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+ <title>Os tripeiros: romance-chronica do seculo XIV</title>
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+The Project Gutenberg EBook of Os tripeiros, by António José Coelho Lousada
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+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
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+Title: Os tripeiros
+ romance-chronica do seculo XIV
+
+Author: António José Coelho Lousada
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+Release Date: September 13, 2009 [EBook #29979]
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+Language: Portuguese
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+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OS TRIPEIROS ***
+
+
+
+
+Produced by Rita Farinha and the Online Distributed
+Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was
+produced from scanned images of public domain material
+from the Google Print project.)
+
+
+
+
+
+
+</pre>
+
+
+<div>
+<br />
+
+<div class="bbox"><br />
+
+<br />
+
+<h3>OS</h3>
+
+<h1>TRIPEIROS.
+</h1>
+
+<br />
+
+<h3>ROMANCE-CHRONICA DO SECULO XIV.
+</h3>
+
+<br />
+
+<h3>POR
+</h3>
+
+<h3><br />
+
+A. C. LOUSADA.
+</h3>
+
+<br />
+
+<div class="sbreak">
+<hr /></div>
+
+<h4>
+PORTO:
+TYPOGRAPHIA DE J. J. GON&Ccedil;ALVES BASTO,<br />
+
+LARGO DO CORPO DA GUARDA N. 106.</h4>
+
+<div class="breaks">
+<hr /></div>
+
+<h4>1857.
+</h4>
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>I.
+</h3>
+
+<h3>
+A mensagem do Mestre.
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="quote2 intro">Alteradas est&atilde;o do
+reino as gentes
+Co' o od&iacute;o que occupado os peitos tinha.</div>
+
+<br />
+
+<div class="smallcaps signature">cam&otilde;es, lus.
+cant. iv.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Era uma estranha romaria, para quem n&atilde;o tivesse
+noticia dos alvoro&ccedil;os a que a morte de Fernando 1.&ordm;
+e o casamento de Beatriz em Castella tinham dado
+causa, a que pelos meados de Maio de mil trezentos
+e oitenta e quatro sahia pelas portas da cidade do
+Porto que davam sobre o rio, e mais pela chamada
+<span class="pagenum">[6]</span>
+Porta Nova. Se fosse facil conduzir o leitor a v&ecirc;r
+do alto das torres que a defendiam aquelle gentio,
+acreditaria que elle tinha invadido algum arsenal a procurar
+disfarce entre o guerreiro e o burlesco. Um
+popular cobria a cabe&ccedil;a com um elmo adamascado,
+e, mostrando os joelhos atrav&eacute;s do grosso estofo das
+cal&ccedil;as, com p&eacute;s descal&ccedil;os pisava a
+areia onde o
+montante que arrastava deixava um sulco;
+um outro,
+parecendo ter em menos conta a cabe&ccedil;a do que
+o peito, abrigava este em uma coura&ccedil;a mais que farta,
+e deixava aquella ao sol e ao vento; este, vestindo
+apenas umas cal&ccedil;as, se assim se podia chamar um
+cirzido
+de trapos, trazia suspenso de funda um escudo
+de couro, onde em tempos estivera pintada ou
+divisa ou bras&atilde;o, pois n&atilde;o era j&aacute;
+facil adivinhar
+o que f&ocirc;ra; de um cinto leonado pendia de um lado
+um estoque, do outro um punhal, e, como se
+n&atilde;o bastassem estas armas offensivas, empunhava
+um chu&ccedil;o enorme; aquelle levava um bacinete
+amassado
+e um gorjal ferrujento, e tinha por cinto de grosseira
+jornea uma funda, o provimento da qual, como
+se n&atilde;o f&ocirc;ra uma arma facil de encontrar a cada
+passo, pesava em um sacco lan&ccedil;ado aos hombros.
+De tempos a tempos o bom povo, como lhe chamava
+o mestre de Aviz, abria aqui logar a um cavalleiro
+acobertado de ferro desde os p&eacute;s &aacute;
+cabe&ccedil;a, seguido dos
+seus pagens, ou escudeiros, alem a outros mais exquisitamente
+vestidos pelo antiquado das armas, ou
+pelo incompleto. Havia capacete que, se Cervantes o
+visse, n&atilde;o o deixaria ser original descrevendo o que deu
+ao seu heroe no principio das perigrina&ccedil;&otilde;es;
+peitos de
+a&ccedil;o polido, espelhando o sol, que disparatavam com
+umas grevas desconjuntadas, enegrecidas, remendo
+visivel; feixes de armas que desdiziam umas das outras
+<span class="pagenum">[7]</span>
+pelo valor, casando-se a facha grosseira com um
+estoque cuja bainha acobertavam ornatos de prata,
+montantes de Toledo e adagas grosseiras. Os cavallos
+iam uns cobertos de ferro, outros apenas com
+os arreios necessarios para se poder cavalgar, e n&atilde;o
+poucos dos cavalleiros, e aos pares at&eacute;, montavam
+em mulas. Os cidad&atilde;os que assim sobrecarregavam
+os pobres animaes, costume vulgar por esses tempos
+e por muitos outros, vestiam em geral a garnacha
+negra, distinctivo dos doutores e physicos. Com este
+mesmo traje, por&eacute;m arrega&ccedil;ado pela ponteira da
+espada,
+deixando v&ecirc;r a cal&ccedil;a de duas cores e o borzeguim
+ponteagudo via-se tres ou quatro aspirantes &aacute;quella
+distincta classe de medicos e letrados, e com
+elles alguns monges, que tambem se mostravam affeitos
+&aacute;s armas pelo modo como seguravam o punho
+da espada e cobriam a tonsura com o bacinete. Um
+dos cavalleiros mais bizarros da romaria era tambem
+um ecclesiastico; pelo menos assim o demonstrava
+um roquete, que sobre armas soberbas vestia
+em vez de brial.
+<br />
+
+<br />
+
+De burlesco para a gente que guarnecia as muralhas,
+as torres, os eirados e soteas nada havia
+nesta prociss&atilde;o; de marcial havia muito, tudo, a avaliar
+pelo enthusiasmo com que a saudavam, e pelos vivas
+que se juntavam &aacute;s sauda&ccedil;&otilde;es. Tinha
+decorrido
+uma boa hora desde que correra na cidade que umas
+gal&eacute;s demandavam a barra, e, posto que houvesse
+quem affirmasse logo que eram portuguezas, como
+dos de casa havia tanto a recear como dos extranhos,
+todos se tinham prevenido para as receber. Um pagem
+levara j&aacute; a Ayres Gon&ccedil;alves e ao bispo D.
+Jo&atilde;o
+a nova de que eram expedidas pelo mestre de Aviz;
+por&eacute;m estes senhores eram ent&atilde;o authoridades
+quasi
+<span class="pagenum">[8]</span>
+nominaes, e deixavam por tanto, para n&atilde;o perderem
+o tempo, fazer a sua demonstra&ccedil;&atilde;o aos bons
+populares e aos cavalleiros que n&atilde;o eram de suas casas,
+crea&ccedil;&atilde;o, ou servi&ccedil;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Ideia de que no seculo decimo quarto era uma
+guerra civil, acompanhada de uma invas&atilde;o estrangeira,
+nem todos os que passam os olhos por este capitulo
+far&atilde;o. Hoje hasteam-se duas ou tres bandeiras,
+ou mais, se quizerem, mas, o primeiro impeto passado,
+a machina civil l&aacute; vae funccionando peor ou melhor
+por conta dos governos provisorios; naquelles
+tempos, por&eacute;m, ninguem se entendia por vezes. Cada
+fidalgo levantava o seu tro&ccedil;o de gente e vendia e revendia
+a espada; hoje era ao servi&ccedil;o de um,
+&aacute;manh&atilde; ao
+de outro; os alcaides dos castellos, a maior parte
+dominando as povoa&ccedil;&otilde;es principaes, juravam preito
+e
+perjuravam todos os dias, e as municipalidades lan&ccedil;avam,
+bom ou mau grado, pela manh&atilde; um bando
+em favor de um monarcha e &aacute; tarde acclamavam outro.
+No meio desta bella ordem havia caudilho que
+dava em ambos os partidos belligerantes, e sobretudo
+nos pacificos, aventureiros que se batiam por si e para
+seu proveito. Na menoridade do pae do regedor,
+como modesta e arteiramente se appellidara o irm&atilde;o
+bastardo de D. Fernando, e em quasi todos os reinados
+antecedentes, a provincia de Entre Douro e Minho
+tinha tido a sua amostra destas amabilidades;
+mas o que a gente da <em>ordem</em> chama
+revolu&ccedil;&atilde;o e revolu&ccedil;&atilde;o
+politica n&atilde;o estalara em tempo algum como
+agora. At&eacute; ahi o povo contentara-se, salvo um ou
+outro caso, com evitar a ponta da lan&ccedil;a dos nobres
+senhores e o virote dos seus homens d'armas, e ainda
+mais de lhe franquear as arcas e de correr os cord&otilde;es
+da bolsa, o que raras vezes conseguia. Os
+<span class="pagenum">[9]</span>
+burguezes do Porto, o mais desenquieto povo de
+toda a provincia e do reino, tinham j&aacute; dado mostras
+da sua for&ccedil;a aos bispos Martinho Rodrigues e Vasco
+Martins, por&eacute;m, nestas revoltas se entrava politica era
+acobertada: elles n&atilde;o davam por tal. Desta vez o exemplo
+da capital f&ocirc;ra-lhes contagioso, e mesmo sem
+t&atilde;o
+bons motores como Alvares Paes, desempenh&aacute;ram a sua
+tarefa por tal arte, que se p&oacute;de dizer, que a lei por
+que se governavam era a sua. Ayres Gon&ccedil;alves de
+Figueiredo, o governador de Gaya admir&aacute;ra da outra
+margem a valentia dos pulm&otilde;es dos partidarios do
+novo governo, e, posto que n&atilde;o estivesse bem seguro
+das suas ideias quanto &aacute; legalidade da regedoria, e
+preferencia de direitos do mestre de Aviz sobre os
+do infante, dos deste sobre a irm&atilde;, ou vice-versa,
+para n&atilde;o lhes avaliar as iras tambem, contemporisara,
+soltando as mesmas acclama&ccedil;&otilde;es. Na cidade havia
+um cahos. Os vereadores, governavam; governavam
+os juizes do povo e o juiz real; governavam os chefes
+das corpora&ccedil;&otilde;es; governava, por&eacute;m
+menos, o bispo
+e os seus meirinhos; governavam at&eacute;, ou mandavam,
+os prisioneiros, ou tidos por taes, como era o
+conde D. Pedro de Transtamara, que no campo de
+Coimbra tivera as suas aspira&ccedil;&otilde;es &aacute;
+coroa de Portugal,
+e a ser o terceiro marido legitimado de Leonor
+Telles; finalmente, mandavam todos, se a mais ninguem
+fosse, cada um a si.
+<br />
+
+<br />
+
+Do pequeno povoado que ficava extra-muros,
+composto de uma mescla de armenios, que nove annos
+antes tinham deixado cahir o throno de Livonio,
+o seu ultimo rei, aos golpes de espada do sult&atilde;o
+do Egypto; de gregos da Asia, escapados &aacute; furia
+dos soldados de Amurath; de flamengos e genovezes
+aventureiros, de mouros, os cultivadores da encosta
+<span class="pagenum">[10]</span>
+em que o bairro se abrigava; da pequena
+povoa&ccedil;&atilde;o,
+do bairro Armenio, augmentado ainda depois da
+tomada de Constantinopla com os piedosos guardas
+de S. Pantale&atilde;o, ajuntava-se &aacute;
+prociss&atilde;o sahida da
+Porta Nova uma chusma de curiosos, que pela variedade
+de vestuarios, lhe vinha dar realce. Como
+em taes casos succede, toda esta gente se embara&ccedil;ava
+na marcha, pe&otilde;es a cavalleiros, cavalleiros a
+pe&otilde;es;
+todos fallavam, todos tomavam e davam concelho, e
+perguntavam por novas de que iam dar ao primeiro
+encontrado uma vers&atilde;o correcta e augmentada com
+reflex&otilde;es de lavra propria e extranha. O espa&ccedil;o
+que se
+estendia desde os muros at&eacute; onde a Arrabida deixava
+apenas um caminho de cabras, aberto na rocha
+para quem se quizesse dirigir &aacute; Foz do Douro, n&atilde;o
+foi pois transposto em menos de uma hora, pela vanguarda:
+uma grande parte do exercito popular nem l&aacute;
+chegou. Os primeiros que encontraram uma das
+gal&eacute;s subindo o rio, gritaram para os tripolantes que
+lhes dissessem por quem vinham, e como estes respondessem
+que pelo Mestre, sem mais attenderem, voltaram
+atraz, dando vivas, como se fosse aquillo refor&ccedil;o
+inesperado, que os viesse tirar de apuros.
+<br />
+
+<br />
+
+Nas gal&eacute;s n&atilde;o vinha refor&ccedil;o algum para
+os do
+Porto, unica terra de importancia ao norte do reino,
+que n&atilde;o acceit&aacute;ra como rei o marido de Beatriz,
+e tinha a bra&ccedil;os setecentas lan&ccedil;as e dous mil
+infantes do arcebispo de Santiago e de outros senhores
+castelhanos e portuguezes, sem contar os aventureiros
+de Fernando Affonso, que n&atilde;o eram nem
+uma cousa nem outra.
+<br />
+
+<br />
+
+D. Jo&atilde;o de Castella, feita em Santarem a cess&atilde;o
+dos direitos &aacute; coroa por D. Leonor, a troco de
+vingan&ccedil;as
+promettidas no povo de Lisboa, que a respeito
+<span class="pagenum"><a name="p11" id="p11">[11]</a></span>
+della e em rosto esgot&aacute;ra um vocabulario immenso
+de nomes, de que Fern&atilde;o Lopes d&aacute; uma amostra,
+e a mimose&aacute;ra com pedradas; D. Jo&atilde;o, resolveu-se,
+sen&atilde;o a cumprir o ajuste, pois se malquist&aacute;ra com
+a ambiciosa sogra por causa de dous judeus, a destruir
+a rebelli&atilde;o, como elle lhe chamava, no f&oacute;co,
+e avan&ccedil;&aacute;ra at&eacute; o Bombarral, ao passo
+que aprestava
+uma armada que, fechado o assedio por terra, cerrasse
+tambem as communica&ccedil;&otilde;es por mar.
+<br />
+
+<br />
+
+Os arredores de Lisboa talados, as povoa&ccedil;&otilde;es
+saqueadas n&atilde;o podiam abastecer de viveres os sitiados;
+entre elles e Coimbra estavam os arraiaes inimigos,
+portanto recorria-se ao Porto, pedindo tambem
+um refor&ccedil;o de navios para impedir que o Tejo
+fosse bloqueado. D. Louren&ccedil;o, arcebispo de Braga,
+azafam&aacute;ra-se para armar as gal&eacute;s que deviam levar
+estes soccorros, e o mestre de Aviz encarreg&aacute;ra Ruy
+Pereira de uma missiva, em que aos bons burguezes
+se promettia mil regalias; pois D. Jo&atilde;o acceit&aacute;ra
+o conselho de dar tudo o que lhe fosse possivel
+dar, e prometter at&eacute; o impossivel.
+<br />
+
+<br />
+
+Os vivas e o appendice a todo o enthusiasmo politico
+de morras, naquella quadra aos castelhanos,
+aos traidores e aos scismaticos, prolongaram-se at&eacute; que
+as gal&eacute;s em que vinham Ruy Pereira e Gon&ccedil;alo
+Rodrigues
+vararam perto dos muros da cidade e principiou
+o desembarque destes e outros illustres <a href="#e1">personagens</a>,
+e ainda maior foi a algazarra quando o
+estandarte real appareceu. O conde de Transtamara,
+como primo do rei de Castella, n&atilde;o era dos coristas
+mais fracos deste grande c&ocirc;ro desafinado, e f&ocirc;ra
+dos
+primeiros cavalleiros que se apearam para receber
+os reaes mensageiros, com toda a cortezania. O povo
+sem f&eacute; naquella convers&atilde;o e pouco acatador nesse
+<span class="pagenum">[12]</span>
+momento das esporas de ouro, das cotas bordadas e
+cimeiras historiadas; o povo, deixando escapar desses
+epygrammas de que elle possue o molde particular,
+em vez de lhe abrir caminho, cerrava-se na
+sua passagem, fazendo perder ao fidalgo o aranzel lisongeiro
+que tencionava pr&eacute;gar a Ruy Pereira. Ruy
+era uma notabilidade, como hoje se diz; porque ent&atilde;o
+ainda se n&atilde;o tinha inventado as notabilidades,
+nem muitas outras cousas. Desde que explic&aacute;ra ao
+mestre de Aviz a opini&atilde;o do povo a respeito da rainha
+Leonor, notando que quando andava para casar
+com sua mulher, fallavam todos em que se queria
+casar com Violante Lopes, e depois de casado ninguem
+mais de tal fall&aacute;ra; depois, sobretudo, que d&eacute;ra
+o golpe de merc&ecirc; ao conde valido, abaixo de seu
+sobrinho, dos homens de espada com valimento na
+c&ocirc;rte, era o primeiro, e para quem estava nas circumstancias
+de D. Pedro, portanto, pessoa que era prudente
+lisongear.
+<br />
+
+<br />
+
+J&aacute; ent&atilde;o, como se ver&aacute; no decurso
+desta narra&ccedil;&atilde;o,
+se attendia a conveniencias.
+<br />
+
+<br />
+
+Em quanto os mesteiraes e burguezes embara&ccedil;avam
+o conde, Martim Gil, abbade de Pa&ccedil;o de Sousa,
+substituia-o dignamente com duas rajadas de latim,
+a substancia do todo, que o mensageiro perdeu por
+n&atilde;o entender a lingua de Cicero, e uma enfiada de
+periodos em portuguez garrafal, que entenderia perfeitamente,
+se a algazarra tivesse cessado. Ruy Pereira
+satisfez-se com v&ecirc;r abrir e fechar a bocca ao
+reverendo, e respondeu a toda esta eloquencia, fazendo-lhe
+um ponto no meio do recado, perguntando
+onde havia de pousar. Martim Gil indicou-lhe todas
+as boas casas da cidade desde os pa&ccedil;os da S&eacute; e o
+convento de S. Domingos, at&eacute; algumas das vivendas
+<span class="pagenum"><a name="p13" id="p13">[13]</a></span>
+particulares, e o tio de Nuno Alvares escolheu S. Domingos,
+mostrando mais pressa de descan&ccedil;ar dos encommodos
+do mar, que de dar conta da sua miss&atilde;o. O abbade
+tentou ent&atilde;o dar &aacute; entrada na cidade dos
+passageiros
+e tripolantes da gal&eacute; de Gon&ccedil;alo Rodrigues, e
+das outras que iam aproando ao longo da praia, um
+todo processional, por&eacute;m luctava em v&atilde;o; que era
+at&eacute;
+difficultoso fazer desembara&ccedil;ar os sitios de desembarque,
+onde o povo se apinhava, se acotovallava
+sem
+dar descan&ccedil;o ao pulm&atilde;o. O Douro n&atilde;o
+tinha ainda,
+nas suas soberbas, arrojando as terras roubadas nas
+campinas d'encontro &aacute; praia; tornado esta t&atilde;o
+larga
+como hoje; nem os homens haviam com parapeitos
+avan&ccedil;ado sobre o leito daquelle. O espa&ccedil;o
+existente
+logo al&eacute;m de portas, onde havia povoado, era
+t&atilde;o limitado, que, a distancia, parecia que as
+<a href="#e2">edifica&ccedil;&otilde;es</a>
+tinham para a agua serventia, como os da cidade
+das lagunas, a rainha do Adriatico; o estado de
+exalta&ccedil;&atilde;o,
+e animo revoltoso ou independente dos burguezes
+e vil&otilde;es, por&eacute;m, at&eacute; em logares mais
+espa&ccedil;osos
+tornava difficil a empresa do abbade.
+<br />
+
+<br />
+
+Ruy Pereira, apesar de ter presenceado em Lisboa
+a revolta popular, fazendo-se popular elle mesmo,
+n&atilde;o o era tanto que levasse a bem aquella sem-ceremonia
+dos portuenses, e lan&ccedil;ando sobre os mais
+proximos um olhar pouco amavel, reprimindo a custo
+a vontade que tinha de mandar abrir caminho a
+prancha de espada e conto de lan&ccedil;a, lamentava
+<em>in
+mente</em> os bons velhos tempos&#8213;que j&aacute;
+ent&atilde;o havia
+bons velhos tempos&#8213;em que a cousa
+&laquo;pe&atilde;o&raquo; descortinando
+a vontade no gesto de um rico homem,
+logo obedecia sem mais tugir ou mugir.
+<br />
+
+<br />
+
+Gra&ccedil;as &aacute; interven&ccedil;&atilde;o dos
+juizes do povo e real,
+que, avisados da chegada dos navios e de quem eram
+<span class="pagenum">[14]</span>
+as pessoas que elles conduziam, vinham para as
+accommodar em pousada decente e fazer todas as
+honrarias, que em tal caso competia, o embara&ccedil;o terminou.
+As tres authoridades, duas municipaes, uma
+real, duas de muros a dentro, outra ribeirinha, foram
+felizes, deve-se confessar, naquella occasi&atilde;o,
+por n&atilde;o haver conflicto de poderes, nem
+recalcitra&ccedil;&atilde;o
+dos governados, o que era raro, e deveram esta
+felicidade a estar satisfeita a curiosidade dos burguezes,
+e n&atilde;o ser preciso empregar barqueiro ou
+pescador algum na amarra&ccedil;&atilde;o dos navios. A
+prociss&atilde;o
+come&ccedil;ou pois a mover-se pelas estreitas ruas da
+cidade, e, em vez de parar em S. Domingos, seguiu
+at&eacute; &aacute; casa da camara no meio sempre de grandes
+acclama&ccedil;&otilde;es
+ao mestre de Aviz, defensor e regedor do
+reino, e morras aos castelhanos herejes, scismaticos
+e traidores, o que fazia tragar sem r&eacute;plica a Ruy Pereira
+o ceremonial amofinador a que o submettiam
+os edis portuenses, e a pressa que tinham de saber
+em que podiam servir a sua senhoria, o futuro
+rei.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>
+II.</h3>
+
+<h3>
+Um rapaz travesso.
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="quote2 intro">
+He elle um par bem 'scolhido.</div>
+
+<br />
+
+<div class="smallcaps signature">
+gil vicente.&#8213;v. da horta</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Quando o mensageiro do Mestre era processionalmente
+levado pela porta, que tempos depois deu
+a um poeta com o nome um trocadilho para um requerimento
+em verso, no marulhar de curiosos e patriotas
+que se empuxavam, forcejando por abrir caminho
+para aquelle gargalo, um burguez que tornava
+<span class="pagenum">[16]</span>
+respeitavel o sizudo do traje, uma barriga proeminente,
+onde batia uma gorda bolsa de couro e um
+esguio punhal, cabello branco, patrioticamente cortado,
+luctava para n&atilde;o ser levado na corrente, dando
+mostras pelo inquieto do olhar que procurava alguem.
+A for&ccedil;a da corrente era grande, por&eacute;m, e
+arrastou-o
+pouco a pouco at&eacute; junto de uma das torres
+de defesa, onde a ressaca o fazia tomar todas as
+direc&ccedil;&otilde;es e posi&ccedil;&otilde;es
+possiveis no meio dos gritos
+das mulheres abafadas, das crian&ccedil;as trilhadas, do estalar
+das armaduras, que, permitta-se a imagem, eram
+os crustaceos que as ondas daquelle mar lan&ccedil;avam
+d'encontro &aacute;s rochas. Mestre Gon&ccedil;alo Domingues
+suava
+por todos os p&oacute;ros e formava com os cotovellos
+um amparo ao abdomen e quebra-mar &aacute; mar&eacute;,
+receando
+ser lythographado no muro, resmungando
+ao passo uma ladainha contra o causador daquelle
+desastre, segundo se lhe affigurava, um sobrinho
+que o acompanh&aacute;ra momentos antes, e que perdera
+de vista. Resolvido j&aacute; a deixal-o por sua conta,
+pois n&atilde;o estava j&aacute; em edade de se perder, e a
+escapar-se
+daquelle aperto, come&ccedil;ava a recuar, servindo-se
+dos cotovellos como de uma alavanca, quando
+sentiu umas m&atilde;os callosas pousarem-lhe no hombro,
+sustendo-o na marcha. Sentindo aquella resistencia,
+sem v&ecirc;r quem a oppunha, pois lhe era impossivel
+voltar o rosto, e receando de novo ser levado
+para o muro, empregou contra o individuo que
+assim lhe cortava a retirada um cotovell&atilde;o, que estava
+na raz&atilde;o directa da for&ccedil;a que o impellia: tudo
+isto acompanhado por uma praga:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;M&aacute;s ter&ccedil;&atilde;s te colham,
+cabe&ccedil;a de bogalho!
+<br />
+
+<br />
+
+A praga a meio, e uma das m&atilde;os a erguer-se
+a descer fechada em murro, estourando no costado
+<span class="pagenum">[17]</span>
+de mestre Gon&ccedil;alo Domingues, que soltou um regougo,
+cambaleou e perderia de certo o equilibrio,
+se um mesteiral, que estava na frente, o n&atilde;o amparasse
+na queda. O burguez, incommodando com o peso
+o seu primeiro ponto de appoio, este o saccudiu para
+um dos visinhos, que o recambiou sobre o homem
+do murro, appresentando-lh'o de cara.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Se te apanh&aacute;ra aqui, maldito! tornou a exclamar
+mestre Gon&ccedil;alo, soltando outro gemido: punha-te
+as orelhas a fumegar. Tu m'as pagar&aacute;s!
+<br />
+
+<br />
+
+Esta exclama&ccedil;&atilde;o a meia voz, dirigida ao ausente
+sobrinho, foi interceptada a meio pelo homem de
+murro, um marinheiro, que, vendo o rosto afflicto
+do bojudo cidad&atilde;o, se contentou com dar-lhe um
+grande encontr&atilde;o, resmungando, como goso que v&ecirc;
+em perigo o osso que esburga:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Pois junte l&aacute; mais isso &aacute; conta, meu baleote.
+<br />
+
+<br />
+
+Mestre Gon&ccedil;alo estava affeito a ser mais bem
+tractado intra-muros: doeu-se da chufa dirigida ao
+seu physico pelo maritimo, e fez-se mais vermelho
+do que estava; fez-se roixo, se p&oacute;de dizer, desde
+a raiz do cabello at&eacute; aos queixos, mas n&atilde;o
+reagiu.
+A sua indole era pacifica, apesar do punhal que o
+acompanhava; e demais, n&atilde;o via perto de si sen&atilde;o
+caras desconhecidas e rostos queimados pelo ar do
+mar, que podiam ser de vassallos da coroa, e estes,
+posto nessa occasi&atilde;o estivessem em harmonia com
+os vassallos da mitra, e j&aacute; um pouco apagadas as
+divis&otilde;es antigas, era de cr&ecirc;r que por elle
+n&atilde;o tomassem
+partido. Comtudo, n&atilde;o se ficou, sem responder:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Se n&atilde;o est&aacute; bom, deite-se, ou v&aacute;
+travar raz&otilde;es
+com petintaes, espadeleiros ou outra gente da
+<span class="pagenum">[18]</span>
+sua egualha; n&atilde;o se metta com quem n&atilde;o se mette
+comsigo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Olhem o outro! resmungou o marinheiro;
+abalroou-me com os cotovellos pelos peitos, e diz
+que se n&atilde;o mette com a gente; traz aquella cara
+que parece mesmo um odre a rever, e grita que um
+homem c&aacute; est&aacute; toldado!
+<br />
+
+<br />
+
+Gon&ccedil;alo Domingues, doendo-se da nova zombaria,
+tornou mais apropriada a imagem do marinheiro,
+e cerrando os punhos exclamou:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Veja como falla!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Gra&ccedil;as a S. Pedro; meu advogado, redarguiu
+o homem do mar, levando a m&atilde;o ao barrete&#8213;n&atilde;o
+&eacute; facil de dizer se em atten&ccedil;&atilde;o ao
+santo-apostolo,
+se em cortezia zombeteira, pelo esgar que fez,
+ao senhor Gon&ccedil;alo&#8213;gra&ccedil;as a S. Pedro, fallo sem
+trave.
+E n&atilde;o me fa&ccedil;a biocos nem arremessos, accrescentou
+com ar mais carregado: que, se me sobe a
+mar&eacute; aos cascos?!...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Que &eacute; l&aacute; isso, mestre Gon&ccedil;alo?
+perguntou
+quasi ao mesmo tempo um cidad&atilde;o de pouco
+menos edade que o interrogado.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; este excommungado, que se metteu onde
+n&atilde;o era chamado, e me poz a paciencia em maior
+apuro do que j&aacute; a trazia.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Excommungado &eacute; elle! resmungou o marinheiro,
+recambiando o ap&oacute;do que lhe f&ocirc;ra dirigido,
+e fitando ora o novo, ora o antigo interlocutor.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Olhe, mestre Gil, tornou o burguez rubicundo,
+dirigindo-se ao recem-chegado; ia eu amofinado
+por causa daquella cabe&ccedil;a de vento de meu
+sobrinho...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E que tenho l&aacute; eu com seu sobrinho? tornou
+o marinheiro.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[19]</span>
+&#8213;Isso mesmo queria eu que me dissesse!
+acudiu o senhor Gon&ccedil;alo.
+<br />
+
+<br />
+
+E, voltando-se para o seu collega, continuou:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ia eu, como lhe dizia, amofinado, porque o
+maldito do rapaz se me escapou&#8213;ora sei eu l&aacute; para
+onde!&#8213;e n&atilde;o sei que digo de mim para mim, quando
+essa creaturinha, como se n&atilde;o tivesse da sua egualha
+mais com quem desenferrujar a lingua, travou-se
+de raz&otilde;es...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Isso nada vale, mestre Gon&ccedil;alo! atalhou o
+homem a quem vimos dar o nome de Gil, dirigindo-se
+para o galeote, que lhe voltou as costas, fazendo
+uma careta muito expressiva para um companheiro,
+que, com uma m&atilde;o pousada no hombro
+delle, parecia, na posi&ccedil;&atilde;o que tomava, querer
+dizer
+que alli estava para ir em seu auxilio, se preciso fosse,
+que n&atilde;o era.
+<br />
+
+<br />
+
+O gordo burguez, vendo o antagonista voltar-lhe
+as costas, desafogou contra elle, com o seu amigo,
+a cholera, que o amea&ccedil;ava com uma apoplexia;
+e em seguida desafogou tambem a respeito do causador,
+o estouvado sobrinho, que desapparecera. Apesar
+de ter escoado a multid&atilde;o pela porta da cidade,
+de estar j&aacute; desembara&ccedil;ado o transito,
+&aacute; volta dos
+altercadores havia uma reuni&atilde;o de curiosos, como de
+costume, cujo nucleo era uma boa duzia de garotos
+pertencentes, pelo que dos trapos vestidos se divisava,
+a tres religi&otilde;es; pelo typo, a tres ra&ccedil;as, e ao
+qual se juntavam por um segundo, que mais n&atilde;o fosse,
+os arrastados daquella prociss&atilde;o e todos os que
+por alli o acaso conduzia. Uma velha que regressava
+aos lares com os aviamentos para a ceia, comprados
+na tenda d'ao p&eacute; da porta, soalheiro do bairro,
+n&atilde;o
+escapou, apesar de carregada, &aacute; for&ccedil;a attrahente
+das
+<span class="pagenum">[20]</span>
+lamenta&ccedil;&otilde;es de mestre Gon&ccedil;alo; e,
+sabida a causa destas,
+se appressou em dar-lhe remedio.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Quer saber do seu sobrinho que esteve no
+convento, mestre Gon&ccedil;alo? Bem se v&ecirc; que o rapaz
+n&atilde;o tinha queda para os latins e o h&aacute;bito;
+aquillo
+&eacute; um levantado! Tome sentido com elle, mestre!
+Agora o vi eu a correr pela bitesga que vai por p&eacute;
+da casa de Jo&atilde;o Ramalho. A modos que elle...
+<br />
+
+<br />
+
+A reflex&atilde;o da velha, se na phrase ficou incompleta,
+n&atilde;o o ficou no gesto. A traduc&ccedil;&atilde;o
+deste era
+que o rapaz come&ccedil;ava a inclinar-se &aacute;s
+saias. (Como
+demos a traduc&ccedil;&atilde;o, ajuntaremos, em nota
+intercalada
+no texto, que a boa santinha parecia, no ar malicioso
+que tomou, recordando-se dos seus tempos, ter delles
+saudade.)
+<br />
+
+<br />
+
+Gon&ccedil;alo Domingues, sem mais attender &aacute; mulher
+da alcofa, tomou a direc&ccedil;&atilde;o do sitio indicado
+como o
+seguido pelo sobrinho, resolvido a descarregar nelle
+o mau humor excitado pelo seu desapparecimento,
+pelos apert&otilde;es que lev&aacute;ra, o cortejo que perdera,
+e,
+sobretudo, os apodos e murros do galeote. Em quanto
+para l&aacute; se dirige, ruminando aquellas passadas
+attribula&ccedil;&otilde;es, saibamos o que fazia o travesso
+rapaz.
+<br />
+
+<br />
+
+Como j&aacute; viu o leitor, no antecedente capitulo,
+no tempo em que estas cousas succediam, as
+habita&ccedil;&otilde;es,
+em Miragaya, estavam mais perto do rio, ou
+melhor, o rio corria mais perto das habita&ccedil;&otilde;es.
+Entre
+S. Pedro e os muros, havia, no espa&ccedil;o que abre
+a montanha, algumas bitesgas, de que ainda se conserva
+uma amostra, povoadas umas, outras correndo
+entre cercados e muros; em outros sitios, um fraguedo
+deixava apenas o logar preciso para algum carreiro
+n&atilde;o muito viavel. A povoa&ccedil;&atilde;o
+cerrava-se, apinhava-se
+<span class="pagenum">[21]</span>
+mais para o p&eacute; da velha egreja de S. Pedro,
+e rareava progressivamente para o oriente e poente.
+Perto dos muros, havia t&atilde;o s&oacute;mente uma fieira
+de casas &aacute; beira d'agua; depois o declive rude do
+monte onde se edificou o convento dos Agostinhos,
+coberto de silvados e matto, que vinha angustiar
+mais o passo para a cidade. Onde se tornava mais
+suave a encosta, subia um carreiro, que, depois de
+serpear por detraz de algumas das moradas do bairro
+do rei, se bifurcava, levando um bra&ccedil;o a uma daquellas
+ruas, lan&ccedil;ando outro pelo monte, serventia
+a casaes que se communicavam egualmente com a
+cidade pelo lado do Olival. Por este carreiro &eacute; que
+tom&aacute;ra Fernando, ou Fern&atilde;o Vasques, o sobrinho do
+senhor Gon&ccedil;alo Domingues, mal viu absorvida a
+aten&ccedil;&atilde;o
+deste nas gal&eacute;s reaes e seus passageiros. O
+rapaz correu por algum tempo sem trope&ccedil;ar, para o
+que preciso era estar bem affeito a trilhar similhante
+caminho, e s&oacute; affrouxou o passo quando se approximava
+de uma casa de boa apparencia, cuja frente
+dava para a praia, habita&ccedil;&atilde;o de uma das
+notabilidades
+do bairro, e que o foi depois, na historia, do piloto
+e mercador Jo&atilde;o Ramalho.
+<br />
+
+<br />
+
+A casa para o lado do rio nada appresentava
+de notavel na fachada: era um edificio de madeira
+como muitos dessa epocha; para o lado do monte,
+por&eacute;m, era bastante pictoresca. A parte inferior
+escondia-se
+em uma moita de arbustos de um pequeno
+cercado, onde tambem se levantavam algumas arvores
+de fructo, uma das quaes, rompendo, com um
+bra&ccedil;o lan&ccedil;ado &aacute; flor da terra o muro
+de pedra insossa,
+saccudia sobre o caminho a folha, a flor e
+mesmo o fructo, se a gula dos garotos esperava pelos
+effeitos do tempo. Acima do verde dos arbustos
+<span class="pagenum">[22]</span>
+descortinava-se uma varanda de pau, onde, no parapeito,
+davam passagem ao ar e &aacute; luz aberturas symetricas,
+figurando folhas de trevo, e na parte superior,
+zelozias em xadrez, tudo pintado de encarnado
+vivo e verde esmeralda, com que real&ccedil;ava o branco
+que tingia o tabique. De ambos os lados da varanda
+descia uma escada, cujos maineis se perdiam
+entre os arbustos, depois de se ligarem em um patamar,
+ao centro, para de novo se separarem, formando
+da sorte um corpo saliente na fachada. Por
+cima da varanda abriam-se duas janellas, todas lavradas,
+ornadas de zelozias tambem, e tendo por baixo,
+sobre traves salientes, em cada uma das quaes
+artista rude esculpira um animal sonhado, dous caix&otilde;es
+com terra. Em um, apar do qual duas longas canas
+formavam um estendal, onde se via roupa a seccar,
+a providencia domestica seme&aacute;ra salsa e a
+precau&ccedil;&atilde;o
+contra feiti&ccedil;os dispozera um p&eacute; de arruda; no
+outro, havia um p&eacute; de amores perfeitos e outro de
+madresilva marinhando por cord&otilde;es passados para o
+guarda-chuva de madeira que os abrigava.
+<br />
+
+<br />
+
+Quando Fernando Vasques se aproximou da casa,
+depois de alguns assobios, entre a trepadeira e por
+cima dos amores, appareceu, aberta a zelozia, uma
+cabe&ccedil;a bem propria para encaixilhar entre aquellas
+flores. Imaginae um rosto oval, de uma carna&ccedil;&atilde;o
+que
+se n&atilde;o podia dizer branca, mas a que se n&atilde;o podia
+chamar trigueira, porque o n&atilde;o era; uma pallidez, sem
+ser dessas que denunciam uma natureza enfesada,
+doentia; uma pallidez que lhe dava um todo de brandura,
+de carinho, que fazia por vezes real&ccedil;ar um carmim
+vivissimo e trahia um olhar travesso, de travessura
+infantil, innocente; imaginae uma bocca de um
+lindo desenho, formando em cada extremo uma covinha
+<span class="pagenum">[23]</span>
+engra&ccedil;ada; uma bocca que parecia sorrir sempre,
+mesmo quando a fronte scismava ou as lagrimas
+desciam pelas faces; imaginae que o nariz f&ocirc;ra modelado
+pelo de uma estatua antiga, e imaginae, sobretudo,
+uns olhos castanhos rasgados, assombrados por
+uma franja de cilias t&atilde;o cerrada, que pareciam negros
+como a baga do loureiro; uns olhos, emfim, expressivos,
+verdadeiros espelhos d'alma, como lhes chamam os
+poetas, e tereis uma ideia das fei&ccedil;&otilde;es de Irene.
+Esta
+encantadora cabe&ccedil;a enfeitava-se com o mais soberbo
+cabello que se p&oacute;de ter aos quinze annos; negro, longo,
+serico, ligeiramente ondeado. Para maior realce
+da c&ocirc;r, parecia feita &aacute; moda que vogava. As
+tran&ccedil;as,
+que vinham pousar no collo, alvo como marfim, eram
+intermeiadas por fitas de l&atilde; de um vermelho vivo, que
+se cruzavam depois na cabe&ccedil;a e vinham cahir soltas,
+dos lados, terminando em pingentes de metal dourado.
+<br />
+
+<br />
+
+As leis que faziam distinguir, pela cabe&ccedil;a, as solteiras
+das casadas e estas das viuvas cahiam em desuso.
+<br />
+
+<br />
+
+A filha de Jo&atilde;o Ramalho, apesar da curta edade,
+era uma bellesa. O sangue de sua m&atilde;e, uma dessas
+bellas mo&ccedil;as da Asia, em que se confundiam dous
+typos, o grego e o armenio, predominando, desenvolvera
+aquelle corpo garboso; dera-lhe na adolescencia
+o acabado, a morbidez que s&oacute; mais tarde,
+em geral, em outra edade se alcan&ccedil;a. Com o corpo
+desenvolvera-se o espirito: desenvolvera-o a esmerada
+educa&ccedil;&atilde;o materna, que distava bem da vulgar
+entre a nossa burguezia naquelles tempos, e os
+carinhos da boa mulher, que o senhor Jo&atilde;o n&atilde;o
+comprehendia bem, entretido sempre nas suas viagens
+e rude, voltados todos para aquella filha unica,
+em que se embellezava cultivando-lhe o cora&ccedil;&atilde;o,
+<span class="pagenum">[24]</span>
+aformosearam-lhe a alma. Uma bella alma faz
+um rosto, sen&atilde;o formoso, amavel; a intelligencia reproduz-se
+nas fei&ccedil;&otilde;es como aureola que lhes d&aacute;
+realce; a natureza, j&aacute; o dissemos, f&ocirc;ra madrinha e
+n&atilde;o madrasta para com Irene: a bella menina, reunindo,
+pois, todas as formosuras, despertava a admira&ccedil;&atilde;o
+e o amor ao mesmo tempo. A impress&atilde;o produzida
+no sobrinho de Gon&ccedil;alo Domingues f&ocirc;ra esta,
+e que o amor naquelle peito tinha boas raizes, dizia-o
+a confus&atilde;o em que elle ficou, mal &aacute; janella
+appareceu
+a gentil cabe&ccedil;a. Fernando, um rapaz jovial e resoluto,
+como o diziam uns olhos castanhos cheios de
+fogo, um nariz ligeiramente curvo, os l&aacute;bios delgados,
+accentuados na extremidade por um ligeiro bu&ccedil;o;
+Fernando baixou os olhos, fez-se vermelho,
+sentiu que os joelhos se dobravam, enfraquecidos,
+e, sem se attrever a fitar de novo aquella
+appari&ccedil;&atilde;o,
+bom tempo gastou em puxar o barrete de um para o
+outro lado da cabe&ccedil;a e amarrotal-o nas m&atilde;os, nem
+crean&ccedil;a bisonha que se disp&otilde;e a abrir brecha na
+bolsa
+paterna, ou tem de responder por avaria feita, acabando
+por desafivelar o cinto da jornea, como se carecesse
+de tomar largo folego para levar a cabo a sua
+empresa.
