno, caso se houvesse dado, era raro, se no unico, mas -possivel. J o facto de se chamarem Pedro e Paulo indicava alguma -rivalidade, porque esses dous apostolos brigaram tambem. - ---Perdo, mas o baptismo... - ---Foi posterior, sei, mas os nomes podem ter sido predestinados, -tanto mais que a escolha dos nomes veiu, como o senhor me disse, por -inspirao tia dos meninos. - ---Justamente. - ---D. Perpetua muito devota. - ---Muito. - ---Creio que os proprios espiritos de S. Pedro e S. Paulo houvessem -escolhido aquella senhora para inspirar os nomes que esto no Credo; -advirta que ella reza muitas vezes o Credo, mas foi naquella occasio -que se lembrou delles. - ---Exacto, exacto! - -O doutor foi estante e tirou uma Biblia, encadernada em couro, com -grandes fechos de metal. Abriu a Epistola de S. Paulo _aos Galatas_, e -leu a passagem do capitulo II, versculo 11, em que o apostolo conta -que, indo a Antiochia, onde estava S. Pedro, resistiu-lhe na cara. - -Santos leu e teve uma ideia. As ideias querem-se festejadas, quando -so bellas, e examinadas, quando novas; a delle era a um tempo nova e -bella. Deslumbrado, ergueu a mo e deu uma palmada na folha, bradando: - ---Sem contar que este numero _onze_ do versiculo, composto de dous -algarismos eguaes, 1 e 1, um numero gemeo, no lhe parece? - ---Justamente. E mais: o capitulo o segundo, isto , dous, que o -proprio numero dos irmos gemeos. - -Mysterio engendra mysterio. Havia mais de um elo intimo, substancial, -escondido, que ligava tudo. Briga, Pedro e Paulo, irmos gemeos, -numeros gemeos, tudo eram aguas de mysterio que elles agora rasgavam, -nadando e bracejando com fora. Santos foi mais ao fundo; no seriam -os dous meninos os proprios espiritos de S. Pedro e de S. Paulo, que -renasciam agora, e elle, pae dos dous apostolos?... A f transfigura; -Santos tinha um ar quasi divino, trepou em si mesmo, e os olhos -ordinariamente sem expresso, pareciam entornar a chamma da vida. Pae -de apostolos! e que apostolos! Placido esteve quasi, quasi a crr -tambem, achava-se dentro de um mar torvo, soturno, onde as vozes -do infinito se perdiam, mas logo lhe acudia que os espiritos de S. -Pedro e S. Paulo tinham chegado perfeio; no tornariam c. No -importa; seriam outros, grandes e nobres. Os seus destinos podiam ser -brilhantes; tinha razo a cabocla, sem saber o que dizia. - ---Deixe s senhoras as suas crenas da meninice, concluiu; se ellas tem -f na tal mulher do Castello, e acham que um vehiculo de verdade, -no as desminta por ora. Diga-lhes que eu estou de accordo com o seu -oraculo. _Teste David cum Sibylla._ - ---Digo, digo! escreva a phrase. - -Placido foi secretaria, escreveu o verso, e deu-lhe o papel, mas j -ento Santos advertira que mostral-o mulher era confessar a consulta -spirita, e naturalmente o perjurio. Referiu ao amigo os escrupulos de -Natividade e pediu que calassem tudo. - ---Estando com ella, no lhe diga o que se passou entre ns. - -Saiu logo depois, arrependido da indiscrio, mas deslumbrado da -revelao. Ia cheio de numeros da Escriptura, de Pedro e Paulo, de Esa -e Jacob. O ar da rua no espanou a poeira do mysterio; ao contrario, -o cu azul, a praia socegada, os montes verdes como que o cercavam e -cobriam de um veu mais transparente e infinito. A rixa dos meninos, -facto raro ou unico, era uma distinco divina. Contrariamente -esposa, que cuidava smente da grandeza futura dos filhos, Santos -pensava no conflicto passado. - -Entrou em casa, correu aos pequenos, e acarinhou-os com to estranha -expresso, que a me desconfiou alguma cousa, e quiz saber o que era. - ---No nada, respondeu elle rindo. - --- alguma cousa, anda, acaba. - ---Que ha de ser? - ---Seja o que fr, Agostinho, acaba. - -Santos pediu-lhe que se no zangasse, e contou tudo, a sorte, a rixa, -a Escriptura, os apostolos, o symbolo, tudo to espalhadamente, que -ella mal pde entender, mas entendeu ao final, e replicou com os dentes -cerrados: - ---Ah! voc! voc! - ---Perdoa, amiguinha; estava to ancioso de saber a verdade... E nota -que eu creio na cabocla, e o doutor tambem; elle at me escreveu isto -em latim, concluiu tirando e lendo o papelinho: _Teste David cum -Sibylla._ - - - - -CAPITULO XVI - - -Paternalismo - - -D'ahi a pouco, Santos pegou na mo da mulher, que a deixou ir toa, -sem apertar a delle; ambos fitavam os meninos, tendo esquecido a zanga -para s ficarem paes. - -J no era spiritismo, nem outra religio nova; era a mais velha de -todas, fundada por Ado e Eva, qual chama, se queres, paternalismo. -Rezavam sem palavras, persignavam-se sem dedos, uma especie de -ceremonia quieta e muda, que abrangia o passado e o futuro. Qual delles -era o padre, qual o sacristo, no sei, nem preciso. A missa que -era a mesma, e o evangelho comeava como o de S. Joo (emendado): No -principio era o amor, e o amor se fez carne. Mas venhamos aos nossos -gemeos. - - - - -CAPITULO XVII - - -Tudo o que restrinjo - - -Os gemeos, no tendo que fazer, iam mamando. Nesse officio portavam-se -sem rivalidade, a no ser quando as amas estavam s boas, e elles -mamavam ao p um do outro; cada qual ento parecia querer mostrar que -mamava mais e melhor, passeando os dedos pelo seio amigo, e chupando -com alma. Ellas, sua parte tinham gloria dos peitos e os comparavam -entre si; os pequenos, fartos, soltavam afinal os bicos e riam para -ellas. - -Se no fosse a necessidade de pr os meninos em p, crescidos e homens, -espraiava este capitulo. Realmente, o espectaculo, posto que commum, -era bello. Os peraltas nutriam-se ao contrario dos paes, sem as artes -do cozinheiro, nem a vista das comidas e bebidas, todas postas em -crystaes e porcelanas para emendar ou colorir a dura necessidade de -comer. A elles nem se lhes via a comida; a boca ligada ao peito no -deixava apparecer o leite. A natureza mostrava-se satisfeita pelo riso -ou pelo somno. Quando era o somno, cada uma levava o seu menino ao -bero, e ia cuidar de outra cousa. Este cotejo dar-me-ia trez ou quatro -paginas solidas. - -Uma pagina bastava para os chocalhos que embellezavam os pequenos, -como se fosse a propria musica do cu. Elles sorriam, estendiam as -mos, alguma vez zangavam-se com as negaas, mas tanto que lh'os davam, -calavam-se, e se no podiam tocar no se zangavam por isso. A proposito -de chocalhos, diria que esses instrumentos no deixam memoria de si; -alguem que os veja em mos de creanas, se parecer que lhe lembram os -seus, cae logo no engano, e adverte que a recordao ha de ser mais -recente, alguma arenga do anno passado, se no foi a vacca de leite da -vespera. - -A operao de desmamar podia fazer-se em meia linha, mas as lstimas -das amas, as despedidas, as bichas de ouro que a me deu a cada uma -dellas, como um presente final, tudo isso exigia uma boa pagina ou -mais. Poucas linhas bastariam para as amas seccas, porquanto no diria -se eram altas nem baixas, feias ou bonitas. Eram mansas, zelosas do -officio, amigas dos pequenos, e logo uma da outra. Cavallinhos de -pau, bandeirolas, theatros de bonecos, barretinas e tambores, toda a -quinquilharia da infancia occuparia muito mais que o logar de seus -nomes. - -Tudo isso restrinjo s para no enfadar a leitora curiosa de ver os -meus meninos homens e acabados. Vamos vel-os, querida. Com pouco, esto -crescidos e fortes. Depois, entrego-os a si mesmos; elles que abram a -ferro ou lingua, ou simples cotovellos, o caminho da vida e do mundo. - - - - -CAPITULO XVIII - - -De como vieram crescendo - - -Eil -os que vem crescendo. A semelhana, sem os confundir j, -continuava a ser grande. Os mesmos olhos claros e attentos, a mesma -bca cheia de graa, as mos finas, e uma cr viva nas faces que as -fazia crr pintadas de sangue. Eram sadios; exceptuada a crise dos -dentes, no tiveram molestia alguma, porque eu no conto uma ou outra -indigesto de doces, que os paes lhes davam, ou elles tiravam s -escondidas. Eram ambos gulosos, Pedro mais que Paulo, e Paulo mais que -ninguem. - -Aos sete annos eram duas obras-primas, ou antes uma s em dous volumes, -como quizeres. Em verdade, no havia por toda aquella praia, nem por -Flamengos ou Glorias, Cajus e outras redondezas, no havia uma, quanto -mais duas creanas to graciosas. Nota que eram tambem robustos. Pedro -com um murro derrubava Paulo; em compensao, Paulo com um ponta-p -deitava Pedro ao cho. Corriam muito na chacara por aposta. Alguma vez -quizeram trepar s arvores, mas a me no consentia; no era bonito. -Contentavam-se de espiar c de baixo a fructa. - -Paulo era mais aggressivo, Pedro mais dissimulado, e, como ambos -acabavam por comer a fructa das arvores, era um moleque que a ia buscar -acima, fosse a cascudo de um ou com promessa de outro. A promessa no -se cumpria nunca; o cascudo, por ser antecipado, cumpria-se sempre, -e s vezes com repetio depois do servio. No digo com isto que um -e outro dos gemeos no soubessem aggredir e dissimular; a differena - que cada um sabia melhor o seu gosto, cousa to obvia que custa -escrever. - -Obedeciam aos paes sem grande esforo, posto fossem teimosos. Nem -mentiam mais que outros meninos da cidade. Ao cabo, a mentira -alguma vez meia virtude. Assim que, quando elles disseram no ter -visto furtar um relogio da me, presente do pae, quando eram noivos, -mentiram conscientemente, porque a criada que o tirou foi apanhada por -elles em plena aco de furto. Mas era to amiga delles! e com taes -lagrimas lhes pediu que no dissessem a ninguem, que os gemeos negaram -absolutamente ter visto nada. Contavam sete annos. Aos nove, quando j -a moa ia longe, que descobriram, no sei a que proposito, o caso -escondido. A me quiz saber porque que elles calaram outrora; no -souberam explicar-se, mas claro que o silencio de 1878 foi obra da -affeio e da piedade, e dahi a meia-virtude, porque alguma cousa -pagar amor com amor. Quanto revelao de 1880 s se pde explicar -pela distancia do tempo. J no estava presente a boa Miquelina; talvez -ja estivesse morta. Demais, veiu to naturalmente a referencia... - ---Mas, porque que vocs at agora no me disseram? teimava a me. - -No sabendo mais que razo dssem, um delles, creio que Pedro, resolveu -accusar o irmo: - ---Foi elle, mame! - ---Eu? redarguiu Paulo. Foi elle, mame, elle que no disse nada. - ---Foi voc! - ---Foi voc! no minta! - ---Mentiroso elle! - -Cresceram um para o outro. Natividade acudiu prestemente, no tanto -que impedisse a troca dos primeiros murros. Segurou-lhes os braos a -tempo de evitar outros, e, em vez de os castigar ou ameaar, beijou-os -com tamanha ternura que elles no acharam melhor occasio de lhe pedir -doce. Tiveram doce; tiveram tambem um passeio, tarde, no carrinho do -pae. - -Na volta estavam amigos ou reconciliados. Contaram me o passeio, a -gente da rua, as outras creanas que olhavam para elles com inveja, uma -que mettia o dedo na bca, outro no nariz, e as moas que estavam s -janellas, algumas que os acharam bonitos. Neste ultimo ponto divergiam, -porque cada um delles tomava para si s as admiraes; mas a me -interveiu: - ---Foi para ambos. Vocs so to parecidos, que no podia ser seno para -ambos. E sabem porque que as moas elogiaram vocs? Foi por ver que -iam amigos, chegadinhos um ao outro. Meninos bonitos no brigam, ainda -menos sendo irmos. Quero vel-os quietos e amigos, brincando juntos sem -rusga nem nada. Esto entendendo? - -Pedro respondeu que sim; Paulo esperou que a me repetisse a pergunta, -e deu egual resposta. Emfim, porque esta mandasse, abraaram-se, mas -foi um abraar sem gosto, sem fora, quasi sem braos; encostaram-se um -ao outro, estenderam as mos s costas do irmo, e deixaram-n'as cair. - -De noite, na alcova, cada um delles concluiu para si que devia os -obsequios daquella tarde, o doce, os beijos e o carro, briga que -tiveram, e que outra briga podia render tanto ou mais. Sem palavras, -como um romance ao piano, resolveram ir cara um do outro, na primeira -occasio. Isto que devia ser um lao armado ternura da me, trouxe -ao corao de ambos uma sensao particular, que no era s consolo e -desforra do socco recebido naquelle dia, mas tambem satisfao de um -desejo intimo, profundo, necessario. Sem odio, disseram ainda algumas -palavras de cama a cama, riram de uma ou outra lembrana da rua, ate -que o somno entrou com os seus ps de l e bico calado, e tomou conta -da alcova inteira. - - - - -CAPITULO XIX - - -Apenas duas.--Quarenta annos. Terceira causa - - -Um dos meus proposrtos neste livro no lhe pr lagrimas. Entretanto, -no posso calar as duas que rebentaram certa vez dos olhos de -Natividade, depois de uma rixa dos pequenos. Apenas duas, e fram -morrer-lhe aos cantos da bca. To depressa as verteu como as engoliu, -renovando s avessas e por palavras mudas o fecho daquellas historias -de creanas: entrou por uma porta, saiu pela outra, manda el-rei -nosso senhor que nos conte outra. E a segunda creana contava segunda -historia, a terceira terceira, a quarta quarta, at que vinha o -fastio ou o somno. Pessoas que datam do tempo em que se contavam taes -historias affirmam que creanas no punham naquella formula nenhuma -monarchica, fosse absoluta, fosse constitucional; era um modo de ligar -o seu _Decameron_ dellas, herdado do velho reino portuguez, quando os -reis mandavam o que queriam, e a nao dizia que era muito bem. - -Engolidas as duas lagrimas, Natividade riu da propria fraqueza. No -se chamou tola, porque esses desabafos raramente se usam, ainda em -particular; mas no secreto do corao, l muito ao fundo, onde no -penetra olho de homem, creio que sentiu alguma cousa parecida com isso. -No tendo prova clara, limito-me a defender a nossa dona. - -Em verdade, qualquer outra viveria a tremer pela sorte dos filhos, -uma vez que houvera a rixa anterior e interior. Agora as lutas eram -mais frequentes, as mos cada vez mais aptas, e tudo fazia receiar que -elles acabassem estripando-se um ao outro... Mas aqui surgia a ideia da -grandeza e da prosperidade,--cousas futuras!--e esta esperana era como -um leno que enxugasse os olhos da bella senhora. As Sibyllas no tero -dito s do mal, nem os Prophetas, mas ainda do bem, e principalmente -delle. - -Com esse leno verde enxugou ella os olhos, e teria outros lenos, -se aquelle ficasse roto ou enxovalhado; um, por exemplo, no verde -como a esperana, mas azul, como a alma della. Ainda lhes no disse -que a alma de Natividade era azul. Ahi fica. Um azul celeste, claro e -transparente, que alguma vez se embruscava, raro tempestuava, e nunca a -noite escurecia. - -No, leitor, no me esqueceu a edade da nossa amiga; lembra-me como se -fosse hoje. Chegou assim aos quarenta annos. No importa; o cu mais -velho e no trocou de cr. Uma vez que lhe no attribuas ao azul da -alma nenhuma significao romantica, ests na conta. Quando muito, no -dia em que perfez aquella edade, a nossa dona sentiu um calefrio. Que -passra? Nada, um dia mais que na vespera, algumas horas apenas. Toda -uma questo de numero, menos que numero, o nome do numero, esta palavra -_quarenta_, eis o mal unico. Dahi a melancolia com que ella disse ao -marido, agradecendo o mimo do anniversario: Estou velha, Agostinho! -Santos quiz esganal-a brincando. - -Pois faria mal se a esganasse. Natividade ainda tinha as frmas do -tempo anterior concepo, a mesma flexibilidade, a mesma graa miuda -e viva. Conservava o donaire dos trinta. A costureira punha em relevo -todos os pensamentos restantes da figura, e ainda lhe emprestava alguns -do seu bolsinho. A cintura teimava em no querer engrossar, e os -quadris e o collo eram do mesmo estofador antigo. - -Ha dessas regies em que o vero se confunde com o outono, como se d -na nossa terra, onde as duas estaes s differem pela temperatura. -Nella nem pela temperatura. Maio tinha o calor de janeiro. Ella, aos -quarenta annos, era a mesma senhora verde, com a mesmissima alma azul. - -Esta cr vinha-lhe do pae e do av, mas o pae morreu cedo, antes do -av, que chegara aos oitenta e quatro. Nessa edade cria sinceramente -que todas as delicias deste mundo, desde o caf de manh at os somnos -socegados haviam sido inventados smente para elle. O melhor cozinheiro -da terra nascera na China, para o unico fim de deixar familia, patria, -lingua, religio, tudo, e vir assar-lhe as costelletas e fazer-lhe o -ch. As estrellas davam s _suas_ noites una aspecto esplendido, o luar -tambem, e a chuva, se chovia, era para que elle descanasse do sol. L -est agora no cemiterio de S. Francisco Xavier; se alguem pudesse ouvir -a voz dos mortos, dentro das sepulturas, ouviria a delle, bradando que - tempo de fechar a porta ao cemiterio e no deixar entrar ninguem, uma -vez que elle j l descana para todo sempre. Morreu azul; se chegasse -aos cem annos, nao teria outra cr. - -Ora, se a natureza queria poupar esta senhora, a riqueza dava a mo -natureza, e de uma e de outra saa a mais bella cr que alma de gente -pde ter. Tudo concorria assim para lhe seccarem os olhos depressa, -como vimos atraz. Se ella bebeu aquellas duas lagrimas solitarias, -pudera ter bebido outras pela edade adeante, e isto ainda uma -prova daquelle matiz espiritual; mostrar assim que as tem poucas, e -engole-as para poupal-as. - -Mas ha ainda uma terceira causa que dava a esta senhora o sentimento da -cr azul, causa to particular que merecia ir em capitulo seu, mas no -vae, por economia. Era a iseno, era o ter atravessado a vida intacta -e pura. O cabo das Tormentas converteu-se em cabo da Boa Esperana, -e ella venceu a primeira e a segunda mocidade, sem que os ventos lhe -derribassem a nau, nem as ondas a engolissem. No negaria que alguma -lufada mais rija pudera levar-lhe a vela do traquete, como no caso -de Joo de Mello, ou ainda peor, no de Ayres, mas fram bocejos de -Adamastor. Concertou a vela depressa e o gigante ficou atraz cercado de -Thetis, emquanto ella seguiu o caminho da India. Agora lembrava-se da -viagem prospera. Honrava-se dos ventos inuteis e perdidos. A memoria -trazia-lhe o sabor do perigo passado. Eis aqui a terra encoberta, os -dous filhos nados, criados e amados da fortuna. - - - - -CAPITULO XX - - -A joia - - -Os quarenta e um annos no lhe trouxeram arrepio. J estava acostumada - casa dos quarenta. Sentiu sim, um grande espanto; acordou e no viu o -presente do costume, a sorpreza do marido ao p da cama. No a achou -no toucador; abriu gavetas, espiou, nada. Creu que o marido esquecera -a data e ficou triste; era a primeira vez! Desceu olhando; nada. No -gabinete estava o marido, calado, mettido comsigo, a ler jornaes, mal -lhe estendeu a mo. Os rapazes, apesar de ser domingo, estudavam a um -canto; vieram dar-lhe o beijo do costume e tornaram aos livros. A me -ainda relanceou os olhos pelo gabinete, a ver se achava algum mimo, um -painel, um vestido, foi tudo vo. Embaixo de uma das folhas do dia que -estava na cadeira fronteira do marido podia ser que... Nada. Ento -sentou-se, e, abrindo a folha, ia dizendo comsigo: Ser possivel que -no se lembre do dia de hoje? Ser possivel? Os olhos entraram a ler -toa, saltando as noticias, tornando atraz... - -Defronte o marido espreitava a mulher, sem absolutamente importar-lhe o -que parecia ler. Assim se passaram alguns minutos. De repente, Santos -viu uma expresso nova no rosto de Natividade; os olhos della pareciam -crescer, a bca entre-abriu-se, a cabea ergueu-se, a delle tambem, -ambos deixaram a cadeira, deram dous passos e cairam nos braos um do -outro, como dous namorados desesperados de amor. Um, dous, trez, muitos -beijos. Pedro e Paulo, espantados, estavam ao canto, de p. O pae, -quando pde falar, disse-lhes: - ---Venham beijar a mo da senhora baroneza de Santos. - -No entenderam logo. Natividade no sabia que fizesse; dava a mo aos -filhos, ao marido, e tornava ao jornal para ler e reler que no despacho -imperial da vespera o Sr. Agostinho Jos dos Santos fra agraciado com -o titulo de Baro de Santos. Comprehendeu tudo. O presente do dia era -aquelle; o ourives desta vez foi o imperador. - ---Vo, vo, agora podem ir brincar, disse o pae aos filhos. - -E os rapazes sairam a espalhar a noticia pela casa. Os criados ficaram -felizes com a mudana dos amos. Os proprios escravos pareciam receber -uma parcella de liberdade e condecoravam-se com ella: Nh Baroneza! -exclamavam saltando. E Joo puxava Maria, batendo castanholas com os -dedos: Gente, quem esta creoula? Sou escrava de Nh Baroneza! - -Mas o imperador no foi o unico ourives. Santos tirou do bolso uma -caixinha, com um broche em que a cora nova rutilava de brilhantes. -Natividade agradeceu-lhe a joia e consentiu em pol-a, para que o marido -a visse. Santos sentia-se autor da joia, inventor da frma e das -pedras; mas deixou logo que ella a tirasse e guardasse, e pegou das -gazetas, para lhe mostrar que em todas vinha a noticia, algumas com -adjectivo, _conceituado_ aqui, alli _distincto_, etc. - -Quando Perpetua entrou no gabinete, achou-os andando de um lado para -outro, com os braos passados pela cintura, conversando, calando, -mirando os ps. Tambem ella deu e recebeu abraos. - -Toda a casa estava alegre. Na chacara as arvores pareciam mais verdes -que nunca, os botes do jardim explicavam as folhas, e o sol cobria a -terra de uma claridade infinita. O cu, para collaborar com o resto, -ficou azul o dia inteiro. Logo cedo entraram a vir cartes e cartas -de parabens. Mais tarde visitas. Homens do foro, homens do commercio, -homens de sociedade, muitas senhoras, algumas titulares tambem, vieram -ou mandaram. Devedores de Santos acudiram depressa, outros preferiram -continuar o esquecimento. Nomes houve que elles s puderam reconhecer -fora de grande pesquiza e muito almanaque. - - - - -CAPITULO XXI - - -Um ponto escuro - - -Sei que ha um ponto escuro no capitulo que passou; escrevo este para -esclarecel-o. - -Quando a esposa inquiriu dos antecendentes e circumstancias do -despacho, Santos deu as explicaes pedidas. Nem todas seriam -estrictamente exactas; o tempo um rato roedor das cousas, que as -diminue ou altera no sentido de lhes dar outro aspecto. Demais, a -materia era to propicia ao alvoroo que facilmente traria confuso -memoria. Ha, nos mais graves acontecimentos, muitos pormenores que se -perdem, outros que a imaginao inventa para supprir os perdidos, e nem -por isso a historia morre. - -Resta saber ( o ponto escuro) como que Santos pde calar por longos -dias um negocio to importante para elle e para a esposa. Em verdade, -esteve mais de uma vez a dizer por palavra ou por gesto, se achasse -algum, aquelle segredo de poucos; mas, sempre havia uma fora maior que -lhe tapava a bca. Ao que parece, foi a expectao de uma alegria nova -e inesperada que lhe deu a alma de pacientar. - -Naquella scena do gabinete tudo foi composto de antemo, o silencio, -a indifferena, os filhos que elle poz alli, estudando ao domingo, -s para o effeito daquella phrase: Venham beijar a mo da senhora -baroneza de Santos! - - - - -CAPITULO XXII - - -Agora um salto - - -Que os dous gemeos participassem da lua de mel nobiliaria dos paes -no cousa que se precise escrever. O amor que lhes tinham bastava -a explical-o, mas accresce que, havendo o titulo produzido em outros -meninos dous sentimentos oppostos, um de estima, outro de inveja, Pedro -e Paulo concluiram ter recebido com elle um merito especial. Quando, -mais tarde, Paulo adoptou a opinio republicana nunca envolveu aquella -distinco da familia na condemnao das instituies. Os estados de -alma que daqui nasceram davam materia a um capitulo especial, se eu no -preferisse agora um salto, e ir a 1886. O salto grande, mas o tempo -um tecido invisivel em que se pde bordar tudo, uma flor, um passaro, -uma dama, um castello, um tumulo. Tambem se pde bordar nada. Nada em -cima de invisivel a mais subtil obra deste mundo, e acaso do outro. - - - - -CAPITULO XXIII - - -Quando tiverem barbas - - -Naquelle anno, uma noite de agosto, como estivessem algumas pessoas na -casa de Botafogo, succedeu que uma dellas, no sei se homem ou mulher, -perguntou aos dous irmos que edade tinham. - -Paulo respondeu: - ---Nasci no anniversario do dia em que Pedro I caiu do throno. - -E Pedro: - ---Nasci no anniversario do dia em que Sua Majestade subiu ao throno. - -As respostas foram simultaneas, no successivas, tanto que a pessoa -pediu-lhes que falasse cada um por sua vez. A me explicou: - ---Nasceram no dia 7 de Abril de 1870. - -Pedro repetiu vagarosamente: - ---Nasci no dia em que Sua Majestade subiu ao throno. - -E Paulo, em seguida: - ---Nasci no dia em que Pedro I caiu do throno. - -Natividade reprehendeu a Paulo a sua resposta subversiva. Paulo -explicou-se, Pedro contestou a explicao e deu outra, e a sala viraria -club, se a me no os accommodasse por esta maneira: - ---Isto ho de ser grupos de collegio; vocs no esto em edade de falar -em politica. Quando tiverem barbas. - -As barbas no queriam vir, por mais que elles chamassem o buo com -os dedos, mas as opinies politicas e outras vinham e cresciam. No -eram propriamente opinies, no tinham raizes grandes nem pequenas. -Eram (mal comparando) gravatas de cr particular, que elles atavam -ao pescoo, espera que a cr canasse e viesse outra. Naturalmente -cada um tinha a sua. Tambem se pde crr que a de cada um era, mais -ou menos, adequada pessoa. Como recebiam as mesmas approvaes e -distinces nos exames, faltava-lhes materia a invejas; e, se a ambio -os dividisse algum dia, no era por ora aguia nem condor, ou sequer -filhote; quando muito, um ovo. No collegio de Pedro II todos lhes -queriam bem. - -As barbas que no queriam vir. Que que se lhes ha de fazer quando -as barbas no querem vir? Esperar que venham por seu p, que appaream, -que cresam, que embranqueam, como seu costume dellas, salvo as que -no embranquecem nunca, ou s em parte e temporariamente. Tudo isto -sabido e banal, mas d ensejo a dizer de duas barbas do ultimo genero, -celebres naquelle tempo, e ora totalmente esquecidas. No tendo outro -logar em que fale dellas, aproveito este capitulo, e o leitor que volte -a pagina, se prefere ir atraz da historia. Eu ficarei durante algumas -linhas, recordando as duas barbas mortas, sem as entender agora, como -no as entendemos ento, as mais inexplicaveis barbas do mundo. - -A primeira daquellas barbas era de um amigo de Pedro, um capucho, -um italiano, frei ***. Podia escrever-lhe o nome,--ninguem mais o -conheceria,--mas prefiro esse signal trino, numero de mysterio, -expresso por estrellas, que so os olhos do cu. Trata-se de um frade. -Pedro no lhe conheceu a barba preta, mas j grisalha, longa e basta, -adornando uma cabea mascula e formosa. A bca era risonha, os olhos -rutilos. Ria por ella e por elles, to docemente que mettia a gente -no corao. Tinha o peito largo, as espaduas fortes. O p n, atado - sandalia, mostrava aguentar um corpo de Hercules. Tudo isso meigo -e espiritual, como uma pagina evangelica. A f era viva, a affeio -segura, a paciencia infinita. - -Frei *** despediu-se um dia de Pedro. Ia ao interior, Minas, Rio -Janeiro, S. Paulo,--creio que ao Paran tambem,--viagem espiritual, -como a de outros confrades, e l ficou por um semestre ou mais. Quando -voltou trouxe-nos a todos grande alegria e maior espanto. A barba -estava negra, no sei se tanto ou mais que d'antes, mas negrissima -e brilhantissima. No explicou a mudana, nem ninguem lhe perguntou -por ella; podia ser milagre ou capricho da natureza; tambem podia ser -correco de homem, posto que o ultimo caso fosse mais difficil de -crr que o primeiro. Durou nove mezes esta cr; feita outra viagem por -trinta dias, a barba appareceu de prata ou de neve, como vos parecer -mais branca. - -Quanto segunda de taes barbas, foi ainda mais espantosa. No era -de frade, mas de maltrapilho, um sujeito que vivia de dividas, e na -mocidade corrigira um velho rifo da nossa lingua por esta maneira: -Paga o que deves, v o que te _no_ fica. - -Chegou aos cincoenta annos sem dinheiro, sem emprego, sem amigos. A -roupa teria a mesma edade, os sapatos no menor que ella. A barba que -no chegou aos cincoenta; elle pintava-a de negro e mal, provavelmente -por no ser a tinta de primeira qualidade e no possuir espelho. Andava -s, descia ou subia muita vez a mesma rua. Um dia dobrou a esquina da -Vida e caiu na praa da Morte, com as barbas enxovalhadas, por no -haver quem lh'as pintasse na Santa Casa. - -_Or, ben_, para falar como o meu capucho, porque que este e o -maltrapilho voltaram do grisalho ao negro? A leitora que adivinhe, se -pde: dou-lhe vinte capitulos para alcanal-o. Talvez eu, por essas -alturas, lobrigue alguma explicao, mas por ora no sei nem aventuro -nada. V que malignos attribuam a frei *** alguma paixo profana; ainda -assim no se comprehende que elle se descobrisse por aquelle modo. -Quanto ao maltrapilho, a que damas queria elle agradar, a ponto de -trocar alguma vez o po pela tinta? Que um e outro cedessem ao desejo -de prender a mocidade fugitiva, pde ser. O frade, lido na Escriptura, -sabendo que Israel chorou pelas cebolas do Egypto, teria tambem -chorado, e as suas lagrimas cairam negras. Pde ser, repito. Este -desejo de capturar o tempo uma necessidade da alma e dos queixos; mas -ao tempo d Deus _habeas-corpus._ - - - - -CAPITULO XXIV - - -Robespierre e Luiz XVI - - -Tanto cresceram as opinies de Pedro e Paulo que, um dia, chegaram a -incorporar-se em alguma cousa. Iam descendo pela rua da Carioca. Havia -alli uma loja de vidraceiro, com espelhos de vario tamanho, e, mais que -espelhos, tambem tinha retratos velhos e gravuras baratas, com e sem -caixilho. Pararam alguns instantes, olhando toa. Logo depois, Pedro -viu pendurado um retrato de Luiz XVI, entrou e comprou-o por oitocentos -reis; era uma simples gravura atada ao mostrador por um barbante. -Paulo quiz ter egual fortuna, adequada s suas opinies, e descobriu -um Robespierre. Como o logista pedisse por este mil e duzentos, Pedro -exaltou-se um pouco. - ---Ento o senhor vende mais barato um rei, e um rei martyr? - ---Ha de perdoar, mas que esta outra gravura custou-me mais caro, -redarguiu o velho logista. Ns vendemos conforme o preo da compra. -Veja; est mais nova. - ---L isso, no, acudiu Paulo. So do mesmo tempo; mas que este vale -mais que aquelle. - ---Ouvi dizer que tambem era rei... - ---Qual, rei! responderam os dous. - ---Ou quiz sel-o, no sei bem... Que eu de historias, apenas conheo -a dos mouros que aprendi na minha terra com a av, alguns bocados em -verso. E elle ainda ha mouras lindas; por exemplo, esta; apesar do -nome, creio que era moura, ou ainda , se vive... Mal lhe saiba ao -marido! - -Foi a um canto e trouxe um retrato de Madame de Stael, com o famoso -turbante na cabea. effeito da belleza! Os rapazes esqueceram por um -instante as opinies politicas e ficaram a olhar longamente a figura -de Corinna. O logista, apesar dos seus setenta annos, tinha os olhos -babados. Cuidou de sublinhar as formas, a cabea, a bca um tanto -grossa, mas expressiva, e dizia que no era caro. Como nenhum quizesse -compral-a, talvez por ser s uma, disse-lhes que ainda tinha outro, mas -esse era uma pouca vergonha, phrase que os deuses lhe perdoariam, -quando soubessem que elle no quiz mais que abrir o appetite aos -freguezes. E foi a um armario, tirou de l, e trouxe uma Diana, na -como vivia c em baixo, outr'ora, nos mattos. Nem por isso a vendeu. -Teve de contentar-se com os retratos politicos. - -Quiz ainda ver se colhia algum dinheiro, vendendo-lhes um retrato de -Pedro I, encaixilhado, que pendia da parede; mas, Pedro recusou por no -ter dinheiro disponivel, e Paulo disse que no daria um vintem pela -cara de traidores. Antes no dissesse nada! O logista, to depressa -lhe ouviu a resposta como despiu as frmas obsequiosas, vestiu outras -indignadas, e bradou que sim, senhor, que o moo tinha razo. - ---Tem muita razo. Foi um traidor, mau filho. mau irmo, mau tudo. -Fez todo o mal que pde a este mundo; e no inferno, onde est, se a -religio no mente, deve ainda fazer mal ao Diabo. Este moo falou ha -pouco em rei martyr,--continuou mostrando-lhes um retrato de D. Miguel -de Bragana, meio perfil, sobrecasaca, mo ao peito,--este que foi -um verdadeiro martyr daquelle, que lhe roubou o throno, que no era -seu, para dal-o a quem no pertencia; e foi morrer mingua o meu pobre -rei e senhor, dizem que na Allemanha, ou no sei onde. Ah! _malhados!_ -Ah! filhos do Diabo! Os senhores no podem imaginar o que era aquella -canalha de liberaes. Liberaes! Liberaes do alheio! - --- tudo a mesma farinha, reflexionou Paulo. - ---Eu no sei se elles eram de farinha, sei que levaram muita pancada. -Venceram, mas apanharam deveras. Meu pobre rei! - -Pedro quiz responder ao remoque do irmo, e propoz comprar o retrato -de Pedro I. Quando o logista tornou a si, comeou a negociar a venda, -mas no poderam entender-se no preo; Pedro dava os mesmos oitocentos -reis do outro, o logista pedia dous mil reis. Notava-lhe que estava -encaixilhado, e Luiz XVI no; alm disso, era mais novo. E vinha -porta, a buscar melhor luz, chamava-lhe a atteno para o rosto, -os olhos principalmente, que bella expresso que tinham! E o manto -imperial... - ---Que lhe custa dar dous mil reis? - ---Dou-lhe dez tostes; serve? - ---No serve. Mais que isso me custou elle. - ---Pois ento... - ---Veja sempre. Pois isto no vale at trez mil reis? 0 papel no est -encardido; a gravura fina. - ---Dez tostes, j disse. - ---No, senhor. Olhe, por dez tostes leve este de D. Miguel; o papel -est bem conservado, e, com pouco dinheiro, manda lhe pr um caixilho. -V; dez tostes. - ---Se eu j estou arrependido... Dez tostes pelo imperador. - ---Ah! isso no! Custou-me mil e setecentos, ha trez semanas; ganho uns -trezentos reis, quasi nada. Ganho menos com o senhor D. Miguel, mas -tambem concordo que menos procurado. Este de D. Pedro I, se passar -amanh, talvez j o no ache. V, sim? - ---Eu passo depois. - -Paulo j ia andando e mirando Robespierre; Pedro alcanou-o. - ---Olhe, leve por sete tostes o senhor D. Miguel! - -Pedro abanou a cabea. - ---Seis tostes serve? - -Pedro, ao lado do irmo, desenrolra a sua gravura. O velho logista -quiz ainda bradar: Cinco tostes! mas iam j longe, e ficava mal -negociar assim. - - - - -CAPITULO XXV - - -D. Miguel - - ---Assim como assim, ficou pensando o velho, no ha de ser enrolado e -guardado que o hei de vender; vou mandal-o encaixilhar; pem-se-lhe -aqui umas taboinhas velhas... - -D. Miguel voltou para elle os olhos turvos de tristeza e reproche; -assim lhe pareceu ao vidraceiro, mas podia ter sido illuso. Em todo -caso, pareceu tambem que os olhos tornavam ao seu logar, fitando -direita, ao longe... Para onde? Para onde ha justia eterna, cuidou -naturalmente o dono. Como estivesse a contemplal-o, porta, parou um -homem, entrou, e olhou com interesse para o retrato. O logista reparou -na expresso; podia ser algum miguelista, mas tambem podia ser um -colleccionador... - ---Quanto pede o senhor por isto? - ---Isto? Ha de perdoar; quer saber quanto peo pelo meu rico senhor -D. Miguel? No peo muito, est um tanto encardido, mas ainda se lhe -aprecia bem a figura. Que soberba que ella ! No caro; dou-lhe pelo -custo; se estivesse encaixilhado, valeria uns quatro mil reis. Leve-o -por trez. - -O freguez tirou tranquillamente o dinheiro do bolso, emquanto o velho -enrolava o retrato, e, trocados um por outro, despediram-se cortezes e -satisfeitos; o logista, depois de ir at a porta, tornou cadeira do -costume. Talvez pensasse no mal a que escapra, se vendesse o retrato -por dez tostes. Em todo caso, ficou a olhar para fra, para longe, -para onde ha justia eterna... Trez mil reis! - - - - -CAPITULO XXVI - - -A luta dos retratos - - -Quasi que no preciso dizer o destino dos retratos do rei e do -convencional. Cada um dos pequenos pregou o seu cabeceira da cama. -Pouco durou esta situao, porque ambos faziam pirraas s pobres -gravuras, que no tinham culpa de nada. Eram orelhas de burro, nomes -feios, desenhos de animaes, at que um dia Paulo rasgou a de Pedro, -e Pedro a de Paulo. Naturalmente, vingaram-se a murro; a me ouviu -rumor e subiu apressada. Conteve os filhos, mas j os achou arranhados -e recolheu-se triste. Nunca mais acabaria aquella maldio de -rivalidade? Fez esta pergunta calada, atirada cama, a cara mettida no -travesseiro, que desta vez ficou secco, mas a alma chorou. - -Natividade confiava na educao, mas a educao, por mais que ella -a apurasse, apenas quebrava as arestas ao caracter dos pequenos, o -essencial ficava; as paixes embryonarias trabalhavam por viver, -crescer, romper, taes quaes ella sentira os dous no proprio seio, -durante a gestao... E recordava a crise de ento, acabando por -maldizer da cabocla do Castello. Realmente, a cabocla devia ter calado; -o mal calado no se muda, mas no se sabe. Agora, pde ser que isto -de no calar confirme a opinio de que a cabocla era mandada por Deus -para dizer a verdade aos homens. E afinal o que que ella disse a -Natividade? No fez mais que uma pergunta mysteriosa; a predico que -foi luminosa e clara... E outra vez as palavras do Castello resoaram -aos ouvidos da me, e a imaginao fez o resto. Cousas futuras! Eil-os -grandes e sublimes. Algumas brigas em pequenos, que importa? Natividade -sorriu, ergueu-se, foi porta, deu com o filho Pedro, que vinha -explicar-se. - ---Mame, Paulo mau. Se mame ouvisse os horrores que elle solta pela -bca fra, mame morria de medo. Custa-me muito no ir cara delle; -ainda lhe no tirei um olho... - ---Meu filho, no fales assim, teu irmo. - ---Pois que no se metta commigo, no me aborrea. Que blasphemias que -elle dizia! Como eu rezava por alma de Luiz XVI, elle, para machucar-me -bem, rezava a Robespierre; compoz uma ladainha chamando santo ao outro -e cantarolava baixinho para que papae nem mame ouvissem. Eu sempre lhe -dei alguns cascudos... - ---Ahi est! - ---Mas que elle que me dava primeiro, porque eu punha orelhas de -burro em Robespierre... Ento, eu havia de apanhar calado? - ---Nem calado, nem falando. - ---Ento, como? Apanhar sempre, no ? - ---No, senhor; no quero pancadas; o melhor que esqueam tudo e se -queiram bem. Voc no v como seus paes se querem? As brigas acabaram -de todo. No quero ouvir rusgas nem queixas. Afinal que tem vocs com -um sujeito mau que morreu ha tantos annos? - --- o que eu digo, mas elle no se emenda. - ---Ha de emendar-se; os estudos fazem esquecer creancices. Voc tambem -quando fr medico tem muito que brigar com as molestias e a morte; -melhor que andar dando pancada em seu irmo... Que l isso? No quero -arremeos, Pedro! Socegue, oua-me. - ---Mame sempre contra mim. - ---No sou contra nenhum, sou por ambos, ambos so meus filhos. E -demais gemeos. Anda c, Pedro. No penses que eu desapprovo as tuas -opinies politicas. At gsto; so as minhas, so as nossas. Paulo ha -de tel-as tambem. Na edade delle acceita-se quanta tolice ha, mas o -tempo corrige. Olha, Pedro, a minha esperana que vocs sejam grandes -homens, mas com a condio de serem tambem grandes amigos. - ---Eu estou prompto a ser grande homem, assentiu Pedro com ingenuidade, -quasi com resignao. - ---E grande amigo tambem. - ---Se elle fr, serei. - ---Grandes homens! exclamou Natividade, dando-lhe dous abraos, um para -elle, outro para o irmo quando viesse. - -Mas Paulo veiu logo, e recebeu o abrao inteiro e de verdade. Vinha -tambem queixar-se, e sempre resmungou alguma cousa, mas a me no quiz -ouvil-o, e falou outra vez a linguagem das grandezas. Paulo consentiu -tambem em ser grande. - ---Voc ser medico, disse Natividade a Pedro, e voc advogado. Quero -ver quem faz as melhores curas, e ganha as peiores demandas. - ---Eu, disseram ambos a um tempo. - ---Patetas! Cada um ter a sua carreira especial, a sua sciencia -differente. J esto curados do nariz? J; no ha mais sangue. Agora o -primeiro que ferir seu irmo ser degradado. - -Foi um recurso habil separal-os; um ficava no Rio, estudando medicina, -outro ia para S. Paulo, estudar direito. O tempo faria o resto, no -contando que cada um casava e iria com a mulher para o seu lado. Era a -paz perpetua; mais tarde viria a perpetua amizade. - - - - -CAPITULO XXVII - - -De uma reflexo intempestiva - - -Eis aqui entra uma reflexo da leitora: Mas se duas velhas gravuras os -levam a murro e sangue, contentar-se-ho elles com a sua esposa? No -querero a mesma e unica mulher? - -O que a senhora deseja, amiga minha, chegar j ao capitulo do amor -ou dos amores, que o seu interesse particular nos livros. Dahi a -habilidade da pergunta, como se dissesse: Olhe que o senhor ainda nos -no mostrou a dama ou damas que tm de ser amadas ou pleiteadas por -estes dous jovens inimigos. J estou canada de saber que os rapazes -no se do ou se do mal; a segunda ou terceira vez que assisto s -blandicias da me ou aos seus ralhos amigos. Vamos depressa ao amor, s -duas, se no uma s a pessoa... - -Francamente, eu no gosto de gente que venha adivinhando e compondo um -livro que est sendo escripto com methodo. A insistencia da leitora em -falar de uma s mulher chega a ser impertinente. Supponha que elles -devras gostem de uma s pessoa; no parecer que eu conto o que a -leitora me lembrou, quando a verdade que eu apenas escrevo o que -succedeu e pde ser confirmado por dezenas de testemunhas? No, senhora -minha, no puz a penna na mo, espreita do que me viessem suggerindo. -Se quer compr o livro, aqui tem a penna, aqui tem papel, aqui tem um -admirador; mas, se quer ler smente, deixe-se estar quieta, v de linha -em linha; dou-lhe que boceje entre dous capitulos, mas espere o resto, -tenha confiana no relator destas aventuras. - - - - -CAPITULO XXVIII - - -O resto certo - - -Sim, houve uma pessoa, mais moa que elles, um a dous annos, que os -agrilhoou, fora de costume ou de natureza, se no foi de ambas as -cousas. Antes d'essa, pde ser que houvesse outras e mais velhas que -elles, mas de taes no rezam as notas que servem a este livro. Se -brigaram por ellas, no ficou memoria disso, mas possivel, dado que -tivessem tido as mesmas preferencias; no caso contrario tambem, como -succedia aos cavalleiros que defendiam a sua dama. - -Conjecturas tudo. Era natural que, assim bonitos, eguaes, elegantes, -dados vida e ao passeio, conversao e dana, finalmente -herdeiros, era natural que mais de uma menina gostasse delles. As que -os viam passar a cavallo, praia fra ou rua acima, ficavam namoradas -daquella ordem perfeita de aspecto e de movimento. Os proprios cavallos -eram eguaesinhos, quasi gemeos, e batiam as patas com o mesmo rythmo, -a mesma fora e a mesma graa. No creias que o gesto da cauda e das -crinas fosse simultaneo nos dous animaes; no verdade e pde fazer -duvidar do resto. Pois o resto certo. - - - -CAPITULO XXIX - - -A pessoa mais moa - - -A pessoa mais moa no entra j neste capitulo por uma razo valiosa, -que a conveniencia de apresentar primeiro os paes. No que se -no possa vel-a bem sem elles; pde-se, os trez so diversos, acaso -contrarios, e, por mais especial que a acheis, no preciso que os -paes estejam presentes. Nem sempre os filhos reproduzem os paes. Cames -affirmou que de certo pae s se podia esperar tal filho, e a sciencia -confirma esta regra poetica. Pela minha parte creio na sciencia como na -poesia, mas ha excepes, amigo. Succede, s vezes, que a natureza faz -outra cousa, e nem por isso as plantas deixam de crescer e as estrellas -de luzir. O que se deve crr sem erro que Deus Deus; e, se alguma -rapariga arabe me estiver lendo, ponha-lhe Allah. Todas as linguas vo -dar ao cu. - - - - -CAPITULO XXX - - -A gente Baptista - - -A gente Baptista conheceu a gente Santos em no sei que fazenda da -provincia do Rio. No foi Maric, embora alli tivesse nascido o pae dos -gemeos; seria em qualquer outro municipio. Fosse qual fosse, alli que -se conheceram as duas familias, e como morassem proximas em Botafogo, a -assiduidade e a sympathia vieram ajudando o caso fortuito. - -Baptista, o pae da donzella, era homem de quarenta e tantos annos, -advogado do civel, ex-presidente de provincia e membro do partido -conservador. A ida fazenda tivera por objecto exactamente uma -conferencia politica para fins eleitoraes, mas to esteril que elle -tornou de l sem, ao menos, um ramo de esperana. Apesar de ter amigos -no governo, no alcanra nada, nem deputao, nem presidencia. -Interrompra a carreira desde que foi exonerado daquelle cargo a -pedido, disse o decreto, mas as queixas do exonerado fariam crr outra -cousa. De facto, perdera as eleies, e attribuia a esse desastre -politico a demisso do cargo. - ---No sei o que que elle queria que eu fizesse mais, dizia Baptista -falando do ministro. Cerquei egrejas; nenhum amigo pediu policia que eu -no mandasse; processei talvez umas vinte pessoas, outras foram para a -cadeia sem processo. Havia de enforcar gente? Ainda assim houve duas -mortes no Ribeiro das Moas. - -O final era excessivo, porque as mortes no fram obra delle; quando -muito, elle mandou abafar o inquerito, si se pde chamar inquerito a -uma simples conversao sobre a ferocidade dos dous defuntos. Em summa, -as eleies fram incruentas. - -Baptista dizia que por causa das eleies perdera a presidencia, -mas corria outra verso, um negocio de aguas, concesso feita a um -hespanhol, a pedido do irmo da esposa do presidente. O pedido era -verdadeiro, a imputao de socio que era falsa. No importa; tanto -bastou para que a folha da opposio dissesse que houve naquillo um -bom arranjo de familia, accrescentando que, como era de aguas, devia -ser negocio limpo. A folha da administrao retorquiu que, se aguas -havia, no eram bastantes para lavar o sujo do carvo deixado pela -ultima presidencia liberal, um fornecimento de palacio. No era exacto; -a folha da opposio reviveu o processo antigo e mostrou que a defeza -fra cabal. Podia parar aqui, mas continuou que, como agora estavamos -em Hespanha, o presidente emendou o poeta hespanhol, autor daquelle -epitaphio: - - Cuados y juntos: - Es cierto que estan difuntos; - -e emendou-o por no ser obrigado a matar ninguem, antes deu vida a si e -aos seus, dizendo pela nossa lingua: - - Cunhados e cunhadissimos; - certo que so vivissimos! - -Baptista acudiu depressa ao mal, declarando sem effeito a concesso, -mas isso mesmo serviu opposio para novos arremeos: Temos a -confisso do reu! foi o titulo do primeiro artigo que rendeu folha -da opposio o acto do presidente. Os correspondentes tinham j -escripto para o Rio de Janeiro falando da concesso, e o governo acabou -por demittir o seu delegado. Em verdade, s os politicos cuidaram do -negocio. D. Claudia apenas alludia campanha da imprensa, que foi -violentissima. - ---No valia a pena sair daqui, disse Natividade. - ---L isso no, baroneza! - -E D. Claudia affirmou que valia. Soffre-se, mas paciencia. Era to bom -chegar provincia! Tudo annunciado, as visitas a bordo, o desembarque, -a posse, os comprimentos... Ver a magistratura, o funcionalismo, a -officialidade, muita calva, muito cabello branco, a flor da terra, -emfim, com as suas cortezias longas e demoradas, todas em angulo ou em -curva, e os louvores impressos. As mesmas descomposturas da opposio -eram agradaveis. Ouvir chamar tyranno ao marido, que ella sabia ter -um corao de pomba, ia bem alma della. A sde de sangue que se lhe -attribuia, elle que nem bebia vinho, o guante de ferro de um homem -que era uma luva de pellica, a immoralidade, a desfaatez, a falta de -brio, todos os nomes injustos, mas fortes, que ella gostava de ler, -como verdades eternas, onde iam elles agora? A folha da opposio era -a primeira que D. Claudia lia em palacio. Sentia-se vergastada tambem -e tinha nisso uma grande volupia, como si fosse na propria pelle; -almoava melhor. Onde iam os lategos daquelle tempo? Agora mal podia -ler o nome delle impresso no fim de algumas razes do foro, ou ento na -lista das pessoas que iam visitar o imperador. - ---Nem sempre, explicou D. Claudia; Baptista muito acanhado; vae de -longe em longe a S. Christovo, para no parecer que se faz lembrado, -como se isto fosse crime; ao contrario, no ir nunca que pde parecer -arrufo. Note que o imperador nunca deixou de recebel-o com muita -benevolencia, e a mim tambem. Nunca esqueceu o meu nome. J deixei de -l ir dous annos, e quando appareci, perguntou-me logo: Como vae, D. -Claudia? - -Afra essas saudades do poder, D. Claudia era uma creatura feliz. A -viveza das palavras e das maneiras, os olhos que pareciam no ver nada - fora de no pararem nunca, e o sorriso benevolo, e a