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+The Project Gutenberg EBook of Quatro Novelas, by Ana de Castro Osório
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: Quatro Novelas
+
+Author: Ana de Castro Osório
+
+Release Date: November 6, 2009 [EBook #29968]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK QUATRO NOVELAS ***
+
+
+
+
+Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed
+Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This book was
+produced from scanned images of public domain material
+from the Google Print project.)
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+QUATRO NOVELAS
+
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+
+Composto e impresso na Typographia França Amado,
+rua Ferreira Borges, 115--Coimbra.
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+
+ANNA DE CASTRO OSORIO
+
+QUATRO NOVELAS
+
+
+
+ A VINHA.
+ A FEITICEIRA.
+ DIARIO DUMA CRIANÇA.
+ SACRIFICADA.
+
+COIMBRA
+
+FRANÇA AMADO--EDITOR
+
+1908
+
+
+
+
+I
+
+A Vinha
+
+
+
+
+A VINHA
+
+
+Luis sahira para o colegio ainda criança e de lá para as escolas
+superiores; assim os anos tinham decorrido sem que nunca mais visitasse
+a terra natal.
+
+Dez anos, dez longos anos se tinham passado, e só agora voltava, como um
+foragido ou como um ladrão, que enlouquecido de saudades arrisca a vida
+e a liberdade para revêr a terra que primeiro conheceu e é sempre para o
+homem a mais querida, a mais bela, a melhor de todas.
+
+E--pobre Luis!--era na verdade como um foragido que voltava,
+escondendo-se para que o não vissem, envergonhado dessa fraqueza
+sentimental que já não ia nada bem com os seus galões de guarda-marinha
+e o seu bonito bigode a ensombrar-lhe o labio superior.
+
+E voltava amesquinhado aos seus proprios olhos, elle que se julgava tão
+importante pelos estudos transcendentes, que seguira com certo brilho,
+porque só agora compreendia o sacrificio de cada momento, a luta de cada
+hora, o verdadeiro heroismo obscuro e respeitavel que a sua educação
+representava na vida da familia.
+
+Compreendia, afinal, um pouco tarde demais para que a consciencia lhe
+ficasse limpa de remorso, quanta mentira santa fôra preciso inventar,
+com quanta delicadeza envolver as palavras, quanta historia arquitétar
+para que elle aceitasse sem desconfiança o propositado afastamento em
+que o tinham conservado durante esse longo periodo de tempo.
+
+Chegara por vezes a pensar, as poucas ocasiões em que reparara nisso,
+que o desprezavam, que era um pária, que os pais afastavam receando a
+vergonha de o apresentarem como seu herdeiro e continuador.
+
+Dizia-lhe a consciencia que tal procedimento não era justo, porque--se é
+verdade que não fôra nunca um estudante desses que se mostram com
+desvanecido orgulho, carregados de distinções e premios que esmagam o
+proprio dôno e irritam os companheiros,--é certo que o curso lhe sahira
+limpo, seguido como de empreitada, numa indiferença risonha de quem o
+levava com uma perna ás costas.
+
+Lembrava-se de pensar ás vezes no facto, um tanto irritante, do seu
+afastamento sistematico da casa paterna, e pôr-se consigo a acusar os
+pais; mas á mais leve referencia acudia uma carta de Eduarda, que varria
+do seu coração, voluvel e bondoso, a desconfiança cruel.
+
+Era sempre a mesma delicadeza inteligente, procurando as palavras para
+não maguar nem esclarecer, fugindo graciosamente duma pergunta mais
+nitida, dizendo pouco em longas cartas, que satisfaziam plenamente a sua
+ansiedade de momento mas muito deixavam escondido nas dobras duma alma
+que se não pode expandir, sob pena de infelicitar os outros.
+
+Eduarda, apenas mais velha dois anos do que Luis, fôra desde criança uma
+pequena figura simpatica de mulher, dessas mulheres adoraveis sem
+deixarem de ser profundamente humanas, ou talvez por isso mais adoraveis
+ainda, que tudo compreendem, por tudo se interessam, para todos são a
+providencia, o refugio e a esperança.
+
+Quando fôra resolvida a sua entrada para o colegio militar, Luis ficara
+radiante. É que essa admissão fôra o seu maior empenho, a ambição de
+largos mêses e dias--desde que na terra aparecera, a proposito de
+qualquer festa pública, um regimento de lanceiros, que o tinha
+enlouquecido com o seu ar soberbamente marcial e as bandeirolas,
+vermelho e branco, a panejarem ao sol.
+
+Não pensava noutra coisa senão naquella sua entrada para o colegio em
+que todos os alunos são já pequeninos homens, pequeninos militares de
+botões reluzentes, barretina, dragonas, e duma compostura grave de
+disciplina rígida.
+
+Fazia projectos, contava as peças do enxoval, que a mãe lhe ia
+empilhando na mala, lia e relia a relação das coisas que lhe mandavam
+levar e prometia a si mesmo só quebrar o seu, mialheiro de barro quando
+tivesse já a farda, para ir tirar o retrato de grande uniforme.
+
+Mas quando chegou o dia da partida e viu á porta o carro em que devia
+seguir, os criados arrastando as malas, o pai gritando porque não
+estavam as coisas em ordem--e o comboio não espera!--quando viu a mãe
+soluçante por vêr partir o mais novo, o mais fraquinho, o
+preferido--todos o sabiam--o Luis perdeu a coragem. E chorou, chorou
+intensamente, num soluçar fundo, proprio dessas naturezas impulsivas,
+febris, doentias, a que os nervos emprestam uma acuidade dolorosa,
+embora passageira, nas sensações.
+
+E ella, a irmãsita, já com a orla do vestido a procurar o cano da bota,
+a trança loira cahida pelas costas, o corpo airoso e fino ainda sem o
+quebrado das linhas feminis, não tivera lagrimas que correspondessem
+áquella dôr excessiva, nem palavras que consolassem aquella alma desolada.
+
+Sorria até, para esconder uma ligeira tremura significativa no labiosito
+ainda criancil, mas o seu olhar era limpido, e a face, ligeiramente
+enrubecida, em coisa alguma trahia o esforço enorme de vontade que a sua
+atitude representava. É que era realmente heroica aquella criança que
+represava as lagrimas, bem naturais no entanto, para encobrir o seu
+legitimo desgosto ao vêr partir o irmão, o seu companheiro e amigo mais
+certo.
+
+Porque Luis e Eduarda eram, mais do que pelo sangue, que tantas vezes
+corre desemelhante em filhos da mesma arvore, irmãos pela camaradagem no
+estudo e nos passeios, nas distrações como nos desgostos, nesses tão
+maguados desgostos infantis, que todos desprezam e são talvez os mais
+violentos e os mais desesperadores de toda a vida.
+
+Mas Eduarda tinha a rara delicadeza de certas almas de excéção, que em
+si concentram a propria dôr e só têm para a dos outros carinho e
+consolo.
+
+Se o Luis soubesse o que ella sofria, ficando ali a vê-lo partir,
+debruçado na portinhola da carroagem e ainda a recomendar-lhe as suas
+coisas--os animais, as flôres, os brinquedos abandonados!... Se elle
+soubesse como a pequena sentia já a solidão em que ia ficar, naquella
+pobre terra sem diversões e sem conhecimentos, ella que não cultivara
+mais amizades infantis álêm da delle!...
+
+Nos primeiros tempos as cartas amiudavam-se: elle, contando tudo quanto
+via de novo e o trazia em contínua sobreexcitação, em duas linhas
+sugestivas, sempre apressado por falta de paciencia para escrever; ella,
+narrando detalhadamente os pequenos casos domesticos, que tanto
+interesse despertam sempre ás crianças. Eram recordações de passeios e
+brinquedos, a relação de todas as pessôas avistadas, os amigos da casa
+que perguntavam sempre por elle, os seus recados, as suas proprias
+palavras.
+
+Luis bem o conhecia: eram verdadeiros _recados_ aquelles,--não
+banalidades ceremoniosas--que evocavam, á sua recordação saudosa, as
+figuras amigas que as enviavam, de longe.
+
+Depois, no fim das cartas, como repique festivo de sinos em vespera de
+dia santo, a esperança das férias, a contagem dos dias que faltavam
+para essa felicidade tão desejada e retardada sempre.
+
+Quando se aproximava esse abençoado mês de setembro e elle já só
+esperava a ordem para embarcar no grande comboio resfolegante que o
+levaria ao conchêgo da familia e ao abrigo das velhas paredes amigas,
+que tinham visto nascer e crescer umas poucas de gerações de rapazes
+como elle, uma carta vinha preveni-lo de que aguardasse o pai para
+seguirem ambos para uma dessas famosas praias do litoral onde um mês se
+passa sem se sentir na vida duma criança.
+
+Assim foi passando o tempo: aos anos de colegio seguiram-se os da
+escola, sempre despreocupados e alegres, sem que coisa alguma o
+preparasse para o martirio incomportavel que estava agora sofrendo, sem
+que coisa alguma lhe fizesse supôr o doloroso drama, obscuro e
+martirisante, que lá longe se ia desenrolando lentamente, esmagando com
+ferocidade os corações que tanto lhe queriam...
+
+Tambem, que satisfação, livre de preocupações, elle teve quando recebeu
+aquella carta em que Eduarda lhe dizia, entre coisas ligeiras e
+banais:--que tinham resolvido vender a velha casa e o quintal para irem
+viver para Lisbôa. Ficariam assim mais perto delle, quando as suas
+longas viagens o deixassem descansar por algum tempo com a familia.
+Assim estariam juntos durante todo o tempo em que estivesse em Portugal.
+
+Que alegria a delle! Nem sequer lhe passou pela cabeça a lembrança dessa
+velha casa, que os abrigara, carinhosa e maternal, como tinha já
+abrigado os pais e os avós, e vivia como sêr consciente dentro do fundo
+da sua alma.
+
+Como Eduarda, querendo poupar toda a mágua ao seu coração mal preparado
+para a dôr, mostrava bem conhecer essa natureza de amoravel e
+sentimental, que um nada arrebata á mais acêsa alegria como á mais
+desolada tristeza!...
+
+A vida intensa das grandes cidades, que mais a fariam a ella viver
+adentro de si mesma, concentrando-a no seu eu, tirava-lhe a elle a
+sensação nitida da sua vida propria e, apanhando-o nessa engrenagem
+barulhenta e niveladora, dava-lhe apenas as ideias e os sentimentos de
+toda a gente.
+
+Agora, com a vinda dos pais e da irmã, sentia-se bem feliz para nem
+sequer se deter a pensar nos provaveis motivos que tinham determinado
+aquella resolução.
+
+Como estaria Eduarda, que deixara ainda uma criança, tantos anos
+volvidos sem se verem? E a mãe? Dizia-lhe sempre, nas suas cartas, que
+se sentia muito velha e doente, mas elle sorria-se confiante e não a via
+senão como a deixara, sorridente, laboriosa e desempenada, a alma de
+toda aquella colmeia que era a casa paterna.
+
+Com que impaciencia febril esperou o dia marcado para a chegada, e como
+logo de manhã, ao alvorecer desse dia bemdito, se sentiu outro, alegre
+até á loucura de ter vontade de abraçar toda a gente, de saltar pelas
+ruas como uma criança, sentindo-se leve, surpreendendo-se diferente, mal
+cabendo na sua bonita farda de guarda-marinha!
+
+Ás horas da comida não conseguiu engulir com desfastio os costumados
+manjares da velha hospedeira, a quem deu um abraço apertado
+prometendo-lhe trazer a familia para que os conhecesse,--havia ella de
+vêr como eram seus amigos...
+
+E a velha D. Engracia, que tantas vezes se arreliara com _as suas
+telhas_, como ella dizia, sentiu que as lagrimas lhe vinham aos olhos
+com a comunicativa sensibilidade daquella alma que se escancarava
+para lhe mostrar quanto sentia de bom.
+
+Muito antes da tarde já elle se dirigia para o Rocio, na ideia
+inconsciente de se aproximar da estação onde os iria esperar, algumas
+horas mais tarde.
+
+Falando com um e com outro, discutindo um pouco sem se interessar muito
+nas conversas, entrando no Tavares Cardoso para folhear um livro, indo
+ao Martinho beber uma cerveja, mastigando cigarros sobre cigarros,
+impaciente e febril, mas alegre e falador como nunca os seus amigos o
+tinham visto...
+
+A hora chegou por fim, porque todas as horas chegam, por mais doloroso
+ou lento que seja o seu caminhar esmagante, como fogem todas, por mais
+que as queirâmos retardar um instante nos raros momentos que nos trazem
+felicidade. Elle lá estava, desde muito cedo, esperando na gare,
+sentindo o coração bater desordenado, quando ao fundo do túnel despontou
+a luz vermelha da locomotiva e o guarda tocou a corneta anunciadora, ao
+passar nas agulhas... Depois, que estranha sensação a sua ao vêr as três
+cabeças, que resumiam todos os seus grandes afectos, debruçarem-se nas
+janelas do vagão, sorrindo-lhe e reconhecendo-o de longe! E elle,
+que só reconheceria o pai, com certeza, se os não esperasse, tal era a
+diferença que faziam as duas: Eduarda, uma mulher perfeita, sem nada que
+recordasse a criança esbelta que deixara; a mãe, debilitada e
+encanecida, tão vélhinha, que não podia afirmar que não houvesse engano.
+
+Oh, mas a vélhinha é que o reconhecia bem, ao seu Luis, beijando-o e
+abraçando-o com frenesi e achando-o mil vezes mais bonito do que ao
+retrato.
+
+Tambem Eduarda o abraçou alegremente e achou muito bom, apesar de um
+pouco menos forte do que ella, que se talhara e desenvolvera longe da
+atmosféra falsificada da cidade, no puro ar criador da montanha.
+
+Chegou tambem a vez da Maria o abraçar,--Maria; a criada fiel que os
+acompanhara sempre, que era alguem na familia, uma pessôa que a todos
+satisfazia e com quem todos contavam.
+
+Inolvidavel momento aquelle que os reunia, depois de tão grande e
+inexplicavel afastamento; encantador de contentamento esse primeiro
+repasto, num restaurante trivial da Baixa, para darem tempo a que as
+bagagens podessem chegar á casa muito alegre que elle escolhera, com
+vistas sobre todo o estuario azul do Tejo, onde a lua entornava,
+nessa noite gloriosa de junho, a sua luz branca e leitosa, vagamente
+adormecedora...
+
+Luis sentiu-se orgulhoso com os elogios que a sua escolha cuidadosa
+mereceu á irmã e queria convencer a mãe de que nada havia que se
+comparasse ao espétáculo grandioso de toda essa cidade picada de luzes,
+estirando-se ao longo do rio, que centenares de pequenos faroes faziam
+tambem palpitar e viver, como outra cidade flutuante.
+
+A pouco e pouco, abertas as malas para que tudo fosse colocado no seu
+logar, Luis começou a reconhecer com enternecimento as velhas coisas que
+os seus olhos de petiz haviam conhecido e admirado. Foi com alegria
+quasi infantil que levou á mãe a velha caixa de xarão, herança da
+avósinha, onde eram guardadas cuidadosamente as pequeninas coisas
+preciosas que queriam roubar á curiosidade, nem sempre segura, das suas
+mãositas de criança.
+
+Uma chavena, uma jarra, qualquer coisa emfim que ia aparecendo, lhe ia
+trazendo uma saudade da infancia longinqua e que esvoaçava agora na sua
+alma como farrapo branco de nuvem distante a dissolver-se num rubro poente.
+
+A mãe, que um momento ficara só junto delle, chorava silenciosamente,
+olhando-o com ternura.
+
+Luis não compreendia--chorar!?... Então não estava satisfeita por estar
+em Lisbôa, com elle? Não viera por sua muito livre vontade?
+
+E então a pobre senhora, incapaz de por mais tempo o iludir, desejando
+mesmo--no egoismo inconsciente dos que sofrem--associar todos á sua dôr,
+não se fez rogada e disse, disse tudo, tudo quanto de amargurado e
+desesperador lhe tinham dado esses anos em que o não vira.
+
+--Fôra uma luta tremenda e desigual, essa que o pai sustentara durante
+anos, contra tudo e contra todos, sem perder a energia, sem trepidar nem
+recuar. Primeiro, ia muito bem nos seus negocios--o Luis devia
+lembrar-se... Depois, as fianças, os roubos, a má fé de uns, a inveja
+mesquinha de outros, abalaram-lhe o crédito, envolveram-no em questões e
+demandas, fizeram-no perder uma a uma todas as suas belas propriedades,
+as compradas á custa de muito trabalho e as que herdara pessoalmente, e
+até a sua propria casa de moradia, quando já nada mais tinha que
+desafiasse a cubiça alheia, lá se fôra embora, com o quintal. Sim, esse
+fôra o último e o mais certeiro dos golpes, que sangrava ainda e tarde
+se poderia cicatrisar na sua pobre alma dolorida.
+
+As lagrimas corriam sem parar pelas pálidas faces da bondosa criatura,
+que assim foi contando, uma a uma, todas as suas dôres, não poupando
+Luis a nenhum dos incidentes, a nenhum detalhe desse martiriologio
+incomportavel de lutar com os maus, os inferiores, esses que acorrem
+sempre a lançar a sua pedra quando presentem que a fortuna abandonou os
+que ha pouco invejavam.
+
+Luis, calado, ouvia, sem a compreensão bem fixada da realidade, olhando
+com uma persistencia dolorosa essa vélhinha que chorava um passado em
+frangalhos, e era a sua mãe, a mesma que elle deixara rica e tão feliz
+dez anos antes.
+
+--E porque lhe não tinham dito o que se passava?! Porque o tinham
+alheado assim de todos os desgostos da familia, como se fosse um
+estranho? Não era filho como os outros, não devia ser igualmente filho
+para as alegrias como para os sofrimentos?...
+
+--Ah, sim! Por sua vontade ter-lhe-ia contado logo o que se ia passando,
+mas nem o pai nem Eduarda o consentiram para que elle se não
+impressionasse e desviasse a atenção dos estudos, que era preciso levar
+ao fim sem uma falta.
+
+Luis padecia naquelle momento uma tão insofrivel amargura, que no fundo
+do seu coração, humanamente egoista, sentia uma onda de
+reconhecimento pelos que o tinham poupado daquella maneira... Devia-lhes
+uma pacifica e alegre mocidade, que lhe preparava uma serena vida futura.
+
+Então, nesse impulso que dá a propria revolta em toda a criatura contra
+a dôr que a esmaga, começou a consolar a mãe, consolando-se a si mesmo.
+
+O pai, com o emprego que arranjara numa das principais casas bancarias
+que até ao fim o tinham sustentado, sustentando-lhe o seu crédito para a
+liquidação voluntaria, ganhava certamente mais do que negociando por sua
+conta. Depois, elle não estava ali com tudo quanto ganhasse para lhes
+dar, tudo sendo pouco, é claro, para o que lhes devia?!...
+
+E a mãe sorria por entre lagrimas, numa grande consolação de
+apaziguamento, porque a sua dôr encontrava abrigo em outra alma que a
+lamentava.
+
+--Sim, a situação economica não era de todo desesperada. Dispensariam
+apenas o superfluo, a que se tinham habituado, e mesmo esse não
+completamente, porque na liquidação grande parte do seu dote podéra
+ficar intacto.
+
+--Oh, elle compreendia bem que não era a questão material a que mais os
+afligia, era a recordação dum longo passado de paz e de desanuviadas
+venturas que já ia longe; era a amargura desses últimos anos em que
+todas as suas energias se concentravam em aparentar uma soberba que não
+sentiam, em mostrar um orgulho que era feito de toda a condensação
+amargurada da sua dôr por vêrem o egoismo e a maldade dos que ferozmente
+lhe espiavam as lagrimas e as decéções.
+
+--Elle compreendia bem, finalmente, que o que mais lhe custara fôra o
+deixar essa casa que representava tanto na vida afectiva da sua bôa alma
+de sofredôra.
+
+
+Desde esse dia nunca mais Luis perdêra aquella ideia, que se tornou uma
+obsessão: ir visitar a velha casa e reviver diante das suas paredes, que
+lhe falariam do passado, todo o martirio a que o tinham furtado
+generosamente. Em vão Eduarda o dissuadia desse capricho do sentimento,
+que classificava de criancice; em vão ella lhe dizia que o passado
+estava morto e ninguem mais o poderia resurgir; que não havia imaginação
+nem vontade humana capaz de fazer voltar atraz o curso da vida, que para
+elles se precipitara numa cachoeira desatinada e agora ia deslisar num
+mais bello e sorridente campo.
+
+Mas não! Elle fizera desse projecto o seu sonho, o seu misterio de
+apaixonado, e iria, sem que ninguem o podesse impedir de o fazer.
+
+A ideia de que a casa que fôra o lar abençoado de toda a sua familia já
+lhes não pertencia, desvairava-o. Iria, acontecesse o que acontecesse,
+num romantico impulso de sentimento--que mal compreenderia quem lhe não
+tivesse compulsado os arrebatamentos de apaixonado--evocar todo o
+passado e embeber-se bem na dôr das eternas e irremediaveis separações.
+
+Agora, elle ali vinha, como um namorado, revêr pela ultima vez as coisas
+que já lhe não pertenciam, e que indiferentemente iam tornar-se para
+outros as suas coisas, os seus afectos.
+
+Para que viera?--pensava já--porque não se deixara guiar pelos conselhos
+da corajosa rapariga que tão alegremente ia entretecendo um novo ninho
+com os restos dispersos do antigo, desfeito pelo temporal? Porque
+viera?!...--É que queria sofrer, ali mesmo, tudo o que tinham sofrido
+aquelles que amava.
+
+Fugir a isso parecia-lhe uma covardia excessiva. Imaginava sentir assim,
+pelo poder evocativo da sua memoria despertada pela visão, lagrima por
+lagrima, desespero por desespero, vexame por vexame, revolta por
+revolta, a vulgar mas horrivel tragedia desse incidente numa familia
+burguêsa.
+
+No vagão onde passou a noite, nem uma só vez os olhos se lhe fecharam
+num sôno reparador. Os nervos em sobreexcitação faziam-no reviver, na
+memoria, todas as circunstancias torturantes em que se déra o desastre
+final. Sentia uma doentia voluptuosidade em pensar nos tormentos por que
+o seu coração teria passado se a elles tivesse assistido.
+
+Os nervos irritados por tantos dias de ansiedade obrigavam-no a
+agitar-se numa febre de movimento, um desejo de choro, de gritos
+convulsivos, que lhe desoprimissem o peito...
+
+Cada nome de estação gritado monotonamente, cortando na noite arrastada
+o sôno dos viajantes, era para elle o martelar desesperador do condenado
+que assiste ao levantar da sua propria forca.
+
+Em breve, mais um desses gritos ouvidos, a perder-se na noite, e estaria
+na linda terra, que revia: toda branca e faiscante nos dias ensoalhados
+de verão, varrida pelas nortadas ásperas da serra, nevada como uma noiva
+nas invernias inclementes--com as suas paisagens cristalisadas de sonho;
+as suas feiras rumorosas; as ladainhas atravez dos campos em flôr, pelo
+despertar das primaveras amorosas; as romarias barulhentas, sob um
+sol sufocante de canícula... Depois, os descantes; os natais, em que
+fôra, romeiro piedoso e crente, ao presepe do menino; as _janeiras_,
+cantadas á sua porta e em que os versos laudatorios lhe agradavam
+sempre; as semanas santas, com procissões na rua, por esse agonisar de
+sol doirado em que um Deus assistia á morte doutro Deus...
+
+Tudo isso elle revia, todo esse passado distante se apoderava da sua alma
+e o fazia viver por momentos uma existencia, que se não repetiria mais.
+
+
+Agora, em frente da antiga casa que lhe enchêra de sonhos os últimos
+mêses de vida, Luis sentia-se frio.
+
+Quizera sentir muito e não sentia nada. Nenhuma comoção, nenhuma dôr--na
+sua alma gelada.
+
+Nem a casa lhe parecia a mesma--e decerto não era!--cortadas as
+trepadeiras que a revestiam de verde e lilaz e que a perfumavam
+dôcemente com os cachos exoticos das glicinias rôxas. Até as janelas
+tinham sofrido o insulto de serem repintadas de vermelho, e as paredes
+estavam caiadas de branco, essas paredes de granito polido que tinham ao
+sol faiscamentos de mica e escureciam sem se resentirem das
+intemperies, suavemente, como se envelhece sem sobresalto nem luta,
+quando se vive sem preocupações.
+
+Já não era a mesma--nada lhe dizia ao seu coração que era a mesma.
+
+Lançou pelas janelas abertas um olhar de indiferente curiosidade para o
+interior e então quasi lhe deu vontade de rir, tanto era banal o
+mobiliario que a guarnecia, tão charramente burguêsa e sem gosto a
+decoração que a tornava uma casa trivial de _endinheirados_, de
+_adventicios_ sem educação.
+
+Fechou os olhos, concentrou-se por segundos na evocação do passado, quiz
+enganar-se a si proprio, mas não o conseguiu; a sua alma quedou-se, por
+fim, numa frieza e numa desolação de completo desmoronamento.
+
+Faltava-lhe o quintal; voltou-se para seguir ao longo do muro, deitando
+um olhar prescrutador para o pequeno jardim gradeado, que era no seu
+tempo um tufo apenas de verdura, e sofrêra, como a casa, a influencia
+dos novos dônos.
+
+Sim, no quintal ao menos iria encontrar as mesmas arvores, os mesmos
+recantos amaveis de sombra, o mesmo perfume saudavel do pomar e da horta
+verdejantes.
+
+E seguia, rapidamente, olhando o muro de pedra solta e que era bem o
+mesmo que bastas vezes saltara para comer os bellos cachos de uva
+ferral de grandes bagos córados.
+
+Isso não mudara, ao menos; era o mesmo que conhecera e lhe fazia lembrar
+tantas garotices, tanta alegria passada...
+
+Quando chegou ao alto do caminho descobriu a parte do quintal que menos
+estimava, porque tinha sido adquirida ulteriormente, poucos anos antes
+da sua ida para o colegio.
+
+Lembrava-se bem de quando o pai comprara aquelle grande campo de
+oliveiras e terra centeeira a entestar com o pomar, que sempre tinham
+desejado na familia e por teima de camponios rudes lhes não pertencia
+desde muito.
+
+Como elle ria, satisfeito, olhando a mulher, muito contente tambem, ao
+vêr cahir uma a uma as pedras do muro que ia fazer do seu pequenino
+quintal uma quintasinha deliciosa, mas que para elles nunca deixara de
+sêr o quintal.
+
+Luis sentira então, ao correr pela carreira principal, tão comprida que
+ao fundo deixava de se avistar a casa, uma sensação de posse, que o
+fazia agora sorrir.
+
+Lembrava-se bem como Eduarda estava melancolica naquella tarde de
+outôno, olhando o desmoronamento que lhe parecia um começo de
+destruição--porta escancarada por onde entrariam todos os
+desastres... Presentimentos de alma extremamente vibratil, ou acaso sem
+nenhuma significação, quem pode ao certo dizer o que determinados
+estados de espirito representam?!
+
+Ali tambem havia mudança... Luis começou a sentir a ansiedade da dúvida.
+Tinham plantado vinha nesse campo, que dantes ondulava num verde tenro
+pelas primaveras, e pelos verões era um manto de oiro, com as espigas
+acurvadas ao pêso do grão já maduro.
+
+Entrou pelo fundo do quintal, que no seu tempo tinha apenas um pequeno
+muro como signal de posse e agora se alteara numa hipótese de muralha
+orgulhosa.
+
+Seguindo pela rua mais larga, ia recordando, uma por uma, as arvores do
+pomar. Uma certa pereira que se erguia em roca, toda florida e branca
+como fogaça, e era a primeira a amadurecer as suas peras magnificas; uma
+rua de aveleiras baixas e tufadas, donde apanhavam ás mãos cheias as
+avelãs ainda em leite, que eram dum verdadeiro apetite... Depois
+lembrava-se dumas certas ameixas, muito rôxas e carnudas, que ainda lhe
+faziam crescer a agua na bôca. E a nespereira imensa que sombreava a
+horta, com grande desespero do velho Antonio hortelão... e a enorme
+cerdeira, que tinha uma historia engraçada, que os pequenos sempre
+contavam ao ouvido dos visitantes e os fazia desenhar gestos de nojo, o
+que lhes provocava uma esfogueteada de risos!?... E tantas outras que
+eram mais conhecidas, como suas irmãs, que iria abraçar piedosamente
+numa despedida derradeira.
+
+Se fosse tempo de lilazes, como teria gosto de levar um grande mólho de
+flôres para a mãe! Sim, roubaria, porque ao seu inconsciente criterio
+isso não lhe parecia um roubo: se o quintal era o seu, o mesmo que tinha
+deixado anos antes, que mal poderia haver nisso?!
+
+Apressou o passo até avistar a grande nogueira, plantada no ano do
+nascimento de Eduarda, e que já no seu tempo era uma bela arvore que
+desafiava a cubiça do rapazio que de fóra namorava as suas verdes nozes
+de bôa casta. Se não fosse noite poderia vêr no tronco rugoso as
+iniciais do seu nome, que Eduarda tinha aberto, na vespera da sua
+partida para o colegio.
+
+Mas ao chegar junto á arvore, donde se descobria todo o quintal, não
+poude reprimir um gesto de pavôr.
+
+Ah, para que viera ali, numa febre apreensiva de lembranças,--para
+reviver uma vida que já não existiria mais, para materialisar uma
+saudade que já não poderia sêr realidade... para quê?!...
+
+Bem lho dissera Eduarda, aconselhando-o a não dar ao passado mais do que
+a melancolica e vaga recordação que merece, e lembrando-lhe o dever de
+caminhar para a frente, de viver, como ella, uma nova vida mais nobre e
+mais cheia de ideais, que a faziam até abençoar esse desastre material
+que a libertara de preconceitos e costumes seculares...
+
+Mas elle sofria verdadeiramente e intensissimamente; era uma dôr
+material como a de lhe cortarem um pedaço do seu proprio corpo, ao vêr
+que tambem o pomar não soubera resistir á mudança de proprietario, na
+sua passividade de natureza vegetativa.
+
+Oh, as lindas arvores de fruto, as ruas de plumeiras
+decorativas,--inuteis para o criterio mesquinho do vulgo--os crisântemos
+estrelados, os lirios rôxos, as roseiras já grossas como arvores, tudo,
+tudo fôra sacrificado ao ignobil desejo do lucro. Tudo desaparecêra,
+para dar logar á vinha!
+
+Como sofria com tal hecatombe, e como sentia no seu proprio sêr os
+gemidos doloridos das suas plantas mortas, cujas almas erravam ali sem
+dúvida--elle ouvia-lhes e compreendia-lhes as queixas esparsas naquelle
+ar triste de cemiterio...
+
+Vinha: toda a horta, todo o pomar, o seu proprio jardinzinho cultivado
+com tanto disvelo!
+
+Um soluço lhe subiu do peito oprimido, e as lagrimas vieram-lhe, sem
+querer, aos olhos ardentes.
+
+O quintal tinha pouca agua, sim, elle sabia isso,--fôra até a grande
+preocupação da familia--estando numa encosta que declivava dôcemente até
+ao ribeiro... Mas nunca lá tinha morrido nada com sêde; pelo contrario,
+as arvores desenvolviam-se a olhos vistos.
+
+Todo o desespero das coisas fatalmente irremediaveis o sacudia e fazia
+halucinadamente padecer.
+
+A vinha! Como detestava essa planta, de que transformam em subtil veneno
+o dôce e aromatico sumo do seu fruto, e que estropia mais criaturas e
+faz correr mais sangue e mais lagrimas pelo mundo do que exercitos em
+campanha!
+
+Como se tornava odiosa aos seus olhos essa planta, que torce
+convulsamente para o céo os braços descarnados de esqueleto, e como a
+desejaria queimar, numa furia vingativa de inquisidor!
+
+Luis amaldiçoava mil vezes essa planta, que é tão estimada, porque
+representa a cupidez explorando o vicio.
+
+Diante dos seus olhos, embaciados pelas lagrimas, todos esses troncos
+nus se animavam e viviam dançando numa roda selvatica de possessos.
+
+Como detestava entranhadamente, sagradamente, a vinha!
+
+Não lhe lembrava, por certo, a alegria rubra e ruidosa das vindimas,
+quando elles iam todos, pelos poentes fulvos dos lindos outônos da sua
+terra, ás propriedades de fóra, e voltavam atraz dos carros que as
+dornas a transbordar faziam chiar doridamente, ora enterrando-se na
+areia solta das azinhagas orladas de silvas, ora trambulhando pelas
+lages e pedras dos caminhos carreteiros.
+
+Nem sequer recordava o delicado e suave perfume a resêda da vinha em flôr,
+quando na primavera as noites são frescas e os rouxinois cantam pelas
+ramarias os lirismos dos seus amôres e as romanzas dos seus noivados.
+
+Via sómente os esqueletos tristes que tinham expulso as suas arvores
+amadas, as suas flôres escolhidas, as esbeltas trepadeiras, tudo emfim
+que fazia o encanto daquelle pedaço de natureza que fôra uma parte da
+sua propria alma e deixara de existir para sempre.
+
+Luis abraçou a nogueira, numa última expansão de sentimental, beijou-a
+devotamente, como a uma velha amiga que se lhe tivesse conservado
+fiel ao coração, e afastou-se lentamente daquelle logar que fôra de
+martirio para a sua alma, como a mêsa de operações dum hospital onde se
+amputa um membro infermo.
+
+Ainda de longe olhou para traz, e, num instintivo movimento, tirou o
+chapéo num último adeus á leal amiga que o vira nascer e fôra a unica
+que lhe soubera conservar a ilusão do passado.
+
+Um adeus, um último e enternecido adeus, e tudo tinha acabado.
+
+Foi quasi com indiferença que de novo transpôs o muro, sorrindo para o
+pinhal que marulhava como as vagas de vagabundo mar, e que era o mesmo
+ainda. Esse não tinha mudado.
+
+
+Quando o comboio se pôs em marcha para o internar de novo na sua vida do
+presente, depois daquella tentativa de viver pela recordação um passado
+sepulto, Luis sentia a impressão estranha de que a terra que deixava não
+era aquella em que tinha vivido uma tão importante época da sua vida.
+
+Essa, parecia-lhe ter desaparecido completamente, como se a tivessem
+rasgado do mapa e a tivessem substituido por uma outra vila
+burguesinha, cheia de sol e de gente palradora e vasia, a mexer-se e a
+dançar indefinitamente.
+
+Quasi a dormitar seguia vagamente essa gente, ia escutar-lhe as palavras
+para rir do mesmo riso banal, e ficava silencioso, sem nenhuma impressão
+de alegria ou tristeza.
+
+Depois... tudo se foi diluindo, aos poucos, e adormeceu profundamente,
+revendo de novo a terra antiga, com varandas revestidas de trepadeiras
+perfumadas, silencios religiosos, as arvores, as casas, os costumes, e a
+gente que era dantes...
+
+
+
+
+II
+
+A Feiticeira
+
+
+
+
+A FEITICEIRA
+
+
+ «La peur qui met dans les chemins
+ Des personnages surhumains
+ La peur aux invisibles mains qui revet l'arbre
+ D'une carcasse ou d'un linceul
+ Qui fait trembler comme un aïeul
+ Et qui vous rend, quand on est seul,
+ Blanc comme un marbre.»
+
+ MAURICE ROLLINAT.
+
+De todos os rapazes da aldeia era o Manoel da Clara o mais querido das
+raparigas.
+
+Fôra sempre um belo rapaz de afugentar rivais, mas, desde que viera da
+tropa e de lá trouxera aquelle ar desdenhoso de feliz D. João, aprendido
+no convivio dos camaradas presunçósos e mulheres de vida airada, parece
+que as enlouquecia.
+
+Acostumado a ajustar a farda, como apertava bem a cinta de lã preta ou
+carmezim, que parecia trazer espartilho, o démo do rapaz!
+
+Os sapatos com o lustro bem puxado, que pareciam de verniz; o chapéo
+garbosamente descahido sobre a esquerda; a ponta do cigarro atraz da
+orelha; e o lenço, com flôres e uma legenda bordadas a côres vivas, a
+sahir da pequena algibeira da jaqueta, as mais das vezes levada ao
+hombro; o Manoel era na verdade a nata da rapaziada do logar.
+
+No meio dos outros, com as suas caras rapadas de lôrpas, valentes mas
+sem a elegancia dos gestos disciplinados pelo exercicio regular, o seu
+pequeno bigode de cidadão retorcia-se aos domingos com uma petulancia
+irresistivel.
+
+Nas feiras e romarias, firmado no varapau metido debaixo do braço, toda
+a vaidade satisfeita a brilhar-lhe nos inquietos olhitos garços,
+desafiava toda a concorrencia desagradavel. Ás raparigas iam-se-lhes os
+olhos nelle, e mediam-se com o rancôr de rivalidades latentes.
+
+E valentão!?--como aquilo poucos! E, como sempre, era a superioridade
+material da força e da coragem o que mais o fazia valer aos olhos de
+primitivas femeas, oferecendo-se orgulhosamente ao vencedor, ao macho
+forte e soberbo.
+
+Quando o Manoel, com um rapido piparote atirava para a nuca o chapéo
+móle de largas abas, dava um passo atraz, fazia girar o varapau em
+sarilho sobre a cabeça, e torcia a bôca espumante num esgare de raiva...
+podiam fugir delle!
+
+Contavam-se na aldeia as valentias do Manoel com o mesmo entusiasmo e
+ufanía com que se contariam as de um heroi da historia, um heroi
+autêntico, de que a tradição nos deixasse o nome e a memoria de largos
+feitos.
+
+Uma vez era todo o povo de Infias que se juntara para o desafiar,
+raivosos por uma questão de mulheres de que o Manoel era afortunado
+protogonista, e que elle _enfiara_ pela serra abaixo--que até parecia
+que o vento os levava.
+
+«Ó Manoel, lembras-te?...
+
+«E daquella vez na romaria da Senhora dos Verdes?...
+
+«E na feira, quando foi da compra dos meus bois?!...
+
+As perguntas, as respostas, as diferentes versões e comentarios,
+envolviam o Manoel num côro de louvôres, que elle recebia mal
+disfarçando a vaidade num meio sorriso modesto emquanto ia enrolando o
+cigarro entre os dedos fortes onde brilhava um anel de cobra, o encanto
+e a inveja dos mais rapazes.
+
+No jogo da bola, ao domingo, no terreiro da igreja, nenhum o excedia,
+como ninguem era capaz de o vencer numa partida de chinquilho ou no jogo
+do pau. Um valentão, um rapaz ás direitas, sempre pronto a fazer um
+favôr, riso franco, coração nas mãos para os amigos; ninguem emfim mais
+digno da estima dos seus patricios e ninguem que de facto fosse mais
+estimado do que o Manoel da Clara.
+
+Álêm de todos estes merecimentos fisicos, que o superiorisavam, ainda
+era senhor de algumas belgas, e unico herdeiro da meação da mãe, a viuva
+do Rezadeira, que ajuntara o seu peculiosito na _casa dos fidalgos_. E
+era uma mulher de trabalho, a velha Clara do Rezadeira, que só tinha
+olhos e coração para o filho, o seu enlevo e orgulho. Primeiro do que
+ninguem, como o galo da manhã, saltava da cama, onde a asfixia dum
+coração emperrado mal a deixava socegar, e começava a labuta de todos os
+dias: amassando o pão, chegando ao forno a prevenir a forneira,
+cosinhando a vianda para os cevados, chamando a gente para o trabalho,
+despachando serviço, ralhando com um, combinando com outro, e sem nunca
+perder de vista a panela onde se cosiam as batatas para o caldo verde
+que o seu Manoel havia de comer antes de sahir, na sua tigela bem
+meada de brôa. Mal elle aparecia, ainda espreguiçando-se e os olhos mal
+abertos mas já risonho e feliz como soberano que se julga crédor de
+todos os afétos e homenagens, a vélhota aprontava tudo num ápice, rindo
+e ralhando num visivel contentamento de quem se revia no rapagão, que
+era o seu filho.
+
+É claro que não havia rapariga na aldeia e arredores á qual não
+agradasse a ideia de poder vir a sêr a mulher estimada do Manoel, a
+senhora do seu coração e do rico bragal de linho que a velha mãe
+guardava avaramente nos grandes arcazes de madeira de fóra, grossamente
+chapeados de ferro.
+
+Elle ria-se com todas, o patife, querendo gosar o mais possivel a sua
+situação de desejado, sem até ahi mostrar preferencias comprometedoras
+por nenhuma.
+
+Mas, entre todas, havia duas que nos últimos tempos mais preocupavam o
+Manoel, com grande contentamento da mãe que ansiava por o vêr casado com
+rapariga que fosse do seu calhar:--só assim morreria descansada, pois
+uma cabeça alevantada como a delle precisava bem do arrimo duma bôa
+mulher de trabalho.
+
+Por felicidade, as duas raparigas que o Manoel trazia debaixo de vista
+agradavam por igual á velha Clara--assim tinha liberdade para á
+vontade consultar o coração.
+
+Uma, Maria Tereza--a Terezinha, como lhe chamava quando acertava de a
+topar no seu caminho--era afilhada da _fidalga_ e lá pelo palacio se
+tinha criado com mimos e delicadezas que as outras não conheciam. Era
+com uma graça toda senhoril que punha os olhos no chão e enrubecia como
+romã bem madura quando elle a fitava de frente, bem de frente, como
+fazia ás mais, sem conseguir com isso chamar-lhes o sangue ao rosto, mas
+fazê-las explodir em jocundas gargalhadas. O seu andar lento e ondulado
+dava um realce de elegancia exotica ao seu corpo delgado de anemica,
+flôr tristemente desabrochada entre paredes sombrias e velhas coisas
+impregnadas da melancolia dos tempos passados. Como era a unica que na
+terra sabia lêr, eram tambem os seus os unicos olhos que na missa se não
+levantavam do livro para andarem em leilão pela igreja á procura dos
+rapazes, que lá de longe, e de soslaio, não perdiam o grupo buliçoso da
+raparigada.
+
+A madrinha queria-lhe muito, era o que todos afirmavam, e se não tivesse
+morrido nem a Terezinha sahia do palacio, onde era respeitada como filha
+da casa, e, talvez, se a morte não fosse repentina, tivesse ficado
+senhora daquella fortuna, quem sabe!?... Tem-se visto coisas mais raras.
+E melhor teria sido para a terra, pois a casa dos fidalgos, que fôra
+sempre abrigo de miseraveis como consolação de desgraçados, mal a
+senhora morgada fechara os olhos fechara-se tambem á pobreza, com uma
+crueldade que revoltava toda a gente.
+
+Os herdeiros, uns primos em último gráu legal, souberam da sua morte sem
+testamento e acorreram de Lisbôa em marchas forçadas. Mas, tudo
+liquidado á pressa, apartaram gulosamente, para figurarem nos salões da
+capital, as preciosidades que enchiam e decoravam o velho solar. Durante
+alguns dias não se ouviu senão o martelar dos carpinteiros fazendo e
+pregando caixotes e não se via senão a moderna condessinha, muito
+prática em antiqualhas preciosas, abrir portas e armarios, percorrer os
+salões e os sotãos, dar volta ás paredes e ás bojudas cómodas de
+floreados embutidos, que seguiram com os candelabros, as joias, os
+quadros e os Sèvres ricos como os incontaveis Chinas para o sorvedoiro
+de Lisbôa. Depois, mal o Conde, com o seu ar mais chic de fadiga, deu
+por terminadas as contas e entregues as propriedades ao feitôr trazido
+das lezirias ribatejanas como pessôa de inteira confiança, fugiram
+atemorizados pela tristeza pesada e humida que resumbrava o casarão
+quasi deshabitado havia anos, desde que a fidalga se tolhêra de todo e
+passava os dias nos aposentos mais ensoalhados onde fizera a sua
+habitação e a da Terezinha, que lhe lia os autôres predilétos e a
+arrastava na cadeira de rodas pelas ruas ensombradas pelos buxos
+seculares do jardim.
+
+Verdade seja que a Senhora Condessa, sabendo o amôr que a velha prima
+dedicava á afilhada e a docilidade e o desinteresse com que ella a
+servira e cuidara até ao fim, ofereceu-lhe o logar de sua criada de
+quarto e obrigou o marido a pôr em seu nome algumas propriedades
+arredadas ou a arbitrar-lhe o seu valôr em dinheiro, coisa duns cem mil
+réis, para os seus alfinetes, o que a tornaria na aldeia uma pequena
+morgada.
+
+A Terezinha agradeceu cheia de reconhecimento a generosa munificencia da
+condessinha, a quem serviu, como ella nunca fôra servida, até á última
+hora que se demorou no palacio. Depois, quando se viu fóra do ninho onde
+a sua alma se emplumara e o seu corpinho debil de criança pobre crescêra
+e se tornara de mulher perfeita, sentiu-se como que isolada num vasto
+campo deserto.
+
+Mas, séria e ponderada como era, tomou logo a mais acertada resolução:
+indo viver com a tia, a Zéfa do Padre, uma que fazia belos dôces e
+fôra por muitos anos ama do velho abade. E para encher os dias, tão
+longos agora quanto lhe pareciam pequenos dantes a rodear de cuidados a
+madrinha paralitica, metêra-se a tecedeira. Em breve era a melhor, sem
+favôr, que havia na terra.
+
+O seu tear, no monotono bater do pedal e correr da lançadeira, só parava
+aos domingos e algumas horas da noite.
+
+Aquella vida de reclusão mais lhe amaciava a pele e dava um tom
+ligeiramente empalidecido ás suas feições miudas.
+
+--«Mas era alegre dantes!... Agora, _dês_ que o _Manél_ da Clara veiu de
+soldado e entrou de atentar nella, é que de mais em mais se vai
+definhando, que nem já parece a mesma. Louvado seja Deus, que só
+trabalhos e desgostos me chegam _pró_ fim da vida.
+
+Dizia isto a Zéfa do Padre á Gertrudes Zarôlha, velha conhecida dos
+longinquos tempos da mocidade, assentadas á porta, com a roca á cinta e
+o fuso girando e torcendo o linho cuspinhado pelas suas bôcas palreiras.
+
+--«Mas então aquelle desaustinado não diz nada cá á nossa cachopa?!...
+
+--«Qual historia! Que eu saiba, ainda não lhe disse fala _pró_ bem nem
+_pró_ mal.
+
+--«Que desaforado! O que elle precisava sei eu!... Uma rapariga como a
+nossa Terezinha!... Crédo, santo nome de Jesus! Mal empregada é ella
+para tal libertino, que veiu mesmo perdido da tropa!...
+
+--«Lá isso, ó Gertrudes, mau rapaz não é elle, e tem o seu bocadinho...
+
+--«Ah, mas tem uma cabeça mais leve! No nosso tempo parece que não eram
+assim, ó Senhora Zéfa! Quando algum pretendia duma rapariga, dizia-lho,
+e estava acabado, iam _prá_ igreja os banhos!...
+
+--«Ora, eu sei lá! Haveria de tudo. Estas coisas esquecem muito, e o
+nosso tempo já lá vai ha tanto!...
+
+--«Ai eu cá lembra-me perfeitamente, que o meu _home_ assim fez. Foi até
+numa cava; calhou eu ficar ao pé delle, e fômos ao desafio. Como eu é
+que ganhei, elle então deu-me um abraço muito grande e disse-me
+assim:--Ó Gertrudes, és uma mulher _duma cana_; ámanhã se tu quizeres
+vou falar ao senhor abade e _vame-nos a botar os pregões_. E assim é que
+foi...
+
+--«E eu que ainda me lembra do senhor abade vir p'ra casa a rir muito e
+a contar o caso á minha tia--que Deus haja! Ainda ella então andava rija
+e _féra_, coitadinha.
+
+--«Mas vocemecê já lá estava, pois não estava?
+
+--«Pois estava, desde a idade de oito anos que fui p'rá companhia da
+minha tia até á idade dos cincoenta em que aquelle santo rendeu a alma a
+Deus! Ficou-me nos braços...
+
+--«Coitadinho! Tão bom homem, tão sério, era como o nosso pai de todos.
+Veja lá se tudo não vai a peor! Olhe-me para o desatino em que este anda
+por ahi, com as raparigas e as mulheres dônas de sua casa, atraz, sempre
+em cantorias, e em rezas novas, que nem podem agradar a Nosso Senhor...
+
+--«Já o dizia o senhor abade: a religião deve sêr a consolação da nossa
+vida e não o seu unico fim. Mas essa jesuitada entrou por toda a parte
+com este rapazelho do seminario--e bem mal têm já feito e hão de fazer
+ás familias!... O senhor abade bem dizia, bem dizia... E bastantes
+desgostos teve nos últimos tempos, que lhe amarguraram o resto dos
+dias... Coitadinho! Assim Deus lhes perdôe, que eu não posso tragá-los.
+Até me custa ouvir a missa daquelle avejão--Deus me perdoe se péco!
+
+--«E o que me diz ás amizades delle com os feitôres da fidalga?! Ella
+toda _trinques_, caminho da missa logo de madrugada; as filhas de güelas
+abertas com as tais _onzenices_ de cantorias na igreja, e mais florinhas
+p'rá qui, e mais rendinhas novas nas toalhas do altar, confissão a
+cada passo... Eu nem sei, eu nem sei!...
+
+--«E o marido? Vocemecê hade ouvir alguma coisa--está ali á beirinha da
+casa...
+
+--«Ora o marido!... Tambem gosta muito daquellas coisas, e reza e canta
+e leva o padre p'ra casa a jantar e a tomar o chá, as mais das vezes.
+
+--«_Eia!_--vivem como fidalgos!
+
+--«Aquelles grandes excomungados! No tempo da fidalga, graças a Deus
+ninguem batia áquella porta com fome que não trouxesse uma
+consolaçãosinha; agora nem um chavo! Tudo querem para elles, aquelles
+ladrões!... Parece que ainda estou a vêr a Terezinha ir a correr contar
+á fidalga e vir logo com uma abada de pão ou de fruta, ou umas
+batatinhas, ou uma tigelinha de papas e o bocadinho de carne!...
+
+--«Pobre Terezinha, tão mimosa foi da madrinha e agora tão triste a vejo!
+
+--«Mas aquelle maroto não lhe dizer nada é o que me dá no gôto!...
+
+--«Elle passa por ahi ás tardes, e ri-se para ella... Quando vai a
+alguma romaria sempre lhe traz uma prenda e um cravo com um verso _bem
+calhante_, mas nada mais! Ella então é uma tôla pelo rapaz! Mas
+quando o vê faz-se encarnada como um pimentão, põe os olhos baixos,
+e nem sequer o salva.
+
+--«Ora essa! Tem sua graça, tem!
+
+--«Eu nem posso explicar isto. Que a minha Tereza--não é por sêr minha
+sobrinha--não é de engeitar... é a melhor cachopa cá da terra.
+
+--«Ora isso, nem se fala! Compara-se lá! Basta saber lêr e têr a
+_inducação_ que teve. É a flôrsinha da nossa vila.
+
+--«Pois isto dá-me cuidado, dá! E não é pouco... A pequena só me tem a
+mim no mundo, e eu estou velha e cansada; queria-a vêr arrumada antes de
+fechar os olhos. E com o _Manél_ da Clara do Rezadeira gostava, lá isso
+gostava: a mãe é rapariga do nosso tempo, e elle tem alguma coisa de
+seu, e no fundo não é mau rapaz. Mas então!... Parece bruxaria.
+
+--«Ai senhora Zéfa, não pônha mais na carta. Isso hade sêr, hade! E não
+é mais nada senão coisas daquella atrevida da Maria do Próspero! Aquilo
+sempre fôram de má raça. Até o pai... hade saber! Não?! Pois eu lho
+conto. Crédo, santo nome de Jesus! Cada vez que me lembra até os cabelos
+se me põem em pé. O que aquelle malvado disse de mim, que sempre entrei
+em casa da fidalga, que Deus tem, com toda a franqueza!...
+
+--«O que foi então?
+
+--«Ai não sabe?! Aquele grande diacho, Deus me perdôe! Então não disse
+elle que eu é que chupara o morgadinho, o filho da senhora fidalga!?
+Aquella aventesma!... Nem que eu não soubesse!... Bom, calo-me, que é
+melhor...
+
+E mudando de tom, muito confidencial e amigavel:
+
+--«Posso dizer-lhe de certeza: a Maria do Próspero conversa com o
+_Manél_ e parece que o traz enfeitiçado. Olhe que lhe ouvi eu dizer--que
+primeiro estava ella, que já o namorava ha muitos anos, ainda antes de
+elle ir para a tropa, e que nunca a _lesma_ da Terezinha o havia de
+apanhar! Desculpe, senhora Zéfa, aquilo é uma atrevida, uma doida!...
+Pois de que raça ella é!...
+
+--«E o que é certo é que vai levando ávante o seu intento; tem artes do
+demonio!...
+
+--«Deixe estar, deixe estar... Eu sei cá umas coisinhas que hãode voltar
+o _Manél_, oh se hãode!... Assim eu tivesse uma coisa que lhe
+pertencesse... Coisa de vestir era melhor... Punha-lhe a pedra de ara e
+dizia a oração... É coisa certa.
+
+--«A Terezinha tem um lenço que elle lhe deu, mas fosse lá falar-lhe
+nisso!... Toda se zangava, não acredita nestas coisas...
+
+--«Pois são bem verdadeiras...
+
+--«O outro dia ensinei-lhe que cruzasse as pernas mesmo de pé quando a
+atrevida da Maria passar por ella... Desatou a rir!
+
+--«Ah, isso é uma coisa certa para livrar do mau olhado de quem nos quer
+mal. Sabe o que era muito bom? Era fazer á pequena um defumadoiro com
+hervas colhidas na manhã de S. João... É o alecrim, o funcho, a
+dedaleira, o rosmaninho, o sabugueiro... Se quizer, eu tenho lá.
+
+--«Muito obrigada. Assim ella quizesse!... Bem se fazia um defumadoiro
+que a livrasse daquelle enguiço.
+
+Assim continuaram em conversa larga, cheia de combinações e reticencias,
+que muito as interessava, emquanto a Terezinha dentro de casa trabalhava
+na teia branca, que parecia sempre a mesma, eterna como as suas máguas.
+
+O tear monotonamente fazia subir e descer os _pentes_ com um barulho
+sêco e igual, emquanto ella levantava a sua vózinha agradavel de soprano
+numa toada melancolica:
+
+ --«Eu heide amar uma pedra,
+ Deixar o teu coração;
+ Uma pedra não me deixa,
+ Deixas-me tu sem razão».
+
+E ao dizer a quadra, que parecia sahir-lhe do proprio coração, os olhos
+enturvecidos de lagrimas fitavam a estampa ingenua que elle lhe
+trouxera da Senhora do Castelo, a grande romaria de setembro.
+
+Todos os anos lá ia--era o costume--e tambem a Maria do Próspero, que
+punha nos ranchos um contínuo esfusiar de gargalhadas terçando
+galhardamente com os mais afamados _piadistas_ as armas perigosas da
+chalaça e da resposta á letra.
+
+Cantavam ao desafio, ella e o Manoel. Tinham fama por todas aquellas
+redondezas, e, mal as suas vozes se trocavam num principio de duelo, os
+auditores cercavam-nos e apertavam-nos num círculo de admiração
+excitando-os com risos e ápartes.
+
+Tambem era o par certo em todas as romarias--talhados um para o outro!
+
+A Maria era alta e desempenada! A sua tez, dum moreno intenso, fôra
+brunida pelas soalheiras ardentes e curtida pelas ventanias agrestes. A
+bôca, sempre aberta em riso, era vermelha e fresca como cerejas maduras,
+e os dentes brancos e agudos cravavam-se com delicia no pão de milho,
+sua unica escôva.
+
+As saias, rodadas em balão, faziam-lhe mais altas as ancas já de si
+redondas e fortes; o cabelo, em duas tranças pregadas, enchia-lhe a
+cabeça como uma touca de veludo negro.
+
+Quando punha o cáchené vermelho e amarelo de grandes ramagens verdes, o
+chale em bico traçado deixando livre o braço esquerdo, a chinela branca
+pespontada na ponta do pé, nenhuma como a Maria do Próspero para
+arrebanhar admiradores.
+
+Depois, sempre satisfeita, radiava em plena expansão dos seus vinte anos
+sadios, vividos em plena natureza.
+
+Nas ceifas, ao ardôr dos sóes caniculares, mangas arregaçadas mostrando
+os braços trigueiros e musculosos; ou no gesto mecânico de juntar as
+paveias e sobraçar os mólhos, tinha a harmonia escultural e grave duma
+Céres fecunda.
+
+Nas vindimas, era a primeira dos ranchos, vermelha do môsto que corre
+como sangue generoso, a bôca escancarada em risos e cantigas... Tinha um
+aspecto quasi tragico e uma beleza perturbante e assustadora de bacante.
+
+Pela apânha da azeitona, quando os campos amanhecem brancos da geada que
+toda a noite cahira manso e manso, tudo uniformisando sob a sua alvura
+de sudario, e o frio corta as mãos, que se _engatinham_, e entorpece os
+dedos que mal se podem dobrar, ella motejava de todos, sempre na frente,
+cantarolando e rindo, enchendo de ânimo os mais desanimados,
+encorajando os mais entanguecidos pela friagem.
+
+Sempre pronta para o trabalho, a Próspera, em todas as sáfaras e com
+todos os tempos!
+
+Mas, tambem, não faltava ás romarias e ás feiras das cercanias, com o
+seu lenço berrante, o casaquito branco engomado a capricho, e a sua
+alegria saudavel, que fazia bem vêr.
+
+O Manoel não resistia áquella força que chamava a sua força, áquella
+exuberancia de mocidade que atrahia a sua mocidade. Quando a via, nem
+sequer pensava na Terezinha, que se ia finando lentamente ao compasso
+triste e monotono do seu tear caseiro.
+
+E, no fim de contas, para falar a verdade, a Maria era tambem uma bôa
+rapariga, que nunca tivera outro conversado. Nem havia lingua danáda de
+velha de soalheiro que se atrevesse a debicar nos seus créditos. Alegre,
+sim; rir com todos, vá! Mas atrevimentos não os consentia a ninguem. E
+tinham-lhe respeito--que a sua mão era lésta, e um sopapo da Próspera
+não era brincadeira!
+
+Só o Manoel gosava da sua confiança e só com elle tinha as suas _graças_
+e brincalhotices mais livres, o que mais o afervorava naquelle amôr
+crescente que o ia conquistando dia a dia.
+
+Á noite, nas esfolhadas, quando o luar é môrno e as flôres têm um
+perfume mais intenso, corriam um atraz do outro, batiam-se fortemente, e
+cahiam ás vezes sobre a palha ainda quente do sol, com um cheiro sêco
+que entontece.
+
+As gargalhadas seguiam-nos de todos os lados da eira, as chalaças
+cruzavam-se no ar como morcegos de pesado e estonteado bater de
+azas:--Eh lá, Maria, vê se tens mais força do que elle! Isso é que era
+um riso, o valentão deixar-se bater por uma mulher!...
+
+--«Talhados um para o outro--isso é que não havia dúvida, nenhuma!
+
+--«A Zéfa do Padre que se deixasse de querer casar a sobrinha com o Manoel.
+
+--«Bôa rapariga, lá sobre isso não havia duas opiniões; mas a Maria é
+que estava a calhar para um homem de trabalho, uma mocetona daquellas
+que era capaz de voltar um campo sósinha.
+
+Os homens votavam pela Maria, bela mulher para tudo e forte como uma
+torre. As mulheres, essas eram pela Terezinha, delicada e amavel, pondo
+sorrisos de aquiescencia onde a outra só tinha ruidosas gargalhadas de
+troça.
+
+Era ella que lhes talhava e cosia á máquina, sem paga, as chitas pobres,
+mas apesar disso tão dificilmente compradas, e lhes ajustava os
+coletes de linho grosso que tão irmanados lhes erguiam os seios até á
+raís do cólo:--«Ora, sempre era _outra loiça_! Podia lá comparar-se! Bem
+se via que tivera outra criação, lá em casa da fidalga, que a tratara
+como filha.
+
+--«Que elle gostasse della, vá! Agora da Maria, uma cachopa como as
+outras!...
+
+O Manoel, ainda indeciso, mas já a inclinar-se para a Maria, irritava as
+mulheres que se ofendiam com a insolente alegria da rapariga, que andava
+radiante com o seu ar de triunfo certo.
+
+A velha Gertrudes Zarôlha vivia sobre brazas, nos últimos tempos.
+
+Com meias palavras ou redundancias enigmaticas conseguia sobresaltar o
+coração do rapaz, mas não desviá-lo duma paixão que se harmonisava
+inteiramente com o seu modo de sêr moral e fisico.
+
+--«Casar com a Maria--dizia a velha á bôca cheia--era até um
+pecado!...--e benzia-se com gestos de apavorada, que não explicava mas
+punha de sobre-aviso as consciencias timoratas.
+
+
+Por uma noite de verão, sinistra pelo negrume de nuvens carregadas de
+eletricidade e prometedoras de fortes aguaceiros que toldavam o céo,
+voltava o Manoel da Clara da vila proxima onde assistira á feira.
+
+Um calôr asfixiante pesava como chumbo no abandono pungente da paisagen
+lugubre. Os pinheiros esguios tinham um murmurio mais triste e vago,
+como soluços suspensos de almas em pânico, e o olival verde negro
+destacava-se no fundo, apertando como num cilicio doloroso a pobre terra
+que se dependura de fraguedos rudes, sempre ameaçada pela montanha que a
+cavalga e lhe limita o horizonte, cortando-lhe toda a esperança de se
+expandir por ali, como o pecado véla e corta toda a esperança da alma
+piedosa...
+
+O Manoel, que tinha ficado um pouco para tarde, conversando com uns
+amigos na taberna do Geitoso, vinha assobiando alegremente, caminhando
+despreocupado e sem grande pressa.
+
+Ao passar pela _Fonte do Inferno_... diabo!... que ouviu elle?! Um rumôr
+confuso de gargalhadas, que aflavam no ar como grasnar longinquo de
+corvos...
+
+Mêdo?.... Elle não tinha mêdo, mas desde que acontecera aquella historia
+da casa dos Carneiros... _Crédo! Abrenuncio!_
+
+--E não se benzeu, o Manoel, como lhe cumpria fazer, ao lembrar-se de
+coisas daquellas!... A tropa é que estraga os rapazes, está visto...
+
+Agora, as gargalhadas já soavam mais perto... diria mesmo que ouvia a
+Maria do Próspero.
+
+--Mas naquelle sitio, áquella hora!... Quem se atreveria?!...
+
+--Em casa dos Carneiros,--lembrava-se involuntariamente--aquelle barulho
+de cadeias a arrastar, os ferros em braza que vinham cahir aos pés da
+gente da familia, o vozear sinistro que se escutava em toda a aldeia e
+trazia apavorados os mais valentes... Deus do céo, que terror fôra na
+terra toda! Já ninguem dormia nem descansava. Muitas mulheres tiveram
+então _espiritos_ que os padres e os _bentos_ esconjuravam, e se batiam
+com elles como forças iguais.
+
+--Só depois que o senhor Vigario velho se resolveu a sahir, de capa de
+asperges, para benzer a casa endemoninhada, é que tudo socegou...
+
+O Manoel já não assobiava, e ia olhando de soslaio para o Camborço,
+pedraria escalvada suspensa por milagre sobre o abismo e que a toda a
+hora parece desabar e soterrar as pobres casas de pedra solta tisnadas
+pelo tempo.
+
+Um ventito picado e quente levantou-se então, trazendo o rumôr distinto
+de vozes, gritos surdos e gargalhadas abafadas...
+
+O Manoel era destemido; apesar da má fama do sitio, tido como logar de
+maleficas reuniões diabolicas, resolveu-se a transpôr o pequeno muro que
+separava o caminho da _Fonte do Inferno_, a propriedade de mais
+estimação dos velhos fidalgos.
+
+Primeiro, não viu nada; depois, vaga e confusamente, luzinhas que
+saltavam e atravessavam-se corriam e perseguiam-se, juntavam-se e
+tornavam a afastar-se...
+
+Um calafrio lhe percorreu o corpo e sentiu na espinha dorsal uma
+sensação desagradavel que o fez tremer. O Manoel era valente,--nisso não
+podia haver dúvida!--mas é que aquilo que via tão realmente como se á
+luz do sol olhasse as suas proprias mãos eram as feiticeiras, tal qual a
+sua mãe as tinha visto tambem quando em pequenino esteve ameaçado de sêr
+chupado por ellas...
+
+Entre curioso e medroso--já agora não sahiria dali sem vêr o que aquilo
+era.
+
+Acercou-se da eira onde a ronda sinistra era mais febril...--Jesus, que
+coisa horrivel!--Olharapos corriam vertiginosamente, que mais pareciam
+voar, na noite negra, com o seu unico olho flamejante no meio da testa,
+lanterna magica das profundezas do averno!...
+
+Um lobis-homem passou a galope, no seu fado triste, procurando alma
+christã á qual podesse, antes da meia-noite, entregar a sua cruz
+martirisante. Se elle o tivesse topado!... Até os cabelos se lhe punham
+de pé.
+
+As luzinhas continuavam correndo alígeras, voando na escuridão dura da
+noite.
+
+Surrateiramente foi-se aproximando da eira onde chamejavam em halucinado
+rodopio... A pouco e pouco ia-as distinguindo na sua fórma humana,
+girando buliçosas e gárrulas.
+
+No meio da roda--cruzes! como podia aquilo sêr?!...--o Diabo passeando
+altivo, vestido de encarnado e de chapéo guisalhante, poisando os pés de
+forquilha sobre as cabeças das feiticeiras, que riam sarcasticamente.
+
+Dessa vez o Manoel não poude deixar de rir, tão patusca lhe pareceu a cêna.
+
+Ah! mas quando elle viu com os seus proprios olhos--tão certo como haver
+a luz do sol que nos alumia!--adiantar-se uma das luzinhas e, tornando
+rapidamente á sua figura de mulher, aparecer-lhe a Maria do Próspero,
+tal qual ella!... E quando a viu chegar ao pé do _homem vermelho_,
+estender-lhe os fortes braços roliços e trigueiros, abraçá-lo com ardôr,
+não poude retêr um surdo grito de raiva.
+
+Aquelles braços, que só o pensar nelles lhe fazia febre; aquella mulher,
+que o trazia prêso havia tanto tempo e com a sua honestidade alegre
+e simples conseguira o seu respeito e o seu amôr, estava ali em frente
+delle abraçando outro! E esse outro--Deus do céo, que até a sua alma
+tremia!--esse outro era o proprio Diabo em pessôa!
+
+Tremia de desespero e horror por essa criatura, que não passava afinal
+duma feiticeira.
+
+Uma tremura nervosa e um frio de gelo o faziam vibrar todo. O sangue
+subia-lhe á cabeça, punha-lhe zoeiras nos ouvidos, halucinando-o.
+
+As luzitas recomeçaram a dansa, numa _farandola_ de _sabbat_, correndo e
+saltando, num delirio de gargalhadas frias como entre-chocar de ossos
+numa dansa macabra.
+
+Ao Manoel parecia-lhe que tudo dansava á volta delle, que elle mesmo se
+sentia voar num rodopio de entontecer. Agora o Diabo, sentado num trôno
+luminoso de feiticeiras, os pés de bode torcidos e negros a descansar
+sobre o formoso corpo de Maria, como se fosse um estrado, lia um grande
+livro de capas encarnadas. A cada folha que voltava, sahia uma nuvem de
+diabitos fantasticos, saltitantes, folgazões como garôtos ao sahir da
+escola, que iam juntar-se ás feiticeiras, e tudo corria, voava, num
+cabriolar estonteante e doido.
+
+Uma das luzes aproximou-se então do Manoel, que ficara empedrado na
+contemplação da cêna que o atordoava e lhe tirava toda a sensação da
+vida, e rapidamente se fez mulher. Ficou boquiaberto, pois a bruxa era
+nem mais nem menos do que a Gertrudes Zarôlha, a velha amiga e
+confidente da Zéfa do Padre.
+
+Se tivesse pensado melhor não se teria espantado tanto, pois essa era
+tida e havida por tal desde que o compadre Marques, o alfaiate, a
+encontrara feita galinha, lá para as bandas da vila, arrastando após si
+uma ninhada de frangas, as discipulas que ia exercitando pela noite
+alta. Admirou-se:--uma galinha tão tarde fóra da capoeira!?--e dando-lhe
+com o metro partiu-lhe uma aza. Logo a Gertrudes tornou á sua fórma
+natural e lhe pediu que se calasse, pois em paga do seu silencio lhe
+daria todos os anos uma camisa nova.
+
+Mas o que é certo é que toda a gente soube do caso, sob segredo, e elle
+nem por isso deixou de receber anualmente a bôa camisa de pano de linho.
+
+A Gertrudes quedou-se diante do Manoel: feia e engelhada, a bôca vasia
+de dentes, o cabelo esbranquiçado e crespo a fugir do lenço de chita,
+uma cavidade vermelha no logar do olho direito perdido não se sabia por
+que desastre.
+
+--«Ai, Manoel, pobre rapaz, desgraçado!... Se o Senhor te visse, estavas
+perdido neste mundo e no outro!...
+
+Elle olhava-a emparvecido, numa confusão labirintica de ideias, que não
+explicava nem compreendia.
+
+--«Ouves, Manoel?--continuava a velha bruxa.--Eu sou tua amiga, não te
+quero vêr perdido. Olha, escuta, toma sentido no que te vou dizer: O
+_Senhor_ vai perguntar quem corre mais, para lhe entregar a caldeirinha
+que veiu hôje do inferno para a nossa missa. Tu hasde dizer que corres
+como o pensamento, agarra nella, e foge. Corre quanto podéres! Só
+estarás em segurança agarrado á corda do sino da igreja, depois do galo
+preto romano cantar pela terceira vez depois da meia-noite. Corre, corre
+quanto podéres, e livra-te de olhares para traz, oiças o que ouvires,
+sintas o que sentires. Ainda que te chamem pelo teu nome, não olhes nem
+páres,--olha que depende dahi a tua salvação e a tua vida!
+
+Afastou-se saltitando, outra vez luzinha, a misturar-se com as outras na
+dansa macabra.
+
+O Manoel ficou estarrecido, mas o proprio mêdo lhe deu energia bastante
+para responder com segurança á pergunta que o _homem vermelho_ fazia
+em voz tão formidavel e soturna que toda a natureza estremeceu de pavôr
+e os corvos no visinho cemiterio grasnaram agoirentamente.
+
+Tendo gritado, no meio de vozearia geral, como lhe ensinara a Gertrudes
+Zarôlha,--«corro como o pensamento!»--agarrou na caldeirinha magica que
+estava no meio da roda e desatou a correr com quanta força tinha, em
+diréção á igreja, cujo campanario singelo donde pendia a corda do sino
+era agora a sua unica esperança de salvamento.
+
+Mas, fosse porque o conhecessem pelo andar ou fosse por penetração
+diabolica e subtil, o que é certo é que, logo que voltou costas, uma
+grita ensurdecedora lhe chegou aos ouvidos. Sentiu-se perseguido por
+toda uma canalha de demonios, fúrias vêsgas e feiticeiras esguedelhadas,
+pequeninos trasgos e enormes gigantes, que ardendo em sêde do seu sangue
+e da sua alma christã lhe corriam no encalço.
+
+Via-se quasi perdido, sentia-se quasi agarrado por enormes braços
+descarnados e com unhas aduncas e enclavinhadas, que se lhe cravavam na
+carne como tenazes... Chamavam-no pelo seu nome, ouvia coisas pânicas, e
+ora o insultavam com palavras que se desprendiam como pedradas de funda,
+ora o seduziam com promessas tentadoras.
+
+E dizia mesmo que essas vozes sedutôras, que se misturavam ás outras
+brutais e agressivas, eram ditas pela bôca vermelha e fresca da Maria...
+
+Mas, fiel á recomendação da Gertrudes, corria numa ânsia ofegante, num
+desespero de loucura. Na cabeça enfebrecida duas unicas ideias se lhe
+espetavam, como navalhas agudas:--a Próspera abraçando o _Senhor_, como
+lhe chamara a Zarôlha, e o campanario humilde onde estava a sua salvação.
+
+Não compreendia nem via mais nada, e nada mais lhe interessava no mundo.
+Mas chegaria a tempo de poder agarrar a corda do sino antes do galo
+preto romano cantar pela terceira vez á meia-noite?!...
+
+Já as pernas lhe fraquejavam, a cabeça andava-lhe á roda, e os gritos
+satanicos, que mais e mais se avisinhavam, davam-lhe a certeza do seu
+triste fim, se não conseguisse chegar.
+
+Mas já estava perto--num último arranco, estava salvo!
+
+Se fosse vinte passos mais longe não poderia resistir. Quando deitou a
+mão á corda do sino, que deu na noite negra uma badalada lugubre, o galo
+preto romano soltava pela terceira vez a sua voz clara e sonora de
+espancar visões e pesadelos.
+
+Um gargalhar surdo e um rumôr de maldições e pragas perderam-se no ar,
+emquanto o Manoel cahia pesadamente no chão, agarrado ainda á corda do
+sino que tremia nas suas mãos crispadas. Ao lado tombara a caldeirinha
+tilintando numa vózita escarnicadora.
+
+Para quem duvide do caso, lá está ella na igreja matriz, da pequena
+terra triste, cortada na rocha bruta, estrangulada entre pinhais
+melancolicos e oliveiras de folhagem eternamente sombria.
+
+Lá anda ella, cheia de agua benta, tilintando sempre a sua vózinha
+escarnecedora e fantastica, acompanhando enterros de cavadores tisnados
+que na terra encontram o seu unico repouso, e criancinhas frageis que
+vão para o céo aspergidas com a agua benta da caldeirinha infernal...
+
+Lá anda, muito serena, orgulhosa do seu metal desconhecido forjado nas
+profundezas ardentes do mundo sobrenatural, a acompanhar o senhor
+vigario na visita anual em dia de Páscoa alegre e florída:--«Bôas
+festas, bôas festas, santas festas!, sorri no seu arzinho petulante.
+
+
+De madrugada, quando os homens iam para o trabalho, encontraram o Manoel
+ainda desmaiado, agarrando-se á corda do sino como naúfrago a táboa
+salvadora.
+
+Levaram-no para casa, alvorotando toda a vila com o extraordinario caso.
+A Clara de Rezadeira,--coitada!--mal viu o filho, o seu Manoel,
+estendido como um cadaver sobre o leito de cabeceiras embutidas, para
+onde os homens o atiraram já cansados da caminhada com semelhante pêso,
+ia morrendo tambem, sufocada pelo sangue cujos impetos o pobre coração
+mal podia regular.
+
+Mas o mestre barbeiro afiançou a cura para breve, dando uma picadélasita
+no braço do rapaz--que era de humôr muito quente, e apanhara algum golpe
+de sol lá pela feira.
+
+A febre sobreveiu e teve-o entre a vida e a morte, dias e noites ardendo
+num fogo de que o delirio e a agitação eram o corolario logico. O que
+elle via, os sonhos e os pesadelos que lhe enchiam a pobre cabeça
+enfebrecida, mal o compreendiam os seus enfermeiros. E todo aquelle mal
+se agravava e a agitação chegava ao delirio furioso dum louco se por
+acaso a Maria do Próspero chegava á porta, a pedir noticias ou a querer
+ajudar a tia Clara nos arranjos domesticos.
+
+Ninguem podia compreender tal horror á rapariga, nem ella, que se
+consumia e chorava sem consolação por vêr a mudança brusca do seu
+Manoel.
+
+Quando se levantou estava pálido, cambaleava, e uma tristeza
+profundissima lhe encovava os olhos.
+
+No primeiro dia em que sahiu, o seu cuidado foi logo ir procurar a
+Gertrudes Zarôlha, que encontrou sentada á porta da casa, fiando e
+conversando com o gato preto gordo e pesado, seu unico companheiro e amigo.
+
+O Manoel não esteve com ceremonias, foi direito ao fim. Contou á velha
+tudo quanto tinha visto na _Fonte do Inferno_ quando viera tarde da
+feira, e exigiu explicações completas sob a ameaça duma sóva se ella não
+quizesse dizer a verdade.
+
+Ao principio a Gertrudes indignou-se, pôs as mãos no peito, jurou a sua
+inocencia e negou que fosse feiticeira.
+
+--Na _Fonte do inferno_?!
+
+--O Manoel que não sonhasse em tal--_crédo!_ _cruzes, canhoto!_ Fôra
+aquelle patife do Próspero que levantara aquella calúnia e dizia a quem
+o queria ouvir--que fôra ella quem chupara o filho da fidalga...