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o era esta a vez primeira em que alli se encontrava
+em taes embara&ccedil;os, por&eacute;m nunca t&atilde;o
+graves
+tinham sido as circumstancias. A gravidade n&atilde;o
+provinha da escapula feita a seu tio, que j&aacute; nem de
+tal se lembrava, mas da resolu&ccedil;&atilde;o que
+tom&aacute;ra de realisar
+as suas ambi&ccedil;&otilde;es e sonhos, as
+combina&ccedil;&otilde;es de
+tantas horas; de passar al&eacute;m de alguns gestos e sorrisos
+e umas sauda&ccedil;&otilde;es feitas do cimo da encosta,
+n&atilde;o fallando em uma enfiada de sons, que palavras
+se n&atilde;o podiam dizer, pois nem elle lhes soubera o
+<span class="pagenum">[25]</span>
+sentido, soltados &aacute; porta de S. Pedro entre uns como
+arrepios, que attribuiu ao modo porque o encarou
+a cultivadora da arruda, a creada a quem o senhor
+Jo&atilde;o Ramalho, por morte de sua esposa, confi&aacute;ra
+o governo da casa e a guarda da filha.
+<br />
+
+<br />
+
+Quasi egual &aacute; for&ccedil;a da
+resolu&ccedil;&atilde;o f&ocirc;ra o abalo, como
+nestas cousas &eacute; de costume, mas Fernando n&atilde;o
+estava
+resolvido a deixar perder mais uma occasi&atilde;o: puxando
+o barrete sobre a nuca, subiu a um comoro,
+ao lado da quelha, ergueu os olhos e abriu a bocca,
+por&eacute;m a palavra engasgou-se-lhe a um gesto de
+Irene.
+O pobre n&atilde;o prevera que pr&eacute;gar a sua confidencia
+daquelle sitio f&ocirc;ra, querendo que ella a ouvisse,
+mettel-a tambem nos ouvidos dos visinhos, ou pelo
+menos das pessoas de casa, e a mo&ccedil;a, levando um
+dedo aos l&aacute;bios e indicando-lhe com um gesto que
+descia &aacute; varanda para encurtar a distancia, se no
+enleio, no rubor se mostrava mal affeita &aacute;quellas
+artimanhas,
+professadas pelo amor, ou quem suas vezes
+faz, como do sexo a que pertencia, se mostrava mais
+prudente. Irene desceu, mas vencido a meio
+o inconveniente da distancia, furtava-se, encoberta pelo
+cercado da horta, &aacute;s vistas de Fernando. Este eclypse,
+como diria um poeta, foi que deu ao namorado
+um animo de que elle proprio se espantou por muitos
+dias depois: atreveu-se a subir ao muro e marinhar pela
+arvore que se debru&ccedil;ava sobre a estrada, a esconder-se
+entre a ramagem.
+<br />
+
+<br />
+
+Os discursos naquelle dia tinham m&aacute; sorte: como
+o que f&ocirc;ra destinado a Ruy Pereira, o pensado
+e repensado do sobrinho de Gon&ccedil;alo Domingues n&atilde;o
+vingou. A erudic&ccedil;&atilde;o do abbade de Pa&ccedil;o
+de Sousa
+achatara-se de encontro &aacute; paciencia do fidalgo; as
+flores escolhidas para ornar a declara&ccedil;&atilde;o feita a
+Irene
+<span class="pagenum">[26]</span>
+(t&atilde;o rico dellas &eacute; o
+cora&ccedil;&atilde;o em que rebenta
+o amor!) as flores de estylo queimou-as um olhar
+lan&ccedil;ado ao mancebo, traduzindo tanta cousa, que
+s&oacute;
+um desses olhares podia dar bons tres capitulos como
+este em que se conta e commenta tanto successo.
+O olhar de uma donzella, como a filha do piloto,
+nestas confidencias de um primeiro amor&#8213;deixem
+dizer que o amor, o verdadeiro amor s&oacute; vem muito
+mais tarde, deixem; que elles treleem, e julgam que
+o egoismo aquilata a paix&atilde;o&#8213;; o olhar de uma donzella
+assim, encerra um mixto de affecto carinhoso,
+de volupia indefinivel, de pudor e innocencia, de receio
+e ousadia, que, para delle dar uma ideia, a poesia
+mesmo &eacute; uma linguagem descolorida.
+<br />
+
+<br />
+
+Fernando, mal se viu frente a frente com a mo&ccedil;a
+namorada, sentiu um formigueiro nos p&eacute;s, turbara-se-lhe
+a vista, e teve de se agarrar aos ramos da
+arvore, para n&atilde;o cahir; quiz procurar o cabe&ccedil;alho
+da sua declara&ccedil;&atilde;o, por&eacute;m nem uma
+s&oacute; ideia lhe vinha
+&aacute; mente; por mais de uma vez abriu a bocca,
+e teve de a fechar sem formular um unico monosyllabo.
+Irene, na varanda, com a approxima&ccedil;&atilde;o
+tambem se acanh&aacute;ra, e occultava o seu embara&ccedil;o,
+ou,
+antes descobria-o, passando a m&atilde;o pela fronte,
+levantando
+uma tran&ccedil;a para logo a abaixar, enrolando
+e desenrolando uma das fitas, afogando e desafogando
+o pesco&ccedil;o com o singelo colleirinho do corpete.
+Os minutos que assim passaram n&atilde;o foram poucos.
+Recuar depois de ter chegado at&eacute; alli era desairoso
+e difficil.
+<br />
+
+<br />
+
+O sobrinho de Gon&ccedil;alo Domingues fez o supremo
+esfor&ccedil;o para n&atilde;o perder tudo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Irene, Irenesinha! disse elle, amarrotando o
+barrete com a m&atilde;o que tinha desembara&ccedil;ada.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[27]</span>
+A mo&ccedil;a fitou-o, sorriu-se, e ainda alguns minutos
+foram desperdi&ccedil;ados, se desperdi&ccedil;ado se
+p&oacute;de dizer
+aquelle tempo passado em enleio, r&aacute;pido na
+passagem, mas que depois enche com a recorda&ccedil;&atilde;o
+tantas horas de vida.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Irenesinha! tornou Fernando, continuando a
+procurar a musa no barrete.
+<br />
+
+<br />
+
+A mo&ccedil;a continuou a fitar o embara&ccedil;ado rapaz,
+aguardando que alguma palavra mais seguisse &aacute;
+invoca&ccedil;&atilde;o.
+O barrete n&atilde;o absorvera, ao que parecia,
+os galanteios estudados, amimados por tanto tempo,
+pelo que, depois de larga pausa, Fernando desceu das
+regi&otilde;es do amor a cousas mais terrestres, na linguagem;
+procurou, se, o que &eacute; mais provavel, se
+n&atilde;o agarrou &aacute; primeira idea visada, um ponto de
+partida nos successos do dia, e titubeou:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o sabe que chegaram ahi umas gal&eacute;s de
+Lisboa?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Sei; respondeu a joven, baixinho, depois de
+olhar para todos os lados a v&ecirc;r se alguem poderia
+ouvir aquella conversa&ccedil;&atilde;o
+<em>amorosa</em>. Meu pae para
+l&aacute; foi.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Foi? interrogou machinalmente o mancebo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Foi, repetiu Irene, debru&ccedil;ando-se pela varanda
+e fazendo com uma das m&atilde;os junto do ouvido
+uma concha para n&atilde;o perder uma s&oacute; palavra.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Pois veem nellas muitos fidalgos de Lisboa.
+N&atilde;o os viu desembarcar?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Vi.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Disseram-me que iam em prociss&atilde;o &aacute; cidade,
+e que traziam um recado do senhor D. Jo&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E n&atilde;o foi v&ecirc;r?...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Olhe, Irene, atalhou Fernando em voz mais
+baixa e intercortada, por muito que tenham que v&ecirc;r,
+<span class="pagenum">[28]</span>
+eu antes quero estar aqui. A menina &eacute; que n&atilde;o sei
+como n&atilde;o vai para o lado da praia.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Para que? T&atilde;o longe fica o lugar onde vararam
+as gal&eacute;s, e est&aacute; um gentio...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ent&atilde;o, se pod&eacute;sse v&ecirc;r, n&atilde;o
+estava ahi.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Porque n&atilde;o? disse Irene, c&oacute;rando.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Porque... porque, titubiou Fernando, baixando
+os olhos; porque aquelles fidalgos com as jorneas
+bordadas, aquellas armas a espelhar s&atilde;o mais
+para se verem...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Da janella, tornou a mo&ccedil;a, encolhendo os
+hombros; da janella n&atilde;o se podem admirar esses
+alindes.
+<br />
+
+<br />
+
+Fernando baixou a cabe&ccedil;a, desconcertado o seu
+intento. A mo&ccedil;a n&atilde;o vinha para o campo para que
+elle a queria trazer: n&atilde;o o entendia, pensava elle,
+e se o n&atilde;o entendia &eacute; porque o n&atilde;o
+amava. Se soubesse
+avaliar a entona&ccedil;&atilde;o de certas palavras
+n&atilde;o
+pensaria daquella sorte; por&eacute;m todos os namorados
+assim s&atilde;o: n&atilde;o reparam nas rosas e colhem os
+espinhos.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Oh! Irenesinha, e se esses fidalgos viessem
+fazer uma leva para a guerra contra os scismaticos de
+Castella? tornou o mancebo, procurando levar a
+conversa&ccedil;&atilde;o
+ao fim desejado.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Para que pensar nessas cousas!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E se me levassem? insistiu elle.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mas elles n&atilde;o veem para isso; n&atilde;o, senhor
+Fernando? disse a donzella com uma inflex&atilde;o de voz,
+que pintava o receio de que uma affirmativa fosse a
+resposta.
+<br />
+
+<br />
+
+O sobrinho de Gon&ccedil;alo Domingues n&atilde;o notou
+esta express&atilde;o e proseguiu:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o se lhe dava que eu fosse?
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[29]</span>
+&#8213;Eu?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Sim; parece que n&atilde;o teria pena alguma.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o diga essas cousas!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Pois dev&eacute;ras magoava-a a minha partida?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Dev&eacute;ras; disse Irene, passando a m&atilde;o pelo
+rosto, para occultar as tintas do pejo, que a elle assomavam
+com esta confiss&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o diz o que pensa, acudiu o mancebo, imprimindo,
+cheio de alegria, um tal abalo &aacute; arvore, que
+esta, oscilando o ro&ccedil;ando de encontro ao muro, fez
+desprender algumas pedras.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Jesus! vai cahir! exclamou a donzella, tornando-se
+p&aacute;llida.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ai! Irenezinha, s&oacute; para v&ecirc;r se o que diz
+&eacute;
+certo, de boa vontade quebrava a cabe&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+A mo&ccedil;a, em vez de responder, com um gesto
+impoz silencio ao seu conversado. Do lado de baixo
+ouvia-se os passos de quem para alli se dirigia, e
+pouco depois appareceu Gon&ccedil;alo Domingues.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; meu tio, disse Fernando, com voz t&atilde;o sumida,
+que para si t&atilde;o s&oacute; parecia fallar, e no momento
+em que o rotundo burguez passava distrahido
+junto do muro, querendo esconder as pernas que deixava
+pender de um e outro lado do galho em que
+cavalgava, de novo oscilou a arvore violentamente,
+mais arruinando o muro a que se encostava.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Oh velhaco, que fazes ahi empoleirado?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Eu, senhor tio? accudiu o pobre rapaz, co&ccedil;ando
+na cabe&ccedil;a com toda a furia.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Sim, tu, Belzebuth! Salta c&aacute; para baixo, que
+te ensino a andar a roubar fructa pelos cerrados.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Oh meu tio, a arvore n&atilde;o tem fructo; olhe
+bem.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ent&atilde;o que fazes ahi?
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[30]</span>
+&#8213;Eu estava a v&ecirc;r...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O que, rapaz de m&aacute; morte, cabe&ccedil;a
+&ocirc;cca?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A v&ecirc;r se o via por algures, proseguiu o desconcertado
+mancebo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Levadigas te colham! Procuraste atalaya bem
+longe do caminho. Ora, desce, que eu te vou ensinar
+chan&ccedil;as melhores.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Cuidei que ia pela Aljama.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Algemia &eacute; isso que tu est&aacute;s a
+pr&eacute;gar. Desce,
+velhaco!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;L&aacute; vou, tio; disse Fernando, descavalgando,
+por&eacute;m deixando-se suspenso pelas m&atilde;os do seu
+poleiro.
+Mas...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mas o que? Por tua causa em boas me vi, e
+tu m'as pagar&aacute;s juntas. Eu farei de modo que n&atilde;o
+tenhas mais vontade de ir devassar hortas e cercados.
+Se vais por esse caminho, acabas nas m&atilde;os da
+justi&ccedil;a! exclamou o senhor Gon&ccedil;alo Domingues, com
+sobrecenho provocado pela recorda&ccedil;&atilde;o de
+desaguisado
+da praia.
+<br />
+
+<br />
+
+Fernando deitou &aacute; donzella, que toda tr&eacute;mula
+se conservava encostada &aacute; varanda, um olhar a furto,
+n&atilde;o se attrevendo, por envergonhado de ser assim,
+alli na presen&ccedil;a della, tractado como uma
+crean&ccedil;a,
+a uma despedida; com outro relance d'olhos avaliou
+se as amea&ccedil;as do tio n&atilde;o teriam, na
+execu&ccedil;&atilde;o, algum
+desconto, e lentamente, soltando um suspiro, desceu
+da arvore em que, ao modo das aves, tinha soltado
+as primeiras confidencias do amor. T&atilde;o depressa sentiu
+nos p&eacute;s o contacto do pedregulho da bitesga, como
+sentiu nas orelhas o da m&atilde;o de mestre Gon&ccedil;alo,
+que acompanhava cada pux&atilde;o com um epitheto
+pouco amavel, terminando pelo de
+&laquo;ladr&atilde;o&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[31]</span>
+&#8213;Ladr&atilde;o n&atilde;o! exclamou o rapaz dando um salto,
+ferido pela insistencia do tio naquelle ruim conceito.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ent&atilde;o que fazias alli, rapaz dos meus peccados?
+<br />
+
+<br />
+
+Alguem, n&atilde;o o interrogado, se encarregou de
+responder. &Aacute; janella onde vecejava a arruda assomou
+um rosto encarquilhado, meio occulto em uma enorme
+touca de linho a fei&ccedil;&atilde;o das que usam as freiras,
+e gritou com uma voz de canna rachada, debru&ccedil;ando-se:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Menina Irene! menina Irene!
+<br />
+
+<br />
+
+Gon&ccedil;alo Domingues suspendeu as suas iras, e estendeu
+o l&aacute;bio inferior com um gesto que queria dizer
+muita cousa, e, entre outras, que atinava com o motivo
+de ter o sobrinho trocado a prociss&atilde;o dos fidalgos
+por uma ascens&atilde;o &aacute;s arvores do senhor
+Jo&atilde;o Ramalho.
+Lembraram-lhe as palavras e os momos da
+velha da praia.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;J&aacute; agora vamos pela Aljama, e de passo fallarei
+com meu compadre; disse em seguida, dando um
+encontr&atilde;o ao mancebo e indicando o carreiro que subia
+a montanha.
+<br />
+
+<br />
+
+Mettendo-se a caminho, voltou a cabe&ccedil;a, como a
+volt&aacute;ra Fernando, para a casa do mercador, e viu na
+janella do andar superior, por entre a zelozia meia
+aberta, o rosto da gentil menina.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Aacute; f&eacute;, disse elle por entre dentes, que o rapaz
+n&atilde;o tem ruim gosto; e ella...
+<br />
+
+<br />
+
+A palavra foi terminada por um sorriso, olhando
+para Fernando, como desvanecido do seu sangue.
+Gon&ccedil;alo Domingues era um excellente homem,
+apesar de toda a sua aspereza apparente.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>III.</h3>
+
+<h3>
+Os Velhacos.
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="quote2 intro">
+Aquelles cidad&atilde;os nobres praticavam
+n'isto com mais delibera&ccedil;&atilde;o,
+como homens, que tinham mais
+que perder, que os plebeus que seguiam
+o Mestre...
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="smallcaps signature">
+chronica de d. jo&atilde;o
+1.&ordm;
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Uma cidade da peninsula, no seculo XIV, n&atilde;o era
+um aggregado de individuos vivendo, como hoje,
+debaixo da mesma lei&#8213;segundo reza a lei, entenda-se.
+Af&oacute;ra as distinc&ccedil;&otilde;es de classes e
+senhorios diversos,
+havia a distinc&ccedil;&atilde;o de cren&ccedil;as, e a
+separa&ccedil;&atilde;o era
+visivel nas grossas cadeias que tornavam ao cahir
+<span class="pagenum">[34]</span>
+das Ave-Marias incommunicaveis certos bairros. O
+Porto tinha de tudo: subditos da coroa e subditos da
+mitra, e no tempo em que succedia o que narramos,
+moradores que nem reconheciam uma, nem outra;
+havia christ&atilde;os, mouros e judeus. Sobre um
+monte alteavam-se as torres da S&eacute;, e os pa&ccedil;os
+fortificados
+do bispo; sobre o outro mais humilde levantava-se
+a esnoga, ou synagoga, e na encosta, entre
+um e outro, a pequena aljama appresentava-se,
+como o symbolo da religi&atilde;o do propheta de Yatreb,
+querendo approximar-se do Evangelho e da Biblia,
+e lan&ccedil;ando depois pela encosta um ou outro casebre,
+como transi&ccedil;&atilde;o para alguma morada de heresiarcha
+que se occultasse entre os foragidos do Oriente. A
+aljama era a mais pobre: a esnoga era a mais rica;
+a cruz, mais alta, dominando as duas, era a
+mais forte.
+<br />
+
+<br />
+
+Aljama, municipio, cathedral, esnoga, tudo f&ocirc;ra
+cintado pela mesma muralha, como para viver em
+boa fraternidade; mas esta aguara entre os dous filhos
+de Ad&atilde;o, quanto mais entre tanta gente. O judeu
+despresava o mouro; o mouro despresava o judeu;
+o christ&atilde;o despresava a ambos, e, como fizera
+a lei, talh&aacute;ra para si mais regalias e para os outros
+mais tributos, reservando, para os que nada tivessem
+de seu, o direito de se lamentarem em particular de
+algum pesco&ccedil;&atilde;o de burguez arrufado, gilvaz de
+cavalleiro,
+pedrada de garoto e praga de rasc&ocirc;a enraivecida,
+ou velha rabujenta. Era uma sorte bem
+agradavel, feliz, comtudo, aquella, em compara&ccedil;&atilde;o
+&aacute; que lhes prepararam, aos judeus especialmente, uns
+beatos mettidos em politica, de que se serviam para
+ganhar o c&eacute;u, suppunham elles, e um bando de
+togas, garnachas e roupetas que se serviam do c&eacute;u
+<span class="pagenum">[35]</span>
+para apanhar dinheiro. Aquella animosidade era a
+regra geral, mas toda a regra tem excep&ccedil;&atilde;o, e na
+mouraria era &aacute;s vezes recebido com os bra&ccedil;os
+abertos
+o mesteiral; na judearia havia m&atilde;o que se estendia
+ao burguez em prova de amisade sincera, e um ou
+outro filho de Israel achava agasalho n&atilde;o chorado na
+casa do christ&atilde;o, mesmo quando aquelle n&atilde;o tinha
+a
+arca cheia de boas dobras; que em tal caso todas as
+portas se abriam, desde a do pa&ccedil;o r&eacute;gio ou
+episcopal
+e a do solar do nobre, at&eacute; &aacute; da cella do
+reverendo
+abbade, e a do leigo, e sobre elles choviam
+honras e merc&ecirc;s; como eram prova viva D.
+Judas e D. David, duas creaturas, que, fazendo grande
+arruido na c&ocirc;rte, jogaram com os destinos do
+paiz, como bons ministros de finan&ccedil;as&#8213;o nome, o
+titulo ainda n&atilde;o estava creado, mas a cousa j&aacute;
+existia&#8213;n&atilde;o
+se esquecendo de tirar delle todo o succo
+possivel. Gon&ccedil;alo Domingues vivia em boa harmonia
+com o arabi, ou arrabi menor, harmonia que o devia
+lisongear, pois era at&eacute; certo ponto uma notabilidade,
+como chefe dos judeus da cidade e como
+homem de teres, e por isso se resolvera a subir a
+encosta, pelo lado do Olival, para fallar em certos
+negocios em que desejava servir um seu compadre,
+e tractar da compra de por&ccedil;&atilde;o de gado. O velho
+Gon&ccedil;alo,
+for&ccedil;ureiro nos seus principios, reunira o cabedal
+bastante para alargar a &aacute;rea do seu commercio:
+estendera-o &aacute;s carnes-verdes e ensacadas e a pellames
+de todo o genero; tornara-se em fim um negociante
+de considera&ccedil;&atilde;o, como um seu collega de
+Coimbra, que salvou a patria, emprestando a sua
+senhoria, o Mestre de Aviz, alguns punhados de dobras,
+servi&ccedil;o que lhe rendeu a doa&ccedil;&atilde;o de
+alguns bens
+nacionaes e a gloria de ser o tronco de uma nobre
+<span class="pagenum">[36]</span>
+familia. A nobreza de elmo cerrado atira-se aos fidalgos
+do seculo XIX, lan&ccedil;ando-lhe em rosto o n&atilde;o ser
+com a espada que lavrassem os seus escudos; mas
+&eacute; porque n&atilde;o teem paciencia ou vagar de revolver
+os archivos da familia, sen&atilde;o deixaria de atirar
+pedra ao telhado dos visinhos, vendo os seus
+de vidro: se por tal de vidro os podem considerar.
+Deixemos reflex&otilde;es, por&eacute;m, e retrogrademos ao bom
+tempo, que assim se chama sempre ao tempo passado,
+a apanhar o rico burguez e o sobrinho &aacute; porta
+do Olival.
+<br />
+
+<br />
+
+No campo, que, extra-muros, por aquelles lados
+se estendia, ainda se viam alguns individuos,
+que, com os olhos postos no rio, pareciam analysar
+as gal&eacute;s chegadas; mas era visivel que, de todos os
+portuenses, estes, que assim ainda pasmavam, eram os
+menos curiosos, os mais indifferentes &aacute; lucta travada.
+A boa parte, farrapos, que em bom tempo tinham
+formado uma aljuba, denunciavam como decendentes de Tarik; a outros
+distinguia-os um circulo de
+l&atilde; amarella pregado nos grosseiros tabardos; o resto
+n&atilde;o se distinguia por cousa alguma da roupa, porque
+naquelle cerzido de trapos nada se podia distinguir.
+Os curiosos, os verdadeiros curiosos t&iacute;nham,
+como vimos, descido &aacute; baixa da cidade, e mais crescera
+o numero depois que se soubera que nada havia
+que receiar das gal&eacute;s, e que Ruy Pereira e os outros
+capit&atilde;es desembarcaram e seguiram processionalmente
+para os pa&ccedil;os municipaes. Gon&ccedil;alo Domingues,
+intercalando as combina&ccedil;&otilde;es de seu negocio
+com reflex&otilde;es sobre a descoberta feita dos amores
+de seu sobrinho, reflex&otilde;es que faziam com que
+a este mostrasse gesto carregado, e interiormente se
+sorrisse, avivando na memoria os seus verdes annos:
+<span class="pagenum">[37]</span>
+medindo de tempos a tempos a altura do
+sol, que n&atilde;o eram depois de Ave-Marias seguras
+certas paragens, passeava de um para o outro lado
+do campo: Fernando acompanhava-o, voltando a todo
+o instante a cabe&ccedil;a para Miragaya; procurando
+aproximar-se de sitio d'onde pod&eacute;sse ao menos v&ecirc;r
+a casa do mercador; reprehendendo-se por n&atilde;o ter
+aproveitado melhor o tempo que pass&aacute;ra junto de
+Irene, dizendo uma fineza daquellas do livro de cavallerias,
+que frei Gumeado lhe deix&aacute;ra l&ecirc;r;
+descoro&ccedil;oado
+por aquelle final, que de certo o rebaixaria
+no conceito da linda mo&ccedil;a. O sobrinho andava
+t&atilde;o embebido, que nem sentia os p&eacute;s tocar no
+ch&atilde;o, e o campo n&atilde;o era jardim areado; o tio
+can&ccedil;ava-se
+j&aacute; de aguardar seu compadre, que n&atilde;o
+encontr&aacute;ra
+em casa, quando a appari&ccedil;&atilde;o de um personagem
+veio p&ocirc;r em movimento os frequentadores
+do campo: uns deslisaram-se, o mais sorrateiramente
+que lhes foi possivel, pela encosta e por entre o
+arvoredo, outros perfilaram-se, e levaram as m&atilde;os
+aos
+barretes, os que os tinham, mostrando, comtudo, pelo
+gesto, que n&atilde;o era a estima, mas o temor que os levava
+a esta delicadesa.
+<br />
+
+<br />
+
+O recem-chegado, personagem lhe chamamos,
+e mostrava-o ser de conta entre aquella gente, era
+uma figura notavel. Um barrete de tela vermelha
+de forma exquisita rematava, assentado sobre um capirote,
+uma fronte um pouco crescida e saliente, complemento
+de um rosto ossudo, moreno, em que dous
+olhos desesperados com a proeminencia de um nariz,
+que se mettia em tudo de permeio, tinham acabado
+por enviar as pupillas, cada uma para o seu
+lado, a tomar conhecimento com as orelhas; o l&aacute;bio
+superior era adornado por um bigode esfarrapado,
+<span class="pagenum">[38]</span>
+de c&ocirc;r duvidosa, ou de todas as c&ocirc;res
+possiveis&#8213;preto,
+branco, castanho, louro e ruivo&#8213;e de egual
+mescla eram os pellos que deixava crescer no queixo. Da
+cabe&ccedil;a n&atilde;o desdiziam o resto do corpo e o
+vestuario:
+trajava um gib&atilde;o bipartido preto e vermelho, e uma
+das longas pernas enfiava-se em uma cal&ccedil;a e borzeguim
+vermelho, a outra em cal&ccedil;a e borzeguim preto;
+do pesco&ccedil;o pendia-lhe uma medalha de metal
+amarello, com as armas da cidade, da cinta
+um grande punhal e uma enorme bolsa de couro,
+e na m&atilde;o sustinha um bast&atilde;o, terminado por
+uma cabe&ccedil;a de metal cinzelada, ao que parecia, por
+artista que tom&aacute;ra a delle por modello. Medalha e
+bast&atilde;o apregoavam que Tello Rabaldo era o pae dos
+velhacos, cargo que n&atilde;o tem hoje correspondente,
+por n&atilde;o tolerarem as luzes do seculo absurdos. Tello
+superintendia, governava t&atilde;o s&oacute;mente
+cidad&atilde;os que
+em noites serenas teem o docel do leito recamado
+de estrellas, jejuam sem devo&ccedil;&atilde;o, deixam crestar
+o corpo pelo sol de Agosto e gelar o sangue pelo
+frio de Janeiro, e chamar-lhes velhacos era alterar
+a significa&ccedil;&atilde;o das palavras, se n&atilde;o
+era malicia de legislador,
+que assim arrebanhava e baptisava alguns
+centos de creaturas, para que se persuadissem as de
+boa f&eacute; que na terra n&atilde;o havia mais, como os
+hospitaes de doudos lisongeam muita gente que n&atilde;o
+&eacute; for&ccedil;ada a n&atilde;o ter l&aacute;
+moradia. Os velhacos, os verdadeiros,
+ent&atilde;o, como hoje, n&atilde;o se deixavam governar,
+sempre governavam tambem, e havia-os
+anafados, vestindo custosas telas e abrigados em pa&ccedil;os
+soberbos.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Eh! boa gente! exclamou Tello, dirigindo-se
+aos individuos que tractavam de lhe evitar a presen&ccedil;a;
+ent&atilde;o assim querem fugir a seu pae! Vamos,
+<span class="pagenum">[39]</span>
+venham receber a ben&ccedil;&atilde;o, como bons filhos, e com
+a ben&ccedil;&atilde;o uma boa nova. Ol&aacute;, Pedro
+Choca! accrescentou,
+depois de honrar com um sorriso a facecia
+que servira de exordio, dirigindo-se a um dos que
+se desbarretava; que nenhum dos teus falte depois
+de &aacute;manh&atilde; na Ribeira. Onde est&aacute; o
+Jo&atilde;o Bispo?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Jo&atilde;o Bispo, redarguiu o interrogado, ha dias
+que desappareceu.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O velhaco voltaria para o convento farto de
+estar deitado de barriga ao sol, ou se metteu outra
+vez com a filha do velho Humeia, e est&aacute; a fazer penitencia
+por ter peccado com moura?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ou se foi lan&ccedil;ar com os scismaticos...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Para que? Toma conta em ti! Chegou-me
+aos ouvidos que te travaste com elle de raz&otilde;es por
+umas nonadas, e se me d&eacute;ste cabo do rapaz, em
+boa te metteste! Se n&atilde;o me trouxeres em breve novas
+delle, a tua pelle m'as dar&aacute;. A pol&eacute; do aljube
+est&aacute; nova, e poder&aacute; bem comtigo.
+<br />
+
+<br />
+
+Choca resmungou por entre dentes algumas palavras,
+e o pae dos velhacos proseguiu:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Avisa aos compadres para que ou v&atilde;o comtigo
+e mais a sua gente, ou a levem para as tercenas.
+Que n&atilde;o falte ninguem! Quero duzentos homens,
+bons pulsos...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Duzentos homens, bem sabe sua merc&ecirc; que
+n&atilde;o podemos reunir. A melhoria da gente levou-a o
+senhor conde Gon&ccedil;alo; o senhor alcaide tem boa
+por&ccedil;&atilde;o,
+e se crean&ccedil;as, mulheres e aleijados n&atilde;o servem...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E esses perros de cabe&ccedil;a amarrada! exclamou
+Tello, designando um mouro que a curiosidade
+trouxera para junto de Pedro Choca, capataz de uma
+turma de v&aacute;dios. Quanto aos aleijados, sei de uma
+m&eacute;sinha que os p&otilde;e s&atilde;os como um pero,
+ajuntou,
+<span class="pagenum">[40]</span>
+mostrando o seu bast&atilde;o; o manco da porta da S&eacute;
+que o diga. Vamos: sua senhoria (uma barretada)
+appellidou os bons homens da sua boa cidade (outra
+barretada) para que o ajudassem a dar cabo dos
+perros de Castella, e os alvazires d&atilde;o-vos honra
+mettendo-vos
+na conta dos bons homens... fazendo-vos
+trabalhar. Que ninguem falte, e viva sua senhoria!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Viva sua senhoria! repetiram os v&aacute;dios e com
+elles Gon&ccedil;alo Domingues, que se approxim&aacute;ra da
+roda
+formada ao pae dos velhacos, roda desfeita a um
+signal por este dado com a vara, deixando a importante,
+incansavel e incorruptivel auctoridade, como lhe chamariam
+hoje, que todos os encargos teem um ou mais adjectivos
+annexos, face a face com o burguez, que abria
+a bocca para indagar quaes os servi&ccedil;os que o filho
+de Thereza Louren&ccedil;o reclamava dos portuenses.
+<br />
+
+<br />
+
+A interroga&ccedil;&atilde;o n&atilde;o foi formulada.
+Tello Rabaldo,
+cheio da sua importancia, fez uma leve sauda&ccedil;&atilde;o,
+carregou o barrete sobre um dos olhos em
+rebeldia, e girou sobre os calcanhares ao mesmo
+tempo que um outro individuo assentava nos hombros
+do for&ccedil;ureiro uma grande palmada. Gon&ccedil;alo
+Domingues
+voltou-se a v&ecirc;r quem segundava a amabilidade do marinheiro,
+e se n&atilde;o reconheceu logo o seu compadre,
+foi porque um abra&ccedil;o de metter costellas dentro
+o suffocou. O bom homem vinha lisongeado com a carta
+de que Ruy Pereira f&ocirc;ra portador, lisongeado
+em extremo no seu patriotismo de localidade, e expandia
+o seu contentamento daquella sorte e em
+exclama&ccedil;&otilde;es,
+que fizeram suspeitar ao tio de Fernando,
+que n&atilde;o estava em bom arranjo aquella cabe&ccedil;a. D.
+Jo&atilde;o chamava aos portuenses o seu bom povo,
+mimose&aacute;ra-o
+al&eacute;m disso com outros epythetos taes como&#8213;leal,
+esfor&ccedil;ado, etc., e o portador, resolvido, apesar
+<span class="pagenum">[41]</span>
+do seu enfado, a ser amavel e popular, pint&aacute;ra a
+amisade e reconhecimento do Mestre, pela espontaneidade
+da sua acclama&ccedil;&atilde;o na cidade da Virgem, com
+taes c&ocirc;res, descera da sua dignidade prodigalisando
+sorrisos
+ao corpo municipal, batendo no hombro de Luiz
+Giraldes de um modo, que o nosso homem esteve por
+um triz a deixar cahir uma lagrima de commo&ccedil;&atilde;o.
+Era uma alma candida e enthusiastica, apesar do involucro
+grosseiro, o compadre do senhor Gon&ccedil;alo
+Domingos; t&atilde;o candida que acreditava no desinteresse
+do Mestre de Aviz, suppondo que defendia a coroa
+para a entregar ao filho de Ignez de Castro; t&atilde;o
+enthusiastica e patriotica que, quando, &aacute; for&ccedil;a
+de lhe
+perguntar o marchante se encontr&aacute;ra o arrabi, seccas
+as goellas e j&aacute; sem alento para descrever a
+reuni&atilde;o nos
+pa&ccedil;os municipaes e mais epysodios da embaixada,
+se recordou do seu negocio, era tarde. O sol ia quasi
+a mergulhar no oceano, e era provavel n&atilde;o s&oacute; que,
+na judearia estivessem fechadas as ruas, mas at&eacute; que
+se l&aacute; fossem, encontrassem as portas da cidade cerradas
+no regresso. Os dous burguezes separaram-se, pois: o
+patriota, compadre de Gon&ccedil;alo Domingues, seguiu pelos
+campos em direc&ccedil;&atilde;o ao povoado de Cedofeita;
+est'outro, despertando o sobrinho de pensamentos em
+que n&atilde;o entravam nem compras, nem vendas, nem
+os direitos que os filhos de Henrique 2.&ordm; de Castella
+e D. Pedro 1.&ordm; de Portugal, podiam ter &aacute;
+terra que pisava, tomou com elle o caminho de
+casa.
+<br />
+
+<br />
+
+As nuvens, que o norte espalh&aacute;ra no ar, como
+flocos de algod&atilde;o, ornadas pelas tintas que formam
+a grada&ccedil;&atilde;o entre o rubro e o amarello vivo, davam
+ao c&eacute;u a apparencia de um marmore, um todo que
+em pintura seria inverosimil; os edificios de Villa
+<span class="pagenum">[42]</span>
+Nova e de Gaya cortavam com o perfil o horisonte,
+vestindo pouco a pouco uma c&ocirc;r uniforme, o cinzento-escuro.
+De um destes edificios, o que mais se
+avantajava, do castello de Gaya, as janellas esguias
+voltadas para o poente pareciam dar sahida aos fogos
+de um incendio. De que n&atilde;o era, por&eacute;m, este
+chamejar
+mais que um reflexo do sol no occaso, se poderia desenganar
+quem, mesmo nunca tendo presenceado este phenomeno,
+se nos anticipasse na residencia do tenente
+do conde D. Gon&ccedil;alo, onde uma hora depois lhe
+provariamos que a reflex&atilde;o, ao appresentar Tello
+Rabaldo, n&atilde;o f&ocirc;ra de leve feita: velhacos
+n&atilde;o eram
+s&oacute; os que n&atilde;o tinham nem leira nem beira.
+<br />
+
+<br />
+
+Em uma das salas que no castello serviam de
+apposento ao alcaide, revestida de apainelados de
+carvalho, em que a luz do dia, coada pelos miudos
+vidros de c&ocirc;r, formando losangos, emba&ccedil;ava, e
+emba&ccedil;ava
+egualmente a que davam as tochas sustentadas
+por bra&ccedil;os de ferro, passeava de um para outro
+lado um homem de alguma edade j&aacute;, magro e
+de estatura mediana. No peito de uma especie de
+camisola de panno de curtas fraldas, cujas mangas,
+farpadas nas orlas, pendiam at&eacute; ao joelho, viam-se
+bordadas
+a verde com nervuras de ouro tres folhas de figueira;
+o mesmo distinctivo se reproduzia em uma
+bolsa de couro, que, do lado contr&aacute;rio ao estoque,
+acompanhava um punhal, nos fartos reposteiros
+das duas portas, que para a sala davam serventia,
+e na manga da jornea de um pagem, crean&ccedil;a
+de dez annos, que cabeceava com somno a
+um canto. O barrete adornava-se com duas pennas
+de aguia, presas em fecho de ouro, e os borzeguins
+apresentavam uns longos bicos, moda que
+um epysodio da guerra travada deixou assignalada
+<span class="pagenum">[43]</span>
+na historia. Encostados, no v&atilde;o de uma janella,
+conversavam, em voz baixa, uma dama e um
+individuo que se tornava notavel por usar crescido
+o cabello, raro e de c&ocirc;r avermelhada, e por uma
+longa espada, de que affagava o punho. Do lado opposto
+havia seis individuos, um dos quaes vestia
+h&aacute;bito monastico, e outro se acobertava com uma
+velha armadura de malha.
+<br />
+
+<br />
+
+O homem que passeava era Ayres Gon&ccedil;alves de
+Figueiredo; a dama era a esposa deste, D. Catharina;
+o individuo, que lhe fazia companhia, o irlandez
+Guilherme Down-Patrick; os restantes eram quatro
+cavalleiros, homens de solar de Entre-Douro-e-Minho,
+o capit&atilde;o de besteiros, Pero Bedoido, e frei
+Garcia.
+<br />
+
+<br />
+
+As passadas do alcaide soavam mais alto do que
+as poucas palavras que toda aquella gente trocava entre
+si, e visivelmente preoccupava-o negocio, que n&atilde;o
+era para os outros estranho, a n&atilde;o enganar o modo
+porque de tempos a tempos se fitavam e a
+medita&ccedil;&atilde;o
+que se seguia. Duas pessoas se subtrahiam &aacute; influencia
+geral, a castell&atilde; e o irlandez: se se calavam
+era, ella para amimar uma galga branca, que se enroscava
+sobre um escabello, elle para com a vista
+percorrer a la&ccedil;aria e pendur&oacute;es do tecto.
+<br />
+
+<br />
+
+Segredos e silencio, aquelles olhares e gestos
+tinham um todo mysterioso, que houve por bem quebrar
+Ayres Gon&ccedil;alves.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Que me dizeis, senhores? exclamou, estacando
+no meio do passeio, como a procurar alvitre que
+viesse p&ocirc;r termo &aacute; sua
+irresolu&ccedil;&atilde;o, parecer que se
+conformasse com o que tinha na mente.
+<br />
+
+<br />
+
+Ninguem respondeu, por&eacute;m, e o castell&atilde;o,
+lan&ccedil;ando
+&aacute; volta de si um olhar de quem queria l&ecirc;r
+<span class="pagenum">[44]</span>
+nas physionomias dos hospedes as suas inten&ccedil;&otilde;es,
+proseguiu:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Sua senhoria quer em volta de si todas as
+lan&ccedil;as do reino, e n&atilde;o se lembra, ou
+n&atilde;o se quer lembrar
+de que fica desguarnecida uma terra t&atilde;o importante
+como esta, e cercada por tantos senhores que levantaram
+voz pela rainha D. Beatriz. Deixa a cidade
+aos pe&otilde;es, aos pe&otilde;es, que tracta como a gente de
+prol?!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Em boa confus&atilde;o vae pondo as cousas! Um
+dia, veremos, sen&atilde;o lhes pozer cobro &aacute;s ousadias,
+vir arraya tomar-nos os solares; atalhou, abanando
+a cabe&ccedil;a com ar sentencioso, um velho fidalgo de
+Riba-Tua. Bem altaneiros andam j&aacute; burguezes e mesteiraes!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Deixae, accudiu Affonso Darga, as encamizadas
+dos pe&otilde;es, que ter&atilde;o seu cabo. O Mestre precisa
+de sustentar a guerra, e lisongea por isso quanto
+mercador tem a arca bem provida de boas dobras,
+tornezes, gentis, florins e pilartes. Aos do Porto pede
+elle agora uma armada, mantimentos e dinheiro.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Armada que nos levar&aacute; a v&ecirc;r o rosto
+&aacute;s hostes
+de Castella; tornou Ayres Gon&ccedil;alves.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Se se fizer.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O povo do Messias de Lisboa a arranjar&aacute;.