admirao -constante, tudo nella era ajustado a curar as melancolias alheias. -Quando beijava ou mirava as amigas era como se as quizesse comer vivas, -comer de amor, no de odio, mettel-as em si, muito em si, no mais fundo -de si. - -Baptista no tinha as mesmas expanses. Era alto e o ar socegado dava -um bom aspecto de governo. S lhe faltava aco, mas a mullher podia -inspirar-lh'a; nunca deixou de consultal-a nas crises da presidencia. -Agora mesmo, se lhe dsse ouvidos, j teria ido pedir alguma cousa -ao governo, mas neste ponto era firme, de uma firmeza que nascia da -fraqueza: Ho de chamar-me, deixa estar, dizia elle a D. Claudia, -quando apparecia alguma vaga de governo provincial. Certo que elle -sentia a necessidade de tornar vida activa. Nelle a politica era -menos uma opinio que uma sarna; precisava coar-se a miudo e com fora. - - - - -CAPITULO XXXI - - -Flora - - -Tal era aquelle casal de politicos. Um filho, se elles tivessem um -filho varo, podia ser a fuso das suas qualidades oppostas, e talvez -um homem de Estado. Mas o cu negou-lhes essa consolao dynastica. - -Tinham uma filha unica, que era tudo o contrario d'elles. Nem a paixo -de D. Claudia, nem o aspecto governamental de Baptista distinguia a -alma ou a figura da joven Flora. Quem a conhecesse por esses dias, -poderia comparal-a a um vaso quebradio ou flor de uma s manh, e -teria materia para uma doce elegia. J ento possuia os olhos grandes -e claros, menos sabedores, mas dotados de um mover particular, que -no era o espalhado da me, nem o apagado do pae, antes mavioso e -pensativo, to cheio de graa que faria amavel a cara de um avarento. -Pe-lhe o nariz aquilino, rasga-lhe a bca meio risonha, formando tudo -um rosto comprido, alisa-lhe os cabellos ruivos, e ahi tens a moa -Flora. - -Nasceu em agosto de 1871. A me, que datava por ministerios, nunca -negou a edade da filha: - ---Flora nasceu no ministerio Rio-Branco, e foi sempre to facil de -aprender, que j no ministerio Sinimb sabia ler escrever correntemente. - -Era retrahida e modesta, avssa a festas publicas, e difficilmente -consentiu em aprender a danar. Gostava de musica, e mais do piano que -do canto. Ao piano, entregue a si mesma, era capaz de no comer um -dia inteiro. Ha ahi o seu tanto de exagerado, mas a hyperbole deste -mundo, e as orelhas da gente andam j to entupidas que s fora de -muita rhetorica se pde metter por ellas um sopro de verdade. - -At aqui nada ha que extraordinariamente distinga esta moa das outras, -suas contemporaneas, desde que a modestia vae com a graa, e em certa -edade to natural o devaneio como a travessura. Flora, aos quinze -annos, dava-lhe para se metter comsigo. Ayres, que a conheceu por esse -tempo, em casa de Natividade, acreditava que a moa viria a ser uma -inexplicavel. - ---Como diz? inquiriu a me. - ---Verdadeiramente, no digo nada, emendou Ayres; mas, se me permitte -dizer alguma cousa, direi que esta moa resume as raras prendas de sua -me. - ---Mas eu no sou inexplicavel, replicou D. Claudia sorrindo. - ---Ao contrario, minha senhora. Tudo est, porem, na definio que -dermos a esta palavra. Talvez no haja nenhuma certa. Supponhamos uma -creatura para quem no exista perfeio na terra, e julgue que a mais -bella alma no passa de um ponto de vista; se tudo muda com o o ponto -de vista, a perfeio... - ---A perfeio copas, insinuou Santos. - -Era um convite ao voltarete. Ayres no teve animo de acceitar, to -inquieta lhe pareceu Flora, com os olhos nelle, interrogativos, -curiosos de saber porque que ella era ou viria a ser inexplicavel. -Alm disso, preferia a conversao das mulheres. delle esta phrase do -_Memorial:_ Na mulher, o sexo corrige a banalidade; no homem, aggrava. - -No foi preciso acceitar nem recusar o convite de Santos; chegaram dous -habituados do jogo, e com elles Baptista, que estava na saleta proxima, -Santos foi ao recreio de todas as noites. Um daquelles era o velho -Placido, doutor em spiritismo; o segundo era um corretor da praa, -chamado Lopes, que amava as cartas pelas cartas, e sentia menos perder -dinheiro que partidas. L se fram ao voltarete, emquanto Ayres ficava -no salo, a ouvir a um canto as damas, sem que os olhos de Flora se -despegassem d'elle. - - - - -CAPITULO XXXII - - -O aposentado - - -J ento este ex-ministro estava aposentado. Regressou ao Rio de -Janeiro, depois de um ultimo olhar s cousas vistas, para aqui viver -o resto dos seus dias. Podia fazel-o em qualquer cidade, era homem de -todos os climas, mas tinha particular amor sua terra, e por ventura -estava canado de outras. No attribuia a esta tantas calamidades. A -febre amarella, por exemplo, fora de a desmentir l fra, perdeu-lhe -a f, e c dentro, quando via publicados alguns casos, estava j -corrompido por aquelle credo que attribue todas as molestias a uma -variedade de nomes. Talvez porque era homem sadio. - -No mudra inteiramente; era o mesmo ou quasi. Encalveceu mais, -certo, ter menos carnes, algumas rugas; ao cabo, uma velhice rija de -sessenta annos. Os bigodes continuam a trazer as pontas finas e agudas. -O passo firme, o gesto grave, com aquelle toque de galanteria, que -nunca perdeu. Na botoeira, a mesma flor eterna. - -Tambem a cidade no lhe pareceu que houvesse mudado muito. Achou algum -movimento mais, alguma opera menos, cabeas brancas, pessoas defuntas; -mas a velha cidade era a mesma. A propria casa delle no Cattete estava -bem conservada. Ayres despediu o inquilino, to polidamente como se -recebesse o ministro dos negocios estrangeiros, e metteu-se nella a si -e a um criado, por mais que a irm teimasse em leval-o para Andarahy. - ---No, mana Rita, deixe-me ficar no meu canto. - ---Mas eu sou a sua ultima parenta, disse ella. - ---De sangue e de corao, isso , concordou elle; pde accrescentar que -a melhor de todas e a mais pia. Onde esto aquelles cabellos...? No -precisa baixar os olhos. Voc os cortou para metter no caixo de seu -finado marido. Os que ahi esto embranqueceram; mas os que l ficaram -eram pretos, e mais de uma viuva os teria guardado todos para as -segundas nupcias. - -Rita gostou de ouvir aquella referencia. Outr'ora, no; pouco depois de -viuva, tinha vexame de um acto to sincero; achava-se quasi ridicula. -Que valia cortar os cabellos por haver perdido o melhor dos maridos? -Mas, andando o tempo, entrou a ver que fizera bem, a approvar que lh'o -dissessem, e, na intimidade, a lembral-o. Agora serviu a alluso para -replicar: - ---Pois se eu sou isso, porque que voc prefere viver com extranhos? - ---Que extranhos? No vou viver com ninguem. Viverei com o Cattete, o -largo do Machado, a praia de Botafogo e a do Flamengo, no falo das -pessoas que l moram, mas das ruas, das casas, dos chafarizes e das -lojas. Ha l cousas exquisitas, mas sei eu se venho achar em Andarahy -uma casa de pernas para o ar, por exemplo? Contentemo-nos do que -sabemos. L os meus ps andam por si. Ha alli cousas petrificadas e -pessoas immortaes, como aquelle Custodio da confeitaria, lembra-se? - ---Lembra-me, a _Confeitaria do Imperio._ - ---Ha quarenta annos que a estabeleceu; era ainda no tempo em que os -carros pagavam imposto de passagem. Pois o diabo est velho, mas no -acaba; ainda me ha de enterrar. Parece rapaz; apparece-me l todas as -semanas. - ---Voc tambem parece rapaz. - ---No brinque, mana; eu estou acabado. Sou um velho gamenho, pde ser; -mas no por agradar a moas, porque me ficou este geito... E a -proposito, porque no vae voc morar commigo? - ---Ah! para saber que tambem eu gosto de estar commigo. Irei l de vez -em quando, mas j no saio d'aqui, se no para o cemiterio. - -Ajustaram visitar um ao outro; Ayres viria jantar s quinta-feiras. -D. Rita ainda lhe falou dos casos de molestia d'elle, ao que Ayres -replicou que no adoecia nunca, mas se adoecesse viria para Andarahy; -o corao della era o melhor dos hospitaes. Talvez que em todas essas -recusas houvesse tambem a necessidade de fugir contradico, porque a -irm sabia inventar occasies de dissidencia. Naquelle mesmo dia (era -ao almoo) elle achou o caf delicioso, mas a irm disse que era ruim, -obrigando-o a um grande esforo para tornar atraz e achal-o detestavel. - -A principio, Ayres cumpriu a solido, separou-se da sociedade, -metteu-se em casa, no apparecia a ninguem ou a raros e de longe em -longe. Em verdade estava canado de homens e de mulheres, de festas -e de vigilias. Fez um programma. Como era dado a letras classicas, -achou no padre Bernardes esta traduco daquelle psalmo: Alonguei-me -fugindo e morei na soedade. Foi a sua divisa. Santos, se lh'a dessem, -fal-a-hia esculpir, entrada do salo, para regalo dos seus numerosos -amigos. Ayres deixou-a estar em si. Alguma vez gostava de a recitar -calado, parte pelo sentido, parte pela linguagem velha: Alonguei-me -fugindo e morei na soedade. - -Assim foi a principio, s quinta-feiras ia jantar com a irm. s -noites passeava pelas praias, ou pelas ruas do bairro. O mais do tempo -era gasto em ler e reler, compr o _Memorial_ ou rever o composto, -para relembrar as cousas passadas. Estas eram muitas e de feio -diversa, desde a alegria at a melancolia, enterramentos e recepes -diplomaticas, uma braada de folhas seccas, que lhe pareciam verdes -agora. Alguma vez as pessoas eram designadas por um X ou ***, e elle -no acertava logo quem fossem, mas era um recreio procural-as, achal-as -e completal-as. - -Mandou fazer um armario envidraado, onde metteu as reliquias da vida, -retratos velhos, mimos de governos e de particulares, um leque, uma -luva, uma fita e outras memorias femininas, medalhas e medalhes, -camafeus, pedaos de ruinas gregas e romanas, uma infinidade de cousas -que no nomeio, para no encher papel. As cartas no estavam l, viviam -dentro de uma mala, catalogadas por letras, por cidades, por linguas, -por sexos. Quinze ou vinte davam para outros tantos capitulos e seriam -lidas com interesse e curiosidade. Um bilhete, por exemplo, um bilhete -encardido e sem data, moo como os bilhetes velhos, assignado por -iniciaes, um M e um P, que elle traduzia com saudades. No vale a pena -dizer o nome. - - - - -CAPITULO XXXIII - - -A solido tambem cana - - -Mas tudo cana, at a solido. Ayres entrou a sentir uma ponta -de aborrecimento; bocejava, cochilava, tinha sede de gente viva, -extranha, qualquer que fosse, alegre ou triste. Mettia-se por bairros -excentricos, trepava aos morros, ia s egrejas velhas, s ruas novas, - Copacabana e Tijuca. O mar alli, aqui o matto e a vista acordavam -nelle uma infinidade de ecos, que pareciam as proprias vozes antigas. -Tudo isso escrevia, s noites, para se fortalecer no proposito da vida -solitaria. Mas no ha proposito contra a necessidade. - -A gente extranha tinha a vantagem de lhe tirar a solido, sem lhe dar a -conversao. As visitas de rigor que elle fazia eram poucas, breves e -apenas faladas. E tudo isso fram os primeiros passos. A pouco e pouco -sentiu o sabor dos costumes velhos, a nostalgia das salas, a saudade -do riso, e no tardou que o aposentado da diplomacia fosse reintegrado -no emprego da recreao. A solido, tanto no texto biblico, como na -traduco do padre, era archaica. Ayres trocou-lhe uma palavra e o -sentido; Alonguei-me fugindo, e morei entre a gente. - -Assim se foi o programma da vida nova. No que elle j a no -entendesse nem amasse, ou que a no praticasse ainda alguma vez, a -espaos, como se faz uso de um remedio que obriga a ficar na cama ou -na alcova; mas, sarava depressa e tornava ao ar livre. Queria ver a -outra gente, ouvil-a, cheiral-a, gostal-a, apalpal-a, applicar todos os -sentidos a um mundo que podia matar o tempo, o immortal tempo. - - - - -CAPITULO XXXIV - - -Inexplicavel - - -Assim o deixmos, ha apenas dous capitulos, a um canto da sala da gente -Santos, em conversao com as senhoras. Has de lembrar-te que Flora -no despegava os olhos delle, anciosa de saber porque que a achava -inexplicavel. A palavra rasgava-lhe o cerebro, ferindo sem penetrar. -Inexplicavel que era? Que se no explica, sabia; mas que se no explica -porqu? - -Quiz perguntal-o ao conselheiro, mas no achou occasio, e elle saiu -cedo. A primeira vez, porm, que Ayres foi a S. Clemente, Flora -pediu-lhe familiarmente o obsequio de uma definio mais desenvolvida. -Ayres sorriu e pegou na mo da mocinha, que estava de p. Foi s o -tempo de inventar esta resposta: - ---Inexplicavel o nome que podemos dar aos artistas que pintam sem -acabar de pintar. Botam tinta, mais tinta, outra tinta, muita tinta, -pouca tinta, nova tinta, e nunca lhes parece que a arvore arvore, nem -a choupana choupana. Se se trata ento de gente, adeus. Por mais que -os olhos da figura falem, sempre esses pintores cuidam que elles no -dizem nada. E retocam com tanta paciencia, que alguns morrem entre dous -olhos, outros matam-se de desespero. - -Flora achou a explicao obscura; e tu, amiga minha leitora, se acaso -s mais velha e mais fina que ella, pde ser que a no aches mais -clara. Elle que no accrescentou nada, para no ficar incluido entre -os artistas daquella especie. Bateu paternalmente na palma da mo de -Flora, e perguntou pelos estudos. Os estudos iam bem; como que no -iriam bem os estudos? E sentando-se ao p delle, a mocinha confessou -que tinha ideia justamente de aprender desenho e pintura, mas se havia -de pr tinta de mais ou de menos, e acabar no pintando nada, melhor -seria ficar s na musica. A musica ia bem com ella, o francez tambem, e -o inglez. - ---Pois s a musica, o inglez e o francez, concordou Ayres. - ---Mas o senhor promette que no me achar inexplicavel? pergunta ella -com doura. - -Antes que elle respondesse, entrarm na sala os dous gemeos. Flora -esqueceu um assumpto por outro, e o velho pelos rapazes. Ayres no se -demorou mais que o tempo de a ver rir com elles, e sentir em si alguma -cousa parecida com remorsos. Remorsos de envelhecer, creio. - - - - -CAPITULO XXXV - - -Em volta da moa - - -J ento os dous gemeos cursavam, um a Faculdade de Direito, em S. -Paulo; outro a Escola de Medicina, no Rio. No tardaria muito que -saissem formados e promptos, um para defender o direito e o torto da -gente, outro para ajudal-a a viver e a morrer. Todos os contrastes -esto no homem. - -No era tanta a politica que os fizesse esquecer Flora, nem tanta -Flora que os fizesse esquecer a politica. Tambem no eram taes as duas -que prejudicassem estudos e recreios. Estavam na edade em que tudo se -combina sem quebra de essencia de cada cousa. L que viessem a amar a -pequena com egual fora o que se podia admittir desde j, sem ser -preciso que ella os attrahisse de vontade. Ao contrario, Flora ria com -ambos, sem rejeitar nem acceitar especialmente nenhum; pde ser at que -nem percebesse nada. Paulo vivia mais tempo ausente. Quando tornava -pelas frias, como que a achava mais cheia de graa. Era ento que -Pedro multiplicava as suas finezas para se no deixar vencer do irmo, -que vinha prodigo dellas. E Flora recebia-as todas com o mesmo rosto -amigo. - -Note-se--e este ponto deve ser tirado luz,--note-se que os dous -gemeos continuavam a ser parecidos e eram cada vez mais esbeltos. -Talvez perdessem estando juntos, porque a semelhana diminuia em -cada um delles a feio pessoal. Demais, Flora simulava s vezes -confundil-os, para rir com ambos. E dizia a Pedro: - ---Dr. Paulo! - -E dizia a Paulo: - ---Dr. Pedro! - -Em vo elles mudvam da esquerda para a direita e da direita para a -esquerda. Flora mudava os nomes tambem, e os trez acabvam rindo. A -familiaridade desculpava a aco e crescia com ella. Paulo gostava mais -de conversa que de piano; Flora conversava. Pedro ia mais com o piano -que com a conversa; Flora tocava. Ou ento fazia ambas as cousas, e -tocava falando, soltava a rdea aos dedos e lingua. - -Taes artes, postas ao servio de taes graas, eram realmente de -accender os gemeos, e foi o que succedeu pouco a pouco. A me della -cuido que percebeu alguma cousa; mas a principio no lhe deu grande -cuidado. Tambem ella foi menina e moa, tambem se dividiu a si sem se -dar nada a ninguem. Pde ser at que, a seu parecer, fosse um exercicio -necessario aos olhos do espirito e da cara. A questo que estes se -no corrompessem, nem se deixassem ir atraz de cantigas, como diz o -povo, que assim exprime os feitios de Orpheu. Ao contrario, Flora - que fazia de Orpheu, ella que era a cantiga. Opportunamente, -escolheria a um delles, pensava a me. - -A intimidade tinha intervallos grandes, alm das ausencias obrigadas -de Paulo. Apesar de no sair, Pedro no a buscava sempre, nem ella ia -muita vez casa da praia. No se viam dias e dias. Que pensassem um no -outro, possivel; mas no possuo o menor documento disto. A verdade - que Pedro tinha os seus companheiros de escola, os namoros de rua -e de aventura, os partidos de theatro, os passeios Tijuca e outros -arrabaldes. Ao demais, os dous gemeos estavam ainda no ponto de falar -della nas cartas, louval-a, descrevel-a, dizer mil cousas doces, sem -ciume. - - - - -CAPITULO XXXVI - - -A discordia no to feia como se pinta - - -A discordia no to feia como se pinta, meu amigo. Nem feia, nem -esteril. Conta s os livros que tem produzido, desde Homero at c, sem -excluir... Sem excluir qual? Ia dizer que este, mas a Modestia acena-me -de longe que pare aqui. Paro aqui; e viva a Modestia, que mal supporta -a letra capital que lhe ponho, a letra e os vivas, mas ha de ir com -ella e com elles. Viva a Modestia, e excluamos este livro; fiquem s -os grandes livros epicos e tragicos, a que a Discordia deu vida, e -digam-me se tamanhos effeitos no provam a grandeza da causa. No, a -discordia no to feia como se pinta. - -Teimo nisto para que as almas sensiveis no comecem de tremer pela moa -ou pelos rapazes. No ha mister tremer, tanto mais que a discordia dos -dous comeou por um simples accordo, naquella noite. Costeavam a praia, -calados, pensando s, at que ambos, como se falassem para si, soltaram -esta phrase unica: - ---Est ficando bem bonita. - -E voltando-se um para outro: - ---Quem? - -Ambos sorriram; acharam pico ao simultaneo da reflexo e da pergunta. -Sei que este phenomeno tal qual o do capitulo XXV, quando elles -disseram da edade, mas no me culpem a mim; eram gemeos, podiam ter -o falar gemeo. O principal que no se amofinram; no era ainda -amor o que sentiam. Cada um expoz a sua opinio cerca das graas da -pequena, o gesto, a voz, os olhos e as mos, tudo com to boa sombra, -que excluia a ideia de rivalidade. Quando muito, divergiam na escolha -da melhor prenda, que para Pedro eram os olhos, e para Paulo a figura; -mas como acabavam achando um total harmonico, era visto que no -brigavam por isso. Nenhum delles attribuia ao outro a cousa vaga ou o -qur quer que era que principiavam a sentir, e mais pareciam esthetas -que enamorados. Alis, a mesma politica os deixou em paz essa noite: -no brigaram por ella. No que no sentissem alguma cousa opposta, - vista da praia e do cu, que estavam deliciosos. Lua cheia, agua -quieta, vozes confusas e esparsas, algum tilbury a passo ou a trote, -segundo ia vasio ou com gente. Tal ou qual brisa fresca. - -A imaginao os levou ento ao futuro, a um futuro brilhante, como elle - em tal edade. Botafogo teria um papel historico, uma enseada imperial -para Pedro, uma Veneza republicana para Paulo, sem doge, nem conselho -dos dez, ou ento um doge com outro titulo, um simples presidente, que -se casaria em nome do povo com este pequenino Adriatico. Talvez o doge -fosse elle mesmo. Esta possibilidade, apesar dos annos verdes, enfunou -a alma do moo. Paulo viu-se testa de uma republica, em que o antigo -e o moderno, o futuro e o passado se mesclassem, uma Roma nova, uma -Conveno Nacional, a Republica Franceza e os Estados-Unidos da America. - -Pedro, sua parte, construia a meio caminho como um palacio para a -representao nacional, outro para o imperador, e via-se a si mesmo -ministro e presidente do conselho. Falava, dominava o tumulto e as -opinies, arrancava um voto Camara dos deputados ou ento expedia -um decreto de dissoluo. uma minucia, mas merece inseril-a aqui: -Pedro, sonhando com o governo, pensava especialmente nos decretos de -dissoluo. Via-se em casa, com o acto assignado, referendado, copiado, -mandado aos jornaes e s Camaras, lido pelos secretarios, archivado -na secretaria, e os deputados saindo cabisbaixos, alguns resmungando, -outros irados. S elle estava tranquillo, no gabinete, recebendo os -amigos que iam comprimental-o e pedir os recados para a provincia. - -Taes eram as grandes pinceladas da imaginao dos dous. As estrellas -recebiam no cu todos os pensamentos dos rapazes, a lua seguia quieta -e a vaga da praia estirava-se com a preguia do costume. Voltaram a si -ao p de casa. Tal ou qual impulso quiz leval-os a discutir cerca do -tempo e da noite, da temperatura e da enseada. Algum murmurio vago pde -ser que lhes fizesse mover os beios e comear a quebrar o silencio, -mas o silencio era to augusto que concordram em respeital-o. E logo -achram de si para si, que a lua era esplendida, a enseada bella e a -temperatura divina. - - - - -CAPITULO XXXVII - - -Desaccordo no accordo - - -No esquea dizer que, em 1888, uma questo grave e gravissima os fez -concordar tambem, ainda que por diversa razo. A data explica o facto: -foi a emancipao dos escravos. Estavam ento longe um do outro, mas a -opinio uniu-os. - -A differena unica entre elles dizia respeito significao da -reforma, que para Pedro era um acto de justia, e para Paulo era o -inicio da revoluo. Elle mesmo o disse, concluindo um discurso em -S. Paulo, no dia 20 de maio: A abolio a aurora da liberdade; -esperemos o sol; emancipado o preto, resta emancipar o branco. - -Natividade ficou attonita quando leu isto; pegou da penna e escreveu -uma carta longa e maternal. Paulo respondeu com trinta mil expresses -de ternura, declarando no fim que tudo lhe poderia sacrificar, -inclusive a vida e at a honra; as opinies que no. No, mame; as -opinies que no. - ---As opinies que no, repetiu Natividade acabando de ler a carta. - -Natividade no acabava de entender os sentimentos do filho, ella que -sacrificra as opinies aos principios, como no caso de Ayres, e -continuou a viver sem macula. Como ento no sacrificar...? No achava -explicao. Relia a phrase da carta e a do discurso; tinha medo de o -ver perder a carreira politica, se era a politica que o faria grande -homem. Emancipado o preto, resta emancipar o branco, era uma ameaa -ao imperador e ao imperio. - -No atinou... Nem sempre as mes atinam. No atinou que a phrase do -discurso no era propriamente do filho; no era de ninguem. alguem a -proferiu um dia, em discurso ou conversa, em gazeta ou em viagem de -terra ou de mar. Outrem a repetiu, at que muita gente a fez sua. Era -nova, era energica, era expressiva, ficou sendo patrimonio commum. - -Ha phrases assim felizes. Nascem modestamente, como a gente pobre; -quando menos pensam, esto governando o mundo, semelhana das ideias. -As proprias ideias nem sempre conservam o nome do pae; muitas apparecem -orphs, nascidas de nada e de ninguem. Cada um pega dellas, verte-as -como pde, e vae leval-as feira, onde todos as tm por suas. - - - - -CAPITULO XXXVIII - - -Chegada a proposito - - -Quando, s duas horas da tarde do dia seguinte, Natividade se metteu no -bonde, para ir a no sei que compras na rua do Ouvidor, levava a phrase -comsigo. A vista da enseada no a distraiu, nem a gente que passava, -nem os incidentes da rua, nada; a phrase ia diante e dentro della, com -o seu aspecto e tom de ameaa. No Cattete, alguem entrou de salto, -sem fazer parar o vehiculo. Adivinha que era o conselheiro; adivinha -tambem que, posto o p no estribo, e vendo logo adiante a nossa amiga, -caminhou para l rapido e acceitou a ponta do banco que ella lhe -offereceu. Depois dos primeiros comprimentos: - ---Pareceu-me vel-a olhar assustada, disse Ayres. - ---Naturalmente, no imaginei que fosse capaz deste acto de gymnastica. - ---Questo de costume. As pernas saltam por si mesmas. Um dia, deixam-me -cair, as rodam passam por cima... - ---Fosse como fosse, chegou a proposito. - ---Chego sempre a proposito. J lhe ouvi isso, uma vez, ha muitos -annos, ou foi a sua irm... Ora, espere, no me esqueceu o motivo; -creio que falavam da cabocla do Castello. No se lembra de uma tal ou -qual cabocla que morava no Castello, e adivinhava a sorte da gente? -Eu estava aqui de licena, e ouvi dizer cousas do arco da velha. Como -sempre tive f em Sybillas, acreditei na cabocla. Que fim levou ella? - -Natividade olhou para elle, como receiando se teria adivinhado ento -a consulta que ella fez cabocla. Pareceu-lhe que no, sorriu e -chamou-lhe incredulo. Ayres negou que fosse incredulo; ao contrario, -sendo tolerante, professava virtualmente todas as crenas deste mundo. -E concluiu: - ---Mas, emfim, porque que chego a proposito? - -Ou o passado, ou a pessoa, com as suas maneiras discretas e espirito -repousado, ou tudo isso junto, dava a este homem, relativamente a esta -senhora, uma confiana que ella no achava agora em ninguem, ou acharia -em poucos. Falou-lhe de uma confidencia, um papel que no mostraria ao -marido. - ---Quero um conselho, conselheiro; e demais, para que incommodar a meu -marido? Quando muito, contarei o negocio a mana Perpetua. Acho melhor -no dizer nada a Agostinho. - -Ayres concordou que no valia a pena aborrecel-o se era caso disso, e -esperou. Natividade, sem falar da cabocla, contou primeiro a rivalidade -dos filhos, j manifesta em politica, e tratando especialmente de -Paulo, repetiu-lhe a phrase da carta e perguntou o que compria fazer -mais util. Ayres entendeu que que eram ardores da mocidade. Que no -teimasse; teimando, elle mudaria de palavras, mas no de sentimentos. - ---Ento cr que Paulo ser sempre isto? - ---Sempre, no digo; tambem no digo o contrario. Baroneza, a senhora -exige respostas definitivas, mas diga-me o que que ha definitivo -neste mundo, a no ser o voltarete de seu marido? Esse mesmo falha. -Ha quantos dias no sei o que uma licena? verdade que no tenho -apparecido. E depois, o prazer da conversao paga bem o das cartas. -Aposto que os homens casados que l vo so de outro parecer? - ---Talvez. - ---S os solteires podem avaliar as ideias das mulheres. Um viuvo sem -filhos, como eu, vale por um solteiro; minto, aos sessenta annos, como -eu, vale por dous ou trez. Quanto ao joven Paulo, no pense mais no -discurso. tambem eu discursei em rapaz. - ---J cuidei em casal-os. - ---Casar bom, assentiu Ayres. - ---No digo casar j, mas daqui a dous ou trez annos. Talvez faa -antes uma viagem com elles. Que lhe parece? Vamos l, no me responda -repetindo o que eu digo. Quero o seu pensamento verdadeiro. Acha que -uma viagem?... - ---Acho que uma viagem... - ---Acabe. - ---As viagens fazem bem, mormente na edade delles. Formam-se para o -anno, no ? Pois ento! Antes de comear qualquer carreira, casados ou -no, util ver outras terras... Mas que necessidade tem a senhora de -ir com elles? - ---As mes... - ---Mas eu tambem (desculpe interrompel-a) mas eu tambem sou seu filho. -No acha que o costume, o bom rosto, a graa, a affeio e todas as -prendas grisalhas que a adornam compem uma especie maternidade? Eu -confesso-lhe que ficaria orpho. - ---Pois venha comnosco. - ---Ah! baroneza, para mim ja no ha mundo que valha um bilhete de -passagem. Vi tudo por varias linguas. Agora o mundo comea aqui no -caes da Gloria ou na rua do Ouvidor e acaba no cemiterio de S. Joo -Baptista. Ouo que ha uns mares tenebrosos para os lados da Ponta do -Caj, mas eu sou um velho incredulo, como a senhora dizia ha pouco, -e no acceito essas noticias sem prova cabal e visual, e para ir -averigual-as, faltam-me pernas. - ---Sempre gracioso! No as vi treparem agora? Sua irm disse-me outro -dia que o senhor anda como aos trinta annos. - ---Rita exagera. Mas, voltando viagem, a senhora ainda no comprou os -bilhetes? - ---No. - ---No os encommendou sequer? - ---Tambem no. - ---Ento, pensemos em outra cousa. Cada dia traz a sua occupao, quanto -mais as semanas e os mezes. Pensemos em outra cousa, e deixe l o Paulo -pedir a republica. - -Natividade achou comsigo que elle tinha razo; depois, pensou em -outra cousa, e esta foi a ideia do principio. No disse logo o que -era; preferiu conversar alguns minutos. No era difficil com este -sujeito. Uma das suas qualidades era falar com mulheres, sem descair na -banalidade nem subir s nuvens; tinha um modo particular, que no sei -se estava na ideia, se no gesto, se na palavra. No que falasse mal -de ninguem, e alis seria uma distraco. Quero crr que no dissesse -mal por indifferena ou cautella; provisoriamente, ponhamos caridade. - ---Mas, a senhora ainda me no disse o que queria de mim, alm do -conselho. Ou no quer mais nada? - ---Custa-me pedir-lhe. - ---Pea sempre. - ---Sabe que os meus dous gemeos no combinam em nada, ou s em pouco, -por mais esforos que eu tenha feito para os trazer a certa harmonia. -Agostinho no me ajuda; tem outros cuidados. Eu mesma j no me sinto -com foras, e ento pensei que um amigo, um homem moderado, um homem de -sociedade, habil, fino, cautelloso, intelligente, instruido... - ---Eu, em summa? - ---Adivinhou. - ---No adivinhei; o meu retrato em pessoa. Mas ento que lhe parece -que possa fazer? - ---Pde corrigil-os por boas maneiras, fazel-os unidos, ainda quando -discordem, e que discordem pouco ou nada. No imagina; parece at -proposito. No discordam da cr da lua, por exemplo, mas aos onze -annos, Pedro descobriu que as sombras da lua eram nuvens, e Paulo -que eram falhas da nossa vista, e atracaram-se; eu que os separei. -Imagine em politica... - ---Imagine em amores, diga logo; mas no propriamente para este caso... - ---Oh! no! - ---Para os outros egualmente inutil, mas eu nasci para servir, ainda -inutilmente. Baroneza, o seu pedido equivale a nomear-me aio ou -preceptor... No faa gestos; no me dou por diminuido. Comtanto que -me pague os ordenados... E no se assuste; peo pouco, pague-me em -palavras; as suas palavras so de ouro. J lhe disse que toda a minha -aco inutil. - ---Porque? - --- inutil. - ---Uma pessoa de autoridade, como o senhor, pde muito, comtanto que os -ame, por que elles so bons, creia. Conhece-os bem? - ---Pouco. - ---Conhea-os mais e ver. - -Ayres concordou rindo. Para Natividade valia por uma tentativa nova. -Confiava na aco do conselheiro, e para dizer tudo... No sei se -diga... Digo. Natividade contava com a antiga inclinao do velho -diplomata. As cans no lhe tirariam o desejo de a servir. No sei quem -me l nesta occasio. Se homem, talvez no entenda logo, mas se -mulher creio que entender. Se ninguem entender, paciencia; baste saber -que elle prometteu o que ella quiz, e tambem prometteu calar-se; foi a -condio que a outra lhe poz. Tudo isso polido, sincero e incredulo. - - - - -CAPITULO XXXIX - - -Um gatuno - - -Chegaram ao largo da Carioca, apearam-se e despediram-se; ella entrou -pela rua Gonalves Dias, elle enfiou pela da Carioca. No meio desta, -Ayres encontrou um magote de gente parada, logo depois andando em -direco ao largo. Ayres quiz arrepiar caminho, no de medo, mas de -horror. Tinha horror multido. Viu que a gente era pouca, cincoenta -ou sessenta pessoas, e ouviu que bradava contra a priso de um homem. -Entrou n'um corredor, espera que o magote passasse. Duas praas -de policia traziam o preso pelo brao. De quando em quando, este -resistia, e ento era preciso arrastal-o ou foral-o por outro methodo. -Tratava-se, ao que parece, do furto de uma carteira. - ---No furtei nada! bradava o preso detendo o passo. falso! -Larguem-me! sou um cidado livre! Protesto! protesto! - ---Siga para a estao! - ---No sigo! - ---No siga! bradava a gente anonyma. No siga! no siga! - -Uma das praas quiz convencer a multido que era verdade, que o sujeito -furtara uma carteira, e o desassocego pareceu minorar um pouco; mas, -indo a praa a andar com a outra e o preso,--cada uma pegando-lhe um -dos braos, a multido recomeou a bradar contra a violencia. O preso -sentiu-se animado, e ora lastimoso, ora aggressivo, convidava a defeza. -Foi ento que a outra praa desembainhou a espada para fazer um claro. -A gente voou, no airosamente, como a andorinha ou a pomba, em busca -do ninho ou do alimento, voou de atropello, pula aqui, pula alli, pula -acol, para todos os lados. A espada entrou na bainha, e o preso seguiu -com as praas. Mas logo os peitos tomaram vingana das pernas, e um -clamor ingente, largo, desaffrontado, encheu a rua e a alma do preso. A -multido fez-se outra vez compacta e caminhou para a estao policial. -Ayres seguiu caminho. - -A vozeria morreu pouco a pouco, e Ayres entrou na Secretaria do -Imperio. No achou o ministro, parece, ou a conferencia foi curta. -Certo que, saindo praa, encontrou partes do magote que tornavam -commentando a priso e o ladro. No diziam ladro, mas gatuno, fiando -que era mais doce, e tanto bradavam ha pouco contra a aco das praas, -como riam agora das lastimas do preso. - ---Ora o sujeito! - -Mas ento?... perguntars tu. Ayres no perguntou nada. Ao cabo, havia -um fundo de justia naquella manifestao dupla e contradictoria; foi o -que elle pensou. Depois, imaginou que a grita da multido protestante -era filha de um velho instincto de resistencia autoridade. Advertiu -que o homem, uma vez creado, desobedeceu logo ao Creador, que alis -lhe dera um paraiso para viver; mas no ha paraiso que valha o gosto -da opposio. Que o homem se acostume s leis, v; que incline o collo - fora e ao bel-prazer, v tambem; o que se d com a planta, quando -sopra o vento. Mas que abenoe a fora e cumpra as leis sempre, sempre, -sempre, violar a liberdade primitiva, a liberdade do velho Ado. Ia -assim cogitando o conselheiro Ayres. - -No lhe attribuam todas essas ideias. Pensava assim, como se falasse -alto, mesa ou na sala de alguem. Era um processo de critica mansa e -delicada, to convencida em apparencia, que algum ouvinte, cata de -ideias, acabava por lhe apanhar uma ou duas... - -Ia a descer pela rua Sete de Setembro, quando a lembrana da vozeria -trouxe a de outra, maior e mais remota. - - - - -CAPITULO XL - - -Recuerdos - - -Essa outra vozeria maior e mais remota no caberia aqui, se no fosse -a necessidade de explicar o gesto repentino com que Ayres parou na -calada. Parou, tornou a si e continuou a andar com os olhos no cho e -a alma em Caracas. Foi em Caracas, onde elle servira na qualidade de -addido de legao. Estava em casa, de palestra com uma actriz da moda, -pessoa chistosa e garrida. De repente, ouviram um clamor grande, vozes -tumultuosas, vibrantes, crescentes... - ---Que rumor este, Carmen? perguntou elle entre duas caricias. - ---No se assuste, amigo meu; o governo que cae. - ---Mas eu ouo acclamaes... - ---Ento o governo que sobe. No se assuste. Amanh tempo de ir -comprimental-o. - -Ayres deixou-se ir rio abaixo daquella memoria velha, que lhe surdia -agora do alarido de cincoenta ou sessenta pessoas. Essa especie de -lembranas tinha mais effeito nelle que outras. Recompoz a hora, o -logar e a pessoa da sevilhana. Carmen era de Sevilla. O ex-rapaz ainda -agora recordava a cantiga popular que lhe ouvia, despedida, depois de -rectificar as ligas, compr as saias, e cravar o pente no cabello,--no -momento em que ia deitar a mantilha, meneando o corpo com graa: - - Tienen las sevillanas, - En la mantilla, - Um letrero que dice: - Viva Sevilla! - - -No posso dar a toada, mas Ayres ainda a trazia de cr, e vinha a -repetil-a comsigo, vagarosamente, como ia andando. Outrosim, meditava -na ausencia de vocao diplomatica. A asceno de um governo,--de -um regimen que fosse,--com as suas ideias novas, os seus homens -frescos, leis e acclamaes, valia menos para elle que o riso da joven -comediante. Onde iria ella? A sombra da moa varreu tudo o mais, a -rua, a gente, o gatuno, para ficar s deante do velho Ayres, dando aos -quadris e cantarolando a trova andaluza: - - Tienen las sevillanas - En la mantilla... - - - - -CAPITULO XLI - - -Caso do burro - - -Se Ayres obedecesse ao seu gosto, e eu a elle, nem elle continuaria a -andar, nem eu comearia este capitulo; ficariamos no outro, sem nunca -mais acabal-o. Mas no ha na memoria que dure, se outro negocio mais -forte puxa pela atteno, e um simples burro fez desapparecer Carmen e -a sua trova. - -Foi o caso que uma carroa estava parada, ao p da travessa de S. -Francisco, sem deixar passar um carro, e o carroceiro dava muita -pancada no burro da carroa. Vulgar embora, este espectaculo fez -parar o nosso Ayres, no menos condoido do asno que do homem. A fora -despendida por este era grande, porque o asno ruminava se devia ou no -sair do logar; mas, no obstante esta superioridade, apanhava que era o -diabo. J havia algumas pessoas paradas, mirando. Cinco ou seis minutos -durou esta situao; finalmente o burro preferiu a marcha pancada, -tirou a carroa do logar e foi andando. - -Nos olhos redondos do animal viu Ayres uma expresso profunda de -ironia e paciencia. Pareceu-lhe o gesto largo de espjrito invencivel. -Depois leu nelles este monologo: Anda, patro, atalha a carroa de -carga para ganhar o capim de que me alimentas. Vive de p no cho para -comprar as minhas ferraduras. Nem por isso me impedirs que te chame um -nome feio, mas eu no te chamo nada; ficas sendo sempre o meu querido -patro. Emquanto te esfalfas em ganhar a vida, eu vou pensando que o -teu dominio no vale muito, uma vez que me no tiras a liberdade de -teimar... - ---V-se, quasi que se lhe ouve a reflexo, notou Ayres comsigo. - -Depois ria de si para si, e foi andando. Inventra tanta cousa no -servio diplomatico, que talvez inventasse o monologo do burro. Assim -foi; no lhe leu nada nos olhos, a no ser a ironia e a paciencia, mas -no se pde ter que lhes no dsse uma forma de palavra, com as suas -regras de syntaxe. A propria ironia estaria acaso na retina delle. O -olho do homem serve de photographia ao invisivel, como o ouvido serve -de eco ao silencio. Tudo que o dono tenha um lampejo de imaginao -para ajudar a memoria a esquecer Caracas e Carmen, os seus beijos e -experiencia politica. - - - - -CAPITULO XLII - - -Uma hypothese - - -Vises e reminiscencias iam assim comendo o tempo e o espao ao -conselheiro, a ponto de lhe fazerem esquecer o pedido de Natividade; -mas no o esqueceu de todo, e as palavras trocadas ha pouco surdiam-lhe -das pedras da rua. Considerou que no perdia muito em estudar os -rapazes. Chegou a apanhar uma hypothese, especie de andorinha, que -avoaa entre arvores, abaixo e acima, pousa aqui, pousa alli, arranca -de novo um surto e toda se despeja em movimentos. Tal foi a hypothese -vaga e colorida, a saber, que se os gemeos tivessem nascido delle -talvez no divergissem tanto nem nada, graas ao equilibrio do seu -espirito. A alma do velho entrou a ramalhar no sei que desejos -retrospectivos, e a rever essa hypothese, outra Caracas, outra Carmen, -elle pae, estes meninos seus, toda a andorinha que se dispersava n'um -farfalhar calado de gestos. - - - - -CAPITULO XLIII - - -O discurso - - -Natividade que no teve distraces de especie alguma. Toda ella -estava nos filhos, e agora especialmente na carta e no discurso. -Comeou por no dar resposta s effuses politicas de Paulo; foi um -dos conselhos do conselheiro. Quando o filho tornou pelas ferias tinha -esquecido a carta que escrevra. O discurso que elle no esqueceu, -mas quem que esquece os discursos que faz? Se so bons, a memoria os -grava em bronze; se ruins, deixam tal ou qual amargor que dura muito. O -melhor dos remedios, no segundo caso, suppol-os excellentes, e, se a -razo no acceita esta imaginao, consultar pessoas que a acceitem, e -crr nellas. A opinio um velho oleo incorruptivel. - -Paulo tinha talento. O discurso daquelle dia podia peccar aqui ou alli -por alguma emphasis, e uma ou outra ideia vulgar e exhausta. Tinha -talento Paulo. Em summa, o discurso era bom. Santos achou-o excellente, -leu-o aos amigos e resolveu transcrevel-o nos jornaes. Natividade no -se oppoz, mas entendia que algumas palavras deviam ser cortadas. - ---Cortadas, porque? perguntou Santos, e ficou esperando a resposta. - ---Pois voc no v, Agostinho; estas palavras tem sentido republicano, -explicou ella relendo a phrase que a affligira. - -Santos ouviu-as ler, leu-as para si, e no deixou de lhe achar razo. -Entretanto, no havia de as supprimir. - ---Pois no se transcreve o discurso. - ---Ah! isso no! O discurso magnifico, e no ha de morrer em S. Paulo; - preciso que a Crte o leia, e as provincias tambem, e at no se me -daria fazel-o traduzir em francez. Em francez, pde ser que fique ainda -melhor. - ---Mas, Agostinho, isto pde fazer mal carreira do rapaz; o imperador -pde ser que no goste... - -Pedro, que assistia desde alguns instantes ao debate, interveiu -docemente para dizer que os receios da me no tinham base; era bom por -a phrase toda, e, a rigor, no difteria muito do que os liberaes diziam -em 1848. - ---Um monarchista liberal pde muito bem assignar esse trecho, concluiu -elle depois de reler as palavras do irmo. - ---Justamente! assentiu o pae. - -Natividade, que em tudo via a inimizade dos gemeos, suspeitou que o -intuito de Pedro fosse justamente comprometter Paulo. Olhou para elle -a ver se lhe descobria essa inteno torcida, mas a cara do filho -tinha ento o aspecto do enthusiasmo. Pedro lia trechos do discurso, -accentuando as bellezas, repetindo as phrases mais novas, cantando as -mais redondas, revolvendo-as na bca, tudo com to boa sombra que a me -perdeu a suspeita, e a reimpresso do discurso foi resolvida. Tambem -se tirou uma edio em folheto, e o pae mandou encadernar ricamente -sete exemplares, que levou aos ministros, e um ainda mais rico para a -Regente. - ---Voc diga-lhe, aconselhou Natividade, que o nosso Paulo liberal -ardente... - ---Liberal de 1848, completou Santos lembrando as palavras de Pedro. - -Santos cumpriu tudo risca. A entrega se fez naturalmente, e, no -palacio Isabel, a definio do liberal de 1848 saiu mais viva que -as outras palavras, ou para diminuir o cheiro revolucionario da -phrase condemnada pela mulher, ou porque trazia valor historico. -Quando elle voltou a casa, a primeira cousa que lhe disse foi que a -Regente perguntara por ella, mas apesar de lisongeada com a lembrana, -Natividade quiz saber da impresso que lhe fizera o discurso, se j o -lra. - ---Parece que foi boa. Disse-me que j havia lido o discurso. Nem por -isso deixei de lhe dizer que os sentimentos de Paulo eram bons; que, se -lhes notavamos certo ardor, comprehendiamos sempre que elles eram os de -um liberal de 1848... - ---Papae disse isso? perguntou Pedro. - ---Porque no, se verdade? Paulo o que se pde chamar um liberal de -1848, repetiu Santos querendo convencer o filho. - - - - -CAPITULO XLIV - - -O salmo - - -Pelas frias que Paulo soube da interpretao que o pae dera -Regente daquelle trecho do discurso. Protestou contra ella, em casa; -quiz fazel-o tambem em publico, mas Natividade interveiu a tempo. Ayres -pz agua na fervura, dizendo ao futuro bacharel: - ---No vale a pena, moo; o que importa que cada um tenha a suas -ideias e se bata por ellas, at que ellas venam. Agora que outros as -interpretem mal cousa que no deve affligir o autor. - ---Affligir, sim, senhor; pde parecer que assim mesmo... Vou escrever -um artigo a proposito de qualquer cousa, e no deixarei duvidas... - ---Para que? inquiriu Ayres. - ---No quero que supponham... - ---Mas quem duvida dos seus sentimentos? - ---Podem duvidar. - ---Ora, qual! Em todo caso, v primeiro almoar commigo um dia destes... -Olhe, v domingo, e seu irmo Pedro tambem. Seremos trez meza, um -almoo de rapazes. Beberemos certo vinho que me deu o ministro da -Allemanha... - -No domingo fram os dous ao Cattete, menos pelo almoo que pelo -amphytrio. Ayres era amado dos dous; gostavam de ouvil-o, de -interrogal-o, pediam-lhe anecdotas politicas de outro tempo, descripo -de festas, noticias de sociedade. - ---Vivam os meus dous jovens, disse o conselheiro, vivam os meus dous -jovens que no esqueceram o amigo velho. Papae como est? E mame? - ---Esto bons, disse Pedro. - -Paulo accrescentou que ambos lhe mandavam lembranas. - ---E tia Perpetua? - ---Tambem est boa, disse Paulo. - ---Sempre com a homoepathia e as suas historias do Paraguay, -accrescentou Pedro. - -Pedro estava alegre, Paulo preoccupado. Depois das primeiras saudaes -e noticias, Ayres notou essa differena, e achou que era bom para tirar -a monotonia da semelhana; mas, emfim, no queria caras fechadas, e -indagou do estudante de direito o que que elle tinha. - ---Nada. - ---No pde ser; acho-lhe um ar meio sorumbatico. Pois eu acordei -disposto a rir, e desejo que ambos riam commigo. - -Paulo rosnou uma palavra que nenhum delles entendeu e saccou do bolso -um mao de folhas de de papel. Era um artigo... - ---Um artigo? - ---Um artigo em que tiro todas as duvidas a meu respeito, e peo ao -senhor que me oua, pequeno. Escrevi-o a noite passada. - -Ayres propoz ouvil-o depois do almoo, mas o rapaz pediu que fosse -logo, e Pedro concordou com esto alvitre, allegando que, sobre o -almoo, podia perturbar a digesto, como ruim droga que devia ser, -naturalmente. Ayres metteu o caso bulha e acceitou ouvir o artigo. - --- pequeno, sete tiras. - ---Letra miuda? - ---No, senhor; assim, assim. - -Paulo leu o artigo. Tinha por epigraphe isto de Ams: Ouvi esta -palavra, vaccas gordas que estaes no monte de Samaria... As vaccas -gordas eram o pessoal do regimen, explicou Paulo. No atacava o -imperador, por atteno me, mas com o principio e o pessoal era -violento e aspero. Ayres sentiu-lhe aquillo que, em tempo, se chamou a -bossa da combatividade. Quando Paulo acabou, Pedro disse em ar de mofa: - ---Conheo tudo isso, so ideias paulistas. - ---As tuas so ideias coloniaes, replicou Paulo. - -Deste introito podiam nascer peores palavras, mas felizmente um criado -chegou porta annunciando que o almoo estava na mesa. Ayres ergueu-se -e disse que mesa daria a sua opinio. - ---Primeiro o almoo, tanto mais que temos um salmo, cousa especial. -Vamos a elle. - -Ayres queria cumprir deveras o officio que acceitara de Natividade. -Quem sabe se a ideia de pae espiritual dos gemeos, pae de desejo -somente, pae que no foi, que teria sido, no lhe dava uma affeio -particular e um dever mais alto que o de simples amigo? Nem fra de -proposito que elle buscasse smente materia nova para as paginas nuas -de seu _Memorial._ - -Ao almoo, ainda se falou do artigo, Paulo com amor, Pedro com desdem, -Ayres sem uma nem outra cousa. O almoo ia fazendo o seu officio. Ayres -estudava os dous rapazes e suas opinies. Talvez estas no passassem de -uma erupo de pelle da edade. E sorria, fazia-os comer e beber, chegou -a falar de moas, mas aqui os rapazes, vexados e respeitosos, no -acompanharam o ex-ministro. A politica veiu morrendo. Na verdade, Paulo -ainda se declarou capaz de derribar a monarchia com dez homens, e Pedro -de extirpar o germen republicano com um decreto. Mas o ex-ministro, sem -mais decreto que uma caarola, nem mais homens que o seu cozinheiro, -envolveu os dous regimens no mesmo salmo delicioso. - - - - -CAPITULO XLV - - -Musa, canta... - - -No fim do almoo, Ayres deu-lhes uma citao de Homero, alis duas, uma -para cada um, dizendo-lhes que o velho poeta os cantara separadamente, -Paulo no comeo da _Illiada_: - ---Musa, canta a colera de Achilles, filho de Peleu, colera funesta aos -gregos, que precipitou estancia de Pluto tantas almas vlidas de -heroes, entregues os corpos s aves e aos ces... - -Pedro estava no comeo da _Odyssea_: - ---Musa, canta aquelle heroe astuto, que errou por tantos tempos, -depois de destruida a santa Illion... - -Era um modo de definir o caracter de ambos, e nenhum delles levou -a mal a applicao. Ao contrario, a citao poetica valia por um -diploma particular. O facto que ambos sorriram de f, de acceitao, -de agradecimento, sem que achassem uma palavra ou syllaba com que -desmentissem o adequado dos versos. Que elle, o conselheiro, depois de -os citar em prosa nossa, repetiu-os no proprio texto grego e os dous -gemeos sentiram-se ainda mais picos, to certo que traduces no -valem originaes. O que elles fizeram foi dar um sentido deprimente ao -que era applicavel ao irmo: - ---Tem razo, Sr. conselheiro,--disse Paulo,--Pedro um velhaco... - ---E voc um furioso... - ---Em grego, meninos, em grego e em verso, que melhor que a nossa -lingua e a