+
+Mas o Manoel atalhou:--não negassse a Senhora Gertrudes; tinha-a elle
+visto, ora essa! Querer dizer-lhe que não era verdade uma coisa que elle
+mesmo vira, com aquelles mesmos olhos que a terra havia de
+comer?!... Demais, não tinha nada com a sua vida nem o contaria a
+ninguem, pois até lhe estava muito agradecido por o têr ensinado a
+livrar-se de tamanho perigo. Agora o que queria saber era a
+verdade--sobre a Maria do Próspero. Seria ou não certo tê-la visto
+abraçar o _Senhor_?... Seria ou não certo o sêr ella feiticeira a
+valer?! Podia têr-se enganado... podia-a têr confundido com outra... Ás
+vezes, e como foi ao longe...
+
+Era a última esperança, e a ella se agarrava com todo o afinco de quem
+não quer perder uma dôce ilusão.
+
+E pensava, horrorisado, que aquilo poderia sêr verdade e teria que
+deixar de pensar na Maria, agora que a paixão por ella chegara ao
+halucinamento, hesitante entre o amôr e o odio.
+
+Quanto daria para que a Gertrudes lhe désse a certeza de que os seus
+olhos o tinham iludido, quanto daria!... Tornar a têr na Maria a
+confiança que tinha dantes; podê-la levar para a sua casa, como ainda na
+vespera lhe dissera a mãe, que morria pela rapariga--tão trabalhadeira,
+tão desembaraçada e bôa... Não tinha nada, mas isso o que importava?
+Ella, a Clara do Rezadeira, não se importava nada com isso e
+aconselhava-lhe a que escolhesse antes uma rapariga de trabalho do
+que uma com dinheiro, que nada vale quando dá em mãos que o não sabem
+guardar nem aumentar.
+
+Como elle esquecia, evocando a formosa rapariga, a pálida Terezinha, que
+lentamente se ia definhando e morrendo aos poucos, ao compasso surdo e
+monotono do seu tear!...
+
+Mas a Gertrudes foi impiedosa. A pouco e pouco começou a dizer tudo;
+primeiro timidamente, tenteando o assunto, depois entusiasmando-se,
+contando detalhes, dizendo coisas que arrepiavam e indignavam o Manoel.
+
+Era certo e mais que certo sêr a Maria feiticeira! Havia pouco tempo que
+aprendera, mas já a consideravam das mais finas e das mais queridas do
+_Senhor_.
+
+--O lobis-homem que tinha visto--mas isso em grande segredo, porque
+tinha medo de levar alguma sóva--era o Próspero velho. Andava com o fado
+ha tantos anos! Não tinha sorte nenhuma, coitado!
+
+Que de historias lhe contou, e elle ouviu pasmado, vencido por aquella
+verdade irrefutavel:--a Maria era feiticeira!
+
+A Gertrudes comentava com gestos curtos e vozes de confidencia:--Ora
+essa! De que se admirava? Sempre lhe dissera que não era mulher capaz
+para um homem de brio e de honra.
+
+Tinha-lhe odio, o odio implacavel das velhas criaturas despresiveis aos
+que têm a insolencia da alegria, da juventude e da beleza. E então,
+depois que a rapariga dissera numa sacha, entre as gargalhadas do
+rancho, que não queria estar ao pé della porque lhe podia dar quebranto
+ou chupá-la como fizera ao filho da fidalga, a Gertrudes não a podia
+tragar.
+
+--Se fosse com a Terezinha,--continuava convencedora--com essa era de
+sua aprovação. Uma rapariguinha tão recolhida, sem uma _nota_, sem más
+palavras para ninguem, e sempre tão bôa, tão condoïda! Mesmo um anjo do
+céo!
+
+O Manoel calava-se, abismado no seu desgosto, não podendo seguir-lhe a
+tagarelice nem dizer uma palavra que lha fizesse estancar. De quando em
+quando, uma palavra ou outra feria-lhe o ouvido, chamando-o á realidade,
+aos repelões, sobresaltando-lhe ainda mais a alma amarfanhada.
+
+Por vezes já a imagem da Terezinha, com a sua esbelteza delicada, o seu
+vestido escuro de luto aliviado, o sorriso maguado da sua bôca virgem de
+beijos, se começava a esboçar na sua memoria. Via-a córada como a romã
+quando acertava de lhe dirigir a palavra, sofredora e resignada quando o
+sabia mais prêso pelos encantos de Maria; lembrava-a fugindo arisca
+da porta para o espreitar da janela, mal assomava ao cimo da rua com os
+seus ares triunfantes, bamboleando-se com a importancia de janota de
+aldeia.--«Coitadinha! Gostava tanto delle! Emquanto esteve doente, nunca
+ella deixou apagar a lampada á Senhora do Castelo...
+
+O Manoel afastou-se por fim--a velha já o enjoava com as suas historias.
+E, ao sahir dali, pensava com funda melancolia em todo o passado
+extinto, nessa alegria radiosa que não voltaria mais. Da sua vida, tão
+profundamente abalada, nem a si mesmo sabia dar conta.
+
+Quando subia vagaroso e preocupado a rua estreita e ingreme, os seus
+olhos poseram-se com sobresalto na Maria do Próspero, que caminhava em
+sentido contrario, cabisbaixa, os braços cahidos ao longo do corpo, os
+olhos pisados postos no chão, o fato em desalinho de quem perdeu o gosto
+e a garridice.
+
+Que mudada estava! Nem parecia a mesma,--não a reconheceria por certo
+fóra dali.
+
+O rapaz, olhando-a, sentiu subir-lhe do largo peito um soluço doloroso.
+
+Meteu-se na sombra duma porta e deixou-a passar, avergada ao pêso da
+tristeza e do remorso do seu pecado sinistro.
+
+Estremecia de horror como se a visse ainda na noite demoníaca, cuja
+lembrança o perseguia como uma ideia fixa de monomaníaco.
+
+Como podia ser feiticeira uma rapariga tão linda, tão alegre, tão
+sincera?!...
+
+Mas era-o, tinha a certeza, porque a vira abraçando o _homem vermelho_
+de negros pés de forquilha, e porque a Gertrudes lho afiançara havia
+instantes.
+
+Todo o pavôr daquella noite tragica o tomou de novo, e involuntariamente
+evocou o _sabbat_ infernal:--as luzinhas bailando, entrechocando-se, e
+afastando-se num compasso rítmico; as gargalhadas que soavam como
+crucitar de corvos; os olharapos correndo, com o seu unico olho a
+furar-lhes a testa; os lobis-homens galopando, no seu fadario triste;
+avejões, diabitos galhofeiros, lémures, trasgos, duendes, feiticeiras,
+e, sobre tudo, como ferro em braza a causticar uma chaga, a recordação
+da cêna em que a Maria abraçava o _homem vermelho_ e lhe servia de estrado.
+
+Era de endoidecer!
+
+Quando despertou desse pesadelo de acordado, já a Maria ia longe,
+andando lentamente, acurvada pelo imenso desgosto de vêr o Manoel tão
+diferente do que fôra, e sem razão nenhuma que ella lhe désse!
+
+Se ao menos soubesse explicar o motivo porque tão cruamente a repelira
+durante toda a doença, quando ella passava as noites sem se deitar,
+sempre pronta á primeira voz,--uma verdadeira filha para a Clara do
+Rezadeira, que já lhe queria como tal!...
+
+
+Alguns mêses depois, os sinos da antiga igreja matriz repicavam
+freneticamente mostrando o entusiasmo do sacristão pelo casamento do
+Manoel com a Terezinha da Zéfa do Padre.
+
+A noiva ia radiante, mais linda do que nunca. Os olhos brilhantes, os
+labios ardentes, as faces ligeiramente córadas pela felicidade
+inesperada que a chamava á vida, quando ia já caminhando para a morte,
+ao compasso monotono do tear subindo e descendo no contínuo trabalho.
+
+Satisfeito e feliz, tambem o Manoel ia, triunfante, com o seu fato preto
+de pano fino, o seu chapéo lustroso, a sua fina camisa engomada a
+primôr, ao lado da noiva--uma santinha do altar!, dizia a Gertrudes
+benzendo-se.
+
+Tambem elle se sentia alegre e despreocupado, sem pensar na pobre Maria
+do Próspero, que curtia sósinha, num desespero tôrvo e sem remedio, a
+sua derrota miseravel.
+
+Quando a Gertrudes Zarôlha começou a espalhar o que se passara, o que
+vira o Manoel na noite em que viera mais tarde da feira, por se têr
+demorado a conversar com uns amigos na taberna do Geitoso, a Maria teve
+um violento acesso de cólera, uma rubra indignação, que estava na logica
+da sua forte e sadia natureza. Quiz bater na velha, que fugiu
+espavorida, gritando-lhe que fosse perguntar ao Manoel--e elle lhe diria
+tudo quanto vira...
+
+E ella fôra logo, forte da tranquilidade da sua consciencia, certa de
+que elle estaria ao seu lado para a defender de tão absurda acusação...
+
+Mas quando ouviu da bôca delle a confirmação dos ditos da velha, quando
+elle lhe atirou com despreso o epíteto de _feiticeira_, sucumbiu. Ficou
+quieta, a olhá-lo pasmada, sem encontrar uma palavra para se defender,
+cheia de dúvidas e de desânimo... Sem a confiança do Manoel, o que podia
+fazer?!
+
+E desandou dali, com grossas lagrimas a rolarem-lhe pelas faces, e um
+aperto na garganta que a estrangulava.
+
+Fechou-se em casa; e, sem ninguem que a consolasse, nenhuma alma
+compassiva que a ajudasse a levantar daquelle abismo em que a propria
+consciencia desaparecia sob a sugestão alheia, rebolou-se pelo chão,
+rasgou o fato, atirou contra as paredes a cabeça que sentia perdida e
+desvairada, soltou gritos que lhe despedaçavam o peito, até que,
+exausta, ficou como morta no meio da casa. Ao voltar do trabalho é que o
+pai a levou para a cama, limpando, num repelão, á camisa suja de suor e
+poeira, uma lagrima que teimava em rebolar-lhe pela face encarquilhada e
+dura.
+
+--A sua pobre filha, a alegria da sua vida--em que estado a encontrava!
+Maleitas ou mau olhado, espirito ruim que lhe entrara no corpo e já a
+não largaria...
+
+Quando voltou a si, pesou bem a desolação da sua vida, e chorou toda a
+sua esperança, a sua alegria como a sua mocidade exuberante que tinham
+fugido espantadas diante daquella noite negra e sem fim.
+
+.........................................................................
+
+Emquanto os sinos cantavam na manhã clara, de sol radioso e céo azul em
+festa, as alegrias do casamento da Terezinha com o Manoel da Clara, a
+caldeirinha magica tilintava o seu risito escarninho e macabro e todos a
+consideravam com admiração e respeito pelo sobre-natural.
+
+A Maria, agora feiticeira conhecida e apontada por todos, já não canta
+nem vai ás romarias.
+
+Nos trabalhos do campo, as mulheres e as crianças afastam-se della
+apavoradas, e os homens, lamentando-a, não têm coragem de vencer esse
+pavôr.
+
+Um brilho ardente de febre queima sempre os seus lindos olhos negros,
+que vagueiam inquietos, num mêdo doentio e tragico.
+
+Atormentada de visões, mordida de maus olhados, mêses inteiros prêsa de
+delirios histericos, sente-se, na verdade, transportada nas azas do
+vento para sitios ermos em que luzinhas saltitam em rondas buliçosas,
+lobis-homens passam em cavalgadas doidas para se irem espójar nas
+encruzilhadas sinistras, moiras encantadas tecem em teares de oiro
+contando as saudades antigas da sua vida humana, e olharapos, duendes,
+lémures e trasgos povôam as noites horrificas de _sabbat_.
+
+
+
+
+III
+
+Diario duma criança
+
+
+
+
+DIARIO DUMA CRIANÇA
+
+
+Creio que não é bem exáto o titulo que escrevi no alto da página. Isto
+não é verdadeiramente o _Diario duma criança_, não é, mas sim a minha
+vida toda recordada dia por dia, hora por hora, com uma precisão de
+factos e sensações de que o Chico muito se admira.
+
+Decerto não sou muito velha--fiz em março vinte e dois anos--mas, assim
+mesmo, elle acha extraordinario como os episodios da minha infancia se
+me fixaram na memoria tão vivamente, e os posso recordar com tanta
+nitidez, como se a minha alma tivesse a receptibilidade mecânica de um
+fonógrafo.
+
+Não pensei nunca em escrever; sei, tão pouco, que nenhuma novidade pode
+trazer ao mundo a minha prosa descuidada e frouxa.
+
+Fui sempre pouco estudiosa e nenhuma honra dei aos meus professores. O
+Chico, que é um sábio, é que me disse, uma tarde, resumindo toda uma
+longa palestra em que eu lhe contei os mil incidentes de vida estranha
+em que o meu pobre espirito se debateu até chegar á dôce paz da nossa
+felicidade de hôje:
+
+--«Se tu escrevesses isso tal qual o contas, fariamos um belo estudo de
+psicologia infantil!...
+
+Eu, que adoro o meu Chico, não o queria desgostar, mas escrever tudo
+quanto sentia, tudo quanto me lembrava têr sofrido, parecia-me tão
+dificil!... Vida toda feita de sensações e estranhêzas de caráter, quem
+poderá têr interesse em conhecê-la?!
+
+Oh que coisa tão custosa de realisar, este desejo, quasi imposição, do
+Chico!...
+
+As minhas memorias são leves fios de aranha que não servem para urdir e
+tecer utilmente uma sólida obra caseira.
+
+Escrever o _Diario_ da minha infancia, eu que nunca tive paciencia de
+rabiscar cartas muito grandes--a não sêr para o Chico!...
+
+Depois, sei unicamente escrever o que sinto, e os escritôres--dizem--não
+fazem assim. O Chico sente os versos que faz tão lindamente, mas esse...
+oh esse é outra coisa!
+
+Por muito tempo discutimos, mas, como o senhor meu marido é
+adoravelmente teimoso e eu não sei ainda contrariá-lo, deixei-o ir uma
+noite destas ao teatro, recusando-me a acompanhá-lo a pretexto de ter
+sôno, e quando voltou, eram duas horas da manhã, entreguei-lhe o
+manuscrito, que leu sem descansar, tal qual o mandou imprimir logo no
+dia seguinte.
+
+Isso é que me custou!... Porque, depois de o escrever duma só vez, e sem
+hesitar diante duma unica palavra que não correspondesse ao meu
+pensamento, deixando correr a penna nervosamente, em galopada doida,
+quando as recordações vinham em montão, chamadas umas pelas outras, numa
+lufada de quasi vertigem, sempre imaginei que elle emendaria aquilo e
+lhe daria uma fórma mais corréta.
+
+Mas--qual historia!--o querido _infame_ teve o descaramento de se rir na
+minha cara e de me responder:
+
+--Que se o emendasse estragaria tudo!
+
+Foi assim que sahiu, tal qual o escrevi, numa hora de febre.
+
+
+Chamo-me Raquel. Creio que este nome é hereditario na minha familia,
+porque a minha avó e a mãe da minha avó eram tambem Raquel. Não sei.
+De genealogias, como de tudo mais, entendo pouco.
+
+O mais longe que posso recordar na minha existencia humana, vejo-me feliz.
+
+Era uma grande casa de aldeia, a nossa. Havia ali de tudo quanto pode
+desejar uma criança acostumada á simplicidade da vida campestre.
+
+Os pateos eram habitados por uma multidão de animais domesticos, que nos
+conheciam bem, de tanto milho que ás escondidas lhes deitavamos.
+
+Eu era a mais velha, e os meus quatro irmãositos seguiam-me alegremente
+pelos campos fóra, como um rebanho segue o pastor. Nada nos era defêso,
+nem parede que não tivessemos escalado, nem arvore que não conhecessemos
+como os nossos dedos. Os frutos eram vigiados desde que as arvores se
+cobriam de prometedoras flôres, e antes, muito antes da familia os vêr
+em casa, já nós tinhamos feito a nossa primeira escôlha. Quando a nossa
+pobre _burrica_ descansava do fatigante trabalho da nóra, iamos
+desamarrá-la da manjedoura, saltavamos-lhe para cima, e fazíamo-la
+trotar pelos caminhos pedregosos da aldeia como um _pur-sang_ trotaria
+nas avenidas areadas dum luxuoso parque.
+
+Felizes tempos!... Mas, no fim de contas, eu era uma rapariga; ás vezes
+lembrava-me disso, e nem sempre estava disposta a fazer de general no
+exercito _fraternal_.
+
+Muitas vezes mesmo, o instinto do meu sexo pedia-me brincadeiras mais
+socegadas: queria _governar casa_, _sêr a mãe_, exercer a minha
+atividade de mulher trabalhadeira e que conhece o seu logar. Chamava
+então as pequenas da minha idade e brincavamos _ás dônas de casa_:
+improvisando os nossos lares em qualquer recanto do jardim, servindo de
+baixela fragmentos de loiça, _cosinhando_ pétalas de flôres e hervas que
+tinhamos mais á mão; indo ao tanque lavar a roupa das bonecas, _as
+nossas filhas_; carregando a agua com a cantarinha em equilibrio sobre a
+_rodilha_, no alto da cabeça; tendo as nossas disputas e conversas como
+viamos ás _senhoras visinhas_, lá no povo. Ralhavamos com os _homens_,
+os meus irmãositos--porque entravam tarde, andavam por lá com os amigos...
+
+Na aldeia não havia meninas _finas_, e então arranjara as minhas amigas
+e companheiras nas humildes filhas dos nossos caseiros e serviçais.
+
+Tinha os seus modos desempenados, os seus gostos simples, e, apesar
+disso, não me parecia com ellas!
+
+Sempre me hade lembrar o que escandalisava meus pais quando afirmava
+perentoriamente: que de todas as casas da vila proxima, onde as havia
+muito bôas, era a mais humilde de todas a que mais me agradava.
+
+Cuidaram que era uma perversão do meu senso estético, mas vendo-a ha
+pouco, já depois de mulher, confesso que não mudei de opinião. É que
+sentia intuitivamente o pitoresco que os nossos artistas andam hôje
+procurando com tanto afan...
+
+Na verdade a casinha térrea, construida sobre a rocha onde tinham cavado
+os degraus, com seu alpendre e o seu pé de videira a ensombrá-lo, era
+duma originalidade, na sua singeleza primitiva, que me encantava.
+
+Nunca, como tantas crianças na minha idade, me lembrei de imitar a mamã,
+as tias, ou as senhoras das nossas relações. Nada! Só procurava sêr
+aquilo que nunca conseguiria, por mais esforços que empregasse.
+
+Melhor fôra que tivesse conseguido o meu desejo e ficasse como as outras
+raparigas da minha aldeia: uma perfeita camponeza, cheia de saude e de
+alegria, sem mais cultura do que a dellas!...
+
+--Meu Deus! A delicada ternura do Chico compensa-me de muitos desgostos
+passados, abre-me um caminho largo a uma existencia toda inundada de
+sol; mas, quando penso em quatro anos da minha existencia, sinto em mim
+uma tão grande repercussão de dôres passadas, que não sei quanta bondade
+lhe será precisa para mas fazer esquecer!...
+
+Emquanto eu suportei todos os tormentos que uma pobre criança pode
+sofrer, sequestrada de tudo quanto lhe rodeou e acariciou os primeiros
+anos; emquanto o meu espirito, sacudido pelas lutas mais violentas,
+angustiado pelas mais sombrias dúvidas, se abria á compreensão duma vida
+que dizem superior; emquanto o meu coração aprendia na dôr os infinitos
+cambiantes dos sentimentos complicados; a Rosita, a Maricas, e a
+Anninhas da méstra--as queridas companheiras da minha infancia--cresciam
+e faziam-se bôas e laboriosas mulheres, cheias de vida e saude, sem
+incompreensões mortificantes do seu proprio coração.
+
+Quando ellas me viram voltar á aldeia, tristemente grave, empalidecida
+pela dôr, adelgaçada pelos anos, o trajar cuidado de quem não desconhece
+os preceitos da elegancia, não compreenderam as lagrimas que bruscamente
+me vieram aos olhos e correram impetuosas pelas faces, como vaga
+interior vencendo todos os diques.
+
+Imaginaram--as pobres!--que eu tinha saudades das amigas de Lisbôa e as
+desprezava a ellas. Oh não, mil vezes não! Tinha uma pungente saudade do
+tempo em que o meu espirito, não fatigado, se comprazia nas suas
+conversas simples, e em que os seus gostos naturais eram tambem o meu
+gosto.
+
+Chorava desesperadamente a minha alegria, para sempre tocada de mal
+incuravel; tinha desprezo--e muito--por essa educação que me roubara
+quatro anos de vida feliz e proveitosa, dando-me em troca uma ignorancia
+mais completa do que a sua! Porque as minhas amigas e companheiras de
+infancia sabiam muita coisa util, e eu apenas me podéra convencer de que
+não sabia nada--o que é altamente desconsolador.
+
+Como já disse, durante a infancia considerei-me feliz. A minha mãe era
+bondosa, como muita gente o é, porque assim tinha nascido, pela mesma
+fatalidade psicologica que a podia têr feito nascer uma criminosa. Mas
+juntava a essa inconsciente bondade muita justiça e bom-senso.
+
+Cuidava escrupulosamente do amânho interior da nossa casa, não deixando
+as criadas levantar mão dos serviços, com uma disciplina que invejariam
+muitos instrutores de recrutas. Rezava as orações obrigatorias de cada
+dia; cabeceava á bôca da noite, antes de se acender o candieiro para
+o serão; e depois de espertar era a última a deitar-se em casa, depois
+de vêr todas as portas e apagar todas as luzes--não, fôsse o inimigo
+sonso que se lhe metesse algum ladrão em casa, ou as raparigas se
+descuidassem com o lume! De manhã era a primeira a madrugar, para a
+mesma labuta de todo o ano,--que era afinal a de toda a sua vida.
+
+De sabedorias para si, importavam-lhe pouco, mas queria-as para mim, que
+no seu entender devia tornar-me uma verdadeira _menina educada_: tocando
+piano, ataviando-me com geito de quem sabe, que não privasse com as
+_raparigas da rua_, que lêsse romances para têr umas luzes de historia,
+que bordasse a matiz e a escama de peixe ou a casca de castanha,
+cantasse ao piano em francês ou italiano, soubesse, emfim, estar numa
+sala...
+
+Duma tão grande infelicidade que a unica filha tinha modos de rapaz,
+detestava o piano, adormecia a lêr os mais pateticos romances, e fazia a
+cabeça doida ao padre José, que nos dizia a missa na capela da casa e
+toda a semana carregava com a pesada cruz de nos iniciar nos misterios
+da lingua portuguêsa.
+
+Ralhavam comigo, mas, por mais que ralhassem, não conseguiam fazer-me
+compreender a possibilidade de estar perfilada numa cadeira a
+receber as visitas na sala, como via as filhas do recebedor e as do
+medico da vila quando vinham á nossa casa. Francamente, abominava as
+adoraveis meninas, que ficavam com sorrisos murchos ao cimo da escada,
+recusando-se a seguir-nos á quinta com mêdo de estragar os lindos
+vestidos á moda, esses vestidos aparatosos, cheios de fitas e rendas,
+que usam na provincia as meninas ricas.
+
+Eu, que era uma selvagem incapaz de tolerar um colête justo ou umas
+botas apertadas, que pedia para que me cortassem o cabelo para não
+sofrer os penteados, que só gostava dos vestidos depois de afeitos ao
+corpo pelo uso, olhava com verdadeiro assombro aquellas meninas modelos.
+
+Ás vezes, a minha bôa Maria Augusta tentava apertar um pouco os cordões
+do colête,--«para me tornar elegante»--mas eu protestava tão
+energicamente que tinha de desistir logo, dizendo-me arreliada:
+
+--«Ó menina, é preciso sofrer para sêr formosa!
+
+--«Pois sim, espera por essa... Eu nem quero sofrer nem quero sêr formosa!
+
+Uma vez levantei-me cedo, estava uma manhã gloriosa de inverno, deste
+inverno tão nosso, em que o azul do céo é limpo, puro e transparente
+como se fabricado fôsse pelo mais escrupuloso dos artistas e da mais
+preciosa das porcelanas.
+
+Em casa apenas as criadas traquinavam na cosinha, encetando a labuta do
+dia, e a Maria Augusta abria janelas e portas para a limpeza do
+rez-do-chão.
+
+Acordara cedo; a chilreada dos pardais madrugadores era o meu despertador.
+
+O sol começava a aureolar o cume dos montes, e, como a nossa casa ficava
+ao cimo dum vale, depressa me inundou o quarto duma luz rosea que enchia
+de alegria os meus olhos e me fazia cantarolar e rir sósinha, como se
+estivesse no maior divertimento.
+
+E vesti-me á pressa, com grande abundancia de gestos, batendo na agua
+fria, que atirava para a cara com as mãos em concha, satisfeita e feliz
+como se uma alma nova despontasse em mim.
+
+Em baixo, a Maria Augusta e as outras criadas festejaram o meu sorriso
+jubiloso, a minha madrugada feliz.
+
+Correndo para o pateo, comecei por dar liberdade a toda a capoeira que
+ainda permanecia fechada, por soltar o Tigre que os criados já tinham
+acorrentado á sua grilheta diurna, e fui á estrebaria vêr a nossa bôa
+Cacilda, a burra, que me cumprimentou com um zurrar festivo.
+
+Iniciando assim o que a Maria Augusta chamava irreverentemente a série
+dos meus disparates, não parei no principio, o que seria prova de pouca
+independencia de caráter... Desprender a Cacilda e trazê-la para a
+horta, para que ella podesse saborear á vontade as couves que o velho
+hortelão guardava avaramente dos seus dentes de apreciadora, pareceu-me
+a coisa mais natural do mundo.
+
+Depois, ella bem almoçada, e naturalmente tão alegre como eu e como o
+Tigre, que a seguiamos satisfeitos de a vêr escolher uma a uma as mais
+tenras folhas da horta, achei tambem natural, como um simples remate de
+tal festa, que fôssemos dar um passeio até á mata.
+
+Chamando a Cacilda, acariciei-lhe o pescoço, dei uma volta á corda na
+mão, e dum pulo fiquei-lhe montada sobre o dorso como um rapaz.
+
+Um pequeno assobio ao Tigre preveniu-o da minha resolução, e ahi vamos
+nós todos três, alegres e felizes, porque o céo estava limpido e o sol
+brilhava, porque o ar era puro e os campos reverdeciam numa jovialidade
+de primavera proxima.
+
+A meio da carreira sobreveiu-nos um obstaculo inesperado, na vera pessôa
+do bom padre Zé, que já voltava das suas arvores em cata do almoço,
+e fez estacar a Cacilda com os seus gestos e gritos indignados.
+
+--«Para onde vai a menina assim montada?!
+
+--«Dar um passeio á mata. É para abrir a memoria e o
+apetite--respondi-lhe a rir.
+
+--«Mas isso não são modos de menina bem educada!--apostrofou-me aflito.
+
+--«Eu não sou _menina_, nem _bem educada_!--retorqui-lhe numa gargalhada.
+
+--«Se a mamã sabe!....
+
+--«Não lhe diga nada, que eu já volto.
+
+E, dando um sinal á Cacilda, partimos a galope, deixando o bom do padre
+no mais profundo pasmo.
+
+Agora são os medicos os primeiros a preconisar ás senhoras essa maneira
+de cavalgar, e não tardará que a moda a impônha como a última palavra do
+_chic_. Como a razão é intuitiva e se faz sentir na inteligencia liberta
+da criança!
+
+Mas á volta é que fôram ellas! Tinha levantado um verdadeiro temporal de
+protestos e queixas com os meus átos, tão espontaneos e naturais quanto
+me pareciam humanos e justos...
+
+Pois não seriam elles meritorios: abrir as prisões, soltar os presos,
+dar de comer aos que tinham fome, e em seguida premiar-me a mim
+mesma indo passear?!
+
+Não o entenderam assim em casa, lá porque as galinhas tendo encontrado
+aberto o portão do quintal tinham acabado a destruição da horta, que a
+Cacilda encetara com tanto brio! O hortelão parecia doido e a minha
+pobre mamã benzia-se assustada, temendo que eu tivesse o diabo no corpo.
+
+Fui chamada ao escritorio, áquelle escritorio de paredes revestidas de
+velhos livros onde o meu pai recebia os caseiros, fazia a sua
+escrituração, e lia, a maior parte das vezes, os seus in-fólios mofentos.
+
+O caso era realmente grave, mais do que poderia presumir, para que assim
+se tivesse apelado para a autoridade paterna...
+
+Assentado na larga cadeira antiga, de coiro lavrado e braços abertos num
+carinhoso aféto, onde elle descansava as suas finas mãos de intelectual,
+diante do pesado bufete de pau santo torneado em três cordas, como um
+juiz austero, o meu pai admoestou-me severamente por tanto disparate e
+terminou por dizer:--que me tornava o escandalo da familia e assim não
+podia continuar...
+
+E como esta outras muitas fiz, que não acabaria se as fôsse a contar
+todas.
+
+A mamã queixava-se da minha extrema ignorancia e incapacidade de sêr
+apresentada diante de gente, o que o meu pai corroborava dizendo por seu
+turno:--sêr absolutamente preciso, e muito urgente, mandar vir uma
+professora que tomasse conta de mim e me sujeitasse a uma «disciplina de
+ferro».
+
+--Que não, isso que não!--acudia a minha mãe--não queria estranhas
+metidas em casa a vêrem e a ouvirem tudo quanto se faz e em pouco tempo
+a saberem mais da nossa vida do que nós proprios. Nem a gente pode falar
+á sua vontade, nem têr as suas coisas, porque emfim não ha casa que as
+não tenha, sem que tudo se saiba e se comente... Depois, ceremonias,
+_niquices_, exigencias... nada, isso não!
+
+--«Pois é o unico meio:--opinava o papá triunfante--uma senhora que lhe
+fale uma lingua estrangeira e que a sugeite a um regimen invariavel.
+
+--«Nada, um colegio é ainda o melhor; mete-se lá a pequena e fica-se
+livre de cuidados.
+
+Meu pai hesitava,--tinha lá as suas ideias contra os internatos--e estou
+em crêr que me preferia ignorante, como a _Zéfinha da horta_ ou a
+_Teresita do barbeiro_, a têr que me mandar para um colegio.
+
+Os meus irmãositos todos se afligiam quando se ventilava a magna
+questão, que os ameaçava da minha ausencia, e eu, sem bem saber o que
+preferia, ia gosando alegremente os dias na bela paz da minha aldeia
+florída e ensoalhada.
+
+Mal suspeitava que a desgraça estava a bater-me á porta--e mais terrivel
+do que podia imaginar! Parece-me estar a vêr entrar na cosinha de grande
+chaminé, onde se enxugava o _enchido_ e as castanhas secavam no
+_caniço_, a mulher dos recados que fôra á vila buscar o correio, e me
+dizia, alviçareira:
+
+--«Olhe, menina, aqui vem uma carta para a mamã. É do seu tio Manoel; já
+lhe conheço a letra.
+
+Muito alegre, arrebatei-lha das mãos e fui-me pela casa fóra a gritar
+pela mamã até dar com ella no celeiro a receber uma _pensão_. Lembro-me
+bem--_cincoenta e sete!_--gritava o caseiro, e a mamã, muito serena, ia
+apanhando um grão de milho por cada alqueire que o homem despejava na
+tulha. Quando entramos--eu e os meus quatro irmãositos--como se fôssemos
+uma revoada de pardais bulhentos, ella toda se agastou...--Como isto me
+ficou nitido na memoria!--Quando viu de quem era e o que dizia a carta,
+correu toda satisfeita em busca do marido, emquanto nós
+aproveitavamos a falta de vigilancia para saltarmos todos para dentro do
+milho. Eu, que era a maior, enterrava-me até á cinta nos grãos amornados
+e enchia os bolsos do meu bibe branco, para levar uma lembrança ao
+pombal. Um dos pequenos gritava que as suas botas, de canos muito largos
+por têrem pertencido ao mais velho, levariam mais dum saco de milho,
+para a ração suplementar da Cacilda.
+
+Riamos perdidamente, atirando uns aos outros aquella chuva de grãos
+muito sêcos, ainda cheirando a campo e ao sol das eiras onde se aloirara
+e brunira!
+
+O caseiro achava muita graça aos meninos--podéra não!--e na sua cabeça
+lanzuda esboçava-se, talvez, o pensamento finório de se enganar na conta
+com alguns alqueires a menos. É provavel que assim sucedesse, porque a
+carta do tio Manoel tinha transtornado por tal fórma a mamã, que até se
+riu quando nos veiu encontrar a todos aninhados dentro do milho, e não
+passou revista ás nossas algibeiras quando saltamos para fóra e nos
+safamos com presteza--não fôsse ainda cerceada a merenda que levavamos
+aos nossos protegidos da capoeira, do pombal e da estrebaria!
+
+Já fóra e ainda ouviamos a contagem dos alqueires que entravam para a
+tulha, arrastada e monotona. Os bois, jungidos ao pesado e primitivo
+carro de duas rodas, estacionavam no quintal, ainda carregados com os
+sacos cheios com o resto da _pensão_, guardados por uma criancita
+vestida de jaqueta, calças compridas e grande chapéo, como um pequeno
+homem de caricatura. O que nós rimos! Era o filho do caseiro, o
+_Tonito_, mais novo do que o mais novinho dos meus irmãos, mas já util
+como uma pessôa crescida.
+
+São assim os filhos do nosso povo, duma sujeição ao trabalho que os
+predispõe para uma longa existencia paciente, sofredora e productiva.
+
+Como esse foi o último dia feliz da minha infancia, não me esqueceram
+nenhuns destes detalhes, nem o cheiro á poeira do milho e aos queijos da
+Serra da Estrella, que secavam em tábuas prêsas ao této do celeiro por
+cordas isoladas com têstos de barro, por causa dos ratos, providencias
+caseiras da minha mãe.
+
+Desde essa luminosa tarde de outôno, ainda quente como se o sol cahisse
+a prumo, num estiramento inesperado de estio, e já perfumada pelos
+frutos maduros, que se recolhiam á pressa, e pelo môsto de cheiro forte
+que ferve nas dornas ainda antes de recolher ao lagar, a nossa casa
+transformou-se completamente. Eram só conferencias sobre o que se
+daria aos _manos_, e mais os lençois bordados, a coberta de damasco para
+a cama, as toalhas de linho com ricas franjas de renda de Peniche...
+Tudo quanto havia de melhor se levava para _o quarto da laranjeira_, o
+mais vasto e cómodo da casa, o proprio quarto de meus pais, que tudo
+achavam pouco para receber condignamente o mano Manoel, que voltara
+havia pouco tempo do ultramar, casado com uma estrangeira. E assim
+passaram oito dias em que se não pensou nem falou noutra coisa.
+
+A minha mãe fazia esforços de memoria por se recordar bem nitidamente
+dos traços fisionomicos do irmão, como se volvidos tantos anos gastos em
+trabalhos e fadigas, elle podesse têr ainda o rosto levemente rosado, o
+buço mal lhe sombreando o labio superior, a cabeleira negra ondeada que
+lhe davam um tão gentil aspéto no retrato em _daguerreotipo_, tirado
+quando assentara praça em cadete, e que nós não nos cansavamos de ir vêr
+á sala de visitas, no seu estojo forrado de veludo granada.
+
+Até o Padre José afroixava a sua vigilancia pelo nosso estudo e punha-se
+ao dispôr da mamã--para o que fôsse necessario. A minha mãe sorria
+benevola e agradecia, mas não o ocupava em coisa alguma, porque elle,
+muito forte no português e no latim e mesmo um tanto no francês,
+tirado disso só á mêsa, diante duma travessa cheia de açorda, ou no
+pomar podando e cuidando das suas queridas arvores, era homem de alguma
+utilidade.
+
+Um santo, o nosso bom professor! Que saudades delle eu tive depois,
+quando comparava a sua maneira tão lhana de ensinar, a sua ingenuidade
+de bom, respondendo meio comprometido ás nossas curiosidades
+extemporaneas, e quando se atrapalhava á nossa pergunta atrevida:
+
+--«Ó padre Zé, para que está sempre a falar no diabo?
+
+Era o costume delle, o seu _bordão_.
+
+--«É verdade--respondia-nos muito ingenuo--é um diabo duma mania que eu
+tenho de estar sempre a falar no diabo!...
+
+Um bom homem, afinal de contas; um santo velho, nada fanatico, de bolsa
+franca para todas as miserias, palavras de consolação para todas as
+lagrimas, espirito bem equilibrado e muito logico, um filósofo sob a
+aparencia dum sólido camponez. Conseguira que eu aprendesse da minha
+lingua aquilo que ainda hôje sei; conseguiria--era capaz!--ensinar-me
+talvez o latim e até a ajudar-lhe á missa. O que não faria desta sua
+rebelde discipula a paciencia beneditina do bom Padre José!
+
+O tio Manoel era irmão mais velho da minha mãe. Sahira de casa muito
+novo; a última vez que empreendera a incómoda viagem á aldeia, era
+apenas cadete, como tirara o retrato. Depois fôra para a Africa, na
+ânsia de ganhar honras e postos. De lá percorrera quasi todas as
+possessões ultramarinas, sem mais se lembrar de escrever á familia. Só
+havia pouco tempo mandara noticias participando têr casado, e dizendo a
+sua resolução de voltar em breve ao reino.
+
+Alguns mêses mais tarde, nova carta dava conta da sua chegada a Lisbôa,
+onde estava tratando de se instalar, e convidava a irmã e cunhado para
+irem fazer-lhes uma visita. Na última carta, aquella que tanta impressão
+causara em todos nós, dizia:--que, em vista da dificuldade que os meus
+pais opunham em deixar a casa, viria elle visitá-los e apresentar a sua
+senhora.
+
+No dia em que deviam chegar, logo de manhã nos envergaram os fatos
+domingueiros, recomendando-nos muita cautela--não fôssem os tios
+julgar-nos uns besuntões!
+
+Nesse dia era escusado o _lembrete_, pois nenhum de nós pensava em
+diabruras, ansiosos como estavamos por vêr chegar os hospedes.
+
+O Papá partira cedo para a vila, para esperar a diligencia que traria os
+viajantes, e nós subimos ás janelas mais altas a vêr se
+descobriamos o carro por entre as faias da estrada real.
+
+Lá para o meio dia descobriu um de nós uma nuvem de poeira ao longe--tal
+qual como no Barba Azul--e, logo depois, ouvimos o guizalhar da
+diligencia que já se avistava numa volta da estrada. Corremos
+alvoroçados a prevenir a mamã, que na cosinha dava as últimas instruções
+á criada sobre a cosedura do perú e o assado de leitão.
+
+Um quarto de hora depois apeava-se á nossa porta, entre o povo curioso,
+a mais extraordinaria pessôa que até esse tempo eu tinha conhecido.
+
+Depois disso, no caminho da vida, que já não é curto pelo muito que
+tenho sentido e sofrido, tenho visto bastas figuras caricaturais: gente
+de todos os modos e feitios, tipos de comedia e tipos dolorosos de
+tragedia, riscados em dois traços por Gavarny, risos disformes em
+pálidos abortos, exageros de vestuario igualmente ridiculos, ou pela
+extrema elegancia ou pelo extremo desleixo... Tenho visto de tudo, e
+jámais senti o pasmo que essa primeira pessôa estranha causou no meu
+espirito desprevenido.
+
+Os meus irmãos, em frouxos de riso, fugiram para dentro de casa, e o
+Miguelsinho, que era o mais velho, abaixo de mim, puxava-me pela
+manga sublinhando risos muito ironicos.
+
+Eu, não sei porquê, não tive vontade de rir; qualquer coisa me dizia cá
+dentro de mim que era para pranto, e não para riso, a entrada daquella
+gente na minha vida.
+
+Primeiro apeou-se o meu tio, um vélhote bastante alquebrado, mas alegre
+por se vêr na terra natal. Abraçava toda a gente, e tratava por _tu_
+velhas que eu me acostumara a considerar avós, e que limpavam os olhos
+lagrimejando por o vêrem tão acabadinho... E elle ria--raparigada do seu
+tempo, todas essas vélhinhas, e queriam que elle estivesse um rapaz, e
+mais que não tinham andado por trabalhos e canseiras de climas
+inhospitos!...
+
+E achava extraordinario que a irmã, uma garotinha de saias curtas quando
+elle partira, estivesse já mãe de filhos...
+
+--«E já de cabelos brancos--visse bem o mano!...
+
+Atraz delle, sahiu do carro uma pequena de cinco anos, parecendo têr o
+dobro, nem bonita nem feia, extravagantemente vestida á inglesa de
+torna-viagem, e toda doutoral nas suas frases. Fôra a última a nascer,
+depois de bastantes anos de casamento, em que todos os filhos lhes
+tinham morrido; por isso era respeitada como milagre vivo.
+
+Por fim, quando os criados tinham carregado uma aluvião de malas,
+necessarios, sacas de linho bordadas, e tanta coisa que nos fazia
+arregalar os olhos de espanto, a nós pobres pequenos selvagens, que, a
+respeito de viajar, iamos ás quintas proximas pelo tempo da vindima e
+até ao rio em folgada pescaria uma vez por festa. Depois começou a sahir
+um prodigioso chapéo de palha envolto em gaze côr de castanha, e, a
+seguir, um corpo enorme vestido com um guarda-pó de xadrez em largas
+mangas perdidas.
+
+Era monstruosa a minha tia! Nunca lhe poude dar este nome porque o meu
+espirito se recusou sempre ao convencimento desse parentesco, que
+repugnava á minha afétividade.
+
+Alta como um carvalho e gorda em proporção, o que a tornava ainda mais
+exotica entre gente miuda como é a nossa. Talvez não tivesse sido feia,
+mas as feições estavam enterradas em tecido adiposo, e só naquelle
+deserto de cara branca brilhavam uns olhos metalicos e frios que nenhum
+sentimento conseguia adoçar. Quando os poisava na miudinha figura de
+morenita que eu era então, toda a minha carne se arrepiava numa tremura
+e os meus nervos vibravam desagradavelmente.
+
+Trazia o cabelo, já a embranquecer, cortado pelo pescoço,--_á
+estudanta_, diziam por lá as pequenas da aldeia--modos autoritarios, voz
+de comando, andar de granadeiro, e uma lingua de trapos que ninguem
+entendia.
+
+Mãos e pés não tinham fim, e o seu desembaraço irritava-me pela mania
+que tinha de fazer tudo e melhor do que ninguem, de falar alto e atirar
+os braços para a frente num gesto resoluto de jogador de _box_.
+
+Meu pobre tio admirava-a e escutava-a, submisso, como a um oraculo, nada
+fazendo sem a consultar.
+
+Sobretudo nenhuma delicadeza feminil, muito orgulhosa da sua
+superioridade e senhora da sua pessôa, dizendo mal--de _pórtuguês_, _e
+tudo quanto é pórtuguês, muito estupidos_!...
+
+Dizia-se filha dum banqueiro da Havana prodigiosamente rico, mas tais
+riquezas--como as de _Pedro Cem_--perdiam-se na sombra da lenda.
+
+Contava coisas estupendas de _seu papá_, descendente em linha réta de
+_grandes de Espanha_, pelos vistos, dos soberbos companheiros de
+Colombo... A _sua mamã_, essa era uma aristocratica _lady_, viuva dum
+membro da aristocracia britanica, que não se dedignara de aliar o seu
+puro sangue azul ao de descendente dos audazes conquistadores...
+
+A fortuna de _seu papá_ pesara por muito tempo nos destinos do visinho
+reino, como o luxo da _mamã_ déra brado na côrte de Madrid e na
+vilegiatura de San Sebastian, uma vez que os dois tinham visitado a
+metropole.
+
+Coisas que ella dizia, que, ao certo, quem pode dizer donde vem essa
+gente, retalhos desencontrados e disparatados das raças do mundo inteiro?!
+
+Apreendi depois, no decorrer da nossa convivencia, por meias palavras
+escapadas a uns e a outros e por inconfidencias de pessôas das relações
+e que os tinham conhecido lá fóra, que o banqueiro cahira
+vergonhosamente numa falencia que fizera estrondo e a _lady_ não passava
+duma aventureira, dessas que a Inglaterra exporta, sob a capa angelical
+de sérias _institutrices_, e que por todos os meios querem arranjar uma
+existencia mais cómoda.
+
+Orgulhava-se extremamente dessa sua origem britanica, como de têr
+nascido na America, como se fôsse uma legitima filha dos Estados-Unidos...
+
+Oh, a livre America, sonho de todos nós os que nos sufocâmos sob a
+pressão do convencionalismo europeu, como essa mulher nô-la
+mostrava odiosa, opressiva, duma rigidez de puritanismo fanatico!
+
+--«Oh! _Amérricana_, grande coisa!... _Eurrópa, muito desmoralisada!...
+Pórtuguês, muito estupida!..._
+
+Igual ao seu orgulho de têr nascido numa ilha da America e de pais tão
+ilustres, só o desprezo, e a ignorancia propositada, por nós, pelos
+nossos gostos e aspirações, pelo nosso povo tão laborioso e inteligente,
+embora inculto, pelo nosso país tão belo, o nosso clima tão dôce no sul
+e tão soberbo junto ás montanhas que a neve cobre nas invernias grandes...
+
+Desconhecia a nossa historia, não sabia lêr os nossos poetas, não se
+entusiasmava com os nossos prosadores. Os nossos costumes, tão
+pitorescos, eram, aos seus olhos, de selvagens; as canções do nosso povo
+achava-as sem brilho nem graça, melopeias só proprias para adormentar
+crianças.
+
+Oh, o horror que nos causava essa criatura, que assim abocanhava tudo
+quanto nos era querido, achando sempre que dizer das superioridades dos
+outros países! Nós, os pequenos, que não tinhamos adquirido com o
+decorrer da vida a fleugma risonha com que meu pai a escutava, a
+indiferença com que a minha mãe ia tratando da sua vida sem lhe
+prestar atenção, nem a paciencia do Padre Zé, que abanava a cabeça
+embranquecida como unica resposta; nós desesperavamo-nos por não nos
+permitirem contrariar a hóspeda. E o Miguel, que já pensava muito bem e
+tinha observações muito a proposito, dizia-me baixinho, de cada vez que
+a ouvia denegrir as nossas coisas:--Não sei como, sendo tão mau o nosso
+país e a gente tão estupida, ella casou com um português e veiu para cá
+maçar-nos!...
+
+Mas o que eu não compreendo é como essa criatura, que para nós era tão
+desagradavel, conseguiu convencer meus pais da sua inteligencia,
+chegando a dar-lhe razão nos seus grossos dislates.
+
+Principalmente na minha pobre mãe, que se julgava uma ignorante,--ella
+que dirigia a sua casa com tanto criterio e olhava providencialmente por
+nós todos--fizera profundo sulco a torrente de sabedoria enciclopedica
+que jorrava enfaticamente da sua bôca.
+
+Logo que chegou, desembaraçada dos apetrechos da viagem, olhou-nos com
+altivez. Depois tomou-me á sua conta, por sêr eu a mais velha e por ser
+rapariga. Um dia sujeitou-me a um interrogatorio em fórma:
+
+--«Menina sabe francês?
+
+--«Não, menina não sabia francês.
+
+--«Oh!... vergonha!
+
+Estive para lhe responder:--E a senhora sabe português?!
+
+Chamaram-me sempre atrevida nas respostas, mas o que é certo é que me
+arrependo sempre das poucas que tenho deixado de dar tal qual as penso.
+
+--«Menina sabe inglês?
+
+--«Não.
+
+--«Oh! sabe _desenha_?
+
+--«Não.
+
+--«Oh! muito _linda_! Aquellas sombras!... Na _Amérrica_ toda a gente
+sabe _desenha_!...
+
+--«Sabe _piana_?
+
+--«Não.
+
+--«Oh! vergonha, vergonha, uma menina não tocar nem cantar!...
+
+E seguiu-se uma preléção sobre tudo quanto enumerava e que eu,
+pertinazmente, ignorava. Na verdade eu sabia pouquissimo, mas estou
+certa que ella não conhecia senão de nome a maior parte do que dizia.
+Aquilo tudo era papagueado, elementos de coisas que aprendera no
+decorrer movimentado da sua vida.
+
+O meu querido Padre José pasmava:--«Como podia uma senhora saber tanto?!...
+
+E a minha mãe desculpava:--«Oh, a mana não imagina a falta de
+professores que ha por estes sitios! Temos pensado em mandar a
+pequena para um colegio, mas o pai prefere uma professora... Eu,
+professoras em casa--tenho-lhes um mêdo!
+
+
+Demoraram-se, apesar de todos os incómodos a que se sujeitavam naquele
+selvatico país, um longo mês em nossa casa. Depois...
+
+Quando penso, ainda estremeço de raiva! Depois de longas conferencias e
+segredos com os meus pais, combinaram que eu iria com elles para Lisbôa
+e ficaria em sua casa para me educar.
+
+Quando nós, os pequenos, soubemos o que significavam tais misterios, já
+tudo estava resolvido. Eu desanimei; os meus irmãositos choravam pelos
+cantos, e chegavam-se a mim para os animar. O Miguelsinho, que era o
+preferido da mãe, tentou discutir tal resolução e pedir para que me não
+entregassem á _estrangeira_, mas ficou desiludido da sua influencia
+porque o chamaram pateta e prohibiram-lhe terminantemente de se meter
+onde não era chamado.
+
+Cá por mim, nada pedi nem objétei; fechei-me num mutismo que exprimia
+já, mais do que as palavras, a onda de revolta que se me ia formando no
+coração.
+
+Sucumbi. Já não tinha gosto para nada: não voltei á quinta nem procurei
+mais a Cacilda, para a cavalgar como os rapazes e percorrer os caminhos
+tão conhecidos e amados. Os meus amigos do pombal sentiram por certo a
+minha falta, como os da capoeira a tinham já sofrido...
+
+Nunca mais procurei as pequenas minhas companheiras, mas via-as por
+detraz dos vidros da janela dansarem em rodas, ouvia-lhes as cantigas
+joviaes, percebia que jogavam a _laranjinha_ ou faziam de _senhoras
+visinhas_... E ficava-me indiferente, já alheada da sua alegria,
+afastada para sempre do seu convivio, desprezando inconscientemente a
+sua humildade. Era como aquellas pessôas, quasi na agonia, que já não
+são deste mundo nem o que nelle passa lhes interessa--e ainda não
+entraram no supremo descanso da morte.
+
+Decerto que muitas vezes pensara em sahir da aldeia, percorrer novos
+caminhos, vêr paisagens inéditas, terras lindas de encantar como as
+sonhava por esse mundo fóra!... Invejara, não poucas tambem, os
+vagabundos que passavam pela aldeia e nos contavam coisas estranhas para
+os nossos espiritos, e de que elles traziam nos olhos um vago
+assombro... Devaneando, o Miguelsinho e eu, quantas vezes não
+conversamos sobre a divertida existencia dos ciganos, que andam de
+terra em terra com os ursos e os macacos e sob a sua esfarrapada tenda
+têm todo o seu aféto e interesse no mundo?!
+
+Sahir dalí... ir viajar... vêr paisagens novas em folha para a minha
+retina, terras desconhecidas, gentes exoticas, seria uma libertação, mas
+ir na companhia duma pessôa que nos era tão particularmente antipatica,
+confiada á sua guarda, colocada sob a sua autoridade, isso nunca o podia
+têr sonhado, nem como pesadelo me assaltara jámais o espirito.
+
+Não chorava, porque a profundeza do golpe me revoltou até quasi á
+loucura. Desde o dia em que me deram a noticia do meu destino, deixei de
+sêr a criança que fôra até ahi para me tornar numa sombria criatura,
+raro abrindo em risos a sua alma ingenua.
+
+Tinha doze anos, cheios de saude e alegria; era uma perfeita criança,
+sem sombra de malicia a macular-me o espirito--uma pequena criatura
+muito humana e muito bondosa. Fui depois uma pobre alma torturada,
+contorcida em odios, desprezando e desconfiando de tudo e de todos.
+
+O mundo deixou de sêr para mim uma festa cheia de sol para se tornar num
+algido subterraneo.
+
+Hãode dizer que exagero, que o caso não era para tanto, nem a mulher de
+meu tio merecia o repulsivo odio que lhe votei... Mas que querem?! Não
+ha animais que odeiam uma determinada criatura, numa repugnancia
+instintiva, sem aparente razão?
+
+Tal o meu sentimento por ella: instintivo, invencivel, fatal.
+
+Meus irmãos choraram muito quando eu parti; a minha mãe abraçava-me
+soluçando convulsivamente, apesar de toda a sua serenidade de mulher que
+nunca sentira rebate de nervos em vibrações assustadoras, mas eu
+desprendi-me dos seus braços, de olhos enxutos, pálida e sombria,
+concentrada na convicção íntima de que não me estimava verdadeiramente
+quem assim me expulsava do seu lar, para me colocar sob a autoridade
+despotica duma quasi desconhecida e já detestada criatura.
+
+Antes o colegio!--pensava com amargura. Ao menos teria amigas que
+sofreriam comigo o cativeiro, teria talvez professoras que estimasse...
+
+Toda a gente da aldeia acorrêra para me dizer adeus; assim eu andava de
+braços para braços, levando beijos que me repugnavam mas aos quais não
+tinha coragem de me negar. As criadas, uma por uma, vieram ainda á
+porta do carro dizer-me os últimos adeuses, e quando a Maria Augusta me
+abraçou apertou-me com tal ânsia que um nó se me deu na garganta, e
+teria fraquejado ali, diante da _estrangeira_, se a não visse no fundo
+do carro sorrir com ironia da cêna, que aos meus olhos nada tinha de
+ridicula.
+
+Quando na vila, ao partir da diligencia, meu pai se voltou para limpar
+as lagrimas furtivamente, toda a minha alma explodiu num adeus--que mais
+era um grito de protesto... Até elle! Todos, todos, me abandonavam. Era
+demais!
+
+Aninhei-me a um canto da carroagem, estupidificada pelo assombroso do
+caso, e deixei-me transportar como um fardo, sem vontade nem iniciativa;
+era mais um volume a acrescentar aos inúmeros sacos, malas e maletas que
+abarrotavam a diligencia alugada por conta da minha enorme tia.
+
+De pouco me recordo dessa jornada triste que me levou a Lisbôa. Dias
+chuvosos de princípio de outôno, estradas desertas, campos desnudando-se
+numa paisagem uniforme, tristezas da alma e tristezas da bôa natureza,
+que se despedia dos meus olhos num compungimento de simpatia.
+
+Ainda bem que chovia! Se fizesse sol, se as raparigas cantassem pelos
+campos, e os carros de bois arrastassem pelos caminhos a fartura da
+colheita, quanto isso seria infinitamente mais desolador para a minha
+pobre alma confrangida!
+
+Assim cheguei a Lisbôa por uma madrugada nevoenta, sem sequer me têr
+admirado do caminho de ferro que pela primeira vez vira no
+Entroncamento, onde o fômos tomar. O que podia interessar e comover o
+meu espirito atordoado por esse repelão da vida, que tão cedo começava a
+maguar-me?!
+
+Ah, como se sofre quando se é criança, quando ninguem respeita a nossa
+dôr e a nossa vontade, quando decidem do nosso querer como se fôssemos
+títeres animados por maquinismo industrial!
+
+Lisbôa não me deslumbrou, porque mais, muito mais, fantasiara dos seus
+encantos e fausto no meu sonhar de criança. As ruas da Baixa, com as
+suas altas casarias alinhadas e uniformes, que a rigidez pombalina
+decretou, faziam-me uma terrivel saudade dos campos largos por onde a
+vista passeia e cabriola como cabritinho montez. Apertava-se-me o
+coração recordando os horizontes que se esbatem ao longe, nas serranias
+violetas; e o marulhar da multidão irritava-me os nervos, mal me podendo
+recordar o rumorejar embalante dos pinheirais atravessados pelos
+ventos em livres carreiras de tardes outonais...
+
+O meu pobre tio mostrava-me coisas, queria que me extasiasse com a
+capital, eu pobre serrana que nunca vira nada, mas a faculdade
+admirativa tinha-se embotado em mim. Era um corpo sem alma--que essa por
+lá me ficara, errando pelos campos da minha risonha terreola.
+
+Só quando o mar se descobriu diante dos meus olhos, elles se abriram
+numa atenção de velha simpatia. Não, nunca tinha visto o mar, mas
+sonhava-o e amava-o desde muito, com o aféto entranhado e atavico que
+todos nós lhe temos. O mar, a nossa estrada movediça e terrivel!... O
+mar, essa nossa segunda patria, foi a unica coisa onde descansei a vista
+com enlevo e que durante os quatro anos de cativeiro me deu algum prazer
+á vista. Quando, entre duas ruas, o descobria lá ao fundo, numa nesga
+rutilante de sol, toda a minha alma se refrescava e florejava de sorrisos.
+
+Felizmente que a casa do tio era num bairro afastado e novo, onde raro
+chegavam os pregões berrados das ruas e só de longe em longe o rodar
+duma carroagem fazia estremecer os vidros das janelas. E, por fortuna,
+tinha atraz um jardinsito, entalado entre casas é verdade, mas
+emfim mimoseando-nos com um pouco de ar mais puro para os robustos
+pulmões desenvolvidos pelo ar forte da montanha.
+
+
+A _cubana_ tinha fórmas dogmaticas sobre a educação, que serviam para os
+cinco anos da filha e para os meus doze de rapariga nubil.
+
+Era preciso que me levantasse cedo--vá! Isso não me custava, acostumada
+desde criança ás madrugadas na aldeia. Mas, depois de me levantar, não
+podia correr pela quinta, abrindo o apetite ao almoço suculento que me
+esperava na mêsa; tinha que fazer a cama, arrumar o quarto, e estudar.
+
+Em casa, para ajudar a Maria Augusta, muitas vezes lhe tirava a vassoira
+das suas pobres mãos encarquilhadas, e varria, cantando festiva,
+auxiliando-a no fazer das camas e mais arranjos domesticos; ali,
+obrigada, mandada por aquella monstruosa criatura, sentia um tal
+desespero, um tal rancôr a referver-me na alma, que todas as minhas
+ideias eram negras como fuligem, todos os meus sentimentos eram maus a
+roçarem pela perversidade.
+
+Encostada aos vidros da janela do meu quarto, olhava a gente que seguia
+o seu caminho, apressada ou vagarosa, alegre ou triste, pobre ou
+rica,--e a todos eu invejava com verdes invejas de reptil!...
+
+Era preciso que estudasse três horas antes do almoço, e o meu espirito
+vagabundeava pelos caminhos pedregosos da minha terra, debruçava-se na
+ribeira onde os salgueiros reflétiam a folhagem leve e as margaridas
+rosadas, as pervincas azuis e os miosotis da côr do céo espreitam entre
+a verdura da herva tenra.... Era preciso que inclinasse sobre os livros
+a minha pobre cabeça pesada de sôno, e os meus olhos fechados reviam os
+milharais regados de fresco, as cerejas vermelhas suspensas como pingos
+de lacre das arvores amigas, as amendoeiras em flôr, as encostas
+cobertas de olivedos pálidos, os pinheiros esguios, os castanheiros
+arreganhando a bôca dos seus ouriços para nos darem o fruto saboroso. O
+meu espirito não acompanhava o pobre corpo oprimido, que se estiolava
+num quarto fechado, diante de estereis livros que não compreendia; não!
+Elle assistia, lá ao longe, á ininterrupta festa da natureza;
+alegrava-se com os divertimentos do campo; procurava os magustos, onde
+se comem as castanhas assadas na fogueira; ia aos _serões_, onde as
+velhas avós contam lindas historias ás raparigas, fiando á mortiça luz
+da candeia suspensa do velador de pau enegrecido pelos anos;
+evocava as ranchadas que vão ás romarias, cantando e tocando a viola e
+os ferrinhos, e os que vão para as feiras álacres, entre festivos e
+afadigados, na policromia do trajar das mulheres e na gravidade
+interesseira do comerciante que oferece ou compra a mercadoria e discute
+largamente o seu negocio...
+
+A fuga era o unico deleitoso pensamento que se esboçava no meu cerebro.
+Fugir! Sêr livre! Não têr mais diante dos meus olhos a figura estupenda
+da mulher de meu tio, nem a face simiesca da petiza!... Era o ideal
+supremo que acariciava, um sonho redentor que se me fixava na cabeça por
+mil pontos delicados e impercétiveis. Formava com esta unica e obsessiva
+ideia projétos sem conto, e se não fôsse a covardia ante o escandalo,
+que é ainda uma servidão do nosso espirito, se não fôsse o receio atroz
+de sêr apanhada pela policia, vir o meu caso por miudos nos jornais, e
+sêr finalmente trazida de novo alí, certamente teria _feito alguma_!...
+Faltava-me a energia determinante dos fortes caratéres. A revolta
+traduzia-se pelo embrutecimento, pela apatia, pela oposição passiva dos
+fracos e dos ignorantes.
+
+Fechada no quarto todas as manhãs, em vez de estudar deitava-me sobre a
+cama, e afiguravam-se-me as tábuas alinhadas e estreitas do této como se
+fôssem as tábuas do meu caixão.
+
+Lá fóra era a vida: os pregões que atravessavam a rua solitaria numa
+festa ruidosa de côres, revoadas de andorinhas riscando o azul em
+zig-zagues caprichosos, a chilreada estúrdia dos pardais pelos telhados...
+
+Morria de aborrecimento, e morrer, creio, foi o pensamento mais
+consolador que nesse tempo se alojou no meu cerebro.
+
+Não estudava, o que era em mim um velho habito, mas com as lições do
+Padre Zé tinha chegado a compreender alguma coisa, e agora sentia-me sem
+nenhuma inteligencia, sonolenta, parada, sem sombra de vivacidade
+intelectual.
+
+Tinha uns poucos de professores, pagos pelos meus pais é claro. E por
+sinal que eram bem generosos com o dinheiro dos outros...
+
+O inglês ensinava-mo ella, mas eu odiava-a tanto e o meu espirito
+começava a achar um tal prazer em contrariar os outros, que me sublevava
+contra mim mesma quando começava a compreender essa lingua que ella
+tinha como sua.
+
+Farta já de a saber, obrigava-a a algaraviar o português para me rir
+intimamente dos seus comicos disparates.
+
+Estava assim.
+
+
+Pouco sahi durante os quatro anos que durou o meu cativeiro--porque a
+sua companhia me desagradava cordialmente, porque os passeios por ella
+escolhidos eram odiosamente disparatados, e porque a sua imposição de me
+ensacar em verdadeiros horrores, que ella alcunhava de vestidos á
+inglêsa, me causava um asco invencivel.
+
+Sem têr nunca apreciado os _laçarotes_ e as rendas esbanjadas nos
+vestidos provincianos das minhas antigas conhecidas, sem ambicionar a
+elegancia casquilha das meninas lisboêtas, o meu espirito era
+demasiadamente meridional, demasiado artista, para se não prender com a
+fórma e não se encantar pela côr e pela beleza do trajo, como de tudo
+quanto me pertencia e rodeava.
+
+Assim, achava meio de me esquivar sempre que sahiam, o que era raro,
+pretextando estudos que nunca fazia.
+
+De mêses a mêses, a visita ao consul inglês era o unico parentesis de
+luz na tristeza da minha vida. Tinha umas filhas encantadoras,
+algumas já senhoras, e, entre ellas, a Maud era muito gentil para mim,
+consolando-me e alegrando-me, nas poucas vezes em que nos avistavamos,
+das muitas horas de incomportavel tedio que passava naquella casa.
+
+Maud era muito inglêsa na sua educação para censurar uma pessôa das
+relações da casa, mas o simples sorriso dos seus labios finos, a ligeira
+caricia dos seus olhos puros, era quanto bastava para me encher o
+coração de reconhecimento e têr na sua amizade toda a confiança.
+
+Pobre Maud! Levada pelo destino para longe, obrigada a ganhar a sua vida
+pela morte dum pai afétuoso e inteligente, em que país, em que terra, em
+que familia, o seu sorriso honesto, a sua graça séria, serão consolo e
+júbilo para alguma criança infeliz, como eu era?!
+
+Outra qualquer pessôa, por menos melindrosa e suscétivel que fôsse, não
+se sentiria feliz num meio em que tudo era violento e desagradavel.
+
+A _cubana_ ralhava por tudo, nada estava feito a seu gosto, de manhã á
+noite lamentava têr vindo para um país de que dizia indelicadamente,
+grosseirônamente, os ultimos horrores:--a vida era carissima, os criados
+eram mandriões e inhabeis, era preciso olhar por tudo, vêr tudo,
+desde a roupa da lavadeira até á limpeza da casa...
+
+Tornava desgraçada toda a gente, e não consentia que ninguem se
+considerasse infeliz--possuindo a rara fortuna de a têr ao lado!
+
+Ao meu pobre tio impunha uma felicidade que elle estava longe, bem
+longe, de sentir. Não podia formular uma opinião sua; era obrigado a
+confirmar tudo quanto ella dizia, e ainda dizer-se o mais ditoso dos
+maridos e fazer elogios á sua alta inteligencia, bom-senso e sábia
+economia.
+
+Meu pobre tio! Verdadeiramente, aquella pressão moral em que conservava
+o bom do velho, revoltava-me. Nunca pensei em impôr a minha vontade a
+ninguem, e tudo quanto seja coagir a dos outros, tirar ao sêr humano a
+liberdade de sentir e pensar por si mesmo, exaspera-me como violencia
+contra mim propria exercida.
+
+Depois, a pequena tinha a bela qualidade de espiar e ir contar-lhe tudo
+quanto se dizia e fazia em casa, e por muitas vezes o que nem sequer se
+sonhava dizer ou fazer. Um _amôr_ de criança!
+
+As criadas entravam e sahiam com uma velocidade de comboio expresso.
+
+Quando mal humorada, dava-lhes bofetada e descompostura que as fazia
+fugir espavoridas; mas, se por outro lado lhe désse na cabeça,
+enchia-as de presentes e favôres. Era conforme ellas sabiam ou não
+lisongear-lhe a vaidade.
+
+A última que lá conheci, talvez a mais velhaca de todas, essa soube
+cativá-la, e fazia quanto queria sem que ouvisse uma simples reprimenda.
+Adiante falarei na menina Eulalia, que entrou para muito na minha vida.
+
+Meu tio é que escrevia para casa e lá dizia dos meus adiantamentos, que,
+francamente, não eram nenhuns. Ás noticias dos meus pais, tão carinhosas
+e prolixas, eu respondia com aquellas cartas incolôres que todas as
+crianças prisioneiras nos internatos, ou onde quer que lhes pônham
+sentinela ao pensamento, têm escrito. Cartas em que nem um vislumbre da
+alma infantil entreluz; cartas feitas só de palavras ouvidas, e que são
+o primeiro passo para a mentira social a que nos querem sujeitar, como a
+cães sábios sob o chicote domesticador e o mêdo... A criança, que sabe
+que as suas cartas serão maculadas pelos olhares indiferentes, e os seus
+verdadeiros sentimentos procurados nas linhas em branco da sua pobre
+correspondencia, perde a sinceridade, não se expande com lisura, não diz
+o que sente...
+
+Os bilhetes que metia no mesmo sobrescrito de meu tio eram frios, pouco
+mais ou menos o que me diziam que era dever escrever:--que estava bem,
+que era bem tratada, que me sentia feliz... Nada do que, em verdade, eu
+teria desejo de dizer!
+
+É certo que a minha alma irritada julgava-se ofendida pelo desamôr com
+que me tinham expulso de casa para me atirar para o poder daquella
+mulher, que para mim resumia tudo quanto eu podia odiar mais.
+
+Nesse tempo não gostava de ninguem--nem de mim mesma. Era injusta, mas
+era humana. O animal criado em toda a expansão da sua vida material e
+forte, não se subjuga sem rebelião, não se obriga sem muito custo a
+entrar no regimen de servidões a que se convencionou chamar _deveres
+sociais_.
+
+Assim, quando meu pai empreendia a longa viagem da aldeia á capital para
+me vêr, eu não correspondia de modo algum ao seu aféto e interesse.
+
+Sem compreender o enorme sacrificio que faziam para me dotarem com uma
+educação que supunham sêr um precioso instrumento de felicidade para
+toda a minha vida, achava que era desamôr o que me consagravam e tão
+sómente desejo de me vêrem longe da sua casa, porque o meu feitio moral
+os desconcertara e lhes era talvez odienta a minha presença...
+
+Ás perguntas insistentes que me fazia, vendo-me tão delgadinha e triste,
+o meu orgulho fazia-me responder com sistematica negativa.
+
+Se elle se demorasse, se insistisse, a minha energia não seria mais
+forte do que a revolta contra o sofrimento, tão natural ao sêr humano
+quando novo e saudavel.
+
+Mas o meu pai não supunha encontrar tais meandros e subtilezas no sentir
+duma criança que conhecera defeituosamente franca e impulsiva. Por outro
+lado, os negocios da casa não o deixavam demorar mais do que um dia ou
+dois, o que não era muito para fundir o gêlo que se formara no meu
+coração contrariado e amarfanhado.
+
+
+Ora de estudos ia eu muito mal. Os meus professores classificavam de
+estupidez a minha incapacidade de satisfazer as lições, e creio bem que
+o era.
+
+Não estudava, e mesmo que estudasse não compreendia.
+
+A cabeça parecia-me de chumbo, pesava-me como o capacete dum guerreiro
+antigo. Não faziam nada de mim, pela certa!
+
+A professora de desenho era a unica que tinha dó dos meus traços
+indecisos e me dirigia com bôas palavras, por isso fiquei sabendo um
+pouco mais dessa arte, que das outras, e com imensa pena de não poder
+fazer tudo quanto ella me dizia que seria capaz de realisar, com a minha
+paixão pela corréção das linhas classicas, a minha expansiva busca das
+côres, que ousava procurar inéditas e brilhantes na paleta de
+principiante...
+
+Sentia-me infeliz, e, se verdadeiramente me quizesse queixar, não
+saberia bem precisar o que me maguava naquella casa. Talvez porque era
+tudo, desde a gente até á comida. Chegava a sêr um suplício; acostumada
+em casa a encher abundantemente o meu pequeno estomago voraz, ali tinha
+até mêdo de meter na bôca um pedaço a mais, porque via todos os olhos a
+pesarem e a medirem tudo o que a minha garganta oprimida conseguia
+deixar passar.
+
+Por economia e por habito, eram todos frugais, e eu, por ceremonia,
+quando os via recusar o _roast-beef_, que se comeria frio no almoço do
+dia seguinte, recusava-o tambem, embora ás vezes sentisse um bom apetite
+de animalsinho carnivoro, que não se sente satisfeito.
+
+O meu unico desafogo era o jardinsito, que tratava com todo o cuidado.
+As sementeiras iam a horas para a terra, e não lhes faltavam as
+regas, com a agua que eu mesmo tirava da bomba, nem a cobertura de
+palha, mais tarde, por causa das geadas.
+
+Andava sempre a espreitar o crescimento das plantas tenrinhas, que mal
+despontavam na terra pobre de adubos vitalisadores; e quando, na
+primavera, as arvores que mal se desenvolviam na sombra daquelle
+jardinsito entalado entre predios altos, se enfloravam, toda a minha
+alma florescia com ellas, recordando as que lá ao longe perfumavam os
+campos onde a minha saudade me levava errante...
+
+Ora o jardim era dividido do que pertencia ao rez-do-chão da esquerda
+por uma sebe de madeira, que eu pensara em disfarçar sob a verdura
+abundante duma trepadeira de folha permanente. Passava horas
+desembaraçando as finas hastes para as ir guiando e atando. Quantas
+vezes, de tanto as querer estender e espaldar, não parti grandes
+pedaços, que depois lamentava muito contristada! O mal de quem tem muita
+pressa... em contrafazer a natureza.
+
+Ao fundo, era limitado pela parede dum outro jardim, que nunca tivera a
+curiosidade de procurar vêr, embora por lá sentisse as risadas de
+crianças mais felizes do que eu...
+
+A tristeza até embota a curiosidade, essa fórma, embora inferior, da
+vivacidade intelectual. Concentrava-me no meu proprio sentir, e todo o
+mundo me era estranho.
+
+Ora isto foi assim até que num dia veiu para o rez-do-chão visinho uma
+nova familia: pai, mãe, e filha, uma pequena encantadora, que começou a
+sorrir-me e a cumprimentar-me quando me via na minha faina de jardineira.
+
+A Mariquinhas, com a sua mobilidade graciosa, falou-me uma primeira vez,
+a proposito de nada, só para encetar conversa. Respondi-lhe
+acanhadamente de principio, mas em breve toda a minha timidez
+desaparecera diante da sua ampla cordialidade. Conversamos, e logo á
+despedida nos beijamos, por cima da sebe que já conseguira vestir duma
+folhagem de lindo verde brunido.
+
+Em poucos dias ficamos as maiores amigas do mundo. Pela minha parte
+entreguei-me com ardôr ao estranho prazer dessa amizade; agarrei-me a
+essa ventura com o desespero de quem se vê só, num meio irritante e
+hostil, sem um unico aféto a confortar um pobre coração feito para o
+sentimento.
+
+A Mariquinhas era a unica e amimada filha duns pais, que a tinham só a
+ella, duns poucos que no seu ninho tinham batido azas palpitantes de
+alegria e esperança e a morte lhes levara numa impiedosa e cega
+colheita.
+
+Era em casa uma pequenina rainha, que não abusava é certo da sua
+autoridade, antes punha uma suprema graça nas suas ordens e caprichos.
+
+Hôje, recordando bem as suas feições, que o tempo já quasi deliu na
+minha memoria, acho que não devia sêr, talvez, uma formosura, mas nesse
+tempo era para mim tudo quanto conhecia de mais puro enlevo.
+
+Magrinha, elegante, duma finura de traços angelicais, tinha a pálida
+beleza das camelias delicadas, que as fortes chuvas do inverno desfolham
+rapidamente.
+
+Era muito instruida, uma pequena e encantadora sábiasinha, que sorria,
+maternalmente conselheira, da minha supina ignorancia.
+
+Já quasi mulher, um tudo-nada garrida, vestindo divinamente os lindos
+vestidos da sua escôlha, ella materialisou no meu espirito o ideal duma
+santa ou dum anjo salvador, que Deus tivesse mandado ao meu purgatorio.
+
+Porque... esquecia-me mais esta: a mulher de meu tio era protestante,
+mas da última hora. Com todo o fanatismo dos neófitos e a sua terrivel
+mania de impôr as suas ideias e de prégar as suas convicções, todos os
+dias me ensinava e explicava o evangelho, á sua moda, isto é:
+analisando-o e adaptando-o á vida quotidiana, com uma banalidade
+desesperadora.
+
+Na minha aldeia nunca ouvira falar em evangelho senão no latim do Padre
+Zé, á missa, quando a minha mãe nos dava a consolação de nos pôrmos de
+pé. Mas estava acostumada a conversar com o Anjo da guarda como se fosse
+um irmão, e no rosto delicado das esbeltas Santas góticas, que ornavam
+as paredes da nossa velha igreja, lia enlevadoras historias que ellas me
+sorriam...
+
+Arrancar a uma pobre alma de meridional, apaixonada pela côr e pela
+fórma, o olôr dos incensos subindo em dolentes preces para um céo
+recamado de oiro e pedrarias, onde lindas crianças cantam e tocam
+flautas e guitarras maravilhosas, onde florescem jardins ideais, e
+correm fontes inesgotaveis de perfumes suaves; tirar-lhe a ilusão
+magnifica duma vida embalada pela esperança do milagre, e dar-lhe em
+troca a frieza do raciocinio, a clara e positiva significação das
+palavras, a simplicidade da fórma despida do encanto da arte, será por
+certo de muito bons resultados futuros--e foi-o para o meu espirito, que
+se habituou ao rigoroso cumprimento da verdade--mas nesse tempo
+constituia um sacrificio a mais a juntar aos muitos outros.
+
+Pois a Mariquinhas encarnou para a minha imaginação mortificada, o anjo
+meu companheiro e protétor. Pela sua mão seguiria por sobre a _fragil
+ponte_ que representa o dificil caminho da virtude, nas imagens
+popularisadas pela oleografia barata, em que o guarda angelico guia uma
+criancinha, com a sua mala de viagem a tiracolo, pela áspera senda do
+bem...
+
+Fôram os dias bons da minha permanencia naquella casa.
+
+Não sei como a terrivel _cubana_ se não opôs á nossa convivencia, embora
+distanciada, apenas entretida pelas fugitivas palestras trocadas a mêdo
+por sobre a sebe que as minhas trepadeiras iam vestindo e matisando com
+uma floração polícroma.
+
+Lembro-me agora que a Mariquinhas, com a sua viva inteligencia cultivada
+no convivio da sociedade, compreendera desde logo de quanta vaidade e
+orgulho se enchia a enorme criatura, e sabia lisongeá-la com leves
+delicadezas, das quais eu nem sequer compreendia o alcance, na minha
+inteireza selvagem.