+N&atilde;o viram como os alvazires propozeram logo uma
+derrama, e juraram a Rui Pereira que teriam antes
+de um mez a nado algumas naus e outras se armariam
+dos melhores navios do commercio com Flandres?!
+Est&atilde;o inchados com o valimento que lhes d&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Por ahi se conhecem os vil&otilde;es...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; que d&atilde;o elles ao Mestre? Grande cousa!
+Em campo se ver&aacute; de que servem, e no campo &eacute; que
+a contenda tem de se decidir. Ir&atilde;o com b&eacute;stas,
+<span class="pagenum">[45]</span>
+virotes e azevans fazer frente &aacute;s lan&ccedil;as de
+Castella?
+Lingua teem elles; mas brio &eacute; que nem toda
+a algaravia desses mestres em leis e clerigos, que o
+regedor tomou para seus conselhos, esses falladores
+de Pisa e Bolonha, poder&aacute; metter nessa gente.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mas nella se estriba D. Jo&atilde;o, disse, meneando
+a cabe&ccedil;a, um dos cavalleiros.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Para elles appella com boas palavras; a n&oacute;s
+manda-nos, n&atilde;o recado, mas ordem! exclamou o
+alcaide. &Eacute; dessas garnachas sahidas do nada que vem
+a desconsidera&ccedil;&atilde;o em que nos tem.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Tempos do rei D. Fernando! suspirou Down-Patrick,
+recordando-se talvez de quando as hostes
+do duque de Lencastre faziam, entre os alliados portuguezes
+e os inimigos de Castella, de tudo roupa
+de francez.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Era um bom rei o que Deus tem! ajuntou
+frei Garcia, fazendo uma momice de piedade.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Rei, e creado como rei, bem sabia elle onde
+estava a for&ccedil;a e grandesa do reino e sua.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E melhor agasalho n&atilde;o nos fazem sempre no
+campo do marido da rainha D. Beatriz. Aos de sua
+casa aconselhou D. Leonor que fossem para o Mestre,
+que ao menos n&atilde;o era soffrego.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Com isso perdeu D. Jo&atilde;o: perdeu-o a altivez.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E ao Mestre n&atilde;o approveitar&atilde;o as
+merc&ecirc;s rastejadas.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Elle n&atilde;o precisa de n&oacute;s, tornou o velho, o
+mais desappontado dos hospedes do alcaide, ao que
+perecia; faz cavalleiros a seu capricho do primeiro
+pe&atilde;o que se lhe antolha.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Bons cavalleiros! observou, rindo, o mais mo&ccedil;o
+da reuni&atilde;o. Por l&aacute; andam montados em mulas
+<span class="pagenum">[46]</span>
+fazendo rir com os seus ares de importancia. N&atilde;o
+ser&aacute; preciso, para os derribar, erguer clava ou montante:
+andam t&atilde;o mal a geito com arnez e grevas, t&atilde;o
+abafados pelos elmos, os que os teem, que ao primeiro
+arranco das azes v&atilde;o ao ch&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Em se tractando de lan&ccedil;adas &eacute; comnosco que
+se haver&atilde;o, bem o v&ecirc;des, disse Ayres de
+S&aacute;.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E ireis, senhor alcaide? interrogou Affonso
+Darga.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Eu, senhores, respondeu Ayres depois de
+alguma hesita&ccedil;&atilde;o, levantei voz pelo Mestre, mas
+recebi
+o castello do conde D. Gon&ccedil;alo: obedecerei a
+sua senhoria em tudo, mas s&oacute; abandonarei o castello...
+<br />
+
+<br />
+
+A phrase do alcaide n&atilde;o terminou. D. Catharina,
+approximando-se de seu marido, e impondo-lhe
+com um relance d'olhos a conveniencia de n&atilde;o proseguir,
+atalhou:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Largos dias tendes para tomar conselho, cavalleiros;
+alegrae o sarau com outros contos. Cousas
+de tanta importancia n&atilde;o se devem tractar de salto: o
+tempo que se leva a pensar em casos taes n&atilde;o &eacute;
+perdido. Tomai exemplo de D. Gon&ccedil;alo Telles, ajuntou
+mais baixo, dirigindo-se ao esposo.
+<br />
+
+<br />
+
+D. Catharina de Figueiredo era, at&eacute; certo ponto,
+uma dona prudente, como chama um historiador,
+por egual conselho fabiano, a Beatriz Gon&ccedil;alves
+de Moura, aia depois da excellente rainha D. Philippa.
+O exemplo do conde era um grande exemplo,
+pois era de homem que sabia, ou parecia ter de memoria
+o <em>Sic vos non vobis</em> de Virgilio, e
+dar-lhe o valor
+devido nas cousas do mundo. D. Gon&ccedil;alo fechara-se
+em Coimbra, jog&aacute;ra com sua irm&atilde; um
+jogo pouco
+leal e parecia aguardar que a sorte decidisse qual
+<span class="pagenum">[47]</span>
+dos pretendentes &aacute; cor&ocirc;a tinha raz&atilde;o e
+direito, ou
+for&ccedil;a e geito para a segurar na cabe&ccedil;a. O alcaide
+approveitou
+o conselho e abandonou o thema em que o lan&ccedil;&aacute;ra
+o mau humor causado pela mensagem de Ruy Pereira.
+<br />
+
+<br />
+
+Palestra sobre outro assumpto era naquella occasi&atilde;o
+difficil de sustentar. Os cavalheiros pouco a
+pouco deixaram a sala, e quando s&oacute; restavam o aventureiro,
+Henrique Fafes, o mais mo&ccedil;o dos da reuni&atilde;o,
+e frei Garcia, indicou este ultimo com o olhar
+o pagem quasi adormecido, tirando ao mesmo tempo
+da manga uma tira de pergaminho dobrada. Ayres de
+Figueiredo, sacudindo com violencia a crean&ccedil;a de
+quem o reverendo parecia recear a indiscrip&ccedil;&atilde;o, a
+poz,
+extremunhada, f&oacute;ra da porta, ordenando-lhe que se
+recolhesse, e em seguida percorreu com os olhos o
+escripto, que lhe appresentaram.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O alcaide de Monsaraz veio? disse elle terminando
+a leitura e dirigindo-se ao frade.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Senhor, sim, veio.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E n&atilde;o desconfiaram de nada?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Penso que de nada. As gal&eacute;s castelhanas
+n&atilde;o
+appareceram.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E de boa fonte houvestes esta proposta?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Do irm&atilde;o do arrabi-m&oacute;r, esse judeu a quem
+sua real senhoria acaba de fazer merc&ecirc;.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Misser Guilherme, senhor Henrique, disse o alcaide
+depois de fitar os dous por um momento, se pouco
+caso se faz de n&oacute;s em Lisboa, no campo dos que
+a sitiam teem-nos em apre&ccedil;o. D. Jo&atilde;o
+n&atilde;o &eacute; t&atilde;o soffrego
+como o pintavam, e a prova &eacute; este pergaminho.
+<br />
+
+<br />
+
+Down-Patrick fez uma visagem e soltou um &laquo;oh&raquo;
+guttural, que expressava a pouca admira&ccedil;&atilde;o que
+lhe
+causava o apre&ccedil;o em que o poderiam ter, como certo
+dos seus muitos merecimentos.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[48]</span>
+&#8213;Gon&ccedil;alo Rodrigues vos fallar&aacute; depois
+d'&aacute;manh&atilde;
+em S. Domingos, disse frei Garcia, attrahindo o alcaide
+para junto de uma das portas, a opposta &aacute;quella por
+onde sahira o pagem. E depois, accrescentando algumas
+palavras em voz baixa, sahiu pelo outro lado.
+<br />
+
+<br />
+
+Ayres de S&aacute;, chamando Henrique Fafes e o irlandez,
+seguiu-o.
+<br />
+
+<br />
+
+Quando a sala ficou deserta, o reposteiro, junto
+do qual frei Garcia fall&aacute;ra com o alcaide de Gaya,
+oscillou e appareceu entre elle e a hombreira da porta
+um rosto, onde a curiosidade e a malicia se pintavam.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A mulher tem raz&atilde;o, disse, referindo-se
+&aacute;s
+palavras de D. Catharina, o curioso, depois de ter
+o ouvido &aacute; escuta por alguns segundos; o tempo que
+se gasta em certas cousas n&atilde;o se perde, e eu n&atilde;o
+perdi
+o meu. Ah! Garifa, minha pobre Garifa! exclamou
+em seguida, mudando de express&atilde;o e ajuntando
+&aacute; exclama&ccedil;&atilde;o um suspiro, de ti
+&eacute; que n&atilde;o apanho
+novas.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>IV.</h3>
+
+<h3>
+Dous namorados.
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="quote2 intro">
+... Donde amor se atraviesa<br />
+
+No hay padres reverenciados.
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="smallcaps signature">(romances de gazul.)
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Fernando, chegando a casa, o melhor predio da
+rua dos Pellames, ao toque de Angelus, viu seu tio
+devorar com todo o appetite uma grande posta de
+carneiro e um tassalho de toucinho, capaz do p&ocirc;r em
+debandada um exercito mahometano, regado tudo com
+o summo da uva. Gon&ccedil;alo Domingues, se dava
+descan&ccedil;o
+<span class="pagenum">[50]</span>
+aos dentes, n&atilde;o o dava &aacute;
+lingua, pois incetou,
+ao <em>benedicite</em>, um serm&atilde;o,
+que, ao <em>gratias</em>, ainda
+n&atilde;o
+estava concluido. O velho fallou na crea&ccedil;&atilde;o do
+seu
+tempo, na obediencia da gente mo&ccedil;a &aacute; mais idosa
+em geral, e em especial &aacute;quella de quem se recebe
+o p&atilde;o do corpo e o p&atilde;o do espirito; discorreu
+sobre
+as passadas travessuras do sobrinho, e foi cahir na
+ultima, terminando pela amea&ccedil;a de um sev&eacute;ro
+castigo,
+em caso de reincidencia. Fernando, ao inverso do
+tio, n&atilde;o tocava sequer em uma mealha do p&atilde;o alvo,
+que a criada com um prato de figos passos servira por
+mimo, e, com os olhos fixos na toalha, n&atilde;o soltava
+uma palavra de desculpa. O bom velho, notando
+aquelle extraordinario fastio e sizudez, tomou tudo por
+effeito da sua eloquencia, convers&atilde;o e
+compun&ccedil;&atilde;o do
+rapaz, e por um triz esteve, no final, a addicionar
+ao serm&atilde;o um palliativo, tirando o exemplo de casa,
+pois que o podia fazer; mas a necessidade da disciplina,
+de conservar sempre perante o sobrinho um
+todo de soberania, um sobrecenho, que julgava indispensavel,
+embora n&atilde;o quadrasse com a affei&ccedil;&atilde;o
+que
+lhe tinha, o detiveram. Fernando era, segundo elle,
+um estouvado, um leviano como seu pae, do que d&eacute;ra
+j&aacute; provas exuberantes, abandonando, depois dos estudos,
+o convento de S. Francisco, ent&atilde;o extra-muros, para
+onde um outro parente o cham&aacute;ra, a fim de o metter
+na estrada do c&eacute;u e do mundo pela clausura. O que nisto
+amofinava mais o for&ccedil;ureiro era a boa
+disposi&ccedil;&atilde;o
+que mostrava o mancebo para as letras, a intelligencia
+desenvolvida, que nos primeiros tempos fizera dizer
+a frei Gumeado, grande sabedor para aquellas epochas,
+que bem podia vir a aspirar a grandes dignidades
+da egreja e do seculo, a ser geral, bispo, ou
+chanceller. Todo o rigor, pois, que empregasse era
+<span class="pagenum">[51]</span>
+pouco, e despediu-se do mancebo com toda a solemnidade,
+para dizer &aacute; cuvilheira que, como por seu
+voto e lembran&ccedil;a, lhe levasse ao quarto alguma cousa
+de comer.
+<br />
+
+<br />
+
+Se Gon&ccedil;alo Domingues soubera qual a
+atten&ccedil;&atilde;o
+que lhe dava o sobrinho, de certo n&atilde;o fizera semelhante
+recommenda&ccedil;&atilde;o. &Eacute; bem certo que os
+annos
+trazem, &aacute;s vezes, experiencia e algum saber; mas
+n&atilde;o &eacute; menos certo que &aacute;
+propor&ccedil;&atilde;o que v&atilde;o passando
+se esquece muita cousa egualmente: aos sessenta
+perde-se a memoria dos vinte, sen&atilde;o das
+ac&ccedil;&otilde;es
+praticadas, dos pensamentos havidos; um mancebo
+p&oacute;de muito bem avaliar o que n&atilde;o
+apreciar&aacute;, n&atilde;o
+conseguir&aacute; distinguir um homem a quem o inverno da
+vida tenha gelado o cora&ccedil;&atilde;o. A pr&eacute;dica
+entrava tanto
+na absorp&ccedil;&atilde;o de Fernando, como entrava a mensagem
+do Defensor: as palavras do tio eccoavam-lhe
+aos ouvidos como sons vagos, que se n&atilde;o reproduziam
+no machinismo regulador chamado intelligencia
+e outros nomes, segundo a face por onde &eacute; visto,
+porque sons diversos o impressionavam. As fallas de
+Irene, as inflex&otilde;es, os mais leves gestos preoccupavam-no:
+de uns e outros tirava esperan&ccedil;as agora,
+logo motivos de amofina&ccedil;&atilde;o; traduzia agora
+uma phrase,
+das poucas obtidas de Irene, por um modo que
+o cora&ccedil;&atilde;o trasbordava de alegria, e logo
+parecia-lhe
+que o timbre de voz, um nada sonhado lhe dava
+bem diverso valor; assignalava aquelle dia como
+o mais feliz da vida, e recordando-se do desfecho do
+colloquio, em seguida; entristecia-se e amaldi&ccedil;oava o
+tio, que o fizera descer do galho da arvore e dos
+bra&ccedil;os da felicidade. O pux&atilde;o de orelhas,
+sobretudo,
+doia-lhe, quando o recordava, mais do que lhe doera
+em Miragaya, julgando-se aos olhos da sua namorada
+<span class="pagenum"><a name="p52" id="p52">[52]</a></span>
+deshonrado... mais que deshonrado, ridiculo. Este
+combate entre o desejo e o receio, durou, trazendo
+<a href="#e3">a insomnia</a>, at&eacute; altas
+horas da noite; mas, a final,
+venceu
+o desejo, e a alegria espelhou-se-lhe no rosto.
+Fernando, nas azas da imagina&ccedil;&atilde;o; voava do
+passado
+ao futuro, e deste &aacute;quelle, amontoando as pedras do
+seu castello de felicidade. Deitando-se e apagando a
+luz sorria a todos os sonhos creados; sentia como
+nova vida a inflar-se no peito, e parecia querer affogar-se
+em ar, tanto era o que respirava de momentos
+a momentos. Junto com a imagem da linda filha de
+Jo&atilde;o Ramalho toda a natureza era risonha naquella
+miragem: as arvores reproduziam-se mais verdes, mais
+cheias de perfumes e mais bellas as flores; as aves
+nos cantos diziam todas&#8213;alegria; o c&eacute;u transparente
+deixava adivinhar al&eacute;m do manto azul uma segunda
+vida toda amor. O mancebo vira, bem o podem
+acreditar, bastantes vezes o c&eacute;u, as arvores e as
+flores, mas nunca se lhe tinham affigurado assim: como
+&aacute; estatua de Pygmali&atilde;o, faltava-lhe o fogo no
+peito. A lavareda ate&aacute;ra-se naquelle dia, posto que
+incubasse havia muito.
+<br />
+
+<br />
+
+Fernando Vasques amava Irene desde que a vira,
+e vira-a nessa edade em que se sente um vacuo
+no cora&ccedil;&atilde;o; a si mesmo confess&aacute;ra
+j&aacute; esse amor;
+mas definido, claro, s&oacute; ent&atilde;o
+rebent&aacute;ra: o v&aacute;cuo enchera-se,
+e a trasbordar, e para o encher talvez o amaldi&ccedil;oado
+pux&atilde;o de orelhas, a primeira grande contrariedade,
+entrasse por muito: &laquo;talvez&raquo; dizemos, e podiamos
+dizer &laquo;certamente.&raquo; O amor vive de contrariedades,
+de luctas, diz um phisiologista; e como um malicioso
+accrescentou que por isso s&oacute; elle nas mulheres
+se creava, saibam, acreditem as leitoras que
+todo o homem tem no cora&ccedil;&atilde;o o seu tanto ou quanto
+<span class="pagenum"><a name="p53" id="p53">[53]</a></span>
+de mulher, na mocidade sobretudo, e por isso n&atilde;o
+perde. As mulheres lucram menos com o que <a href="#e4">recebem</a>
+do homem em geral: n&atilde;o as compensamos.
+Como diziamos, por&eacute;m, deixando reflex&otilde;es, a
+correc&ccedil;&atilde;o
+de Gon&ccedil;alo Domingues, e ainda, se quizerem,
+as poucas palavras trocadas entre os dous namorados,
+tinham ateado a lavareda no peito do mancebo,
+e um dos effeitos della f&ocirc;ra, de fazer acordar
+homem quasi quem se deit&aacute;ra crean&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+Fernando, no dia seguinte, n&atilde;o era o mesmo
+rapaz; o tio notou aquella differen&ccedil;a e attribuio-a ao
+jejum da vespera, com a mesma prespicacia com que
+attribuira a causa delle &aacute; sua predica; e para contentar
+o rapaz, levou-o de manh&atilde;, depois de tractar dos seus
+negocios e da politica do dia, a visitar frei Gumeado,
+que o costumava regalar, apesar da sua deser&ccedil;&atilde;o,
+com gulodices, em que n&atilde;o tocou dessa vez, e de
+tarde, a passeio at&eacute; aos Carvalhos do monte, que
+assim se chamava o local onde o cabe&ccedil;udo parodiador
+do marquez de Pombal no Porto, o corregedor
+Almada, edificou um theatro. O effeito destas amabilidades
+&eacute; facil de adivinhar. O namorado de Irene,
+que, voltando com a luz da madrugada &aacute; lucta de
+esperan&ccedil;as e receios, anceava por occasi&atilde;o de ir
+buscar
+um desengano nos olhos da donzella, preso assim
+todo o dia, revoltou-se interiormente contra a
+tutella do tio e desappontou-o com desabrimentos.
+O velho pasmou, benzeu-se, e da compaix&atilde;o, do arrependimento
+da aspereza da vespera cahiu com um
+mau humor verdadeiro, tomando aquelle procedimento
+por <a href="#e5">ingratid&atilde;o,</a>
+protestou que a severidade, que
+at&eacute; ahi lhe ficava nos l&aacute;bios, ia ser posta em
+ac&ccedil;&atilde;o,
+e como assim se revolt&aacute;ra pelo leve castigo de uma
+travessura, elle trataria em primeiro logar de as impedir,
+<span class="pagenum">[54]</span>
+n&atilde;o lhe deixando uma hora para folias, nem
+arredar p&eacute; da loja de pellames; em segundo, se se
+furtasse &aacute; sua vigilancia, de passar al&eacute;m do
+pux&atilde;o de
+orelhas, dando causa verdadeira a amuos.
+<br />
+
+<br />
+
+No outro dia, um domingo, n&atilde;o se esqueceu do
+seu protesto o velho for&ccedil;ureiro, e o desespero do sobrinho
+augmentou, tanto quanto augmentava o receio
+de perder o amor da linda mo&ccedil;a; que, se at&eacute;
+ao dia em que conseguira trocar algumas palavras
+com Irene, muitos se passaram em que n&atilde;o descera
+a Miragaya, sem que tanto se amofinasse, aquella
+meia declara&ccedil;&atilde;o e o desfecho mud&aacute;ra as
+circumstancias:
+daquellas em que se encontrava bem
+podem fazer ideia as leitoras e os leitores, aos quaes
+a memoria ainda conserva vivas as paginas da mocidade.
+<br />
+
+<br />
+
+Depois de jantar,
+por&eacute;m&#8213;refei&ccedil;&atilde;o que se tomava
+nessas epochas, mesmo entre aristocratas,
+desde as onze ao meio dia, exactamente &aacute; hora em
+que hoje almo&ccedil;a muita gente&#8213;quando Gon&ccedil;alo
+Domingues
+executava, dormindo a sesta, uma musica
+que se assemelhava a tempestade em chamin&eacute; na
+combina&ccedil;&atilde;o de assobios e notas de contrabasso,
+appareceu
+Luiz Geraldes, o mais respeitavel individuo
+da burguezia, a procural-o para irem a S. Domingos,
+onde se devia tractar do meio de corresponder
+&aacute; confian&ccedil;a que o mestre de Aviz
+deposit&aacute;ra nos bons
+cidad&atilde;os da terra, assumpto em que o alvitre do
+for&ccedil;ureiro era valioso, por se poder traduzir na linguagem
+sonora das boas dobras de el-rei D. Pedro;
+appareceu Luiz Geraldes e com elle a occasi&atilde;o que
+desde madrugada esperava e provoc&aacute;ra &aacute; sombra de
+todos os pretextos. Mestre Gon&ccedil;alo, pois, a sahir, e
+Fernando
+a procurar na arca o seu melhor gib&atilde;o e o
+<span class="pagenum">[55]</span>
+barrete, a alindar-se, e a bater com a porta da rua
+na cara da velha creada, que lhe recordava as ordens
+dadas pelo tio, avivadas segundos antes, e a trovoada
+que sobre elle e sobre ella descarregaria se ou o
+encontrasse na rua, ou o n&atilde;o achasse em casa, regressando.
+<br />
+
+<br />
+
+O namorado mo&ccedil;o deitou a correr; mas, como
+em certo apologo, a pressa foi causa de vagares. Tal
+era o estado daquella cabe&ccedil;a que tomou o caminho
+seguido por seu tio e o grande amigo do Mestre, e
+ao cabo da rua da Bainharia esbarrava com elles se
+um encontr&atilde;o de um homem d'armas o n&atilde;o obrigasse
+a uma pausa, e na pausa a um espadeiro, que se
+sentava em um desses balc&otilde;es ou mostradores que
+fechavam uma das portas das estreitas e escuras lojas,
+conservando nas ruas mais estreitas e n&atilde;o menos
+escuras os freguezes, n&atilde;o ouvisse dizer para um
+visinho que deitava a cabe&ccedil;a por uma adufa:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;L&aacute; vae em cata de mestre Gon&ccedil;alo, que dobrou
+agora mesmo para o terreiro, o sobrinho... o
+filho de Vasco, que Deus haja.
+<br />
+
+<br />
+
+Fernando, quiz retroceder; por&eacute;m, como o bom
+do espadeiro lhe gritasse que perto ia Gon&ccedil;alo Domingues,
+se o procurava, n&atilde;o teve remedio sen&atilde;o
+responder que ia a recado para as Aldas, e enfiar
+pelo arco de Sant'Anna, tomar caminho pelo lado da
+judearia e descer aos Banhos, onde lhe tolheu o passo
+o personagem que no capitulo antecedente vimos
+no castello de Gaya, surdir por entre o reposteiro.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Vindes de S. Domingos? interrogou elle, pondo-se
+diante do mancebo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Oh! &eacute;s tu Jo&atilde;o Bispo! exclamou Fernando,
+depois de examinar o rosto do individuo, assombrado
+<span class="pagenum">[56]</span>
+por um farto capuz. Ha muitos dias que te n&atilde;o vejo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; verdade, redarguiu o recem-chegado, dando
+pelo nome, que ouvimos j&aacute; da bocca do pae dos velhacos.
+&Eacute; verdade, repetiu; e &aacute; palavra ajuntou um
+profundo suspiro.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Que tens, tu? Est&aacute;s t&atilde;o triste como quando
+nos tinham no convento.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;D'onde nunca dev&ecirc;ra ter sahido! tornou Jo&atilde;o,
+soltando outro suspiro.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Bem mudado est&aacute;s, meu foli&atilde;o, ou &eacute;
+isso momice
+nova?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Antes f&ocirc;ra, Fernando! antes f&ocirc;ra! mas finaram-se
+as alegrias.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mas, ao que parece, a vida n&atilde;o te vae peor.
+Gib&atilde;o novo de barregana... boa adaga! disse o mancebo,
+medindo-o de alto a baixo. <br />
+
+<br />
+
+&#8213;Vesti isto; mas embrulhade em almafega
+respirava
+melhor: o saio e as cal&ccedil;as riam-se por todas as
+costuras, mas eu tambem ria, e agora bem vedes....
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Vejo que est&aacute;s sizudo como eremit&atilde;o, ou
+mestre em leis, &eacute; verdade... Mas onde assim te
+pozeram? d'onde vens?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Do castello.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Do castello? Tomaste l&aacute; moradia e servi&ccedil;o?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ou cousa parecida... que n&atilde;o se pode assim
+dizer de pra&ccedil;a...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Segredo! Ora vejam Jo&atilde;o Bispo feito escriv&atilde;o
+da puridade do alcaide! exclamou o mancebo, sorrindo
+e dando alguns passos para seguir seu caminho.
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o segurou-o por um dos bra&ccedil;os, e encolhendo
+os hombros respondeu &aacute; zombaria:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mofai, que a vez a todos chega. Algum dia haveis
+de querer bem a alguem....
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E por isso te amofinas, quando n&atilde;o tens quem
+<span class="pagenum">[57]</span>
+te empe&ccedil;a de a v&ecirc;r a todo o momento! redarguiu
+Fernando, que se n&atilde;o recordou naquelle instante de
+outro contratempo em amores, sen&atilde;o do que com elle
+se dava.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;V&ecirc;l-a!... v&ecirc;l-a! exclamou, tornando a suspirar o
+vadio. Oh! minha pobre Garifa!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Garifa, repetiu Fernando; Garifa... ora espera...
+Garifa n&atilde;o era aquella rapariga moura que
+vinha ao terreiro vender fructa?
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Bispo fez com a cabe&ccedil;a um aceno affirmativo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Uma rapariga sempre alegre, que na
+prociss&atilde;o
+de <em>Corpus</em> tangia pandeiro e
+dan&ccedil;ava com tanta
+desenvoltura, trazendo o vestido cheio de cascaveis?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Sim.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Que t&atilde;o bem cantava umas cantigas castelhanas?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Sim.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Pois bonita era... pena que fosse moura! E
+tu, Jo&atilde;o...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Eu quero-lhe, quero-lhe como se em noite de
+S. Jo&atilde;o me fizessem feiti&ccedil;o...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E feiti&ccedil;o foi de certo; porque uma moura...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o sei se &eacute; grande peccado o querer-lhe
+bem; mas c&aacute; para mim tenho que n&atilde;o. Ella
+&eacute; moura,
+&eacute;; mas...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; por isso que t&atilde;o magoado te vejo? Querial-a
+christ&atilde;, e casavas.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o &eacute;, n&atilde;o; &eacute; porque m'a
+roubaram!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Roubaram-ta?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Roubaram. Ha uma semana, no sabbado,
+estava eu na encosta do Olival, ao p&eacute; do regato,
+&aacute; espera
+della, e eis que vejo o pae, o velho Humeia, vir
+direito a mim. O pobre homem chorava como uma
+<span class="pagenum">[58]</span>
+crean&ccedil;a; as lagrimas eram como punhos pela cara
+abaixo e os solu&ccedil;os pareciam affog&aacute;l-o; cortava o
+cora&ccedil;&atilde;o!
+disse Jo&atilde;o Bispo, limpando com a manga do
+gib&atilde;o os olhos, sensibilisado ou pela
+recorda&ccedil;&atilde;o da
+scena, que narrava, ou pela desappari&ccedil;&atilde;o de
+Garifa.
+O velho proseguiu, quando p&ocirc;de come&ccedil;ar a fallar, a
+pedir-me a filha, dizendo que lh'a entregasse; que bem
+tinha visto andar-lhe no seguimento, e na vespera
+a encontr&aacute;ra ainda alli mesmo a fallar commigo.
+Olha, Fernando, fiquei como quando me vieram dizer
+que meu pae&#8213;Deus o tenha&#8213;era finado, e jurei
+&aacute;quelle pobre homem que n&atilde;o f&ocirc;ra eu que
+lhe tir&aacute;ra
+a filha... e commigo pela hostia consagrada jurei
+tambem descobrir-lhe a rapariga. O velho acreditou-me,
+e disse-me cousas, que n&atilde;o poderei repetir;
+que n&atilde;o sei bem o que foram; mas que pelo modo
+de as dizer me deram um n&oacute; na garganta: parecia
+que tinha engolido uma ma&ccedil;&atilde; inteira. Procurei
+Garifa.
+Dous homens foram vistos a passar o rio nessa
+noite com uma mulher, me disse um petintal, e corri
+tudo em Gaya; alistei-me no tro&ccedil;o de Pero Bedoido,
+para ter occasi&atilde;o de esquadrinhar todos os cantos do
+castello; mas v&ecirc;l-a... v&ecirc;l-a... ainda a
+n&atilde;o vi! Desconfio,
+por&eacute;m, que l&aacute; esteja, e se l&aacute; estiver,
+ai do
+rausador! Olhai, elles deram-me esta adaga, e eu trago-a
+bem afiada, os ouvidos attentos e os olhos abertos!
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Bispo, ao soltar estas ultimas palavras,
+baixou a voz e um veo sinistro lhe assombrou a fronte;
+por alguns instantes permaneceu calado, e proseguiu
+depois, vendo que o sobrinho de Gon&ccedil;alo Domingues
+parecia atterrado com semelhante confidencia:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A alegria n&atilde;o p&oacute;de durar sempre. Desde que,
+<span class="pagenum">[59]</span>
+morto meu pae, que por for&ccedil;a me queria v&ecirc;r
+tonsurado,
+fiz uma reverencia ao guardi&atilde;o, dei um cascudo
+no porteiro e me fiz velhaco, visto que no convento
+n&atilde;o apprendi officio e de sujei&ccedil;&atilde;o
+estava farto,
+bem vestido, mal vestido, mais trapo, menos trapo,
+barriga mais cheia ou menos, tinha quasi todo o
+santo dia os dentes &aacute; amostra; agora veio um revez...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o &eacute;s s&oacute; tu, Jo&atilde;o, que
+os tens; eu...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Que lhe fizeram, atalhou o vadio; diga, que
+eu dou uma ensinadella, e...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; negocio em que nada podes. N&atilde;o sabes,
+Jo&atilde;o, disse o mancebo, pondo a m&atilde;o no hombro do
+seu antigo companheiro, e chegando-lhe a bocca perto
+do ouvido, como em segredo; n&atilde;o sabes... eu
+tambem quero a uma rapariga como &aacute;s meninas dos
+meus olhos. Oh! &eacute; mais bonita que a tua!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute;, disse Jo&atilde;o Bispo, com um meio sorriso.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Muito mais; por&eacute;m, meu tio, tenho eu para
+mim...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o quer? <br />
+
+<br />
+
+&#8213;Parece-me que n&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; pobre?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Pobre!... repetiu Fernando Vasques, encolhendo
+os hombros.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mestre Gon&ccedil;alo Domingues &eacute; rico, e...
+<br />
+
+<br />
+
+O namorado de Irene, ouvindo o nome do tio,
+lan&ccedil;ou em torno de si os olhos, como se receiasse
+que alli apparecesse; lembrou-se que passava o tempo
+e elle podia, de volta a casa, n&atilde;o o encontrar,
+se fosse grande a demora; recordou a causa do seu
+passeio, e fazendo um gesto de despedida, deu alguns
+passos em direc&ccedil;&atilde;o &aacute; porta da cidade.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Se f&ocirc;r necessario o antigo companheiro das
+<span class="pagenum">[60]</span>
+folias, n&atilde;o o poupeis. Os meus trapos nunca vos fizeram
+voltar o rosto, quando nos encontramos, e hei
+de mostrar que n&atilde;o tendes feito mal, Fernando, disse o
+ex-novi&ccedil;o, estendendo ao mancebo um pulso que n&atilde;o
+era fraco. Ah! exclamou em seguida; n&atilde;o vindes
+do lado de S. Domingos?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Nem pelo caminho vistes o alcaide de Gaya?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E que tens a v&ecirc;r com o senhor alcaide, meu
+velhaco? disse uma voz, que logo Jo&atilde;o Bispo reconheceu
+por ser de Tello Rabaldo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ah! sois v&oacute;s! murmurou o interpellado, visivelmente
+contrariado por aquella appari&ccedil;&atilde;o, em
+quanto Fernando deitava a correr pela rua abaixo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Vosso servo, tornou o pae dos velhacos, tirando
+com ar zombeteiro o seu barrete e segurando
+pelo capuz a Jo&atilde;o Bispo. O fidalgo de certo que
+s&oacute;
+com fidalgos tem tracto e por elles procura; por&eacute;m
+como est&aacute; em behetria, para n&atilde;o haver
+desaguisado,
+pondo-o f&oacute;ra, dou-lhe companhia mais ch&atilde;; mas que
+lhe far&aacute; bom agasalho. Vamos! exclamou mudando
+de tom; para as tercenas j&aacute;!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Senhor Tello, por&eacute;m...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Vais seccar a goella sem proveito.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Senhor Tello, quizera fallar a Ruy Pereira.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Agora &eacute; com Ruy Pereira! Grandes s&atilde;o os
+negocios! Bravo! continuou o pae dos velhacos, medindo
+Jo&atilde;o Bispo de cima abaixo, como minutos antes
+fizera o sobrinho de Gon&ccedil;alo Domingues, e como
+elle admirando a mudan&ccedil;a que na roupa havia; bravo!
+Parece que vamos ter contas graves a ajustar!
+Cortaste bolsa, ou arrombaste a porta a mercador ou
+algibebe para vires assim garrido?
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[61]</span>
+&#8213;Sou b&eacute;steiro do rei.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;B&eacute;steiro do rei desde quando, velhaco? desde
+que fugiste com a filha do velho Humeia?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Est&aacute; excommungado! cr&eacute;do! gritou uma velha
+do pequeno ajuntamento que se fizera &aacute; volta
+dos dous interlocutores. Ter contractos com aquella
+condemnada moura, aquella...!
+<br />
+
+<br />
+
+A mulher disse nome que lhe valeu de Jo&atilde;o
+Bispo um murro, que levava a for&ccedil;a proporcional &aacute;
+raiva que lhe caus&aacute;ra a abelhuda comadre, insultando
+Garifa.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Olhem o maldito! gritaram duas companheiras
+da aggredida. Onde est&aacute; a justi&ccedil;a? Que faz o
+senhor bispo que o n&atilde;o manda a&ccedil;outar bem
+a&ccedil;outado?
+E attreve-se em rosto do senhor Tello...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Calem a bocca, serpentes! berrou o pae dos
+velhacos, fazendo um gesto e meneando o seu bast&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Serpentes? grunhiu a velha, segurando com
+a m&atilde;o os dentes que o socco pozera em vesperas de
+despedida.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Serpentes? pipilou uma das novas,
+esgani&ccedil;ando-se.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Serpentes? resmungou a outra, ferrando os
+pulsos nas ancas.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Serpentes! gritaram, grunhiram e pipitaram
+entre gargalhadas e em todos os tons os garotos que
+j&aacute; embara&ccedil;avam o transito.
+<br />
+
+<br />
+
+Tello Rabaldo viu a sua dignidade compromettida,
+o que n&atilde;o poucas vezes acontecia, e tractou de
+a salvar pelos meios usados ainda hoje em embara&ccedil;os&#8213;pela
+for&ccedil;a; e como &aacute; m&atilde;o n&atilde;o
+tivesse se n&atilde;o a
+sua, foi dessa que se serviu. Segurando sempre o
+namorado da moura pela extremidade do capirote,
+<span class="pagenum">[62]</span>
+fez rodizo com o seu bast&atilde;o; tomando-o pela parte
+superior, e uma escala salteada de &laquo;ais&raquo; e
+&laquo;uis&raquo; sahiu
+dentre a roda de curiosos e curiosas, que augmentava.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O senhor alcaide! Ahi vem Ayres Gon&ccedil;alves!
+gritaram duas vozes quasi ao mesmo tempo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Tolhido sejas tu, maldito! resmungou Jo&atilde;o
+Bispo, lan&ccedil;ado em apuros com semelhante
+appari&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Senhor Pero! senhor Pero Bedoido! berrou o
+pae dos velhacos, para o capit&atilde;o de b&eacute;steiros,
+que, seguindo
+o alcaide de Gaya, se dispunha a embarcar
+para o castello, e desepparecia por um
+dos postigos.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;J&aacute; nada fa&ccedil;o, disse comsigo o
+ex-novi&ccedil;o deitando
+o olho a v&ecirc;r se o capit&atilde;o accudia ao chamamento.
+A pelle corre-me agora grande risco, se
+desconfiam de mim. Com a bocca no pixel n&atilde;o os
+apanho j&aacute;!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ol&eacute;, senhor Pero! sua merc&ecirc; n&atilde;o me
+diz se
+este velhaco tomou servi&ccedil;o? proseguiu Tello, querendo
+arrastar comsigo Jo&atilde;o Bispo, mais talvez para &aacute;
+sombra
+do capit&atilde;o dos b&eacute;steiros se fazer acatar, do que
+pela curiosidade de saber se o namorado de Garifa
+lhe mentira, ao que estava bastante affeito, para regular
+a sua justi&ccedil;a pelo humor em que o apanhavam e
+n&atilde;o por depoimentos e confiss&otilde;es. Em materia de
+confiss&otilde;es
+dava f&eacute; &aacute;s feitas em potro, ou de borzeguins,
+quando estava de boa fei&ccedil;&atilde;o, e felizmente
+n&atilde;o
+era isto raro.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Grande velhaco! continuou, dirigindo a palavra
+ao seu prisioneiro; ainda ha pouco n&atilde;o tinhas
+que dizer a todos os fidalgos? Mais depressa se pilha
+um mentiroso do que um c&ocirc;xo.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[63]</span>
+Pero Bedoido, ouvindo a voz do pae dos velhacos,
+par&aacute;ra junto do postigo, que dava sobre a
+margem do rio, e retorcendo o bigode piscava os
+olhos para concentrar os raios visuaes afim de melhor
+reconhecer quem o chamava. Ayres de Figueiredo par&aacute;ra
+igualmente.
+<br />
+
+<br />
+
+Quem n&atilde;o deve n&atilde;o teme. Jo&atilde;o Bispo
+sentia
+os seus arripios pelos lombos, porque um pensamento,
+que o leitor experto, e que de certo se
+recorda do dialogo apanhado atraz do reposteiro, adivinhar&aacute;,
+o punha, na consciencia, em hostilidade com
+o nobre alcaide, e se na presen&ccedil;a delle Tello Rabaldo
+de novo se referisse &aacute; entrevista que pretendia ter
+com o tio de Nuno Alvares, a vida corria-lhe grave
+risco. Jo&atilde;o n&atilde;o tinha, por&eacute;m, cursado
+em v&atilde;o os estudos
+em S. Francisco e a eschola pratica de velhacarias
+dos terreiros, pra&ccedil;as e bitesgas da cidade da Virgem, para
+n&atilde;o achar um expediente bom ou mau com que se
+sahisse de apuros, momentaneamente que fosse. Tello
+segurava-o, tendo-o quasi esganado pela extremidade
+do capirote, e o cabe&ccedil;&atilde;o deste fechava no peito e
+garganta por meio de quatro grossos bot&otilde;es. Desabotoado
+estava livre.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Senhor Tello, senhor D. Tello?! murmurou o
+rapaz, levando as m&atilde;os j&aacute; aos bot&otilde;es,
+e esgotando
+no submisso, no plangente da voz, e naquelle &laquo;dom&raquo;,
+o ultimo recurso oratorio.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ah! perro, velhaco! Eu te...
+<br />
+
+<br />
+
+O pae dos velhacos n&atilde;o concluiu a phrase: um
+cascudo que preparava como paga da nobilita&ccedil;&atilde;o
+dada
+ao seu nome, deu-o no ar, e com o costado no
+mesmo momento apalpou o ch&atilde;o, depois de abalroar
+com as canellas de alguns curiosos.
+<br />
+
+<br />
+
+Um c&ocirc;ro formado de um unisono de
+gargalhadas
+<span class="pagenum">[64]</span>
+e de gritos ensurdeceu os visinhos que enchiam
+as janellas e atulhavam as portas. As gargalhadas provocara-as
+o desastre de Tello; os gritos soltaram-nos os
+que abriam caminho a Jo&atilde;o Bispo. O amante de Garifa
+deixando o capirote na m&atilde;o do pae dos velhacos,
+que perdera o equilibrio, mettera m&atilde;os &aacute; adaga
+e corria na direc&ccedil;&atilde;o da Ferraria.