prosa do nosso tempo. - - - - -CAPITULO XLVI - - -Entre um acto e outro - - -Aquelles almoos repetiram-se, os mezes passaram, vieram frias, -acabaram-se frias, e Ayres penetrava bem os gemeos. Escrevia-os no -_Memorial_, onde se l que a consulta ao velho Placido dizia respeito -aos dous, e mais a ida cabocla do Castello e a briga antes de nascer, -casos velhos e obscuros que elle relembrou, ligou e decifrou. - -Emquanto os mezes passam, faze de conta que ests no theatro, entre um -acto e outro, conversando. L dentro preparam a scena, e os artistas -mudam de roupa. No vs l; deixa que a dama, no camarim, ria com os -seus amigos o que chorou c fra com os espectadores. Quanto ao jardim -que se est fazendo, no te exponhas a vel-o pelas costas; pura lona -velha sem pintura, porque s a parte do espectador que tem verdes e -flores. Deixa-te estar c fra no camarote desta senhora. Examina-lhe -os olhos; tem ainda as lagrimas que lhe arrancou a a dama da pea. -Fala-lhe da pea e dos artistas. Que obscura. Que no sabem os -papeis. Ou ento que que tudo sublime. Depois percorre os camarotes -com o binoculo, distribue justia, chama bellas s bellas e feias s -feias, e no te esqueas de contar anecdotas que desfeiem as bellas, -e virtudes que componham as feias. As virtudes devem ser grandes e -as anecdotas engraadas. Tambem as ha banaes, mas a mesma banalidade -na bca de um bom narrador faz-se rara e preciosa. E vers como as -lagrimas sccam inteiramente, e a realidade substitue a fico. Falo -por imagem; sabes que tudo aqui verdade pura e sem choro. - - - - -CAPITULO XLVII - - -S. Matheus, IV, 1-10 - - -Se ha muito riso quando um partido sobe, tambem ha muita lagrima do -outro que desce, e do riso e da lagrima se faz o primeiro dia da -situao, como no Genesis. Venhamos ao evangelista que serve de titulo -ao capitulo. Os liberaes fram chamados ao poder, que os conservadores -tiveram de deixar. No mister dizer que o abatimento de Baptista foi -enorme. - ---Justamente agora que eu tinha esperanas, disse elle mulher. - ---De qu? - ---Ora de qu! de uma presidencia. No disse nada, porque podiam falhar, -mas quasi certo que no. Tive duas conferencias, no com ministros, -mas com pessoa influente que sabia, e era negocio de esperar um mez ou -dous... - ---Presidencia boa? - ---Boa. - ---Se voc tivesse trabalhado bem... - ---Se tivesse trabalhado bem, podia estar j de posse, mas vinhamos -agora a toque de caixa. - ---Isso verdade, concordou D. Claudia olhando para o futuro. - -Baptista passeava, as mos nas costas, os olhos no cho, suspirando, -sem prever o tempo em que os conservadores tornariam ao poder. Os -liberaes estavam fortes e resolutos. As mesmas ideias pairavam na -cabea de D. Claudia. Este casal s no era egual na vontade; as ideias -eram muitas vezes taes que, se apparecessem c fra, ninguem diria -quaes eram as delle, nem quaes as della, pareciam vir de um cerebro -unico. Naquelle momento nenhum achava esperana immediata ou remota. -Uma s ideia vaga... E foi aqui que a vontade de D. Claudia fincou os -ps no cho e cresceu. No falo s por imagem; D. Claudia levantou-se -da cadeira, rapida, e disparou esta pergunta ao marido: - ---Mas, Baptista, voc o que que espera mais dos conservadores? - -Baptista parou com um ar digno e respondeu com simplicidade: - ---Espero que subam. - ---Que subam? Espera oito ou dez annos, o fim do seculo, no ? E nessa -occasio voc sabe se ser aproveitado? Quem se lembrar de voc? - ---Posso fundar um jornal. - ---Deixe-se de jornaes. E se morrer? - ---Morro no meu posto de honra. - -D. Claudia olhou fixa para elle. Os seus olhos miudos enterravam-se -pelos delle abaixo, como duas verrumas pacientes. Subito, levantando as -mos abertas: - ---Baptista, voc nunca foi conservador! - -O marido empallideceu e recuou, como se ouvira a propria ingratido de -um partido. Nunca fra conservador? Mas que era elle ento, que podia -ser neste mundo? Que que lhe dava a estima dos seus chefes? No lhe -faltava mais nada... D. Claudia no attendeu a explicaes; repetiu-lhe -as palavras, e accrescentou. - ---Voc estava com elles, Como a gente est n'um baile, onde no -preciso ter as mesmas ideias para danar a mesma quadrilha. - -Baptista sorriu leve e rapido; amava as imagens graciosas e aquella -pareceu-lhe graciosissima, tanto que concordou logo; mas a sua estrella -inspirou-lhe uma refutao prompta. - ---Sim, mas a gente no dana com ideias, dana com pernas. - ---Dance com que fr, a verdade que todas as suas ideias iam para os -liberaes; lembre-se que os dissidentes na provincia accusavam a voc de -apoiar os liberaes... - ---Era falso; o governo que me recommendava moderao. Posso mostrar -cartas. - ---Qual moderao! Voc liberal. - ---Eu liberal? - ---Um liberalo, nunca foi outra cousa. - ---Pense no que diz, Claudia. Se alguem a ouvir capaz de crr, e dahi -a espalhar... - ---Que tem que espalhe? Espalha a verdade, espalha a justia, porque os -seus verdadeiros amigos no o ho de deixar na rua, agora que tudo se -organisa. Voc tem amigos pessoaes no ministerio; porque que os no -procura? - -Baptista recuou com horror. Isto de subir as escadas do poder e -dizer-lhe que estava s ordens no era concebivel sequer. D. Claudia -admittiu que no, mas um amigo faria tudo, um amigo intimo do governo -que dissesse ao Ouro-Preto: Visconde, voc porque que no convida -o Baptista? Foi sempre liberal nas ideias. D-lhe uma presidencia, -pequena que seja, e... - -Baptista fez um gesto de hombros, outro de mo que se calasse. A -mulher no se calou; foi dizendo as mesmas cousas, agora mais graves -pela insistencia e pelo tom. Na alma do marido a catastrophe era j -tremenda. Pensando bem, no recusaria passar o Rubicon; s lhe faltava -a fora necessaria. Quizera querer. Quizera no ver nada, nem passado, -nem presente, nem futuro, no saber de homens nem de cousas, e obedecer -aos dados da sorte, mas no podia. - -E faamos justia ao homem. Quando elle pensava s na fidelidade aos -amigos sentia-se melhor; a mesma f existia, o mesmo costume, a mesma -esperana. O mal vinha de olhar para o lado de l; e era D. Claudia que -lhe mostrava com o dedo a carreira, a alegria, a vida, a marcha certa e -longa, a presidencia, o ministerio... Elle torcia os olhos e ficava. - -A ss comsigo, Baptista pensou muita vez na situao pessoal e -politica. Apalpava-se moralmente. Claudia podia ter razo. Que que -havia nelle propriamente conservador, a no ser esse instincto de -toda creatura, que a ajuda a levar este mundo? Viu-se conservador em -politica, porque o pae o era, o tio, os amigos da casa, o vigario da -parochia, e elle comeou na escola a execrar os liberaes. E depois no -era propriamente conservador, mas _saquarema_, como os liberaes eram -_luzias._ Baptista agarrava-se agora a estas designaes obsoletas e -deprimentes que mudavam o estylo aos partidos; donde vinha que hoje -no havia entre elles o grande abysmo de 1842 e 1848. E lembrava-se -do visconde de Albuquerque ou de outro senador que dizia em discurso -no haver nada mais parecido com um conservador que um liberal, e -vice-versa. E evocava exemplos, o partido progressista, Olinda, Nabuco, -Zacharias, que fram elles seno conservadores que comprehenderam -os tempos novos e tiraram s ideias liberaes aquelle sangue das -revolues, para lhes pr uma cr viva, sim, mas serena. Nem o mundo -era dos emperrados... Neste ponto passou-lhe um frio pela espinha. -Justamente nessa occasio appareceu Flora. O pae abraou-a com amor, e -perguntou-lhe se queria ir para alguma provincia, sendo elle presidente. - ---Mas os conservadores no cairam? - ---Cairam, sim, mas suppe que... - ---Ah! no, papae! - ---No, porqu? - ---No desejo sair do Rio de Janeiro. - -Talvez o Rio de Janeiro para ella fosse Botafogo, e propriamente a -casa de Natividade. O pae no apurou as causas da recusa; suppol-as -politicas, e achou novas foras para resistir s tentaes de D. -Claudia: Vae-te, Satanaz; porque escripto est: Ao Senhor teu Deus -adorars, e a elle servirs. E seguiu-se como na Escriptura: Ento -o deixou o Diabo; e eis que chegaram os anjos e o serviram. Os anjos -fram s um, que valia por muitos; e o pae lhe disse beijando-a -carinhosamente: - ---Muito bem, muito bem, minha filha. - ---No , papae? - -No, no foi a filha que tolheu a desero do pae. Ao contrario. -Baptista, se tivesse de ceder, cederia mulher ou ao Diabo, synonimos -neste capitulo. No cedeu de fraqueza. No tinha a fora precisa de -trahir os amigos, por mais que estes parecessem havel-o abandonado. -Ha dessas virtudes feitas de acanho e timidez, e nem por isso menos -lucrativas, moralmente falando. No valem s stoicos e martyres. -Virtudes meninas tambem so virtudes. certo, porm, que a linguagem -delle, em relao aos liberaes, no era j de odio ou impaciencia; -chegava tolerancia, roava pela justia. Concordava que a alternao -dos partidos era um principio de necessidade publica. O que fazia era -animar os amigos. Tornariam cedo ao poder. Mas D. Claudia opinava o -contrario; para ella, os liberaes iriam ao fim do seculo. Quando muito, -admittiu que na primeira entrada no dssem logar a um converso da -ultima hora; era preciso esperar um anno ou dous, uma vaga na camara, -uma commisso, a vice-presidencia do Rio... - - - - -CAPITULO XLVIII - - -Terpsichore - - -Nenhuma dessas cousas preoccupava Natividade. Mais depressa cuidaria -do baile da ilha Fiscal, que se realisou em novembro para honrar os -officiaes chilenos. No que ainda danasse, mas sabia-lhe bem ver -danar os outros, e tinha agora a opinio de que a dana um prazer -dos olhos. Esta opinio um dos effeitos daquelle mau costume de -envelhecer. No pegues tal costume, leitora. Ha outros tambem ruins, -nenhum peor, este o pessimo. Deixa l dizerem philosophos que a -velhice um estado util pela experiencia e outras vantagens. No -envelheas, amiga minha, por mais que os annos te convidem a deixar a -primavera; quando muito, acceita o estio. O estio bom, callido, as -noites so breves, certo, mas as madrugadas no trazem neblina, e o -cu apparece logo azul. Assim danars sempre. - -Bem sei que ha gente para quem a dana antes um prazer dos olhos. Nem -as bailadeiras so outra cousa mais que mulheres de officio. Tambem -eu, se licito citar alguem a si mesmo, tambem eu acho que a dana -antes prazer dos olhos que dos ps, e a razo no s dos annos longos -e grisalhos, mas tambem outra que no digo, por no valer a pena. Ao -cabo, no estou contando a minha vida, nem as minhas opinies, nem -nada que no seja das pessoas que entram no livro. Estas que preciso -pr aqui integralmente com as suas virtudes e imperfeies, se as tm. -Entende-se isto, sem ser preciso notal-o, mas no se perde nada em -repetil-o. - -Por exemplo, D. Claudia. tambem ella pensava no baile da ilha Fiscal, -sem a menor ideia de danar, nem a razo esthetica da outra. Para ella, -o baile da ilha era um facto politico, era o baile do ministerio, -uma festa liberal, que podia abrir ao marido as portas de alguma -presidencia. Via-se j com a familia imperial. Ouvia a princeza: - ---Como vae, D. Claudia? - ---Perfeitamente bem, Serenissima senhora. - -E Baptista conversaria com o imperador, a um canto, deante dos olhos -invejosos que tentariam ouvir o dialogo, fora de os fitarem de -longe. O marido que... No sei que diga do marido relativamente ao -baile da ilha. Contava l ir, mas no se acharia a gosto; pde ser que -traduzissem esse acto por meia converso. No que s fossem liberaes -ao baile, tambem iriam conservadores, e aqui cabia bem o aphorismo de -D. Claudia que no preciso ter as mesmas ideias para danar a mesma -quadrilha. - -Santos que no precisava de ideias para danar. No danaria sequer. -Em moo danou muito, quadrilhas, polkas, valsas, a valsa arrastada -e a valsa pulada, como diziam ento, sem que eu possa definir melhor -a differena; presumo que na primeira os ps no saiam de cho, e na -segunda no caiam do ar. Tudo isso at os vinte e cinco annos. Ento os -negocios pegaram delle e o metteram naquella outra contradana, em que -nem sempre se volta ao mesmo logar ou nunca se se delle. Santos saiu -e j sabemos onde est. UItimamente teve a fantasia de ser deputado. -Natividade abanou a cabea, por mais que elle explicasse que no queria -ser orador nem ministro, mas to smente fazer da camara um degrau para -o senado, onde possuia amigos, pessoas de merecimento, e que era eterno. - ---Eterno? interrompeu ella com um sorriso fino e descorado. - ---Vitalicio, quero dizer. - -Natividade teimou que no, que a posio delle era commercial e -bancaria. Accrescentou que politica era uma cousa e industria outra. -Santos replicou, citando o baro de Mau, que as fundiu ambas. Ento a -mulher declarou por um modo secco e duro que aos sessenta annos ninguem -comea a ser deputado. - ---Mas de passagem; os senadores so edosos. - ---No, Agostinho, concluiu a baroneza com um gesto definitivo. - -No conto Ayres, que provavelmente danaria, a despeito dos annos; -tambem no falo de D. Perpetua, que nem iria l. Pedro iria, e -natural que danasse, e muito, no obstante o afinco e paixo dos -seus estudos. Vivia enfeitiado pela medicina. No quarto de dormir, -alm do busto de Hyppocrates, tinha os retratos de algumas summidades -medicas da Europa, muito esqueleto gravado, muita molestia pintada, -peitos cortados verticalmente para se lhe verem os vasos, cerebros -descobertos, um cancro de lingua, alguns aleijes, cousas todas que a -me, por seu gosto mandaria deitar fra, mas era a sciencia do filho, e -bastava. Contentava-se de no olhar para os quadros. - -Quanto a Flora, ainda verde para os meneios de Terpsichore, era -acanhada ou arrepiada, como dizia a me. E isto era o menos; o mais -era que com pouco se enfadaria, e, se no pudesse vir logo para casa, -ficaria adoentada o resto do tempo. Note-se que, estando na ilha, teria -o mar em volta, e o mar era um dos seus encantos; mas, se lhe lembrasse -o mar, e se consolasse com a esperana de o mirar, advertiria tambem -que a noite escura tolheria a consolao. Que multido de dependencias -na vida, leitor! Umas cousas nascem de outras, enroscam-se, desatam-se, -confundem-se, perdem-se, e o tempo vai andando sem se perder a si. - -Mas donde viria o tedio a Flora, se viesse? Com Pedro no baile, no; -este era, como sabes, um dos dous que lhe queriam bem. Salvo se ella -queria principalmente ao que estava em S. Paulo. Concluso duvidosa, -pois no certo que preferisse um a outro. Se j a vimos falar a -ambos com a mesma sympathia, o que fazia agora a Pedro na ausencia de -Paulo, e faria a Paulo na ausencia de Pedro, no me faltar leitora que -presuma um terceiro... Um terceiro explicaria tudo, um terceiro que no -fosse ao baile, algum estudante pobre, sem outro amigo nem mais casaca -que o corao verde e quente. Pois nem esse, leitora curiosa, nem -terceiro, nem quarto, nem quinto, ninguem mais. Uma exquisitona, como -lhe chamava a me. - -No importa; a exquisitona foi ao baile da ilha Fiscal com a me e o -pae. Assim tambem Natividade, o marido e Pedro, assim Ayres, assim a -demais gente convidada para a grande festa. Foi uma bella ideia do -governo, leitor. Dentro e fra, do mar e de terra, era como ura sonho -veneziano; toda aquella sociedade viveu algumas horas sumptuosas, novas -para uns, saudosas para outros, e de futuro para todos,--ou, quando -menos, para a nossa amiga Natividade--e para o conservador Baptista. - -Aquella considerava o destino dos filhos,--cousas futuras! Pedro bem -podia inaugurar, como ministro, o sculo XX e o terceiro reinado. -Natividade imaginava outro e maior baile naquella mesma ilha. Compunha -a ornamentao, via as pessoas e as danas, toda uma festa magna que -entraria na historia. Tambem ella alli estaria, sentada a um canto, -sem se lhe dar do peso dos annos, uma vez que visse a grandeza e a -prosperidade dos filhos. Era assim que enfiara os olhos pelo tempo -adiante, descontando no presente a felicidade futura, caso viesse a -morrer antes das prophecias, Tinha a mesma sensao que ora lhe dava -aquella cesta de luzes no meio da escurido tranquilla do mar. - -A imaginao de Baptista era menos longa que a de Natividade. Quero -dizer que ia antes do principio do seculo, Deus sabe se antes do fim -do anno. Ao som da musica, vista das galas, ouvia umas feiticeiras -cariocas, que se pareciam com as escossezas; pelo menos, as palavras -eram analogas s que saudaram Macbeth:--Salve, Baptista, ex-presidente -de provincia!--Salve, Baptista, proximo presidente de provincia!-- -Salve, Baptista, tu sers ministro um dia! A linguagem dessas -prophecias era liberal, sem sombra de solecismo. Verdade que elle se -arrependia de as escutar, e forcejava por traduzil-as no velho idioma -conservador, mas j lhe iam faltando diccionarios. A primeira palavra -ainda trazia o sotaque antigo: Salve, Baptista, ex-presidente de -provincia! mas a segunda e a ultima eram ambas daquella outra lingua -liberal, que sempre lhe pareceu lingua de preto. Emfim, a mulher, -como lady Macbeth, dizia nos olhos o que esta dizia pela bca, isto -, que j sentia em si aquellas futuraes. O mesmo lhe repetiu na -manh seguinte, em casa. Baptista, com um sorriso disfarado, descria -das feiticeiras, mas a memoria guardava as palavras da ilha: Salve, -Baptista, proximo presidente! Ao que elle respondia com um suspiro: -No, no, filhas do Diabo... - -Ao contrario do que ficou dito atraz, Flora no se aborreceu na ilha. -Conjecturei mal, emendo-me a tempo. Podia aborrecer-se pelas razes -que l ficara, e ainda outras que poupei ao leitor apressado; mas, em -verdade, passou bem a noite. A novidade da festa, a visinhana do mar, -os navios perdidos na sombra, a cidade defronte com os seus lampies de -gaz, embaixo e em cima, na praia e nos outeiros, eis ahi aspectos novos -que a encantaram durante aquellas horas rapidas. - -No lhe faltavam pares, nem conversao, nem alegria alheia e propria. -Toda ella compartia da felicidade dos outros. Via, ouvia, corria, -esquecia-se do resto para se metter comsigo. Tambem invejava a princeza -imperial, que viria a ser imperatriz um dia, com o absoluto poder de -despedir ministros e damas, visitas e requerentes, e ficar s, no -mais recondito do pao, fartando-se de contemplao ou de musica. Era -assim que Flora definia o officio de governar. Taes ideias passavam e -tornavam. De uma vez alguem lhe disse, como para lhe dar fora: Toda -alma livre imperatriz! - -No foi outra voz, semelhante das feiticeiras do pae nem s que -falavam interiormente a Natividade, acerca dos filhos. No; seria pr -aqui muitas vozes de mysterio, cousa que, alm do fastio da repetio, -mentiria realidade dos factos. A voz que falou a Flora saiu da bca -do velho Ayres, que se fra sentar ao p d'ella e lhe perguntara: - ---Em que que est pensando? - ---Em nada, respondeu Flora. - -Ora, o conselheiro tinha visto no rosto da moa a expresso de alguma -cousa e insistia por ella. Flora disse como pde a inveja que lhe -mettia a vista da princeza, no para brilhar um dia, mas para fugir ao -brilho e ao mando, sempre que quizesse ficar subdita de si mesma. Foi -ento que elle lhe murmurou, como acima: - ---Toda alma livre imperatriz. - -A phrase era boa, sonora, parecia conter a maior somma de verdade que -ha na terra e nos planetas. Valia por uma pagina de Plutarcho. Se algum -politico a ouvisse poderia guardal-a para os seus dias de opposio -ao governo, quando viesse o terceiro reinado. Foi o que elle mesmo -escreveu no _Memorial._ Com esta nota: A meiga creatura agradeceu-me -estas cinco palavras. - - - - -CAPITULO XLIX - - -Taboleta velha - - -Toda a gente voltou da ilha com o baile na cabea muita sonhou com -elle, alguma dormiu mal ou nada. Ayres foi dos que acordaram tarde; -eram onze horas. Ao meio dia almoou; depois escreveu no _Memorial_ as -impresses da vespera, notou varias espaduas, fez reparos politicos e -acabou com as palavras que l ficam no cabo do outro capitulo. Fumou, -leu, at que resolveu ir rua do Ouvidor. Como chegasse vidraa -de uma das janellas da frente, viu porta da confeitaria uma figura -inesperada, o velho Custodio, cheio de melancolia. Era to novo o -espectaculo que alli se deixou estar por alguns instantes; foi ento -que o confeiteiro, levantando os olhos, deu com elle entre as cortinas, -e emquanto Ayres voltava para dentro, Custodio atravessou a rua e -entrou-lhe em casa. - ---Que suba, disse o conselheiro ao criado. - -Custodio foi recebido com a benevolencia de outros dias e um pouco mais -de interesse. Ayres queria saber o que que o entristecia. - ---Vim para contal-o a V.-Ex.; a taboleta. - ---Que taboleta? - ---Queira V.-Ex. ver por seus olhos, disse o confeiteiro, pedindo-lhe o -favor de ir janella. - ---No vejo nada. - ---Justamente, isso mesmo. Tanto me aconselharam que fizesse reformar -a taboleta que afinal consenti, e fil-a tirar por dous empregados. A -visinhana veiu para a rua assistir ao trabalho e parecia rir de mim. -J tinha falado a um pintor da rua da Assembla; no ajustei o preo -porque elle queria ver primeiro a obra. Hontem, tarde, l foi um -caixeiro, e sabe V.-Ex. o que me mandou dizer o pintor? Que a taboa -est velha, e precisa outra; a madeira no aguenta tinta. L fui s -carreiras. No pude convencel-o de pintar na mesma madeira; mostrou-me -que estava rachada e comida de bichos. Pois c debaixo no se via. -Teimei que pintasse assim mesmo; respondeu-me que era artista e no -faria obra que se estragasse logo. - ---Pois reforme tudo. Pintura nova em madeira velha no vale nada. Agora -ver que dura pelo resto da nossa vida. - ---A outra tambem durava; bastava s avivar as letras. - -Era tarde, a ordem fora expedida, a madeira devia estar comprada, -serrada e pregada, pintado o fundo para ento se desenhar e pintar -o titulo. Custodio no disse que o artista lhe perguntra pela cr -das letras, se vermelha, se amarella, se verde em cima de branco ou -vice-versa, e que elle, cautelosamente, indagra do preo de cada cr -para escolher as mais baratas. No interessa saber quaes fram. - -Quaesquer que fossem as cres, eram tintas novas, tboas novas, uma -reforma que elle, mais por economia que por affeio, no quizera -fazer; mas a affeio valia muito. Agora que ia trocar de taboleta -sentia perder algo do corpo,--cousa que outros do mesmo ou diverso ramo -de negocio no comprehenderiam, tal gosto acham em renovar as caras e -fazer crescer com ellas a nomeada. So naturezas. Ayres ia pensando em -escrever uma Philosophia das Taboletas, na qual poria taes e outras -observaes, mas nunca deu comeo a obra. - ---V.-Ex. hade-me perdoar o incommodo que lhe trouxe, vindo contar-lhe -isto, mas V.-Ex. sempre to bom commigo, fala-me com tanta amizade, -que eu me atrevi... Perdoa-me, sim? - ---Sim, homem de Deus. - ---Comquanto V.-Ex. approve a reforma da taboleta, sentir commigo a -separao da outra, a minha amiga velha, que nunca me deixou, que eu, -nas noites de luminarias, por S. Sebastio e outras, fazia apparecer -aos olhos da gente. V.-Ex., quando se aposentou, veiu achal-a no mesmo -logar em que a deixou por occasio de ser nomeado. E tive alma para me -separar della! - ---Est bom, l vae; agora receber a nova, e ver como daqui a pouco -so amigos. - -Custodio saiu recuando, como era seu costume, e desceu tropego as -escadas. Deante da confeitaria deteve-se um instante, para ver o logar -onde estivera a taboleta velha. Deveras, tinha saudades. - - - - -CAPITULO L - - -O tinteiro de Evaristo - - ---...Este caso prova que tudo se pde amar muito bem, ainda um pedao -de madeira velha. Creiam que no era s a despeza que elle naturalmente -sentia, eram tambem saudades. Ninguem se despega assim de um objecto -to intimo, que faz parte integral da casa e da pelle, porque a -taboleta no foi sequer arriada um dia. Custodio no teve occasio de -ver se estava estragada. Vivia alli como as portadas e a parede. - -Era ao jantar, em Botafogo. S quatro pessoas, as duas irms, Santos e -Ayres. Pedro fra jantar a S. Clemente, com a familia Baptista. - -D. Perpetua approvou os sentimentos do confeiteiro. Citou, a proposito, -o tinteiro de Evaristo. A irm sorriu para o marido, e este para a -mulher, como se dissessem: l vem elle! Era um tinteiro que servira -ao famoso jornalista do primeiro reinado e da Regencia, obra simples, -feita de barro, egual aos tinteiros que a gente ch comprava nas lojas -de papel daquelle e deste tempo. O sogro de D. Perpetua, que lh'o dera -em lembrana, tivera um da mesma edade, massa e feio. - ---Veiu assim de mo em mo parar s minhas. No chega aos tinteiros -do mano Agostinho nem de Natividade, que so luxuosos, mas tem grande -valor para mim. - ---Sem duvida, concordou Ayres, valor historico e politico. - ---Meu sogro dizia que delle sairam os grandes artigos da _Aurora._ A -falar verdade, eu nunca li taes artigos, mas meu sogro era homem de -verdade. Conhecia a vida de Evaristo, por ouvil-a a outros, e fazia-lhe -louvores que no acabavam mais... - -Natividade buscou desviar a conversao para o baile da vespera. Tinham -j falado delle, mas no achou outro derivativo. Entretanto, o tinteiro -ainda ficou algum tempo. No era s uma das lembranas de D. Perpetua, -reliquia de familia, era tambem uma de suas ideias. Prometteu mostral-o -ao conselheiro. Elle prometteu vel-o com muito gosto. Confessou que -tinha venerao aos objectos de uso dos grandes homens. Emfim, o jantar -acabou, e elles passaram ao salo. Ayres, falando da enseada: - ---Aqui est uma obra, que mais velha que o tinteiro do Evaristo e a -taboleta do Custodio, e, no obstante, parece mais moa, no verdade, -D. Perpetua? A noite clara e quente; podia ser escura e fria, e o -effeito seria o mesmo. A enseada no differe de si. Talvez os homens -venham algum dia atulhal-a de terra e pedras para levantar casas em -cima, um bairro novo, com um grande circo destinado a corrida de -cavallos. Tudo possvel debaixo do sol e da lua. A nossa felicidade, -baro, que morreremos antes. - ---Nao fale em morte, conselheiro. - ---A morte uma hypothese, redarguiu Ayres, talvez uma lenda. ninguem -morre de uma boa digesto, e os seus charutos so deliciosos. - ---Estes so novos. Perecem-lhe bons? - ---Deliciosos. - -Santos estimou ouvir este louvor; achava-lhe uma inteno directa -sua pessoa, aos seus meritos, ao seu nome, posio que tinha na -sociedade, casa, chacara, ao Banco, aos colletes. talvez muito; -seria um modo emphatico de explicar a fora da ligao delle aos -charutos. Valiam pela taboleta e pelo tinteiro, com a differena que -estes significavam s affeico e venerao, e aquelles, valendo pelo -sabor e pelo preo, tinham a superioridade do milagre, pela reproduco -de todos os dias. - -Taes eram as suspeitas que vagavam no cerebro de Ayres, emquanto elle -olhava mansamente para o amphytrio. Ayres no podia negar a si mesmo a -averso que este lhe inspirava. No lhe queria mal, de certo; podia at -querer-lhe bem, se houvesse um muro entre ambos. Era a pessoa, eram as -sensaes, os dizeres, os gestos, o riso, a alma toda que lhe fazia mal. - - - -CAPITULO LI - - -Aqui presente - - -Perto das nove horas, ou logo depois, chegou Pedro com o casal Baptista -e Flora. - ---Vimos trazer o seu menino, disse Baptista a Natividade. - ---Obrigado, doutor, acudiu Santos, mas elle je no est em edade de -se perder por essas ruas, e, se se perder, acha-se logo, accrescentou -sorrindo. - -Natividade no gostou da graa, tratando-se do filho e ao p della. Era -talvez excesso de pudor. Ha muito excesso nesse sentido, e o acertado - perdoal-o. Ha tambem excessos contrarios, condescendencias faceis, -pessoas que entram com prazer na troca de alluses picantes. tambem se -devem perdoar. Em summa, o perdo chega ao cu. Perdoai-vos uns aos -outros, a lei do Evangelho. - -Elle, o rapaz, que no ouviu nada; interrompera a conversa que trazia -com Flora, e trocadas algumas palavras, os dous fram reatar o fio a um -canto. Ayres reparou na attitude de ambos; ninguem mais lhes prestava -atteno. Ao cabo, a conversa era em voz surda; no os poderiam ouvir. -Ella escutava, elle falava; depois era o contrario, ella que falava, -elle que ouvia, to absortos que pareciam no attender a ninguem, mas -attendiam. Possuiam o sexto sentido dos conspiradores e dos namorados. -Que conversassem de amores, possivel; mas que conspiravam, certo. -Quanto materia da conspirao, podereis sabel-a depois, brevemente, -daqui a um capitulo. O proprio Ayres no descobriu nada, por mais que -quizesse fartar os olhos naquelle dialogo de mysterios. Persuadiu-se -que no era grave, porque elles sorriam com frequencia; mas podia -ser intimo, escondido, pessoal, e acaso extranho. Suppe um fio de -anecdotas ou uma historia comprida, cousa alheia; ainda assim podia ser -delles smente, porque ha estados da alma em que a materia da narrao - nada, o gosto de a fazer e de a ouvir que tudo. Tambem podia ser -isto. - -Vde, porm, como a natureza encaminha as cousas minimas ou maximas, -mormente se a fortuna a ajuda. A conversao to doce, ao que parecia, -comeou por um enfado. A causa foi uma carta de Paulo, escripta ao -irmo, e que este se lembrou de mostrar a Flora, dizendo-lhe que tambem -a mostrra me, e a me se zangra muito. - ---Com o senhor? - ---Com Paulo. - ---Mas que dizia a carta? - -Pedro leu-lhe o ponto principal, que era quasi toda a carta; falava da -questo militar. J havia a questo militar, um conflicto de generaes -e ministros, e a linguagem de Paulo era contra os ministros. - ---Mas porque que o senhor foi mostrar essa carta a sua me? - ---Mame quiz saber o que que elle me dizia. - ---E sua me zangou-se, ahi est; vae talvez reprehendel-o. - ---Tanto melhor; Paulo precisa ser emendado; mas, diga-me, porque que -a senhora defende sempre a meu irmo? - ---Para ter o direito de defender tambem ao senhor. - ---Ento elle j lhe tem falado mal de mim? - -Flora quiz dizer que sim, depois que no, afinal calou. Desconversou, -perguntando porque elles se davam mal. Pedro negou que se dessem mal. -Ao contrario, viviam bem. No teriam as mesmas opinies, e tambem podia -ser que tivessem o mesmo gosto... Daqui a dizer que ambos a amavam era -uma virgula; Pedro pingou o ponto final. Esse astuto era tambem timido. -Mais tarde, comprehendeu que, calando, andou melhor, e deu a si mesmo o -applauso da escolha; mas era falso, no escolhera nada. No digo isto -para fazel-o desmerecer; sim, porque o medo acerta muitas vezes, e -mister deixar aqui esta reflexo. - -Veiu a zanga. Flora no replicou mais nada, e, por seu gosto, no teria -jantado, a tal ponto sentia piedade do outro. Felizmente, o outro era -este mesmo, aqui presente, com os olhos presentes, as mos presentes, -as palavras presentes. No tardou que a zanga fugisse deante da graa, -da brandura e da adorao. Bem-aventurados os que ficam, porque elles -sero compensados. - - - -CAPITULO LII - - -Um segredo - - -Eis agora a materia da conspirao. Na rua, ao virem de S. Clemente, -foi que Pedro, gastado o melhor do tempo com a carta e o jantar, pde -revelar moa um segredo: - ---Titia disse l em casa que D. Claudia lhe contra em segredo (no -diga nada) que seu pae vae ser nomeado presidente de provincia. - ---No sei nada disso, mas no creio, porque papae conservador. - ---D. Claudia disse a titia que elle liberal, quasi radical. Parece -que a presidencia certa; ella pediu segredo, e titia, quando nos -contou, tambem pediu segredo. Eu tambem lhe peo que no diga nada, mas - verdade. - ---Verdade como? Papae no vae com liberaes; o senhor no sabe como -papae conservador. Se elle defende os liberaes porque tolerante. - ---Se a provincia fosse a do Rio de Janeiro, eu gostaria, porque no era -preciso ir morar na Praia Grande, e se elle fosse, a viagem s de -meia hora, eu podia ir l todos os dias. - ---Era capaz? - ---Apostemos. - -Flora, depois de um instante: - ---Para que, se no ha presidencia? - ---Supponha que ha. - --- preciso suppr muito,--que ha presidencia e que a provincia a do -Rio. No, no ha nada. - ---Ento supponha s metade,--que ha presidencia e que Matto-Grosso. - -Flora teve um calefrio. Sem admittir a nomeao, tremeu ao nome da -provincia. Pedro lembrou ainda o Amazonas, Par, Piauhy... Era o -infinito, mormente se o pae fizesse boa administrao, porque no -voltaria to cedo. J agora a moa resistia menos, achava possivel e -abominavel, mas dizia isto para si, dentro do corao. De repente, -Pedro, quasi estacando o passo: - ---Se elle fr, eu peo ao governo o logar de secretario e vou tambem. - -A luz intermittente das lojas reflectindo no resto da moa, medida -que elles iam passando por ellas, ajudava a dos lampies da rua, e -mostrava a emoo daquella promessa. Sentia-se que o corao de Flora -devia estar batendo muito. Em breve, porm, comeou ella a pensar em -outra cousa. Natividade no consentiria nunca; depois, um estudante... -No podia ser. Pensou em algum escandalo. Que elle fugisse, embarcasse, -fosse atraz della... - -Tudo isto era visto ou pensado em silencio. Flora no se admirava -de pensar tanto e to atrevidamente; era como o peso do corpo, que -no sentia: andava, pensava, como transpirava. No calculou sequer -o tempo que ia gastando em imaginar e desfazer ideias. Que isto lhe -dsse mais prazer que desprazer, certo. Ao p della, Pedro ia -naturalmente cuidando, com os olhos nos ps, e os ps nas nuvens. No -sabia que dissesse no meio de to longo silencio. Entretanto, a soluo -parecia-lhe unica. J no pensava na presidencia do Rio. Queria-se com -ella, no ponto mais remoto do imperio, sem o irmo. A esperana de se -desterrarem assim de Paulo verdejou na alma de Pedro. Sim, Paulo no -iria tambem; a me no se deixaria ficar desamparada. Que perdesse um -filho, v; mas ambos... - -A quem quer que este final do monologo parea egoista, peo-lhe -pelas almas dos seus parentes amigos, que esto no cu, peo-lhe -que considere bem as causas. Considere o estado da alma do rapaz, -a contiguidade da moa, as raizes e as flores da paixo, a propria -edade de Pedro, o mal da terra, o bem da mesma terra. Considere mais -a vontade do cu, que vela por todas as creaturas que se querem, -salvo se uma s que quer a outra, porque ento o cu um abysmo de -iniquidades, e no lhe importe esta imagem. Considere tudo, amigo; -deixe-me ir contando s e contando mal o que se passou naquelle curto -transito entre as duas casas. Quando l chegaram, falavam de bca. - -Em cima, como viste, continuaram a falar, at que o assumpto da -presidencia voltou. Flora notou ento a cautelosa insistencia com -que Ayres olhava para elles, como se buscasse adivinhar a materia da -conversao. Sentia que no estivesse alli tambem, ouvindo e falando, -finalmente promettendo fazer alguma cousa por ella. Ayres podia, -sim,--era seu amigo e todos o tinham em grande conta,--podia intervir e -destruir o projecto da presidencia. - -Sem querer nem saber, diria isto mesmo com os olhos ao velho diplomata. -Retirava-os, mas elles iam de si mesmos repetir o monologo, e acaso -perguntar alguma cousa que Ayres no percebia e devia ser interessante. -Pde ser que reflectissem a angustia ou o que quer que era que lhe doia -dentro. Pde ser; a verdade que Ayres comeou a ficar curioso, e to -depressa Pedro deixou o logar para acudir ao chamado da me, deixou -elle Natividade para ir falar moa. - -Flora, j de p, mal teve tempo de trocar duas palavras, dessas -que se no podem interromper sem dr ou prurido, ao menos. Ayres -perguntava-lhe se nunca lhe dissera que sabia adivinhar. - ---No, senhor. - ---Pois sei; adivinhei agora mesmo que me quer dizer um segredo. - -Flora ficou espantada. No querendo negar nem confessar, respondeu-lhe -que s adivinhra metade. - ---A outra ...? - ---A outra pedir-lhe um obsequio de amizade. - ---Pea. - ---No, agora no, j nos vamos embora; mame e papae esto fazendo as -despedidas. S se fr na rua. Quer vir comnosco a S. Clemente? - ---Com o maior prazer. - - - - -CAPITULO LIII - - -De confidencias - - -Entenda-se que no. No era com prazer maior nem menor. Era imposio -de sociedade, desde que Flora o pedira, no sei se discretamente. Que -a isto ligasse tal ou qual desejo de saber algum segredo, no serei -eu que o negue, nem tu, nem elle mesmo. Ao cabo de alguns instantes, -Ayres ia sentindo como esta pequena lhe acordava umas vozes mortas, -falhadas ou no nascidas, vozes de pae. Os gemeos no lhe deram um dia -a mesma sensao, seno porque eram filhos de Natividade. Aqui no era -a me, era a mesma Flora, o seu gesto, a sua fala, e por ventura a sua -fatalidade. - ---Mas quer-me parecer que desta vez ella est presa; escolheu emfim, -pensou Ayres. - -Flora falou-lhe da presidencia, mas no lhe pediu segredo, como as -outras pessoas; confessou-lhe que no queria ir daqui, fosse para onde -fosse, e acabou dizendo que tudo estava nas mos delle. S elle podia -despersuadir o pae de acceitar a presidencia. Ayres achou to absurdo -este pedido que esteve quasi a rir, mas susteve-se bem. A palavra de -Flora era grave e triste. Ayres respondeu, com brandura, que no podia -nada. - ---Pde muito, todos attendem aos seus conselhos. - ---Mas eu no dou conselhos a ninguem, acudiu Ayres. Conselheiro um -titulo que o imperador me conferiu, poi achar que o merecia, mas no -obriga a dar conselhos; a elle mesmo s lh'os darei, se m'os pedir. -Imagine agora se eu vou casa de um homem ou mando chamal-o minha -para lhe dizer que no seja presidente de provincia. Que razo lhe -daria? - -No tinha razes a moa; tinha necessidade. Appellou para os talentos -do ex-ministro, que acharia uma razo boa. Nem se precisavam razes, -bastava o falar delle, a arte que Deus lhe dera de agradar a toda a -gente, de a arrastar, de influir, de obter o que quizesse. Ayres viu -que ella exagerava para o attrair, e no lhe pareceu mal. No obstante, -contestou taes meritos e virtudes. Deus no lhe dera arte nenhuma, -disse elle, mas a moa ia sempre affirmando, em tal maneira que Ayres -suspendeu a contestao, e fez uma promessa. - ---Vou pensar; amanh ou depois, se achar algum recurso, tentarei o -negocio. - -Era um palliativo. Era tambem um modo de fazer cessar a conversao, -estando a casa proxima. No contava com o pae de Flora, que fina -fora lhe quiz mostrar, quella hora, uma novidade, alis uma velharia, -um documento de valor diplomatico. Venha, suba, cinco minutos apenas, -conselheiro. - -Ayres suspirou em segredo, e curvou a cabea ao Destino. No se luta -contra elle, dirs tu; o melhor deixar que pegue pelos cabellos e nos -arraste at onde queira alar-nos ou despenhar-nos. Baptista nem lhe -deu tempo de reflectir; era todo desculpas. - ---Cinco minutos e est livre de mim, mas ver que lhe pago o sacrificio. - -O gabinete era pequeno; poucos livros e bons, os moveis graves, um -retrato de Baptista com a farda de presidente, um almanaque sobre a -mesa, um mappa na parede, algumas lembranas do governo da provincia. -Emquanto Ayres circulava os olhos, Baptista foi buscar o documento. -Abriu uma gaveta, tirou uma pasta, abriu a pasta, tirou o documento, -que no estava s, mas com outros. Conhecia-se logo por ser um papel -velho, amarello, em partes roido. Era uma carta do conde de Oeyras, -escripta ao ministro de Portugal na Hollanda. - --- o dia das antiquidades, pensou Ayres; a taboleta, o tinteiro, este -autographo... - ---A carta importante, mas longa, disse Baptista, no podemos lel-a -agora. Quer leval-a? - -No lhe deu tempo de responder; pegou de uma sobrecarta grande e metteu -dentro o manuscripto, com esta nota por fra: Ao meu excellentissimo -amigo conselheiro Ayres. Emquanto elle fazia isto, Ayres passava -os olhos pela lombada de alguns livros. Entre elles havia dous -_Relatorios_ da presidencia de Baptista, ricamente encadernados. - ---No me attribua esse luxo, acudiu o ex-presidente; foi um mimo da -secretaria do Governo que nunca fez isto ninguem. Era um pessoal muito -distincto. - -E foi estante e tirou um dos relatorios para ser melhor visto. -Aberto, mostrou a impresso e as vinhetas; lido, podia mostrar o estylo -por um lado, e, por outro, a prosperidade das finanas. Baptista -limitou-se aos algarismos totaes: despeza, mil duzentos e noventa e -quatro contos, setecentos e noventa mil reis; receita, mil, quinhentos -quarenta e quatro contos duzentos e nove mil reis; saldo, duzentos e -quarenta e nove contos, quatrocentos e dezenove mil reis. Verbalmente, -explicou o saldo, que alcanou pela modificao de alguns servios, e -por um pequeno augmento de impostos. Reduziu a divida provincial, que -achou em trezentos e oitenta e quatro contos, e deixou em trezentos e -cincoenta contos. Fez obras novas e concertos importantes; iniciou uma -ponte... - ---A encadernao corresponde materia, disse Ayres para concluir a -visita. - -Baptista fechou o livro, e redarguiu que j agora no iria sem lhe -resolver uma consulta. - ---Tudo s avessas, concluiu; eu de manh resolvo consultas, agora -noite sou eu que as fao. - -Tal foi o introito, mas do introito ao Credo ha sempre um passo -estirado, e o principal da missa para elle estava no Credo. No -achando o texto do missal, explicou-lhe um sinete, uma penna de ouro, -um exemplar do Codigo Criminal. O Codigo, posto que velho, valia -por trinta novos, no que tivesse melhor rosto, se no que trazia -annotaes manuscriptas de um grande jurista, Fulano. Tendo passado -longa parte da vida no exterior, o conselheiro mal conhecera o autor -das notas, mas desde que ouviu chamar-lhe grande, assumiu a expresso -adequada. Pegou do codigo com cuidado, leu algumas das notas com -venerao. - -Durante esse tempo, Baptista ia criando folego. Compoz uma phrase para -iniciar a consulta, e s esperava que Ayres fechasse o livro para -soltal-a; mas o outro ia demorando o exame do Codigo. Podia ser uma -pontinha de malignidade, mas no era. Os olhos de Ayres tinham uma -faculdade particular, menos particular do que parece, porque outros -a possuiro calados. Vinha a ser que elles no saam da pagina, mas -em verdade j lhe prestava menos atteno; o tempo, a gente, a vida, -cousas passadas, surdiam a espial-o por detraz do livro com que tinham -vivido, e Ayres ia tornando a ver um Rio de Janeiro que no era este, -ou apenas o fazia lembrado. Nem cuides que eram s reos e juizes, era -o passeio, a rua, a festa, velhos patuscos e mortos, rapazes frescos -e agora enferrujados como elle. Baptista tossiu. Ayres voltou a si e -leu alguma das notas que o outro devia trazer de cr, mas eram to -profundas! Emfim, mirou a encadernao, achou o livro bem conservado, -fechou-o e restituiu-o bibliotheca. - -Baptista no perdeu um instante, correu inmediato ao assumpto, com medo -de o ver pegar em outro livro. - ---Confesso-lhe que tenho o temperamento conservador. - ---Tambem eu guardo presentes antigos. - ---No isso: refiro-me ao temperamento politico. Verdadeiramente ha -opinies e temperamentos. Um homem pde muito bem ter o temperamento -opposto s suas ideias. As minhas ideias, se as cotejarmos com os -programmas politicos do mundo, so antes liberaes e algumas liberrimas -O suffragio universal por exemplo, para mim a pedra augular de um bom -regimen representativo. Ao contrario, os liberaes pediram e fizeram -o voto censitario. Hoje estou mais adiantado que elles; acceito o -que est, por ora. mas antes do fim do seculo preciso rever alguns -artigos da Constituio, dous ou trez. - -Ayres escondia o espanto... Convidado assim quella hora... Uma -profisso de f politica... Baptista insistia na distinco do -temperamento e das ideias. Alguns amigos velhos, que conheciam esta -dualidade moral e mental, que teimavam em querer que elle acceitasse -uma presidencia; elle no queria. Francamente, que lhe parecia ao -conselheiro? - ---Francamente, acho que no tem razo. - ---Que no tenho razo em qu? - ---Em recusar. - ---Propriamente, no recusei nada; ha um grande trabalho neste sentido, -e o meu desejo,--accrescentou com mais clareza,-- que os bons amigos -sagazes me digam se tal cousa acertada; no me parece que seja... - ---Eu penso que . - ---De maneira que, se o caso fosse com o senhor... - ---Commigo no podia ser. Sabe que eu j no sou deste mundo, e -politicamente nunca figurei em nada. A diplomacia tem este effeito que -separa o funccionario dos partidos e o deixa to alheio a elles, que -fica impossivel de opinar com verdade, ou, quando menos, com certeza. - ---Mas no me disse que acha... - ---Acho. - ---... Que posso acceitar uma presidencia, se me offerecerem? - ---Pde; uma presidencia acceita-se. - ---Pois ento saiba tudo; a unica pessoa de sociedade com quem me abro -assim francamente. A presidencia foi-me offerecida. - ---Acceite, acceite. - ---Est acceita. - ---J? - ---O decreto assigna-se sabbado. - ---Ento acceite tambem os meus parabens. - ---Propriamente, a lembrana no foi do ministerio; ao contrario, o -ministerio no se resolveu antes de saber se effectivamente fiz uma -eleio contra os liberaes, ha annos; mas logo que soube que por no -os perseguir que fui demittido, acceitou a indicao de chefes -politicos, e recebi pouco depois este bilhete. - -O bilhete estava no bolso, dentro da carteira. Qualquer outro, -alvoroado com a nomeao proxima, levaria tempo a achar o bilhete -no meio dos papeis; mas Baptista possuia o tacto dos textos. Tirou -a carteira, abriu-a descanado e com os dedos saccou o bilhete do -ministro convidando-o a uma conversao. Na conversao ficou tudo -assentado. - - - - -CAPITULO LIV - - -Emfim, s! - - -Emfim, s! Quando Ayres se achou na rua, s, livre, solto, entregue -a si mesmo, sem grilhes nem consideraes, respirou largo. Fez um -monologo, que d'ahi a pouco interrompeu por se lembrar de Flora. Tudo -o que ella no quizera ia acontecer; l ia o pae a uma presidencia, e -ella com elle, e a recente inclinao ao joven Pedro vinha parar a meio -caminho. Entretanto, no se arrependia do que dissera e ainda menos do -que no dissera. Os dados estavam lanados. Agora era cuidar de outra -cousa. - - - -CAPITULO LV - - -A mulher a desolao do homem - - -Ao despedir-se, fez Ayres uma reflexo, que ponho aqui, para o caso -de que algum leitor a tenha feito tambem. A reflexo foi obra de -espanto, e o espanto nasceu de ver como um homem to difficil em ceder -s instigaes da esposa (Vae-te, Satanaz, etc.; capitulo XLVII) -deitou to facilmente o habito s ortigas. No achou explicao, -nem a acharia, se no soubesse o que lhe disseram mais tarde, que -os primeiros passos da converso do homem fram dados pela mulher. -A mulher a desolao do homem, dizia no sei que philosopho -socialista, creio que Proudhon. Foi ella, a viuva da presidencia, que -por meios varios e secretos, tramou passar a segundas nupcias. Quando -elle soube do namoro, j os banhos estavam corridos; no havia mais que -consentir e casar tambem. - -Ainda assim, custou-lhe muito. O clamor dos seus aturdia-lhe de antemo -os ouvidos, a alma ia cega, tonta, mas a esposa servia-lhe de guia e -amparo, e, com poucas horas, Baptista viu claro e ficou firme. - ---Estamos porta do terceiro reinado, ponderou D. Claudia, e -certamente o partido liberal no deixa to cedo o poder. Os seus homens -so vlidos, a inclinao dos tempos para o liberalismo, e voc -mesmo... - ---Sim, eu... suspirou Baptista. - -D. Claudia no suspirou, cantou victoria; a reticencia do marido era -a primeira figura de acquiescencia. No lhe disse isto assim, nu e -cru; tambem no revelou alegria descomposta; falou sempre a linguagem -da razo fria e da vontade certa. Baptista, sentindo-se apoiado, -caminhou para o abysmo e deu o salto nas trevas. No o fez sem graa, -nem com ella. Posto que a vontade que trazia fosse de emprestimo, no -lhe faltava desejo a que a vontade da esposa deu vida e alma. Dahi a -autoria de que se investiu e acabou confessando. - -Tal foi a concluso de Ayres, segundo se l no _Memorial._ Tal ser a -do leitor, se gosta de concluir. Note que aqui lhe poupei o trabalho de -Ayres; no o obriguei a achar por si o que, de outras vezes, obrigado -a fazer. O leitor attento, verdadeiramente ruminante, tem quatro -estomagos no cerebro, e por elles faz passar e repassar os actos e os -factos, at que deduz a verdade, que estava, ou parecia estar escondida. - - - - -CAPITULO LVI - - -O golpe - - -O dia seguinte trouxe menina Flora a grande novidade. Sabbado seria -assignado o decreto; a presidencia era no norte. D. Claudia no lhe viu -a pallidez, nem sentiu as mos frias, continuou a falar do caso e do -futuro, at que Flora, querendo sentar-se, quasi caiu. A me acudiu-lhe: - ---Que ? Que tens? - ---Nada, mame no nada. - -A