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| author | Roger Frank <rfrank@pglaf.org> | 2025-10-15 02:48:33 -0700 |
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You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Quatro Novelas + +Author: Ana de Castro Osório + +Release Date: November 6, 2009 [EBook #29968] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK QUATRO NOVELAS *** + + + + +Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed +Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This book was +produced from scanned images of public domain material +from the Google Print project.) + + + + + + +</pre> + +<p> </p> + +<div style="text-align: center;"> +<p> </p> +<p> </p> +<p style="font-size: 2em;">QUATRO NOVELAS</p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<p style="font-size: 0.8em;">Composto e impresso na Typographia França Amado,<br> +rua Ferreira Borges, 115—Coimbra.<span class="pn">{3}</span></p> +</div> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<div style="text-align: center; padding: 1em; border: solid 2px #000;"> +<p style="font-size: 1.5em;">ANNA DE CASTRO OSORIO</p> + +<p style="font-size: 2.5em;">QUATRO NOVELAS</p> + +<p> </p> + +<blockquote style="text-align: left; margin-left: 50%; width: 50%;"> + A VINHA.<br> + A FEITICEIRA.<br> + DIARIO DUMA CRIANÇA.<br> + SACRIFICADA.</blockquote> + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<p>COIMBRA</p> + +<p>FRANÇA AMADO—EDITOR</p> + +<p>1908</p> +</div> +<p><span class="pn">{4}<br> +{5}</span></p> +<p> </p> + +<p> </p> + +<div id="corpo"> +<h1><a name="SECTION00100000000000000000">I<br> +A Vinha</a></h1> + +<p><span class="pn">{6}<br>{7}</span></p> + +<p> </p> + +<h2><a name="SECTION00110000000000000000">A VINHA</a></h2> + +<p>Luis sahira para o colegio ainda criança e de lá para as escolas superiores; +assim os anos tinham decorrido sem que nunca mais visitasse a terra natal.</p> + +<p>Dez anos, dez longos anos se tinham passado, e só agora voltava, como um +foragido ou como um ladrão, que enlouquecido de saudades arrisca a vida e a +liberdade para revêr a terra que primeiro conheceu e é sempre para o homem a +mais querida, a mais bela, a melhor de todas.</p> + +<p>E—pobre Luis!—era na verdade como um foragido que voltava, escondendo-se +para que o não vissem, envergonhado dessa fraqueza sentimental que já não ia +nada bem com os seus galões de guarda-marinha e o seu bonito bigode a +ensombrar-lhe o labio superior.<span class="pn">{8}</span></p> + +<p>E voltava amesquinhado aos seus proprios olhos, elle que se julgava tão +importante pelos estudos transcendentes, que seguira com certo brilho, porque +só agora compreendia o sacrificio de cada momento, a luta de cada hora, o +verdadeiro heroismo obscuro e respeitavel que a sua educação representava na +vida da familia.</p> + +<p>Compreendia, afinal, um pouco tarde demais para que a consciencia lhe +ficasse limpa de remorso, quanta mentira santa fôra preciso inventar, com +quanta delicadeza envolver as palavras, quanta historia arquitétar para que +elle aceitasse sem desconfiança o propositado afastamento em que o tinham +conservado durante esse longo periodo de tempo.</p> + +<p>Chegara por vezes a pensar, as poucas ocasiões em que reparara nisso, que o +desprezavam, que era um pária, que os pais afastavam receando a vergonha de o +apresentarem como seu herdeiro e continuador.</p> + +<p>Dizia-lhe a consciencia que tal procedimento não era justo, porque—se é +verdade que não fôra nunca um estudante desses que se mostram com desvanecido +orgulho, carregados de distinções e premios que esmagam o proprio dôno e +irritam os companheiros,—é certo que o curso lhe sahira limpo, seguido como de +empreitada, numa indiferença risonha<span class="pn">{9}</span> de quem o +levava com uma perna ás costas.</p> + +<p>Lembrava-se de pensar ás vezes no facto, um tanto irritante, do seu +afastamento sistematico da casa paterna, e pôr-se consigo a acusar os pais; mas +á mais leve referencia acudia uma carta de Eduarda, que varria do seu coração, +voluvel e bondoso, a desconfiança cruel.</p> + +<p>Era sempre a mesma delicadeza inteligente, procurando as palavras para não +maguar nem esclarecer, fugindo graciosamente duma pergunta mais nitida, dizendo +pouco em longas cartas, que satisfaziam plenamente a sua ansiedade de momento +mas muito deixavam escondido nas dobras duma alma que se não pode expandir, sob +pena de infelicitar os outros.</p> + +<p>Eduarda, apenas mais velha dois anos do que Luis, fôra desde criança uma +pequena figura simpatica de mulher, dessas mulheres adoraveis sem deixarem de +ser profundamente humanas, ou talvez por isso mais adoraveis ainda, que tudo +compreendem, por tudo se interessam, para todos são a providencia, o refugio e +a esperança.</p> + +<p>Quando fôra resolvida a sua entrada para o colegio militar, Luis ficara +radiante. É que essa admissão fôra o seu maior empenho, a<span +class="pn">{10}</span> ambição de largos mêses e dias—desde que na terra +aparecera, a proposito de qualquer festa pública, um regimento de lanceiros, +que o tinha enlouquecido com o seu ar soberbamente marcial e as bandeirolas, +vermelho e branco, a panejarem ao sol.</p> + +<p>Não pensava noutra coisa senão naquella sua entrada para o colegio em que +todos os alunos são já pequeninos homens, pequeninos militares de botões +reluzentes, barretina, dragonas, e duma compostura grave de disciplina rígida. +</p> + +<p>Fazia projectos, contava as peças do enxoval, que a mãe lhe ia empilhando na +mala, lia e relia a relação das coisas que lhe mandavam levar e prometia a si +mesmo só quebrar o seu, mialheiro de barro quando tivesse já a farda, para ir +tirar o retrato de grande uniforme.</p> + +<p>Mas quando chegou o dia da partida e viu á porta o carro em que devia +seguir, os criados arrastando as malas, o pai gritando porque não estavam as +coisas em ordem—e o comboio não espera!—quando viu a mãe soluçante por vêr +partir o mais novo, o mais fraquinho, o preferido—todos o sabiam—o Luis +perdeu a coragem. E chorou, chorou intensamente, num soluçar fundo, proprio +dessas naturezas impulsivas, febris, doentias, a que<span +class="pn">{11}</span> os nervos emprestam uma acuidade dolorosa, embora +passageira, nas sensações.</p> + +<p>E ella, a irmãsita, já com a orla do vestido a procurar o cano da bota, a +trança loira cahida pelas costas, o corpo airoso e fino ainda sem o quebrado +das linhas feminis, não tivera lagrimas que correspondessem áquella dôr +excessiva, nem palavras que consolassem aquella alma desolada.</p> + +<p>Sorria até, para esconder uma ligeira tremura significativa no labiosito +ainda criancil, mas o seu olhar era limpido, e a face, ligeiramente enrubecida, +em coisa alguma trahia o esforço enorme de vontade que a sua atitude +representava. É que era realmente heroica aquella criança que represava as +lagrimas, bem naturais no entanto, para encobrir o seu legitimo desgosto ao vêr +partir o irmão, o seu companheiro e amigo mais certo.</p> + +<p>Porque Luis e Eduarda eram, mais do que pelo sangue, que tantas vezes corre +desemelhante em filhos da mesma arvore, irmãos pela camaradagem no estudo e nos +passeios, nas distrações como nos desgostos, nesses tão maguados desgostos +infantis, que todos desprezam e são talvez os mais violentos e os mais +desesperadores de toda a vida.</p> + +<p>Mas Eduarda tinha a rara delicadeza de certas almas de excéção, que em si +concentram<span class="pn">{12}</span> a propria dôr e só têm para a dos outros +carinho e consolo.</p> + +<p>Se o Luis soubesse o que ella sofria, ficando ali a vê-lo partir, debruçado +na portinhola da carroagem e ainda a recomendar-lhe as suas coisas—os animais, +as flôres, os brinquedos abandonados!... Se elle soubesse como a pequena sentia +já a solidão em que ia ficar, naquella pobre terra sem diversões e sem +conhecimentos, ella que não cultivara mais amizades infantis álêm da delle!... +</p> + +<p>Nos primeiros tempos as cartas amiudavam-se: elle, contando tudo quanto via +de novo e o trazia em contínua sobreexcitação, em duas linhas sugestivas, +sempre apressado por falta de paciencia para escrever; ella, narrando +detalhadamente os pequenos casos domesticos, que tanto interesse despertam +sempre ás crianças. Eram recordações de passeios e brinquedos, a relação de +todas as pessôas avistadas, os amigos da casa que perguntavam sempre por elle, +os seus recados, as suas proprias palavras.</p> + +<p>Luis bem o conhecia: eram verdadeiros <em>recados</em> aquelles,—não +banalidades ceremoniosas—que evocavam, á sua recordação saudosa, as figuras +amigas que as enviavam, de longe.</p> + +<p>Depois, no fim das cartas, como repique festivo de sinos em vespera de dia +santo, a<span class="pn">{13}</span> esperança das férias, a contagem dos dias +que faltavam para essa felicidade tão desejada e retardada sempre.</p> + +<p>Quando se aproximava esse abençoado mês de setembro e elle já só esperava a +ordem para embarcar no grande comboio resfolegante que o levaria ao conchêgo da +familia e ao abrigo das velhas paredes amigas, que tinham visto nascer e +crescer umas poucas de gerações de rapazes como elle, uma carta vinha +preveni-lo de que aguardasse o pai para seguirem ambos para uma dessas famosas +praias do litoral onde um mês se passa sem se sentir na vida duma criança.</p> + +<p>Assim foi passando o tempo: aos anos de colegio seguiram-se os da escola, +sempre despreocupados e alegres, sem que coisa alguma o preparasse para o +martirio incomportavel que estava agora sofrendo, sem que coisa alguma lhe +fizesse supôr o doloroso drama, obscuro e martirisante, que lá longe se ia +desenrolando lentamente, esmagando com ferocidade os corações que tanto lhe +queriam...</p> + +<p>Tambem, que satisfação, livre de preocupações, elle teve quando recebeu +aquella carta em que Eduarda lhe dizia, entre coisas ligeiras e banais:—que +tinham resolvido vender a velha casa e o quintal para irem viver para Lisbôa. +Ficariam assim mais perto delle,<span class="pn">{14}</span> quando as suas +longas viagens o deixassem descansar por algum tempo com a familia. Assim +estariam juntos durante todo o tempo em que estivesse em Portugal.</p> + +<p>Que alegria a delle! Nem sequer lhe passou pela cabeça a lembrança dessa +velha casa, que os abrigara, carinhosa e maternal, como tinha já abrigado os +pais e os avós, e vivia como sêr consciente dentro do fundo da sua alma.</p> + +<p>Como Eduarda, querendo poupar toda a mágua ao seu coração mal preparado para +a dôr, mostrava bem conhecer essa natureza de amoravel e sentimental, que um +nada arrebata á mais acêsa alegria como á mais desolada tristeza!...</p> + +<p>A vida intensa das grandes cidades, que mais a fariam a ella viver adentro +de si mesma, concentrando-a no seu eu, tirava-lhe a elle a sensação nitida da +sua vida propria e, apanhando-o nessa engrenagem barulhenta e niveladora, +dava-lhe apenas as ideias e os sentimentos de toda a gente.</p> + +<p>Agora, com a vinda dos pais e da irmã, sentia-se bem feliz para nem sequer +se deter a pensar nos provaveis motivos que tinham determinado aquella +resolução.<span class="pn">{15}</span></p> + +<p>Como estaria Eduarda, que deixara ainda uma criança, tantos anos volvidos +sem se verem? E a mãe? Dizia-lhe sempre, nas suas cartas, que se sentia muito +velha e doente, mas elle sorria-se confiante e não a via senão como a deixara, +sorridente, laboriosa e desempenada, a alma de toda aquella colmeia que era a +casa paterna.</p> + +<p>Com que impaciencia febril esperou o dia marcado para a chegada, e como logo +de manhã, ao alvorecer desse dia bemdito, se sentiu outro, alegre até á loucura +de ter vontade de abraçar toda a gente, de saltar pelas ruas como uma criança, +sentindo-se leve, surpreendendo-se diferente, mal cabendo na sua bonita farda +de guarda-marinha!</p> + +<p>Ás horas da comida não conseguiu engulir com desfastio os costumados +manjares da velha hospedeira, a quem deu um abraço apertado prometendo-lhe +trazer a familia para que os conhecesse,—havia ella de vêr como eram seus +amigos...</p> + +<p>E a velha D. Engracia, que tantas vezes se arreliara com <em>as suas +telhas</em>, como ella dizia, sentiu que as lagrimas lhe vinham aos olhos com a +comunicativa sensibilidade daquella<span class="pn">{16}</span> alma que se +escancarava para lhe mostrar quanto sentia de bom.</p> + +<p>Muito antes da tarde já elle se dirigia para o Rocio, na ideia inconsciente +de se aproximar da estação onde os iria esperar, algumas horas mais tarde.</p> + +<p>Falando com um e com outro, discutindo um pouco sem se interessar muito nas +conversas, entrando no Tavares Cardoso para folhear um livro, indo ao Martinho +beber uma cerveja, mastigando cigarros sobre cigarros, impaciente e febril, mas +alegre e falador como nunca os seus amigos o tinham visto...</p> + +<p>A hora chegou por fim, porque todas as horas chegam, por mais doloroso ou +lento que seja o seu caminhar esmagante, como fogem todas, por mais que as +queirâmos retardar um instante nos raros momentos que nos trazem felicidade. +Elle lá estava, desde muito cedo, esperando na gare, sentindo o coração bater +desordenado, quando ao fundo do túnel despontou a luz vermelha da locomotiva e +o guarda tocou a corneta anunciadora, ao passar nas agulhas... Depois, que +estranha sensação a sua ao vêr as três cabeças, que resumiam todos os seus +grandes afectos, debruçarem-se nas janelas do vagão, sorrindo-lhe e +reconhecendo-o de longe! E elle,<span class="pn">{17}</span> que só +reconheceria o pai, com certeza, se os não esperasse, tal era a diferença que +faziam as duas: Eduarda, uma mulher perfeita, sem nada que recordasse a criança +esbelta que deixara; a mãe, debilitada e encanecida, tão vélhinha, que não +podia afirmar que não houvesse engano.</p> + +<p>Oh, mas a vélhinha é que o reconhecia bem, ao seu Luis, beijando-o e +abraçando-o com frenesi e achando-o mil vezes mais bonito do que ao retrato. +</p> + +<p>Tambem Eduarda o abraçou alegremente e achou muito bom, apesar de um pouco +menos forte do que ella, que se talhara e desenvolvera longe da atmosféra +falsificada da cidade, no puro ar criador da montanha.</p> + +<p>Chegou tambem a vez da Maria o abraçar,—Maria; a criada fiel que os +acompanhara sempre, que era alguem na familia, uma pessôa que a todos +satisfazia e com quem todos contavam.</p> + +<p>Inolvidavel momento aquelle que os reunia, depois de tão grande e +inexplicavel afastamento; encantador de contentamento esse primeiro repasto, +num restaurante trivial da Baixa, para darem tempo a que as bagagens podessem +chegar á casa muito alegre que elle escolhera, com vistas sobre todo o estuario +azul do Tejo, onde a lua entornava, nessa<span class="pn">{18}</span> noite +gloriosa de junho, a sua luz branca e leitosa, vagamente adormecedora...</p> + +<p>Luis sentiu-se orgulhoso com os elogios que a sua escolha cuidadosa mereceu +á irmã e queria convencer a mãe de que nada havia que se comparasse ao +espétáculo grandioso de toda essa cidade picada de luzes, estirando-se ao longo +do rio, que centenares de pequenos faroes faziam tambem palpitar e viver, como +outra cidade flutuante.</p> + +<p>A pouco e pouco, abertas as malas para que tudo fosse colocado no seu logar, +Luis começou a reconhecer com enternecimento as velhas coisas que os seus olhos +de petiz haviam conhecido e admirado. Foi com alegria quasi infantil que levou +á mãe a velha caixa de xarão, herança da avósinha, onde eram guardadas +cuidadosamente as pequeninas coisas preciosas que queriam roubar á curiosidade, +nem sempre segura, das suas mãositas de criança.</p> + +<p>Uma chavena, uma jarra, qualquer coisa emfim que ia aparecendo, lhe ia +trazendo uma saudade da infancia longinqua e que esvoaçava agora na sua alma +como farrapo branco de nuvem distante a dissolver-se num rubro poente.</p> + +<p>A mãe, que um momento ficara só junto delle, chorava silenciosamente, +olhando-o com ternura.<span class="pn">{19}</span></p> + +<p>Luis não compreendia—chorar!?... Então não estava satisfeita por estar em +Lisbôa, com elle? Não viera por sua muito livre vontade?</p> + +<p>E então a pobre senhora, incapaz de por mais tempo o iludir, desejando +mesmo—no egoismo inconsciente dos que sofrem—associar todos á sua dôr, não se +fez rogada e disse, disse tudo, tudo quanto de amargurado e desesperador lhe +tinham dado esses anos em que o não vira.</p> + +<p>—Fôra uma luta tremenda e desigual, essa que o pai sustentara durante anos, +contra tudo e contra todos, sem perder a energia, sem trepidar nem recuar. +Primeiro, ia muito bem nos seus negocios—o Luis devia lembrar-se... Depois, as +fianças, os roubos, a má fé de uns, a inveja mesquinha de outros, abalaram-lhe +o crédito, envolveram-no em questões e demandas, fizeram-no perder uma a uma +todas as suas belas propriedades, as compradas á custa de muito trabalho e as +que herdara pessoalmente, e até a sua propria casa de moradia, quando já nada +mais tinha que desafiasse a cubiça alheia, lá se fôra embora, com o quintal. +Sim, esse fôra o último e o mais certeiro dos golpes, que sangrava ainda e +tarde se poderia cicatrisar na sua pobre alma dolorida.<span +class="pn">{20}</span></p> + +<p>As lagrimas corriam sem parar pelas pálidas faces da bondosa criatura, que +assim foi contando, uma a uma, todas as suas dôres, não poupando Luis a nenhum +dos incidentes, a nenhum detalhe desse martiriologio incomportavel de lutar com +os maus, os inferiores, esses que acorrem sempre a lançar a sua pedra quando +presentem que a fortuna abandonou os que ha pouco invejavam.</p> + +<p>Luis, calado, ouvia, sem a compreensão bem fixada da realidade, olhando com +uma persistencia dolorosa essa vélhinha que chorava um passado em frangalhos, e +era a sua mãe, a mesma que elle deixara rica e tão feliz dez anos antes.</p> + +<p>—E porque lhe não tinham dito o que se passava?! Porque o tinham alheado +assim de todos os desgostos da familia, como se fosse um estranho? Não era +filho como os outros, não devia ser igualmente filho para as alegrias como para +os sofrimentos?...</p> + +<p>—Ah, sim! Por sua vontade ter-lhe-ia contado logo o que se ia passando, mas +nem o pai nem Eduarda o consentiram para que elle se não impressionasse e +desviasse a atenção dos estudos, que era preciso levar ao fim sem uma falta. +</p> + +<p>Luis padecia naquelle momento uma tão insofrivel amargura, que no fundo do +seu<span class="pn">{21}</span> coração, humanamente egoista, sentia uma onda +de reconhecimento pelos que o tinham poupado daquella maneira... Devia-lhes uma +pacifica e alegre mocidade, que lhe preparava uma serena vida futura.</p> + +<p>Então, nesse impulso que dá a propria revolta em toda a criatura contra a +dôr que a esmaga, começou a consolar a mãe, consolando-se a si mesmo.</p> + +<p>O pai, com o emprego que arranjara numa das principais casas bancarias que +até ao fim o tinham sustentado, sustentando-lhe o seu crédito para a liquidação +voluntaria, ganhava certamente mais do que negociando por sua conta. Depois, +elle não estava ali com tudo quanto ganhasse para lhes dar, tudo sendo pouco, é +claro, para o que lhes devia?!...</p> + +<p>E a mãe sorria por entre lagrimas, numa grande consolação de apaziguamento, +porque a sua dôr encontrava abrigo em outra alma que a lamentava.</p> + +<p>—Sim, a situação economica não era de todo desesperada. Dispensariam apenas +o superfluo, a que se tinham habituado, e mesmo esse não completamente, porque +na liquidação grande parte do seu dote podéra ficar intacto.</p> + +<p>—Oh, elle compreendia bem que não era a questão material a que mais os +afligia, era<span class="pn">{22}</span> a recordação dum longo passado de paz +e de desanuviadas venturas que já ia longe; era a amargura desses últimos anos +em que todas as suas energias se concentravam em aparentar uma soberba que não +sentiam, em mostrar um orgulho que era feito de toda a condensação amargurada +da sua dôr por vêrem o egoismo e a maldade dos que ferozmente lhe espiavam as +lagrimas e as decéções.</p> + +<p>—Elle compreendia bem, finalmente, que o que mais lhe custara fôra o deixar +essa casa que representava tanto na vida afectiva da sua bôa alma de sofredôra. +</p> + +<p> </p> + +<p>Desde esse dia nunca mais Luis perdêra aquella ideia, que se tornou uma +obsessão: ir visitar a velha casa e reviver diante das suas paredes, que lhe +falariam do passado, todo o martirio a que o tinham furtado generosamente. Em +vão Eduarda o dissuadia desse capricho do sentimento, que classificava de +criancice; em vão ella lhe dizia que o passado estava morto e ninguem mais o +poderia resurgir; que não havia imaginação nem vontade humana capaz de fazer +voltar atraz o curso da vida, que para elles se precipitara numa cachoeira +desatinada e agora ia deslisar num mais bello e sorridente campo.<span +class="pn">{23}</span></p> + +<p>Mas não! Elle fizera desse projecto o seu sonho, o seu misterio de +apaixonado, e iria, sem que ninguem o podesse impedir de o fazer.</p> + +<p>A ideia de que a casa que fôra o lar abençoado de toda a sua familia já lhes +não pertencia, desvairava-o. Iria, acontecesse o que acontecesse, num romantico +impulso de sentimento—que mal compreenderia quem lhe não tivesse compulsado os +arrebatamentos de apaixonado—evocar todo o passado e embeber-se bem na dôr das +eternas e irremediaveis separações.</p> + +<p>Agora, elle ali vinha, como um namorado, revêr pela ultima vez as coisas que +já lhe não pertenciam, e que indiferentemente iam tornar-se para outros as suas +coisas, os seus afectos.</p> + +<p>Para que viera?—pensava já—porque não se deixara guiar pelos conselhos da +corajosa rapariga que tão alegremente ia entretecendo um novo ninho com os +restos dispersos do antigo, desfeito pelo temporal? Porque viera?!...—É que +queria sofrer, ali mesmo, tudo o que tinham sofrido aquelles que amava.</p> + +<p>Fugir a isso parecia-lhe uma covardia excessiva. Imaginava sentir assim, +pelo poder evocativo da sua memoria despertada pela visão, lagrima por lagrima, +desespero por desespero,<span class="pn">{24}</span> vexame por vexame, revolta +por revolta, a vulgar mas horrivel tragedia desse incidente numa familia +burguêsa.</p> + +<p>No vagão onde passou a noite, nem uma só vez os olhos se lhe fecharam num +sôno reparador. Os nervos em sobreexcitação faziam-no reviver, na memoria, +todas as circunstancias torturantes em que se déra o desastre final. Sentia uma +doentia voluptuosidade em pensar nos tormentos por que o seu coração teria +passado se a elles tivesse assistido.</p> + +<p>Os nervos irritados por tantos dias de ansiedade obrigavam-no a agitar-se +numa febre de movimento, um desejo de choro, de gritos convulsivos, que lhe +desoprimissem o peito...</p> + +<p>Cada nome de estação gritado monotonamente, cortando na noite arrastada o +sôno dos viajantes, era para elle o martelar desesperador do condenado que +assiste ao levantar da sua propria forca.</p> + +<p>Em breve, mais um desses gritos ouvidos, a perder-se na noite, e estaria na +linda terra, que revia: toda branca e faiscante nos dias ensoalhados de verão, +varrida pelas nortadas ásperas da serra, nevada como uma noiva nas invernias +inclementes—com as suas paisagens cristalisadas de sonho; as suas feiras +rumorosas; as ladainhas atravez dos campos em flôr, pelo despertar das +primaveras amorosas; as romarias<span class="pn">{25}</span> barulhentas, sob +um sol sufocante de canícula... Depois, os descantes; os natais, em que fôra, +romeiro piedoso e crente, ao presepe do menino; as <em>janeiras</em>, cantadas +á sua porta e em que os versos laudatorios lhe agradavam sempre; as semanas +santas, com procissões na rua, por esse agonisar de sol doirado em que um Deus +assistia á morte doutro Deus...</p> + +<p>Tudo isso elle revia, todo esse passado distante se apoderava da sua alma e +o fazia viver por momentos uma existencia, que se não repetiria mais.</p> + +<p> </p> + +<p>Agora, em frente da antiga casa que lhe enchêra de sonhos os últimos mêses +de vida, Luis sentia-se frio.</p> + +<p>Quizera sentir muito e não sentia nada. Nenhuma comoção, nenhuma dôr—na sua +alma gelada.</p> + +<p>Nem a casa lhe parecia a mesma—e decerto não era!—cortadas as trepadeiras +que a revestiam de verde e lilaz e que a perfumavam dôcemente com os cachos +exoticos das glicinias rôxas. Até as janelas tinham sofrido o insulto de serem +repintadas de vermelho, e as paredes estavam caiadas de branco, essas paredes +de granito polido que tinham ao sol faiscamentos de mica e escureciam sem +se<span class="pn">{26}</span> resentirem das intemperies, suavemente, como se +envelhece sem sobresalto nem luta, quando se vive sem preocupações.</p> + +<p>Já não era a mesma—nada lhe dizia ao seu coração que era a mesma.</p> + +<p>Lançou pelas janelas abertas um olhar de indiferente curiosidade para o +interior e então quasi lhe deu vontade de rir, tanto era banal o mobiliario que +a guarnecia, tão charramente burguêsa e sem gosto a decoração que a tornava uma +casa trivial de <em>endinheirados</em>, de <em>adventicios</em> sem educação. +</p> + +<p>Fechou os olhos, concentrou-se por segundos na evocação do passado, quiz +enganar-se a si proprio, mas não o conseguiu; a sua alma quedou-se, por fim, +numa frieza e numa desolação de completo desmoronamento.</p> + +<p>Faltava-lhe o quintal; voltou-se para seguir ao longo do muro, deitando um +olhar prescrutador para o pequeno jardim gradeado, que era no seu tempo um tufo +apenas de verdura, e sofrêra, como a casa, a influencia dos novos dônos.</p> + +<p>Sim, no quintal ao menos iria encontrar as mesmas arvores, os mesmos +recantos amaveis de sombra, o mesmo perfume saudavel do pomar e da horta +verdejantes.</p> + +<p>E seguia, rapidamente, olhando o muro de pedra solta e que era bem o mesmo +que bastas<span class="pn">{27}</span> vezes saltara para comer os bellos +cachos de uva ferral de grandes bagos córados.</p> + +<p>Isso não mudara, ao menos; era o mesmo que conhecera e lhe fazia lembrar +tantas garotices, tanta alegria passada...</p> + +<p>Quando chegou ao alto do caminho descobriu a parte do quintal que menos +estimava, porque tinha sido adquirida ulteriormente, poucos anos antes da sua +ida para o colegio.</p> + +<p>Lembrava-se bem de quando o pai comprara aquelle grande campo de oliveiras e +terra centeeira a entestar com o pomar, que sempre tinham desejado na familia e +por teima de camponios rudes lhes não pertencia desde muito.</p> + +<p>Como elle ria, satisfeito, olhando a mulher, muito contente tambem, ao vêr +cahir uma a uma as pedras do muro que ia fazer do seu pequenino quintal uma +quintasinha deliciosa, mas que para elles nunca deixara de sêr o quintal.</p> + +<p>Luis sentira então, ao correr pela carreira principal, tão comprida que ao +fundo deixava de se avistar a casa, uma sensação de posse, que o fazia agora +sorrir.</p> + +<p>Lembrava-se bem como Eduarda estava melancolica naquella tarde de outôno, +olhando o desmoronamento que lhe parecia um começo de destruição—porta +escancarada por onde<span class="pn">{28}</span> entrariam todos os +desastres... Presentimentos de alma extremamente vibratil, ou acaso sem nenhuma +significação, quem pode ao certo dizer o que determinados estados de espirito +representam?!</p> + +<p>Ali tambem havia mudança... Luis começou a sentir a ansiedade da dúvida. +Tinham plantado vinha nesse campo, que dantes ondulava num verde tenro pelas +primaveras, e pelos verões era um manto de oiro, com as espigas acurvadas ao +pêso do grão já maduro.</p> + +<p>Entrou pelo fundo do quintal, que no seu tempo tinha apenas um pequeno muro +como signal de posse e agora se alteara numa hipótese de muralha orgulhosa.</p> + +<p>Seguindo pela rua mais larga, ia recordando, uma por uma, as arvores do +pomar. Uma certa pereira que se erguia em roca, toda florida e branca como +fogaça, e era a primeira a amadurecer as suas peras magnificas; uma rua de +aveleiras baixas e tufadas, donde apanhavam ás mãos cheias as avelãs ainda em +leite, que eram dum verdadeiro apetite... Depois lembrava-se dumas certas +ameixas, muito rôxas e carnudas, que ainda lhe faziam crescer a agua na bôca. E +a nespereira imensa que sombreava a horta, com grande desespero do velho +Antonio hortelão... e a enorme cerdeira, que tinha uma historia engraçada,<span +class="pn">{29}</span> que os pequenos sempre contavam ao ouvido dos visitantes +e os fazia desenhar gestos de nojo, o que lhes provocava uma esfogueteada de +risos!?... E tantas outras que eram mais conhecidas, como suas irmãs, que iria +abraçar piedosamente numa despedida derradeira.</p> + +<p>Se fosse tempo de lilazes, como teria gosto de levar um grande mólho de +flôres para a mãe! Sim, roubaria, porque ao seu inconsciente criterio isso não +lhe parecia um roubo: se o quintal era o seu, o mesmo que tinha deixado anos +antes, que mal poderia haver nisso?!</p> + +<p>Apressou o passo até avistar a grande nogueira, plantada no ano do +nascimento de Eduarda, e que já no seu tempo era uma bela arvore que desafiava +a cubiça do rapazio que de fóra namorava as suas verdes nozes de bôa casta. Se +não fosse noite poderia vêr no tronco rugoso as iniciais do seu nome, que +Eduarda tinha aberto, na vespera da sua partida para o colegio.</p> + +<p>Mas ao chegar junto á arvore, donde se descobria todo o quintal, não poude +reprimir um gesto de pavôr.</p> + +<p>Ah, para que viera ali, numa febre apreensiva de lembranças,—para reviver +uma vida que já não existiria mais, para materialisar<span +class="pn">{30}</span> uma saudade que já não poderia sêr realidade... para +quê?!...</p> + +<p>Bem lho dissera Eduarda, aconselhando-o a não dar ao passado mais do que a +melancolica e vaga recordação que merece, e lembrando-lhe o dever de caminhar +para a frente, de viver, como ella, uma nova vida mais nobre e mais cheia de +ideais, que a faziam até abençoar esse desastre material que a libertara de +preconceitos e costumes seculares...</p> + +<p>Mas elle sofria verdadeiramente e intensissimamente; era uma dôr material +como a de lhe cortarem um pedaço do seu proprio corpo, ao vêr que tambem o +pomar não soubera resistir á mudança de proprietario, na sua passividade de +natureza vegetativa.</p> + +<p>Oh, as lindas arvores de fruto, as ruas de plumeiras decorativas,—inuteis +para o criterio mesquinho do vulgo—os crisântemos estrelados, os lirios rôxos, +as roseiras já grossas como arvores, tudo, tudo fôra sacrificado ao ignobil +desejo do lucro. Tudo desaparecêra, para dar logar á vinha!</p> + +<p>Como sofria com tal hecatombe, e como sentia no seu proprio sêr os gemidos +doloridos das suas plantas mortas, cujas almas erravam ali sem dúvida—elle +ouvia-lhes e compreendia-lhes as queixas esparsas naquelle ar triste de +cemiterio...<span class="pn">{31}</span></p> + +<p>Vinha: toda a horta, todo o pomar, o seu proprio jardinzinho cultivado com +tanto disvelo!</p> + +<p>Um soluço lhe subiu do peito oprimido, e as lagrimas vieram-lhe, sem querer, +aos olhos ardentes.</p> + +<p>O quintal tinha pouca agua, sim, elle sabia isso,—fôra até a grande +preocupação da familia—estando numa encosta que declivava dôcemente até ao +ribeiro... Mas nunca lá tinha morrido nada com sêde; pelo contrario, as arvores +desenvolviam-se a olhos vistos.</p> + +<p>Todo o desespero das coisas fatalmente irremediaveis o sacudia e fazia +halucinadamente padecer.</p> + +<p>A vinha! Como detestava essa planta, de que transformam em subtil veneno o +dôce e aromatico sumo do seu fruto, e que estropia mais criaturas e faz correr +mais sangue e mais lagrimas pelo mundo do que exercitos em campanha!</p> + +<p>Como se tornava odiosa aos seus olhos essa planta, que torce convulsamente +para o céo os braços descarnados de esqueleto, e como a desejaria queimar, numa +furia vingativa de inquisidor!</p> + +<p>Luis amaldiçoava mil vezes essa planta, que é tão estimada, porque +representa a cupidez explorando o vicio.<span class="pn">{32}</span></p> + +<p>Diante dos seus olhos, embaciados pelas lagrimas, todos esses troncos nus se +animavam e viviam dançando numa roda selvatica de possessos.</p> + +<p>Como detestava entranhadamente, sagradamente, a vinha!</p> + +<p>Não lhe lembrava, por certo, a alegria rubra e ruidosa das vindimas, quando +elles iam todos, pelos poentes fulvos dos lindos outônos da sua terra, ás +propriedades de fóra, e voltavam atraz dos carros que as dornas a transbordar +faziam chiar doridamente, ora enterrando-se na areia solta das azinhagas +orladas de silvas, ora trambulhando pelas lages e pedras dos caminhos +carreteiros.</p> + +<p>Nem sequer recordava o delicado e suave perfume a resêda da vinha em flôr, +quando na primavera as noites são frescas e os rouxinois cantam pelas ramarias +os lirismos dos seus amôres e as romanzas dos seus noivados.</p> + +<p>Via sómente os esqueletos tristes que tinham expulso as suas arvores amadas, +as suas flôres escolhidas, as esbeltas trepadeiras, tudo emfim que fazia o +encanto daquelle pedaço de natureza que fôra uma parte da sua propria alma e +deixara de existir para sempre.</p> + +<p>Luis abraçou a nogueira, numa última expansão de sentimental, beijou-a +devotamente, como a uma velha amiga que se lhe tivesse<span +class="pn">{33}</span> conservado fiel ao coração, e afastou-se lentamente +daquelle logar que fôra de martirio para a sua alma, como a mêsa de operações +dum hospital onde se amputa um membro infermo.</p> + +<p>Ainda de longe olhou para traz, e, num instintivo movimento, tirou o chapéo +num último adeus á leal amiga que o vira nascer e fôra a unica que lhe soubera +conservar a ilusão do passado.</p> + +<p>Um adeus, um último e enternecido adeus, e tudo tinha acabado.</p> + +<p>Foi quasi com indiferença que de novo transpôs o muro, sorrindo para o +pinhal que marulhava como as vagas de vagabundo mar, e que era o mesmo ainda. +Esse não tinha mudado.</p> + +<p> </p> + +<p>Quando o comboio se pôs em marcha para o internar de novo na sua vida do +presente, depois daquella tentativa de viver pela recordação um passado +sepulto, Luis sentia a impressão estranha de que a terra que deixava não era +aquella em que tinha vivido uma tão importante época da sua vida.</p> + +<p>Essa, parecia-lhe ter desaparecido completamente, como se a tivessem rasgado +do mapa e a tivessem substituido por uma outra vila<span class="pn">{34}</span> +burguesinha, cheia de sol e de gente palradora e vasia, a mexer-se e a dançar +indefinitamente.</p> + +<p>Quasi a dormitar seguia vagamente essa gente, ia escutar-lhe as palavras +para rir do mesmo riso banal, e ficava silencioso, sem nenhuma impressão de +alegria ou tristeza.</p> + +<p>Depois... tudo se foi diluindo, aos poucos, e adormeceu profundamente, +revendo de novo a terra antiga, com varandas revestidas de trepadeiras +perfumadas, silencios religiosos, as arvores, as casas, os costumes, e a gente +que era dantes...<span class="pn">{35}</span></p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION00200000000000000000">II<br> +A Feiticeira</a></h1> + +<p><span class="pn">{36}<br>{37}</span></p> + +<p> </p> + +<h2><a name="SECTION00210000000000000000">A FEITICEIRA</a></h2> + +<p> </p> + +<blockquote> + <p>«La peur qui met dans les chemins<br> + Des personnages surhumains<br> + La peur aux invisibles mains qui revet l'arbre<br> + D'une carcasse ou d'un linceul<br> + Qui fait trembler comme un aïeul<br> + Et qui vous rend, quand on est seul,<br> + Blanc comme un marbre.»</p> + + <p style="text-align: right;">M<small>AURICE + </small>R<small>OLLINAT.</small></p> +</blockquote> + +<p>De todos os rapazes da aldeia era o Manoel da Clara o mais querido das +raparigas.</p> + +<p>Fôra sempre um belo rapaz de afugentar rivais, mas, desde que viera da tropa +e de lá trouxera aquelle ar desdenhoso de feliz D. João, aprendido no convivio +dos camaradas presunçósos e mulheres de vida airada, parece que as enlouquecia. +</p> + +<p>Acostumado a ajustar a farda, como apertava bem a cinta de lã preta ou +carmezim, que parecia trazer espartilho, o démo do rapaz!<span +class="pn">{38}</span></p> + +<p>Os sapatos com o lustro bem puxado, que pareciam de verniz; o chapéo +garbosamente descahido sobre a esquerda; a ponta do cigarro atraz da orelha; e +o lenço, com flôres e uma legenda bordadas a côres vivas, a sahir da pequena +algibeira da jaqueta, as mais das vezes levada ao hombro; o Manoel era na +verdade a nata da rapaziada do logar.</p> + +<p>No meio dos outros, com as suas caras rapadas de lôrpas, valentes mas sem a +elegancia dos gestos disciplinados pelo exercicio regular, o seu pequeno bigode +de cidadão retorcia-se aos domingos com uma petulancia irresistivel.</p> + +<p>Nas feiras e romarias, firmado no varapau metido debaixo do braço, toda a +vaidade satisfeita a brilhar-lhe nos inquietos olhitos garços, desafiava toda a +concorrencia desagradavel. Ás raparigas iam-se-lhes os olhos nelle, e mediam-se +com o rancôr de rivalidades latentes.</p> + +<p>E valentão!?—como aquilo poucos! E, como sempre, era a superioridade +material da força e da coragem o que mais o fazia valer aos olhos de primitivas +femeas, oferecendo-se orgulhosamente ao vencedor, ao macho forte e soberbo.</p> + +<p>Quando o Manoel, com um rapido piparote atirava para a nuca o chapéo móle de +largas<span class="pn">{39}</span> abas, dava um passo atraz, fazia girar o +varapau em sarilho sobre a cabeça, e torcia a bôca espumante num esgare de +raiva... podiam fugir delle!</p> + +<p>Contavam-se na aldeia as valentias do Manoel com o mesmo entusiasmo e ufanía +com que se contariam as de um heroi da historia, um heroi autêntico, de que a +tradição nos deixasse o nome e a memoria de largos feitos.</p> + +<p>Uma vez era todo o povo de Infias que se juntara para o desafiar, raivosos +por uma questão de mulheres de que o Manoel era afortunado protogonista, e que +elle <em>enfiara</em> pela serra abaixo—que até parecia que o vento os levava. +</p> + +<p>«Ó Manoel, lembras-te?...</p> + +<p>«E daquella vez na romaria da Senhora dos Verdes?...</p> + +<p>«E na feira, quando foi da compra dos meus bois?!...</p> + +<p>As perguntas, as respostas, as diferentes versões e comentarios, envolviam o +Manoel num côro de louvôres, que elle recebia mal disfarçando a vaidade num +meio sorriso modesto emquanto ia enrolando o cigarro entre os dedos fortes onde +brilhava um anel de cobra, o encanto e a inveja dos mais rapazes.