+<br />
+
+<br />
+
+Ao passar em frente do postigo um acontiado da
+behetria tomou um virote para lhe embargar o passo.
+<br />
+
+<br />
+
+Ayres Gon&ccedil;alves, ao mesmo tempo que Pero Bedoido,
+reconhecendo no fugitivo um dos seus homens,
+lhe sustava o arremesso, gritou em voz bem alta para
+chegar aos ouvidos de Jo&atilde;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Perro, vill&atilde;o, se tocas n'um dos meus homens!...
+<br />
+
+<br />
+
+E a m&atilde;o do fidalgo pousou como complemento
+de phrase no punho do estoque.
+<br />
+
+<br />
+
+O acontiado fez uma careta de despeito, baixou
+o virote, e quando o fidalgo voltou costas, deu com
+elle com uma for&ccedil;a tal d'encontro &aacute; parede, que o
+fez voar em hastilhas, resmungando:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Perros e vill&otilde;es... perros e vill&otilde;es! A nossa
+vez ha de chegar, traidores, scismaticos!
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>V.</h3>
+
+<h3>
+Irene.
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="quote0 intro">
+Ma son, mentre ella piange, i suoi lamenti<br />
+
+Rotti da un chiaro suon oh'a lei ne viene...
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="signature"><span class="smallcaps">tasso</span>.
+Ger. lib.
+cant. VII.
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+E a linda Irene, a filha de Jo&atilde;o Ramalho?
+<br />
+
+<br />
+
+Irene, das primeiras fallas trocadas com Fernando,
+colheu um resultado quasi igual ao que este
+obtivera. A impress&atilde;o primeira foi a da alegria. Deslembrada
+da appari&ccedil;&atilde;o de mestre Gon&ccedil;alo, quando
+foi ao encontro da cuvilheira, que a cham&aacute;ra, a physionomia
+<span class="pagenum">[66]</span>
+illumin&aacute;ra-se, reproduzindo toda a felicidade
+que l&aacute; ia por dentro naquelle cora&ccedil;&atilde;o.
+&Aacute; pergunta
+que lhe fizeram, mas n&atilde;o ouviu, respondeu
+com um abra&ccedil;o na velha, que, mal affeita, pela sua
+rabuje, a taes carinhos, abriu grandes olhos, e o
+espanto desta subiu ainda, levando-a a benzer-se,
+quando viu que, sem lhe prestar atten&ccedil;&atilde;o, a
+mo&ccedil;a
+come&ccedil;ou a entoar uma copla de amores, desses cavalheirescos
+amores da epocha. Aquella alma de virgem
+saudava o enfloramento da nobre paix&atilde;o que
+no seio lhe germin&aacute;ra, e a velha, como Gon&ccedil;alo
+Domingues
+a respeito de Fernando, nem se quer pensou
+que nessa exalta&ccedil;&atilde;o entrasse por alguma cousa
+o mancebo, de quem j&aacute; havia notado os passeios
+em frente da casa&#8213;o que a lev&aacute;ra a fazer-lhe carrancas
+de sobrecenho capazes de affugentar qualquer
+outro que n&atilde;o fosse um namorado.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A menina Irene namorar! a menina que depois
+da morte da nossa ama tenho creado com todos
+os cuidados?! pensava ella com os seus bot&otilde;es,
+quando lhe vinham desconfian&ccedil;as, ou as visinhas,
+pela s&eacute;sta, no cavaco quotidiano que tinha depois
+de arranjados prateis, agomias, sart&atilde;, pucaros
+e mais aprestes de cosinha, notavam o volver d'olhos
+de um ou outro alindado da terra.
+<br />
+
+<br />
+
+A tia Genoveva tinha de si para si que o cora&ccedil;&atilde;o
+de Irene se abriria s&oacute; quando ella, ou o senhor
+Jo&atilde;o Ramalho muito bem quizessem.
+<br />
+
+<br />
+
+As tias Genovevas ainda hoje n&atilde;o s&atilde;o raras.
+<br />
+
+<br />
+
+A linda mo&ccedil;a, quando a deixou a cuvilheira, insensivelmente
+come&ccedil;ou a reflectir nas palavras de
+Fernando, e pouco a pouco no semblante e no
+cora&ccedil;&atilde;o
+come&ccedil;ou a tristeza a vencer. A pobre n&atilde;o sabia
+que o amor se n&atilde;o traduz bem em palavras, e
+<span class="pagenum">[67]</span>
+esmorecera pensando que podia n&atilde;o ser amada, ao
+passo que bem sentia definir-se-lhe no seio a paix&atilde;o;
+e quando, noite cabida, a velha trouxe para
+o quarto de trabalho um velador do qual pendia um
+gra&uacute;do candil, n&atilde;o respondeu &aacute;s
+&laquo;boas noites&raquo; dadas,
+possuida de sentimento bem diverso do que horas
+antes a distrahira. Ainda mais: a tia Genoveva, ao
+espiar a roca e terminar a ultima ave-maria da coroa
+que todas as noites rezava &aacute; Senhora da Silva, para a
+ter por sua intercessora; a tia Genoveva notou uma
+lagrima a balou&ccedil;ar-se nas cilias da linda joven, como
+aljofre matutino nos estames de uma flor.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Porque chora, menina? perguntou a velha
+criada tomando-lhe o rosto entre as m&atilde;os, para melhor
+se certificar de que n&atilde;o era illus&atilde;o sua aquelle
+pranto.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Chorar... eu? murmurou Irene, limpando os
+olhos.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Sim, a menina. Ent&atilde;o n&atilde;o veem o espanto
+que faz?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; que eu n&atilde;o choro... Porque havia de chorar?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Porque? Ora sei eu o porque?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Nem eu...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Credo! Anjo bento da minha guarda! Feiti&ccedil;o
+por certo lhe fizeram! De tarde a rir e a cantar
+como uma louquinha, e a fazer-me momices carendeiras;
+agora a choramingar sem que nem para
+que! &Eacute; quebranto, menina... &eacute;
+feiti&ccedil;aria; e bem far&aacute;
+em p&ocirc;r esta noite debaixo da almadraquexa um ramo
+de arruda.
+<br />
+
+<br />
+
+A velha atinava: que maior feiti&ccedil;aria que a do amor
+n&atilde;o p&oacute;de haver. S&oacute; elle tem o
+privilegio de dar a uma palavra ecco que, por vezes,
+dura at&eacute; com elle se casar j&aacute; bem fraco
+o das ultimas preces: de perpetuar
+<span class="pagenum"><a name="p68" id="p68">[68]</a></span>
+uma imagem ante os olhos at&eacute; que os cerre o
+frio osculo da morte.
+<br />
+
+<br />
+
+Pranto e risos, succedendo-se r&aacute;pidamente sem
+explica&ccedil;&atilde;o para quem os v&ecirc;, sem
+explica&ccedil;&atilde;o mesmo
+para quem os sente humedecer as faces, ou descerrar
+os l&aacute;bios, s&atilde;o em geral o resultado vulgar
+do toque da vara do grande feiticeiro: emquanto o
+feiti&ccedil;o conserva toda a for&ccedil;a, o pranto
+&eacute; como os
+chuveiros de Maio, que veem como para fazer <a href="#e6">ressaltar</a>
+o sol que lhes succede, ou como os orvalhos de
+Junho, que refrigeram as flores; quando o feiticeiro
+se ausenta, o riso &eacute; como o luar em noites de Fevereiro,
+quando tudo &eacute; silencio: contrista como elle,&middot;
+traz melancholia. As lagrimas da linda filha de Jo&atilde;o
+Ramalho eram chuveiros de Maio. Correndo &aacute; vontade
+sobre o travesseiro, em que n&atilde;o pozera a arruda,
+n&atilde;o lhe imprimiam nas faces a aridez; regavam,
+permitta-se mais esta imagem entre tantas, o
+amor que, como no sobrinho de Gon&ccedil;alo Domingues,
+repetimos, se definira naquella tarde.
+<br />
+
+<br />
+
+O amor na juventude, no sexo que chamamos fragil,
+porque n&oacute;s, que nos dobramos a todo o momento
+a seus p&eacute;s, lhe esmigalhamos o cora&ccedil;&atilde;o
+em
+um circulo de ferro chamado positivismo, realidade
+e conveniencia, quasi sempre nasce entre lagrimas,
+lagrimas das que chorava Irene quando repetia baixinho,
+comsigo, o nome de Fernando; lagrimas
+que rebentam espa&ccedil;adas, se demoram nas palpebras,
+e descem lentas pelo rosto.
+<br />
+
+<br />
+
+No outro dia muitas vezes correu a mo&ccedil;a namorada
+&aacute; janella da praia, muitas &aacute; que dava para
+o lado do monte, e impacientou-se e entristeceu-se
+quando viu cahir a tarde sem apparecer o sobrinho
+do for&ccedil;ureiro; no domingo, durante a missa do dia,
+<span class="pagenum">[69]</span>
+na velha igreja de S. Pedro, fez cochichar umas poucas
+de comadres, que lhe ficavam na rectaguarda,
+tantas foram as vezes que voltou, durante o officio,
+a cabe&ccedil;a para o lado da porta, e ainda mais se impacientou
+e entristeceu quando, feitas ante todas as
+imagens as esta&ccedil;&otilde;es que eram da
+devo&ccedil;&atilde;o da senhora
+Genoveva, regressou a casa sem v&ecirc;r uma sombra
+rastejando ao lado della (que olhar face a face, de
+perto, para Fernando, nunca a gentil menina olhara)
+sem ouvir certas passadas, que distinguia de todas
+as outras e lhe causavam uma impress&atilde;o nervosa
+agradavel.
+<br />
+
+<br />
+
+Neste descontentamento, sentada na varanda, que
+tentamos j&aacute; descrever, prestava
+atten&ccedil;&atilde;o a todos os
+ruidos, quando a velha criada com quem Jo&atilde;o Ramalho
+havia conferenciado depois de jantar, arrastando
+um tamborete de pau e umas contas com que
+se entretinha todas as vezes que n&atilde;o trabalhava ou
+dava &aacute; lingua, lhe veio fazer companhia. Genoveva
+engorolou um <em>pater</em> e tossiu;
+engorolou outro <em>pater</em>
+e tossiu outra vez; terceiro <em>pater</em> a
+meio e mais
+prolongada foi a tosse, e, ao findar, a esta juntou um
+arrastar de tamborete e um suspiro. Era evidente
+que rebentava por fallar; por&eacute;m a sua joven ama estava
+bastante distrahida para notar todos aquelles
+preparativos oratorios. A velha ainda se resignou a
+fazer passar mais algumas contas, a mudar o tamborete
+da direita para a esquerda e a passar na
+tosse do <em>piano</em> ao
+<em>forte</em>, do
+<em>moderato</em> ao
+<em>vivace</em> e at&eacute;
+&aacute; <em>furia</em>; mas vendo que
+era trabalho perdido, pousou
+o rosario, puchou a touca, crusou os bra&ccedil;os sobre
+a barriga e exclamou:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A menina que tem?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Nada, respondeu Irene, olhando pela abertura
+<span class="pagenum">[70]</span>
+da zelozia para o c&eacute;u, que mostrava um azul
+soberbo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Nada! Ent&atilde;o eu estou cega; ha dias que n&atilde;o
+sei o que tem... anda triste!...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Triste? atalhou Irene, com um desses sorrisos,
+que se denunciam como contrafeitos. Ainda
+esta manh&atilde; me disse que andava com a cabe&ccedil;a no
+ar, e achou que ria como louca... n&atilde;o sei quando...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Sim, sim: veja se me engana com esses risinhos
+s&ecirc;ccos, menina. Por mais que fa&ccedil;a n&atilde;o
+me
+faz acreditar que n&atilde;o est&aacute; magoada. Eu desconfio
+que...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;De que? interrogou Irene, fazendo-se vermelha,
+julgando ser do sentimento dominante no seu
+cora&ccedil;&atilde;o que lhe iam fallar.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Nada, nada. O senhor seu pae n&atilde;o lhe fallou...
+n&atilde;o lhe deu a entender...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Meu pae, tornou a joven sobresaltada, n&atilde;o me
+disse cousa alguma...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; que... pensei...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O que, Genoveva? Que tinha meu pae a dizer-me?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Nada, nada; respondeu a velha, recome&ccedil;ando
+de novo o rozario.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o, alguma cousa era! Diga, diga, Genoveva;
+meu pae est&aacute; de mal commigo?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;De mal! elle que n&atilde;o v&ecirc; outra cousa, que
+a traz nas palminhas das m&atilde;os, apesar daquelle modo
+assim de poucas palavras?! Se se amofina &eacute;...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Acabe! supplicou a joven.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Triste j&aacute; est&aacute; a menina; para que a entristecer
+mais? disse a criada mastigando.
+&#8213;N&atilde;o me quer entristecer mais? Pois que ha?
+<span class="pagenum">[71]</span>
+exclamou a filha de Jo&atilde;o Ramalho, erguendo-se com
+a anciedade pintada no rosto.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute;... nada, nada, redarguiu a velha. E baixo
+accrescentou, tornando a carregar a roca:&#8213;Cala-te, bocca.
+Ora, n&atilde;o ia eu j&aacute; dizer tudo?
+<br />
+
+<br />
+
+O &aacute;parte da cuvilheira, por uma mania que tinha
+de sempre dar &aacute; lingua para que a ouvissem,
+pareceu-se com todos os &aacute;partes do theatro, e mais
+anciosa ficou Irene.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Jesus, Genoveva! Succedeu alguma cousa?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Nada: &eacute; que...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Acabe por uma vez.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Como tem de ser... por&eacute;m, olhe, triste j&aacute; a
+menina est&aacute;, e quanto mais tarde...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Est&aacute; a fazer-me mal, minha boa Genoveva!
+exclamou Irene, juntando e erguendo as m&atilde;os em
+ac&ccedil;&atilde;o de supplica.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ora vejam! mal &eacute; que eu lhe n&atilde;o queria
+fazer; mas visto que teima... sempre lhe digo: seu pae
+embarca por estes dias.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Embarca... disse a joven tornando a sentar-se.
+Julguei que fosse outra cousa. N&atilde;o estou j&aacute;
+affeita
+a v&ecirc;r partir meu pae, todos os annos, uma, duas
+e tres vezes para essas terras de Christo? Se pod&eacute;sse
+fazer com que n&atilde;o andasse sobre aguas do mar,
+exposto;
+por&eacute;m...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ao mar, atalhou Genoveva, j&aacute; o senhor
+Jo&atilde;o
+Ramalho est&aacute; affeito. Parece que tem todos os santos
+e santas por elle... e merece-o, que n&atilde;o ha
+tempestade
+que mal lhe fa&ccedil;a; e mais dizem que s&atilde;o bem
+m&aacute;s
+as da Inglaterra e Flandres! Mas n&atilde;o &eacute; agora
+s&oacute; o mar...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ent&atilde;o que mais &eacute;, Genoveva?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute;... que... que volta a Lisboa... e...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Jesus! agora... que anda a guerra por l&aacute;!...
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[72]</span>
+&#8213;Deus ha de querer que nenhum mal lhe venha,
+e eu hei-de recommendal-o muito &aacute; Senhora
+da Silva e &aacute; Senhora do Amparo, as duas santas de
+mais valimento que ha no c&eacute;o... de maiores milagres
+pelo menos... ao Senhor S. Pedro, advogado da gente
+do mar, e &aacute;s almas milagrosas! redarguiu a senhora
+Genoveva, fazendo uma especie de mesura a
+cada nome dos beatos patronos que proferia.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Bem me dizia o cora&ccedil;&atilde;o que destas
+n&aacute;us e
+gal&eacute;s chegadas me viria mal, disse Irene recordando-se
+naquelle instante das palavras de Fernando.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mal... mal? Tenha f&eacute; em Deus, que &eacute; grande
+peccado descoro&ccedil;oar assim. O senhor Jo&atilde;o Ramalho,
+seu pae, se anda cuidadoso &eacute; por si, menina Irene: como
+est&aacute; j&aacute; uma mo&ccedil;a... eu c&aacute;
+me entendo... quer
+deixal-a bem amparada, em logar seguro; que nestes
+tempos revoltos, e nos que o n&atilde;o s&atilde;o, todo o
+cuidado &eacute; pouco. Como n&atilde;o vae lobo a redil nem
+raposa
+a gallinheiro sen&atilde;o quando acha a porta mal
+cerrada e n&atilde;o ha mastins para a&ccedil;ular, queria
+deixal-a
+em abrigo seguro, e lembrou-se de um convento.
+J&aacute; dei recado para uma prima, que tenho, sergente
+em Entre-Rios, a v&ecirc;r como poderei ir fazer companhia
+&aacute; menina...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ent&atilde;o, Genoveva, vamos para t&atilde;o longe! exclamou
+a linda mo&ccedil;a com voz magoada.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ainda n&atilde;o &eacute; de certo. &Eacute; precisa
+licen&ccedil;a do senhor
+D. Jo&atilde;o Affonso, e n&atilde;o sei que outras
+requestas...
+e como n&atilde;o &eacute; para j&aacute; o caso... por
+estes dias...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Genoveva! Genoveva! gritou do andar terreo
+o senhor Jo&atilde;o Ramalho, fazendo estacar a falladora
+cuvilheira, que incetando um Padre-nosso em um tom
+de voz que, sem offensa da boa da beata, se podia
+comparar ao rosnar de um c&atilde;o, desceu as escadas.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[73]</span>
+&#8213;Virgem santa, valei-me! murmurou a joven
+fechando uma na outra as m&atilde;os, brancas e delicadas,
+e deixando sobre o seio pender o rosto, que n&atilde;o
+desfeiavam os assomos de tristeza.
+<br />
+
+<br />
+
+Irene assim permaneceu longo tempo, e quando
+ergueu os olhos orlava-lhe as palpebras uma c&ocirc;r
+mais rosada que de costume, e as lagrimas borbulhavam
+mais intensas do que as trazidas pela desconfian&ccedil;a
+de que Fernando Vasques n&atilde;o correspondesse
+ao affecto por ella consagrado. Eram mais intensas,
+porque junto com as arrancadas pelo amor
+filial&#8213;pois bemqueria a joven a seu pae, com um
+extremo inexplicavel, attenta a rudesa apparente do
+piloto, se &eacute; que uma for&ccedil;a occulta a
+n&atilde;o fazia corresponder
+ao sentimento por elle votado ao unico ente
+que na terra lhe restava, &aacute; imagem de uma esposa
+adorada com o fogo que empregam essas almas reconcentradas,
+os homens que jogam a vida sobre o
+mais terrivel dos elementos, e passam dias e noites
+seguidas a soletrar no livro da natureza a pagina do
+infinito, em circulo fachado por
+c&eacute;o e mar;&#8213;junto com
+as saudades e receios por seu pae, se ligavam penas
+avultadas pela sua imagina&ccedil;&atilde;o,
+suppondo-se j&aacute; separada,
+longe de Fernando, clausurada para a vida talvez;
+que no amor tudo &eacute; coado por um prisma que engrandece
+e multiplica os objectos.
+<br />
+
+<br />
+
+&Aacute;s lagrimas do travesso mo&ccedil;o succedera a
+resolu&ccedil;&atilde;o:
+Fernando fizera-se homem; &aacute;s lagrimas de
+Irene succedia o anniquilamento: p&oacute;de-se dizer tambem
+que se fizera mulher a pobre menina porque:
+a coroa do seu sexo &eacute; formada por essas perolas nascidas
+no cora&ccedil;&atilde;o, perolas que resgatam a propria culpa
+e a alheia. Para o resgate da humanidade Deus,
+tornado homem, deu o seu sangue; para completar
+<span class="pagenum">[74]</span>
+essa regenera&ccedil;&atilde;o, para abrir &aacute;s
+mulheres as portas da
+vida, inflar-lhe no seio uma alma, verteu lagrimas
+uma virgem.
+<br />
+
+<br />
+
+Irene chorava pela segunda vez, depois que se
+apoder&aacute;ra do seu cora&ccedil;&atilde;o a imagem de
+Fernando,
+quando lhe veio ferir os ouvidos um som distante
+e confuso; confuso porque era grande o arruido
+que petintaes, espadeleiros e galeotes faziam na
+praia, sanctificando o dia do descan&ccedil;o com
+liba&ccedil;&otilde;es
+frequentes de verde e maduro, cidra e outras bebidas.
+Era o som de um toque de ca&ccedil;a, assobiado por
+um valente folego. A mo&ccedil;a estremeceu, quando se
+lhe afigurou reconhecel-o; estremeceu e a alegria repelliu
+naquella fronte as nuvens de tristeza com tanta
+ou mais rapidez de que nos leva a dar uma ideia
+dessa mudan&ccedil;a. Ergueu-se e correu ao extremo da
+varanda, encostou &aacute; adufa o ouvido attento a linda
+namorada; mas cal&aacute;ra-se a marcha, e os berros da
+chusma iam em um <em>rinforzando</em>
+prodigioso. Alguns
+minutos de anciedade assim passou, com o seio a arfar,
+os l&aacute;bios meio-abertos, deixando v&ecirc;r uma enfiada
+de dentes alvos como o fructo das camarinhas,
+com os olhos brilhantes, fixos, at&eacute; que com novo sibilo
+rompeu um grito da joven, um grito de alegria, e
+deixando a varanda subiu a assomar a cabe&ccedil;a por
+aquella historiada janella das flores, onde com ella
+travamos conhecimento.
+<br />
+
+<br />
+
+A cabe&ccedil;a appareceu e desappareceu logo.
+<br />
+
+<br />
+
+Irene soltou outro grito, porque os seus olhos
+encontraram os de seu pae, irados, em vez de outros
+que de certo procurava carinhosos.
+<br />
+
+<br />
+
+Junto com o sibilo, com os gritos, com o bater
+das adufas da varanda e portadas da janella&#8213;junto,
+<span class="pagenum">[75]</span>
+se p&oacute;de dizer, tal foi a rapidez da
+success&atilde;o&#8213;ouviu-se
+um grande fragor.
+<br />
+
+<br />
+
+A arvore do cercado oscill&aacute;ra e o muro da quelha
+f&ocirc;ra a terra.
+<br />
+
+<br />
+
+A filha de Jo&atilde;o Ramalho deixou-se cahir no estrado
+em que costumava costurar; o piloto soltou
+uma praga, e a cabe&ccedil;a da tia Genoveva, que da cosinha
+presence&aacute;ra parte desta scena, appareceu de
+bocca aberta no quarto da donzella, persignando-se
+e abanando a cabe&ccedil;a como um manequim, pintando
+em toda esta gesticula&ccedil;&atilde;o o seu pasmo, e
+terminando
+por entre dentes com esta phrase, que havia de
+ser, como j&aacute; f&ocirc;ra, repetida milhares de vezes:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ora fiem-se l&aacute; nas innocencias deste tempo!
+O mundo vai perdido!
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>VI.</h3>
+
+<h3>
+Causa publica e cousas particulares.
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="quote2 intro">
+A nenhu era ouvida rez&atilde;o,
+nem escuza, que por sua parte
+dar quizesse, mas como hum
+falava dizendo: que foh&atilde;o he
+delles; n&atilde;o havia cousa que
+lhe desse vida, nem justi&ccedil;a
+que o livrasse das suas m&atilde;os:
+e isto era especialmente contra
+os melhores e mais honrados,
+que havia nos logares, dos
+quaes muitos foram postos em
+grande caj&atilde;o de morte...
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="signature"><span class="smallcaps">fern&atilde;o
+lopes.</span>&#8213;Chronic.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Em quanto Irene solu&ccedil;ava, Tello Rabaldo vociferava,
+sacudindo a poeira do gib&atilde;o, e Jo&atilde;o Bispo
+evitava na r&ecirc;de de b&ecirc;ccos e escadas do bairro a
+sanha
+do b&eacute;steiro e de alguns mesteiraes, que o suppunham
+r&eacute;o de crime grave, ou queriam nelle desacatar
+o alcaide, que viam, como a grande parte
+<span class="pagenum">[78]</span>
+dos nobres, com maus olhos, no terreiro de S. Domingos
+havia grande ajuntamento de povo, e na portaria
+do convento e claustro da igreja se reuniam os
+homens bons da cidade, burguezes e
+cavalleiros; que
+a ordena&ccedil;&atilde;o de D. Diniz era desattendida durante
+aquelles transtornos, como o tinha sido por vezes,
+e depois havia de ser.
+<br />
+
+<br />
+
+Ruy Pereira e a edilidade portuense combinavam
+os meios, j&aacute; o sabemos por via de Luiz Giraldes,
+de corresponder ao appello do Mestre, e corriam
+as cousas &aacute;s mil maravilhas. Affonso Eannes
+Pateiro e Alvaro da Veiga, bastante compromettidos
+com a acclama&ccedil;&atilde;o do novo governo, juntamente com
+o rico mercador que f&ocirc;ra despertar Gon&ccedil;alo
+Domingues
+sopravam em pequenos conciliabulos o enthusiasmo
+de amigos e conhecidos, e n&atilde;o perdiam o tempo.
+Os periodos mais ou menos bombasticos, mais
+ou menos curtos, tinham, depois de um ou outro commento,
+como ponto, a desloca&ccedil;&atilde;o de dous ou tres
+individuos,
+que se dirigiam a uma mesa cercada de tamboretes
+e cadeiras, onde dous homens vestidos de
+negro, um redondo, de nariz globuloso e vermelho,
+outro c&ocirc;r de pergaminho e de fei&ccedil;&otilde;es
+angulares, se
+viam ao par de alguns vereadores, afagando este
+com a rama da penna os l&aacute;bios ressecidos, abanando-se
+aquelle com um caderno de papel. Um dos
+patriotas segredava tres palavras ou quatro ao ouvido
+de um dos alvazires; os burguezes diziam outras
+tantas; os homens negros tra&ccedil;avam algumas letras
+e algarismos, que liam em voz alta, e de tudo
+isto sahia, p&oacute;de-se dizer, a Milheira, a Estrella
+e a Sangrenta, o levantamento do cerco e bloqueio
+de Lisboa, a dynastia de Aviz e&#8213;quem sabe?&#8213;a
+salva&ccedil;&atilde;o
+e civilisa&ccedil;&atilde;o da Europa. Se julgam paradoxal
+<span class="pagenum">[79]</span>
+a ultima parte, provem como sem os donativos daquelles
+bons homens se accudiria ao Mestre; se este
+n&atilde;o se veria obrigado a tornar real o fingido embarque
+para Inglaterra; se, simples Jo&atilde;o Pires, casaria
+com a exemplar filha de Jo&atilde;o de Ghaunt; se haveria
+quem formasse um viveiro de navegantes t&atilde;o destemidos,
+arrojados, para devassar a costa d'Africa
+e penetrar na Asia pelo Oceano, como o infante D.
+Henrique; como sem o c&oacute;rte dado naquellas paragens
+ao poder ottomano, se lhe sustaria a carreira
+victoriosa dos seus estandartes, que chegaram a tremular
+junto dos muros de Vienna, na costa da Italia,
+na Hungria e na Bohemia, que pendiam bafejados
+pelas t&eacute;pidas aragens de Aldjesireh, da Arabia, e
+a&ccedil;outavam
+os ares impellidos pelos ventos gelados na Polonia,
+se espalhavam nas aguas do Mediterraneo, no
+mar-Negro, no golfo Persico e no Oceano, e acobertavam
+os recebedores de pareas at&eacute; ao Dekan.
+<br />
+
+<br />
+
+Se algumas circumstancias concorreram tambem
+para este gigante resultado foram as narradas nos
+antecedentes capitulos, desde as dos namoros de Irene
+com Fernando e de Garifa com Jo&atilde;o Bispo, at&eacute;
+&aacute; daquelle
+virote quebrado.
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o cuidem que um escriptor consciencioso escreva
+uma linha s&oacute; com o fim de encher papel; que
+invente um episodio por seu alto recreio: tudo aqui
+vem a pello desde o mais somenos facto ao de mais
+vulto, e os leitores phylosophos, que esquadrinham
+os fins moraes, procuram o succo de todo o livro e
+folheto, farejam uma ideia em cada letra impressa,
+achar&atilde;o neste romance demonstra&ccedil;&otilde;es de
+que grandes
+successos, que pasmam do mundo, s&atilde;o como os
+nev&otilde;es: um floco de neve, que rola do cimo dos Alpes,
+ao chegar &aacute;s fraldas destroe casas e plantios;
+<span class="pagenum">[80]</span>
+uns bigodes cortados em 1152, ainda no seculo em
+que viviam estes nossos heroes, destruia cidades, assim
+como as bagatellas acima apontadas salvavam
+este canto da terra de ser hoje em dia... um pachalik
+ou cousa peior.
+<br />
+
+<br />
+
+E Jo&atilde;o Bispo, Fernando Vasques, e at&eacute; para
+muita gente Jo&atilde;o Ramalho, Affonso Eannes, Alvaro
+da Veiga, Domingos Pires das Eiras, Luiz Giraldes e
+outros com quem o leitor tomar&aacute; ainda conhecimento,
+estavam no olvido?!
+<br />
+
+<br />
+
+Lamentemos esta m&aacute; sina de ingratid&atilde;o pelos
+grandes homens... que em vida n&atilde;o tiverem condados
+d'Ourem, nem terras do Alfeite; lamentemos, e vamos
+de novo para S. Domingos.
+<br />
+
+<br />
+
+Ao passo que os burguezes davam que fazer a
+Gon&ccedil;alo Pires, escriv&atilde;o de chancellaria e ao seu
+companheiro,
+na casa do capitulo, bocejavam os poucos
+cavalleiros que tinham adherido, como hoje se diz, ao
+pronunciamento do Porto, por vontade, ou circumstancias.
+Dissemos que bocejavam; pois movimento,
+ac&ccedil;&atilde;o em poucos se notava, a n&atilde;o ser
+um alguns dos
+recem-chegados de Lisboa, dos quaes o mestre soubera
+captar a benevolencia com aquella largueza
+de m&atilde;os, que o deixaria rei das estradas de Portugal,
+se n&atilde;o fossem depois as garnachas, de que
+j&aacute; se queixavam ent&atilde;o, e em alguns pobres
+infan&ccedil;&otilde;es
+e simples cavalleiros. Ruy Pereira reunia
+em volta de si, os dous sobrinhos do rei de Castella,
+D. Pedro e Affonso Henriques de Transtamara,
+misser Manoel Pessanha, Jo&atilde;o Rodrigues Guaday,
+Ayres Pires de Cam&otilde;es, Affonso Furtado e os
+irm&atilde;os
+d'Alvalade, e em uma das extremidades da quadra segredavam,
+ou antes fallavam quasi por signaes o alcaide
+de Monsaraz, Affonso Darga, o irlandez Down-Patrick
+<span class="pagenum">[81]</span>
+e o velho fidalgo de Riba-Tua. Do resto, faziam
+uns retinir pelo sobrado os acicates dos seus sapatos
+de ferro, que vinham em traje de guerra n&atilde;o poucos,
+outros descan&ccedil;avam nas grandes cadeiras de espaldar,
+que os reverendos para alli tinham feito conduzir.
+De tempos a tempos um pagem ou um leigo entravam
+com recado para o tio do condestavel, ou este
+fallava a alguns dos seus homens, que estanceavam &aacute;
+porta, e elles partiam &aacute;s carreiras para diversos pontos.
+<br />
+
+<br />
+
+Ruy Pereira tractava de aproveitar o tempo o melhor
+possivel, como bom cabo de guerra e bom politico,
+depois de ter conferenciado com os influentes
+da cidade, conferencia que d&eacute;ra em resultado decidir-se
+que se chamasse ao partido do defensor o conde
+Gon&ccedil;alo, combina&ccedil;&atilde;o que n&atilde;o
+era mais do que
+uma lisonja aos bons burguezes: pois, soprada pelo
+mensageiro de sua senhoria a Domingos Pires, e por
+este appresentada, f&ocirc;ra j&aacute; decidida nos
+pa&ccedil;os de S.
+Martinho. D. Jo&atilde;o resolvera comprar o conde com os
+bens pertencentes &aacute; irm&atilde; desthronada, bens que
+j&aacute;
+tinham servido de engodo a outros. O escolhido para o
+ajuste do bals&atilde;o do nobre senhor, de quem tinham
+sido j&aacute; indagadas as ambi&ccedil;&otilde;es&#8213;que se
+iam encontrar
+com as de Nuno Alvares, felizmente bastante patriota
+para ceder &aacute;s circumstancias;&#8213;o escolhido f&ocirc;ra
+o alcaide de Monsaraz, Gon&ccedil;alo Rodrigues de Sousa,
+e devia seguir logo com alguns navios para a Figueira,
+emquanto outros iriam correr a costa da Galliza,
+inquietar em casa o inimigo, e nos seus barcos,
+pescarias e alfandegas procurar um refor&ccedil;o para as
+arcas exhaustas do thesouro.
+<br />
+
+<br />
+
+O movimento dos pagens, dos sergentes do convento,
+dos b&eacute;steiros e homens d'armas tinha produzido
+<span class="pagenum">[82]</span>
+o ajuntamento da pequena pra&ccedil;a ou terreiro,
+que ficava em frente do convento, e das tortuosas
+ruas visinhas. Na pra&ccedil;a, vistas do alto, as
+cabe&ccedil;as
+dos curiosos formavam uma massa, que ondeava como
+as espigas de trigo sazonado, impellidas pelo
+vento, e no meio de borborinho constante, especie
+de gemer de tempestade em praia cheia de recifes,
+surgiam ora estrepitosas gargalhadas, ora gritos, apodos
+e vivas. As gargalhadas eram provocadas pelo b&ocirc;bo
+da cidade. O Porto n&atilde;o era uma terra de pouca
+monta para n&atilde;o ter um b&ocirc;bo seu, como qualquer
+principe, mesmo no meio daquellas calamidades e
+sustos, e tinha-o at&eacute; que n&atilde;o ficava nada a dever
+aosque se importavam de Fran&ccedil;a, por aquellas epochas,
+com o mesmo cuidado com que se haviam de
+importar cabelleireiros&#8213;o que, entre parenthesis, n&atilde;o
+quer dizer que para escolha dos primeiros se expedissem
+t&atilde;o gordas personagens como para o dos segundos&#8213;.Voltando
+ao nosso caso, ao b&ocirc;bo da cidade:
+os leitores que comnosco fazem esta viagem ao seculo
+XIV e ao terreiro de S. Domingos, devem confessar
+que a verba votada no or&ccedil;amento municipal,
+verba insignificantissima, n&atilde;o devia ser chorada. D.
+Golias era uma raridade; uma creatura de seis palmos
+de alto, se tanto, comprehendendo esta medida
+uma desmarcada cabe&ccedil;a, cortada de lado a lado no
+ter&ccedil;o inferior por uma bocca, cousa unica que correspondia
+naquelle todo ao nome com que o tinham
+baptisado. D. Golias &aacute;quella bocca, mais do que ao
+inf&eacute;sado da estatura e uma mobilidade de
+fei&ccedil;&otilde;es extraordinaria,
+devia o seu emprego e a sua popularidade.
+Os mesteiraes e burguezes que o encontraram,
+vindo do acampamento, onde exercia as suas
+func&ccedil;&otilde;es,
+tinham-lhe feito um acolhimento brilhante,
+<span class="pagenum">[83]</span>
+uma ova&ccedil;&atilde;o, e elle, escarranchado sobre um
+v&aacute;dio
+espada&uacute;do e meio idiota, com o seu vestido
+variegado
+e o seu capirote, notavel por duas immensas orelhas
+asininas, correspondia a tanto extremo disparando,
+entre esgares e tregeitos, epygrammas para a
+direita e esquerda, na portaria do convento.
+<br />
+
+<br />
+
+Uns bons dous ter&ccedil;os destes gracejos, dos mais
+pesados, eram dirigidos a nobres senhores ou a alguns
+ricos burguezes, o que os fazia ser acolhidos com
+prazer pela gente da pra&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ol&eacute;, mossem Methusael, D. Methusael, tio
+Methusael! ginchou elle sacudindo os cascaveis do vestido
+e da palheta, dirigindo-se ao arrabi-menor, que
+por entre a multid&atilde;o abria caminho; o vinho que &aacute;
+socapa comprastes a mestre Manoel do Arco, subiu-vos
+&aacute; cabe&ccedil;a, ou foi exconjuro que vos trouxe aqui?!
+Mossem Methusael, as vossas dobras v&atilde;o tinir como
+a minha jornea, e o vinho vae desfazer-se em lagrimas!
+N&atilde;o &eacute; verdade, manos, que vai haver juderega
+dobrada e tresdobrada. Mossem Methusael antes quer
+que elles roubem a pequena Lea do que um punhado
+das boas barbudas da arca!
+<br />
+
+<br />
+
+O arrabi resmungou algumas pragas, que se perderam
+entre as risadas do povo, e appressou o passo,
+seguindo um cavalleiro, na direc&ccedil;&atilde;o da portaria,
+a
+fim de em tal companhia ter mais facil accesso.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Guarda! berrou o b&ocirc;bo, attravessando a palheta;
+guarda! Se queres entrar pede a frei Roque
+que te lave em agua-benta!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Tira a tua vara, tru&atilde;o, gritou o cavalleiro, ao
+pousar o p&eacute; no limiar da porta.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Arreda, Portugal! tornou Golias; arreda, que
+ahi vem Castella em peso! Passe l&aacute;, don cavalleiro;
+eu levanto o meu sceptro e arredo-me, porque n&atilde;o
+<span class="pagenum">[84]</span>
+quero tocar em scismaticos. Don cavalleiro, tornou,
+quando o fidalgo subia j&aacute; a escadaria, tendes novas
+do mano Garcia Manrique? Quando lhe ides dar a
+m&atilde;o?!
+<br />
+
+<br />
+
+E voltando-se para o leigo porteiro, que, depois
+de fazer uma grande reverencia ao nobre recem-chegado,
+o fitava, espantado da ousadia, proseguiu:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Eh! beguino de m&aacute; morte, se cuidas que te
+est&aacute;s a v&ecirc;r a espelho de Veneza, enganas-te: estas
+orelhas s&atilde;o do capirote. As tuas s&atilde;o mais
+compridas
+e mais felpudas!
+<br />
+
+<br />
+
+Estes e outros gracejos, que n&atilde;o &eacute; licito
+escrever,
+pois n&atilde;o curava o tru&atilde;o da polidez da linguagem,
+nem eram por esses tempos malsoantes palavras
+que o s&atilde;o hoje; estes e outros gracejos eram a
+pedra de toque da popularidade dos individuos a quem
+os dirigiam: a gargalhada e os assobios, as palmas,
+os grasnidos e murmurios que provocavam, diziam
+a conta em que eram tidos. Quando a vaia partia,
+e o povo se calava, n&atilde;o insistia o b&ocirc;bo, certo de
+que era a personagem aggredida estimada por aquella
+boa gente, e n&atilde;o teria, por isso, defensor, se algum
+syllogismo contundente fosse servir de censura
+&aacute;s suas burlescas reflex&otilde;es. Regulando por este
+thermometro,
+o piloto e mercador Jo&atilde;o Ramalho e Gon&ccedil;alo
+Domingues eram bemquistos na cidade da Virgem.
+O for&ccedil;ureiro, sahindo a&ccedil;odado pela porta do
+convento,
+esbarr&aacute;ra em cheio com o piloto que entrava,
+e do choque resultou a oscilla&ccedil;&atilde;o dos dous
+corpos,
+que procuravam o equilibrio, e um regougo abafado
+do burguez. A risada foi inevitavel, pois as pequenas
+desgra&ccedil;as teem sempre o riso por caudatario;
+mas um olhar do pae de Irene engasgou nas fauces
+de Golias o motejo.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[85]</span>
+Jo&atilde;o Ramalho n&atilde;o
+vinha para gra&ccedil;as.
+<br />
+
+<br />
+
+Ao olhar sev&eacute;ro dirigido ao b&ocirc;bo seguiu-se outro
+lan&ccedil;ado a mestre Gon&ccedil;alo, que lhe estendia a
+m&atilde;o
+com a costumada lhaneza, e o piloto come&ccedil;ou, quasi
+sem tomar folego, uma lenga-lenga de
+recrimina&ccedil;&otilde;es,
+que fizeram abrir os olhos do burguez desmarcadamente.
+Porque se espantava um, adivinha-o o leitor,
+porque desabafava o outro a sua c&oacute;lera, se o n&atilde;o
+sabe, aventa-o: Fernando sahira contra ordem expressa
+da rua dos Pellames e f&ocirc;ra colhido em flagrante
+delicto de namoro, acompanhado das aggravantes circumstancias
+de escalada e destrui&ccedil;&atilde;o de um muro.