+
+Hôje, era uma linda flôr mandada pela pequena para a mamã pôr no seu
+logar, á mêsa; ámanhã, noticias lidas por acaso nos jornais sobre coisas
+passadas em Inglaterra ou nos Estados-Unidos; depois, uma corréta
+atenção aos discursos que lhes algaraviava, quando acontecia vê-la da
+janela.
+
+Com tão pouco, a Mariquinhas vencera a resistencia feroz daquella
+fortaleza e achava-se senhora da situação. Nunca pensei que eu teria,
+talvez, conseguido o mesmo se o orgulho--que é uma virtude que nos
+nobilita, mas torna dificil a vida social--não me fizesse olhar com
+desprezo para esses processos que me punham numa dependencia moral que
+me irritava. Decididamente a Mariquinhas era muito melhor politica; onde
+o meu temperamento voluntarioso punha energia revoltosa, a doçura do seu
+espirito, tão levemente ironico quanto profundamente conhecedor das
+fraquezas alheias, usava o suborno da lisonja, que a todos conquista e
+agrada.
+
+Apesar das familias não têrem nunca encetado relações que as tornassem
+do mesmo convivio,--porque a mãe da Mariquinhas detestava a _espanhola_,
+como lhe chamava--conseguira a criança, com as suas blandicias de
+lisboêta amavel, que me deixassem ir passar algumas tardes a sua casa.
+
+Era um banho dulcissimo de calma para o meu espirito, que fermentava em
+sublevações concentradas mas nem por isso menos violentas.
+
+A D. Emilia era uma destas almas bôas e sãs, tal qual a da minha mãe,
+modestas no cumprimento religioso duma existencia que nunca teve dúvidas
+nem sobresaltos de consciencia. O seu espirito era simples, e os seus
+olhos diziam na clara expressão o que ás vezes os labios não se atreviam
+a proferir, com receio de ir infelicitar os outros com uma observação
+menos resignada... ou mais verdadeira.
+
+Conversar com a bonissima criatura era abrir o coração e deixar correr
+as palavras livremente, numa fluencia de ribeira múrmura e limpida
+deslisando por campo sem obstaculos; ouvi-la era escutar o carinhoso
+conselho duma rara alma humana que nunca se tinha poluido numa mentira.
+
+Ah, como o meu coração se aliviou da tristeza imensa em que se afundava,
+contando-lhe a minha vida; e como ao contar-lha precisei verdadeiramente
+o _mal de viver_, que me vencera e arrastava para o desespero! E como ao
+escutar-lhe a palavra mansa e insinuante, compreendi, e melhor apreciei,
+a modesta e nobre missão da minha pobre mamã!...
+
+O pai da Mariquinhas parecia viver só para tornar felizes as duas
+criaturas, que eram todo o seu cuidado e amôr. Aposentado do seu
+logar de lente duma escola superior, passava os dias estudando e lendo
+no seu gabinete cheio de livros, que já lhe invadiam a secretária, que a
+filha todas as manhãs lhe ia enflorar com lindos ramilhetes que ella
+mesma cortava e ageitava nas jarras.
+
+Que suave e dulcida existencia! E como a vida corria sem se sentir entre
+aquellas três criaturas, tão estreitamente unidas pelo amôr, sem
+violencias nem coáções... Que diferença da nossa casa, onde a mulher de
+meu tio queria impôr não só a sua autoridade absoluta, o que já seria
+abominavel, como os seus gostos e sentir e toda a sua maneira
+particularissima de vêr as coisas!
+
+Aquella atmosfera pacificadora fazia-me bem, domesticava-me o coração
+que se tinha tornado feroz no odio e na desconfiança.
+
+A unica receita eficaz para se sêr amado sinceramente é amar; era a que
+usavam os meus amigos, e por isso venceram a minha rudeza e fizeram com
+que os amasse com todo o entusiasmo da minha alma apaixonada.
+
+Com o refrigerio daquelle contacto a vida tornou-se-me menos pesada;
+suportava melhor a desgraça desde que tinha quem me compreendesse e
+lamentasse. Pobre criança expatriada, que eu era,--naquelle meio tão
+estranho e adverso!
+
+Passado o sofrimento que nos crucifica, tirados do logar em que fômos
+martirisados, olhando a frio para o que nos fizeram sofrer, é que
+verdadeiramente compreendemos e sentimos a dôr, mas com um sentir
+retrospétivo que se torna tanto mais agudo quanto maior é a convicção do
+que foi a nossa miseria.
+
+Durante o sofrimento a sua propria vehemencia nos atordôa e dá um
+anestesico moral, que é a unica compensação para os que têm sentido
+pesar sobre si a infinita maldade humana.
+
+Quantas vezes, lendo a historia do passado, não nos atravessa o espirito
+a dúvida de que fôsse possivel ao fragil organismo humano resistir aos
+ferozes martirios fisicos e morais que as paginas ensanguentadas de
+todos os povos nos mostram; mas, olhando em roda de nós, sabendo o que
+se faz ainda hôje e que a tirania já não pode esconder ao nosso
+conhecimento, porque os protestos dos condenados resôam mais alto na
+consciencia humana ou os nossos ouvidos se apuram mais para os escutar,
+convencêmo-nos de que é um facto esse embrutecimento sensacional que
+pela propria violencia da dôr atenua a mesma dôr, que quasi nos
+insensibilisa á força de sofrer.
+
+É o motivo porque hôje pasmo da resistencia passiva que eu fiz ao
+martirio daquelles quatro anos de educação inquisitorial. Ou não
+fôsse a minha tia uma legítima descendente dos _hidalgos_ inquisidores
+que civilisaram a ferro e a fogo os infelizes seus conquistados!
+
+
+Ora na casa a que pertencia o jardim que confrontava com o fundo dos
+nossos, vivia uma familia das relações dos meus amigos,--fôra até a
+causa delles virem morar para o nosso lado, soube-o depois.
+
+A Mariquinhas falava-me muitas vezes no Chico, que vivia do outro lado
+do muro e era filho da grande amiga de infancia da sua mamã. Dizia-me
+que nessa ocasião passava elle as férias no campo, e que quando voltasse
+eu veria como era gentil e bom companheiro de brinquedos.
+
+E falava com tal entusiasmo do seu pequeno amigo, um belo estudante já
+quasi a terminar o curso do liceu, que o meu aféto--confesso--se
+sobresaltou, e um dia perguntei-lhe ansiosa:
+
+--«Ó Mariquinhas, tu gostas mais do Chico do que de mim, não gostas?!...
+
+Teve um fino sorriso incompreensivel para a minha ingenuidade lôrpa e
+respondeu-me com o ar ironico duma verdadeira mulher:
+
+--«Elle é um rapaz, e tu uma rapariga.
+
+--«E isso que tem para sêres mais sua amiga?
+
+--«Tem tudo. Não é a mesma coisa.
+
+Não percebi como podesse existir tal diferença nos afétos, mas
+resignei-me a ficar sem mais explicações para que o sorriso de desdem
+com que a Mariquinhas acolheu a minha evidente tolice não lhe aflorasse
+de novo aos labios finos.
+
+Bastas vezes me ficava meditabunda, entristecida, perguntando a mim
+mesma se nova complicação não viria por aquelle lado entenebrecer a
+minha pobre existencia, onde se abrira uma nesga de céo azul.
+
+Felizmente não foi assim. O Chico, apesar de mais velho do que nós dois
+anos, foi um ótimo companheiro das nossas tardes de recreio.
+
+A Mariquinhas ao pé delle tornava-se mais senhora, mais cheia de
+gravidade e importancia, sorrindo-se para o Chico quando eu dizia alguma
+infantilidade, como uma mãe que acha encantadora a ingenuidade do seu
+filhinho.
+
+E bem criança que eu era, apesar dos meus quatorze anos, ao pé da
+Mariquinhas, reflétida, instruida e séria como o não são muitas mulheres
+feitas.
+
+O Chico, que já então era um sábio em miniatura, ensinava-me muita
+coisa, lia-me lindas historias de viagens e descobertas, que era o que
+mais o interessava, e explicava-me cheio de paciencia as minhas lições.
+
+Saltava pelo muro para o quintal da Mariquinhas, de maneira que não
+fôsse visto de minha casa, com receio de sobresaltar a _estrangeira_, e
+vinha têr comnosco associando-se aos nossos brinquedos com um bom humôr
+que nos encantava.
+
+Que a Mariquinhas e o Chico esboçassem já então um destes idilios
+deliciosos de infantilidade que são ás vezes o princípio de grandes e
+puros afétos, que se enroscam na alma e influem para sempre na sua
+modalidade, pode sêr, mas que eu não compreendia nada dessas
+precocidades sentimentais, é tambem certo!
+
+Foi nesta altura da minha vida que entrou para criada da nossa casa a
+menina Eulalia. Não sei de que terra ignorada de provincia teria vindo
+aquelle especimen bem acabado da criada alfacinha, mas é certo que ella
+já trazia o cunho particular, os vicios e o geito dessa peste que entra
+nas casas como a traça na roupa. Que diferença entre essas criaturas
+falsas, interesseiras e intrigantes e as nossas criadas da provincia, á
+moda antiga, um pouco boçais e confiadas, é certo, vivendo com os
+amos numa certa igualdade familiar, mas tão fieis, tão amigas e
+carinhosas para nós! A Maria Augusta, coitada, com quanta ternura eu
+pensava na bôa mulher que nos criara com extremos de mãe, e tanto
+chorara a ultima vez que me fôra vestir, para a jornada!
+
+E a cosinheira solícita e desembaraçada, que nunca esquecia de meter na
+fornada semanal do pão de milho, para os criados, os bôlos para os
+meninos?! E a _paquêta_, a pequena criada que se vai avesando de criança
+aos usos da casa, e é, ás vezes, no futuro, a melhor de todas?! E a de
+fóra, encarregada da criação e dos porcos, que nos trazia abadas de
+fruta quando ia ás propriedades distantes?! E os criados, desde o rapaz
+dos recados ao feitôr, como toda essa gente era sincera julgando-se na
+sua propria casa--dizendo as _nossas_ casas, as _nossas_ matas, as
+_nossas_ rendas!...
+
+Quanto melhores, apesar dos defeitos de educação que lhes notava a
+mulher de meu tio, do que essa turba avarenta e mal educada que vi
+desfilar por sua casa durante os quatro interminaveis anos que lá vivi!
+
+Eulalia era baixa e magra, as faces manchadas, os dentes postiços, os
+cabelos frisados, e uns olhos pequenos e inquietos que nunca se
+fixavam em nós com franqueza.
+
+Não gostava della intimamente, mas acostumara-me já a nada mostrar dos
+meus sentimentos e nada, pois, lhe disse que a fizesse supôr tal antipatia.
+
+No entanto, ella compreendeu desde logo que eu era pouco na casa, e
+ria-se de mim com a _Lóló_ (o nome familiar da pequena de meu tio), que
+enchia de falsas caricias. Tinha grandes demonstrações de aféto pela
+_sua rica senhora_, a quem lisonjeava para despertar a sua generosidade,
+que percebera existir quando gostava das criadas, o que não era vulgar.
+
+Com o meu tio, cada vez mais doente e enfraquecido, ninguem se dava mal.
+
+Portanto, ia a menina Eulalia sêr a primeira que por lá se conservasse
+mais de um mês ou dois.
+
+Era mais uma criatura hostil a seguir os meus passos, mais uma bôca a
+denegrir o meu procedimento, mais uns olhos a espiarem-me, e um
+pensamento álerta que se exerceria contra mim.
+
+Apesar disso, as minhas relações com a Mariquinhas não afrouxavam, e a
+mulher de meu tio não se opunha a ellas porque encontrara emfim o meio
+infalivel de domar o meu orgulho e fazer-me docil e estudiosa. Á
+simples ameaça de me prohibirem esses momentos de desafogo, não havia
+nada que eu não fizesse! Se era a unica felicidade para o meu coração--e
+o sêr humano tem della tanta necessidade! Nem os professores já se
+queixavam de mim, que a Mariquinhas e o Chico tinham-me tornado quasi
+estudiosa, com os seus conselhos e com os seus exemplos.
+
+O tempo nunca pára e por peor que estejâmos corre do mesmo modo veloz,
+ainda que tal nos não pareça, dobradas como são as horas de amargura. Já
+ia para quatro anos que ali estava e, relativamente, os últimos dois,
+desde que conhecera a Mariquinhas, tinham sido de relevado encanto para
+mim. Não pensava nem queria pensar no que me rodeava, para só vêr os
+meus amigos e com elles viver, mesmo quando ausente.
+
+Foi então, quando nós iamos já contar dezeseis anos, que a Mariquinhas
+entrou a adoecer.
+
+A toda a hora se sentia mal. A mãe, muito inquieta mas sem o querer
+mostrar, envolvia-a de carinhos, procurava satisfazer-lhe todos os
+desejos. Enchia-se de apreensões, e toda a sua alma se enregelava e
+tremia num pavôr de dôres já sentidas a prognosticarem amarguras ainda
+inéditas.
+
+Pobre mãe! Era bem certo que a Mariquinhas lhe daria, e breve, o maior
+desgosto da sua vida.
+
+O outôno vinha chegando, duma estranha doçura esse ano, a infiltrar-se
+na alma, todo doirado nos poentes tepidos a esmorecerem em lentas
+agonias, como nas arvores que se cobriam do oiro das folhas mortas para
+mais depressa se despirem e esperarem arrepiadas e friorentas o triste
+inverno.
+
+O jardim constelava-se de crisântemos, que na nossa terra têm o
+sugestivo nome de _despedidas de verão_, brancos como flocos de neve,
+rubros, amarelos, dum rôxo desmaiado como leves aguadas, outros de côres
+intensas, mesclados e rajados, variando na côr como na fórma, desde o
+desgrenhado da cabeleira bohemia ao recorte regular da máquina de fazer
+flôres de papel.
+
+Debaixo do caramanchão, que tambem se ia despindo, primeiro das flôres,
+depois das folhas, a Mariquinhas, quasi deitada na cadeira de verga que
+a mãe lhe almofadava desveladamente, olhava melancolica os seus queridos
+crisântemos, que todas as manhãs desabrochavam de novo e vinham
+preencher a falta dos que se cortavam ou pendiam emurchecidos.
+
+Com as suas mãos translucidas, que eram uma das suas grandes vaidades,
+entretinha-se por vezes a juntar em ramilhete as flôres que eu lhe
+ia levando. E mandava-me ir dispô-las no gabinete do pai, como outrora
+ella fazia. Mas o triste velho é que não lhe achava o mesmo encanto, e
+com a cabeça entre os braços cruzados sobre a secretária, mal me via
+desatava num soluçar de criança, que me compungia extraordinariamente.
+
+Ás vezes mandava-mas cortar duma só côr, e juntando-as num ramo,
+dizia-me, sorrindo enigmatica:
+
+--«Vês? Gosto mais assim. As brancas junto das outras pareciam-me ainda
+mais pálidas. É como os doentes ao pé dos que têm saude.
+
+Tinha então manias esquisitas, caprichos inconcebiveis, maus humôres,
+que me faziam sofrer enormemente. Impacientava-se quando me via chorar
+com as suas maldades, mas chamava-me dahi a pouco para me beijar, numa
+solicitude, numa súplica, de quem deseja sêr perdoado.
+
+Ás tardes, quando o Chico recolhia depois das aulas, pedia-lhe para que
+fôsse lêr-lhe historias, lindos romances, que elle ia escolher á estante
+clara, de _érable_, do seu lindo quarto de donzela.
+
+Foi assim que ouvi, como o decorrer dum sonho delicioso, aquelles
+adoraveis romances de Julio Diniz, que ficaram sagrados como livro
+de rezas para o meu coração de rapariga.
+
+Depois, nem já mesmo isso; ás horas a que costumava entrar o Chico,
+mandava-me embora, com uma crueldade, um desamôr, que me enchia de
+desespero e me fazia chorar horas seguidas, com a cabeça enterrada nas
+almofadas da minha cama para que ninguem suspeitasse do motivo da minha
+pena.
+
+Voltavam todos os meus desesperos e tristezas como bando de corvos, por
+um pouco afugentados pela alegria.
+
+Dizia adeus ás tardes joviais de recreio, adeus a tudo quanto me tinha
+consolado de viver!...
+
+Algumas vezes, mas sempre quando não estava o Chico, a Mariquinhas
+mandava-me chamar com muito empenho. Ia logo, correndo alvoroçada, e
+encontrava-a então carinhosa como nunca, num redobramento de aféto e
+ternura que me fazia esquecer todos os agravos.
+
+Era então a Mariquinhas doutro tempo, a bôa fada que transformara a
+minha dura existencia, o dôce e querido anjo da guarda dos meus sonhos.
+
+Uma tarde, em que estava melhor, olhou fixamente para mim, com um
+estranho olhar que nunca lhe vira, e disse-me, como quem faz uma
+descoberta:
+
+--«Ó Raquel, tu és bonita, sabes?
+
+Eu ri-me francamente, como quem nunca ouvira tal nem se preocupara com o
+assunto.
+
+--«Não... sério!--acrescentou convincente--tens uma cara estranha, que
+não é bonita á primeira vista, mas que, pensando bem, te hade fazer uma
+simpatica mulher.
+
+E quiz que a acompanhasse ao seu quarto, que tinham mudado para o
+rez-do-chão, para que não se fatigasse a subir escadas; enfeitou-me com
+todos os seus enfeites e joias, penteou-me de muitas fórmas, e batia as
+palmas satisfeita, queria que todos me vissem, perguntava á mãe: se
+realmente eu não tinha o tipo daquella mulher que o Chico lhe trouxera o
+outro dia numa magnifica gravura tirada duma revista e era a cópia dum
+quadro que obtivera o premio na última exposição do _Salon_.
+
+A pobre mãe sorria, um pouco animada por aquelle entusiasmo que lhe
+parecia prenúncio de melhoras.
+
+Mas não, aquilo foi como descanso da doença, como que para retomar força
+e voltar ao assalto com redobrada violencia.
+
+Sofria muito, a pobre alma! Já mal podia andar; melhor se poderia dizer
+que se arrastava, encostada ás pessôas que a acompanhavam. Tinha
+gestos tão cansados, sorrisos tão murchos, caricias tão frouxas, que eu
+chorava sem saber porquê, só de olhar para ella.
+
+Queria consolar-me e sorria, mas esse sorriso vinha molhado de lagrimas
+e descobria-lhe os dentes descarnados numa bôca exangue.
+
+Nunca mais os nossos encontros fôram a horas em que estivesse o Chico.
+Tambem, pouco me lembrava delle, triste como andava com a doença da
+Mariquinhas; mas, quando ás vezes perguntava noticias do nosso amigo,
+respondia-me tão sêcamente que cheguei a imaginar que estavam mal.
+
+A D. Emilia metia dó, e ella tambem olhava para mim fixamente e tinha
+uma frase de profundo desconsolo, de quasi inveja, que revelava o estado
+do seu espirito:
+
+--«Como a Raquel tem saüde!...
+
+O mal agravava-se de dia para dia, sem remedio possivel para a pobre
+querida que suportava heroicamente todos os martirios que a medicina tem
+inventado para prolongar a vida dos condenados. E ella que queria tanto
+viver! Tinha tanto amôr á vida que nunca tivera senão caricias para os
+seus adoraveis dezeseis annos!...
+
+Os pais já sabiam: todos os filhos na idade da Mariquinhas lhes tinham
+ido da mesma maneira, com os pobres pulmões esfacelados, deitando
+pela bôca todo o sangue dos seus corpinhos exauridos, sem que a opinião
+dos medicos chegasse a sêr uniforme sobre o verdadeiro mal.
+
+Quando o tempo peorou e ella tambem já se não podia arrastar até ao
+caramanchão, ficava por traz dos vidros da janela para que eu a podesse
+vêr de longe.
+
+Depois, nem isso, deixei de a vêr; e, por mais que espiasse no jardim os
+movimentos da casa, raro conseguia saber noticias.
+
+Vivia num tal desespero, agora que, desde que a doença se agravara, não
+consentiam que visitasse a Mariquinhas, com mêdo de contagios!...
+
+E viver ali, a dois passos da unica afeição que me enchia a alma,
+sabê-la gravemente inferma, vê-la de longe e não poder falar-lhe, era
+uma verdadeira tortura para o meu temperamento de impulsiva e apaixonada.
+
+Era uma angustia curtida em silencio, que me despedaçava brutalmente o
+coração.
+
+Um dia, quando atravessava a cosinha para ir á minha piedosa espionagem,
+a Eulalia voltou-se para mim com uma frigideira na mão e disse-me, com
+um ar escarninho que me arrepiou:
+
+--«A menina Mariquinhas--sabe?--está a morrer.
+
+E ante a dúvida, claramente expressa no olhar com que a fitei, esclareceu:
+
+--«É verdade! Disse-mo a criada da cosinha. Até lá ficou o medico esta
+noite.
+
+Empalideci, e cambaleei como se fôsse perder os sentidos. A Eulalia, que
+me dissera a novidade mais por espirito alviçareiro do que por
+verdadeira maldade, ao vêr a minha dôr teve realmente pena. Chegou-me
+uma cadeira, foi a correr buscar agua, que me obrigou a beber, e tentou
+consolar-me. Era tarde. O medico em casa da Mariquinhas a passar a
+noite... tinha-me soado como um dobre a finados. Sempre, para o meu
+espirito de criança, a sua presença assidua fôra presagio de desgraça
+proxima. Era a certeza de que a morte, que tantas vezes chamara para
+mim, andava perto, a bater á porta da Mariquinhas...
+
+Uma tremura convulsiva fazia-me bater os dentes como se estivesse a
+tiritar de frio--era todo o frio da alma que me enregelava o sangue.
+
+A Eulalia consolava-me, apiedada,--talvez que no fundo ella não fôsse
+verdadeiramente má. A vida, com as suas exigencias e cruezas, torna tão
+diferentes as criaturas que não têm a alma temperada para as grandes
+resistencias!--Porque não pedia eu licença para ir visitar a minha
+amiga? Talvez não fôsse verdade!...
+
+--Pedir á tia?! Nunca lhe tinha pedido nada, a Eulalia sabia. Era esse o
+meu orgulho, a unica coisa que me tornava, aos meus proprios olhos, num
+sêr independente e respeitavel.
+
+E a criada, muito conciliadora, como se tivesse despertado na sua alma a
+natural bondade da nossa raça de sentimentais pelo apiedamento que a
+minha mágua lhe causava, ofereceu-se para pedir, como coisa sua, a
+devida licença, se eu quizesse...
+
+Eu quiz, é claro. Era a primeira vez que o meu orgulho se dobrava numa
+convivencia com a criada, o que me amarrotava e inferiorisava á minha
+propria consciencia, que foi sempre o unico julgador que temi.
+
+A licença não veiu logo, para mais cruelmente me fazerem sentir a
+dependencia, mas a rapariga não desistiu e tanto disse que á tarde me
+entrou no quarto triunfante com a autorisação para ir fazer a visita tão
+ambicionada.
+
+
+A noite cahia num agonisar de luz, que as nuvens pesadas de chuva mais
+velavam.
+
+Ao entrar distingui apenas fórmas indecisas, movendo-se silenciosamente
+no quarto mal alumiado. Logo a seguir, não sei quem colocou uma
+lamparina de vidro coalhado sobre uma mêsa, aos pés da cama onde a
+Mariquinhas agonisava.
+
+Olhei com dolorida surpreza: ella, que fôra tão linda, duma graciosidade
+que doirava toda uma mocidade que se abria em flôr, tornara-se com a
+doença pavorosamente feia.
+
+De princípio apenas percebera o estertor rouco, que fazia arfar o seu
+corpinho mumificado, e uma frouxa mão muito pálida, que apanhava,
+inconsciente, a roupa da cama. Depois, com os olhos afeitos á quasi
+obscuridade em que me encontrava, fitei-a com terror e não podia, por
+mais que quizesse, deixar de olhá-la, num crescendo de angustia que me
+apertava a garganta e me comprimia o coração.
+
+Chorei então silenciosa mas desesperadamente, num desânimo de quem vê
+afundar-se todo um passado de alegrias e não vê no futuro luzeiro de
+esperança.
+
+A Mariquinhas ali estendida, a sofrer, a morrer, ella tão linda, tão
+gentil, a gárrula, algum tempo antes! Ai, pobre, pobre querida, como
+desejei sinceramente e como formulei no silencio da minha consciencia o
+desejo de que a morte me levasse antes a mim e a deixasse a ella, á bôa
+fada dos meus sonhos, ao anjo da guarda que descera até á minha
+miseria desdobrando as suas brancas azas acalmadoras!
+
+Mas a luz, avivada num momento, bateu-lhe em chapa no rosto, naquelle
+pálido rosto tão completamente mudado; a impressão foi por tal fórma
+brutal que as lagrimas secaram-se de subito nos meus olhos e um grito de
+terror veiu expirar nos meus labios.
+
+Endireitei-me sufocada, e ia fugir, numa revolta instintiva, á miseria
+do meu ideal despedaçado. Antes, antes a não tivesse procurado vêr, e
+guardasse na memoria a linda imagem do que fôra--dizia no íntimo da
+minha alma aquella voz egoista, e tão fundamente humana, que faz a
+felicidade dos que a podem escutar a tempo.
+
+Não sei quem me ciciou ao ouvido:--vai morrer!
+
+E, não sei porque estranha percéção daquella inteligencia prestes a
+desaparecer, ella me presentiu e me reconheceu. Abriu os olhos, uns
+olhos enormes já postos noutro fito; levantou a mão, já quasi
+entorpecida; e soltou uns sons inarticulados, que mal pareciam de voz
+humana.
+
+--«Chamou-a, quer-lhe dizer alguma coisa--murmuraram-me ao ouvido,
+empurrando-me para a cama.
+
+Fui cahir, desorientada, de joelhos, junto desse corpinho debil que
+tanto sofria para sêr arrancado á vida.
+
+E nunca, nunca mais poderei riscar da memoria o olhar fundissimo de
+amargura, quasi odiento, com que a Mariquinhas me envolveu toda, como
+que sondando-me...
+
+Meu Deus! eu não compreendi, não podia compreender então o desespero da
+pobre alma ao vêr-me cheia de saüde e de vida, emquanto ella--que tanto
+amava e desejava viver!--ia desaparecer, para todo o sempre!
+
+Ai pobre querida, que remorso imenso senti depois! Mas nesse instante,
+fixada por esse seu doloroso olhar cruel, senti uma surda revolta que
+subiu do mais íntimo da minha alma e me invadiu completamente o
+espirito. Toda a animalidade saudavel e forte do meu sêr se insurgia
+contra a inveja expressa nesse olhar de moribunda--que não queria sêr
+vencida...
+
+E que tinha ella que invejar-me, se alguns momentos antes toda a minha
+vida, toda a minha saüde, o meu sangue quente e palpitante, tudo eu lhe
+daria de bôa vontade?!...
+
+A mãe, de joelhos, do outro lado da cama, escondia a cabeça na roupa
+para que os soluços não amargurassem a doente que tudo ouvia e
+compreendia.
+
+O pai, enterrado numa poltrona, parecia paralisado pela violencia
+extrema da dôr.
+
+Dahi para diante não fui mais senhora de mim. Criaturas serviçais, muito
+práticas em identicas cênas, aconselhavam-me o que devia fazer. Uma
+velha, principalmente, apoderou-se da minha pessôa e foi-me indicando,
+com uma intimativa que não admitia tergiversações,--o que é costume
+fazer uma menina na morte de uma amiguinha.
+
+--«Ella quer falar,--segredava-me--pergunte-lhe se quer alguma coisa.
+
+E tocava-me nos hombros, para que me inclinasse sobre a face cadaverica
+da Mariquinhas.
+
+Queria fechar os olhos ao ritus de quasi caveira que tinha nos seus
+dentes descarnados, e cada vez os abria mais, até que a sua imagem me
+ficou tão profundamente vincada na memoria, que me vem sobre todas, que
+é superior a todas, ás mais ridentes como ás mais dolorosamente tragicas.
+
+Um som qualquer escapou desses labios que inutilmente se moviam num
+esforço para falar, e a velha murmurou, traduzindo o que ninguem poderia
+ter compreendido:--Coitadinha, falou no menino Chico!
+
+Depois, tive que apertar-lhe a mão, mas ao tocar na frieza placida desse
+corpo que vinha morrendo aos poucos, não sei que onda de sangue me
+subiu ardente do coração confrangido, que perdi a compreensão nitida das
+coisas e fugi desastradamente, empurrando todos, sentindo atraz de mim
+mãos de moribundos agarrarem-me nas costas, leves mãos feitas de sombra
+que não tinham força já para segurar-me...
+
+Ninguem deu pela minha fuga, suponho, porque logo após senti o chorar
+ruidoso dos que já não tinham que contêr a explosão da sua dôr diante do
+pobre corpo que umas tenues radículas de vida prendiam á terra. Voltei
+atraz. A mãe da Mariquinhas, abraçada ao corpo inanimado da filha,
+chorava tão angustiadamente que eu sentia ao ouvi-la uma dôr fisica tão
+aguda, tão sangrenta, como se me estivessem esfaqueando o corpo.
+
+O pai estava sucumbido--era como se o seu espirito tivesse acompanhado o
+da filha estremecida.
+
+Não sei como sahi dali e me encontrei nos braços da pobre D. Emilia, que
+chorava beijando-me com uma ternura que nunca lhe tinha conhecido. E não
+sei dizer, tambem, quem me levou para casa e me fez deitar essa noite no
+meu quarto onde fiquei transida de pavôr, esperando o dia como se com a
+luz terminasse aquelle terrivel pesadelo, que me recusava a aceitar
+como a verdade irremediavel!
+
+Com a morte da Mariquinhas toda a alegria acabou para mim. Nunca mais
+voltei ao jardim, a olhar as janelas do seu quarto, agora sempre fechadas.
+
+O Chico, quando voltou, pensativo e triste, só de longe me acenava com a
+mão um cumprimento amigo.
+
+A vida tornou-se-me insuportavel: despida de interesse, vasia de desejo.
+Voltei a não estudar, e peor do que nunca tolerava as repreensões,
+conselhos e imposições da inevitavel estrangeira. Com o sofrimento
+voltava-me a revolta; e, como com os meus dezeseis anos já raciocinava
+mais, via melhor as coisas, compreendia que meus pais não me tinham
+abandonado...
+
+Sim... eu confesso que me tornei alguma coisa dificil de aturar. A tia
+queixava-se, queria domar a selvagensinha--como me tratava--e
+convencia-se que havia de vencer o meu espirito rebelde.
+
+Mas isso, já o devia saber, era menos facil do que sujeitar uma aguia a
+viver numa capoeira.
+
+Uma tarde, encostava-me aos vidros da janela do meu quarto quando na rua
+vi passar o Chico.
+
+Sorriu-se para mim e perguntou-me se estava doente, tão demudada e
+triste eu lhe parecia. Mal o vi, uma onda de lagrimas me subiu aos olhos
+e retirei-me soluçando da janela, sem atinar com palavras com que
+respondesse á sua surpresa.
+
+Nesse dia chorei sempre, e já a noite ia adiantada quando me levantei da
+cama, acendi a vela, e assim mesmo, em camisa e descalça, fui escrever
+ao Chico a contar a minha dôr, dizendo-lhe o meu desespero, e
+pedindo-lhe que me livrasse daquella prisão onde em breve morreria, como
+a Mariquinhas,--estava certa! Escrevia, pela primeira vez, tudo quanto
+sentia, vertiginosamente, sem pesar as palavras, surpreendendo-me a
+escrever melhor do que se falasse...
+
+Depois da carta escrita e arrecadada debaixo do travesseiro, eu puz-me a
+imaginar o que faria o Chico. Certamente não me abandonaria á minha
+sorte, correria em meu auxilio como paladino doutras eras...
+
+O que uma cabeça de rapariga arquiteta aos dezeseis anos na sua primeira
+noite de insónia!...
+
+Toda a minha esperança era o Chico--se elle me faltasse, o mundo
+acabaria para mim!
+
+De manhã reli a carta, que me pareceu ainda dizer pouco do que sentia, e
+tentei escrever outra--que me sahiu peor. Meti-a no bolso e fui ao
+jardim com ideia de a entregar ao meu amigo, mas um invencivel
+acanhamento fez-me voltar para casa.
+
+A Eulalia, na cosinha, parecia adivinhar a minha intenção, e disse-me,
+maliciosa, muito habituada a _fazer de capa_ ás meninas que servira--«O
+menino Chico está aqui em casa da S.ª D. Emilia, entrou ha pouco para lá.
+
+E eu, fingindo uma grande serenidade, que ella bem conheceu ser
+falsa:--«Ah, sim?! Eu queria entregar-lhe uns papeis... uma carta... que
+a Mariquinhas deixou para elle.
+
+A mentira fez-me córar, balbuciar; envergonhei-me de mim mesma.
+
+--«Se a menina quer, eu levo-lha lá...
+
+E quiz. E ella levou a carta, emquanto eu ficava ansiada, mal contendo o
+coração, que parecia saltar-me no peito.
+
+--«Elle disse que respondia já--veiu a Eulalia, toda prazenteira,
+anunciar-me.
+
+Recolhi ao meu quarto, muito triste, sem saber o que fazer, até que a
+carta do Chico viesse trazer-me a esperança ou a morte.
+
+Como aos dezeseis anos a vida se nos apresenta duma simplicidade que não
+admite a resignação nem a tolerancia!...
+
+Não tardou muito sem que a Eulalia viesse, com um ar de camaradagem e
+cumplicidade que me irritou, trazendo a resposta do Chico debaixo
+do avental.
+
+Recebi-a simulando indiferença, e pú-la de lado, sem a querer abrir
+emquanto os seus olhos maliciosos ali estivessem a prescrutar os meus
+sentimentos, como que a assoalhar-me a alma...
+
+Desconcertada pela minha atitude, sahiu; e então, tremendo como quem
+comete uma áção criminosa, rasguei o sobrescrito, e li e reli cem vezes,
+com os olhos turvados, as poucas linhas que o Chico me escrevia:
+
+«_Raquel:_
+
+«Obrigado pela sua carta e pela confiança que deposita em mim. Escreva
+aos seus pais contando-lhe a sua tristeza e mande-me a carta que eu me
+encarrego de lha fazer chegar ás mãos. A Senhora D. Emilia e a mamã
+acrescentarão algumas palavras para dar força ás suas queixas. Todos nos
+interessamos pela nossa amiguinha Raquel e temos muita pena de a vêr
+sofrer. Creia na dedicação e aféto do seu amigo--Chico.»
+
+Não era muito para o que eu tinha sonhado, mas era alguma coisa, era o
+apoio moral que me faltava.
+
+Sentia-me protegida e amada, e isso era o bastante para me tornar feliz.
+Relia ainda a carta, que ia meter no seio, quando a porta do quarto
+se abriu de improviso e a cara detestada da minha prima apareceu
+perguntando-me, trocista:
+
+--«Então a menina recebe cartas de namorados e não diz nada á gente?!...
+
+--«Vai-te daqui para fóra!--gritei desesperada.
+
+--«Ah, estás assim soberba com o teu Chico?! Pois eu direi á mamã, deixa
+estar!
+
+--«Importa-me pouco a tua mãe, dou-lhe tanta importancia como a ti--e,
+empurrando-a com violencia para o corredor, fechei a porta por dentro.
+
+A rapariga vingou-se: foi levantando um grande alarido de queixa que
+tudo contou á mãe. E não tinham decorrido talvez cinco minutos sem que a
+abominavel criatura não estivesse a bater com violencia á porta,
+gritando como possessa para que lha abrisse.
+
+Com uma serenidade de que ainda hôje me surpreendo, fui abrir, e ficando
+entre portas perguntei, sem me alterar, o que desejava.
+
+--«_Oh! Não ter vergonha! Menina dizer a mim você recebeu carta dum
+maroto e pergunta o que mim quer! Vêr esse carta já! Vergonhas,
+vergonhas, dar maus exemplos a meninas! Quando vier seu tio mim dizer
+tudo!..._
+
+E a torrente de destemperos parecia não se estancar.
+
+No meio daquella gritaria poude apenas levantar a voz para lhe dizer
+resolutamente:
+
+--«Não lhe dou a carta, pode berrar á vontade.
+
+Perdeu então de todo a cabeça e fez um gesto de ameaça, que me desvairou.
+
+--«_Dá-me carta já!_
+
+Á sua violencia respondeu a minha violencia. O meu caráter altivo, o meu
+temperamento indomavel, a minha educação livre, o meu proprio sangue,
+que vinha de herois, tudo se poderia amoldar e quebrar na luta surda e
+persistente de todos os dias; assim brutalmente, pela violencia, dava-se
+a reáção que produz a revolta.
+
+Ergui-me duma só vez a toda a altura do meu orgulho e tornei-me soberba
+de energia desesperada.
+
+--«Dar-lhe esta carta?!--E passei-lha insolentemente por diante dos
+olhos--Nunca! Fique sabendo, nunca! Prefiro enguli-la.
+
+As palavras vinham-me aos labios tumultuosamente, numa abundancia que me
+espantava.
+
+Então, a terrivel criatura vomitou coisas abominaveis que me insultaram
+infamemente e das quais--tenho hôje quasi a certeza--, na sua ignorancia
+do português, ella não sabia o verdadeiro sentido.
+
+Uma onda de sangue me subiu ao rosto e me turvou os olhos; toda a
+candura da minha alma, todo o pudôr do meu corpo de virgindade absoluta,
+se insurrecionou. Fitava-a, desvairada; sim, creio que, se não recuasse
+e não baixasse as mãos que tentavam prender-me, a teria estrangulado.
+Sahi do quarto violentamente, empurrando a Eulalia, que observava
+sardonica a cêna que preparara com a sua baixa intriga. Ao contacto do
+seu corpo a minha raiva explodiu com mais furôr:
+
+--«Vá, sua canalha!--gritei-lhe halucinada--vá chamar gente para lêr as
+cartas que me traz!
+
+Estava cega, como um toiro de bôa pinta longamente encurralado, quando
+lhe abrem a porta do curro e entra na praça louco de furia, correndo
+para um e outro lado, fazendo saltar para a trincheira, como bonecos, os
+toureiros que de longe o irritam agitando as capas vermelhas.
+
+A pequena agarrou-se a mim, aos gritos, mas rolou para o meio do chão
+com uma bofetada; e a porta da cosinha aberta, com um pontapé, que fez
+cahir um vidro que se estilhaçou no chão, enfiei por ella, sem bem saber
+o que fazer, e achei-me no jardim.
+
+Dum pulo saltei a sebe florida que separava o nosso jardinsinho, agora
+abandonado, do da D. Emilia, e entrei-lhe como doida pela casa dentro.
+
+Então cahi-lhe nos braços, soluçando perdidamente todo o meu desespero
+desfeito em lagrimas.
+
+
+Á noite o meu tio veiu buscar-me. Deu-me conselhos, tratou-me com muita
+bondade, desculpou a mulher, pediu, ordenou... Nada conseguiu.
+Agarrei-me á mãe da Mariquinhas, e de tal maneira me impuz ao seu pobre
+coração de mãe tão dolorosamente experimentado que ella pediu a meu tio
+que não insistisse. Eu ficaria com ella emquanto os meus pais não
+resolvessem o incidente.
+
+O meu tio concordou, vencido pela palavra persuasiva e dôce da minha
+protétora, e ao sahir bateu-me na cabeça e disse-me com ternura
+maguada:--«Ah, cabecinha, cabecinha louca, que herdaste, por teu mal,
+todo o sangue rebelde da nossa familia!
+
+E sahiu, desculpando-me no seu íntimo, elle o rebelde doutro tempo,
+vencido agora pela doença e dominado, contra vontade, sabendo muito bem
+que o era, só para não desencadear a tempestade caseira e não aturar o
+genio furibundo da mulher. Pobre e querido tio! Ninguem reconheceria
+nesse velho alquebrado, mas ainda de soberbo e distinto porte, o
+heroi de tanta façanha que deixara nome entre os rapazes da escola, como
+mais tarde entre os colegas do exercito e companheiros de trabalhos e
+perigos. Era o nosso sangue, na verdade, que o fazia sorrir, quasi
+indulgente, quando me admoestava por tanta loucura; o nosso sangue que o
+fizera, quando rapaz, desafiar, sósinho, uma companhia de pequenos
+colegiais como elle, e que o fizera, mais tarde, responder sempre com
+soberba quando se julgava desrespeitado, mesmo por um superior
+hierarquico...
+
+Pobre tio! Com quanta saudade recordo hôje o seu bom sorriso quando,
+longe da companheira, nos contava anedótas e aventuras que nos perdiam
+de riso. Como teria sido adoravel, sem essa servidão dum casamento
+abominavel, a que não soube nem poude fugir!...
+
+Foi então que escrevi aos meus pais contando-lhe o longo martirio
+daquelles quatro anos em que me tinham afastado do seu carinho.
+
+Disse-lhes o meu desespero, o meu horror á tia e aos seus métodos
+educativos, e recordei com pungente saudade a feliz infancia que me
+tinham feito a contrastar com aquelle inferno de todos os dias e de
+todas as horas.
+
+E como os meus nervos sobreexcitados faziam a penna galopar pelo papel
+desabaladamente, estou certa que nada deixei por contar.
+
+A D. Emilia e a mãe do Chico cumpriram o que tinham prometido;
+escreveram comigo para desmanchar qualquer má impressão que o meu
+procedimento podesse despertar no espirito dos meus pais.
+
+Que dôces dias de serena paz eu passei ali emquanto não veiu a resposta
+á minha carta--que fôram os meus proprios pais que em pessôa me quizeram
+vir buscar.
+
+Uma tarde o Chico entrou--vinha despedir-se. Eu trabalhava junto da
+janela, num bordado que a D. Emilia me dera para fazer, porque entendia
+que sempre as mãos deviam estar ocupadas e o espirito prêso a qualquer
+trabalho manual que, por insignificante que parecesse, era muito na
+disciplina moral do nosso sêr. Era a esse constante labôr das suas
+habilissimas mãos, que a bôa senhora atribuia o resistir ainda á sua dôr.
+
+Estava só; a D. Emilia fôra dentro chamada pelo marido, quasi sempre de
+cama desde que se dera o grande desastre para o seu coração de pai que
+na unica filha poséra todo o seu aféto e esperança.
+
+--«Que trabalhadeira estás!--disse-me o Chico, sorrindo, porque ao
+entrar eu nem sequer erguera os olhos, que dantes o fitavam confiantes e
+fraternais.
+
+É que as palavras impudicas da estrangeira acudiam-me á memoria e tinham
+maculado para sempre a inocencia do meu aféto por elle.
+
+Sorri á sua graça, mas com um sorriso tão maguado, que o Chico, vibratil
+e bondoso como é, logo percebeu que não estava bem. E, muito carinhoso,
+quiz saber se estava doente, se me doía alguma coisa.--Não,
+não,--respondi nervosa e sacudida--doença não tinha... mas lembrava-me o
+que tinham dito de ambos, e isso incomodava-me fortemente.
+
+E elle quiz saber o que me dissera a tia, o que dera causa á grande
+cêna, de que ainda ria, só em pensar nella.
+
+Cuidava que era ainda a pequena e ingenua Raquel que elle e a
+Mariquinhas quasi amavam como filha, e que o meu áto revoltoso fôra
+apenas um capricho de criança endemoninhada e voluntariosa. Mal supunha
+que uma alma de mulher, de subito despertada, sofria e palpitava dentro
+em mim.
+
+Subitamente as lagrimas vieram-me aos olhos e começaram a correr, sem
+que eu as podesse estancar no lenço encharcado, que mordia em
+desespero.
+
+Passara, sem transição, da insensibilidade quasi completa de quatro anos
+á mais disparatada pieguice.
+
+Por nada as lagrimas me vinham aos olhos e corriam sem cessar.
+Desesperava-me contra mim mesma; queria vencer-me, e não podia!
+
+O Chico, muito comovido, abraçava-me e beijava-me para me socegar, como
+fazia sempre, com a simplicidade carinhosa dum irmão mais velho, sem
+suspeitar a confusão em que eu me debatia.
+
+Aproveitando um momento de mais calma para os meus nervos, disse-lhe
+para mudar de conversa:
+
+--«O Chico vai-se ámanhã embora e nunca mais se lembrará de mim; eu
+tambem vou para tão longe!
+
+--«Que tolice, nem que em Portugal haja longes!...--respondeu a rir,
+emquanto eu me afastava um pouco, porque as suas caricias me
+sobresaltavam e faziam mal.
+
+--«Pois sim, Coimbra não é muito longe, mas os estudantes que lá andam
+não pensam a sério em coisa nenhuma e tudo esquecem quando lá chegam.
+
+--«Quem te disse tal?
+
+--«As raparigas da minha aldeia, quando cantavam:
+
+ «O amôr dum estudante
+ «Não dura mais de uma hora
+ «Tóca a cabra vão para a aula
+ «Vêm as férias vão-se embora.
+
+Quando isto é o amôr, o que fará a amizade!?
+
+As lagrimas tinham-se transformado em riso--ria agora convulsamente.
+
+--«Isso são cantigas! Não penses isso de mim, Raquel. Ha rapazes loucos,
+mas tambem os ha sérios, como eu...
+
+--«Não acredito! O Chico vai esquecer-se de mim, e quando fôr para a
+aldeia nunca mais o verei nem saberei de si! Antes queria
+morrer!...--tornava a chorar, visionando-me só, sem vontade nem gosto
+para viver.
+
+--«Ó Raquelsinha, não diga isso, não a esquecerei nunca,--que tolice! Os
+amigos de infancia nunca se esquecem, creia. Nem tão pouco esquecerei a
+Mariquinhas.
+
+--«A essa,--solucei, num sentimento de magua mortificado com uma
+pontinha de inconsciente ciume--a essa não a esquecerá o Chico, não!...
+
+--«Mas porque menos a ella do que a si?
+
+--«Então o Chico não era namorado da Mariquinhas?!--perguntei numa
+ansiedade de dúvida que se deseja não vêr confirmar.
+
+--«Ó Raquel, não diga isso! Quem lhe meteu na cabeça uma loucura
+dessas?!--perguntou indignado.--Então não eramos como três irmãos, três
+companheiros de brincadeira?!...
+
+--«Ninguem me disse nada. Eu hôje é que pensei, depois do que ouvi lá em
+casa, que podia sêr que o que se lembravam comigo fôsse com ella... Ás
+vezes a Mariquinhas parecia que me tinha raiva, e porfim já não queria
+que brincassemos juntos... lembra-se?
+
+--«Sim, é verdade. Não tinha pensado nisso. Até pediu para a não visitar
+quando estivesse a Raquel, porque a sua alegria a incomodava...
+
+Pobre Mariquinhas! A sua figura esbelta e linda levantava-se a nosso
+lado reclamando a sua parte de aféto, mas o seu rosto pacificado pela
+morte já não exprimia o vago ciume com que tanto nos mortificara. A sua
+recordação unia-nos numa afetuosidade e numa saudade igual.
+
+--«Mas então--disse o Chico, surpreso--a Mariquinhas supunha que nós
+eramos namorados?! Pobre amiga! Uma criança como a Raquel era...
+
+--«Eu não percebi nada--respondi ingenua--nem supunha que era tão sua
+amiga... Nem que esta amizade era diferente... Hontem é que compreendi
+tudo!...
+
+--«Mas hontem, porquê? Disseram-lhe mal de mim?!...--perguntou assomado,
+numa daquellas fogosas cóleras que ensombram rapidamente o rosto do meu
+amigo.
+
+--«De si, não!... Foi de mim. A _estrangeira_... disse-me coisas,
+coisas... que só pensar nellas me faz mal!
+
+Córei e baixei os olhos numa confusão, vendo-o sorrir, já desanuviado.
+
+Curvando-se para mim, perguntou-me baixinho, numa caricia que estava
+toda na doçura da voz:
+
+--«Disse-lhe que era minha namorada, não foi?...
+
+Abaixei ainda mais a cabeça sobre o bordado, não querendo responder uma
+afirmativa que me confundia.
+
+--«E não o quer sêr, de verdade, Raquel?... Será a minha noiva emquanto
+andar a estudar, e a minha mulher, a minha companheira, quando eu já
+ganhar dinheiro para os dois...
+
+Sorria embevecida, olhava-o cheia de desejo de lhe dizer que sim e
+saltar-lhe ao pescoço, numa alegria louca; mas ficava-me calada,
+perturbada, sem saber verdadeiramente distinguir até onde me seria
+permitido mostrar o meu entusiasmo segundo as praxes que a _tia_, dizia,
+eu ha muito tinha desprezado impudentemente.
+
+O Chico compreendeu; e, não precisando ouvir mais, pegou-me dôcemente na
+mão que conservou entre as suas emquanto conversavamos a meia voz,
+sorrindo enlevados, contando coisas, recordando factos, que reconhecemos
+nesse momento sêrem significativos daquelle desenlace.
+
+Ha muito tempo que eu era a sua mulhersinha--recordou o Chico
+sorrindo--nas brincadeiras em que a Mariquinhas, já mais consciente,
+reservava para si sempre os papeis de rainha ou fada, que iam tão bem á
+sua gentil figurinha de estatueta.
+
+
+Foi nessa tarde deliciosa de fim de inverno, com o testemunho das
+camelias brancas, que a Mariquinhas adorava, e na vespera delle ir para
+Coimbra e eu recolher á velha casa paterna, que nós ligámos para sempre
+as nossas existencias, que dissemos essas mil palavras banais que nada
+dizem para os outros e são, num momento unico da vida humana, as
+verdadeiras palavras sacramentais que ligam duas almas numa comum e
+deliciosa aspiração.
+
+Foi nessa tarde, que remiu para o meu coração anos de sofrimento, que
+traçámos a azul e oiro o futuro ridente que hôje estamos desfrutando.
+
+
+Com a vinda de meus pais, trocadas explicações e desculpas entre elles e
+os tios, sem que eu fôsse obrigada a vêr mais a minha façanhuda inimiga,
+a tranquilidade e a alegria voltaram de novo ao meu espirito, que em
+breve se refez e normalisou na serenidade da vida aldeã.
+
+O Miguel, que já então era um estudante muito cuidadoso, tornou-se em
+breve o amigo inseparavel do Chico, que teve sempre meio de repartir as
+férias entre a antiga familia, que o adorava, e a nova, onde não era
+menos querido.
+
+Até o Padre Zé discutia com elle pontos graves de historia romana e
+ficava boquiaberto com a sabedoria dos rapazes de hôje... e da qual nos
+riamos a valer, indo depois ás escondidas folhear o Larousse onde
+procuravamos citações e factos para confundir o santo velho.
+
+A Maria Augusta, essa só pedia a Deus que a deixasse viver até vêr na
+capela da casa, abençoado por Deus e pelos homens, um par que era
+tanto do seu agrado.
+
+E agora, realisado esse ideal,--que reuniu á mesma mêsa duas familias
+que ficaram sendo só uma, naquelle grande jantar de nupcias a que
+assistiu toda a parentela dos arredores--ella espera ansiosa porque lhe
+seja permitido apresentar ao Padre Zé, de capa de asperges e estola
+rica, um menino que hade vir breve de Paris numa condessinha de flôres,
+e para o enxoval do qual trabalhamos dia e noite com a mais rútila e
+alvoroçada alegria.
+
+--Com o vestido de antiga seda côr de rosa e grandes ramos prateados,
+coberto com o véo de tule bordado, que a mamã guarda na grande arca dos
+enxovais, eu verei como irá lindo!...--É o que me assegura a Maria
+Augusta, que recorda outros batisados celebres na familia, e o meu
+principalmente, que, crescidinha já, por doença do padrinho, me
+desesperei iconoclastamente com o _sal da sapiencia_ e arranhei a cara
+ao padre!
+
+Não se esqueceu de recomendar ao Chico, uma vez que elle foi a Lisbôa,
+que deixasse feita a encomenda dos bolos para a festa e de confeitos
+para a rapaziada, que assim encherá de bençãos o batisado...
+
+Isto emquanto a bôa mamã dá volta ao bragal, desmancha lençóes e finas
+bretanhas, e manda ao sotão buscar o lindo bercinho em que nos criou a
+todos, e que já espera, forrado e engomado de fresco, pelo pequenino
+dôno...--ou dôna?!...
+
+E, seja o que fôr, bem vindo será ao nosso lar e... já o jurámos: só nós
+o educaremos e guiaremos nos seus estudos, porque, sahindo, como poderá
+ser, á mãe, não será facil meter-lhe grandes sabedorias na cabeça.
+
+
+Esquecia-me dizer que o meu pobre tio está emfim descansado, livre da
+mulher que tão amarga lhe fez a existencia, bem encafuado num mausoleu
+de marmore, onde ella o vai vêr a miude, naturalmente para lhe dar
+conselhos o reprimendas. Dizem-me que na sua opinião eu sou o mais
+execravel dos animais ferozes, e ainda treme de raiva só em pensar na
+minha negra ingratidão. A filha prepara-se para casar confecionando o
+enxoval e aprendendo a sêr uma admiravel dôna de casa, capaz até de ser
+professora numa escola de _ménagères_, mas os noivos é que, como sempre
+assustados com o merecimento da mulher, já lhe vão tardando um pouco.
+
+O pai da Mariquinhas morreu, e a D. Emilia resigna-se a viver para
+chorar todas as lagrimas da sua bela alma pelo marido e pelos filhos,
+sempre vivos na sua lembrança.
+
+Sente por nós um dôce carinho, que nos enche de reconhecimento, e todos
+nos juntamos na saudade da querida morta, a linda Mariquinhas, que tão
+íntimos e indissoluveis tornou os nossos afétos.
+
+
+
+
+IV
+
+Sacrificada
+
+
+
+
+SACRIFICADA
+
+
+I
+
+Quando Manoela entrou para o convento, todas as freiras e recolhidas
+correram apressadas á grade do côro para conhecerem a nova companheira,
+de que a superiora, Soror Gertrudes, ha muito anunciara a vinda.
+
+Falavam a um tempo, riam satisfeitas com aquella diversão, que
+desmonotonisava a vida fastienta de todos os dias, emquanto que ella,
+nervosa e pálida, as olhava assustada, como quem entrevê, sem o
+compreender, um mundo estranho.
+
+Sentia-se abandonada no mundo, sem um aféto ou uma ilusão que lhe
+devesse dar o desejo e a alegria de viver, mas, apesar disso, aos
+seus dezeseis anos encantadores não sorria positivamente a ideia da prisão.
+
+Era tão dôce o sorriso triste que lhe errava nos labios, e a sua voz,
+ligeiramente cantada, com o sotaque provinciano, era tão fresca e
+cariciosa, que as bôas freiras a consideraram desde logo um anjo do
+Senhor, mandado para as consolar naquelle triste fim da sua casa religiosa.
+
+Encheram-na de presentes: uma trazia-lhe uns bentinhos, outra uma lâmina
+ingenua, salpicada de papelinhos doirados; rendas finas, outrora feitas
+na casa; dôces, especialidade do convento; coisas insignificantes, que
+eram no entanto toda a sua fortuna.
+
+E ella sentiu-se assim prêsa pelo reconhecimento, integrando-se numa
+vida que em breve seria tambem a sua.
+
+A mãe perguntou-lhe: se queria entrar desde logo para o convento ou
+ficar alguns dias fóra, para vêr a cidade.
+
+--Não; se tinha que entrar ali, então que fôsse já. Vêr a cidade para
+quê?! Que lhe importava a alegria, o movimento, a luz,--aquilo que era a
+existencia da outra gente?
+
+Não estava ella perdida, morta para o mundo, despedaçado tudo que tinha
+feito o encanto da sua propria existencia, que era agora uma coisa
+áparte, fóra da normalidade?!...
+
+A mãe aprovou, contente com aquella resolução; ansiava por a vêr
+entregue aos cuidados da bôa tia, Soror Gertrudes, que a recebeu
+soluçando de contentamento e magua--alegria de têr a sobrinha junto de
+si, fundo desgosto pela sua imensa desgraça.
+
+Porque era uma historia um pouco triste, a dessa rapariga, que assim
+vinha esconder a sua vida em flôr no silencio dos longos corredores
+cheios de sombra, adormentar o espirito nessa vida que já pertencia ao
+passado.
+
+Manoela ficara, muito nova, sem pai, e por isso quasi inteiramente
+abandonada a si mesma, visto que a mãe, duma devoção estreita e dum
+caráter frio e áspero, entregava-se por completo á prática das suas
+muitas rezas e orações e deixava os filhos em plena liberdade.
+
+A pequena, que era uma natureza delicada e emotiva, assim foi crescendo
+sem um carinho que lhe afagasse e dulcificasse a existencia,
+retrahindo-se numa aparencia de frieza melancolica.
+
+Os irmãos, três rapazes, viviam alegremente, sem cuidados nem canseiras,
+caçando pelas serras, comendo e bebendo á tripa-fôrra com os
+companheiros, jogando o pau pelas romarias e feiras--senhores
+morgados de aldeia que todas as raparigas disputavam para seus pares, e
+dos quais todos os homens tinham como honra a convivencia.
+
+O mais velho, bom rapaz, bronco e ingenuo apesar da sua aparencia de
+gosador, fôra para Coimbra por sua alta recreação, segundo o costume
+tradicional dos morgados beirões, e por lá se ia formando aos
+solavancos: _R R_ daqui, guitarradas dali, ceias e patuscadas com os
+amigos, sempre alegre e satisfeito comsigo e com os outros.
+
+Ora uma vez, a pretexto de caçadas que se faziam melhores que em parte
+alguma pelos matagais cerrados das suas serranias, levou, para passar
+umas férias na aldeia, o seu mais íntimo amigo e companheiro mais certo
+das suas noitadas e _troupes_ em vesperas de feriado.
+
+Cavalgando os possantes cavalos que os criados lhes levaram com tempo,
+juntaram-se á caravana dos mais rapazes da região e seguiram, como era
+costume, atravessando vilas e aldeias ao som marcial das cornetas, como
+um verdadeiro batalhão, que ia diminuindo, não pela morte, mas pela
+alegria dos que primeiro encontravam as suas casas e se despediam dos
+companheiros até ao fim das férias.
+
+Fôram elles os últimos a chegar ao vasto casarão de provincia, onde a
+adega estava sempre aberta, as espingardas carregadas atraz da
+porta, e a matilha impaciente tudo invadia, roubando na cosinha, sujando
+as salas e quartos, batida pelas criadas em desespero, afagada pelos
+amos que riam das suas partidas e se sentiam muito á vontade no meio
+daquella desordem.
+
+Manoela era um verdadeiro milagre de graça e pureza num meio tão vulgar
+e rude.
+
+O rapaz, ao vê-la assomar ao alpendre, mal sentira a tropeada dos
+cavalos e descer correndo os degraus de pedra que davam acesso exterior
+para o andar nobre da casa, para abraçar o irmão, ficara deveras
+impressionado. Tanto mais que não contava encontrar, numa irmã do seu
+herculeo companheiro de estúrdia, tanto mimo e graciosidade de linhas,
+uma tal delicadeza e aristocracia nativa de porte.
+
+Á primeira impressão de agradavel surpresa seguiu-se o desejo da posse e
+o projéto da conquista.
+
+Para que essa criança, ignorante e ingenua, se prendesse a um homem que
+lhe falava a dulçorosa e enganadora linguagem de vulgar D. João, que
+para ella representava a verdade, a honra, o ideal supremo porque tantas
+outras têm, como ella, sofrido, não era preciso muito.
+
+Um homem honesto ter-se-ia cautelosamente afastado, receoso de despertar
+uma alma tão confiada e crente, na sua ignorancia infantil; mas elle,
+conquistador sem escrupulos, de palidez sentimental e cabeleira
+romantica, cantando ao luar fados chorosos que falam de amôres infelizes
+com tremuras na voz e fundos ais arrastados, dedilhando a guitarra que
+soluça baixinho caricias de beijos gritando alto paixões estridulas...
+Elle, sem alma nem consciencia, viu apenas a flôr que se abria á vida e
+que as suas mãos brutais podiam desfolhar e arremessar depois como coisa
+inutil e sem importancia.
+
+Representou, mais uma vez, a vulgarissima comedia do amôr-paixão, em que
+ella, a pobresita, acreditou, exatamente porque era ingenua e pura,
+deixando-se arrastar, sem que houvesse mão amiga que a fizesse parar a
+tempo na descida perigosa.
+
+Acabadas as férias, promessas feitas e juradas, elle partiu alegre e
+triunfante, ella ficou abismada na mais desesperadora tristeza.
+
+A saüdade, fustigando barbaramente a sua pobre alma mal preparada para o
+sofrimento, punha-lhe nas faces a palidez da morte e nos olhos
+arroxeamentos de incuravel doença.
+
+Os dias fôram passando, os mêses decorreram lentos e monotonos, e o
+desespero ia-lhe tomando o coração avassaladoramente, visto que
+elle, o ingrato, nem uma unica palavra lhe enviara a encorajá-la e a
+dar-lhe esperanças. Confiando da Ama-Rita o seu segredo, conseguiu da
+pobre mulher--que a amava, mais do que aos proprios filhos, porque a
+criara com o seu leite--a promessa de receber e mandar as cartas para o
+namorado.
+
+Enviou muitas, muitas, mas respostas nunca as recebeu, porque nunca elle
+lhas mandou.
+
+Sentindo-se abandonada, quando mais necessario se lhe tornava o auxilio
+moral do homem que a enganara vilmente, e não podendo esconder por mais
+tempo o seu estado, foi têr com a mãe implorando protéção e piedade.
+
+Contou tudo, por entre soluços e lagrimas, nem tentando sequer atenuar
+com uma desculpa a grandeza do delito, como se tivesse um prazer
+estranho em se torturar e deprimir, num princípio de expiação.
+
+Quando a mãe compreendeu o verdadeiro sentido das suas palavras,
+possuiu-se dum desespero louco. Levantando os braços e os olhos ao céo,
+tomava-o como testemunha da sua ignorancia e inocencia em tão grande
+crime, como se o esperasse vêr cahir sobre a cabeça da pecadora que
+soluçava a seus pés.
+
+Mas como do céo não baixou nenhum sinal indicador da colera divina, ella
+afastou-se brutalmente, prohibindo-a de sahir mais do quarto.
+
+Escreveu então ao filho, contando-lhe em poucas palavras o que se
+passava e encarregando-o de procurar o amigo, e--prometendo um bom dote
+a Manoela--fazer com que casassem imediatamente.
+
+Essa carta, mandada pela Ama-Rita para Manoela vêr, deixou-lhe no
+coração um vislumbre de esperança, naquelle desejo que todos nós temos
+de nos agarrar ao menor luzeiro que prediga felicidade.
+
+Mas a resposta não podia sêr mais cruelmente aniquiladora:--o namorado
+de Manoela tinha casado, pouco tempo antes, com uma prima muito rica, e
+nunca mais pensara na criança que ia começar a expiação duma culpa que
+era só delle.
+
+Não havia pois maneira de legalisar ao pequenino ente que vivia já da
+vida da infeliz mãe, a entrada no mundo e na familia.
+
+Tratou-se então de esconder um facto--que seria a vergonha para todos.
+
+Levaram-na para uma casa meio arruinada, numa propriedade distante; e
+foi ali, entre rochedos desolados e na visinhança lugubre dos lobos que
+uivavam a sua fome pelos matagais, que Manoela, entregue aos unicos
+cuidados e carinhos da ama, teve uma filha.
+
+Com que dulcido encanto, depois do martirio de algumas horas, em que as
+velhas paredes repercutiram os seus gritos lancinantes, ella acalentou
+nos braços o corpinho fragil, que era uma parte do seu proprio sêr, e
+premia sob os seus labios febris a carnesinha arroxeada e setinea da
+pequenina face!
+
+Nos olhos, que mal se abriam á luz, queria ella lêr um infinito de
+ternura; da boquinha, que ainda não sabia sorrir e já sabia chorar,
+esperava talvez ouvir palavras de justiça e consolação...
+
+E as lagrimas iam correndo serenamente pelas suas faces desbotadas,
+lagrimas que eram ainda uma felicidade, que em breve deixaria de possuir.
+
+A Ama-Rita chorava tambem, sem coragem para de pronto lhe arrancar a
+criança, como lhe fôra ordenado, na impotencia de todas as bôas almas
+para despedaçar uma ilusão alheia, principalmente quando toda uma
+existencia está suspensa dum sorriso de criança.
+
+Foi ainda a mãe que a veiu arrancar desse passageiro sonho,
+anunciando-lhe como coisa decidida a sua entrada para o convento onde
+Soror Gertrudes já a esperava.
+
+Manoela revoltou-se:--o convento, a prisão para ella, que apenas fôra
+uma vitima!?... Pois era tamanha a sua culpa, santo Deus!?...
+
+--Era, sim, tão grande que já coisa alguma poderia lavar essa mancha do
+seu nome, recahindo sobre toda a familia. Apenas o silencio e a ausencia
+poderiam atenuar o mal fazendo-o ignorar do público!...
+
+Soluçava baixinho, num grande aniquilamento de toda a vontade, escutando
+as palavras que sahiam frias e ásperas da bôca da mãe.
+
+--«Bem, irei!--disse por fim Manoela, resignada--mas ao menos quero
+levar a certeza do seu perdão, minha mãe!...
+
+--«O meu perdão?! Não, nunca poderei perdoar á senhora que assim desce
+ao nivel de qualquer camponia sem principios...
+
+Então, sentindo-se ferida, mais pelo tom do que pelas palavras, que
+representavam apenas o seu orgulho de casta, a alma de Manoela
+levantou-se tambem com altivez.
+
+Uma revolta surda a tomava toda, partidos definitivamente os laços que a
+prendiam a essa mãe que a repelia sem encontrar uma atenuante á sua
+culpa, sem um lampejo de piedade pela sua existencia tão cêdo anulada.
+
+Embora! Se não lhe perdoavam os outros, absolvia-se ella a si mesma. Não
+conhecia o mundo; mas a sua consciencia presentia vagamente que não eram
+justos acusando-a duma falta que se baseava apenas no preconceito
+social, que entre dois cumplices escolhe, para imolar como vítima
+expiatoria no altar da hipocrisia, aquelle que pela inocencia e
+ignorancia menor responsabilidade apresenta.
+
+Avaliando bem--agora que a vida se lhe antolhava tal qual é: cheia de
+deveres e responsabilidades para os fracos, livre e tolerante para os
+fortes e cinicos...--a perversidade moral do homem que amara, uma grande
+repulsa, um grande desprezo lhe invadiu o espirito por tal criatura.
+
+Vieram então novas cartas de Coimbra nas quais o irmão, numa furia
+brava, contava como procurara o sedutor para o matar, como costumava
+matar os lobos que lhe ameaçavam os rebanhos, e não o podera encontrar.
+
+«Apenas lhe souberam dizer: que fôra com a mulher passar a lua de mel,
+não lhe quizeram indicar para onde. Oh, mas havia de encontrá-lo, fôsse
+onde fôsse, fôsse como fôsse. Quanto á irmã, que desaparecesse--não a
+queria mais vêr!
+
+Manoela sorriu, já conformada.
+
+Tambem ella não tinha vontade de viver mais com uma familia que tão
+levianamente a abandonara e era agora tão cruel na condenação.
+
+--Sim, iria para o convento o mais depressa possivel.
+
+Mas duas condições punha á sua completa submissão: saberia onde ficava a
+filha, que não queria deixar entregue ao acaso, como sêr desprezivel que
+não merece a esmola dum afago; e fariam prometer ao irmão que não
+continuaria a perseguir o sedutor. Para quê?! Matá-lo era forçarem-na a
+lamentá-lo, quando era apenas desprezo e asco o que sentia por tanta
+abjéção.
+
+Esquecessem-nos a ambos... Ella entraria desde já para o convento, sem
+nenhuma relutancia.
+
+O irmão cedeu, instado pela mãe, ansiosa por vêr o caso liquidado como
+entendia sêr melhor, sem mais desasocegos e desgostos.
+
+Os outros dois irmãos, não tendo entrado na confidencia, admiraram um
+pouco a subita vocação de Manoela, mas como lhes não desagradava
+inteiramente, pois ficavam assim mais á vontade,--visto que a mãe, afóra
+as horas de comer, raro sahia do quarto, a não sêr para a
+capela--aprovaram a resolução com toda a bôa vontade.
+
+
+II
+
+Desde que obteve a certeza de que as suas condições eram acatadas,
+Manoela ficou apática e indiferente para tudo.
+
+Deixava-se levar sem resistencia para onde a mãe queria que fôsse. No
+seu espirito não havia senão ruinas e desmantelos.
+
+Sempre melancolica, sem raiz que a prendesse á vida, parecia nem sequer
+se preocupar com a filha que tanto a sobresaltara de princípio e deixava
+especialmente entregue aos cuidados da ama.
+
+--«Adeus Ama-Rita,--dizia-lhe na última hora--estima a minha filha como
+me estimaste a mim, e que Deus a faça mais feliz do que a sua triste
+mãe! Até... um dia--em que nos havemos de encontrar.
+
+Mas quando esse dia?... Não sabia, não via nada claro no seu futuro.
+
+Encostada á varanda do quarto onde tanto sonhara e tanto sofria agora,
+passeava os olhos amortecidos por toda a montanha que limita o
+horizonte, e naquella ocasião, em que a primavera tudo cobria com o seu
+verde manto, se afofava em cambiantes de pelucia cara.
+
+Ao seu lado, a pobre mulher abafava os soluços que a sufocavam e limpava
+as lagrimas á ponta do avental.
+
+Seguira-se a viagem, a cavalo, atravessando terras desconhecidas, onde
+gente espantada as seguia com a vista pelos caminhos poeirentos e
+pedregosos, deixando-lhe tal confusão no espirito que nunca saberia
+dizer por onde passara nem o que vira.
+
+Logo á chegada, a mãe conferenciou com Soror Gertrudes, tia do marido,
+agora superiora do convento, que a pouco e pouco iria acabando pela
+morte das últimas freiras, e onde Manoela foi recebida em festa por
+todas essas tristonhas almas encarceradas precocemente envelhecidas.
+
+A mãe partiu, socegada emfim, sem saüdades que a fôssem mortificar ou
+distrahir dos seus austeros deveres de bôa católica.
+
+Tambem a filha as não sofreu, porque nunca se tinham compreendido nem
+estimado aquellas almas, que ninguem diria tão estreitos laços uniam,
+tal a dessemelhança que involuntariamente as separava.
+
+Manoela parece que vinha, inteiramente, do pai, de quem se lembrava
+vagamente, fazendo-a saltar nos joelhos, rindo e chalaçando com todos,
+enchendo a casa de vida e satisfação. E um dia, subitamente,
+estando sentado á mêsa, do rompimento duma aneurisma morrera.
+
+Quasi se não lembrava do facto em toda a sua nitidez, tão longinqua era
+essa recordação, que ficara apenas na sua alma infantil como sensação
+dolorosa, a primeira tristeza na sua vida tão cheia dellas.
+
+Agora vinha encontrar, na tia, o mesmo caráter, essa amizade confiante
+que lhe faltara, essa alegria que tão bem fazia á sua alma dolorida.
+
+Sentia-se envolver naquella atmosfera de paz, que nunca tinha respirado,
+e sentia-se bem naquelle esquecimento de tudo quanto a fizera padecer.
+
+Os dias sucediam-se aos dias, de quando em vez cortados por noticias de
+casa, que recebia indiferente; o tempo ia correndo sempre igual, com as
+mesmas festas aos mesmos santos, as mesmas rezas, as mesmas infantis
+preocupações de vestidos a bordar para o menino Jesus tal ou para a
+Senhora de invocação diversa, o presepe no Natal, o dôce para a venda, a
+mesma comida sempre ás mesmas e invariaveis horas.
+
+Mas um dia Soror Gertrudes morreu.
+
+Manoela tinha então vinte anos. Era uma criança pela simplicidade do
+espirito, que ficara ingenuo e ignorante do mal, apesar de tudo,
+mas era uma verdadeira mulher pela reflexão e pela dôr.
+
+Os últimos quatro anos passados naquella casa conventual tinham
+decorrido num meio sonho vago, que nem chegava a compreender bem.
+
+Depois da catastrofe que lhe angustiara a existencia, a alma
+tinha-se-lhe afundado num como branco nevoeiro, que a deixava viver
+inconsciente e passiva essa vida comum sem que nella tomasse
+verdadeiramente parte.
+
+Dir-se-ia um meio estado sonâmbulo de que a morte da tia, a bôa Soror
+Gertrudes, a vinha acordar dolorosamente.
+
+Como ia sentir a falta dessa querida vélhinha, que lhe dera um aféto
+todo maternal na solidão em que a austeridade da verdadeira mãe lhe
+deixara o coração!
+
+Logo ao entrar, passados os primeiros dias de surpresa, as palavras de
+conforto da bôa vélhinha tinham sido um grande bem para o seu espirito.
+
+--Aconselhava-a a têr esperança--o futuro traz surpresas que não podemos
+prevêr.... E ella era tão nova, santo Deus, como desesperar?! Socegasse,
+estava entre bôas criaturas que a amavam, e ella como tia a teria sempre
+junto de si. Ainda que o não fôsse, estimá-la-ia na mesma, bastava
+sêr uma criança que a desgraça lhe tinha tão tragicamente arremessado
+aos braços...
+
+Tinha razão Soror Gertrudes--Manoela era bem digna de piedade. Entrada
+apenas na vida, era della expulsa com vergonha, e a sua mocidade, que
+mal desabrochara, iria fenecer entre as paredes frias dum convento.
+Quebrados todos os laços que a prendiam ao mundo exterior, o que ficava
+dessa pobre rapariga tão admiravelmente feita para amar e sêr amada?
+
+Sentia-se cahir pesadamente num abismo. Fechando os olhos, estendeu os
+braços em busca dum apoio, e encontrou a mão trémula, o sorriso alegre
+na sua bôca desdentada, e a face macerada da freira, que para ella teria
+carinhos inegualaveis.
+
+Bem sentia ella o cancro brutal, que a ia corroendo lentamente, mas nada
+dizia para não afligir a sobrinha.
+
+Sorria dolorosamente quando uma picada mais aguda a fazia levar a mão ao
+seio esquerdo, num gesto mecânico, quasi involuntario.
+
+Manoela sobresaltou-se quando as dôres começaram a sêr mais amiudadas,
+lembrando-se da terrivel molestia que de quando em quando assaltava a
+sua familia paterna.
+
+A tia socegava-a:--era um _nascido_ que tinha havia muitos anos, não
+seria coisa de morte...
+
+Mas nos últimos três mêses a doença agravara-se caminhando rapidamente
+para o fim.
+
+O cancro rebentara, vermelho, luzidio, enorme, deformando horrivelmente
+o pequenino seio esteril, branco como o marfim--esse seio que guardara
+com tanto recato durante sessenta anos e se mostrava agora na sua
+infermidade horrivel.
+
+Quando Manoela o viu pela primeira vez, perdeu a côr, vacilou e só se
+conteve por um esforço de vontade, que se manifestava nella com a
+revolta natural contra mais esse golpe do destino.
+
+Dahi para diante nunca mais abandonou a tia, assistindo-lhe a todo o
+martirisante fim, sentindo, por assim dizer, na sua alma todas as dôres
+que ella ia sofrendo no seu magro corpo esfacelado.
+
+Foi-lhe infermeira solícita, disfarçando a repugnancia que lhe inspirava
+a ferida, que se ia arroxeando, com laivos azuis, quasi negros, numa
+aparencia ascorosa de podridão. Em volta a péle retesada do peito ia-se
+abrindo e esfarelando.
+
+Manoela tinha sempre diante dos olhos a ferida horrivel que tão
+cuidadosamente tratava, e que era o fim--ella sabia-o--dessa
+existencia tão querida.
+
+Por fim Soror Gertrudes nem sequer se podia assentar na cama, e ella
+assistiu-lhe á agonia, que durou dois longos dias,--lento quebrar de
+cadeias que se tinham enferrujado mas não carcomido.
+
+Quando a superiora declarou que chamassem Soror Angelica para a
+substituir, porque já se não podia levantar e a morte não tardava, toda
+a comunidade acudiu em pranto:--era pois certo que Soror Gertrudes as ia
+deixar para todo o sempre?!
+
+Foi-se prevenir o capelão, que a confessou rapidamente, tal era a
+inocencia dessa alma imaculada, e quando voltou com a comunhão todas as
+freiras e recolhidas ajoelhadas em volta do leito choravam
+silenciosamente, com os véos negros cahidos sobre os seus rostos de cerusa.
+
+Manoela encostara-se á cama, e a tremura do seu corpo fazia estremecer
+esse leito onde a morte já se instalara triunfante.
+
+A ceremonia prolongou-se com o perdão que a moribunda foi pedindo a uma
+por uma das suas companheiras, numa voz que era já um éco de outra
+existencia passada.