<span +class="pn">{40}</span></p> + +<p>No jogo da bola, ao domingo, no terreiro da igreja, nenhum o excedia, como +ninguem era capaz de o vencer numa partida de chinquilho ou no jogo do pau. Um +valentão, um rapaz ás direitas, sempre pronto a fazer um favôr, riso franco, +coração nas mãos para os amigos; ninguem emfim mais digno da estima dos seus +patricios e ninguem que de facto fosse mais estimado do que o Manoel da Clara. +</p> + +<p>Álêm de todos estes merecimentos fisicos, que o superiorisavam, ainda era +senhor de algumas belgas, e unico herdeiro da meação da mãe, a viuva do +Rezadeira, que ajuntara o seu peculiosito na <em>casa dos fidalgos</em>. E era +uma mulher de trabalho, a velha Clara do Rezadeira, que só tinha olhos e +coração para o filho, o seu enlevo e orgulho. Primeiro do que ninguem, como o +galo da manhã, saltava da cama, onde a asfixia dum coração emperrado mal a +deixava socegar, e começava a labuta de todos os dias: amassando o pão, +chegando ao forno a prevenir a forneira, cosinhando a vianda para os cevados, +chamando a gente para o trabalho, despachando serviço, ralhando com um, +combinando com outro, e sem nunca perder de vista a panela onde se cosiam as +batatas para o caldo verde que o seu Manoel havia de comer antes de sahir,<span +class="pn">{41}</span> na sua tigela bem meada de brôa. Mal elle aparecia, +ainda espreguiçando-se e os olhos mal abertos mas já risonho e feliz como +soberano que se julga crédor de todos os afétos e homenagens, a vélhota +aprontava tudo num ápice, rindo e ralhando num visivel contentamento de quem se +revia no rapagão, que era o seu filho.</p> + +<p>É claro que não havia rapariga na aldeia e arredores á qual não agradasse a +ideia de poder vir a sêr a mulher estimada do Manoel, a senhora do seu coração +e do rico bragal de linho que a velha mãe guardava avaramente nos grandes +arcazes de madeira de fóra, grossamente chapeados de ferro.</p> + +<p>Elle ria-se com todas, o patife, querendo gosar o mais possivel a sua +situação de desejado, sem até ahi mostrar preferencias comprometedoras por +nenhuma.</p> + +<p>Mas, entre todas, havia duas que nos últimos tempos mais preocupavam o +Manoel, com grande contentamento da mãe que ansiava por o vêr casado com +rapariga que fosse do seu calhar:—só assim morreria descansada, pois uma +cabeça alevantada como a delle precisava bem do arrimo duma bôa mulher de +trabalho.</p> + +<p>Por felicidade, as duas raparigas que o Manoel trazia debaixo de vista +agradavam<span class="pn">{42}</span> por igual á velha Clara—assim tinha +liberdade para á vontade consultar o coração.</p> + +<p>Uma, Maria Tereza—a Terezinha, como lhe chamava quando acertava de a topar +no seu caminho—era afilhada da <em>fidalga</em> e lá pelo palacio se tinha +criado com mimos e delicadezas que as outras não conheciam. Era com uma graça +toda senhoril que punha os olhos no chão e enrubecia como romã bem madura +quando elle a fitava de frente, bem de frente, como fazia ás mais, sem +conseguir com isso chamar-lhes o sangue ao rosto, mas fazê-las explodir em +jocundas gargalhadas. O seu andar lento e ondulado dava um realce de elegancia +exotica ao seu corpo delgado de anemica, flôr tristemente desabrochada entre +paredes sombrias e velhas coisas impregnadas da melancolia dos tempos passados. +Como era a unica que na terra sabia lêr, eram tambem os seus os unicos olhos +que na missa se não levantavam do livro para andarem em leilão pela igreja á +procura dos rapazes, que lá de longe, e de soslaio, não perdiam o grupo +buliçoso da raparigada.</p> + +<p>A madrinha queria-lhe muito, era o que todos afirmavam, e se não tivesse +morrido nem a Terezinha sahia do palacio, onde era respeitada como filha da +casa, e, talvez, se a morte não fosse repentina, tivesse ficado<span +class="pn">{43}</span> senhora daquella fortuna, quem sabe!?... Tem-se visto +coisas mais raras. E melhor teria sido para a terra, pois a casa dos fidalgos, +que fôra sempre abrigo de miseraveis como consolação de desgraçados, mal a +senhora morgada fechara os olhos fechara-se tambem á pobreza, com uma crueldade +que revoltava toda a gente.</p> + +<p>Os herdeiros, uns primos em último gráu legal, souberam da sua morte sem +testamento e acorreram de Lisbôa em marchas forçadas. Mas, tudo liquidado á +pressa, apartaram gulosamente, para figurarem nos salões da capital, as +preciosidades que enchiam e decoravam o velho solar. Durante alguns dias não se +ouviu senão o martelar dos carpinteiros fazendo e pregando caixotes e não se +via senão a moderna condessinha, muito prática em antiqualhas preciosas, abrir +portas e armarios, percorrer os salões e os sotãos, dar volta ás paredes e ás +bojudas cómodas de floreados embutidos, que seguiram com os candelabros, as +joias, os quadros e os Sèvres ricos como os incontaveis Chinas para o +sorvedoiro de Lisbôa. Depois, mal o Conde, com o seu ar mais chic de fadiga, +deu por terminadas as contas e entregues as propriedades ao feitôr trazido das +lezirias ribatejanas como pessôa de inteira confiança, fugiram +atemorizados<span class="pn">{44}</span> pela tristeza pesada e humida que +resumbrava o casarão quasi deshabitado havia anos, desde que a fidalga se +tolhêra de todo e passava os dias nos aposentos mais ensoalhados onde fizera a +sua habitação e a da Terezinha, que lhe lia os autôres predilétos e a arrastava +na cadeira de rodas pelas ruas ensombradas pelos buxos seculares do jardim.</p> + +<p>Verdade seja que a Senhora Condessa, sabendo o amôr que a velha prima +dedicava á afilhada e a docilidade e o desinteresse com que ella a servira e +cuidara até ao fim, ofereceu-lhe o logar de sua criada de quarto e obrigou o +marido a pôr em seu nome algumas propriedades arredadas ou a arbitrar-lhe o seu +valôr em dinheiro, coisa duns cem mil réis, para os seus alfinetes, o que a +tornaria na aldeia uma pequena morgada.</p> + +<p>A Terezinha agradeceu cheia de reconhecimento a generosa munificencia da +condessinha, a quem serviu, como ella nunca fôra servida, até á última hora que +se demorou no palacio. Depois, quando se viu fóra do ninho onde a sua alma se +emplumara e o seu corpinho debil de criança pobre crescêra e se tornara de +mulher perfeita, sentiu-se como que isolada num vasto campo deserto.</p> + +<p>Mas, séria e ponderada como era, tomou logo a mais acertada resolução: indo +viver<span class="pn">{45}</span> com a tia, a Zéfa do Padre, uma que fazia +belos dôces e fôra por muitos anos ama do velho abade. E para encher os dias, +tão longos agora quanto lhe pareciam pequenos dantes a rodear de cuidados a +madrinha paralitica, metêra-se a tecedeira. Em breve era a melhor, sem favôr, +que havia na terra.</p> + +<p>O seu tear, no monotono bater do pedal e correr da lançadeira, só parava aos +domingos e algumas horas da noite.</p> + +<p>Aquella vida de reclusão mais lhe amaciava a pele e dava um tom ligeiramente +empalidecido ás suas feições miudas.</p> + +<p>—«Mas era alegre dantes!... Agora, <em>dês</em> que o <em>Manél</em> da +Clara veiu de soldado e entrou de atentar nella, é que de mais em mais se vai +definhando, que nem já parece a mesma. Louvado seja Deus, que só trabalhos e +desgostos me chegam <em>pró</em> fim da vida.</p> + +<p>Dizia isto a Zéfa do Padre á Gertrudes Zarôlha, velha conhecida dos +longinquos tempos da mocidade, assentadas á porta, com a roca á cinta e o fuso +girando e torcendo o linho cuspinhado pelas suas bôcas palreiras.</p> + +<p>—«Mas então aquelle desaustinado não diz nada cá á nossa cachopa?!...</p> + +<p>—«Qual historia! Que eu saiba, ainda não lhe disse fala <em>pró</em> bem +nem <em>pró</em> mal.<span class="pn">{46}</span></p> + +<p>—«Que desaforado! O que elle precisava sei eu!... Uma rapariga como a nossa +Terezinha!... Crédo, santo nome de Jesus! Mal empregada é ella para tal +libertino, que veiu mesmo perdido da tropa!...</p> + +<p>—«Lá isso, ó Gertrudes, mau rapaz não é elle, e tem o seu bocadinho...</p> + +<p>—«Ah, mas tem uma cabeça mais leve! No nosso tempo parece que não eram +assim, ó Senhora Zéfa! Quando algum pretendia duma rapariga, dizia-lho, e +estava acabado, iam <em>prá</em> igreja os banhos!...</p> + +<p>—«Ora, eu sei lá! Haveria de tudo. Estas coisas esquecem muito, e o nosso +tempo já lá vai ha tanto!...</p> + +<p>—«Ai eu cá lembra-me perfeitamente, que o meu <em>home</em> assim fez. Foi +até numa cava; calhou eu ficar ao pé delle, e fômos ao desafio. Como eu é que +ganhei, elle então deu-me um abraço muito grande e disse-me assim:—Ó +Gertrudes, és uma mulher <em>duma cana</em>; ámanhã se tu quizeres vou falar ao +senhor abade e <em>vame-nos a botar os pregões</em>. E assim é que foi...</p> + +<p>—«E eu que ainda me lembra do senhor abade vir p'ra casa a rir muito e a +contar o caso á minha tia—que Deus haja! Ainda ella então andava rija e +<em>féra</em>, coitadinha.</p> + +<p>—«Mas vocemecê já lá estava, pois não estava?<span class="pn">{47}</span> +</p> + +<p>—«Pois estava, desde a idade de oito anos que fui p'rá companhia da minha +tia até á idade dos cincoenta em que aquelle santo rendeu a alma a Deus! +Ficou-me nos braços...</p> + +<p>—«Coitadinho! Tão bom homem, tão sério, era como o nosso pai de todos. Veja +lá se tudo não vai a peor! Olhe-me para o desatino em que este anda por ahi, +com as raparigas e as mulheres dônas de sua casa, atraz, sempre em cantorias, e +em rezas novas, que nem podem agradar a Nosso Senhor...</p> + +<p>—«Já o dizia o senhor abade: a religião deve sêr a consolação da nossa vida +e não o seu unico fim. Mas essa jesuitada entrou por toda a parte com este +rapazelho do seminario—e bem mal têm já feito e hão de fazer ás familias!... O +senhor abade bem dizia, bem dizia... E bastantes desgostos teve nos últimos +tempos, que lhe amarguraram o resto dos dias... Coitadinho! Assim Deus lhes +perdôe, que eu não posso tragá-los. Até me custa ouvir a missa daquelle +avejão—Deus me perdoe se péco!</p> + +<p>—«E o que me diz ás amizades delle com os feitôres da fidalga?! Ella toda +<em>trinques</em>, caminho da missa logo de madrugada; as filhas de güelas +abertas com as tais <em>onzenices</em> de cantorias na igreja, e mais florinhas +p'rá<span class="pn">{48}</span> qui, e mais rendinhas novas nas toalhas do +altar, confissão a cada passo... Eu nem sei, eu nem sei!...</p> + +<p>—«E o marido? Vocemecê hade ouvir alguma coisa—está ali á beirinha da +casa...</p> + +<p>—«Ora o marido!... Tambem gosta muito daquellas coisas, e reza e canta e +leva o padre p'ra casa a jantar e a tomar o chá, as mais das vezes.</p> + +<p>—«<em>Eia!</em>—vivem como fidalgos!</p> + +<p>—«Aquelles grandes excomungados! No tempo da fidalga, graças a Deus ninguem +batia áquella porta com fome que não trouxesse uma consolaçãosinha; agora nem +um chavo! Tudo querem para elles, aquelles ladrões!... Parece que ainda estou a +vêr a Terezinha ir a correr contar á fidalga e vir logo com uma abada de pão ou +de fruta, ou umas batatinhas, ou uma tigelinha de papas e o bocadinho de +carne!...</p> + +<p>—«Pobre Terezinha, tão mimosa foi da madrinha e agora tão triste a vejo! +</p> + +<p>—«Mas aquelle maroto não lhe dizer nada é o que me dá no gôto!...</p> + +<p>—«Elle passa por ahi ás tardes, e ri-se para ella... Quando vai a alguma +romaria sempre lhe traz uma prenda e um cravo com um verso <em>bem +calhante</em>, mas nada mais! Ella então é uma tôla pelo rapaz! Mas quando<span +class="pn">{49}</span> o vê faz-se encarnada como um pimentão, põe os olhos +baixos, e nem sequer o salva.</p> + +<p>—«Ora essa! Tem sua graça, tem!</p> + +<p>—«Eu nem posso explicar isto. Que a minha Tereza—não é por sêr minha +sobrinha—não é de engeitar... é a melhor cachopa cá da terra.</p> + +<p>—«Ora isso, nem se fala! Compara-se lá! Basta saber lêr e têr a +<em>inducação</em> que teve. É a flôrsinha da nossa vila.</p> + +<p>—«Pois isto dá-me cuidado, dá! E não é pouco... A pequena só me tem a mim +no mundo, e eu estou velha e cansada; queria-a vêr arrumada antes de fechar os +olhos. E com o <em>Manél</em> da Clara do Rezadeira gostava, lá isso gostava: a +mãe é rapariga do nosso tempo, e elle tem alguma coisa de seu, e no fundo não é +mau rapaz. Mas então!... Parece bruxaria.</p> + +<p>—«Ai senhora Zéfa, não pônha mais na carta. Isso hade sêr, hade! E não é +mais nada senão coisas daquella atrevida da Maria do Próspero! Aquilo sempre +fôram de má raça. Até o pai... hade saber! Não?! Pois eu lho conto. Crédo, +santo nome de Jesus! Cada vez que me lembra até os cabelos se me põem em pé. O +que aquelle malvado disse de mim, que sempre entrei em casa da fidalga, que +Deus tem, com toda a franqueza!...</p> + +<p>—«O que foi então?<span class="pn">{50}</span></p> + +<p>—«Ai não sabe?! Aquele grande diacho, Deus me perdôe! Então não disse elle +que eu é que chupara o morgadinho, o filho da senhora fidalga!? Aquella +aventesma!... Nem que eu não soubesse!... Bom, calo-me, que é melhor...</p> + +<p>E mudando de tom, muito confidencial e amigavel:</p> + +<p>—«Posso dizer-lhe de certeza: a Maria do Próspero conversa com o +<em>Manél</em> e parece que o traz enfeitiçado. Olhe que lhe ouvi eu dizer—que +primeiro estava ella, que já o namorava ha muitos anos, ainda antes de elle ir +para a tropa, e que nunca a <em>lesma</em> da Terezinha o havia de apanhar! +Desculpe, senhora Zéfa, aquilo é uma atrevida, uma doida!... Pois de que raça +ella é!...</p> + +<p>—«E o que é certo é que vai levando ávante o seu intento; tem artes do +demonio!...</p> + +<p>—«Deixe estar, deixe estar... Eu sei cá umas coisinhas que hãode voltar o +<em>Manél</em>, oh se hãode!... Assim eu tivesse uma coisa que lhe +pertencesse... Coisa de vestir era melhor... Punha-lhe a pedra de ara e dizia a +oração... É coisa certa.</p> + +<p>—«A Terezinha tem um lenço que elle lhe deu, mas fosse lá falar-lhe +nisso!... Toda se zangava, não acredita nestas coisas...</p> + +<p>—«Pois são bem verdadeiras...<span class="pn">{51}</span></p> + +<p>—«O outro dia ensinei-lhe que cruzasse as pernas mesmo de pé quando a +atrevida da Maria passar por ella... Desatou a rir!</p> + +<p>—«Ah, isso é uma coisa certa para livrar do mau olhado de quem nos quer +mal. Sabe o que era muito bom? Era fazer á pequena um defumadoiro com hervas +colhidas na manhã de S. João... É o alecrim, o funcho, a dedaleira, o +rosmaninho, o sabugueiro... Se quizer, eu tenho lá.</p> + +<p>—«Muito obrigada. Assim ella quizesse!... Bem se fazia um defumadoiro que a +livrasse daquelle enguiço.</p> + +<p>Assim continuaram em conversa larga, cheia de combinações e reticencias, que +muito as interessava, emquanto a Terezinha dentro de casa trabalhava na teia +branca, que parecia sempre a mesma, eterna como as suas máguas.</p> + +<p>O tear monotonamente fazia subir e descer os <em>pentes</em> com um barulho +sêco e igual, emquanto ella levantava a sua vózinha agradavel de soprano numa +toada melancolica:</p> + +<blockquote> + —«Eu heide amar uma pedra,<br> + Deixar o teu coração;<br> + Uma pedra não me deixa,<br> + Deixas-me tu sem razão».</blockquote> + +<p>E ao dizer a quadra, que parecia sahir-lhe do proprio coração, os olhos +enturvecidos de<span class="pn">{52}</span> lagrimas fitavam a estampa ingenua +que elle lhe trouxera da Senhora do Castelo, a grande romaria de setembro.</p> + +<p>Todos os anos lá ia—era o costume—e tambem a Maria do Próspero, que punha +nos ranchos um contínuo esfusiar de gargalhadas terçando galhardamente com os +mais afamados <em>piadistas</em> as armas perigosas da chalaça e da resposta á +letra.</p> + +<p>Cantavam ao desafio, ella e o Manoel. Tinham fama por todas aquellas +redondezas, e, mal as suas vozes se trocavam num principio de duelo, os +auditores cercavam-nos e apertavam-nos num círculo de admiração excitando-os +com risos e ápartes.</p> + +<p>Tambem era o par certo em todas as romarias—talhados um para o outro!</p> + +<p>A Maria era alta e desempenada! A sua tez, dum moreno intenso, fôra brunida +pelas soalheiras ardentes e curtida pelas ventanias agrestes. A bôca, sempre +aberta em riso, era vermelha e fresca como cerejas maduras, e os dentes brancos +e agudos cravavam-se com delicia no pão de milho, sua unica escôva.</p> + +<p>As saias, rodadas em balão, faziam-lhe mais altas as ancas já de si redondas +e fortes; o cabelo, em duas tranças pregadas, enchia-lhe a cabeça como uma +touca de veludo negro.<span class="pn">{53}</span></p> + +<p>Quando punha o cáchené vermelho e amarelo de grandes ramagens verdes, o +chale em bico traçado deixando livre o braço esquerdo, a chinela branca +pespontada na ponta do pé, nenhuma como a Maria do Próspero para arrebanhar +admiradores.</p> + +<p>Depois, sempre satisfeita, radiava em plena expansão dos seus vinte anos +sadios, vividos em plena natureza.</p> + +<p>Nas ceifas, ao ardôr dos sóes caniculares, mangas arregaçadas mostrando os +braços trigueiros e musculosos; ou no gesto mecânico de juntar as paveias e +sobraçar os mólhos, tinha a harmonia escultural e grave duma Céres fecunda.</p> + +<p>Nas vindimas, era a primeira dos ranchos, vermelha do môsto que corre como +sangue generoso, a bôca escancarada em risos e cantigas... Tinha um aspecto +quasi tragico e uma beleza perturbante e assustadora de bacante.</p> + +<p>Pela apânha da azeitona, quando os campos amanhecem brancos da geada que +toda a noite cahira manso e manso, tudo uniformisando sob a sua alvura de +sudario, e o frio corta as mãos, que se <em>engatinham</em>, e entorpece os +dedos que mal se podem dobrar, ella motejava de todos, sempre na frente, +cantarolando e rindo, enchendo de ânimo os mais desanimados,<span +class="pn">{54}</span> encorajando os mais entanguecidos pela friagem.</p> + +<p>Sempre pronta para o trabalho, a Próspera, em todas as sáfaras e com todos +os tempos!</p> + +<p>Mas, tambem, não faltava ás romarias e ás feiras das cercanias, com o seu +lenço berrante, o casaquito branco engomado a capricho, e a sua alegria +saudavel, que fazia bem vêr.</p> + +<p>O Manoel não resistia áquella força que chamava a sua força, áquella +exuberancia de mocidade que atrahia a sua mocidade. Quando a via, nem sequer +pensava na Terezinha, que se ia finando lentamente ao compasso triste e +monotono do seu tear caseiro.</p> + +<p>E, no fim de contas, para falar a verdade, a Maria era tambem uma bôa +rapariga, que nunca tivera outro conversado. Nem havia lingua danáda de velha +de soalheiro que se atrevesse a debicar nos seus créditos. Alegre, sim; rir com +todos, vá! Mas atrevimentos não os consentia a ninguem. E tinham-lhe +respeito—que a sua mão era lésta, e um sopapo da Próspera não era brincadeira! +</p> + +<p>Só o Manoel gosava da sua confiança e só com elle tinha as suas +<em>graças</em> e brincalhotices mais livres, o que mais o afervorava naquelle +amôr crescente que o ia conquistando dia a dia.<span class="pn">{55}</span></p> + +<p>Á noite, nas esfolhadas, quando o luar é môrno e as flôres têm um perfume +mais intenso, corriam um atraz do outro, batiam-se fortemente, e cahiam ás +vezes sobre a palha ainda quente do sol, com um cheiro sêco que entontece.</p> + +<p>As gargalhadas seguiam-nos de todos os lados da eira, as chalaças +cruzavam-se no ar como morcegos de pesado e estonteado bater de azas:—Eh lá, +Maria, vê se tens mais força do que elle! Isso é que era um riso, o valentão +deixar-se bater por uma mulher!...</p> + +<p>—«Talhados um para o outro—isso é que não havia dúvida, nenhuma!</p> + +<p>—«A Zéfa do Padre que se deixasse de querer casar a sobrinha com o Manoel. +</p> + +<p>—«Bôa rapariga, lá sobre isso não havia duas opiniões; mas a Maria é que +estava a calhar para um homem de trabalho, uma mocetona daquellas que era capaz +de voltar um campo sósinha.</p> + +<p>Os homens votavam pela Maria, bela mulher para tudo e forte como uma torre. +As mulheres, essas eram pela Terezinha, delicada e amavel, pondo sorrisos de +aquiescencia onde a outra só tinha ruidosas gargalhadas de troça.</p> + +<p>Era ella que lhes talhava e cosia á máquina, sem paga, as chitas pobres, mas +apesar disso tão dificilmente compradas, e lhes ajustava os<span +class="pn">{56}</span> coletes de linho grosso que tão irmanados lhes erguiam +os seios até á raís do cólo:—«Ora, sempre era <em>outra loiça</em>! Podia lá +comparar-se! Bem se via que tivera outra criação, lá em casa da fidalga, que a +tratara como filha.</p> + +<p>—«Que elle gostasse della, vá! Agora da Maria, uma cachopa como as +outras!...</p> + +<p>O Manoel, ainda indeciso, mas já a inclinar-se para a Maria, irritava as +mulheres que se ofendiam com a insolente alegria da rapariga, que andava +radiante com o seu ar de triunfo certo.</p> + +<p>A velha Gertrudes Zarôlha vivia sobre brazas, nos últimos tempos.</p> + +<p>Com meias palavras ou redundancias enigmaticas conseguia sobresaltar o +coração do rapaz, mas não desviá-lo duma paixão que se harmonisava inteiramente +com o seu modo de sêr moral e fisico.</p> + +<p>—«Casar com a Maria—dizia a velha á bôca cheia—era até um pecado!...—e +benzia-se com gestos de apavorada, que não explicava mas punha de sobre-aviso +as consciencias timoratas.</p> + +<p> </p> + +<p>Por uma noite de verão, sinistra pelo negrume de nuvens carregadas de +eletricidade e prometedoras de fortes aguaceiros que toldavam<span +class="pn">{57}</span> o céo, voltava o Manoel da Clara da vila proxima onde +assistira á feira.</p> + +<p>Um calôr asfixiante pesava como chumbo no abandono pungente da paisagen +lugubre. Os pinheiros esguios tinham um murmurio mais triste e vago, como +soluços suspensos de almas em pânico, e o olival verde negro destacava-se no +fundo, apertando como num cilicio doloroso a pobre terra que se dependura de +fraguedos rudes, sempre ameaçada pela montanha que a cavalga e lhe limita o +horizonte, cortando-lhe toda a esperança de se expandir por ali, como o pecado +véla e corta toda a esperança da alma piedosa...</p> + +<p>O Manoel, que tinha ficado um pouco para tarde, conversando com uns amigos +na taberna do Geitoso, vinha assobiando alegremente, caminhando despreocupado e +sem grande pressa.</p> + +<p>Ao passar pela <em>Fonte do Inferno</em>... diabo!... que ouviu elle?! Um +rumôr confuso de gargalhadas, que aflavam no ar como grasnar longinquo de +corvos...</p> + +<p>Mêdo?.... Elle não tinha mêdo, mas desde que acontecera aquella historia da +casa dos Carneiros... <em>Crédo! Abrenuncio!</em></p> + +<p>—E não se benzeu, o Manoel, como lhe cumpria fazer, ao lembrar-se de coisas +daquellas!... A tropa é que estraga os rapazes, está visto...<span +class="pn">{58}</span></p> + +<p>Agora, as gargalhadas já soavam mais perto... diria mesmo que ouvia a Maria +do Próspero.</p> + +<p>—Mas naquelle sitio, áquella hora!... Quem se atreveria?!...</p> + +<p>—Em casa dos Carneiros,—lembrava-se involuntariamente—aquelle barulho de +cadeias a arrastar, os ferros em braza que vinham cahir aos pés da gente da +familia, o vozear sinistro que se escutava em toda a aldeia e trazia apavorados +os mais valentes... Deus do céo, que terror fôra na terra toda! Já ninguem +dormia nem descansava. Muitas mulheres tiveram então <em>espiritos</em> que os +padres e os <em>bentos</em> esconjuravam, e se batiam com elles como forças +iguais.</p> + +<p>—Só depois que o senhor Vigario velho se resolveu a sahir, de capa de +asperges, para benzer a casa endemoninhada, é que tudo socegou...</p> + +<p>O Manoel já não assobiava, e ia olhando de soslaio para o Camborço, pedraria +escalvada suspensa por milagre sobre o abismo e que a toda a hora parece +desabar e soterrar as pobres casas de pedra solta tisnadas pelo tempo.</p> + +<p>Um ventito picado e quente levantou-se então, trazendo o rumôr distinto de +vozes, gritos surdos e gargalhadas abafadas...<span class="pn">{59}</span></p> + +<p>O Manoel era destemido; apesar da má fama do sitio, tido como logar de +maleficas reuniões diabolicas, resolveu-se a transpôr o pequeno muro que +separava o caminho da <em>Fonte do Inferno</em>, a propriedade de mais +estimação dos velhos fidalgos.</p> + +<p>Primeiro, não viu nada; depois, vaga e confusamente, luzinhas que saltavam e +atravessavam-se corriam e perseguiam-se, juntavam-se e tornavam a afastar-se... +</p> + +<p>Um calafrio lhe percorreu o corpo e sentiu na espinha dorsal uma sensação +desagradavel que o fez tremer. O Manoel era valente,—nisso não podia haver +dúvida!—mas é que aquilo que via tão realmente como se á luz do sol olhasse as +suas proprias mãos eram as feiticeiras, tal qual a sua mãe as tinha visto +tambem quando em pequenino esteve ameaçado de sêr chupado por ellas...</p> + +<p>Entre curioso e medroso—já agora não sahiria dali sem vêr o que aquilo era. +</p> + +<p>Acercou-se da eira onde a ronda sinistra era mais febril...—Jesus, que +coisa horrivel!—Olharapos corriam vertiginosamente, que mais pareciam voar, na +noite negra, com o seu unico olho flamejante no meio da testa, lanterna magica +das profundezas do averno!...</p> + +<p>Um lobis-homem passou a galope, no seu fado triste, procurando alma christã +á qual<span class="pn">{60}</span> podesse, antes da meia-noite, entregar a sua +cruz martirisante. Se elle o tivesse topado!... Até os cabelos se lhe punham de +pé.</p> + +<p>As luzinhas continuavam correndo alígeras, voando na escuridão dura da +noite.</p> + +<p>Surrateiramente foi-se aproximando da eira onde chamejavam em halucinado +rodopio... A pouco e pouco ia-as distinguindo na sua fórma humana, girando +buliçosas e gárrulas.</p> + +<p>No meio da roda—cruzes! como podia aquilo sêr?!...—o Diabo passeando +altivo, vestido de encarnado e de chapéo guisalhante, poisando os pés de +forquilha sobre as cabeças das feiticeiras, que riam sarcasticamente.</p> + +<p>Dessa vez o Manoel não poude deixar de rir, tão patusca lhe pareceu a cêna. +</p> + +<p>Ah! mas quando elle viu com os seus proprios olhos—tão certo como haver a +luz do sol que nos alumia!—adiantar-se uma das luzinhas e, tornando +rapidamente á sua figura de mulher, aparecer-lhe a Maria do Próspero, tal qual +ella!... E quando a viu chegar ao pé do <em>homem vermelho</em>, estender-lhe +os fortes braços roliços e trigueiros, abraçá-lo com ardôr, não poude retêr um +surdo grito de raiva.</p> + +<p>Aquelles braços, que só o pensar nelles lhe fazia febre; aquella mulher, que +o trazia prêso havia tanto tempo e com a sua honestidade<span +class="pn">{61}</span> alegre e simples conseguira o seu respeito e o seu amôr, +estava ali em frente delle abraçando outro! E esse outro—Deus do céo, que até +a sua alma tremia!—esse outro era o proprio Diabo em pessôa!</p> + +<p>Tremia de desespero e horror por essa criatura, que não passava afinal duma +feiticeira.</p> + +<p>Uma tremura nervosa e um frio de gelo o faziam vibrar todo. O sangue +subia-lhe á cabeça, punha-lhe zoeiras nos ouvidos, halucinando-o.</p> + +<p>As luzitas recomeçaram a dansa, numa <em>farandola</em> de <em>sabbat</em>, +correndo e saltando, num delirio de gargalhadas frias como entre-chocar de +ossos numa dansa macabra.</p> + +<p>Ao Manoel parecia-lhe que tudo dansava á volta delle, que elle mesmo se +sentia voar num rodopio de entontecer. Agora o Diabo, sentado num trôno +luminoso de feiticeiras, os pés de bode torcidos e negros a descansar sobre o +formoso corpo de Maria, como se fosse um estrado, lia um grande livro de capas +encarnadas. A cada folha que voltava, sahia uma nuvem de diabitos fantasticos, +saltitantes, folgazões como garôtos ao sahir da escola, que iam juntar-se ás +feiticeiras, e tudo corria, voava, num cabriolar estonteante e doido.</p> + +<p>Uma das luzes aproximou-se então do Manoel, que ficara empedrado na +contemplação<span class="pn">{62}</span> da cêna que o atordoava e lhe tirava +toda a sensação da vida, e rapidamente se fez mulher. Ficou boquiaberto, pois a +bruxa era nem mais nem menos do que a Gertrudes Zarôlha, a velha amiga e +confidente da Zéfa do Padre.</p> + +<p>Se tivesse pensado melhor não se teria espantado tanto, pois essa era tida e +havida por tal desde que o compadre Marques, o alfaiate, a encontrara feita +galinha, lá para as bandas da vila, arrastando após si uma ninhada de frangas, +as discipulas que ia exercitando pela noite alta. Admirou-se:—uma galinha tão +tarde fóra da capoeira!?—e dando-lhe com o metro partiu-lhe uma aza. Logo a +Gertrudes tornou á sua fórma natural e lhe pediu que se calasse, pois em paga +do seu silencio lhe daria todos os anos uma camisa nova.</p> + +<p>Mas o que é certo é que toda a gente soube do caso, sob segredo, e elle nem +por isso deixou de receber anualmente a bôa camisa de pano de linho.</p> + +<p>A Gertrudes quedou-se diante do Manoel: feia e engelhada, a bôca vasia de +dentes, o cabelo esbranquiçado e crespo a fugir do lenço de chita, uma cavidade +vermelha no logar do olho direito perdido não se sabia por que desastre.<span +class="pn">{63}</span></p> + +<p>—«Ai, Manoel, pobre rapaz, desgraçado!... Se o Senhor te visse, estavas +perdido neste mundo e no outro!...</p> + +<p>Elle olhava-a emparvecido, numa confusão labirintica de ideias, que não +explicava nem compreendia.</p> + +<p>—«Ouves, Manoel?—continuava a velha bruxa.—Eu sou tua amiga, não te quero +vêr perdido. Olha, escuta, toma sentido no que te vou dizer: O <em>Senhor</em> +vai perguntar quem corre mais, para lhe entregar a caldeirinha que veiu hôje do +inferno para a nossa missa. Tu hasde dizer que corres como o pensamento, agarra +nella, e foge. Corre quanto podéres! Só estarás em segurança agarrado á corda +do sino da igreja, depois do galo preto romano cantar pela terceira vez depois +da meia-noite. Corre, corre quanto podéres, e livra-te de olhares para traz, +oiças o que ouvires, sintas o que sentires. Ainda que te chamem pelo teu nome, +não olhes nem páres,—olha que depende dahi a tua salvação e a tua vida!</p> + +<p>Afastou-se saltitando, outra vez luzinha, a misturar-se com as outras na +dansa macabra.</p> + +<p>O Manoel ficou estarrecido, mas o proprio mêdo lhe deu energia bastante para +responder com segurança á pergunta que o <em>homem vermelho</em><span +class="pn">{64}</span> fazia em voz tão formidavel e soturna que toda a +natureza estremeceu de pavôr e os corvos no visinho cemiterio grasnaram +agoirentamente.</p> + +<p>Tendo gritado, no meio de vozearia geral, como lhe ensinara a Gertrudes +Zarôlha,—«corro como o pensamento!»—agarrou na caldeirinha magica que estava +no meio da roda e desatou a correr com quanta força tinha, em diréção á igreja, +cujo campanario singelo donde pendia a corda do sino era agora a sua unica +esperança de salvamento.</p> + +<p>Mas, fosse porque o conhecessem pelo andar ou fosse por penetração diabolica +e subtil, o que é certo é que, logo que voltou costas, uma grita ensurdecedora +lhe chegou aos ouvidos. Sentiu-se perseguido por toda uma canalha de demonios, +fúrias vêsgas e feiticeiras esguedelhadas, pequeninos trasgos e enormes +gigantes, que ardendo em sêde do seu sangue e da sua alma christã lhe corriam +no encalço.</p> + +<p>Via-se quasi perdido, sentia-se quasi agarrado por enormes braços +descarnados e com unhas aduncas e enclavinhadas, que se lhe cravavam na carne +como tenazes... Chamavam-no pelo seu nome, ouvia coisas pânicas, e ora o +insultavam com palavras que se desprendiam como pedradas de funda, ora o +seduziam com promessas tentadoras.<span class="pn">{65}</span></p> + +<p>E dizia mesmo que essas vozes sedutôras, que se misturavam ás outras brutais +e agressivas, eram ditas pela bôca vermelha e fresca da Maria...</p> + +<p>Mas, fiel á recomendação da Gertrudes, corria numa ânsia ofegante, num +desespero de loucura. Na cabeça enfebrecida duas unicas ideias se lhe +espetavam, como navalhas agudas:—a Próspera abraçando o <em>Senhor</em>, como +lhe chamara a Zarôlha, e o campanario humilde onde estava a sua salvação.</p> + +<p>Não compreendia nem via mais nada, e nada mais lhe interessava no mundo. Mas +chegaria a tempo de poder agarrar a corda do sino antes do galo preto romano +cantar pela terceira vez á meia-noite?!...</p> + +<p>Já as pernas lhe fraquejavam, a cabeça andava-lhe á roda, e os gritos +satanicos, que mais e mais se avisinhavam, davam-lhe a certeza do seu triste +fim, se não conseguisse chegar.</p> + +<p>Mas já estava perto—num último arranco, estava salvo!</p> + +<p>Se fosse vinte passos mais longe não poderia resistir. Quando deitou a mão á +corda do sino, que deu na noite negra uma badalada lugubre, o galo preto romano +soltava pela terceira vez a sua voz clara e sonora de espancar visões e +pesadelos.<span class="pn">{66}</span></p> + +<p>Um gargalhar surdo e um rumôr de maldições e pragas perderam-se no ar, +emquanto o Manoel cahia pesadamente no chão, agarrado ainda á corda do sino que +tremia nas suas mãos crispadas. Ao lado tombara a caldeirinha tilintando numa +vózita escarnicadora.</p> + +<p>Para quem duvide do caso, lá está ella na igreja matriz, da pequena terra +triste, cortada na rocha bruta, estrangulada entre pinhais melancolicos e +oliveiras de folhagem eternamente sombria.</p> + +<p>Lá anda ella, cheia de agua benta, tilintando sempre a sua vózinha +escarnecedora e fantastica, acompanhando enterros de cavadores tisnados que na +terra encontram o seu unico repouso, e criancinhas frageis que vão para o céo +aspergidas com a agua benta da caldeirinha infernal...</p> + +<p>Lá anda, muito serena, orgulhosa do seu metal desconhecido forjado nas +profundezas ardentes do mundo sobrenatural, a acompanhar o senhor vigario na +visita anual em dia de Páscoa alegre e florída:—«Bôas festas, bôas festas, +santas festas!, sorri no seu arzinho petulante.</p> + +<p> </p> + +<p>De madrugada, quando os homens iam para o trabalho, encontraram o Manoel +ainda desmaiado,<span class="pn">{67}</span> agarrando-se á corda do sino como +naúfrago a táboa salvadora.</p> + +<p>Levaram-no para casa, alvorotando toda a vila com o extraordinario caso. A +Clara de Rezadeira,—coitada!—mal viu o filho, o seu Manoel, estendido como um +cadaver sobre o leito de cabeceiras embutidas, para onde os homens o atiraram +já cansados da caminhada com semelhante pêso, ia morrendo tambem, sufocada pelo +sangue cujos impetos o pobre coração mal podia regular.</p> + +<p>Mas o mestre barbeiro afiançou a cura para breve, dando uma picadélasita no +braço do rapaz—que era de humôr muito quente, e apanhara algum golpe de sol lá +pela feira.</p> + +<p>A febre sobreveiu e teve-o entre a vida e a morte, dias e noites ardendo num +fogo de que o delirio e a agitação eram o corolario logico. O que elle via, os +sonhos e os pesadelos que lhe enchiam a pobre cabeça enfebrecida, mal o +compreendiam os seus enfermeiros. E todo aquelle mal se agravava e a agitação +chegava ao delirio furioso dum louco se por acaso a Maria do Próspero chegava á +porta, a pedir noticias ou a querer ajudar a tia Clara nos arranjos domesticos. +</p> + +<p>Ninguem podia compreender tal horror á rapariga, nem ella, que se consumia e +chorava<span class="pn">{68}</span> sem consolação por vêr a mudança brusca do +seu Manoel.</p> + +<p>Quando se levantou estava pálido, cambaleava, e uma tristeza profundissima +lhe encovava os olhos.</p> + +<p>No primeiro dia em que sahiu, o seu cuidado foi logo ir procurar a Gertrudes +Zarôlha, que encontrou sentada á porta da casa, fiando e conversando com o gato +preto gordo e pesado, seu unico companheiro e amigo.</p> + +<p>O Manoel não esteve com ceremonias, foi direito ao fim. Contou á velha tudo +quanto tinha visto na <em>Fonte do Inferno</em> quando viera tarde da feira, e +exigiu explicações completas sob a ameaça duma sóva se ella não quizesse dizer +a verdade.</p> + +<p>Ao principio a Gertrudes indignou-se, pôs as mãos no peito, jurou a sua +inocencia e negou que fosse feiticeira.</p> + +<p>—Na <em>Fonte do inferno</em>?!</p> + +<p>—O Manoel que não sonhasse em tal—<em>crédo!</em> <em>cruzes, +canhoto!</em> Fôra aquelle patife do Próspero que levantara aquella calúnia e +dizia a quem o queria ouvir—que fôra ella quem chupara o filho da fidalga... +</p> + +<p>Mas o Manoel atalhou:—não negassse a Senhora Gertrudes; tinha-a elle visto, +ora essa! Querer dizer-lhe que não era verdade uma coisa que elle mesmo vira, +com aquelles<span class="pn">{69}</span> mesmos olhos que a terra havia de +comer?!... Demais, não tinha nada com a sua vida nem o contaria a ninguem, pois +até lhe estava muito agradecido por o têr ensinado a livrar-se de tamanho +perigo. Agora o que queria saber era a verdade—sobre a Maria do Próspero. +Seria ou não certo tê-la visto abraçar o <em>Senhor</em>?... Seria ou não certo +o sêr ella feiticeira a valer?! Podia têr-se enganado... podia-a têr confundido +com outra... Ás vezes, e como foi ao longe...</p> + +<p>Era a última esperança, e a ella se agarrava com todo o afinco de quem não +quer perder uma dôce ilusão.</p> + +<p>E pensava, horrorisado, que aquilo poderia sêr verdade e teria que deixar de +pensar na Maria, agora que a paixão por ella chegara ao halucinamento, +hesitante entre o amôr e o odio.</p> + +<p>Quanto daria para que a Gertrudes lhe désse a certeza de que os seus olhos o +tinham iludido, quanto daria!... Tornar a têr na Maria a confiança que tinha +dantes; podê-la levar para a sua casa, como ainda na vespera lhe dissera a mãe, +que morria pela rapariga—tão trabalhadeira, tão desembaraçada e bôa... Não +tinha nada, mas isso o que importava? Ella, a Clara do Rezadeira, não se +importava nada com isso e aconselhava-lhe a que escolhesse<span +class="pn">{70}</span> antes uma rapariga de trabalho do que uma com dinheiro, +que nada vale quando dá em mãos que o não sabem guardar nem aumentar.</p> + +<p>Como elle esquecia, evocando a formosa rapariga, a pálida Terezinha, que +lentamente se ia definhando e morrendo aos poucos, ao compasso surdo e monotono +do seu tear!...</p> + +<p>Mas a Gertrudes foi impiedosa. A pouco e pouco começou a dizer tudo; +primeiro timidamente, tenteando o assunto, depois entusiasmando-se, contando +detalhes, dizendo coisas que arrepiavam e indignavam o Manoel.</p> + +<p>Era certo e mais que certo sêr a Maria feiticeira! Havia pouco tempo que +aprendera, mas já a consideravam das mais finas e das mais queridas do +<em>Senhor</em>.</p> + +<p>—O lobis-homem que tinha visto—mas isso em grande segredo, porque tinha +medo de levar alguma sóva—era o Próspero velho. Andava com o fado ha tantos +anos! Não tinha sorte nenhuma, coitado!</p> + +<p>Que de historias lhe contou, e elle ouviu pasmado, vencido por aquella +verdade irrefutavel:—a Maria era feiticeira!</p> + +<p>A Gertrudes comentava com gestos curtos e vozes de confidencia:—Ora essa! +De que se admirava? Sempre lhe dissera que não era mulher capaz para um homem +de brio e de honra.<span class="pn">{71}</span></p> + +<p>Tinha-lhe odio, o odio implacavel das velhas criaturas despresiveis aos que +têm a insolencia da alegria, da juventude e da beleza. E então, depois que a +rapariga dissera numa sacha, entre as gargalhadas do rancho, que não queria +estar ao pé della porque lhe podia dar quebranto ou chupá-la como fizera ao +filho da fidalga, a Gertrudes não a podia tragar.</p> + +<p>—Se fosse com a Terezinha,—continuava convencedora—com essa era de sua +aprovação. Uma rapariguinha tão recolhida, sem uma <em>nota</em>, sem más +palavras para ninguem, e sempre tão bôa, tão condoïda! Mesmo um anjo do céo! +</p> + +<p>O Manoel calava-se, abismado no seu desgosto, não podendo seguir-lhe a +tagarelice nem dizer uma palavra que lha fizesse estancar. De quando em quando, +uma palavra ou outra feria-lhe o ouvido, chamando-o á realidade, aos repelões, +sobresaltando-lhe ainda mais a alma amarfanhada.</p> + +<p>Por vezes já a imagem da Terezinha, com a sua esbelteza delicada, o seu +vestido escuro de luto aliviado, o sorriso maguado da sua bôca virgem de +beijos, se começava a esboçar na sua memoria. Via-a córada como a romã quando +acertava de lhe dirigir a palavra, sofredora e resignada quando o sabia mais +prêso pelos encantos de Maria; lembrava-a<span class="pn">{72}</span> fugindo +arisca da porta para o espreitar da janela, mal assomava ao cimo da rua com os +seus ares triunfantes, bamboleando-se com a importancia de janota de +aldeia.