me fel-a sentar-se. - ---Foi uma tonteira, passou. - -D. Claudia deu-lhe a cheirar um pouco de vinagre, esfregou-lhe os -pulsos; Flora sorriu. - ---Este sabbado? perguntou. - ---O decreto? Sim, este sabbado. Mas no digas por ora a ninguem; so -segredos de gabinete. cousa certa; emfim, alguem nos fez justia; -provavelmente o imperador. Amanh irs commigo a algumas encommendas. -Faze uma lista do que precisas. - -Flora precisava no ir e s pensava nisso. Uma vez que o decreto -estava prestes a ser assignado, no havia j desaconselhar a nomeao; -restava-lhe a ella ficar. Mas como? Todos os sonhos so proprios ao -somno de uma creana. No era facil, mas no seria impossivel. Flora -cria tudo; no tirava o pensamento de Ayres, e j agora de Natividade -tambem. Os dous podiam fazel-o, ou antes os trez, se contardes tambem -o baro, e se vier a cunhada deste, quatro. Juntai aos quatro as cinco -estrellas do Cruzeiro, as nove musas, anjos e archanjos, virgens e -martyres... Juntai-os todos, e todos poderiam fazer esta simples aco -de impedir que Flora fosse para a provincia. Taes eram as esperanas -vagas, rapidas, que corriam a substituir as tristezas do rosto da moa, -emquanto a me, attribuindo o effeito ao vinagre, ajustava a rolha de -vidro ao frasco, e restitua o frasco ao toucador. - ---Faze uma lista do que precisas, repetiu filha. - ---No, mame, eu no preciso nada. - ---Precisas, sim, eu sei o que precisas. - - - - -CAPITULO LVII - - -Das encommendas - - -No escreveria este capitulo, se elle fosse propriamente das -encommendas, mas no . Tudo so instrumentos nas mos da Vida. As duas -sairam de casa, urna lepida, a outra melancolica, e l fram a escolher -uma quantidade de objectos de viagem e de uso pessoal. D. Claudia -pensava nos vestidos da primeira recepo e de visitas; tambem ideou o -do desembarque. Tinha ordem do marido para comprar algumas gravatas. Os -chapeos, entretanto, fram o principal artigo da lista. Ao parecer de -D. Claudia, o chapeo da mulher que dava a nota verdadeira do gosto, -das maneiras e da cultura de uma sociedade. No valia a pena acceitar -uma presidencia para levar chapeos sem graa, dizia ella sem convico, -porque intimamente pensava que a presidencia d graa a tudo. - -Estavam justamente na loja de chapeos, rua do Ouvidor, sentadas, -os olhos fra e longe, quando a verdadeira materia deste capitulo -appareceu. Era o gemeo Paulo, que chegara pelo trem nocturno, e sabendo -que ellas andavam a compras, viera procural-as. - ---O senhor! exclamaram. - ---Cheguei esta manh. - -Flora tinha-se levantado, com o alvoroo que lhe deu a vista inesperada -de Paulo. Elle correu a ellas, apertou-lhes as mos, indagou da -sade, e reconheceu que pareciam vender sade e alegria. A impresso -era exacta; Flora tinha agora uma agitao, que contrastava cora o -abatimento daquella triste manh, e um riso que a fazia alegre. - ---Tive sempre noticias das senhoras, que mame me dava, e Pedro tambem, -s vezes. Da senhora, continuou elle falando a D. Claudia, recebi duas -cartas. Como vae o doutor? - ---Bem. - ---Ora, em fim, c estou! - -E Paulo dividia os olhos com as duas, mas a melhor parte ia natural -mente para a filha. Pouco depois era todo e pouco para esta. D. -Claudia voltra escolha dos chapeos, e Flora, que at ento opinava -de cabea, perdeu este ultimo gesto. Paulo sentou-se na cadeira que -um empregado lhe trouxe, e ficou a olhar para a moa; falavam de -cousas minimas, alheias ou proprias, tudo o que bastasse para os reter -disfaradamente na contemplao um do outro. Paulo viera o mesmo que -fra, o mesmo que Pedro, sempre com alguma nota particular, que ella -no podia achar claramente, menos ainda definir. Era um mysterio; Pedro -teria o seu. - -D. Claudia interrompia-os, de vez em quando, a proposito da escolha; -mas, tudo acaba, at a escolha de chapeos. Foram d'alli aos vestidos. -Paulo, no sabendo da presidencia, estimou esta casualidade para as -acompanhar de loja em loja. Contava anecdotas de S. Paulo, sem grande -interesse para Flora; as noticias que ella lhe dava acerca das amigas, -eram mais ou menos dispensaveis. Tudo valia pelos dous interlocutores. -A rua ajudava aquella absorpo reciproca; as pessoas que iam ou -vinham, damas ou cavalheiros, parassem ou no, serviam de ponto de -partida a alguma digresso. As digresses entraram a dar as mos ao -silencio, e os dous seguiam com os olhos espraiados e a cabea alta, -elle mais que ella, porque uma pontinha de melancolia comeava a -espancar do rosto da moa a alegria da hora recente. - -Na rua Gonalves Dias, indo para o largo da Carioca, Paulo viu dous -ou trez politicos de S. Paulo, republicanos, parece que fazendeiros. -Havendo-os deixado l, admirou-se de os ver aqui, sem advertir que a -ultima vez que os vira ia j a alguma distancia. - ---Conhecem? perguntou s duas. - -No, no os conheciam. Paulo disse-lhes os nomes. A me talvez fizesse -alguma pergunta politica, mas deu por falta de um objecto, advertiu que -o no comprra, e propoz voltarem atraz. Tudo era acceito por ambos, -com docilidade, apesar do veu de tristeza, que se ia cerrando mais no -rosto da moa. Aquellas encommendas tinham j um ar de bilhetes de -passagem, no tardava o paquete, iam correr s malas, aos arranjos, s -despedidas, ao camarote de bordo, ao enjo de mar, e quelle outro de -mar e terra, que a mataria, com certeza, cuidava Flora. Dahi o silencio -crescente, que Paulo mal podia vencer, de quando em quando; e comtudo -ella estava bem com elle, gostava de lhe ouvir dizer cousas soltas, -algumas novas, outras velhas, recordaes anteriores partida daqui -para S. Paulo. - -Assim se deixaram ir, guiados por D. Claudia, quasi esquecida delles. -No meio daquella conversao truncada, mais entretida por elle que por -ella, Paulo sentia impetos de lhe perguntar, ao ouvido, na rua, se -pensra nelle, ou, ao menos, sonhra com elle algumas noites. Ouvindo -que no, daria espanso colera, dizendo-lhe os ultimos improperios; -se ella corresse, correria tambem, at pegal-a pelas fitas do chapeo ou -pela manga do vestido, e, em vez de a esganar, danaria com ella uma -valsa de Strauss ou uma polka de ***. Logo depois, ria destes delirios, -porque, a despeito da melancolia da moa, os olhos que ella erguia -para elle eram de quem sonhou e pensou muito na pessoa, e agora cuida -de descobrir se a mesma do sonho e do pensamento. Assim lhe parecia -ao estudante de direito; pelo que, quando elle desviava o rosto, era -para repetir a experiencia e tornar a ver-lhe os olhos aguados do -mesmo espirito critico e de livre exame. Quanto ao tempo que os trez -gastaram nessa agitao de compras e escolhas, vises e comparaes, -no ha memoria delle, nem necessidade. Tempo propriamente officio de -relogio, e nenhum delles consultou o relogio que trazia. - - - - -CAPITULO LVIII - - -Matar saudades - - -Ora bem, acabas de ver como Flora recebeu o irmo de Pedro; tal qual -recebia o irmo de Paulo. Ambos eram apostolos. Paulo achava-a agora -mais bonita que alguns mezes antes, e disse-lh'o n'essa mesma tarde em -S. Clemente, com esta palavra familiar e cordial: - ---A senhora enfeitou muito. - -Flora julgava a mesma cousa, relativamente ao estudante de direito; -calou a impresso. Ou a tristeza que trazia, ou qualquer outra sensao -particular, fel-a acanhada, a principio. No tardou, porm, que achasse -outra vez o gemeo no gemeo, e que elle e ella matassem saudades. - -Como que se matam saudades no cousa que se explique de um modo -claro. Elle no ha ferro nem fogo, corda nem veneno, e todavia as -saudades expiram, para a resurreio, alguma vez antes do terceiro dia. -Ha quem creia que, ainda mortas, so doces, mais que doces. Esse ponto, -no nosso caso, no pde ser ventilado, nem eu quero desenvolvel-o, como -alis cumpria. - -As saudades morreram, no todas, nem logo, logo, mas em parte e to -vagarosamente que Paulo acceitou o convite de l jantar. Era o dia da -chegada; Natividade quizera tel-o comsigo mesa, ao p de Pedro, para -cimentar a pacificao comeada pela distancia. Paulo nem se deu ao -trabalho de l mandar; deixou-se estar com a bella creatura, entre o -pae e a me que pensavam em outra cousa, proxima no tempo e remota no -espao. Sabendo o que era, Flora passava do prazer ao tedio, e Paulo -no entendia essa alternao de sentimentos. De quando em quando, vendo -a me agitada e preoccupada, mas com outra expresso, Paulo interrogava -a filha. Em vez de dar uma explicao qualquer, Flora passou uma vez a -mo pelos olhos e ficou alguns instantes sem os descobrir. A aco do -estudante de direito, devia ser arredar-lhe a mo, encaral-a de perto, -mais perto, totalmente perto, e repetir a pergunta por um modo em que a -eloquencia do gesto dispensasse a fala. Se tal ideia teve, no saiu c -fra. Nem ella lhe consentiu mais tempo que o da pergunta: - ---Que que tem? - ---Nada, respondeu Flora. - ---Tem alguma cousa, insistiu elle querendo pegar-lhe na mo. - -No acabou o gesto, no o comeou sequer; abriu e fechou os dedos -apenas, emquanto sorria para sacudir tristezas, e deixou-se estar a -matar saudades. - - - - -CAPITULO LIX - - -Noite de 14 - - -Tudo se explicou noite, em casa da familia Santos. O ex-presidente -de provincia confessou as esperanas de uma investidura nova; a esposa -affirmou a eminencia do ato. Dahi a publicidade da noticia, que pouco -antes D. Claudia s dizia em segredo. J no havia segredos que calar. - -Paulo soube ento tudo, e Pedro, que conhecia alguns preliminares, -acabou sabendo o resto. Ambos naturalmente sentiram a separao -proxima. A dr os fez amigos por instantes; uma das vantagens dessa -grande e nobre sensao. J me no lembra quem affirmava, ao contrario, -que um odio commum o que mais liga duas pessoas. Creio que sim, mas -no descreio do meu postulado, por esta razo que uma coisa no tolhe a -outra, e ambas podem ser verdadeiras. - -Demais, a dr no era ainda o desespero. Havia at uma consolao para -os dous gemeos; que a moa ficaria longe de ambos. Nenhum delles -teria o gozo exclusivo ao p da porta. No h mal que no traga um -pouco de bem, e por isso que o mal util, muita vez indispensavel, -alguma vez delicioso. Os dous quizeram falar amiguinha, em -particular, para sondal-a cerca daquella separao, j agora certa, -mas nenhum conseguiu este desejo. Vigiavam-se, isso sim. Quando lhe -falavam, era sempre juntos, e de cousas familiares e ordinarias. O -gesto de Flora no traduzia o estado da alma; este podia ser lepido, -melancolico, ou indifferente, no vinha c fra. Em verdade, ella -falava pouco. Os olhos tambem no diziam muito. Mais de uma vez, Pedro -deu com ella fitando Paulo, e gemeu com a preferencia, mas tambem elle -era preferido depois, e achava compensao; Paulo ento que rangia -os dentes, figuradamente. Natividade, toda entregue sua recepo, -que era a ultima do anno, no acompanhou de perto as agitaes moraes -daquelle trio. Quando deu por ellas, chegou a sentil-as tambem. - -Pouco a pouco, a gente se foi dispersando. No era muita, e dominava -a nota intima. Quando a maioria saiu, ficou s a poro mais intima, -trez ou quatro homens a um canto da sala, falando e rindo de ditos e -anecdotas. No conversavam de politica, e alis no faltaria materia. -As moas, pela segunda ou terceira vez, trocavam as impresses do -grande baile recente. Tambem falavam de musicas e theatros, das festas -proximas de Petropolis, da gente que ia naquelle anno, e da que s iria -em Janeiro. Natividade dividia-se com todos, at que, podendo ficar -alguns instantes com Ayres, confiara-lhe o seu receio cerca do amor -dos filhos, e ao mesmo tempo o prazer que lhe trazia a esperana de uma -longa separao de Flora. O conselheiro no desdizia do receio, nem da -esperana. - --- uma felicidade que o Baptista seja nomeado e leve a filha daqui, -disse ella. - ---Certamente, mas... - ---Mas qu? - ---Certamente a levar, mas a senhora pde no conhecer bem aquella -menina. - ---Penso que boa. - ---Tambem eu penso assim. A bondade, porm, no tem nada com o resto -da pessoa. Flora , como j lhe disse ha tempos, uma inexplicavel. -Agora tarde para lhe expor os fundamentos da minha impresso; depois -lhe direi. Note que gsto muito della; acho-lhe um sabor particular -naquelle contraste de uma pessoa assim, to humana e to fra do -mundo, to etherea e to ambiciosa, ao mesmo tempo, de uma ambio -recondita... V perdoando estas palavras mal embrulhadas, e at amanh, -concluiu elle, estendendo-lhe a mo. Amanh virei explical-as. - ---Explique-as agora, emquanto os outros parecem rir de algum dito -engraado. - -Effectivamente, os homens riam de algum dito ou trocadilho; Ayres quiz -falar, mas reteve a lingua, e desculpou-se. A explicao era longa e -dificil, e no era urgente, disse elle. - ---Eu mesmo no sei se me entendo, baroneza, nem se penso a verdade; -pde ser. Em todo caso, minha boa amiga, at amanh ou at Petropolis. -Quando espera subir? - ---L para o fim do anno. - ---Ento ainda nos veremos algumas vezes. - ---Sim, e, se me no vir a mim, quero que veja os meus rapazes, que -os receba e estime. Elles o tm em grande conta; no lhe fazem seno -justia. Pedro acha que o senhor o espirito mais fino, e Paulo o mais -rijo da nossa terra... - ---Veja como a senhora os educa, ensinando-lhes a pensar errado, disse -Ayres sorrindo e fazendo um gesto de agradecimento. Eu rijo? - ---O mais rijo e o mais fino. - -Os ultimos habituados da casa vieram dar boa noite dona. Dez minutos -depois, Ayres despedia-se do casal Santos. - -A noite era clara e tranquilla. Ayres recompoz uma parte do sero para -escrevel-a no _Memorial._ Poucas linhas, mas interessantes, nas quaes -Flora era a principal figura: Que o Diabo a entenda, se puder; eu, -que sou menos que elle, no acerto de a entender nunca. Hontem parecia -querer a um, hoje quiz ao outro; pouco antes das despedidas, queria a -ambos. Encontrei outr'ora desses sentimentos alternos e simultaneos; -eu mesmo fui uma e outra cousa, e sempre me entendi a mim. Mas aquella -menina e moa... A condio dos gemeos explicar esta inclinao dupla; -pde ser tambem que alguma qualidade falte a um que sbre a outro, -e vice-versa, e ella, pelo gosto de ambas, no acaba de escolher de -vez. phantastico, sei; menos phantastico se elles, destinados -inimizade, acharem nesta mesma creatura um campo estreito de odio, -mas isto os explicaria a elles, no a ella... Seja o que fr, a nossa -organisao politica util; a presidencia de provincia, arredando -Flora daqui, por algum tempo, tira esta moa da situao em que se -acha, como a asna de Buridan. Quando voltar, a agua estar bebida e a -cevada comida. Um decreto ajudar a natureza. - -Isto feito, Ayres metteu-se na cama, rezou uma ode do seu Horacio e -fechou os olhos. Nem por isso dormiu. Tentou ento uma pagina do seu -Cervantes, outra do seu Erasmo, fechou novamente os olhos, at que -dormiu. Pouco foi; s cinco horas e quarenta minutos estava de p. Era -novembro, sabes que dia. - - - - -CAPITULO LX - - -Manh de 15 - - -Quando lhe acontecia o que ficou contado, era costume de Ayres sair -cedo, a espairecer. Nem sempre acertava. Desta vez foi ao Passeio -Publico. Chegou s sete horas e meia, entrou, subiu ao terrao e olhou -para o mar. O mar estava crespo. Ayres comeou a passear ao longo do -terrao, ouvindo as ondas, e chegando-se borda, de quando em quando, -para vel-as bater e recuar. Gostava dellas assim; achava-lhes uma -especie de alma forte, que as movia para metter medo terra. A agua, -enroscando-se em si mesma, dava-lhe uma sensao, mais que de vida, de -pessoa tambem, a que no faltavam nervos nem musculos, nem a voz que -bradava as suas coleras. - -Emfim, canou e desceu, foi-se ao lago, ao arvoredo e passeou toa, -revivendo homens e cousas, at que se sentou em um banco. Notou que -a pouca gente que havia alli no estava sentada, como de costume, -olhando toa, lendo gazetas ou cochilando a vigilia de uma noite sem -cama. Estava de p, falando entre si, e a outra que entrava ia pegando -na conversao sem conhecer os interlocutores; assim lhe pareceu, -ao menos. Ouviu umas palavras soltas, _Deodoro, batalhes, campo, -ministerio_, etc. Algumas, ditas em tom alto, vinham acaso para elle, -a ver se lhe espertavam a curiosidade, e se obtinham mais uma orelha -s noticias. No juro que assim fosse, porque o dia vae longe, e as -pessoas no eram conhecidas. O proprio Ayres, se tal cousa suspeitou, -no a disse a ninguem; tambem no afiou o ouvido para alcanar o resto. -Ao contrario, lembrando-lhe algo particular, escreveu a lapis uma nota -na carteira. Tanto bastou para que os curiosos se dispersassem, no sem -algum epitheto de louvor, uns ao governo, outros ao exercito: podia ser -amigo de um ou de outro. - -Quando Ayres saiu do Passeio Publico, suspeitava alguma cousa, e seguiu -at o largo da Carioca. Poucas palavras e sumidas, gente parada, caras -espantadas, vultos que arrepiavam caminho, mas nenhuma noticia clara -nem completa. Na rua do Ouvidor, soube que os militares tinham feito -uma revoluo, ouviu descripes da marcha e das pessoas, e noticias -desencontradas. Voltou ao largo, onde trez tilburys o disputaram; elle -entrou no que lhe ficou mais mo, e mandou tocar para o Cattete. -No perguntou nada ao cocheiro; este que lhe disse tudo e o resto. -Falou de uma revoluo, de dous ministros mortos, um fugido, os demais -presos. O imperador, capturado em Petropolis, vinha descendo a serra. - -Ayres olhava para o cocheiro, cuja palavra saa deliciosa de novidade. -No lhe era desconhecida esta creatura. J a vira, sem o tilbury, -na rua ou na sala, missa ou a bordo, nem sempre homem, alguma vez -mulher, vestida de seda ou do chita. Quiz saber mais, mostrou-se -interessado e curioso, e acabou perguntando se realmente houvera o que -dizia. O cocheiro contou que ouvira tudo a um homem que trouxera da -rua dos Invalidos e levra ao largo da Gloria, por signal que estava -assombrado, no podia falar, pedia-lhe que corresse, que lhe pagaria o -dobro; e pagou. - ---Talvez fosse algum implicado no barulho, suggeriu Ayres. - ---Tambem pde ser, porque elle levava o chapo derrubado, e a principio -pensei que tinha sangue nos dedos, mas reparei e vi que era barro; com -certeza, vinha de descer algum muro. Mas, pensando bem, creio que era -sangue; barro no tem aquella cr. A verdade que elle pagou o dobro -da viagem, e com razo, porque a cidade no est segura, e a gente -corre grande risco levando pessoas de um lado para outro... - -Chegavam justamente porta de Ayres; este mandou parar o vehiculo, -pagou pela tabella e desceu. Subindo a escada, ia naturalmente pensando -nos acontecimentos possiveis. No alto achou o criado que sabia tudo, e -lhe perguntou se era certo... - ---O que que no certo, Jos? mais que certo. - ---Que matram trez ministros? - ---No; ha s um ferido. - ---Eu ouvi que mais gente tambem, falaram em dez mortos... - ---A morte um phenomeno egual vida; talvez os mortos vivam. Em todo -caso, no lhes rezes por alma, porque no s bom catholico, Jos. - - - - -CAPITULO LXI - - -Lendo Xenophonte - - -Como que, tendo ouvido falar da morte de dous e trez ministros, Ayres -affirmou apenas o ferimento de um, ao rectificar a noticia do criado? -S se pde explicar de dous modos,--ou por um nobre sentimento de -piedade, ou pela opinio de que toda a noticia publica cresce de dous -teros, ao menos. Qualquer que fosse a causa, a verso do ferimento era -a unica verdadeira. Pouco depois passava pela rua do Cattete a padiola -que levava um ministro, ferido. Sabendo que os outros estavam vivos e -sos e o imperador era esperado de Petropolis, no acreditou na mudana -de regimen que ouvira ao cocheiro de tilbury e ao criado Jos. Reduziu -tudo a um movimento que ia acabar com a simples mudana de pessoal. - ---Temos gabinete novo, disse comsigo. - -Almoou tranquillo, lendo Xenophonte: Considerava eu um dia quantas -republicas tem sido derribadas por cidados que desejam outra especie -de governo, e quantas monarchias e olygarchias so destruidas pela -sublevao dos povos; e de quantos sobem ao poder, uns so depressa -derribados, outros, se duram, so admirados por habeis e felizes... -Sabes a concluso do autor, em prol da these de que o homem difficil -de governar; mas logo depois a pessoa de Cyro destre aquella -concluso, mostrando um s homem que regeu milhes de outros, os quaes -no s o temiam, mas ainda lutavam por lhe fazer as vontades. Tudo isto -em grego, e com tal pausa que elle chegou ao fim do almoo, sem chegar -ao fim do primeiro capitulo. - - - - -CAPITULO LXII - - -Pare no D. - - ---Mas, S. Ex. est almoando, dizia o criado no patamar da escada a -alguem que pedia para falar ao conselheiro. - -Era falso, Ayres acabava justamente de almoar; mas o criado sabia que -o amo gostava de saborear o charuto depois do almoo, sem interrupo. -Agora estava no canap e ouviu o dialogo do patamar. A pessoa insistia -em dizer uma palavrinha. - ---No pde ser. - ---Bem, eu espero; logo que S. Ex. acabe... - ---O melhor voltar depois; no mora alli defronte? Pois volte daqui a -uma hora ou duas... - -A pessoa era o Custodio e foi para casa, mas o velho diplomata, sabendo -quem era, no esperou que acabasse o charuto; mandou-lhe dizer que -viesse. Custodio saiu, correu, subiu e entrou assombrado. - ---Que isso, Sr. Custodio? disse-lhe Ayres. O senhor anda a fazer -revolues? - ---Eu, senhor? Ah! senhor! Se V. Ex. soubesse... - ---Se soubesse o qu? - -Custodio explicou-se. V, resumamos a explicao. - -Na vespera, tendo de ir abaixo, Custodio foi rua da Assembla, onde -se pintava a taboleta. Era j tarde; o pintor suspendera o trabalho. S -algumas das letras ficaram pintadas,--a palavra _Confeitaria_ e a letra -_d._ A letra _o_ e a palavra _imperio_ estavam s debuxadas a giz. -Gostou da tinta e da cr, reconciliou-se com a frma, e apenas perdoou -a despeza. Recommendou pressa. Queria inaugurar a taboleta no domingo. - -Ao acordar de manh no soube logo do que houvera na cidade, mas pouco -a pouco vieram vindo as noticias, viu passar um batalho, e creu que -lhe diziam a verdade os que affirmavam a revoluo e vagamente a -republica. A principio, no meio do espanto, esqueceu-lhe a taboleta. -Quando se lembrou della, viu que era preciso sustar a pintura. Escreveu -s pressas um bilhete e mandou um caixeiro ao pintor. O bilhete dizia -s isto: Pare no _D._ Com effeito, no era preciso pintar o resto, -que seria perdido, nem perder o principio, que podia valer. Sempre -haveria palavra que occupasse o logar das letras restantes. Pare no D. - -Quando o portador voltou trouxe a noticia de que a taboleta estava -prompta. - ---Voc viu-a prompta? - ---Vi, patro. - ---Tinha escripto o nome antigo? - ---Tinha, sim, senhor: Confeitaria do imperio. - -Custodio enfiou um casaco de alpaca e voou rua da Assembla. L -estava a taboleta, por signal que coberta com um pedao de chita; -alguns rapazes que a tinham visto, ao passar na rua, quizeram -rasgal-a; o pintor, depois de a defender com boas palavras, achou mais -efficaz cobril-a. Levantada a cortina, Custodio leu: _Confeitaria -do imperio._ Era o nome antigo, o proprio, o celebre, mas era a -destruio agora; no podia conservar um dia a taboleta, ainda que -fosse em becco escuro, quanto mais na rua do Cattete... - ---O senhor vae despintar tudo isto, disse elle. - ---No entendo. Quer dizer que o senhor paga primeiro a despeza. Depois, -pinto outra cousa. - ---Mas que perde o senhor em substituir a ultima palavra por outra? A -primeira pde ficar, e mesmo o _d..._ No leu o meu bilhete? - ---Chegou tarde. - ---E porque pintou, depois de to graves acontecimentos? - ---O senhor tinha pressa, e eu accordei s cinco e meia para servil-o. -Quando me deram as noticias, a taboleta estava prompta. No me disse -que queria pendural-a domingo? Tive de pr muito seccante na tinta, e, -alm da tinta, gastei tempo e trabalho. - -Custodio quiz repudiar a obra, mas o pintor ameaou de pr o numero da -confeitaria e o nome do dono na taboleta, e expol-a assim, para que os -revolucionarios lhe fossem quebrar as vidraas do Cattete. No teve -remedio se no capitular. Que esperasse; ia pensar na substituio; em -todo caso, pedia algum abate no preo. Alcanou a promessa do abate e -voltou a casa. Em caminho, pensou no que perdia mudando de titulo,--uma -casa to conhecida, desde annos e annos! Diabos levassem a revoluo! -Que nome lhe poria agora? Nisso lembrou-lhe o visinho Ayres e correu a -ouvil-o. - - - - -CAPITULO LXIII - - -Taboleta nova - - -Referido o que l fica atraz, Custodio confessou tudo o que perdia no -titulo e na despeza, o mal que lhe trazia a conservao do nome da -casa, a impossibilidade de achar outro, um abysmo, em summa. No sabia -que buscasse; faltava-lhe inveno e paz de espirito. Se pudesse, -liquidava a confeitaria. E afinal que tinha elle com politica? Era -um simples fabricante e vendedor de doces, estimado, afreguezado, -respeitado, e principalmente respeitador da ordem publica... - ---Mas o que que ha? perguntou Ayres. - ---A republica est proclamada. - ---J ha governo? - ---Penso que j; mas diga-me V. Ex. ouviu alguem accusar-me jamais de -attacar o governo? Ninguem. Entretanto... Uma fatalidade! Venha em meu -soccorro, Excellentissimo. Ajude-me a sair deste embarao. A taboleta -est prompta, o nome todo pintado.--Confeitaria do Imperio, a tinta -viva e bonita. O pintor teima em que lhe pague o trabalho, para ento -fazer outro. Eu, se a obra no estivesse acabada, mudava de titulo, por -mais que me custasse, mas hei de perder o dinheiro que gastei? V. Ex. -cr que, se ficar Imperio, venham quebrar-me as as vidraas? - ---Isso no sei. - ---Realmente, no ha motivo: o nome da casa, nome de trinta annos. -ninguem a conhece de outro modo... - ---Mas pde pr Confeitaria da Republica... - ---Lembrou-me isso, em caminho, mas tambem me lembrou que, se daqui a -um ou dous mezes, houver nova reviravolta, fico no ponto em que estou -hoje, e perco outra vez o dinheiro. - ---Tem razo... Sente-se. - ---Estou bem. - ---Sente-se e fume um charuto. - -Custudio recusou o charuto, no fumava. Acceitou a cadeira. Estava -no gabinete de trabalho, em que algumas curiosidades lhe chamariam a -atteno, se no fosse o atordoamento do espirito. Continuou a implorar -o soccorro do visinho. S. Ex., com a grande intelligencia que Deus lhe -dera, podia salval-o. Ayres propoz-lhe um meio termo, um titulo que -iria com ambas as hypotheses,--Confeitaria do governo. - ---Tanto serve para um regimen como para outro. - ---No digo que no, e, a no ser a despeza perdida... Ha, porm, uma -razo contra. V. Ex. sabe que nenhum governo deixa de ter opposio. As -opposies, quando descerem rua, podem implicar commigo, imaginar que -as desafio, e quebrarem-me a taboleta; entretanto, o que eu procuro o -respeito de todos. - -Ayres comprehendeu bem que o terror ia com a avareza. Certo, o visinho -no queria barulhos porta, nem malquerenas gratuitas, nem odios de -quem quer que fosse; mas, no o affligia menos a despeza que teria de -fazer de quando em quando, se no achasse titulo definitivo, popular -e imparcial. Perdendo o que tinha, j perdia a celebridade, alm de -perder a pintura e pagar mais dinheiro. Ninguem lhe compraria uma -taboleta condemnada. J era muito ter o nome e o titulo no _Almanack_ -de Laemmert, onde podia lel-o algum abelhudo e ir com outros, punil-o -do que estava impresso desde o principio do anno... - ---Isso no, interrompeu Ayres; o senhor no ha de recolher a edio de -um almanaque. - -E depois de alguns instantes: - ---Olhe, dou-lhe uma ideia, que pde ser aproveitada, e, se no a achar -boa, tenho outra mo, e ser a ultima. Mas eu creio que qualquer -dellas serve. Deixe a taboleta pintada como est, e direita, na -ponta, por baixo do titulo, mande escrever estas palayras que explicam -o titulo: Fundada em 1860. No foi em 1860 que abriu a casa? - ---Foi, respondeu Custodio. - ---Pois... - -Custodio reflectia. No se lhe podia ler _sim_ nem _no_; attonito, -a bca entre-aberta, no olhava para o diplomata, nem para o cho, -nem para as paredes ou moveis, mas para o ar. Como Ayres insistisse, -elle acordou e confessou que a ideia era boa. Realmente, mantinha o -titulo e tirava-lhe o sedicioso, que crescia com o fresco da pintura. -Entretanto, a outra ideia podia ser egual ou melhor, e quizera comparar -as duas. - ---A outra ideia no tem a vantagem de pr a data fundao da -casa, tem s a de definir o titulo, que fica sendo o mesmo, de uma -maneira alheia ao regimen. Deixe-lhe estar a palavra _imperio_ e -accrescente-lhe em baixo, ao centro, estas duas, que no precisam -ser gradas: _das leis._ Olhe, assim, concluiu Ayres sentando-se -secretaria, e escrevendo em uma tira de papel o que dizia. - -Custodio leu, releu e achou que a ideia era util; sim, no lhe parecia -m. S lhe viu um defeito; sendo as letras de baixo menores, podiam -no ser lidas to depressa e claramente, com as de cima, e estas que -se metteriam pelos olhos ao que passasse. Dahi a que algum politico ou -sequer inimigo pessoal no entendesse logo e... A primeira ideia, bem -considerada, tinha o mesmo mal, e ainda este outro: pareceria que o -confeiteiro, marcando a data da fundao, fazia timbre em ser antigo. -Quem sabe se no era peor que nada? - ---Tudo peor que nada. - ---Procuremos. - -Ayres achou outro titulo, o nome da rua, Confeitaria do Cattete, sem -advertir que, havendo outra confeitaria na mesma rua, era attribuir -exclusivamente do Custodio a designao local. Quando o visinho lhe -fez tal ponderao, Ayres achou-a justa, e gostou de ver a delicadeza -de sentimentos do homem; mas logo depois descubriu que o que fez -falar o Custodio foi a ideia de que esse titulo ficava commum s duas -casas. Muita gente no atinaria com o titulo escripto, e compraria -na primeira que lhe ficassse mo, de maneira que s elle faria as -despezas da pintura, e ainda por cima perdia a freguezia. Ao perceber -isto, Ayres no admirou menos a sagacidade de um homem que em meio de -tantas tribulaes, contava os maus fructos de um equivoco. Disse-lhe -ento que o melhor seria pagar a despeza feita e no pr nada, a no -ser que preferisse o seu proprio nome: Confeitaria do Custodio. -Muita gente certamente lhe no conhecia a casa por outra designao. -Um nome, o proprio nome do dono, no tinha significao politica ou -figurao historica, odio nem amor, nada que chamasse a atteno dos -dous regimens, e conseguintemente que puzesse em perigo os seus pasteis -de Santa Clara, menos ainda a vida do proprietario e dos empregados. -Porque que no adoptava esse alvitre? Gastava alguma cousa com a -troca de uma palavra por outra, _Custodio_ em vez de _Imperio_, mas as -revolues trazem sempre despezas. - ---Sim, vou pensar, Excellentissimo. Talvez convenha esperar um ou dous -dias, a ver em que param as modas, disse Custodio agradecendo. - -Curvou-se, recuou e saiu. Ayres foi janella para vel-o atravessar a -rua. Imaginou que elle levaria da casa do ministro aposentado um lustre -particular que faria esquecer por instantes a crise da taboleta. Nem -tudo so despezas na vida, e a gloria das relaes podia amaciar as -agruras deste mundo. No acertou desta vez. Custodio atravessou a rua, -sem parar nem olhar para traz, e enfiou pela confeitaria dentro com -todo o seu desespero. - - - - -CAPITULO LXIV - - -Paz! - - -Que, em meio de to graves successos, Ayres tivesse bastante pausa e -claridade para imaginar tal descoberta no visinho, s se pde explicar -pela incredulidade com que recebera as noticias. A propria afflico de -Custodio no lhe dera f. Vira nascer e morrer muito boato falso. Uma -de suas maximas que o homem vive para espalhar a primeira inveno -de rua, e que tudo se far crr a cem pessoas juntas ou separadas. S -s duas horas da tarde, quando Santos lhe entrou em casa, acreditou na -queda do imperio. - --- verdade, conselheiro, vi descer as tropas pela rua do Ouvidor, ouvi -as acclamaes republica. As lojas esto fechadas, os bancos tambem, -e o peor se se no abrem mais, se vamos cair na desordem publica; -uma calamidade. - -Ayres quiz aquietar-lhe o corao. Nada se mudaria; o regimen, sim, era -possivel, mas tambem se muda de roupa sem trocar de pelle. Commercio - preciso. Os bancos so indispensaveis. No sabbado, ou quando muito -na segunda feira, tudo voltaria ao que era na vespera, menos a -constituio. - ---No sei, tenho medo, conselheiro. - ---No tenha medo. A baroneza j sabe o que ha? - ---Quando eu sai de casa, no sabia, mas agora provavel. - ---Pois v tranquillisal-a; naturalmente est afflicta. - -Santos receiava os fuzilamentos; por exemplo, se fuzilassem o -imperador, e com elle as pessoas de sociedade? Recordou que o Terror... -Ayres tirou-lhe o Terror da cabea. As occasies fazem as revolues, -disse elle, sem inteno de rimar, mas gostou que rimasse, para -dar frma fixa ideia. Depois lembrou a indole branda do povo. O -povo mudaria de governo, sem tocar nas pessoas. Haveria lances de -generosidade. Para provar o que dizia referiu um caso que lhe contara -um velho amigo, o marechal Beaurepaire Rohan. Era no tempo da Regencia. -O imperador fra ao theatro de S. Pedro de Alcantara. No fim do -espectaculo, o amigo, ento moo, ouviu grande rumor do lado da egreja -de S. Francisco, e correu a saber o que era. Falou a um homem, que -bradava indignado, e soube delle que o cocheiro do imperador no tirara -o chapeo no momento em que este chegra porta para entrar no coche; -o homem accrescentou: Eu sou _r..._ Naquelle tempo os republicanos -por brevidade eram assim chamados. Eu sou _r_, mas no consinto que -faltem ao respeito a este menino! - -Nenhuma feio de Santos mostrou apreciar ou entender aquelle rasgo -anonymo. Ao contrario, todo elle parecia entregue ao presente, ao -momento, ao commercio fechado, aos bancos sem operaes, ao receio de -uma suspenso total de negocios, durante prazo indeterminado. Cruzava e -descruzava as pernas. Afinal ergueu-se e suspirou. - ---Ento, parece-lhe...? - ---Que descance. - -Santos acceitou o conselho, mas vae muito do acceitar ao cumprir, e a -apparencia era mui diversa do corao. O corao batia-lhe. A cabea -via esboroar-se tudo. Quiz despedir-se, mas fez duas ou trez investidas -antes de pousar o p fora do gabinete e caminhar para a escada. Instava -pela certeza. Com quanto tivesse visto e ouvido a republica, podia -ser... Em todo caso, a paz que era necessaria, e haveria paz? Ayres -inclinava-se a crr que sim, e novamente o convidou a descanar. - ---At logo, concluiu. - ---Porque no vae l jantar comnosco? - ---Tenho de jantar com um amigo, no Hotel dos Estrangeiros. Depois, -talvez, ou amanh. V, v tranquillisar a baroneza, e os rapazes. Os -rapazes estaro em paz? Esses brigam, com certeza; v pol-os em ordem. - ---O senhor podia ajudar-me nisso. V l de noite. - ---Pde ser; se puder, vou. Amanh com certeza. - -Santos saiu; tinha o carro espera, entrou e seguiu para Botafogo. No -levava a paz comsigo, no a poderia dar mulher, nem cunhada, nem -aos filhos. Quizera chegar a casa, por medo da rua, mas quizera tambem -ficar na rua, por no saber que palavras nem que conselhos daria aos -seus. - -O espao do carro era pequeno e bastante para um homem; mas, emfim, -no viviria alli a tarde inteira. Ao demais, a rua estava quieta. Via -gente porta das lojas. No largo do Machado viu outra que ria, alguma -calada, havia espanto, mas no havia propriamente susto. - - - - -CAPITULO LXV - - -Entre os filhos - - -Quando Santos chegou a casa, Natividade estava inquieta, sem noticia -exacta e definitiva dos acontecimentos. No sabia da republica. No -sabia do marido nem dos filhos. Aquelle saira antes dos primeiros -rumores, estes iam fazer a mesma cousa, logo que os boatos chegaram. O -primeiro gesto da me foi para impedir que os filhos saissem, mas no -pde, era tarde. No os podendo reter, pegou-se com a Virgem Maria, -afim de que os poupasse, e esperou. A irm fez o mesmo. Era perto de -meio dia; foi ento que os minutos entraram a parecer seculos. - -A ancia da me era naturalmente maior que a da tia. Natividade via -andar o tempo com ferros aos ps. No havia alvoroo que atasse um par -de azas quellas horas longas do relogio da casa, nem aos do cinto, o -della e o da irm; todos elles coxeavam de ambos os ponteiros. Emfim, -ouviu na areia do jardim as rodas de um carro; era Santos. - -Natividade acudiu ao patamar da escada. Santos subiu, e as mos de -ambos estenderam-se e agarraram-se. Longa vida conjunta acaba por fazer -da ternura uma coisa grave e espiritual. Entretanto, parece que o gesto -do marido no foi original, mas secundario, filho ou imitativo do da -mulher. Pde ser que a corda da sensibilidade fosse menos vibrante na -lira dele que na della, posto que muitos anos atraz, aquele outro gesto -no _coup_, quando voltavam da missa de S. Domingos, lembras-te?... -Sobre isto escrevi agora algumas linhas, que no ficariam mal, se as -acabasse, mas recuo a tempo, e risco-as. No vale a pena ir cata das -palavras riscadas. Menos vale supri-las. - -Que nos bastam as quatro mos apertadas. Natividade perguntou pelos -filhos. Santos opinou que no tivesse medo. No havia nada; tudo -parecia estar como no dia anterior, as ruas socegadas, as caras mudas. -No correria sangue, o commercio ia continuar. Toda a animao de Ayres -tinha agora brotado nele, com a mesma verdura e o mesmo estylo. - -Os filhos chegaram tarde, cada um por sua vez, e Pedro mais cedo que -Paulo. A melancolia de um ia com a alma da casa, a alegria de outro -destoava desta, mas tais eram uma e outra que, apesar da expanso da -segunda, no houve represso nem briga. Ao jantar, falaram pouco. -Paulo referia os sucessos amorosamente. Conversara com alguns -co-religionarios e soube do que se passra noite e de manh, a -marcha e a reunio dos batalhes no campo, as palavras de Ouro Preto -ao marechal Floriano, a resposta deste, a aclamao da Republica. A -familia ouvia e perguntava, no discutia, e esta moderao contrastava -com a gloria de Paulo. O silencio de Pedro principalmente era como um -desafio. No sabia Paulo que a propria me que o pedira ao irmo com -muitos beijos, motivo que em tal momento, ia com o aperto do corao do -rapaz. - -O corao de Paulo, ao contrario, era livre, deixava circular o sangue, -como a felicidade. Os sentimentos republicanos, em que os principios -se incrustavam viviam alli to fortes e quentes, que mal deixavam ver -o abatimento de Pedro e o acanhamento da outra gente sua. Ao fim do -jantar, bebeu Republica, mas calado, sem ostentao, apenas olhando -paaa o tecto, e levantando o copo um tantinho mais que de costume. -Ninguem replicou por outro gesto ou palavra. - -Certamente, o moo Pedro quiz dizer alguma phrase de piedade -relativamente ao regimen imperial e s pessoas de Bragana, mas a -me quasi que no tirava os olhos delle, como impondo ou pedindo -silencio. De mais, elle no cria nada mudado; a despeito de decretos -e proclamaes, Pedro imaginava que tudo podia ficar como d'antes, -alterado apenas o pessoal do governo. Custa pouco, dizia elle baixinho - me, ao deixarem a mesa; s o imperador falar ao Deodoro. - -Paulo saiu, logo depois do jantar, promettendo vir cedo. A me, -receiosa de o ver mettido em barulhos, no queria que elle saisse; mas -outro receio fel-a consentir, e este era que os dous irmos brigassem -finalmente. Assim um medo vence a outro, e a gente acaba por dar o -que negou. No menos certo que ella raciocinou alguns minutos antes -de resolver, do mesmo modo que eu escrevi uma pagina antes da que vou -escrever agora; mas ambos ns, Natividade e eu, acabamos por deixar que -os actos se praticassem, sem opposio della, nem commentario meu. - - - -CAPITULO LXVI - - -O basto e a espadilha - - -Vieram amigos da casa, trazendo noticias e boatos. Variavam pouco e -geralmente no havia opinio segura acerca do resultado. Ninguem sabia -se a victoria do movimento era um bem, se um mal, apenas sabiam que -era um facto. Dalli a ingenuidade com que alguem propoz o voltarete -do costume, e a boa vontade de outros em acceital-o. Santos, embora -declarase que no jogava, mandou pr as cartas e os tentos, mas os -outros opinaram que sempre faltava um parceiro, e sem elle, no -havia graa. Quiz resistir; no era bonito que no proprio dia em que -o regimen caira ou ia cair, entregasse o espirito a recreaes de -sociedade... No pensou isto em voz alta nem baixa, mas comsigo, e -talvez o leu no rosto da mulher. Acharia um pretexto para resistir, -se buscasse algum, mas amigos e cartas no deixavam buscar nada. -Santos acabou acceitando. Provalmente era essa mesma a inclinao -intima. Muitas ha que precisam ser attrahidas c fora, como um favor -ou concesso da pessoa. Emfim, o basto e a espadilha fizeram naquella -noite o seu officio, como as mariposas e as ratos, os ventos e as -ondas, o lume das estrellas e o somno dos cidados. - - - - -CAPITULO LXVII - - -A noite inteira - - -Saindo de casa, Paulo foi de um amigo, e os dous entraram a buscar -outros da mesma edade e egual intimidade. Fram aos jornaes, ao quartel -do Campo, e passaram algum tempo deante da casa de Deodoro. Gostavam -de ver os soldados, a p ou a cavallo, pediam licena, falavam-lhes, -offereciam cigarros. Era a unica concesso destes; nenhum lhes contou o -que se passara, nem todos saberiam nada. - -No importa, iam cheios de si. Paulo era o mais enthusiasta e convicto. -Aos outros valia s a mocidade, que utn programma, mas o filho de -Santos tinha frescas todas as ideias do novo regimen, e possuia ainda -outras que no via acceitar; bater-se-ia por ellas. Trazia at a desejo -de achar alguem na rua, que soltasse um grito, j agora sedicioso, para -he quebrar a cabea com a bengala. Note-se que esquecera ou perdera a -bengala. No deu por falta della; se dsse, bastavam-lhe os braos e as -mos. - -Propoz cantarem a _Marselheza_; os outros no quizeram ir to longe, -no por medo, seno de canados. Paulo, que resistia mais que elles -fadiga, lembrou-lhes esperar a aurora. - ---Vamos esperal-a do alto de um morro, ou da praia do Flamengo; teremos -tempo de dormir amanh. - ---Eu no posso, disse um. - -Os outros repetiram a recusa, e assentaram de ir para suas casas. Era -perto de duas horas. Paulo acompanhou-os a todos, e s depois de ver o -ultimo recolhido foi ssinho para Botafogo. - -Quando entrou, deu com a me que esperava por elle, inquieta e -arrependida de o haver deixado sair. Paulo no achou desculpa e -censurou a me por no dormir, espera delle. Natividade confessou que -no teria somno, antes de o saber em casa so e salvo. Falavam baixo e -pouco; tendo-se beijado antes, beijaram-se depois e despediram-se. - ---Olha, disse Natividade, se achares Pedro acordado no lhe contes nem -lhe perguntes nada; dorme, e amanh saberemos tudo e o mais que se -passar esta noite. - -Paulo entrou no quarto p ante p. Era ainda aquelle vasto quarto -em que os dous gemeos brigaram por causa de duas velhas gravuras, -Robespierre e Luiz XVI. Agora, havia mais que os retratos, uma -revoluo de poucas horas e um governo fresco. Obedecendo ao conselho -da me, Paulo no quiz saber se Pedro dormia, posto desconfiasse que -no. Effectivamente, no. Pedro viu as cautellas de Paulo, e cumpriu -tambem os conselhos da me; fingiu que no via nada. At ahi os -conselhos; mas um pouco de gloria fez com que Paulo cantarolasse entre -os dentes, baixinho, para si, a primeira estrophe da _Marselheza_ que -os amigos tinham recusado fra: - - Allons, enfants de la patrie, - Le jour de gloire est arriv! - -Pedro percebeu antes pela toada que pela letra, e concluiu que a -inteno do outro era affligil-o. No era, mas podia ser. Vacillou -entre a rplica e o silencio, at que uma ideia fantastica lhe -atravessou o cerebro, cantarolar, tambem baixinho, a segunda parte -da estrophe: _Entendez-vous dans vos campagnes..._, que allude s -tropas estrangeiras, mas desviada do natural sentido historico, para -restringil-a s tropas nacionaes. Era um desforo vago, a ideia passou -depressa. Pedro contentou-se de simular a indifferena suprema do -somno. Paulo no acabou a estrophe; despiu-se agitado, sem tirar o -pensamento da victoria dos seus sonhos politicos. No se metteu logo -na cama; foi primeiro do irmo, a ver se dormia. Pedro respirava -to naturalmente, como se no perdera nada. Teve impeto de acordal-o, -bradar-lhe que perdera tudo, se alguma cousa era a instituio -derribada. Recuou a tempo e foi metter-se entre os lenes. - -Nenhum dormia. Emquanto o somno no chegava, iam pensando nos -acontecimentos do dia, ambos espantados de como fram faceis e rapidos. -Depois cogitavam no dia seguinte e nos effeitos ulteriores. No admira -que no chegassem mesma concluso. - ---Como diabo que elles fizeram isto, sem que ninguem dsse pela -cousa? reflectia Paulo. Podia ter sido mais turbulento. Conspirao -houve, de certo, mas uma barricada no faria mal. Seja como fr, -venceu-se a campanha. O que preciso no deixar esfriar o ferro, -batel-o sempre, e renoval-o. Deodoro uma bella figura. Dizem que a -entrada do marechal no quartel, e a saida, puxando os batalhes, fram -esplendidas. Talvez faceis de mais; que o regimen estava pdre e caiu -por si... - -Emquanto a cabea de Paulo ia formulando essas ideias, a de Pedro ia -pensando o contrario; chamava ao movimento um crime. - ---Um crime e um disparate, alm de ingratido; o imperador devia ter -pegado os principaes cabeas e mandal-os executar. Infelizmente, as -tropas iam com elles. Mas nem tudo acabou. Isto fogo de palha; -daqui a pouco est apagado, e o que antes era torna a ser. Eu acharei -duzentos rapazes bons e promptos, e desfaremos esta caranquejola. A -apparencia que d um ar de solidez, mas isto nada. Ho de ver que -o imperador no sae daqui, e, ainda que no queira, ha de governar; -ou governar a filha, e, na falta della, o neto. Tambem elle ficou -menino e governou. Amanh tempo; por ora tudo so flores. Ha ainda um -punhado de homens... - -A reticencia final dos discursos de ambos quer dizer que as ideias -se iam tornando esgaradas, nevoentas e repetidas, at que se -perderam e elles dormiram. Durante o somno, cessou a rovoluo e a -contra-revoluo, no houve monarchia nem republica, D. Pedro II nem -marechal Deodoro, nada que cheirasse a politica. Um e outro sonharam -com a bella enseada de Botafogo, um cu claro, uma tarde clara e uma s -pessoa: Flora. - - - - -CAPITULO LXVIII - - -De manh - - -Flora abriu os olhos de ambos, e esvaiu-se to depressa que elles mal -puderam ver a harpa do vestido e ouvir uma palavrinha meiga e remota. -Olharam um para o outro, sem rancor apparente. O receio de um e a -esperana de outro deram tregoas. Correram aos jornaes. Paulo, meio -tonto, temia alguma traio sobre a madrugada. Pedro tinha uma ideia -vaga de restaurao, e contava ler nas folhas um decreto imperial da -amnistia. Nem traio nem decreto, A esperana e o receio fugiram deste -mundo. - - - - -CAPITULO LXIX - - -Ao piano - - -Emquanto elles sonhavam com Flora, esta no sonhou com a republica. -Teve uma daquellas noites em que a imaginao dorme tambem, sem olhos -nem ouvjdos, ou, quando muito, a retina no deixa ver claro, e as -orelhas confundem o som de um rio com o latir de um co remoto. No -posso dar melhor definio, nem ella precisa; cada um de ns ter -tido dessas noites mudas e apagadas. - -No sonhou sequer com musica; e, alis tocra antes algumas das suas -paginas queridas. No as tocou somente por gostar dellas, seno -por fugir consternao dos paes, que era grande. Nenhum d'estes -podia crr que as instituies tivessem caido, outras nascido, tudo -mudado. D. Claudia ainda appellava para o dia seguinte e perguntava -ao marido se vira bem, e o que que vira; elle mordia os beies, -batia na perna, erguia-se, dava alguns passos, e tornava a narrar os -acontecimentos, as noticias colladas s portas dos jornaes, a priso -dos ministros, a situao, tudo extincto, extincto, extincto... - -Flora no era avessa piedade, nem esperana, como sabeis; mas -no ia com a agitao dos paes, e metteu-se com o seu piano e as -suas musicas. Escolheu no sei que sonata. Tanto bastou para lhe -tirar o presente. A musica tinha para ella a vantagem de no ser -presente, passado ou futuro; era uma cousa fra do tempo e do espao, -uma idealidade pura. Quando parava, succedia-lhe ouvir alguma -phrase solta do pae ou da me: ...Mas como foi que...?--Tudo s -escondidas...