+
+Quiz a sobrinha sempre ali, e consolava-a com a esperança dum futuro
+melhor. Deixava-lhe o Menino Jesus do Milagre, que fôra o seu
+companheiro de longos anos, desde que uma senhora freira do convento do
+Paraizo ali morrera e lho deixara por lembrança. E deixava-lhe tudo mais
+que propriamente possuia, e bem pouco era, naquella vida estreita de
+renúncia.
+
+Dirigindo-se a Soror Angelica entregou-lhe a sobrinha e pediu-lhe para
+ella todo o seu amôr e carinhosa solicitude.
+
+Custava-lhe muito deixá-la. Deus mandara-lhe ao fim da vida aquella
+suprema provação, que fôra afinal a maior felicidade de toda a sua
+existencia. Quando ella já se sentia cahir na cova, com tão egoista
+alegria, vinha aquelle aféto imenso prendê-la á terra com laços tão
+fortes que ao parti-los metade da alma lhe ficava cá.
+
+Fechou os olhos: imaginaram-na morta e já os soluços se ouviam mais
+altos. Mas não, era apenas um dormir de extenuamento que breve durou. Ao
+acordar já a voz lhe estava prêsa no estertor, que causava calafrios a
+todas as assistentes.
+
+Fazia esforços para falar, queria talvez dizer coisas que a sua alma, já
+quasi desprendida do mundo, via como nunca tinha visto emquanto a
+materia a segurava á terra.
+
+Os seus olhos, dum azul pálido, como desbotado pelos anos, voltavam-se
+para a sobrinha numa ânsia derradeira.
+
+Choravam todas por a vêr assim, implorando a morte que a viesse libertar
+do incomportavel martirio.
+
+Manoela escondia a cabeça na roupa, soluçando e gemendo apavorada; teria
+fugido áquelle espétáculo superior ás suas forças, se a moribunda lhe
+não tivesse agarrado desesperadamente as mãos como última ancora...
+
+A situação prolongava-se pela noite fóra, e tão pungitiva que todas se
+entreolhavam em pânico.
+
+Era alta noite quando uma criada, vinda do campo havia pouco, se propôs
+pôr termo áquelle martirio, voltando a senhora. E explicava, muito
+sabida e vista nessas coisas:--que era o demonio que estava ali, não
+deixando morrer a senhora, emquanto estivesse deitada sobre o lado
+esquerdo. Vingava-se assim de não lhe poder levar a alma, que era de
+Deus, pela muita bondade da Madre-Superiora.
+
+Todas acreditaram piamente na explicação da rapariga; não estava o
+_Livro da fundação_ cheio de factos que comprovavam as tentações e
+maleficios do eterno inimigo das esposas do Senhor, especialmente
+dirigidos contra as piedosas irmãs daquella santa casa tão rica em
+milagres e indulgencias?!...
+
+Aceite o alvitre, voltaram o corpo pesado, que a morte já quasi gelava
+completamente, deixando-lhe apenas aquelle imenso sofrimento como
+despedida duma existencia de que não conhecera senão as tristezas.
+
+Mal lhe tocaram, despediu num suspiro o último lampejo de vida, tal como
+aquelles cadaveres conservados intactos por anos e anos nos seus tumulos
+socegados e logo que se lhes toca, trazendo-os ao ar, se desfazem em
+pó.
+
+
+III
+
+Manoela sahiu do dormitorio logo que a tia deixara de existir.
+
+Cambaleando, os olhos sêcos, a alma vazia, sem a sensação dolorosa da
+pena, como se a tivessem magnetisado para a furtarem ao sofrimento,
+apenas uma necessidade material a impulsionava.
+
+Tinha sôno--havia tantas noites que não dormia!
+
+Agora que tudo estava acabado, que não havia uma esperança a
+sustentá-la, estonteada, inconsciente, deixava-se vencer por esse torpôr
+que segue a excitação dolorosa de dias sobre dias de espétativa diante
+da morte. A natureza retomava os seus direitos, e a reação era tanto
+mais violenta quanto fôra maior o predominio do espirito sobre a materia.
+
+Logo na pequena sala contigua ao dormitorio, que fazia de livraria,
+deixou-se cahir numa cadeira sem força para ir mais longe.
+
+No dormitorio ia um vai-vem silencioso que mais parecia mover de sombras
+num pesadêlo. As freiras ciciavam ordens ás criadas, acendiam-se
+luzes, rezavam baixinho, limpavam as lagrimas que teimavam em
+enevoar-lhes os olhos, e levantavam com respeito a morta para a vestirem
+como havia de ir para a cova, com o mesmo triste habito que trouxera em
+vida e logo ao entrar para o convento, noviça ingenua e formosa, lhe
+tinham dito que seria a sua mortalha.
+
+E assim, eternamente amortalhada, passava da tristeza de viver ao unico
+sôno consolador dos infelizes, porque é daquelle que se não acorda para
+sofrer mais.
+
+A sua face, serenada pela morte, reflétia a suprema felicidade de não
+existir conscientemente num triste mundo tão cheio de desacertos e
+injustiças. As freiras benziam-se e murmuravam baixinho, pondo as mãos
+com devoção:--que o seu rosto de santa reflétia já todo o goso da
+bemaventurança.
+
+Manoela, abrindo os olhos no meio sôno em que ficara embebida, viu os
+pés da morta calçados com as sandalias da ordem, magros e compridos,
+atados com uma fita para não descahirem; e, mergulhando de novo em
+letargo, sonhou que esses pés caminhavam por sobre o seu corpo desfeito
+e lhe batiam com força no coração. E a sensação foi tão dolorosa e a dôr
+tão forte, que acordou de vez, sentindo realmente uma pontada que lhe
+suspendia quasi a respiração e a fez gritar levando as mãos ao
+peito, sufocada.
+
+Foi quando Soror Angelica veiu têr com ella e a condusiu para o segundo
+dormitorio, fazendo-a deitar na sua propria cama, encarregando uma irmã
+leiga de a vigiar e acompanhar. Então Manoela cahiu num sôno pesado e
+mau, cheio de sonhos que a faziam chorar e gemer baixinho como quem se
+sente estrangulado, sem poder gritar, e a que a irmã leiga punha termo
+chamando-a carinhosamente e abanando-a de leve todas as vezes que a sentia.
+
+Era já manhã quando a vieram chamar para assistir aos responsos que se
+iam fazer no côro e para os quais toda a comunidade se preparava.
+
+Levantou-se sobresaltada, sem nada perceber, como quem acorda dum
+terrivel pesadêlo e reconhece com surpresa que ainda existe na vida tal
+qual a deixara... Atiraram-lhe o véo para a cara, composeram-lhe o
+vestido, e levaram-na pelo braço, sem que compreendesse intimamente de
+que se tratava. Mas quando se encontrou no côro e viu a morta estendida
+no chão sobre um pano preto, entre quatro grossos tocheiros, os padres
+rezando os responsos, e toda a comunidade em volta com os véos cahidos e
+segurando velas acêsas, compreendeu finalmente o que se passava, a
+sua alma despertou para o sofrimento intenso da pavorosa realidade.
+
+Já não havia dúvida possivel, e a noite, que se passara num atordoamento
+de sonanbulismo, aparecia-lhe agora em toda a sua nua e horrivel
+fatalidade.
+
+Debaixo do véo que lhe cobria o rosto, as lagrimas corriam sem cessar
+mas já sem explosão de soluços, tão amargas e lentas que cada uma
+parecia vir arrastando um pedaço da sua alma esfacelada.
+
+Procurava nessa face amada, coberta igualmente com o véo preto, o
+sorriso bondoso, o olhar de carinho, que em quatro anos de reclusão a
+tinham feito esquecer que a vida existia fóra daquellas paredes soturnas.
+
+O véo era denso bastante para lhe velar a face, mas nada obstava a que
+os seus olhos halucinados vissem, debaixo do grosseiro hábito, o peito
+entumecido escancarando-se na repelencia da ferida.
+
+Finda a encomendação, seguiu atraz das freiras, vélhinhas alquebradas e
+esquecidas pelo mundo, que assim iriam rareando, uma por uma, na longa
+fila que vinha do côro.
+
+Era o último enterro a que assistia ali, porque a nova lei prohibia
+enterrar fóra do cemiterio público e fôra não pequeno trabalho para
+se conseguir das autoridades aquella excéção em favôr de Soror
+Gertrudes, que era conhecida e estimada em toda a terra.
+
+Manoela tremia de pavôr observando a serenidade extatica das freiras,
+que não se distinguiam umas das outras, com os véos negros derrubados,
+as velas a arder na mão direita, hirtas e silenciosas e graves como
+espétros.
+
+Lá dentro,--quem sabe?--talvez que as suas almas tremessem de frio a
+cada sacudidela do vento da morte que ia levando uma a uma as
+companheiras de muitos anos, e que nunca mais seriam substituidas.
+
+Já no refeitorio iam faltando tantas que, ao meio dia, a hora
+antigamente tão alegre de jantar,--quando sobre as toalhas de linho
+alvejante os moringues de barro de Estremoz marcavam nas mêsas estreitas
+e compridas, voltadas para o pulpito, o logar de cada uma--mais parecia
+que a sineta chamava para um banquete de sombras.
+
+Os padres iam compassando os responsos, rodeando a cova onde já
+repousava o cadaver, e cada um ia deitando uma pá de terra, seguindo-se
+na ceremonia toda a comunidade.
+
+Ah, bem feliz era Soror Gertrudes que ainda encontrava um abrigo santo
+junto das suas irmãs, vivendo com ellas no eterno sôno, sob o
+abrigo das arcarias do claustro florido, acalentada pelo murmurio fresco
+da fonte que transbordava na sua concha de marmore. As outras--pobres
+dellas!--já não teriam na morte esse mesmo abrigo sagrado e seriam
+relegadas a mãos estranhas e indiferentes, esquecidas nesse campo
+desabrigado e devassado por todos os olhos profanos, que eram os novos
+cemiterios.
+
+As velas tremiam nas mãos enrugadas das pobres vélhinhas.
+
+Das trinta e três freiras que o _Livro da fundação_ dava como limite
+para a comunidade, homenagem piedosa aos anos de Christo, e que ao soar
+a hora, que para muitos fôra de redenção e para ellas de mágua, se
+preenchera á pressa, abreviando as profissões das noviças, já quinze
+dormiam insubstituidas sob as lages do claustro.
+
+Sentindo o lento caminhar das vivas, que eram como fantasmas errantes
+nesse asilo guardado pela morte, sentiriam a dôce ilusão de assistirem
+com ellas na vida comum.
+
+Olhavam-se apavoradas, as velhas freiras, a cada nova escolhida que a
+morte vinha tocar com o seu beijo gelado, e murmuravam entre si:--de
+qual será agora a vez?--terrificadas com a ideia de sêrem a última.
+
+Soror Claudea, com o seu olhar sombrio e desvairado, seguia a ceremonia
+funebre com tremuras convulsivas no seu corpo magro de que a loucura
+histerica fizera uma bôa prêsa.
+
+Dantes tambem morriam, é certo, mas a cada cova que se fechava abria-se
+a porta a uma noviça que tomava o véo preto, e no simbolico número se ia
+conservando sempre a comunidade.
+
+Manoela soluçava agora, vendo cahir a última pedra que a separava para
+sempre da bôa tia, que era a sua unica grande afeição no mundo--tão
+diluida tinha na memoria a lembrança do passado que a filha era apenas
+uma vaga recordação, tão pouco pungitiva como a que lhe ficara do pai,
+que mal conhecera.
+
+
+Soror Angelica ficara superiora sem quasi se proceder á ceremonia da
+eleição, tanto se impunha a todas a sua inteligencia, a sua energia, e a
+sua cultura, rara entre as senhoras daquella casa de regra áspera e
+humilde.
+
+A nova superiora era uma bôa e valiosa amiga para Manoela, considerando
+como um dever estimá-la tal qual o fizera Soror Gertrudes, que tão
+solenemente lha entregara.
+
+Mas Soror Angelica era um espirito mais varonil e energico, e, se dava
+amizade segura e protéção incondicional, não tinha como a tia de Manoela
+os carinhos e as delicadezas dum espirito que tinha ficado menineiro
+apesar da esterilidade duma vida sem familia propria.
+
+A nova superiora era respeitada por todas; a antiga tinha sido amada e
+era chorada como uma bôa mãe.
+
+Se Soror Angelica tivesse nascido anos atraz, seria uma dessas preladas
+temidas e escutadas por todos, porque sabiam fazer valer a força do seu
+direito e pesar a influencia das familias, da fortuna e do nome profano
+de todas as suas governadas, em qualquer questão que as interessasse.
+
+Se tivesse nascido alguns anos mais tarde, seria, em qualquer campo para
+onde dirigisse os seus passos, uma criatura representativa, uma destas
+influencias que todos procuram captar para o seu lado porque em toda a
+parte entra com o valôr da inteligencia, da energia e da tenacidade,
+qualidades sempre raras em todos os tempos.
+
+Superiora sem importancia num convento desapossado de todos os seus
+rendimentos e que existia apenas emquanto vivessem as últimas
+freiras--como existe, sustentado pela hera que o reveste, o velho
+muro em ruinas--Soror Angelica era um desacerto porque era uma força
+inutilisada.
+
+Desde que ficou naquelle quasi isolamento, o espirito de Manoela começou
+a acordar, a debater-se para sahir do torpôr em que esses quatro anos
+amimalhados lhe tinham adormentado a alma.
+
+Essa loucura ardente da fé que despreza o presente pela vaga esperança
+dum futuro cheio de delicias, já por vezes a compreendia, exaltada pela
+devoção e pelas leituras misticas que a superiora lhe indicava. O
+caminho que leva á sarça em fogo onde se consomem as pobres almas
+doentes, que dão as Santas Terezas de Jesus, já por vezes se abria
+diante da sua imaginação inátiva e do seu coração amoravel tão
+implacavelmente impelido pelo destino para a solidão e o desamôr.
+
+Naquelle meio de apertada devoção, no silencio dos grandes corredores
+pontuados de capelinhas milagrosas, o seu espirito inclinava-se para um
+misticismo apaixonado e obsessivo, como tudo seria naquella alma de
+peninsular temperada e subtilisada pelo sofrimento, que vencera sem queixa.
+
+Andava vagarosamente pelos claustros lageados, sentindo-se prêsa dum
+respeito supersticioso por essas pedras que cobriam corpos
+macerados de santas; tinha sorrisos silenciosos, gestos vagos de corpo
+apenas vivo pela esperança de se consumir em breve e reviver só em
+espirito purificado.
+
+Á hora das orações rituais, assentava-se com as companheiras nos
+cadeirões de pau santo, que se defrontavam em duas filas sobrepostas e
+dantes eram só destinados ás professas, e pensava que a vela benta que
+as separava era a alma de cada uma das freiras que ardia no amôr
+apaixonado do Senhor seu Esposo e seu Deus.
+
+O bruxoleamento da luz sobre as paginas do livro de oficios, que seguia
+por dever, tinha para a sua mente enfebrecida a significação clara dum
+suspirar de espirito aspirando á eterna bemaventurança.
+
+Ali, naquelle côro grande como uma capela, revestido de azulejos
+policrómos, cheio de santos e relicarios preciosos, que irradiavam na
+meia obscuridade das suas doiraduras e pedrarias, numa luz quasi de
+sonho, Manoela gastava os seus longos e inuteis dias.
+
+O côro era, como tinha sido sempre desde que se fundara aquella casa, o
+unico luxo, o cuidado e gosto de todas aquellas almas privadas doutras
+delicadezas e distráções feminis. Privadas até de irem á igreja, que
+Manoela contemplava extatica pelas grades estreitas, revivendo a
+vaga recordação que lhe ficara do dia da entrada, quando os seus olhos
+enevoados pelas lagrimas a tinham visto sem lhe poderem dar o verdadeiro
+valôr.
+
+O convento nem se via de fóra, construido em quadrado por traz da igreja
+que o guardava, imperturbavel e austera como sentinela incorruptivel da fé.
+
+A igreja era magnifica, nada dizendo com a humildade da regra nem com a
+modestia do resto da casa: duma traça arrojada, em que as colunas em
+marmore côr de rosa subiam em cordas espiraladas, até se juntarem na
+cúpula alta e sonora.
+
+As janelas, do nosso gotico rendilhado a que se chama _manoelino_,
+conservavam ainda restos dos antigos vitrais, que deviam ter sido dum
+brilho e colorido que encheriam de encanto as naves silenciosas.
+
+Os paineis, que a rodeavam, sobresahiam das largas molduras doiradas e
+entalhadas, pelo colorido um pouco frio e o desenho convencional e
+rigido do estilo que se impunha no tempo em que uma grande dama da côrte
+se lembrara, apaziguando talvez recordações importunas duma mocidade
+cheia de dôces culpas, de fundar aquella santa casa onde,
+propositadamente, só á igreja fôra dada a magnificencia e o fausto
+devidos ao Senhor omnipotente, dispensador de todas as graças,
+arbitro de todo o julgamento. Para as Esposas, as virgens oferecidas
+como vítimas expiatorias do pecado deleitoso da fundadora, a humildade,
+o desconforto, e a asperesa da regra.
+
+Contemplando a igreja, Manoela sentia-se amar um Deus imenso e
+magestoso, arrastando purpuras e fazendo refulgir as joias da sua corôa
+imperial por catedrais goticas de naves resoantes, cheias de grandezas e
+misterio. Prostrava-se ante o seu trôno de luz nessa côrte celestial tão
+fantastica e deslumbrante, que lhe descreviam as almas crédulas e os
+livros piedosos.
+
+O Christo torturado, empalidecido e humanisado pela dôr, não o
+compreendia ali, no luxo e na grandeza da arte, como o poderia
+compreender na igreja humilde da sua modesta aldeia.
+
+Ali era um Deus para camponezes e para as almas simples; aqui era um
+Deus aristocratico e soberbo que se impunha aos grandes e aos poderosos.
+
+Prêsa naquelle deslumbramento, que a fazia viver uma existencia á parte,
+Manoela assim iria gastando a existencia se não viesse um banal
+incidente chamá-la a si, chamando-a á vida com novos interesses e novos
+deveres a cumprir.
+
+Ama-Rita, a bôa mulher que nunca a esquecêra, escrevia-lhe uma longa
+carta, de letra tortuosa, quasi ininteligivel, que ella decifrava a
+custo. «Só passados sete anos lhe escrevia, porque a senhora lho tinha
+prohibido e, não sabendo escrever, não confiava em ninguem da terra para
+fazer uma coisa contra a sua ordem. Agora era a sobrinha, a Luisa da
+Roda, que o fazia. A menina devia lembrar-se della, eram da mesma
+criação, tinham brincado bastante em pequenitas... Viera de servir, mas
+tão doente que o mais certo era não poder voltar. Podiam confiar nella e
+emquanto vivesse não teria a menina falta de cartas».
+
+Manoela tinha os olhos rasos de lagrimas ao pensar na pobre rapariga,
+talvez tisica, que tinha sido sua companheira de infancia, dessa breve
+infancia que lhe vinha, numa lufada sã, evocada por essa mal redigida
+carta de camponia. Era um pedaço da sua rude terra, que a urze e o
+rosmaninho incensavam.
+
+Depois, as noticias alongavam-se:--este que tinha ido para o Brazil,
+aquelle que voltara da tropa, casamentos, bátisados, mortes... e porfim,
+numa linha só, como misteriosamente, a causa primaria de se ter escrito
+aquella grande carta:--«A menina criava-se muito bem; a menina era muito
+linda».
+
+Mais nada... E, no entanto, que mundo novo de pensamentos e de paixões
+essas poucas palavras desenrolavam diante dos olhos e do coração da
+triste reclusa!
+
+O seu espirito, adormentado numa crise de misticismo para que a
+predispunha o meio ambiente, reagia agora com toda a energia, porque a
+sua alma não era feita para vagas abstrações; antes fôra, era, e seria
+sempre, uma mulher humana, nascida para viver e sentir humanamente a
+vida, com todas as suas amarguras e alegrias compensadoras.
+
+A filha!... Quasi a tinha esquecido, naquelle viver sem consciencia de
+si propria, que fôra a sua existencia ali.
+
+Como podera resignar-se durante tanto tempo só com a certeza de que esse
+pequenino anjo, que era a carne da sua propria carne, vivia, nessa terra
+longinqua e áspera, sob os cuidados da velha Ama-Rita? Sentia remorsos e
+agradecia intimamente á bôa serviçal, que assim a chamava á vida
+lembrando-lhe o cumprimento do seu dever.
+
+Relendo aquella frase incolôr, sentia que dentro da sua alma se ia
+levantando outro altar, criando uma nova religião, que mal sabia como
+era dificil de harmonisar.
+
+Encostada ás grades da janela do dormitorio, para onde viera na ânsia de
+se encontrar a sós com a sua propria alma, olhava o campo que se
+estendia num verde luminoso, com um castelo ao fundo, na imponencia de
+cenografia espétaculosa.
+
+Na cerca a nóra gemia e a agua cahia no tanque donde era tirada para as
+regas.
+
+Esse murmurar da agua corrente evocava-lhe o passado distante, a sua
+terra, o fiosinho de agua transparente a deslisar por entre os choupos,
+ao fundo da sua quinta, e aquella pequenina enseada onde se ia esconder,
+num desejo calmo de solidão, a olhar a agua saltando de pedra em pedra
+num grande esforço de quem vem exausto de longa caminhada.
+
+Recordava, com tanta saüdade que chegava a sêr uma dôr material, essa
+época tão afastada para o seu espirito que já parecia têr pertencido a
+outra existencia, as horas que passara ali sósinha, idealisando um
+futuro de poesia e de romance, como o idealisam sempre as mulheres que
+uma educação racional não preparou para entrar na vida pela porta ampla
+e sem mentidos encantos da realidade.
+
+Recordando todo esse passado, para sempre morto, a sua alma tão
+cruelmente torturada e tão profundamente humana acordava num alvoroço.
+
+Chamavam-na para a vida, e ella vinha toda inteira, corpo palpitante,
+coração sangrento pronto a entregar-se a um novo ideal.
+
+Desde esse dia nunca mais deixou de pensar na filha, que se tornou a sua
+obsessão; sentia-lhe a vózinha de choro chamando-a mãe; via-lhe o
+pequenino rosto, que idealisava duma pureza de linhas que só igualariam
+os anjos das pinturas rafaelescas; tremia com a ideia de que podia uma
+doença cruel arrebatá-la sem que a tivesse uma vez sequer acalentado nos
+braços.
+
+Já não rezava como dantes, mas ainda passava no côro as melhores horas
+da sua vida, ajoelhando-se de preferencia diante duma grande Virgem que
+a lenda dos seus milagres tornava célebre em toda a cidade.
+
+Dizia a crónica:--que essa imagem viera de Candia com destino a Espanha
+e fôra por milagre trazida á cidade. Recebida entre musica e fogos de
+artificio, foi levada em procissão e confiada ás freiras que tinham fama
+de mais virtudes entre todos os conventos da terra. De tal maneira se
+avigorou a fé nos milagres da formosa imagem que raro era o dia em que a
+irmã rodeira não recebia, de pobres criaturas sofredoras, bilhetes e
+cartas implorativas dirigidas á Virgem para sêrem colocadas sob a sua
+guarda. A crença no milagre, o último refugio dos fracos que não
+podem resistir á dôr, fizera da bela Senhora uma consoladora permanente
+como dispensadora desse beneficio inestimavel para a maior parte dos
+sêres humanos: a ilusão.
+
+Tambem Manoela se afervorava na devoção pela milagrosa imagem; mas o
+motivo que a arrastava até aos seus pés e a prostrava agora em extasis
+era mais humano do que mistico. É que diante dessa Virgem, que era uma
+mulher que a escultura traçara com toda a verdade, sustentando nos
+braços um pequenino Jesus, filho humano e verdadeiro, que ella,
+humanamente mãe, acariciava com a doçura do seu olhar veludoso e a
+caricia dum sorriso angelical, sentia a sua alma pacificada, sentia-se
+irmanada no mesmo sentimento.
+
+Essa mulher, mãe dum Deus, não a perturbava, porque era bem mulher, bem
+maternal, para compreender o sobresalto do seu coração, a saüdade que a
+sufocava por esse pequenino corpo adoravel, leitoso e macio, que apenas
+podera vêr e beijar á nascença. Aspirava pela caricia dos seus braços
+roliços e da sua boquinha perfumada; morria de paixão por esse entesinho
+dealbante, que lá longe ia crescendo e vivendo rudemente entre
+camponêses, que mal a saberiam amar.
+
+
+IV
+
+Num inverno humido e triste em que o claustro, a igreja e o palratorio
+chegaram a sofrer uma inundação que muito assustou a comunidade, Manoela
+tremia arrepiada sob o mantéo curto das recolhidas, e pensava com horror
+no frio que arroxearia as pequeninas mãos da filha que se aninharia ao
+canto da lareira fumarenta da miseravel casa onde se criava, por essa
+invernia inclemente que tudo abafava sob a nevada deslumbrante.
+
+Sentia o pavôr da sua almasinha trémula, quando os lobos esfomeados
+rondassem o povoado, acossados da montanha pela neve, e as ovelhitas
+timidas se aconchegassem no curral balando tristemente.
+
+Ah, ella não podia acostumar-se á ideia de que a filha, a sua querida
+filha, viveria assim eternamente sem conforto nem os mimos que para ella
+sonhava.
+
+Já por vezes tinha tentado convencer a mãe, levá-la ao esquecimento e á
+tolerancia pelas suas humildes súplicas, mas nada até ahi a tinha
+demovido do seu proposito de conservar em misterio a existencia daquella
+criança que a seu vêr não era do mesmo sangue que das suas veias
+tinha passado ás da filha, e da filha á neta, na continuidade fatal da
+natureza.
+
+Manoela insistia, pedia ainda; mas a força instintiva do amôr maternal,
+que a impulsionava agora, começava a fazê-la admitir a revolta contra
+esse poder que a natureza naturalmente afrouxa, porque assim o acha
+necessario para a conservação da especie, embora os homens o tenham
+querido fortalecer com as suas leis e costumes antinaturais.
+
+Soror Angelica, como superiora e como amiga, continha-a e aconselhava-a
+a conformar-se com a vontade de Deus...
+
+--«Depois,--dizia-lhe ella, um dia, aspirando deliciada a flôr perfumosa
+duma angelica que se abria num vaso colocado na varanda da sua céla de
+superiora, mimo gracioso duma das suas amigas da cidade--depois, Soror
+Manoela, de que lhe serve ir contra a vontade de sua mãe?!... Não é ella
+a senhora da casa?... Não é ella que tem só o poder do dinheiro?»
+
+--«É a senhora, porque nós, os filhos, assim o queremos; mas não sabe,
+Madre Angelica, que temos direito a puxar pela herança de meu pai e
+exigirmos a nossa parte?... Por pouco que seja, dar-me-ha o
+bastante para viver com a minha filha...
+
+Por menos que Manoela soubesse das leis que governam os homens, sabia o
+bastante, pelas relações mundanas entretidas entre o convento e a
+sociedade, para conhecer o direito que a tornava senhora da sua pessôa e
+da sua fortuna.
+
+--«Revoltar-se, Soror Manoela, cuida que isso lhe daria felicidade?!...
+Santo Deus! Os pais representam na terra a autoridade divina. Triste
+daquelle que no pecado procura a coragem bastante para lhe fugir!...
+
+--«No pecado?...--murmurou Manoela, limpando as lagrimas.--E não será
+maior pecado o meu se deixar morrer ao abandôno a minha filha, esse
+pobre anjo que não tem culpa nenhuma de têr sido chamada á vida?!...
+
+--«Sim, é uma grande culpa que sua mãe levará ao tribunal supremo, mas
+quanto maior não seria a sua, minha pobre filha, se levasse a de
+rebeldia e de orgulho filial!... Não chore! Tenha resignação; se
+soubesse quantas lagrimas têm chorado outros que... que... que por fim
+se resignaram a não viver senão com a esperança na morte!...
+
+E Soror Angelica desviou-se um pouco, abafando no lenço um soluço que
+não poude vencer.
+
+--«Madre Angelica?!...--interrogou ansiosa a recolhida.--Porque chora?
+Tambem, como eu, sabe o que é sofrer o pêso duma vontade alheia, que
+esmaga o coração?
+
+--«Ah, minha filha, se sei!... Não queira, Soror Manoela, sofrer como eu
+sofri... como nós sofremos... a tirania duma ordem, que despedaçou duas
+existencias!...
+
+A freira, que tinha sido uma das últimas professas, não era ainda muito
+velha, mas o seu rosto, amargurado agora pela recordação, evocava um tal
+passado de dôres e sacrificios, que Manoela, inconscientemente,
+curvou-se para lhe beijar as mãos, que juntava num gesto de imploração
+extrema, numa prece em que ia toda a sua alma de mistica e de sofredora.
+
+Depois, mais socegada, sentando-se junto da mêsa de trabalho, convidou a
+recolhida a sentar-se num pequeno escabelo e disse:
+
+--«Soror Manoela, o que lhe vou dizer julgava-o para sempre sepultado no
+fundo da alma, tão esquecido e longinquo como se o lêra duma outra
+infeliz, num desses livros da nossa santa casa. Mas Deus Nosso Senhor
+inspirou-me a ideia de lho contar para que nesse exemplo Soror Manoela
+encontre força para resistir á tentação diabolica que a impele á revolta
+contra a vontade de sua mãe. Soror Manoela, houve numa terra linda
+do Alemtejo uma familia que juntava aos seus pergaminhos de fidalguia
+uma grande fortuna em terras e dinheiro. Era pai e filho no tempo em
+que... em que os conheci. O pai era o tipo acabado da nobreza altiva e
+autoritaria; o filho a bondade, a inteligencia e a docilidade numa só
+criatura humana reunidas. Em pequenino ficara orfão de mãe, entregue aos
+cuidados duma velha parenta que o educara e cuidara como um perfeito
+cavalheiro.
+
+O seu gosto e a sua alegria estavam só nos livros que folheava sem
+descanso e na penna com que se servia para versejar... ás escondidas. Só
+uma pessôa sabia do seu _crime_, como elle lhe chamava, a rir...--e
+Soror Angelica sorriu tristemente para esse fantasma saudoso da
+mocidade.--Era uma pupila, do pai, orfã e morgada como elle. Oh, Soror
+Manoela, se soubesse como se compreendiam e se amavam aquellas duas
+almas que o destino parecia impelir uma para a outra!... Ambos novos,
+ambos sem um coração de mãe que lhe tivesse sido refugio e consolação,
+ambos ricos, ambos filhos unicos e ambos sentindo os mesmos prazeres, e
+tendo os mesmos gostos simples e modestos. Oh! deixassem-nos lêr as
+lindas historias de cavalaria que a velha prima alinhava com amôr
+na bibliotéca do seu quarto; deixassem que elle lhe recitasse as
+suas poesias emquanto ella matisava um bordado, sob a protéção carinhosa
+da vélhinha, que lhes queria como a filhos gemios do seu coração... e
+eram felizes. O que lhes faltava? Apenas a idade para que o pai
+consentisse no casamento, que via tambem com olhos complacentes.
+
+--«E casaram?...--perguntou Manoela, seguindo com vivo interesse a linda
+historia de amôr que lhe rasava os olhos de lagrimas, a ella que do amôr
+tivera apenas uma fugaz e mentida visão.
+
+--«Não, não casaram--respondeu a freira, sorrindo, apesar da dolorosa
+contráção da sua face marfinea.--Não lhe disse que o morgado era um
+homem ainda novo e belo, apesar dos seus quarenta anos? Pois era... Ao
+contrario do filho, montava com garbo um cavalo andaluz, que ninguem
+domaria como elle, só com a pressão dos joelhos e a firmeza da sua mão
+de rédea; sabia aprumar-se numa sala diante dos cavalheiros e curvar-se,
+como ninguem, num requinte de gentileza, diante das senhoras; jogava
+como um verdadeiro fidalgo, sem que ninguem podesse perceber-lhe no
+rosto se perdia ou ganhava... emfim era querido e procurado por todos e
+convidado com o maior empenho pelas familias aristocraticas da
+provincia e da capital. A quantas formosas raparigas não teria sorrido a
+ideia de o têrem por marido e quantos pais o não teriam desejado para
+genro? Elle ria-se dessas pretensões e estava bem convencido de que o
+seu destino estava traçado em vêr a felicidade do filho e receber os
+netos para herdeiros e continuadores do seu nome. Mas, um dia, o morgado
+viu uma senhora que se apoderou do seu coração, e desde logo deixou de
+se pertencer. Era uma mulher formosissima e igualmente rica, mas dum
+orgulho que nada havia que podesse igualar. Apaixonou-se tão loucamente
+que desde a hora em que a viu até que a morte o levou nunca mais teve
+vontade nem pensamento que não fôsse a della ou por ella inspirado.
+Apresentou-se como pretendente á mão da orgulhosa fidalga, e, apesar da
+sua idade e da concorrencia de muitos outros candidatos, foi aceite.
+
+A ambiciosa calculava o valôr das fortunas reunidas e optara pela
+pretensão do morgado, que lhe dava margem a viver na opulencia e
+grandeza que sonhara. Mas... o morgado tinha um filho, o herdeiro da
+casa, o futuro morgado e senhor, que mais tarde, morto o pai, a
+esbulharia dos seus direitos de posse, nada deixando para os filhos que
+podesse vir a têr.
+
+--«O que fez então?
+
+--«Oh, a desventurada sabia bem conciliar as coisas; só não soube
+conciliar a felicidade propria com a dos outros!...
+
+--«Casou com o filho?
+
+--«Não, que horror! Pôs como condição para o casamento com o morgado que
+o filho... se fizesse padre.
+
+--«Oh, que sacrilegio! E o morgado aceitou?!
+
+--«Assim foi. Em vão o filho e a pupila lhe pediram, de joelhos, que os
+deixasse casar; em vão elle ofereceu a sua desistencia ao morgadio.
+Ricos seriam os dois--com o seu trabalho e a fortuna de... da pupila do
+pai. Tudo debalde! Elle foi implacavel, porque ella o foi tambem. A lei
+só lhe garantia a posse do morgadio para os filhos se o verdadeiro
+morgado fôsse frade ou padre...
+
+--«Que desespero! Que mulher tão má! E depois, Madre Angelica?...
+
+--«Depois... elle foi padre!
+
+--«Oh!... E ella?
+
+--«A noiva?
+
+--«Sim, a noiva do rapaz.
+
+--«Essa cuidou morrer de desgosto, mas deu-lhe o Senhor coragem para
+resistir á doença do corpo e á da alma e... professou tambem.
+
+--«Freira? Resignada, resignados ambos?... Que almas eleitas, meu Deus?
+Mas... morreram?
+
+--«Elle morreu. Dorme ha muito na paz de Deus. O seu corpo ficou, a seu
+pedido, no claustro do convento que fundou quando ficou herdeiro da
+fortuna...
+
+--«Como?! Então sempre foi morgado?
+
+--«Sim. A maior dôr foi essa!...
+
+Soror Angelica encostou a cabeça á mão e as lagrimas escorregaram-lhe
+por entre os dedos, uma a uma.
+
+--«Mas porque não fugiram? Para que se sujeitaram a essa lei odiosa?!
+
+--«Porque elle era o pai. E os filhos não podem ir contra as suas ordens
+terminantes. Sugeitou-se, sacrificou-se, pela felicidade paterna. Mas...
+pouco tempo depois a nova morgada, apesar de rica, autoritaria e feliz,
+não poude resistir á fatalidade. Logo ao dar á luz o primeiro filho
+morreu, cheia de pavôr do castigo, consolada e amparada pelo homem que
+sacrificara ao seu orgulho e ambição. Mêses depois, o filhito que ficara
+o herdeiro da fortuna morreu tambem deixando o pai consumido de
+remorsos, envelhecido e triste, e herdeiro de toda a casa. E aqui tem
+porque, sendo padre o filho mais velho, sempre este ficou o infeliz
+herdeiro de toda essa fortuna maldita.
+
+--«Então não acha, Madre Superiora, que foi absurda, que foi até um
+crime essa obediencia que destruiu duas vidas?
+
+--«Soror Manoela--e a voz da freira tinha uma entoação grave, que nunca
+lhe conhecera, como se fôsse o éco apenas duma alma pairando muito
+alto--esse absurdo não deixou remorsos nas almas que se irmanavam e se
+amavam até ao infinito. Elle morreu sorrindo e perdoando; ella... vive
+na esperança duma vida melhor, sem que--graças a Deus!--tivesse sentido
+ainda a dôr amarga de ter causado o mal alheio.
+
+--«Amarem-se dessa maneira, têrem diante de si a vida, e matarem por
+suas proprias mãos toda a esperança de felicidade, Senhor! Como tiveram
+coragem? Eram decerto duas almas santas--não se podem tomar como
+exemplo... E não posso, não posso seguir o seu conselho, Madre
+Superiora! Se os velhos são egoistas e impiedosos, os novos têm direito
+a reclamar a sua parte de felicidade na terra.
+
+--«Faça o que entender, minha filha. Mas fique certa que, volvidos
+tantos anos e choradas tantas lagrimas, ainda não trocaria a paz da
+consciencia e a dôce consolação da minha saüdade por uma alegria
+construida sobre as ruinas doutra existencia...
+
+--«Pois era a Madre Superiora?!...
+
+--«Eu, sim, que não tive nenhum merito, porque _elle_ e só _elle_ foi o
+inspirador da nossa conduta, _elle_ o filho heroico que sacrificou, sem
+um protesto, a felicidade propria á felicidade de alguns anos de seu
+pai!...
+
+As duas calaram-se, entristecidas e como que suspensas, ouvindo uns
+gritos lancinantes que vinham da outra extremidade do corredor.
+
+--«Pobre Soror Claudea!...--lamentou Manoela--Anda agora tão louquinha!
+
+--«Ahi tem, Soror Manoela, uma que se não poude resignar de bôamente...
+
+--«O quê? Ella não foi sempre assim?
+
+--«Oh, não! Era a mais alegre, a mais encantadora, a mais viva de
+quantas têm vindo a esta casa procurar o repouso e a felicidade... que
+nunca poude encontrar entre nós. Se a visse!... Soror Claudea nunca teve
+vocação para freira e nunca pensou que o poderia sêr. Se entrou para o
+Convento das Bernardas foi na ideia de que de lá seria facil fugir á
+tirania do pai, que a queria fazer professa a todo o transe.
+
+--«Meu Deus! Mas porquê?!
+
+--«Porque a fortuna da casa era pequena e era preciso que ficasse toda
+reunida nas mãos do filho mais velho, o representante da familia.
+
+«As irmãs e irmãos de Madre Claudea espalharam-se, resignadamente, por
+varios conventos e fôram homens e senhoras muito respeitados na
+religião. Ella é que se revoltou sempre, porque, para seu castigo, desde
+pequenina que queria, com um amôr profano e intenso, a um moço de
+modestos recursos, filho segundo como ella, que se desesperava por a não
+poder furtar ao poder despotico do pai.
+
+«Começava nesse tempo a falar-se nos liberais que se juntavam no
+desterro para conspirar, os quais, dizia-se, eram recebidos de braços
+abertos pelo imperador, desde que mostrassem sêr homens de valia e de
+coragem. Se a causa liberal triunfasse, dizia-se, esses ficariam ricos e
+cheios de dignidades. Na esperança de por esse meio conquistar a fortuna
+que lhe asseguraria a felicidade sonhada, o rapaz emigrou e voltou mais
+tarde com as tropas liberais pondo em todos os átos de coragem da sua
+brilhante carreira militar o unico fito de libertar a mulher que amava,
+prêsa num convento e obrigada a professar, embora protestasse sempre e
+chorasse sem descanso durante toda a ceremonia.
+
+--«Assistiu a essa cêna, sem lagrimas, Madre Angelica?»
+
+--«Felizmente não foi no nosso convento que a fizeram professar, mas,
+embora as freiras chorassem e a lamentassem, o que lhe podiam ellas
+fazer?... O sr. bispo era parente da familia, e o sr. bispo é que
+aprovou a profissão.
+
+--«Pobre mulher!...
+
+--«E bem desditosa! Quando o namorado chegou a Portugal soube da sua
+profissão violentada, mas não desanimou. Combinou as coisas de modo que
+se poude corresponder com ella e... combinaram a fuga.
+
+--«Soror Claudea fugiu?
+
+--«Sim, chegou a sahir do convento, descendo por uma corda da altura dum
+segundo andar. Quando chegou á rua onde elle a esperava tinha as mãos em
+carne viva, tão feridas que ainda hôje conserva as cicatrizes e ficou
+com as articulações prêsas...
+
+--«Sim, já tinha reparado que mal pode trabalhar com desembaraço...
+
+--«Fugiram... mas na guerra não ha felicidade possivel. A morte foi tão
+cruel para o sacrílego como a familia o tinha sido para a desditosa...
+
+--«Infeliz mulher! E depois?
+
+--«Depois, abandonada de todos, aceitou este pobre refugio, apesar de
+não sêr professa da nossa Ordem. É desde então que Madre Claudea sofre
+as crises aflitivas que Soror Manoela conhece... Pobre Madre Claudea!
+Não soube conformar-se, e não foi por isso mais feliz fugindo á
+obediencia filial...
+
+--«Oh, Madre Angelica, sempre o peor é ter nascido mulher! Terá sido
+sempre assim? Será eternamente a mesma coisa?!...
+
+--«Quem o sabe?!...
+
+--«Que grande culpa a minha em têr dado vida a uma criatura que hade,
+como nós, sêr uma sacrificada!...--E Manoela torcia as mãos chorando
+numa crise de nervos, que a velha freira tentava aplacar.
+
+--«Tenha esperança, minha filha; quem sabe o que será o futuro?!...
+Houve sempre mulheres que escaparam ao destino comum e fôram felizes.
+
+
+V
+
+Manoela foi-se resignando a esperar, cedendo sempre, adiando de mês para
+mês a realisação do projéto que acariciava no seu coração, e que
+importava o áto público de rebeldia, que Madre Angelica tanto condenava.
+
+Os anos fôram decorrendo e ella assistindo, com o espirito dolorido e a
+vontade embotada, áquelle fim miserando de vidas que se iam extinguindo,
+num bater de azas lugubres que enregelava.
+
+O convento ia-se despovoando a pouco e pouco, como que tornando-se
+maior, á medida que as vélhinhas, uma a uma, iam sahindo, para não mais
+voltar, a tomar o seu modesto logar no cemiterio público.
+
+Manoela era agora a cabeça que por todos pensava, a alma e a energia que
+sustentava aquelle resto de vida conventual, dando-lhe uma aparencia de
+cohesão, que não tinha.
+
+Sentia-se apossada de todo esse vasto casarão, que parecia crescer a
+cada nova baixa que a morte marcava, com a sua fatalidade cega de força
+inconsciente, na comunidade já tão diminuida.
+
+Era a herdeira natural e incontestada dos santos que lhe iam deixando as
+pobres vélhinhas, como recordação, e na vaga esperança de que assim
+viveriam mais na sua memoria, unico abrigo ás suas almas exauridas.
+
+Das freiras que ao entrar a tinham enchido de blandicias e amimalhado
+como mães carinhosas, já poucas existiam. Iam-se mirrando e fenecendo,
+seguidamente umas atraz das outras, quasi sem doença e sem sofrimento,
+num descahir e murchar de vontade que nenhum ideal sustenta.
+
+Apenas três ou quatro vélhinhas entorpecidas pelos anos, Madre Angelica
+ainda energica apesar da sua idade e da sua dolorida existencia, e Madre
+Claudea cada vez mais dificil de aturar, fugindo endoidecida do convivio
+dos outros, seguindo apenas automaticamente as devoções obrigatorias do
+côro, que eram como que um farrapo de lucidez a alvejar no seu triste
+espirito entenebrecido. Chorava dias inteiros, com gritos dilacerantes,
+os pecados do mundo, que queria carregar sobre os seus miseraveis
+hombros, mais do que os dos outros pecadores, sem esperança de perdão.
+Tinha visões que assustavam as meninas do côro, e apavorava as criadas
+narrando-lhes: como na igreja do convento fôra uma vez enterrado um
+grande fidalgo da cidade cuja alma em pena o diabo veiu buscar com
+medonho barulho. Ella não se lembrava, Soror Claudea não era desse
+tempo; mas ouvira contar bastas vezes ás santas freirinhas que tinham
+assistido a essa luta homerica do diabo, querendo levar uma alma
+abrigada pelas paredes santas daquella virtuosa casa. O fidalgo durante
+toda a vida não tivera uma palavra de justiça nem de piedade para
+ninguem, nem se lembrava de minorar a miseria alheia, a não sêr por
+orgulho e fama. Assim, logo que morreu e que o trouxeram com pompas
+principescas ao carneiro de familia, feito na igreja por deferencia
+especial a quem muito protegera a comunidade, um verdadeiro e espesso
+nevoeiro se levantou logo do chão escurecendo a vista ás freiras, que
+nem podiam distinguir o padre oficiando no altar. E, á noite, o ruido
+era tanto pela nave magestosa, que as freiras atemorisadas deixaram de
+abrir as grades do côro para as rezas noturnas. Era impossivel resistir
+ao pânico que se apoderou daquelle rancho de mulheres, que viam e ouviam
+tudo quanto diziam vêr e ouvir por um fenomeno vulgar de sugestão, que
+tanto milagre tem feito no mundo.
+
+Madre Claudea descrevia e pormenorisava, então, a festa do exorcismo que
+fôra feita por santos monges arrabidos auxiliados por todas as
+outras comunidades dos arredores, que de cruz alçada entraram na igreja.
+Aberta a sepultura e aspergido o cadaver, uma nuvem negra sahiu da cova
+espalhando-se pela igreja e sahindo pela porta entre-aberta com fragôr.
+Depois tudo cahira no silencio, tudo se pacificara, ouvindo-se apenas as
+orações dos frades prostrados de joelhos num santo respeito por tão
+grande castigo.
+
+E quando fôram vêr a cova... não continha mais do que um punhado de cinza!
+
+Madre Claudea benzia-se murmurando exorcismos e orações, e as ouvintes
+entre-olhavam-se sentindo pela espinha um arrepio de pavôr.
+
+E não era só isto o que ella sabia. Uma ocasião--isso já fôra talvez ha
+seculos, mas o _Livro da fundação_ lá o tinha escrito--aparecera um
+rapazinho trazendo um feixe de varas resequidas que ofereceu á irmã
+rodeira para plantar na cerca. Se ella as plantasse veria como dum
+instante para o outro, por milagre do Senhor, cresceriam logo e se
+tornariam em belas e frondosas arvores. A irmã rodeira ralhou com o
+garoto e despediu-o; mas como nessa ocasião passasse uma noviça, criança
+e amiga de brincar, disse-lhe com empenho:--deixe-me experimentar, irmã
+rodeira; não faz mal nenhum e sempre a gente se rirá da lembrança do
+rapazinho.
+
+Assim foi. Pegou numa das varas e foi a correr enterrá-la na cerca,
+seguida por outras noviças em recreio.
+
+Imediatamente--Santo Deus, os maleficios que faz o mafarrico!--a vara
+engrossou e cresceu desproporcionadamente e tornando-se numa arvore
+magnifica encheu de assombro as pobres noviças, que viam, sobre ella,
+uma multidão de macacos fazendo-lhes negaças. Foi o inferno na casa!
+Todas as que olhavam a arvore maldita ficavam possuidas do espirito
+imundo e faziam os maiores desacertos e gritarias. Como toda a
+comunidade corria a vêr a causa de tal alvoroço, toda ella sofreu do
+mesmo mal, e têr-se-iam perdido todas, certamente, se não fôsse a Madre
+Superiora, que, antes de mais nada, mandara chamar pela moça de recados
+os senhores capelães e confessores para pôr termo áquelle inferno com as
+suas preces e esconjuros.
+
+Madre Claudea sabia mais e mais, mas já se não lembrava bem e a sua
+memoria fraquejava ao recordar tantas coisas idas... Apertava a cabeça
+com as mãos e chorava, num chôro desfeito e infantil que enchia de
+lagrimas todos os olhos.
+
+Só Manoela podia apaziguá-la e por assim dizer chamá-la á realidade e,
+com a sua voz persuasiva e grave, fazê-la socegar e adormecer
+confiada como uma pobre inocente. E olhando-a esqualida e apenas com os
+ossos cobertos por uma péle resequida e empergaminhada, Manoela pensava
+com amargura na linda rapariga que ella fôra, segundo lhe contara Madre
+Angelica, amada com paixão, amando com loucura, vítima de interesses e
+preconceitos alheios, um dia rebelde e desvairada rompendo com todas as
+peias, logo humilhada e cheia de remorsos, entrepondo-se voluntariamente
+á vida que engeitara, num terror atavico de escravo que não sabe o que
+hade fazer á liberdade, com sacrificios heroicos.
+
+Tambem Manoela teve um dia, e quando menos a esperava, depois de tantos
+anos de sujeição, a sua alforria, e tambem, como ella, a não soube usar,
+porque a sua vontade longamente oprimida não se fortalecera e definira.
+
+Ao princípio, quando chegou, a noticia da morte repentina da mãe, não se
+compenetrou bem do que essa morte representava para a sua existencia e
+apenas se sentiu surpreendida--não tendo a pretensão de querer sofrer,
+por costume, o que de facto não sentia, por aféto.
+
+Mas, relendo melhor as cartas do irmão e da Ama-Rita, compreendeu por
+fim que era rica e senhora absoluta da sua pessôa. Isto não lhe
+podia de pronto dar a sensação da liberdade que por vezes pensara
+deveria sentir, porque o hábito lhe dera uma nova servidão, que os
+timidos e os prisioneiros conhecem.
+
+Mas, a pouco e pouco apossando-se de si mesma, resolveu fazer
+prontamente o que havia tanto desejava com ânsia: mandar buscar a filha,
+reconhecê-la como tal, e conservá-la junto do seu coração e até á morte,
+triplicando em carinhos os anos de amargurada saüdade em que a tinham
+conservado.
+
+Foi têr com Madre Angelica, que era ainda a Superiora venerada e
+querida, que anos antes a acolhera no seu coração maternal.
+
+Parecia outra, galgando lestamente as escadarias e correndo pelos
+corredores que levavam até á céla da Superiora, que já quasi nunca sahia
+do seu cantinho cheio de sol. Com os seus trinta e quatro anos vividos
+numa vida quasi vegetativa, os traços finos do seu rosto, que fôra duma
+formosura discreta de morena, conservavam, apesar de tudo, a delicadeza
+e a graça ingenua que fôram o grande encanto da sua mocidade, quando a
+tinham trazido para ali.
+
+Nos momentos--raros momentos que elles fôram!--de perfeita felicidade
+para o seu coração, toda a sua pessôa irradiava uma alegria
+confiante, que a tornavam singularmente encantadora.
+
+Quando Madre Angelica levantou os olhos do livro de orações para dar a
+licença que ella lhe pedia á porta, foi já com o assombro que causa uma
+grande mudança numa pessôa querida, porque a propria voz da recolhida
+era outra--um novo timbre de alegria a fazia desconhecivel.
+
+--«O que é, Soror Manoela?!... Alguma novidade lá por baixo?
+
+--«Não, Madre Angelica, a novidade é só minha... é uma coisa que eu
+pensei e que lhe venho participar...
+
+E Manoela explanou, diante da pobre freira sobresaltada, o projéto, que
+tão simples se lhe afigurara.
+
+--«A sua filha para aqui, Soror Manoela, pensou isso?!...--perguntou
+apavorada.
+
+--« Sim, para aqui, então não hade sêr para aqui?!
+
+--«Oh, meu Deus, meu Deus! Para que estou eu guardada, santo
+Deus?!--lamentava a Superiora.
+
+--«Mas eu não compreendo o seu espanto, Madre Angelica! Então não sabia
+o motivo porque estou aqui ha dezoito anos? Não foi a Madre Angelica que
+me levou á obediencia a minha mãe adiando até agora a realisação do
+meu desejo?!...
+
+--«Sempre imaginei morrer antes de vêr esse escandalo!... Meu Deus, meu
+Deus! Então a minha filha quer dar a essas meninas o público espétáculo
+da sua antiga culpa?!... Quer sêr o riso e a fabula de toda a cidade?! O
+que dirão de nós?! Com tanta má vontade contra as casas religiosas, com
+tanta calúnia que se tem levantado, se Soror Manoela vai agora
+apresentar publicamente a sua filha, o que não dirão?!...
+
+--«E que me importa tudo isso?!--não sou eu livre porventura?!
+
+--«Oh, livre, livre!... Ninguem é livre de alardear os seus
+pecados--respondeu a freira, impacientada.
+
+--«Não é isso o que nos diz a nossa religião, Madre Superiora. Esconder
+um pecado ou culpa é uma prova de orgulho que Deus condena.
+
+--«Mas não neste caso, em que a sua publicação trará descrédito e
+vergonha para a nossa santa casa. O que dirão, sabe, Soror Angelica?...
+Dirão que nesta casa a imoralidade chegou ao ponto de se apresentarem
+publicamente as filhas das freiras!...
+
+--«Dirão uma mentira, que eu propria desfarei contando a verdade. Bem
+sabe, Madre Angelica, que se não fiz isto ha muitos anos foi por
+seguir os seus conselhos, nos quais me mostrou que devia obediencia a
+minha mãe. Por ella, por esse respeito de que me falou para com uma
+pessôa que me afastou da casa de meu pai, que me expulsou como a uma
+criminosa, sofri dezoito anos dum silencio que considero uma covardia
+hôje... Ah, dezoito anos de saüdades por uma filha que se não conhece e
+pela qual se morre de amôr!... Ah, Madre Angelica, como fôram crueis
+comigo! A culpa, se a houve, se uma criança, como eu era, a pode têr por
+se deixar iludir por um homem da sua casta, um amigo de seu irmão...
+essa culpa bem a tenho lavado com lagrimas de um coração ansioso por
+conhecer a sua propria filha. Ah, a Madre Superiora é cruel: foi-o
+comigo, quando me fez recuar ante a minha justa vontade; é-o agora
+ainda, porque não compreende este meu sentir!... Mas agora sou livre;
+quero a minha filha--e heide tê-la!...
+
+Manoela, sempre tão delicada no dizer e tão submissa, chegava nesse
+momento á voluptuosidade das almas sacrificadas quando uma vez chegam á
+consolação de poderem articular a verdade, que lhe sahia em palavras que
+pareciam golfadas, num atropêlo de quem esteve encarcerado largos
+anos e vê por acaso uma porta escancarada.
+
+--«E seus irmãos, o que dirão elles desse áto?--arriscou a Superiora
+tentando dissuadi-la.
+
+--«Meus irmãos!?... Que lhes devo eu, Madre Superiora? Ha dezoito anos
+que me viram partir de casa, um amaldiçoando-me, os outros nem
+perguntando a causa dessa sahida, e só agora me escrevem porque apesar
+de tudo a lei me confere o direito de partilhar com elles a herança de
+nossos pais. Meus irmãos!? Quasi os não conheço... Nem lhes devo
+amizade, nem respeito. Á minha filha, sim, a essa devo todo o meu amôr,
+todos os momentos do resto da minha existencia.
+
+--«Soror Manoela, pense bem. Será um escandalo! O que dirão essas
+meninas do côro, as criadas, as senhoras que nos protegem e nos dão a
+sua amizade?!... Para que estava eu guardada, Senhor!?--E a freira
+levantava as mãos e os olhos ao céo, num gesto implorativo,
+murmurando:--Ah, se Madre Gertrudes fôsse viva!...
+
+--«Sim,--volveu a outra com vivacidade, tão pouco do seu costume--tem
+razão! Se minha tia fôsse viva, ella seria a primeira a chamar a si essa
+pobre criança que tem sido escorraçada de todos como um cão
+tinhoso. E já que a não posso trazer para esta casa que me foi
+abrigo nas horas tristes da vida, sahirei daqui. Irei viver com minha
+filha livremente...
+
+--«O que diz, Soror Manoela, deixar-nos!? Quer deixar-nos agora que
+estamos com os pés para a cova, e é a unica pessôa que aqui temos para
+nos ajudar a bem morrer, acabando em paz na nossa santa casa?!...
+
+Os soluços sufocaram-na. Tambem ella sofria com a dôr da sua pupila;
+tambem dos seus olhos, que já deveriam estar esgotados, por tanto terem
+chorado, cahiram lagrimas que Manoela recolheu no coração angustiado.
+
+Soror Angelica abriu-lhe os braços, e por largo tempo ficaram chorando
+juntas o desespero dessa primeira desinteligencia em tantos anos de
+confiada e dôce amizade. Foi a freira que quebrou o silencio:
+
+--«Soror Manoela, mande vir a menina; mas, se lhe merecem alguma
+consideração as suas velhas companheiras, não a reconheça desde já
+publicamente. Deixe que a morte feche as portas do nosso convento, e
+então será completamente livre para fazer a sua vontade.
+
+--«Mas que nome dará á amizade por uma criança que tão empenhadamente
+mando vir para junto de mim?
+
+--«Não poderá sêr uma afilhada?...
+
+--«Afilhada?!....--Manoela hesitava, pesando-lhe muito aquella fraqueza
+como uma verdadeira covardia. Mas as velhas companheiras de toda a sua
+existencia de expulsa mereciam alguma consideração... Cederia.
+
+Tinha de sêr--mais uma vez sacrificando ao descanso dos outros os seus
+sonhos, as suas revoltas, as suas alegrias, a sua vontade.
+
+
+VI
+
+Alguns dias depois chegava Christina, acompanhada pela Ama-Rita, que
+chorava de comoção só com o pensamento de revêr a sua querida menina.
+
+Manoela foi esperá-las á portaria, escondendo a custo a ansiedade da sua
+alma que tumultuava em desejos loucos de tomar a filha nos braços e
+gritar bem alto a sua paixão.
+
+Toda ella tremia, sorrindo contrafeita ás conversas e perguntas das
+outras senhoras, amparada pela Madre Superiora, que extraordinariamente
+sahira do cantinho da sua céla para a fortalecer naquella suprema prova.
+
+Veiu por fim a hora da chegada; abriu-se a portaria, e Manoela poude vêr
+pela grade entreaberta a Ama-Rita, muito vélhita e trôpega, acompanhada
+por uma mulher, uma verdadeira mulher forte e desempenada, que olhava
+com visivel curiosidade essas paredes enegrecidas que iam sêr o seu novo
+abrigo--sahida dum convento, onde a mãe pagara para a educarem, para
+entrar naquelle como recolhida.
+
+Manoela, á medida que a filha se ia aproximando, subindo a escada para
+entrar no palratorio, ia recuando espavorida, sentindo um frio de
+morte no coração, que a asfixiava. É que diante dos seus olhos estava,
+não a filha que amava e chamara febrilmente durante anos de paixão
+esteril em que se consumira, mas a imagem viva do homem que, na rétidão
+do seu caráter, apenas podera desprezar como um sêr ignobil e ascoroso.
+
+Christina não era nada, nada do que ella tinha idealisado. Não era a
+_sua_ filha, era a filha _delle_, que a natureza, inconsciente na
+fatalidade da sua força, lhe punha nos braços.
+
+Vencendo a repugnancia instintiva que essa semelhança lhe inspirava, foi
+sorrisonha e meiga que recebeu a afilhada, mas Christina não
+correspondeu tambem a esse apêlo. Os seus olhos garços ficaram frios e
+dominadores, como eram habitualmente; a sua bôca não se desdobrou álêm
+do sorriso escarninho que lhe errava habitualmente nos labios.
+
+Foi tristemente resignada que Manoela a acompanhou ao dormitorio cheio
+de luz onde ella dormia, e onde, com amoroso cuidado, lhe arranjara a
+cama velada com cortinados de inexcedivel brancura, fresca como um berço
+de criança.
+
+Ama-Rita seguiu-as falando muito, abraçando de quando em quando a sua
+querida menina, que ainda era capaz de reconhecer entre muitas
+apesar de tão mudada e tão triste.
+
+Christina não despertou a simpatia viva que a mãe inspirara a toda a
+comunidade logo ao entrar no convento.
+
+Pagava com sorrisos contrafeitos os carinhos que lhe faziam, e mal
+atentava nos mimos com que a mãe a rodeava. Aborrecia-se e
+impacientava-se com as pobres vélhinhas, que procuravam nessa mocidade a
+alegria que as aquecesse e lhes reflorisse as existencias a
+extinguirem-se. Como á mãe, outrora, todas abriram o coração a esse
+coração, mas este permaneceu fechado e frio, afastando-as descaroavelmente.
+
+Tinha revoltas bruscas, respondia sêcamente, e queixava-se á Ama-Rita de
+que a queriam sepultar entre quatro paredes e que a tinham tirado duma
+prisão para a fecharem noutra peor. Manoela sofria com todas essas
+pequenas coisas, que se iam avolumando, tornando-a odiada por todas as
+outras companheiras; mas temia fazer-lhe qualquer observação receando o
+seu genio, que presentia violento e áspero...
+
+Até que um dia Christina, de combinação com uma menina do côro que levou
+á rebelião, pôs uma verdadeira nota de escandalo no meio conventual,
+subindo com ella ao telhado para vêr o que se passava no largo
+apinhado de gente para a feira.
+
+Manoela foi obrigada a proceder, advertida pela Madre Superiora, que a
+acusava, com a sua voz dôce, de falta de energia para com a filha.
+
+--«Christina--dizia-lhe meigamente--para que me obriga a admoestá-la?
+Para que faz coisas... que não ficam bem a uma menina?...
+
+--«Mas o que fiz eu, minha senhora? Foi algum crime subir ao telhado
+para tomar um pouco de ar, para fugir um instante desta sensaboria?!
+
+--«Mas a Christina não está bem, não gosta de estar no convento?
+
+--«Não, minha senhora, não gosto de estar nesta prisão.
+
+--«Mas oiça: hade sahir, tenha paciencia um pouco. Isto não pode durar
+muito; são apenas duas as freiras que ainda existem, e quando ellas
+morrerem sahiremos ambas. Continuará aqui a sua educação; a Christina
+sabe tão pouco que mal se poderá apresentar no mundo, onde ha muita
+exigencia para as senhoras da nossa classe.
+
+--«Ah, sim!? Conselhos, conselhos tenho ouvido muitos. Eu já tenho
+educação bastante, não preciso mais...
+
+--«Christina!?
+
+--«Minha senhora!?
+
+--«Então não está bem ao pé de mim?...--E querendo-a convencer, com a
+sua voz dum carinho maternal:--Não diga que não, que é sêr ingrata. Se
+soubesse como sou sua amiga!...
+
+--«Minha amiga?! Se o fôsse, não me prendia aqui como uma criminosa. Se
+o fôsse, não me chamava afilhada--quando eu sei muito bem que tenho
+outro nome...
+
+Manoela interrompeu-a com um grito desvairado:
+
+--«Christina, Christina, cala-te! Tu não sabes, tu não podes compreender
+nada do tormento da minha vida!...
+
+--«Ah, sim, um bom meio de me obrigar a calar, quando eu posso falar
+porque sou sua filha--respondeu brutalmente.
+
+Manoela empalideceu; aos seus ouvidos soou uma zoeira congestiva e o seu
+coração quasi a sufocou na onda de sangue que lhe atirou á cara.
+
+--«Sua mãe!? Está enganada, menina! Nem sequer é minha afilhada.
+Mandei-a criar e educar por dó, e é por dó que a tenho comigo.
+
+Conhecendo o orgulho da filha, pagava essa afronta com afronta maior.
+Tambem ella se sentia ferida; tambem ella tinha necessidade de
+revoltar-se contra a crueldade alheia. Tambem ella tinha um temperamento
+violento, que a extrema sensibilidade e o prematuro infortunio tinham
+enfraquecido mas não aniquilado.
+
+--«Quer sahir?!--e o seu peito era sacudido por uma gargalhada nervosa,
+que tornava ásperas as palavras--quer sahir?! Pois sáia! Que me
+importa!? Recolhi-a por dó... não a obrigo a receber um beneficio que
+não merece.
+
+Mas Christina, como todos os egoistas, tinha a covardia das resoluções
+rapidas. Diante da indignação da mãe, queria recuar, submetia-se,
+desejava tudo conciliar...
+
+--«Sahir, minha senhora?! Mas para onde?
+
+--«Para onde estiver melhor, para onde quizer. Que me importa a sua
+vida?! E é melhor fazê-lo já, já.
+
+Manoela, com todos os nervos retesados numa crise dolorosa, tinha-se
+tornado duma palidez esverdeada, os beiços trémulos e descoloridos, o
+coração a afogá-la numa galopada infernal após uma como rapida suspensão
+de movimento.
+
+Ante aquella ordem e o gesto de repulsa que a acompanhava, Christina não
+resistiu, dirigindo-se para a porta, de cabeça baixa, contrafeita,
+unicamente arrependida de têr provocado uma cólera que a privava, dum
+instante para outro, de todo o bem-estar material a que se afizera.
+
+A mãe olhava-a tristemente:--era afinal aquella a filha que tanto amara
+e tanto desejara!... Um resto de piedade venceu ainda a indignação e o
+desgosto.
+
+--«Oiça--disse-lhe quando estava quasi ao fundo do dormitorio, fazendo-a
+voltar rapidamente a cabeça numa ânsia de esperançada.
+
+--«Minha senhora, chamou?
+
+--«Sim, venha cá.--E, sem a fitar, num repelão de magua que lhe causava
+a atitude tão diferente da filha, agora de cabeça baixa e ar
+hipocrita.--Custa-me abandoná-la para ahi, sem familia nem protéção...
+Vou pedir a meu irmão para a receber em sua casa, como afilhada... Se
+elle consentir, ficará contente?
+
+--«Sim, minha senhora; seria uma felicidade para mim. Quanto lhe devo,
+madrinha!
+
+--«Não, não me deve nada. Vá á sua vida, e tenha paciencia alguns dias
+mais.
+
+--«Mas... eu queria pedir desculpa...
+
+--«Não; não me ofendeu. Pode ir.
+
+Tinha pressa de se encontrar só. Dizia bem: o seu coração não estava
+ofendido; estava despedaçado, calcado aos pés, por aquella que
+tinha sido o encanto da sua existencia antes de a conhecer e depois não
+fôra senão motivo para desilusões e evocações pungentes.
+
+O desespero da sua alma contrastava com a serenidade da lua, em
+crescente, que se erguia manso e manso num céo translucido, ainda
+tingido de oirenta púrpura no poente, e era como um alfange de oiro
+pronto a vibrar-lhe o último golpe.
+
+Soluçava; já não podia mais.
+
+Pela janela gradeada, os olhos nublados de lagrimas mal distinguiam as
+linhas dessa paisagem, revista em cada dia durante anos, e que umas
+vezes lhe parecia grandiosa no seu aspéto cenografico, outras banal e
+triste, conforme as impressões do seu espirito, tranquilo ou perturbado.
+
+Sentia um agro prazer em chorar, e em soluçar como uma criança, numa
+desconsolação de abandôno e de desespero. O que fôra o seu passado?
+Apenas uma existencia sacrificada ao convencionalismo ou ao egoismo
+alheio. O presente era essa amargura de se sentir desamparada das suas
+proprias ilusões--as últimas companheiras dos que mais sofrem.
+
+O futuro... Santo Deus! o que lhe traria o futuro se não lhe trouxesse o
+hábito de viver para si mesma?!...
+
+Madre Angelica, prevenida pela Ama-Rita que vigiava sempre a sua menina,
+veiu têr com ella, arrastando-se vagarosamente ao longo do dormitorio,
+como uma sombra que o luar fazia destacar.
+
+--«Soror Manoela, o que tem, o que lhe fizeram para estar assim
+agoniada?!...
+
+--«Ai, Madre Angelica!... Estava ahi? Ainda bem, ainda bem que a tenho
+junto de mim neste momento. Julguei-me olvidada de todos--até de Deus!...
+
+--«Soror Manoela....--tornou a velha freira com severidade, adoçada pela
+sua muita estima á reclusa--veja o que diz, minha filha. Deus é pai e um
+pai não esquece nem aflige propositadamente os seus filhos. Elle ama os
+mais amargurados--e serão esses os que mais perto estarão da sua eterna
+gloria.
+
+--«Ah, mas custa muito chegar até lá, pelo caminho da vida...
+
+--«Tenha resignação, Soror Manoela; aprenda no exemplo dado pelo nosso
+Salvador: olhe para a sua santa imagem, coberta de chagas e coroada de
+espinhos! E tudo quanto sofreu, inocente e bom, foi para remir o mundo,
+para salvar aquelles que o flagelavam.
+
+--«Tem razão... terá razão--soluçou Manoela, humilhada. Mas logo, numa
+revolta subitânea que toda a sua devoção não poude evitar--mas elle
+era Deus, sofreu por sua vontade, e morreu logo!! O seu martirio não foi
+uma longa vida arrastada na dôr e no suplício! Mas eu que vivo, eu que
+tenho vivido anos e anos para sofrer em cada hora mais do que a morte...
+
+--«Soror Manoela!...--reprimendou a freira.
+
+--«Perdão, perdão! Meu Deus, se o sofrimento enlouquece!...
+
+E de joelhos, aflita, soluçante, apavorada com a sua propria heresia,
+foi-se arrastando até ao crucifixo que se destacava no fundo,
+tremulamente alumiado por uma lampada de cobre, e ali ficou agarrada aos
+pés chagados da grande imagem, num choro convulsivamente desfeito e
+tragico.
+
+Madre Angelica apiedou-se, ella que era o unico coração capaz de
+compreender e estimar a misera criatura, e tentou levantá-la com as suas
+poucas forças, e disse-lhe baixinho, numa voz que era uma consolação
+para essa alma torturada e desgraçada:
+
+--«Vamos, Soror Manoela, diga-me o que assim a faz sofrer. Conte-me a
+sua magua--que verá como ella diminue...
+
+--«Ai, Madre Angelica, morro de saüdades pela minha filha. Trocaram-ma.
+Não é esta! Como fui castigada, Santo Deus!
+
+E a freira, sinceramente surpreendida na sua credulidade ingenua:
+
+--«O que me diz?! Então a Christina não é a sua filha?... Será
+possivel?!...
+
+--«Não é!--volveu Manoela, sobreexcitada, não reparando sequer na
+dúvida da velha Madre.--Não é, não é a minha filha, que alimentei do
+meu proprio sangue, que sahiu do meu corpo como a flôr sai da planta.
+É uma estranha, é uma alma gelada, que não compreendo nem estimo.
+Veja-a, veja-a bem, Madre Angelica; veja-lhe bem os olhos frios e
+crueis, os seus olhos metalicos como os do _outro_! Veja-lhe o riso
+escarninho, que é _delle_... Consulte-lhe a alma soberba e impiedosa,
+como a da avó... Avalie a minha desgraça, Madre Angelica! Tenho uma
+filha que não tem nada, que não é nada de mim!... E despreza-me, a
+criaturinha!...--terminou num riso cascalhado, que era uma derivação do
+choro histérico que a tomara.
+
+--«Socegue, minha irmã. Então!?... Isso não é proprio de si...
+
+--«Sim, tem razão! Eu não devo sofrer assim, mas que fazer?! Não posso,
+não posso habituar-me a esta desolação; querer amar a minha filha tal
+como é e não como a sonhei, e não poder, não poder!...
+
+Falou longo tempo, num soluçar entrecortado que a esfrangalhava e
+halucinava, e só muito tarde, conseguindo levá-la para a sua céla, onde
+estavam mais á vontade, Madre Angelica lhe poude insuflar um pouco de
+coragem e resignação para vencer aquella crise dolorosissima.
+
+
+VII
+
+O irmão de Manoela respondeu afirmativamente á carta muito digna que
+ella lhe escrevera, consentindo em receber Christina como se fôsse uma
+filha.
+
+A morte da mãe deixara-lhe um vacuo imenso no grande casarão, onde só de
+quando em quando os irmãos, já casados e cada um em sua terra, o
+visitavam por ceremonia.
+
+«Christina pode vir--dizia na sua carta á irmã--quando quizer, e na
+certeza de que já a estimo como filha.
+
+Sentia-se só, e estava na idade em que uma nova amizade é um pouco de
+vida nova que se insufla na alma amortecida.
+
+«Manoela, que fôsse tambem; dezenove anos de penitencia teriam por certo
+depurado toda a mácula...»
+
+Esquecia o passado; talvez um pouco de inconfessado remorso o estivesse
+a maguar, agora que se sentia tão só e inclinado á vida serena duma
+familia a refazer.
+
+Mas a irmã não ia; agradecia-lhe muito, tanto a prontidão da resposta
+como a aquiescencia ao seu pedido e o desejo de a revêr... Mas não
+iria. Tinha ali uma triste missão a cumprir; não abandonaria, no fim da
+vida, as companheiras de tantos anos de angustia.
+
+Christina partiu alegre, numa ansiedade de prisioneira que reentra no
+mundo por que tem suspirado durante longos dias inresignados.
+
+Manoela ficava sem saüdades dessa filha que fôra durante anos a sua
+razão de viver; antes sentia, ao despedir-se, uma vaga sensação de
+alívio, não isenta de cavada amargura.
+
+--«Adeus, Christina,--disse-lhe na hora da despedida--diga a meu irmão
+que resolvi fazer o meu testamento deixando-a herdeira do que me
+pertence. Elle que administre a casa nesse sentido, pois só quero dispôr
+do usofruto por causa destas pobres criaturas que me rodeiam.
+
+--«Deixe-me agradecer-lhe, madrinha...--e tentava beijar-lhe a mão.
+
+--«Para quê?...--respondeu sorrindo com ironia e encolhendo os hombros á
+sincera alegria de Christina.
+
+Era com um profundo desdem que atirava essa fortuna, que lhe era
+indiferente, para o poder da filha que não a soubera amar nem
+reconhecera o presente inestimavel que lhe dera antes, tendo-lhe dado o
+seu amôr.
+
+Partiu, acompanhada de Ama-Rita, que apenas levava o encargo de a
+entregar ao tio e voltar logo, pois essa é que, decididamente, não
+abandonaria mais a sua menina.
+
+Para ella a menina era Manoela, que nunca deixava de revêr como fôra: a
+filha adótiva do seu coração, a estranha que tomara na sua alma o
+verdadeiro logar da filha morta á nascença.
+
+Mas bastante mudara nos últimos tempos, apesar della se não querer
+convencer do que via: a mulher que pouco tempo antes ella encontrara,
+senão a linda rapariga que vira partir, lavada em lagrimas, crucificada
+de dôres, pelo menos uma mocidade ainda florescente, estendendo-se por
+um outôno que se anunciava formosissimo.
+
+Em poucos mêses Manoela fez uma diferença que saltava aos olhos e
+afligia toda a comunidade, que só nella fundava as suas esperanças e as
+suas alegrias. O cabelo embranquecia-lhe nas fontes; a péle amarelecida,
+enrugava-se impercétivelmente a princípio, mas visivelmente nos últimos
+dias em que umas olheiras inchadas lhe davam no rosto o aspéto desolador
+da doença que lhe fizera do coração uma pobre maquina sem regulamento.
+
+Podia dizer-se que ia morrendo aos poucos, das feridas incuraveis que
+nelle sentira, durante toda essa existencia de eterna sacrificada,
+em que a alma se lhe esfacelara pelos agudos e impiedosos espinhos
+do egoismo alheio.
+
+Com a doença de Manoela, entrou o desânimo em todas as almas e a morte
+encontrou facil caminho entre aquelles organismos depauperados e sem
+resistencia moral.
+
+Todos os mêses havia mortes no convento: ora as freiras, ora as velhas
+criadas e recolhidas, lá se iam, umas atraz das outras, em debandada
+desoladora. E para ella, a morte que rodeava agora como companheira
+inseparavel a velha casa conventual, tão suavemente serena e risonha,
+era um aflar de azas sinistro que lhe deixava na alma o luto de toda
+essa querida familia espiritual, a unica que verdadeiramente estimava
+agora.
+
+O convento acabava dia a dia, hora a hora,--sentia-se, numa halucinação
+de presentimentos e presagios tetricos, avisos sobrenaturais e factos
+estranhos que causavam a perturbação e o pânico de todas aquellas
+criaturas enfraquecidas e mais ou menos doentes, senão do corpo pelo
+menos da alma.
+
+Assim, a sineta que no claustro de cima apenas era tocada quando alguem
+na casa entrava na agonia, para que as almas se recolhessem com Deus e
+na sua ânsia de bem merecer auxiliassem a que estava para partir, a
+desligar-se, sem pena nem pecado, desta vida defeituosa e amarga,
+começara uma tarde, á hora calma do Angelus, a tocar freneticamente
+conclamando toda a comunidade, que se olhava espavorida e convicta do
+tragico aviso.--Era certo: aquella sineta, que uma só vez tocara assim,
+segundo constava, anunciando a morte de duas freiras em cheiro de
+santidade, anunciava agora a morte, o fim da santa casa que fôra abrigo
+de tanta pobre alma de mulher revoltada ou submissa, mas todas crentes
+numa eternidade de venturas de que não tinham tido na terra a compensação.