+O piloto deduzira de tanto ruido peccado mais gordo
+do que sonh&aacute;ra o mancebo, e, como este se lhe tinha
+salvado da furia, valendo-se da sua agilidade na carreira,
+avinha-se com o tio. Mestre Gon&ccedil;alo Domingues,
+se naquelle instante apanhasse a geito o travesso
+rapaz, de certo o punha em maus len&ccedil;oes, tal era a
+indigna&ccedil;&atilde;o e raiva, traduzidas nas faces em uma
+c&ocirc;r
+arroixada, que lhe incitava a narra&ccedil;&atilde;o deste
+successo,
+feita pelo rude marinheiro. O sangue subia-lhe &aacute;
+cabe&ccedil;a e amea&ccedil;ava-o com uma apoplexia. Sem o
+querer,
+applicou-lhe o pae de Irene o remedio; por&eacute;m,
+continuou a aggress&atilde;o t&atilde;o viva contra o travesso
+rapaz;
+chegou a taes amea&ccedil;as, que o for&ccedil;ureiro julgou
+dever fazer algumas observa&ccedil;&otilde;es a esse respeito,
+e
+as observa&ccedil;&otilde;es fizeram desviar o raio de uma
+cabe&ccedil;a
+para outra. A culpa daquelle attentado, t&atilde;o grave para
+o cego piloto, era de Gon&ccedil;alo Domingues, que n&atilde;o
+soubera morigerar o seu pupillo; que lhe d&eacute;ra largas
+illimitadas; que lhe deix&aacute;ra damnar alma e corpo
+com ruins paix&otilde;es. Quem ouvisse aquella
+recapitula&ccedil;&atilde;o
+de queixas e accusa&ccedil;&otilde;es tomaria o namorado
+de Irene por um D. Juan, se Tirso de Molina j&aacute;
+<span class="pagenum">[86]</span>
+tivesse modelado no <em>Burlador</em> o typo
+famoso, que,
+com um arrebique para aqui, uma limadella para
+acol&aacute;, um nariz de cart&atilde;o, uma cabelleira
+empoada,
+ou os tezos e cortantes colarinhos de um mylord tem
+servido a tanta e t&atilde;o boa gente. O bom do tio, posto
+que chofrado, e duvidando de tanto aggravo, julgou
+o caso de consciencia, comtudo, e mentalmente resolveu
+a quest&atilde;o por um dos lados; por onde a lei, se
+fossem veridicas as supposi&ccedil;&otilde;es do
+for&ccedil;ureiro, a resolveria,
+mesmo naquelle tempo, visto que n&atilde;o havia
+desigualdade de castas. O rico burguez n&atilde;o mettia
+em linha de conta a vaidade do piloto, n&atilde;o se recordava
+tambem de que o commercio e industria com
+que se locupletara eram marcados com despreso tradicional,
+despreso ecclipsado para as maiorias pelo
+brilho das dobras, &eacute; verdade; por&eacute;m
+n&atilde;o de todo
+para os mais pechosos. Jo&atilde;o Ramalho, &aacute; primeira
+phrase em que o for&ccedil;ureiro dava a entender a sua
+resolu&ccedil;&atilde;o, feriu-o vivamente no fraco, e
+emcambulhando-se
+as palavras em dialogo alternado, a voz
+do tio de Fernando chegava ao diapas&atilde;o da do pae da
+linda namorada deste, quando arruido maior lhes abafou
+as vozes, e uma onda de povo os separou, lan&ccedil;ando
+um para um lado, outro para outro.
+<br />
+
+<br />
+
+Para explicar esse alvoro&ccedil;o voltemos outra vez
+&aacute;s assoadas de D. Golias, o b&ocirc;bo da cidade.
+<br />
+
+<br />
+
+Como em baile de etiqueta annunciava o maninelo
+quanto individuo de seu conhecimento se approximava
+do mirante semovente, em que se empoleirara,
+quando um claro se fez do lado do arco,
+que dava serventia para as Cangostas, rua que n&atilde;o
+desmente ainda hoje o nome posto, para a Bainharia
+e almuinhas, e appareceu a&ccedil;odado o nosso conhecido
+Jo&atilde;o Bispo. Se a pressa, que mostrava trazer,
+<span class="pagenum">[87]</span>
+e o conservar na m&atilde;o a adaga n&atilde;o fizessem notada
+a pessoa do ex-subordinado de Tello, chamariam sobre
+elle a atten&ccedil;&atilde;o os gritos de Golias.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Upa! acima sineiros da maldi&ccedil;&atilde;o, berrava
+elle. Os sinos n&atilde;o tangem? Beguino, frei velhaco!
+campas e sino grande, tudo a chocalhar! Venha toda
+a monjaria de cruz al&ccedil;ada, que chega o senhor bispo,
+o bispo Jo&atilde;o! Sua merc&ecirc; traz pressa; mas nem
+por isso deve ser recebido sem as honrarias de usan&ccedil;a.
+V&aacute;: deitem-lhe agua benta aos olhos, para que n&atilde;o
+veja por ahi moura perdida pelas celas!
+<br />
+
+<br />
+
+E terminando a exclama&ccedil;&atilde;o imitava com a bocca
+o repique de sinos, baloi&ccedil;ando-se sobre os hombros
+do espadaudo vadio, em quanto este, que n&atilde;o
+tinha a insensibilidade de campanario, grunhia incommodado
+pelo revolver dos p&eacute;s do b&ocirc;bo ante os
+olhos, e arrepel&otilde;es dados na hirsuta cabelleira.
+<br />
+
+<br />
+
+A cidade ficava de certo sem o importante Golias;
+pois que o vadio estava j&aacute; disposto a sacudil-o
+no lagedo, como o besoiro, que lhe fizesse cocegas
+no cacha&ccedil;o, e de certo o estatelava, sen&atilde;o se
+ouvissem
+gritos no meio da pra&ccedil;a, e o novo b&eacute;steiro
+de Gaya se n&atilde;o viesse embara&ccedil;ar, tentando
+penetrar na
+portaria, nas pernas da victima do b&ocirc;bo, ao mesmo
+tempo quasi que o acontiado do municipio.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Castelhano! gritou este, deitando as m&atilde;os
+ao namorado de Garifa, castelhano, aqui n&atilde;o te valem
+os fidalgos traidores!
+<br />
+
+<br />
+
+O homem do virote, que sentira subir-lhe o
+sangue &aacute; cabe&ccedil;a com a amea&ccedil;a de Ayres
+Gon&ccedil;alves,
+correra, mal este embarc&aacute;ra, a procurar desafogo
+em Jo&atilde;o Bispo, e mais desesperado pela velocidade
+da carreira deste e pelo emmaranhado dos beccos
+por onde seguira, quando o encontrou, ao dobrar o
+<span class="pagenum">[88]</span>
+arco, sentiu o despeito renascer; o nosso b&eacute;steiro,
+por&eacute;m, deitou-o no ch&atilde;o com um cambap&eacute;
+e seguiu
+caminho. A vontade de tirar desfor&ccedil;o do novo
+desappontamento trouxe aos l&aacute;bios do homem do
+virote aquella palavra &laquo;castelhano&raquo;.
+Jo&atilde;o Bispo correra
+menos risco quando lhe chamaram ladr&atilde;o, entre
+os bons burguezes, na baixa, do que baptisado com
+semelhante nome.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Castelhano?! exclamaram alguns mesteiraes
+correndo para junto dos dous soldados, emquanto
+Jo&atilde;o se desembara&ccedil;ava do seu aggressor.
+<br />
+
+<br />
+
+E um sussurro indicador de que a tempestade,
+as iras populares estavam eminentes se levantava no
+terreiro, ao passo que a portaria era invadida.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mata, mata! gritaram em seguida alguns garotos
+do outro extremo da pra&ccedil;a; mata o castelhano!
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Bispo sentiu um suor frio correr-lhe pelo
+corpo todo, e murmurou dando um salto, encostando-se
+a uma das hombreiras da porta, e cobrindo o
+peito com a adaga:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Castelhano... castelhano? Quem falla aqui em
+castelhano? Affastar, proseguiu em voz mais forte,
+affastar! Em castelhanos vou eu p&ocirc;r o dedo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mata, mata! berraram com os garotos alguns
+dos homens mais esfarrapados da chusma; e
+uma pedra veio ferir fogo nos umbraes do convento.
+<br />
+
+<br />
+
+O amante de Garifa, metteu a m&atilde;o no seio e tirou
+uma pequena tira de pergaminho, ao passo que
+o b&ocirc;bo, atterrado com o arremesso de projectis em
+semelhante direc&ccedil;&atilde;o, julgava dever intervir:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;S&uacute;s, boa gente; quem chama castelhano a
+Jo&atilde;o Bispo? Frei Jo&atilde;o n&atilde;o foi sagrado
+pelo papa
+dos scismaticos... foi pelo papa dos velhacos.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[89]</span>
+&#8213;Oh! &eacute; Jo&atilde;o Bispo? perguntaram duas ou tres
+vozes d'entre a chusma.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Jo&atilde;o Bispo, ou o bispo Jo&atilde;o, tornou o
+b&ocirc;bo,
+fazendo mesuras ao publico, ao qual soubera modificar
+as iras com o seu gracejo.
+<br />
+
+<br />
+
+O homem do virote via de novo escapar-se-lhe
+a victima.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;V&ecirc;de, v&ecirc;de, gritou elle apontando para o
+pergaminho,
+que o b&eacute;steiro segurava na m&atilde;o, e tentando
+apoderar-se delle: v&ecirc;de como quer esconder aquillo.
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Bispo levantou o bra&ccedil;o para furtar o
+escripto,
+que trazia a Ruy Pereira, &aacute; m&atilde;o do
+b&eacute;steiro
+do municipio, ao mesmo tempo que Golias estendia
+o bra&ccedil;o e o apanhava.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ui que esgaravunhos! pipitou elle desenrolando
+a tira. Isto &eacute; esconjuro de bruxa, ou pacto de
+venda de alma de judeu?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ou mensagem para os do arcebispo! resmungou
+um dos mesteiraes.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mensagem para os do arcebispo... disseste a
+verdade, mal-cuidando! accudiu o b&eacute;steiro de Gaya,
+soltando ao mesmo tempo uma praga, e com a raiva
+pintada no rosto dando um salto para rehaver o
+pergaminho.
+<br />
+
+<br />
+
+O escripto voou das m&atilde;os do tru&atilde;o assustado
+para junto de Jo&atilde;o Ramalho, que, levantando-o,
+passou pelos olhos as primeiras linhas:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Traidor, Gon&ccedil;alo de Sousa?! exclamou elle.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Traidor, sim, disse Jo&atilde;o Bispo; e ainda ha
+pouco aqui tramou n&atilde;o sei que outras villanias! Estes
+c&atilde;es que trouxe &aacute;s pernas n&atilde;o me
+deixaram...
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o n&atilde;o proseguiu. O alcaide de Monsaraz
+desembocava
+no pateo, acompanhado de Affonso Darga,
+vindo do lado da casa do capitulo. Entre os mesteiraes
+<span class="pagenum">[90]</span>
+entrados na portaria reinava profundo silencio. O
+joven cavalleiro fallava com o commandante da flotilha
+enviada pelo Mestre de Aviz &aacute;s aguas do Douro:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Senhor Gon&ccedil;alo de Sousa...
+<br />
+
+<br />
+
+Como Jo&atilde;o Bispo n&atilde;o acab&aacute;ra a phrase
+n&atilde;o a acabou
+tambem Affonso Darga. Jo&atilde;o Ramalho dirigira-se
+para o alcaide, e batendo-lhe com uma das m&atilde;os
+no hombro, appresentou-lhe o escripto. Aquelle pergaminho
+apanhara-o o ex-novi&ccedil;o ao
+capell&atilde;o de Ayres
+Gon&ccedil;alves. Scismando nas palavras ouvidas atraz do
+reposteiro, quando, ao regressar de uma visita &aacute; ucharia,
+se perdera nos lan&ccedil;os de escada e corredores dos
+pa&ccedil;os de Gaya, pensou que no aposento do frade
+lhe acharia a explica&ccedil;&atilde;o. A prova de que
+n&atilde;o pensou
+mal era o ter encontrado alguma cousa, e essa cousa&#8213;o
+pergaminho&#8213;fizera perder a c&ocirc;r ao alcaide de
+Monsaraz.
+<br />
+
+<br />
+
+&Aacute; pallidez, seguiu-se o rubor, e depois de novo
+a pallidez. Gon&ccedil;alo de Sousa sacudiu a m&atilde;o do
+mercador, como se fosse um reptil, que lhe tivesse
+pousado nos hombros; quiz fallar e a voz prendeu-se-lhe
+na garganta; a espuma produzida por um accesso
+de bilis appareceu-lhe aos cantos da bocca. O
+nobre senhor, nesse instante, temia menos as iras das
+turbas, sentia menos a deshonra, se deshonra via na
+sua trai&ccedil;&atilde;o, do que a ousadia do homem do povo,
+que
+assim se arvorava em seu juiz.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Arreda, vill&atilde;o! gritou, mal a voz se
+desembara&ccedil;ou.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Vill&atilde;o! repetiu Jo&atilde;o Ramalho, refece
+&eacute; quem
+assim atrai&ccedil;oa a terra que o viu nascer; n&atilde;o
+&eacute;, senhor
+alcaide?
+<br />
+
+<br />
+
+A voz do piloto tremia; mas n&atilde;o de susto. Gon&ccedil;alo
+Rodrigues de Sousa arrancou-lhe das m&atilde;os o
+<span class="pagenum">[91]</span>
+pergaminho, e rasgando-o, lan&ccedil;ou-lhe os peda&ccedil;os
+ao
+rosto.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Quereis resposta? disse elle com um sorriso
+nervoso, symptoma de um excesso de raiva;
+quereis uma resposta? Eil-a... Outra s&oacute; a darei
+quando o meu accusador n&atilde;o f&ocirc;r da tua
+ral&eacute;.
+<br />
+
+<br />
+
+O punhal de Jo&atilde;o Ramalho lampejou no ar. O
+alcaide de Monsaraz cont&aacute;ra aquella hora como a
+ultima da vida, se uns poucos de mesteiraes e b&eacute;steiros
+do municipio n&atilde;o fizessem o mesmo, lan&ccedil;ando-se
+sobre elle, embara&ccedil;ando-se uns aos outros.
+<br />
+
+<br />
+
+A onda popular, levantada pelas primeiras palavras
+do homem do virote, pela accusa&ccedil;&atilde;o feita ao
+namorado
+de Garifa, crescera furiosa, estuara no meio
+dos gritos de &laquo;morra o traidor, o castelhano&raquo;. A
+portaria
+do convento f&ocirc;ra invadida, esmagado quasi o
+porteiro, apeiado e pisado o pobre D. Golias, e azevans,
+ascumas e agomias luziam amea&ccedil;adoras por
+cima daquellas cabe&ccedil;as inquietas, como na crista das
+vagas os flocos de espuma feridos pelos raios do
+sol. Quatro bra&ccedil;os possantes seguraram o alcaide,
+mais j&aacute; lembrado de que era homem do que fidalgo:
+Affonso Darga e uns dous monges, que o quizeram
+cobrir com o corpo, foram repellidos em um
+abrir e fechar d'olhos.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ao pelourinho, ao pelourinho! gritou um dos
+mesteiraes arvorados em justiceiros. A&ccedil;outado e
+enforcado!...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Jesus! gritou o dominico, tentando salvar
+Gon&ccedil;alo Rodrigues; Jesus! o que ides fazer &eacute; um
+homizio,
+e o sangue...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Vamos fazer justi&ccedil;a. A traidor como a traidor!
+Pe&otilde;es, n&atilde;o temos cepo nem cutello; mas temos
+boas cordas de canave.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[92]</span>
+&#8213;Ao pelourinho, ao pelourinho!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Morram os traidores!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;B&eacute;steiros, a mim b&eacute;steiros! gritou o alcaide
+de Monsaraz, vendo apparecer do lado do claustro
+dous acontiados da esquadra.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Quem &eacute; aqui por traidores?! exclamou um
+dos que empunh&aacute;ra o alcaide.
+<br />
+
+<br />
+
+Os b&eacute;steiros n&atilde;o se moveram. A celeuma na
+pra&ccedil;a crescia.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Por Christo crucificado! tornou o dominico
+pacificador, erguendo a cima da cabe&ccedil;a a imagem
+do Redemptor. Quem com ferro matar, morrer&aacute; pelo
+ferro...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ide-vos, homem de Deus; ide-vos, sen&atilde;o
+quereis que vos tomem por traidor.
+<br />
+
+<br />
+
+A voz de Ruy Pereira, avisado do risco em que
+estava Gon&ccedil;alo de Sousa, trovejou por cima daquella
+celeuma:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Quem falla aqui em trai&ccedil;&otilde;es? Traidores, se
+os ha, deixai-os &aacute; justi&ccedil;a do regedor. D.
+Jo&atilde;o vol-a
+far&aacute; boa e prompta, bons homens! Senhor meirinho,
+senhor meirinho!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O povo do Porto sabe fazel-a t&atilde;o bem e t&atilde;o
+boa como o de Lisboa.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Senhor meirinho, senhor meirinho, gritava
+o tio de Nuno Alvares, barafustando para se approximar
+do commandante das gal&eacute;s do Mestre, e procurando
+com o vista o meirinho da cidade, que abafava
+entre os mesteiraes.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ao pelourinho! vozeavam estes.
+<br />
+
+<br />
+
+Um b&eacute;steiro neste momento atravessava o terreiro,
+soffreando o cavallo em que montava, para
+n&atilde;o pisar o povo, nessa occasi&atilde;o soberano em
+verdade.
+Conhecido de alguns dos amotinados, abaixara-se
+<span class="pagenum">[93]</span>
+a fallar-lhes, e pouco e pouco, &aacute;
+propor&ccedil;&atilde;o que
+se approximava da portaria do convento, ao berreiro
+de &laquo;morras&raquo; succedia um borborinho destas palavras
+trocadas em voz baixa:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Os gallegos! os gallegos!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Os gallegos! exclamou o mesteiral que segurava
+o alcaide e parecia ter grande influencia nos
+seus companheiros; os gallegos veem? Boa id&eacute;a:
+mandar-lhe-hemos este bom cavalleiro para o arraial.
+As machinas que est&atilde;o do lado das Hortas podem
+com pesos maiores. &Eacute; uma boa lan&ccedil;a que enviamos
+aos do arcebispo. N&atilde;o &eacute; para elles que se queria
+partir?
+<br />
+
+<br />
+
+Uma gargalhada saudou a lembran&ccedil;a, apesar de
+n&atilde;o ser original.
+<br />
+
+<br />
+
+Gon&ccedil;alo Rodrigues de Sousa estava salvo com
+aquelle addiamento das vingan&ccedil;as populares.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>VII.</h3>
+
+<h3>
+Recontro de Le&ccedil;a.
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="quote2 intro">
+Todo oro que se afina<br />
+
+Es de mas fina valia,<br />
+
+Porque tiene mejoria<br />
+
+De cuando estaba en la mina,<br />
+
+Ansi se apura y retina<br />
+
+El hombre y cobra valor<br />
+
+En la fragoa del amor.
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="signature smallcaps">gil vicente.&#8213;fragoa
+d'amor.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Bof&eacute;, por aqui?!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; verdade, Jo&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mas como? Se o n&atilde;o vira com estes olhos
+que a terra ha de comer...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Pois eu sou.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Como S. Thom&eacute;, parece-me que ser&aacute;
+preciso
+<span class="pagenum">[96]</span>
+tocar-vos para cr&ecirc;r. E como vindes armado! Nem
+mo&ccedil;o escudeiro vos leva as lampas! Mas ainda o
+n&atilde;o
+posso acreditar. E mestre Gon&ccedil;alo?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Meu tio...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Sim! O bom do velho veio tambem na arrancada.
+&Eacute; o que faltava v&ecirc;r... elle que n&atilde;o
+&eacute; para
+estas cousas, apesar de bom portuguez. Mas, em fim,
+est&aacute; ahi o Porto em peso; velhos e cachopos...
+at&eacute;
+mouros. Por pouco vinham as mulheres! Ala f&eacute;,
+mestre Gon&ccedil;alo Domingues...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Meu tio n&atilde;o veio...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ent&atilde;o...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ai, Jo&atilde;o, se souberas?!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O que?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Estou como tu; sem leira nem beira.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;S. Jorge e todos os santos batalhadores sejam
+commigo! Que foi o que vos succedeu, Fernando?
+Morreu mestre Gon&ccedil;alo?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o morreu, n&atilde;o... nem Deus queira
+tal.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ent&atilde;o, que foi?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ai, Jo&atilde;o, hontem foi um dia bem de mau
+sestro!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Para mim tambem: por um argueiro duas
+vezes escapei &aacute; morte!... Pois n&atilde;o vi, ao sahir
+de Gaya,
+nem gato preto, nem chapim de sola para o ar, nem
+velha varrendo lixo: nem ouvi piar a coruja, nem
+uivar os c&atilde;es! Valeu-me o anjo da Guarda...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A mim n&atilde;o me quizeram matar; mas... parece-me
+que me foi peior...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Peior?!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Sim, Jo&atilde;o: lembras-te de me encontrares nos
+Banhos, e de te fallar em certos amores? ..... Fui
+v&ecirc;l-a.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[97]</span>
+&#8213;Ah! fostes v&ecirc;r a tal menina, e estava arrufada...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o, Jo&atilde;o; Irene...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Irene? chama-se Irene? &eacute; um nome que n&atilde;o
+&eacute; feio.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E ella &eacute; mais linda; mas, como te ia contando,
+fui vel-a. Ia a subir a um muro do lado do
+quintal para lhe fallar&#8213;queria tirar um peso que
+tinha no cora&ccedil;&atilde;o; dizer-lhe que, apesar de meu
+tio
+ralhar, lhe havia de querer muito e... nem eu sei
+o que mais; mas queria-lhe fallar, vel-a&#8213;ia a subir
+ao muro, e o muro... zas... no meio do ch&atilde;o,
+e cara a cara dou com o pae...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ora! E por tal &eacute; essa amofina&ccedil;&atilde;o?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Olhe, Jo&atilde;o, que n&atilde;o &eacute; o caso para
+folgar!
+Como n&atilde;o ralharia elle &aacute; minha pobre Irene, elle,
+que n&atilde;o tem ar de palavras de mel, e ficou com
+um senho... que descarregou nella... de certo...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Isso de nada vale, Fernando.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ainda n&atilde;o ficou ahi o mal. Deitei a correr...
+eu sei l&aacute; para onde! Quando me lembrei de voltar
+para casa era tarde; pouco faltava para o sol
+posto. Appressei o passo, lembrado de que se meu
+tio me n&atilde;o encontrasse nos Pellames, elle, que me
+guardava m&aacute; ten&ccedil;&atilde;o por me haver
+encontrado j&aacute; na
+maldita arvore, faria de sorte que eu n&atilde;o tornaria a
+p&ocirc;r p&eacute;s na rua. Ao chegar quasi a S. Domingos,
+havia uns alaridos, um grande vozear, e parara ao
+p&eacute; do arco, quando mestre Duarte, o nosso visinho,
+veio aonde eu estava, e contou que vira o pae
+de Irene fallar com meu tio, e que ambos esbravejavam,
+por palavras que lhes ouvira, contra mim.
+Voltei a Miragaya...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Para que?
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[98]</span>
+&#8213;Nem o sei dizer. Receiava de meu tio... e
+n&atilde;o receiava. Quando de novo me dirigi &aacute; porta da
+cidade estava fechada. Do lado da Esnoga via-se um
+grande clar&atilde;o, e continuava o alarido...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Era a chamusca da casa de mossem Moys&eacute;s,
+o irm&atilde;o de D. David Algaduxe; era o escote dos
+judeus.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Assim me disseram de manh&atilde;.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Passastes a noite ao relento?!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Passei, Jo&atilde;o, e se visse sequer uma luz &aacute;
+janella, parece-me que ficava consolado. Ao alvorecer,
+como depois daquella noite assim corrida maiores
+raz&otilde;es tivesse para n&atilde;o voltar aos Pellames, subi
+a encosta em cata de mestre Pedro, e, como o
+n&atilde;o encontrei, fui pelas Hortas. No campo, a chusma
+das gal&eacute;s, os acontiados da cidade, e a gente de
+armas dos ricos homens vindos de f&oacute;ra, estava tudo
+em movimento; chegava povo a todos os momentos
+e sahia no meio de vivas; ao p&eacute; da torre, junto &aacute;
+porta, do lado de dentro, distribuiam armas. Um
+anadel deu-me um encontr&atilde;o, e disse-me que fosse
+buscar tambem alguma cousa, e fui; pozeram-me a
+caminho para aqui, e puz-me a caminho tambem...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Amores! amores! E agora que ides fazer?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Boa pergunta, disse, erguendo e cabe&ccedil;a com
+certo enthusiasmo, o namorado de Irene, Fernando
+Vasques, de certo j&aacute; reconhecido, bem como Jo&atilde;o
+Bispo desde as primeiras linhas deste dialogo; agora
+&eacute; batalhar, e ou ficar para ahi, ou fazer
+ac&ccedil;&atilde;o
+de fama; e depois...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E depois ides p&ocirc;r a espada aos p&eacute;s da vossa
+dama, como naquelle conto da Tavola-Redonda ou
+naquell'outro que tinha frei Gumado... Ama... Ama...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Amadis, queres dizer?
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[99]</span>
+&#8213;Isso &eacute;: um em que havia combates de gigantes
+e uma princeza muito formosa: deixai v&ecirc;r se
+me lembra o nome... Oriana!...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A dama de Amadis.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Bonitos contos, Fernando, esses de cavallerias
+e amores; pena &eacute; que hoje nada succeda assim
+de geito.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Pena que n&atilde;o haja quem tenha a vontade
+de boas ac&ccedil;&otilde;es e famosas! O senhor Nun'Alvares,
+tem-se, ainda assim, havido como alguns dos mais
+pintados, e ouvi contar a meu tio, que o viu simples
+pagem, acompanhando a rainha Leonor, pela
+qual depois foi armado.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Tomou o le&atilde;o para o fazer lebreo de estrado;
+mas elle, mal chegou a idade, mostrou-lhe os
+dentes todos, e foi para o monte a monteal-a. Desde
+nado trouxe boa sina Nuno Alvares. Mestre Thomaz,
+grande astrologo, que andava em casa de seu pae,
+leu nas estrellas, e viu que empresa em que se mettesse
+seria boa, e elle sahiria vencedor, se fosse para
+bem sua ten&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Por isso deixou elle a rainha Leonor; pois
+em servi&ccedil;o della n&atilde;o andava bem, e podia-se
+quebrar
+o encanto com que foi fadado.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A mim tambem me leram a sina; por&eacute;m a maldita
+da moura que o fez disse uma tal embrulhada,
+de que s&oacute; percebi que havia de entrar em grandes
+batalhas, e salvaria um rei...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o ouvis? atalhou Fernando, sobresaltado.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ou&ccedil;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Al&eacute;m do rio...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Um como tropear de gente, e quebrar de
+ramos. Estas fogueiras n&atilde;o deixam v&ecirc;r bem. As
+vigias dormir&atilde;o?
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[100]</span>
+&#8213;N&atilde;o... olha, n&atilde;o v&ecirc;s alli ao
+p&eacute; daquelle fraguedo,
+onde bate o luar, aquella que se move? est&aacute;
+bem desperta. Ainda ha pouco se recolheu uma rolda,
+a que acompanhou frei Patinho.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Escutai, tornou Jo&atilde;o Bispo, deitando-se no
+ch&atilde;o para melhor distinguir a direc&ccedil;&atilde;o
+do rumor,
+depois de retesada a corda da sua besta.
+<br />
+
+<br />
+
+A noite descera havia muito; os galos de algumas
+cho&ccedil;as visinhas tinham j&aacute; annunciado que ia
+alta, a meio do seu curso, e a lua erguia-se redonda,
+avermelhada, semelhando um escudo candente,
+por entre as ramas dos pinheiros, que fechavam
+ao nascente o horisonte, fazendo destacar a uns
+por contornos negros, cobrindo de uma luz phantastica
+os curutos de outros, e projectando sombras
+immensas pelas clareiras. &Aacute; propor&ccedil;&atilde;o
+que
+ella minguava no c&eacute;u, tornavam-se mais vivos os
+reflexos azulados com que tingia alguns objectos,
+fazendo contraste com os fogos dos dous acampamentos
+&aacute;quem e &aacute;lem de Le&ccedil;a&#8213;fogos que em
+pontos
+ainda se mostravam vivos, fazendo ressaltar vultos
+negros, tocados, sobretudo nos arnezes, bra&ccedil;aes e
+grevas dos homens d'armas, de linhas ardentes, vermelhas
+quasi; em outros quasi extinctos, mostrando, atrav&eacute;s
+de uma luz vaga, f&oacute;rmas indecisas, movendo-se,
+tregeitando. Aqui o ferro de uma azevan, volteando,
+espelhava um raio da lua, e imitava os fogos f&aacute;tuos;
+acol&aacute; o bacinete polido de um b&eacute;steiro de
+pol&eacute; lampejava,
+ao cruzar r&aacute;pido por p&eacute; dos fogos das vigias.
+De vez em quando o relincho dos cavallos se reproduzia
+nos eccos; as vozes das roldas se alteava;
+erguia-se aqui uma risada, alli um clamor, e depois
+recahia tudo em um silencio, que s&oacute; interrompia,
+<span class="pagenum">[101]</span>
+alguma conversa a meia voz, como a que cortaram
+os nossos dous namorados.
+<br />
+
+<br />
+
+Pela bocca de um delles j&aacute; todos sabem que os
+combatentes de que podia disp&ocirc;r a cidade da Virgem,
+homens e rapazes se tinham nessa dia de madrugada
+posto a caminho de Le&ccedil;a, e se est&atilde;o lembrados
+da noticia dada pelo b&eacute;steiro em S. Domingos,
+noticia que tirou Gon&ccedil;alo Rodrigues das m&atilde;os
+dos populares e o entregou &aacute; justi&ccedil;a, que lhe fez
+grande
+favor em o reter preso em Gaya; se se lembram
+de que D. Jo&atilde;o Manrique, arcebispo de Santiago,
+abal&aacute;ra de Braga com setecentas lan&ccedil;as e dous mil
+infantes, portuguezes, partidarios de D. Beatriz, e gallegos,
+e quando cheg&aacute;ra a mensagem do Mestre acampava
+perto da cidade, atinar&atilde;o qual o intento que ahi
+os levava. Alguns corredores do bando inimigo tinham,
+ao tempo que pecuniariamente se salvava a
+patria, chegado a Paranhos, alarmando os poucos
+camponezes n&atilde;o recolhidos &aacute; cidade, e os bons
+burguezes,
+que j&aacute; os tinham esperado duas vezes sem
+verem apparecer uma s&oacute; lan&ccedil;a, haviam resolvido
+affugentar
+estes hospedes importunos.
+<br />
+
+<br />
+
+Seis a sete mil homens, pois, acampavam &aacute;quem
+do Le&ccedil;a, occupando uma extensa linha.
+<br />
+
+<br />
+
+Esta tropa, superior &aacute; do arcebispo em numero,
+era, encarada por outro lado, talvez inferior. Dos nobres
+que com os seus homens d'armas tinham seguido
+as hostes populares, em alguns n&atilde;o eram firmes as
+cren&ccedil;as de partido, como vimos; nos outros, em geral,
+havia certa m&aacute; vontade por v&ecirc;rem ao seu lado
+cavalleria
+burgueza, para a qual olhavam pouco mais ou menos
+com os mesmos olhos com que ainda hoje, no seculo
+XIX, olha o militar para o miliciano que marcha
+ao seu lado. Os b&eacute;steiros da behetria, trezentos ao
+<span class="pagenum">[102]</span>
+todo, era gente de animo resoluto, por&eacute;m fracos atiradores,
+e os quinhentos, tirados da esquadra e de Gaya,
+tinham os outros quasi na mesma conta que &aacute;s
+lan&ccedil;as
+que rodeavam a bandeira onde entre torres a
+Virgem apparecia mostrando Jesus inda menino, aquelles
+que seguiam bals&otilde;es historiados, e mesmo
+ainda ao mais historiado labaro, museu de imagens santas
+ideado pelo futuro condestavel.
+<br />
+
+<br />
+
+Cinco mil homens, exceptuando a chusma da armada,
+pertenciam a essa gente que parecia entregue
+a uma mascarada, quando levamos o leitor aos adarves
+que tinham vista para Miragaya. Eram por&eacute;m estes,
+era o povo e os acontiados do municipio que tinham
+de fazer retirar os muito esfor&ccedil;ados cavalleiros
+Lopo de Lira, Fern&atilde;o Gomes da Silva, Martim
+Gon&ccedil;alves de Athaide, Gon&ccedil;alo Pires Coelho e
+outros
+nobres, que seguiam com elles o arcebispo de Santiago.
+As ascumas e os mangoaes affaziam-se, a passar
+aquellas entre o gorjal e a barbuda, a malhar
+estes em cimeiras; amestravam-se para a grande tarefa
+de Aljubarrota.
+<br />
+
+<br />
+
+Como dissemos, os defensores do Mestre estendiam-se
+na margem do Le&ccedil;a por bom espa&ccedil;o. Jo&atilde;o
+Bispo e Fernando Vasques encontravam-se em uma
+das extremidades da linha, ou acampamento, quando
+extranho ruido vindo de uma mata visinha os
+fez interromper o dialogo que ahi fica exarado. O
+amante de Garifa, depois de se conservar por alguns
+segundos deitado, com o ouvido attento, ergueu-se,
+fez um signal ao seu companheiro, e, empregando
+o maior cuidado possivel para n&atilde;o fazer rumor,
+dirigiram-se ambos para o lado do poente, onde
+de novo se pozeram a escutar.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;S&atilde;o os nossos, disse o b&eacute;steiro novel a
+Fernando;
+<span class="pagenum"><a name="p103" id="p103">[103]</a></span>
+s&atilde;o os nossos, que est&atilde;o abrindo caminho
+no
+bosque.
+<br />
+
+<br />
+
+Palavras n&atilde;o eram ditas, um grito sahia da selva,
+e um b&eacute;steiro levantava quasi debaixo da cara
+do sobrinho de Gon&ccedil;alo Domingues a sua besta armada,
+mirando-o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Eh! Gil! abaixa l&aacute; isso, gritou Jo&atilde;o Bispo:
+guarda os teus virotes para os <a href="#e1">gallegos!</a>
+Que
+desbravar
+de matto &eacute; esse?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Eram&aacute;! est&aacute;s ahi, Jo&atilde;o? tomei-vos
+por esculcas
+desses condemnados! Abrimos caminho na mata,
+e vamos passar o rio. Jo&atilde;o Ramalho est&aacute;
+l&aacute; em
+baixo com trezentos dos da cidade.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Come&ccedil;a o folguedo?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Boa festa! Vamos fazer dan&ccedil;ar os do arcebispo
+ao som de assobiar de virotes, e ranger de
+pol&eacute;s e garruchas. Os malditos deste lado dormem,
+ao que parece, e n&atilde;o &eacute; mau despertal-os.
+<br />
+
+<br />
+
+O amante de Garifa deu alguns passos para se
+internar na mata. Fernando reteve-o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Espera, Jo&atilde;o, eu sei um sitio onde se p&oacute;de
+passar melhor do que ahi.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Sabes?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Al&eacute;m, abaixo daquelle casal que est&aacute; a alvejar,
+pelo a&ccedil;ude.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Bom discorrimento teve o cachopo! exclamou
+o b&eacute;steiro, com um sorriso de escarneo. V&atilde;o
+l&aacute; passar
+pelo a&ccedil;ude! &Eacute; o mesmo que fazer caminho para o
+outro mundo. Dous homens na outra margem tragam-vos
+uma hoste, como a uma tigella de migas.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E se de l&aacute; n&atilde;o houver ninguem?
+<br />
+
+<br />
+
+O b&eacute;steiro, como unica resposta, voltou as costas,
+encolhendo os hombros; Jo&atilde;o Bispo, depois de curta
+<span class="pagenum">[104]</span>
+reflex&atilde;o, tomando a m&atilde;o do seu companheiro,
+exclamou:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;V&aacute;mos ao a&ccedil;ude!
+<br />
+
+<br />
+
+O desbaste do arvoredo continuou com affinco,
+e uma hora passada, havia uma soffrivel clareira
+aberta, onde tinham j&aacute; penetrado alguns homens
+d'armas. No campo inimigo, em frente, n&atilde;o se ouvia
+sen&atilde;o o ciciar da aragem. Um tro&ccedil;o de
+b&eacute;steiros e
+populares, armados estes com toda a sorte de armas,
+desde o montante farpeado e o machado, a ma&ccedil;a de
+puas, at&eacute; ao chu&ccedil;o e mangoal,
+come&ccedil;aram a passar
+o pequeno rio pouco abaixo do mosteiro dos Hospitaleiros.
+Cem homens teriam tomado p&eacute; na outra margem,
+quando um sibilo se ouviu, e um virote se veio
+cravar em um velho roble, ao p&eacute; do qual Jo&atilde;o
+Ramalho
+dava ordens aos acontiados da cidade. Em seguida,
+a outro sibilo juntou-se um grito, o som da
+queda de um corpo na agua, e logo um alarido immenso.
+B&eacute;steiros de p&eacute; e a cavallo, burguezes e
+mesteiraes,
+que se tinham lan&ccedil;ado ao Le&ccedil;a, recuaram.
+<br />
+
+<br />
+
+Do campo do arcebispo haviam notado o movimento
+da gente do Mestre, e o silencio guardado f&ocirc;ra
+alliciente para os chamar al&eacute;m.
+Cem homens estavam
+na outra margem prisioneiros, se o grosso da for&ccedil;a
+n&atilde;o avan&ccedil;asse.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Santiago! Santiago! gritaram os castelhanos;
+e a margem appareceu como por encanto coberta de
+frecheiros, e d'ahi a momentos o relinchar dos ginetes
+e o som das trombetas eccoava pelos valles.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;S. Jorge e Portugal! gritou Jo&atilde;o Ramalho,
+arrebatando a bandeira da cidade das m&atilde;os de um
+cavalleiro do municipio, e lan&ccedil;ando-se ao rio.
+&Aacute;vante,
+filhos, &aacute;vante!
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[105]</span>
+Um tro&ccedil;o de mesteiraes lan&ccedil;ou-se em seguida
+do caudilho popular; por&eacute;m recuou de novo.
+<br />
+
+<br />
+
+As folhas das arvores cahiam, como varejadas,
+e os troncos lascavam aqui e alli, que os b&eacute;steiros
+de Garcia Manrique faziam a sua obriga&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Assim deixaes os vossos nas m&atilde;os daquelles
+perros?! exclamou Nicolau Domingues, apontando
+para a outra margem onde havia um concerto de
+pragas, vivas e morras. B&eacute;steiros! b&eacute;steiros,
+pela
+Virgem de Vandoma, &aacute;vante!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Aacute;vante! responderam alguns mesteiraes e
+acontiados, seguindo o exemplo de Jo&atilde;o Ramalho.
+<br />
+
+<br />
+
+A lucta travada al&eacute;m do Le&ccedil;a era uma temeridade.
+O luar alto j&aacute;, allumiava o necessario para o
+inimigo v&ecirc;r o inimigo que tinha junto de si, para
+uma lucta quasi corpo a corpo; e os homens d'armas do
+arcebispo, avan&ccedil;ando sobre o ponto invadido, iam dar
+cabo dos attrevidos portuenses; demais, os fundibularios
+e b&eacute;steiros d'aquem temiam ferir os seus,
+ao passo que os gallegos, prolongando-se de lado opposto
+pela margem, enviando tiros mesmo ao acaso,
+difficultavam a passagem. Martim Correia, o escriv&atilde;o
+da chancellaria, Gon&ccedil;alo Pires, e o filho do Mestre
+de Santiago, D. Pedro de Transtamara, com alguns
+escudeiros e um tro&ccedil;o de cavalleria da cidade,
+forcejavam em v&atilde;o por enfiar mais al&eacute;m a estreita
+ponte, ainda hoje existente naquellas paragens. O
+grosso dos homens d'armas e cavalleiros embara&ccedil;avam-se
+uns e outros, nos vallos, fraguedos e silvados,
+pelos sitios onde tinham acampado, alarmados pelo
+rebate extemporaneo.
+<br />
+
+<br />
+
+No rio, se se ouvia o chapejar, era o de um ou outro
+burguez fugitivo; no bosque o estallar dos ramos,
+o rumorejar dos fetos n&atilde;o era s&oacute; produzido pela
+<span class="pagenum">[106]</span>
+queda de virotes; era tambem pela queda de homens.
+Nicolau Domingues gritava a bom gritar; mas a chusma
+da esquadra, vinda de refor&ccedil;o, n&atilde;o se resolvia a
+ir juntar-se aos acontiados do Porto, quando um sucesso
+inesperado deu um fim brilhante ao que at&eacute;
+ent&atilde;o n&atilde;o se podia dizer mais que uma imprudencia
+do pae de Irene, e da sua gente.
+<br />
+
+<br />
+
+O mosteiro dos Hospitaleiros appareceu illuminado
+por uma luz avermelhada: nas ameias da egreja
+e das torres veria quem dellas se approximasse
+vultos negros correndo de um para outro lado a&ccedil;odados,
+e um alarido immenso se casava ao fragor
+do combate da margem.