--Ha sangue? s vezes um delles fazia algum gesto, -e ella no via o gesto. O pae, com a alma tropega, falava muito e -incoherente. A me trazia outro vigor. J lhe succedia calar por -instantes, como se pensasse, ao contrario do marido que, em se calando, -coava a cabea, apertava as mos ou suspirava, quando no ameaava o -tecto com o punho. - ---_L, l, d, r, sol, r, r, l_, ia dizendo o piano da filha, por -essas ou por outras notas, mas eram notas que vibravam para fugir aos -homens e suas dissenses. - -Tambem se pde achar na sonata de Flora uma especie de accordo com -a hora presente. No havia governo definitivo. A alma da moa ia -com esse primeiro albor do dia, ou com esse derradeiro crepusculo -da tarde,--como queiras,--em que nada to claro ou to escuro que -convide a deixar a cama ou accender velas. Quando muito, ia haver -um governo provisorio. Flora no entendia de frmas nem de nomes. A -sonata trazia a sensao da falta absoluta de governo, a anarchia da -innocencia primitiva naquelle recanto do Paraiso que o homem perdeu -por desobediente, e um dia ganhar, quando a perfeio trouxer a -ordem eterna e unica. No haver ento progresso nem regresso, mas -estabilidade. O seio de Abraho agazalhar todas as cousas e pessoas, e -a vida ser um cu aberto. Era o que as teclas lhe diziam sem palavras, -_r, r, l, sol, l, l, d..._ - - - - -CAPITULO LXX - - -De uma concluso errada - - -Os successos vieram vindo, medida que as flores iam nascendo. Destas -houve que serviram ao ultimo baile do anno. Outras morreram na vespera. -Poetas de um e outro regimen tiraram imagem do facto para cantarem a -alegria e a melancolia do mundo. A differena que a segunda abafava -os seus suspiros, em quanto a primeira levava longe os seus tripudios. -O metal das trompas dava outro som que o das harpas. As flores que -continuavam a nascer e morrer, egual e regularmente. - -D. Claudia colheu as rosas do ultimo baile do anno, primeiro da -Republica, e adornou a filha com ellas. Flora obedeceu e acceitou-as. -Pae de familia antes de tudo, Baptista acompanhou a esposa e a -filha ao baile. Tambem l foi Paulo, pela moa e pelo regimen. Se, -em conversa com o ex-presidente de provincia, disse todo o bem que -pensava do Governo Provisorio, no lhe ouviu palavras de accordo nem de -contestao. No entrou mais fundo na confisso do homem, porque a moa -o attraia, e elle gostava mais della que do pae. - -Flora viu uma semelhana entre o baile da ilha Fiscal e este, apesar de -particular e modesto. Este era dado por pessoa que vinha dos tempos da -propaganda e um dos ministros l esteve, ainda que s meia hora. Dahi a -ausencia de Pedro, apesar de convidado. Flora sentiu a falta de Pedro, -como sentira a de Paulo na ilha; tal era a semelhana das duas festas. -Ambas traziam a ausencia de um gemeo. - ---Porque que seu irmo no veiu? perguntou ella. - -Paulo enfiou; depois de alguns instantes: - ---Pedro teimoso, disse. Teimou em recusar o convite. Cr naturalmente -que a monarchia levou a arte de danar. No faa caso; um lunatico. - ---No diga isso. - ---Acha tambem que a dana se foi com o imperio? - ---No, a prova que estamos danando. No; digo que lhe no chame -nomes feios. - ---Parece-lhe ento que Pedro um rapaz de juizo? - ---Certamente, como o senhor. - ---Mas... - -Paulo ia a perguntar-lhe qual d'elles, tendo ella de jurar por um ou -por outro, lhe mereceria o juramento; mas recuou a tempo. Ento ella -falou do calor, e elle achou que sim, que estava quente. Acharia que -estava frio, se ella se queixasse de frio. Flora, se s cedesse -vista, era tambem capaz de acceitar todas as opinies de Paulo, para ir -com elle. Em verdade, Paulo tinha agora um ar brilhante e petulante, -olhava por cima, firme em que os seus escriptos de um anno que haviam -feito a Republica, posto que incompleta, sem certas ideias que expozera -e defendera, e teriam de vir um dia, breve. Tal ia dizendo moa, e -ella escutava com prazer, sem opinio; era s o gosto de o escutar. -Quando a lembrana de Pedro surgia na cabea da moa, a tristeza -empanava a alegria, mas a alegria vencia depressa a outra, e assim -acabou o baile. Ento as duas, tristeza e alegria, agazalharam-se no -corao de Flora, como as suas gemeas que eram. - -O baile acabou. O capitulo que no acaba sem que deixe um pouco de -espao a quem quizer pensar naquella creatura. Pae nem me podiam -entendel-a, os rapazes tambem no, e provavelmente Santos e Natividade -menos que ninguem. Tu, mestra de amores ou alumna delles, tu que -escutas a diversos, conclues que ella era... Custa pr o nome do -officio. Se no fosse a obrigao de contar a historia com as proprias -palavras, preferia calal-o, mas tu sabes qual elle, e aqui fica. -Conclues que Flora era namoradeira, e conclues mal. - -Leitora, melhor negar j isto que esperar pelo tempo. Flora no -conhecia as douras do namoro, e menos ainda se podia dizer namoradeira -de officio. A namoradeira de officio a planta das esperanas, -e alguma vez das realidades, se a vocao o impe e a occasio o -permitte. Tambem preciso ter em lembrana aquillo de um publicista, -filho de Minas e do outro seculo, que acabou senador, e escrevia contra -os ministros adversarios: Pitangueira no d manga. No, Flora no -dava para namorados. - -A prova disto que no Estado em que viveu alguns mezes de 1801, com o -pae e a me, para o fim que direi adiante, ninguem alcanou o menor dos -seus olhares amigos ou sequer complacentes. Mais de um rapaz consumiu -o tempo em se fazer visto e attrahido della. Mais de uma gravata, mais -de uma bengala, mais de uma luneta levaram-lhe as cres, os gestos e os -vidros, sem obter outra cousa que a atteno cortez e acaso uma palavra -sem valor. - -Flora s se lembrava dos gemeos. Se nenhum delles a esqueceu, ella no -os perdeu de memoria, Ao contrario, escrevia por todos os correios a -Natividade para se fazer lembrada de ambos. As cartas falavam pouco da -terra ou da gente, e no diziam mal nem bem. Usavam muito a palavra -saudades, que cada um dos dous gemeos lia para si. Tambem elles a -escreviam nas cartas que mandavam a D. Claudia e a Baptista, com a -mesma inteno duplicada e e mysteriosa, que ella entendia muito bem. - -Taes eram de longe, ella e elles. A rixa velha, que os desunia na vida, -continuava a desunil-os no amor. Podiam amar cada um a sua moa, casar -com ella e ter os seus filhos, mas preferiam amar a mesma, e no ver -o mundo por outros olhos, nem ouvir melhor verbo, nem diversa musica, -antes, durante e depois da commisso do Baptista. - - - - -CAPITULO LXXI - - -A commisso - - -L me escapou a palavra. Sim, foi uma commisso dada ao pae, e da qual -no sei nada, nem ella. Negocio reservado. Flora chamava-lhe commisso -do inferno. O pae, sem ir to fundo, concordava mentalmente com ella; -verbalmente, desmentia a definio. - ---No digas isso, Flora; commisso de confiana para fins nobremente -politicos. - -Creio que sim, mas dahi a saber o objecto especial e real, ia largo -espao. Tambem no se sabe como foi parar s mos de Baptista aquelle -recado do governo. Sabe-se que elle no desprezou a escolha, quando -um amigo intimo correu a chamal-o ao palacio do generalissimo. Viu -que era reconhecer nelle muita finura e capacidade de trabalho. No - menos certo, porm, que a commisso entrava a aborrecel-o, posto -que na correspondencia official dissesse exactamente o contrario. Se -taes papeis mostrassem sempre o corao da gente, Baptista, cujas -instruces eram, alis, de concordia, parecia querer levar a concordia -a ferro e fogo; mas o estylo no o homem. O corao de Baptista -fechava-se, quando elle escrevia, e deixava ir a mo adiante, com a -chave do corao apertada... J tempo, suspirava o musculo, j -tempo de um logar de governador. - -Quanto a D. Claudia, nao queria ver acabada a commisso, que restituia -ao esposo a aco politica; faltava-lhe smente uma cousa, opposio. -Nenhum jornal dizia mal delle. Aquelle prazer de ler todas as manhs -as descomposturas dos adversarios, lel-as e relel-as com os seus nomes -feios, como lategos de muitas pontas, que lhe rascavam as carnes e -a excitavam ao mesmo tempo, esse prazer no lhe dava a commisso -reservada. Ao contrario, havia uma especie de aposta em achar o -commissario justo, equitativo e conciliador, digno de admirao, typo -civico, caracter sem macula. Tudo isto ella conheceu outr'ora, mas para -lhe achar sabor foi sempre preciso que viesse entremeado de ralhos -e calumnias. Sem elles, era agua ensossa. Tambem no tinha aquella -parte de ceremonias a que obrigava o summo cargo, mas no lhe faltavam -attenes, e era alguma cousa. - - - - -CAPITULO LXXII - - -O regresso - - -Quando o marechal Deodoro dissolveu o congresso nacional, em 3 de -novembro, Baptista recordou o tempo dos manifestos liberaes, e quiz -fazer um. Chegou a principial-o, em segredo, empregando as belIas -phrases que trazia de cr, citaes latinas, duas ou trez apostrophes. -D. Claudia reteve-o beira do abysmo, com razes claras e robustas. -Antes de tudo, o golpe de Estado podia ser um beneficio. Serve-se muita -vez a liberdade parecendo suffocal-a. Depois, era o mesmo homem que a -havia proclamado que convidava agora a nao a dizer o que queria, e -a emendar a constituio, salvo nas partes essenciaes. A palavra do -generalissimo, como a sua espada, bastava a defender e consummar a obra -principiada. D. Claudia no tinha estylo proprio, mas sabia communicar -o calor do discurso ao corao de um homem de boa vontade. Baptista, -depois de a escutar e pensar, bateu-lhe no hombro imperativamente. - ---Tens razo, filha. - -No rasgou o papel escripto; queria guardal-o como simples lembrana, -e a prova que ia escrever uma carta ao presidente. D. Claudia tambem -lhe tirou esta ideia da cabea. No havia necessidade de lhe mandar o -seu suffragio; bastava conservar-se na commisso. - ---O governo no est satisfeito com voc? - ---Est. - ---Vendo que voc se conserva, conclue que approva tudo, e basta. - ---Sim, Claudia, concordou elle aps alguns instantes. Ao contrario, -qualquer cousa que escrevesse contra a assembla sediciosa que o -presidente acaba de dissolver, pareceria falta de piedade. Paz aos -mortos! Tens razo, filha. - -Conservou-se calado, operando, fiel s instruces recebidas. Vinte -dias depois, o marechal Deodoro passava o governo s mos do marechal -Floriano, o congresso era restabelecido e todos os decretos do dia 3 -annullados. - -Ao saber de taes factos, Baptista pensou morrer. Ficou sem fala por -alguns instantes, e D. Claudia no achou a menor parcella de animo -que lhe dsse. Nenhum contra com a marcha rapida dos acontecimentos, -uns sobre outros, com tal atropello que parecia um bando de gente que -fugia. Vinte dias apenas; vinte dias de fora e socego, esperanas e -grande futuro. Um dia mais e tudo ruiu como casa velha. - -Agora que Baptista comprehendeu o erro de haver dado ouvidos -esposa. Se tem acabado e publicado o manifesto no dia 4 ou 5, estaria -com um documento de resistencia na mo para reivindicar um posto de -honra qualquer,--ou s estima que fosse. Releu o manifesto; chegou a -pensar em imprimil-o, embora incompleto. Tinha conceitos bons, como -este; O dia da oppresso a vespera da liberdade. Citava a bella -Roland caminhando para a guilhotina; liberdade, quantos crimes em -teu nome! D. Claudia fez-lhe ver que era tarde, e elle concordou. - ---Sim, tarde. Naquelle dia que no era tarde, vinha hora propria, -para o effeito certo. - -Baptista amarrotou o papel distrahidaraente; depois alisou-o e -guardou-o. Em seguida, fez um exame de consciencia, profundo e sincero. -No devia ter cedido; a resistencia era o melhor; se tem resistido s -palavras da mulher, a situao seria outra. Apalpou-se, achou que sim, -que podia muito bem haver-lhe trancado os ouvidos e passado adiante. -Insistiu muito neste ponto. Se pudesse, faria voltar atraz o tempo, e -mostraria como que a alma escolhe de si mesma o melhor dos partidos. -No era preciso saber nada do que anteriormente succedeu; a consciencia -dizia-lhe que, era situao identica do dia 3, faria outra cousa... -Oh! com certeza! faria cousa muito diversa, e mudaria o seu destino. - -Um officio ou telegrarama veiu arrancar Baptista commisso politica -e reservada, A volta para o Rio de Janeiro foi breve e triste, sem os -epithetos que o haviam regalado por alguns mezes, nem acompanhamento de -amigos. S uma pessoa vinha alegre, a filha, que rezara todas as noites -pela terminao daquelle exilio. - ---Parece que ests contente com o desastre de teu pae, disse-lhe a me -j a bordo. - ---No, mame; alegro-me de ver que acabou esta canceira. Papae pde -muito bem fazer politica no Rio de Janeiro, onde muito apreciado, -A senhora ver. Eu, se fosse papae, apenas desembarcasse, ia logo ao -marechal explicar tudo, mostrar as instruces e dizer o que tinha -feito; dizia mais que a dispensa veiu muito a proposito, afim de no -parecer que ficara amofinado. Depois pedia-lhe para trabalhar l -mesmo... - -D. Claudia, a despeito do amargor dos tempos, gostou de ver que a filha -pensava e dava conselhos em politica. No advertiu, como fez o leitor, -que a alma do discurso da moa era no sair da capital, fazer aqui -mesmo o seu congresso, que em breve seria uma s assembla legislativa, -como no Rio Grande do Sul; mas a qual das cantaras, Pedro ou Paulo, -caberia esse unico poder politico? Eis o que ella mesma no sabia. - -Ambos se lhe apresentaram a bordo, logo que o paquete entrou no -porto do Rio de Janeiro. No fram em duas lanchas, fram na mesmo, -e saltaram com tal presteza para a escada, que escaparam de cair ao -mar. Talvez fosse o melhor desfecho do livro. Ainda assim no acaba -mal o capitulo, porque a razo da presteza com que elles saltaram para -a escada foi a ambio de ser o primeiro que comprimentasse a moa; -aposta de amor, que ainda uma vez os egualou na alma della. Emfim -chegaram, e no consta qual effectivamente a cumprimentou primeiro; -pde ser que ambos. - - - - -CAPITULO LXXIII - - -Um El-Dorado - - -No caes Pharoux esperavam por elles trez carruagens,--dous _coups_ e -um _landau_, com trez bellas parelhas de cavallos. A gente Baptista -ficou lisonjeada com a fineza da gente Santos, e entrou no _landau._ Os -gemeos foram cada um no seu _coup._ A primeira carruagem tinha o seu -cocheiro e o seu lacaio, fardados de castanho, botes de metal branco, -em que se podiam ver as armas da casa. Cada uma das outras tinha -apenas o cocheiro, com egual libr. E todas trez se puzeram a andar, -estas atraz daquella, os animaes batendo rijo e compassado, a golpes -certos, como se houvessem ensaiado, por longos dias, aquella recepo. -De quando em quando, encontravam outros trens, outras librs, outras -parelhas, a mesma belleza e o mesmo luxo. - -A capital offerecia ainda aos recem-chegados um espectaculo magnifico. -Vivia-se dos restos daquelle deslumbramento e agitao, epopeia de ouro -da cidade e do mundo, porque a impresso total que o mundo inteiro -era assim mesmo. Certo, no lhe esqueceste o nome, encilhamento, a -grande quadra das emprezas e companhias de toda especie. Quem no viu -aquillo no viu nada. Cascatas de ideias, de invenes, de concesses -rolavam todos os dias, sonoras e vistosas para se fazerem contos de -reis, centenas de contos, milhares, milhares de milhares, milhares -de milhares de milhares de contos de reis. Todos os papeis, alis -aces, saam frescos e eternos do prelo. Eram estradas de ferro, -bancos, fabricas, minas, estaleiros, navegao, edificao, exportao, -importao, ensaques, emprestimos, todas as unies, todas as regies, -tudo o que esses nomes comportam e mais o que esqueceram. Tudo andava -nas ruas e praas, com estatutos, organisadores e listas. Letras -grandes enchiam as folhas publicas, os titulos succediam-se, sem que se -repetissem, raro morria, e s morria o que era frouxo, mas a principio -nada era frouxo. Cada aco trazia a vida intensa e liberal, alguma vez -immortal, que se multiplicava daquella outra vida com que a alma acolhe -as religies novas. Nasciam as aces a preo alto, mais numerosas que -as antigas crias da escravido, e com dividendos infinitos. - -Pessoas do tempo, querendo exagerar a riqueza, dizem que o dinheiro -brotava do cho, mas no verdade. Quando muito, caia do cu. Candido -e Cacambo... Ai, pobre Cacambo nosso! Sabes que o nome daquelle -indio que Basilio da Gama cantou no _Uruguay._ Voltaire pegou delle -para o metter no seu livro, e a ironia do philosopho venceu a doura -do poeta. Pobre Jos Basilio! tinhas contra ti o assumpto estreito e a -lingua escusa. O grande homem no te arrebatou Lindoya, felizmente, mas -Cacambo delle, mais delle que teu, patricio da minha alma. - -Candido e Cacambo, ia eu dizendo, ao entrarem no El-Dorado, conta -Voltaire que viram creanas brincando na rua com rodelas de ouro, -esmeralda e rubi; apanharam algumas, e na primeira hospedaria em que -comeram quizeram pagar o jantar com duas dellas. Sabes que o dono da -casa riu s bandeiras despregadas, j por quererem pagar-lhe com pedras -do calamento, j porque alli ninguem pagava o que comia; era o governo -que pagava tudo. Foi essa hilaridade do hospedeiro, com a liberalidade -attribuida ao Estado, que fez crr eguaes phenomenos entre ns, mas -tudo mentira. - -O que parece ser verdade que as nossas carruagens brotavam do cho. -s tardes, quando uma centena dellas se ia enfileirar no largo de S. -Francisco de Paula, espera das pessoas, era um gosto subir a rua -do Ouvidor, parar e contemplal-as. As parelhas arrancavam os olhos -gente; todas pareciam descer das rhapsodias de Homero, posto fossem -corceis de paz. As carruagens tambem. Juno certamente as apparelhra -com suas correias de ouro, freios de ouro, redeas de ouro, tudo de -ouro incorruptivel. Mas nem ella nem Minerva entravam nos vehiculos de -ouro para os fins da guerra contra Illion. Tudo alli respirava a paz. -Cocheiros e lacaios, barbeados e graves, esperando tezos e compostos, -davam uma bella ideia do officio. Nenhum aguardava o patro, deitado -no interior dos carros, com as pernas de fra. A impresso que davam -era de uma disciplina rigida e elegante, aprendida em alta escola e -conservada pela dignidade do individuo. - -Casos ha,--escrevia o nosso Ayres--em que a impassibilidade do -cocheiro na bola contrasta com a agitao do dono no interior da -carruagem, fazendo crr que o patro que, por desfastio, trepou -bola e leva o cocheiro a passear. - - - - -CAPITULO LXXIV - - -A alluso do texto - - -Antes de continuar, preciso dizer que o nosso Ayres no se referia -vagamente ou de modo generico a algumas pessoas, mas a uma s pessoa -particular. Chamava-se ento Nobrega; outr'ora no se chamava nada, era -aquelle simples andador das almas que encontrou Natividade e Perpetua -na rua de S. Jos, esquina da da Misericordia. No esqueceste que a -recente me deitou uma nota de dous mil reis bacia do andador. A nota -era nova e bella; passou da bacia algibeira, no fundo de um corredor, -no sem algum combate. - -Poucos mezes depois, Nobrega abandonou as almas a si mesmas, e foi a -outros purgatorios, para os quaes achou outras opas, outras bacias e -finalmente outras notas, esmolas de piedade feliz. Quero dizer que foi -a outras carreiras. Com pouco deixou a cidade, e no se sabe se tambem -o paiz. Quando tornou, trazia alguns pares de contos de reis, que a -fortuna dobrou, redobrou e tresdobrou. Emfim, alvoreceu a famosa quadra -do encilhamento. Esta foi a grande opa, a grande bacia, a grande -esmola, o grande purgatorio. Quem j sabia do andador das almas? A -antiga roda perdera-se na obscuridade e na morte. Elle era outro; as -feies no eram as mesmas, seno as que o tempo lhe veiu compondo e -melhorando. - -Se a grande bacia, ou qualqer das outras recebeu notas que tivessem o -destino da primeira, o que se no sabe, mas possivel. Foi por esse -tempo que Ayres o viu de carro, quasi a sair pela portinhola fra, -comprimentando muito, espiando tudo. Como o cocheiro e o lacaio (creio -que eram escossezes) salvassem a dignidade pessoal da casa, Ayres fez a -observao do fim do outro capitulo, sem nenhuma inteno geral. - -Posto no achasse j nenhum conhecido antigo, Nobrega tinha medo de -tornar ao bairro, onde andra a pedir para as primeiras almas. Um dia, -porm, taes fram as saudades delle que pensou em affrontar o perigo e -l foi. Tinha cocegas de mirar as ruas e as pessoas, recordava as casas -e as lojas, um barbeiro, os sobrados de grade de pau, onde appareciam -taes e taes moas... Quando ia a ceder, teve outra vez medo e enfiou -por outra parte. S passava de carro; depois quiz ver tudo a p, -devagar, parando, se fosse possivel, e revivendo o extincto. - -L se foi a p; desceu pela rua de S. Jos, dobrou a da Misericordia, -foi parar praia de Santa Luzia, tornou pela rua de D. Manuel, enfiou -de becco em becco. A principio olhava de esguelha, rapido, os olhos no -cho. Aqui via a loja de barbeiro, e o barbeiro era outro. Dos sobrados -de grade de pau debruaram-se ainda moas, velhas e meninas e nenhuma -era a mesma. Nobrega foi-se animando e. encarando. Talvez esta velha -fosse moa, ha vinte annos; a moa talvez mamasse, e d agora de mamar -a outra creana. Nobrega acabou parando e andando de vagar. - -Voltou mais vezes. S as casas, que eram as mesmas, pareciam -reconhecel-o, e algumas quasi que lhe falavam. No poesia. O -ex-andador sentia necessidade de ser conhecido das pedras, ouvir-se -admirar dellas, contar-lhes a vida, obrigal-as a comparar o modesto -de outr'ora com o garrido de hoje, e escutar-lhes as palavras -mudas: Vejam, manas, elle mesmo. Passava por,ellas, fitava-as, -interrogava-as, quasi ria, quasi as tocava para sacudil-as com fora: -Falem, diabos, falem! - -No confiaria de homem aquelle passado, mas s paredes mudas, s -grades velhas, s portas gretadas, aos lampies antigos, se os havia -ainda, tudo o que fosse discreto, a tudo quizera dar olhos, ouvidos e -bca, uma bca que s elle escutasse, e que proclamasse a prosperidade -daquelle velho andador. - -Uma vez, viu a matriz de S. Jos aberta e entrou. A egreja era a mesma; -aqui esto os altares, aqui est a solido, aqui est o silencio. -Persignou-se, mas no orou; olhava s a um lado e outro, andando na -direco do altar-mr. Tinha receio de ver apparecer o sacristo, podia -ser o mesmo, e conhecel-o. Ouviu passos, recuou depressa e saiu. - -Ao subir pela rua de S. Jos, encostou-se parede, para deixar passar -uma carroa. A carroa subiu a calada, elle refugiou-se n'um corredor. -O corredor podia ser qualquer; aquelle era o proprio em que elle fez -a operao da nota de dous mil reis de Natividade. Olhou bem, era o -mesmo. Ao fundo estavam os trez ou quatro degros da primeira escada -que dobrava esquerda e pegava com a grande. Sorriu do acaso, reviu -por um instante aquella manh, viu no ar a nota de dous mil reis. -Outras lhe teriam vindo s mos por maneiras assim faceis, mas nunca -lhe esqueceu aquella graciosa folha gravada com tantos symbolos, -numeros, datas e promessas, entregue por uma senhora desconhecida, sabe -Deus se a propria Santa Rita de Cassia. Era a sua particular devoo. -Sem duvida, trocou a nota e gastou-a, mas as partes dispersas no fram -seno levar a outras notas um convite para a algibeira do dono, e todas -acudiram a mancheias, obedientes e caladas, para que no as ouvissem -crescer. - -Por mais que elle olhasse pela vida dentro, no achava egual obsequio -do cu, ou sequer do inferno. Mais tarde, se alguma joia lhe levou os -olhos, no lhe levou as mos. Tinha aprendido a respeitar o alheio, ou -ganhra com que o comprar. A nota de dous mil reis... Um dia, ousando -mais, chamou-lhe presente de Nosso Senhor. - -No, leitor, no me apanhas em contradico. Eu bem sei que a principio -o andador das almas attribuiu a nota ao prazer que a dama traria de -alguma aventura. Ainda me lembram as palavras delle: Aquellas duas -viram passarinho verde! Mas se agora attribuia a nota proteco da -santa, no mentia ento nem agora. Era difficil atinar com a verdade. -A unica verdade certa eram os dous mil reis. Nem se pde dizer que era -a mesma em ambos os tempos. Ento, a nota de dous mil reis equivalia, -pelo menos, a vinte (lembra-te dos sapatos velhos do homem); agora no -subia de uma gorgeta de cocheiro. - -Tambem no ha contradico em pr a santa agora e a namorada outr'ora. -Era mais natural o contrario, quando era maior a intimidade delle com -egreja. Mas, leitor dos meus peccados, amava-se muito em 1871, como -j se amava em 1861, 1851 e 1841, no menos que em 1881, 1891 e 1901. -O seculo dir o resto. E depois, preciso no esquecer que a opinio -do andador das almas cerca de Natividade foi anterior ao gesto do -corredor, quando elle agazalhou a nota na algibeira. duvidoso que, -depois do gesto, a opinio fosse a mesma. - - - - -CAPITULO LXXV - - -Proverbio errado - - -Pessoa a quem li confidencialmente o capitulo passado, escreve-me -dizendo que a causa de tudo foi a cabocla do Castello. Sem as suas -predices grandiosas, a esmola de Natividade seria minima ou nenhuma, -e o gesto do corredor no se daria por falta de nota. A occasio faz o -ladro, conclue o meu correspondente. - -No conclue mal. Ha todavia alguma injustia ou esquecimento porque as -razes do gesto do corredor fram todas pias. Alm disso, o proverbio -pde estar errado. Uma das affirmaes de Ayres, que tambem gostava de -estudar adagios, que esse no estava certo. - ---No a occasio que faz o ladro, dizia elle a alguem; o proverbio -est errado. A frma exacta deve ser esta: A occasio faz o furto; o -ladro nasce feito. - - - - -CAPITULO LXXVI - - -Talvez fosse a mesma! - - -Nobrega saiu emfim do corredor, mas foi obrigado a deter-se, porque uma -mulher lhe estendia a mo: - ---Meu senhor, uma esmolinha por amor de Deus! - -Nobrega metteu a mo no bolso do collete e pegou um nickel, entre dous -que l havia, um de tosto, outro de dous. Pegou o primeiro, mas indo a -darlh'o, mudou de ideia; no deu o nickel; disse velha que esperasse, -e entrou mais fundo no corredor. De costas para a rua, introduziu a mo -na algibeira das calas e saccou um mao de dinheiro; procurou e achou -uma nota de dous mil reis, no nova, antes velha, to velha como a -mendiga que a recebeu espantada, mas tu sabes que o dinheiro no perde -com a velhice. - ---Tome l, murmurou elle. - -Quando a mendiga voltou do espanto, Nobrega acabava de restituir o -mao algibeira e ia a querer sair. O que a mendiga ento disse veiu -entremeado de lagrimas: - ---Meu senhor! Obrigada, meu senhor! Deus lhe pague! A Virgem -Santissima... - -E beijava a nota, e queria beijar a mo que lhe dera a esmola, mas -elle a escondeu, como no Evangelho, murmurando que no, que se fosse -embora. Em verdade, a palavra da mendiga tinha um som quasi mystico, -uma especie de melodia do cu, um cro de anjos, e fazia bem fitar-lhe -os olhos encarquilhados, a mo tremula, segurando a nota. Nobrega no -esperou que ella se fosse, saiu, desceu a rua, com as benos da mulher -atraz de si; dobrou a esquina, a passo rapido, e ahi foi pensando no -se sabe em qu. - -Atravessou a praa, passou a cathedral e a egreja do Carmo, e chegou -ao Carceller, onde entregou as botas a um italiano para que lh'as -engraxasse. Mentalmente, olhava para cima ou para baixo, para a direita -ou para esquerda,--em todo caso para longe,--e acabou murmurando -esta phrase, que tanto podia referir-se nota. como mendiga, mas -provavelmente era nota: - ---Talvez fosse a mesma! - -Nenhum obsequio, por infimo que seja, esquece ao beneficiado. Ha -excepes. tambem ha casos em que a memoria dos obsequios afflige, -persegue e morde, como os mosquitos; mas no regra. A regra -guardal-os na memoria, como as joias nos seus escrinios; comparao -justa, porque o obsequio muita vez alguma joia, que o obsequiado -esqueceu de restituir. - - - - -CAPITULO LXXVII - - -Hospedagem - - -A famlia Baptista foi aposentada em casa de Santos. Natividade no -pde ir a bordo, e o marido estava occupado em lanar uma companhia; -mandaram recado pelos filhos que a casa de Botafogo tinha j os quartos -preparados. Desde que o carro se poz a andar, Baptista confessou que ia -ficar constrangido por alguns dias. - ---N'uma casa de penso era melhor, at que nos despejassem a de S. -Clemente. - ---Que queria voc? No havia remedio seno acceitar, ponderou a mulher. - -Flora no disse nada, mas sentia o contrario do pae e da me. Pensar -no pensou; ia to atordoada com a vista dos rapazes que as ideias no -se enfileiraram naquella forma logica do pensamento. A propria sensao -no era nitida. Era uma mistura de oppressivo e delicioso, de turvo e -claro, uma felicidade truncada, uma afflico consoladora, e o mais que -puderes achar no capitulo das contradices. Eu nada mais lhe ponho. -Nem ella saberia dizer o que sentia. Teve allucinaes extraordinarias. - -Agora o que mister dizer que a ideia da hospedagem cabe toda aos -dous jovens doutores. Que elles eram j doutores, posto no houvessem -ainda encetado a carreira de advogado nem de medico. Viviam do amor -da me e da bolsa do pae, inexgotaveis ambos. O pae abanou as orelhas - lembrana, mas os gemeos insistiram pelo obsequio, a tal ponto que -a me, contente de os ver de accordo, saiu do silencio e concordou -com elles. A ideia de ter a pequena ao p de si, por alguns dias, e -discernir qual era o melhor acceito, e o que devras a amava, pde ser -que tambem influisse na adopo do voto, mas no affirmo nada a tal -respeito. Tambem no asseguro que tivesse grande gosto em agazalhar a -me e o pae de Flora. No obstante, o encontro foi cordial de parte a -parte. Foi um abraar, um beijar, um perguntar, um trocar de mimos que -no acabava mais. Todos estavam mais gordos, outra cr, outro ar. Flora -era um encanto para Natividade e Perpetua; nenhuma destas sabia aonde -iria parar aquella moa to senhoril, to esbelta, to... - ---No digam o resto, interrompeu a moa sorrindo; eu tenho a mesma -opinio. - -Santos recebeu-os, tarde, com a mesma cordialidade,--talvez menos -apparente, mas tudo se desculpa a quem anda com grandes negocios. - ---Uma ideia sublime, disse elle ao pae de Flora; a que lancei hoje foi -das melhores, e as aces valem j ouro. Trata-se de l de carneiro, -e comea pela criao deste mammifero nos campos do Paran. Em cinco -annos poderemos vestir a America e a Europa. Viu o programma nos -jornaes? - ---No, no leio jornaes daquir desde que embarquei. - ---Pois ver! - -No dia seguinte, antes de almoar, mostrou ao hospede o programma e os -estatutos. As aces eram maos e maos, e Santos ia dizendo o valor -de cada um. Baptista sommava mal, em regra; daquella vez, peor. Mas os -algarismos cresciam vista, trepavam uns nos outros, enchiam o espao, -desde o cho at s janellas, e precipitavam-se por ellas abaixo, com -um rumor de ouro que ensurdecia. Baptista saiu d'alli fascinado, e foi -repetir tudo mulher. - - - - -CAPITULO LXXVIII - - -Visita ao marechal - - -D. Claudia, quando elle acabou, perguntou-lhe com simplicidade: - ---Voc vae hoje ao marechal? - -Baptista, caindo em si: - ---Naturalmente. - -Tinham ajustado que elle iria ter com o presidente da Republica -explicar-lhe a commisso que exercera, toda reservada, e, sem embargo, -imparcial. Diria o espirito de concordia com que andou e a estima que -adquiriu. Em seguida, falaria da conveniencia de um governo que, pela -fortaleza e pela liberdade, excedesse o do generalissimo; e uma phrase -final bem estudada. - ---Isso na occasio, disse Baptista. - ---No, melhor leval-a feita. Eu lembrei-me desta: Creia V. Ex. que -Deus est com os fortes e os bons. - ---Sim, no m. - ---Voc pde accrescentar um gesto que indique cu. - ---Isso que no. Voc sabe que eu no dou para gestos, no sou actor. -Eu, sem mexer um p, inspiro respeito. - -D. Claudia dispensou o gesto; no era essencial. Quiz que elle -escrevesse a phrase, mas j estava de cr. Baptista tinha boa memoria. - -Naquelle mesmo dia, Baptista foi ao marechal Floriano. No disse nada -s pessoas da casa; contaria tudo na volta. D. Claudia tambem calou, -era por pouco tempo; ficou esperando anciosa. Esperou duas mortaes -horas, chegou a imaginar que lhe tivessem encarcerado o esposo, por -intrigas. No era devota, mas o medo inspira devoo, e ella rezou -comsigo. Emfim, chegou Baptista. Ella correu a recebel-o, alvoroada, -pegou-lhe na mo e recolheram-se ao quarto. Perpetua (vde o que so -testemunhos pessoaes na historia!) exclamou enternecida: - ---Parecem dous pombinhos! - -Baptista contou que a recepo foi melhor do que esperava, comquanto o -marechal no lhe dissesse nada, mas escutou-o com interesse. A phrase? -A phrase saiu bem, apenas com uma emenda. No estando certo se elle -preferia _bons a fortes_, ou se _fortes a bons..._ - ---Deviam ser as duas palavras, interrompeu a mulher. - ---Sim, mas lembrou-me empregar uma terceira: Creia V. Ex. que Deus -est com os dignos! - -Com effeito, a ultima palavra podia abranger as duas, e trazia esta -vantagem de dar phrase um arranjo pessoal delle. - ---Mas o marechal que disse? - ---No disse nada; ouviu-me com atteno obsequiosa e chegou a -sorrir,--um sorriso leve, um sorriso de accordo... - ---Ou seria... Quem sabe... Voc no andou bem, de certo. Commigo elle -diria alguma cousa. Voc expoz tudo, conforme tinhamos combinado? - ---Tudo. - ---Expoz as razes da commisso, o desempenho, a nossa moderao...? - ---Tudo, Claudia. - ---E o aperto de mo do marechal? - ---No estendeu a mo, a principio; fez um gesto de cabea; eu que -estendi a minha, dizendo: Sempre s ordens de V. Ex. - ---E elle? - ---Elle apertou-me a mo. - ---Apertou bem? - ---Voc sabe, no podia ser um aperto de amigo, mas deve ter sido -cordial. - ---E nenhuma palavra? Um _passe bem_, ao menos? - ---No, nem era preciso. Cortejei-o e sa. - -D. Claudia deixou-se estar pensando. A recepo no lhe pareceu que -fosse m, mas podia ser melhor. Com ella, seria muito melhor. - - - - -CAPITULO LXXIX - - -Fuso, diffuso, confuso... - - -Atraz falei das allucinaes de Flora. Realmente, eram extraordinarias. - -Em caminho, depois do desembarque, no obstante virem os gemeos -separados e ss, cada um no seu _coup_, scismou que os ouvia -falar; primeira parte da allucinao. Segunda parte: as duas vozes -confundiam-se, de to eguaes que eram, e acabaram sendo uma s. Afinal, -a imaginao fez dos dous moos uma pessoa unica. - -Este phenomeno no creio que possa ser commum. Ao contrario, no -faltar quem absolutamente me no creia, e supponha inveno pura o que - verdade purissima. Ora, de saber que, durante a commisso do pae, -Flora ouviu mais de uma vez as duas vozes que se fundiam na mesma voz e -mesma creatura. E agora, na casa de Botafogo, repetia-se o phenomeno. -Quando ouvia os dous, sem os ver, a imaginao acabava a fuso do -ouvido pela da vista, e um s homem lhe dizia palavras extraordinarias. - -Tudo isto no menos extraordinario, concordo. Se eu consultasse o meu -gosto, nem os dous rapazes fariam um s mancebo, nem a moa seria uma -s donzella. Corrigiria a natureza desdobrando Flora. No podendo ser -assim, consinto na unificao de Pedro e Paulo. Porquanto, esse effeito -de viso repetia-se ao p delles, tal qual na ausencia, quando ella se -deixava esquecer do logar, e soltava a redea a si mesma. Ao piano, -palestra, ao passeio na chacara, mesa de jantar, tinha dessas vises -repentinas e breves, e das quaes ella mesma sorria, a principio. - -Se alguem quizer explicar este phenomeno pela lei da hereditariedade, -suppondo que elle era a forma affectiva da variao politica da me -de Flora, no achar apoio em mim, e creio que em ninguem. So cousas -diversas. Conheceis os motivos de D. Claudia; a filha teria outros -que ella propria no sabia. O unico ponto de semelhana que, tanto -na me como na filha, o phenomeno era agora mais frequente, mas em -relao primeira vinha do atropello dos acontecimentos exteriores. -Nenhuma revoluo se faz como a simples passagem de uma sala a outra; -as mesmas revolues chamadas de palacio trazem alguma agitao que -fica por certo prazo, at que a agua volte ao nivel. D. Claudia cedia -inquietao dos tempos. - -A filha obedeceria a outra causa qualquer, que se no podia descobrir -logo, nem sequer entender. Era um espectaculo mysterioso, vago, -obscuro, em que s figuras visiveis se faziam impalpaveis, o dobrado -ficava unico, o unico desdobrado, uma fuso, uma confuso, uma -diffuso... - - - -CAPITULO LXXX - - -Transfuso, emfim - - -Uma transfuso, tudo o que puder definir melhor, pela repetio e -graduao das frmas e dos estados, aquelle particular phenomeno, pdes -empregal-o no outro e neste capitulo. - -Dito o phenomeno, preciso dizer tambem que Flora, a principio, -achava-lhe graa. Minto; nos primeiros tempos, como estava longe, no -lhe achou nada; depois, sentiu uma especie de susto ou vertigem, mas -logo que se acostumou a passar de dous a um e de um a dous, pareceu-lhe -graciosa a alternao, e chegava a evocal-a com o proposito de divertir -a vista. Afinal nem isto era preciso, a alternao fazia-se de si -mesma. Umas vezes era mais lenta que outras, alguma instantanea. No -eram to frequentes que confinassem com o delirio. Emfim, ella se foi -acostumando e deleitando. - -Uma ou outra vez, na cama, antes de dormir, repetia-se o phenomeno, -depois de muita resistencia da parte della, que no queria perder -o somno. Mas o somno vinha, e o sonho completava a vigilia. Flora -passeava ento pelo brao do mesmo garo amado, Paulo se no Pedro, e -ambos iam admirar estrellas e montanhas, ou ento o mar, que suspirava -ou tempestuava, e as flores e as ruinas. No era raro ficarem os dous -a ss, deante de uma nesga de cu, claro de luar, ou todo repregado -de estrellas como um panno azul escuro. Era janella, suppe; vinha -de fra a cantiga dos ventos mansos, um espelho grande, pendente da -parede, reproduzia as figuras della e delle, confirmando a imaginao -della. Como era sonho, a imaginao trazia espectaculos desconhecidos, -taes e tantos que mal se podia crr bastasse o espao de uma noite. E -bastava. E sobrava. Succedia que Flora acordava de repente, perdia o -quadro e o vulto, e persuadia-se que era tudo illuso, e raro ento -dormia. Se era cedo, erguia-se, andava, canava-se, at adormecer -novamente e sonhar outra cousa. - -Outras vezes, a viso ficava sem o sonho, e diante della uma s figura -esbelta, com a mesma voz namorada, o mesmo gesto supplice. Uma noite, -indo a deitar-lhe os braos sobre os hombros com o fim inconsciente -de cruzar os dedos atraz do pescoo, a realidade, posto que ausente, -clamou pelos seus fros, e o unico moo se desdobrou na duas pessoas -semelhantes. - -A differena deu s duas vises de acordada um tal cunho de -fantasmagoria que Flora teve medo e pensou no Diabo. - - - - -CAPITULO LXXXI - - -Ai, duas almas... - - -Anda, Flora, ajuda-me, citando alguma cousa, verso ou prosa, que -exprima a tua situao. Cita Goethe, amiga minha, cita um verso do -Fausto, adequado: - - Ai, duas almas no meu seio moram! - -A me dos gemeos, a bella Natividade podia havel-o citado tambem, antes -delles nascerem, quando ella os sentia lutando dentro em si mesma: - - Ai, duas almas no meu seio moram! - -Nisto as duas se parecem,--uma os concebeu, outra os recolheu. -Agora, como que se d ou se dar a escolha de Flora, nem o proprio -Mephistopheles nol-o explicaria de modo claro e certo. O verso basta: - - Ai, duas almas no meu seio moram! - -Talvez aquelle velho Placido, que l deixamos nas primeiras paginas, -chegasse a deslindar estas outras. Doutor em materias escuras e -complicadas, sabia muito bem o valor dos numeros, a significao dos -gestos no s visiveis como invisiveis, a estatistica da eternidade, -a divisibilidade do infinito. Era j morto deste alguns annos. Has de -lembrar-te que elle, consultado pelo pae de Pedro e Paulo, acerca da -hostilidade original dos gemeos, explicou-a promptamente. Morreu no seu -officio; expunha a trez discipulos novos a correspondencia das letras -vogaes com os sentidos do homem, quando caiu de bruos e expirou. - -J ento os adversarios de Placido,--que os tinha na propria -seita,--affirmavam haver elle aberrado da doutrina, e, por natural -effeito, enlouquecido. Santos nunca se deixou ir com esses divergentes -da casa commum, que acabaram formando outra egrejinha em outro bairro, -onde pregavam que a correspondencia exacta no era entre as vogaes e -os sentidos, mas entre os sentidos e as vogaes. Esta outra formula, -parecendo mais clara, fez com que muitos discipulos da primeira hora -acompanhassem os da ultima, e proclamem agora, como concluso final, -que o homem um alphabeto de sensaes. - -Venceram estes, ficando mui poucos fieis doutrina do velho Placido. -Evocado algum tempo depois de morto, confessou elle ainda uma vez a sua -formula, como a unica das unicas, e excommungou a quantos prgassem -o contrario. Alis, os dissidentes j o haviam excommungado tambem, -declarando abominavel a sua memoria, com aquelle odio rijo, que -fortalece alguma vez o homem contra a frouxido da piedade. - -Talvez o velho Placido deslindasse o problema em cinco minutos. Mas -para isso era preciso evocal-o, e o discipulo Santos cuidava agora de -umas liquidaes ultimas e lucrativas. No s de f vive o homem, mas -tambem de po e seus compostos e similares. - - - - -CAPITULO LXXXII - - -Em S. Clemente - - -Ao cabo de poucas semanas, a familia Baptista saiu da casa Santos, -e tornou rua de S. Clemente. A despedida foi terna, as saudades -comearam antes da separao, mas a affeio, o costume, a estima,--a -necessidade, em summa, de se verem a miudo compensaram a melancolia, e -a gente Baptista levou promessa de que a gente Santos iria vel-a dahi a -poucos dias. - -Os gemeos cumpriram cedo a promessa. Um delles, parece que Paulo, foi -l nessa mesma noite com recado da me para saber se tinham chegado -bem. Disseram-lhe que sim, accrescentando Baptista, para abreviar a -visita, que estavam bastante canados. Os olhos de Flora desmentiram -esta affirmao; mas dentro em pouco achavam-se no menos tristes que -alegres. A alegria vinha da promptido de Paulo, a tristeza da ausencia -de Pedro. Quizera-os ambos naturalmente; mas, como que as duas -sensaes se mostravam a um tempo, eis o que no entenders bem nem -mal. Certamente, os olhos iam diversas vezes para a porta, e uma vez -pareceu moa ouvir rumor na escada; tudo illuso. Mas estes gestos, -que Paulo no viu, to contente estava de se haver adiantado ao irmo, -no eram taes que a fizessem esquecer o irmo presente. - -Paulo saiu tarde, no s para o fim de aproveitar a ausencia de Pedro, -mas ainda porque Flora o fazia demorar, com o intuito de ver se o outro -chegava. Assim que, a mesma dualidade de sensao enchia os olhos da -moa, at hora da despedida, em que a parte triste foi maior que a -alegre, pois que eram duas ausencias, em vez de uma. Conclue o que -quizeres, minha dona; ella recolheu-se para dormir, e reconheceu que, -se se no dorme com uma tristeza na alma, muito menos com duas. - - - - -CAPITULO LXXXIII - - -A grande noite - - -Ha muito remedio contra a insomnia. O mais vulgar contar de um -at mil, dous mil, trez mil ou mais, se a insomnia no ceder logo. - remedio que ainda no fez dormir ninguem, ao que parece, mas no -importa. At agora, todas as applicaes efficazes contra a tisica vo -de par com a noo de que a tisica incuravel. Convem que os homens -affirmem o que no sabem, e, por officio, o contrario do que sabem; -assim se frma esta outra incuravel, a Esperana. - -Flora, incuravel tambem, se no preferes a definio de inexplicavel, -que lhe deu Ayres, a graciosa Flora teve naquella noite a sua insomnia. -Mas foi um tanto culpa sua. Em vez de se deitar quietinha e dormir com -os anjos, achou melhor velar com um ou dous delles, e gastar uma parte -da noite, janella ou sentada, a recordar e a pensar, a cotejar e a -completar, mettida no roupo de linho, com os cabellos atados para -dormir. - -A principio pensou no que l estivera, e evocou todas as suas graas, -realadas pela virtude particular de a ter ido ver noite, sem embargo -de se terem visto de manh. Sentia-se grata. Toda a conversao foi -alli repetida na solido da alcova, com as intonaes diversas, o vario -assumpto, e as interrupes frequentes, ora dos outros, ora della -mesma. Ella, em verdade, s interrompia, para pensar no ausente,--e -portanto no fazia mais que converter o dialogo em monologo, o qual por -sua vez acabava em silencio e contemplao. - -Agora, pensando em Paulo, queria saber porque que o no escolhia para -noivo. Tinha uma qualidade a mais, a nota aventurosa do caracter, e -esta feio no lhe desprazia. Inexplicavel ou no, deixava-se levar -pelos impotos do rapaz, que queria trocar o mundo e o tempo por outros -mais puros e felizes. Aquella cabea, apenas masculina, era destinada -a mudar a marcha do sol, que andava errado. A lua tambem. A lua pedia -um contacto mais frequente com os homens, menos quartos, no descendo o -minguante do metade. Visivel todas as noites, sem que isso acarretasse -a decadencia das estrellas, continuaria modestamente o officio do sol, -e faria sonhar os olhos insomnes ou s canados de dormir. Tudo isso -cumpriria a alma de Paulo, faminta de perfeio. Era um bom marido, em -summa. Flora cerrou as palpebras, para vel-o melhor, o achou-o a seus -ps, com as mos della entre as suas, risonho e extatico. - ---Paulo! meu querido Paulo! - -Inclinou-se, para vel-o de mais perto, e no perdeu o tempo nem a -inteno. Visto assim, era mais bello que simplesmente couversando -das cousas vulgares e passageiras. Enfiou os olhos nos olhos, e -achou-se dentro da alma do rapaz. O que l viu no soube dizel-o bem; -foi tudo to novo e radiante que a pobre retina de moa no podia -fitar nada com segurana nem continuidade. As ideias faiscavam como -saindo de um fogareiro fora de abano, as sensaes batiam-se em -duelo, as reminiscencias subiam frescas, algumas saudades, e ambies -principalmente, umas ambies de azas largas, que faziam vento s com -agital-as. Sobre toda essa mescla e confuso chovia ternura, muita -ternura... - -Flora recolheu os olhos, Paulo estava na mesma postura; mas do lado -da porta, mettido na penumbra, a figura de Pedro apparecia, no menos -bella, mas um tanto triste. Flora sentiu-se tocada daquella tristeza. -Parece que, se amasse exclusivamente o primeiro, o segundo podia -chorar lagrimas de sangue, sem lhe merecer a menor sympathia. Que o -amor, conforme as nymphas antigas e modernas, no tem piedade. Quando -ha piedade para outro, dizem ellas, que o amor ainda no nasceu de -verdade, ou j morreu de todo, e assim o corao no lhe importa vestir -essa primeira camisa do affecto. Perdoa a figura; no nobre, nem -clara, mas a situao no me d tempo de ir cata de outra. - -Pedro approximou-se, a passo lento, ajoelhou-se tambem e tomou-lhe -as mos que Paulo apertava entre as suas. Paulo ergueu-se e sumiu-se -pela outra porta. O quarto tinha duas. A cama ficava entre ellas. -Talvez Paulo fosse bramindo de colera; ella que no ouviu nada, to -docemente vivo era o gesto de Pedro, j agora sem melancolia, e os -olhos to extaticos como os do irmo. No eram taes que saissem, como -os deste, s aventuras. Tinham a quietao de quem no queria mais sol -nem lua que esses que andam ahi, que se contenta de ambos, e, se os -acha divinos, no cuida de os trocar por novos. Era a ordem, se queres, -a estabilidade, o accordo entre si e as cousas, no menos sympathicos -ao corao da moa, ou por trazerem a ideia de perpetua ventura, ou por -darem a sensao de uma alma capaz de resistir. - -Nem por isso os olhos de Flora deixaram de penetrar os de Pedro, at -chegar alma do rapaz. O motivo secreto desta outra entrada podia -ser o escrupulo de cotejar as duas para julgal-as, se no era smente -o desejo de no parecer menos curiosa de uma que de outra. Ambas as -razes so boas, mas talvez nenhuma fosse verdadeira. O gosto de fitar -os olhos de Pedro era to natural que no exigia inteno particular -nenhuma, e bastava fital-os para escorregar e cair dentro da alma -namorada. Era gemea da outra; no lhe viu mais nem menos que nesta. - -Unicamente,--e aqui toco o ponto escabroso do capitulo,--achou c -alguma cousa indefinivel que no sentira l; em compensao sentiu l -outra que no se lhe deparou c. Indefinivel, no esqueas. E escabroso -porque nada ha peor que falar de sensaes sem nome. Crde-me, amigo -meu, e tu, no menos amiga minha, crde-me que eu preferia contar as -rendas do roupo da moa, os cabellos apanhados atraz, os fios do -tapete, as taboas do tecto e porfim os estalinhos da lamparina que vae -morrendo... Seria enfadonho, mas entendia-se. - -Sim, a lamparina ia morrendo, mas ainda podia dar luz ao regresso de -Paulo. Quando Flora o viu entrar e ajoelhar-se outra vez, ao p