+
+E todas ellas, velhas e novas, míseras sombras duma outra idade ou
+raparigas que a educação conservara afastadas do tempo em que vieram ao
+mundo, todas curvaram a cabeça á convicção de que a campa as chamava, de
+que era a morte que as libertaria em breve. Sim, ellas estavam prontas,
+mas quanta tristeza nesse fim de existencias que já mal se arrastavam,
+numa vida que não compreendiam já!...
+
+Outro dia era um reboliço enorme nas casas deshabitadas, que as fazia
+tremer de apavorante susto, pensando nas irmãs mortas ultimamente e em
+tantas que descansavam sob as lages frias do claustro.
+
+E eram vozes misteriosas vindas da terra, perfumes deliciosos e
+estranhos que se espalhavam pelos casarões vasios, fantasmas
+silenciosos de freiras mortas havia seculos e que deslisavam sorridentes
+como que a animarem as pobres irmãs que assistiam ao fim da sua casa tão
+amada!...
+
+Manoela, apesar de todo o seu bom-senso, não resistia ao contágio e,
+como as outras, vivia numa atmosfera de prodigios e de mêdos que mais
+activava o progresso do mal que a consumia.
+
+Mas não abandonava por esse motivo as velhas companheiras, que só nella
+achavam conforto para bem morrerem.
+
+Foi Soror Claudea a última a deixar a vida, que tão dolorida lhe fôra;
+foi ella, a pobre louca, quem fechou, como um ponto final simbolico,
+mais um periodo de historia feminina, tecida de sacrificios e servidões
+e ilusões profundas, e sem um fecundo e nobre e belo ideal de vida!
+
+Ali ou na familia, no claustro ou no mundo, a existencia feminina pouco
+diferia; pouco mais era que esse decorrer estirado de anos partilhados
+entre pequenos deveres, insignificantes trabalhos, apagadas alegrias e
+supliciantes sacrificios a que ninguem prestava atenção, tão naturais
+são aos servos e aos inferiores...
+
+Morta Madre Claudea, e participado o caso ás autoridades, teve Manoela
+que aceitar o depósito da casa para fazer a entrega legal.
+
+Acabada a clausura e o convento, por assim dizer franqueado ao público,
+começou um novo martirio para Manoela, que se não podia furtar á
+indelicada e faminta curiosidade de toda a gente da cidade, que já
+depois fazia da visita ao convento uma distráção a quebrar a monotonia
+da vida provinciana.
+
+A querida casa tão recatada e fechada a todos os olhares indiscretos,
+foi uma coisa pública escancarada e esquadrinhada por todos os
+indiferentes, uns sob a capa amavel da simpatia e da piedade, outros
+rancorosos ou hostis, desrespeitando as suas crenças ingenuas ou
+troçando com as suas alardeadas superioridades as infantis preocupações
+daquelles sêres inuteis...
+
+Manoela afétava uma serenidade que lhe custava anos de vida, não
+querendo dar aos indiferentes o espétáculo duma dôr que era apenas sua e
+das suas pobres companheiras, as recolhidas, as meninas do côro e as
+criadas, que em breve seriam arremessadas para o mundo como folhas
+inertes e sem vida, e dispersadas ao sabôr do acaso, que as levaria sabe
+Deus a que dôres e a que miserias!--tão mal preparadas como estavam para
+a luta de cá fóra, quasi todas pobres e sem amigos ou familia que
+as tivesse como suas...
+
+Já que não podia furtar a casa e as coisas á profanação dos olhos
+estranhos, fechava a sua alma num silencio orgulhoso que a tornava
+respeitada, e conservava uma certa distinção naquelle acabar de
+comunidade que sem ella seria um levantar de feira sem grandeza nem
+simpatia.
+
+O inventario feito, a pilhagem executada por ordem superior, viu com
+profunda amargura os preciosos _Grão-Vascos_ desprendidos das paredes
+seguirem, com os azulejos hispano-arabes que foi possivel arrancar, a
+pouca mobilia rica que havia, os livros e as tapeçarias de valôr,
+encaixotados, segundo diziam, para os museus de Lisbôa... Eram livros
+velhos aos cantos, pelos corredores, bahus e caixões devassados e
+esvasiados...
+
+E ainda lhe foi preciso assistir, sem que a desligassem do triste
+encargo de testamenteira, á invasão dos operarios que vinham transformar
+a casa, para novo destino mais em harmonia com a época.
+
+Portas escancaradas, divisões deitadas abaixo, montes de caliça pelos
+pateos e claustros, deslocadas as fontes murmurosas, mortas as plantas
+que eram o seu encanto--aquilo afigurava-se-lhe uma ruina completa, um
+desabar de todo um passado que morria sem têr criado raizes, como
+morre sem seiva, inutilisada, a planta nascida em terreno pobre e rochoso.
+
+Libertada, porfim, foi acabar de viver para uma pequena casa de campo
+que a Ama-Rita descobriu escondida entre tufos de verdura tenra e uma
+dôce paz idilica a rodeá-la.
+
+Sentia-se de mal a peor, e sem esforço deixava-se morrer, desligada da
+vida, sem afeições ou deveres que a prendessem.
+
+Álêm do amôr humilde da simples camponeza que a criara e a cumulava de
+carinhos e ternuras na morte, como a rodeara na infancia, nada lhe restava.
+
+Christina, muito prática, muito á sua vontade, talhara para si um logar
+amplo na vida. A última carta do irmão de Manoela pedia-lha em
+casamento, e a della, que vinha junta, pedia, pró-forma, o consentimento
+da madrinha.
+
+Manoela sorriu: era a sua vingança, uma como rehabilitação do seu
+sangue, da sua propria carne expulsa outróra como coisa imunda da casa e
+da familia.
+
+Era a vida omnipotente readquirindo os seus direitos, a natureza
+triunfando dos preconceitos, que desprezava as convenções e entrava como
+senhora donde fôra expulsa como réproba.
+
+Christina, na sua cega e egoista caminhada para a vida, fôra a força
+invencivel da razão e da justiça, fôra a suprema e triunfante palavra do
+futuro.
+
+A mãe, amoravel, generosa e submetida, dera a existencia aos pedaços
+para satisfazer as outras.
+
+A filha, egoista e revoltada, e sem exageros de sentimentalidade que só
+provocam a dôr, recebia uma por uma transformadas em alegrias as
+lagrimas da mãe.
+
+Manoela sorria: era a sua rehabilitação, era, saboreada com infinito
+gôsto--tão certo é que nenhum sacrificio se perde, aproveitando quasi
+sempre a quem menos o merece.
+
+
+VIII
+
+Em toda a noite Manoela não pudera dormir, angustiada, sentindo sobre o
+peito um pêso esmagador, sufocada e aflita.
+
+Com a manhã, que rompera radiosa empoeirando de oiro todo o campo e
+doirando as montanhas que se destacavam no fundo roseo do céo, serenava
+um pouco.
+
+Sentia-se mais aliviada e quiz arrastar-se até á janela aonde se sentou
+na cadeira de braços, que era o seu poiso habitual. Olhava atenta a
+bandada de pombas brancas que sahia do pombal em vôos estonteados e
+incertos, embaraçando-se nos ramos das laranjeiras que floriam de branco
+e perfumavam delicadamente a atmosfera.
+
+--«Ah, como era linda a natureza, sempre renovada e sempre a mesma,--e
+como era bom viver!...
+
+E a pobre doente ouvia, num encanto de esperança, nunca extincta no
+coração humano, as palavras de consolação que a bôa Ama-Rita lhe ia
+dizendo.
+
+--«Porque não iam passar uns tempos a casa do sr. Morgado?... Havia de
+fazer bem á senhora...
+
+--«Sim, iriam--concordava Manoela--mas não já, a primavera começara
+apenas, e a Ama-Rita bem sabia como eram ainda invernosos e frios esses
+mêses de primavera lá na terra.
+
+Oh, se sabia! Quantas noites enregeladas passara acalentando nos braços
+a sua menina; quantos dias fechada em casa porque a neve e o frio não
+dava licença, até maio, de se sahir da lareira...
+
+Manoela, sorrisonha ás recordações da bôa vélhota, prometia fazer essa
+viagem--em vindo o bom tempo.
+
+--«E o menino, quando nascerá?--perguntava a Ama.
+
+--«Já tens pressa de o chamar teu, não é assim?...
+
+E comparava, com um certo sorriso ironico a aflorar-lhe aos labios
+descórados, a ansiosa espera em que se andava pela vinda do primeiro
+filho de Christina e os transes porque ella passara para que a mãe
+chegasse a este mundo, onde era agora uma triunfadora. Recordava... e
+recordar era tornar a sofrer as horas de desânimo e desespero que por
+milagre a não tinham atirado para um hospital de doidos ou para o
+cemiterio.
+
+Tornava a vêr a casa em ruinas, onde a criança nascera como um animal
+bravio, que anda a monte, para não ofender com os seus gritos de
+filho ilegal as consciencias socegadas...
+
+Como isso já ia longe e como tudo tinha mudado! Quem lhe diria então que
+Christina, a sua filha, essa vergonha viva, essa nodoa na familia
+fidalga de que descendia, anos volvidos seria a senhora morgada a quem
+todos adivinhavam os desejos e amaciavam o caminho para que désse sem
+precalço o novo herdeiro da casa?!...
+
+E tão desemelhante destino só porque uma tinha um pai que legalmente
+reivindicava os seus direitos, emquanto a outra era filha dum homem, que
+na sua inconsciencia de bruto apenas cuidara do prazer material e
+passageiro, com tanta mais perfidia quanto era maior o seu conhecimento
+da indulgencia da sociedade para com as leviandades do homem
+transformadas em crimes para as mulheres.
+
+E Manoela, meditando e revendo toda a sua existencia naquella hora de
+passageiro repouso, que a doença lhe dera, pensava com amargurado
+remorso no que chamava agora a sua covardia:
+
+--«Sim, Christina, no impulso do seu egoismo e da sua ânsia de viver, é
+quem estava na verdade!
+
+«A transigencia, a covardia, a fraqueza, mesmo quando são filhas do
+sentimento, acarretam consigo o triste premio da sua inferioridade. E
+assim, pela covardia a que tinham dado o bonito nome de bondade, ella
+ali estava sem familia, sem amigos, sem uma alegria que a prendesse á
+vida que a ia abandonando como fardo inutil, que já não presta para nada.
+
+«Não, não se deve transigir, não se deve esconder uma áção que em nossa
+consciencia não é um crime, embora a sociedade na sua hipocrisia a
+mostre, ferozmente, como tal!
+
+«A sociedade acostuma-se a respeitar os fortes e só pede contas severas
+aos fracos, aos que transigem, aos que a ella se não adaptam ou a não
+dominam, as duas unicas fórmas de a vencer.
+
+«Christina tivera razão: ella não fôra uma bôa mãe, não soubera
+desempenhar o seu nobre papel, ferindo implacavel porque fôra ferida,
+cobrindo com a sua revolta o destino da criança que chamara a uma vida
+que lhe não pedira. Não tinha desculpa. Fôra necessario que a filha, no
+seu bom-senso de bastarda, soubesse encontrar a desforra no sacrificio
+do proprio corpo procurando nesse casamento sem amôr o nome que ella lhe
+negara.
+
+«E valia muito o amôr?... Ah, ella sorria, com dó de si mesma,
+recordando como se entregara toda inteira a esse sentimento, o corpo
+palpitante, a alma fremente, sem uma reserva, sem um pensamento
+mesquinho de dúvida, com a pureza duma criança, cuja alma não fôra
+maculada pela desconfiança--e o que lhe deram em troca?!...
+
+«Pois bem, ia reparar a sua falta.
+
+E, chamando a Ama, que dava uma certa ordem ao quarto, respeitando a sua
+meditação, Manoela pediu a escrevaninha portatil que estava sobre a mêsa
+de cabeceira, pegou num papel e ia a escrever...
+
+Depois suspendeu-se, sorriu com amargura, e pôs a penna de parte. O que
+ia fazer com essa declaração a juntar ao testamento?!
+
+Christina já não precisava do seu nome, mais amplamente coberta com o do
+marido que a tomara como filha de pais incognitos, e a sua declaração
+extemporanea apenas lhe traria vergonha inutil e dissabores...
+
+Não a fazia--era já tarde para isso.
+
+Recostando-se ás almofadas que a Ama-Rita lhe ageitava na cadeira,
+sentiu-se agoniada, pediu agua, depois fechou os olhos, franziu
+frouxamente os labios descórados, e a cabeça tombou-lhe para o lado sem
+vida.
+
+--«Deixou de sofrer!--dizia a velha, soluçando alto, para a criada e
+para a mulher do quinteiro que chamara aflita na primeira impressão de
+inevitavel surpresa. E alisava-lhe os cabelos sobre a fronte,
+juntava-lhe as mãos numa atitude de prece. Deixou de sofrer, coitadinha!
+Toda, toda a vida--uma sacrificada!...
+
+
+
+
+INDICE
+
+ Pag.
+
+ A Vinha 7
+
+ A Feiticeira 37
+
+ Diario duma criança 81
+
+ Sacrificada 181
+
+
+
+
+
+OBRAS DA MESMA AUTORA
+
+
+
+ AMBIÇÕES (romance) 700
+ INFELIZES (historias vividas). Esgotado.
+ A BEM DA PATRIA: Bibliotéca de propaganda educativa e
+ distribuição gratuita:
+ 1.º _As mães devem amamentar seus filhos._
+ 2.º _A educação da criança pela mulher._
+ BEM PRÉGA FREI THOMAZ (comedia) 300
+ TEATRO INFANTIL: _A comedia da Lili_ 200
+ _Um sermão do Snr. Cura_ 60
+ A GARRETT. No seu primeiro centenario.--De colaboração com
+ Paulino de Oliveira 500
+ GARRETT NO PANTHEON.--De colaboração com Paulino de Oliveira 50
+ A NOSSA HOMENAGEM A BOCAGE 100 ÁS MULHERES PORTUGUÊSAS.--Livro
+ feminista de critica e propaganda 600
+ A MINHA PATRIA.--Livro aprovado oficialmente para premios
+ escolares. Encadernação de luxo, desenho de Roque Gameiro, 400
+ paginas em magnifico papel e inumeras ilustrações 1$000
+ PARA AS CRIANÇAS: Publicação mensal ilustrada fundada em 1897.
+ Publicados 15 volumes com magnificas gravuras.
+ _Contos tradicionaes portuguêses_, 10 volumes.
+ _Contos de Grimm_, traduzidos do alemão. 1 volume.
+ _Alma infantil_ }
+ _Animais_ } originais de Anna de Castro Osorio
+ _Boas crianças_ }
+ _Historias escolhidas_ (tradução diréta do alemão).
+ Cada volume desta publicação avulso. 400
+ INSTRUÇÃO E EDUCAÇÃO (Festas infantis).--Folheto de critica
+ pedagogica 100
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of Quatro Novelas, by Ana de Castro Osório
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK QUATRO NOVELAS ***
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+works. See paragraph 1.E below.
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+ <title>Quatro Novelas, por Ana de Castro Osório</title>
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+The Project Gutenberg EBook of Quatro Novelas, by Ana de Castro Osório
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+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
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+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
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+Title: Quatro Novelas
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+Author: Ana de Castro Osório
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+Release Date: November 6, 2009 [EBook #29968]
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+Language: Portuguese
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+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK QUATRO NOVELAS ***
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+Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed
+Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This book was
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+<p>&nbsp;</p>
+
+<div style="text-align: center;">
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p style="font-size: 2em;">QUATRO NOVELAS</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="font-size: 0.8em;">Composto e impresso na Typographia França Amado,<br>
+rua Ferreira Borges, 115&mdash;Coimbra.<span class="pn">{3}</span></p>
+</div>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div style="text-align: center; padding: 1em; border: solid 2px #000;">
+<p style="font-size: 1.5em;">ANNA DE CASTRO OSORIO</p>
+
+<p style="font-size: 2.5em;">QUATRO NOVELAS</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<blockquote style="text-align: left; margin-left: 50%; width: 50%;">
+ A VINHA.<br>
+ A FEITICEIRA.<br>
+ DIARIO DUMA CRIANÇA.<br>
+ SACRIFICADA.</blockquote>
+
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>COIMBRA</p>
+
+<p>FRANÇA AMADO&mdash;EDITOR</p>
+
+<p>1908</p>
+</div>
+<p><span class="pn">{4}<br>
+{5}</span></p>
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div id="corpo">
+<h1><a name="SECTION00100000000000000000">I<br>
+A Vinha</a></h1>
+
+<p><span class="pn">{6}<br>{7}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h2><a name="SECTION00110000000000000000">A VINHA</a></h2>
+
+<p>Luis sahira para o colegio ainda criança e de lá para as escolas superiores;
+assim os anos tinham decorrido sem que nunca mais visitasse a terra natal.</p>
+
+<p>Dez anos, dez longos anos se tinham passado, e só agora voltava, como um
+foragido ou como um ladrão, que enlouquecido de saudades arrisca a vida e a
+liberdade para revêr a terra que primeiro conheceu e é sempre para o homem a
+mais querida, a mais bela, a melhor de todas.</p>
+
+<p>E&mdash;pobre Luis!&mdash;era na verdade como um foragido que voltava, escondendo-se
+para que o não vissem, envergonhado dessa fraqueza sentimental que já não ia
+nada bem com os seus galões de guarda-marinha e o seu bonito bigode a
+ensombrar-lhe o labio superior.<span class="pn">{8}</span></p>
+
+<p>E voltava amesquinhado aos seus proprios olhos, elle que se julgava tão
+importante pelos estudos transcendentes, que seguira com certo brilho, porque
+só agora compreendia o sacrificio de cada momento, a luta de cada hora, o
+verdadeiro heroismo obscuro e respeitavel que a sua educação representava na
+vida da familia.</p>
+
+<p>Compreendia, afinal, um pouco tarde demais para que a consciencia lhe
+ficasse limpa de remorso, quanta mentira santa fôra preciso inventar, com
+quanta delicadeza envolver as palavras, quanta historia arquitétar para que
+elle aceitasse sem desconfiança o propositado afastamento em que o tinham
+conservado durante esse longo periodo de tempo.</p>
+
+<p>Chegara por vezes a pensar, as poucas ocasiões em que reparara nisso, que o
+desprezavam, que era um pária, que os pais afastavam receando a vergonha de o
+apresentarem como seu herdeiro e continuador.</p>
+
+<p>Dizia-lhe a consciencia que tal procedimento não era justo, porque&mdash;se é
+verdade que não fôra nunca um estudante desses que se mostram com desvanecido
+orgulho, carregados de distinções e premios que esmagam o proprio dôno e
+irritam os companheiros,&mdash;é certo que o curso lhe sahira limpo, seguido como de
+empreitada, numa indiferença risonha<span class="pn">{9}</span> de quem o
+levava com uma perna ás costas.</p>
+
+<p>Lembrava-se de pensar ás vezes no facto, um tanto irritante, do seu
+afastamento sistematico da casa paterna, e pôr-se consigo a acusar os pais; mas
+á mais leve referencia acudia uma carta de Eduarda, que varria do seu coração,
+voluvel e bondoso, a desconfiança cruel.</p>
+
+<p>Era sempre a mesma delicadeza inteligente, procurando as palavras para não
+maguar nem esclarecer, fugindo graciosamente duma pergunta mais nitida, dizendo
+pouco em longas cartas, que satisfaziam plenamente a sua ansiedade de momento
+mas muito deixavam escondido nas dobras duma alma que se não pode expandir, sob
+pena de infelicitar os outros.</p>
+
+<p>Eduarda, apenas mais velha dois anos do que Luis, fôra desde criança uma
+pequena figura simpatica de mulher, dessas mulheres adoraveis sem deixarem de
+ser profundamente humanas, ou talvez por isso mais adoraveis ainda, que tudo
+compreendem, por tudo se interessam, para todos são a providencia, o refugio e
+a esperança.</p>
+
+<p>Quando fôra resolvida a sua entrada para o colegio militar, Luis ficara
+radiante. É que essa admissão fôra o seu maior empenho, a<span
+class="pn">{10}</span> ambição de largos mêses e dias&mdash;desde que na terra
+aparecera, a proposito de qualquer festa pública, um regimento de lanceiros,
+que o tinha enlouquecido com o seu ar soberbamente marcial e as bandeirolas,
+vermelho e branco, a panejarem ao sol.</p>
+
+<p>Não pensava noutra coisa senão naquella sua entrada para o colegio em que
+todos os alunos são já pequeninos homens, pequeninos militares de botões
+reluzentes, barretina, dragonas, e duma compostura grave de disciplina rígida.
+</p>
+
+<p>Fazia projectos, contava as peças do enxoval, que a mãe lhe ia empilhando na
+mala, lia e relia a relação das coisas que lhe mandavam levar e prometia a si
+mesmo só quebrar o seu, mialheiro de barro quando tivesse já a farda, para ir
+tirar o retrato de grande uniforme.</p>
+
+<p>Mas quando chegou o dia da partida e viu á porta o carro em que devia
+seguir, os criados arrastando as malas, o pai gritando porque não estavam as
+coisas em ordem&mdash;e o comboio não espera!&mdash;quando viu a mãe soluçante por vêr
+partir o mais novo, o mais fraquinho, o preferido&mdash;todos o sabiam&mdash;o Luis
+perdeu a coragem. E chorou, chorou intensamente, num soluçar fundo, proprio
+dessas naturezas impulsivas, febris, doentias, a que<span
+class="pn">{11}</span> os nervos emprestam uma acuidade dolorosa, embora
+passageira, nas sensações.</p>
+
+<p>E ella, a irmãsita, já com a orla do vestido a procurar o cano da bota, a
+trança loira cahida pelas costas, o corpo airoso e fino ainda sem o quebrado
+das linhas feminis, não tivera lagrimas que correspondessem áquella dôr
+excessiva, nem palavras que consolassem aquella alma desolada.</p>
+
+<p>Sorria até, para esconder uma ligeira tremura significativa no labiosito
+ainda criancil, mas o seu olhar era limpido, e a face, ligeiramente enrubecida,
+em coisa alguma trahia o esforço enorme de vontade que a sua atitude
+representava. É que era realmente heroica aquella criança que represava as
+lagrimas, bem naturais no entanto, para encobrir o seu legitimo desgosto ao vêr
+partir o irmão, o seu companheiro e amigo mais certo.</p>
+
+<p>Porque Luis e Eduarda eram, mais do que pelo sangue, que tantas vezes corre
+desemelhante em filhos da mesma arvore, irmãos pela camaradagem no estudo e nos
+passeios, nas distrações como nos desgostos, nesses tão maguados desgostos
+infantis, que todos desprezam e são talvez os mais violentos e os mais
+desesperadores de toda a vida.</p>
+
+<p>Mas Eduarda tinha a rara delicadeza de certas almas de excéção, que em si
+concentram<span class="pn">{12}</span> a propria dôr e só têm para a dos outros
+carinho e consolo.</p>
+
+<p>Se o Luis soubesse o que ella sofria, ficando ali a vê-lo partir, debruçado
+na portinhola da carroagem e ainda a recomendar-lhe as suas coisas&mdash;os animais,
+as flôres, os brinquedos abandonados!... Se elle soubesse como a pequena sentia
+já a solidão em que ia ficar, naquella pobre terra sem diversões e sem
+conhecimentos, ella que não cultivara mais amizades infantis álêm da delle!...
+</p>
+
+<p>Nos primeiros tempos as cartas amiudavam-se: elle, contando tudo quanto via
+de novo e o trazia em contínua sobreexcitação, em duas linhas sugestivas,
+sempre apressado por falta de paciencia para escrever; ella, narrando
+detalhadamente os pequenos casos domesticos, que tanto interesse despertam
+sempre ás crianças. Eram recordações de passeios e brinquedos, a relação de
+todas as pessôas avistadas, os amigos da casa que perguntavam sempre por elle,
+os seus recados, as suas proprias palavras.</p>
+
+<p>Luis bem o conhecia: eram verdadeiros <em>recados</em> aquelles,&mdash;não
+banalidades ceremoniosas&mdash;que evocavam, á sua recordação saudosa, as figuras
+amigas que as enviavam, de longe.</p>
+
+<p>Depois, no fim das cartas, como repique festivo de sinos em vespera de dia
+santo, a<span class="pn">{13}</span> esperança das férias, a contagem dos dias
+que faltavam para essa felicidade tão desejada e retardada sempre.</p>
+
+<p>Quando se aproximava esse abençoado mês de setembro e elle já só esperava a
+ordem para embarcar no grande comboio resfolegante que o levaria ao conchêgo da
+familia e ao abrigo das velhas paredes amigas, que tinham visto nascer e
+crescer umas poucas de gerações de rapazes como elle, uma carta vinha
+preveni-lo de que aguardasse o pai para seguirem ambos para uma dessas famosas
+praias do litoral onde um mês se passa sem se sentir na vida duma criança.</p>
+
+<p>Assim foi passando o tempo: aos anos de colegio seguiram-se os da escola,
+sempre despreocupados e alegres, sem que coisa alguma o preparasse para o
+martirio incomportavel que estava agora sofrendo, sem que coisa alguma lhe
+fizesse supôr o doloroso drama, obscuro e martirisante, que lá longe se ia
+desenrolando lentamente, esmagando com ferocidade os corações que tanto lhe
+queriam...</p>
+
+<p>Tambem, que satisfação, livre de preocupações, elle teve quando recebeu
+aquella carta em que Eduarda lhe dizia, entre coisas ligeiras e banais:&mdash;que
+tinham resolvido vender a velha casa e o quintal para irem viver para Lisbôa.
+Ficariam assim mais perto delle,<span class="pn">{14}</span> quando as suas
+longas viagens o deixassem descansar por algum tempo com a familia. Assim
+estariam juntos durante todo o tempo em que estivesse em Portugal.</p>
+
+<p>Que alegria a delle! Nem sequer lhe passou pela cabeça a lembrança dessa
+velha casa, que os abrigara, carinhosa e maternal, como tinha já abrigado os
+pais e os avós, e vivia como sêr consciente dentro do fundo da sua alma.</p>
+
+<p>Como Eduarda, querendo poupar toda a mágua ao seu coração mal preparado para
+a dôr, mostrava bem conhecer essa natureza de amoravel e sentimental, que um
+nada arrebata á mais acêsa alegria como á mais desolada tristeza!...</p>
+
+<p>A vida intensa das grandes cidades, que mais a fariam a ella viver adentro
+de si mesma, concentrando-a no seu eu, tirava-lhe a elle a sensação nitida da
+sua vida propria e, apanhando-o nessa engrenagem barulhenta e niveladora,
+dava-lhe apenas as ideias e os sentimentos de toda a gente.</p>
+
+<p>Agora, com a vinda dos pais e da irmã, sentia-se bem feliz para nem sequer
+se deter a pensar nos provaveis motivos que tinham determinado aquella
+resolução.<span class="pn">{15}</span></p>
+
+<p>Como estaria Eduarda, que deixara ainda uma criança, tantos anos volvidos
+sem se verem? E a mãe? Dizia-lhe sempre, nas suas cartas, que se sentia muito
+velha e doente, mas elle sorria-se confiante e não a via senão como a deixara,
+sorridente, laboriosa e desempenada, a alma de toda aquella colmeia que era a
+casa paterna.</p>
+
+<p>Com que impaciencia febril esperou o dia marcado para a chegada, e como logo
+de manhã, ao alvorecer desse dia bemdito, se sentiu outro, alegre até á loucura
+de ter vontade de abraçar toda a gente, de saltar pelas ruas como uma criança,
+sentindo-se leve, surpreendendo-se diferente, mal cabendo na sua bonita farda
+de guarda-marinha!</p>
+
+<p>Ás horas da comida não conseguiu engulir com desfastio os costumados
+manjares da velha hospedeira, a quem deu um abraço apertado prometendo-lhe
+trazer a familia para que os conhecesse,&mdash;havia ella de vêr como eram seus
+amigos...</p>
+
+<p>E a velha D. Engracia, que tantas vezes se arreliara com <em>as suas
+telhas</em>, como ella dizia, sentiu que as lagrimas lhe vinham aos olhos com a
+comunicativa sensibilidade daquella<span class="pn">{16}</span> alma que se
+escancarava para lhe mostrar quanto sentia de bom.</p>
+
+<p>Muito antes da tarde já elle se dirigia para o Rocio, na ideia inconsciente
+de se aproximar da estação onde os iria esperar, algumas horas mais tarde.</p>
+
+<p>Falando com um e com outro, discutindo um pouco sem se interessar muito nas
+conversas, entrando no Tavares Cardoso para folhear um livro, indo ao Martinho
+beber uma cerveja, mastigando cigarros sobre cigarros, impaciente e febril, mas
+alegre e falador como nunca os seus amigos o tinham visto...</p>
+
+<p>A hora chegou por fim, porque todas as horas chegam, por mais doloroso ou
+lento que seja o seu caminhar esmagante, como fogem todas, por mais que as
+queirâmos retardar um instante nos raros momentos que nos trazem felicidade.
+Elle lá estava, desde muito cedo, esperando na gare, sentindo o coração bater
+desordenado, quando ao fundo do túnel despontou a luz vermelha da locomotiva e
+o guarda tocou a corneta anunciadora, ao passar nas agulhas... Depois, que
+estranha sensação a sua ao vêr as três cabeças, que resumiam todos os seus
+grandes afectos, debruçarem-se nas janelas do vagão, sorrindo-lhe e
+reconhecendo-o de longe! E elle,<span class="pn">{17}</span> que só
+reconheceria o pai, com certeza, se os não esperasse, tal era a diferença que
+faziam as duas: Eduarda, uma mulher perfeita, sem nada que recordasse a criança
+esbelta que deixara; a mãe, debilitada e encanecida, tão vélhinha, que não
+podia afirmar que não houvesse engano.</p>
+
+<p>Oh, mas a vélhinha é que o reconhecia bem, ao seu Luis, beijando-o e
+abraçando-o com frenesi e achando-o mil vezes mais bonito do que ao retrato.
+</p>
+
+<p>Tambem Eduarda o abraçou alegremente e achou muito bom, apesar de um pouco
+menos forte do que ella, que se talhara e desenvolvera longe da atmosféra
+falsificada da cidade, no puro ar criador da montanha.</p>
+
+<p>Chegou tambem a vez da Maria o abraçar,&mdash;Maria; a criada fiel que os
+acompanhara sempre, que era alguem na familia, uma pessôa que a todos
+satisfazia e com quem todos contavam.</p>
+
+<p>Inolvidavel momento aquelle que os reunia, depois de tão grande e
+inexplicavel afastamento; encantador de contentamento esse primeiro repasto,
+num restaurante trivial da Baixa, para darem tempo a que as bagagens podessem
+chegar á casa muito alegre que elle escolhera, com vistas sobre todo o estuario
+azul do Tejo, onde a lua entornava, nessa<span class="pn">{18}</span> noite
+gloriosa de junho, a sua luz branca e leitosa, vagamente adormecedora...</p>
+
+<p>Luis sentiu-se orgulhoso com os elogios que a sua escolha cuidadosa mereceu
+á irmã e queria convencer a mãe de que nada havia que se comparasse ao
+espétáculo grandioso de toda essa cidade picada de luzes, estirando-se ao longo
+do rio, que centenares de pequenos faroes faziam tambem palpitar e viver, como
+outra cidade flutuante.</p>
+
+<p>A pouco e pouco, abertas as malas para que tudo fosse colocado no seu logar,
+Luis começou a reconhecer com enternecimento as velhas coisas que os seus olhos
+de petiz haviam conhecido e admirado. Foi com alegria quasi infantil que levou
+á mãe a velha caixa de xarão, herança da avósinha, onde eram guardadas
+cuidadosamente as pequeninas coisas preciosas que queriam roubar á curiosidade,
+nem sempre segura, das suas mãositas de criança.</p>
+
+<p>Uma chavena, uma jarra, qualquer coisa emfim que ia aparecendo, lhe ia
+trazendo uma saudade da infancia longinqua e que esvoaçava agora na sua alma
+como farrapo branco de nuvem distante a dissolver-se num rubro poente.</p>
+
+<p>A mãe, que um momento ficara só junto delle, chorava silenciosamente,
+olhando-o com ternura.<span class="pn">{19}</span></p>
+
+<p>Luis não compreendia&mdash;chorar!?... Então não estava satisfeita por estar em
+Lisbôa, com elle? Não viera por sua muito livre vontade?</p>
+
+<p>E então a pobre senhora, incapaz de por mais tempo o iludir, desejando
+mesmo&mdash;no egoismo inconsciente dos que sofrem&mdash;associar todos á sua dôr, não se
+fez rogada e disse, disse tudo, tudo quanto de amargurado e desesperador lhe
+tinham dado esses anos em que o não vira.</p>
+
+<p>&mdash;Fôra uma luta tremenda e desigual, essa que o pai sustentara durante anos,
+contra tudo e contra todos, sem perder a energia, sem trepidar nem recuar.
+Primeiro, ia muito bem nos seus negocios&mdash;o Luis devia lembrar-se... Depois, as
+fianças, os roubos, a má fé de uns, a inveja mesquinha de outros, abalaram-lhe
+o crédito, envolveram-no em questões e demandas, fizeram-no perder uma a uma
+todas as suas belas propriedades, as compradas á custa de muito trabalho e as
+que herdara pessoalmente, e até a sua propria casa de moradia, quando já nada
+mais tinha que desafiasse a cubiça alheia, lá se fôra embora, com o quintal.
+Sim, esse fôra o último e o mais certeiro dos golpes, que sangrava ainda e
+tarde se poderia cicatrisar na sua pobre alma dolorida.<span
+class="pn">{20}</span></p>
+
+<p>As lagrimas corriam sem parar pelas pálidas faces da bondosa criatura, que
+assim foi contando, uma a uma, todas as suas dôres, não poupando Luis a nenhum
+dos incidentes, a nenhum detalhe desse martiriologio incomportavel de lutar com
+os maus, os inferiores, esses que acorrem sempre a lançar a sua pedra quando
+presentem que a fortuna abandonou os que ha pouco invejavam.</p>
+
+<p>Luis, calado, ouvia, sem a compreensão bem fixada da realidade, olhando com
+uma persistencia dolorosa essa vélhinha que chorava um passado em frangalhos, e
+era a sua mãe, a mesma que elle deixara rica e tão feliz dez anos antes.</p>
+
+<p>&mdash;E porque lhe não tinham dito o que se passava?! Porque o tinham alheado
+assim de todos os desgostos da familia, como se fosse um estranho? Não era
+filho como os outros, não devia ser igualmente filho para as alegrias como para
+os sofrimentos?...</p>
+
+<p>&mdash;Ah, sim! Por sua vontade ter-lhe-ia contado logo o que se ia passando, mas
+nem o pai nem Eduarda o consentiram para que elle se não impressionasse e
+desviasse a atenção dos estudos, que era preciso levar ao fim sem uma falta.
+</p>
+
+<p>Luis padecia naquelle momento uma tão insofrivel amargura, que no fundo do
+seu<span class="pn">{21}</span> coração, humanamente egoista, sentia uma onda
+de reconhecimento pelos que o tinham poupado daquella maneira... Devia-lhes uma
+pacifica e alegre mocidade, que lhe preparava uma serena vida futura.</p>
+
+<p>Então, nesse impulso que dá a propria revolta em toda a criatura contra a
+dôr que a esmaga, começou a consolar a mãe, consolando-se a si mesmo.</p>
+
+<p>O pai, com o emprego que arranjara numa das principais casas bancarias que
+até ao fim o tinham sustentado, sustentando-lhe o seu crédito para a liquidação
+voluntaria, ganhava certamente mais do que negociando por sua conta. Depois,
+elle não estava ali com tudo quanto ganhasse para lhes dar, tudo sendo pouco, é
+claro, para o que lhes devia?!...</p>
+
+<p>E a mãe sorria por entre lagrimas, numa grande consolação de apaziguamento,
+porque a sua dôr encontrava abrigo em outra alma que a lamentava.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, a situação economica não era de todo desesperada. Dispensariam apenas
+o superfluo, a que se tinham habituado, e mesmo esse não completamente, porque
+na liquidação grande parte do seu dote podéra ficar intacto.</p>
+
+<p>&mdash;Oh, elle compreendia bem que não era a questão material a que mais os
+afligia, era<span class="pn">{22}</span> a recordação dum longo passado de paz
+e de desanuviadas venturas que já ia longe; era a amargura desses últimos anos
+em que todas as suas energias se concentravam em aparentar uma soberba que não
+sentiam, em mostrar um orgulho que era feito de toda a condensação amargurada
+da sua dôr por vêrem o egoismo e a maldade dos que ferozmente lhe espiavam as
+lagrimas e as decéções.</p>
+
+<p>&mdash;Elle compreendia bem, finalmente, que o que mais lhe custara fôra o deixar
+essa casa que representava tanto na vida afectiva da sua bôa alma de sofredôra.
+</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Desde esse dia nunca mais Luis perdêra aquella ideia, que se tornou uma
+obsessão: ir visitar a velha casa e reviver diante das suas paredes, que lhe
+falariam do passado, todo o martirio a que o tinham furtado generosamente. Em
+vão Eduarda o dissuadia desse capricho do sentimento, que classificava de
+criancice; em vão ella lhe dizia que o passado estava morto e ninguem mais o
+poderia resurgir; que não havia imaginação nem vontade humana capaz de fazer
+voltar atraz o curso da vida, que para elles se precipitara numa cachoeira
+desatinada e agora ia deslisar num mais bello e sorridente campo.<span
+class="pn">{23}</span></p>
+
+<p>Mas não! Elle fizera desse projecto o seu sonho, o seu misterio de
+apaixonado, e iria, sem que ninguem o podesse impedir de o fazer.</p>
+
+<p>A ideia de que a casa que fôra o lar abençoado de toda a sua familia já lhes
+não pertencia, desvairava-o. Iria, acontecesse o que acontecesse, num romantico
+impulso de sentimento&mdash;que mal compreenderia quem lhe não tivesse compulsado os
+arrebatamentos de apaixonado&mdash;evocar todo o passado e embeber-se bem na dôr das
+eternas e irremediaveis separações.</p>
+
+<p>Agora, elle ali vinha, como um namorado, revêr pela ultima vez as coisas que
+já lhe não pertenciam, e que indiferentemente iam tornar-se para outros as suas
+coisas, os seus afectos.</p>
+
+<p>Para que viera?&mdash;pensava já&mdash;porque não se deixara guiar pelos conselhos da
+corajosa rapariga que tão alegremente ia entretecendo um novo ninho com os
+restos dispersos do antigo, desfeito pelo temporal? Porque viera?!...&mdash;É que
+queria sofrer, ali mesmo, tudo o que tinham sofrido aquelles que amava.</p>
+
+<p>Fugir a isso parecia-lhe uma covardia excessiva. Imaginava sentir assim,
+pelo poder evocativo da sua memoria despertada pela visão, lagrima por lagrima,
+desespero por desespero,<span class="pn">{24}</span> vexame por vexame, revolta
+por revolta, a vulgar mas horrivel tragedia desse incidente numa familia
+burguêsa.</p>
+
+<p>No vagão onde passou a noite, nem uma só vez os olhos se lhe fecharam num
+sôno reparador. Os nervos em sobreexcitação faziam-no reviver, na memoria,
+todas as circunstancias torturantes em que se déra o desastre final. Sentia uma
+doentia voluptuosidade em pensar nos tormentos por que o seu coração teria
+passado se a elles tivesse assistido.</p>
+
+<p>Os nervos irritados por tantos dias de ansiedade obrigavam-no a agitar-se
+numa febre de movimento, um desejo de choro, de gritos convulsivos, que lhe
+desoprimissem o peito...</p>
+
+<p>Cada nome de estação gritado monotonamente, cortando na noite arrastada o
+sôno dos viajantes, era para elle o martelar desesperador do condenado que
+assiste ao levantar da sua propria forca.</p>
+
+<p>Em breve, mais um desses gritos ouvidos, a perder-se na noite, e estaria na
+linda terra, que revia: toda branca e faiscante nos dias ensoalhados de verão,
+varrida pelas nortadas ásperas da serra, nevada como uma noiva nas invernias
+inclementes&mdash;com as suas paisagens cristalisadas de sonho; as suas feiras
+rumorosas; as ladainhas atravez dos campos em flôr, pelo despertar das
+primaveras amorosas; as romarias<span class="pn">{25}</span> barulhentas, sob
+um sol sufocante de canícula... Depois, os descantes; os natais, em que fôra,
+romeiro piedoso e crente, ao presepe do menino; as <em>janeiras</em>, cantadas
+á sua porta e em que os versos laudatorios lhe agradavam sempre; as semanas
+santas, com procissões na rua, por esse agonisar de sol doirado em que um Deus
+assistia á morte doutro Deus...</p>
+
+<p>Tudo isso elle revia, todo esse passado distante se apoderava da sua alma e
+o fazia viver por momentos uma existencia, que se não repetiria mais.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Agora, em frente da antiga casa que lhe enchêra de sonhos os últimos mêses
+de vida, Luis sentia-se frio.</p>
+
+<p>Quizera sentir muito e não sentia nada. Nenhuma comoção, nenhuma dôr&mdash;na sua
+alma gelada.</p>
+
+<p>Nem a casa lhe parecia a mesma&mdash;e decerto não era!&mdash;cortadas as trepadeiras
+que a revestiam de verde e lilaz e que a perfumavam dôcemente com os cachos
+exoticos das glicinias rôxas. Até as janelas tinham sofrido o insulto de serem
+repintadas de vermelho, e as paredes estavam caiadas de branco, essas paredes
+de granito polido que tinham ao sol faiscamentos de mica e escureciam sem
+se<span class="pn">{26}</span> resentirem das intemperies, suavemente, como se
+envelhece sem sobresalto nem luta, quando se vive sem preocupações.</p>
+
+<p>Já não era a mesma&mdash;nada lhe dizia ao seu coração que era a mesma.</p>
+
+<p>Lançou pelas janelas abertas um olhar de indiferente curiosidade para o
+interior e então quasi lhe deu vontade de rir, tanto era banal o mobiliario que
+a guarnecia, tão charramente burguêsa e sem gosto a decoração que a tornava uma
+casa trivial de <em>endinheirados</em>, de <em>adventicios</em> sem educação.
+</p>
+
+<p>Fechou os olhos, concentrou-se por segundos na evocação do passado, quiz
+enganar-se a si proprio, mas não o conseguiu; a sua alma quedou-se, por fim,
+numa frieza e numa desolação de completo desmoronamento.</p>
+
+<p>Faltava-lhe o quintal; voltou-se para seguir ao longo do muro, deitando um
+olhar prescrutador para o pequeno jardim gradeado, que era no seu tempo um tufo
+apenas de verdura, e sofrêra, como a casa, a influencia dos novos dônos.</p>
+
+<p>Sim, no quintal ao menos iria encontrar as mesmas arvores, os mesmos
+recantos amaveis de sombra, o mesmo perfume saudavel do pomar e da horta
+verdejantes.</p>
+
+<p>E seguia, rapidamente, olhando o muro de pedra solta e que era bem o mesmo
+que bastas<span class="pn">{27}</span> vezes saltara para comer os bellos
+cachos de uva ferral de grandes bagos córados.</p>
+
+<p>Isso não mudara, ao menos; era o mesmo que conhecera e lhe fazia lembrar
+tantas garotices, tanta alegria passada...</p>
+
+<p>Quando chegou ao alto do caminho descobriu a parte do quintal que menos
+estimava, porque tinha sido adquirida ulteriormente, poucos anos antes da sua
+ida para o colegio.</p>
+
+<p>Lembrava-se bem de quando o pai comprara aquelle grande campo de oliveiras e
+terra centeeira a entestar com o pomar, que sempre tinham desejado na familia e
+por teima de camponios rudes lhes não pertencia desde muito.</p>
+
+<p>Como elle ria, satisfeito, olhando a mulher, muito contente tambem, ao vêr
+cahir uma a uma as pedras do muro que ia fazer do seu pequenino quintal uma
+quintasinha deliciosa, mas que para elles nunca deixara de sêr o quintal.</p>
+
+<p>Luis sentira então, ao correr pela carreira principal, tão comprida que ao
+fundo deixava de se avistar a casa, uma sensação de posse, que o fazia agora
+sorrir.</p>
+
+<p>Lembrava-se bem como Eduarda estava melancolica naquella tarde de outôno,
+olhando o desmoronamento que lhe parecia um começo de destruição&mdash;porta
+escancarada por onde<span class="pn">{28}</span> entrariam todos os
+desastres... Presentimentos de alma extremamente vibratil, ou acaso sem nenhuma
+significação, quem pode ao certo dizer o que determinados estados de espirito
+representam?!</p>
+
+<p>Ali tambem havia mudança... Luis começou a sentir a ansiedade da dúvida.
+Tinham plantado vinha nesse campo, que dantes ondulava num verde tenro pelas
+primaveras, e pelos verões era um manto de oiro, com as espigas acurvadas ao
+pêso do grão já maduro.</p>
+
+<p>Entrou pelo fundo do quintal, que no seu tempo tinha apenas um pequeno muro
+como signal de posse e agora se alteara numa hipótese de muralha orgulhosa.</p>
+
+<p>Seguindo pela rua mais larga, ia recordando, uma por uma, as arvores do
+pomar. Uma certa pereira que se erguia em roca, toda florida e branca como
+fogaça, e era a primeira a amadurecer as suas peras magnificas; uma rua de
+aveleiras baixas e tufadas, donde apanhavam ás mãos cheias as avelãs ainda em
+leite, que eram dum verdadeiro apetite... Depois lembrava-se dumas certas
+ameixas, muito rôxas e carnudas, que ainda lhe faziam crescer a agua na bôca. E
+a nespereira imensa que sombreava a horta, com grande desespero do velho
+Antonio hortelão... e a enorme cerdeira, que tinha uma historia engraçada,<span
+class="pn">{29}</span> que os pequenos sempre contavam ao ouvido dos visitantes
+e os fazia desenhar gestos de nojo, o que lhes provocava uma esfogueteada de
+risos!?... E tantas outras que eram mais conhecidas, como suas irmãs, que iria
+abraçar piedosamente numa despedida derradeira.</p>
+
+<p>Se fosse tempo de lilazes, como teria gosto de levar um grande mólho de
+flôres para a mãe! Sim, roubaria, porque ao seu inconsciente criterio isso não
+lhe parecia um roubo: se o quintal era o seu, o mesmo que tinha deixado anos
+antes, que mal poderia haver nisso?!</p>
+
+<p>Apressou o passo até avistar a grande nogueira, plantada no ano do
+nascimento de Eduarda, e que já no seu tempo era uma bela arvore que desafiava
+a cubiça do rapazio que de fóra namorava as suas verdes nozes de bôa casta. Se
+não fosse noite poderia vêr no tronco rugoso as iniciais do seu nome, que
+Eduarda tinha aberto, na vespera da sua partida para o colegio.</p>
+
+<p>Mas ao chegar junto á arvore, donde se descobria todo o quintal, não poude
+reprimir um gesto de pavôr.</p>
+
+<p>Ah, para que viera ali, numa febre apreensiva de lembranças,&mdash;para reviver
+uma vida que já não existiria mais, para materialisar<span
+class="pn">{30}</span> uma saudade que já não poderia sêr realidade... para
+quê?!...</p>
+
+<p>Bem lho dissera Eduarda, aconselhando-o a não dar ao passado mais do que a
+melancolica e vaga recordação que merece, e lembrando-lhe o dever de caminhar
+para a frente, de viver, como ella, uma nova vida mais nobre e mais cheia de
+ideais, que a faziam até abençoar esse desastre material que a libertara de
+preconceitos e costumes seculares...</p>
+
+<p>Mas elle sofria verdadeiramente e intensissimamente; era uma dôr material
+como a de lhe cortarem um pedaço do seu proprio corpo, ao vêr que tambem o
+pomar não soubera resistir á mudança de proprietario, na sua passividade de
+natureza vegetativa.</p>
+
+<p>Oh, as lindas arvores de fruto, as ruas de plumeiras decorativas,&mdash;inuteis
+para o criterio mesquinho do vulgo&mdash;os crisântemos estrelados, os lirios rôxos,
+as roseiras já grossas como arvores, tudo, tudo fôra sacrificado ao ignobil
+desejo do lucro. Tudo desaparecêra, para dar logar á vinha!</p>
+
+<p>Como sofria com tal hecatombe, e como sentia no seu proprio sêr os gemidos
+doloridos das suas plantas mortas, cujas almas erravam ali sem dúvida&mdash;elle
+ouvia-lhes e compreendia-lhes as queixas esparsas naquelle ar triste de
+cemiterio...<span class="pn">{31}</span></p>
+
+<p>Vinha: toda a horta, todo o pomar, o seu proprio jardinzinho cultivado com
+tanto disvelo!</p>
+
+<p>Um soluço lhe subiu do peito oprimido, e as lagrimas vieram-lhe, sem querer,
+aos olhos ardentes.</p>
+
+<p>O quintal tinha pouca agua, sim, elle sabia isso,&mdash;fôra até a grande
+preocupação da familia&mdash;estando numa encosta que declivava dôcemente até ao
+ribeiro... Mas nunca lá tinha morrido nada com sêde; pelo contrario, as arvores
+desenvolviam-se a olhos vistos.</p>
+
+<p>Todo o desespero das coisas fatalmente irremediaveis o sacudia e fazia
+halucinadamente padecer.</p>
+
+<p>A vinha! Como detestava essa planta, de que transformam em subtil veneno o
+dôce e aromatico sumo do seu fruto, e que estropia mais criaturas e faz correr
+mais sangue e mais lagrimas pelo mundo do que exercitos em campanha!</p>
+
+<p>Como se tornava odiosa aos seus olhos essa planta, que torce convulsamente
+para o céo os braços descarnados de esqueleto, e como a desejaria queimar, numa
+furia vingativa de inquisidor!</p>
+
+<p>Luis amaldiçoava mil vezes essa planta, que é tão estimada, porque
+representa a cupidez explorando o vicio.<span class="pn">{32}</span></p>
+
+<p>Diante dos seus olhos, embaciados pelas lagrimas, todos esses troncos nus se
+animavam e viviam dançando numa roda selvatica de possessos.</p>
+
+<p>Como detestava entranhadamente, sagradamente, a vinha!</p>
+
+<p>Não lhe lembrava, por certo, a alegria rubra e ruidosa das vindimas, quando
+elles iam todos, pelos poentes fulvos dos lindos outônos da sua terra, ás
+propriedades de fóra, e voltavam atraz dos carros que as dornas a transbordar
+faziam chiar doridamente, ora enterrando-se na areia solta das azinhagas
+orladas de silvas, ora trambulhando pelas lages e pedras dos caminhos
+carreteiros.</p>
+
+<p>Nem sequer recordava o delicado e suave perfume a resêda da vinha em flôr,
+quando na primavera as noites são frescas e os rouxinois cantam pelas ramarias
+os lirismos dos seus amôres e as romanzas dos seus noivados.</p>
+
+<p>Via sómente os esqueletos tristes que tinham expulso as suas arvores amadas,
+as suas flôres escolhidas, as esbeltas trepadeiras, tudo emfim que fazia o
+encanto daquelle pedaço de natureza que fôra uma parte da sua propria alma e
+deixara de existir para sempre.</p>
+
+<p>Luis abraçou a nogueira, numa última expansão de sentimental, beijou-a
+devotamente, como a uma velha amiga que se lhe tivesse<span
+class="pn">{33}</span> conservado fiel ao coração, e afastou-se lentamente
+daquelle logar que fôra de martirio para a sua alma, como a mêsa de operações
+dum hospital onde se amputa um membro infermo.</p>
+
+<p>Ainda de longe olhou para traz, e, num instintivo movimento, tirou o chapéo
+num último adeus á leal amiga que o vira nascer e fôra a unica que lhe soubera
+conservar a ilusão do passado.</p>
+
+<p>Um adeus, um último e enternecido adeus, e tudo tinha acabado.</p>
+
+<p>Foi quasi com indiferença que de novo transpôs o muro, sorrindo para o
+pinhal que marulhava como as vagas de vagabundo mar, e que era o mesmo ainda.
+Esse não tinha mudado.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Quando o comboio se pôs em marcha para o internar de novo na sua vida do
+presente, depois daquella tentativa de viver pela recordação um passado
+sepulto, Luis sentia a impressão estranha de que a terra que deixava não era
+aquella em que tinha vivido uma tão importante época da sua vida.</p>
+
+<p>Essa, parecia-lhe ter desaparecido completamente, como se a tivessem rasgado
+do mapa e a tivessem substituido por uma outra vila<span class="pn">{34}</span>
+burguesinha, cheia de sol e de gente palradora e vasia, a mexer-se e a dançar
+indefinitamente.</p>
+
+<p>Quasi a dormitar seguia vagamente essa gente, ia escutar-lhe as palavras
+para rir do mesmo riso banal, e ficava silencioso, sem nenhuma impressão de
+alegria ou tristeza.</p>
+
+<p>Depois... tudo se foi diluindo, aos poucos, e adormeceu profundamente,
+revendo de novo a terra antiga, com varandas revestidas de trepadeiras
+perfumadas, silencios religiosos, as arvores, as casas, os costumes, e a gente
+que era dantes...<span class="pn">{35}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h1><a name="SECTION00200000000000000000">II<br>
+A Feiticeira</a></h1>
+
+<p><span class="pn">{36}<br>{37}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h2><a name="SECTION00210000000000000000">A FEITICEIRA</a></h2>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<blockquote>
+ <p>«La peur qui met dans les chemins<br>
+ Des personnages surhumains<br>
+ La peur aux invisibles mains qui revet l'arbre<br>
+ D'une carcasse ou d'un linceul<br>
+ Qui fait trembler comme un aïeul<br>
+ Et qui vous rend, quand on est seul,<br>
+ Blanc comme un marbre.»</p>
+
+ <p style="text-align: right;">M<small>AURICE
+ </small>R<small>OLLINAT.</small></p>
+</blockquote>
+
+<p>De todos os rapazes da aldeia era o Manoel da Clara o mais querido das
+raparigas.</p>
+
+<p>Fôra sempre um belo rapaz de afugentar rivais, mas, desde que viera da tropa
+e de lá trouxera aquelle ar desdenhoso de feliz D. João, aprendido no convivio
+dos camaradas presunçósos e mulheres de vida airada, parece que as enlouquecia.
+</p>
+
+<p>Acostumado a ajustar a farda, como apertava bem a cinta de lã preta ou
+carmezim, que parecia trazer espartilho, o démo do rapaz!<span
+class="pn">{38}</span></p>
+
+<p>Os sapatos com o lustro bem puxado, que pareciam de verniz; o chapéo
+garbosamente descahido sobre a esquerda; a ponta do cigarro atraz da orelha; e
+o lenço, com flôres e uma legenda bordadas a côres vivas, a sahir da pequena
+algibeira da jaqueta, as mais das vezes levada ao hombro; o Manoel era na
+verdade a nata da rapaziada do logar.</p>
+
+<p>No meio dos outros, com as suas caras rapadas de lôrpas, valentes mas sem a
+elegancia dos gestos disciplinados pelo exercicio regular, o seu pequeno bigode
+de cidadão retorcia-se aos domingos com uma petulancia irresistivel.</p>
+
+<p>Nas feiras e romarias, firmado no varapau metido debaixo do braço, toda a
+vaidade satisfeita a brilhar-lhe nos inquietos olhitos garços, desafiava toda a
+concorrencia desagradavel. Ás raparigas iam-se-lhes os olhos nelle, e mediam-se
+com o rancôr de rivalidades latentes.</p>
+
+<p>E valentão!?&mdash;como aquilo poucos! E, como sempre, era a superioridade
+material da força e da coragem o que mais o fazia valer aos olhos de primitivas
+femeas, oferecendo-se orgulhosamente ao vencedor, ao macho forte e soberbo.</p>
+
+<p>Quando o Manoel, com um rapido piparote atirava para a nuca o chapéo móle de
+largas<span class="pn">{39}</span> abas, dava um passo atraz, fazia girar o
+varapau em sarilho sobre a cabeça, e torcia a bôca espumante num esgare de
+raiva... podiam fugir delle!</p>
+
+<p>Contavam-se na aldeia as valentias do Manoel com o mesmo entusiasmo e ufanía
+com que se contariam as de um heroi da historia, um heroi autêntico, de que a
+tradição nos deixasse o nome e a memoria de largos feitos.</p>
+
+<p>Uma vez era todo o povo de Infias que se juntara para o desafiar, raivosos
+por uma questão de mulheres de que o Manoel era afortunado protogonista, e que
+elle <em>enfiara</em> pela serra abaixo&mdash;que até parecia que o vento os levava.
+</p>
+
+<p>«Ó Manoel, lembras-te?...</p>
+
+<p>«E daquella vez na romaria da Senhora dos Verdes?...</p>
+
+<p>«E na feira, quando foi da compra dos meus bois?!...</p>
+
+<p>As perguntas, as respostas, as diferentes versões e comentarios, envolviam o
+Manoel num côro de louvôres, que elle recebia mal disfarçando a vaidade num
+meio sorriso modesto emquanto ia enrolando o cigarro entre os dedos fortes onde
+brilhava um anel de cobra, o encanto e a inveja dos mais rapazes.<span
+class="pn">{40}</span></p>
+
+<p>No jogo da bola, ao domingo, no terreiro da igreja, nenhum o excedia, como
+ninguem era capaz de o vencer numa partida de chinquilho ou no jogo do pau. Um
+valentão, um rapaz ás direitas, sempre pronto a fazer um favôr, riso franco,
+coração nas mãos para os amigos; ninguem emfim mais digno da estima dos seus
+patricios e ninguem que de facto fosse mais estimado do que o Manoel da Clara.
+</p>
+
+<p>Álêm de todos estes merecimentos fisicos, que o superiorisavam, ainda era
+senhor de algumas belgas, e unico herdeiro da meação da mãe, a viuva do
+Rezadeira, que ajuntara o seu peculiosito na <em>casa dos fidalgos</em>. E era
+uma mulher de trabalho, a velha Clara do Rezadeira, que só tinha olhos e
+coração para o filho, o seu enlevo e orgulho. Primeiro do que ninguem, como o
+galo da manhã, saltava da cama, onde a asfixia dum coração emperrado mal a
+deixava socegar, e começava a labuta de todos os dias: amassando o pão,
+chegando ao forno a prevenir a forneira, cosinhando a vianda para os cevados,
+chamando a gente para o trabalho, despachando serviço, ralhando com um,
+combinando com outro, e sem nunca perder de vista a panela onde se cosiam as
+batatas para o caldo verde que o seu Manoel havia de comer antes de sahir,<span
+class="pn">{41}</span> na sua tigela bem meada de brôa. Mal elle aparecia,
+ainda espreguiçando-se e os olhos mal abertos mas já risonho e feliz como
+soberano que se julga crédor de todos os afétos e homenagens, a vélhota
+aprontava tudo num ápice, rindo e ralhando num visivel contentamento de quem se
+revia no rapagão, que era o seu filho.</p>
+
+<p>É claro que não havia rapariga na aldeia e arredores á qual não agradasse a
+ideia de poder vir a sêr a mulher estimada do Manoel, a senhora do seu coração
+e do rico bragal de linho que a velha mãe guardava avaramente nos grandes
+arcazes de madeira de fóra, grossamente chapeados de ferro.</p>
+
+<p>Elle ria-se com todas, o patife, querendo gosar o mais possivel a sua
+situação de desejado, sem até ahi mostrar preferencias comprometedoras por
+nenhuma.</p>
+
+<p>Mas, entre todas, havia duas que nos últimos tempos mais preocupavam o
+Manoel, com grande contentamento da mãe que ansiava por o vêr casado com
+rapariga que fosse do seu calhar:&mdash;só assim morreria descansada, pois uma
+cabeça alevantada como a delle precisava bem do arrimo duma bôa mulher de
+trabalho.</p>
+
+<p>Por felicidade, as duas raparigas que o Manoel trazia debaixo de vista
+agradavam<span class="pn">{42}</span> por igual á velha Clara&mdash;assim tinha
+liberdade para á vontade consultar o coração.</p>
+
+<p>Uma, Maria Tereza&mdash;a Terezinha, como lhe chamava quando acertava de a topar
+no seu caminho&mdash;era afilhada da <em>fidalga</em> e lá pelo palacio se tinha
+criado com mimos e delicadezas que as outras não conheciam. Era com uma graça
+toda senhoril que punha os olhos no chão e enrubecia como romã bem madura
+quando elle a fitava de frente, bem de frente, como fazia ás mais, sem
+conseguir com isso chamar-lhes o sangue ao rosto, mas fazê-las explodir em
+jocundas gargalhadas. O seu andar lento e ondulado dava um realce de elegancia
+exotica ao seu corpo delgado de anemica, flôr tristemente desabrochada entre
+paredes sombrias e velhas coisas impregnadas da melancolia dos tempos passados.
+Como era a unica que na terra sabia lêr, eram tambem os seus os unicos olhos
+que na missa se não levantavam do livro para andarem em leilão pela igreja á
+procura dos rapazes, que lá de longe, e de soslaio, não perdiam o grupo
+buliçoso da raparigada.</p>
+
+<p>A madrinha queria-lhe muito, era o que todos afirmavam, e se não tivesse
+morrido nem a Terezinha sahia do palacio, onde era respeitada como filha da
+casa, e, talvez, se a morte não fosse repentina, tivesse ficado<span
+class="pn">{43}</span> senhora daquella fortuna, quem sabe!?... Tem-se visto
+coisas mais raras. E melhor teria sido para a terra, pois a casa dos fidalgos,
+que fôra sempre abrigo de miseraveis como consolação de desgraçados, mal a
+senhora morgada fechara os olhos fechara-se tambem á pobreza, com uma crueldade
+que revoltava toda a gente.</p>
+
+<p>Os herdeiros, uns primos em último gráu legal, souberam da sua morte sem
+testamento e acorreram de Lisbôa em marchas forçadas. Mas, tudo liquidado á
+pressa, apartaram gulosamente, para figurarem nos salões da capital, as
+preciosidades que enchiam e decoravam o velho solar. Durante alguns dias não se
+ouviu senão o martelar dos carpinteiros fazendo e pregando caixotes e não se
+via senão a moderna condessinha, muito prática em antiqualhas preciosas, abrir
+portas e armarios, percorrer os salões e os sotãos, dar volta ás paredes e ás
+bojudas cómodas de floreados embutidos, que seguiram com os candelabros, as
+joias, os quadros e os Sèvres ricos como os incontaveis Chinas para o
+sorvedoiro de Lisbôa. Depois, mal o Conde, com o seu ar mais chic de fadiga,
+deu por terminadas as contas e entregues as propriedades ao feitôr trazido das
+lezirias ribatejanas como pessôa de inteira confiança, fugiram
+atemorizados<span class="pn">{44}</span> pela tristeza pesada e humida que
+resumbrava o casarão quasi deshabitado havia anos, desde que a fidalga se
+tolhêra de todo e passava os dias nos aposentos mais ensoalhados onde fizera a
+sua habitação e a da Terezinha, que lhe lia os autôres predilétos e a arrastava
+na cadeira de rodas pelas ruas ensombradas pelos buxos seculares do jardim.</p>
+
+<p>Verdade seja que a Senhora Condessa, sabendo o amôr que a velha prima
+dedicava á afilhada e a docilidade e o desinteresse com que ella a servira e
+cuidara até ao fim, ofereceu-lhe o logar de sua criada de quarto e obrigou o
+marido a pôr em seu nome algumas propriedades arredadas ou a arbitrar-lhe o seu
+valôr em dinheiro, coisa duns cem mil réis, para os seus alfinetes, o que a
+tornaria na aldeia uma pequena morgada.</p>
+
+<p>A Terezinha agradeceu cheia de reconhecimento a generosa munificencia da
+condessinha, a quem serviu, como ella nunca fôra servida, até á última hora que
+se demorou no palacio. Depois, quando se viu fóra do ninho onde a sua alma se
+emplumara e o seu corpinho debil de criança pobre crescêra e se tornara de
+mulher perfeita, sentiu-se como que isolada num vasto campo deserto.</p>
+
+<p>Mas, séria e ponderada como era, tomou logo a mais acertada resolução: indo
+viver<span class="pn">{45}</span> com a tia, a Zéfa do Padre, uma que fazia
+belos dôces e fôra por muitos anos ama do velho abade. E para encher os dias,
+tão longos agora quanto lhe pareciam pequenos dantes a rodear de cuidados a
+madrinha paralitica, metêra-se a tecedeira. Em breve era a melhor, sem favôr,
+que havia na terra.</p>
+
+<p>O seu tear, no monotono bater do pedal e correr da lançadeira, só parava aos
+domingos e algumas horas da noite.</p>
+
+<p>Aquella vida de reclusão mais lhe amaciava a pele e dava um tom ligeiramente
+empalidecido ás suas feições miudas.</p>
+
+<p>&mdash;«Mas era alegre dantes!... Agora, <em>dês</em> que o <em>Manél</em> da
+Clara veiu de soldado e entrou de atentar nella, é que de mais em mais se vai
+definhando, que nem já parece a mesma. Louvado seja Deus, que só trabalhos e
+desgostos me chegam <em>pró</em> fim da vida.</p>
+
+<p>Dizia isto a Zéfa do Padre á Gertrudes Zarôlha, velha conhecida dos
+longinquos tempos da mocidade, assentadas á porta, com a roca á cinta e o fuso
+girando e torcendo o linho cuspinhado pelas suas bôcas palreiras.</p>
+
+<p>&mdash;«Mas então aquelle desaustinado não diz nada cá á nossa cachopa?!...</p>
+
+<p>&mdash;«Qual historia! Que eu saiba, ainda não lhe disse fala <em>pró</em> bem
+nem <em>pró</em> mal.<span class="pn">{46}</span></p>
+
+<p>&mdash;«Que desaforado! O que elle precisava sei eu!... Uma rapariga como a nossa
+Terezinha!... Crédo, santo nome de Jesus! Mal empregada é ella para tal
+libertino, que veiu mesmo perdido da tropa!...</p>
+
+<p>&mdash;«Lá isso, ó Gertrudes, mau rapaz não é elle, e tem o seu bocadinho...</p>
+
+<p>&mdash;«Ah, mas tem uma cabeça mais leve! No nosso tempo parece que não eram
+assim, ó Senhora Zéfa! Quando algum pretendia duma rapariga, dizia-lho, e
+estava acabado, iam <em>prá</em> igreja os banhos!...</p>
+
+<p>&mdash;«Ora, eu sei lá! Haveria de tudo. Estas coisas esquecem muito, e o nosso
+tempo já lá vai ha tanto!...</p>
+
+<p>&mdash;«Ai eu cá lembra-me perfeitamente, que o meu <em>home</em> assim fez. Foi
+até numa cava; calhou eu ficar ao pé delle, e fômos ao desafio. Como eu é que
+ganhei, elle então deu-me um abraço muito grande e disse-me assim:&mdash;Ó
+Gertrudes, és uma mulher <em>duma cana</em>; ámanhã se tu quizeres vou falar ao
+senhor abade e <em>vame-nos a botar os pregões</em>. E assim é que foi...</p>
+
+<p>&mdash;«E eu que ainda me lembra do senhor abade vir p'ra casa a rir muito e a
+contar o caso á minha tia&mdash;que Deus haja! Ainda ella então andava rija e
+<em>féra</em>, coitadinha.</p>
+
+<p>&mdash;«Mas vocemecê já lá estava, pois não estava?<span class="pn">{47}</span>
+</p>
+
+<p>&mdash;«Pois estava, desde a idade de oito anos que fui p'rá companhia da minha
+tia até á idade dos cincoenta em que aquelle santo rendeu a alma a Deus!
+Ficou-me nos braços...</p>
+
+<p>&mdash;«Coitadinho! Tão bom homem, tão sério, era como o nosso pai de todos. Veja
+lá se tudo não vai a peor! Olhe-me para o desatino em que este anda por ahi,
+com as raparigas e as mulheres dônas de sua casa, atraz, sempre em cantorias, e
+em rezas novas, que nem podem agradar a Nosso Senhor...</p>
+
+<p>&mdash;«Já o dizia o senhor abade: a religião deve sêr a consolação da nossa vida
+e não o seu unico fim. Mas essa jesuitada entrou por toda a parte com este
+rapazelho do seminario&mdash;e bem mal têm já feito e hão de fazer ás familias!... O
+senhor abade bem dizia, bem dizia... E bastantes desgostos teve nos últimos
+tempos, que lhe amarguraram o resto dos dias... Coitadinho! Assim Deus lhes
+perdôe, que eu não posso tragá-los. Até me custa ouvir a missa daquelle
+avejão&mdash;Deus me perdoe se péco!</p>
+
+<p>&mdash;«E o que me diz ás amizades delle com os feitôres da fidalga?! Ella toda
+<em>trinques</em>, caminho da missa logo de madrugada; as filhas de güelas
+abertas com as tais <em>onzenices</em> de cantorias na igreja, e mais florinhas
+p'rá<span class="pn">{48}</span> qui, e mais rendinhas novas nas toalhas do
+altar, confissão a cada passo... Eu nem sei, eu nem sei!...</p>
+
+<p>&mdash;«E o marido? Vocemecê hade ouvir alguma coisa&mdash;está ali á beirinha da
+casa...</p>
+
+<p>&mdash;«Ora o marido!... Tambem gosta muito daquellas coisas, e reza e canta e
+leva o padre p'ra casa a jantar e a tomar o chá, as mais das vezes.</p>
+
+<p>&mdash;«<em>Eia!</em>&mdash;vivem como fidalgos!</p>
+
+<p>&mdash;«Aquelles grandes excomungados! No tempo da fidalga, graças a Deus ninguem
+batia áquella porta com fome que não trouxesse uma consolaçãosinha; agora nem
+um chavo! Tudo querem para elles, aquelles ladrões!... Parece que ainda estou a
+vêr a Terezinha ir a correr contar á fidalga e vir logo com uma abada de pão ou
+de fruta, ou umas batatinhas, ou uma tigelinha de papas e o bocadinho de
+carne!...</p>
+
+<p>&mdash;«Pobre Terezinha, tão mimosa foi da madrinha e agora tão triste a vejo!
+</p>
+
+<p>&mdash;«Mas aquelle maroto não lhe dizer nada é o que me dá no gôto!...</p>
+
+<p>&mdash;«Elle passa por ahi ás tardes, e ri-se para ella... Quando vai a alguma
+romaria sempre lhe traz uma prenda e um cravo com um verso <em>bem
+calhante</em>, mas nada mais! Ella então é uma tôla pelo rapaz! Mas quando<span
+class="pn">{49}</span> o vê faz-se encarnada como um pimentão, põe os olhos
+baixos, e nem sequer o salva.</p>
+
+<p>&mdash;«Ora essa! Tem sua graça, tem!</p>
+
+<p>&mdash;«Eu nem posso explicar isto. Que a minha Tereza&mdash;não é por sêr minha
+sobrinha&mdash;não é de engeitar... é a melhor cachopa cá da terra.</p>
+
+<p>&mdash;«Ora isso, nem se fala! Compara-se lá! Basta saber lêr e têr a
+<em>inducação</em> que teve. É a flôrsinha da nossa vila.</p>
+
+<p>&mdash;«Pois isto dá-me cuidado, dá! E não é pouco... A pequena só me tem a mim
+no mundo, e eu estou velha e cansada; queria-a vêr arrumada antes de fechar os
+olhos. E com o <em>Manél</em> da Clara do Rezadeira gostava, lá isso gostava: a
+mãe é rapariga do nosso tempo, e elle tem alguma coisa de seu, e no fundo não é
+mau rapaz. Mas então!... Parece bruxaria.</p>
+
+<p>&mdash;«Ai senhora Zéfa, não pônha mais na carta. Isso hade sêr, hade! E não é
+mais nada senão coisas daquella atrevida da Maria do Próspero! Aquilo sempre
+fôram de má raça. Até o pai... hade saber! Não?! Pois eu lho conto. Crédo,
+santo nome de Jesus! Cada vez que me lembra até os cabelos se me põem em pé. O
+que aquelle malvado disse de mim, que sempre entrei em casa da fidalga, que
+Deus tem, com toda a franqueza!...</p>
+
+<p>&mdash;«O que foi então?<span class="pn">{50}</span></p>
+
+<p>&mdash;«Ai não sabe?! Aquele grande diacho, Deus me perdôe! Então não disse elle
+que eu é que chupara o morgadinho, o filho da senhora fidalga!? Aquella
+aventesma!... Nem que eu não soubesse!... Bom, calo-me, que é melhor...</p>
+
+<p>E mudando de tom, muito confidencial e amigavel:</p>
+
+<p>&mdash;«Posso dizer-lhe de certeza: a Maria do Próspero conversa com o
+<em>Manél</em> e parece que o traz enfeitiçado. Olhe que lhe ouvi eu dizer&mdash;que
+primeiro estava ella, que já o namorava ha muitos anos, ainda antes de elle ir
+para a tropa, e que nunca a <em>lesma</em> da Terezinha o havia de apanhar!
+Desculpe, senhora Zéfa, aquilo é uma atrevida, uma doida!... Pois de que raça
+ella é!...</p>
+
+<p>&mdash;«E o que é certo é que vai levando ávante o seu intento; tem artes do
+demonio!...</p>
+
+<p>&mdash;«Deixe estar, deixe estar... Eu sei cá umas coisinhas que hãode voltar o
+<em>Manél</em>, oh se hãode!... Assim eu tivesse uma coisa que lhe
+pertencesse... Coisa de vestir era melhor... Punha-lhe a pedra de ara e dizia a
+oração... É coisa certa.</p>
+
+<p>&mdash;«A Terezinha tem um lenço que elle lhe deu, mas fosse lá falar-lhe
+nisso!... Toda se zangava, não acredita nestas coisas...</p>
+
+<p>&mdash;«Pois são bem verdadeiras...<span class="pn">{51}</span></p>
+
+<p>&mdash;«O outro dia ensinei-lhe que cruzasse as pernas mesmo de pé quando a
+atrevida da Maria passar por ella... Desatou a rir!</p>
+
+<p>&mdash;«Ah, isso é uma coisa certa para livrar do mau olhado de quem nos quer
+mal. Sabe o que era muito bom? Era fazer á pequena um defumadoiro com hervas
+colhidas na manhã de S. João... É o alecrim, o funcho, a dedaleira, o
+rosmaninho, o sabugueiro... Se quizer, eu tenho lá.</p>
+
+<p>&mdash;«Muito obrigada. Assim ella quizesse!... Bem se fazia um defumadoiro que a
+livrasse daquelle enguiço.</p>
+
+<p>Assim continuaram em conversa larga, cheia de combinações e reticencias, que
+muito as interessava, emquanto a Terezinha dentro de casa trabalhava na teia
+branca, que parecia sempre a mesma, eterna como as suas máguas.</p>
+
+<p>O tear monotonamente fazia subir e descer os <em>pentes</em> com um barulho
+sêco e igual, emquanto ella levantava a sua vózinha agradavel de soprano numa
+toada melancolica:</p>
+
+<blockquote>
+ &mdash;«Eu heide amar uma pedra,<br>
+ Deixar o teu coração;<br>
+ Uma pedra não me deixa,<br>
+ Deixas-me tu sem razão».</blockquote>
+
+<p>E ao dizer a quadra, que parecia sahir-lhe do proprio coração, os olhos
+enturvecidos de<span class="pn">{52}</span> lagrimas fitavam a estampa ingenua
+que elle lhe trouxera da Senhora do Castelo, a grande romaria de setembro.</p>
+
+<p>Todos os anos lá ia&mdash;era o costume&mdash;e tambem a Maria do Próspero, que punha
+nos ranchos um contínuo esfusiar de gargalhadas terçando galhardamente com os
+mais afamados <em>piadistas</em> as armas perigosas da chalaça e da resposta á
+letra.</p>
+
+<p>Cantavam ao desafio, ella e o Manoel. Tinham fama por todas aquellas
+redondezas, e, mal as suas vozes se trocavam num principio de duelo, os
+auditores cercavam-nos e apertavam-nos num círculo de admiração excitando-os
+com risos e ápartes.</p>
+
+<p>Tambem era o par certo em todas as romarias&mdash;talhados um para o outro!</p>
+
+<p>A Maria era alta e desempenada! A sua tez, dum moreno intenso, fôra brunida
+pelas soalheiras ardentes e curtida pelas ventanias agrestes. A bôca, sempre
+aberta em riso, era vermelha e fresca como cerejas maduras, e os dentes brancos
+e agudos cravavam-se com delicia no pão de milho, sua unica escôva.</p>
+
+<p>As saias, rodadas em balão, faziam-lhe mais altas as ancas já de si redondas
+e fortes; o cabelo, em duas tranças pregadas, enchia-lhe a cabeça como uma
+touca de veludo negro.<span class="pn">{53}</span></p>
+
+<p>Quando punha o cáchené vermelho e amarelo de grandes ramagens verdes, o
+chale em bico traçado deixando livre o braço esquerdo, a chinela branca
+pespontada na ponta do pé, nenhuma como a Maria do Próspero para arrebanhar
+admiradores.</p>
+
+<p>Depois, sempre satisfeita, radiava em plena expansão dos seus vinte anos
+sadios, vividos em plena natureza.</p>
+
+<p>Nas ceifas, ao ardôr dos sóes caniculares, mangas arregaçadas mostrando os
+braços trigueiros e musculosos; ou no gesto mecânico de juntar as paveias e
+sobraçar os mólhos, tinha a harmonia escultural e grave duma Céres fecunda.</p>
+
+<p>Nas vindimas, era a primeira dos ranchos, vermelha do môsto que corre como
+sangue generoso, a bôca escancarada em risos e cantigas... Tinha um aspecto
+quasi tragico e uma beleza perturbante e assustadora de bacante.</p>
+
+<p>Pela apânha da azeitona, quando os campos amanhecem brancos da geada que
+toda a noite cahira manso e manso, tudo uniformisando sob a sua alvura de
+sudario, e o frio corta as mãos, que se <em>engatinham</em>, e entorpece os
+dedos que mal se podem dobrar, ella motejava de todos, sempre na frente,
+cantarolando e rindo, enchendo de ânimo os mais desanimados,<span
+class="pn">{54}</span> encorajando os mais entanguecidos pela friagem.</p>
+
+<p>Sempre pronta para o trabalho, a Próspera, em todas as sáfaras e com todos
+os tempos!</p>
+
+<p>Mas, tambem, não faltava ás romarias e ás feiras das cercanias, com o seu
+lenço berrante, o casaquito branco engomado a capricho, e a sua alegria
+saudavel, que fazia bem vêr.</p>
+
+<p>O Manoel não resistia áquella força que chamava a sua força, áquella
+exuberancia de mocidade que atrahia a sua mocidade. Quando a via, nem sequer
+pensava na Terezinha, que se ia finando lentamente ao compasso triste e
+monotono do seu tear caseiro.</p>
+
+<p>E, no fim de contas, para falar a verdade, a Maria era tambem uma bôa
+rapariga, que nunca tivera outro conversado. Nem havia lingua danáda de velha
+de soalheiro que se atrevesse a debicar nos seus créditos. Alegre, sim; rir com
+todos, vá! Mas atrevimentos não os consentia a ninguem. E tinham-lhe
+respeito&mdash;que a sua mão era lésta, e um sopapo da Próspera não era brincadeira!