—«Coitadinha! Gostava tanto delle! Emquanto esteve doente, nunca ella +deixou apagar a lampada á Senhora do Castelo...</p> + +<p>O Manoel afastou-se por fim—a velha já o enjoava com as suas historias. E, +ao sahir dali, pensava com funda melancolia em todo o passado extinto, nessa +alegria radiosa que não voltaria mais. Da sua vida, tão profundamente abalada, +nem a si mesmo sabia dar conta.</p> + +<p>Quando subia vagaroso e preocupado a rua estreita e ingreme, os seus olhos +poseram-se com sobresalto na Maria do Próspero, que caminhava em sentido +contrario, cabisbaixa, os braços cahidos ao longo do corpo, os olhos pisados +postos no chão, o fato em desalinho de quem perdeu o gosto e a garridice.</p> + +<p>Que mudada estava! Nem parecia a mesma,—não a reconheceria por certo fóra +dali.</p> + +<p>O rapaz, olhando-a, sentiu subir-lhe do largo peito um soluço doloroso.</p> + +<p>Meteu-se na sombra duma porta e deixou-a passar, avergada ao pêso da +tristeza e do remorso do seu pecado sinistro.<span class="pn">{73}</span></p> + +<p>Estremecia de horror como se a visse ainda na noite demoníaca, cuja +lembrança o perseguia como uma ideia fixa de monomaníaco.</p> + +<p>Como podia ser feiticeira uma rapariga tão linda, tão alegre, tão +sincera?!...</p> + +<p>Mas era-o, tinha a certeza, porque a vira abraçando o <em>homem +vermelho</em> de negros pés de forquilha, e porque a Gertrudes lho afiançara +havia instantes.</p> + +<p>Todo o pavôr daquella noite tragica o tomou de novo, e involuntariamente +evocou o <em>sabbat</em> infernal:—as luzinhas bailando, entrechocando-se, e +afastando-se num compasso rítmico; as gargalhadas que soavam como crucitar de +corvos; os olharapos correndo, com o seu unico olho a furar-lhes a testa; os +lobis-homens galopando, no seu fadario triste; avejões, diabitos galhofeiros, +lémures, trasgos, duendes, feiticeiras, e, sobre tudo, como ferro em braza a +causticar uma chaga, a recordação da cêna em que a Maria abraçava o <em>homem +vermelho</em> e lhe servia de estrado.</p> + +<p>Era de endoidecer!</p> + +<p>Quando despertou desse pesadelo de acordado, já a Maria ia longe, andando +lentamente, acurvada pelo imenso desgosto de vêr o Manoel tão diferente do que +fôra, e sem razão nenhuma que ella lhe désse!<span class="pn">{74}</span></p> + +<p>Se ao menos soubesse explicar o motivo porque tão cruamente a repelira +durante toda a doença, quando ella passava as noites sem se deitar, sempre +pronta á primeira voz,—uma verdadeira filha para a Clara do Rezadeira, que já +lhe queria como tal!...</p> + +<p> </p> + +<p>Alguns mêses depois, os sinos da antiga igreja matriz repicavam +freneticamente mostrando o entusiasmo do sacristão pelo casamento do Manoel com +a Terezinha da Zéfa do Padre.</p> + +<p>A noiva ia radiante, mais linda do que nunca. Os olhos brilhantes, os labios +ardentes, as faces ligeiramente córadas pela felicidade inesperada que a +chamava á vida, quando ia já caminhando para a morte, ao compasso monotono do +tear subindo e descendo no contínuo trabalho.</p> + +<p>Satisfeito e feliz, tambem o Manoel ia, triunfante, com o seu fato preto de +pano fino, o seu chapéo lustroso, a sua fina camisa engomada a primôr, ao lado +da noiva—uma santinha do altar!, dizia a Gertrudes benzendo-se.</p> + +<p>Tambem elle se sentia alegre e despreocupado, sem pensar na pobre Maria do +Próspero, que curtia sósinha, num desespero tôrvo e sem remedio, a sua derrota +miseravel.<span class="pn">{75}</span></p> + +<p>Quando a Gertrudes Zarôlha começou a espalhar o que se passara, o que vira o +Manoel na noite em que viera mais tarde da feira, por se têr demorado a +conversar com uns amigos na taberna do Geitoso, a Maria teve um violento acesso +de cólera, uma rubra indignação, que estava na logica da sua forte e sadia +natureza. Quiz bater na velha, que fugiu espavorida, gritando-lhe que fosse +perguntar ao Manoel—e elle lhe diria tudo quanto vira...</p> + +<p>E ella fôra logo, forte da tranquilidade da sua consciencia, certa de que +elle estaria ao seu lado para a defender de tão absurda acusação...</p> + +<p>Mas quando ouviu da bôca delle a confirmação dos ditos da velha, quando elle +lhe atirou com despreso o epíteto de <em>feiticeira</em>, sucumbiu. Ficou +quieta, a olhá-lo pasmada, sem encontrar uma palavra para se defender, cheia de +dúvidas e de desânimo... Sem a confiança do Manoel, o que podia fazer?!</p> + +<p>E desandou dali, com grossas lagrimas a rolarem-lhe pelas faces, e um aperto +na garganta que a estrangulava.</p> + +<p>Fechou-se em casa; e, sem ninguem que a consolasse, nenhuma alma compassiva +que a ajudasse a levantar daquelle abismo em que a propria consciencia +desaparecia sob a<span class="pn">{76}</span> sugestão alheia, rebolou-se pelo +chão, rasgou o fato, atirou contra as paredes a cabeça que sentia perdida e +desvairada, soltou gritos que lhe despedaçavam o peito, até que, exausta, ficou +como morta no meio da casa. Ao voltar do trabalho é que o pai a levou para a +cama, limpando, num repelão, á camisa suja de suor e poeira, uma lagrima que +teimava em rebolar-lhe pela face encarquilhada e dura.</p> + +<p>—A sua pobre filha, a alegria da sua vida—em que estado a encontrava! +Maleitas ou mau olhado, espirito ruim que lhe entrara no corpo e já a não +largaria...</p> + +<p>Quando voltou a si, pesou bem a desolação da sua vida, e chorou toda a sua +esperança, a sua alegria como a sua mocidade exuberante que tinham fugido +espantadas diante daquella noite negra e sem fim.</p> + +<hr class="dotted"> + +<p>Emquanto os sinos cantavam na manhã clara, de sol radioso e céo azul em +festa, as alegrias do casamento da Terezinha com o Manoel da Clara, a +caldeirinha magica tilintava o seu risito escarninho e macabro e todos a +consideravam com admiração e respeito pelo sobre-natural.</p> + +<p>A Maria, agora feiticeira conhecida e apontada por todos, já não canta nem +vai ás romarias.<span class="pn">{77}</span></p> + +<p>Nos trabalhos do campo, as mulheres e as crianças afastam-se della +apavoradas, e os homens, lamentando-a, não têm coragem de vencer esse pavôr. +</p> + +<p>Um brilho ardente de febre queima sempre os seus lindos olhos negros, que +vagueiam inquietos, num mêdo doentio e tragico.</p> + +<p>Atormentada de visões, mordida de maus olhados, mêses inteiros prêsa de +delirios histericos, sente-se, na verdade, transportada nas azas do vento para +sitios ermos em que luzinhas saltitam em rondas buliçosas, lobis-homens passam +em cavalgadas doidas para se irem espójar nas encruzilhadas sinistras, moiras +encantadas tecem em teares de oiro contando as saudades antigas da sua vida +humana, e olharapos, duendes, lémures e trasgos povôam as noites horrificas de +<em>sabbat</em>.<span class="pn">{78}<br>{79}</span></p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION00300000000000000000">III<br> +Diario duma criança</a></h1> + +<p><span class="pn">{80}<br>{81}</span></p> + +<p> </p> + +<h2><a name="SECTION00310000000000000000">DIARIO DUMA CRIANÇA</a></h2> + +<p>Creio que não é bem exáto o titulo que escrevi no alto da página. Isto não é +verdadeiramente o <em>Diario duma criança</em>, não é, mas sim a minha vida +toda recordada dia por dia, hora por hora, com uma precisão de factos e +sensações de que o Chico muito se admira.</p> + +<p>Decerto não sou muito velha—fiz em março vinte e dois anos—mas, assim +mesmo, elle acha extraordinario como os episodios da minha infancia se me +fixaram na memoria tão vivamente, e os posso recordar com tanta nitidez, como +se a minha alma tivesse a receptibilidade mecânica de um fonógrafo.</p> + +<p>Não pensei nunca em escrever; sei, tão pouco, que nenhuma novidade pode +trazer ao mundo a minha prosa descuidada e frouxa.<span class="pn">{82}</span> +</p> + +<p>Fui sempre pouco estudiosa e nenhuma honra dei aos meus professores. O +Chico, que é um sábio, é que me disse, uma tarde, resumindo toda uma longa +palestra em que eu lhe contei os mil incidentes de vida estranha em que o meu +pobre espirito se debateu até chegar á dôce paz da nossa felicidade de hôje: +</p> + +<p>—«Se tu escrevesses isso tal qual o contas, fariamos um belo estudo de +psicologia infantil!...</p> + +<p>Eu, que adoro o meu Chico, não o queria desgostar, mas escrever tudo quanto +sentia, tudo quanto me lembrava têr sofrido, parecia-me tão dificil!... Vida +toda feita de sensações e estranhêzas de caráter, quem poderá têr interesse em +conhecê-la?!</p> + +<p>Oh que coisa tão custosa de realisar, este desejo, quasi imposição, do +Chico!...</p> + +<p>As minhas memorias são leves fios de aranha que não servem para urdir e +tecer utilmente uma sólida obra caseira.</p> + +<p>Escrever o <em>Diario</em> da minha infancia, eu que nunca tive paciencia de +rabiscar cartas muito grandes—a não sêr para o Chico!...</p> + +<p>Depois, sei unicamente escrever o que sinto, e os escritôres—dizem—não +fazem assim. O Chico sente os versos que faz tão lindamente, mas esse... oh +esse é outra coisa!<span class="pn">{83}</span></p> + +<p>Por muito tempo discutimos, mas, como o senhor meu marido é adoravelmente +teimoso e eu não sei ainda contrariá-lo, deixei-o ir uma noite destas ao +teatro, recusando-me a acompanhá-lo a pretexto de ter sôno, e quando voltou, +eram duas horas da manhã, entreguei-lhe o manuscrito, que leu sem descansar, +tal qual o mandou imprimir logo no dia seguinte.</p> + +<p>Isso é que me custou!... Porque, depois de o escrever duma só vez, e sem +hesitar diante duma unica palavra que não correspondesse ao meu pensamento, +deixando correr a penna nervosamente, em galopada doida, quando as recordações +vinham em montão, chamadas umas pelas outras, numa lufada de quasi vertigem, +sempre imaginei que elle emendaria aquilo e lhe daria uma fórma mais corréta. +</p> + +<p>Mas—qual historia!—o querido <em>infame</em> teve o descaramento de se rir +na minha cara e de me responder:</p> + +<p>—Que se o emendasse estragaria tudo!</p> + +<p>Foi assim que sahiu, tal qual o escrevi, numa hora de febre.</p> + +<p> </p> + +<p>Chamo-me Raquel. Creio que este nome é hereditario na minha familia, porque +a minha<span class="pn">{84}</span> avó e a mãe da minha avó eram tambem +Raquel. Não sei. De genealogias, como de tudo mais, entendo pouco.</p> + +<p>O mais longe que posso recordar na minha existencia humana, vejo-me feliz. +</p> + +<p>Era uma grande casa de aldeia, a nossa. Havia ali de tudo quanto pode +desejar uma criança acostumada á simplicidade da vida campestre.</p> + +<p>Os pateos eram habitados por uma multidão de animais domesticos, que nos +conheciam bem, de tanto milho que ás escondidas lhes deitavamos.</p> + +<p>Eu era a mais velha, e os meus quatro irmãositos seguiam-me alegremente +pelos campos fóra, como um rebanho segue o pastor. Nada nos era defêso, nem +parede que não tivessemos escalado, nem arvore que não conhecessemos como os +nossos dedos. Os frutos eram vigiados desde que as arvores se cobriam de +prometedoras flôres, e antes, muito antes da familia os vêr em casa, já nós +tinhamos feito a nossa primeira escôlha. Quando a nossa pobre <em>burrica</em> +descansava do fatigante trabalho da nóra, iamos desamarrá-la da manjedoura, +saltavamos-lhe para cima, e fazíamo-la trotar pelos caminhos pedregosos da +aldeia como um <em>pur-sang</em> trotaria nas avenidas areadas dum luxuoso +parque.<span class="pn">{85}</span></p> + +<p>Felizes tempos!... Mas, no fim de contas, eu era uma rapariga; ás vezes +lembrava-me disso, e nem sempre estava disposta a fazer de general no exercito +<em>fraternal</em>.</p> + +<p>Muitas vezes mesmo, o instinto do meu sexo pedia-me brincadeiras mais +socegadas: queria <em>governar casa</em>, <em>sêr a mãe</em>, exercer a minha +atividade de mulher trabalhadeira e que conhece o seu logar. Chamava então as +pequenas da minha idade e brincavamos <em>ás dônas de casa</em>: improvisando +os nossos lares em qualquer recanto do jardim, servindo de baixela fragmentos +de loiça, <em>cosinhando</em> pétalas de flôres e hervas que tinhamos mais á +mão; indo ao tanque lavar a roupa das bonecas, <em>as nossas filhas</em>; +carregando a agua com a cantarinha em equilibrio sobre a <em>rodilha</em>, no +alto da cabeça; tendo as nossas disputas e conversas como viamos ás +<em>senhoras visinhas</em>, lá no povo. Ralhavamos com os <em>homens</em>, os +meus irmãositos—porque entravam tarde, andavam por lá com os amigos...</p> + +<p>Na aldeia não havia meninas <em>finas</em>, e então arranjara as minhas +amigas e companheiras nas humildes filhas dos nossos caseiros e serviçais.</p> + +<p>Tinha os seus modos desempenados, os seus gostos simples, e, apesar disso, +não me parecia com ellas!<span class="pn">{86}</span></p> + +<p>Sempre me hade lembrar o que escandalisava meus pais quando afirmava +perentoriamente: que de todas as casas da vila proxima, onde as havia muito +bôas, era a mais humilde de todas a que mais me agradava.</p> + +<p>Cuidaram que era uma perversão do meu senso estético, mas vendo-a ha pouco, +já depois de mulher, confesso que não mudei de opinião. É que sentia +intuitivamente o pitoresco que os nossos artistas andam hôje procurando com +tanto afan...</p> + +<p>Na verdade a casinha térrea, construida sobre a rocha onde tinham cavado os +degraus, com seu alpendre e o seu pé de videira a ensombrá-lo, era duma +originalidade, na sua singeleza primitiva, que me encantava.</p> + +<p>Nunca, como tantas crianças na minha idade, me lembrei de imitar a mamã, as +tias, ou as senhoras das nossas relações. Nada! Só procurava sêr aquilo que +nunca conseguiria, por mais esforços que empregasse.</p> + +<p>Melhor fôra que tivesse conseguido o meu desejo e ficasse como as outras +raparigas da minha aldeia: uma perfeita camponeza, cheia de saude e de alegria, +sem mais cultura do que a dellas!...</p> + +<p>—Meu Deus! A delicada ternura do Chico compensa-me de muitos desgostos +passados,<span class="pn">{87}</span> abre-me um caminho largo a uma existencia +toda inundada de sol; mas, quando penso em quatro anos da minha existencia, +sinto em mim uma tão grande repercussão de dôres passadas, que não sei quanta +bondade lhe será precisa para mas fazer esquecer!...</p> + +<p>Emquanto eu suportei todos os tormentos que uma pobre criança pode sofrer, +sequestrada de tudo quanto lhe rodeou e acariciou os primeiros anos; emquanto o +meu espirito, sacudido pelas lutas mais violentas, angustiado pelas mais +sombrias dúvidas, se abria á compreensão duma vida que dizem superior; emquanto +o meu coração aprendia na dôr os infinitos cambiantes dos sentimentos +complicados; a Rosita, a Maricas, e a Anninhas da méstra—as queridas +companheiras da minha infancia—cresciam e faziam-se bôas e laboriosas +mulheres, cheias de vida e saude, sem incompreensões mortificantes do seu +proprio coração.</p> + +<p>Quando ellas me viram voltar á aldeia, tristemente grave, empalidecida pela +dôr, adelgaçada pelos anos, o trajar cuidado de quem não desconhece os +preceitos da elegancia, não compreenderam as lagrimas que bruscamente me vieram +aos olhos e correram impetuosas pelas faces, como vaga interior vencendo todos +os diques.<span class="pn">{88}</span></p> + +<p>Imaginaram—as pobres!—que eu tinha saudades das amigas de Lisbôa e as +desprezava a ellas. Oh não, mil vezes não! Tinha uma pungente saudade do tempo +em que o meu espirito, não fatigado, se comprazia nas suas conversas simples, e +em que os seus gostos naturais eram tambem o meu gosto.</p> + +<p>Chorava desesperadamente a minha alegria, para sempre tocada de mal +incuravel; tinha desprezo—e muito—por essa educação que me roubara quatro +anos de vida feliz e proveitosa, dando-me em troca uma ignorancia mais completa +do que a sua! Porque as minhas amigas e companheiras de infancia sabiam muita +coisa util, e eu apenas me podéra convencer de que não sabia nada—o que é +altamente desconsolador.</p> + +<p>Como já disse, durante a infancia considerei-me feliz. A minha mãe era +bondosa, como muita gente o é, porque assim tinha nascido, pela mesma +fatalidade psicologica que a podia têr feito nascer uma criminosa. Mas juntava +a essa inconsciente bondade muita justiça e bom-senso.</p> + +<p>Cuidava escrupulosamente do amânho interior da nossa casa, não deixando as +criadas levantar mão dos serviços, com uma disciplina que invejariam muitos +instrutores de recrutas. Rezava as orações obrigatorias de cada dia;<span +class="pn">{89}</span> cabeceava á bôca da noite, antes de se acender o +candieiro para o serão; e depois de espertar era a última a deitar-se em casa, +depois de vêr todas as portas e apagar todas as luzes—não, fôsse o inimigo +sonso que se lhe metesse algum ladrão em casa, ou as raparigas se descuidassem +com o lume! De manhã era a primeira a madrugar, para a mesma labuta de todo o +ano,—que era afinal a de toda a sua vida.</p> + +<p>De sabedorias para si, importavam-lhe pouco, mas queria-as para mim, que no +seu entender devia tornar-me uma verdadeira <em>menina educada</em>: tocando +piano, ataviando-me com geito de quem sabe, que não privasse com as +<em>raparigas da rua</em>, que lêsse romances para têr umas luzes de historia, +que bordasse a matiz e a escama de peixe ou a casca de castanha, cantasse ao +piano em francês ou italiano, soubesse, emfim, estar numa sala...</p> + +<p>Duma tão grande infelicidade que a unica filha tinha modos de rapaz, +detestava o piano, adormecia a lêr os mais pateticos romances, e fazia a cabeça +doida ao padre José, que nos dizia a missa na capela da casa e toda a semana +carregava com a pesada cruz de nos iniciar nos misterios da lingua portuguêsa. +</p> + +<p>Ralhavam comigo, mas, por mais que ralhassem, não conseguiam fazer-me +compreender a<span class="pn">{90}</span> possibilidade de estar perfilada numa +cadeira a receber as visitas na sala, como via as filhas do recebedor e as do +medico da vila quando vinham á nossa casa. Francamente, abominava as adoraveis +meninas, que ficavam com sorrisos murchos ao cimo da escada, recusando-se a +seguir-nos á quinta com mêdo de estragar os lindos vestidos á moda, esses +vestidos aparatosos, cheios de fitas e rendas, que usam na provincia as meninas +ricas.</p> + +<p>Eu, que era uma selvagem incapaz de tolerar um colête justo ou umas botas +apertadas, que pedia para que me cortassem o cabelo para não sofrer os +penteados, que só gostava dos vestidos depois de afeitos ao corpo pelo uso, +olhava com verdadeiro assombro aquellas meninas modelos.</p> + +<p>Ás vezes, a minha bôa Maria Augusta tentava apertar um pouco os cordões do +colête,—«para me tornar elegante»—mas eu protestava tão energicamente que +tinha de desistir logo, dizendo-me arreliada:</p> + +<p>—«Ó menina, é preciso sofrer para sêr formosa!</p> + +<p>—«Pois sim, espera por essa... Eu nem quero sofrer nem quero sêr formosa! +</p> + +<p>Uma vez levantei-me cedo, estava uma manhã gloriosa de inverno, deste +inverno tão nosso, em que o azul do céo é limpo, puro e<span +class="pn">{91}</span> transparente como se fabricado fôsse pelo mais +escrupuloso dos artistas e da mais preciosa das porcelanas.</p> + +<p>Em casa apenas as criadas traquinavam na cosinha, encetando a labuta do dia, +e a Maria Augusta abria janelas e portas para a limpeza do rez-do-chão.</p> + +<p>Acordara cedo; a chilreada dos pardais madrugadores era o meu despertador. +</p> + +<p>O sol começava a aureolar o cume dos montes, e, como a nossa casa ficava ao +cimo dum vale, depressa me inundou o quarto duma luz rosea que enchia de +alegria os meus olhos e me fazia cantarolar e rir sósinha, como se estivesse no +maior divertimento.</p> + +<p>E vesti-me á pressa, com grande abundancia de gestos, batendo na agua fria, +que atirava para a cara com as mãos em concha, satisfeita e feliz como se uma +alma nova despontasse em mim.</p> + +<p>Em baixo, a Maria Augusta e as outras criadas festejaram o meu sorriso +jubiloso, a minha madrugada feliz.</p> + +<p>Correndo para o pateo, comecei por dar liberdade a toda a capoeira que ainda +permanecia fechada, por soltar o Tigre que os criados já tinham acorrentado á +sua grilheta diurna, e fui á estrebaria vêr a nossa bôa Cacilda, a burra, que +me cumprimentou com um zurrar festivo.<span class="pn">{92}</span></p> + +<p>Iniciando assim o que a Maria Augusta chamava irreverentemente a série dos +meus disparates, não parei no principio, o que seria prova de pouca +independencia de caráter... Desprender a Cacilda e trazê-la para a horta, para +que ella podesse saborear á vontade as couves que o velho hortelão guardava +avaramente dos seus dentes de apreciadora, pareceu-me a coisa mais natural do +mundo.</p> + +<p>Depois, ella bem almoçada, e naturalmente tão alegre como eu e como o Tigre, +que a seguiamos satisfeitos de a vêr escolher uma a uma as mais tenras folhas +da horta, achei tambem natural, como um simples remate de tal festa, que +fôssemos dar um passeio até á mata.</p> + +<p>Chamando a Cacilda, acariciei-lhe o pescoço, dei uma volta á corda na mão, e +dum pulo fiquei-lhe montada sobre o dorso como um rapaz.</p> + +<p>Um pequeno assobio ao Tigre preveniu-o da minha resolução, e ahi vamos nós +todos três, alegres e felizes, porque o céo estava limpido e o sol brilhava, +porque o ar era puro e os campos reverdeciam numa jovialidade de primavera +proxima.</p> + +<p>A meio da carreira sobreveiu-nos um obstaculo inesperado, na vera pessôa do +bom padre Zé, que já voltava das suas arvores em<span class="pn">{93}</span> +cata do almoço, e fez estacar a Cacilda com os seus gestos e gritos indignados. +</p> + +<p>—«Para onde vai a menina assim montada?!</p> + +<p>—«Dar um passeio á mata. É para abrir a memoria e o apetite—respondi-lhe a +rir.</p> + +<p>—«Mas isso não são modos de menina bem educada!—apostrofou-me aflito.</p> + +<p>—«Eu não sou <em>menina</em>, nem <em>bem educada</em>!—retorqui-lhe numa +gargalhada.</p> + +<p>—«Se a mamã sabe!....</p> + +<p>—«Não lhe diga nada, que eu já volto.</p> + +<p>E, dando um sinal á Cacilda, partimos a galope, deixando o bom do padre no +mais profundo pasmo.</p> + +<p>Agora são os medicos os primeiros a preconisar ás senhoras essa maneira de +cavalgar, e não tardará que a moda a impônha como a última palavra do +<em>chic</em>. Como a razão é intuitiva e se faz sentir na inteligencia liberta +da criança!</p> + +<p>Mas á volta é que fôram ellas! Tinha levantado um verdadeiro temporal de +protestos e queixas com os meus átos, tão espontaneos e naturais quanto me +pareciam humanos e justos...</p> + +<p>Pois não seriam elles meritorios: abrir as prisões, soltar os presos, dar de +comer aos<span class="pn">{94}</span> que tinham fome, e em seguida premiar-me +a mim mesma indo passear?!</p> + +<p>Não o entenderam assim em casa, lá porque as galinhas tendo encontrado +aberto o portão do quintal tinham acabado a destruição da horta, que a Cacilda +encetara com tanto brio! O hortelão parecia doido e a minha pobre mamã +benzia-se assustada, temendo que eu tivesse o diabo no corpo.</p> + +<p>Fui chamada ao escritorio, áquelle escritorio de paredes revestidas de +velhos livros onde o meu pai recebia os caseiros, fazia a sua escrituração, e +lia, a maior parte das vezes, os seus in-fólios mofentos.</p> + +<p>O caso era realmente grave, mais do que poderia presumir, para que assim se +tivesse apelado para a autoridade paterna...</p> + +<p>Assentado na larga cadeira antiga, de coiro lavrado e braços abertos num +carinhoso aféto, onde elle descansava as suas finas mãos de intelectual, diante +do pesado bufete de pau santo torneado em três cordas, como um juiz austero, o +meu pai admoestou-me severamente por tanto disparate e terminou por dizer:—que +me tornava o escandalo da familia e assim não podia continuar...</p> + +<p>E como esta outras muitas fiz, que não acabaria se as fôsse a contar +todas.<span class="pn">{95}</span></p> + +<p>A mamã queixava-se da minha extrema ignorancia e incapacidade de sêr +apresentada diante de gente, o que o meu pai corroborava dizendo por seu +turno:—sêr absolutamente preciso, e muito urgente, mandar vir uma professora +que tomasse conta de mim e me sujeitasse a uma «disciplina de ferro».</p> + +<p>—Que não, isso que não!—acudia a minha mãe—não queria estranhas metidas +em casa a vêrem e a ouvirem tudo quanto se faz e em pouco tempo a saberem mais +da nossa vida do que nós proprios. Nem a gente pode falar á sua vontade, nem +têr as suas coisas, porque emfim não ha casa que as não tenha, sem que tudo se +saiba e se comente... Depois, ceremonias, <em>niquices</em>, exigencias... +nada, isso não!</p> + +<p>—«Pois é o unico meio:—opinava o papá triunfante—uma senhora que lhe fale +uma lingua estrangeira e que a sugeite a um regimen invariavel.</p> + +<p>—«Nada, um colegio é ainda o melhor; mete-se lá a pequena e fica-se livre +de cuidados.</p> + +<p>Meu pai hesitava,—tinha lá as suas ideias contra os internatos—e estou em +crêr que me preferia ignorante, como a <em>Zéfinha da horta</em> ou a +<em>Teresita do barbeiro</em>, a têr que me mandar para um colegio.<span +class="pn">{96}</span></p> + +<p>Os meus irmãositos todos se afligiam quando se ventilava a magna questão, +que os ameaçava da minha ausencia, e eu, sem bem saber o que preferia, ia +gosando alegremente os dias na bela paz da minha aldeia florída e ensoalhada. +</p> + +<p>Mal suspeitava que a desgraça estava a bater-me á porta—e mais terrivel do +que podia imaginar! Parece-me estar a vêr entrar na cosinha de grande chaminé, +onde se enxugava o <em>enchido</em> e as castanhas secavam no <em>caniço</em>, +a mulher dos recados que fôra á vila buscar o correio, e me dizia, alviçareira: +</p> + +<p>—«Olhe, menina, aqui vem uma carta para a mamã. É do seu tio Manoel; já lhe +conheço a letra.</p> + +<p>Muito alegre, arrebatei-lha das mãos e fui-me pela casa fóra a gritar pela +mamã até dar com ella no celeiro a receber uma <em>pensão</em>. Lembro-me +bem—<em>cincoenta e sete!</em>—gritava o caseiro, e a mamã, muito serena, ia +apanhando um grão de milho por cada alqueire que o homem despejava na tulha. +Quando entramos—eu e os meus quatro irmãositos—como se fôssemos uma revoada +de pardais bulhentos, ella toda se agastou...—Como isto me ficou nitido na +memoria!—Quando viu de quem era e o que dizia a carta, correu toda satisfeita +em busca do marido, emquanto<span class="pn">{97}</span> nós aproveitavamos a +falta de vigilancia para saltarmos todos para dentro do milho. Eu, que era a +maior, enterrava-me até á cinta nos grãos amornados e enchia os bolsos do meu +bibe branco, para levar uma lembrança ao pombal. Um dos pequenos gritava que as +suas botas, de canos muito largos por têrem pertencido ao mais velho, levariam +mais dum saco de milho, para a ração suplementar da Cacilda.</p> + +<p>Riamos perdidamente, atirando uns aos outros aquella chuva de grãos muito +sêcos, ainda cheirando a campo e ao sol das eiras onde se aloirara e brunira! +</p> + +<p>O caseiro achava muita graça aos meninos—podéra não!—e na sua cabeça +lanzuda esboçava-se, talvez, o pensamento finório de se enganar na conta com +alguns alqueires a menos. É provavel que assim sucedesse, porque a carta do tio +Manoel tinha transtornado por tal fórma a mamã, que até se riu quando nos veiu +encontrar a todos aninhados dentro do milho, e não passou revista ás nossas +algibeiras quando saltamos para fóra e nos safamos com presteza—não fôsse +ainda cerceada a merenda que levavamos aos nossos protegidos da capoeira, do +pombal e da estrebaria!</p> + +<p>Já fóra e ainda ouviamos a contagem dos alqueires que entravam para a tulha, +arrastada<span class="pn">{98}</span> e monotona. Os bois, jungidos ao pesado e +primitivo carro de duas rodas, estacionavam no quintal, ainda carregados com os +sacos cheios com o resto da <em>pensão</em>, guardados por uma criancita +vestida de jaqueta, calças compridas e grande chapéo, como um pequeno homem de +caricatura. O que nós rimos! Era o filho do caseiro, o <em>Tonito</em>, mais +novo do que o mais novinho dos meus irmãos, mas já util como uma pessôa +crescida.</p> + +<p>São assim os filhos do nosso povo, duma sujeição ao trabalho que os +predispõe para uma longa existencia paciente, sofredora e productiva.</p> + +<p>Como esse foi o último dia feliz da minha infancia, não me esqueceram +nenhuns destes detalhes, nem o cheiro á poeira do milho e aos queijos da Serra +da Estrella, que secavam em tábuas prêsas ao této do celeiro por cordas +isoladas com têstos de barro, por causa dos ratos, providencias caseiras da +minha mãe.</p> + +<p>Desde essa luminosa tarde de outôno, ainda quente como se o sol cahisse a +prumo, num estiramento inesperado de estio, e já perfumada pelos frutos +maduros, que se recolhiam á pressa, e pelo môsto de cheiro forte que ferve nas +dornas ainda antes de recolher ao lagar, a nossa casa transformou-se +completamente. Eram só conferencias sobre o<span class="pn">{99}</span> que se +daria aos <em>manos</em>, e mais os lençois bordados, a coberta de damasco para +a cama, as toalhas de linho com ricas franjas de renda de Peniche... Tudo +quanto havia de melhor se levava para <em>o quarto da laranjeira</em>, o mais +vasto e cómodo da casa, o proprio quarto de meus pais, que tudo achavam pouco +para receber condignamente o mano Manoel, que voltara havia pouco tempo do +ultramar, casado com uma estrangeira. E assim passaram oito dias em que se não +pensou nem falou noutra coisa.</p> + +<p>A minha mãe fazia esforços de memoria por se recordar bem nitidamente dos +traços fisionomicos do irmão, como se volvidos tantos anos gastos em trabalhos +e fadigas, elle podesse têr ainda o rosto levemente rosado, o buço mal lhe +sombreando o labio superior, a cabeleira negra ondeada que lhe davam um tão +gentil aspéto no retrato em <em>daguerreotipo</em>, tirado quando assentara +praça em cadete, e que nós não nos cansavamos de ir vêr á sala de visitas, no +seu estojo forrado de veludo granada.</p> + +<p>Até o Padre José afroixava a sua vigilancia pelo nosso estudo e punha-se ao +dispôr da mamã—para o que fôsse necessario. A minha mãe sorria benevola e +agradecia, mas não o ocupava em coisa alguma, porque elle, muito forte no +português e no latim e mesmo um<span class="pn">{100}</span> tanto no francês, +tirado disso só á mêsa, diante duma travessa cheia de açorda, ou no pomar +podando e cuidando das suas queridas arvores, era homem de alguma utilidade. +</p> + +<p>Um santo, o nosso bom professor! Que saudades delle eu tive depois, quando +comparava a sua maneira tão lhana de ensinar, a sua ingenuidade de bom, +respondendo meio comprometido ás nossas curiosidades extemporaneas, e quando se +atrapalhava á nossa pergunta atrevida:</p> + +<p>—«Ó padre Zé, para que está sempre a falar no diabo?</p> + +<p>Era o costume delle, o seu <em>bordão</em>.</p> + +<p>—«É verdade—respondia-nos muito ingenuo—é um diabo duma mania que eu +tenho de estar sempre a falar no diabo!...</p> + +<p>Um bom homem, afinal de contas; um santo velho, nada fanatico, de bolsa +franca para todas as miserias, palavras de consolação para todas as lagrimas, +espirito bem equilibrado e muito logico, um filósofo sob a aparencia dum sólido +camponez. Conseguira que eu aprendesse da minha lingua aquilo que ainda hôje +sei; conseguiria—era capaz!—ensinar-me talvez o latim e até a ajudar-lhe á +missa. O que não faria desta sua rebelde discipula a paciencia beneditina do +bom Padre José!<span class="pn">{101}</span></p> + +<p>O tio Manoel era irmão mais velho da minha mãe. Sahira de casa muito novo; a +última vez que empreendera a incómoda viagem á aldeia, era apenas cadete, como +tirara o retrato. Depois fôra para a Africa, na ânsia de ganhar honras e +postos. De lá percorrera quasi todas as possessões ultramarinas, sem mais se +lembrar de escrever á familia. Só havia pouco tempo mandara noticias +participando têr casado, e dizendo a sua resolução de voltar em breve ao reino. +</p> + +<p>Alguns mêses mais tarde, nova carta dava conta da sua chegada a Lisbôa, onde +estava tratando de se instalar, e convidava a irmã e cunhado para irem +fazer-lhes uma visita. Na última carta, aquella que tanta impressão causara em +todos nós, dizia:—que, em vista da dificuldade que os meus pais opunham em +deixar a casa, viria elle visitá-los e apresentar a sua senhora.</p> + +<p>No dia em que deviam chegar, logo de manhã nos envergaram os fatos +domingueiros, recomendando-nos muita cautela—não fôssem os tios julgar-nos uns +besuntões!</p> + +<p>Nesse dia era escusado o <em>lembrete</em>, pois nenhum de nós pensava em +diabruras, ansiosos como estavamos por vêr chegar os hospedes.</p> + +<p>O Papá partira cedo para a vila, para esperar a diligencia que traria os +viajantes, e nós<span class="pn">{102}</span> subimos ás janelas mais altas a +vêr se descobriamos o carro por entre as faias da estrada real.</p> + +<p>Lá para o meio dia descobriu um de nós uma nuvem de poeira ao longe—tal +qual como no Barba Azul—e, logo depois, ouvimos o guizalhar da diligencia que +já se avistava numa volta da estrada. Corremos alvoroçados a prevenir a mamã, +que na cosinha dava as últimas instruções á criada sobre a cosedura do perú e o +assado de leitão.</p> + +<p>Um quarto de hora depois apeava-se á nossa porta, entre o povo curioso, a +mais extraordinaria pessôa que até esse tempo eu tinha conhecido.</p> + +<p>Depois disso, no caminho da vida, que já não é curto pelo muito que tenho +sentido e sofrido, tenho visto bastas figuras caricaturais: gente de todos os +modos e feitios, tipos de comedia e tipos dolorosos de tragedia, riscados em +dois traços por Gavarny, risos disformes em pálidos abortos, exageros de +vestuario igualmente ridiculos, ou pela extrema elegancia ou pelo extremo +desleixo... Tenho visto de tudo, e jámais senti o pasmo que essa primeira +pessôa estranha causou no meu espirito desprevenido.</p> + +<p>Os meus irmãos, em frouxos de riso, fugiram para dentro de casa, e o +Miguelsinho, que<span class="pn">{103}</span> era o mais velho, abaixo de mim, +puxava-me pela manga sublinhando risos muito ironicos.</p> + +<p>Eu, não sei porquê, não tive vontade de rir; qualquer coisa me dizia cá +dentro de mim que era para pranto, e não para riso, a entrada daquella gente na +minha vida.</p> + +<p>Primeiro apeou-se o meu tio, um vélhote bastante alquebrado, mas alegre por +se vêr na terra natal. Abraçava toda a gente, e tratava por <em>tu</em> velhas +que eu me acostumara a considerar avós, e que limpavam os olhos lagrimejando +por o vêrem tão acabadinho... E elle ria—raparigada do seu tempo, todas essas +vélhinhas, e queriam que elle estivesse um rapaz, e mais que não tinham andado +por trabalhos e canseiras de climas inhospitos!...</p> + +<p>E achava extraordinario que a irmã, uma garotinha de saias curtas quando +elle partira, estivesse já mãe de filhos...</p> + +<p>—«E já de cabelos brancos—visse bem o mano!...</p> + +<p>Atraz delle, sahiu do carro uma pequena de cinco anos, parecendo têr o +dobro, nem bonita nem feia, extravagantemente vestida á inglesa de +torna-viagem, e toda doutoral nas suas frases. Fôra a última a nascer, depois +de bastantes anos de casamento, em que todos os filhos lhes tinham morrido; por +isso era respeitada como milagre vivo.<span class="pn">{104}</span></p> + +<p>Por fim, quando os criados tinham carregado uma aluvião de malas, +necessarios, sacas de linho bordadas, e tanta coisa que nos fazia arregalar os +olhos de espanto, a nós pobres pequenos selvagens, que, a respeito de viajar, +iamos ás quintas proximas pelo tempo da vindima e até ao rio em folgada +pescaria uma vez por festa. Depois começou a sahir um prodigioso chapéo de +palha envolto em gaze côr de castanha, e, a seguir, um corpo enorme vestido com +um guarda-pó de xadrez em largas mangas perdidas.</p> + +<p>Era monstruosa a minha tia! Nunca lhe poude dar este nome porque o meu +espirito se recusou sempre ao convencimento desse parentesco, que repugnava á +minha afétividade.</p> + +<p>Alta como um carvalho e gorda em proporção, o que a tornava ainda mais +exotica entre gente miuda como é a nossa. Talvez não tivesse sido feia, mas as +feições estavam enterradas em tecido adiposo, e só naquelle deserto de cara +branca brilhavam uns olhos metalicos e frios que nenhum sentimento conseguia +adoçar. Quando os poisava na miudinha figura de morenita que eu era então, toda +a minha carne se arrepiava numa tremura e os meus nervos vibravam +desagradavelmente.<span class="pn">{105}</span></p> + +<p>Trazia o cabelo, já a embranquecer, cortado pelo pescoço,—<em>á +estudanta</em>, diziam por lá as pequenas da aldeia—modos autoritarios, voz de +comando, andar de granadeiro, e uma lingua de trapos que ninguem entendia.</p> + +<p>Mãos e pés não tinham fim, e o seu desembaraço irritava-me pela mania que +tinha de fazer tudo e melhor do que ninguem, de falar alto e atirar os braços +para a frente num gesto resoluto de jogador de <em>box</em>.</p> + +<p>Meu pobre tio admirava-a e escutava-a, submisso, como a um oraculo, nada +fazendo sem a consultar.</p> + +<p>Sobretudo nenhuma delicadeza feminil, muito orgulhosa da sua superioridade e +senhora da sua pessôa, dizendo mal—de <em>pórtuguês</em>, <em>e tudo quanto é +pórtuguês, muito estupidos</em>!...</p> + +<p>Dizia-se filha dum banqueiro da Havana prodigiosamente rico, mas tais +riquezas—como as de <em>Pedro Cem</em>—perdiam-se na sombra da lenda.</p> + +<p>Contava coisas estupendas de <em>seu papá</em>, descendente em linha réta de +<em>grandes de Espanha</em>, pelos vistos, dos soberbos companheiros de +Colombo... A <em>sua mamã</em>, essa era uma aristocratica <em>lady</em>, viuva +dum membro da aristocracia britanica, que não se dedignara de aliar o seu puro +sangue azul<span class="pn">{106}</span> ao de descendente dos audazes +conquistadores...</p> + +<p>A fortuna de <em>seu papá</em> pesara por muito tempo nos destinos do +visinho reino, como o luxo da <em>mamã</em> déra brado na côrte de Madrid e na +vilegiatura de San Sebastian, uma vez que os dois tinham visitado a metropole. +</p> + +<p>Coisas que ella dizia, que, ao certo, quem pode dizer donde vem essa gente, +retalhos desencontrados e disparatados das raças do mundo inteiro?!</p> + +<p>Apreendi depois, no decorrer da nossa convivencia, por meias palavras +escapadas a uns e a outros e por inconfidencias de pessôas das relações e que +os tinham conhecido lá fóra, que o banqueiro cahira vergonhosamente numa +falencia que fizera estrondo e a <em>lady</em> não passava duma aventureira, +dessas que a Inglaterra exporta, sob a capa angelical de sérias +<em>institutrices</em>, e que por todos os meios querem arranjar uma existencia +mais cómoda.</p> + +<p>Orgulhava-se extremamente dessa sua origem britanica, como de têr nascido na +America, como se fôsse uma legitima filha dos Estados-Unidos...</p> + +<p>Oh, a livre America, sonho de todos nós os que nos sufocâmos sob a pressão +do convencionalismo europeu, como essa mulher nô-la<span +class="pn">{107}</span> mostrava odiosa, opressiva, duma rigidez de puritanismo +fanatico!</p> + +<p>—«Oh! <em>Amérricana</em>, grande coisa!... <em>Eurrópa, muito +desmoralisada!... Pórtuguês, muito estupida!...