do -irmo, e ambos dividirem entre si as mos della, mansos e cordatos, -ficou longa mente attonita. Obra de um credo, como diziam os nossos -antigos, quando havia mais religio que relogios. Voltando a si, -puxou as mos, estendeu-as depois sobre a cabea delles, como se lhes -apalpasse a differena, o _quid_, o algo, o indefinivel. A lamparina ia -morrendo... Pedro e Paulo falavam-lhe por exclamaes, por exhortaes, -por supplicas, a que ella respondia mal e tortamente, no que os no -entendesse, mas por no os aggravar, ou acaso por no saber a qual -delles diria melhor. A ultima hypothese tem ar de ser a mais provavel. -Em todo caso, o prologo do que succedeu, quando a lamparina chegou -aos ultimos arrancos. - -Tudo se mistura, meia claridade; tal seria a causa da fuso dos -vultos, que de dous que eram, ficaram sendo um s. Flora, no tendo -visto sair nenhum dos gemeos, mal podia crr que formassem agora uma -s pessoa, mas acabou crndo, mormente depois que esta unica pessoa -solitaria parecia completal-a interiormente, melhor que nenhuma das -outras em separado. Era muito fazer e desfazer, mudar e transmudar. -Pensou enganar-se, mas no; era uma s pessoa, feita das duas e de si -mesma, que sentia bater nella o corao. Estava to canada de emoes -que tentou erguer-se e ir fra, mas no pde; as pernas pareciam de -chumbo e colladas ao solo. Assim esteve, at que a lamparina, ao canto, -morreu de todo. Flora teve um sobresalto na poltrona, e ergueu-se: - ---Que isto? - -A lamparina apagou-se. Foi accendel-a. Viu ento que estava sem um nem -outro, sem dous nem um s fundido de ambos. Toda a fantasmagoria se -desfizera. A lamparina (agora nova) alumiava o seu quarto de dormir, -e imaginao crera tudo. Foi o que ella suppoz, e o leitor sabe. -Flora comprehendeu que era tarde, e um gallo confirmou essa opinio, -cantando; outros gallos fizeram a mesma cousa. - ---Ora, meus Deus! exclamou a filha de Baptista. - -Metteu-se na cama, e, se no dormiu logo, tambem no se demorou muito; -no tardou a estar com os anjos. Sonhou com o canto dos gallos, uma -carroa, um lago, uma scena de viagem do mar, um discurso e um artigo. -O artigo era de verdade. A me veiu acordal-a, s dez horas da manh, -chamando-lhe dorminhoca, e alli mesmo, na cama, lhe leu uma folha da -manh que recommendava o marido ao governo. Flora ouviu satisfeita; -acabara a grande noite. - - - - -CAPITULO LXXXIV - - -O velho segredo - - -Natividade dormiu tranquilla, em Botafogo, mas acordou pensando nos -filhos e na moa de S. Clemente. Viera reparando nos trez. Parecera-lhe -antes que Flora no acceitava um nem outro, logo depois que os -acceitava a ambos, e mais tarde um e outro alternadamente. Concluiu -que ainda no sentiria nada particular e decisivo; naturalmente iria -com os tempos, a ver qual destes a merecia deveras. Elles que -pareciam sentir egual inclinao e egual ciume. Dahi alguma possivel -catastrophe. A separao no supprimiria tudo; mas, alm de que, -separadas as familias, nem tudo seria presente a seus olhos, as visitas -podiam ser menos frequentes e at raras. Tinha assim o que quizera. - -Ao demais, ia chegando o tempo de ir para Petropolis; propriamente, -chegra. Natividade cuidava de subir com os filhos. Sempre haveria l -no alto damas elegantes, diverses, alegria. Podia ser at que elles -achassem noivas, e bastava uma para um. O que ficasse sem ella teria -a liberdade de desposar Flora. Calculos de me; vieram outros que os -modificaram, e outros que os restauraram. Quem fr me que lhe atire a -primeira pedra. - -Nenhuma outra me atirou a primeira pedra nossa amiga. Quero crr -que a razo disto no foi seno a propria discrio de Natividade. -Suspeitas e calculos iam ficando no corao della. Calou tudo e esperou. - -Ao cabo, Flora cada vez gostava mais de Natividade. Queria-lhe como se -ella fosse sua me, duplamente me, uma vez que no escolhera ainda -nenhum dos filhos. A causa podia ser que as duas indoles se ajustassem -melhor que entre Flora e D. Claudia. A principio, sentiu no sei que -inveja amiga, antes desejo, quando via que as frmas da outra, embora -arruinadas pelo tempo, ainda conservavam alguma linha da esculptura -antiga. Pouco a pouco, foi descobrindo em si mesma o introito de uma -belleza, que devia ser longa e fina, e de uma vida, que podia ser -grande... - -Flora conhecia a predico da cabocla do Castello, relativamente aos -dous gemeos. A predico no era j segredo para ninguem. Santos falara -della em tempo, apenas occultando a subida de Natividade ao Castello; -emendou a verdade, dizendo que a cabocla que viera a Botafogo. O -resto foi revelado em confiana, como ao finado Placido, e ainda depois -de alguma luta. Trez ou quatro vezes investiu e recuou. Um dia, a -lingua deu sete voltas na bca, e o segredo saiu medroso e sussurrado, -mas perdeu o medo pelo gosto de mostrar que os rapazes seriam grandes. -Emfim, o segredo foi esquecendo. Mas Perpetua, por isto ou aquillo, -contou-o agora moa Baptista, que a ouviu incredula. Que podia saber -a cabocla do futuro? - ---Sabia, e a prova que adivinhou outras cousas, que no posso contar -e eram verdadeiras. Voc no imagina como o diacho da cabocla via -longe. E tinha uns olhos de espetar o corao. - ---No acredito, D. Perpetua. Pois agora o futuro da gente... E grandes -como? - ---Isso no disse por mais que Natividade lhe perguntasse; disse s -que seriam grandes e subiriam muito. Talvez venham a ser ministros de -Estado. - -Perpetua parecia haver comprado os olhos cabocla. Enfiava-os pela -amiga abaixo, at o corao, que alis no batia com fora nem -apressado, mas to regular como de costume. Entretanto, no sendo -impossivel que os dous rapazes chegassem aos altos deste mundo, Flora -deixou de objectar e acceitou a predico, sem outra palavra mais que -um gesto,--sabes, creio,--um gesto de boca, fazendo descair os cantos -della, levantando os hombros levemente, e espalmando as mos, como se -dissesse: Emfim, pde ser. - -Perpetua accresceptou que, mudado o regimen, era natural que Paulo -chegasse primeiro grandeza,--e aqui espetou bem os olhos. Era um -modo de de apanhar os sentimentos de Flora, acenando-lhe com a elevao -de Paulo, pois bem podia ser que viesse a amar antes o destino que a -pessoa. No achou nada. Flora continuou a no se deixar ler. No lhe -attribuas isto a calculo, no era calculo. Seriamente, no pensava em -nada acima de si. - - - - -CAPITULO LXXXV - - -Trez constituies - - ---Voc cr deveras que venhamos a ser grandes homens? perguntra Pedro -a Paulo, antes da queda do imperio. - ---No sei; voc pode vir a ser, quando menos, primeiro ministro. - -Depois de 15 de novembro, Paulo retorquiu a pergunta, e Pedro respondeu -como o irmo, emendando o resto: - ---No sei; voc pde vir a ser presidente da republica. - -J l iam dous annos. Agora pensavam mais em Flora que na subida. A -boa moral pede que ponhamos a cousa publica acima das pessoaes, mas os -moos nisto se parecem com velhos e vares de outra edade, que muita -vez pensam mais em si que em todos. Ha excepes, nobres algumas, -outras nobilissimas. A historia guarda muitas dellas, e os poetas, -epicos e tragicos, esto cheios de casos e modelos de abnegao. - -Praticamente, seria exigir muito de Pedro e Paulo que cuidassem mais -da constituio de 24 de fevereiro que da moa Baptista. Pensavam em -ambas, verdade, e a primeira j dera logar a alguma troca de palavras -acerbas. A constituio, se fosse gente viva, e estivesse ao p delles, -ouviria os ditos mais contrarios deste mundo, porque Pedro ia ao ponto -de a achar um poo de iniquidades, e Paulo a propria Minerva nascida -da cabea de Jove. Falo por metaphora para no descair do estylo. Em -verdade, elles empregavam palavras menos nobres e mais emphaticas, e -acabavam trocando as primeiras entre si. Na rua, onde o encontro de -manifestaes politicas era commum, e as noticias porta dos jornaes -frequente, tudo era occasio de debate. - -Quando, porm, a imagem de Flora apparecia entre elles por imaginao, -o debate esmorecia, mas as injurias continuavam e at cresciam, -sem confisso do novo motivo, que era ainda maior que o primeiro. -Effectivamente, elles iam chegando ao ponto em que dariam as duas -constituies, a republicana e a imperial, pelo amor exclusivo da moa, -se tanto fosse exigido. Cada um faria com ella a sua constituio, -melhor que outra qualquer deste mundo. - - - - -CAPITULO LXXXVI - - -Antes que me esquea - - -Uma cousa preciso dizer antes que me esquea. Sabes que os dous -gemeos eram bellos e continuavam parecidos; por esse lado no suppunham -ter motivo de inveja entre si. Ao contrario, um e outro achavam em si -qualquer cousa que accentuava, seno melhorava, as graas communs. No -era verdade, mas no a verdade que vence, a convico. Convence-te -de uma ideia, e morrers por ella, escreveu Ayres por esse tempo no -_Memorial_, e accrescentou: nem outra a grandeza dos sacrificios, -mas se a verdade acerta com a convico, ento nasce o sublime, e atraz -delle o util... No acabou ou no explicou esta phrase. - - - - -CAPITULO LXXXVII - - -Entre Ayres e Flora - - -Aquella citao do velho Ayres faz-me lembrar um ponto em que elle e a -moa Flora divergiam ainda mais que na edade. J contei que ella, antes -da commisso do pae, defendia Pedro e Paulo, conforme estes diziam mal -um do outro, Naturalmente fazia agora a mesma cousa, mas a mudana do -regimen trouxe occasio de defender tambem monarchistas e republicanos, -segundo ouvia as opinies de Paulo ou de Pedro. Espirito de conciliao -ou de justia, applacava a ira ou o desdem do interlocutor: No diga -isso... So patriotas tambem... Convem desculpar algum excesso... -Eram s phrases, sem impeto de paixo nem estimulo de principios; e o -interlocutor concluia sempre: - ---A senhora boa. - -Ora, o costume de Ayres era o opposto dessa contradico benigna. -Has-de lembrar-te que elle usava sempre concordar com o interlocutor, -no por desdem da pessoa, mas para no dissentir nem brigar. Tinha -observado que as convices, quando contrariadas, descompem o rosto - gente, e no queria ver a cara dos outros assim, nem dar sua um -aspecto abominavel. Se lucrasse alguma cousa, v; mas, no lucrando -nada, preferia ficar em paz com Deus e os homens. Dahi a arranjo de -gestos e phrases affirmativas que deixavam os partidos quietos, e mais -quieto a si mesmo. - -Um dia, como ella estivesse com Flora, falou daquelle costume della, -dizendo-lhe que parecia estudado. Flora negou que o fosse; era -inclinao natural defender os ausentes, que no podiam responder por -nada; demais, applacava assim um dos gemeos com quem falasse, e depois -o outro. - ---Tambem concordo. - ---E porque ha de o senhor concordar sempre? perguntou ella sorrindo. - ---Posso concordar com a senhora, porque uma delicia ir com as suas -opinies, e seria mau gosto rebatel-as, mas, em verdade, no ha -calculo. Com os mais, se concordo, porque elles s dizem o que eu -penso. - ---Ja o tenho achado em contradico. - ---Pde ser. A vida e o mundo no so outra cousa. A senhora no saber -isto bem, porque moa e ingenua, mas creia que a vantagem toda -sua. A ingenuidade o melhor livro e a mocidade a melhor escola. V -desculpando esta minha pedanteria; alguma vez um mal necessario. - ---No se accuse, conselheiro. O senhor sabe que eu no creio nada -contra a sua palavra, nem contra a sua pessoa; a propria contradico -que lhe acho agradavel. - ---Tambem concordo. - ---Concorda com tudo. - ---Olha aqui, Flora; d licena, conselheiro? - -Esqueceu-me dizer que esta conversao era porta de uma loja de -fazendas e modas, rua do Ouvidor. Ayres ia na direco do largo de S. -Francisco de Paula e viu a me e a filha dentro, sentadas, a escolher -um tecido. Entrou, comprimentou-as, e veiu porta com a filha. O -chamado de D. Claudia interrompeu a conversao por alguns instantes. -Ayres ficou a olhar para a rua, onde subiam e desciam mulheres de todas -as classes, homens de todos os officios, sem contar as pessoas paradas -de ambos os lados e no centro. No havia borborinho grande, nem socego -puro, um meio termo. - -Talvez algumas pessoas fossem conhecidas de Ayres e o comprimentassem; -mas este tinha a alma to mettida em si mesma que, se falou a uma ou -duas, foi o mais. De quando em quando, voltava a cabea para dentro, -onde Flora e a me faziam a sua consulta. Ouvia as palavras trocadas -ainda agora. Sentia-se curioso de saber se finalmente a moa escolhia -a um dos gemeos, e qual destes. V tudo; tinha j pezar que no fosse -algum, posto no lhe importasse saber se Pedro ou Paulo. Quizera vel-a -feliz, se a felicidade era o casamento, e feliz o marido, sem embargo -da excluso; o excluido seria consolado. Agora, se era por amor delles, -se della, o que propriamente se no pde dizer com verdade. Quando -muito, para levantar a ponta do veu, seria preciso entrar na alma -delle, ainda mais fundo que elle mesmo. L se descobriria acaso, entre -as ruinas de meio celibato, uma flr descorada e tardia de paternidade, -ou, mais propriamente, de saudade della... - -Flora trouxe novamente a rosa fresca e rubra da primeira hora. No -falaram mais de contradico, mas da rua, da gente e do dia. Nenhuma -palavra cerca de Pedro ou Paulo. - - - - -CAPITULO LXXXVIII - - -No, no, no - - -Elles, onde quer que estivessem naquelle momento, podiam falar ou no. -A verdade que, se nenhum consentia em deixar a moa, tambem nenhum -contava obtel-a, por mais que a achassem inclinada. Tinham j combinado -que o rejeitado acceitaria a sorte, e deixaria o campo ao vencedor. No -chegando a victoria, no sabiam como resolver a batalha. Esperar, seria -o mais facil, se a paixo no crescesse, mas a paixo crescia. - -Talvez no fosse exactamente paixo, se dermos a esta palavra o sentido -de violencia; mas, se lhe reconhecermos uma forte inclinao de amor, -um amor adolescente ou pouco mais, era o caso. Pedro e Paulo cederiam a -mo da pequena, se houvessem de consultar s a razo, e mais de uma vez -estiveram a pique de o fazer; raro lampejo, que para logo desapparecia. -A ausencia era j insoffrivel, a presena necessaria. Se no fra o que -aconteceu e se contar por essas paginas adiante, haveria materia para -no acabar mais o livro; era s dizer que sim e que no, e o que estes -pensaram e sentiram, e o que ella sentia e pensou, at que o editor -dissesse: basta! Seria um livro de moral e de verdade, mas a historia -comeada ficaria sem fim. No, no, no... Fora continual-a e -acabal-a. Comecemos por dizer o que os dous gemeos ajustaram entre si, -poucos dias depois daquelle sonho ou delirio da moa Flora, noite, no -quarto. - - - -CAPITULO LXXXIX - - -O drago - - -Vejamos o que que estes ajustaram. Vinham de estar com Ayres no -theatro, uma noite, matando o tempo. Conheceis este drago; toda a -gente lhe tem dado os mais fundos golpes que pde, elle esperneia, -expira e renasce. Assim se fez naquella noite. No sei que theatro foi, -nem que pea, nem que genero; fosse o que fosse, a questo era matar o -tempo, e os trez o deixaram estirado no cho. - -Fram dall a um _restaurant._ Ayres disse-lhes que, antigamente, -em rapaz, acabava a noite com amigos da mesma edade. Era o tempo de -Offenbach e d opereta. Contou anecdotas, disse as peas, descreveu -as damas e os partidos, quasi deu por si repetindo um trecho, musica -e palavras. Pedro e Paulo ouviam com atteno, mas no sentiam nada -do que espertava os cos da alma do diplomata. Ao contrario, tinham -vontade de rir. Que lhes importava a noticia da um velho caf da rua -Uruguayana, trocado depois em theatro, agora em nada, uma gente que -viveu e brilhou, passou e acabou antes que elles viessem ao mundo? O -mundo comeou vinte annos antes daquella noite, e no acabaria mais, -como um viveiro de moos eternos que era. - -Ayres sorriu, porquanto elle tambem assim cuidou, aos vinte e dous -annos de edade, e ainda se lembrava do sorriso do pae, j velho, quando -lhe disse algo parecido com isso. Mais tarde, tendo adquerido do tempo -a noo idealista que ora possuia, comprehendeu que tal drago era -juntamente vivo e defunto, e tanto valia matal-o como nutril-o. No -obstante, as recordaes eram doces, e muitas dellas viviam ainda -frescas, como se viessem da vespera. - -A differena da edade era grande, no podia entrar em pormenores com -elles. Ficou s em lembranas, e cuidou de outra cousa. Pedro e Paulo, -entretanto, receiosos de que elle os adivinhasse e comprehendesse o -desprezo que lhes inspiravam as saudades de tempos remotos e extranhos, -pediram-lhe informaes, e elle deu as que podia, sem intimidade. - -Ao cabo, a conversao valeu mais que este resumo, e a separao no -custou pouco. Paulo ainda lhe pediu Offenbach, Pedro uma descripo das -paradas de 7 de setembro e 2 de dezembro; mas o diplomata achou meio de -saltar ao presente e particularmente a Flora, que louvou como uma bella -creatura. Os olhos de ambos concordaram que era bellissima. Tambem -louvou as qualidades moraes, a finura do espirito, taes dotes que Pedro -e Paulo reconheceram tambem, e dahi a conversao, e porfim o ajuste a -que me referi no comeo deste capitulo e pede outro. - - - -CAPITULO XC - - -O ajuste - - ---Quanto a mim, um de vocs gosta della, seno ambos, disse Ayres. - -Pedro mordeu os beios, Paulo consultou o relogio; iam j na rua. -Ayres concluiu o que sabia, que sim, que ambos, e no trepidou em -dizel-o, accrescentando que a moa no era como a Republica, que um -podia defender e outro atacar; cumpria ganhal-a ou perdel-a de vez. -Que fariam elles, dada a escolha? Ou j estava feita a escolha, e o -preterido teimava em a torcer para si? - -Nenhum, falou logo, posto que ambos sentissem necessidade de explicar -alguma cousa. Tinham que a escolha no era clara ou decisiva. -Outrosim, que lhes cabia o direito de esperar a preferencia, e fariam -o diabo para alcanal-a. Taes e outras ideias vagavam silenciosamente -nelles, sem sair c fra. A razo percebe-se, e devia ser mais de -uma,--primeiro, a materia da conversao,--depois, a gravidade do -interlocutor. Por mais que Ayres abrisse as portas franqueza dos -rapazes, estes eram rapazes e elle velho. Mas o assumpto em si era to -seductor, o corao, apesar de tudo, to indiscreto, que no houve -remedio se no falar, mas falar negando. - ---No me neguem, interrompeu Ayres; a gente madura sabe as manhas da -gente nova, e adivinha com facilidade o que ella faz. Nem preciso -adivinhar; basta ver e ouvir. Vocs gostam della. - -Elles sorriam, mas j agora com tal amargor e acanhamento que mostravam -o desgosto da rivalidade, alis sabida delles. Tal rivalidade era -tambem sabida de outros, devia sel-o de Flora, e a situao lhes -parecia agora mais complicada e fechada que d'antes. - -Tinham chegado ao largo da Carioca, era uma hora da noite. Uma victoria -da Santos esperava alli os rapazes, a conselho e por ordem da me, -que buscava todas as occasies e meios de os fazer andar juntos e -familiares. Teimava em emendara natureza. Levava-os muita vez a -passeio, ao theatro, a visitas. Naquella noite, como soubesse que iam -ao theatro, mandou aprestar a victoria que os conduziu para a cidade, e -ficou espera delles. - ---Entre, conselheiro, disse Pedro, o carro d para, trez: eu vou no -banquinho da frente. - -Entraram e partiram. - ---Bem, continuou Ayres, certo que vocs gostam della, e egualmente -certo que ella ainda no escolheu entre os dous. Provavelmente, -no sabe que faa. Um terceiro resolveria a crise porque vocs se -consolariam depressa; tambem eu me consolei em rapaz. No havendo -terceiro, e no se podendo prolongar a situao, porque que vocs no -combinam alguma cousa? - ---Combinar qu? perguntou Pedro sorrindo. - ---Qualquer cousa. Combinem um modo de cortar este n gordio. Cada um -que siga a sua vocao. Voc Pedro, tentar primeiro desatal-o; se elle -no puder, Paulo, voc pegue da espada de Alexandre, e d-lhe o golpe. -Fica tudo feito e acabado. Ento o destino, que os espera, com duas -bellas creaturas, vir trazel-as pela mo a um e a outro, e tudo se -compe na terra como no cu. - -Ayres disse mais cousas antes de se apear porta da casa. Apeado, -ainda lhes perguntou: - ---Estamos de accordo? - -Os dous responderam de cabea affirmativamente, e, ficando ss, no -disseram nada. Que fossem pensando, natural, e porventura o tempo -lhes pareceu curto entre o Cattete e Botafogo. Chegaram casa, subiram -a escada do jardim, falaram da temperatura, que Pedro achava deliciosa -e Paulo abominavel, mas no disseram assim para no irritar um ao -outro. A esperana do ajuste que os levava moderao relativa e -passageira. Vivam os fructos pendentes do dia seguinte! - -C estava o quarto espera delles, um brinco de arranjo e graa, de -commodidade e repouso. Era a me que dava os ltimos retoques todos -os dias; ella cuidava das flres que seriam postas nos vasinhos de -porcellana, e ella mesma as ia tirar noite e pr fra das janellas -para que elles no as respirassem dormindo. C estavam as velas ao p -das duas camas, mettidas nos seus castiaes de prata, um com o nome de -Pedro, outro com o de Paulo, gravados. Tapetinhos de suas mos, laos -dados por ella nos cortinados, finalmente o retrato della e o do marido -pendurados parede, entre as duas camas, naquelle mesmo logar em que -estiveram os de Luiz XVI e Robespierre, comprados na rua da Carioca. - -Ao p de cada um dos castiaes acharam um biIhetinho de Natividade. -Aqui est o que ella dizia: Algum de vocs quer ir commigo missa, -amanh? Faz annos que seu av morreu, e Perpetua est adoentada. -Natividade esquecera de lhes falar antes, e, alis, andava bem sem -elles, mormente de carruagem; mas gostava de os ter comsigo. - -Pedro e Paulo riram do convite e da frma, e um delles propoz que, -para agradar me, fossem ambos missa. A acceitao da proposta -veiu prompta; j no era harmonia, era uma especie de dialogo na mesma -pessoa. O cu parecia escrever o tratado de paz que ambos teriam de -assignar; ou, se preferes, a natureza corrigia as indoles, e os dous -rixosos comeavam a ajustar o ser e o parecer. Tambem no juro isto, -digo o que se pde crr s pelo aspecto das cousas. - ---Vamos missa, repetiram. - -Seguiu-se um grande silencio. Cada um ruminava o ajuste e o modo -de o propor. Emfim, de cama a cama, disseram o que lhes parecia -melhor, propuzeram, discutiram, emendaram e concluiram sem escriptura -de tabellio, apenas por acceitao de palavra. Poucas clausulas. -Confessando que no podiam assegurar a escolha de Flora, concordaram em -esperar por ella durante um prazo curto; trez mezes. Dada a escolha, o -rejeitado obrigava-se a no tentar mais nada. Como tivessem a certeza -final da escolha, o accordo era facil; cada um no faria mais que -excluir o outro. No obstante, se ao fim do prazo, nenhuma escolha -houvesse, cumpria adoptar uma clausula ultima. A primeira que acudiu -foi deixarem ambos o campo, mas no os seduziu. Lembrou-lhes recorrer - sorte, e aquelle que fosse designado por ella, deixaria o campo ao -rival. Assim passou uma hora de conversao, aps a qual, cuidaram de -dormir. - - - - -CAPITULO XCI - - -Nem s a verdade se deve s mes - - -s nove horas da manh seguinte, Natividade estava prompta para ir -missa que mandava dizer na matriz da Gloria; nenhum dos filhos se lhe -apresentou. - ---Parece que dormem. - -E duas, trez, quatro, cinco vezes, foi at porta do quarto a ver -se ouvia rumor, como resposta ao bilhete que deixara. Nada. Concluiu -que teriam entrado tarde. S no atinou que dormissem sobre o ajuste, -nem que ajuste era. Uma vez que o fizessem em cama ffa, tudo ia bem. -Emfim, acabou de calar as luvas, desceu, entrou no carro e foi para a -egreja. - -A missa era anniversaria, como dizia o bilhete. Uso velho; o pae -tinha a sua missa, a me outra, os irmos e parentes outras. No -lhe esqueciam datas obituarias, como no lhe esqueciam natalicias, -quaesquer que fossem, amigas ou parentas; trazia-as todas de cr. Doce -memoria! Ha pessoas a quem no ajudas, e chegam a brigar comsigo e com -outros por abandono teu. Felizes os que tu proteges; esses sabem o -que 24 de maro, 10 de agosto, 2 de abril, 7 e 31 de outubro, 10 de -novembro, o anno todo, suas tristezas e alegrias particulares. - -Voltando casa, viu Natividade os dous filhos no jardim, espera -della. Elles correram a abrir-lhe a portinhola do carro, e depois de a -apearem e lhe beijarem a mo, explicaram a falta. Tinham resolvido ir -ambos, mas o somno... - ---O somno e a preguia, concluiu a me rindo. - ---Foi s o somno, disse Pedro. - ---Accordamos agora mesmo, acabou Paulo. - -Disputaram dar-lhe o brao; Natividade os satisfez dando um brao a -cada um. Em casa, ao mudar de roupa, Natividade reflectiu que, se Flora -lhes tivesse feito algum pedido, elles accordariam cedo, por mais tarde -que se deitassem; a memoria serviria de despertador. Passou-lhe uma -sombra rapida, mas depressa se reconciliou com a differena. Assim que, -no foi por ciume, mas para os trazer a outras seduces e separal-os -da guerra ante a bella Flora, que a me teimou em levar os filhos para -Petropolis. Subiriam na primeira semana de janeiro. A estao seria -excellente; annunciou festas, citou nomes, notou-lhes que Petropolis -era a cidade da paz. O governo pde mudar c embaixo e nas provincias... - ---Que provincias, mame? atalhou Paulo. - -Natividade sorriu e emendou. - ---Nos Estados. Vae desculpando os descuidos de tua me. Bem sei que -so Estados; no so como as provindas antigas, no esperam que o -presidente lhes v aqui da Crte... - ---Que Crte, baroneza? - -Agora os dous riram, me e filho. Passado o riso, Natividade continuou: - ---Petropolis a cidade da paz; , como dizia outro dia o conselheiro -Ayres, a cidade neutra, a cidade das naes. Se a capital do Estado -fosse alli, no haveria deposio de governo. Petropolis,--vejam vocs -que o nome, apesar da origem, ficou e ficar,-- de todos. A estao -dizem que vae ser encantadora... - ---Eu no sei se posso ir j, disse Paulo. - ---Nem eu, acudiu Pedro. - -Ainda uma vez estavam de accordo, mas aqui o accordo trazia -provavelmente o divorcio, reflectiu a me, e o prazer que lhe deram -aquellas duas palavras morreu depressa. Perguntou-lhes que razo -tinham para ficar e at quando. Se estivessem estabelecidos com o seu -consultorio medico e a sua banca de advogado, era bem; mas, se nenhum -delles comeara ainda a carreira, que fariam c embaixo, quando ella e -o marido... - ---Justamente; eu tenho que fazer uns estudos de clinica na Santa Casa, -respondeu Pedro. - -Paulo explicou-se. No ia praticar a advocacia, mas precisava de -consultar certos documentos do sculo XVII na Bibliotheca Nacional; ia -escrever uma historia das terras possuidas. - -Nada era verdade, mas nem s a verdade se deve dizer s mes. -Natividade ponderou que elles podiam fazer tudo entre as duas baras -de Petropolis; desciam, almoavam, trabalhavam, e s quatro horas -subiriam, como a demais gente. Em cima achariam visitas, musica, -bailes, mil cousas bellas, sem contar as manhs, a temperatura e os -domingos. Elles defenderam o estudo, como sendo melhor por muitas horas -seguidas. - -Natividade no teimou. Mais depressa ficaria esperando que os filhos -acabassem os documentos da Bibliotheca e a clinica da Santa Casa. Esta -ideia fel-a attentar para a necessidade de ver estabelecidos o joven -medico e o joven advogado. Trabalhariam com outros profissionaes de -reputao e iriam adiante e acima. Talvez a carreira scientifica lhes -dsse a grandeza annunciada pela cabocla do Castello, e no a politica -ou outra. Em tudo se podia resplandecer e subir. Aqui fez a critica de -si mesma, quando imaginou que Baptista abriria a carreira politica de -algum delles, sem advertir que o pae de Flora mal continuaria a propria -carreira, alis obscura. Mas a ideia do mando tornava a ccupar a -cabea da me, e cheios della os olhos fitavam ora Pedro, ora Paulo. - -Chegaram a accordo. Elles subiriam aos sabbados e desceriam s -segundas; o mesmo por occasio de dias santos e festas de gala. -Natividade contava com o costume e as attraces. - -Na barca e em Petropolis era objecto de conversao a differena entre -os filhos, que s iam l uma vez por semana, e o pae, que trazia tantos -negocios s costas, e subia todas as tardes. Que fariam elles c em -baixo, quando alguns olhos podiam attrail-os e agarral-os l em cima? -Natividade defendia os gemeos, dizendo que um ia Santa Casa e outro - Bibliotheca Nacional, e estudavam muito, s noites. A explicao era -acceitavel, mas, alm de fazer perder um assumpto aos bonitos dentes do -vero, podia ser inveno dos rapazes; naturalmente, iriam s moas. - -A verdade que elles faziam rumor em Petropolis, durante as poucas -horas que l passavam. Alm do mais, tinham a semelhana e a graa. -As mes diziam bonitas cousas me delles, e indagavam da razo -verdadeira que os prendia capital, no assim como eu digo, nu e cru, -mas com arte fina e insidiosa, arte perdida, porque a me insistia na -Bibliotheca e na Santa Casa. Deste geito, a mentira, j servida em -primeira mo, era servida em segunda, e nem por isso melhor acceita. - - - - -CAPITULO XCII - - -Segredo acordado - - -Emfim, que segredo ha que se no descubra? Sagacidade, boa vontade, -curiosidade, chama-lhe o que quizeres, ha uma fora que deita c para -fra tudo o que as pessoas cuidam de esconder. Os proprios segredos -canam de calar,--calar ou dormir; fiquemos com este outro verbo, -que serve melhor imagem. Canam, e ajudam a seu modo aquillo que -imputamos indiscrio alheia. - -Quando elles abrem os olhos, faz-lhes mal a escurido. Um raio de sol -basta. Ento pedem aos deuses (porque os segredos so pagos) um quasi -nada de crepusculo, aurora ou tarde, posto que a aurora prometta dia, -emquanto a tarde cae outra vez na noite, mas tarde que seja, tudo -respirar claridade. Que os segredos, amiga minha, tambem so gente; -nascem, vivem e morrem. Agora o que succede, quando um olhar de sol -penetra na solido delles, que difficilmente sae mais, e geralmente -cresce, rasga, alaga, e os traz pela orelha c para fra. Vexados da -grande luz, elles a principio andam de ouvido em ouvido, cochichados, -alguma vez escriptos em bilhetes, ainda que to vagamente e sem nomes, -que mal se adivinhar quaes sejam. o periodo da infancia, que passa -depressa; a mocidade pula por cima da adolescencia, e elles apparecem -fortes e derramados, sabidos como gazetas. Emfim, se a velhice chega, -e elles no se vexam dos cabellos brancos, tomam conta do mundo, e -acaso conseguem, no digo esquecer, mas aborrecer; entram na familia do -proprio sol, que quando nasce para todos, segundo dizia uma taboleta -da minha infancia. - -Taboletas da minha infancia, ai, taboletas! Quizera acabar por ellas -este capitulo, mas o assumpto no teria nobreza nem interesse, e -ainda uma vez interromperiamos a nossa historia. Fiquemos no segredo -divulgado; quanto basta. Uma veranista elegante no dissimulou o seu -espanto ao saber que os dous irmos combinavam n'um ponto que faria -romper os maiores amigos deste mundo. Um secretario de legao insinuou -que podia ser brincadeira dos dous. - ---Ou dos trez, accrescentou outra veranista. - -Iam de passeio Quitandinha, a cavallo. Ayres acompanhava-os, e no -dizia nada. Quando lhe perguntaram se Flora era bonita, respondeu que -sim, e falou da temperatura. A primeira veranista perguntou-lhe se era -capaz de supportar aquella situao. Ayres respirou, como quem vem de -longe, e declarou que aos ps de um padre seria obrigado a mentir, -taes eram os seus peccados; mas alli, na estrada, ao ar livre, entre -senhoras, confessou que matara mais de um rival. Que se lembrasse -trazia sete mortes s costas, com varias armas. As senhoras riam; elle -falava soturno. S uma vez escapou de morrer primeiro, e inventou uma -anecdota napolitana. Fez a apologia do punhal. Um que tivera, ha muitos -annos, o melhor ao do mundo, foi obrigado a dal-o de presente a um -bandido, seu amigo, quando lhe provou que completra na vespera o seu -vigesimo nono assassinato. - ---Aqui est para o trigesimo, disse-lhe entregando a arma. - -Poucos dias depois soube que o bandido, com aquelle punhal, matara o -marido de uma senhora, e depois a senhora, a quem amava sem ventura. - ---Deixei-o com trinta e um crimes de primeira ordem. - -As damas continuavam a rir; elle conseguiu assim desviar a conversao -de Flora e seus namorados. - - - - -CAPITULO XCIII - - -No ata nem desata - - -Emquanto indagavam della em Petropolis, a situao moral de Flora era -a mesma,--o mesmo conflicto de affinidades, o mesmo equilibrio de -preferencias. Cessado o conflicto, roto o equilibrio, a soluo viria -de prompto, e, por mais que doesse a um dos namorados, venceria o -outro, a menos que interviesse o punhal da anecdota de Ayres. - -Assim passaram algumas semanas desde a subida de Natividade. Quando -Ayres vinha ao Rio de Janeiro, no deixava de ir vel-a a S. Clemente, -onde a achava qual era d'antes, salvo um pouco de silencio em que -a viu mettida uma vez. No dia seguinte recebeu uma carta de Flora, -pedindo-lhe desculpa da desatteno, se a houve, e mandando-lhe -saudades. Mame pede que a recommende tambem ao senhor e familia da -baroneza. Esta recommendao exprimia o consentimento obtido da me -para que lhe escrevesse a carta. Quando elle tornou ao Rio, correu a S. -Clemente e Flora pagou-lhe com alegria grande o silencio daquella outra -manh. Todavia, no era espontanea nem constante; tinha seus cochilos -de melancolia. Ayres voltou ainda algumas vezes na mesma semana. Flora -apparecia-lhe com a alegria costumada, e, para o fim, a mesma alterao -dos ultimos dias. - -Talvez a causa daquellas syncopes da conversao fosse a viagem que -o espirito da moa fazia casa da gente Santos. Uma das vezes, o -espirito voltou para dizer estas palavras ao corao: Quem s tu, que -no atas nem desatas? Melhor que os deixes de vez. No ser difficil -a aco, porque a lembrana de um acabar por destruir a de outro, e -ambas se iro perder com o vento, que arrasta as folhas velhas e novas, -alm das particulas de cousas, to leves e pequenas, que escapam ao -olho humano. Anda, esquece-os; se os no pdes esquecer, faze por no -os ver mais; o tempo e a distancia faro o resto. - -Tudo estava acabado. Era s escrever no corao as palavras do -espirito, para que lhe servissem de lembrana. Flora escreveu-as, com a -mo tremula e a vista turva; logo que acabou, viu que as palavras no -combinavam, as letras confundiam-se, depois iam morrendo, no todas, -mas salteadamente, at que o musculo as lanou de si. No valor e no -impeto podia comparar o corao ao gemeo Paulo; o espirito, pela arte -e subtileza, seria o gemeo Pedro. Foi o que ella achou no fim de algum -tempo, e com isso explicou o inexplicavel. - -Apesar de tudo, no acabava de entender a situao, e resolveu acabar -com ella ou comsigo. Todo esse dia foi inquieto e complicado. Flora -pensou em ir ao theatro para que os gemeos no a achassem noite. Iria -cedo, antes da hora da visita. A me mandou comprar o camarote, e o pae -approvou a diverso, quando veiu jantar, mas a filha acabou com dr de -cabea, e o camarote ficou perdido. - ---Vou mandal-o aos jovens Santos, insinuou Baptista. - -D. Claudia oppz-see guardou o camarote. A razo era de me; posto lhe -tardasse a escolha e o casamento, ella queria vel-os alli comsigo, -falando, rindo, debatendo que fosse, com os olhos pendentes da filha. -Baptista no entendeu logo nem depois; mas para no desagradar -esposa, deixou de obsequiar os rapazes. Uma occasio to boa! No -era muito para elles que possuiam com que despender, e despendiam; o -obsequio estava na lembrana, e tambem na cartinha que lhes escreveria, -mandando o camarote. Chegou a redigil-a de cabea, apesar de j inutil. -A mulher, ao vel-o calado e serio, cuidou que fosse zanga e quiz fazer -as pazes; o marido arredou-a brandamente com a mo. Redigia a cartinha, -punha no texto um gracejo sizudo, dobrava o papel e lanava-lhe este -sobrescripto gemeo: Aos jovens apostolos Pedro e Paulo. O trabalho -intellectual tornou mais dura a opposio de D. Claudia. Uma cartinha -to bonita! - - - - -CAPITULO XCIV - - -Gestos oppostos - - -Como pde um s tecto cobrir to diversos pensamentos? Assim tambem -este cu claro ou brusco,--outro tecto vastissimo que os cobre com o -mesmo zelo da gallinha aos seus pintos... Nem esquea o proprio craneo -do homem, que os cobre igualmente, no s diversos, seno oppostos. - -Flora, no quarto, no cuidava ento de bilhetes nem camarotes; tambem -no acudia dr de cabea, que no tinha. Se falou nella foi por ser -uma razo proxima e acceitavel, breve ou longa, conforme a necessidade -da occasio. No supponhas que est rezando, embora tenha alli um -oratorio e um crucifixo. No viria pedir a Jesus que lhe livrasse a -alma daquella inclinao desencontrada. Posta beira da cama, os -olhos no cho, pensava naturalmente em alguma cousa grave, se no era -nada, que tambem agarra os olhos e o pensamento de uma pessoa. Mordeu -os beios sem raiva; metteu a cabea entre as mos, como se quizesse -concertar os cabellos, mas os cabellos estavam e ficavam como dantes. - -Quando se levantou era totalmente noite, e accendeu uma vela. No -queria gaz. Queria uma claridade branda que dsse pouca vida ao quarto -e aos seus moveis, que deixasse algumas partes na meia escuridade. -O espelho, se fosse a elle, no lhe repetiria a belleza de todos os -dias, com a vela posta em cima de uma papeleira antiga, a distancia. -Mostrar-lhe-hia a nota de pallidez e de melancolia, verdade, mas a -nossa amiguinha no se sabia pallida, nem se sentia melancolica. Tinha -na tristeza desvairada daquella occasio uma pontinha de abatimento. - -Como tudo isso se combinava, no sei, nem ella mesma. Ao contrario, -Flora parecia, s vezes, tomada de um espanto, outras de uma -inquietao vaga, e, se buscava o repouso de uma cadeira de balano, -era para o deixar logo. Ouviu bater oito horas. Dahi a pouco, entrariam -provavelmente Pedro e Paulo. Teve lembrana de ir dizer me que a no -mandasse chamar; estava de cama. Esta ideia no durou o que me custa -escrevel-a, e alis j l vae na outra linha. Recuou a tempo. - --- um desproposito, disse comsigo; basta no apparecer. Mame dir -que estou adoentada, tanto que perdemos o theatro, e, se vier aqui, -digo-lhe que no posso apparecer... - -As ultimas palavras sairam-lhe de viva voz, para maior firmeza da -resoluo. Projectou reclinar-se j na cama; depois achou melhor -fazel-o quando ouvisse o passo da me no corredor. Todas essas -alternativas podiam vir de si mesmas; entretanto, no impossivel que -fosse tambem um modo de sacudir quaesquer lembranas aborreciveis. A -moa temia ir atraz dellas. - - - - -CAPITULO XCV - - -O terceiro - - -Temendo ir atraz dellas, que havia de fazer Flora? Abriu uma das -janellas do quarto, que dava para a rua, encostou-se grade e enfiou -os olhos para baixo e para cima. Viu a noite sem estrellas, pouca -gente que passava, calada ou conversando, algumas salas abertas, com -luzes, uma com piano. No viu certa figura de homem na calada opposta, -parada, olhando para a casa de Baptista. Nem a viu, nem lhe importaria -saber quem fosse. A figura que to depressa a viu como estremeceu e -no despegou mais os olhos della, nem os ps do cho. - -Lembras-te daquella veranista de Petropolis que attribuiu um terceiro -namorado nossa amiguinha? Um dos trez, disse ella. Pois aqui -est o terceiro namorado, e pde ser que ainda apparea outro. Este -mundo dos namorados. Tudo se pde dispensar nelle; dia vir em que -se dispensem at os governos, a anarchia se organisar de si mesma, -como nos primeiros dias do paraiso. Quanto comida, vir de Boston -ou de Nova-York um processo para que a gente se nutra com a simples -respirao do ar. Os namorados que sero perpetuos. - -Aquelle era official de secretaria. Geralmente os empregados de -secretaria casam cedo. Gouva era solteiro, andava s moas. Um -domingo, missa, reparou na filha do ex-presidente, e saiu da egreja -to apaixonado que no quiz outra promoo. Tinha gostado de muitas, -acompanhou algumas, esta foi a primeira que o feriu devras. Pensava -nella dia e noite. A rua de S. Clemente era o caminho que o levava e -trazia da Repartio. Se a via, olhava muito para ella, detinha-se a -distancia, porta de uma casa, ou ento fingia acompanhar com os olhos -um carro que passava, e tirava-os do carro para a moa. - -Quando amanuense, fizra versos; nomeado official, perdeu o costume, -mas um dos effeitos da paixo foi restituir-lh'o. Comsigo, em casa -da me, gastava papel e tinta a metrificar as esperanas. Os versos -escorriam da penna, a rima com elles, e as estrophes vinham seguindo -direitas e alinhadas, como companhias de batalho; o titulo seria -o coronel, a epigraphe a musica, uma vez que regulava a marcha dos -pensamentos. Bastaria essa fora conquista? Gouva imprimiu alguns em -jornaes, com esta dedicatoria: _A alguem._ Nem assim a praa se rendia. - -Uma vez deu-lhe na cabea mandar uma declarao de amor. Paixo -concebe despropositos. Escreveu duas cartas, sem o mesmo estylo, antes -contrario. A primeira era de poeta; dava-lhe _tu_, como nos versos, -adjectivava muito, chamava-lhe deusa por afiuso ao nome de Flora, e -citava Musset e Casimiro de Abreu. A segunda carta foi um desforo -do official sobre o amanuense. Saiu-lhe ao estylo das informaes e -dos officios, grave, respeitoso, com Excellencias. Comparando as duas -cartas, no acabou de escolher nenhuma. No foi s o texto diverso -e contrario, foi principalmente a falta de autorisao que o levou -a rasgar as cartas. Flora no o conhecia; quando menos, fugia de o -conhecer. Os olhos della, se encontravam os delle, retiravam-se logo -indifferentes. Uma s vez cuidou que traziam a inteno de perdoar. Que -esse breve raio de luz lhe desabotoasse as flores da esperana (comeo -a falar como a primeira carta) era possivel e at certo; to certo que -lhe fez perder o ponto na Repartio. Felizmente, era optimo empregado; -o director ampliou o quarto de hora de tolerancia, e attendeu dr de -cabea, causa de triste insomnia. - ---Dormi sobre a madrugada, acabou o official. - ---Assigne. - -Seno quando, morre-lhe o padrinho ao Gouva, e em testamento deixou -ao afilhado trez contos de reis. Qualquer acharia nisso um beneficio, -Gouva achou dous: o legado e a occasio de travar relaes com o pae -de Flora. Correu a pedir-lhe que acceitasse a procurao de legatario, -ajustando logo os honorarios e as despezas. Com pouco, foi procural-o -casa, e para que o advogado dsse a noticia do constituinte familia, -empregou muitos ditos subtis e graciosos, contou anecdotas do padrinho, -expoz conceitos philosophicos e um programma de marido. Descreveu -tambem a situao administrativa, a promoo eminente, os louvores -recebidos, commisses e gratificaes, tudo o que o distinguia de -outros companheiros. De resto, ninguem na Repartio lhe queria mal. -Aquelles mesmos que se creram prejudicados, acabavam confessando que -era justa a preferencia dada ao Gouva. No seria tudo exacto; elle o -cria assim, ao menos, e, se no cria tudo, no desmentiu nada. Perdeu -tempo e trabalho. Flora no soube da conversao. - -Nem soube da conversao, nem deu agora pelo vulto, como l disse. -tambem disse que a noite era escura. Accrescento que comeou a pingar -fino e a ventar fresco. Gouva trazia guarda-chuva e ia a abril-o, mas -recuou. O que se passou na alma delle foi uma luta egual dos dous -textos da carta. O official queria abrigar-se da chuva, o amanuense -queria apanhal-a, isto , o poeta renascia contra as intemperies, -sem medo ao mal, prestes a morrer por sua dama, como nos tempos -da cavallaria. Guarda-chuva era ridiculo; poupar-se constipao -desmentia a adorao. Tal foi a luta e o desfecho; venceu o amanuense, -emquanto a chuva ia pingando grosso, e outra gente passava abrigada e -depressa. Flora entrou e fechou a janella. O amanuense esperou ainda -algum tempo, at que o official abriu o guarda-chuva e fez como os -outros. Em casa achou a triste consolao da me. - - - - -CAPITULO XCVI - - -Retraimento - - -Aquella noite acabou sem incidente. Os gemeos viram, Flora no -appareceu, e no dia seguinte duas cartinhas perguntavam a D. Claudia -como passra a filha. A me respondeu que bem. Nem por isso Flora os -recebeu com a alegria do costume. Tinha alguma cousa que a fazia falar -pouco. Pediram-lhe musica, tocou; foi bom, porque era um meio de se -metter comsigo. No respondeu aos apertos de mo, como elles suppunham -que fazia at ha pouco. Assim foi essa noite, assim fram as outras. -Ora um, ora outro chegava primeiro, imaginando que a presena do rival - que tolhia a moa; mas a precedencia no valia nada. - - - - -CAPITULO XCVII - - -Um Christo particular - - -Tudo isso lhe custava tanto, que ella acabou pedindo ao seu Christo -um logar de governador para o pae,--ou qualquer commisso fra daqui. -Jesus-Christo no distribue os governos deste mundo. O povo que -os entrega a quem merece, por meio de cedulas fechadas, mettidas -dentro de uma urna de madeira, contadas, abertas, lidas, sommadas e -multiplicadas. A commisso podia vir, isso sim; a questo era saber -se Jesus-Christo acudir a todos os que lhe pedem a mesma cousa. -Os commissarios seriam infinitamente mais que as commisses. Esta -objeco foi logo expellida do espirito de Flora, porque ella pedia ao -seu Christo, um de marfim velho, deixa da av, um Christo que nunca -lhe negou nada, e a quem as outras pessoas no vinham importunar -com supplicas. A propria me tinha o seu particular, confidente de -ambies, consolo de desenganos; no recorria ao da filha. Tal era a f -ingenua da moa. - -Certarmente, j lhe havia pedido que a livrasse daquella complicao de -sentimentos, que no acabavam de ceder um ao outro, daquella hesitao -canativa, daquelle empuxar para ambos os lados. No foi ouvida. A -causa seria talvez por no haver dado ao pedido a frma clara que aqui -lhe ponho, com escandalo do leitor. Effectivamente, no era facil -pedir assim por palavras seguidas, faladas ou s pensadas; Flora no -formulou a supplica. Poz os olhos na imagem e esqueceu-se de si, para -que a imagem lsse dentro della o seu desejo. Era demais; requerer o -favor do cu e obrigal-o a adivinhar o que era... Assim cuidou Flora, -e resolveu emendar a mo. No chegou l; no ousou dizer a Jesus o que -no dizia a si mesma. Pensava nos dous, sem confessar a nenhum. Sentia -a contradico, sem ousar encaral-a por muito tempo. - - - - -CAPITULO XCVIII - - -O medico Ayres - - -Um dia pareceu me que a filha andava nervosa. Interrogou-a e -apenas descobriu que Flora padecia de vertigens e esquecimentos. Foi -justamente um dia em que Ayres l appareceu de visita, com recados de -Natividade. A me falou-lhe primeiro e confiou-lhe os seus sustos. -Pediu-lhe que a interrogasse tambem. Ayres fez de medico, e, quando -a moa appareceu e a me os deixou na sala, cuidou de a interrogar -cautelosamente. - -Vo proposito, porque ella mesma iniciou a conversao, queixando-se de -dr de cabea. Ayres observou que dr de cabea era molestia de moa -bonita, e, tendo confessado que este dito era banal, descobriu-lhe o -motivo. No queria perder a occasio de lhe dizer o que toda a gente -sabia e dizia, no s aqui, como em Petropolis. - ---Porque no vae a Petropolis? concluiu. - ---Espero fazer outra viagem mais longa, muito longa... - ---Para o outro mundo, aposto? - ---Acertou. - ---J tem bilhete de passagem? - ---Comprarei no dia do embarque. - ---Talvez no ache. Ha grande concurrencia para aquellas paragens; -melhor comprar antes, e, se quer, eu me encarrego disso; comprarei -outro para mim, e iremos juntos. A travessia, quando no ha conhecidos, -deve ser fastidiosa; s vezes, os proprios conhecidos aborrecem, como -succede neste mundo. As saudades da vida que so agradaveis. A gente -de bordo vulgar, mas o commandante impe confiana. No abre a bca, -d as suas ordens por gestos, e no consta que haja naufragado. - ---O senhor est caoando commigo; eu creio at que estou com febre. - ---Deixe ver. - -Flora estendeu-lhe o pulso; elle, com ar profundo: - ---Est; febre de quarenta e sete gros, a mo est ardendo, mas isto -mesmo prova que no nada, porque aquellas viagens fazem-se com as -mos frias. Ha de ser constipao, fale a sua me. - ---Mame no cura. - ---Pde curar, ha remedios caseiros; em todo caso, pea-lhe, e ella pde -mandar chamar um medico. - ---Medico d tizanas, e eu no gsto de tizanas. - ---Nem eu, mas tolero-as. Porque no experimenta a homoeopathia, que no -tem gosto, como a allopathia? - ---Qual a que lhe parece melhor? - ---A melhor? S Deus