+</p>
+
+<p>Só o Manoel gosava da sua confiança e só com elle tinha as suas
+<em>graças</em> e brincalhotices mais livres, o que mais o afervorava naquelle
+amôr crescente que o ia conquistando dia a dia.<span class="pn">{55}</span></p>
+
+<p>Á noite, nas esfolhadas, quando o luar é môrno e as flôres têm um perfume
+mais intenso, corriam um atraz do outro, batiam-se fortemente, e cahiam ás
+vezes sobre a palha ainda quente do sol, com um cheiro sêco que entontece.</p>
+
+<p>As gargalhadas seguiam-nos de todos os lados da eira, as chalaças
+cruzavam-se no ar como morcegos de pesado e estonteado bater de azas:&mdash;Eh lá,
+Maria, vê se tens mais força do que elle! Isso é que era um riso, o valentão
+deixar-se bater por uma mulher!...</p>
+
+<p>&mdash;«Talhados um para o outro&mdash;isso é que não havia dúvida, nenhuma!</p>
+
+<p>&mdash;«A Zéfa do Padre que se deixasse de querer casar a sobrinha com o Manoel.
+</p>
+
+<p>&mdash;«Bôa rapariga, lá sobre isso não havia duas opiniões; mas a Maria é que
+estava a calhar para um homem de trabalho, uma mocetona daquellas que era capaz
+de voltar um campo sósinha.</p>
+
+<p>Os homens votavam pela Maria, bela mulher para tudo e forte como uma torre.
+As mulheres, essas eram pela Terezinha, delicada e amavel, pondo sorrisos de
+aquiescencia onde a outra só tinha ruidosas gargalhadas de troça.</p>
+
+<p>Era ella que lhes talhava e cosia á máquina, sem paga, as chitas pobres, mas
+apesar disso tão dificilmente compradas, e lhes ajustava os<span
+class="pn">{56}</span> coletes de linho grosso que tão irmanados lhes erguiam
+os seios até á raís do cólo:&mdash;«Ora, sempre era <em>outra loiça</em>! Podia lá
+comparar-se! Bem se via que tivera outra criação, lá em casa da fidalga, que a
+tratara como filha.</p>
+
+<p>&mdash;«Que elle gostasse della, vá! Agora da Maria, uma cachopa como as
+outras!...</p>
+
+<p>O Manoel, ainda indeciso, mas já a inclinar-se para a Maria, irritava as
+mulheres que se ofendiam com a insolente alegria da rapariga, que andava
+radiante com o seu ar de triunfo certo.</p>
+
+<p>A velha Gertrudes Zarôlha vivia sobre brazas, nos últimos tempos.</p>
+
+<p>Com meias palavras ou redundancias enigmaticas conseguia sobresaltar o
+coração do rapaz, mas não desviá-lo duma paixão que se harmonisava inteiramente
+com o seu modo de sêr moral e fisico.</p>
+
+<p>&mdash;«Casar com a Maria&mdash;dizia a velha á bôca cheia&mdash;era até um pecado!...&mdash;e
+benzia-se com gestos de apavorada, que não explicava mas punha de sobre-aviso
+as consciencias timoratas.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Por uma noite de verão, sinistra pelo negrume de nuvens carregadas de
+eletricidade e prometedoras de fortes aguaceiros que toldavam<span
+class="pn">{57}</span> o céo, voltava o Manoel da Clara da vila proxima onde
+assistira á feira.</p>
+
+<p>Um calôr asfixiante pesava como chumbo no abandono pungente da paisagen
+lugubre. Os pinheiros esguios tinham um murmurio mais triste e vago, como
+soluços suspensos de almas em pânico, e o olival verde negro destacava-se no
+fundo, apertando como num cilicio doloroso a pobre terra que se dependura de
+fraguedos rudes, sempre ameaçada pela montanha que a cavalga e lhe limita o
+horizonte, cortando-lhe toda a esperança de se expandir por ali, como o pecado
+véla e corta toda a esperança da alma piedosa...</p>
+
+<p>O Manoel, que tinha ficado um pouco para tarde, conversando com uns amigos
+na taberna do Geitoso, vinha assobiando alegremente, caminhando despreocupado e
+sem grande pressa.</p>
+
+<p>Ao passar pela <em>Fonte do Inferno</em>... diabo!... que ouviu elle?! Um
+rumôr confuso de gargalhadas, que aflavam no ar como grasnar longinquo de
+corvos...</p>
+
+<p>Mêdo?.... Elle não tinha mêdo, mas desde que acontecera aquella historia da
+casa dos Carneiros... <em>Crédo! Abrenuncio!</em></p>
+
+<p>&mdash;E não se benzeu, o Manoel, como lhe cumpria fazer, ao lembrar-se de coisas
+daquellas!... A tropa é que estraga os rapazes, está visto...<span
+class="pn">{58}</span></p>
+
+<p>Agora, as gargalhadas já soavam mais perto... diria mesmo que ouvia a Maria
+do Próspero.</p>
+
+<p>&mdash;Mas naquelle sitio, áquella hora!... Quem se atreveria?!...</p>
+
+<p>&mdash;Em casa dos Carneiros,&mdash;lembrava-se involuntariamente&mdash;aquelle barulho de
+cadeias a arrastar, os ferros em braza que vinham cahir aos pés da gente da
+familia, o vozear sinistro que se escutava em toda a aldeia e trazia apavorados
+os mais valentes... Deus do céo, que terror fôra na terra toda! Já ninguem
+dormia nem descansava. Muitas mulheres tiveram então <em>espiritos</em> que os
+padres e os <em>bentos</em> esconjuravam, e se batiam com elles como forças
+iguais.</p>
+
+<p>&mdash;Só depois que o senhor Vigario velho se resolveu a sahir, de capa de
+asperges, para benzer a casa endemoninhada, é que tudo socegou...</p>
+
+<p>O Manoel já não assobiava, e ia olhando de soslaio para o Camborço, pedraria
+escalvada suspensa por milagre sobre o abismo e que a toda a hora parece
+desabar e soterrar as pobres casas de pedra solta tisnadas pelo tempo.</p>
+
+<p>Um ventito picado e quente levantou-se então, trazendo o rumôr distinto de
+vozes, gritos surdos e gargalhadas abafadas...<span class="pn">{59}</span></p>
+
+<p>O Manoel era destemido; apesar da má fama do sitio, tido como logar de
+maleficas reuniões diabolicas, resolveu-se a transpôr o pequeno muro que
+separava o caminho da <em>Fonte do Inferno</em>, a propriedade de mais
+estimação dos velhos fidalgos.</p>
+
+<p>Primeiro, não viu nada; depois, vaga e confusamente, luzinhas que saltavam e
+atravessavam-se corriam e perseguiam-se, juntavam-se e tornavam a afastar-se...
+</p>
+
+<p>Um calafrio lhe percorreu o corpo e sentiu na espinha dorsal uma sensação
+desagradavel que o fez tremer. O Manoel era valente,&mdash;nisso não podia haver
+dúvida!&mdash;mas é que aquilo que via tão realmente como se á luz do sol olhasse as
+suas proprias mãos eram as feiticeiras, tal qual a sua mãe as tinha visto
+tambem quando em pequenino esteve ameaçado de sêr chupado por ellas...</p>
+
+<p>Entre curioso e medroso&mdash;já agora não sahiria dali sem vêr o que aquilo era.
+</p>
+
+<p>Acercou-se da eira onde a ronda sinistra era mais febril...&mdash;Jesus, que
+coisa horrivel!&mdash;Olharapos corriam vertiginosamente, que mais pareciam voar, na
+noite negra, com o seu unico olho flamejante no meio da testa, lanterna magica
+das profundezas do averno!...</p>
+
+<p>Um lobis-homem passou a galope, no seu fado triste, procurando alma christã
+á qual<span class="pn">{60}</span> podesse, antes da meia-noite, entregar a sua
+cruz martirisante. Se elle o tivesse topado!... Até os cabelos se lhe punham de
+pé.</p>
+
+<p>As luzinhas continuavam correndo alígeras, voando na escuridão dura da
+noite.</p>
+
+<p>Surrateiramente foi-se aproximando da eira onde chamejavam em halucinado
+rodopio... A pouco e pouco ia-as distinguindo na sua fórma humana, girando
+buliçosas e gárrulas.</p>
+
+<p>No meio da roda&mdash;cruzes! como podia aquilo sêr?!...&mdash;o Diabo passeando
+altivo, vestido de encarnado e de chapéo guisalhante, poisando os pés de
+forquilha sobre as cabeças das feiticeiras, que riam sarcasticamente.</p>
+
+<p>Dessa vez o Manoel não poude deixar de rir, tão patusca lhe pareceu a cêna.
+</p>
+
+<p>Ah! mas quando elle viu com os seus proprios olhos&mdash;tão certo como haver a
+luz do sol que nos alumia!&mdash;adiantar-se uma das luzinhas e, tornando
+rapidamente á sua figura de mulher, aparecer-lhe a Maria do Próspero, tal qual
+ella!... E quando a viu chegar ao pé do <em>homem vermelho</em>, estender-lhe
+os fortes braços roliços e trigueiros, abraçá-lo com ardôr, não poude retêr um
+surdo grito de raiva.</p>
+
+<p>Aquelles braços, que só o pensar nelles lhe fazia febre; aquella mulher, que
+o trazia prêso havia tanto tempo e com a sua honestidade<span
+class="pn">{61}</span> alegre e simples conseguira o seu respeito e o seu amôr,
+estava ali em frente delle abraçando outro! E esse outro&mdash;Deus do céo, que até
+a sua alma tremia!&mdash;esse outro era o proprio Diabo em pessôa!</p>
+
+<p>Tremia de desespero e horror por essa criatura, que não passava afinal duma
+feiticeira.</p>
+
+<p>Uma tremura nervosa e um frio de gelo o faziam vibrar todo. O sangue
+subia-lhe á cabeça, punha-lhe zoeiras nos ouvidos, halucinando-o.</p>
+
+<p>As luzitas recomeçaram a dansa, numa <em>farandola</em> de <em>sabbat</em>,
+correndo e saltando, num delirio de gargalhadas frias como entre-chocar de
+ossos numa dansa macabra.</p>
+
+<p>Ao Manoel parecia-lhe que tudo dansava á volta delle, que elle mesmo se
+sentia voar num rodopio de entontecer. Agora o Diabo, sentado num trôno
+luminoso de feiticeiras, os pés de bode torcidos e negros a descansar sobre o
+formoso corpo de Maria, como se fosse um estrado, lia um grande livro de capas
+encarnadas. A cada folha que voltava, sahia uma nuvem de diabitos fantasticos,
+saltitantes, folgazões como garôtos ao sahir da escola, que iam juntar-se ás
+feiticeiras, e tudo corria, voava, num cabriolar estonteante e doido.</p>
+
+<p>Uma das luzes aproximou-se então do Manoel, que ficara empedrado na
+contemplação<span class="pn">{62}</span> da cêna que o atordoava e lhe tirava
+toda a sensação da vida, e rapidamente se fez mulher. Ficou boquiaberto, pois a
+bruxa era nem mais nem menos do que a Gertrudes Zarôlha, a velha amiga e
+confidente da Zéfa do Padre.</p>
+
+<p>Se tivesse pensado melhor não se teria espantado tanto, pois essa era tida e
+havida por tal desde que o compadre Marques, o alfaiate, a encontrara feita
+galinha, lá para as bandas da vila, arrastando após si uma ninhada de frangas,
+as discipulas que ia exercitando pela noite alta. Admirou-se:&mdash;uma galinha tão
+tarde fóra da capoeira!?&mdash;e dando-lhe com o metro partiu-lhe uma aza. Logo a
+Gertrudes tornou á sua fórma natural e lhe pediu que se calasse, pois em paga
+do seu silencio lhe daria todos os anos uma camisa nova.</p>
+
+<p>Mas o que é certo é que toda a gente soube do caso, sob segredo, e elle nem
+por isso deixou de receber anualmente a bôa camisa de pano de linho.</p>
+
+<p>A Gertrudes quedou-se diante do Manoel: feia e engelhada, a bôca vasia de
+dentes, o cabelo esbranquiçado e crespo a fugir do lenço de chita, uma cavidade
+vermelha no logar do olho direito perdido não se sabia por que desastre.<span
+class="pn">{63}</span></p>
+
+<p>&mdash;«Ai, Manoel, pobre rapaz, desgraçado!... Se o Senhor te visse, estavas
+perdido neste mundo e no outro!...</p>
+
+<p>Elle olhava-a emparvecido, numa confusão labirintica de ideias, que não
+explicava nem compreendia.</p>
+
+<p>&mdash;«Ouves, Manoel?&mdash;continuava a velha bruxa.&mdash;Eu sou tua amiga, não te quero
+vêr perdido. Olha, escuta, toma sentido no que te vou dizer: O <em>Senhor</em>
+vai perguntar quem corre mais, para lhe entregar a caldeirinha que veiu hôje do
+inferno para a nossa missa. Tu hasde dizer que corres como o pensamento, agarra
+nella, e foge. Corre quanto podéres! Só estarás em segurança agarrado á corda
+do sino da igreja, depois do galo preto romano cantar pela terceira vez depois
+da meia-noite. Corre, corre quanto podéres, e livra-te de olhares para traz,
+oiças o que ouvires, sintas o que sentires. Ainda que te chamem pelo teu nome,
+não olhes nem páres,&mdash;olha que depende dahi a tua salvação e a tua vida!</p>
+
+<p>Afastou-se saltitando, outra vez luzinha, a misturar-se com as outras na
+dansa macabra.</p>
+
+<p>O Manoel ficou estarrecido, mas o proprio mêdo lhe deu energia bastante para
+responder com segurança á pergunta que o <em>homem vermelho</em><span
+class="pn">{64}</span> fazia em voz tão formidavel e soturna que toda a
+natureza estremeceu de pavôr e os corvos no visinho cemiterio grasnaram
+agoirentamente.</p>
+
+<p>Tendo gritado, no meio de vozearia geral, como lhe ensinara a Gertrudes
+Zarôlha,&mdash;«corro como o pensamento!»&mdash;agarrou na caldeirinha magica que estava
+no meio da roda e desatou a correr com quanta força tinha, em diréção á igreja,
+cujo campanario singelo donde pendia a corda do sino era agora a sua unica
+esperança de salvamento.</p>
+
+<p>Mas, fosse porque o conhecessem pelo andar ou fosse por penetração diabolica
+e subtil, o que é certo é que, logo que voltou costas, uma grita ensurdecedora
+lhe chegou aos ouvidos. Sentiu-se perseguido por toda uma canalha de demonios,
+fúrias vêsgas e feiticeiras esguedelhadas, pequeninos trasgos e enormes
+gigantes, que ardendo em sêde do seu sangue e da sua alma christã lhe corriam
+no encalço.</p>
+
+<p>Via-se quasi perdido, sentia-se quasi agarrado por enormes braços
+descarnados e com unhas aduncas e enclavinhadas, que se lhe cravavam na carne
+como tenazes... Chamavam-no pelo seu nome, ouvia coisas pânicas, e ora o
+insultavam com palavras que se desprendiam como pedradas de funda, ora o
+seduziam com promessas tentadoras.<span class="pn">{65}</span></p>
+
+<p>E dizia mesmo que essas vozes sedutôras, que se misturavam ás outras brutais
+e agressivas, eram ditas pela bôca vermelha e fresca da Maria...</p>
+
+<p>Mas, fiel á recomendação da Gertrudes, corria numa ânsia ofegante, num
+desespero de loucura. Na cabeça enfebrecida duas unicas ideias se lhe
+espetavam, como navalhas agudas:&mdash;a Próspera abraçando o <em>Senhor</em>, como
+lhe chamara a Zarôlha, e o campanario humilde onde estava a sua salvação.</p>
+
+<p>Não compreendia nem via mais nada, e nada mais lhe interessava no mundo. Mas
+chegaria a tempo de poder agarrar a corda do sino antes do galo preto romano
+cantar pela terceira vez á meia-noite?!...</p>
+
+<p>Já as pernas lhe fraquejavam, a cabeça andava-lhe á roda, e os gritos
+satanicos, que mais e mais se avisinhavam, davam-lhe a certeza do seu triste
+fim, se não conseguisse chegar.</p>
+
+<p>Mas já estava perto&mdash;num último arranco, estava salvo!</p>
+
+<p>Se fosse vinte passos mais longe não poderia resistir. Quando deitou a mão á
+corda do sino, que deu na noite negra uma badalada lugubre, o galo preto romano
+soltava pela terceira vez a sua voz clara e sonora de espancar visões e
+pesadelos.<span class="pn">{66}</span></p>
+
+<p>Um gargalhar surdo e um rumôr de maldições e pragas perderam-se no ar,
+emquanto o Manoel cahia pesadamente no chão, agarrado ainda á corda do sino que
+tremia nas suas mãos crispadas. Ao lado tombara a caldeirinha tilintando numa
+vózita escarnicadora.</p>
+
+<p>Para quem duvide do caso, lá está ella na igreja matriz, da pequena terra
+triste, cortada na rocha bruta, estrangulada entre pinhais melancolicos e
+oliveiras de folhagem eternamente sombria.</p>
+
+<p>Lá anda ella, cheia de agua benta, tilintando sempre a sua vózinha
+escarnecedora e fantastica, acompanhando enterros de cavadores tisnados que na
+terra encontram o seu unico repouso, e criancinhas frageis que vão para o céo
+aspergidas com a agua benta da caldeirinha infernal...</p>
+
+<p>Lá anda, muito serena, orgulhosa do seu metal desconhecido forjado nas
+profundezas ardentes do mundo sobrenatural, a acompanhar o senhor vigario na
+visita anual em dia de Páscoa alegre e florída:&mdash;«Bôas festas, bôas festas,
+santas festas!, sorri no seu arzinho petulante.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>De madrugada, quando os homens iam para o trabalho, encontraram o Manoel
+ainda desmaiado,<span class="pn">{67}</span> agarrando-se á corda do sino como
+naúfrago a táboa salvadora.</p>
+
+<p>Levaram-no para casa, alvorotando toda a vila com o extraordinario caso. A
+Clara de Rezadeira,&mdash;coitada!&mdash;mal viu o filho, o seu Manoel, estendido como um
+cadaver sobre o leito de cabeceiras embutidas, para onde os homens o atiraram
+já cansados da caminhada com semelhante pêso, ia morrendo tambem, sufocada pelo
+sangue cujos impetos o pobre coração mal podia regular.</p>
+
+<p>Mas o mestre barbeiro afiançou a cura para breve, dando uma picadélasita no
+braço do rapaz&mdash;que era de humôr muito quente, e apanhara algum golpe de sol lá
+pela feira.</p>
+
+<p>A febre sobreveiu e teve-o entre a vida e a morte, dias e noites ardendo num
+fogo de que o delirio e a agitação eram o corolario logico. O que elle via, os
+sonhos e os pesadelos que lhe enchiam a pobre cabeça enfebrecida, mal o
+compreendiam os seus enfermeiros. E todo aquelle mal se agravava e a agitação
+chegava ao delirio furioso dum louco se por acaso a Maria do Próspero chegava á
+porta, a pedir noticias ou a querer ajudar a tia Clara nos arranjos domesticos.
+</p>
+
+<p>Ninguem podia compreender tal horror á rapariga, nem ella, que se consumia e
+chorava<span class="pn">{68}</span> sem consolação por vêr a mudança brusca do
+seu Manoel.</p>
+
+<p>Quando se levantou estava pálido, cambaleava, e uma tristeza profundissima
+lhe encovava os olhos.</p>
+
+<p>No primeiro dia em que sahiu, o seu cuidado foi logo ir procurar a Gertrudes
+Zarôlha, que encontrou sentada á porta da casa, fiando e conversando com o gato
+preto gordo e pesado, seu unico companheiro e amigo.</p>
+
+<p>O Manoel não esteve com ceremonias, foi direito ao fim. Contou á velha tudo
+quanto tinha visto na <em>Fonte do Inferno</em> quando viera tarde da feira, e
+exigiu explicações completas sob a ameaça duma sóva se ella não quizesse dizer
+a verdade.</p>
+
+<p>Ao principio a Gertrudes indignou-se, pôs as mãos no peito, jurou a sua
+inocencia e negou que fosse feiticeira.</p>
+
+<p>&mdash;Na <em>Fonte do inferno</em>?!</p>
+
+<p>&mdash;O Manoel que não sonhasse em tal&mdash;<em>crédo!</em> <em>cruzes,
+canhoto!</em> Fôra aquelle patife do Próspero que levantara aquella calúnia e
+dizia a quem o queria ouvir&mdash;que fôra ella quem chupara o filho da fidalga...
+</p>
+
+<p>Mas o Manoel atalhou:&mdash;não negassse a Senhora Gertrudes; tinha-a elle visto,
+ora essa! Querer dizer-lhe que não era verdade uma coisa que elle mesmo vira,
+com aquelles<span class="pn">{69}</span> mesmos olhos que a terra havia de
+comer?!... Demais, não tinha nada com a sua vida nem o contaria a ninguem, pois
+até lhe estava muito agradecido por o têr ensinado a livrar-se de tamanho
+perigo. Agora o que queria saber era a verdade&mdash;sobre a Maria do Próspero.
+Seria ou não certo tê-la visto abraçar o <em>Senhor</em>?... Seria ou não certo
+o sêr ella feiticeira a valer?! Podia têr-se enganado... podia-a têr confundido
+com outra... Ás vezes, e como foi ao longe...</p>
+
+<p>Era a última esperança, e a ella se agarrava com todo o afinco de quem não
+quer perder uma dôce ilusão.</p>
+
+<p>E pensava, horrorisado, que aquilo poderia sêr verdade e teria que deixar de
+pensar na Maria, agora que a paixão por ella chegara ao halucinamento,
+hesitante entre o amôr e o odio.</p>
+
+<p>Quanto daria para que a Gertrudes lhe désse a certeza de que os seus olhos o
+tinham iludido, quanto daria!... Tornar a têr na Maria a confiança que tinha
+dantes; podê-la levar para a sua casa, como ainda na vespera lhe dissera a mãe,
+que morria pela rapariga&mdash;tão trabalhadeira, tão desembaraçada e bôa... Não
+tinha nada, mas isso o que importava? Ella, a Clara do Rezadeira, não se
+importava nada com isso e aconselhava-lhe a que escolhesse<span
+class="pn">{70}</span> antes uma rapariga de trabalho do que uma com dinheiro,
+que nada vale quando dá em mãos que o não sabem guardar nem aumentar.</p>
+
+<p>Como elle esquecia, evocando a formosa rapariga, a pálida Terezinha, que
+lentamente se ia definhando e morrendo aos poucos, ao compasso surdo e monotono
+do seu tear!...</p>
+
+<p>Mas a Gertrudes foi impiedosa. A pouco e pouco começou a dizer tudo;
+primeiro timidamente, tenteando o assunto, depois entusiasmando-se, contando
+detalhes, dizendo coisas que arrepiavam e indignavam o Manoel.</p>
+
+<p>Era certo e mais que certo sêr a Maria feiticeira! Havia pouco tempo que
+aprendera, mas já a consideravam das mais finas e das mais queridas do
+<em>Senhor</em>.</p>
+
+<p>&mdash;O lobis-homem que tinha visto&mdash;mas isso em grande segredo, porque tinha
+medo de levar alguma sóva&mdash;era o Próspero velho. Andava com o fado ha tantos
+anos! Não tinha sorte nenhuma, coitado!</p>
+
+<p>Que de historias lhe contou, e elle ouviu pasmado, vencido por aquella
+verdade irrefutavel:&mdash;a Maria era feiticeira!</p>
+
+<p>A Gertrudes comentava com gestos curtos e vozes de confidencia:&mdash;Ora essa!
+De que se admirava? Sempre lhe dissera que não era mulher capaz para um homem
+de brio e de honra.<span class="pn">{71}</span></p>
+
+<p>Tinha-lhe odio, o odio implacavel das velhas criaturas despresiveis aos que
+têm a insolencia da alegria, da juventude e da beleza. E então, depois que a
+rapariga dissera numa sacha, entre as gargalhadas do rancho, que não queria
+estar ao pé della porque lhe podia dar quebranto ou chupá-la como fizera ao
+filho da fidalga, a Gertrudes não a podia tragar.</p>
+
+<p>&mdash;Se fosse com a Terezinha,&mdash;continuava convencedora&mdash;com essa era de sua
+aprovação. Uma rapariguinha tão recolhida, sem uma <em>nota</em>, sem más
+palavras para ninguem, e sempre tão bôa, tão condoïda! Mesmo um anjo do céo!
+</p>
+
+<p>O Manoel calava-se, abismado no seu desgosto, não podendo seguir-lhe a
+tagarelice nem dizer uma palavra que lha fizesse estancar. De quando em quando,
+uma palavra ou outra feria-lhe o ouvido, chamando-o á realidade, aos repelões,
+sobresaltando-lhe ainda mais a alma amarfanhada.</p>
+
+<p>Por vezes já a imagem da Terezinha, com a sua esbelteza delicada, o seu
+vestido escuro de luto aliviado, o sorriso maguado da sua bôca virgem de
+beijos, se começava a esboçar na sua memoria. Via-a córada como a romã quando
+acertava de lhe dirigir a palavra, sofredora e resignada quando o sabia mais
+prêso pelos encantos de Maria; lembrava-a<span class="pn">{72}</span> fugindo
+arisca da porta para o espreitar da janela, mal assomava ao cimo da rua com os
+seus ares triunfantes, bamboleando-se com a importancia de janota de
+aldeia.&mdash;«Coitadinha! Gostava tanto delle! Emquanto esteve doente, nunca ella
+deixou apagar a lampada á Senhora do Castelo...</p>
+
+<p>O Manoel afastou-se por fim&mdash;a velha já o enjoava com as suas historias. E,
+ao sahir dali, pensava com funda melancolia em todo o passado extinto, nessa
+alegria radiosa que não voltaria mais. Da sua vida, tão profundamente abalada,
+nem a si mesmo sabia dar conta.</p>
+
+<p>Quando subia vagaroso e preocupado a rua estreita e ingreme, os seus olhos
+poseram-se com sobresalto na Maria do Próspero, que caminhava em sentido
+contrario, cabisbaixa, os braços cahidos ao longo do corpo, os olhos pisados
+postos no chão, o fato em desalinho de quem perdeu o gosto e a garridice.</p>
+
+<p>Que mudada estava! Nem parecia a mesma,&mdash;não a reconheceria por certo fóra
+dali.</p>
+
+<p>O rapaz, olhando-a, sentiu subir-lhe do largo peito um soluço doloroso.</p>
+
+<p>Meteu-se na sombra duma porta e deixou-a passar, avergada ao pêso da
+tristeza e do remorso do seu pecado sinistro.<span class="pn">{73}</span></p>
+
+<p>Estremecia de horror como se a visse ainda na noite demoníaca, cuja
+lembrança o perseguia como uma ideia fixa de monomaníaco.</p>
+
+<p>Como podia ser feiticeira uma rapariga tão linda, tão alegre, tão
+sincera?!...</p>
+
+<p>Mas era-o, tinha a certeza, porque a vira abraçando o <em>homem
+vermelho</em> de negros pés de forquilha, e porque a Gertrudes lho afiançara
+havia instantes.</p>
+
+<p>Todo o pavôr daquella noite tragica o tomou de novo, e involuntariamente
+evocou o <em>sabbat</em> infernal:&mdash;as luzinhas bailando, entrechocando-se, e
+afastando-se num compasso rítmico; as gargalhadas que soavam como crucitar de
+corvos; os olharapos correndo, com o seu unico olho a furar-lhes a testa; os
+lobis-homens galopando, no seu fadario triste; avejões, diabitos galhofeiros,
+lémures, trasgos, duendes, feiticeiras, e, sobre tudo, como ferro em braza a
+causticar uma chaga, a recordação da cêna em que a Maria abraçava o <em>homem
+vermelho</em> e lhe servia de estrado.</p>
+
+<p>Era de endoidecer!</p>
+
+<p>Quando despertou desse pesadelo de acordado, já a Maria ia longe, andando
+lentamente, acurvada pelo imenso desgosto de vêr o Manoel tão diferente do que
+fôra, e sem razão nenhuma que ella lhe désse!<span class="pn">{74}</span></p>
+
+<p>Se ao menos soubesse explicar o motivo porque tão cruamente a repelira
+durante toda a doença, quando ella passava as noites sem se deitar, sempre
+pronta á primeira voz,&mdash;uma verdadeira filha para a Clara do Rezadeira, que já
+lhe queria como tal!...</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Alguns mêses depois, os sinos da antiga igreja matriz repicavam
+freneticamente mostrando o entusiasmo do sacristão pelo casamento do Manoel com
+a Terezinha da Zéfa do Padre.</p>
+
+<p>A noiva ia radiante, mais linda do que nunca. Os olhos brilhantes, os labios
+ardentes, as faces ligeiramente córadas pela felicidade inesperada que a
+chamava á vida, quando ia já caminhando para a morte, ao compasso monotono do
+tear subindo e descendo no contínuo trabalho.</p>
+
+<p>Satisfeito e feliz, tambem o Manoel ia, triunfante, com o seu fato preto de
+pano fino, o seu chapéo lustroso, a sua fina camisa engomada a primôr, ao lado
+da noiva&mdash;uma santinha do altar!, dizia a Gertrudes benzendo-se.</p>
+
+<p>Tambem elle se sentia alegre e despreocupado, sem pensar na pobre Maria do
+Próspero, que curtia sósinha, num desespero tôrvo e sem remedio, a sua derrota
+miseravel.<span class="pn">{75}</span></p>
+
+<p>Quando a Gertrudes Zarôlha começou a espalhar o que se passara, o que vira o
+Manoel na noite em que viera mais tarde da feira, por se têr demorado a
+conversar com uns amigos na taberna do Geitoso, a Maria teve um violento acesso
+de cólera, uma rubra indignação, que estava na logica da sua forte e sadia
+natureza. Quiz bater na velha, que fugiu espavorida, gritando-lhe que fosse
+perguntar ao Manoel&mdash;e elle lhe diria tudo quanto vira...</p>
+
+<p>E ella fôra logo, forte da tranquilidade da sua consciencia, certa de que
+elle estaria ao seu lado para a defender de tão absurda acusação...</p>
+
+<p>Mas quando ouviu da bôca delle a confirmação dos ditos da velha, quando elle
+lhe atirou com despreso o epíteto de <em>feiticeira</em>, sucumbiu. Ficou
+quieta, a olhá-lo pasmada, sem encontrar uma palavra para se defender, cheia de
+dúvidas e de desânimo... Sem a confiança do Manoel, o que podia fazer?!</p>
+
+<p>E desandou dali, com grossas lagrimas a rolarem-lhe pelas faces, e um aperto
+na garganta que a estrangulava.</p>
+
+<p>Fechou-se em casa; e, sem ninguem que a consolasse, nenhuma alma compassiva
+que a ajudasse a levantar daquelle abismo em que a propria consciencia
+desaparecia sob a<span class="pn">{76}</span> sugestão alheia, rebolou-se pelo
+chão, rasgou o fato, atirou contra as paredes a cabeça que sentia perdida e
+desvairada, soltou gritos que lhe despedaçavam o peito, até que, exausta, ficou
+como morta no meio da casa. Ao voltar do trabalho é que o pai a levou para a
+cama, limpando, num repelão, á camisa suja de suor e poeira, uma lagrima que
+teimava em rebolar-lhe pela face encarquilhada e dura.</p>
+
+<p>&mdash;A sua pobre filha, a alegria da sua vida&mdash;em que estado a encontrava!
+Maleitas ou mau olhado, espirito ruim que lhe entrara no corpo e já a não
+largaria...</p>
+
+<p>Quando voltou a si, pesou bem a desolação da sua vida, e chorou toda a sua
+esperança, a sua alegria como a sua mocidade exuberante que tinham fugido
+espantadas diante daquella noite negra e sem fim.</p>
+
+<hr class="dotted">
+
+<p>Emquanto os sinos cantavam na manhã clara, de sol radioso e céo azul em
+festa, as alegrias do casamento da Terezinha com o Manoel da Clara, a
+caldeirinha magica tilintava o seu risito escarninho e macabro e todos a
+consideravam com admiração e respeito pelo sobre-natural.</p>
+
+<p>A Maria, agora feiticeira conhecida e apontada por todos, já não canta nem
+vai ás romarias.<span class="pn">{77}</span></p>
+
+<p>Nos trabalhos do campo, as mulheres e as crianças afastam-se della
+apavoradas, e os homens, lamentando-a, não têm coragem de vencer esse pavôr.
+</p>
+
+<p>Um brilho ardente de febre queima sempre os seus lindos olhos negros, que
+vagueiam inquietos, num mêdo doentio e tragico.</p>
+
+<p>Atormentada de visões, mordida de maus olhados, mêses inteiros prêsa de
+delirios histericos, sente-se, na verdade, transportada nas azas do vento para
+sitios ermos em que luzinhas saltitam em rondas buliçosas, lobis-homens passam
+em cavalgadas doidas para se irem espójar nas encruzilhadas sinistras, moiras
+encantadas tecem em teares de oiro contando as saudades antigas da sua vida
+humana, e olharapos, duendes, lémures e trasgos povôam as noites horrificas de
+<em>sabbat</em>.<span class="pn">{78}<br>{79}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h1><a name="SECTION00300000000000000000">III<br>
+Diario duma criança</a></h1>
+
+<p><span class="pn">{80}<br>{81}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h2><a name="SECTION00310000000000000000">DIARIO DUMA CRIANÇA</a></h2>
+
+<p>Creio que não é bem exáto o titulo que escrevi no alto da página. Isto não é
+verdadeiramente o <em>Diario duma criança</em>, não é, mas sim a minha vida
+toda recordada dia por dia, hora por hora, com uma precisão de factos e
+sensações de que o Chico muito se admira.</p>
+
+<p>Decerto não sou muito velha&mdash;fiz em março vinte e dois anos&mdash;mas, assim
+mesmo, elle acha extraordinario como os episodios da minha infancia se me
+fixaram na memoria tão vivamente, e os posso recordar com tanta nitidez, como
+se a minha alma tivesse a receptibilidade mecânica de um fonógrafo.</p>
+
+<p>Não pensei nunca em escrever; sei, tão pouco, que nenhuma novidade pode
+trazer ao mundo a minha prosa descuidada e frouxa.<span class="pn">{82}</span>
+</p>
+
+<p>Fui sempre pouco estudiosa e nenhuma honra dei aos meus professores. O
+Chico, que é um sábio, é que me disse, uma tarde, resumindo toda uma longa
+palestra em que eu lhe contei os mil incidentes de vida estranha em que o meu
+pobre espirito se debateu até chegar á dôce paz da nossa felicidade de hôje:
+</p>
+
+<p>&mdash;«Se tu escrevesses isso tal qual o contas, fariamos um belo estudo de
+psicologia infantil!...</p>
+
+<p>Eu, que adoro o meu Chico, não o queria desgostar, mas escrever tudo quanto
+sentia, tudo quanto me lembrava têr sofrido, parecia-me tão dificil!... Vida
+toda feita de sensações e estranhêzas de caráter, quem poderá têr interesse em
+conhecê-la?!</p>
+
+<p>Oh que coisa tão custosa de realisar, este desejo, quasi imposição, do
+Chico!...</p>
+
+<p>As minhas memorias são leves fios de aranha que não servem para urdir e
+tecer utilmente uma sólida obra caseira.</p>
+
+<p>Escrever o <em>Diario</em> da minha infancia, eu que nunca tive paciencia de
+rabiscar cartas muito grandes&mdash;a não sêr para o Chico!...</p>
+
+<p>Depois, sei unicamente escrever o que sinto, e os escritôres&mdash;dizem&mdash;não
+fazem assim. O Chico sente os versos que faz tão lindamente, mas esse... oh
+esse é outra coisa!<span class="pn">{83}</span></p>
+
+<p>Por muito tempo discutimos, mas, como o senhor meu marido é adoravelmente
+teimoso e eu não sei ainda contrariá-lo, deixei-o ir uma noite destas ao
+teatro, recusando-me a acompanhá-lo a pretexto de ter sôno, e quando voltou,
+eram duas horas da manhã, entreguei-lhe o manuscrito, que leu sem descansar,
+tal qual o mandou imprimir logo no dia seguinte.</p>
+
+<p>Isso é que me custou!... Porque, depois de o escrever duma só vez, e sem
+hesitar diante duma unica palavra que não correspondesse ao meu pensamento,
+deixando correr a penna nervosamente, em galopada doida, quando as recordações
+vinham em montão, chamadas umas pelas outras, numa lufada de quasi vertigem,
+sempre imaginei que elle emendaria aquilo e lhe daria uma fórma mais corréta.
+</p>
+
+<p>Mas&mdash;qual historia!&mdash;o querido <em>infame</em> teve o descaramento de se rir
+na minha cara e de me responder:</p>
+
+<p>&mdash;Que se o emendasse estragaria tudo!</p>
+
+<p>Foi assim que sahiu, tal qual o escrevi, numa hora de febre.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Chamo-me Raquel. Creio que este nome é hereditario na minha familia, porque
+a minha<span class="pn">{84}</span> avó e a mãe da minha avó eram tambem
+Raquel. Não sei. De genealogias, como de tudo mais, entendo pouco.</p>
+
+<p>O mais longe que posso recordar na minha existencia humana, vejo-me feliz.
+</p>
+
+<p>Era uma grande casa de aldeia, a nossa. Havia ali de tudo quanto pode
+desejar uma criança acostumada á simplicidade da vida campestre.</p>
+
+<p>Os pateos eram habitados por uma multidão de animais domesticos, que nos
+conheciam bem, de tanto milho que ás escondidas lhes deitavamos.</p>
+
+<p>Eu era a mais velha, e os meus quatro irmãositos seguiam-me alegremente
+pelos campos fóra, como um rebanho segue o pastor. Nada nos era defêso, nem
+parede que não tivessemos escalado, nem arvore que não conhecessemos como os
+nossos dedos. Os frutos eram vigiados desde que as arvores se cobriam de
+prometedoras flôres, e antes, muito antes da familia os vêr em casa, já nós
+tinhamos feito a nossa primeira escôlha. Quando a nossa pobre <em>burrica</em>
+descansava do fatigante trabalho da nóra, iamos desamarrá-la da manjedoura,
+saltavamos-lhe para cima, e fazíamo-la trotar pelos caminhos pedregosos da
+aldeia como um <em>pur-sang</em> trotaria nas avenidas areadas dum luxuoso
+parque.<span class="pn">{85}</span></p>
+
+<p>Felizes tempos!... Mas, no fim de contas, eu era uma rapariga; ás vezes
+lembrava-me disso, e nem sempre estava disposta a fazer de general no exercito
+<em>fraternal</em>.</p>
+
+<p>Muitas vezes mesmo, o instinto do meu sexo pedia-me brincadeiras mais
+socegadas: queria <em>governar casa</em>, <em>sêr a mãe</em>, exercer a minha
+atividade de mulher trabalhadeira e que conhece o seu logar. Chamava então as
+pequenas da minha idade e brincavamos <em>ás dônas de casa</em>: improvisando
+os nossos lares em qualquer recanto do jardim, servindo de baixela fragmentos
+de loiça, <em>cosinhando</em> pétalas de flôres e hervas que tinhamos mais á
+mão; indo ao tanque lavar a roupa das bonecas, <em>as nossas filhas</em>;
+carregando a agua com a cantarinha em equilibrio sobre a <em>rodilha</em>, no
+alto da cabeça; tendo as nossas disputas e conversas como viamos ás
+<em>senhoras visinhas</em>, lá no povo. Ralhavamos com os <em>homens</em>, os
+meus irmãositos&mdash;porque entravam tarde, andavam por lá com os amigos...</p>
+
+<p>Na aldeia não havia meninas <em>finas</em>, e então arranjara as minhas
+amigas e companheiras nas humildes filhas dos nossos caseiros e serviçais.</p>
+
+<p>Tinha os seus modos desempenados, os seus gostos simples, e, apesar disso,
+não me parecia com ellas!<span class="pn">{86}</span></p>
+
+<p>Sempre me hade lembrar o que escandalisava meus pais quando afirmava
+perentoriamente: que de todas as casas da vila proxima, onde as havia muito
+bôas, era a mais humilde de todas a que mais me agradava.</p>
+
+<p>Cuidaram que era uma perversão do meu senso estético, mas vendo-a ha pouco,
+já depois de mulher, confesso que não mudei de opinião. É que sentia
+intuitivamente o pitoresco que os nossos artistas andam hôje procurando com
+tanto afan...</p>
+
+<p>Na verdade a casinha térrea, construida sobre a rocha onde tinham cavado os
+degraus, com seu alpendre e o seu pé de videira a ensombrá-lo, era duma
+originalidade, na sua singeleza primitiva, que me encantava.</p>
+
+<p>Nunca, como tantas crianças na minha idade, me lembrei de imitar a mamã, as
+tias, ou as senhoras das nossas relações. Nada! Só procurava sêr aquilo que
+nunca conseguiria, por mais esforços que empregasse.</p>
+
+<p>Melhor fôra que tivesse conseguido o meu desejo e ficasse como as outras
+raparigas da minha aldeia: uma perfeita camponeza, cheia de saude e de alegria,
+sem mais cultura do que a dellas!...</p>
+
+<p>&mdash;Meu Deus! A delicada ternura do Chico compensa-me de muitos desgostos
+passados,<span class="pn">{87}</span> abre-me um caminho largo a uma existencia
+toda inundada de sol; mas, quando penso em quatro anos da minha existencia,
+sinto em mim uma tão grande repercussão de dôres passadas, que não sei quanta
+bondade lhe será precisa para mas fazer esquecer!...</p>
+
+<p>Emquanto eu suportei todos os tormentos que uma pobre criança pode sofrer,
+sequestrada de tudo quanto lhe rodeou e acariciou os primeiros anos; emquanto o
+meu espirito, sacudido pelas lutas mais violentas, angustiado pelas mais
+sombrias dúvidas, se abria á compreensão duma vida que dizem superior; emquanto
+o meu coração aprendia na dôr os infinitos cambiantes dos sentimentos
+complicados; a Rosita, a Maricas, e a Anninhas da méstra&mdash;as queridas
+companheiras da minha infancia&mdash;cresciam e faziam-se bôas e laboriosas
+mulheres, cheias de vida e saude, sem incompreensões mortificantes do seu
+proprio coração.</p>
+
+<p>Quando ellas me viram voltar á aldeia, tristemente grave, empalidecida pela
+dôr, adelgaçada pelos anos, o trajar cuidado de quem não desconhece os
+preceitos da elegancia, não compreenderam as lagrimas que bruscamente me vieram
+aos olhos e correram impetuosas pelas faces, como vaga interior vencendo todos
+os diques.<span class="pn">{88}</span></p>
+
+<p>Imaginaram&mdash;as pobres!&mdash;que eu tinha saudades das amigas de Lisbôa e as
+desprezava a ellas. Oh não, mil vezes não! Tinha uma pungente saudade do tempo
+em que o meu espirito, não fatigado, se comprazia nas suas conversas simples, e
+em que os seus gostos naturais eram tambem o meu gosto.</p>
+
+<p>Chorava desesperadamente a minha alegria, para sempre tocada de mal
+incuravel; tinha desprezo&mdash;e muito&mdash;por essa educação que me roubara quatro
+anos de vida feliz e proveitosa, dando-me em troca uma ignorancia mais completa
+do que a sua! Porque as minhas amigas e companheiras de infancia sabiam muita
+coisa util, e eu apenas me podéra convencer de que não sabia nada&mdash;o que é
+altamente desconsolador.</p>
+
+<p>Como já disse, durante a infancia considerei-me feliz. A minha mãe era
+bondosa, como muita gente o é, porque assim tinha nascido, pela mesma
+fatalidade psicologica que a podia têr feito nascer uma criminosa. Mas juntava
+a essa inconsciente bondade muita justiça e bom-senso.</p>
+
+<p>Cuidava escrupulosamente do amânho interior da nossa casa, não deixando as
+criadas levantar mão dos serviços, com uma disciplina que invejariam muitos
+instrutores de recrutas. Rezava as orações obrigatorias de cada dia;<span
+class="pn">{89}</span> cabeceava á bôca da noite, antes de se acender o
+candieiro para o serão; e depois de espertar era a última a deitar-se em casa,
+depois de vêr todas as portas e apagar todas as luzes&mdash;não, fôsse o inimigo
+sonso que se lhe metesse algum ladrão em casa, ou as raparigas se descuidassem
+com o lume! De manhã era a primeira a madrugar, para a mesma labuta de todo o
+ano,&mdash;que era afinal a de toda a sua vida.</p>
+
+<p>De sabedorias para si, importavam-lhe pouco, mas queria-as para mim, que no
+seu entender devia tornar-me uma verdadeira <em>menina educada</em>: tocando
+piano, ataviando-me com geito de quem sabe, que não privasse com as
+<em>raparigas da rua</em>, que lêsse romances para têr umas luzes de historia,
+que bordasse a matiz e a escama de peixe ou a casca de castanha, cantasse ao
+piano em francês ou italiano, soubesse, emfim, estar numa sala...</p>
+
+<p>Duma tão grande infelicidade que a unica filha tinha modos de rapaz,
+detestava o piano, adormecia a lêr os mais pateticos romances, e fazia a cabeça
+doida ao padre José, que nos dizia a missa na capela da casa e toda a semana
+carregava com a pesada cruz de nos iniciar nos misterios da lingua portuguêsa.
+</p>
+
+<p>Ralhavam comigo, mas, por mais que ralhassem, não conseguiam fazer-me
+compreender a<span class="pn">{90}</span> possibilidade de estar perfilada numa
+cadeira a receber as visitas na sala, como via as filhas do recebedor e as do
+medico da vila quando vinham á nossa casa. Francamente, abominava as adoraveis
+meninas, que ficavam com sorrisos murchos ao cimo da escada, recusando-se a
+seguir-nos á quinta com mêdo de estragar os lindos vestidos á moda, esses
+vestidos aparatosos, cheios de fitas e rendas, que usam na provincia as meninas
+ricas.</p>
+
+<p>Eu, que era uma selvagem incapaz de tolerar um colête justo ou umas botas
+apertadas, que pedia para que me cortassem o cabelo para não sofrer os
+penteados, que só gostava dos vestidos depois de afeitos ao corpo pelo uso,
+olhava com verdadeiro assombro aquellas meninas modelos.</p>
+
+<p>Ás vezes, a minha bôa Maria Augusta tentava apertar um pouco os cordões do
+colête,&mdash;«para me tornar elegante»&mdash;mas eu protestava tão energicamente que
+tinha de desistir logo, dizendo-me arreliada:</p>
+
+<p>&mdash;«Ó menina, é preciso sofrer para sêr formosa!</p>
+
+<p>&mdash;«Pois sim, espera por essa... Eu nem quero sofrer nem quero sêr formosa!
+</p>
+
+<p>Uma vez levantei-me cedo, estava uma manhã gloriosa de inverno, deste
+inverno tão nosso, em que o azul do céo é limpo, puro e<span
+class="pn">{91}</span> transparente como se fabricado fôsse pelo mais
+escrupuloso dos artistas e da mais preciosa das porcelanas.</p>
+
+<p>Em casa apenas as criadas traquinavam na cosinha, encetando a labuta do dia,
+e a Maria Augusta abria janelas e portas para a limpeza do rez-do-chão.</p>
+
+<p>Acordara cedo; a chilreada dos pardais madrugadores era o meu despertador.
+</p>
+
+<p>O sol começava a aureolar o cume dos montes, e, como a nossa casa ficava ao
+cimo dum vale, depressa me inundou o quarto duma luz rosea que enchia de
+alegria os meus olhos e me fazia cantarolar e rir sósinha, como se estivesse no
+maior divertimento.</p>
+
+<p>E vesti-me á pressa, com grande abundancia de gestos, batendo na agua fria,
+que atirava para a cara com as mãos em concha, satisfeita e feliz como se uma
+alma nova despontasse em mim.</p>
+
+<p>Em baixo, a Maria Augusta e as outras criadas festejaram o meu sorriso
+jubiloso, a minha madrugada feliz.</p>
+
+<p>Correndo para o pateo, comecei por dar liberdade a toda a capoeira que ainda
+permanecia fechada, por soltar o Tigre que os criados já tinham acorrentado á
+sua grilheta diurna, e fui á estrebaria vêr a nossa bôa Cacilda, a burra, que
+me cumprimentou com um zurrar festivo.<span class="pn">{92}</span></p>
+
+<p>Iniciando assim o que a Maria Augusta chamava irreverentemente a série dos
+meus disparates, não parei no principio, o que seria prova de pouca
+independencia de caráter... Desprender a Cacilda e trazê-la para a horta, para
+que ella podesse saborear á vontade as couves que o velho hortelão guardava
+avaramente dos seus dentes de apreciadora, pareceu-me a coisa mais natural do
+mundo.</p>
+
+<p>Depois, ella bem almoçada, e naturalmente tão alegre como eu e como o Tigre,
+que a seguiamos satisfeitos de a vêr escolher uma a uma as mais tenras folhas
+da horta, achei tambem natural, como um simples remate de tal festa, que
+fôssemos dar um passeio até á mata.</p>
+
+<p>Chamando a Cacilda, acariciei-lhe o pescoço, dei uma volta á corda na mão, e
+dum pulo fiquei-lhe montada sobre o dorso como um rapaz.</p>
+
+<p>Um pequeno assobio ao Tigre preveniu-o da minha resolução, e ahi vamos nós
+todos três, alegres e felizes, porque o céo estava limpido e o sol brilhava,
+porque o ar era puro e os campos reverdeciam numa jovialidade de primavera
+proxima.</p>
+
+<p>A meio da carreira sobreveiu-nos um obstaculo inesperado, na vera pessôa do
+bom padre Zé, que já voltava das suas arvores em<span class="pn">{93}</span>
+cata do almoço, e fez estacar a Cacilda com os seus gestos e gritos indignados.
+</p>
+
+<p>&mdash;«Para onde vai a menina assim montada?!</p>
+
+<p>&mdash;«Dar um passeio á mata. É para abrir a memoria e o apetite&mdash;respondi-lhe a
+rir.</p>
+
+<p>&mdash;«Mas isso não são modos de menina bem educada!&mdash;apostrofou-me aflito.</p>
+
+<p>&mdash;«Eu não sou <em>menina</em>, nem <em>bem educada</em>!&mdash;retorqui-lhe numa
+gargalhada.</p>
+
+<p>&mdash;«Se a mamã sabe!....</p>
+
+<p>&mdash;«Não lhe diga nada, que eu já volto.</p>
+
+<p>E, dando um sinal á Cacilda, partimos a galope, deixando o bom do padre no
+mais profundo pasmo.</p>
+
+<p>Agora são os medicos os primeiros a preconisar ás senhoras essa maneira de
+cavalgar, e não tardará que a moda a impônha como a última palavra do
+<em>chic</em>. Como a razão é intuitiva e se faz sentir na inteligencia liberta
+da criança!</p>
+
+<p>Mas á volta é que fôram ellas! Tinha levantado um verdadeiro temporal de
+protestos e queixas com os meus átos, tão espontaneos e naturais quanto me
+pareciam humanos e justos...</p>
+
+<p>Pois não seriam elles meritorios: abrir as prisões, soltar os presos, dar de
+comer aos<span class="pn">{94}</span> que tinham fome, e em seguida premiar-me
+a mim mesma indo passear?!</p>
+
+<p>Não o entenderam assim em casa, lá porque as galinhas tendo encontrado
+aberto o portão do quintal tinham acabado a destruição da horta, que a Cacilda
+encetara com tanto brio! O hortelão parecia doido e a minha pobre mamã
+benzia-se assustada, temendo que eu tivesse o diabo no corpo.</p>
+
+<p>Fui chamada ao escritorio, áquelle escritorio de paredes revestidas de
+velhos livros onde o meu pai recebia os caseiros, fazia a sua escrituração, e
+lia, a maior parte das vezes, os seus in-fólios mofentos.</p>
+
+<p>O caso era realmente grave, mais do que poderia presumir, para que assim se
+tivesse apelado para a autoridade paterna...</p>
+
+<p>Assentado na larga cadeira antiga, de coiro lavrado e braços abertos num
+carinhoso aféto, onde elle descansava as suas finas mãos de intelectual, diante
+do pesado bufete de pau santo torneado em três cordas, como um juiz austero, o
+meu pai admoestou-me severamente por tanto disparate e terminou por dizer:&mdash;que
+me tornava o escandalo da familia e assim não podia continuar...</p>
+
+<p>E como esta outras muitas fiz, que não acabaria se as fôsse a contar
+todas.<span class="pn">{95}</span></p>
+
+<p>A mamã queixava-se da minha extrema ignorancia e incapacidade de sêr
+apresentada diante de gente, o que o meu pai corroborava dizendo por seu
+turno:&mdash;sêr absolutamente preciso, e muito urgente, mandar vir uma professora
+que tomasse conta de mim e me sujeitasse a uma «disciplina de ferro».</p>
+
+<p>&mdash;Que não, isso que não!&mdash;acudia a minha mãe&mdash;não queria estranhas metidas
+em casa a vêrem e a ouvirem tudo quanto se faz e em pouco tempo a saberem mais
+da nossa vida do que nós proprios. Nem a gente pode falar á sua vontade, nem
+têr as suas coisas, porque emfim não ha casa que as não tenha, sem que tudo se
+saiba e se comente... Depois, ceremonias, <em>niquices</em>, exigencias...
+nada, isso não!</p>
+
+<p>&mdash;«Pois é o unico meio:&mdash;opinava o papá triunfante&mdash;uma senhora que lhe fale
+uma lingua estrangeira e que a sugeite a um regimen invariavel.</p>
+
+<p>&mdash;«Nada, um colegio é ainda o melhor; mete-se lá a pequena e fica-se livre
+de cuidados.</p>
+
+<p>Meu pai hesitava,&mdash;tinha lá as suas ideias contra os internatos&mdash;e estou em
+crêr que me preferia ignorante, como a <em>Zéfinha da horta</em> ou a
+<em>Teresita do barbeiro</em>, a têr que me mandar para um colegio.<span
+class="pn">{96}</span></p>
+
+<p>Os meus irmãositos todos se afligiam quando se ventilava a magna questão,
+que os ameaçava da minha ausencia, e eu, sem bem saber o que preferia, ia
+gosando alegremente os dias na bela paz da minha aldeia florída e ensoalhada.
+</p>
+
+<p>Mal suspeitava que a desgraça estava a bater-me á porta&mdash;e mais terrivel do
+que podia imaginar! Parece-me estar a vêr entrar na cosinha de grande chaminé,
+onde se enxugava o <em>enchido</em> e as castanhas secavam no <em>caniço</em>,
+a mulher dos recados que fôra á vila buscar o correio, e me dizia, alviçareira:
+</p>
+
+<p>&mdash;«Olhe, menina, aqui vem uma carta para a mamã. É do seu tio Manoel; já lhe
+conheço a letra.</p>
+
+<p>Muito alegre, arrebatei-lha das mãos e fui-me pela casa fóra a gritar pela
+mamã até dar com ella no celeiro a receber uma <em>pensão</em>. Lembro-me
+bem&mdash;<em>cincoenta e sete!</em>&mdash;gritava o caseiro, e a mamã, muito serena, ia
+apanhando um grão de milho por cada alqueire que o homem despejava na tulha.
+Quando entramos&mdash;eu e os meus quatro irmãositos&mdash;como se fôssemos uma revoada
+de pardais bulhentos, ella toda se agastou...&mdash;Como isto me ficou nitido na
+memoria!&mdash;Quando viu de quem era e o que dizia a carta, correu toda satisfeita
+em busca do marido, emquanto<span class="pn">{97}</span> nós aproveitavamos a
+falta de vigilancia para saltarmos todos para dentro do milho. Eu, que era a
+maior, enterrava-me até á cinta nos grãos amornados e enchia os bolsos do meu
+bibe branco, para levar uma lembrança ao pombal. Um dos pequenos gritava que as
+suas botas, de canos muito largos por têrem pertencido ao mais velho, levariam
+mais dum saco de milho, para a ração suplementar da Cacilda.</p>
+
+<p>Riamos perdidamente, atirando uns aos outros aquella chuva de grãos muito
+sêcos, ainda cheirando a campo e ao sol das eiras onde se aloirara e brunira!
+</p>
+
+<p>O caseiro achava muita graça aos meninos&mdash;podéra não!&mdash;e na sua cabeça
+lanzuda esboçava-se, talvez, o pensamento finório de se enganar na conta com
+alguns alqueires a menos. É provavel que assim sucedesse, porque a carta do tio
+Manoel tinha transtornado por tal fórma a mamã, que até se riu quando nos veiu
+encontrar a todos aninhados dentro do milho, e não passou revista ás nossas
+algibeiras quando saltamos para fóra e nos safamos com presteza&mdash;não fôsse
+ainda cerceada a merenda que levavamos aos nossos protegidos da capoeira, do
+pombal e da estrebaria!</p>
+
+<p>Já fóra e ainda ouviamos a contagem dos alqueires que entravam para a tulha,
+arrastada<span class="pn">{98}</span> e monotona. Os bois, jungidos ao pesado e
+primitivo carro de duas rodas, estacionavam no quintal, ainda carregados com os
+sacos cheios com o resto da <em>pensão</em>, guardados por uma criancita
+vestida de jaqueta, calças compridas e grande chapéo, como um pequeno homem de
+caricatura. O que nós rimos! Era o filho do caseiro, o <em>Tonito</em>, mais
+novo do que o mais novinho dos meus irmãos, mas já util como uma pessôa
+crescida.</p>
+
+<p>São assim os filhos do nosso povo, duma sujeição ao trabalho que os
+predispõe para uma longa existencia paciente, sofredora e productiva.</p>
+
+<p>Como esse foi o último dia feliz da minha infancia, não me esqueceram
+nenhuns destes detalhes, nem o cheiro á poeira do milho e aos queijos da Serra
+da Estrella, que secavam em tábuas prêsas ao této do celeiro por cordas
+isoladas com têstos de barro, por causa dos ratos, providencias caseiras da
+minha mãe.</p>
+
+<p>Desde essa luminosa tarde de outôno, ainda quente como se o sol cahisse a
+prumo, num estiramento inesperado de estio, e já perfumada pelos frutos
+maduros, que se recolhiam á pressa, e pelo môsto de cheiro forte que ferve nas
+dornas ainda antes de recolher ao lagar, a nossa casa transformou-se
+completamente. Eram só conferencias sobre o<span class="pn">{99}</span> que se
+daria aos <em>manos</em>, e mais os lençois bordados, a coberta de damasco para
+a cama, as toalhas de linho com ricas franjas de renda de Peniche... Tudo
+quanto havia de melhor se levava para <em>o quarto da laranjeira</em>, o mais
+vasto e cómodo da casa, o proprio quarto de meus pais, que tudo achavam pouco
+para receber condignamente o mano Manoel, que voltara havia pouco tempo do
+ultramar, casado com uma estrangeira. E assim passaram oito dias em que se não
+pensou nem falou noutra coisa.</p>
+
+<p>A minha mãe fazia esforços de memoria por se recordar bem nitidamente dos
+traços fisionomicos do irmão, como se volvidos tantos anos gastos em trabalhos
+e fadigas, elle podesse têr ainda o rosto levemente rosado, o buço mal lhe
+sombreando o labio superior, a cabeleira negra ondeada que lhe davam um tão
+gentil aspéto no retrato em <em>daguerreotipo</em>, tirado quando assentara
+praça em cadete, e que nós não nos cansavamos de ir vêr á sala de visitas, no
+seu estojo forrado de veludo granada.</p>
+
+<p>Até o Padre José afroixava a sua vigilancia pelo nosso estudo e punha-se ao
+dispôr da mamã&mdash;para o que fôsse necessario. A minha mãe sorria benevola e
+agradecia, mas não o ocupava em coisa alguma, porque elle, muito forte no
+português e no latim e mesmo um<span class="pn">{100}</span> tanto no francês,
+tirado disso só á mêsa, diante duma travessa cheia de açorda, ou no pomar
+podando e cuidando das suas queridas arvores, era homem de alguma utilidade.
+</p>
+
+<p>Um santo, o nosso bom professor! Que saudades delle eu tive depois, quando
+comparava a sua maneira tão lhana de ensinar, a sua ingenuidade de bom,
+respondendo meio comprometido ás nossas curiosidades extemporaneas, e quando se
+atrapalhava á nossa pergunta atrevida:</p>
+
+<p>&mdash;«Ó padre Zé, para que está sempre a falar no diabo?</p>
+
+<p>Era o costume delle, o seu <em>bordão</em>.</p>
+
+<p>&mdash;«É verdade&mdash;respondia-nos muito ingenuo&mdash;é um diabo duma mania que eu
+tenho de estar sempre a falar no diabo!...</p>
+
+<p>Um bom homem, afinal de contas; um santo velho, nada fanatico, de bolsa
+franca para todas as miserias, palavras de consolação para todas as lagrimas,
+espirito bem equilibrado e muito logico, um filósofo sob a aparencia dum sólido
+camponez. Conseguira que eu aprendesse da minha lingua aquilo que ainda hôje
+sei; conseguiria&mdash;era capaz!&mdash;ensinar-me talvez o latim e até a ajudar-lhe á
+missa. O que não faria desta sua rebelde discipula a paciencia beneditina do
+bom Padre José!<span class="pn">{101}</span></p>
+
+<p>O tio Manoel era irmão mais velho da minha mãe. Sahira de casa muito novo; a
+última vez que empreendera a incómoda viagem á aldeia, era apenas cadete, como
+tirara o retrato. Depois fôra para a Africa, na ânsia de ganhar honras e
+postos. De lá percorrera quasi todas as possessões ultramarinas, sem mais se
+lembrar de escrever á familia. Só havia pouco tempo mandara noticias
+participando têr casado, e dizendo a sua resolução de voltar em breve ao reino.
+</p>
+
+<p>Alguns mêses mais tarde, nova carta dava conta da sua chegada a Lisbôa, onde
+estava tratando de se instalar, e convidava a irmã e cunhado para irem
+fazer-lhes uma visita. Na última carta, aquella que tanta impressão causara em
+todos nós, dizia:&mdash;que, em vista da dificuldade que os meus pais opunham em
+deixar a casa, viria elle visitá-los e apresentar a sua senhora.</p>
+
+<p>No dia em que deviam chegar, logo de manhã nos envergaram os fatos
+domingueiros, recomendando-nos muita cautela&mdash;não fôssem os tios julgar-nos uns
+besuntões!</p>
+
+<p>Nesse dia era escusado o <em>lembrete</em>, pois nenhum de nós pensava em
+diabruras, ansiosos como estavamos por vêr chegar os hospedes.</p>
+
+<p>O Papá partira cedo para a vila, para esperar a diligencia que traria os
+viajantes, e nós<span class="pn">{102}</span> subimos ás janelas mais altas a
+vêr se descobriamos o carro por entre as faias da estrada real.</p>
+
+<p>Lá para o meio dia descobriu um de nós uma nuvem de poeira ao longe&mdash;tal
+qual como no Barba Azul&mdash;e, logo depois, ouvimos o guizalhar da diligencia que
+já se avistava numa volta da estrada. Corremos alvoroçados a prevenir a mamã,
+que na cosinha dava as últimas instruções á criada sobre a cosedura do perú e o
+assado de leitão.</p>
+
+<p>Um quarto de hora depois apeava-se á nossa porta, entre o povo curioso, a
+mais extraordinaria pessôa que até esse tempo eu tinha conhecido.</p>
+
+<p>Depois disso, no caminho da vida, que já não é curto pelo muito que tenho
+sentido e sofrido, tenho visto bastas figuras caricaturais: gente de todos os
+modos e feitios, tipos de comedia e tipos dolorosos de tragedia, riscados em
+dois traços por Gavarny, risos disformes em pálidos abortos, exageros de
+vestuario igualmente ridiculos, ou pela extrema elegancia ou pelo extremo
+desleixo... Tenho visto de tudo, e jámais senti o pasmo que essa primeira
+pessôa estranha causou no meu espirito desprevenido.</p>
+
+<p>Os meus irmãos, em frouxos de riso, fugiram para dentro de casa, e o
+Miguelsinho, que<span class="pn">{103}</span> era o mais velho, abaixo de mim,
+puxava-me pela manga sublinhando risos muito ironicos.</p>
+
+<p>Eu, não sei porquê, não tive vontade de rir; qualquer coisa me dizia cá
+dentro de mim que era para pranto, e não para riso, a entrada daquella gente na
+minha vida.</p>
+
+<p>Primeiro apeou-se o meu tio, um vélhote bastante alquebrado, mas alegre por
+se vêr na terra natal. Abraçava toda a gente, e tratava por <em>tu</em> velhas
+que eu me acostumara a considerar avós, e que limpavam os olhos lagrimejando
+por o vêrem tão acabadinho... E elle ria&mdash;raparigada do seu tempo, todas essas
+vélhinhas, e queriam que elle estivesse um rapaz, e mais que não tinham andado
+por trabalhos e canseiras de climas inhospitos!...</p>
+
+<p>E achava extraordinario que a irmã, uma garotinha de saias curtas quando
+elle partira, estivesse já mãe de filhos...</p>
+
+<p>&mdash;«E já de cabelos brancos&mdash;visse bem o mano!...</p>
+
+<p>Atraz delle, sahiu do carro uma pequena de cinco anos, parecendo têr o
+dobro, nem bonita nem feia, extravagantemente vestida á inglesa de
+torna-viagem, e toda doutoral nas suas frases. Fôra a última a nascer, depois
+de bastantes anos de casamento, em que todos os filhos lhes tinham morrido; por
+isso era respeitada como milagre vivo.<span class="pn">{104}</span></p>
+
+<p>Por fim, quando os criados tinham carregado uma aluvião de malas,
+necessarios, sacas de linho bordadas, e tanta coisa que nos fazia arregalar os
+olhos de espanto, a nós pobres pequenos selvagens, que, a respeito de viajar,
+iamos ás quintas proximas pelo tempo da vindima e até ao rio em folgada
+pescaria uma vez por festa. Depois começou a sahir um prodigioso chapéo de
+palha envolto em gaze côr de castanha, e, a seguir, um corpo enorme vestido com
+um guarda-pó de xadrez em largas mangas perdidas.</p>
+
+<p>Era monstruosa a minha tia! Nunca lhe poude dar este nome porque o meu
+espirito se recusou sempre ao convencimento desse parentesco, que repugnava á
+minha afétividade.</p>
+
+<p>Alta como um carvalho e gorda em proporção, o que a tornava ainda mais
+exotica entre gente miuda como é a nossa. Talvez não tivesse sido feia, mas as
+feições estavam enterradas em tecido adiposo, e só naquelle deserto de cara
+branca brilhavam uns olhos metalicos e frios que nenhum sentimento conseguia
+adoçar. Quando os poisava na miudinha figura de morenita que eu era então, toda
+a minha carne se arrepiava numa tremura e os meus nervos vibravam
+desagradavelmente.<span class="pn">{105}</span></p>
+
+<p>Trazia o cabelo, já a embranquecer, cortado pelo pescoço,&mdash;<em>á
+estudanta</em>, diziam por lá as pequenas da aldeia&mdash;modos autoritarios, voz de
+comando, andar de granadeiro, e uma lingua de trapos que ninguem entendia.</p>
+
+<p>Mãos e pés não tinham fim, e o seu desembaraço irritava-me pela mania que
+tinha de fazer tudo e melhor do que ninguem, de falar alto e atirar os braços
+para a frente num gesto resoluto de jogador de <em>box</em>.</p>
+
+<p>Meu pobre tio admirava-a e escutava-a, submisso, como a um oraculo, nada
+fazendo sem a consultar.</p>
+
+<p>Sobretudo nenhuma delicadeza feminil, muito orgulhosa da sua superioridade e
+senhora da sua pessôa, dizendo mal&mdash;de <em>pórtuguês</em>, <em>e tudo quanto é
+pórtuguês, muito estupidos</em>!...</p>
+
+<p>Dizia-se filha dum banqueiro da Havana prodigiosamente rico, mas tais
+riquezas&mdash;como as de <em>Pedro Cem</em>&mdash;perdiam-se na sombra da lenda.</p>
+
+<p>Contava coisas estupendas de <em>seu papá</em>, descendente em linha réta de
+<em>grandes de Espanha</em>, pelos vistos, dos soberbos companheiros de
+Colombo... A <em>sua mamã</em>, essa era uma aristocratica <em>lady</em>, viuva
+dum membro da aristocracia britanica, que não se dedignara de aliar o seu puro
+sangue azul<span class="pn">{106}</span> ao de descendente dos audazes
+conquistadores...</p>
+
+<p>A fortuna de <em>seu papá</em> pesara por muito tempo nos destinos do
+visinho reino, como o luxo da <em>mamã</em> déra brado na côrte de Madrid e na
+vilegiatura de San Sebastian, uma vez que os dois tinham visitado a metropole.
+</p>
+
+<p>Coisas que ella dizia, que, ao certo, quem pode dizer donde vem essa gente,
+retalhos desencontrados e disparatados das raças do mundo inteiro?!</p>
+
+<p>Apreendi depois, no decorrer da nossa convivencia, por meias palavras
+escapadas a uns e a outros e por inconfidencias de pessôas das relações e que
+os tinham conhecido lá fóra, que o banqueiro cahira vergonhosamente numa
+falencia que fizera estrondo e a <em>lady</em> não passava duma aventureira,
+dessas que a Inglaterra exporta, sob a capa angelical de sérias
+<em>institutrices</em>, e que por todos os meios querem arranjar uma existencia
+mais cómoda.</p>
+
+<p>Orgulhava-se extremamente dessa sua origem britanica, como de têr nascido na
+America, como se fôsse uma legitima filha dos Estados-Unidos...</p>
+
+<p>Oh, a livre America, sonho de todos nós os que nos sufocâmos sob a pressão
+do convencionalismo europeu, como essa mulher nô-la<span
+class="pn">{107}</span> mostrava odiosa, opressiva, duma rigidez de puritanismo
+fanatico!</p>
+
+<p>&mdash;«Oh! <em>Amérricana</em>, grande coisa!... <em>Eurrópa, muito
+desmoralisada!... Pórtuguês, muito estupida!...</em></p>
+
+<p>Igual ao seu orgulho de têr nascido numa ilha da America e de pais tão
+ilustres, só o desprezo, e a ignorancia propositada, por nós, pelos nossos
+gostos e aspirações, pelo nosso povo tão laborioso e inteligente, embora
+inculto, pelo nosso país tão belo, o nosso clima tão dôce no sul e tão soberbo
+junto ás montanhas que a neve cobre nas invernias grandes...</p>
+
+<p>Desconhecia a nossa historia, não sabia lêr os nossos poetas, não se
+entusiasmava com os nossos prosadores. Os nossos costumes, tão pitorescos,
+eram, aos seus olhos, de selvagens; as canções do nosso povo achava-as sem
+brilho nem graça, melopeias só proprias para adormentar crianças.</p>
+
+<p>Oh, o horror que nos causava essa criatura, que assim abocanhava tudo quanto
+nos era querido, achando sempre que dizer das superioridades dos outros países!
+Nós, os pequenos, que não tinhamos adquirido com o decorrer da vida a fleugma
+risonha com que meu pai a escutava, a indiferença com que a minha mãe ia
+tratando da sua vida sem lhe<span class="pn">{108}</span> prestar atenção, nem
+a paciencia do Padre Zé, que abanava a cabeça embranquecida como unica
+resposta; nós desesperavamo-nos por não nos permitirem contrariar a hóspeda. E
+o Miguel, que já pensava muito bem e tinha observações muito a proposito,
+dizia-me baixinho, de cada vez que a ouvia denegrir as nossas coisas:&mdash;Não sei
+como, sendo tão mau o nosso país e a gente tão estupida, ella casou com um
+português e veiu para cá maçar-nos!...</p>
+
+<p>Mas o que eu não compreendo é como essa criatura, que para nós era tão
+desagradavel, conseguiu convencer meus pais da sua inteligencia, chegando a
+dar-lhe razão nos seus grossos dislates.</p>
+
+<p>Principalmente na minha pobre mãe, que se julgava uma ignorante,&mdash;ella que
+dirigia a sua casa com tanto criterio e olhava providencialmente por nós
+todos&mdash;fizera profundo sulco a torrente de sabedoria enciclopedica que jorrava
+enfaticamente da sua bôca.</p>
+
+<p>Logo que chegou, desembaraçada dos apetrechos da viagem, olhou-nos com
+altivez. Depois tomou-me á sua conta, por sêr eu a mais velha e por ser
+rapariga. Um dia sujeitou-me a um interrogatorio em fórma:</p>
+
+<p>&mdash;«Menina sabe francês?</p>
+
+<p>&mdash;«Não, menina não sabia francês.<span class="pn">{109}</span></p>
+
+<p>&mdash;«Oh!... vergonha!</p>
+
+<p>Estive para lhe responder:&mdash;E a senhora sabe português?!</p>
+
+<p>Chamaram-me sempre atrevida nas respostas, mas o que é certo é que me
+arrependo sempre das poucas que tenho deixado de dar tal qual as penso.</p>
+
+<p>&mdash;«Menina sabe inglês?</p>
+
+<p>&mdash;«Não.</p>
+
+<p>&mdash;«Oh! sabe <em>desenha</em>?</p>
+
+<p>&mdash;«Não.</p>
+
+<p>&mdash;«Oh! muito <em>linda</em>! Aquellas sombras!... Na <em>Amérrica</em> toda
+a gente sabe <em>desenha</em>!...</p>
+
+<p>&mdash;«Sabe <em>piana</em>?</p>
+
+<p>&mdash;«Não.</p>
+
+<p>&mdash;«Oh! vergonha, vergonha, uma menina não tocar nem cantar!...</p>
+
+<p>E seguiu-se uma preléção sobre tudo quanto enumerava e que eu,
+pertinazmente, ignorava. Na verdade eu sabia pouquissimo, mas estou certa que
+ella não conhecia senão de nome a maior parte do que dizia. Aquilo tudo era
+papagueado, elementos de coisas que aprendera no decorrer movimentado da sua
+vida.</p>
+
+<p>O meu querido Padre José pasmava:&mdash;«Como podia uma senhora saber tanto?!...