</em></p> + +<p>Igual ao seu orgulho de têr nascido numa ilha da America e de pais tão +ilustres, só o desprezo, e a ignorancia propositada, por nós, pelos nossos +gostos e aspirações, pelo nosso povo tão laborioso e inteligente, embora +inculto, pelo nosso país tão belo, o nosso clima tão dôce no sul e tão soberbo +junto ás montanhas que a neve cobre nas invernias grandes...</p> + +<p>Desconhecia a nossa historia, não sabia lêr os nossos poetas, não se +entusiasmava com os nossos prosadores. Os nossos costumes, tão pitorescos, +eram, aos seus olhos, de selvagens; as canções do nosso povo achava-as sem +brilho nem graça, melopeias só proprias para adormentar crianças.</p> + +<p>Oh, o horror que nos causava essa criatura, que assim abocanhava tudo quanto +nos era querido, achando sempre que dizer das superioridades dos outros países! +Nós, os pequenos, que não tinhamos adquirido com o decorrer da vida a fleugma +risonha com que meu pai a escutava, a indiferença com que a minha mãe ia +tratando da sua vida sem lhe<span class="pn">{108}</span> prestar atenção, nem +a paciencia do Padre Zé, que abanava a cabeça embranquecida como unica +resposta; nós desesperavamo-nos por não nos permitirem contrariar a hóspeda. E +o Miguel, que já pensava muito bem e tinha observações muito a proposito, +dizia-me baixinho, de cada vez que a ouvia denegrir as nossas coisas:—Não sei +como, sendo tão mau o nosso país e a gente tão estupida, ella casou com um +português e veiu para cá maçar-nos!...</p> + +<p>Mas o que eu não compreendo é como essa criatura, que para nós era tão +desagradavel, conseguiu convencer meus pais da sua inteligencia, chegando a +dar-lhe razão nos seus grossos dislates.</p> + +<p>Principalmente na minha pobre mãe, que se julgava uma ignorante,—ella que +dirigia a sua casa com tanto criterio e olhava providencialmente por nós +todos—fizera profundo sulco a torrente de sabedoria enciclopedica que jorrava +enfaticamente da sua bôca.</p> + +<p>Logo que chegou, desembaraçada dos apetrechos da viagem, olhou-nos com +altivez. Depois tomou-me á sua conta, por sêr eu a mais velha e por ser +rapariga. Um dia sujeitou-me a um interrogatorio em fórma:</p> + +<p>—«Menina sabe francês?</p> + +<p>—«Não, menina não sabia francês.<span class="pn">{109}</span></p> + +<p>—«Oh!... vergonha!</p> + +<p>Estive para lhe responder:—E a senhora sabe português?!</p> + +<p>Chamaram-me sempre atrevida nas respostas, mas o que é certo é que me +arrependo sempre das poucas que tenho deixado de dar tal qual as penso.</p> + +<p>—«Menina sabe inglês?</p> + +<p>—«Não.</p> + +<p>—«Oh! sabe <em>desenha</em>?</p> + +<p>—«Não.</p> + +<p>—«Oh! muito <em>linda</em>! Aquellas sombras!... Na <em>Amérrica</em> toda +a gente sabe <em>desenha</em>!...</p> + +<p>—«Sabe <em>piana</em>?</p> + +<p>—«Não.</p> + +<p>—«Oh! vergonha, vergonha, uma menina não tocar nem cantar!...</p> + +<p>E seguiu-se uma preléção sobre tudo quanto enumerava e que eu, +pertinazmente, ignorava. Na verdade eu sabia pouquissimo, mas estou certa que +ella não conhecia senão de nome a maior parte do que dizia. Aquilo tudo era +papagueado, elementos de coisas que aprendera no decorrer movimentado da sua +vida.</p> + +<p>O meu querido Padre José pasmava:—«Como podia uma senhora saber tanto?!... +</p> + +<p>E a minha mãe desculpava:—«Oh, a mana não imagina a falta de professores +que ha por estes sitios! Temos pensado em mandar a<span class="pn">{110}</span> +pequena para um colegio, mas o pai prefere uma professora... Eu, professoras em +casa—tenho-lhes um mêdo!</p> + +<p> </p> + +<p>Demoraram-se, apesar de todos os incómodos a que se sujeitavam naquele +selvatico país, um longo mês em nossa casa. Depois...</p> + +<p>Quando penso, ainda estremeço de raiva! Depois de longas conferencias e +segredos com os meus pais, combinaram que eu iria com elles para Lisbôa e +ficaria em sua casa para me educar.</p> + +<p>Quando nós, os pequenos, soubemos o que significavam tais misterios, já tudo +estava resolvido. Eu desanimei; os meus irmãositos choravam pelos cantos, e +chegavam-se a mim para os animar. O Miguelsinho, que era o preferido da mãe, +tentou discutir tal resolução e pedir para que me não entregassem á +<em>estrangeira</em>, mas ficou desiludido da sua influencia porque o chamaram +pateta e prohibiram-lhe terminantemente de se meter onde não era chamado.</p> + +<p>Cá por mim, nada pedi nem objétei; fechei-me num mutismo que exprimia já, +mais do que as palavras, a onda de revolta que se me ia formando no +coração.<span class="pn">{111}</span></p> + +<p>Sucumbi. Já não tinha gosto para nada: não voltei á quinta nem procurei mais +a Cacilda, para a cavalgar como os rapazes e percorrer os caminhos tão +conhecidos e amados. Os meus amigos do pombal sentiram por certo a minha falta, +como os da capoeira a tinham já sofrido...</p> + +<p>Nunca mais procurei as pequenas minhas companheiras, mas via-as por detraz +dos vidros da janela dansarem em rodas, ouvia-lhes as cantigas joviaes, +percebia que jogavam a <em>laranjinha</em> ou faziam de <em>senhoras +visinhas</em>... E ficava-me indiferente, já alheada da sua alegria, afastada +para sempre do seu convivio, desprezando inconscientemente a sua humildade. Era +como aquellas pessôas, quasi na agonia, que já não são deste mundo nem o que +nelle passa lhes interessa—e ainda não entraram no supremo descanso da morte. +</p> + +<p>Decerto que muitas vezes pensara em sahir da aldeia, percorrer novos +caminhos, vêr paisagens inéditas, terras lindas de encantar como as sonhava por +esse mundo fóra!... Invejara, não poucas tambem, os vagabundos que passavam +pela aldeia e nos contavam coisas estranhas para os nossos espiritos, e de que +elles traziam nos olhos um vago assombro... Devaneando, o Miguelsinho e eu, +quantas vezes não conversamos sobre a divertida<span class="pn">{112}</span> +existencia dos ciganos, que andam de terra em terra com os ursos e os macacos e +sob a sua esfarrapada tenda têm todo o seu aféto e interesse no mundo?!</p> + +<p>Sahir dalí... ir viajar... vêr paisagens novas em folha para a minha retina, +terras desconhecidas, gentes exoticas, seria uma libertação, mas ir na +companhia duma pessôa que nos era tão particularmente antipatica, confiada á +sua guarda, colocada sob a sua autoridade, isso nunca o podia têr sonhado, nem +como pesadelo me assaltara jámais o espirito.</p> + +<p>Não chorava, porque a profundeza do golpe me revoltou até quasi á loucura. +Desde o dia em que me deram a noticia do meu destino, deixei de sêr a criança +que fôra até ahi para me tornar numa sombria criatura, raro abrindo em risos a +sua alma ingenua.</p> + +<p>Tinha doze anos, cheios de saude e alegria; era uma perfeita criança, sem +sombra de malicia a macular-me o espirito—uma pequena criatura muito humana e +muito bondosa. Fui depois uma pobre alma torturada, contorcida em odios, +desprezando e desconfiando de tudo e de todos.</p> + +<p>O mundo deixou de sêr para mim uma festa cheia de sol para se tornar num +algido subterraneo.<span class="pn">{113}</span></p> + +<p>Hãode dizer que exagero, que o caso não era para tanto, nem a mulher de meu +tio merecia o repulsivo odio que lhe votei... Mas que querem?! Não ha animais +que odeiam uma determinada criatura, numa repugnancia instintiva, sem aparente +razão?</p> + +<p>Tal o meu sentimento por ella: instintivo, invencivel, fatal.</p> + +<p>Meus irmãos choraram muito quando eu parti; a minha mãe abraçava-me +soluçando convulsivamente, apesar de toda a sua serenidade de mulher que nunca +sentira rebate de nervos em vibrações assustadoras, mas eu desprendi-me dos +seus braços, de olhos enxutos, pálida e sombria, concentrada na convicção +íntima de que não me estimava verdadeiramente quem assim me expulsava do seu +lar, para me colocar sob a autoridade despotica duma quasi desconhecida e já +detestada criatura.</p> + +<p>Antes o colegio!—pensava com amargura. Ao menos teria amigas que sofreriam +comigo o cativeiro, teria talvez professoras que estimasse...</p> + +<p>Toda a gente da aldeia acorrêra para me dizer adeus; assim eu andava de +braços para braços, levando beijos que me repugnavam mas aos quais não tinha +coragem de me negar. As criadas, uma por uma, vieram<span +class="pn">{114}</span> ainda á porta do carro dizer-me os últimos adeuses, e +quando a Maria Augusta me abraçou apertou-me com tal ânsia que um nó se me deu +na garganta, e teria fraquejado ali, diante da <em>estrangeira</em>, se a não +visse no fundo do carro sorrir com ironia da cêna, que aos meus olhos nada +tinha de ridicula.</p> + +<p>Quando na vila, ao partir da diligencia, meu pai se voltou para limpar as +lagrimas furtivamente, toda a minha alma explodiu num adeus—que mais era um +grito de protesto... Até elle! Todos, todos, me abandonavam. Era demais!</p> + +<p>Aninhei-me a um canto da carroagem, estupidificada pelo assombroso do caso, +e deixei-me transportar como um fardo, sem vontade nem iniciativa; era mais um +volume a acrescentar aos inúmeros sacos, malas e maletas que abarrotavam a +diligencia alugada por conta da minha enorme tia.</p> + +<p>De pouco me recordo dessa jornada triste que me levou a Lisbôa. Dias +chuvosos de princípio de outôno, estradas desertas, campos desnudando-se numa +paisagem uniforme, tristezas da alma e tristezas da bôa natureza, que se +despedia dos meus olhos num compungimento de simpatia.</p> + +<p>Ainda bem que chovia! Se fizesse sol, se as raparigas cantassem pelos +campos, e os<span class="pn">{115}</span> carros de bois arrastassem pelos +caminhos a fartura da colheita, quanto isso seria infinitamente mais desolador +para a minha pobre alma confrangida!</p> + +<p>Assim cheguei a Lisbôa por uma madrugada nevoenta, sem sequer me têr +admirado do caminho de ferro que pela primeira vez vira no Entroncamento, onde +o fômos tomar. O que podia interessar e comover o meu espirito atordoado por +esse repelão da vida, que tão cedo começava a maguar-me?!</p> + +<p>Ah, como se sofre quando se é criança, quando ninguem respeita a nossa dôr e +a nossa vontade, quando decidem do nosso querer como se fôssemos títeres +animados por maquinismo industrial!</p> + +<p>Lisbôa não me deslumbrou, porque mais, muito mais, fantasiara dos seus +encantos e fausto no meu sonhar de criança. As ruas da Baixa, com as suas altas +casarias alinhadas e uniformes, que a rigidez pombalina decretou, faziam-me uma +terrivel saudade dos campos largos por onde a vista passeia e cabriola como +cabritinho montez. Apertava-se-me o coração recordando os horizontes que se +esbatem ao longe, nas serranias violetas; e o marulhar da multidão irritava-me +os nervos, mal me podendo recordar o rumorejar embalante dos pinheirais +atravessados<span class="pn">{116}</span> pelos ventos em livres carreiras de +tardes outonais...</p> + +<p>O meu pobre tio mostrava-me coisas, queria que me extasiasse com a capital, +eu pobre serrana que nunca vira nada, mas a faculdade admirativa tinha-se +embotado em mim. Era um corpo sem alma—que essa por lá me ficara, errando +pelos campos da minha risonha terreola.</p> + +<p>Só quando o mar se descobriu diante dos meus olhos, elles se abriram numa +atenção de velha simpatia. Não, nunca tinha visto o mar, mas sonhava-o e +amava-o desde muito, com o aféto entranhado e atavico que todos nós lhe temos. +O mar, a nossa estrada movediça e terrivel!... O mar, essa nossa segunda +patria, foi a unica coisa onde descansei a vista com enlevo e que durante os +quatro anos de cativeiro me deu algum prazer á vista. Quando, entre duas ruas, +o descobria lá ao fundo, numa nesga rutilante de sol, toda a minha alma se +refrescava e florejava de sorrisos.</p> + +<p>Felizmente que a casa do tio era num bairro afastado e novo, onde raro +chegavam os pregões berrados das ruas e só de longe em longe o rodar duma +carroagem fazia estremecer os vidros das janelas. E, por fortuna, tinha atraz +um jardinsito, entalado entre casas é<span class="pn">{117}</span> verdade, mas +emfim mimoseando-nos com um pouco de ar mais puro para os robustos pulmões +desenvolvidos pelo ar forte da montanha.</p> + +<p> </p> + +<p>A <em>cubana</em> tinha fórmas dogmaticas sobre a educação, que serviam para +os cinco anos da filha e para os meus doze de rapariga nubil.</p> + +<p>Era preciso que me levantasse cedo—vá! Isso não me custava, acostumada +desde criança ás madrugadas na aldeia. Mas, depois de me levantar, não podia +correr pela quinta, abrindo o apetite ao almoço suculento que me esperava na +mêsa; tinha que fazer a cama, arrumar o quarto, e estudar.</p> + +<p>Em casa, para ajudar a Maria Augusta, muitas vezes lhe tirava a vassoira das +suas pobres mãos encarquilhadas, e varria, cantando festiva, auxiliando-a no +fazer das camas e mais arranjos domesticos; ali, obrigada, mandada por aquella +monstruosa criatura, sentia um tal desespero, um tal rancôr a referver-me na +alma, que todas as minhas ideias eram negras como fuligem, todos os meus +sentimentos eram maus a roçarem pela perversidade.</p> + +<p>Encostada aos vidros da janela do meu quarto, olhava a gente que seguia o +seu<span class="pn">{118}</span> caminho, apressada ou vagarosa, alegre ou +triste, pobre ou rica,—e a todos eu invejava com verdes invejas de reptil!... +</p> + +<p>Era preciso que estudasse três horas antes do almoço, e o meu espirito +vagabundeava pelos caminhos pedregosos da minha terra, debruçava-se na ribeira +onde os salgueiros reflétiam a folhagem leve e as margaridas rosadas, as +pervincas azuis e os miosotis da côr do céo espreitam entre a verdura da herva +tenra.... Era preciso que inclinasse sobre os livros a minha pobre cabeça +pesada de sôno, e os meus olhos fechados reviam os milharais regados de fresco, +as cerejas vermelhas suspensas como pingos de lacre das arvores amigas, as +amendoeiras em flôr, as encostas cobertas de olivedos pálidos, os pinheiros +esguios, os castanheiros arreganhando a bôca dos seus ouriços para nos darem o +fruto saboroso. O meu espirito não acompanhava o pobre corpo oprimido, que se +estiolava num quarto fechado, diante de estereis livros que não compreendia; +não! Elle assistia, lá ao longe, á ininterrupta festa da natureza; alegrava-se +com os divertimentos do campo; procurava os magustos, onde se comem as +castanhas assadas na fogueira; ia aos <em>serões</em>, onde as velhas avós +contam lindas historias ás raparigas, fiando á mortiça luz da candeia<span +class="pn">{119}</span> suspensa do velador de pau enegrecido pelos anos; +evocava as ranchadas que vão ás romarias, cantando e tocando a viola e os +ferrinhos, e os que vão para as feiras álacres, entre festivos e afadigados, na +policromia do trajar das mulheres e na gravidade interesseira do comerciante +que oferece ou compra a mercadoria e discute largamente o seu negocio...</p> + +<p>A fuga era o unico deleitoso pensamento que se esboçava no meu cerebro. +Fugir! Sêr livre! Não têr mais diante dos meus olhos a figura estupenda da +mulher de meu tio, nem a face simiesca da petiza!... Era o ideal supremo que +acariciava, um sonho redentor que se me fixava na cabeça por mil pontos +delicados e impercétiveis. Formava com esta unica e obsessiva ideia projétos +sem conto, e se não fôsse a covardia ante o escandalo, que é ainda uma servidão +do nosso espirito, se não fôsse o receio atroz de sêr apanhada pela policia, +vir o meu caso por miudos nos jornais, e sêr finalmente trazida de novo alí, +certamente teria <em>feito alguma</em>!... Faltava-me a energia determinante +dos fortes caratéres. A revolta traduzia-se pelo embrutecimento, pela apatia, +pela oposição passiva dos fracos e dos ignorantes.<span class="pn">{120}</span> +</p> + +<p>Fechada no quarto todas as manhãs, em vez de estudar deitava-me sobre a +cama, e afiguravam-se-me as tábuas alinhadas e estreitas do této como se fôssem +as tábuas do meu caixão.</p> + +<p>Lá fóra era a vida: os pregões que atravessavam a rua solitaria numa festa +ruidosa de côres, revoadas de andorinhas riscando o azul em zig-zagues +caprichosos, a chilreada estúrdia dos pardais pelos telhados...</p> + +<p>Morria de aborrecimento, e morrer, creio, foi o pensamento mais consolador +que nesse tempo se alojou no meu cerebro.</p> + +<p>Não estudava, o que era em mim um velho habito, mas com as lições do Padre +Zé tinha chegado a compreender alguma coisa, e agora sentia-me sem nenhuma +inteligencia, sonolenta, parada, sem sombra de vivacidade intelectual.</p> + +<p>Tinha uns poucos de professores, pagos pelos meus pais é claro. E por sinal +que eram bem generosos com o dinheiro dos outros...</p> + +<p>O inglês ensinava-mo ella, mas eu odiava-a tanto e o meu espirito começava a +achar um tal prazer em contrariar os outros, que me sublevava contra mim mesma +quando começava a compreender essa lingua que ella tinha como sua.<span +class="pn">{121}</span></p> + +<p>Farta já de a saber, obrigava-a a algaraviar o português para me rir +intimamente dos seus comicos disparates.</p> + +<p>Estava assim.</p> + +<p> </p> + +<p>Pouco sahi durante os quatro anos que durou o meu cativeiro—porque a sua +companhia me desagradava cordialmente, porque os passeios por ella escolhidos +eram odiosamente disparatados, e porque a sua imposição de me ensacar em +verdadeiros horrores, que ella alcunhava de vestidos á inglêsa, me causava um +asco invencivel.</p> + +<p>Sem têr nunca apreciado os <em>laçarotes</em> e as rendas esbanjadas nos +vestidos provincianos das minhas antigas conhecidas, sem ambicionar a elegancia +casquilha das meninas lisboêtas, o meu espirito era demasiadamente meridional, +demasiado artista, para se não prender com a fórma e não se encantar pela côr e +pela beleza do trajo, como de tudo quanto me pertencia e rodeava.</p> + +<p>Assim, achava meio de me esquivar sempre que sahiam, o que era raro, +pretextando estudos que nunca fazia.</p> + +<p>De mêses a mêses, a visita ao consul inglês era o unico parentesis de luz na +tristeza da minha vida. Tinha umas filhas encantadoras,<span +class="pn">{122}</span> algumas já senhoras, e, entre ellas, a Maud era muito +gentil para mim, consolando-me e alegrando-me, nas poucas vezes em que nos +avistavamos, das muitas horas de incomportavel tedio que passava naquella casa. +</p> + +<p>Maud era muito inglêsa na sua educação para censurar uma pessôa das relações +da casa, mas o simples sorriso dos seus labios finos, a ligeira caricia dos +seus olhos puros, era quanto bastava para me encher o coração de reconhecimento +e têr na sua amizade toda a confiança.</p> + +<p>Pobre Maud! Levada pelo destino para longe, obrigada a ganhar a sua vida +pela morte dum pai afétuoso e inteligente, em que país, em que terra, em que +familia, o seu sorriso honesto, a sua graça séria, serão consolo e júbilo para +alguma criança infeliz, como eu era?!</p> + +<p>Outra qualquer pessôa, por menos melindrosa e suscétivel que fôsse, não se +sentiria feliz num meio em que tudo era violento e desagradavel.</p> + +<p>A <em>cubana</em> ralhava por tudo, nada estava feito a seu gosto, de manhã +á noite lamentava têr vindo para um país de que dizia indelicadamente, +grosseirônamente, os ultimos horrores:—a vida era carissima, os criados eram +mandriões e inhabeis, era preciso olhar por<span class="pn">{123}</span> tudo, +vêr tudo, desde a roupa da lavadeira até á limpeza da casa...</p> + +<p>Tornava desgraçada toda a gente, e não consentia que ninguem se considerasse +infeliz—possuindo a rara fortuna de a têr ao lado!</p> + +<p>Ao meu pobre tio impunha uma felicidade que elle estava longe, bem longe, de +sentir. Não podia formular uma opinião sua; era obrigado a confirmar tudo +quanto ella dizia, e ainda dizer-se o mais ditoso dos maridos e fazer elogios á +sua alta inteligencia, bom-senso e sábia economia.</p> + +<p>Meu pobre tio! Verdadeiramente, aquella pressão moral em que conservava o +bom do velho, revoltava-me. Nunca pensei em impôr a minha vontade a ninguem, e +tudo quanto seja coagir a dos outros, tirar ao sêr humano a liberdade de sentir +e pensar por si mesmo, exaspera-me como violencia contra mim propria exercida. +</p> + +<p>Depois, a pequena tinha a bela qualidade de espiar e ir contar-lhe tudo +quanto se dizia e fazia em casa, e por muitas vezes o que nem sequer se sonhava +dizer ou fazer. Um <em>amôr</em> de criança!</p> + +<p>As criadas entravam e sahiam com uma velocidade de comboio expresso.</p> + +<p>Quando mal humorada, dava-lhes bofetada e descompostura que as fazia fugir +espavoridas;<span class="pn">{124}</span> mas, se por outro lado lhe désse na +cabeça, enchia-as de presentes e favôres. Era conforme ellas sabiam ou não +lisongear-lhe a vaidade.</p> + +<p>A última que lá conheci, talvez a mais velhaca de todas, essa soube +cativá-la, e fazia quanto queria sem que ouvisse uma simples reprimenda. +Adiante falarei na menina Eulalia, que entrou para muito na minha vida.</p> + +<p>Meu tio é que escrevia para casa e lá dizia dos meus adiantamentos, que, +francamente, não eram nenhuns. Ás noticias dos meus pais, tão carinhosas e +prolixas, eu respondia com aquellas cartas incolôres que todas as crianças +prisioneiras nos internatos, ou onde quer que lhes pônham sentinela ao +pensamento, têm escrito. Cartas em que nem um vislumbre da alma infantil +entreluz; cartas feitas só de palavras ouvidas, e que são o primeiro passo para +a mentira social a que nos querem sujeitar, como a cães sábios sob o chicote +domesticador e o mêdo... A criança, que sabe que as suas cartas serão maculadas +pelos olhares indiferentes, e os seus verdadeiros sentimentos procurados nas +linhas em branco da sua pobre correspondencia, perde a sinceridade, não se +expande com lisura, não diz o que sente...<span class="pn">{125}</span></p> + +<p>Os bilhetes que metia no mesmo sobrescrito de meu tio eram frios, pouco mais +ou menos o que me diziam que era dever escrever:—que estava bem, que era bem +tratada, que me sentia feliz... Nada do que, em verdade, eu teria desejo de +dizer!</p> + +<p>É certo que a minha alma irritada julgava-se ofendida pelo desamôr com que +me tinham expulso de casa para me atirar para o poder daquella mulher, que para +mim resumia tudo quanto eu podia odiar mais.</p> + +<p>Nesse tempo não gostava de ninguem—nem de mim mesma. Era injusta, mas era +humana. O animal criado em toda a expansão da sua vida material e forte, não se +subjuga sem rebelião, não se obriga sem muito custo a entrar no regimen de +servidões a que se convencionou chamar <em>deveres sociais</em>.</p> + +<p>Assim, quando meu pai empreendia a longa viagem da aldeia á capital para me +vêr, eu não correspondia de modo algum ao seu aféto e interesse.</p> + +<p>Sem compreender o enorme sacrificio que faziam para me dotarem com uma +educação que supunham sêr um precioso instrumento de felicidade para toda a +minha vida, achava que era desamôr o que me consagravam e tão sómente desejo de +me vêrem longe da sua casa, porque o meu feitio moral os desconcertara<span +class="pn">{126}</span> e lhes era talvez odienta a minha presença...</p> + +<p>Ás perguntas insistentes que me fazia, vendo-me tão delgadinha e triste, o +meu orgulho fazia-me responder com sistematica negativa.</p> + +<p>Se elle se demorasse, se insistisse, a minha energia não seria mais forte do +que a revolta contra o sofrimento, tão natural ao sêr humano quando novo e +saudavel.</p> + +<p>Mas o meu pai não supunha encontrar tais meandros e subtilezas no sentir +duma criança que conhecera defeituosamente franca e impulsiva. Por outro lado, +os negocios da casa não o deixavam demorar mais do que um dia ou dois, o que +não era muito para fundir o gêlo que se formara no meu coração contrariado e +amarfanhado.</p> + +<p> </p> + +<p>Ora de estudos ia eu muito mal. Os meus professores classificavam de +estupidez a minha incapacidade de satisfazer as lições, e creio bem que o era. +</p> + +<p>Não estudava, e mesmo que estudasse não compreendia.</p> + +<p>A cabeça parecia-me de chumbo, pesava-me como o capacete dum guerreiro +antigo. Não faziam nada de mim, pela certa!<span class="pn">{127}</span></p> + +<p>A professora de desenho era a unica que tinha dó dos meus traços indecisos e +me dirigia com bôas palavras, por isso fiquei sabendo um pouco mais dessa arte, +que das outras, e com imensa pena de não poder fazer tudo quanto ella me dizia +que seria capaz de realisar, com a minha paixão pela corréção das linhas +classicas, a minha expansiva busca das côres, que ousava procurar inéditas e +brilhantes na paleta de principiante...</p> + +<p>Sentia-me infeliz, e, se verdadeiramente me quizesse queixar, não saberia +bem precisar o que me maguava naquella casa. Talvez porque era tudo, desde a +gente até á comida. Chegava a sêr um suplício; acostumada em casa a encher +abundantemente o meu pequeno estomago voraz, ali tinha até mêdo de meter na +bôca um pedaço a mais, porque via todos os olhos a pesarem e a medirem tudo o +que a minha garganta oprimida conseguia deixar passar.</p> + +<p>Por economia e por habito, eram todos frugais, e eu, por ceremonia, quando +os via recusar o <em>roast-beef</em>, que se comeria frio no almoço do dia +seguinte, recusava-o tambem, embora ás vezes sentisse um bom apetite de +animalsinho carnivoro, que não se sente satisfeito.</p> + +<p>O meu unico desafogo era o jardinsito, que tratava com todo o cuidado. As +sementeiras<span class="pn">{128}</span> iam a horas para a terra, e não lhes +faltavam as regas, com a agua que eu mesmo tirava da bomba, nem a cobertura de +palha, mais tarde, por causa das geadas.</p> + +<p>Andava sempre a espreitar o crescimento das plantas tenrinhas, que mal +despontavam na terra pobre de adubos vitalisadores; e quando, na primavera, as +arvores que mal se desenvolviam na sombra daquelle jardinsito entalado entre +predios altos, se enfloravam, toda a minha alma florescia com ellas, recordando +as que lá ao longe perfumavam os campos onde a minha saudade me levava +errante...</p> + +<p>Ora o jardim era dividido do que pertencia ao rez-do-chão da esquerda por +uma sebe de madeira, que eu pensara em disfarçar sob a verdura abundante duma +trepadeira de folha permanente. Passava horas desembaraçando as finas hastes +para as ir guiando e atando. Quantas vezes, de tanto as querer estender e +espaldar, não parti grandes pedaços, que depois lamentava muito contristada! O +mal de quem tem muita pressa... em contrafazer a natureza.</p> + +<p>Ao fundo, era limitado pela parede dum outro jardim, que nunca tivera a +curiosidade de procurar vêr, embora por lá sentisse as risadas de crianças mais +felizes do que eu...<span class="pn">{129}</span></p> + +<p>A tristeza até embota a curiosidade, essa fórma, embora inferior, da +vivacidade intelectual. Concentrava-me no meu proprio sentir, e todo o mundo me +era estranho.</p> + +<p>Ora isto foi assim até que num dia veiu para o rez-do-chão visinho uma nova +familia: pai, mãe, e filha, uma pequena encantadora, que começou a sorrir-me e +a cumprimentar-me quando me via na minha faina de jardineira.</p> + +<p>A Mariquinhas, com a sua mobilidade graciosa, falou-me uma primeira vez, a +proposito de nada, só para encetar conversa. Respondi-lhe acanhadamente de +principio, mas em breve toda a minha timidez desaparecera diante da sua ampla +cordialidade. Conversamos, e logo á despedida nos beijamos, por cima da sebe +que já conseguira vestir duma folhagem de lindo verde brunido.</p> + +<p>Em poucos dias ficamos as maiores amigas do mundo. Pela minha parte +entreguei-me com ardôr ao estranho prazer dessa amizade; agarrei-me a essa +ventura com o desespero de quem se vê só, num meio irritante e hostil, sem um +unico aféto a confortar um pobre coração feito para o sentimento.</p> + +<p>A Mariquinhas era a unica e amimada filha duns pais, que a tinham só a ella, +duns poucos que no seu ninho tinham batido azas palpitantes<span +class="pn">{130}</span> de alegria e esperança e a morte lhes levara numa +impiedosa e cega colheita.</p> + +<p>Era em casa uma pequenina rainha, que não abusava é certo da sua autoridade, +antes punha uma suprema graça nas suas ordens e caprichos.</p> + +<p>Hôje, recordando bem as suas feições, que o tempo já quasi deliu na minha +memoria, acho que não devia sêr, talvez, uma formosura, mas nesse tempo era +para mim tudo quanto conhecia de mais puro enlevo.</p> + +<p>Magrinha, elegante, duma finura de traços angelicais, tinha a pálida beleza +das camelias delicadas, que as fortes chuvas do inverno desfolham rapidamente. +</p> + +<p>Era muito instruida, uma pequena e encantadora sábiasinha, que sorria, +maternalmente conselheira, da minha supina ignorancia.</p> + +<p>Já quasi mulher, um tudo-nada garrida, vestindo divinamente os lindos +vestidos da sua escôlha, ella materialisou no meu espirito o ideal duma santa +ou dum anjo salvador, que Deus tivesse mandado ao meu purgatorio.</p> + +<p>Porque... esquecia-me mais esta: a mulher de meu tio era protestante, mas da +última hora. Com todo o fanatismo dos neófitos e a sua terrivel mania de impôr +as suas ideias e de prégar as suas convicções, todos os dias me ensinava e +explicava o evangelho, á sua<span class="pn">{131}</span> moda, isto é: +analisando-o e adaptando-o á vida quotidiana, com uma banalidade desesperadora. +</p> + +<p>Na minha aldeia nunca ouvira falar em evangelho senão no latim do Padre Zé, +á missa, quando a minha mãe nos dava a consolação de nos pôrmos de pé. Mas +estava acostumada a conversar com o Anjo da guarda como se fosse um irmão, e no +rosto delicado das esbeltas Santas góticas, que ornavam as paredes da nossa +velha igreja, lia enlevadoras historias que ellas me sorriam...</p> + +<p>Arrancar a uma pobre alma de meridional, apaixonada pela côr e pela fórma, o +olôr dos incensos subindo em dolentes preces para um céo recamado de oiro e +pedrarias, onde lindas crianças cantam e tocam flautas e guitarras +maravilhosas, onde florescem jardins ideais, e correm fontes inesgotaveis de +perfumes suaves; tirar-lhe a ilusão magnifica duma vida embalada pela esperança +do milagre, e dar-lhe em troca a frieza do raciocinio, a clara e positiva +significação das palavras, a simplicidade da fórma despida do encanto da arte, +será por certo de muito bons resultados futuros—e foi-o para o meu espirito, +que se habituou ao rigoroso cumprimento da verdade—mas nesse tempo constituia +um sacrificio a mais a juntar aos muitos outros.<span class="pn">{132}</span> +</p> + +<p>Pois a Mariquinhas encarnou para a minha imaginação mortificada, o anjo meu +companheiro e protétor. Pela sua mão seguiria por sobre a <em>fragil ponte</em> +que representa o dificil caminho da virtude, nas imagens popularisadas pela +oleografia barata, em que o guarda angelico guia uma criancinha, com a sua mala +de viagem a tiracolo, pela áspera senda do bem...</p> + +<p>Fôram os dias bons da minha permanencia naquella casa.</p> + +<p>Não sei como a terrivel <em>cubana</em> se não opôs á nossa convivencia, +embora distanciada, apenas entretida pelas fugitivas palestras trocadas a mêdo +por sobre a sebe que as minhas trepadeiras iam vestindo e matisando com uma +floração polícroma.</p> + +<p>Lembro-me agora que a Mariquinhas, com a sua viva inteligencia cultivada no +convivio da sociedade, compreendera desde logo de quanta vaidade e orgulho se +enchia a enorme criatura, e sabia lisongeá-la com leves delicadezas, das quais +eu nem sequer compreendia o alcance, na minha inteireza selvagem.</p> + +<p>Hôje, era uma linda flôr mandada pela pequena para a mamã pôr no seu logar, +á mêsa; ámanhã, noticias lidas por acaso nos jornais sobre coisas passadas em +Inglaterra ou nos Estados-Unidos; depois, uma corréta<span +class="pn">{133}</span> atenção aos discursos que lhes algaraviava, quando +acontecia vê-la da janela.</p> + +<p>Com tão pouco, a Mariquinhas vencera a resistencia feroz daquella fortaleza +e achava-se senhora da situação. Nunca pensei que eu teria, talvez, conseguido +o mesmo se o orgulho—que é uma virtude que nos nobilita, mas torna dificil a +vida social—não me fizesse olhar com desprezo para esses processos que me +punham numa dependencia moral que me irritava. Decididamente a Mariquinhas era +muito melhor politica; onde o meu temperamento voluntarioso punha energia +revoltosa, a doçura do seu espirito, tão levemente ironico quanto profundamente +conhecedor das fraquezas alheias, usava o suborno da lisonja, que a todos +conquista e agrada.</p> + +<p>Apesar das familias não têrem nunca encetado relações que as tornassem do +mesmo convivio,—porque a mãe da Mariquinhas detestava a <em>espanhola</em>, +como lhe chamava—conseguira a criança, com as suas blandicias de lisboêta +amavel, que me deixassem ir passar algumas tardes a sua casa.</p> + +<p>Era um banho dulcissimo de calma para o meu espirito, que fermentava em +sublevações concentradas mas nem por isso menos violentas.<span +class="pn">{134}</span></p> + +<p>A D. Emilia era uma destas almas bôas e sãs, tal qual a da minha mãe, +modestas no cumprimento religioso duma existencia que nunca teve dúvidas nem +sobresaltos de consciencia. O seu espirito era simples, e os seus olhos diziam +na clara expressão o que ás vezes os labios não se atreviam a proferir, com +receio de ir infelicitar os outros com uma observação menos resignada... ou +mais verdadeira.</p> + +<p>Conversar com a bonissima criatura era abrir o coração e deixar correr as +palavras livremente, numa fluencia de ribeira múrmura e limpida deslisando por +campo sem obstaculos; ouvi-la era escutar o carinhoso conselho duma rara alma +humana que nunca se tinha poluido numa mentira.</p> + +<p>Ah, como o meu coração se aliviou da tristeza imensa em que se afundava, +contando-lhe a minha vida; e como ao contar-lha precisei verdadeiramente o +<em>mal de viver</em>, que me vencera e arrastava para o desespero! E como ao +escutar-lhe a palavra mansa e insinuante, compreendi, e melhor apreciei, a +modesta e nobre missão da minha pobre mamã!...</p> + +<p>O pai da Mariquinhas parecia viver só para tornar felizes as duas criaturas, +que eram todo o seu cuidado e amôr. Aposentado do<span class="pn">{135}</span> +seu logar de lente duma escola superior, passava os dias estudando e lendo no +seu gabinete cheio de livros, que já lhe invadiam a secretária, que a filha +todas as manhãs lhe ia enflorar com lindos ramilhetes que ella mesma cortava e +ageitava nas jarras.</p> + +<p>Que suave e dulcida existencia! E como a vida corria sem se sentir entre +aquellas três criaturas, tão estreitamente unidas pelo amôr, sem violencias nem +coáções... Que diferença da nossa casa, onde a mulher de meu tio queria impôr +não só a sua autoridade absoluta, o que já seria abominavel, como os seus +gostos e sentir e toda a sua maneira particularissima de vêr as coisas!</p> + +<p>Aquella atmosfera pacificadora fazia-me bem, domesticava-me o coração que se +tinha tornado feroz no odio e na desconfiança.</p> + +<p>A unica receita eficaz para se sêr amado sinceramente é amar; era a que +usavam os meus amigos, e por isso venceram a minha rudeza e fizeram com que os +amasse com todo o entusiasmo da minha alma apaixonada.</p> + +<p>Com o refrigerio daquelle contacto a vida tornou-se-me menos pesada; +suportava melhor a desgraça desde que tinha quem me compreendesse e lamentasse. +Pobre criança expatriada, que eu era,—naquelle meio tão estranho e +adverso!<span class="pn">{136}</span></p> + +<p>Passado o sofrimento que nos crucifica, tirados do logar em que fômos +martirisados, olhando a frio para o que nos fizeram sofrer, é que +verdadeiramente compreendemos e sentimos a dôr, mas com um sentir retrospétivo +que se torna tanto mais agudo quanto maior é a convicção do que foi a nossa +miseria.</p> + +<p>Durante o sofrimento a sua propria vehemencia nos atordôa e dá um anestesico +moral, que é a unica compensação para os que têm sentido pesar sobre si a +infinita maldade humana.</p> + +<p>Quantas vezes, lendo a historia do passado, não nos atravessa o espirito a +dúvida de que fôsse possivel ao fragil organismo humano resistir aos ferozes +martirios fisicos e morais que as paginas ensanguentadas de todos os povos nos +mostram; mas, olhando em roda de nós, sabendo o que se faz ainda hôje e que a +tirania já não pode esconder ao nosso conhecimento, porque os protestos dos +condenados resôam mais alto na consciencia humana ou os nossos ouvidos se +apuram mais para os escutar, convencêmo-nos de que é um facto esse +embrutecimento sensacional que pela propria violencia da dôr atenua a mesma +dôr, que quasi nos insensibilisa á força de sofrer.</p> + +<p>É o motivo porque hôje pasmo da resistencia passiva que eu fiz ao martirio +daquelles<span class="pn">{137}</span> quatro anos de educação inquisitorial. +Ou não fôsse a minha tia uma legítima descendente dos <em>hidalgos</em> +inquisidores que civilisaram a ferro e a fogo os infelizes seus conquistados! +</p> + +<p> </p> + +<p>Ora na casa a que pertencia o jardim que confrontava com o fundo dos nossos, +vivia uma familia das relações dos meus amigos,—fôra até a causa delles virem +morar para o nosso lado, soube-o depois.</p> + +<p>A Mariquinhas falava-me muitas vezes no Chico, que vivia do outro lado do +muro e era filho da grande amiga de infancia da sua mamã. Dizia-me que nessa +ocasião passava elle as férias no campo, e que quando voltasse eu veria como +era gentil e bom companheiro de brinquedos.</p> + +<p>E falava com tal entusiasmo do seu pequeno amigo, um belo estudante já quasi +a terminar o curso do liceu, que o meu aféto—confesso—se sobresaltou, e um +dia perguntei-lhe ansiosa:</p> + +<p>—«Ó Mariquinhas, tu gostas mais do Chico do que de mim, não gostas?!...</p> + +<p>Teve um fino sorriso incompreensivel para a minha ingenuidade lôrpa e +respondeu-me com o ar ironico duma verdadeira mulher:<span +class="pn">{138}</span></p> + +<p>—«Elle é um rapaz, e tu uma rapariga.</p> + +<p>—«E isso que tem para sêres mais sua amiga?</p> + +<p>—«Tem tudo. Não é a mesma coisa.</p> + +<p>Não percebi como podesse existir tal diferença nos afétos, mas resignei-me a +ficar sem mais explicações para que o sorriso de desdem com que a Mariquinhas +acolheu a minha evidente tolice não lhe aflorasse de novo aos labios finos.</p> + +<p>Bastas vezes me ficava meditabunda, entristecida, perguntando a mim mesma se +nova complicação não viria por aquelle lado entenebrecer a minha pobre +existencia, onde se abrira uma nesga de céo azul.</p> + +<p>Felizmente não foi assim. O Chico, apesar de mais velho do que nós dois +anos, foi um ótimo companheiro das nossas tardes de recreio.</p> + +<p>A Mariquinhas ao pé delle tornava-se mais senhora, mais cheia de gravidade e +importancia, sorrindo-se para o Chico quando eu dizia alguma infantilidade, +como uma mãe que acha encantadora a ingenuidade do seu filhinho.</p> + +<p>E bem criança que eu era, apesar dos meus quatorze anos, ao pé da +Mariquinhas, reflétida, instruida e séria como o não são muitas mulheres +feitas.<span class="pn">{139}</span></p> + +<p>O Chico, que já então era um sábio em miniatura, ensinava-me muita coisa, +lia-me lindas historias de viagens e descobertas, que era o que mais o +interessava, e explicava-me cheio de paciencia as minhas lições.</p> + +<p>Saltava pelo muro para o quintal da Mariquinhas, de maneira que não fôsse +visto de minha casa, com receio de sobresaltar a <em>estrangeira</em>, e vinha +têr comnosco associando-se aos nossos brinquedos com um bom humôr que nos +encantava.