+<br />
+
+<br />
+
+Fernando Vasques e Jo&atilde;o Bispo tinham passado
+o a&ccedil;ude e approximado, fazendo um rodeio, do acastellado
+mosteiro, pelo lado do norte, lado desguarnecido,
+e bastante cust&aacute;ra ao namorado da filha do
+velho Humeia a suster o seu companheiro, que na
+effervescencia do seu amor, cheio de enthusiasmo,
+imbuido de mais na leitura dos livros de cavallerias,
+para conquistar renome se dispunha a commetter
+temeridades, que serviriam apenas para alarmar
+os castelhanos e arriscar a vida. Jo&atilde;o persuadiu-o
+a voltar &aacute; outra margem, a procurar refor&ccedil;o
+para uma ideada surpresa, e n&atilde;o tinham do lado de
+&aacute;quem dado muitos passos quando lhes chegou aos
+ouvidos um vozear confuso, e toparam com uma mulher,
+que, solu&ccedil;ando, com os olhos arrasados de lagrimas,
+conduzia pela m&atilde;o uma crean&ccedil;a, chorosa tambem.
+Guiados por essa mulher, a quem Fernando,
+condoido, pergunt&aacute;ra a causa daquelle pranto, foram
+ter a um casal. As portas todas da casa estavam arrombadas:
+por uma sahia um grande clar&atilde;o. Uma velha
+arca e outros trastes ardiam ao canto de uma
+<span class="pagenum">[107]</span>
+adega, e &aacute; volta das pipas tripudiava um tro&ccedil;o de
+b&eacute;steiros.
+O vinho derramado em uma grande celha de
+pau, e que, trasbordando, se esbanjava pelo ch&atilde;o, mostrava
+em que estado tinham as cabe&ccedil;as, e mais ainda
+o modo porque recebiam as admoesta&ccedil;&otilde;es de micer
+Guilherme: dan&ccedil;avam, tregeitavam, grunhiam e berravam
+em v&aacute;rias linguas e dialectos, chegando alguns
+dos que se mostravam menos firmes nas pernas ao
+nariz do nobre aventureiro uma escudella a trasbordar.
+Para bem da verdade deve-se dizer que o irlandez,
+pretendendo conter os seus patricios, os inglezes,
+escocezes, gasc&otilde;es e normandos, que, recrutados
+pelo chanceller em Londres, tinham vindo nas
+gal&eacute;s, deitava &aacute; escudella um olhar
+t&atilde;o terno, que
+n&atilde;o era para delle esperar grande sanha contra os
+indisciplinados, nem grande vontade de se metter &aacute;
+agua.
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Bispo via no meio de gargalhadas e motejos
+desfazer-se o plano combinado com o sobrinho
+de Gon&ccedil;alo Domingues, quando este se lembrou de
+notar aos nossos fieis alliados por palavras e gestos
+que o vinho dos cavalleiros de S. Jo&atilde;o devia de ser
+cousa muito superior ao de pobre lavrador. Um hurrah
+saudou Fernando, e, cambaleando, a turma tomou
+o caminho do a&ccedil;ude, apesar dos protestos de
+Down-Patrick.
+<br />
+
+<br />
+
+Vinte homens, se tanto, seguiam aos dous namorados:
+uma duzia de archeiros de Gilles de Montferrand
+e alguns subordinados de Tello Rabaldo, encontrados
+tambem na adega do casal: os demais, embriagados,
+tinham ficado pelo caminho, e uns dous
+ou tres afogados no Le&ccedil;a. B&eacute;steiros e
+v&aacute;dios penetraram
+na cerca com o maior silencio em quanto Jo&atilde;o e Fernando
+rodeavam um p&aacute;teo junto da igreja, onde os
+<span class="pagenum">[108]</span>
+do arcebispo tinham amontoada bagagem, carros e
+grande por&ccedil;&atilde;o de escadas, com que
+amea&ccedil;avam um
+assalto &aacute; cidade. A sentinella, posta desse lado, dormia,
+cabeceando, encostada &aacute; lan&ccedil;a, quando Fernando
+deitou m&atilde;o de uma das escadas para a encostar
+ao muro. O pobre archeiro, extremunhado, abriu os
+olhos, esgaziados logo pelo terror, e a bocca para
+dar o signal de alarme; por&eacute;m aquelles embaciaram,
+e desta sahiu apenas uma golphada de sangue; deu
+umas outras duas passadas, cambaleando, estendendo
+as m&atilde;os como a procurar appoio, e cahiu no ch&atilde;o
+soltando um som rouco e um assobio, como de homem
+que desperta de pezadello. O castelhano, n&atilde;o
+despertava; adormecia para sempre: aquelle estertor
+sahia pela garganta e feridas abertas no peito por
+Jo&atilde;o Bispo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;S. Jorge e Portugal! exclamou o namorado de
+Irene,
+abra&ccedil;ando-se &aacute;s ameias do eirado, e arrancando
+a bandeira dos partidarios de D. Beatriz, que tremulava
+ao p&eacute; da vermelha dos cavalleiros. S. Jorge e
+Portugal!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Estamos perdidos! resmungou Jo&atilde;o, ouvindo o
+grito do mancebo; e estropeando o nome do aventureiro
+irlandez, gritou: Micer D. Patrico! micer D.
+Patrico, por aqui! por aqui! A mim, b&eacute;steiros!
+<br />
+
+<br />
+
+Nas torres ergueu-se um alarido immenso: alguns
+penedos cahiram do eirado no p&aacute;teo, e uma nuvem
+de virotes sibilava nos ares. Ao chamamento
+de Jo&atilde;o apenas tinham acudido Pedro Choca e tres
+v&aacute;dios. O sobrinho de Gon&ccedil;alo Domingues, com a
+haste
+da bandeira defendia-se dos castelhanos, que, alarmados,
+mais tratavam de lan&ccedil;ar a escada a terra do que
+de se desfazerem do temerario inimigo.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[109]</span>
+&#8213;Abaixo, Fernando, abaixo! gritou Jo&atilde;o; e no
+alto das torres appareceram algumas luzes.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Viva o Mestre de Aviz! gritou o mancebo quasi
+ao mesmo tempo que lhe fugia a escada debaixo dos
+p&eacute;s, deixando-o suspenso das ameias e estribado
+em uma enorme salamandra de granito, que servia de
+goteira ao eirado.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ahi vem ginetes, disse Pedro Choca, fazendo
+um esgar. Recommendemos a alma a Deus!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Se elle t'a quizer! redarguiu um dos v&aacute;dios
+soprando a uns ti&ccedil;&otilde;es alli deixados em rescaldo,
+que
+embrulh&aacute;ra em uma pouca de palha.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Fernando! exclamou Jo&atilde;o Bispo, encostando
+outra escada ao muro, apesar dos arremessos; afferra-te,
+Fernando, que eu sou comtigo. <br />
+
+<br />
+
+&#8213;S. Jorge! S. Jorge! se ouviu do outro lado
+do mosteiro em altas vozes. <br />
+
+<br />
+
+&#8213;A mim, b&eacute;steiros, a mim! tornou Jo&atilde;o Bispo,
+em quanto o seu amigo se defendia na goteira,
+procurando saltar no eirado.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Hurrah! S. Jorge!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Malditos! aquelles odres onde estar&atilde;o! Micer
+D. Patrico!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Arriba, Jo&atilde;o, arriba! accudiram os v&aacute;dios,
+marinhando
+pela escada, que de novo tinham erguido.
+Aquelle endemoninhado cachopo vai morrer!
+<br />
+
+<br />
+
+Uma grande lavareda, de repente, illuminou a
+lucta travada entre Fernando Vasques, os seus companheiros
+e alguns homens d'armas do eirado. Pedro
+Choca tinha lan&ccedil;ado fogo a uns carros de palha,
+e este ateava-se aos enormes pavezes de vime,
+proprios para assalto, amontoados entre as escadas
+e bagagens. Era uma fogueira soberba que
+dentro em pouco faria estalar o travejamento dos aposentos
+<span class="pagenum">[110]</span>
+de D. Mafalda, ao mesmo tempo que os
+castelhanos abandonavam o eirado da egreja.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Os do Mestre! os do Mestre! se ouvia
+por todos os lados; e nas torres, besteiros e fundibularios
+perdiam os seus tiros.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Hurrah! continuavam, j&aacute; roucos, a berrar,
+do outro lado da cerca, os inglezes.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;S. Jorge e Portugal! gritaram algumas vozes,
+com boa clara, pronuncia portugueza, do lado
+do rio, apparecendo por entre os castanheiros, retirando
+os homens d'armas de Garcia Manrique.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ter! gritou um dos seus caudilhos, amea&ccedil;ando
+com o estoque os mais medrosos; ter, rapazes!
+N&atilde;o se diga que retiramos diante de meia duzia de
+vill&otilde;es!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ter, ter! exclamou o guerreiro arcebispo, apparecendo
+no meio dos fugitivos.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Os do Mestre est&atilde;o no bailiado! disse uma
+voz d'entre a multid&atilde;o. V&ecirc;de, o mosteiro
+est&aacute; a arder,
+e foi derribada a bandeira!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Por Sanctiago! tornou o arcebispo para os
+seus companheiros, espantado da audacia dos portuenses,
+embrulhados j&aacute; com os gallegos, e suppondo-se
+cortado por for&ccedil;as immensas; estes excommungados
+est&atilde;o decididos a morrer, e trazem comsigo
+o poder do mundo. A caminho de Braga, senhores!
+Temos tempo sobejo para desforra.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Covarde! resmungou Jo&atilde;o Rodrigues Portocarreiro,
+esporeando o seu ginete para se lan&ccedil;ar
+sobre os do Mestre. Covarde! repetiu; e o fogoso
+animal, ferido nos peitos por um virot&atilde;o, ergueu-se
+com as m&atilde;os no ar, e cahiu, arrojando com
+ruido o portuguez rebelde a alguns passos de distancia,
+<span class="pagenum">[111]</span>
+abollando-lhe a armadura e o capacete e fracturando-lhe
+o craneo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Covarde! repetiu tambem o arcebispo com um
+sorriso de mofa, voltando-se para um dos seus capit&atilde;es,
+e designando o fidalgo portuguez: temeridades
+n&atilde;o aproveitam.
+<br />
+
+<br />
+
+A ponte tinha sido for&ccedil;ada ao mesmo tempo
+quasi, e a cavallaria de D. Pedro de Transtamara
+cortava j&aacute; pelo meio dos gallegos, atterrados.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A caminho de Braga! tornou a gritar o arcebispo
+D. Jo&atilde;o, que, lan&ccedil;ando-se na estrada partiu, a
+galope,
+seguido de grande por&ccedil;&atilde;o de cavalleiros, e pouco
+depois de todo o exercito, deixando os apprestes
+d'assalto, viveres e bagagens nas m&atilde;os dos burguezes
+do Porto.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Senhor conde, senhor conde, aqui est&aacute; a bandeira
+de Castella, exclamava momentos depois, attravessando
+no meio de vivas por entre as hostes do
+Mestre, o sobrinho de Gon&ccedil;alo Domingues, com as
+m&atilde;os cheias de sangue, de feridas do corpo e da
+cabe&ccedil;a,
+mas t&atilde;o contente, que nada lhe doia naquelle
+instante, e, em vez do perigo corrido, se recordava
+t&atilde;o s&oacute;mente de Irene, alegrava-se por saber que o
+seu nome lhe havia de chegar aos ouvidos na historia
+daquelle recontro.
+<br />
+
+<br />
+
+Era um heroe feito pelo
+amor&nbsp;.............................................................<br />
+
+<br />
+
+<div class="dots"></div>
+
+<br />
+
+O mosteiro dos Hospitalarios tinha sido abandonado,
+mal o incendio mostrou aos seus guardas as
+hostes portuenses al&eacute;m j&aacute; do Le&ccedil;a,
+abatida a bandeira
+e em fuga Garcia Manrique. No entanto, ainda
+do lado da cerca, sol j&aacute; nascido, as mesmas vozes
+roucas gritavam:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Hurrah! S. Jorge!
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[112]</span>
+&#8213;Onde demonio estar&atilde;o estes bargantes? perguntou
+o namorado de Garifa, procurando o sitio
+donde sahia aquelle vozear.
+<br />
+
+<br />
+
+Uma gargalhada estrondosa se seguia, pouco depois,
+&aacute; pergunta. Os besteiros encontrados no casal,
+n&atilde;o se esqueceram, chegados ao mosteiro dos cavalleiros
+de S. Jo&atilde;o, que vinham para humedecer a
+garganta com bom vinho, e foi a adega a primeira
+cousa que procuraram. Era de l&aacute; que tinham, com
+os seus hurrahs, ajudado a alarmar os gallegos.
+<br />
+
+<br />
+
+Desta vez micer Guilherme Down-Patrick n&atilde;o
+resistira &aacute; tenta&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>VIII.</h3>
+
+<h3>
+Torneio.
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="quote2 intro">
+E elles no Porto por ledice
+de sua vinda ordenar&atilde;o hum
+torneo vespora de S. Ioh&atilde;o,
+que era em que os moradores
+daquella cidade costumavam
+fazer gram festa.
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="signature">(<span class="smallcaps">fern&atilde;o
+lopes.</span> <em>Chronic.</em>)</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Por uma tarde de mez de Junho, pouco mais
+de uma hora seria, caminhavam em direc&ccedil;&atilde;o
+&aacute;s Hortas,
+no meio de extraordinario concurso, mestre Gon&ccedil;alo
+Domingues e Fernando Vasques. O feito de Le&ccedil;a,
+tornando um heroe, entre os patriotas da terra,
+o mo&ccedil;o namorado, os gabos por elle publicamente
+<span class="pagenum">[114]</span>
+recebidos de Martim Correa e do conde D. Pedro, a
+ova&ccedil;&atilde;o feita pelos populares, que em charola, o
+conduziram,
+quando perdidas as for&ccedil;as, pelo sangue derramado,
+cahira ao voltar do recontro; tudo fizera passar
+por alto ao bom tio a fuga da loja. O velho abra&ccedil;ou-o
+enthusiasmado tambem, com o riso nos labios
+e ao mesmo tempo umas duas lagrimas nos olhos
+e s&oacute; se lembrou de fazer algumas reflex&otilde;es sobre
+as imprudencias da mocidade, quando em casa
+notou a necessidade de chamar um medico, ou physico,
+como ent&atilde;o se dizia.
+<br />
+
+<br />
+
+Gon&ccedil;alo Domingues tinha, como muita gente, na
+cabe&ccedil;a uma boa d&oacute;se de ideas em
+opposi&ccedil;&atilde;o com
+as inspira&ccedil;&otilde;es e sentimentos do
+cora&ccedil;&atilde;o, sobretudo a
+respeito de seu sobrinho. Se dissessemos que queria
+ao mancebo tanto como &aacute;s suas dobras, diriamos
+que lhe tinha affei&ccedil;&atilde;o de pae; por&eacute;m,
+ia mais
+longe o velho: queria-lhe mais; pois bom dinheiro
+sem d&oacute; com elle tinha dispendido. E comtudo dava-se
+de vez em quando a perros por causa de certas
+travessuras e inclina&ccedil;&otilde;es do filho de seu
+irm&atilde;o, sobre
+as quaes fazia observa&ccedil;&otilde;es muito sisudas, cheias
+de um positivismo tal, que obrigava a dizer aos que o
+ouviam que elle era um homem de grande tino e prudencia.
+Reflex&otilde;es e ralhos, terminavam quasi sempre
+por aquelle sorriso que lhe viram os leitores quando
+elle voltava de Miragaya.
+<br />
+
+<br />
+
+Fernando vinha ainda alguma cousa p&aacute;llido, debilitado,
+ao que no corpo mostrava; por&eacute;m nos olhos
+havia um fogo extraordinario, uma alegria pintada
+em todo o semblante, e nos movimentos uma for&ccedil;a,
+uma rapidez, que n&atilde;o parecia de quem entr&aacute;ra
+pouco
+havia em convalescen&ccedil;a. O tio bem lhe dizia que
+moderasse o passo, pois lhe fazia mal aquella violencia,
+<span class="pagenum">[115]</span>
+e elle mesmo a custo o poderia seguir sem
+correr; mas o mancebo, se o affrouxava, era por instantes.
+<br />
+
+<br />
+
+O sol, ainda quasi a prumo, podendo, dardejar
+os raios por entre as esguias e altas edifica&ccedil;&otilde;es
+das
+estreitas ruas, que percorriam, rarefazia o ar, appresentando
+nos terreiros &aacute; vista a illus&atilde;o de um como
+doudejar de &aacute;tomos no ambiente, um tremor que fere
+os olhos; por&eacute;m Fernando nada sentia. Ia v&ecirc;r
+Irene,
+Irene que n&atilde;o vira desde o esboroamento fatal do
+muro; Irene, que Jo&atilde;o Ramalho, em vesperas de se
+fazer de v&eacute;la para a Figueira, d'onde seguiria para
+Lisboa, recolhera ao castello de Gaya, recommendando-a
+a D. Catharina. A nobre senhora era
+bastante astuciosa para n&atilde;o affagar em quanto fosse
+conveniente um homem popular como o piloto
+mercador, e fallando elle em metter a joven em um
+convento, em quanto ia servir o Mestre, para a guardar
+dos riscos a que a idade a expunha, se offerecera
+para a tomar como donzella sua &laquo;e tel-a como filha&raquo;
+palavras della. D. Catharina devia ir ao campo
+das Hortas nessa tarde, e por Jo&atilde;o Bispo soubera o
+mancebo que &aacute; sua namorada f&ocirc;ra concedida a honra
+de formar parte do seu cortejo. Em logar do sol
+que fazia, podia queimar o dos tropicos, que o mancebo
+o sentiria tanto como a aragem fagueira por
+sesta do outomno, ou a gellos de hinverno.
+<br />
+
+<br />
+
+O recontro de Le&ccedil;a deix&aacute;ra desassombrada a
+cidade,
+e os bons burguezes entregaram-se todos aos
+cuidados de aprestar as embarca&ccedil;&otilde;es e mais
+soccorros
+pedidos pelo Mestre de Aviz, posto em apuros
+pelo aperto do sitio e bloqueio. Em quanto o abbade
+de Pa&ccedil;o de Sousa se dirigia a Coimbra, transtornada,
+como vimos, a embaixada do alcaide de Monsaraz,
+<span class="pagenum">[116]</span>
+as gal&eacute;s vindas de Lisboa e outras do Porto,
+j&aacute; prestes, para n&atilde;o perderem tempo
+tinham-se feito
+de v&eacute;la pela costa da Galliza, capitaneadas pelo conde
+D. Pedro, lan&ccedil;ando contribui&ccedil;&otilde;es aos
+povos que
+n&atilde;o queriam experimentar o nosso ferro. Destruido
+completamente o Ferrol e queimadas algumas naus,
+pelos fins de Junho de novo a frota appareceu nas
+aguas do Douro, rebocando umas sete presas, e carregada
+de despojos.
+<br />
+
+<br />
+
+Os sinos de todas as torres da cidade balou&ccedil;aram-se,
+atroando os ares; berrou-se em todas as
+escalas os vivas do costume, e os edis, no fogo do
+enthusiasmo, decretaram uma festa esplendida, como
+appensa &aacute; de S. Jo&atilde;o, santo sempre popular e mais
+nessa quadra, por ser o do nome do Mestre, que o
+povo tinha por um Messias, como diziam os partidarios
+de D. Beatriz. A vespera da commemora&ccedil;&atilde;o
+do nascimento do Baptista, morto por ter desdenhado
+da dan&ccedil;a, devia ser celebrada com dan&ccedil;as,
+guinolas,
+touras, momos e por um vistoso torneio, que
+tinha de ser o assombro da terra, pouco affeita a t&atilde;o
+gra&uacute;dos folguedos.
+<br />
+
+<br />
+
+Desde o amanhecer do dia 23 o campo das
+Hortas estava cheio de gente embasbacada para o tablado
+levantado na vespera, que alguns operarios cobriam
+com tape&ccedil;arias, em quanto outros davam a ultima
+dem&atilde;o ao circo, ou estacada, adornando-a com
+bandeiras, panoplias e fest&otilde;es de ramagem.
+<br />
+
+<br />
+
+Aos gritos e cantigas dos trabalhadores, aos commentos
+dos curiosos, &aacute;s risadas pouco e pouco se
+juntavam os preg&otilde;es das vendilhonas de fructa, dos
+taberneiros, fritadeiras e padeiras, que assentavam
+as suas mezas, as suas tendas, ou os carros enramados
+por todos os lados, que o circo deixava devolutos,
+<span class="pagenum">[117]</span>
+e pouco antes do meio-dia era j&aacute; difficil
+mover-se
+no campo, apinhando-se al&eacute;m disso um gentio
+immenso nos adarves e torres da cidade, por aquelle
+lado, e na encosta dos dous montes do Olival
+e Batalha. Se at&eacute; ahi os bons burguezes tinham
+aberto a bocca para as tape&ccedil;arias onde a agulha ou
+a lan&ccedil;adeira tra&ccedil;ara os episodios dos contos de
+cavallerias,
+mostrando o rei Arthur, Amadis, Lisuarte,
+Galaor, a duqueza Iguerna, Mabilia, Oriana, Urganda,
+Brisena e outras muitas personagens, que para maior
+illucida&ccedil;&atilde;o dos seus feitos e ditos tinham a
+sahir pela
+bocca o texto da
+&laquo;illustra&ccedil;&atilde;o&raquo;; se ficavam
+embellesados
+nos grandes pannos de ouro, trazidos da cathedral
+para enfeitar o esperavel do estrado das
+damas, nos estandartes, onde havia divisas de toda
+a sorte, bordadas ou pintadas, mais pasmaram quando
+come&ccedil;aram a apparecer os mantenedores das justas,
+os improvisados arautos, mestres e juizes de campo,
+passavantes, sergentes, menestreis e trovadores,
+que para a festa tinham sido igualmente apenadas as
+musas.
+<br />
+
+<br />
+
+O Porto, behetria havia muito, entregue todo ao
+commercio, quando n&atilde;o se divertia a jogar as cristas
+com os seus bispos e a pugnar pelas suas liberdades,
+o Porto tinha visto passar os cortejos de alguns
+reis e principes; mas de fugida, meios envergonhados,
+como o de D. Fernando, ou em som de guerra, e
+em devota romagem e peregrina&ccedil;&atilde;o: cortejo assim,
+festa egual nunca se d&eacute;ra, pois nunca, como
+ent&atilde;o,
+se reuniram de muros a dentro tantos e taes elementos:
+tinha uma c&ocirc;rte de seu. Os mesteiraes e os
+burguezes nesse dia, t&atilde;o enlevados estavam nas
+lou&ccedil;anias
+que se desenrolavam, que abriam caminho com a
+melhor vontade aos cavalleiros, e alguns mesmo suspiravam
+<span class="pagenum">[118]</span>
+por que fosse levantado o interdicto a quem
+com tanto garbo soffreava um ginete, vestia t&atilde;o airosamente,
+e fazia t&atilde;o acabadas mesuras.
+<br />
+
+<br />
+
+Tinham as corpora&ccedil;&otilde;es apparecido com as suas
+bandeiras, precedidas pelas figuras que davam para
+abrilhantar o acto, como na prociss&atilde;o de Corpus:
+tinham-se
+reunido, amontoado os trajes mais variados, desde
+as vestes negras, compridas dos juizes, alvazires e
+meirinhos, as jorneas partidas, de panno bristol, de
+seda e velludo, os briaes blasonados, as marlotas dos
+mouros dan&ccedil;arinos, as olandilhas, as opas dos
+foli&otilde;es
+e jograes, os arnezes polidos, espelhando o sol,
+adamascados ou tingidos de vivas cores, os vestidos
+de brocado, de panno de ouro e prata, os arminhos
+e zibelinas das damas e donzellas, a almafega e o
+burel de certos momos; casavam-se os preludios de
+todos os instrumentos; o arrabil e o tiorba, a charamela
+e o clarim, o tambor e o pandeiro, estrugiam,
+chiavam, rangiam; mas tudo aquillo dava vida e
+anima&ccedil;&atilde;o,
+afinava, no meio da sua desafina&ccedil;&atilde;o, permitta-se
+dizer, com o ressalte das c&ocirc;res, que como
+em braz&atilde;o pareciam postas, com os alaridos, as risadas
+e os vivas, quando Fernando penetrou no palanque,
+onde seu tio, como notabilidade da terra,
+conseguira bom logar.
+<br />
+
+<br />
+
+O mancebo, mal entrou, estendeu a cabe&ccedil;a, a
+procurar com a vista n&atilde;o os arautos improvisados,
+que se pavoneavam de ambos os lados da li&ccedil;a, vistosamente
+trajados de branco e azul, com as armas
+da cidade bordadas no peito, nem os mestres de
+campo, montados j&aacute; em bem ajaesados corceis, e correndo
+de um para o outro lado: foi para o estrado
+ou cadafalso das damas. Estava por&eacute;m cerrada a cortina,
+e, que n&atilde;o estivesse, no palanque era tal o
+reboli&ccedil;o,
+<span class="pagenum"><a name="p119" id="p119">[119]</a></span>
+tanta gente estava de p&eacute;, que
+n&atilde;o seria facil
+descobrir l&aacute; alguem, a n&atilde;o estar em logar
+eminente.
+Mestre Gon&ccedil;alo Domingues, parte por natural <a href="#e8">curiosidade</a>,
+parte por desejo de ostentar perante os visinhos,
+como os paes costumam, quando se embellesam
+nas prendas dos filhos, inquiria a significa&ccedil;&atilde;o
+de todas aquellas tape&ccedil;arias, e amofinava-se por ver
+que o sobrinho mal lhe prestava atten&ccedil;&atilde;o,
+respondendo
+de tal sorte, que facil era ver que nem sequer
+olhava para o sitio indicado.
+<br />
+
+<br />
+
+De repente notou-se um marulhar de cabe&ccedil;as, e
+&aacute; algazarra succedeu o silencio. Os alvazires appareceram
+no estrado para elles preparado, e em outro,
+contiguo ao das damas, os juizes do campo&#8213;Ruy
+Pereira e Ayres Gon&ccedil;alves de Figueiredo.
+<br />
+
+<br />
+
+As trombetas soaram; alvazires e juizes tomaram
+assento, e depois de feitas as costumadas ceremonias,
+um dos trovadores ergueu-se, desenrolou
+um pergaminho cheio de illuminuras, e come&ccedil;ou em
+voz alta a recitar o seu poema, que era nada menos
+que um elogio aos guerreiros da espedi&ccedil;&atilde;o
+maritima.
+A poesia nessa epocha era tida em grande conta, e
+as atten&ccedil;&otilde;es, por tanto, da assemblea voltaram-se
+todas
+para o bardo. Uma cabe&ccedil;a, uma s&oacute; se volvia
+attenta
+para outro lado, e esta cabe&ccedil;a era a de Fernando.
+<br />
+
+<br />
+
+A cortina de cadafalso das damas fora corrida
+por dous pagens, e D. Catharina e mais umas
+oito damas da nobresa das visinhan&ccedil;as da cidade
+tinham apparecido rodeadas pelas suas donzellas.
+<br />
+
+<br />
+
+Os trovadores podiam dizer bocados de ouro sobre
+fa&ccedil;anhas militares, que as palavras eccoavam como
+sons vagos aos ouvidos do namorado mo&ccedil;o; os
+versos de amores, esses, como se affinados pelo sentimento
+que o dominava, ligados por uma corrente
+<span class="pagenum">[120]</span>
+magnetica, faziam-no sorrir e c&oacute;rar, sem comtudo desviar
+os olhos do estrado.
+<br />
+
+<br />
+
+Depois que as palmas de todos os lados, e as
+trombetas soaram, quando o vencedor proclamado, appresentando
+o seu manuscripto a Gon&ccedil;alo Pires, escriv&atilde;o
+da chancellaria, com uma cor&ocirc;a de louros, recebeu
+em soberba bandeja um bonito sacco de argempel,
+rico pelo bordado, e mais ainda pelas boas dobras
+que o pejavam, premio votado pela municipalidade,
+segundo antigas usan&ccedil;as, appareceu no meio
+da li&ccedil;a o mantenedor das justas.
+<br />
+
+<br />
+
+D. Pedro de Transtamara vinha, sobre garrido,
+aprimorado, formoso.
+<br />
+
+<br />
+
+Bem fraca figura fazem hoje nas nossas festas
+e folguedos, com a esguia casaca preta e a gravata
+branca de rigor, os alindados do seculo XIX &aacute; vista
+da que faziam os nossos av&oacute;s. Para o namorado de
+hoje em dia no baile n&atilde;o ha meio de se distinguir,
+de lisongear o amor da sua dama,
+como ent&atilde;o nos
+torneios, nos jogos de cannas e argolas, nos bafurdios
+e cavalgadas; n&atilde;o apparecem hoje os vistosos
+trajes de seda, ouro e prata, as mangas bordadas,
+de honra, as charpas ou bandas, nas quaes em cores
+preferidas pela donzella querida se via a ten&ccedil;&atilde;o
+ou divisa, que recordava a ambos um protesto,
+uma confidencia, ou descobria um pensamento. O
+amor tinha, sobretudo no cavalheiresco seculo a que
+transportamos o leitor, um culto, que hoje n&atilde;o tem,
+hoje em que arrancaram a aljava a Eros, o facho ao
+Hymeneo, e a ambos deram por distinctivo um saquitel
+de lona, como a imagem globulosa de bemfeitor
+de confraria. (Entre parenthesis, fa&ccedil;o aqui
+excep&ccedil;&atilde;o
+dos meus leitores: os que s&atilde;o casados, o s&atilde;o
+por amor, e os solteiros e as solteiras ainda n&atilde;o deram
+<span class="pagenum"><a name="p121" id="p121">[121]</a></span>
+um sorriso, um olhar a dote algum de boa somma,
+simplesmente pelo dote e nada mais. S&atilde;o a nata
+das creaturas.)
+<br />
+
+<br />
+
+O conde D. Pedro vestia sobre ricas armas de
+Toledo cheias de relevos, esmaltes e <a href="#e9">embutidos</a>,
+um
+brial c&ocirc;r de cereja, onde, em vez do bras&atilde;o
+proprio,
+havia bordadas chammas de ouro, e no escudo, esmaltado
+da mesma c&ocirc;r rubra, e taxeado de ouro,
+lia-se a palavra
+&laquo;<em>Cuydado</em>&raquo; entre
+duas palmas, que
+enramavam um sol feito de espadas. Um malicioso
+notou que o desenho do escudo podia figurar a roda
+de navalhas de Santa Catharina, e que a esposa de
+Ayres Gon&ccedil;alves trajava um corpete de tela, da c&ocirc;r
+favorita do mantenedor do torneio, adornado com
+um peitilho e fraldilhas de arminho; todos poderiam
+notar egualmente que, quando, ao fazer caracolar o
+seu ginete, o conde deu uma volta &aacute; roda do circo,
+antes de tomar das m&atilde;os do escudeiro que o seguia
+o elmo, a lan&ccedil;a e o escudo, entre elle e a nobre
+castell&atilde; se cruz&aacute;ra um olhar expressivo;
+por&eacute;m,
+o governador de Gaya mostrava-lhe um sorriso de
+agrado, e eram t&atilde;o sabidos os recentes amores, que
+o tinham feito abandonar a c&ocirc;rte de seu tio, que a
+maledicencia achava-se um pouco embara&ccedil;ada nos
+v&ocirc;os.
+<br />
+
+<br />
+
+O mantenedor do campo foi saudado com tanto
+enthusiasmo ou mais que o trovador, e da mesma
+sorte foram acolhidos, em seguida, os contendedores,
+que se appresentaram: Vasco Martins de Mello,
+Gil Esteves, Affonso Darga, Henrique Fafes, um dos
+irm&atilde;os Alvalade, micer Manoel Pessanha, Affonso Henriques
+de Transtamara, e outros mancebos, todos t&atilde;o
+adornados e vistosos, que &aacute; multid&atilde;o iam-se-lhe
+os
+olhos nelles, n&atilde;o sabendo a qual dar primazia. Depois
+<span class="pagenum">[122]</span>
+das ceremonias do costume e de um bafurdio,
+jogo em que cada um mostrava a destreza no arremesso
+das lan&ccedil;as, divers&atilde;o tomada dos arabes,
+come&ccedil;ou
+o combate. Vasco Martins, Henrique Fafes e
+Alvalade perderam a sella, n&atilde;o supportando o embate
+das lan&ccedil;as; micer Manoel, como mais affeito ao mar
+que &aacute; terra, ao dar a volta em um dos extremos da
+li&ccedil;a, para arremetter contra o seu antagonista, o fez
+de sorte, que, ro&ccedil;ando pela barreira com o cavallo, o
+arremessou este para o outro lado, deixando-o menos
+maltractado que a uns dous burguezes, que lhe amacearam
+a queda com o corpo.
+<br />
+
+<br />
+
+As damas debru&ccedil;avam-se curiosas na balaustrada
+do cadafalso, e mais curiosas do que as damas as
+donzellas de honra e as burguesas, para quem tudo
+aquillo era inteiramente novo e de fortes impress&otilde;es,
+como hoje se diria. D. Catharina de Figueiredo, entre
+as do seu sexo, era a excep&ccedil;&atilde;o, como Fernando
+entre
+os homens. Alguma cousa lhe prendia a atten&ccedil;&atilde;o,
+e essa cousa ficava perto da bancada onde estava
+o mancebo. Seguindo a direc&ccedil;&atilde;o dos olhares
+frequentes da bella dama, encontrar-se-hiam as vistas
+do sobrinho do for&ccedil;ureiro, e ao primeiro relance
+dir-se-hia que se provocavam e comprehendiam.
+D. Catharina notara Fernando; notara nos olhos
+os reflexos do incendio ateado no cora&ccedil;&atilde;o, e
+illudira-se,
+como se poderia illudir muita gente. Extranhar
+a audacia a principio, podia-a extranhar; por&eacute;m,
+mulher, havia de achar-lhe indulgencia, por virtuosa
+que fosse. N&atilde;o o era. De sangue ardente, fogosa
+por temperamento pertencera, demais, &aacute; corte de
+Leonor Telles; era uma das damas com que a astuta
+rainha jogara, para formar partido, cativar a benevolencia
+dos cavalleiros a principio um pouco do parecer
+<span class="pagenum">[123]</span>
+do povo que apedrejara os pa&ccedil;os de apar S. Martinho,
+e n&atilde;o desdissera depois da esc&oacute;la em que se
+criara. Nos seus galanteios n&atilde;o encontrara nunca um
+olhar de adora&ccedil;&atilde;o como o que interceptava;
+Fernando
+Vasques fizera-lhe mesmo uma impress&atilde;o mais
+que extraordinaria: fizera-lhe n&atilde;o s&oacute;, alli,
+esquecer
+o conde; mas, depois, ainda mais, a distancia em que
+estava ella, dama de alta linhagem, de um simples
+burguez, um pe&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+A illustre dama n&atilde;o contava com Irene, que se
+occultava, c&oacute;rando, atraz da poltrona em que se sentava:
+o filho do mestre de Santiago n&atilde;o contava tambem
+com o sobrinho de Gon&ccedil;alo Domingues; mas
+via claramente que as c&ocirc;res e divisas que tomara
+podiam ser taxadas de vaidade, presump&ccedil;&atilde;o e nada
+mais.
+<br />
+
+<br />
+
+Quando um novo contendor entrou na li&ccedil;a, estava
+t&atilde;o preoccupado o nobre mantenedor, a procurar
+quem lhe podia roubar completamente as atten&ccedil;&otilde;es,
+que n&atilde;o reparou que era esse o mais destro de
+todos, affeito aos jogos dos arabes de Granada, a
+medir-se com os cavalleiros da Africa ao servi&ccedil;o dos
+Alhamarides; que era seu proprio irm&atilde;o, Affonso Henriques.
+O mo&ccedil;o castelhano, passando junto do conde
+guiou t&atilde;o destramente o cavallo, que lhe ro&ccedil;ou
+pelas
+joelheiras, e dando um geito &aacute; lan&ccedil;a, na
+carreira,
+desviou completamente a do seu antagonista
+e tocou com a sua no escudo de tal sorte, que o
+bra&ccedil;o que o segurava, estendeu-se; a m&atilde;o abriu-se
+e aquella arma defensiva foi ao ch&atilde;o. D. Pedro, ao
+ouvir os applausos levantados a seu irm&atilde;o, e com a
+cabe&ccedil;a perdida pela distrac&ccedil;&atilde;o da sua
+dama, ergueu-se
+furioso nos estribos e arremetteu contra elle.
+A sua lan&ccedil;a desfez-se desta vez em hastilhas no
+<span class="pagenum">[124]</span>
+arnez do mancebo; por&eacute;m este n&atilde;o saltou da sella,
+e em poucos instantes estava outra vez em frente
+do conde. A lucta tornou-se ent&atilde;o um verdadeiro
+duello, e as regras do cartel apresentado no principio,
+consentindo tudo que fosse destresa, e mandando
+parar ao primeiro ferimento ou queda, pois
+que n&atilde;o era justo que grande m&aacute;goa enlutasse
+t&atilde;o
+grande festejo, foram despresadas. O conde tinha sido
+desappontado nos seus galanteios como homem, e nos
+seus brios como cavalleiro. &Aacute;s lan&ccedil;as succedeu a
+espada; e as espadas como a lan&ccedil;a quebraram, amolgando
+os elmos, disjuntando e torcendo pe&ccedil;as dos
+bra&ccedil;aes. Tomaram um a ma&ccedil;a, outro o machado, e
+furiosos correram um para outro.
+<br />
+
+<br />
+
+O tio de Nuno Alvares Pereira e Ayres Gon&ccedil;alves
+de Figueiredo, estavam tomados de assombro para
+intervirem na lacta; os mestres de campo, que a
+principio haviam tentado manter com os arautos as
+condi&ccedil;&otilde;es do cartel, tinham-se,
+embara&ccedil;ados, por novi&ccedil;os,
+retirado para junto das bancadas, e olhavam
+uns para os outros e para os juizes, procurando
+conselho, que n&atilde;o viam nos olhos de ninguem. Os
+espectadores, homens e mulheres, esses applaudiam
+os epysodios da lucta.
+<br />
+
+<br />
+
+A massa ressoou na armadura de Affonso Henriques,
+e a um rugido, um regougo seguiu-se um
+fio de sangue a correr por entre as fendas do gorjal
+sobre o arnez. Os contendores tinham-se esquecido
+de que eram irm&atilde;os. D. Pedro, sobretudo,
+estava cego. O brial do conde fez-se em farrapos,
+enrodilhado pela machadinha; o ginete em que montava
+D. Affonso, ferido na cabe&ccedil;a, apesar de acobertado
+de ferro, cahiu na arena levando o cavalleiro.
+<span class="pagenum">[125]</span>
+Os gritos da multid&atilde;o, como nos circos romanos,
+eccoaram pelos montes visinhos.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A p&eacute;, a p&eacute;! gritaram alguns cavalleiros
+enthusiasmados,
+exigindo a egualdade de combate.
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o foi preciso repetir a exigencia: ou melhor
+f&ocirc;ra ella escusada: o conde de Transtamara
+lan&ccedil;ara-se
+abaixo do cavallo, e corria direito para o irm&atilde;o, que,
+j&aacute; erguido, com o machado no ar o esperava.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Cavalleiros, cavalleiros! exclamou Ruy Pereira
+ao mesmo tempo que Ayres Gon&ccedil;alves, querendo
+sustar o combate.
+<br />
+
+<br />
+
+Os passavantes e o mestre de campo correram para
+a arena, por&eacute;m quando chegaram junto dos irm&atilde;os,
+um delles, D. Pedro, solt&aacute;va um grito doloroso,
+e cahia com todo o peso do corpo, fazendo
+ranger e estallar todas as pe&ccedil;as da armadura.
+<br />
+
+<br />
+
+O guante de ferro que lhe guarnecia a m&atilde;o direita
+estava despeda&ccedil;ado, e despeda&ccedil;ado o pulso. O
+sangue tingiu a areia da li&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Jesus! se ouviu do lado das damas e depois
+uma borborinha correu pela assemblea; pois a queda
+do sobrinho do rei de Castella, tomada como o baquear
+extremo, produzira no povo uma impress&atilde;o desagradavel.
+<br />
+
+<br />
+
+Aquelle rumor e assombro fizeram cahir em si
+Affonso Henriques.
+<br />
+
+<br />
+
+Os momos que se seguiram ao torneio foram sem
+interesse para os espectadores entretidos a commentar
+o combate extraordinario dos dous nobres castelhanos.
+Se recrearam alguem foi a Fernando Vasques
+e a Irene, e pela dura&ccedil;&atilde;o; n&atilde;o por
+outra cousa.
+<br />
+
+<br />
+
+D. Catharina n&atilde;o havia tambem despregado os
+olhos do mancebo. Ao cavalleiro que a invoc&aacute;ra no
+torneio, se concedera um olhar, f&ocirc;ra de curiosidade.