+</p>
+
+<p>E a minha mãe desculpava:&mdash;«Oh, a mana não imagina a falta de professores
+que ha por estes sitios! Temos pensado em mandar a<span class="pn">{110}</span>
+pequena para um colegio, mas o pai prefere uma professora... Eu, professoras em
+casa&mdash;tenho-lhes um mêdo!</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Demoraram-se, apesar de todos os incómodos a que se sujeitavam naquele
+selvatico país, um longo mês em nossa casa. Depois...</p>
+
+<p>Quando penso, ainda estremeço de raiva! Depois de longas conferencias e
+segredos com os meus pais, combinaram que eu iria com elles para Lisbôa e
+ficaria em sua casa para me educar.</p>
+
+<p>Quando nós, os pequenos, soubemos o que significavam tais misterios, já tudo
+estava resolvido. Eu desanimei; os meus irmãositos choravam pelos cantos, e
+chegavam-se a mim para os animar. O Miguelsinho, que era o preferido da mãe,
+tentou discutir tal resolução e pedir para que me não entregassem á
+<em>estrangeira</em>, mas ficou desiludido da sua influencia porque o chamaram
+pateta e prohibiram-lhe terminantemente de se meter onde não era chamado.</p>
+
+<p>Cá por mim, nada pedi nem objétei; fechei-me num mutismo que exprimia já,
+mais do que as palavras, a onda de revolta que se me ia formando no
+coração.<span class="pn">{111}</span></p>
+
+<p>Sucumbi. Já não tinha gosto para nada: não voltei á quinta nem procurei mais
+a Cacilda, para a cavalgar como os rapazes e percorrer os caminhos tão
+conhecidos e amados. Os meus amigos do pombal sentiram por certo a minha falta,
+como os da capoeira a tinham já sofrido...</p>
+
+<p>Nunca mais procurei as pequenas minhas companheiras, mas via-as por detraz
+dos vidros da janela dansarem em rodas, ouvia-lhes as cantigas joviaes,
+percebia que jogavam a <em>laranjinha</em> ou faziam de <em>senhoras
+visinhas</em>... E ficava-me indiferente, já alheada da sua alegria, afastada
+para sempre do seu convivio, desprezando inconscientemente a sua humildade. Era
+como aquellas pessôas, quasi na agonia, que já não são deste mundo nem o que
+nelle passa lhes interessa&mdash;e ainda não entraram no supremo descanso da morte.
+</p>
+
+<p>Decerto que muitas vezes pensara em sahir da aldeia, percorrer novos
+caminhos, vêr paisagens inéditas, terras lindas de encantar como as sonhava por
+esse mundo fóra!... Invejara, não poucas tambem, os vagabundos que passavam
+pela aldeia e nos contavam coisas estranhas para os nossos espiritos, e de que
+elles traziam nos olhos um vago assombro... Devaneando, o Miguelsinho e eu,
+quantas vezes não conversamos sobre a divertida<span class="pn">{112}</span>
+existencia dos ciganos, que andam de terra em terra com os ursos e os macacos e
+sob a sua esfarrapada tenda têm todo o seu aféto e interesse no mundo?!</p>
+
+<p>Sahir dalí... ir viajar... vêr paisagens novas em folha para a minha retina,
+terras desconhecidas, gentes exoticas, seria uma libertação, mas ir na
+companhia duma pessôa que nos era tão particularmente antipatica, confiada á
+sua guarda, colocada sob a sua autoridade, isso nunca o podia têr sonhado, nem
+como pesadelo me assaltara jámais o espirito.</p>
+
+<p>Não chorava, porque a profundeza do golpe me revoltou até quasi á loucura.
+Desde o dia em que me deram a noticia do meu destino, deixei de sêr a criança
+que fôra até ahi para me tornar numa sombria criatura, raro abrindo em risos a
+sua alma ingenua.</p>
+
+<p>Tinha doze anos, cheios de saude e alegria; era uma perfeita criança, sem
+sombra de malicia a macular-me o espirito&mdash;uma pequena criatura muito humana e
+muito bondosa. Fui depois uma pobre alma torturada, contorcida em odios,
+desprezando e desconfiando de tudo e de todos.</p>
+
+<p>O mundo deixou de sêr para mim uma festa cheia de sol para se tornar num
+algido subterraneo.<span class="pn">{113}</span></p>
+
+<p>Hãode dizer que exagero, que o caso não era para tanto, nem a mulher de meu
+tio merecia o repulsivo odio que lhe votei... Mas que querem?! Não ha animais
+que odeiam uma determinada criatura, numa repugnancia instintiva, sem aparente
+razão?</p>
+
+<p>Tal o meu sentimento por ella: instintivo, invencivel, fatal.</p>
+
+<p>Meus irmãos choraram muito quando eu parti; a minha mãe abraçava-me
+soluçando convulsivamente, apesar de toda a sua serenidade de mulher que nunca
+sentira rebate de nervos em vibrações assustadoras, mas eu desprendi-me dos
+seus braços, de olhos enxutos, pálida e sombria, concentrada na convicção
+íntima de que não me estimava verdadeiramente quem assim me expulsava do seu
+lar, para me colocar sob a autoridade despotica duma quasi desconhecida e já
+detestada criatura.</p>
+
+<p>Antes o colegio!&mdash;pensava com amargura. Ao menos teria amigas que sofreriam
+comigo o cativeiro, teria talvez professoras que estimasse...</p>
+
+<p>Toda a gente da aldeia acorrêra para me dizer adeus; assim eu andava de
+braços para braços, levando beijos que me repugnavam mas aos quais não tinha
+coragem de me negar. As criadas, uma por uma, vieram<span
+class="pn">{114}</span> ainda á porta do carro dizer-me os últimos adeuses, e
+quando a Maria Augusta me abraçou apertou-me com tal ânsia que um nó se me deu
+na garganta, e teria fraquejado ali, diante da <em>estrangeira</em>, se a não
+visse no fundo do carro sorrir com ironia da cêna, que aos meus olhos nada
+tinha de ridicula.</p>
+
+<p>Quando na vila, ao partir da diligencia, meu pai se voltou para limpar as
+lagrimas furtivamente, toda a minha alma explodiu num adeus&mdash;que mais era um
+grito de protesto... Até elle! Todos, todos, me abandonavam. Era demais!</p>
+
+<p>Aninhei-me a um canto da carroagem, estupidificada pelo assombroso do caso,
+e deixei-me transportar como um fardo, sem vontade nem iniciativa; era mais um
+volume a acrescentar aos inúmeros sacos, malas e maletas que abarrotavam a
+diligencia alugada por conta da minha enorme tia.</p>
+
+<p>De pouco me recordo dessa jornada triste que me levou a Lisbôa. Dias
+chuvosos de princípio de outôno, estradas desertas, campos desnudando-se numa
+paisagem uniforme, tristezas da alma e tristezas da bôa natureza, que se
+despedia dos meus olhos num compungimento de simpatia.</p>
+
+<p>Ainda bem que chovia! Se fizesse sol, se as raparigas cantassem pelos
+campos, e os<span class="pn">{115}</span> carros de bois arrastassem pelos
+caminhos a fartura da colheita, quanto isso seria infinitamente mais desolador
+para a minha pobre alma confrangida!</p>
+
+<p>Assim cheguei a Lisbôa por uma madrugada nevoenta, sem sequer me têr
+admirado do caminho de ferro que pela primeira vez vira no Entroncamento, onde
+o fômos tomar. O que podia interessar e comover o meu espirito atordoado por
+esse repelão da vida, que tão cedo começava a maguar-me?!</p>
+
+<p>Ah, como se sofre quando se é criança, quando ninguem respeita a nossa dôr e
+a nossa vontade, quando decidem do nosso querer como se fôssemos títeres
+animados por maquinismo industrial!</p>
+
+<p>Lisbôa não me deslumbrou, porque mais, muito mais, fantasiara dos seus
+encantos e fausto no meu sonhar de criança. As ruas da Baixa, com as suas altas
+casarias alinhadas e uniformes, que a rigidez pombalina decretou, faziam-me uma
+terrivel saudade dos campos largos por onde a vista passeia e cabriola como
+cabritinho montez. Apertava-se-me o coração recordando os horizontes que se
+esbatem ao longe, nas serranias violetas; e o marulhar da multidão irritava-me
+os nervos, mal me podendo recordar o rumorejar embalante dos pinheirais
+atravessados<span class="pn">{116}</span> pelos ventos em livres carreiras de
+tardes outonais...</p>
+
+<p>O meu pobre tio mostrava-me coisas, queria que me extasiasse com a capital,
+eu pobre serrana que nunca vira nada, mas a faculdade admirativa tinha-se
+embotado em mim. Era um corpo sem alma&mdash;que essa por lá me ficara, errando
+pelos campos da minha risonha terreola.</p>
+
+<p>Só quando o mar se descobriu diante dos meus olhos, elles se abriram numa
+atenção de velha simpatia. Não, nunca tinha visto o mar, mas sonhava-o e
+amava-o desde muito, com o aféto entranhado e atavico que todos nós lhe temos.
+O mar, a nossa estrada movediça e terrivel!... O mar, essa nossa segunda
+patria, foi a unica coisa onde descansei a vista com enlevo e que durante os
+quatro anos de cativeiro me deu algum prazer á vista. Quando, entre duas ruas,
+o descobria lá ao fundo, numa nesga rutilante de sol, toda a minha alma se
+refrescava e florejava de sorrisos.</p>
+
+<p>Felizmente que a casa do tio era num bairro afastado e novo, onde raro
+chegavam os pregões berrados das ruas e só de longe em longe o rodar duma
+carroagem fazia estremecer os vidros das janelas. E, por fortuna, tinha atraz
+um jardinsito, entalado entre casas é<span class="pn">{117}</span> verdade, mas
+emfim mimoseando-nos com um pouco de ar mais puro para os robustos pulmões
+desenvolvidos pelo ar forte da montanha.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>A <em>cubana</em> tinha fórmas dogmaticas sobre a educação, que serviam para
+os cinco anos da filha e para os meus doze de rapariga nubil.</p>
+
+<p>Era preciso que me levantasse cedo&mdash;vá! Isso não me custava, acostumada
+desde criança ás madrugadas na aldeia. Mas, depois de me levantar, não podia
+correr pela quinta, abrindo o apetite ao almoço suculento que me esperava na
+mêsa; tinha que fazer a cama, arrumar o quarto, e estudar.</p>
+
+<p>Em casa, para ajudar a Maria Augusta, muitas vezes lhe tirava a vassoira das
+suas pobres mãos encarquilhadas, e varria, cantando festiva, auxiliando-a no
+fazer das camas e mais arranjos domesticos; ali, obrigada, mandada por aquella
+monstruosa criatura, sentia um tal desespero, um tal rancôr a referver-me na
+alma, que todas as minhas ideias eram negras como fuligem, todos os meus
+sentimentos eram maus a roçarem pela perversidade.</p>
+
+<p>Encostada aos vidros da janela do meu quarto, olhava a gente que seguia o
+seu<span class="pn">{118}</span> caminho, apressada ou vagarosa, alegre ou
+triste, pobre ou rica,&mdash;e a todos eu invejava com verdes invejas de reptil!...
+</p>
+
+<p>Era preciso que estudasse três horas antes do almoço, e o meu espirito
+vagabundeava pelos caminhos pedregosos da minha terra, debruçava-se na ribeira
+onde os salgueiros reflétiam a folhagem leve e as margaridas rosadas, as
+pervincas azuis e os miosotis da côr do céo espreitam entre a verdura da herva
+tenra.... Era preciso que inclinasse sobre os livros a minha pobre cabeça
+pesada de sôno, e os meus olhos fechados reviam os milharais regados de fresco,
+as cerejas vermelhas suspensas como pingos de lacre das arvores amigas, as
+amendoeiras em flôr, as encostas cobertas de olivedos pálidos, os pinheiros
+esguios, os castanheiros arreganhando a bôca dos seus ouriços para nos darem o
+fruto saboroso. O meu espirito não acompanhava o pobre corpo oprimido, que se
+estiolava num quarto fechado, diante de estereis livros que não compreendia;
+não! Elle assistia, lá ao longe, á ininterrupta festa da natureza; alegrava-se
+com os divertimentos do campo; procurava os magustos, onde se comem as
+castanhas assadas na fogueira; ia aos <em>serões</em>, onde as velhas avós
+contam lindas historias ás raparigas, fiando á mortiça luz da candeia<span
+class="pn">{119}</span> suspensa do velador de pau enegrecido pelos anos;
+evocava as ranchadas que vão ás romarias, cantando e tocando a viola e os
+ferrinhos, e os que vão para as feiras álacres, entre festivos e afadigados, na
+policromia do trajar das mulheres e na gravidade interesseira do comerciante
+que oferece ou compra a mercadoria e discute largamente o seu negocio...</p>
+
+<p>A fuga era o unico deleitoso pensamento que se esboçava no meu cerebro.
+Fugir! Sêr livre! Não têr mais diante dos meus olhos a figura estupenda da
+mulher de meu tio, nem a face simiesca da petiza!... Era o ideal supremo que
+acariciava, um sonho redentor que se me fixava na cabeça por mil pontos
+delicados e impercétiveis. Formava com esta unica e obsessiva ideia projétos
+sem conto, e se não fôsse a covardia ante o escandalo, que é ainda uma servidão
+do nosso espirito, se não fôsse o receio atroz de sêr apanhada pela policia,
+vir o meu caso por miudos nos jornais, e sêr finalmente trazida de novo alí,
+certamente teria <em>feito alguma</em>!... Faltava-me a energia determinante
+dos fortes caratéres. A revolta traduzia-se pelo embrutecimento, pela apatia,
+pela oposição passiva dos fracos e dos ignorantes.<span class="pn">{120}</span>
+</p>
+
+<p>Fechada no quarto todas as manhãs, em vez de estudar deitava-me sobre a
+cama, e afiguravam-se-me as tábuas alinhadas e estreitas do této como se fôssem
+as tábuas do meu caixão.</p>
+
+<p>Lá fóra era a vida: os pregões que atravessavam a rua solitaria numa festa
+ruidosa de côres, revoadas de andorinhas riscando o azul em zig-zagues
+caprichosos, a chilreada estúrdia dos pardais pelos telhados...</p>
+
+<p>Morria de aborrecimento, e morrer, creio, foi o pensamento mais consolador
+que nesse tempo se alojou no meu cerebro.</p>
+
+<p>Não estudava, o que era em mim um velho habito, mas com as lições do Padre
+Zé tinha chegado a compreender alguma coisa, e agora sentia-me sem nenhuma
+inteligencia, sonolenta, parada, sem sombra de vivacidade intelectual.</p>
+
+<p>Tinha uns poucos de professores, pagos pelos meus pais é claro. E por sinal
+que eram bem generosos com o dinheiro dos outros...</p>
+
+<p>O inglês ensinava-mo ella, mas eu odiava-a tanto e o meu espirito começava a
+achar um tal prazer em contrariar os outros, que me sublevava contra mim mesma
+quando começava a compreender essa lingua que ella tinha como sua.<span
+class="pn">{121}</span></p>
+
+<p>Farta já de a saber, obrigava-a a algaraviar o português para me rir
+intimamente dos seus comicos disparates.</p>
+
+<p>Estava assim.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Pouco sahi durante os quatro anos que durou o meu cativeiro&mdash;porque a sua
+companhia me desagradava cordialmente, porque os passeios por ella escolhidos
+eram odiosamente disparatados, e porque a sua imposição de me ensacar em
+verdadeiros horrores, que ella alcunhava de vestidos á inglêsa, me causava um
+asco invencivel.</p>
+
+<p>Sem têr nunca apreciado os <em>laçarotes</em> e as rendas esbanjadas nos
+vestidos provincianos das minhas antigas conhecidas, sem ambicionar a elegancia
+casquilha das meninas lisboêtas, o meu espirito era demasiadamente meridional,
+demasiado artista, para se não prender com a fórma e não se encantar pela côr e
+pela beleza do trajo, como de tudo quanto me pertencia e rodeava.</p>
+
+<p>Assim, achava meio de me esquivar sempre que sahiam, o que era raro,
+pretextando estudos que nunca fazia.</p>
+
+<p>De mêses a mêses, a visita ao consul inglês era o unico parentesis de luz na
+tristeza da minha vida. Tinha umas filhas encantadoras,<span
+class="pn">{122}</span> algumas já senhoras, e, entre ellas, a Maud era muito
+gentil para mim, consolando-me e alegrando-me, nas poucas vezes em que nos
+avistavamos, das muitas horas de incomportavel tedio que passava naquella casa.
+</p>
+
+<p>Maud era muito inglêsa na sua educação para censurar uma pessôa das relações
+da casa, mas o simples sorriso dos seus labios finos, a ligeira caricia dos
+seus olhos puros, era quanto bastava para me encher o coração de reconhecimento
+e têr na sua amizade toda a confiança.</p>
+
+<p>Pobre Maud! Levada pelo destino para longe, obrigada a ganhar a sua vida
+pela morte dum pai afétuoso e inteligente, em que país, em que terra, em que
+familia, o seu sorriso honesto, a sua graça séria, serão consolo e júbilo para
+alguma criança infeliz, como eu era?!</p>
+
+<p>Outra qualquer pessôa, por menos melindrosa e suscétivel que fôsse, não se
+sentiria feliz num meio em que tudo era violento e desagradavel.</p>
+
+<p>A <em>cubana</em> ralhava por tudo, nada estava feito a seu gosto, de manhã
+á noite lamentava têr vindo para um país de que dizia indelicadamente,
+grosseirônamente, os ultimos horrores:&mdash;a vida era carissima, os criados eram
+mandriões e inhabeis, era preciso olhar por<span class="pn">{123}</span> tudo,
+vêr tudo, desde a roupa da lavadeira até á limpeza da casa...</p>
+
+<p>Tornava desgraçada toda a gente, e não consentia que ninguem se considerasse
+infeliz&mdash;possuindo a rara fortuna de a têr ao lado!</p>
+
+<p>Ao meu pobre tio impunha uma felicidade que elle estava longe, bem longe, de
+sentir. Não podia formular uma opinião sua; era obrigado a confirmar tudo
+quanto ella dizia, e ainda dizer-se o mais ditoso dos maridos e fazer elogios á
+sua alta inteligencia, bom-senso e sábia economia.</p>
+
+<p>Meu pobre tio! Verdadeiramente, aquella pressão moral em que conservava o
+bom do velho, revoltava-me. Nunca pensei em impôr a minha vontade a ninguem, e
+tudo quanto seja coagir a dos outros, tirar ao sêr humano a liberdade de sentir
+e pensar por si mesmo, exaspera-me como violencia contra mim propria exercida.
+</p>
+
+<p>Depois, a pequena tinha a bela qualidade de espiar e ir contar-lhe tudo
+quanto se dizia e fazia em casa, e por muitas vezes o que nem sequer se sonhava
+dizer ou fazer. Um <em>amôr</em> de criança!</p>
+
+<p>As criadas entravam e sahiam com uma velocidade de comboio expresso.</p>
+
+<p>Quando mal humorada, dava-lhes bofetada e descompostura que as fazia fugir
+espavoridas;<span class="pn">{124}</span> mas, se por outro lado lhe désse na
+cabeça, enchia-as de presentes e favôres. Era conforme ellas sabiam ou não
+lisongear-lhe a vaidade.</p>
+
+<p>A última que lá conheci, talvez a mais velhaca de todas, essa soube
+cativá-la, e fazia quanto queria sem que ouvisse uma simples reprimenda.
+Adiante falarei na menina Eulalia, que entrou para muito na minha vida.</p>
+
+<p>Meu tio é que escrevia para casa e lá dizia dos meus adiantamentos, que,
+francamente, não eram nenhuns. Ás noticias dos meus pais, tão carinhosas e
+prolixas, eu respondia com aquellas cartas incolôres que todas as crianças
+prisioneiras nos internatos, ou onde quer que lhes pônham sentinela ao
+pensamento, têm escrito. Cartas em que nem um vislumbre da alma infantil
+entreluz; cartas feitas só de palavras ouvidas, e que são o primeiro passo para
+a mentira social a que nos querem sujeitar, como a cães sábios sob o chicote
+domesticador e o mêdo... A criança, que sabe que as suas cartas serão maculadas
+pelos olhares indiferentes, e os seus verdadeiros sentimentos procurados nas
+linhas em branco da sua pobre correspondencia, perde a sinceridade, não se
+expande com lisura, não diz o que sente...<span class="pn">{125}</span></p>
+
+<p>Os bilhetes que metia no mesmo sobrescrito de meu tio eram frios, pouco mais
+ou menos o que me diziam que era dever escrever:&mdash;que estava bem, que era bem
+tratada, que me sentia feliz... Nada do que, em verdade, eu teria desejo de
+dizer!</p>
+
+<p>É certo que a minha alma irritada julgava-se ofendida pelo desamôr com que
+me tinham expulso de casa para me atirar para o poder daquella mulher, que para
+mim resumia tudo quanto eu podia odiar mais.</p>
+
+<p>Nesse tempo não gostava de ninguem&mdash;nem de mim mesma. Era injusta, mas era
+humana. O animal criado em toda a expansão da sua vida material e forte, não se
+subjuga sem rebelião, não se obriga sem muito custo a entrar no regimen de
+servidões a que se convencionou chamar <em>deveres sociais</em>.</p>
+
+<p>Assim, quando meu pai empreendia a longa viagem da aldeia á capital para me
+vêr, eu não correspondia de modo algum ao seu aféto e interesse.</p>
+
+<p>Sem compreender o enorme sacrificio que faziam para me dotarem com uma
+educação que supunham sêr um precioso instrumento de felicidade para toda a
+minha vida, achava que era desamôr o que me consagravam e tão sómente desejo de
+me vêrem longe da sua casa, porque o meu feitio moral os desconcertara<span
+class="pn">{126}</span> e lhes era talvez odienta a minha presença...</p>
+
+<p>Ás perguntas insistentes que me fazia, vendo-me tão delgadinha e triste, o
+meu orgulho fazia-me responder com sistematica negativa.</p>
+
+<p>Se elle se demorasse, se insistisse, a minha energia não seria mais forte do
+que a revolta contra o sofrimento, tão natural ao sêr humano quando novo e
+saudavel.</p>
+
+<p>Mas o meu pai não supunha encontrar tais meandros e subtilezas no sentir
+duma criança que conhecera defeituosamente franca e impulsiva. Por outro lado,
+os negocios da casa não o deixavam demorar mais do que um dia ou dois, o que
+não era muito para fundir o gêlo que se formara no meu coração contrariado e
+amarfanhado.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Ora de estudos ia eu muito mal. Os meus professores classificavam de
+estupidez a minha incapacidade de satisfazer as lições, e creio bem que o era.
+</p>
+
+<p>Não estudava, e mesmo que estudasse não compreendia.</p>
+
+<p>A cabeça parecia-me de chumbo, pesava-me como o capacete dum guerreiro
+antigo. Não faziam nada de mim, pela certa!<span class="pn">{127}</span></p>
+
+<p>A professora de desenho era a unica que tinha dó dos meus traços indecisos e
+me dirigia com bôas palavras, por isso fiquei sabendo um pouco mais dessa arte,
+que das outras, e com imensa pena de não poder fazer tudo quanto ella me dizia
+que seria capaz de realisar, com a minha paixão pela corréção das linhas
+classicas, a minha expansiva busca das côres, que ousava procurar inéditas e
+brilhantes na paleta de principiante...</p>
+
+<p>Sentia-me infeliz, e, se verdadeiramente me quizesse queixar, não saberia
+bem precisar o que me maguava naquella casa. Talvez porque era tudo, desde a
+gente até á comida. Chegava a sêr um suplício; acostumada em casa a encher
+abundantemente o meu pequeno estomago voraz, ali tinha até mêdo de meter na
+bôca um pedaço a mais, porque via todos os olhos a pesarem e a medirem tudo o
+que a minha garganta oprimida conseguia deixar passar.</p>
+
+<p>Por economia e por habito, eram todos frugais, e eu, por ceremonia, quando
+os via recusar o <em>roast-beef</em>, que se comeria frio no almoço do dia
+seguinte, recusava-o tambem, embora ás vezes sentisse um bom apetite de
+animalsinho carnivoro, que não se sente satisfeito.</p>
+
+<p>O meu unico desafogo era o jardinsito, que tratava com todo o cuidado. As
+sementeiras<span class="pn">{128}</span> iam a horas para a terra, e não lhes
+faltavam as regas, com a agua que eu mesmo tirava da bomba, nem a cobertura de
+palha, mais tarde, por causa das geadas.</p>
+
+<p>Andava sempre a espreitar o crescimento das plantas tenrinhas, que mal
+despontavam na terra pobre de adubos vitalisadores; e quando, na primavera, as
+arvores que mal se desenvolviam na sombra daquelle jardinsito entalado entre
+predios altos, se enfloravam, toda a minha alma florescia com ellas, recordando
+as que lá ao longe perfumavam os campos onde a minha saudade me levava
+errante...</p>
+
+<p>Ora o jardim era dividido do que pertencia ao rez-do-chão da esquerda por
+uma sebe de madeira, que eu pensara em disfarçar sob a verdura abundante duma
+trepadeira de folha permanente. Passava horas desembaraçando as finas hastes
+para as ir guiando e atando. Quantas vezes, de tanto as querer estender e
+espaldar, não parti grandes pedaços, que depois lamentava muito contristada! O
+mal de quem tem muita pressa... em contrafazer a natureza.</p>
+
+<p>Ao fundo, era limitado pela parede dum outro jardim, que nunca tivera a
+curiosidade de procurar vêr, embora por lá sentisse as risadas de crianças mais
+felizes do que eu...<span class="pn">{129}</span></p>
+
+<p>A tristeza até embota a curiosidade, essa fórma, embora inferior, da
+vivacidade intelectual. Concentrava-me no meu proprio sentir, e todo o mundo me
+era estranho.</p>
+
+<p>Ora isto foi assim até que num dia veiu para o rez-do-chão visinho uma nova
+familia: pai, mãe, e filha, uma pequena encantadora, que começou a sorrir-me e
+a cumprimentar-me quando me via na minha faina de jardineira.</p>
+
+<p>A Mariquinhas, com a sua mobilidade graciosa, falou-me uma primeira vez, a
+proposito de nada, só para encetar conversa. Respondi-lhe acanhadamente de
+principio, mas em breve toda a minha timidez desaparecera diante da sua ampla
+cordialidade. Conversamos, e logo á despedida nos beijamos, por cima da sebe
+que já conseguira vestir duma folhagem de lindo verde brunido.</p>
+
+<p>Em poucos dias ficamos as maiores amigas do mundo. Pela minha parte
+entreguei-me com ardôr ao estranho prazer dessa amizade; agarrei-me a essa
+ventura com o desespero de quem se vê só, num meio irritante e hostil, sem um
+unico aféto a confortar um pobre coração feito para o sentimento.</p>
+
+<p>A Mariquinhas era a unica e amimada filha duns pais, que a tinham só a ella,
+duns poucos que no seu ninho tinham batido azas palpitantes<span
+class="pn">{130}</span> de alegria e esperança e a morte lhes levara numa
+impiedosa e cega colheita.</p>
+
+<p>Era em casa uma pequenina rainha, que não abusava é certo da sua autoridade,
+antes punha uma suprema graça nas suas ordens e caprichos.</p>
+
+<p>Hôje, recordando bem as suas feições, que o tempo já quasi deliu na minha
+memoria, acho que não devia sêr, talvez, uma formosura, mas nesse tempo era
+para mim tudo quanto conhecia de mais puro enlevo.</p>
+
+<p>Magrinha, elegante, duma finura de traços angelicais, tinha a pálida beleza
+das camelias delicadas, que as fortes chuvas do inverno desfolham rapidamente.
+</p>
+
+<p>Era muito instruida, uma pequena e encantadora sábiasinha, que sorria,
+maternalmente conselheira, da minha supina ignorancia.</p>
+
+<p>Já quasi mulher, um tudo-nada garrida, vestindo divinamente os lindos
+vestidos da sua escôlha, ella materialisou no meu espirito o ideal duma santa
+ou dum anjo salvador, que Deus tivesse mandado ao meu purgatorio.</p>
+
+<p>Porque... esquecia-me mais esta: a mulher de meu tio era protestante, mas da
+última hora. Com todo o fanatismo dos neófitos e a sua terrivel mania de impôr
+as suas ideias e de prégar as suas convicções, todos os dias me ensinava e
+explicava o evangelho, á sua<span class="pn">{131}</span> moda, isto é:
+analisando-o e adaptando-o á vida quotidiana, com uma banalidade desesperadora.
+</p>
+
+<p>Na minha aldeia nunca ouvira falar em evangelho senão no latim do Padre Zé,
+á missa, quando a minha mãe nos dava a consolação de nos pôrmos de pé. Mas
+estava acostumada a conversar com o Anjo da guarda como se fosse um irmão, e no
+rosto delicado das esbeltas Santas góticas, que ornavam as paredes da nossa
+velha igreja, lia enlevadoras historias que ellas me sorriam...</p>
+
+<p>Arrancar a uma pobre alma de meridional, apaixonada pela côr e pela fórma, o
+olôr dos incensos subindo em dolentes preces para um céo recamado de oiro e
+pedrarias, onde lindas crianças cantam e tocam flautas e guitarras
+maravilhosas, onde florescem jardins ideais, e correm fontes inesgotaveis de
+perfumes suaves; tirar-lhe a ilusão magnifica duma vida embalada pela esperança
+do milagre, e dar-lhe em troca a frieza do raciocinio, a clara e positiva
+significação das palavras, a simplicidade da fórma despida do encanto da arte,
+será por certo de muito bons resultados futuros&mdash;e foi-o para o meu espirito,
+que se habituou ao rigoroso cumprimento da verdade&mdash;mas nesse tempo constituia
+um sacrificio a mais a juntar aos muitos outros.<span class="pn">{132}</span>
+</p>
+
+<p>Pois a Mariquinhas encarnou para a minha imaginação mortificada, o anjo meu
+companheiro e protétor. Pela sua mão seguiria por sobre a <em>fragil ponte</em>
+que representa o dificil caminho da virtude, nas imagens popularisadas pela
+oleografia barata, em que o guarda angelico guia uma criancinha, com a sua mala
+de viagem a tiracolo, pela áspera senda do bem...</p>
+
+<p>Fôram os dias bons da minha permanencia naquella casa.</p>
+
+<p>Não sei como a terrivel <em>cubana</em> se não opôs á nossa convivencia,
+embora distanciada, apenas entretida pelas fugitivas palestras trocadas a mêdo
+por sobre a sebe que as minhas trepadeiras iam vestindo e matisando com uma
+floração polícroma.</p>
+
+<p>Lembro-me agora que a Mariquinhas, com a sua viva inteligencia cultivada no
+convivio da sociedade, compreendera desde logo de quanta vaidade e orgulho se
+enchia a enorme criatura, e sabia lisongeá-la com leves delicadezas, das quais
+eu nem sequer compreendia o alcance, na minha inteireza selvagem.</p>
+
+<p>Hôje, era uma linda flôr mandada pela pequena para a mamã pôr no seu logar,
+á mêsa; ámanhã, noticias lidas por acaso nos jornais sobre coisas passadas em
+Inglaterra ou nos Estados-Unidos; depois, uma corréta<span
+class="pn">{133}</span> atenção aos discursos que lhes algaraviava, quando
+acontecia vê-la da janela.</p>
+
+<p>Com tão pouco, a Mariquinhas vencera a resistencia feroz daquella fortaleza
+e achava-se senhora da situação. Nunca pensei que eu teria, talvez, conseguido
+o mesmo se o orgulho&mdash;que é uma virtude que nos nobilita, mas torna dificil a
+vida social&mdash;não me fizesse olhar com desprezo para esses processos que me
+punham numa dependencia moral que me irritava. Decididamente a Mariquinhas era
+muito melhor politica; onde o meu temperamento voluntarioso punha energia
+revoltosa, a doçura do seu espirito, tão levemente ironico quanto profundamente
+conhecedor das fraquezas alheias, usava o suborno da lisonja, que a todos
+conquista e agrada.</p>
+
+<p>Apesar das familias não têrem nunca encetado relações que as tornassem do
+mesmo convivio,&mdash;porque a mãe da Mariquinhas detestava a <em>espanhola</em>,
+como lhe chamava&mdash;conseguira a criança, com as suas blandicias de lisboêta
+amavel, que me deixassem ir passar algumas tardes a sua casa.</p>
+
+<p>Era um banho dulcissimo de calma para o meu espirito, que fermentava em
+sublevações concentradas mas nem por isso menos violentas.<span
+class="pn">{134}</span></p>
+
+<p>A D. Emilia era uma destas almas bôas e sãs, tal qual a da minha mãe,
+modestas no cumprimento religioso duma existencia que nunca teve dúvidas nem
+sobresaltos de consciencia. O seu espirito era simples, e os seus olhos diziam
+na clara expressão o que ás vezes os labios não se atreviam a proferir, com
+receio de ir infelicitar os outros com uma observação menos resignada... ou
+mais verdadeira.</p>
+
+<p>Conversar com a bonissima criatura era abrir o coração e deixar correr as
+palavras livremente, numa fluencia de ribeira múrmura e limpida deslisando por
+campo sem obstaculos; ouvi-la era escutar o carinhoso conselho duma rara alma
+humana que nunca se tinha poluido numa mentira.</p>
+
+<p>Ah, como o meu coração se aliviou da tristeza imensa em que se afundava,
+contando-lhe a minha vida; e como ao contar-lha precisei verdadeiramente o
+<em>mal de viver</em>, que me vencera e arrastava para o desespero! E como ao
+escutar-lhe a palavra mansa e insinuante, compreendi, e melhor apreciei, a
+modesta e nobre missão da minha pobre mamã!...</p>
+
+<p>O pai da Mariquinhas parecia viver só para tornar felizes as duas criaturas,
+que eram todo o seu cuidado e amôr. Aposentado do<span class="pn">{135}</span>
+seu logar de lente duma escola superior, passava os dias estudando e lendo no
+seu gabinete cheio de livros, que já lhe invadiam a secretária, que a filha
+todas as manhãs lhe ia enflorar com lindos ramilhetes que ella mesma cortava e
+ageitava nas jarras.</p>
+
+<p>Que suave e dulcida existencia! E como a vida corria sem se sentir entre
+aquellas três criaturas, tão estreitamente unidas pelo amôr, sem violencias nem
+coáções... Que diferença da nossa casa, onde a mulher de meu tio queria impôr
+não só a sua autoridade absoluta, o que já seria abominavel, como os seus
+gostos e sentir e toda a sua maneira particularissima de vêr as coisas!</p>
+
+<p>Aquella atmosfera pacificadora fazia-me bem, domesticava-me o coração que se
+tinha tornado feroz no odio e na desconfiança.</p>
+
+<p>A unica receita eficaz para se sêr amado sinceramente é amar; era a que
+usavam os meus amigos, e por isso venceram a minha rudeza e fizeram com que os
+amasse com todo o entusiasmo da minha alma apaixonada.</p>
+
+<p>Com o refrigerio daquelle contacto a vida tornou-se-me menos pesada;
+suportava melhor a desgraça desde que tinha quem me compreendesse e lamentasse.
+Pobre criança expatriada, que eu era,&mdash;naquelle meio tão estranho e
+adverso!<span class="pn">{136}</span></p>
+
+<p>Passado o sofrimento que nos crucifica, tirados do logar em que fômos
+martirisados, olhando a frio para o que nos fizeram sofrer, é que
+verdadeiramente compreendemos e sentimos a dôr, mas com um sentir retrospétivo
+que se torna tanto mais agudo quanto maior é a convicção do que foi a nossa
+miseria.</p>
+
+<p>Durante o sofrimento a sua propria vehemencia nos atordôa e dá um anestesico
+moral, que é a unica compensação para os que têm sentido pesar sobre si a
+infinita maldade humana.</p>
+
+<p>Quantas vezes, lendo a historia do passado, não nos atravessa o espirito a
+dúvida de que fôsse possivel ao fragil organismo humano resistir aos ferozes
+martirios fisicos e morais que as paginas ensanguentadas de todos os povos nos
+mostram; mas, olhando em roda de nós, sabendo o que se faz ainda hôje e que a
+tirania já não pode esconder ao nosso conhecimento, porque os protestos dos
+condenados resôam mais alto na consciencia humana ou os nossos ouvidos se
+apuram mais para os escutar, convencêmo-nos de que é um facto esse
+embrutecimento sensacional que pela propria violencia da dôr atenua a mesma
+dôr, que quasi nos insensibilisa á força de sofrer.</p>
+
+<p>É o motivo porque hôje pasmo da resistencia passiva que eu fiz ao martirio
+daquelles<span class="pn">{137}</span> quatro anos de educação inquisitorial.
+Ou não fôsse a minha tia uma legítima descendente dos <em>hidalgos</em>
+inquisidores que civilisaram a ferro e a fogo os infelizes seus conquistados!
+</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Ora na casa a que pertencia o jardim que confrontava com o fundo dos nossos,
+vivia uma familia das relações dos meus amigos,&mdash;fôra até a causa delles virem
+morar para o nosso lado, soube-o depois.</p>
+
+<p>A Mariquinhas falava-me muitas vezes no Chico, que vivia do outro lado do
+muro e era filho da grande amiga de infancia da sua mamã. Dizia-me que nessa
+ocasião passava elle as férias no campo, e que quando voltasse eu veria como
+era gentil e bom companheiro de brinquedos.</p>
+
+<p>E falava com tal entusiasmo do seu pequeno amigo, um belo estudante já quasi
+a terminar o curso do liceu, que o meu aféto&mdash;confesso&mdash;se sobresaltou, e um
+dia perguntei-lhe ansiosa:</p>
+
+<p>&mdash;«Ó Mariquinhas, tu gostas mais do Chico do que de mim, não gostas?!...</p>
+
+<p>Teve um fino sorriso incompreensivel para a minha ingenuidade lôrpa e
+respondeu-me com o ar ironico duma verdadeira mulher:<span
+class="pn">{138}</span></p>
+
+<p>&mdash;«Elle é um rapaz, e tu uma rapariga.</p>
+
+<p>&mdash;«E isso que tem para sêres mais sua amiga?</p>
+
+<p>&mdash;«Tem tudo. Não é a mesma coisa.</p>
+
+<p>Não percebi como podesse existir tal diferença nos afétos, mas resignei-me a
+ficar sem mais explicações para que o sorriso de desdem com que a Mariquinhas
+acolheu a minha evidente tolice não lhe aflorasse de novo aos labios finos.</p>
+
+<p>Bastas vezes me ficava meditabunda, entristecida, perguntando a mim mesma se
+nova complicação não viria por aquelle lado entenebrecer a minha pobre
+existencia, onde se abrira uma nesga de céo azul.</p>
+
+<p>Felizmente não foi assim. O Chico, apesar de mais velho do que nós dois
+anos, foi um ótimo companheiro das nossas tardes de recreio.</p>
+
+<p>A Mariquinhas ao pé delle tornava-se mais senhora, mais cheia de gravidade e
+importancia, sorrindo-se para o Chico quando eu dizia alguma infantilidade,
+como uma mãe que acha encantadora a ingenuidade do seu filhinho.</p>
+
+<p>E bem criança que eu era, apesar dos meus quatorze anos, ao pé da
+Mariquinhas, reflétida, instruida e séria como o não são muitas mulheres
+feitas.<span class="pn">{139}</span></p>
+
+<p>O Chico, que já então era um sábio em miniatura, ensinava-me muita coisa,
+lia-me lindas historias de viagens e descobertas, que era o que mais o
+interessava, e explicava-me cheio de paciencia as minhas lições.</p>
+
+<p>Saltava pelo muro para o quintal da Mariquinhas, de maneira que não fôsse
+visto de minha casa, com receio de sobresaltar a <em>estrangeira</em>, e vinha
+têr comnosco associando-se aos nossos brinquedos com um bom humôr que nos
+encantava.</p>
+
+<p>Que a Mariquinhas e o Chico esboçassem já então um destes idilios deliciosos
+de infantilidade que são ás vezes o princípio de grandes e puros afétos, que se
+enroscam na alma e influem para sempre na sua modalidade, pode sêr, mas que eu
+não compreendia nada dessas precocidades sentimentais, é tambem certo!</p>
+
+<p>Foi nesta altura da minha vida que entrou para criada da nossa casa a menina
+Eulalia. Não sei de que terra ignorada de provincia teria vindo aquelle
+especimen bem acabado da criada alfacinha, mas é certo que ella já trazia o
+cunho particular, os vicios e o geito dessa peste que entra nas casas como a
+traça na roupa. Que diferença entre essas criaturas falsas, interesseiras e
+intrigantes e as nossas criadas da provincia, á moda antiga, um pouco<span
+class="pn">{140}</span> boçais e confiadas, é certo, vivendo com os amos numa
+certa igualdade familiar, mas tão fieis, tão amigas e carinhosas para nós! A
+Maria Augusta, coitada, com quanta ternura eu pensava na bôa mulher que nos
+criara com extremos de mãe, e tanto chorara a ultima vez que me fôra vestir,
+para a jornada!</p>
+
+<p>E a cosinheira solícita e desembaraçada, que nunca esquecia de meter na
+fornada semanal do pão de milho, para os criados, os bôlos para os meninos?! E
+a <em>paquêta</em>, a pequena criada que se vai avesando de criança aos usos da
+casa, e é, ás vezes, no futuro, a melhor de todas?! E a de fóra, encarregada da
+criação e dos porcos, que nos trazia abadas de fruta quando ia ás propriedades
+distantes?! E os criados, desde o rapaz dos recados ao feitôr, como toda essa
+gente era sincera julgando-se na sua propria casa&mdash;dizendo as <em>nossas</em>
+casas, as <em>nossas</em> matas, as <em>nossas</em> rendas!...</p>
+
+<p>Quanto melhores, apesar dos defeitos de educação que lhes notava a mulher de
+meu tio, do que essa turba avarenta e mal educada que vi desfilar por sua casa
+durante os quatro interminaveis anos que lá vivi!</p>
+
+<p>Eulalia era baixa e magra, as faces manchadas, os dentes postiços, os
+cabelos frisados,<span class="pn">{141}</span> e uns olhos pequenos e inquietos
+que nunca se fixavam em nós com franqueza.</p>
+
+<p>Não gostava della intimamente, mas acostumara-me já a nada mostrar dos meus
+sentimentos e nada, pois, lhe disse que a fizesse supôr tal antipatia.</p>
+
+<p>No entanto, ella compreendeu desde logo que eu era pouco na casa, e ria-se
+de mim com a <em>Lóló</em> (o nome familiar da pequena de meu tio), que enchia
+de falsas caricias. Tinha grandes demonstrações de aféto pela <em>sua rica
+senhora</em>, a quem lisonjeava para despertar a sua generosidade, que
+percebera existir quando gostava das criadas, o que não era vulgar.</p>
+
+<p>Com o meu tio, cada vez mais doente e enfraquecido, ninguem se dava mal.</p>
+
+<p>Portanto, ia a menina Eulalia sêr a primeira que por lá se conservasse mais
+de um mês ou dois.</p>
+
+<p>Era mais uma criatura hostil a seguir os meus passos, mais uma bôca a
+denegrir o meu procedimento, mais uns olhos a espiarem-me, e um pensamento
+álerta que se exerceria contra mim.</p>
+
+<p>Apesar disso, as minhas relações com a Mariquinhas não afrouxavam, e a
+mulher de meu tio não se opunha a ellas porque encontrara emfim o meio
+infalivel de domar o meu<span class="pn">{142}</span> orgulho e fazer-me docil
+e estudiosa. Á simples ameaça de me prohibirem esses momentos de desafogo, não
+havia nada que eu não fizesse! Se era a unica felicidade para o meu coração&mdash;e
+o sêr humano tem della tanta necessidade! Nem os professores já se queixavam de
+mim, que a Mariquinhas e o Chico tinham-me tornado quasi estudiosa, com os seus
+conselhos e com os seus exemplos.</p>
+
+<p>O tempo nunca pára e por peor que estejâmos corre do mesmo modo veloz, ainda
+que tal nos não pareça, dobradas como são as horas de amargura. Já ia para
+quatro anos que ali estava e, relativamente, os últimos dois, desde que
+conhecera a Mariquinhas, tinham sido de relevado encanto para mim. Não pensava
+nem queria pensar no que me rodeava, para só vêr os meus amigos e com elles
+viver, mesmo quando ausente.</p>
+
+<p>Foi então, quando nós iamos já contar dezeseis anos, que a Mariquinhas
+entrou a adoecer.</p>
+
+<p>A toda a hora se sentia mal. A mãe, muito inquieta mas sem o querer mostrar,
+envolvia-a de carinhos, procurava satisfazer-lhe todos os desejos. Enchia-se de
+apreensões, e toda a sua alma se enregelava e tremia num pavôr de dôres já
+sentidas a prognosticarem amarguras ainda inéditas.<span
+class="pn">{143}</span></p>
+
+<p>Pobre mãe! Era bem certo que a Mariquinhas lhe daria, e breve, o maior
+desgosto da sua vida.</p>
+
+<p>O outôno vinha chegando, duma estranha doçura esse ano, a infiltrar-se na
+alma, todo doirado nos poentes tepidos a esmorecerem em lentas agonias, como
+nas arvores que se cobriam do oiro das folhas mortas para mais depressa se
+despirem e esperarem arrepiadas e friorentas o triste inverno.</p>
+
+<p>O jardim constelava-se de crisântemos, que na nossa terra têm o sugestivo
+nome de <em>despedidas de verão</em>, brancos como flocos de neve, rubros,
+amarelos, dum rôxo desmaiado como leves aguadas, outros de côres intensas,
+mesclados e rajados, variando na côr como na fórma, desde o desgrenhado da
+cabeleira bohemia ao recorte regular da máquina de fazer flôres de papel.</p>
+
+<p>Debaixo do caramanchão, que tambem se ia despindo, primeiro das flôres,
+depois das folhas, a Mariquinhas, quasi deitada na cadeira de verga que a mãe
+lhe almofadava desveladamente, olhava melancolica os seus queridos crisântemos,
+que todas as manhãs desabrochavam de novo e vinham preencher a falta dos que se
+cortavam ou pendiam emurchecidos.</p>
+
+<p>Com as suas mãos translucidas, que eram uma das suas grandes vaidades,
+entretinha-se<span class="pn">{144}</span> por vezes a juntar em ramilhete as
+flôres que eu lhe ia levando. E mandava-me ir dispô-las no gabinete do pai,
+como outrora ella fazia. Mas o triste velho é que não lhe achava o mesmo
+encanto, e com a cabeça entre os braços cruzados sobre a secretária, mal me via
+desatava num soluçar de criança, que me compungia extraordinariamente.</p>
+
+<p>Ás vezes mandava-mas cortar duma só côr, e juntando-as num ramo, dizia-me,
+sorrindo enigmatica:</p>
+
+<p>&mdash;«Vês? Gosto mais assim. As brancas junto das outras pareciam-me ainda mais
+pálidas. É como os doentes ao pé dos que têm saude.</p>
+
+<p>Tinha então manias esquisitas, caprichos inconcebiveis, maus humôres, que me
+faziam sofrer enormemente. Impacientava-se quando me via chorar com as suas
+maldades, mas chamava-me dahi a pouco para me beijar, numa solicitude, numa
+súplica, de quem deseja sêr perdoado.</p>
+
+<p>Ás tardes, quando o Chico recolhia depois das aulas, pedia-lhe para que
+fôsse lêr-lhe historias, lindos romances, que elle ia escolher á estante clara,
+de <em>érable</em>, do seu lindo quarto de donzela.</p>
+
+<p>Foi assim que ouvi, como o decorrer dum sonho delicioso, aquelles adoraveis
+romances<span class="pn">{145}</span> de Julio Diniz, que ficaram sagrados como
+livro de rezas para o meu coração de rapariga.</p>
+
+<p>Depois, nem já mesmo isso; ás horas a que costumava entrar o Chico,
+mandava-me embora, com uma crueldade, um desamôr, que me enchia de desespero e
+me fazia chorar horas seguidas, com a cabeça enterrada nas almofadas da minha
+cama para que ninguem suspeitasse do motivo da minha pena.</p>
+
+<p>Voltavam todos os meus desesperos e tristezas como bando de corvos, por um
+pouco afugentados pela alegria.</p>
+
+<p>Dizia adeus ás tardes joviais de recreio, adeus a tudo quanto me tinha
+consolado de viver!...</p>
+
+<p>Algumas vezes, mas sempre quando não estava o Chico, a Mariquinhas
+mandava-me chamar com muito empenho. Ia logo, correndo alvoroçada, e
+encontrava-a então carinhosa como nunca, num redobramento de aféto e ternura
+que me fazia esquecer todos os agravos.</p>
+
+<p>Era então a Mariquinhas doutro tempo, a bôa fada que transformara a minha
+dura existencia, o dôce e querido anjo da guarda dos meus sonhos.</p>
+
+<p>Uma tarde, em que estava melhor, olhou fixamente para mim, com um estranho
+olhar<span class="pn">{146}</span> que nunca lhe vira, e disse-me, como quem
+faz uma descoberta:</p>
+
+<p>&mdash;«Ó Raquel, tu és bonita, sabes?</p>
+
+<p>Eu ri-me francamente, como quem nunca ouvira tal nem se preocupara com o
+assunto.</p>
+
+<p>&mdash;«Não... sério!&mdash;acrescentou convincente&mdash;tens uma cara estranha, que não é
+bonita á primeira vista, mas que, pensando bem, te hade fazer uma simpatica
+mulher.</p>
+
+<p>E quiz que a acompanhasse ao seu quarto, que tinham mudado para o
+rez-do-chão, para que não se fatigasse a subir escadas; enfeitou-me com todos
+os seus enfeites e joias, penteou-me de muitas fórmas, e batia as palmas
+satisfeita, queria que todos me vissem, perguntava á mãe: se realmente eu não
+tinha o tipo daquella mulher que o Chico lhe trouxera o outro dia numa
+magnifica gravura tirada duma revista e era a cópia dum quadro que obtivera o
+premio na última exposição do <em>Salon</em>.</p>
+
+<p>A pobre mãe sorria, um pouco animada por aquelle entusiasmo que lhe parecia
+prenúncio de melhoras.</p>
+
+<p>Mas não, aquilo foi como descanso da doença, como que para retomar força e
+voltar ao assalto com redobrada violencia.</p>
+
+<p>Sofria muito, a pobre alma! Já mal podia andar; melhor se poderia dizer que
+se arrastava, encostada ás pessôas que a acompanhavam.<span
+class="pn">{147}</span> Tinha gestos tão cansados, sorrisos tão murchos,
+caricias tão frouxas, que eu chorava sem saber porquê, só de olhar para ella.
+</p>
+
+<p>Queria consolar-me e sorria, mas esse sorriso vinha molhado de lagrimas e
+descobria-lhe os dentes descarnados numa bôca exangue.</p>
+
+<p>Nunca mais os nossos encontros fôram a horas em que estivesse o Chico.
+Tambem, pouco me lembrava delle, triste como andava com a doença da
+Mariquinhas; mas, quando ás vezes perguntava noticias do nosso amigo,
+respondia-me tão sêcamente que cheguei a imaginar que estavam mal.</p>
+
+<p>A D. Emilia metia dó, e ella tambem olhava para mim fixamente e tinha uma
+frase de profundo desconsolo, de quasi inveja, que revelava o estado do seu
+espirito:</p>
+
+<p>&mdash;«Como a Raquel tem saüde!...</p>
+
+<p>O mal agravava-se de dia para dia, sem remedio possivel para a pobre querida
+que suportava heroicamente todos os martirios que a medicina tem inventado para
+prolongar a vida dos condenados. E ella que queria tanto viver! Tinha tanto
+amôr á vida que nunca tivera senão caricias para os seus adoraveis dezeseis
+annos!...</p>
+
+<p>Os pais já sabiam: todos os filhos na idade da Mariquinhas lhes tinham ido
+da mesma maneira, com os pobres pulmões esfacelados,<span
+class="pn">{148}</span> deitando pela bôca todo o sangue dos seus corpinhos
+exauridos, sem que a opinião dos medicos chegasse a sêr uniforme sobre o
+verdadeiro mal.</p>
+
+<p>Quando o tempo peorou e ella tambem já se não podia arrastar até ao
+caramanchão, ficava por traz dos vidros da janela para que eu a podesse vêr de
+longe.</p>
+
+<p>Depois, nem isso, deixei de a vêr; e, por mais que espiasse no jardim os
+movimentos da casa, raro conseguia saber noticias.</p>
+
+<p>Vivia num tal desespero, agora que, desde que a doença se agravara, não
+consentiam que visitasse a Mariquinhas, com mêdo de contagios!...</p>
+
+<p>E viver ali, a dois passos da unica afeição que me enchia a alma, sabê-la
+gravemente inferma, vê-la de longe e não poder falar-lhe, era uma verdadeira
+tortura para o meu temperamento de impulsiva e apaixonada.</p>
+
+<p>Era uma angustia curtida em silencio, que me despedaçava brutalmente o
+coração.</p>
+
+<p>Um dia, quando atravessava a cosinha para ir á minha piedosa espionagem, a
+Eulalia voltou-se para mim com uma frigideira na mão e disse-me, com um ar
+escarninho que me arrepiou:</p>
+
+<p>&mdash;«A menina Mariquinhas&mdash;sabe?&mdash;está a morrer.<span class="pn">{149}</span>
+</p>
+
+<p>E ante a dúvida, claramente expressa no olhar com que a fitei, esclareceu:
+</p>
+
+<p>&mdash;«É verdade! Disse-mo a criada da cosinha. Até lá ficou o medico esta
+noite.</p>
+
+<p>Empalideci, e cambaleei como se fôsse perder os sentidos. A Eulalia, que me
+dissera a novidade mais por espirito alviçareiro do que por verdadeira maldade,
+ao vêr a minha dôr teve realmente pena. Chegou-me uma cadeira, foi a correr
+buscar agua, que me obrigou a beber, e tentou consolar-me. Era tarde. O medico
+em casa da Mariquinhas a passar a noite... tinha-me soado como um dobre a
+finados. Sempre, para o meu espirito de criança, a sua presença assidua fôra
+presagio de desgraça proxima. Era a certeza de que a morte, que tantas vezes
+chamara para mim, andava perto, a bater á porta da Mariquinhas...</p>
+
+<p>Uma tremura convulsiva fazia-me bater os dentes como se estivesse a tiritar
+de frio&mdash;era todo o frio da alma que me enregelava o sangue.</p>
+
+<p>A Eulalia consolava-me, apiedada,&mdash;talvez que no fundo ella não fôsse
+verdadeiramente má. A vida, com as suas exigencias e cruezas, torna tão
+diferentes as criaturas que não têm a alma temperada para as grandes
+resistencias!&mdash;Porque não pedia eu licença para ir<span class="pn">{150}</span>
+visitar a minha amiga? Talvez não fôsse verdade!...</p>
+
+<p>&mdash;Pedir á tia?! Nunca lhe tinha pedido nada, a Eulalia sabia. Era esse o meu
+orgulho, a unica coisa que me tornava, aos meus proprios olhos, num sêr
+independente e respeitavel.</p>
+
+<p>E a criada, muito conciliadora, como se tivesse despertado na sua alma a
+natural bondade da nossa raça de sentimentais pelo apiedamento que a minha
+mágua lhe causava, ofereceu-se para pedir, como coisa sua, a devida licença, se
+eu quizesse...</p>
+
+<p>Eu quiz, é claro. Era a primeira vez que o meu orgulho se dobrava numa
+convivencia com a criada, o que me amarrotava e inferiorisava á minha propria
+consciencia, que foi sempre o unico julgador que temi.</p>
+
+<p>A licença não veiu logo, para mais cruelmente me fazerem sentir a
+dependencia, mas a rapariga não desistiu e tanto disse que á tarde me entrou no
+quarto triunfante com a autorisação para ir fazer a visita tão ambicionada.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>A noite cahia num agonisar de luz, que as nuvens pesadas de chuva mais
+velavam.</p>
+
+<p>Ao entrar distingui apenas fórmas indecisas, movendo-se silenciosamente no
+quarto<span class="pn">{151}</span> mal alumiado. Logo a seguir, não sei quem
+colocou uma lamparina de vidro coalhado sobre uma mêsa, aos pés da cama onde a
+Mariquinhas agonisava.</p>
+
+<p>Olhei com dolorida surpreza: ella, que fôra tão linda, duma graciosidade que
+doirava toda uma mocidade que se abria em flôr, tornara-se com a doença
+pavorosamente feia.</p>
+
+<p>De princípio apenas percebera o estertor rouco, que fazia arfar o seu
+corpinho mumificado, e uma frouxa mão muito pálida, que apanhava, inconsciente,
+a roupa da cama. Depois, com os olhos afeitos á quasi obscuridade em que me
+encontrava, fitei-a com terror e não podia, por mais que quizesse, deixar de
+olhá-la, num crescendo de angustia que me apertava a garganta e me comprimia o
+coração.</p>
+
+<p>Chorei então silenciosa mas desesperadamente, num desânimo de quem vê
+afundar-se todo um passado de alegrias e não vê no futuro luzeiro de esperança.
+</p>
+
+<p>A Mariquinhas ali estendida, a sofrer, a morrer, ella tão linda, tão gentil,
+a gárrula, algum tempo antes! Ai, pobre, pobre querida, como desejei
+sinceramente e como formulei no silencio da minha consciencia o desejo de que a
+morte me levasse antes a mim e a deixasse a ella, á bôa fada dos meus sonhos,
+ao<span class="pn">{152}</span> anjo da guarda que descera até á minha miseria
+desdobrando as suas brancas azas acalmadoras!</p>
+
+<p>Mas a luz, avivada num momento, bateu-lhe em chapa no rosto, naquelle pálido
+rosto tão completamente mudado; a impressão foi por tal fórma brutal que as
+lagrimas secaram-se de subito nos meus olhos e um grito de terror veiu expirar
+nos meus labios.</p>
+
+<p>Endireitei-me sufocada, e ia fugir, numa revolta instintiva, á miseria do
+meu ideal despedaçado. Antes, antes a não tivesse procurado vêr, e guardasse na
+memoria a linda imagem do que fôra&mdash;dizia no íntimo da minha alma aquella voz
+egoista, e tão fundamente humana, que faz a felicidade dos que a podem escutar
+a tempo.</p>
+
+<p>Não sei quem me ciciou ao ouvido:&mdash;vai morrer!</p>
+
+<p>E, não sei porque estranha percéção daquella inteligencia prestes a
+desaparecer, ella me presentiu e me reconheceu. Abriu os olhos, uns olhos
+enormes já postos noutro fito; levantou a mão, já quasi entorpecida; e soltou
+uns sons inarticulados, que mal pareciam de voz humana.</p>
+
+<p>&mdash;«Chamou-a, quer-lhe dizer alguma coisa&mdash;murmuraram-me ao ouvido,
+empurrando-me para a cama.<span class="pn">{153}</span></p>
+
+<p>Fui cahir, desorientada, de joelhos, junto desse corpinho debil que tanto
+sofria para sêr arrancado á vida.</p>
+
+<p>E nunca, nunca mais poderei riscar da memoria o olhar fundissimo de
+amargura, quasi odiento, com que a Mariquinhas me envolveu toda, como que
+sondando-me...</p>
+
+<p>Meu Deus! eu não compreendi, não podia compreender então o desespero da
+pobre alma ao vêr-me cheia de saüde e de vida, emquanto ella&mdash;que tanto amava e
+desejava viver!&mdash;ia desaparecer, para todo o sempre!</p>
+
+<p>Ai pobre querida, que remorso imenso senti depois! Mas nesse instante,
+fixada por esse seu doloroso olhar cruel, senti uma surda revolta que subiu do
+mais íntimo da minha alma e me invadiu completamente o espirito. Toda a
+animalidade saudavel e forte do meu sêr se insurgia contra a inveja expressa
+nesse olhar de moribunda&mdash;que não queria sêr vencida...</p>
+
+<p>E que tinha ella que invejar-me, se alguns momentos antes toda a minha vida,
+toda a minha saüde, o meu sangue quente e palpitante, tudo eu lhe daria de bôa
+vontade?!...</p>
+
+<p>A mãe, de joelhos, do outro lado da cama, escondia a cabeça na roupa para
+que os soluços não amargurassem a doente que tudo ouvia e compreendia.<span
+class="pn">{154}</span></p>
+
+<p>O pai, enterrado numa poltrona, parecia paralisado pela violencia extrema da
+dôr.</p>
+
+<p>Dahi para diante não fui mais senhora de mim. Criaturas serviçais, muito
+práticas em identicas cênas, aconselhavam-me o que devia fazer. Uma velha,
+principalmente, apoderou-se da minha pessôa e foi-me indicando, com uma
+intimativa que não admitia tergiversações,&mdash;o que é costume fazer uma menina na
+morte de uma amiguinha.</p>
+
+<p>&mdash;«Ella quer falar,&mdash;segredava-me&mdash;pergunte-lhe se quer alguma coisa.</p>
+
+<p>E tocava-me nos hombros, para que me inclinasse sobre a face cadaverica da
+Mariquinhas.</p>
+
+<p>Queria fechar os olhos ao ritus de quasi caveira que tinha nos seus dentes
+descarnados, e cada vez os abria mais, até que a sua imagem me ficou tão
+profundamente vincada na memoria, que me vem sobre todas, que é superior a
+todas, ás mais ridentes como ás mais dolorosamente tragicas.</p>
+
+<p>Um som qualquer escapou desses labios que inutilmente se moviam num esforço
+para falar, e a velha murmurou, traduzindo o que ninguem poderia ter
+compreendido:&mdash;Coitadinha, falou no menino Chico!</p>
+
+<p>Depois, tive que apertar-lhe a mão, mas ao tocar na frieza placida desse
+corpo que vinha<span class="pn">{155}</span> morrendo aos poucos, não sei que
+onda de sangue me subiu ardente do coração confrangido, que perdi a compreensão
+nitida das coisas e fugi desastradamente, empurrando todos, sentindo atraz de
+mim mãos de moribundos agarrarem-me nas costas, leves mãos feitas de sombra que
+não tinham força já para segurar-me...</p>
+
+<p>Ninguem deu pela minha fuga, suponho, porque logo após senti o chorar
+ruidoso dos que já não tinham que contêr a explosão da sua dôr diante do pobre
+corpo que umas tenues radículas de vida prendiam á terra. Voltei atraz. A mãe
+da Mariquinhas, abraçada ao corpo inanimado da filha, chorava tão
+angustiadamente que eu sentia ao ouvi-la uma dôr fisica tão aguda, tão
+sangrenta, como se me estivessem esfaqueando o corpo.</p>
+
+<p>O pai estava sucumbido&mdash;era como se o seu espirito tivesse acompanhado o da
+filha estremecida.</p>
+
+<p>Não sei como sahi dali e me encontrei nos braços da pobre D. Emilia, que
+chorava beijando-me com uma ternura que nunca lhe tinha conhecido. E não sei
+dizer, tambem, quem me levou para casa e me fez deitar essa noite no meu quarto
+onde fiquei transida de pavôr, esperando o dia como se com a luz terminasse
+aquelle terrivel pesadelo, que me<span class="pn">{156}</span> recusava a
+aceitar como a verdade irremediavel!</p>
+
+<p>Com a morte da Mariquinhas toda a alegria acabou para mim. Nunca mais voltei
+ao jardim, a olhar as janelas do seu quarto, agora sempre fechadas.</p>
+
+<p>O Chico, quando voltou, pensativo e triste, só de longe me acenava com a mão
+um cumprimento amigo.</p>
+
+<p>A vida tornou-se-me insuportavel: despida de interesse, vasia de desejo.
+Voltei a não estudar, e peor do que nunca tolerava as repreensões, conselhos e
+imposições da inevitavel estrangeira. Com o sofrimento voltava-me a revolta; e,
+como com os meus dezeseis anos já raciocinava mais, via melhor as coisas,
+compreendia que meus pais não me tinham abandonado...</p>
+
+<p>Sim... eu confesso que me tornei alguma coisa dificil de aturar. A tia
+queixava-se, queria domar a selvagensinha&mdash;como me tratava&mdash;e convencia-se que
+havia de vencer o meu espirito rebelde.</p>
+
+<p>Mas isso, já o devia saber, era menos facil do que sujeitar uma aguia a
+viver numa capoeira.</p>
+
+<p>Uma tarde, encostava-me aos vidros da janela do meu quarto quando na rua vi
+passar o Chico.<span class="pn">{157}</span></p>
+
+<p>Sorriu-se para mim e perguntou-me se estava doente, tão demudada e triste eu
+lhe parecia. Mal o vi, uma onda de lagrimas me subiu aos olhos e retirei-me
+soluçando da janela, sem atinar com palavras com que respondesse á sua
+surpresa.</p>
+
+<p>Nesse dia chorei sempre, e já a noite ia adiantada quando me levantei da
+cama, acendi a vela, e assim mesmo, em camisa e descalça, fui escrever ao Chico
+a contar a minha dôr, dizendo-lhe o meu desespero, e pedindo-lhe que me
+livrasse daquella prisão onde em breve morreria, como a Mariquinhas,&mdash;estava
+certa! Escrevia, pela primeira vez, tudo quanto sentia, vertiginosamente, sem
+pesar as palavras, surpreendendo-me a escrever melhor do que se falasse...</p>
+
+<p>Depois da carta escrita e arrecadada debaixo do travesseiro, eu puz-me a
+imaginar o que faria o Chico. Certamente não me abandonaria á minha sorte,
+correria em meu auxilio como paladino doutras eras...</p>
+
+<p>O que uma cabeça de rapariga arquiteta aos dezeseis anos na sua primeira
+noite de insónia!...</p>
+
+<p>Toda a minha esperança era o Chico&mdash;se elle me faltasse, o mundo acabaria
+para mim!</p>
+
+<p>De manhã reli a carta, que me pareceu ainda dizer pouco do que sentia, e
+tentei<span class="pn">{158}</span> escrever outra&mdash;que me sahiu peor. Meti-a
+no bolso e fui ao jardim com ideia de a entregar ao meu amigo, mas um
+invencivel acanhamento fez-me voltar para casa.</p>
+
+<p>A Eulalia, na cosinha, parecia adivinhar a minha intenção, e disse-me,
+maliciosa, muito habituada a <em>fazer de capa</em> ás meninas que servira&mdash;«O
+menino Chico está aqui em casa da S.ª D. Emilia, entrou ha pouco para lá.</p>
+
+<p>E eu, fingindo uma grande serenidade, que ella bem conheceu ser falsa:&mdash;«Ah,
+sim?! Eu queria entregar-lhe uns papeis... uma carta... que a Mariquinhas
+deixou para elle.</p>
+
+<p>A mentira fez-me córar, balbuciar; envergonhei-me de mim mesma.</p>
+
+<p>&mdash;«Se a menina quer, eu levo-lha lá...</p>
+
+<p>E quiz. E ella levou a carta, emquanto eu ficava ansiada, mal contendo o
+coração, que parecia saltar-me no peito.</p>
+
+<p>&mdash;«Elle disse que respondia já&mdash;veiu a Eulalia, toda prazenteira,
+anunciar-me.</p>
+
+<p>Recolhi ao meu quarto, muito triste, sem saber o que fazer, até que a carta
+do Chico viesse trazer-me a esperança ou a morte.</p>
+
+<p>Como aos dezeseis anos a vida se nos apresenta duma simplicidade que não
+admite a resignação nem a tolerancia!...</p>
+
+<p>Não tardou muito sem que a Eulalia viesse, com um ar de camaradagem e
+cumplicidade<span class="pn">{159}</span> que me irritou, trazendo a resposta
+do Chico debaixo do avental.</p>
+
+<p>Recebi-a simulando indiferença, e pú-la de lado, sem a querer abrir emquanto
+os seus olhos maliciosos ali estivessem a prescrutar os meus sentimentos, como
+que a assoalhar-me a alma...</p>
+
+<p>Desconcertada pela minha atitude, sahiu; e então, tremendo como quem comete
+uma áção criminosa, rasguei o sobrescrito, e li e reli cem vezes, com os olhos
+turvados, as poucas linhas que o Chico me escrevia:</p>
+
+<p>«<em>Raquel:</em></p>
+
+<p>«Obrigado pela sua carta e pela confiança que deposita em mim. Escreva aos
+seus pais contando-lhe a sua tristeza e mande-me a carta que eu me encarrego de
+lha fazer chegar ás mãos. A Senhora D. Emilia e a mamã acrescentarão algumas
+palavras para dar força ás suas queixas. Todos nos interessamos pela nossa
+amiguinha Raquel e temos muita pena de a vêr sofrer. Creia na dedicação e aféto
+do seu amigo&mdash;Chico.»</p>
+
+<p>Não era muito para o que eu tinha sonhado, mas era alguma coisa, era o apoio
+moral que me faltava.</p>
+
+<p>Sentia-me protegida e amada, e isso era o bastante para me tornar feliz.
+Relia ainda a carta, que ia meter no seio, quando a porta<span
+class="pn">{160}</span> do quarto se abriu de improviso e a cara detestada da
+minha prima apareceu perguntando-me, trocista:</p>
+
+<p>&mdash;«Então a menina recebe cartas de namorados e não diz nada á gente?!...</p>
+
+<p>&mdash;«Vai-te daqui para fóra!&mdash;gritei desesperada.</p>
+
+<p>&mdash;«Ah, estás assim soberba com o teu Chico?! Pois eu direi á mamã, deixa
+estar!</p>
+
+<p>&mdash;«Importa-me pouco a tua mãe, dou-lhe tanta importancia como a ti&mdash;e,
+empurrando-a com violencia para o corredor, fechei a porta por dentro.</p>
+
+<p>A rapariga vingou-se: foi levantando um grande alarido de queixa que tudo
+contou á mãe. E não tinham decorrido talvez cinco minutos sem que a abominavel
+criatura não estivesse a bater com violencia á porta, gritando como possessa
+para que lha abrisse.</p>
+
+<p>Com uma serenidade de que ainda hôje me surpreendo, fui abrir, e ficando
+entre portas perguntei, sem me alterar, o que desejava.</p>
+
+<p>&mdash;«<em>Oh! Não ter vergonha! Menina dizer a mim você recebeu carta dum
+maroto e pergunta o que mim quer! Vêr esse carta já! Vergonhas, vergonhas, dar
+maus exemplos a meninas! Quando vier seu tio mim dizer tudo!...</em></p>
+
+<p>E a torrente de destemperos parecia não se estancar.<span
+class="pn">{161}</span></p>
+
+<p>No meio daquella gritaria poude apenas levantar a voz para lhe dizer
+resolutamente:</p>
+
+<p>&mdash;«Não lhe dou a carta, pode berrar á vontade.</p>
+
+<p>Perdeu então de todo a cabeça e fez um gesto de ameaça, que me desvairou.
+</p>
+
+<p>&mdash;«<em>Dá-me carta já!</em></p>
+
+<p>Á sua violencia respondeu a minha violencia. O meu caráter altivo, o meu
+temperamento indomavel, a minha educação livre, o meu proprio sangue, que vinha
+de herois, tudo se poderia amoldar e quebrar na luta surda e persistente de
+todos os dias; assim brutalmente, pela violencia, dava-se a reáção que produz a
+revolta.</p>
+
+<p>Ergui-me duma só vez a toda a altura do meu orgulho e tornei-me soberba de
+energia desesperada.</p>
+
+<p>&mdash;«Dar-lhe esta carta?!&mdash;E passei-lha insolentemente por diante dos
+olhos&mdash;Nunca! Fique sabendo, nunca! Prefiro enguli-la.</p>
+
+<p>As palavras vinham-me aos labios tumultuosamente, numa abundancia que me
+espantava.</p>
+
+<p>Então, a terrivel criatura vomitou coisas abominaveis que me insultaram
+infamemente e das quais&mdash;tenho hôje quasi a certeza&mdash;, na sua ignorancia do
+português, ella não sabia o verdadeiro sentido.<span class="pn">{162}</span>
+</p>
+
+<p>Uma onda de sangue me subiu ao rosto e me turvou os olhos; toda a candura da
+minha alma, todo o pudôr do meu corpo de virgindade absoluta, se insurrecionou.
+Fitava-a, desvairada; sim, creio que, se não recuasse e não baixasse as mãos
+que tentavam prender-me, a teria estrangulado. Sahi do quarto violentamente,
+empurrando a Eulalia, que observava sardonica a cêna que preparara com a sua
+baixa intriga. Ao contacto do seu corpo a minha raiva explodiu com mais furôr:
+</p>
+
+<p>&mdash;«Vá, sua canalha!&mdash;gritei-lhe halucinada&mdash;vá chamar gente para lêr as
+cartas que me traz!</p>
+
+<p>Estava cega, como um toiro de bôa pinta longamente encurralado, quando lhe
+abrem a porta do curro e entra na praça louco de furia, correndo para um e
+outro lado, fazendo saltar para a trincheira, como bonecos, os toureiros que de
+longe o irritam agitando as capas vermelhas.</p>
+
+<p>A pequena agarrou-se a mim, aos gritos, mas rolou para o meio do chão com
+uma bofetada; e a porta da cosinha aberta, com um pontapé, que fez cahir um
+vidro que se estilhaçou no chão, enfiei por ella, sem bem saber o que fazer, e
+achei-me no jardim.</p>
+
+<p>Dum pulo saltei a sebe florida que separava o nosso jardinsinho, agora
+abandonado, do da<span class="pn">{163}</span> D. Emilia, e entrei-lhe como
+doida pela casa dentro.</p>
+
+<p>Então cahi-lhe nos braços, soluçando perdidamente todo o meu desespero
+desfeito em lagrimas.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Á noite o meu tio veiu buscar-me. Deu-me conselhos, tratou-me com muita
+bondade, desculpou a mulher, pediu, ordenou... Nada conseguiu. Agarrei-me á mãe
+da Mariquinhas, e de tal maneira me impuz ao seu pobre coração de mãe tão
+dolorosamente experimentado que ella pediu a meu tio que não insistisse. Eu
+ficaria com ella emquanto os meus pais não resolvessem o incidente.</p>
+
+<p>O meu tio concordou, vencido pela palavra persuasiva e dôce da minha
+protétora, e ao sahir bateu-me na cabeça e disse-me com ternura maguada:&mdash;«Ah,
+cabecinha, cabecinha louca, que herdaste, por teu mal, todo o sangue rebelde da
+nossa familia!</p>
+
+<p>E sahiu, desculpando-me no seu íntimo, elle o rebelde doutro tempo, vencido
+agora pela doença e dominado, contra vontade, sabendo muito bem que o era, só
+para não desencadear a tempestade caseira e não aturar o genio furibundo da
+mulher. Pobre e querido tio! Ninguem reconheceria nesse velho alquebrado,<span
+class="pn">{164}</span> mas ainda de soberbo e distinto porte, o heroi de tanta
+façanha que deixara nome entre os rapazes da escola, como mais tarde entre os
+colegas do exercito e companheiros de trabalhos e perigos. Era o nosso sangue,
+na verdade, que o fazia sorrir, quasi indulgente, quando me admoestava por
+tanta loucura; o nosso sangue que o fizera, quando rapaz, desafiar, sósinho,
+uma companhia de pequenos colegiais como elle, e que o fizera, mais tarde,
+responder sempre com soberba quando se julgava desrespeitado, mesmo por um
+superior hierarquico...</p>
+
+<p>Pobre tio! Com quanta saudade recordo hôje o seu bom sorriso quando, longe
+da companheira, nos contava anedótas e aventuras que nos perdiam de riso. Como
+teria sido adoravel, sem essa servidão dum casamento abominavel, a que não
+soube nem poude fugir!...</p>
+
+<p>Foi então que escrevi aos meus pais contando-lhe o longo martirio daquelles
+quatro anos em que me tinham afastado do seu carinho.</p>
+
+<p>Disse-lhes o meu desespero, o meu horror á tia e aos seus métodos
+educativos, e recordei com pungente saudade a feliz infancia que me tinham
+feito a contrastar com aquelle inferno de todos os dias e de todas as
+horas.<span class="pn">{165}</span></p>
+
+<p>E como os meus nervos sobreexcitados faziam a penna galopar pelo papel
+desabaladamente, estou certa que nada deixei por contar.</p>
+
+<p>A D. Emilia e a mãe do Chico cumpriram o que tinham prometido; escreveram
+comigo para desmanchar qualquer má impressão que o meu procedimento podesse
+despertar no espirito dos meus pais.</p>
+
+<p>Que dôces dias de serena paz eu passei ali emquanto não veiu a resposta á
+minha carta&mdash;que fôram os meus proprios pais que em pessôa me quizeram vir
+buscar.</p>
+
+<p>Uma tarde o Chico entrou&mdash;vinha despedir-se. Eu trabalhava junto da janela,
+num bordado que a D. Emilia me dera para fazer, porque entendia que sempre as
+mãos deviam estar ocupadas e o espirito prêso a qualquer trabalho manual que,
+por insignificante que parecesse, era muito na disciplina moral do nosso sêr.