</p> + +<p>Que a Mariquinhas e o Chico esboçassem já então um destes idilios deliciosos +de infantilidade que são ás vezes o princípio de grandes e puros afétos, que se +enroscam na alma e influem para sempre na sua modalidade, pode sêr, mas que eu +não compreendia nada dessas precocidades sentimentais, é tambem certo!</p> + +<p>Foi nesta altura da minha vida que entrou para criada da nossa casa a menina +Eulalia. Não sei de que terra ignorada de provincia teria vindo aquelle +especimen bem acabado da criada alfacinha, mas é certo que ella já trazia o +cunho particular, os vicios e o geito dessa peste que entra nas casas como a +traça na roupa. Que diferença entre essas criaturas falsas, interesseiras e +intrigantes e as nossas criadas da provincia, á moda antiga, um pouco<span +class="pn">{140}</span> boçais e confiadas, é certo, vivendo com os amos numa +certa igualdade familiar, mas tão fieis, tão amigas e carinhosas para nós! A +Maria Augusta, coitada, com quanta ternura eu pensava na bôa mulher que nos +criara com extremos de mãe, e tanto chorara a ultima vez que me fôra vestir, +para a jornada!</p> + +<p>E a cosinheira solícita e desembaraçada, que nunca esquecia de meter na +fornada semanal do pão de milho, para os criados, os bôlos para os meninos?! E +a <em>paquêta</em>, a pequena criada que se vai avesando de criança aos usos da +casa, e é, ás vezes, no futuro, a melhor de todas?! E a de fóra, encarregada da +criação e dos porcos, que nos trazia abadas de fruta quando ia ás propriedades +distantes?! E os criados, desde o rapaz dos recados ao feitôr, como toda essa +gente era sincera julgando-se na sua propria casa—dizendo as <em>nossas</em> +casas, as <em>nossas</em> matas, as <em>nossas</em> rendas!...</p> + +<p>Quanto melhores, apesar dos defeitos de educação que lhes notava a mulher de +meu tio, do que essa turba avarenta e mal educada que vi desfilar por sua casa +durante os quatro interminaveis anos que lá vivi!</p> + +<p>Eulalia era baixa e magra, as faces manchadas, os dentes postiços, os +cabelos frisados,<span class="pn">{141}</span> e uns olhos pequenos e inquietos +que nunca se fixavam em nós com franqueza.</p> + +<p>Não gostava della intimamente, mas acostumara-me já a nada mostrar dos meus +sentimentos e nada, pois, lhe disse que a fizesse supôr tal antipatia.</p> + +<p>No entanto, ella compreendeu desde logo que eu era pouco na casa, e ria-se +de mim com a <em>Lóló</em> (o nome familiar da pequena de meu tio), que enchia +de falsas caricias. Tinha grandes demonstrações de aféto pela <em>sua rica +senhora</em>, a quem lisonjeava para despertar a sua generosidade, que +percebera existir quando gostava das criadas, o que não era vulgar.</p> + +<p>Com o meu tio, cada vez mais doente e enfraquecido, ninguem se dava mal.</p> + +<p>Portanto, ia a menina Eulalia sêr a primeira que por lá se conservasse mais +de um mês ou dois.</p> + +<p>Era mais uma criatura hostil a seguir os meus passos, mais uma bôca a +denegrir o meu procedimento, mais uns olhos a espiarem-me, e um pensamento +álerta que se exerceria contra mim.</p> + +<p>Apesar disso, as minhas relações com a Mariquinhas não afrouxavam, e a +mulher de meu tio não se opunha a ellas porque encontrara emfim o meio +infalivel de domar o meu<span class="pn">{142}</span> orgulho e fazer-me docil +e estudiosa. Á simples ameaça de me prohibirem esses momentos de desafogo, não +havia nada que eu não fizesse! Se era a unica felicidade para o meu coração—e +o sêr humano tem della tanta necessidade! Nem os professores já se queixavam de +mim, que a Mariquinhas e o Chico tinham-me tornado quasi estudiosa, com os seus +conselhos e com os seus exemplos.</p> + +<p>O tempo nunca pára e por peor que estejâmos corre do mesmo modo veloz, ainda +que tal nos não pareça, dobradas como são as horas de amargura. Já ia para +quatro anos que ali estava e, relativamente, os últimos dois, desde que +conhecera a Mariquinhas, tinham sido de relevado encanto para mim. Não pensava +nem queria pensar no que me rodeava, para só vêr os meus amigos e com elles +viver, mesmo quando ausente.</p> + +<p>Foi então, quando nós iamos já contar dezeseis anos, que a Mariquinhas +entrou a adoecer.</p> + +<p>A toda a hora se sentia mal. A mãe, muito inquieta mas sem o querer mostrar, +envolvia-a de carinhos, procurava satisfazer-lhe todos os desejos. Enchia-se de +apreensões, e toda a sua alma se enregelava e tremia num pavôr de dôres já +sentidas a prognosticarem amarguras ainda inéditas.<span +class="pn">{143}</span></p> + +<p>Pobre mãe! Era bem certo que a Mariquinhas lhe daria, e breve, o maior +desgosto da sua vida.</p> + +<p>O outôno vinha chegando, duma estranha doçura esse ano, a infiltrar-se na +alma, todo doirado nos poentes tepidos a esmorecerem em lentas agonias, como +nas arvores que se cobriam do oiro das folhas mortas para mais depressa se +despirem e esperarem arrepiadas e friorentas o triste inverno.</p> + +<p>O jardim constelava-se de crisântemos, que na nossa terra têm o sugestivo +nome de <em>despedidas de verão</em>, brancos como flocos de neve, rubros, +amarelos, dum rôxo desmaiado como leves aguadas, outros de côres intensas, +mesclados e rajados, variando na côr como na fórma, desde o desgrenhado da +cabeleira bohemia ao recorte regular da máquina de fazer flôres de papel.</p> + +<p>Debaixo do caramanchão, que tambem se ia despindo, primeiro das flôres, +depois das folhas, a Mariquinhas, quasi deitada na cadeira de verga que a mãe +lhe almofadava desveladamente, olhava melancolica os seus queridos crisântemos, +que todas as manhãs desabrochavam de novo e vinham preencher a falta dos que se +cortavam ou pendiam emurchecidos.</p> + +<p>Com as suas mãos translucidas, que eram uma das suas grandes vaidades, +entretinha-se<span class="pn">{144}</span> por vezes a juntar em ramilhete as +flôres que eu lhe ia levando. E mandava-me ir dispô-las no gabinete do pai, +como outrora ella fazia. Mas o triste velho é que não lhe achava o mesmo +encanto, e com a cabeça entre os braços cruzados sobre a secretária, mal me via +desatava num soluçar de criança, que me compungia extraordinariamente.</p> + +<p>Ás vezes mandava-mas cortar duma só côr, e juntando-as num ramo, dizia-me, +sorrindo enigmatica:</p> + +<p>—«Vês? Gosto mais assim. As brancas junto das outras pareciam-me ainda mais +pálidas. É como os doentes ao pé dos que têm saude.</p> + +<p>Tinha então manias esquisitas, caprichos inconcebiveis, maus humôres, que me +faziam sofrer enormemente. Impacientava-se quando me via chorar com as suas +maldades, mas chamava-me dahi a pouco para me beijar, numa solicitude, numa +súplica, de quem deseja sêr perdoado.</p> + +<p>Ás tardes, quando o Chico recolhia depois das aulas, pedia-lhe para que +fôsse lêr-lhe historias, lindos romances, que elle ia escolher á estante clara, +de <em>érable</em>, do seu lindo quarto de donzela.</p> + +<p>Foi assim que ouvi, como o decorrer dum sonho delicioso, aquelles adoraveis +romances<span class="pn">{145}</span> de Julio Diniz, que ficaram sagrados como +livro de rezas para o meu coração de rapariga.</p> + +<p>Depois, nem já mesmo isso; ás horas a que costumava entrar o Chico, +mandava-me embora, com uma crueldade, um desamôr, que me enchia de desespero e +me fazia chorar horas seguidas, com a cabeça enterrada nas almofadas da minha +cama para que ninguem suspeitasse do motivo da minha pena.</p> + +<p>Voltavam todos os meus desesperos e tristezas como bando de corvos, por um +pouco afugentados pela alegria.</p> + +<p>Dizia adeus ás tardes joviais de recreio, adeus a tudo quanto me tinha +consolado de viver!...</p> + +<p>Algumas vezes, mas sempre quando não estava o Chico, a Mariquinhas +mandava-me chamar com muito empenho. Ia logo, correndo alvoroçada, e +encontrava-a então carinhosa como nunca, num redobramento de aféto e ternura +que me fazia esquecer todos os agravos.</p> + +<p>Era então a Mariquinhas doutro tempo, a bôa fada que transformara a minha +dura existencia, o dôce e querido anjo da guarda dos meus sonhos.</p> + +<p>Uma tarde, em que estava melhor, olhou fixamente para mim, com um estranho +olhar<span class="pn">{146}</span> que nunca lhe vira, e disse-me, como quem +faz uma descoberta:</p> + +<p>—«Ó Raquel, tu és bonita, sabes?</p> + +<p>Eu ri-me francamente, como quem nunca ouvira tal nem se preocupara com o +assunto.</p> + +<p>—«Não... sério!—acrescentou convincente—tens uma cara estranha, que não é +bonita á primeira vista, mas que, pensando bem, te hade fazer uma simpatica +mulher.</p> + +<p>E quiz que a acompanhasse ao seu quarto, que tinham mudado para o +rez-do-chão, para que não se fatigasse a subir escadas; enfeitou-me com todos +os seus enfeites e joias, penteou-me de muitas fórmas, e batia as palmas +satisfeita, queria que todos me vissem, perguntava á mãe: se realmente eu não +tinha o tipo daquella mulher que o Chico lhe trouxera o outro dia numa +magnifica gravura tirada duma revista e era a cópia dum quadro que obtivera o +premio na última exposição do <em>Salon</em>.</p> + +<p>A pobre mãe sorria, um pouco animada por aquelle entusiasmo que lhe parecia +prenúncio de melhoras.</p> + +<p>Mas não, aquilo foi como descanso da doença, como que para retomar força e +voltar ao assalto com redobrada violencia.</p> + +<p>Sofria muito, a pobre alma! Já mal podia andar; melhor se poderia dizer que +se arrastava, encostada ás pessôas que a acompanhavam.<span +class="pn">{147}</span> Tinha gestos tão cansados, sorrisos tão murchos, +caricias tão frouxas, que eu chorava sem saber porquê, só de olhar para ella. +</p> + +<p>Queria consolar-me e sorria, mas esse sorriso vinha molhado de lagrimas e +descobria-lhe os dentes descarnados numa bôca exangue.</p> + +<p>Nunca mais os nossos encontros fôram a horas em que estivesse o Chico. +Tambem, pouco me lembrava delle, triste como andava com a doença da +Mariquinhas; mas, quando ás vezes perguntava noticias do nosso amigo, +respondia-me tão sêcamente que cheguei a imaginar que estavam mal.</p> + +<p>A D. Emilia metia dó, e ella tambem olhava para mim fixamente e tinha uma +frase de profundo desconsolo, de quasi inveja, que revelava o estado do seu +espirito:</p> + +<p>—«Como a Raquel tem saüde!...</p> + +<p>O mal agravava-se de dia para dia, sem remedio possivel para a pobre querida +que suportava heroicamente todos os martirios que a medicina tem inventado para +prolongar a vida dos condenados. E ella que queria tanto viver! Tinha tanto +amôr á vida que nunca tivera senão caricias para os seus adoraveis dezeseis +annos!...</p> + +<p>Os pais já sabiam: todos os filhos na idade da Mariquinhas lhes tinham ido +da mesma maneira, com os pobres pulmões esfacelados,<span +class="pn">{148}</span> deitando pela bôca todo o sangue dos seus corpinhos +exauridos, sem que a opinião dos medicos chegasse a sêr uniforme sobre o +verdadeiro mal.</p> + +<p>Quando o tempo peorou e ella tambem já se não podia arrastar até ao +caramanchão, ficava por traz dos vidros da janela para que eu a podesse vêr de +longe.</p> + +<p>Depois, nem isso, deixei de a vêr; e, por mais que espiasse no jardim os +movimentos da casa, raro conseguia saber noticias.</p> + +<p>Vivia num tal desespero, agora que, desde que a doença se agravara, não +consentiam que visitasse a Mariquinhas, com mêdo de contagios!...</p> + +<p>E viver ali, a dois passos da unica afeição que me enchia a alma, sabê-la +gravemente inferma, vê-la de longe e não poder falar-lhe, era uma verdadeira +tortura para o meu temperamento de impulsiva e apaixonada.</p> + +<p>Era uma angustia curtida em silencio, que me despedaçava brutalmente o +coração.</p> + +<p>Um dia, quando atravessava a cosinha para ir á minha piedosa espionagem, a +Eulalia voltou-se para mim com uma frigideira na mão e disse-me, com um ar +escarninho que me arrepiou:</p> + +<p>—«A menina Mariquinhas—sabe?—está a morrer.<span class="pn">{149}</span> +</p> + +<p>E ante a dúvida, claramente expressa no olhar com que a fitei, esclareceu: +</p> + +<p>—«É verdade! Disse-mo a criada da cosinha. Até lá ficou o medico esta +noite.</p> + +<p>Empalideci, e cambaleei como se fôsse perder os sentidos. A Eulalia, que me +dissera a novidade mais por espirito alviçareiro do que por verdadeira maldade, +ao vêr a minha dôr teve realmente pena. Chegou-me uma cadeira, foi a correr +buscar agua, que me obrigou a beber, e tentou consolar-me. Era tarde. O medico +em casa da Mariquinhas a passar a noite... tinha-me soado como um dobre a +finados. Sempre, para o meu espirito de criança, a sua presença assidua fôra +presagio de desgraça proxima. Era a certeza de que a morte, que tantas vezes +chamara para mim, andava perto, a bater á porta da Mariquinhas...</p> + +<p>Uma tremura convulsiva fazia-me bater os dentes como se estivesse a tiritar +de frio—era todo o frio da alma que me enregelava o sangue.</p> + +<p>A Eulalia consolava-me, apiedada,—talvez que no fundo ella não fôsse +verdadeiramente má. A vida, com as suas exigencias e cruezas, torna tão +diferentes as criaturas que não têm a alma temperada para as grandes +resistencias!—Porque não pedia eu licença para ir<span class="pn">{150}</span> +visitar a minha amiga? Talvez não fôsse verdade!...</p> + +<p>—Pedir á tia?! Nunca lhe tinha pedido nada, a Eulalia sabia. Era esse o meu +orgulho, a unica coisa que me tornava, aos meus proprios olhos, num sêr +independente e respeitavel.</p> + +<p>E a criada, muito conciliadora, como se tivesse despertado na sua alma a +natural bondade da nossa raça de sentimentais pelo apiedamento que a minha +mágua lhe causava, ofereceu-se para pedir, como coisa sua, a devida licença, se +eu quizesse...</p> + +<p>Eu quiz, é claro. Era a primeira vez que o meu orgulho se dobrava numa +convivencia com a criada, o que me amarrotava e inferiorisava á minha propria +consciencia, que foi sempre o unico julgador que temi.</p> + +<p>A licença não veiu logo, para mais cruelmente me fazerem sentir a +dependencia, mas a rapariga não desistiu e tanto disse que á tarde me entrou no +quarto triunfante com a autorisação para ir fazer a visita tão ambicionada.</p> + +<p> </p> + +<p>A noite cahia num agonisar de luz, que as nuvens pesadas de chuva mais +velavam.</p> + +<p>Ao entrar distingui apenas fórmas indecisas, movendo-se silenciosamente no +quarto<span class="pn">{151}</span> mal alumiado. Logo a seguir, não sei quem +colocou uma lamparina de vidro coalhado sobre uma mêsa, aos pés da cama onde a +Mariquinhas agonisava.</p> + +<p>Olhei com dolorida surpreza: ella, que fôra tão linda, duma graciosidade que +doirava toda uma mocidade que se abria em flôr, tornara-se com a doença +pavorosamente feia.</p> + +<p>De princípio apenas percebera o estertor rouco, que fazia arfar o seu +corpinho mumificado, e uma frouxa mão muito pálida, que apanhava, inconsciente, +a roupa da cama. Depois, com os olhos afeitos á quasi obscuridade em que me +encontrava, fitei-a com terror e não podia, por mais que quizesse, deixar de +olhá-la, num crescendo de angustia que me apertava a garganta e me comprimia o +coração.</p> + +<p>Chorei então silenciosa mas desesperadamente, num desânimo de quem vê +afundar-se todo um passado de alegrias e não vê no futuro luzeiro de esperança. +</p> + +<p>A Mariquinhas ali estendida, a sofrer, a morrer, ella tão linda, tão gentil, +a gárrula, algum tempo antes! Ai, pobre, pobre querida, como desejei +sinceramente e como formulei no silencio da minha consciencia o desejo de que a +morte me levasse antes a mim e a deixasse a ella, á bôa fada dos meus sonhos, +ao<span class="pn">{152}</span> anjo da guarda que descera até á minha miseria +desdobrando as suas brancas azas acalmadoras!</p> + +<p>Mas a luz, avivada num momento, bateu-lhe em chapa no rosto, naquelle pálido +rosto tão completamente mudado; a impressão foi por tal fórma brutal que as +lagrimas secaram-se de subito nos meus olhos e um grito de terror veiu expirar +nos meus labios.</p> + +<p>Endireitei-me sufocada, e ia fugir, numa revolta instintiva, á miseria do +meu ideal despedaçado. Antes, antes a não tivesse procurado vêr, e guardasse na +memoria a linda imagem do que fôra—dizia no íntimo da minha alma aquella voz +egoista, e tão fundamente humana, que faz a felicidade dos que a podem escutar +a tempo.</p> + +<p>Não sei quem me ciciou ao ouvido:—vai morrer!</p> + +<p>E, não sei porque estranha percéção daquella inteligencia prestes a +desaparecer, ella me presentiu e me reconheceu. Abriu os olhos, uns olhos +enormes já postos noutro fito; levantou a mão, já quasi entorpecida; e soltou +uns sons inarticulados, que mal pareciam de voz humana.</p> + +<p>—«Chamou-a, quer-lhe dizer alguma coisa—murmuraram-me ao ouvido, +empurrando-me para a cama.<span class="pn">{153}</span></p> + +<p>Fui cahir, desorientada, de joelhos, junto desse corpinho debil que tanto +sofria para sêr arrancado á vida.</p> + +<p>E nunca, nunca mais poderei riscar da memoria o olhar fundissimo de +amargura, quasi odiento, com que a Mariquinhas me envolveu toda, como que +sondando-me...</p> + +<p>Meu Deus! eu não compreendi, não podia compreender então o desespero da +pobre alma ao vêr-me cheia de saüde e de vida, emquanto ella—que tanto amava e +desejava viver!—ia desaparecer, para todo o sempre!</p> + +<p>Ai pobre querida, que remorso imenso senti depois! Mas nesse instante, +fixada por esse seu doloroso olhar cruel, senti uma surda revolta que subiu do +mais íntimo da minha alma e me invadiu completamente o espirito. Toda a +animalidade saudavel e forte do meu sêr se insurgia contra a inveja expressa +nesse olhar de moribunda—que não queria sêr vencida...</p> + +<p>E que tinha ella que invejar-me, se alguns momentos antes toda a minha vida, +toda a minha saüde, o meu sangue quente e palpitante, tudo eu lhe daria de bôa +vontade?!...</p> + +<p>A mãe, de joelhos, do outro lado da cama, escondia a cabeça na roupa para +que os soluços não amargurassem a doente que tudo ouvia e compreendia.<span +class="pn">{154}</span></p> + +<p>O pai, enterrado numa poltrona, parecia paralisado pela violencia extrema da +dôr.</p> + +<p>Dahi para diante não fui mais senhora de mim. Criaturas serviçais, muito +práticas em identicas cênas, aconselhavam-me o que devia fazer. Uma velha, +principalmente, apoderou-se da minha pessôa e foi-me indicando, com uma +intimativa que não admitia tergiversações,—o que é costume fazer uma menina na +morte de uma amiguinha.</p> + +<p>—«Ella quer falar,—segredava-me—pergunte-lhe se quer alguma coisa.</p> + +<p>E tocava-me nos hombros, para que me inclinasse sobre a face cadaverica da +Mariquinhas.</p> + +<p>Queria fechar os olhos ao ritus de quasi caveira que tinha nos seus dentes +descarnados, e cada vez os abria mais, até que a sua imagem me ficou tão +profundamente vincada na memoria, que me vem sobre todas, que é superior a +todas, ás mais ridentes como ás mais dolorosamente tragicas.</p> + +<p>Um som qualquer escapou desses labios que inutilmente se moviam num esforço +para falar, e a velha murmurou, traduzindo o que ninguem poderia ter +compreendido:—Coitadinha, falou no menino Chico!</p> + +<p>Depois, tive que apertar-lhe a mão, mas ao tocar na frieza placida desse +corpo que vinha<span class="pn">{155}</span> morrendo aos poucos, não sei que +onda de sangue me subiu ardente do coração confrangido, que perdi a compreensão +nitida das coisas e fugi desastradamente, empurrando todos, sentindo atraz de +mim mãos de moribundos agarrarem-me nas costas, leves mãos feitas de sombra que +não tinham força já para segurar-me...</p> + +<p>Ninguem deu pela minha fuga, suponho, porque logo após senti o chorar +ruidoso dos que já não tinham que contêr a explosão da sua dôr diante do pobre +corpo que umas tenues radículas de vida prendiam á terra. Voltei atraz. A mãe +da Mariquinhas, abraçada ao corpo inanimado da filha, chorava tão +angustiadamente que eu sentia ao ouvi-la uma dôr fisica tão aguda, tão +sangrenta, como se me estivessem esfaqueando o corpo.</p> + +<p>O pai estava sucumbido—era como se o seu espirito tivesse acompanhado o da +filha estremecida.</p> + +<p>Não sei como sahi dali e me encontrei nos braços da pobre D. Emilia, que +chorava beijando-me com uma ternura que nunca lhe tinha conhecido. E não sei +dizer, tambem, quem me levou para casa e me fez deitar essa noite no meu quarto +onde fiquei transida de pavôr, esperando o dia como se com a luz terminasse +aquelle terrivel pesadelo, que me<span class="pn">{156}</span> recusava a +aceitar como a verdade irremediavel!</p> + +<p>Com a morte da Mariquinhas toda a alegria acabou para mim. Nunca mais voltei +ao jardim, a olhar as janelas do seu quarto, agora sempre fechadas.</p> + +<p>O Chico, quando voltou, pensativo e triste, só de longe me acenava com a mão +um cumprimento amigo.</p> + +<p>A vida tornou-se-me insuportavel: despida de interesse, vasia de desejo. +Voltei a não estudar, e peor do que nunca tolerava as repreensões, conselhos e +imposições da inevitavel estrangeira. Com o sofrimento voltava-me a revolta; e, +como com os meus dezeseis anos já raciocinava mais, via melhor as coisas, +compreendia que meus pais não me tinham abandonado...</p> + +<p>Sim... eu confesso que me tornei alguma coisa dificil de aturar. A tia +queixava-se, queria domar a selvagensinha—como me tratava—e convencia-se que +havia de vencer o meu espirito rebelde.</p> + +<p>Mas isso, já o devia saber, era menos facil do que sujeitar uma aguia a +viver numa capoeira.</p> + +<p>Uma tarde, encostava-me aos vidros da janela do meu quarto quando na rua vi +passar o Chico.<span class="pn">{157}</span></p> + +<p>Sorriu-se para mim e perguntou-me se estava doente, tão demudada e triste eu +lhe parecia. Mal o vi, uma onda de lagrimas me subiu aos olhos e retirei-me +soluçando da janela, sem atinar com palavras com que respondesse á sua +surpresa.</p> + +<p>Nesse dia chorei sempre, e já a noite ia adiantada quando me levantei da +cama, acendi a vela, e assim mesmo, em camisa e descalça, fui escrever ao Chico +a contar a minha dôr, dizendo-lhe o meu desespero, e pedindo-lhe que me +livrasse daquella prisão onde em breve morreria, como a Mariquinhas,—estava +certa! Escrevia, pela primeira vez, tudo quanto sentia, vertiginosamente, sem +pesar as palavras, surpreendendo-me a escrever melhor do que se falasse...</p> + +<p>Depois da carta escrita e arrecadada debaixo do travesseiro, eu puz-me a +imaginar o que faria o Chico. Certamente não me abandonaria á minha sorte, +correria em meu auxilio como paladino doutras eras...</p> + +<p>O que uma cabeça de rapariga arquiteta aos dezeseis anos na sua primeira +noite de insónia!...</p> + +<p>Toda a minha esperança era o Chico—se elle me faltasse, o mundo acabaria +para mim!</p> + +<p>De manhã reli a carta, que me pareceu ainda dizer pouco do que sentia, e +tentei<span class="pn">{158}</span> escrever outra—que me sahiu peor. Meti-a +no bolso e fui ao jardim com ideia de a entregar ao meu amigo, mas um +invencivel acanhamento fez-me voltar para casa.</p> + +<p>A Eulalia, na cosinha, parecia adivinhar a minha intenção, e disse-me, +maliciosa, muito habituada a <em>fazer de capa</em> ás meninas que servira—«O +menino Chico está aqui em casa da S.ª D. Emilia, entrou ha pouco para lá.</p> + +<p>E eu, fingindo uma grande serenidade, que ella bem conheceu ser falsa:—«Ah, +sim?! Eu queria entregar-lhe uns papeis... uma carta... que a Mariquinhas +deixou para elle.</p> + +<p>A mentira fez-me córar, balbuciar; envergonhei-me de mim mesma.</p> + +<p>—«Se a menina quer, eu levo-lha lá...</p> + +<p>E quiz. E ella levou a carta, emquanto eu ficava ansiada, mal contendo o +coração, que parecia saltar-me no peito.</p> + +<p>—«Elle disse que respondia já—veiu a Eulalia, toda prazenteira, +anunciar-me.</p> + +<p>Recolhi ao meu quarto, muito triste, sem saber o que fazer, até que a carta +do Chico viesse trazer-me a esperança ou a morte.</p> + +<p>Como aos dezeseis anos a vida se nos apresenta duma simplicidade que não +admite a resignação nem a tolerancia!...</p> + +<p>Não tardou muito sem que a Eulalia viesse, com um ar de camaradagem e +cumplicidade<span class="pn">{159}</span> que me irritou, trazendo a resposta +do Chico debaixo do avental.</p> + +<p>Recebi-a simulando indiferença, e pú-la de lado, sem a querer abrir emquanto +os seus olhos maliciosos ali estivessem a prescrutar os meus sentimentos, como +que a assoalhar-me a alma...</p> + +<p>Desconcertada pela minha atitude, sahiu; e então, tremendo como quem comete +uma áção criminosa, rasguei o sobrescrito, e li e reli cem vezes, com os olhos +turvados, as poucas linhas que o Chico me escrevia:</p> + +<p>«<em>Raquel:</em></p> + +<p>«Obrigado pela sua carta e pela confiança que deposita em mim. Escreva aos +seus pais contando-lhe a sua tristeza e mande-me a carta que eu me encarrego de +lha fazer chegar ás mãos. A Senhora D. Emilia e a mamã acrescentarão algumas +palavras para dar força ás suas queixas. Todos nos interessamos pela nossa +amiguinha Raquel e temos muita pena de a vêr sofrer. Creia na dedicação e aféto +do seu amigo—Chico.»</p> + +<p>Não era muito para o que eu tinha sonhado, mas era alguma coisa, era o apoio +moral que me faltava.</p> + +<p>Sentia-me protegida e amada, e isso era o bastante para me tornar feliz. +Relia ainda a carta, que ia meter no seio, quando a porta<span +class="pn">{160}</span> do quarto se abriu de improviso e a cara detestada da +minha prima apareceu perguntando-me, trocista:</p> + +<p>—«Então a menina recebe cartas de namorados e não diz nada á gente?!...</p> + +<p>—«Vai-te daqui para fóra!—gritei desesperada.</p> + +<p>—«Ah, estás assim soberba com o teu Chico?! Pois eu direi á mamã, deixa +estar!</p> + +<p>—«Importa-me pouco a tua mãe, dou-lhe tanta importancia como a ti—e, +empurrando-a com violencia para o corredor, fechei a porta por dentro.</p> + +<p>A rapariga vingou-se: foi levantando um grande alarido de queixa que tudo +contou á mãe. E não tinham decorrido talvez cinco minutos sem que a abominavel +criatura não estivesse a bater com violencia á porta, gritando como possessa +para que lha abrisse.</p> + +<p>Com uma serenidade de que ainda hôje me surpreendo, fui abrir, e ficando +entre portas perguntei, sem me alterar, o que desejava.</p> + +<p>—«<em>Oh! Não ter vergonha! Menina dizer a mim você recebeu carta dum +maroto e pergunta o que mim quer! Vêr esse carta já! Vergonhas, vergonhas, dar +maus exemplos a meninas! Quando vier seu tio mim dizer tudo!...</em></p> + +<p>E a torrente de destemperos parecia não se estancar.<span +class="pn">{161}</span></p> + +<p>No meio daquella gritaria poude apenas levantar a voz para lhe dizer +resolutamente:</p> + +<p>—«Não lhe dou a carta, pode berrar á vontade.</p> + +<p>Perdeu então de todo a cabeça e fez um gesto de ameaça, que me desvairou. +</p> + +<p>—«<em>Dá-me carta já!</em></p> + +<p>Á sua violencia respondeu a minha violencia. O meu caráter altivo, o meu +temperamento indomavel, a minha educação livre, o meu proprio sangue, que vinha +de herois, tudo se poderia amoldar e quebrar na luta surda e persistente de +todos os dias; assim brutalmente, pela violencia, dava-se a reáção que produz a +revolta.</p> + +<p>Ergui-me duma só vez a toda a altura do meu orgulho e tornei-me soberba de +energia desesperada.</p> + +<p>—«Dar-lhe esta carta?!—E passei-lha insolentemente por diante dos +olhos—Nunca! Fique sabendo, nunca! Prefiro enguli-la.</p> + +<p>As palavras vinham-me aos labios tumultuosamente, numa abundancia que me +espantava.</p> + +<p>Então, a terrivel criatura vomitou coisas abominaveis que me insultaram +infamemente e das quais—tenho hôje quasi a certeza—, na sua ignorancia do +português, ella não sabia o verdadeiro sentido.<span class="pn">{162}</span> +</p> + +<p>Uma onda de sangue me subiu ao rosto e me turvou os olhos; toda a candura da +minha alma, todo o pudôr do meu corpo de virgindade absoluta, se insurrecionou. +Fitava-a, desvairada; sim, creio que, se não recuasse e não baixasse as mãos +que tentavam prender-me, a teria estrangulado. Sahi do quarto violentamente, +empurrando a Eulalia, que observava sardonica a cêna que preparara com a sua +baixa intriga. Ao contacto do seu corpo a minha raiva explodiu com mais furôr: +</p> + +<p>—«Vá, sua canalha!—gritei-lhe halucinada—vá chamar gente para lêr as +cartas que me traz!</p> + +<p>Estava cega, como um toiro de bôa pinta longamente encurralado, quando lhe +abrem a porta do curro e entra na praça louco de furia, correndo para um e +outro lado, fazendo saltar para a trincheira, como bonecos, os toureiros que de +longe o irritam agitando as capas vermelhas.</p> + +<p>A pequena agarrou-se a mim, aos gritos, mas rolou para o meio do chão com +uma bofetada; e a porta da cosinha aberta, com um pontapé, que fez cahir um +vidro que se estilhaçou no chão, enfiei por ella, sem bem saber o que fazer, e +achei-me no jardim.</p> + +<p>Dum pulo saltei a sebe florida que separava o nosso jardinsinho, agora +abandonado, do da<span class="pn">{163}</span> D. Emilia, e entrei-lhe como +doida pela casa dentro.</p> + +<p>Então cahi-lhe nos braços, soluçando perdidamente todo o meu desespero +desfeito em lagrimas.</p> + +<p> </p> + +<p>Á noite o meu tio veiu buscar-me. Deu-me conselhos, tratou-me com muita +bondade, desculpou a mulher, pediu, ordenou... Nada conseguiu. Agarrei-me á mãe +da Mariquinhas, e de tal maneira me impuz ao seu pobre coração de mãe tão +dolorosamente experimentado que ella pediu a meu tio que não insistisse. Eu +ficaria com ella emquanto os meus pais não resolvessem o incidente.</p> + +<p>O meu tio concordou, vencido pela palavra persuasiva e dôce da minha +protétora, e ao sahir bateu-me na cabeça e disse-me com ternura maguada:—«Ah, +cabecinha, cabecinha louca, que herdaste, por teu mal, todo o sangue rebelde da +nossa familia!</p> + +<p>E sahiu, desculpando-me no seu íntimo, elle o rebelde doutro tempo, vencido +agora pela doença e dominado, contra vontade, sabendo muito bem que o era, só +para não desencadear a tempestade caseira e não aturar o genio furibundo da +mulher. Pobre e querido tio! Ninguem reconheceria nesse velho alquebrado,<span +class="pn">{164}</span> mas ainda de soberbo e distinto porte, o heroi de tanta +façanha que deixara nome entre os rapazes da escola, como mais tarde entre os +colegas do exercito e companheiros de trabalhos e perigos. Era o nosso sangue, +na verdade, que o fazia sorrir, quasi indulgente, quando me admoestava por +tanta loucura; o nosso sangue que o fizera, quando rapaz, desafiar, sósinho, +uma companhia de pequenos colegiais como elle, e que o fizera, mais tarde, +responder sempre com soberba quando se julgava desrespeitado, mesmo por um +superior hierarquico...</p> + +<p>Pobre tio! Com quanta saudade recordo hôje o seu bom sorriso quando, longe +da companheira, nos contava anedótas e aventuras que nos perdiam de riso. Como +teria sido adoravel, sem essa servidão dum casamento abominavel, a que não +soube nem poude fugir!...</p> + +<p>Foi então que escrevi aos meus pais contando-lhe o longo martirio daquelles +quatro anos em que me tinham afastado do seu carinho.</p> + +<p>Disse-lhes o meu desespero, o meu horror á tia e aos seus métodos +educativos, e recordei com pungente saudade a feliz infancia que me tinham +feito a contrastar com aquelle inferno de todos os dias e de todas as +horas.<span class="pn">{165}</span></p> + +<p>E como os meus nervos sobreexcitados faziam a penna galopar pelo papel +desabaladamente, estou certa que nada deixei por contar.</p> + +<p>A D. Emilia e a mãe do Chico cumpriram o que tinham prometido; escreveram +comigo para desmanchar qualquer má impressão que o meu procedimento podesse +despertar no espirito dos meus pais.</p> + +<p>Que dôces dias de serena paz eu passei ali emquanto não veiu a resposta á +minha carta—que fôram os meus proprios pais que em pessôa me quizeram vir +buscar.</p> + +<p>Uma tarde o Chico entrou—vinha despedir-se. Eu trabalhava junto da janela, +num bordado que a D. Emilia me dera para fazer, porque entendia que sempre as +mãos deviam estar ocupadas e o espirito prêso a qualquer trabalho manual que, +por insignificante que parecesse, era muito na disciplina moral do nosso sêr. +Era a esse constante labôr das suas habilissimas mãos, que a bôa senhora +atribuia o resistir ainda á sua dôr.</p> + +<p>Estava só; a D. Emilia fôra dentro chamada pelo marido, quasi sempre de cama +desde que se dera o grande desastre para o seu coração de pai que na unica +filha poséra todo o seu aféto e esperança.<span class="pn">{166}</span></p> + +<p>—«Que trabalhadeira estás!—disse-me o Chico, sorrindo, porque ao entrar eu +nem sequer erguera os olhos, que dantes o fitavam confiantes e fraternais.</p> + +<p>É que as palavras impudicas da estrangeira acudiam-me á memoria e tinham +maculado para sempre a inocencia do meu aféto por elle.</p> + +<p>Sorri á sua graça, mas com um sorriso tão maguado, que o Chico, vibratil e +bondoso como é, logo percebeu que não estava bem. E, muito carinhoso, quiz +saber se estava doente, se me doía alguma coisa.—Não, não,—respondi nervosa e +sacudida—doença não tinha... mas lembrava-me o que tinham dito de ambos, e +isso incomodava-me fortemente.</p> + +<p>E elle quiz saber o que me dissera a tia, o que dera causa á grande cêna, de +que ainda ria, só em pensar nella.</p> + +<p>Cuidava que era ainda a pequena e ingenua Raquel que elle e a Mariquinhas +quasi amavam como filha, e que o meu áto revoltoso fôra apenas um capricho de +criança endemoninhada e voluntariosa. Mal supunha que uma alma de mulher, de +subito despertada, sofria e palpitava dentro em mim.</p> + +<p>Subitamente as lagrimas vieram-me aos olhos e começaram a correr, sem que eu +as podesse<span class="pn">{167}</span> estancar no lenço encharcado, que +mordia em desespero.</p> + +<p>Passara, sem transição, da insensibilidade quasi completa de quatro anos á +mais disparatada pieguice.</p> + +<p>Por nada as lagrimas me vinham aos olhos e corriam sem cessar. +Desesperava-me contra mim mesma; queria vencer-me, e não podia!</p> + +<p>O Chico, muito comovido, abraçava-me e beijava-me para me socegar, como +fazia sempre, com a simplicidade carinhosa dum irmão mais velho, sem suspeitar +a confusão em que eu me debatia.</p> + +<p>Aproveitando um momento de mais calma para os meus nervos, disse-lhe para +mudar de conversa:</p> + +<p>—«O Chico vai-se ámanhã embora e nunca mais se lembrará de mim; eu tambem +vou para tão longe!</p> + +<p>—«Que tolice, nem que em Portugal haja longes!...—respondeu a rir, +emquanto eu me afastava um pouco, porque as suas caricias me sobresaltavam e +faziam mal.</p> + +<p>—«Pois sim, Coimbra não é muito longe, mas os estudantes que lá andam não +pensam a sério em coisa nenhuma e tudo esquecem quando lá chegam.</p> + +<p>—«Quem te disse tal?<span class="pn">{168}</span></p> + +<p>—«As raparigas da minha aldeia, quando cantavam:</p> + +<blockquote> + «O amôr dum estudante<br> + «Não dura mais de uma hora<br> + «Tóca a cabra vão para a aula<br> + «Vêm as férias vão-se embora.</blockquote> + +<p>Quando isto é o amôr, o que fará a amizade!?</p> + +<p>As lagrimas tinham-se transformado em riso—ria agora convulsamente.</p> + +<p>—«Isso são cantigas! Não penses isso de mim, Raquel. Ha rapazes loucos, mas +tambem os ha sérios, como eu...</p> + +<p>—«Não acredito! O Chico vai esquecer-se de mim, e quando fôr para a aldeia +nunca mais o verei nem saberei de si! Antes queria morrer!...—tornava a +chorar, visionando-me só, sem vontade nem gosto para viver.</p> + +<p>—«Ó Raquelsinha, não diga isso, não a esquecerei nunca,—que tolice! Os +amigos de infancia nunca se esquecem, creia. Nem tão pouco esquecerei a +Mariquinhas.</p> + +<p>—«A essa,—solucei, num sentimento de magua mortificado com uma pontinha de +inconsciente ciume—a essa não a esquecerá o Chico, não!...</p> + +<p>—«Mas porque menos a ella do que a si?<span class="pn">{169}</span></p> + +<p>—«Então o Chico não era namorado da Mariquinhas?!—perguntei numa ansiedade +de dúvida que se deseja não vêr confirmar.</p> + +<p>—«Ó Raquel, não diga isso! Quem lhe meteu na cabeça uma loucura +dessas?!—perguntou indignado.—Então não eramos como três irmãos, três +companheiros de brincadeira?!...</p> + +<p>—«Ninguem me disse nada. Eu hôje é que pensei, depois do que ouvi lá em +casa, que podia sêr que o que se lembravam comigo fôsse com ella... Ás vezes a +Mariquinhas parecia que me tinha raiva, e porfim já não queria que brincassemos +juntos... lembra-se?</p> + +<p>—«Sim, é verdade. Não tinha pensado nisso. Até pediu para a não visitar +quando estivesse a Raquel, porque a sua alegria a incomodava...</p> + +<p>Pobre Mariquinhas! A sua figura esbelta e linda levantava-se a nosso lado +reclamando a sua parte de aféto, mas o seu rosto pacificado pela morte já não +exprimia o vago ciume com que tanto nos mortificara. A sua recordação unia-nos +numa afetuosidade e numa saudade igual.</p> + +<p>—«Mas então—disse o Chico, surpreso—a Mariquinhas supunha que nós eramos +namorados?! Pobre amiga! Uma criança como a Raquel era...<span +class="pn">{170}</span></p> + +<p>—«Eu não percebi nada—respondi ingenua—nem supunha que era tão sua +amiga... Nem que esta amizade era diferente... Hontem é que compreendi tudo!... +</p> + +<p>—«Mas hontem, porquê? Disseram-lhe mal de mim?!...—perguntou assomado, +numa daquellas fogosas cóleras que ensombram rapidamente o rosto do meu amigo. +</p> + +<p>—«De si, não!... Foi de mim. A <em>estrangeira</em>... disse-me coisas, +coisas... que só pensar nellas me faz mal!</p> + +<p>Córei e baixei os olhos numa confusão, vendo-o sorrir, já desanuviado.</p> + +<p>Curvando-se para mim, perguntou-me baixinho, numa caricia que estava toda na +doçura da voz:</p> + +<p>—«Disse-lhe que era minha namorada, não foi?...</p> + +<p>Abaixei ainda mais a cabeça sobre o bordado, não querendo responder uma +afirmativa que me confundia.</p> + +<p>—«E não o quer sêr, de verdade, Raquel?... Será a minha noiva emquanto +andar a estudar, e a minha mulher, a minha companheira, quando eu já ganhar +dinheiro para os dois...</p> + +<p>Sorria embevecida, olhava-o cheia de desejo de lhe dizer que sim e +saltar-lhe ao pescoço, numa alegria louca; mas ficava-me calada,<span +class="pn">{171}</span> perturbada, sem saber verdadeiramente distinguir até +onde me seria permitido mostrar o meu entusiasmo segundo as praxes que a +<em>tia</em>, dizia, eu ha muito tinha desprezado impudentemente.</p> + +<p>O Chico compreendeu; e, não precisando ouvir mais, pegou-me dôcemente na mão +que conservou entre as suas emquanto conversavamos a meia voz, sorrindo +enlevados, contando coisas, recordando factos, que reconhecemos nesse momento +sêrem significativos daquelle desenlace.</p> + +<p>Ha muito tempo que eu era a sua mulhersinha—recordou o Chico sorrindo—nas +brincadeiras em que a Mariquinhas, já mais consciente, reservava para si sempre +os papeis de rainha ou fada, que iam tão bem á sua gentil figurinha de +estatueta.</p> + +<p> </p> + +<p>Foi nessa tarde deliciosa de fim de inverno, com o testemunho das camelias +brancas, que a Mariquinhas adorava, e na vespera delle ir para Coimbra e eu +recolher á velha casa paterna, que nós ligámos para sempre as nossas +existencias, que dissemos essas mil palavras banais que nada dizem para os +outros e são, num momento unico da vida humana, as verdadeiras palavras +sacramentais que<span class="pn">{172}</span> ligam duas almas numa comum e +deliciosa aspiração.