+<span class="pagenum">[126]</span>
+Quando este torn&aacute;ra a si do desmaio em que a d&ocirc;r
+e o sangue perdido o haviam feito cahir, passando
+junto delle, ao entrar para as andas em que viera
+de Gaya, teve algumas palavras; mas ainda, se n&atilde;o
+dirigidas, allusivas ao sobrinho de Gon&ccedil;alo Domingues,
+que trat&aacute;ra de seguir Irene, apesar das
+exclama&ccedil;&otilde;es
+do velho for&ccedil;ureiro, pouco amigo de se metter em
+apertos, lembrado do desembarque de Ruy Pereira.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Bello pagem se fizera daquelle mancebo... se
+f&ocirc;ra de linhagem! N&atilde;o &eacute; certo, micer
+Guilherme? disse
+ella.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Bello pagem! disse o irlandez, que de certo
+devia ter achado a festa menos divertida que o recontro
+de Le&ccedil;a, e sem mesmo olhar para o joven que
+D. Catharina designava com a vista.
+<br />
+
+<br />
+
+Fernando, perto da linda filha de Jo&atilde;o Ramalho,
+mais formosa agora e esbelta com as galas que lhe
+consentira a castell&atilde;, embellecido o rosto pelo amor;
+Fernando n&atilde;o ous&aacute;ra erguer os olhos, e
+sustent&aacute;ra
+assim a illus&atilde;o para a antiga donzella de Leonor Telles,
+que repetio:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Bello pagem!
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>IX.</h3>
+
+<h3>
+Garifa.
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="quote2 intro">
+Cade in tanto dolor, che si dispone<br />
+
+Allora allora di voler morire......
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="signature"><em>Ariosto</em>&#8213;Orland.
+fur. cant. V.</div>
+
+<br />
+
+<div class="quote2 intro">Maravilhou a todos o spectaculo<br />
+
+Inesperado...<br />
+
+Que ser&aacute;? disse emfim um rumor surdo<br />
+
+De vozes dos que tremulos pararam...
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="signature"><em>Garrett</em>&#8213;D.
+Branca&#8213;cant. I.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Para longe o agouro! Ora esta! dizia, horas
+depois do torneio, em Gaya, junto da fonte do rei
+Ramiro, a mulher de um galeote.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Pois que &eacute;, tia Dordia? interrogava outra.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Que ha de ser? Vindo &aacute;s vozes do lado do
+monte, ouvi fallar em affogado, e bem sabe que o
+meu Manoel anda por esses mares!
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[128]</span>
+&#8213;Para longe o agouro, repetiu a outra mulher.
+Isto de agouros nem sempre s&atilde;o certos. F&eacute; em
+Deus,
+que elle far&aacute; as cousas pelo melhor.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;F&eacute; em Deus tenho eu; mas bem mau &eacute; que em
+noite de S. Jo&atilde;o se ou&ccedil;am cousas destas! A velha
+Mafalda, o anno passado, ouviu, ao passar ao arco de
+S. Domingos, fallar em um justi&ccedil;ado, e bem sabe o
+que aconteceu ao filho.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;S&atilde;o signaes que cada um traz ao nascer.
+Mas ainda n&atilde;o &eacute; meia-noite, proseguiu a mulher,
+querendo
+consolar a senhora Dordia da cren&ccedil;a ainda hoje
+existente junto da foz do Douro, de que, quando, vespera
+de S. Jo&atilde;o, ao cahir da meia-noite, se procura
+um prognostico, ou noticias da sorte de pessoa ausente,
+as d&atilde;o as primeiras palavras de qualquer conversa.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Deus a ou&ccedil;a, visinha... Deus a ou&ccedil;a; mas
+parece-me
+que j&aacute; ser&aacute;: o sete-estrello vai alto!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o &eacute;, n&atilde;o.
+&Oacute;l&aacute;, Jo&atilde;o Canhoto, meia-noite
+ser&aacute;?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o &eacute;, tia Luiza. Quer ir saltar as fogueiras?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Eu n&atilde;o: for&ccedil;as para tal Deus as
+d&eacute;ra. O meu
+tempo j&aacute; passou. Quando rapariga!...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ent&atilde;o deitou ovo em escudella?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Para que?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A v&ecirc;r se lhe sahe arco de egreja, respondeu
+o homem, que dava pelo nome de Jo&atilde;o Canhoto,
+rindo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A mim agora s&oacute; se me sahir tumba. Isso &eacute;
+bom para cachopas.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Vamos, vamos, tia Luiza; ainda est&aacute; f&eacute;ra,
+rija como um virote, e um noivo agora era mel pelos
+bei&ccedil;os.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[129]</span>
+&#8213;Seu bargante! exclamou a velha, mostrando
+no rosto que a mofa do galeote n&atilde;o era inteiramente
+recebida como tal.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ent&atilde;o, ainda n&atilde;o &eacute;
+meia-noite? tornou a perguntar
+a senhora Dordia, bastante impressionada pelo
+agouro tomado, para delle tirar o sentido, n&atilde;o obstante
+os gracejos dirigidos pelo galeote &aacute; sua amiga.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Qual meia-noite! Ao cantar do gallo toda
+a chusma, que anda por ahi, ha de vir em descante.
+&Eacute; uma festa de estrondo c&aacute; da gente.
+Ver&aacute; se l&aacute; os
+da cidade nos levam as lampas! S&oacute; violas &eacute; uma
+meia
+duzia, e os rapazes que as tangem s&atilde;o mestres acabados.
+&Eacute; de se abrir a bocca. E o Safio? Se ha por
+ahi quem saiba deitar uma cantiga como elle, que
+eu beba agua toda a minha vida! O Safio vem no
+rancho.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ent&atilde;o, temos grande descante? interrogou uma
+outra mulher.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; esperar para ver.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O sitio n&atilde;o &eacute; l&aacute; dos melhores.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Dizem que por aqui...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O que?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Que em noite de S. Jo&atilde;o apparece na fonte
+uma moura encantada... Ora uma moura de n&atilde;o sei
+que rei...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;B&ocirc;a, b&ocirc;a! exclamou o galeote. As mouras
+n&atilde;o se vem metter assim com um homem do mar,
+por mais tresloucadas que andem. Se ella quizesse
+bailar na festa...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Credo! N&atilde;o diga isso, que o p&oacute;de ella ouvir!
+exclamaram duas ou tres mulheres ao mesmo
+tempo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ai, senhor Jo&atilde;o, bem se v&ecirc; que
+n&atilde;o &eacute; da
+terra, e n&atilde;o sabe que &eacute; certo o apparecer
+&aacute;s vezes ahi
+<span class="pagenum">[130]</span>
+a maldicta. Minha av&oacute;, que Deus haja, quando era
+rapariga, viu-a, disse a tia Luiza.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E vi-a eu, vai em tres annos, com estes que
+a terra ha de comer, accudiu a tia Dordia.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E eu, disse outra.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E eu, exclamaram em seguida mais cinco ou
+seis.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ent&atilde;o, como &eacute; a moura?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ora como ha de ser a moura? &Eacute; uma figura
+branca, toda branca, muito branca, com os cabelos,
+nem fios de ouro, soltos pelas costas; e apparece
+a bailar na agua de um para o outro lado...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Hoje quebra-se-lhe o encanto, atalhou o galeote,
+que era para o seu tempo um grande incredulo ouvindo
+um desfinar de instrumentos do lado da povoa&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Alli vem a festa! Lenha para ahi! exclamou
+em seguida, dirigindo-se a um rancho de crean&ccedil;as de
+ambos os sexos, que saltavam por cima do brazido
+deixado pela fogueira.
+<br />
+
+<br />
+
+A festa annunciada n&atilde;o tardou com effeito a apparecer.
+Uma grande por&ccedil;&atilde;o de galeotes, petintaes
+e espadeleiros de Gaya e Villa Nova arranhavam em
+violas, tocavam tamboril, ou cantavam, fazendo coro, a
+can&ccedil;&atilde;o entoada por um rapaz alto e de ar jovial,
+que era nem mais nem menos o Safio apregoado por
+Jo&atilde;o Canhoto. Para se dizer toda a verdade, deve-se
+accrescentar que a desafina&ccedil;&atilde;o dos instrumentos
+n&atilde;o destoava das vozes, um pouco roucas, como as de
+todos os embarcadi&ccedil;os, e demais ressentindo-se de
+brodio feito em tasca.
+<br />
+
+<br />
+
+Uma voz cantava:
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry">
+Em noite de S. Jo&atilde;o<br />
+
+At&eacute; no mar trai&ccedil;oeiro<br />
+
+<span class="pagenum">[131]</span>
+Accendem anjos ou fadas<br />
+
+Em cada vaga um luzeiro.
+<br />
+
+<br />
+
+E, velas de seda ao vento,<br />
+
+Passa a gal&eacute; encantada;<br />
+
+Remos de ouro batem n'agua<br />
+
+Ao som de branda toada.
+<br />
+
+<br />
+
+No ceo bailam as estrellas<br />
+
+Bailam as mouras nas fontes...<br />
+
+...........................................
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Jesus! exclamou uma mulher, pallida, com os
+olhos espantados, lan&ccedil;ando-se a tremer no meio da
+festa.
+<br />
+
+<br />
+
+As violas calaram-se, o cantor, que desta vez
+dizia versos, que n&atilde;o eram de sua lavra; os coros,
+que repetiam no fim de cada estrophe um estribilho
+maritimo, calaram-se tambem; os rostos tornaram-se
+de finados, como se tornara o da mulher. Esta,
+com o bra&ccedil;o estendido, designava a fonte de D. Ramiro.
+<br />
+
+<br />
+
+Se v&oacute;s, leitora, que talvez por mais de uma
+vez apregoastes que n&atilde;o credes em muita cousa natural,
+quanto mais nas que o n&atilde;o s&atilde;o, visseis o
+que Safio e os festeiros de Gaya estavam vendo, a
+c&ocirc;r do rosto vos fugira, como a elles lhes fugiu, e
+talvez, como a vossa organisa&ccedil;&atilde;o n&atilde;o
+&eacute; a de qualquer
+petintal, um desmaio vos tirasse de sustos.
+<br />
+
+<br />
+
+A lua no extremo da sua carreira, redonda, mergulhava
+no mar, marcando nas aguas uma esteira
+tremula, de um brilho duvidoso. O disco, meio embaciado
+pelos vapores do occeano, podia servir para
+uma imagem funebre: dir-se-hia que era o espectro
+<span class="pagenum"><a name="p132" id="p132">[132]</a></span>
+do sol. Na outra margem, para o lado da cidade, por
+entre fogos vermelhos, appareciam e desappareciam
+figuras negras, como possuidas de uma vertigem, de
+frenesi, e a aragem trazia nas azas humidas pelo
+orvalho, um concerto de rizadas em todas as notas
+possiveis da escala, e uma discordancia de instrumentos,
+como em ronda de feiticeiras. O rosto tornava-o
+negro uma immensa fogueira feita na praia. Os reflexos
+da luz davam ao rosto dos marinheiros de Gaya,
+tomados de assombro, um todo phantastico, assustador.
+Toda esta scena momentos antes era alegre.
+Uma s&oacute; cousa bast&aacute;ra para a transtornar. Entre o
+fundo escuro em que se mergulhava a margem opposta,
+em consequencia da fogueira que fizera avivar Jo&atilde;o
+Canhoto, e o lan&ccedil;o do rio tocado pelos derradeiros
+raios da lua, junto da fonte, &aacute; beira da agua, via-se
+uma figura branca, indefinida em tudo que n&atilde;o era o
+contorno, movel, conforme as oscilla&ccedil;&otilde;es e
+intensidade
+dos fogos, accesos que parecia, mais do que a pousar
+na terra, suspensa do ar, baloi&ccedil;ada por fio invisivel.
+<br />
+
+<br />
+
+Aquella appari&ccedil;&atilde;o, como transtorn&aacute;ra o
+aspecto da
+scena, como d&eacute;ra aos cantos e aos risos um tom sobrenatural,
+torn&aacute;ra immoveis quasi os collegas de Safio.
+Se n&atilde;o fosse o movimento que faziam para se
+aconchegar uns aos outros, dir-se-hia que ella os havia
+petrificado. O suor innundara-lhes a fronte, e o frio
+corria-lhes pela espinha dorsal.
+<br />
+
+<br />
+
+A campa do convento de Corpus-Christi dobrou
+compassada marcando a meia-noite, e ao mesmo tempo
+quasi uma nota plangente vibrou no ar. Marinheiros,
+que tinham affrontado a tempestade com <a href="#e10">o&nbsp;cora&ccedil;&atilde;o</a>
+sereno, que nas gal&eacute;s reaes ouviram <a href="#e11">sibilar
+os pelouros</a>, sentiram perto do craneo o embate do machado
+<span class="pagenum">[133]</span>
+no machado tremeram como as folhas dos alamos.
+Das mulheres nem fallamos. Todas as ora&ccedil;&otilde;es,
+todas as f&oacute;rmas de esconjuros se lhes embaralhavam
+na memoria, e os l&aacute;bios negavam-se a pronuncial-as.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Meia-noite, tartamudeou Jo&atilde;o Canhoto, momentos
+antes emprazador de phantasmas, e fazendo
+ao soar a ultima badalada o signal da cruz &aacute;s avessas.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Valham-me os santos e santas do c&eacute;u!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Jesus! bento nome de Jesus!
+<br />
+
+<br />
+
+O silencio que estas exclama&ccedil;&otilde;es interrompiam
+era tal que se ouvia o respirar n&atilde;o muito
+desembara&ccedil;ado
+daquella boa gente, e o terror tambem
+era tamanho, que as passadas e mesmo a appari&ccedil;&atilde;o
+de um homem junto do rancho dos festeiros n&atilde;o foi
+por elles notada. Daquelle pasmo pasmou o recem-chegado,
+mas n&atilde;o por muito tempo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ui, Canhoto, exclamou elle; que mau olhado
+vos deu, e em toda essa gente, que tendes cara de
+quem viu o tr&ecirc;po em encruzilhada?!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Jesus! bento nome de Jesus! repetiram as
+mulheres, deitando a correr para o lado da
+povoa&ccedil;&atilde;o,
+como se a presen&ccedil;a daquelle homem quebr&aacute;ra
+o encanto de terror em que estavam.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ui! tornou elle, que demonio se lhes metteu
+no corpo?! Nem bando de cotovias que farejaram
+besta armada. Eh! Canhoto, que feio esgar que
+est&aacute;s a fazer! Est&aacute;s mudo, homem? Aquelles
+pergaminhos
+velhos de saias que fugiram a grasnar eram
+bruxas? Em noite de S. Jo&atilde;o...
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Bispo, pois era o nosso conhecido o recem-chegado
+calou-se, e recuou espantado, fitando
+um gesto dos galeotes de Gaya a appari&ccedil;&atilde;o
+phantastica
+que os atemoris&aacute;ra, e quasi ao mesmo tempo
+<span class="pagenum">[134]</span>
+dous gritos se confundiram com o baque de um
+corpo no rio. O phantasma branco, a moura encantada
+durante a enfiada de perguntas de Jo&atilde;o Bispo,
+approximara-se da margem do Douro, erguera os
+bra&ccedil;os ao c&eacute;o, como em supplica, e precipitara-se
+na
+corrente. Durante este movimento o b&eacute;steiro reconhecera
+naquelle vulto um ente querido, e ao grito,
+soltado como em adeus extremo ao mundo, juntara-se
+outro de angustia tambem. O pasmo produzido
+pelo reconhecimento feito em taes circumstancias n&atilde;o
+foi longo, por&eacute;m; ao baque na agua do corpo da
+moura seguiu-se outro, o do b&eacute;steiro.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Jo&atilde;o! Jo&atilde;o! exclamaram alguns galeotes
+perplexos;
+sem saber como traduzir na sua intelligencia
+o passo do condiscipulo de Fernando.
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o n&atilde;o ouviu sequer aquelles gritos.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A moura saltou ao rio! disse um espadeleiro,
+que se attrevera a procurar com a vista a causa do
+terror geral.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Foi para casa de <em>Brazabu</em>!
+redarguiram dous
+ou tres, tomando de um folego o ar necessario para
+cem homens, e limpando com as costas da m&atilde;o
+o suor frio que lhe banhava o rosto.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Jo&atilde;o! Jo&atilde;o! tornaram os que mais perto estavam
+da praia.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Arrastou-o a maldita. N&atilde;o viram os olhos que
+ella deitava. Eram dous luzeiros.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Guay delle! Aquillo n&atilde;o era moura; era o
+tinhoso, resmungou o espadeleiro, fazendo o signal
+da cruz, o vigessimo talvez nessa noite.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A modo que sim, tio Vasco. Cheira aqui a
+n&atilde;o sei que.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Olhem! olhem! disse com voz abafada outro
+marinheiro, que se attrevera a approximar-se da margem,
+<span class="pagenum">[135]</span>
+e de novo recu&aacute;ra atterrado. Olhem! olhem!
+N&atilde;o veem na agua aquelle marulhar? A moura filou
+o b&eacute;steiro.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A Virgem santa seja com elle! murmuraram
+tres ou quatro a um tempo, dando o nosso homem
+como perdido de corpo e alma.
+<br />
+
+<br />
+
+No rio, mesmo na esteira que prateava a lua,
+com effeito apparecia e desapparecia, para de novo
+surgir &aacute; flor d'agua, um vulto, a bracejar. De uma
+das vezes n&atilde;o veio s&oacute;. O vestido da moura
+alvejou,
+tocado por um raio de luz, e a cren&ccedil;a, dos marinheiros,
+de que Jo&atilde;o Bispo era arrastado por um espirito
+ou pelo demonio, mais se confirmou, levando-os
+a novos esconjuros. O b&eacute;steiro sobra&ccedil;ando o
+corpo e segurando com os dentes as vestes da infeliz,
+embara&ccedil;ado nos movimentos, luctava com a corrente
+afim de alcan&ccedil;ar a margem.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A mim! a mim! gritou elle de uma das vezes
+em que veio ao lume d'agua; por&eacute;m os marinheiros
+olhando espantados uns para os outros n&atilde;o
+se moveram em seu auxilio.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;S. Pedro seja com sua alma, murmurou o velho
+Vasco, recuando ao passo que o b&eacute;steiro se approximava
+da margem, um pouco escarpada naquelle
+sitio e ent&atilde;o mais do que hoje. Que se apegue com
+a Virgem, n&atilde;o com a gente, que nada p&oacute;de com
+encantos.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Oh de terra! soccorro, por Deus, que se me
+fina esta desgra&ccedil;ada! tornou Jo&atilde;o Bispo com uma
+inflex&atilde;o
+de voz, que denotava o desespero que ia naquelle
+cora&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Safio e Canhoto, por um impulso sobre o qual
+nem tempo tiveram de reflexionar, correram &aacute;
+praia. Safio approximou-se da rocha junto da qual
+<span class="pagenum">[136]</span>
+o b&eacute;steiro se debatia, segurando sempre a mulher
+de branco.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Uma m&atilde;o a esta pobre, que j&aacute; mal respira.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; uma rapariga! exclamaram os dous marinheiros,
+estendendo os bra&ccedil;os a segurar aquella que,
+momentos antes, tomavam todos por um ente sobrenatural.
+<br />
+
+<br />
+
+Os petintaes, galeotes e mais festeiros pouco a
+pouco se tinham approximado, ouvida esta
+exclama&ccedil;&atilde;o,
+e vendo que se n&atilde;o tratava de mais do que
+de arrancar &aacute; morte uma creatura, o exemplo de Safio
+e Canhoto foi seguido, e, instantes depois, Jo&atilde;o Bispo
+a depositava em terra a sua preciosa carga.
+<br />
+
+<br />
+
+De novo reinou o silencio. Os marinheiros atordoados
+com as sensa&ccedil;&otilde;es diversas experimentadas em
+t&atilde;o curto espa&ccedil;o de tempo, formaram roda ao corpo
+da mulher, que inane, desmaiada haviam conduzido
+para junto de uma fogueira, e deitado sobre um
+monte de trevo, alfombra improvisada das mo&ccedil;as da
+terra, dispersas pouco havia. Jo&atilde;o Bispo com o olhar
+fixo, espantado, as m&atilde;os pendentes, os l&aacute;bios
+entreabertos
+contemplava o rosto da moura, pois moura era
+a desfallecida. Parecia ter-se-lhe apagado completamente
+da memoria o que acabava de se passar: o
+corpo alli prostrado era uma surpresa. De repente
+deu um grito; lan&ccedil;ou-se de joelhos junto da moura,
+tomou-lhe a cabe&ccedil;a no rega&ccedil;o, e palpou-lhe as
+faces
+e o seio, a v&ecirc;r se encontrava o calor da vida, e,
+curvando-se, entre carinhos, como se com elles a
+quizesse acordar daquelle lethargo, exclamou:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Garifa! Garifa!
+<br />
+
+<br />
+
+Garifa n&atilde;o respondeu. Os l&aacute;bios contrahidos,
+lividos, perdido o fogo que animava aquelle rosto moreno,
+quando, pelas grandes festas, nas dan&ccedil;as e
+<span class="pagenum">[137]</span>
+folias, com que as da sua ra&ccedil;a contribuiam, fazia
+girar sobre a cabe&ccedil;a o adufe, ou agitava os cascaveis
+que lhe adornavam o curto saio; os olhos cerrados;
+as longas cilias cheias de gotas d'agua, como se a
+morte a surprehendesse entre prantos, nem um suspiro
+desprendia; nem um movimento, por leve que
+fosse, se lhe notava.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Morta! tornou a meia-voz, atterrado, o b&eacute;steiro,
+tirando do cinto o punhal, e chegando-lhe a
+folha aos l&aacute;bios depois de a ter limpado.
+<br />
+
+<br />
+
+Um raio de luz, um raio de alegria passou pelos
+olhos do magoado amante, quando o fraco alento da
+mo&ccedil;a formou uma mancha na folha luzidia.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Garifa! Garifa! tornou elle a exclamar.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; viral-a de cabe&ccedil;a para baixo! resmungou
+o velho Vasco; &eacute; a m&eacute;sinha dos afogados.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Garifa... minha pobre Garifa! murmurava o b&eacute;steiro.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Safio, chega-lhe vinho; um trago n&atilde;o lhe far&aacute;
+mal, gritou Jo&atilde;o Canhoto; e em seguida, tomando o
+pichel que o seu companheiro trazia &aacute; cinta, derramou
+algumas gotas sobre os l&aacute;bios da desfallecida
+mo&ccedil;a, ao passo que este resmungava, vendo correr
+o lic&ocirc;r a que n&atilde;o parecia
+desaffei&ccedil;oado:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Boa cera com ruins defuntos!
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Bispo lan&ccedil;ou-lhe um olhar terrivel,
+e fez
+um movimento, como se tentasse desafogar em c&oacute;lera
+contra o imprudente marinheiro todo o peso do
+cora&ccedil;&atilde;o, e estallar, quando Garifa moveu os
+l&aacute;bios
+fazendo um gesto de repugnancia.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Basta, Canhoto, basta! acudiu Safio, que n&atilde;o
+reparara no b&eacute;steiro; vais fazer perder a alma &aacute;
+rapariga.
+No c&eacute;u dos mouros... que &eacute; o inferno,
+accrescentou por entre dentes... n&atilde;o entra quem prova
+do sumo da uva, ouvi dizer.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[138]</span>
+O b&eacute;steiro arred&aacute;ra
+Canhoto, e, com um bra&ccedil;o
+debru&ccedil;ando-se sobre o corpo da sua namorada, tomava-lhe
+as m&atilde;os entre as suas, quando ella abriu
+os olhos, murmurou algumas palavras inintelligiveis,
+e tornou a fech&aacute;l-os, soltando um suspiro.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Garifa! Garifa! tornou a exclamar o amigo
+de Fernando.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Quem me chama? perguntou a moura, como se
+acord&aacute;ra de um somno, com voz fraca, descerrando de
+novo as palpebras, e fazendo um esfor&ccedil;o para se erguer.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Eu, eu, Garifa! acudiu Jo&atilde;o Bispo cheio da alegria.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Porque me n&atilde;o deixaram morrer? murmurou a
+filha de Humeia cobrindo o rosto com as
+m&atilde;os.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Morrer, Garifa?! E que querias depois que
+eu fizesse no mundo! exclamou o mancebo affastando-lhe
+com brandura as m&atilde;os do rosto. Que faria
+eu? proseguio... Morrer... morrer tambem!
+<br />
+
+<br />
+
+A moura meneou a cabe&ccedil;a; fixou a vista, como
+admirada no besteiro; estremeceu toda, e dos olhos
+rebentou-lhe o pranto ao mesmo tempo que os solu&ccedil;os
+do peito. Jo&atilde;o Bispo, que, em alguns minutos
+apenas experimentara os mais contrariados affectos,
+a extrema d&ocirc;r e a alegria, redobrou os seus carinhos,
+as palavras affectuosas; mas as lagrimas continuavam
+a correr em fio dos olhos de Garifa.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Garifa, minha Garifa, porque choras? Deixa
+esse pranto com que me amofinas. Eu estou aqui,
+Garifa, e ninguem nos ha de agora separar. Tu cumpres
+a tua promessa... e teu pae, que n&atilde;o espera j&aacute;
+v&ecirc;r-te...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Oh, meu pae, exclamou a mo&ccedil;a interrompendo-o,
+e de novo cobrindo as faces; com que rosto
+lhe poderei eu apparecer?!...
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum"><a name="p139" id="p139">[139]</a></span>
+&#8213;Elle perdoar&aacute; tudo, Garifa; esquecer&aacute; tudo...
+e que n&atilde;o perd&ocirc;e, eu...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Nem elle, nem tu; Jo&atilde;o... Oh! porque me n&atilde;o
+deixaram morrer!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Eu? Garifa? Eu n&atilde;o te entendo... <a href="#e12">Que
+mal</a>
+me fizestes? porque te hei de malquerer?...
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Bispo estacou, e de um salto ficou de p&eacute;.
+O que se passara causara-lhe um violento abalo, para
+dar logar a reflex&otilde;es, e esquecera-se de que a mulher,
+que assim tentava p&ocirc;r termo &aacute; vida, tinha, duas
+semanas havia, desapparecido; esquecera-se do que
+lhe dissera o petintal e das suspeitas que o levaram ao castello de
+Gaya. Tudo, por&eacute;m, resumido em uma idea
+unica acab&aacute;ra de lhe passar pela mente.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Rausada?! exclamou, abaixando-se a arredar-lhe
+de novo as m&atilde;os das faces, procurando v&ecirc;r
+se dos olhos mais depressa do que dos l&aacute;bios obtinha
+uma resposta.
+<br />
+
+<br />
+
+A mo&ccedil;a s&oacute; redarguiu:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Porque me trouxeram &aacute; vida... porque?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Rausada! tornou Jo&atilde;o, passando uma das
+m&atilde;os pela fronte, em quanto com a outra apertava
+o cabo do punhal. O nome desse homem, e pela hostia
+consagrada juro que dentro em dias o repetir&atilde;o
+em resa de finados. Falla, Garifa: o nome desse homem?
+Vil&atilde;o ou cavalleiro que seja, eu me pagarei em
+sangue de quanto elle me roubou. Garifa, Garifa!
+<br />
+
+<br />
+
+Solu&ccedil;os e lagrimas foi a resposta que obteve da
+filha de Humeia.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Garifa, n&atilde;o respondes? Dize... dize que n&atilde;o
+te pozeram m&atilde;o, dize, proseguiu o mancebo f&oacute;ra de
+si; livra-me desta idea que me faz perder a cabe&ccedil;a;
+livra-me della ou aponta-me um homem em quem
+desafogue todo o desespero que sinto. Tu n&atilde;o me
+<span class="pagenum">[140]</span>
+atrai&ccedil;oaste, n&atilde;o; n&atilde;o era possivel...
+Empregaram a
+for&ccedil;a; empregarei a for&ccedil;a, e hei-de esmagar quem
+quer que seja o rausador. Garifa, n&atilde;o respondes?
+Uma palavra!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Que queres que te diga, Jo&atilde;o? Esmagaram
+o nosso amor, tornando-me indigna de ti: a filha de
+Humeia n&atilde;o p&oacute;de mais apparecer com a face
+descoberta!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E o refece, o maldito?! gritou o b&eacute;steiro
+apertando com violencia os pulsos da moura.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A aguia v&ocirc;a t&atilde;o alto que n&atilde;o a
+alcan&ccedil;a a garrocha,
+murmurou meneando a cabe&ccedil;a, depois de alguns
+instantes de silencio, a namorada de Jo&atilde;o Bispo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Quem foi, Garifa, quem foi?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Deixa-me, Jo&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O nome desse homem!... o nome desse homem!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o, n&atilde;o posso.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o p&oacute;des?...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o, n&atilde;o posso: dizer-te o nome era fazer-te
+a&ccedil;outar &aacute;manh&atilde; no pelourinho... era
+matar-te...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ayres Gon&ccedil;alves... Henrique Fafes!... gritou
+Jo&atilde;o Bispo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o... n&atilde;o m'o perguntes...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Qual delles, Garifa; qual delles? Affonso Darga?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ninguem!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ninguem?! O nome desse homem, ou tu &eacute;s
+t&atilde;o vil como elle!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Serei, Jo&atilde;o... sou. A moura do Olival, que te
+queria tanto como &aacute; luz dos olhos, morreu no dia
+em que lhe pozeram uma morda&ccedil;a na bocca e ataram
+os pulsos: atiraram depois o corpo ao monturo...
+como de moura que era. Garifa morreu, Jo&atilde;o:
+<span class="pagenum">[141]</span>
+o que aqui est&aacute; &eacute; uma desgra&ccedil;ada
+corrida por palafreneiros...
+a quem a lan&ccedil;aram...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Calai-vos, calai-vos! exclamou o mo&ccedil;o b&eacute;steiro,
+pondo a m&atilde;o na bocca da sua namorada. N&atilde;o
+p&oacute;de ser... &eacute; impossivel!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Antes f&ocirc;ra!... murmurou Garifa.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Em m&aacute; hora vim ao mundo!
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Bispo calou-se e deixou pender a cabe&ccedil;a
+sobre o peito. Quando de novo a ergueu, as palpebras
+estavam vermelhas, mas seccas; os olhos vagavam-lhe
+incertos; o rosto estava p&aacute;llido, e uma
+contrac&ccedil;&atilde;o
+nervosa dos musculos parecia emagrecer-lhe,
+avelhentar as fei&ccedil;&otilde;es. O amigo de Fernando
+Vasques,
+occultava sob as vestes grosseiras um grande
+cora&ccedil;&atilde;o,
+cheio de fogo, de energia, e toda essa energia empreg&aacute;ra-a
+no amor da filha de Humeia. A moura
+do Olival era tambem a unica mulher que top&aacute;ra no
+seu trilho capaz de n&atilde;o esfriar essa paix&atilde;o.
+N&atilde;o prendia,
+n&atilde;o captivava s&oacute;mente com a bellesa do corpo;
+captivava com os dotes do cora&ccedil;&atilde;o, da
+intelligencia.
+Garifa tivera na infancia faixas bem superiores &aacute;s
+telas grosseiras dos vestidos que trajava no Porto.
+Para corresponder &aacute; exalta&ccedil;&atilde;o, que a
+vida ociosa e
+ao mesmo tempo cheia de sobresaltos e de incertesas
+produzia na mente do escolar de S. Domingos,
+era necessaria a exalta&ccedil;&atilde;o do sangue arabe,
+fervente
+nas veias de Garifa. &Eacute; facil de avaliar qual o abalo
+que o mancebo recebeu no caes de Gaya. Aquella
+desventura, receara-a, temera-a; mas n&atilde;o se afizera
+&aacute;
+idem de que se realis&aacute;sse; ach&aacute;ra sempre a
+providencia
+a estender a m&atilde;o &aacute; sua namorada, a protegel-a.
+Na mar&eacute; mais negra seguindo-a com o pensamento,
+depois que ella desapparecera do Olival vira-a morta;
+mas se encontrasse no Douro o seu cadaver, a m&aacute;goa
+n&atilde;o f&ocirc;ra tamanha como a que sentia.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[142]</span>
+Mesteiraes e marinheiros fitavam commovidos
+os dous amantes, que se conservavam mudos affastando
+as vistas um do outro: Jo&atilde;o de p&eacute;, sombrio,
+pensativo; Garifa de joelhos, lacrimosa, tremulla, branca
+como a roupa que vestia por baixo do roto gab&atilde;o, que
+um marinheiro lhe lan&ccedil;ara aos hombros.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Rausada! murmurou passados momentos o
+mancebo, sacudindo a cabe&ccedil;a, como se assim podesse
+repellir aquella ideia.
+<br />
+
+<br />
+
+Depois, estendendo a m&atilde;o &aacute; pobre moura, ajuntou:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Vem, Garifa; j&aacute; n&atilde;o sou tambem o mesmo que
+era. Vem commigo.
+<br />
+
+<br />
+
+A mo&ccedil;a, levada pela solemnidade da voz e do
+gesto do mancebo, e ajudada por elle, levantou-se
+machinalmente, e com passos mal seguros, seguiu-o,
+perdendo-se os dois na escurid&atilde;o da estreita rua
+que guiava ao povoado.
+<br />
+
+<br />
+
+Os marinheiros ficaram olhando uns para os outros.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Pobre rapaz! murmurou um delles.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A rapariga era a que chegou a noite passada,
+quasi nua e toda magoada &aacute; taberna do tio Pero,
+e que elle abrigou por caridade, e livrou de dous
+mal encarados que a seguiam.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Deu-me os seus ares della.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Era a mesma, sem tirar nem p&ocirc;r.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mal a puzeram em terra, conheci-a: era a
+moura do Olival.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Coitado do Bispo, resmungou o velho Vasco.
+Bem enfeiti&ccedil;ado o traz a tal moura. Estas condemnadas
+teem taes artes, que, se vos lan&ccedil;am olhado,
+fica-se perdido de todo. Teem feiti&ccedil;os para tudo.
+Um rapaz conheci eu no meu tempo, que se myrrou
+<span class="pagenum"><a name="p143" id="p143">[143]</a></span>
+de todo, e morreu por causa de uma destas maldictas.
+Em casa da rapariga, uma moura, e linda at&eacute;
+alli, encontraram uma figura de cera feita a imagem
+d'elle com os olhos pregados, e um alfinete enterrado
+no sitio do cora&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Qual feiti&ccedil;o, nem meio feiti&ccedil;o! resmungou
+Jo&atilde;o Canhoto.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o acreditas! accudiu outro mesteiral. As
+mouras todas sabem de feiti&ccedil;aria, e quando querem
+querem que um <a href="#e13">homem</a> lhes queira,
+a ellas ou
+a quem isso lhe pede, apanham um sapo, e cozem-lhe
+os olhos.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o digo que se n&atilde;o fa&ccedil;am desses
+maleficios;
+mas a rapariga do Bispo...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Homem, &eacute; moura e basta.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Moura ou christ&atilde;, se enfeiti&ccedil;ava, era com os
+olhos. N&atilde;o precisava de outra cousa, accudiu Jo&atilde;o
+Canhoto. A b&ocirc;a gente vi ficar de bocca aberta para
+ella, este anno ainda na prociss&atilde;o de Corpus, e depois
+n&atilde;o tem sido nem a um, nem a dous senhores
+de alta linhagem que tenho visto seguil-a, todos requebrados.
+A um dos que est&aacute; no castello ainda
+ha semanas encontrei em seu alcance pela aljama,
+era j&aacute; noite cahida. N&atilde;o disse nada ao Bispo, por
+que elle faria alguma!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Feiti&ccedil;os, feiti&ccedil;os, para nos perder a alma,
+resmungou o velho.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ora, mestre Vasco! Tambem enfeiti&ccedil;ou ella a
+quem o poz naquelle estado? A pobre, que se queria
+finar por se v&ecirc;r assim, &eacute; porque n&atilde;o
+foi por sua
+vontade que a tiraram de casa. Christ&atilde;s conhe&ccedil;o
+eu,
+como as palmas das m&atilde;os, que n&atilde;o a valem. Se
+mestre Vasco estivesse mais novo, e ella lhe dissesse
+palavras de bem querer...
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum"><a name="p144" id="p144">[144]</a></span>
+&#8213;Credo! era um peccado!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Deus me perd&ocirc;e; mas eu n&atilde;o o tenho por
+peccado; se o &eacute;, muita gente pecca.
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Canhoto n&atilde;o deixava de dizer a verdade:
+as mouras por aquelles tempos roubavam &aacute;s
+christ&atilde;s
+bastantes cora&ccedil;&otilde;es, tanto de nobres, como de
+pe&otilde;es,
+o que as obrigava a cr&ecirc;r em poderes occultos, para
+n&atilde;o se confessarem derrotadas nos encantos. Nos
+pa&ccedil;os
+dos cavalheiros e ricos-homens, muita descendente
+de Agar, forjava dos ferros que lhes lan&ccedil;&aacute;ra a
+escravid&atilde;o
+cadeias para os seus senhores: nas cidades
+as mais jovens e formosas eram como Garifa for&ccedil;adas
+quasi a mostrarem as suas gra&ccedil;as em publico
+nas grandes solemnidades: eram as bailarinas da epocha,
+e as bailarinas teem feito dan&ccedil;ar muita cabe&ccedil;a
+desde Herodiade at&eacute; aos nossos dias. Os escrupulos
+do velho Vasco n&atilde;o eram partilhados sen&atilde;o pelos
+que
+se viam no seu estado. Os legisladores, entretendo-se
+a impedir rela&ccedil;&otilde;es ou
+liga&ccedil;&otilde;es entre as duas ra&ccedil;as com
+penas mais ou menos sev&eacute;ras, n&atilde;o quizeram, ao que
+parece, mais do que deixar prova de que ellas eram
+um pouco frequentes, e que j&aacute; ent&atilde;o se faziam
+leis
+para ficarem letra morta, salva uma ou outra
+excep&ccedil;&atilde;o
+feita com algum pobre de Christo. Nos <a href="#e14">principios
+do</a>
+seculo XVI ainda apparecem trovadores, que,
+apregoando o seu affecto por descendentes de Azharat
+e de Shobeia, n&atilde;o nos deixam ficar por mentiroso.
+<br />
+
+<br />
+
+Para cr&eacute;dito das nossas av&oacute;s christ&atilde;s,
+attribuamos
+a maior recato dellas, as conquistas das mo&ccedil;as
+do Islam. O leitor, comtudo, n&atilde;o fique pensando
+que estas n&atilde;o tinham sobre a virtude, sobre o
+<a href="#e15">pudor</a> e sobre o amor ideas <a href="#e16">identicas</a> &aacute;s professadas
+por aquellas. Garifa n&atilde;o era uma
+excep&ccedil;&atilde;o unica feita
+<span class="pagenum">[145]</span>
+para Jo&atilde;o Bispo: as ideas com que hoje s&atilde;o
+creadas
+as mulheres no Oriente, n&atilde;o eram as das mulheres
+arabes de Hespanha. Com pequenas excep&ccedil;&otilde;es, o
+amor
+no seculo XIV tinha em Granada as mesmas leis que
+na c&ocirc;rte da condessa de Champagne.
+<br />
+
+<br />
+
+O leitor poder&aacute; agora dizer-nos o mesmo que Safio
+a Vasco e Jo&atilde;o Canhoto:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Deixemo-nos dessas cousas.
+<br />
+
+<br />
+
+O marinheiro accrescentou:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Vamos: a noite de S. Jo&atilde;o &eacute; para descantes
+e folias! Venham as mo&ccedil;as para o terreiro. Eia!
+m&atilde;os &aacute; obra: avivar as fogueiras e tanger as
+violas, que
+as cachopas acudir&atilde;o! Ehuh! Mafalda! Joanna!
+<br />
+
+<br />
+
+Pouco depois ninguem diria que na praia da velha
+Cale se tinha passado uma scena de lagrimas; que uma
+pobre rapariga tent&aacute;ra p&ocirc;r termo aos seus dias;
+que um
+cora&ccedil;&atilde;o se despeda&ccedil;&aacute;ra. Um
+bando de raparigas, de marinheiros
+e mesteiraes, dando as m&atilde;os uns aos outros,
+dan&ccedil;avam, ou melhor, giravam, formando circulo,
+em volta de uma grande fogueira, e entoavam todos
+esta cantiga, que os musicos da festa faziam por
+acompanhar:
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry">
+&laquo;Todas as hervas s&atilde;o bentas<br />
+
+Em noite de S. Jo&atilde;o<br />
+
+S&oacute; o trevo, coitadinho!<br />
+
+Anda a rasto pelo ch&atilde;o.&raquo;
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+E o sol, nascendo, ainda os encontrava no mesmo
+local.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>X.</h3>
+
+<h3>
+Uma idea.
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="quote2 intro">
+N&atilde;o falta com raz&otilde;es quem desconcerte<br />
+
+Da opini&atilde;o de todos na vontade.<br />
+
+Em quem o esfor&ccedil;o antigo se converte<br />
+
+Em desusada e m&aacute; deslealdade.