grande. - -Flora sorriu, de um sorriso pallido, e o conselheiro percebeu algo que -no era tristeza de passagem ou de creana. Novamente lhe falou de -Petropolis, mas no insistiu. Petropolis era a aggravao do momento -actual. - ---Petropolis tem o mal das chuvas, continuou. Eu, se fosse a senhora, -saa desta casa e desta rua; v para outro bairro, casa amiga, com sua -me ou sem ella... - ---Para onde? perguntou Flora anciosa. - -E ficou a olhar, esperando. No tinha casa amiga, ou no se lembrava, e -queria que elle mesmo escolhesse alguma, onde quer que fosse, e quanto -mais longe, melhor. Foi o que elle leu nos olhos parados. ler muito, -mas os bons diplomatas guardam o talento de saber tudo o que lhes diz -um rosto calado, e at o contrario. Ayres fra diplomata excellente, -apesar da aventura de Caracas, se no que essa mesma lhe aguou a -vocao de descobrir e encobrir. Toda a diplomacia est nestes dous -verbos parentes. - - - - -CAPITULO XCIX - - -A titulo de ares novos... - - ---Vou arranjar-lhe uma casa boa, disse elle, despedida. - -Desde que estava em Petropolis, Ayres no ia jantar a Andarahy, com a -irm, s quintas-feiras, segundo ajustra e consta do cap. XXXII. Agora -foi l, e cinco dias depois Flora transferia-se para a casa della, a -titulo de ares novos. D. Rita no consentiu que D. Claudia lhe levasse -a filha, ella mesma a foi buscar a S. Clemente, e Ayres acompanhou as -trez. - -A mocidade de Flora na casa de D. Rita foi como uma rosa nascida ao p -de paredo velho. O paredo remoou. A simples flr, ainda que pallida, -alegrou o barro gretado e as pedras despidas. D. Rita vivia encantada; -Flora pagava o agazalho da dona da casa com tanta ingenuidade e graa, -que esta acabou por lhe dizer que a roubaria me e ao pae, e foi -ainda occasio de riso para as duas. - -Voc me deu um lindo presente com esta moa, escrevia D. Rita ao -irmo; foi uma alma nova, e veiu em boa occasio, porque a minha anda -j caduca. muito docilzinha, conversa, toca e desenha que faz gosto, -tem aqui tirado riscos de varias cousas, e eu saio com ella para lhe -mostrar vistas apreciaveis. s vezes, apresenta uma cara triste, -olha vagamente, e suspira; mas eu pergunto-lhe se so saudades de S. -Clemente, ella sorri e faz ura gesto de indifferena. No lhe falo dos -nervos, para no a affligir, mas creio que vae melhor... - -Flora tambem escreveu as conselheiro Ayres, e as duas cartas chegaram - mesma hora a Petropolis. A de Flora era um agradecimento grande e -cordial, mal entremeado de alguma palavra saudosa; confirmava assim -a carta da outra, posto no a houvesse lido. Ayres comparou-as, -lendo duas vezes a da moa para ver se ella escondia mais do que -transparencia do papel. Em summa, confiava no remedio. - ---No os vendo, esquece-os, pensou elle; e se na visinhana houver -alguem que pense em gostar della, possivel que acabe casando. - -Respondeu a ambas, na mesma noite, dizendo-lhes que na quinta-feira -iria almoar com ellas. A D. Claudia escreveu mandando-lhe a carta da -irm, e foi passar a noite em casa de Natividade, a quem deu a ler as -cinco cartas. Natividade approvou tudo. Notava s que os filhos no lhe -escreviam, e deviam estar desesperados. - ---A Santa Casa cura, e a Bibliotheca Nacional tambem, retorquiu Ayres. - -Na quinta feira, Ayres desceu e foi almoar a Andarahy. Achou-as como -as tinha lido nas cartas. Interrogou-as separadamente para ouvir por -bca as confisses do papel; eram as mesmas. D. Rita parecia ainda -mais encantada. Talvez a causa recente fosse a confidencia que fez a -moa, na vespera. Como falassem de cabellos, D. Rita referiu o que -tambem consta do cap. XXXII, isto , que cortra os seus para os metter -no caixo do marido, quando o levaram a enterrar. Flora no a deixou -acabar; pegou-lhe das mos e apertou-as muito. - ---Nenhuma outra viuva faria isto, disse ella. - -Aqui foi D. Rita que lhe pegou nas mos, pl-as sobre os seus hombros, -e concluiu o gesto por um abrao. Todas as pessoas louvaram-lhe a -abnegao do acto; esta era a primeira que a achou unica. E dahi outro -abrao longo, mais longo... - - - - -CAPITULO C - - -Duas cabeas - - -To longo foi o abrao que tomou o resto ao capitulo. Este comea -sem elle nem outro. O mesmo aperto de mo de Ayres e Flora, se foi -demorado, tambem acabou. O almoo fez gastar algum tempo mais que de -costume, porque Ayres, alm de conversador emerito, no se fartava de -ouvir as duas, principalmente a moa. Achava-lhe um toque de languidez, -abatimento ou cousa proxima, que no encontro no meu vocabulario. - -Flora mostrou-lhe os desenhos que fizera, paisagens, figuras, um pedao -da estrada da Tijuca, um chafariz antigo, um _Principio de casa._ Era -umas dessas casas, que alguem comeou muitos annos antes, e ninguem -acabou, ficando s duas ou trez paredes, ruina sem historia. Havia -ainda outros desenhos, uma revoada de passaros, um vaso janella. -Ayres ia folheando, cheio de curiosidade e paciencia; a inteno da -obra suppria a perfeio, e a fidelidade devia ser approximada. Emfim, -a moa atou os cordes pasta. Ayres, parecendo-lhe que ficara um -desenho ultimo r escondido, pediu que lh'o mostrasse. - --- um esboo, no vale a pena. - ---Tudo vale a pena; quero acompanhar as tentativas da artista; deixe -ver. - ---No vale a pena... - -Ayres insistiu; ella no pde recusar mais tempo, abriu a pasta, -e tirou um pedao de papel grosso em que estavam desenhadas duas -cabeas juntas e eguaes. No teriam a perfeio desejada por ella; no -obstante, dispensavam os nomes. Ayres considerou a obra, durante alguns -minutos, e duas ou trez vezes levantou os olhos para a autora. Flora -j os esperava, interrogativa; queria ouvir o louvor ou a critica, mas -no ouviu nada. Ayres acabou de observar as duas cabeas, e pousou o -desenho entre os papeis. - ---No lhe dizia que era um esboo? perguntou Flora, a ver se lhe -arrancava uma palavra. - -Mas o ex-ministro preferiu no dizer nada. Em vez de achar quasi -extincta a influencia dos gemeos, vinha dar com ella feita consolao -da ausencia, to viva que bastava a memoria, sem presena dos modelos. -As duas cabeas estavam ligadas por um vinculo escondido. Flora, -vendo continuar o silencio de Ayres, comprehendeu acaso parte do que -lhe passava no espirito. Com um gesto prompto, pegou do desenho e -deu-lh'o. No lhe disse nada, menos ainda escreveu qualquer palavra. -Qualquer que fosse, seria indiscreta. De mais, era o unico desenho -a que ella no pz assignatura. Deu-lh'o como se fra um penhor de -arrependimento. Em seguida, atou novamente as fitas da pasta, emquanto -Ayres, rasgava calado o desenho e mettia os pedaos no bolso. Flora -ficou por um instante parada, bca entre-aberta, mas logo lhe apertou -a mo, agradecida. No pde evitar que lhe caissem duas pequeninas -lagrimas,--como outras tantas fitas que lhe atavam para sempre a pasta -do passado. - -A imagem no boa, nem verdadeira; foi a que acudiu ao conselheiro, -andando, ao voltar de Andarahy. Chegou a escrevel-a no _Memorial_, -depois riscou-a, e escreveu uma reflexo menos definitiva: Talvez seja -uma lagrima para cada gemeo. - ---Pde acabar com o tempo, pensou elle indo para a barca de Petropolis. -No importa; um caso embrulhado. - - - - -CAPITULO CI - - -O caso embrulhado - - -Tambem os gemeos achavam o caso embrulhado. Quando iam a S. Clemente, -tinham noticias da moa, sem que lhes dssem certeza do regresso. O -tempo andava; no tardaria que consultassem a sorte, como dous antigos. - -A rigor, no contavam as semanas de interrupo, uma vez que a -escolha se no dava, e elles podiam trazer da consulta o contrario da -inclinao definitiva da moa. Reflexo justa, posto que interessada. -Cada um delles no queria mais que prolongar a batalha, esperando -vencel-a. Entretanto, no confiavam um do outro este pensamento gemeo, -como elles. Ambos se iam sentindo exclusivos, a affeio tinha agora o -seu pudor e necessidade de calar. J no falavam de Flora. - -Nem s de Flora. Crescendo a opposio, recorriam ao silencio. -Evitavam-se; se podiam, no comiam juntos; se comiam juntos, diziam -pouco ou nada. s vezes, falavam para tirar aos criados qualquer -suspeita, mas no advertiam que falavam mal e foradamente, e que os -criados iam commentar as palavras e a expresso delles na copa. A -satisfao com que estes communicavam os seus achados e concluses - das poucas que adoam o servio domestico, geralmente rude. No -chegavam, porm, ao ponto de concluir tudo o que os ia tornando -cada vez mais avessos, a ponto de odio que crescia com a ausencia -da me. Era mais que Flora, como sabeis; eram as proprias pessoas -inconciliaveis. Um dia houve na copa e na cozinha grande novidade, -Pedro, a pretexto de sentir mais calor que Paulo, mudou de quarto e foi -dormir mal em outro no menos quente que o primeiro. - - - - -CAPITULO CII - - -Viso pede meia sombra - - -Entretanto, a bella moa no os tirava da mesma alcova sua, por mais -que buscasse devras fugir-lhes. A memoria os trazia pela mo, elles -entravam e ficavam. Iam depois embora, ou de si mesmos, ou empurrados -por ella. Quando tornavam, era de sorpresa. Um dia, Flora aproveitou a -presena para fazer um desenho egual ao que dera ao conselheiro, mais -perfeito agora, muito mais acabado. - -Tambem canava. Ento saa do quarto e ia para o piano. Elles iam com -ella, sentavam-se aos lados ou ficavam defronte, em p, e ouviam com -atteno religiosa, ora um nocturno, ora uma tarantella. Flora tocava -ao sabor de ambos, sem deliberao; os dedos que obedeciam mecanica -da alma. Para os no ver, inclinava a cabea sobre o teclado; mas o -campo da viso os guardava, se no era a respirao que se fazia sentir -defronte ou dos lados. Tal era a subtileza dos seus sentidos. - -Se fechava o piano e descia ao jardim, succedia muita vez que os ia -achar alli, passeando, e a comprimentavam com to boa sombra, que ella -esquecia por instantes a impaciencia. Depois, sem que os mandasse, -iam embora. Nos primeiros tempos. Flora tinha medo que a houvessem -abandonado de todo, e chamava-os dentro de si. Ambos tornavam logo, to -doceis, que ella acabou de se convencer que a fuga no era fuga. nem -elles sentiam desprezo, e no os evocou mais. No jardim era mais rapido -o desapparecimento, talvez pela extrema claridade do logar. Viso pede -meia sombra. - - - - -CAPITULO CIII - - -O quarto - - -Sei, sei, trez vezes sei que ha muitas vises dessas nas paginas que l -ficam. Ulysses confessa a Alcinoos que lhe enfadonho contar as mesmas -cousas. Tambem a mim. Sou, porm, obrigado a ellas, porque sem ellas -a nossa Flora seria menos Flora, seria outra pessoa que no conheci. -Conheci esta, com as suas obsesses ou como quer que lhes chames. - -Nem por isso, nem ainda porque houvesse colhido algum abatimento e -nervos, deixava Flora de enfeitar muito, de se fazer mais linda, e ter -mais de um namorado incognito, que suspirava por ella. No faltava quem -a admirasse de passagem, e fosse vel-a, quando menos, no banco verde, -porta do jardim, ao p da irm de Ayres. Pde ser que conhecesse algum, -Gouva, por exemplo; em verdade, era como se os no visse. - -Um delles valia mais que todos pela carruagem,--tirada por uma bella -parelha de cavallos,--capitalista do bairro. A casa delle era um -palacete, os moveis feitos na Europa, estylo imperio, apparelhos de -Svres e de prata, tapetes de Smyrna, e uma vasta camara com dous -leitos, um de solteiro, outro de casados. O segundo esperava a esposa. - ---A esposa ha de ser esta, pensou elle um dia, ao ver Flora. - -Era maduro; trazia o rosto batido dos ventos da vida, a despeito das -muitas aguas de toucador; ao corpo faltava aprumo, e as maneiras no -tinham graa nem naturalidade. Era o Nobrega, aquelle da nota de dous -mil reis, nota fecunda, que deitou de si muitas outras, mais de dous -mil contos de reis. Para as notas recentes, a av perdia-se na noite -dos tempos. Agora os tempos eram claros, a manh doce e pura. - -Quando viu a moa, e fez a reflexo que l fica, extranhou-se a si -proprio. Vira outras damas, e mais de uma com escriptos nos olhos, -dizendo-lhe o vasio do corao. Esta era a primeira que veramente lhe -prendeu a vontade e lhe deteve o pensamento. Tornou a vl-a; a gente -visinha notou porv'entura a frequencia recente do capitalista. Emfim, -Nobrega acabou por se fazer entrado na casa de D. Rita, com desgosto -dos seus habituados, que assim se viam esquecidos do amphytrio. -Nobrega, entretanto, dera ordens bastantes para que fossem todos -servidos e agazalhados, como se elle estivesse presente. - -A ausencia no lhe faria perder as loas dos amigos. Ao contrario, os -servos podiam dar testemunho do que todos elles pensavam do grande -homem. Tal era o nome que lhe applicara o secretario particular, e -pegou. Nobrega sabia pouca orthographia, nenhuma syntaxe, lices -uteis, de certo, mas que no valiam a moral, e a moral, diziam todos, -acompanhando o secretario, era o seu principal e maior merito. O fiel -escriba accrescentava, que sendo preciso despir a camisa e dal-a a um -mendigo, Nobrega o faria, ainda que a camisa fosse bordada. - -Agora mesmo, este amor era, ao cabo, um movimento de caridade. Em pouco -tempo, aquelle gosto de relance passou a grande paixo, to grande que -elle no a pde conter, e resolveu confessal-a. Hesitou se o faria -propria moa ou dona da casa. No tinha animo para uma nem outra. Uma -carta suppria tudo, mas a carta pedia lingua, calor e respeito. Se, ao -menos, o gesto de Flora lhe dissesse alguma cousa, ainda que pouca, v; -a carta seria ento uma resposta. Mas no lhe dizia nada o gesto da -moa. Era s cortez e gracioso; no ia alm dessas duas expresses. - -D. Rita percebeu a inclinao de Nobrega e achou que era a melhor -soluo da vida para a hospede. Todas as incertezas, angustias -e melancolias vinham acabar nos braos de um ricasso, estimado, -respeitado, dentro de um palacete com uma carruagem s ordens... Ella -mesma punha em relevo este premio grande da loteria de Hespanha. - -Emfim, o secretario de Nobrega redigiu com a melhor linguagem que -possuia uma carta em que o capitalista pedia a D. Rita o favor de -consultar a moa amada. - ---No escreva palavrinhas doces, recommendou elle ao secretario. Gsto -dessa moa com um sentimento de proteco, antes que outra cousa. No -carta de namorado. Estylo grave... - ---Uma carta secca, concluiu o secretario. - ---Totalmente secca, no, emendou Nobrega, uma carta lisongeira, sem -esquecer que no sou creana. - -Assim se cumpriu. Ia a cumprir-se demais; Nobrega achou que o estylo -podia ser um tanto ameno; no fazia mal pr duas ou trez palavras -apropriadas ao objecto, _belleza, corao, sentimento..._ Assim se -cumpriu fmalmente, e a carta foi levada ao seu destino. D. Rita ficou -contentissima. Justamente o que ella queria. Tinha o plano feito de -concluir, por acto seu, uma historia melancolica, a que daria, por -derradeira pagina, concluso deslumbrante. No pensou em dizel-o -primeiro ao irmo, pela razo de querer que elle recebesse a noticia -completa, tudo feito e acabado. Releu a carta; dispoz-se a ir logo, -mas ha pessoas para quem o adagio que diz que o melhor da festa -esperar por ella, resume todo o prazer da vida. D. Rita tinha essa -opinio. Todavia, entendeu que taes cartas no so das que se guardam -largo tempo, nem alis das que se communicam sem cautella. Esperou -vinte e quatro horas. Na manh seguinte, depois de almoadas, leu a -carta moa. O natural que Flora ficasse espantada. Ficou, mas no -tardou que risse, de um riso franco e sonoro, como ainda no rira em -Andarahy. D. Rita ficou espantadissima. Suppunha que, no a pessoa, -mas as vantagens e circumstancias pleiteassem a favor do candidato. -Esquecia os seus cabellos entregues sepultura do marido. Deu -conselhos moa, poz em relevo a posio do pretendente, o presente e -o futuro, a situao esplendida que lhe dava este casamento, e por fim -as qualidades moraes de Nobrega. A moa escutou calada, e acabou rindo -outra vez. - ---A senhora sabe se serei feliz? perguntou. - ---Creio que sim; agora, o futuro que confirmar ou no. - ---Esperemos que o futuro chegue, comquanto me parea muito demorado. -No nego as qualidades daquelle homem, parece bom, e trata-me bem, mas -eu no quero casar, D. Rita. - ---Realmente, a edade... Mas nem, ao menos, quer pensar alguns dias? - ---Est pensado. - -D. Rita ainda esperou um dia. A resposta negativa, dado que Flora -viesse a mudar de opinio, podia ser uma desgraa para esta. Uso os -proprios termos della, comsigo, _grande desgraa, posio esplendida, -sentimento profundo._ D. Rita ia aos extremos, deante daquelle -rico-homem dos ultimos annos do seculo. - - - - -CAPITULO CIV - - -A resposta - - -No querendo dar a resposta nua e crua, D. Rita consultou a moa, que -lhe respondeu simplesmente: - ---Diga que no pretendo casar. - -Quando Nobrega recebeu as poucas linhas que D. Rita lhe mandou, ficou -assombrado. No contava com recusa. Ao contrario, era to certa a -acceitao que elle tinha j um programma do noivado. Imaginava a -moa, os olhos timidos, a bca cerrada, o veu que lhe cobriria a linda -carinha, a delicadeza delle, as palavras que lhe diria entrando em -casa. Tinha j composto uma invocao Me Santssima, para que os -fizesse felizes. Dou-lhe carro, dizia comsigo, joias, muitas joias, as -melhores joias do mundo... Nobrega no fazia ideia exacta do mundo; -era uma expresso. Hei de dar-lhe tudo, sapatinhos de seda, meias de -seda, que eu mesmo lhe calarei... Estremecia de cr, ao calar-lhe as -meias. Beijava-lhe os ps e os joelhos. - -Tinha imaginado que ella, ao ler a carta, devia ficar to pasmada e -agradecida, que nos primeiros instantes no pudera responder a D. -Rita; mas logo depois as palavras sairiam do corao s golfadas. -Sim, senhora, queria, acceitava; no pensara em outra cousa. -Escreveria logo ao pae e me para lhes pedir licena; elles viriam -correndo, incredulos, mas, vendo a carta, ouvindo a filha e D. Rita, -no duvidariam da verdade, e dariam o consentimento. Talvez o pae -lh'o fosse dar em pessoa. E nada, nada, nada, absolutamente nada, uma -simples recusa, uma recusa atrevida, porque em fim quem era ella, -apesar da belleza? Uma creatura sem vintem, modestamente vestida, sem -brincos, nunca lhe vira brincos s orelhas, duas perolasinhas que -fossem. E porque que lhe furaram as orelhas, se no tinham brincos -que lhe dar? Considerou que s mais pobres meninas do mundo furam as -orelhas para os brincos que lhes possam cair do cu. E vem esta, e -recusa os mais ricos brincos que o cu ia chover sobre ella... - -Ao jantar, os amigos da casa notaram que elle estava preoccupado. -De noite, elle e o secretario sairam a p. Nobrega buscou em si o -gesto mais frio e indifferente que pde, quasi alegre, e annunciou ao -secretario que Flora no queria casar. No se descreve a admirao do -secretario, em seguida a consternao, finalmente a indignao. Nobrega -respondia magnanimo: - ---No foi por mal; foi talvez por se julgar abaixo, muito abaixo da -fortuna. Creia que boa moa. Pde ser tambem, quem sabe? Por ter sido -um mau conselho do corao. Aquella moa doente. - ---Doente? - ---No affirmo; digo que pde ser. - -O secretario affirmou. - ---S a doena, disse elle, explicar a ingratido, por que o acto de -pura ingratido. - -Aqui tornou a nota da indignao, nota sincera, como as outras. Nobrega -gostou de ouvil-a; era um compadecimento. No fim, cumpriu a ideia que -trazia ao sair de casa; augmentou-lhe o ordenado. Podia ser a paga -da sympathia; o beneficiado foi mais longe, achou que era o preo do -silencio, e ninguem soube de nada. - - - - -CAPITULO CV - - -A realidade - - -A molestia, dada por explicao recusa do casamento, passou -realidade dahi a dias. Flora adoeceu levemente; D. Rita, para no -alarmar os paes, cuidou de a tratar com remedios caseiros; depois, -mandou chamar um medico, o seu medico, e a cara que este fez no -foi boa, antes m. D. Rita, que costumava ler a gravidade das suas -molestias no rosto delle, e sempre as achava gravissimas, cuidou de -avisar os paes da moa. Os paes viram logo. Natividade tambem desceu -de Petropolis, no de vez; em cima, tinham medo de algum movimento -c embaixo. Veiu a visitar a moa, e, a pedido desta, ficou alguns -dias.--S a senhora me pde curar, disse Flora; no creio nos remedios -que me do. As suas palavras que so boas, e os seus carinhos... -Mame tambem, e D. Rita, mas no sei, ha uma differena, uma cousa... -Veja: parece-me que at j rio. - ---J, j; ria mais. - -Flora sorriu, ainda que daquelle sorriso descorado que apparece na -bca do enfermo, quando a molestia consente, ou elle fra a seriedade -propria da dr. Natividade dizia-lhe palavras de animao; fel-a -prometter que iria convalecer em Petropolis. A enfermidade comeou a -ceder. D. Claudia acceitou a offerta de D. Rita, e l ficou aposentada. -Natividade ia noite para Botafogo e voltava de manh. Ayres descia de -Petropolis um dia sim, um dia no. - -Tambem os gemeos l iam saber da enferma. Agora mais que d'antes, -sentiam a fortaleza do vinculo que os prendia moa. Pedro, j medico, -ainda que sem pratica, punha mais autoridade nas perguntas, concluia -melhor dos symptomas, mas as esperanas e os receios eram de ambos. -Algumas vezes, falavam mais alto que de costume e de conveniencia. A -razo, por egoista que fosse, era perdoavel. Suppe que os cartes de -visita falassem; alguns, mais soffregos, proclamariam os seus nomes, -para que soubessem logo da presena, da cortezia e da anciedade. Tal -cuidado da parte dos dous era inutil, porque ella sabia delles e -recebia as lembranas que lhe deixavam. - -Flora ia assim passando os dias. Queria Natividade sempre ao p de si, -pela razo que j deu, e por outra que no disse, nem porventura soube, -mas podemos suspeital-a e imprimir. Estava alli o ventre abenoado que -gerra os dous gemeos. De instincto, achava nella algo particular. -Quanto ao influxo que exercia nella, por essa ou qualquer outra causa, -no a sabia Natividade; contentava-se em ver que, ainda agora, e em tal -crise, Flora no perdera a amizade que lhe tinha. Passavam as horas -juntas, falando, se no fazia mal falar, ou ento uma com as mos -da outra entre as suas. Quando Flora adormecia, Natividade ficava a -contemplal-a, com o rosto pallido, os olhos fundos, as mos quentes, -mas sem perder a graa dos dias da sade. As outras entravam no quarto, -p ante p, esticavam os pescoos para vel-a dormir, falavam por gestos -ou to baixo que s o corao as adivinharia. - -Quando pareceu melhorar, Flora pediu um pouco mais de luz e de cu. Uma -das duas janellas foi ento escancarada, e a enferma encheu-se de vida -e riso. No que a Febre se fosse de todo. Essa bruxa livida estava ao -canto do quarto, com os olhos espetados nella; mas, ou de canada, ou -por obrigao imposta, cochilava a miudo, e longamente. Ento a enferma -sentia s o calor do Mal, que o medico graduava em trinta e nove ou -trinta e nove e meio, depois de consultar o thermometro. A Febre, ao -ver esse gesto, ria sem escandalo, ria para si. - - - - -CAPITULO CVI - - -Ambos quaes? - - -Ficmos no ponto cm que uma das janellas do quarto augmentou a dse -do luz e de cu que Flora pediu, sem embargo da febre, alis pouca. O -mais que se passou valia a pena de um livro. No foi logo, logo, gastou -longas horas e alguns dias. Houve tempo bastante para que entre a vida -e Flora se fizesse a reconciliao ou a despedida. Uma e outra podiam -ser extensas; tambem podiam ser curtas. Conheci um homem que adoeceu -velho, se no de velho, e despendeu no rompimento final um tempo quasi -infinito. J pedia a morte, mas quando via o rosto descarnado da -derradeira amiga espiar da porta entre-aberta, voltava o seu para outro -lado e engrolava uma cantiga da infancia, para enganal-a e viver. - -Flora no recorria a taes cantigas, alis to proximas. Quando via o -cu e um pedao de sol no muro, deleitava-se naturalmente, e uma vez -quiz desenhar, mas no lh'o consentiram. Se a morte a espiava da porta, -tinha um calefrio, verdade, e fechava os olhos. Ao abril-os fitava a -triste figura, sem lhe fugir nem chamar por ella. - ---Voc amanh est prompta, e de hoje a oito dias, ou antes, vamos para -Petropolis, disse Natividade disfarando as lagrimas, mas a voz fazia o -officio dos olhos. - ---Petropolis? suspirou a doente. - ---L ter muito que desenhar. - -Eram sete horas da manh. Na vespera, quando os gemeos sairam de l, j -tarde, os receios da morte cresciam; mas no bastam receios, preciso -que a realidade venha atraz delles; dahi as esperanas. Tambem no -bastam esperanas, a realidade sempre urgente. A madrugada trouxe -algum socego; s sete horas, depois daquellas palavras de Natividade, -Flora pde dormir. - -Quando Pedro e Paulo voltaram a Andarahy, a enferma estava acordada, -e o medico, sem dar grandes esperanas, mandou fazer applicaes, que -declarou energicas. Todos tinham signaes de lagrimas. De noite, Ayres -appareceu trazendo noticias de agitao na cidade. - ---Que ? - ---No sei; uns falam de manifestaes ao marechal Deodoro, outros de -conspirao contra o marechal Floriano. Ha alguma cousa. - -Natividade pediu aos filhos que se no mettessem em barulhos; ambos -prometteram e cumpriram. Ao ver o aspecto de algumas ruas, grupos, -patrulhas, armas, duas metralhadoras, Itamaraty illuminado, tiveram a -curiosidade de saber o que houve e havia; vaga suggesto, que no durou -dous minutos. Correram a metter-se em casa, e a dormir mal a noite. Na -manh seguinte os criados levaram os jornaes com as noticias da vespera. - ---Veiu algum recado de Andarahy? perguntou um. - ---No, senhor. - -Ainda quizeram ler, por alto, alguma cousa. No puderam; estavam -anciosos de sair de casa e saber noticias da noite. Posto levassem os -jornaes comsigo, no leram claramente nem seguidamente. Viram nomes de -pessoas prezas, um decreto, movimento de gente e de tropas, to confuso -tudo, que deram por si na casa de D. Rita, antes de entender o que -houvera. Flora ainda vivia. - ---Mame, a senhora est mais triste hoje que estes dias. - ---No fales tanto, minha filha, acudiu D. Claudia. Triste estou sempre -que adoeces. Fica boa e vers. - ---Fica, fica boa, interveiu Natividade. Eu em moa, tive uma doena -egual que me prostrou por duas semanas, at que me levantei, quando j -ninguem esperava. - ---Ento j no esperam que me levante? - -Natividade quiz rir da concluso to prompta, com o fim de a animar. A -doente fechou os olhos, abriu-os dahi a pouco, e pediu que vissem se -estava com febre. Viram; tinha, tinha muita. - ---Abram-me a janella toda. - ---No sei se far bem, ponderou D. Rita. - ---Mal no faz, disse Natividade. - -E foi abrir, no toda, mas metade da janella. Flora, posto que j mui -caida, fez esforo e voltou-se para o lado da luz. Nessa posio ficou -sem dar de si; os olhos, a principio vagos, entraram a parar, at que -ficaram fixos. A gente entrava no quarto devagar, e abafando os passos, -trazendo recados e levando-os; fra, espreitavam o medico. - ---Demora-se; j devia c estar, dizia Baptista. - -Pedro era medico, propoz-se a ir ver a enferma; Paulo, no podendo -entrar tambem, ponderou que seria desagradavel ao medico assistente; -alm disso, faltava-lhe pratica. Um e outro queriam assistir ao -passamento de Flora, se tinha de vir. A me, que os ouviu, saiu sala, -e, sabendo o que era, respondeu negativamente. No podiam entrar; era -melhor que fossem chamar o medico. - ---Quem ? perguntou Flora, ao vel-a tornar ao quarto. - ---So os meus filhos que queriam entrar ambos. - ---Ambos quaes? perguntou Flora. - -Esta palavra fez crr que era o delirio que comeava, se no que -acabava, porque, em verdade, Flora no proferiu mais nada. Natividade -ia pelo delirio. Ayres, quando lhe repetiram o dialogo, rejeitou o -delirio. - -A morte no tardou. Veiu mais depressa do que se receiava agora. -Todas e o pae acudiram a rodear o leito, onde os signaes da agonia se -precipitavam. Flora acabou como uma dessas tardes rapidas, no tanto -que no faam ir doendo as saudades do dia; acabou to serenamente -que a expresso do rosto, quando lhe fecharam os olhos, era menos de -defunta que de esculptura. As janellas, escancaradas, deixavam entrar o -sol e o cu. - - - - -CAPITULO CVII - - -Estado de sitio - - -No ha novidade nos enterros. Aquelle teve a circumstancia de percorrer -as ruas em estado de sitio. Bem pensado, a morte no outra cousa -mais que uma cessao da liberdade de viver, cessao perpetua, ao -passo que o decreto daquelle dia valeu s por 72 horas. Ao cabo de 72 -horas, todas as liberdades seriam restauradas, menos a de reviver. Quem -morreu, morreu. Era o caso de Flora; mas que crime teria commettido -aquella moa, alm do de viver, e porventura o de amar, no se sabe a -quem, mas amar? Perdoai estas perguntas obscuras, que se no ajustam, -antes se contrariam. A razo que no recordo este obito sem pena, e -ainda trago o enterro vista... - - - - -CAPITULO CVIII - - -Velhas ceremonias - - -Aqui vae a sair o caixo. Todos tiram o chapeu, logo que elle assoma - porta. Gente que passa, pra. Das janellas debrua-se a visinhana, -em algumas atopeta-se, por serem as familias maiores que o espao; s -portas, os criados. Todos os olhos examinam as pessoas que pegam nas -alas do caixo, Baptista, Santos, Ayres, Pedro, Paulo, Nobrega. - -Este, posto j no frequentasse a casa, mandara saber da enferma, e -foi convidado a carregar o gracioso corpo. No carro, em que levava o -secretario, e era puxado pela mais bella parelha do prestito, quasi -unica, lembrava Nobrega ao secretario. - ---No lhe dizia eu que ella era doente? Era muito doente. - ---Muito. - -No vou ao ponto de affirmar que teve prazer com a morte de Flora, -s por havel-o feito acertar na noticia da doena, estando ella -perfeitamente s. Mas que ninguem fosse seu marido, foi uma especie -de consolao. Houve mais; suppondo que ella o tivesse acceitado e -casassem, pensava agora no esplendido enterro que lhe faria. Desenhava -na imaginao o carro, o mais rico de todos, os cavallos e as suas -plumas negras, o caixo, uma infinidade de cousas que, fora de -compr, cuidava feitas. Depois o tumulo; marmore, letras de ouro... O -secretario para o arrancar tristeza, falava dos objectos da rua. - ---V. Ex. lembra-se do chafariz que havia aqui ha annos? - ---No, resmungava Nobrega. - -Ainda uma vez, no ha novidade nos enterros. Dahi o provavel tedio dos -coveiros, abrindo e fechando covas todos os dias. No cantam, como os -de _Hamlet_, que temperam as tristezas do officio com as trovas do -mesmo officio. Trazem o caixo da cal e a colher para os convidados, -e para si as ps com que deitam a terra para dentro da cova. O pae -e alguns amigos ficaram ao p da cova de Flora, a ver cair a terra, -a principio com aquelle baque soturno, depois com aquelle vagar -canativo, por mais que os pobres homens se apressem. Enifim, caiu toda -a terra, e elles puzeram em cima as grinaldas dos paes e dos amigos: -_ nossa querida filha;-- nossa santa amiguinha Flora a saudosa -amiga Natividade;-- Flora, um amigo velho_, etc. Tudo feito, vieram -saindo; o pae, entre Ayres e Santos, que lhe davam o brao, cambaleava. -Ao porto, foram tomando os carros e partindo. No deram pela falta de -Pedro e Paulo que ficaram ao p da cova. - - - - -CAPITULO CIX - - -Ao p da cova - - -Nenhum delles contou o tempo gasto naquelle logar. Sabem s que foi de -silencio, de contemplao e de saudade. No digo, para os no vexar -agora, mas possivel que chorassem tambem. Tinham um leno na mo, -enxugavam os olhos; depois com os braos caidos, as mos prendendo o -chapeo, olhavam apparentemente para as flres que cobriam a sepultura, -mas na realidade para a creatura que l estava embaixo. - -Emfim, cuidaram de arrancar-se dalli, e despedir-se da defunta, no se -sabe com que palavras, nem se eram as mesmas; o sentido seria egual. -Como estivessem defronte um do outro, acudiu-lhes a ideia de um aperto -de mo por cima da cova. Era uma promessa, um juramento. Juntaram-se -e vieram descendo, calados. Antes de chegar ao porto, reduziram -palavra o gesto das mos feito sobre a cova. Que juravam a conciliao -perpetua. - ---Ella nos separou, disse Pedro; agora, que desappareceu, que nos una. - -Paulo confirmou de cabea. - ---Talvez morresse para isso mesmo, accrescentou. - -Depois, abraaram-se. Gesto nem palavra traziam emphasis ou affectao; -eram simples e sinceros. A sombra de Flora de certo os viu, ouviu e -inscreveu aquella promessa de reconciliao nas taboas da eternidade. -Ambos, por um impulso commum, voltaram os olhos para ver ainda uma -vez a cova de Flora, mas a cova ficava longe e encoberta por grandes -sepulchros, cruzes, collumnas, um mundo inteiro de gente passada, quasi -esquecida. O cemiterio tinha um ar meio alegre, com todas aquellas -grinaldas de flres, baixo-relevos, bustos, e a cr branca dos marmores -e da cal. Comparado cova recente, parecia um renascimento de vida, -que ficou deslembrada a um canto da cidade. - -Custou-lhes sair do cemiterio. No suppunham estar to presos -defunta. Cada um d'elles ouvia a mesma voz, com egual doura e palavras -especiaes. Tinham chegado ao porto e o carro veiu buscal-os. A cara do -cocheiro era radiosa. - -No se explica esta expresso do cocheiro, se no porque, inquieto da -demora, no cuidando que os dous freguezes ficassem tanto tempo ao p -da cova, entrara a receiar que tivessem aceitado o convite de algum -amigo e voltado para casa. Tinha j resolvido esperar poucos minutos -mais, e ir embora; mas a gorjeta? A gorjeta foi dobrada, como a dr e o -amor; digamos, gemea. - - - - -CAPITULO CX - - -Que va - - -Assim como o carro veiu voando do cemiterio, assim voar este capitulo, -destinado a dizer primeira que a me dos gemeos conseguiu leval-os para -Petropolis. J no allegaram a clinica da Santa Caza nem os documentos -da Bibliotheca Nacional. Clinica e documentos repousam agora na cova -n... No ponho o numero, para que algum curioso, se achar este livro na -dita Bibliotheca, se d ao trabalho de investigar e completar o texto. -Basta o nome da defunta, que l ficou dito e redito. - -Ve este capitulo, como o trem de Mau, serra acima, at cidade do -repouso, do luxo e da galanteria. V Natividade com os filhos, e Ayres -com os trez. Em cima, noite, voltando este casa do baro, pde -ver os effeitos da paz jurada, a conciliao final. No sabia nada do -pacto dos dous moos. Pae nem me sabiam cousa nenhuma. Foi um segredo -guardado no silencio e no desejo sincero de commemorar uma creatura que -os ligra, morrendo. - -Natividade vivia agora enamorada dos filhos. Levava-os a toda parte, -ou guardava-os para si, afim de os gostar mais deliciosamente, de os -approvar por actos, de auxiliar a obra correctiva do tempo. Noticias -e boatos do Rio de Janeiro eram objecto de conversao nas casas a -que estes iam, sem os convidar a sair da absteno voluntaria. As -recreaes pouco a pouco os tomaram, algum passeio de carro ou a -cavallo, e outras diverses os traziam unidos. - -Assim chegaram ao tempo em que a familia Santos desceu, ainda que a -contra-gosto de Natividade. Ella temia que, mais perto do governo, a -discordia politica acabasse com a recente harmonia dos filhos, mas no -podia l ficar. A outra gente vinha descendo. Santos queria os seus -velhos habitos, e deu algumas razes boas, que Natividade ouviu depois -ao proprio Ayres. Podia ser um encontro de ideias, mas se estas eram -boas, deviam ser acceitas. - -Natividade confiava ao tempo a perfeio da obra; Cria no tempo. Eu, -em menino, sempre o vi pintado como um velho de barbas brancas e foice -na mo, que me mettia medo. Quanto a ti, amigo meu, ou amiga minha, -segundo fr o sexo da pessoa que me l, se no frem duas, e os sexos -ambos,--um casal de noivos, por exemplo,--curiosos de saber como -que Pedro e Paulo puderam estar no mesmo Credo... No falemos desse -mysterio.... Contenta-te de saber que elles tinham em mente cumprir o -juramento daquelle logar e occasio. O tempo trouxe o fim da estao, -como nos outros annos, e Petropolis deixou Petropolis. - - - -CAPITULO CXI - - -Um resumo de esperanas - - -Quando um no quer, dous no brigam tal o velho proverbio que ouvi -em rapaz, a melhor edade para ouvir proverbios. Na edade madura elles -devem j fazer parte da bagagem da vida, fructos da experiencia antiga -e commum. Eu cria neste; mas no foi elle que me deu a resoluo de no -brigar nunca. Foi por achal-o em mim que lhe dei credito. Ainda que -no existisse, era a mesma cousa. Quanto ao modo de no querer, no -respondo, no sei. Ninguem me constrangia. Todos os temperamentos iam -commigo; poucas divergencias tive, e perdi s uma ou duas amizades, to -pacificamente alis, que os amigos perdidos no deixaram de me tirar o -chapeo. Um delles pediu-me perdo no testamento. - -No caso dos gemeos eram ambos que no queriam; parecia-lhes ouvir uma -voz de fra ou de alto que lhes pedia constantemente a paz. Fora -maior, portanto, e troca de formula: Se nenhum quer, nenhum briga. - -Naturalmente os actos do governo eram approvados e desapprovados, mas -a certeza de que podia accender-Ihes novamente os odios fazia com que -as opinies de Pedro e de Paulo ficassem entre os seus amigos pessoaes. -No pensavam nada vista um do outro. Divergencias de theatro ou de -rua, eram sopitadas logo, por mais que lhes doesse o silencio. No -doeria tanto a Pedro, como a Paulo, mas sempre era padecer alguma -cousa. Mudando de pensamento, esqueciam de todo, e o riso da me era a -paga de ambos. - -A carreira differente ia separal-os depressa, comquanto a residencia -commum os trouxesse unidos. Tudo se podia combinar; os interesses -do officio serviriam a este effeito, as relaes pessoaes tambem, e -afinal o uso, que vale por muito. Vou aqui resumindo, como posso, as -esperanas de Natividade. Outras havia a que chamarei conjugaes; os -rapazes porm, no pareciain inclinados a ellas, e a me, quem lhe -apalpasse o corao sentiria j um anticipado ciume das noras. - - - -CAPITULO CXII - - -O primeiro mez - - -Na vespera do dia em que se completou o primeiro mez da morte de Flora, -Pedro teve uma ideia, que no communicou ao irmo. No perderia nada em -fazel-o, porque Paulo teve a mesma ideia, e tambem a calou. Della nasce -este capitulo. - -A pretexto de ir visitar um doente, Pedro saiu de casa, antes das -sete horas. Paulo saiu pouco depois, sem pretexto algum. Pia leitora, -adivinhas que ambos fram ao cemiterio; no adivinhas, nem facil -adivinhar que cada um delles levava uma grinalda. No digo que fossem -das mesmas flores, no s para respeitar a verdade, seno tambem para -afastar qualquer ideia intencional de symetria na aco e no acaso. -Uma era de myosotis, outra creio que de perpetuas. Qual fosse a de um, -qual a do outro, no se sabe nem interessa narrao. Nenhuma tinha -letreiro. - -Quando Paulo chegou ao cemiterio, e viu de longe o irmo, teve -a sensao de pessoa roubada. Cuidava ser unico e era ultimo. A -presumpo, porm, de que Pedro no levra nada, uma folha sequer, -consolou-o da antecipao da visita. Esperou alguns instantes; -advertindo que podia ser visto, desviou-se do caminho, metteu-se por -entre sepulturas, at ir collocar-se atraz daquella. Ahi esperou cerca -de um quarto de hora. Pedro no se queria arrancar dalli; parecia falar -e escutar. Emfim, despediu-se e desceu. - -Paulo, vagorosamente, caminhou para a sepultura. Indo a depositar a -grinalda, viu alli outra posta de fresco, e entendendo que era do -irmo, teve impeto de ir atraz delle e pedir-lhe contas da lembrana e -da visita. No lhe leves a mal o impeto; passou immediatamente. O que -elle fez foi collocar a coroa que levava no lado correspondente aos -ps da defunta, para no a irmanar com a outra, que estava do lado da -cabea. - -No viu, no adivinhou sequer que Pedro naturalmente pararia um -instante, para voltar a cara e mandar um derradeiro olhar moa -enterrada. Assim foi, mas quando Pedro deu com o irmo, no mesmo logar -que elle, os olhos no cho, teve tambem o seu impulso de ir buscal-o -e trazel-o daquella cova sagrada. Preferiu esconder-se e esperar. Os -gestos de piedade, quaesquer que fossem, elle os deu primeiro querida -commum. Foi o primeiro em evocar a sombra de Flora, falar-lhe, ouvil-a, -gemer com ella a separao eterna. Viera adiante do outro; lembrara-se -della mais cedo. - -Assim consolado, podia seguir caminho; Paulo, se saisse atraz delle, -e o visse, entenderia que fizera a sua visita em segundo logar, e -receberia um golpe grande. Deu alguns passos na direco do porto, -estacou, recuou e novamente se escondeu. Queria ver os gestos delle, -ver se rezava, se se benzia, para desmentil-o quando lhe ouvisse mofar -das ceremonias ecclesiasticas. Logo sentiu que era um erro; no iria -confessar a ninguem que o vira rezando ao p da cova de Flora. Ao -contrario, era capaz de o desmentir,--ou, quando menos, fazer um gesto -de incredulidade... - -Emquanto estas imaginaes lhe passavam pela cabea, desfazendo-se -umas s outras, discursando sem palavras, acceitando, repellindo, -esperando, os olhos no se retiravam do irmo, nem este da sepultura. -Paulo no fazia gesto, no mexia os labios, tinha os braos cruzados, -o chapeo na mo. No obstante, podia estar rezando. Tambem podia -falar calado, para a sombra ou para a memoria da defunta. A verdade -que no saiu do logar. Ento Pedro viu que a conversao, evocao, -adorao, o que quer que fosse que atava Paulo sepultura, vinha sendo -muito mais demorado que as suas oraes. No marcra o seu tempo, mas -evidentemente o de Paulo era j maior. Descontando a impaciencia, -que sempre faz crescer os minutos, ainda assim parecia certo que -Paulo gastava mais saudades que elle. Deste modo, ganhava na extenso -da visita o que perdera na chegada ao cemiterio. Pedro, sua vez, -achou-se roubado. - -Quiz sair; mas, uma fora, que elle no sabia explicar, no lhe -consentia levantar os ps, nem tirar os olhos do gemeo. A custo, pde -emfim trazer a estes e fazel-os andar de volta pelas outras campas, -onde leu alguns epitaphios. Um de 1865 no se podia ler bem se era -tributo de amor filial ou conjugal, maternal ou paternal, por estar -j apagado o adjectivo. Tributo era, tinha a formula adoptada pelos -marmoristas, para poupar estylo aos freguezes. Notando que o adjectivo -estava comido do tempo, Pedro disse comsigo que o seu amor que era um -substantivo perpetuo, no precisando mais nada para se definir. - -Pensou outras cousas com que foi disfarando a humilhao. Fizera tudo -s carreiras. Se se demorasse mais, era o outro que estaria agora - espreita. O tempo andava, o sol batia no rosto do irmo, e este -no arredava p. Emfim, deu mostras de deixar a cova, mas foi para -rodeal-a, e deter-se em todos os quatro lados, como se buscasse o -melhor logar de ver ou evocar a pessoa guardada no fundo. - -Tudo feito, Paulo arredou-se, desceu e saiu, levando as maldies -de Pedro. Este teve uma ideia que desprezou logo, e tu farias o -mesmo, amigo leitor; foi tornar sepultura e emendar ao tempo gasto -anteriormente outro pedao maior. Desprezada a ideia, vagou alguns -minutos, at que saiu, sem achar sombra de Paulo. - - - -CAPITULO CXIII - - -Uma Beatriz para dous - - -Flora, se visse os gestos de ambos, provavel que descesse do cu, e -buscasse maneira de os ouvir perpetuamente, uma Beatriz para dous. Mas -no viu ou no lhe pareceu bem descer. Talvez no achasse necessidade -de tornar c, para servir de madrinha a um duello que deixara em meio. - -Quanto a este, se ia continuar, no era pela mesma injuria. No -esqueas que foi ao p daquella mesma campa que os dous fizeram as -pazes eternas, e, posto no lh'as desfizesse a campa, certo que -accendeu um pouco da ira antiga. Dir-me-has, e com apparencia de razo, -que, se enterrada ainda os separava, mais os separaria se alli descesse -em espirito. Puro engano, amigo. No comeo, ao menos, elles jurariam o -que ella mandasse. - - - - -CAPITULO CXIV - - -Consultorio e banca - - -Mezes depois, Pedro abria consultorio medico, aonde iam pessoas -doentes, Paulo banca de advogado, que procuravam os carecidos de -justia. Um promettia saude, outro ganho de causa, e acertavam -muita vez, porque no lhes faltava talento nem fortuna. Demais, no -trabalhavam ss, mas cada qual com um collega de nomeada e pratico. - -No meio dos successos do tempo, entre os quaes avultavam a rebellio -da esquadra e os combates do sul, a fuzilaria contra a cidade, os -discursos inflammados, prises, musicas e outros rumores, no lhes -faltava campo em que divergissem. Nem era preciso politica.. Cresciam -agora mais em numero as occasies e as materias. Ainda quando -combinassem de acaso e de apparencia, era para discordar logo e de vez, -no deliberamente, mas por no poder ser de outro modo. - -Tinham perdido o accordo, feito pela razo, jurado pelo amor, em honra -da moa defunta e da me viva. Mal se podiam ver, mal ou peor ouvir. -Cuidaram de evitar tudo o que o logar e a occasio ajustassem para -os separar mais. Desta maneira, a profisso torceu-lhes o caminho e -dividiu as relaes de ambos. Natividade apenas daria pela m vontade -dos filhos, desde que os dous pareciam apostados em lhe querer bem, -mas dava por ella, e tentava ligal-os apertadamente e de todo. Santos -folgava de se prolongar pela medicina e pela advocacia dos filhos. -S receiava que Paulo, dada a inclinao partidaria, buscasse noiva -jacobina. No ousando dizer-lhe nada a tal respeito, refugiava-se na -religio, e no ouvia missa que lhe no mettesse uma orao particular -e secreta, para obter a proteco do cu. - - - - - -CAPITULO CXV - - -Troca de opinies - - -Se no quando, viu Natividade os primeiros signaes de uma troca de -inclinao, que mais parecia proposito que effeito natural. Entretanto, -era naturalissimo. Paulo entrou a fazer opposio ao governo, ao passo -que Pedro moderava o tom e o sentido, e acabava acceitando o regimen -republicano, objecto de tantas desavenas. - -A acceitao por parte deste no foi rapida nem total; era, porm, -bastante para sentir que no havia entre elle e o novo governo um -abysmo. Naturalmente o tempo e a reflexo consummaram este effeito no -espirito de Pedro, a no admittir que tambem nelle vingasse a ambio -de um grande destino, esperana da me. Natividade, com effeito, ficou -deliciada. Tambem ella mudara, se havia que mudar na simples alma -materna para quem todos os regimens valiam pela gloria dos filhos. -Pedro, alis, no se dava todo, restringia alguma cousa s pessoas e -ao systema, mas acceitava o principio, e bastava; o resto viria com a -edade, dizia ella. - -A opposio de Paulo no era ao principio, mas execuo. No esta -a republica dos meus sonhos, dizia elle; e dispunha-se a reformal-a em -trez tempos, com a fina flor das instituies humanas, no presentes -nem passadas, mas futuras. Quando falava dellas, via-se-lhe a convico -nos labios e nos olhos, estes alongados, como alma de propheta. Era -outro ensejo de se no entenderem os dous. D. Claudia tinha que era -calculo de ambos para se no juntarem nunca;--opinio que Natividade -acceitaria, finalmente, se no fra a de Ayres. - -Tambem este notra a mudana, e estava prestes a acceitar a explicao, -por aquella razo de commodidade que achava em concordar com as -opinies alheias; no se canava nem aborrecia. Tanto melhor, se o -accordo se fazia com um simples gesto. Desta vez, porm, valeu a pessoa. - ---No, baroneza, disse elle, no creia em propositos. - ---Mas que pde ser ento? - -Ayres gastou algum tempo na escolha das palavras, afim de lhe no -sairem pedantescas nem insignificantes; queria dizer o que pensava. -s vezes, falar no custa menos que pensar. Ao fim de trez minutos, -segredou a Natividade: - ---A razo parece-me ser que o espirito de inquietao reside em Paulo, -e o de conservao em Pedro. Um j se contenta do que est, outro -acha que pouco e pouquissimo, e quizera ir ao ponto a que no fram -homens. Em summa, no lhes importam formas de governo, comtanto que a -sociedade fique firme ou se atire para diante. Se no concorda commigo, -concorde com D. Claudia. - -Ayres no tinha aquelle triste peccado dos opiniaticos; no lhe -importava ser ou no acceito. No a primeira vez que o digo, mas -provavelmente a ultima. Em verdade, a me dos gemeos no quiz -outra explicao. Nem por isso a discordia morreria entre elles, que -apenas trocavam de armas para continuar o mesmo duello. Ouvindo esta -concluso, Ayres fez um gesto affirmativo, e chamou a atteno de -Natividade para a cr do cu, que era a mesma, antes e depois da chuva. -Suppondo que havia nisto algo symbolico, ella entrou a procural-o, e