</p> + +<p>Foi nessa tarde, que remiu para o meu coração anos de sofrimento, que +traçámos a azul e oiro o futuro ridente que hôje estamos desfrutando.</p> + +<p> </p> + +<p>Com a vinda de meus pais, trocadas explicações e desculpas entre elles e os +tios, sem que eu fôsse obrigada a vêr mais a minha façanhuda inimiga, a +tranquilidade e a alegria voltaram de novo ao meu espirito, que em breve se +refez e normalisou na serenidade da vida aldeã.</p> + +<p>O Miguel, que já então era um estudante muito cuidadoso, tornou-se em breve +o amigo inseparavel do Chico, que teve sempre meio de repartir as férias entre +a antiga familia, que o adorava, e a nova, onde não era menos querido.</p> + +<p>Até o Padre Zé discutia com elle pontos graves de historia romana e ficava +boquiaberto com a sabedoria dos rapazes de hôje... e da qual nos riamos a +valer, indo depois ás escondidas folhear o Larousse onde procuravamos citações +e factos para confundir o santo velho.</p> + +<p>A Maria Augusta, essa só pedia a Deus que a deixasse viver até vêr na capela +da<span class="pn">{173}</span> casa, abençoado por Deus e pelos homens, um par +que era tanto do seu agrado.</p> + +<p>E agora, realisado esse ideal,—que reuniu á mesma mêsa duas familias que +ficaram sendo só uma, naquelle grande jantar de nupcias a que assistiu toda a +parentela dos arredores—ella espera ansiosa porque lhe seja permitido +apresentar ao Padre Zé, de capa de asperges e estola rica, um menino que hade +vir breve de Paris numa condessinha de flôres, e para o enxoval do qual +trabalhamos dia e noite com a mais rútila e alvoroçada alegria.</p> + +<p>—Com o vestido de antiga seda côr de rosa e grandes ramos prateados, +coberto com o véo de tule bordado, que a mamã guarda na grande arca dos +enxovais, eu verei como irá lindo!...—É o que me assegura a Maria Augusta, que +recorda outros batisados celebres na familia, e o meu principalmente, que, +crescidinha já, por doença do padrinho, me desesperei iconoclastamente com o +<em>sal da sapiencia</em> e arranhei a cara ao padre!</p> + +<p>Não se esqueceu de recomendar ao Chico, uma vez que elle foi a Lisbôa, que +deixasse feita a encomenda dos bolos para a festa e de confeitos para a +rapaziada, que assim encherá de bençãos o batisado...<span +class="pn">{174}</span></p> + +<p>Isto emquanto a bôa mamã dá volta ao bragal, desmancha lençóes e finas +bretanhas, e manda ao sotão buscar o lindo bercinho em que nos criou a todos, e +que já espera, forrado e engomado de fresco, pelo pequenino dôno...—ou +dôna?!...</p> + +<p>E, seja o que fôr, bem vindo será ao nosso lar e... já o jurámos: só nós o +educaremos e guiaremos nos seus estudos, porque, sahindo, como poderá ser, á +mãe, não será facil meter-lhe grandes sabedorias na cabeça.</p> + +<p> </p> + +<p>Esquecia-me dizer que o meu pobre tio está emfim descansado, livre da mulher +que tão amarga lhe fez a existencia, bem encafuado num mausoleu de marmore, +onde ella o vai vêr a miude, naturalmente para lhe dar conselhos o reprimendas. +Dizem-me que na sua opinião eu sou o mais execravel dos animais ferozes, e +ainda treme de raiva só em pensar na minha negra ingratidão. A filha prepara-se +para casar confecionando o enxoval e aprendendo a sêr uma admiravel dôna de +casa, capaz até de ser professora numa escola de <em>ménagères</em>, mas os +noivos é que, como sempre assustados com o merecimento da mulher, já lhe vão +tardando um pouco.<span class="pn">{175}</span></p> + +<p>O pai da Mariquinhas morreu, e a D. Emilia resigna-se a viver para chorar +todas as lagrimas da sua bela alma pelo marido e pelos filhos, sempre vivos na +sua lembrança.</p> + +<p>Sente por nós um dôce carinho, que nos enche de reconhecimento, e todos nos +juntamos na saudade da querida morta, a linda Mariquinhas, que tão íntimos e +indissoluveis tornou os nossos afétos.<span class="pn">{176}<br>{177}</span></p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION00400000000000000000">IV<br> +Sacrificada</a></h1> + +<p><span class="pn">{178}<br>{179}</span></p> + +<p> </p> + +<h2><a name="SECTION00410000000000000000">SACRIFICADA</a></h2> + +<p> </p> + +<h3><a name="SECTION00411000000000000000">I</a></h3> + +<p>Quando Manoela entrou para o convento, todas as freiras e recolhidas +correram apressadas á grade do côro para conhecerem a nova companheira, de que +a superiora, Soror Gertrudes, ha muito anunciara a vinda.</p> + +<p>Falavam a um tempo, riam satisfeitas com aquella diversão, que +desmonotonisava a vida fastienta de todos os dias, emquanto que ella, nervosa e +pálida, as olhava assustada, como quem entrevê, sem o compreender, um mundo +estranho.</p> + +<p>Sentia-se abandonada no mundo, sem um aféto ou uma ilusão que lhe devesse +dar o desejo e a alegria de<span class="pn">{180}</span> viver, mas, apesar +disso, aos seus dezeseis anos encantadores não sorria positivamente a ideia da +prisão.</p> + +<p>Era tão dôce o sorriso triste que lhe errava nos labios, e a sua voz, +ligeiramente cantada, com o sotaque provinciano, era tão fresca e cariciosa, +que as bôas freiras a consideraram desde logo um anjo do Senhor, mandado para +as consolar naquelle triste fim da sua casa religiosa.</p> + +<p>Encheram-na de presentes: uma trazia-lhe uns bentinhos, outra uma lâmina +ingenua, salpicada de papelinhos doirados; rendas finas, outrora feitas na +casa; dôces, especialidade do convento; coisas insignificantes, que eram no +entanto toda a sua fortuna.</p> + +<p>E ella sentiu-se assim prêsa pelo reconhecimento, integrando-se numa vida +que em breve seria tambem a sua.</p> + +<p>A mãe perguntou-lhe: se queria entrar desde logo para o convento ou ficar +alguns dias fóra, para vêr a cidade.</p> + +<p>—Não; se tinha que entrar ali, então que fôsse já. Vêr a cidade para quê?! +Que lhe importava a alegria, o movimento, a luz,—aquilo que era a existencia +da outra gente?</p> + +<p>Não estava ella perdida, morta para o mundo, despedaçado tudo que tinha +feito o encanto da sua propria existencia, que era<span class="pn">{181}</span> +agora uma coisa áparte, fóra da normalidade?!...</p> + +<p>A mãe aprovou, contente com aquella resolução; ansiava por a vêr entregue +aos cuidados da bôa tia, Soror Gertrudes, que a recebeu soluçando de +contentamento e magua—alegria de têr a sobrinha junto de si, fundo desgosto +pela sua imensa desgraça.</p> + +<p>Porque era uma historia um pouco triste, a dessa rapariga, que assim vinha +esconder a sua vida em flôr no silencio dos longos corredores cheios de sombra, +adormentar o espirito nessa vida que já pertencia ao passado.</p> + +<p>Manoela ficara, muito nova, sem pai, e por isso quasi inteiramente +abandonada a si mesma, visto que a mãe, duma devoção estreita e dum caráter +frio e áspero, entregava-se por completo á prática das suas muitas rezas e +orações e deixava os filhos em plena liberdade.</p> + +<p>A pequena, que era uma natureza delicada e emotiva, assim foi crescendo sem +um carinho que lhe afagasse e dulcificasse a existencia, retrahindo-se numa +aparencia de frieza melancolica.</p> + +<p>Os irmãos, três rapazes, viviam alegremente, sem cuidados nem canseiras, +caçando pelas serras, comendo e bebendo á tripa-fôrra com os companheiros, +jogando o pau pelas romarias<span class="pn">{182}</span> e feiras—senhores +morgados de aldeia que todas as raparigas disputavam para seus pares, e dos +quais todos os homens tinham como honra a convivencia.</p> + +<p>O mais velho, bom rapaz, bronco e ingenuo apesar da sua aparencia de +gosador, fôra para Coimbra por sua alta recreação, segundo o costume +tradicional dos morgados beirões, e por lá se ia formando aos solavancos: <em>R +R</em> daqui, guitarradas dali, ceias e patuscadas com os amigos, sempre alegre +e satisfeito comsigo e com os outros.</p> + +<p>Ora uma vez, a pretexto de caçadas que se faziam melhores que em parte +alguma pelos matagais cerrados das suas serranias, levou, para passar umas +férias na aldeia, o seu mais íntimo amigo e companheiro mais certo das suas +noitadas e <em>troupes</em> em vesperas de feriado.</p> + +<p>Cavalgando os possantes cavalos que os criados lhes levaram com tempo, +juntaram-se á caravana dos mais rapazes da região e seguiram, como era costume, +atravessando vilas e aldeias ao som marcial das cornetas, como um verdadeiro +batalhão, que ia diminuindo, não pela morte, mas pela alegria dos que primeiro +encontravam as suas casas e se despediam dos companheiros até ao fim das +férias.</p> + +<p>Fôram elles os últimos a chegar ao vasto casarão de provincia, onde a adega +estava<span class="pn">{183}</span> sempre aberta, as espingardas carregadas +atraz da porta, e a matilha impaciente tudo invadia, roubando na cosinha, +sujando as salas e quartos, batida pelas criadas em desespero, afagada pelos +amos que riam das suas partidas e se sentiam muito á vontade no meio daquella +desordem.</p> + +<p>Manoela era um verdadeiro milagre de graça e pureza num meio tão vulgar e +rude.</p> + +<p>O rapaz, ao vê-la assomar ao alpendre, mal sentira a tropeada dos cavalos e +descer correndo os degraus de pedra que davam acesso exterior para o andar +nobre da casa, para abraçar o irmão, ficara deveras impressionado. Tanto mais +que não contava encontrar, numa irmã do seu herculeo companheiro de estúrdia, +tanto mimo e graciosidade de linhas, uma tal delicadeza e aristocracia nativa +de porte.</p> + +<p>Á primeira impressão de agradavel surpresa seguiu-se o desejo da posse e o +projéto da conquista.</p> + +<p>Para que essa criança, ignorante e ingenua, se prendesse a um homem que lhe +falava a dulçorosa e enganadora linguagem de vulgar D. João, que para ella +representava a verdade, a honra, o ideal supremo porque tantas outras têm, como +ella, sofrido, não era preciso muito.<span class="pn">{184}</span></p> + +<p>Um homem honesto ter-se-ia cautelosamente afastado, receoso de despertar uma +alma tão confiada e crente, na sua ignorancia infantil; mas elle, conquistador +sem escrupulos, de palidez sentimental e cabeleira romantica, cantando ao luar +fados chorosos que falam de amôres infelizes com tremuras na voz e fundos ais +arrastados, dedilhando a guitarra que soluça baixinho caricias de beijos +gritando alto paixões estridulas... Elle, sem alma nem consciencia, viu apenas +a flôr que se abria á vida e que as suas mãos brutais podiam desfolhar e +arremessar depois como coisa inutil e sem importancia.</p> + +<p>Representou, mais uma vez, a vulgarissima comedia do amôr-paixão, em que +ella, a pobresita, acreditou, exatamente porque era ingenua e pura, deixando-se +arrastar, sem que houvesse mão amiga que a fizesse parar a tempo na descida +perigosa.</p> + +<p>Acabadas as férias, promessas feitas e juradas, elle partiu alegre e +triunfante, ella ficou abismada na mais desesperadora tristeza.</p> + +<p>A saüdade, fustigando barbaramente a sua pobre alma mal preparada para o +sofrimento, punha-lhe nas faces a palidez da morte e nos olhos arroxeamentos de +incuravel doença.</p> + +<p>Os dias fôram passando, os mêses decorreram lentos e monotonos, e o +desespero ia-lhe<span class="pn">{185}</span> tomando o coração +avassaladoramente, visto que elle, o ingrato, nem uma unica palavra lhe enviara +a encorajá-la e a dar-lhe esperanças. Confiando da Ama-Rita o seu segredo, +conseguiu da pobre mulher—que a amava, mais do que aos proprios filhos, porque +a criara com o seu leite—a promessa de receber e mandar as cartas para o +namorado.</p> + +<p>Enviou muitas, muitas, mas respostas nunca as recebeu, porque nunca elle +lhas mandou.</p> + +<p>Sentindo-se abandonada, quando mais necessario se lhe tornava o auxilio +moral do homem que a enganara vilmente, e não podendo esconder por mais tempo o +seu estado, foi têr com a mãe implorando protéção e piedade.</p> + +<p>Contou tudo, por entre soluços e lagrimas, nem tentando sequer atenuar com +uma desculpa a grandeza do delito, como se tivesse um prazer estranho em se +torturar e deprimir, num princípio de expiação.</p> + +<p>Quando a mãe compreendeu o verdadeiro sentido das suas palavras, possuiu-se +dum desespero louco. Levantando os braços e os olhos ao céo, tomava-o como +testemunha da sua ignorancia e inocencia em tão grande crime, como se o +esperasse vêr cahir sobre a cabeça da pecadora que soluçava a seus pés.</p> + +<p>Mas como do céo não baixou nenhum sinal indicador da colera divina, ella +afastou-se<span class="pn">{186}</span> brutalmente, prohibindo-a de sahir mais +do quarto.</p> + +<p>Escreveu então ao filho, contando-lhe em poucas palavras o que se passava e +encarregando-o de procurar o amigo, e—prometendo um bom dote a Manoela—fazer +com que casassem imediatamente.</p> + +<p>Essa carta, mandada pela Ama-Rita para Manoela vêr, deixou-lhe no coração um +vislumbre de esperança, naquelle desejo que todos nós temos de nos agarrar ao +menor luzeiro que prediga felicidade.</p> + +<p>Mas a resposta não podia sêr mais cruelmente aniquiladora:—o namorado de +Manoela tinha casado, pouco tempo antes, com uma prima muito rica, e nunca mais +pensara na criança que ia começar a expiação duma culpa que era só delle.</p> + +<p>Não havia pois maneira de legalisar ao pequenino ente que vivia já da vida +da infeliz mãe, a entrada no mundo e na familia.</p> + +<p>Tratou-se então de esconder um facto—que seria a vergonha para todos.</p> + +<p>Levaram-na para uma casa meio arruinada, numa propriedade distante; e foi +ali, entre rochedos desolados e na visinhança lugubre dos lobos que uivavam a +sua fome pelos matagais, que Manoela, entregue aos unicos cuidados e carinhos +da ama, teve uma filha.<span class="pn">{187}</span></p> + +<p>Com que dulcido encanto, depois do martirio de algumas horas, em que as +velhas paredes repercutiram os seus gritos lancinantes, ella acalentou nos +braços o corpinho fragil, que era uma parte do seu proprio sêr, e premia sob os +seus labios febris a carnesinha arroxeada e setinea da pequenina face!</p> + +<p>Nos olhos, que mal se abriam á luz, queria ella lêr um infinito de ternura; +da boquinha, que ainda não sabia sorrir e já sabia chorar, esperava talvez +ouvir palavras de justiça e consolação...</p> + +<p>E as lagrimas iam correndo serenamente pelas suas faces desbotadas, lagrimas +que eram ainda uma felicidade, que em breve deixaria de possuir.</p> + +<p>A Ama-Rita chorava tambem, sem coragem para de pronto lhe arrancar a +criança, como lhe fôra ordenado, na impotencia de todas as bôas almas para +despedaçar uma ilusão alheia, principalmente quando toda uma existencia está +suspensa dum sorriso de criança.</p> + +<p>Foi ainda a mãe que a veiu arrancar desse passageiro sonho, anunciando-lhe +como coisa decidida a sua entrada para o convento onde Soror Gertrudes já a +esperava.</p> + +<p>Manoela revoltou-se:—o convento, a prisão para ella, que apenas fôra uma +vitima!?... Pois era tamanha a sua culpa, santo Deus!?...<span +class="pn">{188}</span></p> + +<p>—Era, sim, tão grande que já coisa alguma poderia lavar essa mancha do seu +nome, recahindo sobre toda a familia. Apenas o silencio e a ausencia poderiam +atenuar o mal fazendo-o ignorar do público!...</p> + +<p>Soluçava baixinho, num grande aniquilamento de toda a vontade, escutando as +palavras que sahiam frias e ásperas da bôca da mãe.</p> + +<p>—«Bem, irei!—disse por fim Manoela, resignada—mas ao menos quero levar a +certeza do seu perdão, minha mãe!...</p> + +<p>—«O meu perdão?! Não, nunca poderei perdoar á senhora que assim desce ao +nivel de qualquer camponia sem principios...</p> + +<p>Então, sentindo-se ferida, mais pelo tom do que pelas palavras, que +representavam apenas o seu orgulho de casta, a alma de Manoela levantou-se +tambem com altivez.</p> + +<p>Uma revolta surda a tomava toda, partidos definitivamente os laços que a +prendiam a essa mãe que a repelia sem encontrar uma atenuante á sua culpa, sem +um lampejo de piedade pela sua existencia tão cêdo anulada.</p> + +<p>Embora! Se não lhe perdoavam os outros, absolvia-se ella a si mesma. Não +conhecia o mundo; mas a sua consciencia presentia vagamente que não eram justos +acusando-a duma falta que se baseava apenas no preconceito<span +class="pn">{189}</span> social, que entre dois cumplices escolhe, para imolar +como vítima expiatoria no altar da hipocrisia, aquelle que pela inocencia e +ignorancia menor responsabilidade apresenta.</p> + +<p>Avaliando bem—agora que a vida se lhe antolhava tal qual é: cheia de +deveres e responsabilidades para os fracos, livre e tolerante para os fortes e +cinicos...—a perversidade moral do homem que amara, uma grande repulsa, um +grande desprezo lhe invadiu o espirito por tal criatura.</p> + +<p>Vieram então novas cartas de Coimbra nas quais o irmão, numa furia brava, +contava como procurara o sedutor para o matar, como costumava matar os lobos +que lhe ameaçavam os rebanhos, e não o podera encontrar.</p> + +<p>«Apenas lhe souberam dizer: que fôra com a mulher passar a lua de mel, não +lhe quizeram indicar para onde. Oh, mas havia de encontrá-lo, fôsse onde fôsse, +fôsse como fôsse. Quanto á irmã, que desaparecesse—não a queria mais vêr!</p> + +<p>Manoela sorriu, já conformada.</p> + +<p>Tambem ella não tinha vontade de viver mais com uma familia que tão +levianamente a abandonara e era agora tão cruel na condenação.</p> + +<p>—Sim, iria para o convento o mais depressa possivel.<span +class="pn">{190}</span></p> + +<p>Mas duas condições punha á sua completa submissão: saberia onde ficava a +filha, que não queria deixar entregue ao acaso, como sêr desprezivel que não +merece a esmola dum afago; e fariam prometer ao irmão que não continuaria a +perseguir o sedutor. Para quê?! Matá-lo era forçarem-na a lamentá-lo, quando +era apenas desprezo e asco o que sentia por tanta abjéção.</p> + +<p>Esquecessem-nos a ambos... Ella entraria desde já para o convento, sem +nenhuma relutancia.</p> + +<p>O irmão cedeu, instado pela mãe, ansiosa por vêr o caso liquidado como +entendia sêr melhor, sem mais desasocegos e desgostos.</p> + +<p>Os outros dois irmãos, não tendo entrado na confidencia, admiraram um pouco +a subita vocação de Manoela, mas como lhes não desagradava inteiramente, pois +ficavam assim mais á vontade,—visto que a mãe, afóra as horas de comer, raro +sahia do quarto, a não sêr para a capela—aprovaram a resolução com toda a bôa +vontade.<span class="pn">{191}</span></p> + +<p> </p> + +<h3><a name="SECTION00412000000000000000">II</a></h3> + +<p>Desde que obteve a certeza de que as suas condições eram acatadas, Manoela +ficou apática e indiferente para tudo.</p> + +<p>Deixava-se levar sem resistencia para onde a mãe queria que fôsse. No seu +espirito não havia senão ruinas e desmantelos.</p> + +<p>Sempre melancolica, sem raiz que a prendesse á vida, parecia nem sequer se +preocupar com a filha que tanto a sobresaltara de princípio e deixava +especialmente entregue aos cuidados da ama.</p> + +<p>—«Adeus Ama-Rita,—dizia-lhe na última hora—estima a minha filha como me +estimaste a mim, e que Deus a faça mais feliz do que a sua triste mãe! Até... +um dia—em que nos havemos de encontrar.</p> + +<p>Mas quando esse dia?... Não sabia, não via nada claro no seu futuro.</p> + +<p>Encostada á varanda do quarto onde tanto sonhara e tanto sofria agora, +passeava os olhos amortecidos por toda a montanha que limita o horizonte, e +naquella ocasião, em que a primavera tudo cobria com o seu verde manto, se +afofava em cambiantes de pelucia cara.<span class="pn">{192}</span></p> + +<p>Ao seu lado, a pobre mulher abafava os soluços que a sufocavam e limpava as +lagrimas á ponta do avental.</p> + +<p>Seguira-se a viagem, a cavalo, atravessando terras desconhecidas, onde gente +espantada as seguia com a vista pelos caminhos poeirentos e pedregosos, +deixando-lhe tal confusão no espirito que nunca saberia dizer por onde passara +nem o que vira.</p> + +<p>Logo á chegada, a mãe conferenciou com Soror Gertrudes, tia do marido, agora +superiora do convento, que a pouco e pouco iria acabando pela morte das últimas +freiras, e onde Manoela foi recebida em festa por todas essas tristonhas almas +encarceradas precocemente envelhecidas.</p> + +<p>A mãe partiu, socegada emfim, sem saüdades que a fôssem mortificar ou +distrahir dos seus austeros deveres de bôa católica.</p> + +<p>Tambem a filha as não sofreu, porque nunca se tinham compreendido nem +estimado aquellas almas, que ninguem diria tão estreitos laços uniam, tal a +dessemelhança que involuntariamente as separava.</p> + +<p>Manoela parece que vinha, inteiramente, do pai, de quem se lembrava +vagamente, fazendo-a saltar nos joelhos, rindo e chalaçando com todos, enchendo +a casa de vida e satisfação. E um dia, subitamente, estando<span +class="pn">{193}</span> sentado á mêsa, do rompimento duma aneurisma morrera. +</p> + +<p>Quasi se não lembrava do facto em toda a sua nitidez, tão longinqua era essa +recordação, que ficara apenas na sua alma infantil como sensação dolorosa, a +primeira tristeza na sua vida tão cheia dellas.</p> + +<p>Agora vinha encontrar, na tia, o mesmo caráter, essa amizade confiante que +lhe faltara, essa alegria que tão bem fazia á sua alma dolorida.</p> + +<p>Sentia-se envolver naquella atmosfera de paz, que nunca tinha respirado, e +sentia-se bem naquelle esquecimento de tudo quanto a fizera padecer.</p> + +<p>Os dias sucediam-se aos dias, de quando em vez cortados por noticias de +casa, que recebia indiferente; o tempo ia correndo sempre igual, com as mesmas +festas aos mesmos santos, as mesmas rezas, as mesmas infantis preocupações de +vestidos a bordar para o menino Jesus tal ou para a Senhora de invocação +diversa, o presepe no Natal, o dôce para a venda, a mesma comida sempre ás +mesmas e invariaveis horas.</p> + +<p>Mas um dia Soror Gertrudes morreu.</p> + +<p>Manoela tinha então vinte anos. Era uma criança pela simplicidade do +espirito, que ficara ingenuo e ignorante do mal, apesar de tudo,<span +class="pn">{194}</span> mas era uma verdadeira mulher pela reflexão e pela dôr. +</p> + +<p>Os últimos quatro anos passados naquella casa conventual tinham decorrido +num meio sonho vago, que nem chegava a compreender bem.</p> + +<p>Depois da catastrofe que lhe angustiara a existencia, a alma tinha-se-lhe +afundado num como branco nevoeiro, que a deixava viver inconsciente e passiva +essa vida comum sem que nella tomasse verdadeiramente parte.</p> + +<p>Dir-se-ia um meio estado sonâmbulo de que a morte da tia, a bôa Soror +Gertrudes, a vinha acordar dolorosamente.</p> + +<p>Como ia sentir a falta dessa querida vélhinha, que lhe dera um aféto todo +maternal na solidão em que a austeridade da verdadeira mãe lhe deixara o +coração!</p> + +<p>Logo ao entrar, passados os primeiros dias de surpresa, as palavras de +conforto da bôa vélhinha tinham sido um grande bem para o seu espirito.</p> + +<p>—Aconselhava-a a têr esperança—o futuro traz surpresas que não podemos +prevêr.... E ella era tão nova, santo Deus, como desesperar?! Socegasse, estava +entre bôas criaturas que a amavam, e ella como tia a teria sempre junto de si. +Ainda que o não fôsse,<span class="pn">{195}</span> estimá-la-ia na mesma, +bastava sêr uma criança que a desgraça lhe tinha tão tragicamente arremessado +aos braços...</p> + +<p>Tinha razão Soror Gertrudes—Manoela era bem digna de piedade. Entrada +apenas na vida, era della expulsa com vergonha, e a sua mocidade, que mal +desabrochara, iria fenecer entre as paredes frias dum convento. Quebrados todos +os laços que a prendiam ao mundo exterior, o que ficava dessa pobre rapariga +tão admiravelmente feita para amar e sêr amada?</p> + +<p>Sentia-se cahir pesadamente num abismo. Fechando os olhos, estendeu os +braços em busca dum apoio, e encontrou a mão trémula, o sorriso alegre na sua +bôca desdentada, e a face macerada da freira, que para ella teria carinhos +inegualaveis.</p> + +<p>Bem sentia ella o cancro brutal, que a ia corroendo lentamente, mas nada +dizia para não afligir a sobrinha.</p> + +<p>Sorria dolorosamente quando uma picada mais aguda a fazia levar a mão ao +seio esquerdo, num gesto mecânico, quasi involuntario.</p> + +<p>Manoela sobresaltou-se quando as dôres começaram a sêr mais amiudadas, +lembrando-se da terrivel molestia que de quando em quando assaltava a sua +familia paterna.<span class="pn">{196}</span></p> + +<p>A tia socegava-a:—era um <em>nascido</em> que tinha havia muitos anos, não +seria coisa de morte...</p> + +<p>Mas nos últimos três mêses a doença agravara-se caminhando rapidamente para +o fim.</p> + +<p>O cancro rebentara, vermelho, luzidio, enorme, deformando horrivelmente o +pequenino seio esteril, branco como o marfim—esse seio que guardara com tanto +recato durante sessenta anos e se mostrava agora na sua infermidade horrivel. +</p> + +<p>Quando Manoela o viu pela primeira vez, perdeu a côr, vacilou e só se +conteve por um esforço de vontade, que se manifestava nella com a revolta +natural contra mais esse golpe do destino.</p> + +<p>Dahi para diante nunca mais abandonou a tia, assistindo-lhe a todo o +martirisante fim, sentindo, por assim dizer, na sua alma todas as dôres que +ella ia sofrendo no seu magro corpo esfacelado.</p> + +<p>Foi-lhe infermeira solícita, disfarçando a repugnancia que lhe inspirava a +ferida, que se ia arroxeando, com laivos azuis, quasi negros, numa aparencia +ascorosa de podridão. Em volta a péle retesada do peito ia-se abrindo e +esfarelando.</p> + +<p>Manoela tinha sempre diante dos olhos a ferida horrivel que tão +cuidadosamente tratava,<span class="pn">{197}</span> e que era o fim—ella +sabia-o—dessa existencia tão querida.</p> + +<p>Por fim Soror Gertrudes nem sequer se podia assentar na cama, e ella +assistiu-lhe á agonia, que durou dois longos dias,—lento quebrar de cadeias +que se tinham enferrujado mas não carcomido.</p> + +<p>Quando a superiora declarou que chamassem Soror Angelica para a substituir, +porque já se não podia levantar e a morte não tardava, toda a comunidade acudiu +em pranto:—era pois certo que Soror Gertrudes as ia deixar para todo o +sempre?!</p> + +<p>Foi-se prevenir o capelão, que a confessou rapidamente, tal era a inocencia +dessa alma imaculada, e quando voltou com a comunhão todas as freiras e +recolhidas ajoelhadas em volta do leito choravam silenciosamente, com os véos +negros cahidos sobre os seus rostos de cerusa.</p> + +<p>Manoela encostara-se á cama, e a tremura do seu corpo fazia estremecer esse +leito onde a morte já se instalara triunfante.</p> + +<p>A ceremonia prolongou-se com o perdão que a moribunda foi pedindo a uma por +uma das suas companheiras, numa voz que era já um éco de outra existencia +passada.</p> + +<p>Quiz a sobrinha sempre ali, e consolava-a com a esperança dum futuro melhor. +Deixava-lhe<span class="pn">{198}</span> o Menino Jesus do Milagre, que fôra o +seu companheiro de longos anos, desde que uma senhora freira do convento do +Paraizo ali morrera e lho deixara por lembrança. E deixava-lhe tudo mais que +propriamente possuia, e bem pouco era, naquella vida estreita de renúncia.</p> + +<p>Dirigindo-se a Soror Angelica entregou-lhe a sobrinha e pediu-lhe para ella +todo o seu amôr e carinhosa solicitude.</p> + +<p>Custava-lhe muito deixá-la. Deus mandara-lhe ao fim da vida aquella suprema +provação, que fôra afinal a maior felicidade de toda a sua existencia. Quando +ella já se sentia cahir na cova, com tão egoista alegria, vinha aquelle aféto +imenso prendê-la á terra com laços tão fortes que ao parti-los metade da alma +lhe ficava cá.</p> + +<p>Fechou os olhos: imaginaram-na morta e já os soluços se ouviam mais altos. +Mas não, era apenas um dormir de extenuamento que breve durou. Ao acordar já a +voz lhe estava prêsa no estertor, que causava calafrios a todas as assistentes. +</p> + +<p>Fazia esforços para falar, queria talvez dizer coisas que a sua alma, já +quasi desprendida do mundo, via como nunca tinha visto emquanto a materia a +segurava á terra.<span class="pn">{199}</span></p> + +<p>Os seus olhos, dum azul pálido, como desbotado pelos anos, voltavam-se para +a sobrinha numa ânsia derradeira.</p> + +<p>Choravam todas por a vêr assim, implorando a morte que a viesse libertar do +incomportavel martirio.</p> + +<p>Manoela escondia a cabeça na roupa, soluçando e gemendo apavorada; teria +fugido áquelle espétáculo superior ás suas forças, se a moribunda lhe não +tivesse agarrado desesperadamente as mãos como última ancora...</p> + +<p>A situação prolongava-se pela noite fóra, e tão pungitiva que todas se +entreolhavam em pânico.</p> + +<p>Era alta noite quando uma criada, vinda do campo havia pouco, se propôs pôr +termo áquelle martirio, voltando a senhora. E explicava, muito sabida e vista +nessas coisas:—que era o demonio que estava ali, não deixando morrer a +senhora, emquanto estivesse deitada sobre o lado esquerdo. Vingava-se assim de +não lhe poder levar a alma, que era de Deus, pela muita bondade da +Madre-Superiora.</p> + +<p>Todas acreditaram piamente na explicação da rapariga; não estava o <em>Livro +da fundação</em> cheio de factos que comprovavam as tentações e maleficios do +eterno inimigo das esposas do Senhor, especialmente dirigidos contra as +piedosas<span class="pn">{200}</span> irmãs daquella santa casa tão rica em +milagres e indulgencias?!...</p> + +<p>Aceite o alvitre, voltaram o corpo pesado, que a morte já quasi gelava +completamente, deixando-lhe apenas aquelle imenso sofrimento como despedida +duma existencia de que não conhecera senão as tristezas.</p> + +<p>Mal lhe tocaram, despediu num suspiro o último lampejo de vida, tal como +aquelles cadaveres conservados intactos por anos e anos nos seus tumulos +socegados e logo que se lhes toca, trazendo-os ao ar, se desfazem em pó.<span +class="pn">{201}</span></p> + +<p> </p> + +<h3><a name="SECTION00413000000000000000">III</a></h3> + +<p>Manoela sahiu do dormitorio logo que a tia deixara de existir.</p> + +<p>Cambaleando, os olhos sêcos, a alma vazia, sem a sensação dolorosa da pena, +como se a tivessem magnetisado para a furtarem ao sofrimento, apenas uma +necessidade material a impulsionava.</p> + +<p>Tinha sôno—havia tantas noites que não dormia!</p> + +<p>Agora que tudo estava acabado, que não havia uma esperança a sustentá-la, +estonteada, inconsciente, deixava-se vencer por esse torpôr que segue a +excitação dolorosa de dias sobre dias de espétativa diante da morte. A natureza +retomava os seus direitos, e a reação era tanto mais violenta quanto fôra maior +o predominio do espirito sobre a materia.</p> + +<p>Logo na pequena sala contigua ao dormitorio, que fazia de livraria, +deixou-se cahir numa cadeira sem força para ir mais longe.</p> + +<p>No dormitorio ia um vai-vem silencioso que mais parecia mover de sombras num +pesadêlo. As freiras ciciavam ordens ás criadas, acendiam-se<span +class="pn">{202}</span> luzes, rezavam baixinho, limpavam as lagrimas que +teimavam em enevoar-lhes os olhos, e levantavam com respeito a morta para a +vestirem como havia de ir para a cova, com o mesmo triste habito que trouxera +em vida e logo ao entrar para o convento, noviça ingenua e formosa, lhe tinham +dito que seria a sua mortalha.</p> + +<p>E assim, eternamente amortalhada, passava da tristeza de viver ao unico sôno +consolador dos infelizes, porque é daquelle que se não acorda para sofrer mais. +</p> + +<p>A sua face, serenada pela morte, reflétia a suprema felicidade de não +existir conscientemente num triste mundo tão cheio de desacertos e injustiças. +As freiras benziam-se e murmuravam baixinho, pondo as mãos com devoção:—que o +seu rosto de santa reflétia já todo o goso da bemaventurança.</p> + +<p>Manoela, abrindo os olhos no meio sôno em que ficara embebida, viu os pés da +morta calçados com as sandalias da ordem, magros e compridos, atados com uma +fita para não descahirem; e, mergulhando de novo em letargo, sonhou que esses +pés caminhavam por sobre o seu corpo desfeito e lhe batiam com força no +coração. E a sensação foi tão dolorosa e a dôr tão forte, que acordou de vez, +sentindo realmente uma pontada que lhe suspendia<span class="pn">{203}</span> +quasi a respiração e a fez gritar levando as mãos ao peito, sufocada.</p> + +<p>Foi quando Soror Angelica veiu têr com ella e a condusiu para o segundo +dormitorio, fazendo-a deitar na sua propria cama, encarregando uma irmã leiga +de a vigiar e acompanhar. Então Manoela cahiu num sôno pesado e mau, cheio de +sonhos que a faziam chorar e gemer baixinho como quem se sente estrangulado, +sem poder gritar, e a que a irmã leiga punha termo chamando-a carinhosamente e +abanando-a de leve todas as vezes que a sentia.</p> + +<p>Era já manhã quando a vieram chamar para assistir aos responsos que se iam +fazer no côro e para os quais toda a comunidade se preparava.</p> + +<p>Levantou-se sobresaltada, sem nada perceber, como quem acorda dum terrivel +pesadêlo e reconhece com surpresa que ainda existe na vida tal qual a +deixara... Atiraram-lhe o véo para a cara, composeram-lhe o vestido, e +levaram-na pelo braço, sem que compreendesse intimamente de que se tratava. Mas +quando se encontrou no côro e viu a morta estendida no chão sobre um pano +preto, entre quatro grossos tocheiros, os padres rezando os responsos, e toda a +comunidade em volta com os véos cahidos e segurando velas acêsas,<span +class="pn">{204}</span> compreendeu finalmente o que se passava, a sua alma +despertou para o sofrimento intenso da pavorosa realidade.</p> + +<p>Já não havia dúvida possivel, e a noite, que se passara num atordoamento de +sonanbulismo, aparecia-lhe agora em toda a sua nua e horrivel fatalidade.</p> + +<p>Debaixo do véo que lhe cobria o rosto, as lagrimas corriam sem cessar mas já +sem explosão de soluços, tão amargas e lentas que cada uma parecia vir +arrastando um pedaço da sua alma esfacelada.</p> + +<p>Procurava nessa face amada, coberta igualmente com o véo preto, o sorriso +bondoso, o olhar de carinho, que em quatro anos de reclusão a tinham feito +esquecer que a vida existia fóra daquellas paredes soturnas.</p> + +<p>O véo era denso bastante para lhe velar a face, mas nada obstava a que os +seus olhos halucinados vissem, debaixo do grosseiro hábito, o peito entumecido +escancarando-se na repelencia da ferida.</p> + +<p>Finda a encomendação, seguiu atraz das freiras, vélhinhas alquebradas e +esquecidas pelo mundo, que assim iriam rareando, uma por uma, na longa fila que +vinha do côro.</p> + +<p>Era o último enterro a que assistia ali, porque a nova lei prohibia enterrar +fóra do cemiterio público e fôra não pequeno trabalho<span +class="pn">{205}</span> para se conseguir das autoridades aquella excéção em +favôr de Soror Gertrudes, que era conhecida e estimada em toda a terra.</p> + +<p>Manoela tremia de pavôr observando a serenidade extatica das freiras, que +não se distinguiam umas das outras, com os véos negros derrubados, as velas a +arder na mão direita, hirtas e silenciosas e graves como espétros.</p> + +<p>Lá dentro,—quem sabe?—talvez que as suas almas tremessem de frio a cada +sacudidela do vento da morte que ia levando uma a uma as companheiras de muitos +anos, e que nunca mais seriam substituidas.</p> + +<p>Já no refeitorio iam faltando tantas que, ao meio dia, a hora antigamente +tão alegre de jantar,—quando sobre as toalhas de linho alvejante os moringues +de barro de Estremoz marcavam nas mêsas estreitas e compridas, voltadas para o +pulpito, o logar de cada uma—mais parecia que a sineta chamava para um +banquete de sombras.</p> + +<p>Os padres iam compassando os responsos, rodeando a cova onde já repousava o +cadaver, e cada um ia deitando uma pá de terra, seguindo-se na ceremonia toda a +comunidade.</p> + +<p>Ah, bem feliz era Soror Gertrudes que ainda encontrava um abrigo santo junto +das<span class="pn">{206}</span> suas irmãs, vivendo com ellas no eterno sôno, +sob o abrigo das arcarias do claustro florido, acalentada pelo murmurio fresco +da fonte que transbordava na sua concha de marmore. As outras—pobres +dellas!—já não teriam na morte esse mesmo abrigo sagrado e seriam relegadas a +mãos estranhas e indiferentes, esquecidas nesse campo desabrigado e devassado +por todos os olhos profanos, que eram os novos cemiterios.</p> + +<p>As velas tremiam nas mãos enrugadas das pobres vélhinhas.</p> + +<p>Das trinta e três freiras que o <em>Livro da fundação</em> dava como limite +para a comunidade, homenagem piedosa aos anos de Christo, e que ao soar a hora, +que para muitos fôra de redenção e para ellas de mágua, se preenchera á pressa, +abreviando as profissões das noviças, já quinze dormiam insubstituidas sob as +lages do claustro.</p> + +<p>Sentindo o lento caminhar das vivas, que eram como fantasmas errantes nesse +asilo guardado pela morte, sentiriam a dôce ilusão de assistirem com ellas na +vida comum.</p> + +<p>Olhavam-se apavoradas, as velhas freiras, a cada nova escolhida que a morte +vinha tocar com o seu beijo gelado, e murmuravam entre si:—de qual será agora +a vez?—terrificadas com a ideia de sêrem a última.<span +class="pn">{207}</span></p> + +<p>Soror Claudea, com o seu olhar sombrio e desvairado, seguia a ceremonia +funebre com tremuras convulsivas no seu corpo magro de que a loucura histerica +fizera uma bôa prêsa.</p> + +<p>Dantes tambem morriam, é certo, mas a cada cova que se fechava abria-se a +porta a uma noviça que tomava o véo preto, e no simbolico número se ia +conservando sempre a comunidade.</p> + +<p>Manoela soluçava agora, vendo cahir a última pedra que a separava para +sempre da bôa tia, que era a sua unica grande afeição no mundo—tão diluida +tinha na memoria a lembrança do passado que a filha era apenas uma vaga +recordação, tão pouco pungitiva como a que lhe ficara do pai, que mal +conhecera.</p> + +<p> </p> + +<p>Soror Angelica ficara superiora sem quasi se proceder á ceremonia da +eleição, tanto se impunha a todas a sua inteligencia, a sua energia, e a sua +cultura, rara entre as senhoras daquella casa de regra áspera e humilde.</p> + +<p>A nova superiora era uma bôa e valiosa amiga para Manoela, considerando como +um dever estimá-la tal qual o fizera Soror Gertrudes, que tão solenemente lha +entregara.<span class="pn">{208}</span></p> + +<p>Mas Soror Angelica era um espirito mais varonil e energico, e, se dava +amizade segura e protéção incondicional, não tinha como a tia de Manoela os +carinhos e as delicadezas dum espirito que tinha ficado menineiro apesar da +esterilidade duma vida sem familia propria.</p> + +<p>A nova superiora era respeitada por todas; a antiga tinha sido amada e era +chorada como uma bôa mãe.</p> + +<p>Se Soror Angelica tivesse nascido anos atraz, seria uma dessas preladas +temidas e escutadas por todos, porque sabiam fazer valer a força do seu direito +e pesar a influencia das familias, da fortuna e do nome profano de todas as +suas governadas, em qualquer questão que as interessasse.</p> + +<p>Se tivesse nascido alguns anos mais tarde, seria, em qualquer campo para +onde dirigisse os seus passos, uma criatura representativa, uma destas +influencias que todos procuram captar para o seu lado porque em toda a parte +entra com o valôr da inteligencia, da energia e da tenacidade, qualidades +sempre raras em todos os tempos.