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="signature"><span class="smallcaps">Cam&otilde;es.</span>
+<em>Lusiad.</em> Cant. IV.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Os burguezes do Porto tinham desempenhado a
+sua palavra: os navios promettidos estavam a nado
+nos aguas do Douro, promptos para dar &aacute; v&eacute;la. Os
+cavalleiros e ricos-homens nem todos procediam do
+mesmo modo; o fogo do amor da patria era em alguns,
+tibio, em outros nullo. Ayres Gon&ccedil;alves de Figueiredo
+<span class="pagenum">[148]</span>
+era deste numero. Approveitara os conselhos
+de sua mulher, e fazia todo o possivel por aguardar
+que a situa&ccedil;&atilde;o se definisse para entrar com
+seguran&ccedil;a
+na contenda. Martim Gil, mandado pelos portuenses,
+ao conde D. Gon&ccedil;alo, delle recebera uma resposta favoravel,
+depois de feita, entende-se, a concess&atilde;o das
+terras da rainha D. Leonor a sua merc&ecirc;, e a das de
+Lordello e Bou&ccedil;as seu filho D. Martinho, f&oacute;ra
+outras miudesas, taes como dinheiro e pe&ccedil;as de panno;
+por&eacute;m o conde adiava, sob pretexto de aprestes, a
+sua partida, quanto lhe era possivel. O Mestre lembrava
+continuamente os apuros em que estava a sua boa
+cidade de Lisboa; mas os nossos homens n&atilde;o se queriam
+metter tambem nelles, sem a certesa de bom resultado.
+Ayres Gon&ccedil;alves tinha os olhos no conde de Neiva;
+Affonso Darga e outros cavalleiros aguardavam a
+resolu&ccedil;&atilde;o
+do alcaide de Gaya. Ruy Pereira, no entanto,
+enfastiara-se de tanta delonga, e tendo Alvaro
+da Veiga, Luiz Giraldes e Domingos Pires lembrado
+que se enviasse a armada receber o conde &aacute;
+Figueira, o alvitre f&ocirc;ra acceite, com grande
+amofina&ccedil;&atilde;o
+dos Fabios politicos, que trataram logo de procurar
+embara&ccedil;os &aacute; sua realisa&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Uma circumstancia os favoreceu.
+<br />
+
+<br />
+
+Quando, pouco depois do S. Jo&atilde;o, a municipalidade
+tratava n&atilde;o s&oacute; de abastecer as gal&eacute;s,
+mas at&eacute; de enviar
+alguns viveres para os sitiados, como f&ocirc;ra requerido,
+alguns companheiros de Fernando Affonso de Zamora,
+deslembrados da li&ccedil;&atilde;o dada em Santo Thyrso, ou
+outros aventureiros similhantes appareceram nas visinhan&ccedil;as
+da cidade. Mal a noticia se espalh&aacute;ra, frei
+Garcia fora ter com Pedro Choca, e caus&aacute;ra
+nas tercenas um alvoro&ccedil;o extraordinario, pintando
+as cousas o mais feias possivel. Este alvoro&ccedil;o,
+gra&ccedil;as
+<span class="pagenum">[149]</span>
+a outros individuos, se tornou contagioso; o temor
+calou nos animos fracos, e na tarde desse mesmo
+dia nas ruas, terreiros e pra&ccedil;as
+lamenta&ccedil;&otilde;es
+n&atilde;o faltavam.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Eis de novo esses malditos gallegos! m&aacute;s
+ter&ccedil;&atilde;es
+os colham! dizia um mercador. N&atilde;o nos deixam tomar
+folego os hereges, e em bem mau estado v&atilde;o j&aacute; os
+negocios. O tempo vai bom para espadeiros; que os
+outros n&atilde;o veem pogea. Tudo s&atilde;o guerras, agora, e
+desordens. Dantes n&atilde;o era assim. No tempo do rei
+D. Pedro!... suspirou o bom homem, e concluiu meneando
+a cabe&ccedil;a, e fitando os olhos no tecto da loja.
+<br />
+
+<br />
+
+Este gesto queria dizer que no tempo do pae do
+Defensor a paz florescia na terra, e era, talvez, copiado
+de outro identico, feito pelo senhor seu progenitor
+quando o amante de Ignez de Castro talava o Douro e
+o Minho, e mesmo de algum feito por seu av&ocirc;, affectado
+pelas desaven&ccedil;as de D. Diniz com o pae do rei
+D. Pedro.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o foram bem sangrados, e veem por mais
+esses castelhanos ou acastelhanados, redarguia um visinho;
+pois ter&atilde;o o seu escote, como o teve o de Zamora
+e o arcebispo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mal haja quem mal faz!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ruy Pereira, Ayres Gon&ccedil;alves, ou qualquer
+os receber&atilde;o como merecem.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Assim creio; e por isso, como me dizia ha
+pouco mestre Louren&ccedil;o, &eacute; que n&atilde;o acho
+muito acertado
+mandarem para Lisboa quanta b&ocirc;a lan&ccedil;a ha por ahi.
+&Eacute; dever acudir ao proximo; mas em primeiro logar
+est&atilde;o os da casa.
+<br />
+
+<br />
+
+Quasi todos os dialogos, travados em diversos
+pontos appresentavam, espremidos, o mesmo succo
+que o do bom mercador quando pelo lado das
+<span class="pagenum">[150]</span>
+Hortas entrava uma grande manada de bois, e rebanhos
+de ovelhas e cabras, destinados ao abastecimento
+das gal&eacute;s. Alguns ociosos, encontrando-se com
+a manada fizera-lhe cortejo; alguns mesteiraes, vendo
+os ociosos, pousaram a ferramenta e engrossaram-no;
+os garotos, que possuem o faro dos grandes
+ajuntamentos, conhecendo que se formava um,
+surdiram de todos os b&ecirc;cos, para o completar. Ao
+chegar o gado a S. Domingos, caminho das tercenas,
+onde deviam os carniceiros preparar as carnes,
+a prociss&atilde;o era solemne pelo numero. A ideia
+que presidia a todas as lamenta&ccedil;&otilde;es ia ser
+formulada de
+outra sorte: frei Garcia e alguns outros apaniguados
+do alcaide, achavam-se entre as turbas; Pedro Choca,
+desemboc&aacute;ra do lado da Esnoga, sahido de uma taberna,
+onde, junto com individuos que deviam estar
+debaixo da jurisdi&ccedil;&atilde;o de Tello Rabaldo, tinha
+enxugado
+algumas medidas de vinho, e n&atilde;o era pelo menos
+destituido da manha necessaria para certas empresas.
+<br />
+
+<br />
+
+Se o concurso era grande, tambem era ruidoso.
+Os conductores da manada gritavam, vendo que uma
+ovelha tresmalhava, picada por algum rapaz travesso, ou
+um boi estacava, atemorisado por nega&ccedil;as; os homens
+d'armas da escolta praguejavam no meio de
+tantos embara&ccedil;os; aqui uma mulher queixava-se de
+que a pizavam; al&eacute;m alguns homens altercavam com
+os b&eacute;steiros, que os repelliam do transito; mais longe
+chorava uma crean&ccedil;a. Os garotos e os v&aacute;dios
+praguejavam,
+gritavam, riam-se, assobiavam, cantavam e
+imitavam o balido de ovelhas e cabras, e o mugido
+dos bois, como se os animaes se recusassem a tomar
+parte naquelle concerto.
+<br />
+
+<br />
+
+Entrando no terreiro a multid&atilde;o, crescera a algazarra.
+<span class="pagenum"><a name="p151" id="p151">[151]</a></span>
+Uma chusma de homens cobertos de andrajos,
+bem similhante &aacute; que estacionava no Olival,
+no dia da chegada da mensagem, correra para as boccas
+das ruas que iam dar ao rio, obstruindo-as
+completamente. Quando os guardas dos rebanhos quizeram
+abrir caminho para as tercenas, os vadios <a href="#e17">demonstraram</a>
+a sua m&aacute; vontade com apodos a que responderam
+os acontiados da behetria com os contos
+das azevans, ou as b&eacute;stas, manejadas em ar de clava.
+Nesta destribui&ccedil;&atilde;o de pancadas foram, como
+succede muita vez em casos taes, contemplados bastantes
+innocentes. Um b&eacute;steiro, querendo chegar a
+um velhaco, feriu no rosto uma mulher, levada para
+o centro do motim pelas ondas de povo. O sangue,
+correndo pelas faces da <a href="#e18">pobre creatura</a>,
+indignou alguns
+circumstantes, que s&oacute; a curiosidade alli trouxera.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Fazei pra&ccedil;a, exclamou d'entre elles um burguez,
+fazei pra&ccedil;a, mas com tento. Guardai os virotes para
+castelhanos
+escismaticos. Em recontro ou batalha talvez o
+bra&ccedil;o n&atilde;o ande t&atilde;o destro.
+<br />
+
+<br />
+
+O acontiado fez um gesto como de quem ia empregar
+syllogismo contundente; mas a prudencia o aconselhou
+melhor, e contentou-se com redarguir:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Cuidai no vosso mester, bom homem, e deixae-me.
+Onde pozeram a mira estes velhacos sei eu.
+N&atilde;o lhes passa ha mezes pelas goelas bocado de cabrito,
+e querem fazer b&ocirc;do com algum que filem.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Olha o outro! gritou um petintal. Se n&atilde;o
+comemos cabrito todos os dias, comemos p&atilde;o; mas
+amassamol-o com o nosso suor: n&atilde;o o vamos roubar
+pelas padeiras. Os tagantes do aljube ainda teem
+a pelle de dous dos vossos! N&oacute;s n&atilde;o nos servimos
+das adagas para cortar escarcellas de mercadores
+encontrados f&oacute;ra d'horas.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[152]</span>
+&#8213;Muito nos custa a viver! acudiu uma g&ocirc;rda
+cidad&ocirc;a,
+e mais custar&aacute; agora que levam todo isso para
+Lisboa.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E n&atilde;o parar&aacute; ahi, disse um dos companheiros
+de Pedro Choca do meio da turba: vai quanto
+mantimento se encontra pela redondesa e ha na
+cidade.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Se os de Lisboa est&atilde;o cercados pelos de Castella,
+que fa&ccedil;am como fizemos em Le&ccedil;a: se por
+l&aacute;
+est&atilde;o minguados de mantimentos, tambem n&atilde;o nos
+sobejam.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E os do arcebispo ainda n&atilde;o foram desta
+t&atilde;o malferidos, que n&atilde;o possam voltar, disse uma
+voz.
+Alguns corredores teem sahido de Braga.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; verdade, &eacute; verdade! berraram ao mesmo
+tempo dez ou doze mesteiraes. Os de Lisboa que se
+avenham como poderem.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Teem bra&ccedil;os como n&oacute;s.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E n&atilde;o havemos de finar-nos &aacute; mingua. Os
+mercadores mandam boas dobras.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E a prata da S&eacute; vai tambem!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;J&aacute; os alvazires carregaram uma gal&eacute; de armas,
+e de Coimbra e Montem&oacute;r vieram outras.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Que se contentem com isso, e com o biscouto
+e farinha que embarcaram!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Deixai que n&atilde;o faltar&aacute;, louvado Deus,
+mantimento
+na cidade, embora levem tudo isso ao Mestre.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Fallais assim redarguiu um dos queixosos,
+voltando para o ordeiro, que proferira estas ultimas
+palavras, porque se um p&atilde;o de pra&ccedil;a vos custar
+dous reaes brancos, tendel-os na arca! Nem mealha
+deixaremos embarcar.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Nem mais tanto como uma unha negra!
+<br />
+
+<br />
+
+Este dialogo, ou esta scena, que se passava ao
+<span class="pagenum">[153]</span>
+p&eacute; do arco, como nas tragedias antigas tinha o seu
+c&ocirc;ro n'uma gritaria descompassada de que seria difficil
+dar uma ideia. O que sobresahia no meio de
+tudo, eram os <em>vivas</em> e os <em>morras</em>.
+Se se perguntasse
+a cada um dos coristas em separado porque
+davam essas vozes, nenhum talvez vol-o diria,
+a n&atilde;o ser que confessassem que sentiam a necessidade
+de gritar, e que na falta de melhor cousa,
+aquellas palavras serviam perfeitamente para tudo:
+enthusiasmavam, animavam o tumulto, e de mais
+apregoavam que eram muitos bons patriotas. Os
+vivas eram ao Mestre; os morras aos scismaticos:
+levar a mal aquella berraria, ninguem podia levar.
+<br />
+
+<br />
+
+Do lado opposto a algazarra era a mesma, com
+pequenas variantes.
+<br />
+
+<br />
+
+Os conductores de gado e os guardas embrulhados
+pela chusma n&atilde;o tratavam j&aacute; sen&atilde;o de
+se deslimdarem
+della, e de acudir aos rebanhos.
+<br />
+
+<br />
+
+Alguns amotinados tinham, para desembara&ccedil;ar
+o terreiro, conduzido a maior parte do gado gra&uacute;do
+para as azenhas: ovelhas e cabras, essas corriam
+em todas as direc&ccedil;&otilde;es. Para cumulo da
+confus&atilde;o,
+quando Pedro Choca e os seus companheiros persuadiam
+o povo a que se dirigissem ao pa&ccedil;o episcopal
+ou &aacute; casa do municipio, dous touros, enfurecidos ou
+assustados pelo ruido e nega&ccedil;as d'alguns garotos, tinham
+aberto caminho para o lado da Esnoga, derribando
+e maltractando algumas crean&ccedil;as e mulheres.
+A culpa do desastre era dos amotinados; mas
+todos elles &aacute; uma tinham procurado origem mais remota,
+e lan&ccedil;aram aos vereadores e bons homens que
+tinham ordenado a remessa dos mantimentos. Um velhaco
+lembrara-se de juntar aos &laquo;morras&raquo; da ordem
+um aos &laquo;alvazires, que queriam matar o povo &aacute;
+fome&raquo;
+<span class="pagenum">[154]</span>
+e entre multid&atilde;o, mesteiraes, que horas antes teriam
+dado a sua ultima pogea, se para sua senhoria
+lh'a pedissem, repetiram aquelle grito.
+<br />
+
+<br />
+
+Uma voz ampliou-o:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Morram os traidores, que querem dar cabo da
+arraia miuda para entregar a cidade aos de Castella!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Morram os traidores! uivou a chusma.
+<br />
+
+<br />
+
+E apparecia j&aacute; o alvitre de se ir em procura de
+alguns alvazires, e at&eacute; mesmo de os tractarem como
+ao arrabi-menor, quando dois daquelles appareceram
+no terra&ccedil;o do arco de S. Domingos. Ruy Pereira, que
+vira rebentar o alvoro&ccedil;o, mandara-os chamar e a alguns
+bons homens para que socegassem os animos
+como podessem. O tio de Nuno Alvares, a principio
+tivera, ao ouvir o arruido, vontade de baixar ao terreiro
+e cortar naquella villanagem, que de cabe&ccedil;a
+t&atilde;o levantada, insolente e turbulenta trazia o Deffensor;
+mas, apenas mandara sellar o seu cavallo,
+a reflex&atilde;o lembrou-lhe a inconveniencia de um tal passo,
+e a reminiscencia poz-lhe diante dos olhos os tumultos
+de Lisboa e Evora e tantas outras terras do
+reino. O mensageiro do mestre, contentou-se, pois,
+em desabafar em pragas, em dar duas grandes punhadas
+sobre a mesa, e desappareceu pelo lado da cerca
+do convento onde pousava, para n&atilde;o se ver obrigado
+a aturar o bom povo, deixando as authoridades
+municipaes em apuros. N&atilde;o eram fortes em rhetorica
+os bons homens, e a pouca que lhes concedera
+a natureza fugira assustada.
+<br />
+
+<br />
+
+Os velhacos, dando por elles saudaram-nos
+com uma ladainha de ap&ocirc;dos que faria pasmar
+ao leitor pela quantidade e pelo desusado.
+<br />
+
+<br />
+
+A arraia do terreiro tinha grande vantagem sobre
+<span class="pagenum">[155]</span>
+os burguezes do arco: para o attaque bastavam
+palavras soltas, ou mesmo gritos inarticulados; para
+a defesa, para satisfazer as exigencias de Ruy Pereira,
+era necessario um discurso, pequeno ou grande,
+mas um discurso.
+<br />
+
+<br />
+
+Os alvazires e mais cidad&atilde;os que os acompanhavam,
+depois de se empuxarem e acotovellarem uns
+aos outros, por bom espa&ccedil;o de tempo, tinham resolvido,
+ou antes for&ccedil;ado o mais bojudo e o mais
+endinheirado d'entre elles a tomar a palavra, e o nosso
+homem depois de um gesto bastante solemne feito
+ao bom povo; depois de tossir e escarrar, como o
+faria, ao encetar um serm&atilde;o, o frade mais sabedor do
+convento de a p&aacute;r, balbuci&aacute;ra uma ou duas duzias
+de
+palavras. &Eacute; de cr&ecirc;r que fossem boccados de ouro;
+mas
+assever&aacute;l-o ninguem, a n&atilde;o serem os collegas, o
+poderia
+fazer, pois, quasi nada perceberam no terreiro os que
+lhe quizeram prestar atten&ccedil;&atilde;o. Uma grande parte
+n&atilde;o
+lh'a dava, e continuava a formular as suas queixas
+ou accusa&ccedil;&otilde;es.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Querem dar cabo do povo, e entregar a cidade
+aos de Castella!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Morram os traidores!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Morram os scismaticos.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Amigos, tornou o alvazir levantando a voz,
+logo que a tempestade popular serenou mais; o Mestre
+nosso regedor e defensor se encomendou &aacute;s vossas
+boas lealdades, e vos mandou dizer que, como este
+reino andava todo revolto com desvairadas
+ten&ccedil;&otilde;es...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E bem desvairadas s&atilde;o as que tendes! exclamou
+cortando a palavra ao orador, um amotinado,
+pouco reverente para com o plagio da mensagem de
+Ruy Pereira, de que em apuros aquelle se valera.
+<br />
+
+<br />
+
+O pobre homem, olhou em torno de si espantado;
+<span class="pagenum">[156]</span>
+limpou o suor, que lhe corria em bagas pela
+fronte; tossiu de novo; poz a m&atilde;o no peito para tomar
+um ar mais solemne, e come&ccedil;ou novo aranzel:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Todos v&oacute;s sabeis que esta cidade levantou
+voz pelo Mestre...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Viva o Mestre! Alcacere por sua senhoria!
+gritou a chusma...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Todos v&oacute;s sabeis, repetiu o alvazir, que esta
+cidade deu voz pelo Mestre, que jurou defender-nos
+e amparar-nos, e tambem sabeis que el-rei de Castella
+veio sobre Lisboa com toda a sua gente...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Morram os castelhanos! gritaram do terreiro.
+<br />
+
+<br />
+
+O illustre orador, como hoje lhe chamariam, se
+ele vivesse, as gazetas, org&atilde;os ou respiradouros do
+partido em que se tivesse lan&ccedil;ado; o illustre orador,
+vendo que n&atilde;o havia com tal gente meio de atar
+duas phrases sem uma interrup&ccedil;&atilde;o, tratou,
+j&aacute; desesperado,
+de resumir o seu discurso:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O regedor mandou pedir a esta boa cidade
+que lhe enviassem todas as gal&eacute;s e barcos que fosse
+possivel armar e equipar, e bem assim mantimentos
+e dinheiros, os quaes&#8213;ajuntou o bom do alvazir, como
+se entre os amotinados houvesse alguem que com
+tal se importasse&#8213;como filho de el-rei que &eacute;, por
+toda a sua verdade jurou pagar muito bem...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E ressuscita os que tiverem morrido &aacute; fome?
+perguntou um velhaco, que subira acima de um
+poial, arrimado ao arco, e de bra&ccedil;os cruzados, com
+gesto zombeteiro encarava o orador.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Morram os traidores!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O regedor n&atilde;o quer que matem o povo!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Viva o Mestre!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Fora os alvazires, gritou Pedro Choca.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[157]</span>
+&#8213;Fora, fora! vozearam d'entre a multid&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+O orador tornou a limpar o suor, que se tornava
+copioso e frio cada vez mais, e ainda tentou proseguir;
+mas a sua m&aacute; estrella quiz que ao examinar o
+seu auditorio d&eacute;sse de novo com os olhos no velhaco
+do poial. O maldito riu-se, e fez-lhe um esgar;
+e risada e esgar seccaram-lhe completamente a prosa
+na garganta. O bojudo cidad&atilde;o bateu com a lingua
+nos dentes, soltou dous ou tres sons, estendeu os
+bra&ccedil;os, e meneou-os, como se pertencesse &aacute; seita
+dos mestres pedreiros que, pouco havia, tinham concluido
+os muros da cidade, ou quizesse nadar em
+secco; mas nem uma palavra mais conseguiu formular,
+nem com todos aquelles tregeitos exprimir uma
+ideia.
+<br />
+
+<br />
+
+A atrapalha&ccedil;&atilde;o do orador deu incremento ao
+alvoro&ccedil;o, e os bons-homens que tentaram substituir
+aquelle na tribuna, n&atilde;o conseguiram um momento
+de atten&ccedil;&atilde;o. Era este o estado das cousas,
+quando Gon&ccedil;alo Domingues e Fernando, appareceram
+no terreiro, vindos do lado do Palmeirim. Mestre Gon&ccedil;alo
+e o compadre, que j&aacute; encontramos no campo do
+Olival, tinham sido os encarregados de arranjar o gado,
+e portanto a sua appari&ccedil;&atilde;o trouxe
+&aacute;quellas cabe&ccedil;as desorientadas a ideia de que uma
+boa parte da culpa
+dos males que receiavam, delles provinham. O acolhimento
+foi pois o menos amavel possivel. As rela&ccedil;&otilde;es
+de mestre Gon&ccedil;alo com o judeu Moyses, em quem
+o povo j&aacute; fizera justi&ccedil;a a seu modo, foi a
+primeira
+pecha que lembrou a alguns dos amotinados, e mal
+lhes lembrou, logo foi lan&ccedil;ada em rosto. A chusma
+fez c&ocirc;ro, como fazia a todas as lembran&ccedil;as, e o
+bom
+burguez ficou perplexo: fez-se vermelho e fez-se amarello
+quasi ao mesmo tempo, e o caso n&atilde;o era para
+menos. Quem n&atilde;o respeitava nem bispos, nem abbadessas,
+<span class="pagenum">[158]</span>
+n&atilde;o era muito que desacatasse um
+for&ccedil;ureiro,
+por mais endinheirado que fosse. N&atilde;o era mesmo
+naquellas circumstancias o dinheiro carta de seguro;
+bem pelo contrario: era mais uma raz&atilde;o para temores.
+<br />
+
+<br />
+
+Gon&ccedil;alo Domingues, impallidecendo, agarrou-se ao
+bra&ccedil;o do sobrinho e quiz retroceder; mas a rectaguarda
+estava-lhe j&aacute; cortada, e entre amea&ccedil;as foi levado
+pela
+multid&atilde;o at&eacute; junto do paiol, onde se
+empoleir&aacute;ra o vadio
+que secc&aacute;ra a eloquencia ao orador do arco. Fernando
+tomado de assombro seguiu o tio. O sangue
+do mancebo, por&eacute;m, n&atilde;o era o do velho, e a
+vozearia,
+os insultos bem depressa o fizeram ferver. O
+primeiro impulso do namorado de Irene, recuperada
+a exalta&ccedil;&atilde;o que o dominava desde o recontro de
+Le&ccedil;a, e levado por assomos de cholera foi o de se
+lan&ccedil;ar contra os amotinados.
+Desembara&ccedil;ando-se das
+m&atilde;os de seu tio, atirou-se a um mesteiral, que junto
+do rosto daquelle erguera o punho cerrado, e ia
+ser victima talvez dos seus brios, quando dous bra&ccedil;os
+musculosos seguraram o seu antagonista, e uma
+voz, que devia ser conhecida de alguns dos que se
+mostravam mais enfurecidos contra mestre Gon&ccedil;alo,
+exclamou:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ter m&atilde;o rapazes!
+<br />
+
+<br />
+
+Pedro Choca vira Fernando Vasques amea&ccedil;ado
+e correra em seu auxilio. O velhaco, apesar de tudo,
+n&atilde;o deixava de ser um bom patriota, de ter o seu
+enthusiasmo pelos defensores da arraia meuda. Conhecia
+Fernando do assalto ao bailiado, e o denodo
+do mancebo fizera com que elle o tivesse na conta
+de um heroe, contra o qual n&atilde;o levant&aacute;ra
+m&atilde;o, nem
+consentira que se levantasse por todo o dinheiro que
+lhe dessem.
+<br />
+
+<br />
+
+As suggest&otilde;es e os tornezes do capell&atilde;o de
+<span class="pagenum">[159]</span>
+Ayres Gon&ccedil;alves, e mesmo o prazer de fazer arruido
+n&atilde;o eram as unicas causas que o tinham feito
+estafar os pulm&otilde;es; frei Garcia gast&aacute;ra tempo e
+algumas
+malgas de vinho para o convencer de que entre
+os alvazires havia partidarios de Castella, que tinham
+tido o negregado pensamento de se vingarem
+do povo, por meio da fome, fingindo que serviam ao
+mestre. Que Fernando pactuasse com traidores n&atilde;o acreditava
+por&eacute;m, o velhaco, e por isso repetiu com ar
+amea&ccedil;ador, vendo que alguns animos ainda se mostravam
+hostis ao mancebo:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Que ninguem lhe toque em um cabello da
+cabe&ccedil;a, sen&atilde;o commigo tem de se haver!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A traidor, como a traidores! gritou o mesteiral,
+querendo desembara&ccedil;ar-se da pris&atilde;o em que
+estava.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Traidor, quem tomou uma bandeira aos gallegos,
+quem eu vi atirar-se a esses perros como se
+os virotes fossem palheiras?!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Se n&atilde;o &eacute; traidor, &eacute; por elles, que
+vale o mesmo.
+Que tem elle com esse for&ccedil;ureiro de m&aacute; morte!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Que enriqueceu furtando ao peso.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E mais sabe Deus se era cabrito ou c&atilde;o o
+que dantes vendia!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E agora comprou o gado todo, para nos deixar
+&aacute; fome!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mentis! exclamou Fernando, respondendo a
+estes capitulos de accusa&ccedil;&atilde;o; mentis!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ahi o tendes! ponde a m&atilde;o no fogo por
+elle! resmungou um dos vadios, dirigindo-se a Pedro
+Choca.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Se t&atilde;o bom &eacute; um como o outro! ajuntou uma
+mulher. O rapazelho &eacute; filho, ou cousa que o valha do
+for&ccedil;ureiro.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[160]</span>
+Pedro Choca co&ccedil;ou a cabe&ccedil;a, e olhou para Fernando
+com ar indeciso, mas logo formulou este raciocinio:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O mancebo era incapaz de pactuar com os inimigos
+do Defensor, e protegia Gon&ccedil;alo Domingues
+logo a n&atilde;o quadrava tambem o appellido de traidor.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Se &eacute; pae do meu homemsinho &eacute; outro caso,
+exclamou em seguida, voltando-se para os circumstantes.
+Deve ser dos nossos.
+<br />
+
+<br />
+
+[**P1 texto reconstitu&iacute;do a partir do original do Google]
+Gon&ccedil;alo Domingues, vendo que alguem mais de
+que o sobrinho vinham em seu auxilio, tartamudeou.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Domingues Pires ou Affonso Eannes, se aqui
+estivessem vol-o diriam!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Que resmunga elle?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Acoberta-se com o trato que tem com Domingues
+Pires?
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Sim, sim; mas tambem era dos amigos do
+perro Moyses! se ouviu dentre a multid&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+A arraia meuda, como se baptis&aacute;ra o povo naquella
+quadra, tresvairada, estreit&aacute;ra o circulo formado
+&aacute; volta do burguez e as suas inten&ccedil;&otilde;es
+pareciam
+ser bem pouco pacificas, quando Fernando,
+saltou acima do poial, abandonado pelo companheiro
+de Pedro Choca. A vis oratoria, molestia que se
+d&aacute; em quadras revoltas como sez&otilde;es em terrenos
+alagadi&ccedil;os, acommettera tambem o namorado de Irene.
+O rapaz emprehendia tarefa espinhosa, como os
+respeitaveis edis o podiam attestar, commettia, pode-se
+avan&ccedil;ar uma loucura; mas &eacute; sabido que neste
+mundo por vezes as loucuras aproveitam mais do
+que as cousas pensadas. Fernando tivera uma idea,
+que vos far&aacute; rir talvez leitor, e que podia ter entre
+os amotinados o mesmo, ou peior acolhimento;
+<span class="pagenum">[161]</span>
+porem que foi agua em fervura, como diz o povo.
+Fora uma idea feliz, uma idea luminosa a do mancebo.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Metteram-vos em cabe&ccedil;a que vos queriam
+matar &aacute; fome... porque se embarca alguma carne
+na esquadra! exclamou elle: mas n&atilde;o se lembrou ninguem
+de que todos os miudos c&aacute; ficam.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; verdade?! acudiu com outros Pedro Choca,
+que desfazia agora, por causa do seu heroe, a obra
+para que concorrera; &eacute; verdade!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E depois? interrogou um mesteiral, embasbacado.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E depois com tanta for&ccedil;ura, com tanta miudagem
+de todo esse gado n&atilde;o se morre &aacute; fome.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E a carne n&atilde;o &eacute; cousa que engasge a arraia
+muita vez no anno! observou o vadio.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Demais, proseguiu o mancebo, aos corredores
+gallegos n&oacute;s os ensinaremos, e haver&aacute; ahi
+mantimentos
+de sobra. Para dez scismaticos basta um portuguez.
+A gente que foi a Le&ccedil;a e Santo Thyrso est&aacute; ahi,
+e antes da chegada das gal&eacute;s os do Porto esperaram
+a p&eacute; quedo os do arcebispo, sem que elles se atrevessem
+a vir &aacute;s m&atilde;os comnosco. Deixai ir as
+gal&eacute;s...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Quem as quita? exclamou um mesteiral, a
+quem aquellas palavras tinham inflamado o orgulho
+patrio. Se os de Lisboa carecem de n&oacute;s, n&oacute;s
+n&atilde;o carecemos
+delles. N&atilde;o nos atrai&ccedil;oem os de casa...
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;De casa... aqui neste boa cidade n&atilde;o ha traidores,
+atalhou o namorado de Irene; aqui, ninguem
+p&otilde;e o seu bra&ccedil;o em almoeda: as lan&ccedil;as
+e ascumas dos
+populares n&atilde;o teem pre&ccedil;o!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Como certas espadas.
+<br />
+
+<br />
+
+O mancebo apesar das interrup&ccedil;&otilde;es, de
+approva&ccedil;&atilde;o
+agora, n&atilde;o se calou. Surprehendendo, como
+<span class="pagenum">[162]</span>
+vimos, os amotinados com a primeira lembran&ccedil;a que
+tivera, lan&ccedil;ando por instincto m&atilde;o dos argumentos
+melhores em taes circumstancias, proseguiu appellando
+para os brios do povo, appellando com a convic&ccedil;&atilde;o
+de ser attendido, e o rumor levantado pouco
+a pouco em torno de si provar-lhe-hia, se a isso
+d&eacute;sse atten&ccedil;&atilde;o, se elle mesmo
+n&atilde;o se enthusiasmasse
+com as suas palavras, que sen&atilde;o havia enganado. Quando
+terminou o descontentamento da arraia, estava convertido
+em abnega&ccedil;&atilde;o civica, em enthusiasmo patriotico.
+O povo tem, como o oceano, destas mudan&ccedil;as
+repentinas. Pedro Choca, cuja bossa decididamente
+era a de vivorio, encarregou-se de dar expans&atilde;o aos
+sentimentos que o agitavam.
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Viva Fernando Vaz! que... gritou elle; mas n&atilde;o
+p&ocirc;de proseguir, porque o distrahiu e engasgou uma
+pancada em um hombro e uma voz zombeteira, que
+lhe dizia ao ouvido:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Assim &eacute; que sua merc&ecirc; trabalha nas tercenas?
+<br />
+
+<br />
+
+O impulso estava por&eacute;m dado, e Choca, desapparecendo,
+pois bem reconhecera pela amabilidade da
+pancada e da voz a presen&ccedil;a do pae dos velhacos,
+deixava de novo o rico for&ccedil;ureiro em suores nos
+apertos da ova&ccedil;&atilde;o do sobrinho. O nome de Fernando
+Vasques era bastante popular desde o recontro de
+Le&ccedil;a... pelo que demonstravam os successos, mais do
+que a pessoa.
+<br />
+
+<br />
+
+Quando Pedro se eclypsava com os seus companheiros,
+os acontiados do municipio, ha pouco apupados,
+arrebanhavam sem a menor opposi&ccedil;&atilde;o o gado
+que se espalh&aacute;ra pelos campos das azenhas. Os planos
+de Ayres Gon&ccedil;alves goravam completamente, gra&ccedil;as
+sobretudo ao namorado de Irene. O rapaz, tivera,
+<span class="pagenum">[163]</span>
+repetimos, uma ideia feliz, e soubera tocar no fraco dos
+amotinados melhor do que os alvazires, que no convento
+ainda discutiam, embara&ccedil;ados, a maneira de darem
+conta da sua miss&atilde;o. Falho o expediente do alcaide
+de Gaya, as indecis&otilde;es dos seus nobres companheiros
+tinham de ser cortadas pela emula&ccedil;&atilde;o dos
+caudilhos.
+<br />
+
+<br />
+
+Os portuenses davam o primeiro passo para
+obterem em chrisma uma alcunha que tinha de durar
+seculos; mas a honra da cidade estava salva. O
+pae dos velhacos capitaneava os vadios, que, juntos
+com os besteiros, levavam o gado &aacute;s tercenas, e os
+mesteiraes,
+que momentos antes t&atilde;o descontentes se mostravam
+acompanhavam-nos, berrando:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Viva o Mestre de Aviz! Viva a arraia meuda
+do Porto!
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>FIM</h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="bbox">
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">PRE&Ccedil;O 300
+REIS.
+<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">LIVRARIA DE IGNACIO
+CORREA,<br />
+
+<em>Rua de Bellomente, n.&ordm; 65 e
+66&#8213;Porto.</em>
+<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="sbreak">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b>Louzada.</b>
+<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 85%;" class="quote" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="width: 85%;">Rua Escura&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">500</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Na Consciencia&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">500</td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b>Camillo C. Branco</b>
+</div>
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 85%;" class="quote" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="width: 85%;">
+Anathema, 2.&ordf;
+edi&ccedil;&atilde;o</td>
+
+ <td style="text-align: right;">500</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Duas
+Epochas da vida,
+poesias&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">600</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Duas
+horas de leitura&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">400</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Espinhos
+e flores.&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">300</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Lagrimas
+aben&ccedil;oadas&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">400</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Livro negro&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">400</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Marquez (O) de Torres Novas,
+drama&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">400</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Mysterios de Lisboa&#8213;2
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">1$000</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Neta do Arcediago (A)&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">400</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Onde est&aacute; a felicidade?&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">500</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Purgatorio e Paraizo, drama&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">300</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Que (O) fazem mulheres&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">500</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Scenas Contemporaneas, contendo a
+&laquo;Poesia e dinheiro&raquo; drama, e outros&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right; vertical-align: bottom;">500</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Scenas da Foz&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">500</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Um homem de brios&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">400</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Um Livro, poesias&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">360</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>
+Vingan&ccedil;a&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">500</td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b>A. Gama</b>
+<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 85%;" class="quote" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="width: 85%;">
+Genio do Mal (O)&#8213;4 vol.
+8.&ordm;</td>
+
+ <td style="text-align: right;">1$920</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Honra ou Loucura
+8.&ordm;</td>
+
+ <td style="text-align: right;">500</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Poesias e
+Contos&#8213;8.&ordm;</td>
+
+ <td style="text-align: right;">800</td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b>E. Sue</b>
+<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 85%;" class="quote" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="width: 85%;">
+Avareza (A)&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">300</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Gula (A)&#8213;1
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">240</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Inveja (A)&#8213;3
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">720</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Ira
+(A)&#8213;in-12.&ordm;</td>
+
+ <td style="text-align: right;">300</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Judeu Errante (O)&#8213;10 vol.
+8.&ordm;</td>
+
+ <td style="text-align: right;">2$000</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Luxuria (A)&#8213;2 vol.
+in-12.&ordm;</td>
+
+ <td style="text-align: right;">480</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Martim o Engeitado&#8213;6 vol.
+8.&ordm;</td>
+
+ <td style="text-align: right;">1$600</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>
+Pregui&ccedil;a
+(A)&#8213;in-12.&ordm;</td>
+
+ <td style="text-align: right;">240</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Soberba (A)&#8213;4 vol.
+in-12.&ordm;</td>
+
+ <td style="text-align: right;">960</td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b>Souza Lobo</b>
+<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 85%;" class="quote" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="width: 85%;">
+O Emparedado,
+drama&#8213;8.&ordm;</td>
+
+ <td style="text-align: right;">300</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>A Cigana,
+drama&#8213;8.&ordm;</td>
+
+ <td style="text-align: right;">200</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>A Moura,
+drama&#8213;8.&ordm;&nbsp;</td>
+
+ <td style="text-align: right;">200</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Os
+tres dramas
+reunidos</td>
+
+ <td style="text-align: right;">500</td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+&nbsp; <br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b>P. J.
+Concei&ccedil;&atilde;o</b>
+<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 85%;" class="quote" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="width: 85%;">Mysterios do Porto.&#8213;2
+vol.</td>
+
+ <td style="text-align: right;">480</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>Amante e
+Irm&atilde;&#8213;drama</td>
+
+ <td style="text-align: right;">200</td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="fbox">
+<h2>Lista de erros corrigidos</h2>
+
+<div style="text-align: center;">Aqui encontram-se
+listados todos os erros encontrados e corrigidos:</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<table style="width: 80%; text-align: left; margin-left: auto; margin-right: auto;" border="0" cellpadding="4" cellspacing="4">
+
+ <tbody>
+
+ <tr align="right">
+
+ <td style="width: 61px;"></td>
+
+ <td style="font-weight: bold; text-align: center; width: 121px;">Original</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 5px;"></td>
+
+ <td style="font-weight: bold; text-align: center; width: 135px;">Correc&ccedil;&atilde;o</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 61px;"><a name="e1" id="e1"></a><a href="#p11">#p&aacute;g.
+11</a></td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 121px;">presonagens</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 5px;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 135px;">personagens</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 61px;"><a name="e2" id="e2"></a> <a href="#p13">#p&aacute;g.
+13</a></td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 121px;">edificap&otilde;es</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 5px;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 135px;">edifica&ccedil;&otilde;es</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e3" id="e3"></a> <a href="#p52">#p&aacute;g.
+52</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">o insomnia</td>
+
+ <td>...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">a insomnia </td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; vertical-align: top;"><a name="e4" id="e4"></a><a href="#p53">#p&aacute;g.
+53</a></td>
+
+ <td style="text-align: center; vertical-align: middle;">rebem</td>
+
+ <td style="text-align: center; vertical-align: middle;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center; vertical-align: middle;">recebem</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e5" id="e5"></a> <a href="#p53">#p&aacute;g.
+53</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">ingratid&atilde;o,;</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">ingratid&atilde;o,</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e6" id="e6"></a> <a href="#p68">#p&aacute;g.
+68</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">resesaltar</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">ressaltar</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e7" id="e7"></a> <a href="#p103">#p&aacute;g.
+103</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">gallegos?</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">gallegos!</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e8" id="e8"></a><a href="#p119">#p&aacute;g.
+119</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">curiosidadade</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">curiosidade</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e9" id="e9"></a><a href="#p121">#p&aacute;g.
+121</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">embtuidos</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">embutidos</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e10" id="e10"></a><a href="#p132">#p&aacute;g.
+132</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">o
+ocora&ccedil;&atilde;o</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">o
+cora&ccedil;&atilde;o</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e11" id="e11"></a><a href="#p132">#p&aacute;g.
+132</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">?ibilar ?s pelouros</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">sibilar os pelouros</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e12" id="e12"></a><a href="#p139">#p&aacute;g.
+139</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">Que ma?</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">Que mal</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e13" id="e13"></a><a href="#p143">#p&aacute;g.
+143</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">hemem</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">homem</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e14" id="e14"></a><a href="#p144">#p&aacute;g.
+144</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">principiosdo</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">principios do</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e15" id="e15"></a><a href="#p144">#p&aacute;g.
+144</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">prdor</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">pudor</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e16" id="e16"></a><a href="#p144">#p&aacute;g.
+144</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">id
+enticas</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">identicas</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e17" id="e17"></a><a href="#p151">#p&aacute;g.
+151</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">demonstaram</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">demonstraram</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e18" id="e18"></a><a href="#p151">#p&aacute;g.
+151</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">pobrecreatura</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">pobre creatura</td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+</div>
+
+</div>
+
+
+
+
+
+
+
+
+<pre>
+
+
+
+
+
+End of Project Gutenberg's Os tripeiros, by António José Coelho Lousada
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OS TRIPEIROS ***
+
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+or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
+work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
+Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.
+
+
+Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm
+
+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
+electronic works in formats readable by the widest variety of computers
+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
+people in all walks of life.
+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
+809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at https://pglaf.org
+
+For additional contact information:
+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
+
+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit https://pglaf.org
+
+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including including checks, online payments and credit card
+donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate
+
+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
+keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
+
+
+Most people start at our Web site which has the main PG search facility:
+
+ https://www.gutenberg.org
+
+This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
+including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
+Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
+subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
+
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+</pre>
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