o -mesmo farias t, leitor, se l estivesses; mas no havia nada. - ---Tenha confiana, baroneza, proseguiu elle pouco depois. Conte com -as circumstancias, que tambem so fadas. Conte mais com o imprevisto. -O imprevisto uma especie de deus avulso, ao qual preciso dar -algumas aces de graas; pde ter voto decisivo na assembla dos -acontecimentos. Supponha um despota, uma crte, uma mensagem. A crte -discute a mensagem, a mensagem canonisa o despota. Cada cortezo toma -a si definir uma das virtudes do despota, a mansido, a piedade, a -justia, a modestia... Chega a vez da grandeza da alma; chega tambem a -noticia de que o despota morreu de apoplexia, que um cidado assumiu -o poder e a liberdade foi proclamada do alto do throno. A mensagem -approvada e copiada. Um amanuense basta para trocar as mos Historia; -tudo que o nome do novo chefe seja conhecido, e o contrario -impossivel; ninguem trepa ao solio sem isso, nem a senhora sabe o que -memoria de amanuense. Como nas missas funebres, s se troca o nome do -encommendado,--Petrus, Paulus... - ---Oh! no agoure meus filhos! exclamou Natividade. - - - - -CAPITULO CXVI - - -De regresso - - ---Ento foram eleitos deputados? - ---Fram; tomam assento quinta-feira. Se no fssem meus filhos, diria -que os vem achar mais bellos do que os deixou, ha um anno. - ---Diga, diga, baroneza; faa de conta que so meus filhos. - -Ayres voltava de Europa, aonde fra com promessa de ficar seis mezes -apenas. Enganou-se; gastou onze. Natividade que lhe pz um anno para -arredondar a ausencia, que sentira devras, como D. Rita. O sangue em -uma, o costume na outra, custou-lhes a supportar a separao. Elle fra -a pretexto de aguas, e, por mais que lhe recommendassem as do Brasil, -no as quiz experimentar. No estava acostumado s denominaes locaes. -Tinha esta impresso que as aguas de Carlsbad ou Vichy, sem estes -nomes, no curariam tanto. D. Rita insinuou que elle ia para ver como -estavam as moas que deixou, e concluiu: - ---Ho de estar to velhas, como voc. - ---Quem sabe se mais? O officio dellas envelhecer, redarguiu o -conselheiro. - -Quiz rir, mas no pde ir alm da ameaa. No era a lembrana da -propria velhice, nem da caducidade alheia, era a injustia da sorte que -lhe tomou a vista interior. As moas elle sabia muito bem que cediam -ao tempo, como as cidades e as instituies, e ainda mais depressa que -ellas. Nem todas iriam logo cedo, a cumprir a sentena que attribue ao -amor dos deuses a morte prematura das pessoas; mas viu algumas dessas, -e agora lhe lembrou a meiga Flora, que l se fra com as suas graas -finas... No passou da ameaa de riso. - -Quizeram retel-o as duas, Santos tambem, que perdia nelle uma figura -certa das suas noites; mas o nosso homem resistiu, embarcou e partiu. -Como escrevia sempre irm e aos amigos, dava a causa exacta da -demora, e no eram amores, salvo se mentia, mas passara a edade de -mentir. Affirmou, sim, que recuperara algumas foras, e assim o pareceu -quando desembarcou, onze mezes depois, no caes Pharoux. Trazia o mesmo -ar de velho elegante, fresco e bem posto. - ---Mas ento eleitos? - ---Eleitos; tomam assento quinta-feira. - - - - -CAPITULO CXVII - - -Posse das cadeiras - - -Quinta-feira, quando os gemeos tomaram assento na camara, Natividade -e Perpetua fram ver a ceremonia. Pedro ou Paulo arranjou-lhes uma -tribuna. A me desejou que Ayres fosse tambem. Quando este alli chegou, -j as achou sentadas, Natividade a fitar com a luneta o presidente e -os deputados. Um destes falava sobre a acta,e ninguem lhe prestava -atteno. Ayres sentou-se um pouco mais dentro, e aps alguns minutos, -disse a Natividade: - ---A senhora escreveu-me que eram candidatos de dous partidos contrarios. - -Natividade confirmou a noticia; fram eleitos em opposio um ao -outro. Ambos apoiavam a Republica, mas Paulo queria mais do que ella -era, e Pedro achava que era bastante e sobeja. Mostravam-se sinceros, -ardentes, ambiciosos; eram bem acceitos dos amigos, estudiosos, -instruidos... - ---Amam-se finalmente? - ---Amam-se em mim, respondeu ella depois de formular essa phrase na -cabea. - ---Pois basta esse terreno amigo. - ---Amigo, mas caduco; amanh posso faltar-lhes. - ---No falta; a senhora tem muitos e muitos annos de vida. Faa uma -viagem Europa com elles, e ver que regressa ainda mais robusta. Eu -sinto-me duplicado, por mais que me custe modestia, mas a modestia -perdoa tudo. E depois, quando os vir encarreirados e grandes homens... - ---Porque que a politica os ha de separar? - ---Sim, podiam ser grandes na sciencia, um grande medico, um grande -jurisconsulto... - -Natividade no quiz confessar que a sciencia no bastava. A gloria -scientifica parecia-lhe comparativamente obscura; era calada, de -gabinete, entendida de poucos. Politica, no. Quizera s a politica, -mas que no brigassem, que se amassem, que subissem de mos dadas... -Assim ia pensando comsigo, emquanto Ayres, abrindo mo da sciencia, -acabou declarando que, sem amor, no se faria nada. - ---Paixo, disse elle, meio caminho andado. - ---A politica a paixo delles; paixo e ambio. Talvez j pensem na -presidencia da Republica. - ---J? - ---No... isto , sim; guarde segredo. Interroguei-os separadamente; -confessaram-me que este era o seu sonho imperial. Resta saber o que -far um, se o outro subir primeiro. - ---Derrubal-o-ha, naturalmente. - ---No graceje, conselheiro. - ---No gracejo, baroneza. A senhora cuida que a politica os desune; -francamente, no. A politica um incidente, como a moa Flora foi -outro... - ---Ainda se lembram della. - ---Ainda? - ---Foram missa anniversaria, e desconfio que fram tambem -ao cemiterio, no juntos, nem mesma hora. Se fram, que -verdadeiramente gostavam della; logo, no foi um incidente. - -Sem embargo do que Natividade lhe merecia, Ayres no insistiu na -opinio, antes deu mais relevo della, com o proprio facto da visita -ao cemiterio. - ---No sei se fram, emendou Natividade; desconfio. - ---Devem ter ido; elles gostavam realmente da pequena. Tambem ella -gostava delles; a differena que, no alcanando unifical-os, como -os via em si, preferiu fechar os olhos. No lhe importe o mysterio. Ha -outros mais escuros. - ---Parece que vae entrar a ceremonia, disse Perpetua que olhava para o -recinto. - ---Chegue-se para a frente, conselheiro. - -A ceremonia era a do costume. Natividade cuidou que ia vel-os entrar -juntos e affirmarem juntos o compromisso regimental. Viriam assim -como os trouxera no ventre e na vida. Contentou-se de os admirar -separadamente, Paulo primeiro, Pedro depois, ambos graves, e ouviu-lhes -c de cima repetira formula com voz clara e segura. A ceremonia foi -curiosa para as galerias, graas semelhana dos dous; para a me foi -commovedora. - ---Esto legisladores, disse Ayres no fim. - -Natividade tinha os olhos gloriosos. Ergueu-se e pediu ao velho amigo -que as acompanhasse carruagem. No corredor acharam os dous recentes -deputados, que vinham ter com a me No consta qual delles a beijou -primeiro; no havendo regimento interno nesta outra camara, pde ser -que fossem ambos a um tempo, mettendo-lhes ella a cara entre as bocas, -uma face para cada um. A verdade que o fizeram com egual ternura. -Depois voltaram ao recinto. - - - - -CAPITULO CXVIII - - -Cousas passadas, cousas futuras - - -Indo a entrar na carruagem, Natividade deu com a egreja de S. Jos, ao -lado, e um pedao do morro do Castello, a distancia. Estacou. - ---Que ? perguntou Ayres. - ---Nada, respondeu ella entrando e estendendo-lhe a mo. At logo? - ---At logo. - -A vista da egreja e do morro despertou nella todas as scenas e palavras -que l ficaram transcriptas nos dous ou trez primeiros capitulos. -No esqueceste que foi ao p da egreja, entre esta e a camara, que o -_coup_ esperou ento por ella e pela irm. - ---Voc lembra-se, Perpetua? disse Natividade, quando o carro comeou a -andar. - ---De que? - ---No se lembra que foi alli que ficou o carro, quando fmos cabocla -do Castello? - -Perpetua lembrava-se. Natividade advertiu ques devia ser alli perto a -ladeira por onde subiram com difficuldade e curiosidade, at casa da -cabocla, no meio da outra gente, que descia ou subia tambem. A casa era - direita, tinha a escada de pedra... - -Descana, amigo, no repito as paginas. Ella que no podia deixar de -as evocar, nem impedir que viessem de si mesmas. Tudo reapparecia com -a frescura antiga. No esquecera a figurinha da cabocla, quando o pae -a fez entrar na sala: entra, Barbara. A ideia de estar agora madura e -longe, restituida ao Estado, que deixou Provincia, rica onde nasceu -pobre, no acudiu nossa amiga. No, toda ella voltou quella manh -de 1871. A caboclinha era esta mesma creatura leve e breve, com os -cabellos atados no alto da cabea, olhando, falando, dansando... Cousas -passadas. - -Quando a carruagem ia a dobrar a praia de Santa Luzia, ladeando a Santa -Casa, Natividade teve ideia, mas s ideia, de voltar e ir ter ladeira -do Castello, subir por ella, a ver se achava a adivinha no mesmo logar. -Contar-lhe-hia que os dous meninos de mama, que ella predisse seriam -grandes, eram j deputados e acabavam de tomar assento na camara. -Quando cumpririam elles o seu destino? Viveria o tempo de os ver -grandes homens, ainda que muito velha? - -A presidencia da Republica no podia ser para dous, mas um teria a -vice-presidencia, e se este a achasse pouco, trocariam mais tarde os -cargos. Nem faltavam grandezas. Ainda se lembrava das palavras que -ouviu cabocla, quando lhe perguntou pela especie de grandeza que -caberia aos filhos. Cousas futuras! respondeu a Pythia do Norte, com -tal voz que nunca lhe esqueceu. Agora mesmo parece-lhe que a ouve, mas - illuso. Quando muito, so as rodas do carro que vo rolando e as -patas dos cavallos que batem: Cousas futuras! cousas futuras! - - - - -CAPITULO CXIX - - -Que annuncia os seguintes - - -Todas as historias, se as cortam em fatias, acabam com um capitulo -ultimo e outro penultimo, mas nenhum autor os confessa taes; todos -preferem dar-lhes um titulo proprio. Eu adopto o methodo opposto; -escrevo no alto de cada um dos capitulos seguintes os seus nomes de -remate, e, sem dizer a materia particular de nenhum, indico o kilometro -em que estamos da linha. Isto suppondo que a historia seja um trem de -ferro. A minha no propriamente isso. Poderia ser uma canoa, se lhe -tivesse posto aguas e ventos, mas tu viste que s andamos por terra, -a p ou de carro, e mais cuidosos da gente que do cho. No trem -nem barco; uma historia simples, acontecida e por acontecer; o que -poders ver nos dous capitulos que faltam, e so curtos. - - - - -CAPITULO CXX - - -Penultimo - - -Este ainda um obito. Ja l ficou defunta a joven Flora, aqui vae -morta a velha Natividade. Chamo-lhe velha, porque li a certido de -baptismo; mas, em verdade, nem os filhos deputados, nem os cabellos -brancos davam a esta senhora o aspecto correspondente edade. A -elegancia, que era o seu sexto sentido, enganava os tempos de tal -maneira que ella conservava, no digo a frescura, mas a graa antiga. - -No morreu sem ter uma conferencia particular com os dous filhos,--to -particular, que nem o marido assistiu a ella. Tambem no instou por -isso. Verdade, verdade, Santos andava a chorar pelos cantos; mal -poderia reter as lagrimas, se ouvisse a mulher fazer aos filhos os seus -finaes pedidos. Porquanto, os medicos j a haviam desenganado. Se eu -no visse nesses officiaes da sade os escrutadores da vida e da morte, -podia torcer a penna, e, contra a predico scientifica, fazer escapar -Natividade. Commetteria uma aco facil e rles, alm de mentirosa. -No, senhor, ella morreu sem falta, poucas semanas depois daquella -sesso da camara. Morreu de typho. - -To secreta foi a conferencia della e dos filhos que estes no quizeram -contal-a a ninguem, salvo ao conselheiro Ayres, que a adivinhou em -parte. Paulo e Pedro confessaram a outra parte, pedindo-lhe silencio. - ---No juraram calar? - ---Positivamente, no, disse um. - ---Juramos s o que ella nos pediu, explicou o outro. - ---Pois ento podem contal-o a mim. Eu serei discreto como um tumulo. - -Ayres sabia que os tumulos no so discretos. Se no dizem nada, -porque diriam sempre a mesma historia; dahi a fama de discrio. No -virtude, falta de novidade. - -Ora, o que a me fez, quando elles entraram e fecharam a porta do -quarto, foi pedir-lhes que ficasse cada um do lado da cama e lhe -estendessem a dextra. Juntou-as sem fora e fechou-as nas suas mos -ardentes. Depois, com a voz expirante e os olhos accesos apenas de -febre, pediu-lhes um favor grande e unico. Elles iam chorando e -calando, porventura adivinhando o favor. - ---Um favor derradeiro, insistiu ella. - ---Diga, mame. - ---Vocs vo ser amigos. Sua me padecer no outro mundo, se os no -vir amigos neste. Peo pouco; a vossa vida custou-me muito, a criao -tambem, e a minha esperana era vel-os grandes homens. Deus no quer, -paciencia. Eu que quero saber que no deixo dous ingratos. Anda, -Pedro, anda, Paulo, jurem que sero amigos. - -Os moos choravam. Se no falavam, porque a voz no lhes queria sair -da garganta. Quando pde, saiu tremula, mas clara e forte: - ---Juro, mame! - ---Juro, mame! - ---Amigos para todo sempre? - ---Sim. - ---No quero outras saudades. Estas smente, a amizade verdadeira, e que -se no quebre nunca mais. - -Natividade ainda conservou as mos delles presas, sentiu-as tremulas de -commoo, e esteve calada alguns instantes. - ---Posso morrer tranquilla. - ---No, mame no morre, interromperam ambos. Parece que a me quiz -sorrir a esta palavra de confiana, mas a bca no respondeu -inteno, antes fez um tregeito que assustou os filhos. Paulo correu a -pedir soccorro. Santos entrou desorientado no quarto, a tempo de ouvir - esposa algumas palavras suspiradas e derradeiras. A agonia comeou -logo, e durou algumas horas. Contadas todas as horas de agonia que tem -havido no mundo, quantos seculos faro? Desses tero sido tenebrosos -alguns, outros melancolicos, muitos desesperados, raros enfadonhos. -Emflm, a morte chega, por muito que se demore, e arranca a pessoa ao -pranto ou ao silencio. - - - - - -NDICE - - - - I -- Cousas futuras! - II -- Melhor de descer que de subir - III -- A esmola da felicidade - IV -- A missa do _coup_ - V -- Ha contradices explicaveis - VI -- Maternidade - VII -- Gestao - VIII -- Nem casal, nem general - IX -- Vista de palacio - X -- O juramento - XI -- Um caso unico! - XII -- Esse Ayres - XIII -- A epigraphe - XIV -- A lico do discipulo - XV -- _Teste David cum Sibylla_ - XVI -- Paternalismo - XVII -- Tudo o que restrinjo - XVIII -- De como vieram crescendo - XIX -- Apenas duas.--Quarenta annos. Terceira causa - XX -- A joia - XXI -- Um ponto escuro - XXII -- Agora um salto - XXIII -- Quando tiverem barbas - XXIV -- Robespierre e Luiz XVI - XXV -- D. Miguel - XXVI -- A luta dos retratos - XXVII -- De uma reflexo intempestiva - XXVIII -- O resto certo - XXIX -- A pessoa mais moa - XXX -- A gente Baptista - XXXI -- Flora - XXXII -- O aposentado - XXXIII -- A solido tambem cana - XXXIV -- Inexplicavel - XXXV -- Em volta da moa - XXXVI -- A discordia no to feia como se pinta - XXXVII -- Desaccordo no accordo - XXXVIII -- Chegada a proposito - XXXIX -- Um gatuno - XL -- Recuerdos - XLI -- Caso do burro - XLII -- Uma hypothese - XLIII -- O discurso - XLIV -- O salmo - XLV -- Musa, canta... - XLVI -- Entre um acto e outro - XLVII -- S. Matheus, IV, 1-10 - XLVIII -- Terpsichore - XLIX -- Taboleta velha - L -- O tinteiro de Evaristo - LI -- Aqui presente - LII -- Um segredo - LIII -- De confidencias - LIV -- Emfim, s! - LV -- A mulher a desolao do homem - LVI -- O golpe - LVII -- Das encommendas - LVIII -- Matar saudades - LIX -- Noite de 14 - LX -- Manh de 15 - LXI -- Lendo Xenophonte - LXII -- Pare no D. - LXIII -- Taboleta nova - LXIV -- Paz! - LXV -- Entre os filhos - LXVI -- O basto e a espadilha - LXVII -- A noite inteira - LXVIII -- De manh - LXIX -- Ao piano - LXX -- De uma concluso errada - LXXI -- A commisso - LXXII -- O regresso - LXXIII -- Um El-Dorado - LXXIV -- A alluso do texto - LXXV -- Proverbio errado - LXXVI -- Talvez fosse a mesma! - LXXVII -- Hospedagem - LXXVIII -- Visita ao marechal - LXXIX -- Fuso, diffuso, confuso... - LXXX -- Transfuso, emfim - LXXXI -- Ai, duas almas... - LXXXII -- Em S. Clemente - LXXXIII -- A grande noite - LXXXIV -- O velho segredo - LXXXV -- Trez constituies - LXXXVI -- Antes que me esquea - LXXXVII -- Entre Ayres e Flora - LXXXVIII -- No, no, no - LXXXIX -- O drago - XC -- O ajuste - XCI -- Nem s a verdade se deve s mes - XCII -- Segredo acordado - XCIII -- No ata nem desata - XCIV -- Gestos oppostos - XCV -- O terceiro - XCVI -- Retraimento - XCVII -- Um Christo particular - XCVIII -- O medico Ayres - XCIX -- A titulo de ares novos... - C -- Duas cabeas - CI -- O caso embrulhado - CII -- Viso pede meia sombra - CIII -- O quarto - CIV -- A resposta - CV -- A realidade - CVI -- Ambos quaes? - CVII -- Estado de sitio - CVIII -- Velhas cerimonias - CIX -- Ao p da cova - CX -- Que va - CXI -- Um resumo de esperanas - CXII -- O primeiro mez - CXIII -- Uma Beatriz para dous - CXIV -- Consultorio e banca - CXV -- Troca de opinies - CXVI -- De regresso - CXVII -- Posse das cadeiras - CXVIII -- Cousas passadas, cousas futuras - CXIX -- Que annuncia os seguintes - CXX -- Penultimo - - - - - - - - - - - -End of the Project Gutenberg EBook of Esau e Jacob, by Machado de Assis - -*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK ESAU E JACOB *** - -***** This file should be named 56737-8.txt or 56737-8.zip ***** -This and all associated files of various formats will be found in: - http://www.gutenberg.org/5/6/7/3/56737/ - -Produced by Laura Natal Rodrigues & Marc D'Hooghe at Free Literature -Updated editions will replace the previous one--the old editions will -be renamed. - -Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright -law means that no one owns a United States copyright in these works, -so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United -States without permission and without paying copyright -royalties. 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You may charge a reasonable fee for copies of or providing -access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works -provided that - -* You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from - the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method - you already use to calculate your applicable taxes. The fee is owed - to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he has - agreed to donate royalties under this paragraph to the Project - Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments must be paid - within 60 days following each date on which you prepare (or are - legally required to prepare) your periodic tax returns. Royalty - payments should be clearly marked as such and sent to the Project - Gutenberg Literary Archive Foundation at the address specified in - Section 4, "Information about donations to the Project Gutenberg - Literary Archive Foundation." - -* You provide a full refund of any money paid by a user who notifies - you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he - does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm - License. You must require such a user to return or destroy all - copies of the works possessed in a physical medium and discontinue - all use of and all access to other copies of Project Gutenberg-tm - works. - -* You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of - any money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the - electronic work is discovered and reported to you within 90 days of - receipt of the work. - -* You comply with all other terms of this agreement for free - distribution of Project Gutenberg-tm works. - -1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project -Gutenberg-tm electronic work or group of works on different terms than -are set forth in this agreement, you must obtain permission in writing -from both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and The -Project Gutenberg Trademark LLC, the owner of the Project Gutenberg-tm -trademark. Contact the Foundation as set forth in Section 3 below. - -1.F. - -1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable -effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread -works not protected by U.S. copyright law in creating the Project -Gutenberg-tm collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm -electronic works, and the medium on which they may be stored, may -contain "Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate -or corrupt data, transcription errors, a copyright or other -intellectual property infringement, a defective or damaged disk or -other medium, a computer virus, or computer codes that damage or -cannot be read by your equipment. - -1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right -of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project -Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project -Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project -Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all -liability to you for damages, costs and expenses, including legal -fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT -LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE -PROVIDED IN PARAGRAPH 1.F.3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE -TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE -LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR -INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH -DAMAGE. - -1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a -defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can -receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a -written explanation to the person you received the work from. If you -received the work on a physical medium, you must return the medium -with your written explanation. The person or entity that provided you -with the defective work may elect to provide a replacement copy in -lieu of a refund. If you received the work electronically, the person -or entity providing it to you may choose to give you a second -opportunity to receive the work electronically in lieu of a refund. If -the second copy is also defective, you may demand a refund in writing -without further opportunities to fix the problem. - -1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth -in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS', WITH NO -OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT -LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. - -1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied -warranties or the exclusion or limitation of certain types of -damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement -violates the law of the state applicable to this agreement, the -agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or -limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or -unenforceability of any provision of this agreement shall not void the -remaining provisions. - -1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the -trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone -providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in -accordance with this agreement, and any volunteers associated with the -production, promotion and distribution of Project Gutenberg-tm -electronic works, harmless from all liability, costs and expenses, -including legal fees, that arise directly or indirectly from any of -the following which you do or cause to occur: (a) distribution of this -or any Project Gutenberg-tm work, (b) alteration, modification, or -additions or deletions to any Project Gutenberg-tm work, and (c) any -Defect you cause. - -Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm - -Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of -electronic works in formats readable by the widest variety of -computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It -exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations -from people in all walks of life. - -Volunteers and financial support to provide volunteers with the -assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's -goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will -remain freely available for generations to come. In 2001, the Project -Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure -and permanent future for Project Gutenberg-tm and future -generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary -Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see -Sections 3 and 4 and the Foundation information page at -www.gutenberg.org - - - -Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation - -The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit -501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the -state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal -Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification -number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary -Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by -U.S. federal laws and your state's laws. - -The Foundation's principal office is in Fairbanks, Alaska, with the -mailing address: PO Box 750175, Fairbanks, AK 99775, but its -volunteers and employees are scattered throughout numerous -locations. Its business office is located at 809 North 1500 West, Salt -Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up to -date contact information can be found at the Foundation's web site and -official page at www.gutenberg.org/contact - -For additional contact information: - - Dr. Gregory B. Newby - Chief Executive and Director - gbnewby@pglaf.org - -Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg -Literary Archive Foundation - -Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide -spread public support and donations to carry out its mission of -increasing the number of public domain and licensed works that can be -freely distributed in machine readable form accessible by the widest -array of equipment including outdated equipment. Many small donations -($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt -status with the IRS. - -The Foundation is committed to complying with the laws regulating -charities and charitable donations in all 50 states of the United -States. Compliance requirements are not uniform and it takes a -considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up -with these requirements. We do not solicit donations in locations -where we have not received written confirmation of compliance. To SEND -DONATIONS or determine the status of compliance for any particular -state visit www.gutenberg.org/donate - -While we cannot and do not solicit contributions from states where we -have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition -against accepting unsolicited donations from donors in such states who -approach us with offers to donate. - -International donations are gratefully accepted, but we cannot make -any statements concerning tax treatment of donations received from -outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. - -Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation -methods and addresses. Donations are accepted in a number of other -ways including checks, online payments and credit card donations. To -donate, please visit: www.gutenberg.org/donate - -Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic works. - -Professor Michael S. Hart was the originator of the Project -Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be -freely shared with anyone. For forty years, he produced and -distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of -volunteer support. - -Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed -editions, all of which are confirmed as not protected by copyright in -the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not -necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper -edition. - -Most people start at our Web site which has the main PG search -facility: www.gutenberg.org - -This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, -including how to make donations to the Project Gutenberg Literary -Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to -subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. - diff --git a/56737-h/56737-h.htm b/56737-h/56737-h.htm index 6e0810c..a189e8b 100644 --- a/56737-h/56737-h.htm +++ b/56737-h/56737-h.htm @@ -93,39 +93,7 @@ table { <body> -<pre> - -The Project Gutenberg EBook of Esau e Jacob, by Machado de Assis - -This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and most -other parts of the world at no cost and with almost no restrictions -whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of -the Project Gutenberg License included with this eBook or online at -www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you'll have -to check the laws of the country where you are located before using this ebook. - -Title: Esau e Jacob - -Author: Machado de Assis - -Release Date: March 14, 2018 [EBook #56737] - -Language: Portuguese - -Character set encoding: ISO-8859-1 - -*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK ESAU E JACOB *** - - - - -Produced by Laura Natal Rodrigues & Marc D'Hooghe at Free Literature - - - - - -</pre> +<div>*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK 56737 ***</div> <div class="figcenter" style="width: 500px;"> @@ -11675,377 +11643,7 @@ demore, e arranca a pessoa ao pranto ou ao silencio.</p> -<pre> - - - - - -End of the Project Gutenberg EBook of Esau e Jacob, by Machado de Assis - -*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK ESAU E JACOB *** - -***** This file should be named 56737-h.htm or 56737-h.zip ***** -This and all associated files of various formats will be found in: - http://www.gutenberg.org/5/6/7/3/56737/ - -Produced by Laura Natal Rodrigues & Marc D'Hooghe at Free Literature -Updated editions will replace the previous one--the old editions will -be renamed. - -Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright -law means that no one owns a United States copyright in these works, -so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United -States without permission and without paying copyright -royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part -of this license, apply to copying and distributing Project -Gutenberg-tm electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG-tm -concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, -and may not be used if you charge for the eBooks, unless you receive -specific permission. If you do not charge anything for copies of this -eBook, complying with the rules is very easy. You may use this eBook -for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports, -performances and research. They may be modified and printed and given -away--you may do practically ANYTHING in the United States with eBooks -not protected by U.S. copyright law. Redistribution is subject to the -trademark license, especially commercial redistribution. - -START: FULL LICENSE - -THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE -PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK - -To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free -distribution of electronic works, by using or distributing this work -(or any other work associated in any way with the phrase "Project -Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full -Project Gutenberg-tm License available with this file or online at -www.gutenberg.org/license. - -Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project -Gutenberg-tm electronic works - -1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm -electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to -and accept all the terms of this license and intellectual property -(trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all -the terms of this agreement, you must cease using and return or -destroy all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your -possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a -Project Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound -by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the -person or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph -1.E.8. - -1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be -used on or associated in any way with an electronic work by people who -agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few -things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works -even without complying with the full terms of this agreement. See -paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project -Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this -agreement and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm -electronic works. See paragraph 1.E below. - -1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the -Foundation" or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection -of Project Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual -works in the collection are in the public domain in the United -States. If an individual work is unprotected by copyright law in the -United States and you are located in the United States, we do not -claim a right to prevent you from copying, distributing, performing, -displaying or creating derivative works based on the work as long as -all references to Project Gutenberg are removed. Of course, we hope -that you will support the Project Gutenberg-tm mission of promoting -free access to electronic works by freely sharing Project Gutenberg-tm -works in compliance with the terms of this agreement for keeping the -Project Gutenberg-tm name associated with the work. You can easily -comply with the terms of this agreement by keeping this work in the -same format with its attached full Project Gutenberg-tm License when -you share it without charge with others. - -1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern -what you can do with this work. Copyright laws in most countries are -in a constant state of change. If you are outside the United States, -check the laws of your country in addition to the terms of this -agreement before downloading, copying, displaying, performing, -distributing or creating derivative works based on this work or any -other Project Gutenberg-tm work. The Foundation makes no -representations concerning the copyright status of any work in any -country outside the United States. - -1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg: - -1.E.1. The following sentence, with active links to, or other -immediate access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear -prominently whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work -on which the phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the -phrase "Project Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, -performed, viewed, copied or distributed: - - This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and - most other parts of the world at no cost and with almost no - restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it - under the terms of the Project Gutenberg License included with this - eBook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the - United States, you'll have to check the laws of the country where you - are located before using this ebook. - -1.E.2. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is -derived from texts not protected by U.S. copyright law (does not -contain a notice indicating that it is posted with permission of the -copyright holder), the work can be copied and distributed to anyone in -the United States without paying any fees or charges. If you are -redistributing or providing access to a work with the phrase "Project -Gutenberg" associated with or appearing on the work, you must comply -either with the requirements of paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 or -obtain permission for the use of the work and the Project Gutenberg-tm -trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or 1.E.9. - -1.E.3. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted -with the permission of the copyright holder, your use and distribution -must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any -additional terms imposed by the copyright holder. Additional terms -will be linked to the Project Gutenberg-tm License for all works -posted with the permission of the copyright holder found at the -beginning of this work. - -1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm -License terms from this work, or any files containing a part of this -work or any other work associated with Project Gutenberg-tm. - -1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this -electronic work, or any part of this electronic work, without -prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with -active links or immediate access to the full terms of the Project -Gutenberg-tm License. - -1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, -compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including -any word processing or hypertext form. However, if you provide access -to or distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format -other than "Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official -version posted on the official Project Gutenberg-tm web site -(www.gutenberg.org), you must, at no additional cost, fee or expense -to the user, provide a copy, a means of exporting a copy, or a means -of obtaining a copy upon request, of the work in its original "Plain -Vanilla ASCII" or other form. Any alternate format must include the -full Project Gutenberg-tm License as specified in paragraph 1.E.1. - -1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, -performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works -unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9. - -1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing -access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works -provided that - -* You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from - the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method - you already use to calculate your applicable taxes. The fee is owed - to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he has - agreed to donate royalties under this paragraph to the Project - Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments must be paid - within 60 days following each date on which you prepare (or are - legally required to prepare) your periodic tax returns. Royalty - payments should be clearly marked as such and sent to the Project - Gutenberg Literary Archive Foundation at the address specified in - Section 4, "Information about donations to the Project Gutenberg - Literary Archive Foundation." - -* You provide a full refund of any money paid by a user who notifies - you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he - does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm - License. You must require such a user to return or destroy all - copies of the works possessed in a physical medium and discontinue - all use of and all access to other copies of Project Gutenberg-tm - works. - -* You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of - any money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the - electronic work is discovered and reported to you within 90 days of - receipt of the work. - -* You comply with all other terms of this agreement for free - distribution of Project Gutenberg-tm works. - -1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project -Gutenberg-tm electronic work or group of works on different terms than -are set forth in this agreement, you must obtain permission in writing -from both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and The -Project Gutenberg Trademark LLC, the owner of the Project Gutenberg-tm -trademark. Contact the Foundation as set forth in Section 3 below. - -1.F. - -1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable -effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread -works not protected by U.S. copyright law in creating the Project -Gutenberg-tm collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm -electronic works, and the medium on which they may be stored, may -contain "Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate -or corrupt data, transcription errors, a copyright or other -intellectual property infringement, a defective or damaged disk or -other medium, a computer virus, or computer codes that damage or -cannot be read by your equipment. - -1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right -of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project -Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project -Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project -Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all -liability to you for damages, costs and expenses, including legal -fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT -LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE -PROVIDED IN PARAGRAPH 1.F.3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE -TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE -LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR -INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH -DAMAGE. - -1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a -defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can -receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a -written explanation to the person you received the work from. If you -received the work on a physical medium, you must return the medium -with your written explanation. The person or entity that provided you -with the defective work may elect to provide a replacement copy in -lieu of a refund. If you received the work electronically, the person -or entity providing it to you may choose to give you a second -opportunity to receive the work electronically in lieu of a refund. If -the second copy is also defective, you may demand a refund in writing -without further opportunities to fix the problem. - -1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth -in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS', WITH NO -OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT -LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. - -1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied -warranties or the exclusion or limitation of certain types of -damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement -violates the law of the state applicable to this agreement, the -agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or -limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or -unenforceability of any provision of this agreement shall not void the -remaining provisions. - -1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the -trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone -providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in -accordance with this agreement, and any volunteers associated with the -production, promotion and distribution of Project Gutenberg-tm -electronic works, harmless from all liability, costs and expenses, -including legal fees, that arise directly or indirectly from any of -the following which you do or cause to occur: (a) distribution of this -or any Project Gutenberg-tm work, (b) alteration, modification, or -additions or deletions to any Project Gutenberg-tm work, and (c) any -Defect you cause. - -Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm - -Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of -electronic works in formats readable by the widest variety of -computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It -exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations -from people in all walks of life. - -Volunteers and financial support to provide volunteers with the -assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's -goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will -remain freely available for generations to come. In 2001, the Project -Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure -and permanent future for Project Gutenberg-tm and future -generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary -Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see -Sections 3 and 4 and the Foundation information page at -www.gutenberg.org - - - -Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation - -The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit -501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the -state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal -Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification -number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary -Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by -U.S. federal laws and your state's laws. - -The Foundation's principal office is in Fairbanks, Alaska, with the -mailing address: PO Box 750175, Fairbanks, AK 99775, but its -volunteers and employees are scattered throughout numerous -locations. Its business office is located at 809 North 1500 West, Salt -Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up to -date contact information can be found at the Foundation's web site and -official page at www.gutenberg.org/contact - -For additional contact information: - - Dr. Gregory B. Newby - Chief Executive and Director - gbnewby@pglaf.org - -Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg -Literary Archive Foundation - -Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide -spread public support and donations to carry out its mission of -increasing the number of public domain and licensed works that can be -freely distributed in machine readable form accessible by the widest -array of equipment including outdated equipment. Many small donations -($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt -status with the IRS. - -The Foundation is committed to complying with the laws regulating -charities and charitable donations in all 50 states of the United -States. Compliance requirements are not uniform and it takes a -considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up -with these requirements. We do not solicit donations in locations -where we have not received written confirmation of compliance. To SEND -DONATIONS or determine the status of compliance for any particular -state visit www.gutenberg.org/donate - -While we cannot and do not solicit contributions from states where we -have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition -against accepting unsolicited donations from donors in such states who -approach us with offers to donate. - -International donations are gratefully accepted, but we cannot make -any statements concerning tax treatment of donations received from -outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. - -Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation -methods and addresses. Donations are accepted in a number of other -ways including checks, online payments and credit card donations. To -donate, please visit: www.gutenberg.org/donate - -Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic works. - -Professor Michael S. Hart was the originator of the Project -Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be -freely shared with anyone. For forty years, he produced and -distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of -volunteer support. - -Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed -editions, all of which are confirmed as not protected by copyright in -the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not -necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper -edition. - -Most people start at our Web site which has the main PG search -facility: www.gutenberg.org - -This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, -including how to make donations to the Project Gutenberg Literary -Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to -subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. - - - -</pre> +<div>*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK 56737 ***</div> </body> </html> |