</p> + +<p>Superiora sem importancia num convento desapossado de todos os seus +rendimentos e que existia apenas emquanto vivessem as últimas freiras—como +existe, sustentado pela<span class="pn">{209}</span> hera que o reveste, o +velho muro em ruinas—Soror Angelica era um desacerto porque era uma força +inutilisada.</p> + +<p>Desde que ficou naquelle quasi isolamento, o espirito de Manoela começou a +acordar, a debater-se para sahir do torpôr em que esses quatro anos amimalhados +lhe tinham adormentado a alma.</p> + +<p>Essa loucura ardente da fé que despreza o presente pela vaga esperança dum +futuro cheio de delicias, já por vezes a compreendia, exaltada pela devoção e +pelas leituras misticas que a superiora lhe indicava. O caminho que leva á +sarça em fogo onde se consomem as pobres almas doentes, que dão as Santas +Terezas de Jesus, já por vezes se abria diante da sua imaginação inátiva e do +seu coração amoravel tão implacavelmente impelido pelo destino para a solidão e +o desamôr.</p> + +<p>Naquelle meio de apertada devoção, no silencio dos grandes corredores +pontuados de capelinhas milagrosas, o seu espirito inclinava-se para um +misticismo apaixonado e obsessivo, como tudo seria naquella alma de peninsular +temperada e subtilisada pelo sofrimento, que vencera sem queixa.</p> + +<p>Andava vagarosamente pelos claustros lageados, sentindo-se prêsa dum +respeito supersticioso por essas pedras que cobriam corpos<span +class="pn">{210}</span> macerados de santas; tinha sorrisos silenciosos, gestos +vagos de corpo apenas vivo pela esperança de se consumir em breve e reviver só +em espirito purificado.</p> + +<p>Á hora das orações rituais, assentava-se com as companheiras nos cadeirões +de pau santo, que se defrontavam em duas filas sobrepostas e dantes eram só +destinados ás professas, e pensava que a vela benta que as separava era a alma +de cada uma das freiras que ardia no amôr apaixonado do Senhor seu Esposo e seu +Deus.</p> + +<p>O bruxoleamento da luz sobre as paginas do livro de oficios, que seguia por +dever, tinha para a sua mente enfebrecida a significação clara dum suspirar de +espirito aspirando á eterna bemaventurança.</p> + +<p>Ali, naquelle côro grande como uma capela, revestido de azulejos policrómos, +cheio de santos e relicarios preciosos, que irradiavam na meia obscuridade das +suas doiraduras e pedrarias, numa luz quasi de sonho, Manoela gastava os seus +longos e inuteis dias.</p> + +<p>O côro era, como tinha sido sempre desde que se fundara aquella casa, o +unico luxo, o cuidado e gosto de todas aquellas almas privadas doutras +delicadezas e distráções feminis. Privadas até de irem á igreja, que Manoela +contemplava extatica pelas grades<span class="pn">{211}</span> estreitas, +revivendo a vaga recordação que lhe ficara do dia da entrada, quando os seus +olhos enevoados pelas lagrimas a tinham visto sem lhe poderem dar o verdadeiro +valôr.</p> + +<p>O convento nem se via de fóra, construido em quadrado por traz da igreja que +o guardava, imperturbavel e austera como sentinela incorruptivel da fé.</p> + +<p>A igreja era magnifica, nada dizendo com a humildade da regra nem com a +modestia do resto da casa: duma traça arrojada, em que as colunas em marmore +côr de rosa subiam em cordas espiraladas, até se juntarem na cúpula alta e +sonora.</p> + +<p>As janelas, do nosso gotico rendilhado a que se chama <em>manoelino</em>, +conservavam ainda restos dos antigos vitrais, que deviam ter sido dum brilho e +colorido que encheriam de encanto as naves silenciosas.</p> + +<p>Os paineis, que a rodeavam, sobresahiam das largas molduras doiradas e +entalhadas, pelo colorido um pouco frio e o desenho convencional e rigido do +estilo que se impunha no tempo em que uma grande dama da côrte se lembrara, +apaziguando talvez recordações importunas duma mocidade cheia de dôces culpas, +de fundar aquella santa casa onde, propositadamente, só á igreja fôra dada a +magnificencia e o fausto devidos ao Senhor<span class="pn">{212}</span> +omnipotente, dispensador de todas as graças, arbitro de todo o julgamento. Para +as Esposas, as virgens oferecidas como vítimas expiatorias do pecado deleitoso +da fundadora, a humildade, o desconforto, e a asperesa da regra.</p> + +<p>Contemplando a igreja, Manoela sentia-se amar um Deus imenso e magestoso, +arrastando purpuras e fazendo refulgir as joias da sua corôa imperial por +catedrais goticas de naves resoantes, cheias de grandezas e misterio. +Prostrava-se ante o seu trôno de luz nessa côrte celestial tão fantastica e +deslumbrante, que lhe descreviam as almas crédulas e os livros piedosos.</p> + +<p>O Christo torturado, empalidecido e humanisado pela dôr, não o compreendia +ali, no luxo e na grandeza da arte, como o poderia compreender na igreja +humilde da sua modesta aldeia.</p> + +<p>Ali era um Deus para camponezes e para as almas simples; aqui era um Deus +aristocratico e soberbo que se impunha aos grandes e aos poderosos.</p> + +<p>Prêsa naquelle deslumbramento, que a fazia viver uma existencia á parte, +Manoela assim iria gastando a existencia se não viesse um banal incidente +chamá-la a si, chamando-a á vida com novos interesses e novos deveres a +cumprir.<span class="pn">{213}</span></p> + +<p>Ama-Rita, a bôa mulher que nunca a esquecêra, escrevia-lhe uma longa carta, +de letra tortuosa, quasi ininteligivel, que ella decifrava a custo. «Só +passados sete anos lhe escrevia, porque a senhora lho tinha prohibido e, não +sabendo escrever, não confiava em ninguem da terra para fazer uma coisa contra +a sua ordem. Agora era a sobrinha, a Luisa da Roda, que o fazia. A menina devia +lembrar-se della, eram da mesma criação, tinham brincado bastante em +pequenitas... Viera de servir, mas tão doente que o mais certo era não poder +voltar. Podiam confiar nella e emquanto vivesse não teria a menina falta de +cartas».</p> + +<p>Manoela tinha os olhos rasos de lagrimas ao pensar na pobre rapariga, talvez +tisica, que tinha sido sua companheira de infancia, dessa breve infancia que +lhe vinha, numa lufada sã, evocada por essa mal redigida carta de camponia. Era +um pedaço da sua rude terra, que a urze e o rosmaninho incensavam.</p> + +<p>Depois, as noticias alongavam-se:—este que tinha ido para o Brazil, aquelle +que voltara da tropa, casamentos, bátisados, mortes... e porfim, numa linha só, +como misteriosamente, a causa primaria de se ter escrito aquella grande +carta:—«A menina criava-se muito bem; a menina era muito linda».<span +class="pn">{214}</span></p> + +<p>Mais nada... E, no entanto, que mundo novo de pensamentos e de paixões essas +poucas palavras desenrolavam diante dos olhos e do coração da triste reclusa! +</p> + +<p>O seu espirito, adormentado numa crise de misticismo para que a predispunha +o meio ambiente, reagia agora com toda a energia, porque a sua alma não era +feita para vagas abstrações; antes fôra, era, e seria sempre, uma mulher +humana, nascida para viver e sentir humanamente a vida, com todas as suas +amarguras e alegrias compensadoras.</p> + +<p>A filha!... Quasi a tinha esquecido, naquelle viver sem consciencia de si +propria, que fôra a sua existencia ali.</p> + +<p>Como podera resignar-se durante tanto tempo só com a certeza de que esse +pequenino anjo, que era a carne da sua propria carne, vivia, nessa terra +longinqua e áspera, sob os cuidados da velha Ama-Rita? Sentia remorsos e +agradecia intimamente á bôa serviçal, que assim a chamava á vida lembrando-lhe +o cumprimento do seu dever.</p> + +<p>Relendo aquella frase incolôr, sentia que dentro da sua alma se ia +levantando outro altar, criando uma nova religião, que mal sabia como era +dificil de harmonisar.</p> + +<p>Encostada ás grades da janela do dormitorio, para onde viera na ânsia de se +encontrar<span class="pn">{215}</span> a sós com a sua propria alma, olhava o +campo que se estendia num verde luminoso, com um castelo ao fundo, na +imponencia de cenografia espétaculosa.</p> + +<p>Na cerca a nóra gemia e a agua cahia no tanque donde era tirada para as +regas.</p> + +<p>Esse murmurar da agua corrente evocava-lhe o passado distante, a sua terra, +o fiosinho de agua transparente a deslisar por entre os choupos, ao fundo da +sua quinta, e aquella pequenina enseada onde se ia esconder, num desejo calmo +de solidão, a olhar a agua saltando de pedra em pedra num grande esforço de +quem vem exausto de longa caminhada.</p> + +<p>Recordava, com tanta saüdade que chegava a sêr uma dôr material, essa época +tão afastada para o seu espirito que já parecia têr pertencido a outra +existencia, as horas que passara ali sósinha, idealisando um futuro de poesia e +de romance, como o idealisam sempre as mulheres que uma educação racional não +preparou para entrar na vida pela porta ampla e sem mentidos encantos da +realidade.</p> + +<p>Recordando todo esse passado, para sempre morto, a sua alma tão cruelmente +torturada e tão profundamente humana acordava num alvoroço.<span +class="pn">{216}</span></p> + +<p>Chamavam-na para a vida, e ella vinha toda inteira, corpo palpitante, +coração sangrento pronto a entregar-se a um novo ideal.</p> + +<p>Desde esse dia nunca mais deixou de pensar na filha, que se tornou a sua +obsessão; sentia-lhe a vózinha de choro chamando-a mãe; via-lhe o pequenino +rosto, que idealisava duma pureza de linhas que só igualariam os anjos das +pinturas rafaelescas; tremia com a ideia de que podia uma doença cruel +arrebatá-la sem que a tivesse uma vez sequer acalentado nos braços.</p> + +<p>Já não rezava como dantes, mas ainda passava no côro as melhores horas da +sua vida, ajoelhando-se de preferencia diante duma grande Virgem que a lenda +dos seus milagres tornava célebre em toda a cidade.</p> + +<p>Dizia a crónica:—que essa imagem viera de Candia com destino a Espanha e +fôra por milagre trazida á cidade. Recebida entre musica e fogos de artificio, +foi levada em procissão e confiada ás freiras que tinham fama de mais virtudes +entre todos os conventos da terra. De tal maneira se avigorou a fé nos milagres +da formosa imagem que raro era o dia em que a irmã rodeira não recebia, de +pobres criaturas sofredoras, bilhetes e cartas implorativas dirigidas á Virgem +para sêrem colocadas sob a sua guarda. A crença no<span class="pn">{217}</span> +milagre, o último refugio dos fracos que não podem resistir á dôr, fizera da +bela Senhora uma consoladora permanente como dispensadora desse beneficio +inestimavel para a maior parte dos sêres humanos: a ilusão.</p> + +<p>Tambem Manoela se afervorava na devoção pela milagrosa imagem; mas o motivo +que a arrastava até aos seus pés e a prostrava agora em extasis era mais humano +do que mistico. É que diante dessa Virgem, que era uma mulher que a escultura +traçara com toda a verdade, sustentando nos braços um pequenino Jesus, filho +humano e verdadeiro, que ella, humanamente mãe, acariciava com a doçura do seu +olhar veludoso e a caricia dum sorriso angelical, sentia a sua alma pacificada, +sentia-se irmanada no mesmo sentimento.</p> + +<p>Essa mulher, mãe dum Deus, não a perturbava, porque era bem mulher, bem +maternal, para compreender o sobresalto do seu coração, a saüdade que a +sufocava por esse pequenino corpo adoravel, leitoso e macio, que apenas podera +vêr e beijar á nascença. Aspirava pela caricia dos seus braços roliços e da sua +boquinha perfumada; morria de paixão por esse entesinho dealbante, que lá longe +ia crescendo e vivendo rudemente entre camponêses, que mal a saberiam +amar.<span class="pn">{218}</span></p> + +<p> </p> + +<h3><a name="SECTION00414000000000000000">IV</a></h3> + +<p>Num inverno humido e triste em que o claustro, a igreja e o palratorio +chegaram a sofrer uma inundação que muito assustou a comunidade, Manoela tremia +arrepiada sob o mantéo curto das recolhidas, e pensava com horror no frio que +arroxearia as pequeninas mãos da filha que se aninharia ao canto da lareira +fumarenta da miseravel casa onde se criava, por essa invernia inclemente que +tudo abafava sob a nevada deslumbrante.</p> + +<p>Sentia o pavôr da sua almasinha trémula, quando os lobos esfomeados +rondassem o povoado, acossados da montanha pela neve, e as ovelhitas timidas se +aconchegassem no curral balando tristemente.</p> + +<p>Ah, ella não podia acostumar-se á ideia de que a filha, a sua querida filha, +viveria assim eternamente sem conforto nem os mimos que para ella sonhava.</p> + +<p>Já por vezes tinha tentado convencer a mãe, levá-la ao esquecimento e á +tolerancia pelas suas humildes súplicas, mas nada até ahi a tinha demovido do +seu proposito de conservar em misterio a existencia daquella criança que<span +class="pn">{219}</span> a seu vêr não era do mesmo sangue que das suas veias +tinha passado ás da filha, e da filha á neta, na continuidade fatal da +natureza.</p> + +<p>Manoela insistia, pedia ainda; mas a força instintiva do amôr maternal, que +a impulsionava agora, começava a fazê-la admitir a revolta contra esse poder +que a natureza naturalmente afrouxa, porque assim o acha necessario para a +conservação da especie, embora os homens o tenham querido fortalecer com as +suas leis e costumes antinaturais.</p> + +<p>Soror Angelica, como superiora e como amiga, continha-a e aconselhava-a a +conformar-se com a vontade de Deus...</p> + +<p>—«Depois,—dizia-lhe ella, um dia, aspirando deliciada a flôr perfumosa +duma angelica que se abria num vaso colocado na varanda da sua céla de +superiora, mimo gracioso duma das suas amigas da cidade—depois, Soror Manoela, +de que lhe serve ir contra a vontade de sua mãe?!... Não é ella a senhora da +casa?... Não é ella que tem só o poder do dinheiro?»</p> + +<p>—«É a senhora, porque nós, os filhos, assim o queremos; mas não sabe, Madre +Angelica, que temos direito a puxar pela herança de meu pai e exigirmos a +nossa<span class="pn">{220}</span> parte?... Por pouco que seja, dar-me-ha o +bastante para viver com a minha filha...</p> + +<p>Por menos que Manoela soubesse das leis que governam os homens, sabia o +bastante, pelas relações mundanas entretidas entre o convento e a sociedade, +para conhecer o direito que a tornava senhora da sua pessôa e da sua fortuna. +</p> + +<p>—«Revoltar-se, Soror Manoela, cuida que isso lhe daria felicidade?!... +Santo Deus! Os pais representam na terra a autoridade divina. Triste daquelle +que no pecado procura a coragem bastante para lhe fugir!...</p> + +<p>—«No pecado?...—murmurou Manoela, limpando as lagrimas.—E não será maior +pecado o meu se deixar morrer ao abandôno a minha filha, esse pobre anjo que +não tem culpa nenhuma de têr sido chamada á vida?!...</p> + +<p>—«Sim, é uma grande culpa que sua mãe levará ao tribunal supremo, mas +quanto maior não seria a sua, minha pobre filha, se levasse a de rebeldia e de +orgulho filial!... Não chore! Tenha resignação; se soubesse quantas lagrimas +têm chorado outros que... que... que por fim se resignaram a não viver senão +com a esperança na morte!...</p> + +<p>E Soror Angelica desviou-se um pouco, abafando no lenço um soluço que não +poude vencer.<span class="pn">{221}</span></p> + +<p>—«Madre Angelica?!...—interrogou ansiosa a recolhida.—Porque chora? +Tambem, como eu, sabe o que é sofrer o pêso duma vontade alheia, que esmaga o +coração?</p> + +<p>—«Ah, minha filha, se sei!... Não queira, Soror Manoela, sofrer como eu +sofri... como nós sofremos... a tirania duma ordem, que despedaçou duas +existencias!...</p> + +<p>A freira, que tinha sido uma das últimas professas, não era ainda muito +velha, mas o seu rosto, amargurado agora pela recordação, evocava um tal +passado de dôres e sacrificios, que Manoela, inconscientemente, curvou-se para +lhe beijar as mãos, que juntava num gesto de imploração extrema, numa prece em +que ia toda a sua alma de mistica e de sofredora.</p> + +<p>Depois, mais socegada, sentando-se junto da mêsa de trabalho, convidou a +recolhida a sentar-se num pequeno escabelo e disse:</p> + +<p>—«Soror Manoela, o que lhe vou dizer julgava-o para sempre sepultado no +fundo da alma, tão esquecido e longinquo como se o lêra duma outra infeliz, num +desses livros da nossa santa casa. Mas Deus Nosso Senhor inspirou-me a ideia de +lho contar para que nesse exemplo Soror Manoela encontre força para resistir á +tentação diabolica que a impele á revolta contra a vontade de sua mãe. +Soror<span class="pn">{222}</span> Manoela, houve numa terra linda do Alemtejo +uma familia que juntava aos seus pergaminhos de fidalguia uma grande fortuna em +terras e dinheiro. Era pai e filho no tempo em que... em que os conheci. O pai +era o tipo acabado da nobreza altiva e autoritaria; o filho a bondade, a +inteligencia e a docilidade numa só criatura humana reunidas. Em pequenino +ficara orfão de mãe, entregue aos cuidados duma velha parenta que o educara e +cuidara como um perfeito cavalheiro.</p> + +<p>O seu gosto e a sua alegria estavam só nos livros que folheava sem descanso +e na penna com que se servia para versejar... ás escondidas. Só uma pessôa +sabia do seu <em>crime</em>, como elle lhe chamava, a rir...—e Soror Angelica +sorriu tristemente para esse fantasma saudoso da mocidade.—Era uma pupila, do +pai, orfã e morgada como elle. Oh, Soror Manoela, se soubesse como se +compreendiam e se amavam aquellas duas almas que o destino parecia impelir uma +para a outra!... Ambos novos, ambos sem um coração de mãe que lhe tivesse sido +refugio e consolação, ambos ricos, ambos filhos unicos e ambos sentindo os +mesmos prazeres, e tendo os mesmos gostos simples e modestos. Oh! deixassem-nos +lêr as lindas historias de cavalaria que a velha prima alinhava com amôr +na<span class="pn">{223}</span> bibliotéca do seu quarto; deixassem que elle +lhe recitasse as suas poesias emquanto ella matisava um bordado, sob a protéção +carinhosa da vélhinha, que lhes queria como a filhos gemios do seu coração... e +eram felizes. O que lhes faltava? Apenas a idade para que o pai consentisse no +casamento, que via tambem com olhos complacentes.</p> + +<p>—«E casaram?...—perguntou Manoela, seguindo com vivo interesse a linda +historia de amôr que lhe rasava os olhos de lagrimas, a ella que do amôr tivera +apenas uma fugaz e mentida visão.</p> + +<p>—«Não, não casaram—respondeu a freira, sorrindo, apesar da dolorosa +contráção da sua face marfinea.—Não lhe disse que o morgado era um homem ainda +novo e belo, apesar dos seus quarenta anos? Pois era... Ao contrario do filho, +montava com garbo um cavalo andaluz, que ninguem domaria como elle, só com a +pressão dos joelhos e a firmeza da sua mão de rédea; sabia aprumar-se numa sala +diante dos cavalheiros e curvar-se, como ninguem, num requinte de gentileza, +diante das senhoras; jogava como um verdadeiro fidalgo, sem que ninguem podesse +perceber-lhe no rosto se perdia ou ganhava... emfim era querido e procurado por +todos e convidado com o maior empenho pelas familias aristocraticas<span +class="pn">{224}</span> da provincia e da capital. A quantas formosas raparigas +não teria sorrido a ideia de o têrem por marido e quantos pais o não teriam +desejado para genro? Elle ria-se dessas pretensões e estava bem convencido de +que o seu destino estava traçado em vêr a felicidade do filho e receber os +netos para herdeiros e continuadores do seu nome. Mas, um dia, o morgado viu +uma senhora que se apoderou do seu coração, e desde logo deixou de se +pertencer. Era uma mulher formosissima e igualmente rica, mas dum orgulho que +nada havia que podesse igualar. Apaixonou-se tão loucamente que desde a hora em +que a viu até que a morte o levou nunca mais teve vontade nem pensamento que +não fôsse a della ou por ella inspirado. Apresentou-se como pretendente á mão +da orgulhosa fidalga, e, apesar da sua idade e da concorrencia de muitos outros +candidatos, foi aceite.</p> + +<p>A ambiciosa calculava o valôr das fortunas reunidas e optara pela pretensão +do morgado, que lhe dava margem a viver na opulencia e grandeza que sonhara. +Mas... o morgado tinha um filho, o herdeiro da casa, o futuro morgado e senhor, +que mais tarde, morto o pai, a esbulharia dos seus direitos de posse, nada +deixando para os filhos que podesse vir a têr.<span class="pn">{225}</span></p> + +<p>—«O que fez então?</p> + +<p>—«Oh, a desventurada sabia bem conciliar as coisas; só não soube conciliar +a felicidade propria com a dos outros!...</p> + +<p>—«Casou com o filho?</p> + +<p>—«Não, que horror! Pôs como condição para o casamento com o morgado que o +filho... se fizesse padre.</p> + +<p>—«Oh, que sacrilegio! E o morgado aceitou?!</p> + +<p>—«Assim foi. Em vão o filho e a pupila lhe pediram, de joelhos, que os +deixasse casar; em vão elle ofereceu a sua desistencia ao morgadio. Ricos +seriam os dois—com o seu trabalho e a fortuna de... da pupila do pai. Tudo +debalde! Elle foi implacavel, porque ella o foi tambem. A lei só lhe garantia a +posse do morgadio para os filhos se o verdadeiro morgado fôsse frade ou +padre...</p> + +<p>—«Que desespero! Que mulher tão má! E depois, Madre Angelica?...</p> + +<p>—«Depois... elle foi padre!</p> + +<p>—«Oh!... E ella?</p> + +<p>—«A noiva?</p> + +<p>—«Sim, a noiva do rapaz.</p> + +<p>—«Essa cuidou morrer de desgosto, mas deu-lhe o Senhor coragem para +resistir á doença do corpo e á da alma e... professou tambem.<span +class="pn">{226}</span></p> + +<p>—«Freira? Resignada, resignados ambos?... Que almas eleitas, meu Deus? +Mas... morreram?</p> + +<p>—«Elle morreu. Dorme ha muito na paz de Deus. O seu corpo ficou, a seu +pedido, no claustro do convento que fundou quando ficou herdeiro da fortuna... +</p> + +<p>—«Como?! Então sempre foi morgado?</p> + +<p>—«Sim. A maior dôr foi essa!...</p> + +<p>Soror Angelica encostou a cabeça á mão e as lagrimas escorregaram-lhe por +entre os dedos, uma a uma.</p> + +<p>—«Mas porque não fugiram? Para que se sujeitaram a essa lei odiosa?!</p> + +<p>—«Porque elle era o pai. E os filhos não podem ir contra as suas ordens +terminantes. Sugeitou-se, sacrificou-se, pela felicidade paterna. Mas... pouco +tempo depois a nova morgada, apesar de rica, autoritaria e feliz, não poude +resistir á fatalidade. Logo ao dar á luz o primeiro filho morreu, cheia de +pavôr do castigo, consolada e amparada pelo homem que sacrificara ao seu +orgulho e ambição. Mêses depois, o filhito que ficara o herdeiro da fortuna +morreu tambem deixando o pai consumido de remorsos, envelhecido e triste, e +herdeiro de toda a casa. E aqui tem porque, sendo padre o filho mais velho, +sempre este ficou o infeliz herdeiro de toda essa fortuna maldita.<span +class="pn">{227}</span></p> + +<p>—«Então não acha, Madre Superiora, que foi absurda, que foi até um crime +essa obediencia que destruiu duas vidas?</p> + +<p>—«Soror Manoela—e a voz da freira tinha uma entoação grave, que nunca lhe +conhecera, como se fôsse o éco apenas duma alma pairando muito alto—esse +absurdo não deixou remorsos nas almas que se irmanavam e se amavam até ao +infinito. Elle morreu sorrindo e perdoando; ella... vive na esperança duma vida +melhor, sem que—graças a Deus!—tivesse sentido ainda a dôr amarga de ter +causado o mal alheio.</p> + +<p>—«Amarem-se dessa maneira, têrem diante de si a vida, e matarem por suas +proprias mãos toda a esperança de felicidade, Senhor! Como tiveram coragem? +Eram decerto duas almas santas—não se podem tomar como exemplo... E não posso, +não posso seguir o seu conselho, Madre Superiora! Se os velhos são egoistas e +impiedosos, os novos têm direito a reclamar a sua parte de felicidade na terra. +</p> + +<p>—«Faça o que entender, minha filha. Mas fique certa que, volvidos tantos +anos e choradas tantas lagrimas, ainda não trocaria a paz da consciencia e a +dôce consolação da minha saüdade por uma alegria construida sobre as ruinas +doutra existencia...</p> + +<p>—«Pois era a Madre Superiora?!...<span class="pn">{228}</span></p> + +<p>—«Eu, sim, que não tive nenhum merito, porque <em>elle</em> e só +<em>elle</em> foi o inspirador da nossa conduta, <em>elle</em> o filho heroico +que sacrificou, sem um protesto, a felicidade propria á felicidade de alguns +anos de seu pai!...</p> + +<p>As duas calaram-se, entristecidas e como que suspensas, ouvindo uns gritos +lancinantes que vinham da outra extremidade do corredor.</p> + +<p>—«Pobre Soror Claudea!...—lamentou Manoela—Anda agora tão louquinha!</p> + +<p>—«Ahi tem, Soror Manoela, uma que se não poude resignar de bôamente...</p> + +<p>—«O quê? Ella não foi sempre assim?</p> + +<p>—«Oh, não! Era a mais alegre, a mais encantadora, a mais viva de quantas +têm vindo a esta casa procurar o repouso e a felicidade... que nunca poude +encontrar entre nós. Se a visse!... Soror Claudea nunca teve vocação para +freira e nunca pensou que o poderia sêr. Se entrou para o Convento das +Bernardas foi na ideia de que de lá seria facil fugir á tirania do pai, que a +queria fazer professa a todo o transe.</p> + +<p>—«Meu Deus! Mas porquê?!</p> + +<p>—«Porque a fortuna da casa era pequena e era preciso que ficasse toda +reunida nas mãos do filho mais velho, o representante da familia.</p> + +<p>«As irmãs e irmãos de Madre Claudea espalharam-se, resignadamente, por +varios conventos<span class="pn">{229}</span> e fôram homens e senhoras muito +respeitados na religião. Ella é que se revoltou sempre, porque, para seu +castigo, desde pequenina que queria, com um amôr profano e intenso, a um moço +de modestos recursos, filho segundo como ella, que se desesperava por a não +poder furtar ao poder despotico do pai.</p> + +<p>«Começava nesse tempo a falar-se nos liberais que se juntavam no desterro +para conspirar, os quais, dizia-se, eram recebidos de braços abertos pelo +imperador, desde que mostrassem sêr homens de valia e de coragem. Se a causa +liberal triunfasse, dizia-se, esses ficariam ricos e cheios de dignidades. Na +esperança de por esse meio conquistar a fortuna que lhe asseguraria a +felicidade sonhada, o rapaz emigrou e voltou mais tarde com as tropas liberais +pondo em todos os átos de coragem da sua brilhante carreira militar o unico +fito de libertar a mulher que amava, prêsa num convento e obrigada a professar, +embora protestasse sempre e chorasse sem descanso durante toda a ceremonia.</p> + +<p>—«Assistiu a essa cêna, sem lagrimas, Madre Angelica?»</p> + +<p>—«Felizmente não foi no nosso convento que a fizeram professar, mas, embora +as freiras chorassem e a lamentassem, o que lhe podiam ellas fazer?... O sr. +bispo era parente da<span class="pn">{230}</span> familia, e o sr. bispo é que +aprovou a profissão.</p> + +<p>—«Pobre mulher!...</p> + +<p>—«E bem desditosa! Quando o namorado chegou a Portugal soube da sua +profissão violentada, mas não desanimou. Combinou as coisas de modo que se +poude corresponder com ella e... combinaram a fuga.</p> + +<p>—«Soror Claudea fugiu?</p> + +<p>—«Sim, chegou a sahir do convento, descendo por uma corda da altura dum +segundo andar. Quando chegou á rua onde elle a esperava tinha as mãos em carne +viva, tão feridas que ainda hôje conserva as cicatrizes e ficou com as +articulações prêsas...</p> + +<p>—«Sim, já tinha reparado que mal pode trabalhar com desembaraço...</p> + +<p>—«Fugiram... mas na guerra não ha felicidade possivel. A morte foi tão +cruel para o sacrílego como a familia o tinha sido para a desditosa...</p> + +<p>—«Infeliz mulher! E depois?</p> + +<p>—«Depois, abandonada de todos, aceitou este pobre refugio, apesar de não +sêr professa da nossa Ordem. É desde então que Madre Claudea sofre as crises +aflitivas que Soror Manoela conhece... Pobre Madre Claudea! Não soube +conformar-se, e não foi por isso mais feliz fugindo á obediencia filial...<span +class="pn">{231}</span></p> + +<p>—«Oh, Madre Angelica, sempre o peor é ter nascido mulher! Terá sido sempre +assim? Será eternamente a mesma coisa?!...</p> + +<p>—«Quem o sabe?!...</p> + +<p>—«Que grande culpa a minha em têr dado vida a uma criatura que hade, como +nós, sêr uma sacrificada!...—E Manoela torcia as mãos chorando numa crise de +nervos, que a velha freira tentava aplacar.</p> + +<p>—«Tenha esperança, minha filha; quem sabe o que será o futuro?!... Houve +sempre mulheres que escaparam ao destino comum e fôram felizes.<span +class="pn">{232}</span></p> + +<p> </p> + +<h3><a name="SECTION00415000000000000000">V</a></h3> + +<p>Manoela foi-se resignando a esperar, cedendo sempre, adiando de mês para mês +a realisação do projéto que acariciava no seu coração, e que importava o áto +público de rebeldia, que Madre Angelica tanto condenava.</p> + +<p>Os anos fôram decorrendo e ella assistindo, com o espirito dolorido e a +vontade embotada, áquelle fim miserando de vidas que se iam extinguindo, num +bater de azas lugubres que enregelava.</p> + +<p>O convento ia-se despovoando a pouco e pouco, como que tornando-se maior, á +medida que as vélhinhas, uma a uma, iam sahindo, para não mais voltar, a tomar +o seu modesto logar no cemiterio público.</p> + +<p>Manoela era agora a cabeça que por todos pensava, a alma e a energia que +sustentava aquelle resto de vida conventual, dando-lhe uma aparencia de +cohesão, que não tinha.</p> + +<p>Sentia-se apossada de todo esse vasto casarão, que parecia crescer a cada +nova baixa que a morte marcava, com a sua fatalidade cega de força +inconsciente, na comunidade já tão diminuida.<span class="pn">{233}</span></p> + +<p>Era a herdeira natural e incontestada dos santos que lhe iam deixando as +pobres vélhinhas, como recordação, e na vaga esperança de que assim viveriam +mais na sua memoria, unico abrigo ás suas almas exauridas.</p> + +<p>Das freiras que ao entrar a tinham enchido de blandicias e amimalhado como +mães carinhosas, já poucas existiam. Iam-se mirrando e fenecendo, seguidamente +umas atraz das outras, quasi sem doença e sem sofrimento, num descahir e +murchar de vontade que nenhum ideal sustenta.</p> + +<p>Apenas três ou quatro vélhinhas entorpecidas pelos anos, Madre Angelica +ainda energica apesar da sua idade e da sua dolorida existencia, e Madre +Claudea cada vez mais dificil de aturar, fugindo endoidecida do convivio dos +outros, seguindo apenas automaticamente as devoções obrigatorias do côro, que +eram como que um farrapo de lucidez a alvejar no seu triste espirito +entenebrecido. Chorava dias inteiros, com gritos dilacerantes, os pecados do +mundo, que queria carregar sobre os seus miseraveis hombros, mais do que os dos +outros pecadores, sem esperança de perdão. Tinha visões que assustavam as +meninas do côro, e apavorava as criadas narrando-lhes: como na igreja do +convento fôra uma vez enterrado um grande fidalgo da cidade cuja<span +class="pn">{234}</span> alma em pena o diabo veiu buscar com medonho barulho. +Ella não se lembrava, Soror Claudea não era desse tempo; mas ouvira contar +bastas vezes ás santas freirinhas que tinham assistido a essa luta homerica do +diabo, querendo levar uma alma abrigada pelas paredes santas daquella virtuosa +casa. O fidalgo durante toda a vida não tivera uma palavra de justiça nem de +piedade para ninguem, nem se lembrava de minorar a miseria alheia, a não sêr +por orgulho e fama. Assim, logo que morreu e que o trouxeram com pompas +principescas ao carneiro de familia, feito na igreja por deferencia especial a +quem muito protegera a comunidade, um verdadeiro e espesso nevoeiro se levantou +logo do chão escurecendo a vista ás freiras, que nem podiam distinguir o padre +oficiando no altar. E, á noite, o ruido era tanto pela nave magestosa, que as +freiras atemorisadas deixaram de abrir as grades do côro para as rezas +noturnas. Era impossivel resistir ao pânico que se apoderou daquelle rancho de +mulheres, que viam e ouviam tudo quanto diziam vêr e ouvir por um fenomeno +vulgar de sugestão, que tanto milagre tem feito no mundo.</p> + +<p>Madre Claudea descrevia e pormenorisava, então, a festa do exorcismo que +fôra feita por santos monges arrabidos auxiliados por<span +class="pn">{235}</span> todas as outras comunidades dos arredores, que de cruz +alçada entraram na igreja. Aberta a sepultura e aspergido o cadaver, uma nuvem +negra sahiu da cova espalhando-se pela igreja e sahindo pela porta entre-aberta +com fragôr. Depois tudo cahira no silencio, tudo se pacificara, ouvindo-se +apenas as orações dos frades prostrados de joelhos num santo respeito por tão +grande castigo.</p> + +<p>E quando fôram vêr a cova... não continha mais do que um punhado de cinza! +</p> + +<p>Madre Claudea benzia-se murmurando exorcismos e orações, e as ouvintes +entre-olhavam-se sentindo pela espinha um arrepio de pavôr.</p> + +<p>E não era só isto o que ella sabia. Uma ocasião—isso já fôra talvez ha +seculos, mas o <em>Livro da fundação</em> lá o tinha escrito—aparecera um +rapazinho trazendo um feixe de varas resequidas que ofereceu á irmã rodeira +para plantar na cerca. Se ella as plantasse veria como dum instante para o +outro, por milagre do Senhor, cresceriam logo e se tornariam em belas e +frondosas arvores. A irmã rodeira ralhou com o garoto e despediu-o; mas como +nessa ocasião passasse uma noviça, criança e amiga de brincar, disse-lhe com +empenho:—deixe-me experimentar, irmã rodeira; não faz mal nenhum e sempre a +gente se rirá da lembrança do rapazinho.<span class="pn">{236}</span></p> + +<p>Assim foi. Pegou numa das varas e foi a correr enterrá-la na cerca, seguida +por outras noviças em recreio.</p> + +<p>Imediatamente—Santo Deus, os maleficios que faz o mafarrico!—a vara +engrossou e cresceu desproporcionadamente e tornando-se numa arvore magnifica +encheu de assombro as pobres noviças, que viam, sobre ella, uma multidão de +macacos fazendo-lhes negaças. Foi o inferno na casa! Todas as que olhavam a +arvore maldita ficavam possuidas do espirito imundo e faziam os maiores +desacertos e gritarias. Como toda a comunidade corria a vêr a causa de tal +alvoroço, toda ella sofreu do mesmo mal, e têr-se-iam perdido todas, +certamente, se não fôsse a Madre Superiora, que, antes de mais nada, mandara +chamar pela moça de recados os senhores capelães e confessores para pôr termo +áquelle inferno com as suas preces e esconjuros.</p> + +<p>Madre Claudea sabia mais e mais, mas já se não lembrava bem e a sua memoria +fraquejava ao recordar tantas coisas idas... Apertava a cabeça com as mãos e +chorava, num chôro desfeito e infantil que enchia de lagrimas todos os olhos. +</p> + +<p>Só Manoela podia apaziguá-la e por assim dizer chamá-la á realidade e, com a +sua voz persuasiva e grave, fazê-la socegar e adormecer<span +class="pn">{237}</span> confiada como uma pobre inocente. E olhando-a esqualida +e apenas com os ossos cobertos por uma péle resequida e empergaminhada, Manoela +pensava com amargura na linda rapariga que ella fôra, segundo lhe contara Madre +Angelica, amada com paixão, amando com loucura, vítima de interesses e +preconceitos alheios, um dia rebelde e desvairada rompendo com todas as peias, +logo humilhada e cheia de remorsos, entrepondo-se voluntariamente á vida que +engeitara, num terror atavico de escravo que não sabe o que hade fazer á +liberdade, com sacrificios heroicos.</p> + +<p>Tambem Manoela teve um dia, e quando menos a esperava, depois de tantos anos +de sujeição, a sua alforria, e tambem, como ella, a não soube usar, porque a +sua vontade longamente oprimida não se fortalecera e definira.</p> + +<p>Ao princípio, quando chegou, a noticia da morte repentina da mãe, não se +compenetrou bem do que essa morte representava para a sua existencia e apenas +se sentiu surpreendida—não tendo a pretensão de querer sofrer, por costume, o +que de facto não sentia, por aféto.</p> + +<p>Mas, relendo melhor as cartas do irmão e da Ama-Rita, compreendeu por fim +que<span class="pn">{238}</span> era rica e senhora absoluta da sua pessôa. +Isto não lhe podia de pronto dar a sensação da liberdade que por vezes pensara +deveria sentir, porque o hábito lhe dera uma nova servidão, que os timidos e os +prisioneiros conhecem.</p> + +<p>Mas, a pouco e pouco apossando-se de si mesma, resolveu fazer prontamente o +que havia tanto desejava com ânsia: mandar buscar a filha, reconhecê-la como +tal, e conservá-la junto do seu coração e até á morte, triplicando em carinhos +os anos de amargurada saüdade em que a tinham conservado.</p> + +<p>Foi têr com Madre Angelica, que era ainda a Superiora venerada e querida, +que anos antes a acolhera no seu coração maternal.</p> + +<p>Parecia outra, galgando lestamente as escadarias e correndo pelos corredores +que levavam até á céla da Superiora, que já quasi nunca sahia do seu cantinho +cheio de sol. Com os seus trinta e quatro anos vividos numa vida quasi +vegetativa, os traços finos do seu rosto, que fôra duma formosura discreta de +morena, conservavam, apesar de tudo, a delicadeza e a graça ingenua que fôram o +grande encanto da sua mocidade, quando a tinham trazido para ali.</p> + +<p>Nos momentos—raros momentos que elles fôram!—de perfeita felicidade para o +seu<span class="pn">{239}</span> coração, toda a sua pessôa irradiava uma +alegria confiante, que a tornavam singularmente encantadora.</p> + +<p>Quando Madre Angelica levantou os olhos do livro de orações para dar a +licença que ella lhe pedia á porta, foi já com o assombro que causa uma grande +mudança numa pessôa querida, porque a propria voz da recolhida era outra—um +novo timbre de alegria a fazia desconhecivel.</p> + +<p>—«O que é, Soror Manoela?!... Alguma novidade lá por baixo?</p> + +<p>—«Não, Madre Angelica, a novidade é só minha... é uma coisa que eu pensei e +que lhe venho participar...</p> + +<p>E Manoela explanou, diante da pobre freira sobresaltada, o projéto, que tão +simples se lhe afigurara.</p> + +<p>—«A sua filha para aqui, Soror Manoela, pensou isso?!...—perguntou +apavorada.</p> + +<p>—« Sim, para aqui, então não hade sêr para aqui?!</p> + +<p>—«Oh, meu Deus, meu Deus! Para que estou eu guardada, santo +Deus?!—lamentava a Superiora.</p> + +<p>—«Mas eu não compreendo o seu espanto, Madre Angelica! Então não sabia o +motivo porque estou aqui ha dezoito anos? Não foi a Madre Angelica que me levou +á obediencia<span class="pn">{240}</span> a minha mãe adiando até agora a +realisação do meu desejo?!...</p> + +<p>—«Sempre imaginei morrer antes de vêr esse escandalo!... Meu Deus, meu +Deus! Então a minha filha quer dar a essas meninas o público espétáculo da sua +antiga culpa?!... Quer sêr o riso e a fabula de toda a cidade?! O que dirão de +nós?! Com tanta má vontade contra as casas religiosas, com tanta calúnia que se +tem levantado, se Soror Manoela vai agora apresentar publicamente a sua filha, +o que não dirão?!...</p> + +<p>—«E que me importa tudo isso?!—não sou eu livre porventura?!</p> + +<p>—«Oh, livre, livre!... Ninguem é livre de alardear os seus +pecados—respondeu a freira, impacientada.</p> + +<p>—«Não é isso o que nos diz a nossa religião, Madre Superiora. Esconder um +pecado ou culpa é uma prova de orgulho que Deus condena.</p> + +<p>—«Mas não neste caso, em que a sua publicação trará descrédito e vergonha +para a nossa santa casa. O que dirão, sabe, Soror Angelica?... Dirão que nesta +casa a imoralidade chegou ao ponto de se apresentarem publicamente as filhas +das freiras!...</p> + +<p>—«Dirão uma mentira, que eu propria desfarei contando a verdade. Bem sabe, +Madre<span class="pn">{241}</span> Angelica, que se não fiz isto ha muitos anos +foi por seguir os seus conselhos, nos quais me mostrou que devia obediencia a +minha mãe. Por ella, por esse respeito de que me falou para com uma pessôa que +me afastou da casa de meu pai, que me expulsou como a uma criminosa, sofri +dezoito anos dum silencio que considero uma covardia hôje... Ah, dezoito anos +de saüdades por uma filha que se não conhece e pela qual se morre de amôr!... +Ah, Madre Angelica, como fôram crueis comigo! A culpa, se a houve, se uma +criança, como eu era, a pode têr por se deixar iludir por um homem da sua +casta, um amigo de seu irmão... essa culpa bem a tenho lavado com lagrimas de +um coração ansioso por conhecer a sua propria filha. Ah, a Madre Superiora é +cruel: foi-o comigo, quando me fez recuar ante a minha justa vontade; é-o agora +ainda, porque não compreende este meu sentir!... Mas agora sou livre; quero a +minha filha—e heide tê-la!...</p> + +<p>Manoela, sempre tão delicada no dizer e tão submissa, chegava nesse momento +á voluptuosidade das almas sacrificadas quando uma vez chegam á consolação de +poderem articular a verdade, que lhe sahia em palavras que pareciam golfadas, +num atropêlo de quem<span class="pn">{242}</span> esteve encarcerado largos +anos e vê por acaso uma porta escancarada.</p> + +<p>—«E seus irmãos, o que dirão elles desse áto?—arriscou a Superiora +tentando dissuadi-la.</p> + +<p>—«Meus irmãos!?... Que lhes devo eu, Madre Superiora? Ha dezoito anos que +me viram partir de casa, um amaldiçoando-me, os outros nem perguntando a causa +dessa sahida, e só agora me escrevem porque apesar de tudo a lei me confere o +direito de partilhar com elles a herança de nossos pais. Meus irmãos!? Quasi os +não conheço... Nem lhes devo amizade, nem respeito. Á minha filha, sim, a essa +devo todo o meu amôr, todos os momentos do resto da minha existencia.</p> + +<p>—«Soror Manoela, pense bem. Será um escandalo! O que dirão essas meninas do +côro, as criadas, as senhoras que nos protegem e nos dão a sua amizade?!... +Para que estava eu guardada, Senhor!?—E a freira levantava as mãos e os olhos +ao céo, num gesto implorativo, murmurando:—Ah, se Madre Gertrudes fôsse +viva!...</p> + +<p>—«Sim,—volveu a outra com vivacidade, tão pouco do seu costume—tem razão! +Se minha tia fôsse viva, ella seria a primeira a chamar a si essa pobre criança +que tem sido escorraçada de todos como um cão tinhoso.<span +class="pn">{243}</span> E já que a não posso trazer para esta casa que me foi +abrigo nas horas tristes da vida, sahirei daqui. Irei viver com minha filha +livremente...</p> + +<p>—«O que diz, Soror Manoela, deixar-nos!? Quer deixar-nos agora que estamos +com os pés para a cova, e é a unica pessôa que aqui temos para nos ajudar a bem +morrer, acabando em paz na nossa santa casa?!...</p> + +<p>Os soluços sufocaram-na. Tambem ella sofria com a dôr da sua pupila; tambem +dos seus olhos, que já deveriam estar esgotados, por tanto terem chorado, +cahiram lagrimas que Manoela recolheu no coração angustiado.</p> + +<p>Soror Angelica abriu-lhe os braços, e por largo tempo ficaram chorando +juntas o desespero dessa primeira desinteligencia em tantos anos de confiada e +dôce amizade. Foi a freira que quebrou o silencio:</p> + +<p>—«Soror Manoela, mande vir a menina; mas, se lhe merecem alguma +consideração as suas velhas companheiras, não a reconheça desde já +publicamente. Deixe que a morte feche as portas do nosso convento, e então será +completamente livre para fazer a sua vontade.</p> + +<p>—«Mas que nome dará á amizade por uma criança que tão empenhadamente mando +vir para junto de mim?<span class="pn">{244}</span></p> + +<p>—«Não poderá sêr uma afilhada?...</p> + +<p>—«Afilhada?!....—Manoela hesitava, pesando-lhe muito aquella fraqueza como +uma verdadeira covardia. Mas as velhas companheiras de toda a sua existencia de +expulsa mereciam alguma consideração... Cederia.</p> + +<p>Tinha de sêr—mais uma vez sacrificando ao descanso dos outros os seus +sonhos, as suas revoltas, as suas alegrias, a sua vontade.<span +class="pn">{245}</span></p> + +<p> </p> + +<h3><a name="SECTION00416000000000000000">VI</a></h3> + +<p>Alguns dias depois chegava Christina, acompanhada pela Ama-Rita, que chorava +de comoção só com o pensamento de revêr a sua querida menina.</p> + +<p>Manoela foi esperá-las á portaria, escondendo a custo a ansiedade da sua +alma que tumultuava em desejos loucos de tomar a filha nos braços e gritar bem +alto a sua paixão.</p> + +<p>Toda ella tremia, sorrindo contrafeita ás conversas e perguntas das outras +senhoras, amparada pela Madre Superiora, que extraordinariamente sahira do +cantinho da sua céla para a fortalecer naquella suprema prova.</p> + +<p>Veiu por fim a hora da chegada; abriu-se a portaria, e Manoela poude vêr +pela grade entreaberta a Ama-Rita, muito vélhita e trôpega, acompanhada por uma +mulher, uma verdadeira mulher forte e desempenada, que olhava com visivel +curiosidade essas paredes enegrecidas que iam sêr o seu novo abrigo—sahida dum +convento, onde a mãe pagara para a educarem, para entrar naquelle como +recolhida.</p> + +<p>Manoela, á medida que a filha se ia aproximando, subindo a escada para +entrar no<span class="pn">{246}</span> palratorio, ia recuando espavorida, +sentindo um frio de morte no coração, que a asfixiava. É que diante dos seus +olhos estava, não a filha que amava e chamara febrilmente durante anos de +paixão esteril em que se consumira, mas a imagem viva do homem que, na rétidão +do seu caráter, apenas podera desprezar como um sêr ignobil e ascoroso.</p> + +<p>Christina não era nada, nada do que ella tinha idealisado. Não era a +<em>sua</em> filha, era a filha <em>delle</em>, que a natureza, inconsciente na +fatalidade da sua força, lhe punha nos braços.</p> + +<p>Vencendo a repugnancia instintiva que essa semelhança lhe inspirava, foi +sorrisonha e meiga que recebeu a afilhada, mas Christina não correspondeu +tambem a esse apêlo. Os seus olhos garços ficaram frios e dominadores, como +eram habitualmente; a sua bôca não se desdobrou álêm do sorriso escarninho que +lhe errava habitualmente nos labios.</p> + +<p>Foi tristemente resignada que Manoela a acompanhou ao dormitorio cheio de +luz onde ella dormia, e onde, com amoroso cuidado, lhe arranjara a cama velada +com cortinados de inexcedivel brancura, fresca como um berço de criança.</p> + +<p>Ama-Rita seguiu-as falando muito, abraçando de quando em quando a sua +querida menina, que ainda era capaz de reconhecer<span class="pn">{247}</span> +entre muitas apesar de tão mudada e tão triste.</p> + +<p>Christina não despertou a simpatia viva que a mãe inspirara a toda a +comunidade logo ao entrar no convento.</p> + +<p>Pagava com sorrisos contrafeitos os carinhos que lhe faziam, e mal atentava +nos mimos com que a mãe a rodeava. Aborrecia-se e impacientava-se com as pobres +vélhinhas, que procuravam nessa mocidade a alegria que as aquecesse e lhes +reflorisse as existencias a extinguirem-se. Como á mãe, outrora, todas abriram +o coração a esse coração, mas este permaneceu fechado e frio, afastando-as +descaroavelmente.</p> + +<p>Tinha revoltas bruscas, respondia sêcamente, e queixava-se á Ama-Rita de que +a queriam sepultar entre quatro paredes e que a tinham tirado duma prisão para +a fecharem noutra peor. Manoela sofria com todas essas pequenas coisas, que se +iam avolumando, tornando-a odiada por todas as outras companheiras; mas temia +fazer-lhe qualquer observação receando o seu genio, que presentia violento e +áspero...</p> + +<p>Até que um dia Christina, de combinação com uma menina do côro que levou á +rebelião, pôs uma verdadeira nota de escandalo no meio conventual, subindo com +ella ao<span class="pn">{248}</span> telhado para vêr o que se passava no largo +apinhado de gente para a feira.</p> + +<p>Manoela foi obrigada a proceder, advertida pela Madre Superiora, que a +acusava, com a sua voz dôce, de falta de energia para com a filha.</p> + +<p>—«Christina—dizia-lhe meigamente—para que me obriga a admoestá-la? Para +que faz coisas... que não ficam bem a uma menina?...</p> + +<p>—«Mas o que fiz eu, minha senhora? Foi algum crime subir ao telhado para +tomar um pouco de ar, para fugir um instante desta sensaboria?!</p> + +<p>—«Mas a Christina não está bem, não gosta de estar no convento?</p> + +<p>—«Não, minha senhora, não gosto de estar nesta prisão.</p> + +<p>—«Mas oiça: hade sahir, tenha paciencia um pouco. Isto não pode durar +muito; são apenas duas as freiras que ainda existem, e quando ellas morrerem +sahiremos ambas. Continuará aqui a sua educação; a Christina sabe tão pouco que +mal se poderá apresentar no mundo, onde ha muita exigencia para as senhoras da +nossa classe.</p> + +<p>—«Ah, sim!? Conselhos, conselhos tenho ouvido muitos. Eu já tenho educação +bastante, não preciso mais...<span class="pn">{249}</span></p> + +<p>—«Christina!?</p> + +<p>—«Minha senhora!?</p> + +<p>—«Então não está bem ao pé de mim?...—E querendo-a convencer, com a sua +voz dum carinho maternal:—Não diga que não, que é sêr ingrata. Se soubesse +como sou sua amiga!...</p> + +<p>—«Minha amiga?! Se o fôsse, não me prendia aqui como uma criminosa. Se o +fôsse, não me chamava afilhada—quando eu sei muito bem que tenho outro nome... +</p> + +<p>Manoela interrompeu-a com um grito desvairado:</p> + +<p>—«Christina, Christina, cala-te! Tu não sabes, tu não podes compreender +nada do tormento da minha vida!...</p> + +<p>—«Ah, sim, um bom meio de me obrigar a calar, quando eu posso falar porque +sou sua filha—respondeu brutalmente.</p> + +<p>Manoela empalideceu; aos seus ouvidos soou uma zoeira congestiva e o seu +coração quasi a sufocou na onda de sangue que lhe atirou á cara.</p> + +<p>—«Sua mãe!? Está enganada, menina! Nem sequer é minha afilhada. Mandei-a +criar e educar por dó, e é por dó que a tenho comigo.</p> + +<p>Conhecendo o orgulho da filha, pagava essa afronta com afronta maior. Tambem +ella se<span class="pn">{250}</span> sentia ferida; tambem ella tinha +necessidade de revoltar-se contra a crueldade alheia. Tambem ella tinha um +temperamento violento, que a extrema sensibilidade e o prematuro infortunio +tinham enfraquecido mas não aniquilado.</p> + +<p>—«Quer sahir?!—e o seu peito era sacudido por uma gargalhada nervosa, que +tornava ásperas as palavras—quer sahir?! Pois sáia! Que me importa!? Recolhi-a +por dó... não a obrigo a receber um beneficio que não merece.</p> + +<p>Mas Christina, como todos os egoistas, tinha a covardia das resoluções +rapidas. Diante da indignação da mãe, queria recuar, submetia-se, desejava tudo +conciliar...</p> + +<p>—«Sahir, minha senhora?! Mas para onde?</p> + +<p>—«Para onde estiver melhor, para onde quizer. Que me importa a sua vida?! E +é melhor fazê-lo já, já.</p> + +<p>Manoela, com todos os nervos retesados numa crise dolorosa, tinha-se tornado +duma palidez esverdeada, os beiços trémulos e descoloridos, o coração a +afogá-la numa galopada infernal após uma como rapida suspensão de movimento. +</p> + +<p>Ante aquella ordem e o gesto de repulsa que a acompanhava, Christina não +resistiu, dirigindo-se para a porta, de cabeça baixa,<span +class="pn">{251}</span> contrafeita, unicamente arrependida de têr provocado +uma cólera que a privava, dum instante para outro, de todo o bem-estar material +a que se afizera.</p> + +<p>A mãe olhava-a tristemente:—era afinal aquella a filha que tanto amara e +tanto desejara!... Um resto de piedade venceu ainda a indignação e o desgosto. +</p> + +<p>—«Oiça—disse-lhe quando estava quasi ao fundo do dormitorio, fazendo-a +voltar rapidamente a cabeça numa ânsia de esperançada.</p> + +<p>—«Minha senhora, chamou?</p> + +<p>—«Sim, venha cá.—E, sem a fitar, num repelão de magua que lhe causava a +atitude tão diferente da filha, agora de cabeça baixa e ar hipocrita.—Custa-me +abandoná-la para ahi, sem familia nem protéção... Vou pedir a meu irmão para a +receber em sua casa, como afilhada... Se elle consentir, ficará contente?</p> + +<p>—«Sim, minha senhora; seria uma felicidade para mim. Quanto lhe devo, +madrinha!</p> + +<p>—«Não, não me deve nada. Vá á sua vida, e tenha paciencia alguns dias mais. +</p> + +<p>—«Mas... eu queria pedir desculpa...</p> + +<p>—«Não; não me ofendeu. Pode ir.</p> + +<p>Tinha pressa de se encontrar só. Dizia bem: o seu coração não estava +ofendido; estava despedaçado, calcado aos pés, por<span class="pn">{252}</span> +aquella que tinha sido o encanto da sua existencia antes de a conhecer e depois +não fôra senão motivo para desilusões e evocações pungentes.</p> + +<p>O desespero da sua alma contrastava com a serenidade da lua, em crescente, +que se erguia manso e manso num céo translucido, ainda tingido de oirenta +púrpura no poente, e era como um alfange de oiro pronto a vibrar-lhe o último +golpe.</p> + +<p>Soluçava; já não podia mais.</p> + +<p>Pela janela gradeada, os olhos nublados de lagrimas mal distinguiam as +linhas dessa paisagem, revista em cada dia durante anos, e que umas vezes lhe +parecia grandiosa no seu aspéto cenografico, outras banal e triste, conforme as +impressões do seu espirito, tranquilo ou perturbado.</p> + +<p>Sentia um agro prazer em chorar, e em soluçar como uma criança, numa +desconsolação de abandôno e de desespero. O que fôra o seu passado? Apenas uma +existencia sacrificada ao convencionalismo ou ao egoismo alheio. O presente era +essa amargura de se sentir desamparada das suas proprias ilusões—as últimas +companheiras dos que mais sofrem.</p> + +<p>O futuro... Santo Deus! o que lhe traria o futuro se não lhe trouxesse o +hábito de viver para si mesma?!...<span class="pn">{253}</span></p> + +<p>Madre Angelica, prevenida pela Ama-Rita que vigiava sempre a sua menina, +veiu têr com ella, arrastando-se vagarosamente ao longo do dormitorio, como uma +sombra que o luar fazia destacar.</p> + +<p>—«Soror Manoela, o que tem, o que lhe fizeram para estar assim +agoniada?!...</p> + +<p>—«Ai, Madre Angelica!... Estava ahi? Ainda bem, ainda bem que a tenho junto +de mim neste momento. Julguei-me olvidada de todos—até de Deus!...</p> + +<p>—«Soror Manoela....—tornou a velha freira com severidade, adoçada pela sua +muita estima á reclusa—veja o que diz, minha filha. Deus é pai e um pai não +esquece nem aflige propositadamente os seus filhos. Elle ama os mais +amargurados—e serão esses os que mais perto estarão da sua eterna gloria.</p> + +<p>—«Ah, mas custa muito chegar até lá, pelo caminho da vida...</p> + +<p>—«Tenha resignação, Soror Manoela; aprenda no exemplo dado pelo nosso +Salvador: olhe para a sua santa imagem, coberta de chagas e coroada de +espinhos! E tudo quanto sofreu, inocente e bom, foi para remir o mundo, para +salvar aquelles que o flagelavam.</p> + +<p>—«Tem razão... terá razão—soluçou Manoela, humilhada. Mas logo, numa +revolta subitânea que toda a sua devoção não poude<span class="pn">{254}</span> +evitar—mas elle era Deus, sofreu por sua vontade, e morreu logo!! O seu +martirio não foi uma longa vida arrastada na dôr e no suplício! Mas eu que +vivo, eu que tenho vivido anos e anos para sofrer em cada hora mais do que a +morte...</p> + +<p>—«Soror Manoela!...—reprimendou a freira.</p> + +<p>—«Perdão, perdão! Meu Deus, se o sofrimento enlouquece!...</p> + +<p>E de joelhos, aflita, soluçante, apavorada com a sua propria heresia, foi-se +arrastando até ao crucifixo que se destacava no fundo, tremulamente alumiado +por uma lampada de cobre, e ali ficou agarrada aos pés chagados da grande +imagem, num choro convulsivamente desfeito e tragico.</p> + +<p>Madre Angelica apiedou-se, ella que era o unico coração capaz de compreender +e estimar a misera criatura, e tentou levantá-la com as suas poucas forças, e +disse-lhe baixinho, numa voz que era uma consolação para essa alma torturada e +desgraçada:</p> + +<p>—«Vamos, Soror Manoela, diga-me o que assim a faz sofrer. Conte-me a sua +magua—que verá como ella diminue...</p> + +<p>—«Ai, Madre Angelica, morro de saüdades pela minha filha. Trocaram-ma. Não +é esta! Como fui castigada, Santo Deus!<span class="pn">{255}</span></p> + +<p>E a freira, sinceramente surpreendida na sua credulidade ingenua:</p> + +<p>—«O que me diz?! Então a Christina não é a sua filha?... Será possivel?!... +</p> + +<p>—«Não é!—volveu Manoela, sobreexcitada, não reparando sequer na dúvida da +velha Madre.—Não é, não é a minha filha, que alimentei do meu proprio sangue, +que sahiu do meu corpo como a flôr sai da planta. É uma estranha, é uma alma +gelada, que não compreendo nem estimo. Veja-a, veja-a bem, Madre Angelica; +veja-lhe bem os olhos frios e crueis, os seus olhos metalicos como os do +<em>outro</em>! Veja-lhe o riso escarninho, que é <em>delle</em>... +Consulte-lhe a alma soberba e impiedosa, como a da avó... Avalie a minha +desgraça, Madre Angelica! Tenho uma filha que não tem nada, que não é nada de +mim!... E despreza-me, a criaturinha!...—terminou num riso cascalhado, que era +uma derivação do choro histérico que a tomara.</p> + +<p>—«Socegue, minha irmã. Então!?... Isso não é proprio de si...</p> + +<p>—«Sim, tem razão! Eu não devo sofrer assim, mas que fazer?! Não posso, não +posso habituar-me a esta desolação; querer amar a minha filha tal como é e não +como a sonhei, e não poder, não poder!...<span class="pn">{256}</span></p> + +<p>Falou longo tempo, num soluçar entrecortado que a esfrangalhava e +halucinava, e só muito tarde, conseguindo levá-la para a sua céla, onde estavam +mais á vontade, Madre Angelica lhe poude insuflar um pouco de coragem e +resignação para vencer aquella crise dolorosissima.<span +class="pn">{257}</span></p> + +<p> </p> + +<h3><a name="SECTION00417000000000000000">VII</a></h3> + +<p>O irmão de Manoela respondeu afirmativamente á carta muito digna que ella +lhe escrevera, consentindo em receber Christina como se fôsse uma filha.</p> + +<p>A morte da mãe deixara-lhe um vacuo imenso no grande casarão, onde só de +quando em quando os irmãos, já casados e cada um em sua terra, o visitavam por +ceremonia.</p> + +<p>«Christina pode vir—dizia na sua carta á irmã—quando quizer, e na certeza +de que já a estimo como filha.</p> + +<p>Sentia-se só, e estava na idade em que uma nova amizade é um pouco de vida +nova que se insufla na alma amortecida.</p> + +<p>«Manoela, que fôsse tambem; dezenove anos de penitencia teriam por certo +depurado toda a mácula...»</p> + +<p>Esquecia o passado; talvez um pouco de inconfessado remorso o estivesse a +maguar, agora que se sentia tão só e inclinado á vida serena duma familia a +refazer.</p> + +<p>Mas a irmã não ia; agradecia-lhe muito, tanto a prontidão da resposta como a +aquiescencia ao seu pedido e o desejo de a revêr...<span +class="pn">{258}</span> Mas não iria. Tinha ali uma triste missão a cumprir; +não abandonaria, no fim da vida, as companheiras de tantos anos de angustia. +</p> + +<p>Christina partiu alegre, numa ansiedade de prisioneira que reentra no mundo +por que tem suspirado durante longos dias inresignados.</p> + +<p>Manoela ficava sem saüdades dessa filha que fôra durante anos a sua razão de +viver; antes sentia, ao despedir-se, uma vaga sensação de alívio, não isenta de +cavada amargura.</p> + +<p>—«Adeus, Christina,—disse-lhe na hora da despedida—diga a meu irmão que +resolvi fazer o meu testamento deixando-a herdeira do que me pertence. Elle que +administre a casa nesse sentido, pois só quero dispôr do usofruto por causa +destas pobres criaturas que me rodeiam.</p> + +<p>—«Deixe-me agradecer-lhe, madrinha...—e tentava beijar-lhe a mão.</p> + +<p>—«Para quê?...—respondeu sorrindo com ironia e encolhendo os hombros á +sincera alegria de Christina.</p> + +<p>Era com um profundo desdem que atirava essa fortuna, que lhe era +indiferente, para o poder da filha que não a soubera amar nem reconhecera o +presente inestimavel que lhe dera antes, tendo-lhe dado o seu amôr.</p> + +<p>Partiu, acompanhada de Ama-Rita, que apenas levava o encargo de a entregar +ao tio<span class="pn">{259}</span> e voltar logo, pois essa é que, +decididamente, não abandonaria mais a sua menina.</p> + +<p>Para ella a menina era Manoela, que nunca deixava de revêr como fôra: a +filha adótiva do seu coração, a estranha que tomara na sua alma o verdadeiro +logar da filha morta á nascença.</p> + +<p>Mas bastante mudara nos últimos tempos, apesar della se não querer convencer +do que via: a mulher que pouco tempo antes ella encontrara, senão a linda +rapariga que vira partir, lavada em lagrimas, crucificada de dôres, pelo menos +uma mocidade ainda florescente, estendendo-se por um outôno que se anunciava +formosissimo.</p> + +<p>Em poucos mêses Manoela fez uma diferença que saltava aos olhos e afligia +toda a comunidade, que só nella fundava as suas esperanças e as suas alegrias. +O cabelo embranquecia-lhe nas fontes; a péle amarelecida, enrugava-se +impercétivelmente a princípio, mas visivelmente nos últimos dias em que umas +olheiras inchadas lhe davam no rosto o aspéto desolador da doença que lhe +fizera do coração uma pobre maquina sem regulamento.</p> + +<p>Podia dizer-se que ia morrendo aos poucos, das feridas incuraveis que nelle +sentira, durante toda essa existencia de eterna sacrificada, em<span +class="pn">{260}</span> que a alma se lhe esfacelara pelos agudos e impiedosos +espinhos do egoismo alheio.</p> + +<p>Com a doença de Manoela, entrou o desânimo em todas as almas e a morte +encontrou facil caminho entre aquelles organismos depauperados e sem +resistencia moral.</p> + +<p>Todos os mêses havia mortes no convento: ora as freiras, ora as velhas +criadas e recolhidas, lá se iam, umas atraz das outras, em debandada +desoladora. E para ella, a morte que rodeava agora como companheira inseparavel +a velha casa conventual, tão suavemente serena e risonha, era um aflar de azas +sinistro que lhe deixava na alma o luto de toda essa querida familia +espiritual, a unica que verdadeiramente estimava agora.</p> + +<p>O convento acabava dia a dia, hora a hora,—sentia-se, numa halucinação de +presentimentos e presagios tetricos, avisos sobrenaturais e factos estranhos +que causavam a perturbação e o pânico de todas aquellas criaturas enfraquecidas +e mais ou menos doentes, senão do corpo pelo menos da alma.</p> + +<p>Assim, a sineta que no claustro de cima apenas era tocada quando alguem na +casa entrava na agonia, para que as almas se recolhessem com Deus e na sua +ânsia de bem merecer auxiliassem a que estava para partir, a desligar-se, sem +pena nem pecado, desta<span class="pn">{261}</span> vida defeituosa e amarga, +começara uma tarde, á hora calma do Angelus, a tocar freneticamente conclamando +toda a comunidade, que se olhava espavorida e convicta do tragico aviso.—Era +certo: aquella sineta, que uma só vez tocara assim, segundo constava, +anunciando a morte de duas freiras em cheiro de santidade, anunciava agora a +morte, o fim da santa casa que fôra abrigo de tanta pobre alma de mulher +revoltada ou submissa, mas todas crentes numa eternidade de venturas de que não +tinham tido na terra a compensação.</p> + +<p>E todas ellas, velhas e novas, míseras sombras duma outra idade ou raparigas +que a educação conservara afastadas do tempo em que vieram ao mundo, todas +curvaram a cabeça á convicção de que a campa as chamava, de que era a morte que +as libertaria em breve. Sim, ellas estavam prontas, mas quanta tristeza nesse +fim de existencias que já mal se arrastavam, numa vida que não compreendiam +já!...</p> + +<p>Outro dia era um reboliço enorme nas casas deshabitadas, que as fazia tremer +de apavorante susto, pensando nas irmãs mortas ultimamente e em tantas que +descansavam sob as lages frias do claustro.</p> + +<p>E eram vozes misteriosas vindas da terra, perfumes deliciosos e estranhos +que se espalhavam<span class="pn">{262}</span> pelos casarões vasios, fantasmas +silenciosos de freiras mortas havia seculos e que deslisavam sorridentes como +que a animarem as pobres irmãs que assistiam ao fim da sua casa tão amada!... +</p> + +<p>Manoela, apesar de todo o seu bom-senso, não resistia ao contágio e, como as +outras, vivia numa atmosfera de prodigios e de mêdos que mais activava o +progresso do mal que a consumia.</p> + +<p>Mas não abandonava por esse motivo as velhas companheiras, que só nella +achavam conforto para bem morrerem.</p> + +<p>Foi Soror Claudea a última a deixar a vida, que tão dolorida lhe fôra; foi +ella, a pobre louca, quem fechou, como um ponto final simbolico, mais um +periodo de historia feminina, tecida de sacrificios e servidões e ilusões +profundas, e sem um fecundo e nobre e belo ideal de vida!</p> + +<p>Ali ou na familia, no claustro ou no mundo, a existencia feminina pouco +diferia; pouco mais era que esse decorrer estirado de anos partilhados entre +pequenos deveres, insignificantes trabalhos, apagadas alegrias e supliciantes +sacrificios a que ninguem prestava atenção, tão naturais são aos servos e aos +inferiores...</p> + +<p>Morta Madre Claudea, e participado o caso ás autoridades, teve Manoela que +aceitar<span class="pn">{263}</span> o depósito da casa para fazer a entrega +legal.</p> + +<p>Acabada a clausura e o convento, por assim dizer franqueado ao público, +começou um novo martirio para Manoela, que se não podia furtar á indelicada e +faminta curiosidade de toda a gente da cidade, que já depois fazia da visita ao +convento uma distráção a quebrar a monotonia da vida provinciana.</p> + +<p>A querida casa tão recatada e fechada a todos os olhares indiscretos, foi +uma coisa pública escancarada e esquadrinhada por todos os indiferentes, uns +sob a capa amavel da simpatia e da piedade, outros rancorosos ou hostis, +desrespeitando as suas crenças ingenuas ou troçando com as suas alardeadas +superioridades as infantis preocupações daquelles sêres inuteis...</p> + +<p>Manoela afétava uma serenidade que lhe custava anos de vida, não querendo +dar aos indiferentes o espétáculo duma dôr que era apenas sua e das suas pobres +companheiras, as recolhidas, as meninas do côro e as criadas, que em breve +seriam arremessadas para o mundo como folhas inertes e sem vida, e dispersadas +ao sabôr do acaso, que as levaria sabe Deus a que dôres e a que miserias!—tão +mal preparadas como estavam para a luta de cá fóra, quasi todas pobres e<span +class="pn">{264}</span> sem amigos ou familia que as tivesse como suas...</p> + +<p>Já que não podia furtar a casa e as coisas á profanação dos olhos estranhos, +fechava a sua alma num silencio orgulhoso que a tornava respeitada, e +conservava uma certa distinção naquelle acabar de comunidade que sem ella seria +um levantar de feira sem grandeza nem simpatia.</p> + +<p>O inventario feito, a pilhagem executada por ordem superior, viu com +profunda amargura os preciosos <em>Grão-Vascos</em> desprendidos das paredes +seguirem, com os azulejos hispano-arabes que foi possivel arrancar, a pouca +mobilia rica que havia, os livros e as tapeçarias de valôr, encaixotados, +segundo diziam, para os museus de Lisbôa... Eram livros velhos aos cantos, +pelos corredores, bahus e caixões devassados e esvasiados...</p> + +<p>E ainda lhe foi preciso assistir, sem que a desligassem do triste encargo de +testamenteira, á invasão dos operarios que vinham transformar a casa, para novo +destino mais em harmonia com a época.</p> + +<p>Portas escancaradas, divisões deitadas abaixo, montes de caliça pelos pateos +e claustros, deslocadas as fontes murmurosas, mortas as plantas que eram o seu +encanto—aquilo afigurava-se-lhe uma ruina completa, um desabar<span +class="pn">{265}</span> de todo um passado que morria sem têr criado raizes, +como morre sem seiva, inutilisada, a planta nascida em terreno pobre e rochoso. +</p> + +<p>Libertada, porfim, foi acabar de viver para uma pequena casa de campo que a +Ama-Rita descobriu escondida entre tufos de verdura tenra e uma dôce paz +idilica a rodeá-la.</p> + +<p>Sentia-se de mal a peor, e sem esforço deixava-se morrer, desligada da vida, +sem afeições ou deveres que a prendessem.</p> + +<p>Álêm do amôr humilde da simples camponeza que a criara e a cumulava de +carinhos e ternuras na morte, como a rodeara na infancia, nada lhe restava.</p> + +<p>Christina, muito prática, muito á sua vontade, talhara para si um logar +amplo na vida. A última carta do irmão de Manoela pedia-lha em casamento, e a +della, que vinha junta, pedia, pró-forma, o consentimento da madrinha.</p> + +<p>Manoela sorriu: era a sua vingança, uma como rehabilitação do seu sangue, da +sua propria carne expulsa outróra como coisa imunda da casa e da familia.</p> + +<p>Era a vida omnipotente readquirindo os seus direitos, a natureza triunfando +dos preconceitos, que desprezava as convenções e entrava como senhora donde +fôra expulsa como réproba.<span class="pn">{266}</span></p> + +<p>Christina, na sua cega e egoista caminhada para a vida, fôra a força +invencivel da razão e da justiça, fôra a suprema e triunfante palavra do +futuro.</p> + +<p>A mãe, amoravel, generosa e submetida, dera a existencia aos pedaços para +satisfazer as outras.</p> + +<p>A filha, egoista e revoltada, e sem exageros de sentimentalidade que só +provocam a dôr, recebia uma por uma transformadas em alegrias as lagrimas da +mãe.</p> + +<p>Manoela sorria: era a sua rehabilitação, era, saboreada com infinito +gôsto—tão certo é que nenhum sacrificio se perde, aproveitando quasi sempre a +quem menos o merece.<span class="pn">{267}</span></p> + +<p> </p> + +<h3><a name="SECTION00418000000000000000">VIII</a></h3> + +<p>Em toda a noite Manoela não pudera dormir, angustiada, sentindo sobre o +peito um pêso esmagador, sufocada e aflita.</p> + +<p>Com a manhã, que rompera radiosa empoeirando de oiro todo o campo e doirando +as montanhas que se destacavam no fundo roseo do céo, serenava um pouco.</p> + +<p>Sentia-se mais aliviada e quiz arrastar-se até á janela aonde se sentou na +cadeira de braços, que era o seu poiso habitual. Olhava atenta a bandada de +pombas brancas que sahia do pombal em vôos estonteados e incertos, +embaraçando-se nos ramos das laranjeiras que floriam de branco e perfumavam +delicadamente a atmosfera.</p> + +<p>—«Ah, como era linda a natureza, sempre renovada e sempre a mesma,—e como +era bom viver!...</p> + +<p>E a pobre doente ouvia, num encanto de esperança, nunca extincta no coração +humano, as palavras de consolação que a bôa Ama-Rita lhe ia dizendo.</p> + +<p>—«Porque não iam passar uns tempos a casa do sr. Morgado?... Havia de fazer +bem á senhora...<span class="pn">{268}</span></p> + +<p>—«Sim, iriam—concordava Manoela—mas não já, a primavera começara apenas, +e a Ama-Rita bem sabia como eram ainda invernosos e frios esses mêses de +primavera lá na terra.</p> + +<p>Oh, se sabia! Quantas noites enregeladas passara acalentando nos braços a +sua menina; quantos dias fechada em casa porque a neve e o frio não dava +licença, até maio, de se sahir da lareira...</p> + +<p>Manoela, sorrisonha ás recordações da bôa vélhota, prometia fazer essa +viagem—em vindo o bom tempo.</p> + +<p>—«E o menino, quando nascerá?—perguntava a Ama.</p> + +<p>—«Já tens pressa de o chamar teu, não é assim?...</p> + +<p>E comparava, com um certo sorriso ironico a aflorar-lhe aos labios +descórados, a ansiosa espera em que se andava pela vinda do primeiro filho de +Christina e os transes porque ella passara para que a mãe chegasse a este +mundo, onde era agora uma triunfadora. Recordava... e recordar era tornar a +sofrer as horas de desânimo e desespero que por milagre a não tinham atirado +para um hospital de doidos ou para o cemiterio.</p> + +<p>Tornava a vêr a casa em ruinas, onde a criança nascera como um animal +bravio, que<span class="pn">{269}</span> anda a monte, para não ofender com os +seus gritos de filho ilegal as consciencias socegadas...</p> + +<p>Como isso já ia longe e como tudo tinha mudado! Quem lhe diria então que +Christina, a sua filha, essa vergonha viva, essa nodoa na familia fidalga de +que descendia, anos volvidos seria a senhora morgada a quem todos adivinhavam +os desejos e amaciavam o caminho para que désse sem precalço o novo herdeiro da +casa?!...</p> + +<p>E tão desemelhante destino só porque uma tinha um pai que legalmente +reivindicava os seus direitos, emquanto a outra era filha dum homem, que na sua +inconsciencia de bruto apenas cuidara do prazer material e passageiro, com +tanta mais perfidia quanto era maior o seu conhecimento da indulgencia da +sociedade para com as leviandades do homem transformadas em crimes para as +mulheres.</p> + +<p>E Manoela, meditando e revendo toda a sua existencia naquella hora de +passageiro repouso, que a doença lhe dera, pensava com amargurado remorso no +que chamava agora a sua covardia:</p> + +<p>—«Sim, Christina, no impulso do seu egoismo e da sua ânsia de viver, é quem +estava na verdade!<span class="pn">{270}</span></p> + +<p>«A transigencia, a covardia, a fraqueza, mesmo quando são filhas do +sentimento, acarretam consigo o triste premio da sua inferioridade. E assim, +pela covardia a que tinham dado o bonito nome de bondade, ella ali estava sem +familia, sem amigos, sem uma alegria que a prendesse á vida que a ia +abandonando como fardo inutil, que já não presta para nada.</p> + +<p>«Não, não se deve transigir, não se deve esconder uma áção que em nossa +consciencia não é um crime, embora a sociedade na sua hipocrisia a mostre, +ferozmente, como tal!</p> + +<p>«A sociedade acostuma-se a respeitar os fortes e só pede contas severas aos +fracos, aos que transigem, aos que a ella se não adaptam ou a não dominam, as +duas unicas fórmas de a vencer.</p> + +<p>«Christina tivera razão: ella não fôra uma bôa mãe, não soubera desempenhar +o seu nobre papel, ferindo implacavel porque fôra ferida, cobrindo com a sua +revolta o destino da criança que chamara a uma vida que lhe não pedira. Não +tinha desculpa. Fôra necessario que a filha, no seu bom-senso de bastarda, +soubesse encontrar a desforra no sacrificio do proprio corpo procurando nesse +casamento sem amôr o nome que ella lhe negara.<span class="pn">{271}</span></p> + +<p>«E valia muito o amôr?... Ah, ella sorria, com dó de si mesma, recordando +como se entregara toda inteira a esse sentimento, o corpo palpitante, a alma +fremente, sem uma reserva, sem um pensamento mesquinho de dúvida, com a pureza +duma criança, cuja alma não fôra maculada pela desconfiança—e o que lhe deram +em troca?!...</p> + +<p>«Pois bem, ia reparar a sua falta.</p> + +<p>E, chamando a Ama, que dava uma certa ordem ao quarto, respeitando a sua +meditação, Manoela pediu a escrevaninha portatil que estava sobre a mêsa de +cabeceira, pegou num papel e ia a escrever...</p> + +<p>Depois suspendeu-se, sorriu com amargura, e pôs a penna de parte. O que ia +fazer com essa declaração a juntar ao testamento?!</p> + +<p>Christina já não precisava do seu nome, mais amplamente coberta com o do +marido que a tomara como filha de pais incognitos, e a sua declaração +extemporanea apenas lhe traria vergonha inutil e dissabores...</p> + +<p>Não a fazia—era já tarde para isso.</p> + +<p>Recostando-se ás almofadas que a Ama-Rita lhe ageitava na cadeira, sentiu-se +agoniada, pediu agua, depois fechou os olhos, franziu frouxamente os labios +descórados, e a cabeça tombou-lhe para o lado sem vida.<span +class="pn">{272}</span></p> + +<p>—«Deixou de sofrer!—dizia a velha, soluçando alto, para a criada e para a +mulher do quinteiro que chamara aflita na primeira impressão de inevitavel +surpresa. E alisava-lhe os cabelos sobre a fronte, juntava-lhe as mãos numa +atitude de prece. Deixou de sofrer, coitadinha! Toda, toda a vida—uma +sacrificada!...<span class="pn">{273}</span></p> +</div> + +<p> </p> + +<p style="text-align:center;">INDICE</p> + +<p>Pag.</p> + +<p><a href="#SECTION00100000000000000000">A Vinha <span class="direita">7</span></a></p> + +<p><a href="#SECTION00200000000000000000">A Feiticeira <span class="direita">37</span></a></p> + +<p><a href="#SECTION00300000000000000000">Diario duma criança <span class="direita">81</span></a></p> + +<p><a href="#SECTION00400000000000000000">Sacrificada <span class="direita">181</span></a></p> + +<p><span class="pn">{274}<br>{275}</span></p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:center;">OBRAS DA MESMA AUTORA</p> + +<p> </p> +<ul style="margin-left: 0em; width: 75%; font-size: 0.8em;"> + <li>A<small>MBIÇÕES</small> (romance) <span class="direita">700</span></li> + <li>I<small>NFELIZES</small> (historias vividas). Esgotado.</li> + <li>A <small>BEM DA </small>P<small>ATRIA</small>: Bibliotéca de propaganda + educativa e distribuição gratuita: + <ul> + <li>1.º <em>As mães devem amamentar seus filhos.</em></li> + <li>2.º <em>A educação da criança pela mulher.</em></li> + </ul> + </li> + <li>B<small>EM PRÉGA FREI </small>T<small>HOMAZ</small> (comedia) <span class="direita">300</span></li> + <li>T<small>EATRO INFANTIL</small>: + <ul> + <li><em>A comedia da Lili</em> <span class="direita">200</span></li> + <li><em>Um sermão do Snr. Cura</em> <span class="direita">60</span></li> + </ul> + <li>A G<small>ARRETT.</small> No seu primeiro centenario.—De colaboração com + Paulino de Oliveira <span class="direita">500</span></li> + <li>G<small>ARRETT NO </small>P<small>ANTHEON.</small>—De colaboração com + Paulino de Oliveira <span class="direita">50</span></li> + <li>A <small>NOSSA HOMENAGEM A </small>B<small>OCAGE</small> <span class="direita">100</span></li> + <li> Á<small>S + MULHERES PORTUGUÊSAS.</small>—Livro feminista de critica e propaganda <span class="direita">600</span> + </li> + <li>A <small>MINHA PATRIA.</small>—Livro aprovado oficialmente para premios + escolares. Encadernação de luxo, desenho de Roque Gameiro, 400 paginas em + magnifico papel e inumeras ilustrações <span class="direita">1$000</span></li> + <li>P<small>ARA AS CRIANÇAS</small>: Publicação mensal ilustrada fundada em + 1897. Publicados 15 volumes com magnificas gravuras. + <ul> + <li><em>Contos tradicionaes portuguêses</em>, 10 volumes.</li> + <li><em>Contos de Grimm</em>, traduzidos do alemão. 1 volume.</li> + <li><em>Alma infantil</em>, original de Anna de Castro Osorio</li> + <li><em>Animais</em>, original de Anna de Castro Osorio</li> + <li><em>Boas crianças</em>, original de Anna de Castro Osorio</li> + <li><em>Historias escolhidas</em> (tradução diréta do alemão). + <ul> + <li>Cada volume desta publicação avulso. <span class="direita">400</span></li> + </ul> + </li> + </ul> + </li> + <li>I<small>NSTRUÇÃO E EDUCAÇÃO</small> (Festas infantis).—Folheto de + critica pedagogica <span class="direita">100</span></li> +</ul> + + + + + + + +<pre> + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of Quatro Novelas, by Ana de Castro Osório + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK QUATRO NOVELAS *** + +***** This file should be named 29968-h.htm or 29968-h.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + http://www.gutenberg.org/2/9/9/6/29968/ + +Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed +Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This book was +produced from scanned images of public domain material +from the Google Print project.) + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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