+Era a esse constante labôr das suas habilissimas mãos, que a bôa senhora
+atribuia o resistir ainda á sua dôr.</p>
+
+<p>Estava só; a D. Emilia fôra dentro chamada pelo marido, quasi sempre de cama
+desde que se dera o grande desastre para o seu coração de pai que na unica
+filha poséra todo o seu aféto e esperança.<span class="pn">{166}</span></p>
+
+<p>&mdash;«Que trabalhadeira estás!&mdash;disse-me o Chico, sorrindo, porque ao entrar eu
+nem sequer erguera os olhos, que dantes o fitavam confiantes e fraternais.</p>
+
+<p>É que as palavras impudicas da estrangeira acudiam-me á memoria e tinham
+maculado para sempre a inocencia do meu aféto por elle.</p>
+
+<p>Sorri á sua graça, mas com um sorriso tão maguado, que o Chico, vibratil e
+bondoso como é, logo percebeu que não estava bem. E, muito carinhoso, quiz
+saber se estava doente, se me doía alguma coisa.&mdash;Não, não,&mdash;respondi nervosa e
+sacudida&mdash;doença não tinha... mas lembrava-me o que tinham dito de ambos, e
+isso incomodava-me fortemente.</p>
+
+<p>E elle quiz saber o que me dissera a tia, o que dera causa á grande cêna, de
+que ainda ria, só em pensar nella.</p>
+
+<p>Cuidava que era ainda a pequena e ingenua Raquel que elle e a Mariquinhas
+quasi amavam como filha, e que o meu áto revoltoso fôra apenas um capricho de
+criança endemoninhada e voluntariosa. Mal supunha que uma alma de mulher, de
+subito despertada, sofria e palpitava dentro em mim.</p>
+
+<p>Subitamente as lagrimas vieram-me aos olhos e começaram a correr, sem que eu
+as podesse<span class="pn">{167}</span> estancar no lenço encharcado, que
+mordia em desespero.</p>
+
+<p>Passara, sem transição, da insensibilidade quasi completa de quatro anos á
+mais disparatada pieguice.</p>
+
+<p>Por nada as lagrimas me vinham aos olhos e corriam sem cessar.
+Desesperava-me contra mim mesma; queria vencer-me, e não podia!</p>
+
+<p>O Chico, muito comovido, abraçava-me e beijava-me para me socegar, como
+fazia sempre, com a simplicidade carinhosa dum irmão mais velho, sem suspeitar
+a confusão em que eu me debatia.</p>
+
+<p>Aproveitando um momento de mais calma para os meus nervos, disse-lhe para
+mudar de conversa:</p>
+
+<p>&mdash;«O Chico vai-se ámanhã embora e nunca mais se lembrará de mim; eu tambem
+vou para tão longe!</p>
+
+<p>&mdash;«Que tolice, nem que em Portugal haja longes!...&mdash;respondeu a rir,
+emquanto eu me afastava um pouco, porque as suas caricias me sobresaltavam e
+faziam mal.</p>
+
+<p>&mdash;«Pois sim, Coimbra não é muito longe, mas os estudantes que lá andam não
+pensam a sério em coisa nenhuma e tudo esquecem quando lá chegam.</p>
+
+<p>&mdash;«Quem te disse tal?<span class="pn">{168}</span></p>
+
+<p>&mdash;«As raparigas da minha aldeia, quando cantavam:</p>
+
+<blockquote>
+ «O amôr dum estudante<br>
+ «Não dura mais de uma hora<br>
+ «Tóca a cabra vão para a aula<br>
+ «Vêm as férias vão-se embora.</blockquote>
+
+<p>Quando isto é o amôr, o que fará a amizade!?</p>
+
+<p>As lagrimas tinham-se transformado em riso&mdash;ria agora convulsamente.</p>
+
+<p>&mdash;«Isso são cantigas! Não penses isso de mim, Raquel. Ha rapazes loucos, mas
+tambem os ha sérios, como eu...</p>
+
+<p>&mdash;«Não acredito! O Chico vai esquecer-se de mim, e quando fôr para a aldeia
+nunca mais o verei nem saberei de si! Antes queria morrer!...&mdash;tornava a
+chorar, visionando-me só, sem vontade nem gosto para viver.</p>
+
+<p>&mdash;«Ó Raquelsinha, não diga isso, não a esquecerei nunca,&mdash;que tolice! Os
+amigos de infancia nunca se esquecem, creia. Nem tão pouco esquecerei a
+Mariquinhas.</p>
+
+<p>&mdash;«A essa,&mdash;solucei, num sentimento de magua mortificado com uma pontinha de
+inconsciente ciume&mdash;a essa não a esquecerá o Chico, não!...</p>
+
+<p>&mdash;«Mas porque menos a ella do que a si?<span class="pn">{169}</span></p>
+
+<p>&mdash;«Então o Chico não era namorado da Mariquinhas?!&mdash;perguntei numa ansiedade
+de dúvida que se deseja não vêr confirmar.</p>
+
+<p>&mdash;«Ó Raquel, não diga isso! Quem lhe meteu na cabeça uma loucura
+dessas?!&mdash;perguntou indignado.&mdash;Então não eramos como três irmãos, três
+companheiros de brincadeira?!...</p>
+
+<p>&mdash;«Ninguem me disse nada. Eu hôje é que pensei, depois do que ouvi lá em
+casa, que podia sêr que o que se lembravam comigo fôsse com ella... Ás vezes a
+Mariquinhas parecia que me tinha raiva, e porfim já não queria que brincassemos
+juntos... lembra-se?</p>
+
+<p>&mdash;«Sim, é verdade. Não tinha pensado nisso. Até pediu para a não visitar
+quando estivesse a Raquel, porque a sua alegria a incomodava...</p>
+
+<p>Pobre Mariquinhas! A sua figura esbelta e linda levantava-se a nosso lado
+reclamando a sua parte de aféto, mas o seu rosto pacificado pela morte já não
+exprimia o vago ciume com que tanto nos mortificara. A sua recordação unia-nos
+numa afetuosidade e numa saudade igual.</p>
+
+<p>&mdash;«Mas então&mdash;disse o Chico, surpreso&mdash;a Mariquinhas supunha que nós eramos
+namorados?! Pobre amiga! Uma criança como a Raquel era...<span
+class="pn">{170}</span></p>
+
+<p>&mdash;«Eu não percebi nada&mdash;respondi ingenua&mdash;nem supunha que era tão sua
+amiga... Nem que esta amizade era diferente... Hontem é que compreendi tudo!...
+</p>
+
+<p>&mdash;«Mas hontem, porquê? Disseram-lhe mal de mim?!...&mdash;perguntou assomado,
+numa daquellas fogosas cóleras que ensombram rapidamente o rosto do meu amigo.
+</p>
+
+<p>&mdash;«De si, não!... Foi de mim. A <em>estrangeira</em>... disse-me coisas,
+coisas... que só pensar nellas me faz mal!</p>
+
+<p>Córei e baixei os olhos numa confusão, vendo-o sorrir, já desanuviado.</p>
+
+<p>Curvando-se para mim, perguntou-me baixinho, numa caricia que estava toda na
+doçura da voz:</p>
+
+<p>&mdash;«Disse-lhe que era minha namorada, não foi?...</p>
+
+<p>Abaixei ainda mais a cabeça sobre o bordado, não querendo responder uma
+afirmativa que me confundia.</p>
+
+<p>&mdash;«E não o quer sêr, de verdade, Raquel?... Será a minha noiva emquanto
+andar a estudar, e a minha mulher, a minha companheira, quando eu já ganhar
+dinheiro para os dois...</p>
+
+<p>Sorria embevecida, olhava-o cheia de desejo de lhe dizer que sim e
+saltar-lhe ao pescoço, numa alegria louca; mas ficava-me calada,<span
+class="pn">{171}</span> perturbada, sem saber verdadeiramente distinguir até
+onde me seria permitido mostrar o meu entusiasmo segundo as praxes que a
+<em>tia</em>, dizia, eu ha muito tinha desprezado impudentemente.</p>
+
+<p>O Chico compreendeu; e, não precisando ouvir mais, pegou-me dôcemente na mão
+que conservou entre as suas emquanto conversavamos a meia voz, sorrindo
+enlevados, contando coisas, recordando factos, que reconhecemos nesse momento
+sêrem significativos daquelle desenlace.</p>
+
+<p>Ha muito tempo que eu era a sua mulhersinha&mdash;recordou o Chico sorrindo&mdash;nas
+brincadeiras em que a Mariquinhas, já mais consciente, reservava para si sempre
+os papeis de rainha ou fada, que iam tão bem á sua gentil figurinha de
+estatueta.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Foi nessa tarde deliciosa de fim de inverno, com o testemunho das camelias
+brancas, que a Mariquinhas adorava, e na vespera delle ir para Coimbra e eu
+recolher á velha casa paterna, que nós ligámos para sempre as nossas
+existencias, que dissemos essas mil palavras banais que nada dizem para os
+outros e são, num momento unico da vida humana, as verdadeiras palavras
+sacramentais que<span class="pn">{172}</span> ligam duas almas numa comum e
+deliciosa aspiração.</p>
+
+<p>Foi nessa tarde, que remiu para o meu coração anos de sofrimento, que
+traçámos a azul e oiro o futuro ridente que hôje estamos desfrutando.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Com a vinda de meus pais, trocadas explicações e desculpas entre elles e os
+tios, sem que eu fôsse obrigada a vêr mais a minha façanhuda inimiga, a
+tranquilidade e a alegria voltaram de novo ao meu espirito, que em breve se
+refez e normalisou na serenidade da vida aldeã.</p>
+
+<p>O Miguel, que já então era um estudante muito cuidadoso, tornou-se em breve
+o amigo inseparavel do Chico, que teve sempre meio de repartir as férias entre
+a antiga familia, que o adorava, e a nova, onde não era menos querido.</p>
+
+<p>Até o Padre Zé discutia com elle pontos graves de historia romana e ficava
+boquiaberto com a sabedoria dos rapazes de hôje... e da qual nos riamos a
+valer, indo depois ás escondidas folhear o Larousse onde procuravamos citações
+e factos para confundir o santo velho.</p>
+
+<p>A Maria Augusta, essa só pedia a Deus que a deixasse viver até vêr na capela
+da<span class="pn">{173}</span> casa, abençoado por Deus e pelos homens, um par
+que era tanto do seu agrado.</p>
+
+<p>E agora, realisado esse ideal,&mdash;que reuniu á mesma mêsa duas familias que
+ficaram sendo só uma, naquelle grande jantar de nupcias a que assistiu toda a
+parentela dos arredores&mdash;ella espera ansiosa porque lhe seja permitido
+apresentar ao Padre Zé, de capa de asperges e estola rica, um menino que hade
+vir breve de Paris numa condessinha de flôres, e para o enxoval do qual
+trabalhamos dia e noite com a mais rútila e alvoroçada alegria.</p>
+
+<p>&mdash;Com o vestido de antiga seda côr de rosa e grandes ramos prateados,
+coberto com o véo de tule bordado, que a mamã guarda na grande arca dos
+enxovais, eu verei como irá lindo!...&mdash;É o que me assegura a Maria Augusta, que
+recorda outros batisados celebres na familia, e o meu principalmente, que,
+crescidinha já, por doença do padrinho, me desesperei iconoclastamente com o
+<em>sal da sapiencia</em> e arranhei a cara ao padre!</p>
+
+<p>Não se esqueceu de recomendar ao Chico, uma vez que elle foi a Lisbôa, que
+deixasse feita a encomenda dos bolos para a festa e de confeitos para a
+rapaziada, que assim encherá de bençãos o batisado...<span
+class="pn">{174}</span></p>
+
+<p>Isto emquanto a bôa mamã dá volta ao bragal, desmancha lençóes e finas
+bretanhas, e manda ao sotão buscar o lindo bercinho em que nos criou a todos, e
+que já espera, forrado e engomado de fresco, pelo pequenino dôno...&mdash;ou
+dôna?!...</p>
+
+<p>E, seja o que fôr, bem vindo será ao nosso lar e... já o jurámos: só nós o
+educaremos e guiaremos nos seus estudos, porque, sahindo, como poderá ser, á
+mãe, não será facil meter-lhe grandes sabedorias na cabeça.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Esquecia-me dizer que o meu pobre tio está emfim descansado, livre da mulher
+que tão amarga lhe fez a existencia, bem encafuado num mausoleu de marmore,
+onde ella o vai vêr a miude, naturalmente para lhe dar conselhos o reprimendas.
+Dizem-me que na sua opinião eu sou o mais execravel dos animais ferozes, e
+ainda treme de raiva só em pensar na minha negra ingratidão. A filha prepara-se
+para casar confecionando o enxoval e aprendendo a sêr uma admiravel dôna de
+casa, capaz até de ser professora numa escola de <em>ménagères</em>, mas os
+noivos é que, como sempre assustados com o merecimento da mulher, já lhe vão
+tardando um pouco.<span class="pn">{175}</span></p>
+
+<p>O pai da Mariquinhas morreu, e a D. Emilia resigna-se a viver para chorar
+todas as lagrimas da sua bela alma pelo marido e pelos filhos, sempre vivos na
+sua lembrança.</p>
+
+<p>Sente por nós um dôce carinho, que nos enche de reconhecimento, e todos nos
+juntamos na saudade da querida morta, a linda Mariquinhas, que tão íntimos e
+indissoluveis tornou os nossos afétos.<span class="pn">{176}<br>{177}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h1><a name="SECTION00400000000000000000">IV<br>
+Sacrificada</a></h1>
+
+<p><span class="pn">{178}<br>{179}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h2><a name="SECTION00410000000000000000">SACRIFICADA</a></h2>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h3><a name="SECTION00411000000000000000">I</a></h3>
+
+<p>Quando Manoela entrou para o convento, todas as freiras e recolhidas
+correram apressadas á grade do côro para conhecerem a nova companheira, de que
+a superiora, Soror Gertrudes, ha muito anunciara a vinda.</p>
+
+<p>Falavam a um tempo, riam satisfeitas com aquella diversão, que
+desmonotonisava a vida fastienta de todos os dias, emquanto que ella, nervosa e
+pálida, as olhava assustada, como quem entrevê, sem o compreender, um mundo
+estranho.</p>
+
+<p>Sentia-se abandonada no mundo, sem um aféto ou uma ilusão que lhe devesse
+dar o desejo e a alegria de<span class="pn">{180}</span> viver, mas, apesar
+disso, aos seus dezeseis anos encantadores não sorria positivamente a ideia da
+prisão.</p>
+
+<p>Era tão dôce o sorriso triste que lhe errava nos labios, e a sua voz,
+ligeiramente cantada, com o sotaque provinciano, era tão fresca e cariciosa,
+que as bôas freiras a consideraram desde logo um anjo do Senhor, mandado para
+as consolar naquelle triste fim da sua casa religiosa.</p>
+
+<p>Encheram-na de presentes: uma trazia-lhe uns bentinhos, outra uma lâmina
+ingenua, salpicada de papelinhos doirados; rendas finas, outrora feitas na
+casa; dôces, especialidade do convento; coisas insignificantes, que eram no
+entanto toda a sua fortuna.</p>
+
+<p>E ella sentiu-se assim prêsa pelo reconhecimento, integrando-se numa vida
+que em breve seria tambem a sua.</p>
+
+<p>A mãe perguntou-lhe: se queria entrar desde logo para o convento ou ficar
+alguns dias fóra, para vêr a cidade.</p>
+
+<p>&mdash;Não; se tinha que entrar ali, então que fôsse já. Vêr a cidade para quê?!
+Que lhe importava a alegria, o movimento, a luz,&mdash;aquilo que era a existencia
+da outra gente?</p>
+
+<p>Não estava ella perdida, morta para o mundo, despedaçado tudo que tinha
+feito o encanto da sua propria existencia, que era<span class="pn">{181}</span>
+agora uma coisa áparte, fóra da normalidade?!...</p>
+
+<p>A mãe aprovou, contente com aquella resolução; ansiava por a vêr entregue
+aos cuidados da bôa tia, Soror Gertrudes, que a recebeu soluçando de
+contentamento e magua&mdash;alegria de têr a sobrinha junto de si, fundo desgosto
+pela sua imensa desgraça.</p>
+
+<p>Porque era uma historia um pouco triste, a dessa rapariga, que assim vinha
+esconder a sua vida em flôr no silencio dos longos corredores cheios de sombra,
+adormentar o espirito nessa vida que já pertencia ao passado.</p>
+
+<p>Manoela ficara, muito nova, sem pai, e por isso quasi inteiramente
+abandonada a si mesma, visto que a mãe, duma devoção estreita e dum caráter
+frio e áspero, entregava-se por completo á prática das suas muitas rezas e
+orações e deixava os filhos em plena liberdade.</p>
+
+<p>A pequena, que era uma natureza delicada e emotiva, assim foi crescendo sem
+um carinho que lhe afagasse e dulcificasse a existencia, retrahindo-se numa
+aparencia de frieza melancolica.</p>
+
+<p>Os irmãos, três rapazes, viviam alegremente, sem cuidados nem canseiras,
+caçando pelas serras, comendo e bebendo á tripa-fôrra com os companheiros,
+jogando o pau pelas romarias<span class="pn">{182}</span> e feiras&mdash;senhores
+morgados de aldeia que todas as raparigas disputavam para seus pares, e dos
+quais todos os homens tinham como honra a convivencia.</p>
+
+<p>O mais velho, bom rapaz, bronco e ingenuo apesar da sua aparencia de
+gosador, fôra para Coimbra por sua alta recreação, segundo o costume
+tradicional dos morgados beirões, e por lá se ia formando aos solavancos: <em>R
+R</em> daqui, guitarradas dali, ceias e patuscadas com os amigos, sempre alegre
+e satisfeito comsigo e com os outros.</p>
+
+<p>Ora uma vez, a pretexto de caçadas que se faziam melhores que em parte
+alguma pelos matagais cerrados das suas serranias, levou, para passar umas
+férias na aldeia, o seu mais íntimo amigo e companheiro mais certo das suas
+noitadas e <em>troupes</em> em vesperas de feriado.</p>
+
+<p>Cavalgando os possantes cavalos que os criados lhes levaram com tempo,
+juntaram-se á caravana dos mais rapazes da região e seguiram, como era costume,
+atravessando vilas e aldeias ao som marcial das cornetas, como um verdadeiro
+batalhão, que ia diminuindo, não pela morte, mas pela alegria dos que primeiro
+encontravam as suas casas e se despediam dos companheiros até ao fim das
+férias.</p>
+
+<p>Fôram elles os últimos a chegar ao vasto casarão de provincia, onde a adega
+estava<span class="pn">{183}</span> sempre aberta, as espingardas carregadas
+atraz da porta, e a matilha impaciente tudo invadia, roubando na cosinha,
+sujando as salas e quartos, batida pelas criadas em desespero, afagada pelos
+amos que riam das suas partidas e se sentiam muito á vontade no meio daquella
+desordem.</p>
+
+<p>Manoela era um verdadeiro milagre de graça e pureza num meio tão vulgar e
+rude.</p>
+
+<p>O rapaz, ao vê-la assomar ao alpendre, mal sentira a tropeada dos cavalos e
+descer correndo os degraus de pedra que davam acesso exterior para o andar
+nobre da casa, para abraçar o irmão, ficara deveras impressionado. Tanto mais
+que não contava encontrar, numa irmã do seu herculeo companheiro de estúrdia,
+tanto mimo e graciosidade de linhas, uma tal delicadeza e aristocracia nativa
+de porte.</p>
+
+<p>Á primeira impressão de agradavel surpresa seguiu-se o desejo da posse e o
+projéto da conquista.</p>
+
+<p>Para que essa criança, ignorante e ingenua, se prendesse a um homem que lhe
+falava a dulçorosa e enganadora linguagem de vulgar D. João, que para ella
+representava a verdade, a honra, o ideal supremo porque tantas outras têm, como
+ella, sofrido, não era preciso muito.<span class="pn">{184}</span></p>
+
+<p>Um homem honesto ter-se-ia cautelosamente afastado, receoso de despertar uma
+alma tão confiada e crente, na sua ignorancia infantil; mas elle, conquistador
+sem escrupulos, de palidez sentimental e cabeleira romantica, cantando ao luar
+fados chorosos que falam de amôres infelizes com tremuras na voz e fundos ais
+arrastados, dedilhando a guitarra que soluça baixinho caricias de beijos
+gritando alto paixões estridulas... Elle, sem alma nem consciencia, viu apenas
+a flôr que se abria á vida e que as suas mãos brutais podiam desfolhar e
+arremessar depois como coisa inutil e sem importancia.</p>
+
+<p>Representou, mais uma vez, a vulgarissima comedia do amôr-paixão, em que
+ella, a pobresita, acreditou, exatamente porque era ingenua e pura, deixando-se
+arrastar, sem que houvesse mão amiga que a fizesse parar a tempo na descida
+perigosa.</p>
+
+<p>Acabadas as férias, promessas feitas e juradas, elle partiu alegre e
+triunfante, ella ficou abismada na mais desesperadora tristeza.</p>
+
+<p>A saüdade, fustigando barbaramente a sua pobre alma mal preparada para o
+sofrimento, punha-lhe nas faces a palidez da morte e nos olhos arroxeamentos de
+incuravel doença.</p>
+
+<p>Os dias fôram passando, os mêses decorreram lentos e monotonos, e o
+desespero ia-lhe<span class="pn">{185}</span> tomando o coração
+avassaladoramente, visto que elle, o ingrato, nem uma unica palavra lhe enviara
+a encorajá-la e a dar-lhe esperanças. Confiando da Ama-Rita o seu segredo,
+conseguiu da pobre mulher&mdash;que a amava, mais do que aos proprios filhos, porque
+a criara com o seu leite&mdash;a promessa de receber e mandar as cartas para o
+namorado.</p>
+
+<p>Enviou muitas, muitas, mas respostas nunca as recebeu, porque nunca elle
+lhas mandou.</p>
+
+<p>Sentindo-se abandonada, quando mais necessario se lhe tornava o auxilio
+moral do homem que a enganara vilmente, e não podendo esconder por mais tempo o
+seu estado, foi têr com a mãe implorando protéção e piedade.</p>
+
+<p>Contou tudo, por entre soluços e lagrimas, nem tentando sequer atenuar com
+uma desculpa a grandeza do delito, como se tivesse um prazer estranho em se
+torturar e deprimir, num princípio de expiação.</p>
+
+<p>Quando a mãe compreendeu o verdadeiro sentido das suas palavras, possuiu-se
+dum desespero louco. Levantando os braços e os olhos ao céo, tomava-o como
+testemunha da sua ignorancia e inocencia em tão grande crime, como se o
+esperasse vêr cahir sobre a cabeça da pecadora que soluçava a seus pés.</p>
+
+<p>Mas como do céo não baixou nenhum sinal indicador da colera divina, ella
+afastou-se<span class="pn">{186}</span> brutalmente, prohibindo-a de sahir mais
+do quarto.</p>
+
+<p>Escreveu então ao filho, contando-lhe em poucas palavras o que se passava e
+encarregando-o de procurar o amigo, e&mdash;prometendo um bom dote a Manoela&mdash;fazer
+com que casassem imediatamente.</p>
+
+<p>Essa carta, mandada pela Ama-Rita para Manoela vêr, deixou-lhe no coração um
+vislumbre de esperança, naquelle desejo que todos nós temos de nos agarrar ao
+menor luzeiro que prediga felicidade.</p>
+
+<p>Mas a resposta não podia sêr mais cruelmente aniquiladora:&mdash;o namorado de
+Manoela tinha casado, pouco tempo antes, com uma prima muito rica, e nunca mais
+pensara na criança que ia começar a expiação duma culpa que era só delle.</p>
+
+<p>Não havia pois maneira de legalisar ao pequenino ente que vivia já da vida
+da infeliz mãe, a entrada no mundo e na familia.</p>
+
+<p>Tratou-se então de esconder um facto&mdash;que seria a vergonha para todos.</p>
+
+<p>Levaram-na para uma casa meio arruinada, numa propriedade distante; e foi
+ali, entre rochedos desolados e na visinhança lugubre dos lobos que uivavam a
+sua fome pelos matagais, que Manoela, entregue aos unicos cuidados e carinhos
+da ama, teve uma filha.<span class="pn">{187}</span></p>
+
+<p>Com que dulcido encanto, depois do martirio de algumas horas, em que as
+velhas paredes repercutiram os seus gritos lancinantes, ella acalentou nos
+braços o corpinho fragil, que era uma parte do seu proprio sêr, e premia sob os
+seus labios febris a carnesinha arroxeada e setinea da pequenina face!</p>
+
+<p>Nos olhos, que mal se abriam á luz, queria ella lêr um infinito de ternura;
+da boquinha, que ainda não sabia sorrir e já sabia chorar, esperava talvez
+ouvir palavras de justiça e consolação...</p>
+
+<p>E as lagrimas iam correndo serenamente pelas suas faces desbotadas, lagrimas
+que eram ainda uma felicidade, que em breve deixaria de possuir.</p>
+
+<p>A Ama-Rita chorava tambem, sem coragem para de pronto lhe arrancar a
+criança, como lhe fôra ordenado, na impotencia de todas as bôas almas para
+despedaçar uma ilusão alheia, principalmente quando toda uma existencia está
+suspensa dum sorriso de criança.</p>
+
+<p>Foi ainda a mãe que a veiu arrancar desse passageiro sonho, anunciando-lhe
+como coisa decidida a sua entrada para o convento onde Soror Gertrudes já a
+esperava.</p>
+
+<p>Manoela revoltou-se:&mdash;o convento, a prisão para ella, que apenas fôra uma
+vitima!?... Pois era tamanha a sua culpa, santo Deus!?...<span
+class="pn">{188}</span></p>
+
+<p>&mdash;Era, sim, tão grande que já coisa alguma poderia lavar essa mancha do seu
+nome, recahindo sobre toda a familia. Apenas o silencio e a ausencia poderiam
+atenuar o mal fazendo-o ignorar do público!...</p>
+
+<p>Soluçava baixinho, num grande aniquilamento de toda a vontade, escutando as
+palavras que sahiam frias e ásperas da bôca da mãe.</p>
+
+<p>&mdash;«Bem, irei!&mdash;disse por fim Manoela, resignada&mdash;mas ao menos quero levar a
+certeza do seu perdão, minha mãe!...</p>
+
+<p>&mdash;«O meu perdão?! Não, nunca poderei perdoar á senhora que assim desce ao
+nivel de qualquer camponia sem principios...</p>
+
+<p>Então, sentindo-se ferida, mais pelo tom do que pelas palavras, que
+representavam apenas o seu orgulho de casta, a alma de Manoela levantou-se
+tambem com altivez.</p>
+
+<p>Uma revolta surda a tomava toda, partidos definitivamente os laços que a
+prendiam a essa mãe que a repelia sem encontrar uma atenuante á sua culpa, sem
+um lampejo de piedade pela sua existencia tão cêdo anulada.</p>
+
+<p>Embora! Se não lhe perdoavam os outros, absolvia-se ella a si mesma. Não
+conhecia o mundo; mas a sua consciencia presentia vagamente que não eram justos
+acusando-a duma falta que se baseava apenas no preconceito<span
+class="pn">{189}</span> social, que entre dois cumplices escolhe, para imolar
+como vítima expiatoria no altar da hipocrisia, aquelle que pela inocencia e
+ignorancia menor responsabilidade apresenta.</p>
+
+<p>Avaliando bem&mdash;agora que a vida se lhe antolhava tal qual é: cheia de
+deveres e responsabilidades para os fracos, livre e tolerante para os fortes e
+cinicos...&mdash;a perversidade moral do homem que amara, uma grande repulsa, um
+grande desprezo lhe invadiu o espirito por tal criatura.</p>
+
+<p>Vieram então novas cartas de Coimbra nas quais o irmão, numa furia brava,
+contava como procurara o sedutor para o matar, como costumava matar os lobos
+que lhe ameaçavam os rebanhos, e não o podera encontrar.</p>
+
+<p>«Apenas lhe souberam dizer: que fôra com a mulher passar a lua de mel, não
+lhe quizeram indicar para onde. Oh, mas havia de encontrá-lo, fôsse onde fôsse,
+fôsse como fôsse. Quanto á irmã, que desaparecesse&mdash;não a queria mais vêr!</p>
+
+<p>Manoela sorriu, já conformada.</p>
+
+<p>Tambem ella não tinha vontade de viver mais com uma familia que tão
+levianamente a abandonara e era agora tão cruel na condenação.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, iria para o convento o mais depressa possivel.<span
+class="pn">{190}</span></p>
+
+<p>Mas duas condições punha á sua completa submissão: saberia onde ficava a
+filha, que não queria deixar entregue ao acaso, como sêr desprezivel que não
+merece a esmola dum afago; e fariam prometer ao irmão que não continuaria a
+perseguir o sedutor. Para quê?! Matá-lo era forçarem-na a lamentá-lo, quando
+era apenas desprezo e asco o que sentia por tanta abjéção.</p>
+
+<p>Esquecessem-nos a ambos... Ella entraria desde já para o convento, sem
+nenhuma relutancia.</p>
+
+<p>O irmão cedeu, instado pela mãe, ansiosa por vêr o caso liquidado como
+entendia sêr melhor, sem mais desasocegos e desgostos.</p>
+
+<p>Os outros dois irmãos, não tendo entrado na confidencia, admiraram um pouco
+a subita vocação de Manoela, mas como lhes não desagradava inteiramente, pois
+ficavam assim mais á vontade,&mdash;visto que a mãe, afóra as horas de comer, raro
+sahia do quarto, a não sêr para a capela&mdash;aprovaram a resolução com toda a bôa
+vontade.<span class="pn">{191}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h3><a name="SECTION00412000000000000000">II</a></h3>
+
+<p>Desde que obteve a certeza de que as suas condições eram acatadas, Manoela
+ficou apática e indiferente para tudo.</p>
+
+<p>Deixava-se levar sem resistencia para onde a mãe queria que fôsse. No seu
+espirito não havia senão ruinas e desmantelos.</p>
+
+<p>Sempre melancolica, sem raiz que a prendesse á vida, parecia nem sequer se
+preocupar com a filha que tanto a sobresaltara de princípio e deixava
+especialmente entregue aos cuidados da ama.</p>
+
+<p>&mdash;«Adeus Ama-Rita,&mdash;dizia-lhe na última hora&mdash;estima a minha filha como me
+estimaste a mim, e que Deus a faça mais feliz do que a sua triste mãe! Até...
+um dia&mdash;em que nos havemos de encontrar.</p>
+
+<p>Mas quando esse dia?... Não sabia, não via nada claro no seu futuro.</p>
+
+<p>Encostada á varanda do quarto onde tanto sonhara e tanto sofria agora,
+passeava os olhos amortecidos por toda a montanha que limita o horizonte, e
+naquella ocasião, em que a primavera tudo cobria com o seu verde manto, se
+afofava em cambiantes de pelucia cara.<span class="pn">{192}</span></p>
+
+<p>Ao seu lado, a pobre mulher abafava os soluços que a sufocavam e limpava as
+lagrimas á ponta do avental.</p>
+
+<p>Seguira-se a viagem, a cavalo, atravessando terras desconhecidas, onde gente
+espantada as seguia com a vista pelos caminhos poeirentos e pedregosos,
+deixando-lhe tal confusão no espirito que nunca saberia dizer por onde passara
+nem o que vira.</p>
+
+<p>Logo á chegada, a mãe conferenciou com Soror Gertrudes, tia do marido, agora
+superiora do convento, que a pouco e pouco iria acabando pela morte das últimas
+freiras, e onde Manoela foi recebida em festa por todas essas tristonhas almas
+encarceradas precocemente envelhecidas.</p>
+
+<p>A mãe partiu, socegada emfim, sem saüdades que a fôssem mortificar ou
+distrahir dos seus austeros deveres de bôa católica.</p>
+
+<p>Tambem a filha as não sofreu, porque nunca se tinham compreendido nem
+estimado aquellas almas, que ninguem diria tão estreitos laços uniam, tal a
+dessemelhança que involuntariamente as separava.</p>
+
+<p>Manoela parece que vinha, inteiramente, do pai, de quem se lembrava
+vagamente, fazendo-a saltar nos joelhos, rindo e chalaçando com todos, enchendo
+a casa de vida e satisfação. E um dia, subitamente, estando<span
+class="pn">{193}</span> sentado á mêsa, do rompimento duma aneurisma morrera.
+</p>
+
+<p>Quasi se não lembrava do facto em toda a sua nitidez, tão longinqua era essa
+recordação, que ficara apenas na sua alma infantil como sensação dolorosa, a
+primeira tristeza na sua vida tão cheia dellas.</p>
+
+<p>Agora vinha encontrar, na tia, o mesmo caráter, essa amizade confiante que
+lhe faltara, essa alegria que tão bem fazia á sua alma dolorida.</p>
+
+<p>Sentia-se envolver naquella atmosfera de paz, que nunca tinha respirado, e
+sentia-se bem naquelle esquecimento de tudo quanto a fizera padecer.</p>
+
+<p>Os dias sucediam-se aos dias, de quando em vez cortados por noticias de
+casa, que recebia indiferente; o tempo ia correndo sempre igual, com as mesmas
+festas aos mesmos santos, as mesmas rezas, as mesmas infantis preocupações de
+vestidos a bordar para o menino Jesus tal ou para a Senhora de invocação
+diversa, o presepe no Natal, o dôce para a venda, a mesma comida sempre ás
+mesmas e invariaveis horas.</p>
+
+<p>Mas um dia Soror Gertrudes morreu.</p>
+
+<p>Manoela tinha então vinte anos. Era uma criança pela simplicidade do
+espirito, que ficara ingenuo e ignorante do mal, apesar de tudo,<span
+class="pn">{194}</span> mas era uma verdadeira mulher pela reflexão e pela dôr.
+</p>
+
+<p>Os últimos quatro anos passados naquella casa conventual tinham decorrido
+num meio sonho vago, que nem chegava a compreender bem.</p>
+
+<p>Depois da catastrofe que lhe angustiara a existencia, a alma tinha-se-lhe
+afundado num como branco nevoeiro, que a deixava viver inconsciente e passiva
+essa vida comum sem que nella tomasse verdadeiramente parte.</p>
+
+<p>Dir-se-ia um meio estado sonâmbulo de que a morte da tia, a bôa Soror
+Gertrudes, a vinha acordar dolorosamente.</p>
+
+<p>Como ia sentir a falta dessa querida vélhinha, que lhe dera um aféto todo
+maternal na solidão em que a austeridade da verdadeira mãe lhe deixara o
+coração!</p>
+
+<p>Logo ao entrar, passados os primeiros dias de surpresa, as palavras de
+conforto da bôa vélhinha tinham sido um grande bem para o seu espirito.</p>
+
+<p>&mdash;Aconselhava-a a têr esperança&mdash;o futuro traz surpresas que não podemos
+prevêr.... E ella era tão nova, santo Deus, como desesperar?! Socegasse, estava
+entre bôas criaturas que a amavam, e ella como tia a teria sempre junto de si.
+Ainda que o não fôsse,<span class="pn">{195}</span> estimá-la-ia na mesma,
+bastava sêr uma criança que a desgraça lhe tinha tão tragicamente arremessado
+aos braços...</p>
+
+<p>Tinha razão Soror Gertrudes&mdash;Manoela era bem digna de piedade. Entrada
+apenas na vida, era della expulsa com vergonha, e a sua mocidade, que mal
+desabrochara, iria fenecer entre as paredes frias dum convento. Quebrados todos
+os laços que a prendiam ao mundo exterior, o que ficava dessa pobre rapariga
+tão admiravelmente feita para amar e sêr amada?</p>
+
+<p>Sentia-se cahir pesadamente num abismo. Fechando os olhos, estendeu os
+braços em busca dum apoio, e encontrou a mão trémula, o sorriso alegre na sua
+bôca desdentada, e a face macerada da freira, que para ella teria carinhos
+inegualaveis.</p>
+
+<p>Bem sentia ella o cancro brutal, que a ia corroendo lentamente, mas nada
+dizia para não afligir a sobrinha.</p>
+
+<p>Sorria dolorosamente quando uma picada mais aguda a fazia levar a mão ao
+seio esquerdo, num gesto mecânico, quasi involuntario.</p>
+
+<p>Manoela sobresaltou-se quando as dôres começaram a sêr mais amiudadas,
+lembrando-se da terrivel molestia que de quando em quando assaltava a sua
+familia paterna.<span class="pn">{196}</span></p>
+
+<p>A tia socegava-a:&mdash;era um <em>nascido</em> que tinha havia muitos anos, não
+seria coisa de morte...</p>
+
+<p>Mas nos últimos três mêses a doença agravara-se caminhando rapidamente para
+o fim.</p>
+
+<p>O cancro rebentara, vermelho, luzidio, enorme, deformando horrivelmente o
+pequenino seio esteril, branco como o marfim&mdash;esse seio que guardara com tanto
+recato durante sessenta anos e se mostrava agora na sua infermidade horrivel.
+</p>
+
+<p>Quando Manoela o viu pela primeira vez, perdeu a côr, vacilou e só se
+conteve por um esforço de vontade, que se manifestava nella com a revolta
+natural contra mais esse golpe do destino.</p>
+
+<p>Dahi para diante nunca mais abandonou a tia, assistindo-lhe a todo o
+martirisante fim, sentindo, por assim dizer, na sua alma todas as dôres que
+ella ia sofrendo no seu magro corpo esfacelado.</p>
+
+<p>Foi-lhe infermeira solícita, disfarçando a repugnancia que lhe inspirava a
+ferida, que se ia arroxeando, com laivos azuis, quasi negros, numa aparencia
+ascorosa de podridão. Em volta a péle retesada do peito ia-se abrindo e
+esfarelando.</p>
+
+<p>Manoela tinha sempre diante dos olhos a ferida horrivel que tão
+cuidadosamente tratava,<span class="pn">{197}</span> e que era o fim&mdash;ella
+sabia-o&mdash;dessa existencia tão querida.</p>
+
+<p>Por fim Soror Gertrudes nem sequer se podia assentar na cama, e ella
+assistiu-lhe á agonia, que durou dois longos dias,&mdash;lento quebrar de cadeias
+que se tinham enferrujado mas não carcomido.</p>
+
+<p>Quando a superiora declarou que chamassem Soror Angelica para a substituir,
+porque já se não podia levantar e a morte não tardava, toda a comunidade acudiu
+em pranto:&mdash;era pois certo que Soror Gertrudes as ia deixar para todo o
+sempre?!</p>
+
+<p>Foi-se prevenir o capelão, que a confessou rapidamente, tal era a inocencia
+dessa alma imaculada, e quando voltou com a comunhão todas as freiras e
+recolhidas ajoelhadas em volta do leito choravam silenciosamente, com os véos
+negros cahidos sobre os seus rostos de cerusa.</p>
+
+<p>Manoela encostara-se á cama, e a tremura do seu corpo fazia estremecer esse
+leito onde a morte já se instalara triunfante.</p>
+
+<p>A ceremonia prolongou-se com o perdão que a moribunda foi pedindo a uma por
+uma das suas companheiras, numa voz que era já um éco de outra existencia
+passada.</p>
+
+<p>Quiz a sobrinha sempre ali, e consolava-a com a esperança dum futuro melhor.
+Deixava-lhe<span class="pn">{198}</span> o Menino Jesus do Milagre, que fôra o
+seu companheiro de longos anos, desde que uma senhora freira do convento do
+Paraizo ali morrera e lho deixara por lembrança. E deixava-lhe tudo mais que
+propriamente possuia, e bem pouco era, naquella vida estreita de renúncia.</p>
+
+<p>Dirigindo-se a Soror Angelica entregou-lhe a sobrinha e pediu-lhe para ella
+todo o seu amôr e carinhosa solicitude.</p>
+
+<p>Custava-lhe muito deixá-la. Deus mandara-lhe ao fim da vida aquella suprema
+provação, que fôra afinal a maior felicidade de toda a sua existencia. Quando
+ella já se sentia cahir na cova, com tão egoista alegria, vinha aquelle aféto
+imenso prendê-la á terra com laços tão fortes que ao parti-los metade da alma
+lhe ficava cá.</p>
+
+<p>Fechou os olhos: imaginaram-na morta e já os soluços se ouviam mais altos.
+Mas não, era apenas um dormir de extenuamento que breve durou. Ao acordar já a
+voz lhe estava prêsa no estertor, que causava calafrios a todas as assistentes.
+</p>
+
+<p>Fazia esforços para falar, queria talvez dizer coisas que a sua alma, já
+quasi desprendida do mundo, via como nunca tinha visto emquanto a materia a
+segurava á terra.<span class="pn">{199}</span></p>
+
+<p>Os seus olhos, dum azul pálido, como desbotado pelos anos, voltavam-se para
+a sobrinha numa ânsia derradeira.</p>
+
+<p>Choravam todas por a vêr assim, implorando a morte que a viesse libertar do
+incomportavel martirio.</p>
+
+<p>Manoela escondia a cabeça na roupa, soluçando e gemendo apavorada; teria
+fugido áquelle espétáculo superior ás suas forças, se a moribunda lhe não
+tivesse agarrado desesperadamente as mãos como última ancora...</p>
+
+<p>A situação prolongava-se pela noite fóra, e tão pungitiva que todas se
+entreolhavam em pânico.</p>
+
+<p>Era alta noite quando uma criada, vinda do campo havia pouco, se propôs pôr
+termo áquelle martirio, voltando a senhora. E explicava, muito sabida e vista
+nessas coisas:&mdash;que era o demonio que estava ali, não deixando morrer a
+senhora, emquanto estivesse deitada sobre o lado esquerdo. Vingava-se assim de
+não lhe poder levar a alma, que era de Deus, pela muita bondade da
+Madre-Superiora.</p>
+
+<p>Todas acreditaram piamente na explicação da rapariga; não estava o <em>Livro
+da fundação</em> cheio de factos que comprovavam as tentações e maleficios do
+eterno inimigo das esposas do Senhor, especialmente dirigidos contra as
+piedosas<span class="pn">{200}</span> irmãs daquella santa casa tão rica em
+milagres e indulgencias?!...</p>
+
+<p>Aceite o alvitre, voltaram o corpo pesado, que a morte já quasi gelava
+completamente, deixando-lhe apenas aquelle imenso sofrimento como despedida
+duma existencia de que não conhecera senão as tristezas.</p>
+
+<p>Mal lhe tocaram, despediu num suspiro o último lampejo de vida, tal como
+aquelles cadaveres conservados intactos por anos e anos nos seus tumulos
+socegados e logo que se lhes toca, trazendo-os ao ar, se desfazem em pó.<span
+class="pn">{201}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h3><a name="SECTION00413000000000000000">III</a></h3>
+
+<p>Manoela sahiu do dormitorio logo que a tia deixara de existir.</p>
+
+<p>Cambaleando, os olhos sêcos, a alma vazia, sem a sensação dolorosa da pena,
+como se a tivessem magnetisado para a furtarem ao sofrimento, apenas uma
+necessidade material a impulsionava.</p>
+
+<p>Tinha sôno&mdash;havia tantas noites que não dormia!</p>
+
+<p>Agora que tudo estava acabado, que não havia uma esperança a sustentá-la,
+estonteada, inconsciente, deixava-se vencer por esse torpôr que segue a
+excitação dolorosa de dias sobre dias de espétativa diante da morte. A natureza
+retomava os seus direitos, e a reação era tanto mais violenta quanto fôra maior
+o predominio do espirito sobre a materia.</p>
+
+<p>Logo na pequena sala contigua ao dormitorio, que fazia de livraria,
+deixou-se cahir numa cadeira sem força para ir mais longe.</p>
+
+<p>No dormitorio ia um vai-vem silencioso que mais parecia mover de sombras num
+pesadêlo. As freiras ciciavam ordens ás criadas, acendiam-se<span
+class="pn">{202}</span> luzes, rezavam baixinho, limpavam as lagrimas que
+teimavam em enevoar-lhes os olhos, e levantavam com respeito a morta para a
+vestirem como havia de ir para a cova, com o mesmo triste habito que trouxera
+em vida e logo ao entrar para o convento, noviça ingenua e formosa, lhe tinham
+dito que seria a sua mortalha.</p>
+
+<p>E assim, eternamente amortalhada, passava da tristeza de viver ao unico sôno
+consolador dos infelizes, porque é daquelle que se não acorda para sofrer mais.
+</p>
+
+<p>A sua face, serenada pela morte, reflétia a suprema felicidade de não
+existir conscientemente num triste mundo tão cheio de desacertos e injustiças.
+As freiras benziam-se e murmuravam baixinho, pondo as mãos com devoção:&mdash;que o
+seu rosto de santa reflétia já todo o goso da bemaventurança.</p>
+
+<p>Manoela, abrindo os olhos no meio sôno em que ficara embebida, viu os pés da
+morta calçados com as sandalias da ordem, magros e compridos, atados com uma
+fita para não descahirem; e, mergulhando de novo em letargo, sonhou que esses
+pés caminhavam por sobre o seu corpo desfeito e lhe batiam com força no
+coração. E a sensação foi tão dolorosa e a dôr tão forte, que acordou de vez,
+sentindo realmente uma pontada que lhe suspendia<span class="pn">{203}</span>
+quasi a respiração e a fez gritar levando as mãos ao peito, sufocada.</p>
+
+<p>Foi quando Soror Angelica veiu têr com ella e a condusiu para o segundo
+dormitorio, fazendo-a deitar na sua propria cama, encarregando uma irmã leiga
+de a vigiar e acompanhar. Então Manoela cahiu num sôno pesado e mau, cheio de
+sonhos que a faziam chorar e gemer baixinho como quem se sente estrangulado,
+sem poder gritar, e a que a irmã leiga punha termo chamando-a carinhosamente e
+abanando-a de leve todas as vezes que a sentia.</p>
+
+<p>Era já manhã quando a vieram chamar para assistir aos responsos que se iam
+fazer no côro e para os quais toda a comunidade se preparava.</p>
+
+<p>Levantou-se sobresaltada, sem nada perceber, como quem acorda dum terrivel
+pesadêlo e reconhece com surpresa que ainda existe na vida tal qual a
+deixara... Atiraram-lhe o véo para a cara, composeram-lhe o vestido, e
+levaram-na pelo braço, sem que compreendesse intimamente de que se tratava. Mas
+quando se encontrou no côro e viu a morta estendida no chão sobre um pano
+preto, entre quatro grossos tocheiros, os padres rezando os responsos, e toda a
+comunidade em volta com os véos cahidos e segurando velas acêsas,<span
+class="pn">{204}</span> compreendeu finalmente o que se passava, a sua alma
+despertou para o sofrimento intenso da pavorosa realidade.</p>
+
+<p>Já não havia dúvida possivel, e a noite, que se passara num atordoamento de
+sonanbulismo, aparecia-lhe agora em toda a sua nua e horrivel fatalidade.</p>
+
+<p>Debaixo do véo que lhe cobria o rosto, as lagrimas corriam sem cessar mas já
+sem explosão de soluços, tão amargas e lentas que cada uma parecia vir
+arrastando um pedaço da sua alma esfacelada.</p>
+
+<p>Procurava nessa face amada, coberta igualmente com o véo preto, o sorriso
+bondoso, o olhar de carinho, que em quatro anos de reclusão a tinham feito
+esquecer que a vida existia fóra daquellas paredes soturnas.</p>
+
+<p>O véo era denso bastante para lhe velar a face, mas nada obstava a que os
+seus olhos halucinados vissem, debaixo do grosseiro hábito, o peito entumecido
+escancarando-se na repelencia da ferida.</p>
+
+<p>Finda a encomendação, seguiu atraz das freiras, vélhinhas alquebradas e
+esquecidas pelo mundo, que assim iriam rareando, uma por uma, na longa fila que
+vinha do côro.</p>
+
+<p>Era o último enterro a que assistia ali, porque a nova lei prohibia enterrar
+fóra do cemiterio público e fôra não pequeno trabalho<span
+class="pn">{205}</span> para se conseguir das autoridades aquella excéção em
+favôr de Soror Gertrudes, que era conhecida e estimada em toda a terra.</p>
+
+<p>Manoela tremia de pavôr observando a serenidade extatica das freiras, que
+não se distinguiam umas das outras, com os véos negros derrubados, as velas a
+arder na mão direita, hirtas e silenciosas e graves como espétros.</p>
+
+<p>Lá dentro,&mdash;quem sabe?&mdash;talvez que as suas almas tremessem de frio a cada
+sacudidela do vento da morte que ia levando uma a uma as companheiras de muitos
+anos, e que nunca mais seriam substituidas.</p>
+
+<p>Já no refeitorio iam faltando tantas que, ao meio dia, a hora antigamente
+tão alegre de jantar,&mdash;quando sobre as toalhas de linho alvejante os moringues
+de barro de Estremoz marcavam nas mêsas estreitas e compridas, voltadas para o
+pulpito, o logar de cada uma&mdash;mais parecia que a sineta chamava para um
+banquete de sombras.</p>
+
+<p>Os padres iam compassando os responsos, rodeando a cova onde já repousava o
+cadaver, e cada um ia deitando uma pá de terra, seguindo-se na ceremonia toda a
+comunidade.</p>
+
+<p>Ah, bem feliz era Soror Gertrudes que ainda encontrava um abrigo santo junto
+das<span class="pn">{206}</span> suas irmãs, vivendo com ellas no eterno sôno,
+sob o abrigo das arcarias do claustro florido, acalentada pelo murmurio fresco
+da fonte que transbordava na sua concha de marmore. As outras&mdash;pobres
+dellas!&mdash;já não teriam na morte esse mesmo abrigo sagrado e seriam relegadas a
+mãos estranhas e indiferentes, esquecidas nesse campo desabrigado e devassado
+por todos os olhos profanos, que eram os novos cemiterios.</p>
+
+<p>As velas tremiam nas mãos enrugadas das pobres vélhinhas.</p>
+
+<p>Das trinta e três freiras que o <em>Livro da fundação</em> dava como limite
+para a comunidade, homenagem piedosa aos anos de Christo, e que ao soar a hora,
+que para muitos fôra de redenção e para ellas de mágua, se preenchera á pressa,
+abreviando as profissões das noviças, já quinze dormiam insubstituidas sob as
+lages do claustro.</p>
+
+<p>Sentindo o lento caminhar das vivas, que eram como fantasmas errantes nesse
+asilo guardado pela morte, sentiriam a dôce ilusão de assistirem com ellas na
+vida comum.</p>
+
+<p>Olhavam-se apavoradas, as velhas freiras, a cada nova escolhida que a morte
+vinha tocar com o seu beijo gelado, e murmuravam entre si:&mdash;de qual será agora
+a vez?&mdash;terrificadas com a ideia de sêrem a última.<span
+class="pn">{207}</span></p>
+
+<p>Soror Claudea, com o seu olhar sombrio e desvairado, seguia a ceremonia
+funebre com tremuras convulsivas no seu corpo magro de que a loucura histerica
+fizera uma bôa prêsa.</p>
+
+<p>Dantes tambem morriam, é certo, mas a cada cova que se fechava abria-se a
+porta a uma noviça que tomava o véo preto, e no simbolico número se ia
+conservando sempre a comunidade.</p>
+
+<p>Manoela soluçava agora, vendo cahir a última pedra que a separava para
+sempre da bôa tia, que era a sua unica grande afeição no mundo&mdash;tão diluida
+tinha na memoria a lembrança do passado que a filha era apenas uma vaga
+recordação, tão pouco pungitiva como a que lhe ficara do pai, que mal
+conhecera.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Soror Angelica ficara superiora sem quasi se proceder á ceremonia da
+eleição, tanto se impunha a todas a sua inteligencia, a sua energia, e a sua
+cultura, rara entre as senhoras daquella casa de regra áspera e humilde.</p>
+
+<p>A nova superiora era uma bôa e valiosa amiga para Manoela, considerando como
+um dever estimá-la tal qual o fizera Soror Gertrudes, que tão solenemente lha
+entregara.<span class="pn">{208}</span></p>
+
+<p>Mas Soror Angelica era um espirito mais varonil e energico, e, se dava
+amizade segura e protéção incondicional, não tinha como a tia de Manoela os
+carinhos e as delicadezas dum espirito que tinha ficado menineiro apesar da
+esterilidade duma vida sem familia propria.</p>
+
+<p>A nova superiora era respeitada por todas; a antiga tinha sido amada e era
+chorada como uma bôa mãe.</p>
+
+<p>Se Soror Angelica tivesse nascido anos atraz, seria uma dessas preladas
+temidas e escutadas por todos, porque sabiam fazer valer a força do seu direito
+e pesar a influencia das familias, da fortuna e do nome profano de todas as
+suas governadas, em qualquer questão que as interessasse.</p>
+
+<p>Se tivesse nascido alguns anos mais tarde, seria, em qualquer campo para
+onde dirigisse os seus passos, uma criatura representativa, uma destas
+influencias que todos procuram captar para o seu lado porque em toda a parte
+entra com o valôr da inteligencia, da energia e da tenacidade, qualidades
+sempre raras em todos os tempos.</p>
+
+<p>Superiora sem importancia num convento desapossado de todos os seus
+rendimentos e que existia apenas emquanto vivessem as últimas freiras&mdash;como
+existe, sustentado pela<span class="pn">{209}</span> hera que o reveste, o
+velho muro em ruinas&mdash;Soror Angelica era um desacerto porque era uma força
+inutilisada.</p>
+
+<p>Desde que ficou naquelle quasi isolamento, o espirito de Manoela começou a
+acordar, a debater-se para sahir do torpôr em que esses quatro anos amimalhados
+lhe tinham adormentado a alma.</p>
+
+<p>Essa loucura ardente da fé que despreza o presente pela vaga esperança dum
+futuro cheio de delicias, já por vezes a compreendia, exaltada pela devoção e
+pelas leituras misticas que a superiora lhe indicava. O caminho que leva á
+sarça em fogo onde se consomem as pobres almas doentes, que dão as Santas
+Terezas de Jesus, já por vezes se abria diante da sua imaginação inátiva e do
+seu coração amoravel tão implacavelmente impelido pelo destino para a solidão e
+o desamôr.</p>
+
+<p>Naquelle meio de apertada devoção, no silencio dos grandes corredores
+pontuados de capelinhas milagrosas, o seu espirito inclinava-se para um
+misticismo apaixonado e obsessivo, como tudo seria naquella alma de peninsular
+temperada e subtilisada pelo sofrimento, que vencera sem queixa.</p>
+
+<p>Andava vagarosamente pelos claustros lageados, sentindo-se prêsa dum
+respeito supersticioso por essas pedras que cobriam corpos<span
+class="pn">{210}</span> macerados de santas; tinha sorrisos silenciosos, gestos
+vagos de corpo apenas vivo pela esperança de se consumir em breve e reviver só
+em espirito purificado.</p>
+
+<p>Á hora das orações rituais, assentava-se com as companheiras nos cadeirões
+de pau santo, que se defrontavam em duas filas sobrepostas e dantes eram só
+destinados ás professas, e pensava que a vela benta que as separava era a alma
+de cada uma das freiras que ardia no amôr apaixonado do Senhor seu Esposo e seu
+Deus.</p>
+
+<p>O bruxoleamento da luz sobre as paginas do livro de oficios, que seguia por
+dever, tinha para a sua mente enfebrecida a significação clara dum suspirar de
+espirito aspirando á eterna bemaventurança.</p>
+
+<p>Ali, naquelle côro grande como uma capela, revestido de azulejos policrómos,
+cheio de santos e relicarios preciosos, que irradiavam na meia obscuridade das
+suas doiraduras e pedrarias, numa luz quasi de sonho, Manoela gastava os seus
+longos e inuteis dias.</p>
+
+<p>O côro era, como tinha sido sempre desde que se fundara aquella casa, o
+unico luxo, o cuidado e gosto de todas aquellas almas privadas doutras
+delicadezas e distráções feminis. Privadas até de irem á igreja, que Manoela
+contemplava extatica pelas grades<span class="pn">{211}</span> estreitas,
+revivendo a vaga recordação que lhe ficara do dia da entrada, quando os seus
+olhos enevoados pelas lagrimas a tinham visto sem lhe poderem dar o verdadeiro
+valôr.</p>
+
+<p>O convento nem se via de fóra, construido em quadrado por traz da igreja que
+o guardava, imperturbavel e austera como sentinela incorruptivel da fé.</p>
+
+<p>A igreja era magnifica, nada dizendo com a humildade da regra nem com a
+modestia do resto da casa: duma traça arrojada, em que as colunas em marmore
+côr de rosa subiam em cordas espiraladas, até se juntarem na cúpula alta e
+sonora.</p>
+
+<p>As janelas, do nosso gotico rendilhado a que se chama <em>manoelino</em>,
+conservavam ainda restos dos antigos vitrais, que deviam ter sido dum brilho e
+colorido que encheriam de encanto as naves silenciosas.</p>
+
+<p>Os paineis, que a rodeavam, sobresahiam das largas molduras doiradas e
+entalhadas, pelo colorido um pouco frio e o desenho convencional e rigido do
+estilo que se impunha no tempo em que uma grande dama da côrte se lembrara,
+apaziguando talvez recordações importunas duma mocidade cheia de dôces culpas,
+de fundar aquella santa casa onde, propositadamente, só á igreja fôra dada a
+magnificencia e o fausto devidos ao Senhor<span class="pn">{212}</span>
+omnipotente, dispensador de todas as graças, arbitro de todo o julgamento. Para
+as Esposas, as virgens oferecidas como vítimas expiatorias do pecado deleitoso
+da fundadora, a humildade, o desconforto, e a asperesa da regra.</p>
+
+<p>Contemplando a igreja, Manoela sentia-se amar um Deus imenso e magestoso,
+arrastando purpuras e fazendo refulgir as joias da sua corôa imperial por
+catedrais goticas de naves resoantes, cheias de grandezas e misterio.
+Prostrava-se ante o seu trôno de luz nessa côrte celestial tão fantastica e
+deslumbrante, que lhe descreviam as almas crédulas e os livros piedosos.</p>
+
+<p>O Christo torturado, empalidecido e humanisado pela dôr, não o compreendia
+ali, no luxo e na grandeza da arte, como o poderia compreender na igreja
+humilde da sua modesta aldeia.</p>
+
+<p>Ali era um Deus para camponezes e para as almas simples; aqui era um Deus
+aristocratico e soberbo que se impunha aos grandes e aos poderosos.</p>
+
+<p>Prêsa naquelle deslumbramento, que a fazia viver uma existencia á parte,
+Manoela assim iria gastando a existencia se não viesse um banal incidente
+chamá-la a si, chamando-a á vida com novos interesses e novos deveres a
+cumprir.<span class="pn">{213}</span></p>
+
+<p>Ama-Rita, a bôa mulher que nunca a esquecêra, escrevia-lhe uma longa carta,
+de letra tortuosa, quasi ininteligivel, que ella decifrava a custo. «Só
+passados sete anos lhe escrevia, porque a senhora lho tinha prohibido e, não
+sabendo escrever, não confiava em ninguem da terra para fazer uma coisa contra
+a sua ordem. Agora era a sobrinha, a Luisa da Roda, que o fazia. A menina devia
+lembrar-se della, eram da mesma criação, tinham brincado bastante em
+pequenitas... Viera de servir, mas tão doente que o mais certo era não poder
+voltar. Podiam confiar nella e emquanto vivesse não teria a menina falta de
+cartas».</p>
+
+<p>Manoela tinha os olhos rasos de lagrimas ao pensar na pobre rapariga, talvez
+tisica, que tinha sido sua companheira de infancia, dessa breve infancia que
+lhe vinha, numa lufada sã, evocada por essa mal redigida carta de camponia. Era
+um pedaço da sua rude terra, que a urze e o rosmaninho incensavam.</p>
+
+<p>Depois, as noticias alongavam-se:&mdash;este que tinha ido para o Brazil, aquelle
+que voltara da tropa, casamentos, bátisados, mortes... e porfim, numa linha só,
+como misteriosamente, a causa primaria de se ter escrito aquella grande
+carta:&mdash;«A menina criava-se muito bem; a menina era muito linda».<span
+class="pn">{214}</span></p>
+
+<p>Mais nada... E, no entanto, que mundo novo de pensamentos e de paixões essas
+poucas palavras desenrolavam diante dos olhos e do coração da triste reclusa!
+</p>
+
+<p>O seu espirito, adormentado numa crise de misticismo para que a predispunha
+o meio ambiente, reagia agora com toda a energia, porque a sua alma não era
+feita para vagas abstrações; antes fôra, era, e seria sempre, uma mulher
+humana, nascida para viver e sentir humanamente a vida, com todas as suas
+amarguras e alegrias compensadoras.</p>
+
+<p>A filha!... Quasi a tinha esquecido, naquelle viver sem consciencia de si
+propria, que fôra a sua existencia ali.</p>
+
+<p>Como podera resignar-se durante tanto tempo só com a certeza de que esse
+pequenino anjo, que era a carne da sua propria carne, vivia, nessa terra
+longinqua e áspera, sob os cuidados da velha Ama-Rita? Sentia remorsos e
+agradecia intimamente á bôa serviçal, que assim a chamava á vida lembrando-lhe
+o cumprimento do seu dever.</p>
+
+<p>Relendo aquella frase incolôr, sentia que dentro da sua alma se ia
+levantando outro altar, criando uma nova religião, que mal sabia como era
+dificil de harmonisar.</p>
+
+<p>Encostada ás grades da janela do dormitorio, para onde viera na ânsia de se
+encontrar<span class="pn">{215}</span> a sós com a sua propria alma, olhava o
+campo que se estendia num verde luminoso, com um castelo ao fundo, na
+imponencia de cenografia espétaculosa.</p>
+
+<p>Na cerca a nóra gemia e a agua cahia no tanque donde era tirada para as
+regas.</p>
+
+<p>Esse murmurar da agua corrente evocava-lhe o passado distante, a sua terra,
+o fiosinho de agua transparente a deslisar por entre os choupos, ao fundo da
+sua quinta, e aquella pequenina enseada onde se ia esconder, num desejo calmo
+de solidão, a olhar a agua saltando de pedra em pedra num grande esforço de
+quem vem exausto de longa caminhada.</p>
+
+<p>Recordava, com tanta saüdade que chegava a sêr uma dôr material, essa época
+tão afastada para o seu espirito que já parecia têr pertencido a outra
+existencia, as horas que passara ali sósinha, idealisando um futuro de poesia e
+de romance, como o idealisam sempre as mulheres que uma educação racional não
+preparou para entrar na vida pela porta ampla e sem mentidos encantos da
+realidade.</p>
+
+<p>Recordando todo esse passado, para sempre morto, a sua alma tão cruelmente
+torturada e tão profundamente humana acordava num alvoroço.<span
+class="pn">{216}</span></p>
+
+<p>Chamavam-na para a vida, e ella vinha toda inteira, corpo palpitante,
+coração sangrento pronto a entregar-se a um novo ideal.</p>
+
+<p>Desde esse dia nunca mais deixou de pensar na filha, que se tornou a sua
+obsessão; sentia-lhe a vózinha de choro chamando-a mãe; via-lhe o pequenino
+rosto, que idealisava duma pureza de linhas que só igualariam os anjos das
+pinturas rafaelescas; tremia com a ideia de que podia uma doença cruel
+arrebatá-la sem que a tivesse uma vez sequer acalentado nos braços.</p>
+
+<p>Já não rezava como dantes, mas ainda passava no côro as melhores horas da
+sua vida, ajoelhando-se de preferencia diante duma grande Virgem que a lenda
+dos seus milagres tornava célebre em toda a cidade.</p>
+
+<p>Dizia a crónica:&mdash;que essa imagem viera de Candia com destino a Espanha e
+fôra por milagre trazida á cidade. Recebida entre musica e fogos de artificio,
+foi levada em procissão e confiada ás freiras que tinham fama de mais virtudes
+entre todos os conventos da terra. De tal maneira se avigorou a fé nos milagres
+da formosa imagem que raro era o dia em que a irmã rodeira não recebia, de
+pobres criaturas sofredoras, bilhetes e cartas implorativas dirigidas á Virgem
+para sêrem colocadas sob a sua guarda. A crença no<span class="pn">{217}</span>
+milagre, o último refugio dos fracos que não podem resistir á dôr, fizera da
+bela Senhora uma consoladora permanente como dispensadora desse beneficio
+inestimavel para a maior parte dos sêres humanos: a ilusão.</p>
+
+<p>Tambem Manoela se afervorava na devoção pela milagrosa imagem; mas o motivo
+que a arrastava até aos seus pés e a prostrava agora em extasis era mais humano
+do que mistico. É que diante dessa Virgem, que era uma mulher que a escultura
+traçara com toda a verdade, sustentando nos braços um pequenino Jesus, filho
+humano e verdadeiro, que ella, humanamente mãe, acariciava com a doçura do seu
+olhar veludoso e a caricia dum sorriso angelical, sentia a sua alma pacificada,
+sentia-se irmanada no mesmo sentimento.</p>
+
+<p>Essa mulher, mãe dum Deus, não a perturbava, porque era bem mulher, bem
+maternal, para compreender o sobresalto do seu coração, a saüdade que a
+sufocava por esse pequenino corpo adoravel, leitoso e macio, que apenas podera
+vêr e beijar á nascença. Aspirava pela caricia dos seus braços roliços e da sua
+boquinha perfumada; morria de paixão por esse entesinho dealbante, que lá longe
+ia crescendo e vivendo rudemente entre camponêses, que mal a saberiam
+amar.<span class="pn">{218}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h3><a name="SECTION00414000000000000000">IV</a></h3>
+
+<p>Num inverno humido e triste em que o claustro, a igreja e o palratorio
+chegaram a sofrer uma inundação que muito assustou a comunidade, Manoela tremia
+arrepiada sob o mantéo curto das recolhidas, e pensava com horror no frio que
+arroxearia as pequeninas mãos da filha que se aninharia ao canto da lareira
+fumarenta da miseravel casa onde se criava, por essa invernia inclemente que
+tudo abafava sob a nevada deslumbrante.</p>
+
+<p>Sentia o pavôr da sua almasinha trémula, quando os lobos esfomeados
+rondassem o povoado, acossados da montanha pela neve, e as ovelhitas timidas se
+aconchegassem no curral balando tristemente.</p>
+
+<p>Ah, ella não podia acostumar-se á ideia de que a filha, a sua querida filha,
+viveria assim eternamente sem conforto nem os mimos que para ella sonhava.</p>
+
+<p>Já por vezes tinha tentado convencer a mãe, levá-la ao esquecimento e á
+tolerancia pelas suas humildes súplicas, mas nada até ahi a tinha demovido do
+seu proposito de conservar em misterio a existencia daquella criança que<span
+class="pn">{219}</span> a seu vêr não era do mesmo sangue que das suas veias
+tinha passado ás da filha, e da filha á neta, na continuidade fatal da
+natureza.</p>
+
+<p>Manoela insistia, pedia ainda; mas a força instintiva do amôr maternal, que
+a impulsionava agora, começava a fazê-la admitir a revolta contra esse poder
+que a natureza naturalmente afrouxa, porque assim o acha necessario para a
+conservação da especie, embora os homens o tenham querido fortalecer com as
+suas leis e costumes antinaturais.</p>
+
+<p>Soror Angelica, como superiora e como amiga, continha-a e aconselhava-a a
+conformar-se com a vontade de Deus...</p>
+
+<p>&mdash;«Depois,&mdash;dizia-lhe ella, um dia, aspirando deliciada a flôr perfumosa
+duma angelica que se abria num vaso colocado na varanda da sua céla de
+superiora, mimo gracioso duma das suas amigas da cidade&mdash;depois, Soror Manoela,
+de que lhe serve ir contra a vontade de sua mãe?!... Não é ella a senhora da
+casa?... Não é ella que tem só o poder do dinheiro?»</p>
+
+<p>&mdash;«É a senhora, porque nós, os filhos, assim o queremos; mas não sabe, Madre
+Angelica, que temos direito a puxar pela herança de meu pai e exigirmos a
+nossa<span class="pn">{220}</span> parte?... Por pouco que seja, dar-me-ha o
+bastante para viver com a minha filha...</p>
+
+<p>Por menos que Manoela soubesse das leis que governam os homens, sabia o
+bastante, pelas relações mundanas entretidas entre o convento e a sociedade,
+para conhecer o direito que a tornava senhora da sua pessôa e da sua fortuna.
+</p>
+
+<p>&mdash;«Revoltar-se, Soror Manoela, cuida que isso lhe daria felicidade?!...
+Santo Deus! Os pais representam na terra a autoridade divina. Triste daquelle
+que no pecado procura a coragem bastante para lhe fugir!...</p>
+
+<p>&mdash;«No pecado?...&mdash;murmurou Manoela, limpando as lagrimas.&mdash;E não será maior
+pecado o meu se deixar morrer ao abandôno a minha filha, esse pobre anjo que
+não tem culpa nenhuma de têr sido chamada á vida?!...</p>
+
+<p>&mdash;«Sim, é uma grande culpa que sua mãe levará ao tribunal supremo, mas
+quanto maior não seria a sua, minha pobre filha, se levasse a de rebeldia e de
+orgulho filial!... Não chore! Tenha resignação; se soubesse quantas lagrimas
+têm chorado outros que... que... que por fim se resignaram a não viver senão
+com a esperança na morte!...</p>
+
+<p>E Soror Angelica desviou-se um pouco, abafando no lenço um soluço que não
+poude vencer.<span class="pn">{221}</span></p>
+
+<p>&mdash;«Madre Angelica?!...&mdash;interrogou ansiosa a recolhida.&mdash;Porque chora?
+Tambem, como eu, sabe o que é sofrer o pêso duma vontade alheia, que esmaga o
+coração?</p>
+
+<p>&mdash;«Ah, minha filha, se sei!... Não queira, Soror Manoela, sofrer como eu
+sofri... como nós sofremos... a tirania duma ordem, que despedaçou duas
+existencias!...</p>
+
+<p>A freira, que tinha sido uma das últimas professas, não era ainda muito
+velha, mas o seu rosto, amargurado agora pela recordação, evocava um tal
+passado de dôres e sacrificios, que Manoela, inconscientemente, curvou-se para
+lhe beijar as mãos, que juntava num gesto de imploração extrema, numa prece em
+que ia toda a sua alma de mistica e de sofredora.</p>
+
+<p>Depois, mais socegada, sentando-se junto da mêsa de trabalho, convidou a
+recolhida a sentar-se num pequeno escabelo e disse:</p>
+
+<p>&mdash;«Soror Manoela, o que lhe vou dizer julgava-o para sempre sepultado no
+fundo da alma, tão esquecido e longinquo como se o lêra duma outra infeliz, num
+desses livros da nossa santa casa. Mas Deus Nosso Senhor inspirou-me a ideia de
+lho contar para que nesse exemplo Soror Manoela encontre força para resistir á
+tentação diabolica que a impele á revolta contra a vontade de sua mãe.
+Soror<span class="pn">{222}</span> Manoela, houve numa terra linda do Alemtejo
+uma familia que juntava aos seus pergaminhos de fidalguia uma grande fortuna em
+terras e dinheiro. Era pai e filho no tempo em que... em que os conheci. O pai
+era o tipo acabado da nobreza altiva e autoritaria; o filho a bondade, a
+inteligencia e a docilidade numa só criatura humana reunidas. Em pequenino
+ficara orfão de mãe, entregue aos cuidados duma velha parenta que o educara e
+cuidara como um perfeito cavalheiro.</p>
+
+<p>O seu gosto e a sua alegria estavam só nos livros que folheava sem descanso
+e na penna com que se servia para versejar... ás escondidas. Só uma pessôa
+sabia do seu <em>crime</em>, como elle lhe chamava, a rir...&mdash;e Soror Angelica
+sorriu tristemente para esse fantasma saudoso da mocidade.&mdash;Era uma pupila, do
+pai, orfã e morgada como elle. Oh, Soror Manoela, se soubesse como se
+compreendiam e se amavam aquellas duas almas que o destino parecia impelir uma
+para a outra!... Ambos novos, ambos sem um coração de mãe que lhe tivesse sido
+refugio e consolação, ambos ricos, ambos filhos unicos e ambos sentindo os
+mesmos prazeres, e tendo os mesmos gostos simples e modestos. Oh! deixassem-nos
+lêr as lindas historias de cavalaria que a velha prima alinhava com amôr
+na<span class="pn">{223}</span> bibliotéca do seu quarto; deixassem que elle
+lhe recitasse as suas poesias emquanto ella matisava um bordado, sob a protéção
+carinhosa da vélhinha, que lhes queria como a filhos gemios do seu coração... e
+eram felizes. O que lhes faltava? Apenas a idade para que o pai consentisse no
+casamento, que via tambem com olhos complacentes.</p>
+
+<p>&mdash;«E casaram?...&mdash;perguntou Manoela, seguindo com vivo interesse a linda
+historia de amôr que lhe rasava os olhos de lagrimas, a ella que do amôr tivera
+apenas uma fugaz e mentida visão.</p>
+
+<p>&mdash;«Não, não casaram&mdash;respondeu a freira, sorrindo, apesar da dolorosa
+contráção da sua face marfinea.&mdash;Não lhe disse que o morgado era um homem ainda
+novo e belo, apesar dos seus quarenta anos? Pois era... Ao contrario do filho,
+montava com garbo um cavalo andaluz, que ninguem domaria como elle, só com a
+pressão dos joelhos e a firmeza da sua mão de rédea; sabia aprumar-se numa sala
+diante dos cavalheiros e curvar-se, como ninguem, num requinte de gentileza,
+diante das senhoras; jogava como um verdadeiro fidalgo, sem que ninguem podesse
+perceber-lhe no rosto se perdia ou ganhava... emfim era querido e procurado por
+todos e convidado com o maior empenho pelas familias aristocraticas<span
+class="pn">{224}</span> da provincia e da capital. A quantas formosas raparigas
+não teria sorrido a ideia de o têrem por marido e quantos pais o não teriam
+desejado para genro? Elle ria-se dessas pretensões e estava bem convencido de
+que o seu destino estava traçado em vêr a felicidade do filho e receber os
+netos para herdeiros e continuadores do seu nome. Mas, um dia, o morgado viu
+uma senhora que se apoderou do seu coração, e desde logo deixou de se
+pertencer. Era uma mulher formosissima e igualmente rica, mas dum orgulho que
+nada havia que podesse igualar. Apaixonou-se tão loucamente que desde a hora em
+que a viu até que a morte o levou nunca mais teve vontade nem pensamento que
+não fôsse a della ou por ella inspirado. Apresentou-se como pretendente á mão
+da orgulhosa fidalga, e, apesar da sua idade e da concorrencia de muitos outros
+candidatos, foi aceite.</p>
+
+<p>A ambiciosa calculava o valôr das fortunas reunidas e optara pela pretensão
+do morgado, que lhe dava margem a viver na opulencia e grandeza que sonhara.
+Mas... o morgado tinha um filho, o herdeiro da casa, o futuro morgado e senhor,
+que mais tarde, morto o pai, a esbulharia dos seus direitos de posse, nada
+deixando para os filhos que podesse vir a têr.<span class="pn">{225}</span></p>
+
+<p>&mdash;«O que fez então?</p>
+
+<p>&mdash;«Oh, a desventurada sabia bem conciliar as coisas; só não soube conciliar
+a felicidade propria com a dos outros!...</p>
+
+<p>&mdash;«Casou com o filho?</p>
+
+<p>&mdash;«Não, que horror! Pôs como condição para o casamento com o morgado que o
+filho... se fizesse padre.</p>
+
+<p>&mdash;«Oh, que sacrilegio! E o morgado aceitou?!</p>
+
+<p>&mdash;«Assim foi. Em vão o filho e a pupila lhe pediram, de joelhos, que os
+deixasse casar; em vão elle ofereceu a sua desistencia ao morgadio. Ricos
+seriam os dois&mdash;com o seu trabalho e a fortuna de... da pupila do pai. Tudo
+debalde! Elle foi implacavel, porque ella o foi tambem. A lei só lhe garantia a
+posse do morgadio para os filhos se o verdadeiro morgado fôsse frade ou
+padre...</p>
+
+<p>&mdash;«Que desespero! Que mulher tão má! E depois, Madre Angelica?...</p>
+
+<p>&mdash;«Depois... elle foi padre!</p>
+
+<p>&mdash;«Oh!... E ella?</p>
+
+<p>&mdash;«A noiva?</p>
+
+<p>&mdash;«Sim, a noiva do rapaz.</p>
+
+<p>&mdash;«Essa cuidou morrer de desgosto, mas deu-lhe o Senhor coragem para
+resistir á doença do corpo e á da alma e... professou tambem.<span
+class="pn">{226}</span></p>
+
+<p>&mdash;«Freira? Resignada, resignados ambos?... Que almas eleitas, meu Deus?
+Mas... morreram?</p>
+
+<p>&mdash;«Elle morreu. Dorme ha muito na paz de Deus. O seu corpo ficou, a seu
+pedido, no claustro do convento que fundou quando ficou herdeiro da fortuna...
+</p>
+
+<p>&mdash;«Como?! Então sempre foi morgado?</p>
+
+<p>&mdash;«Sim. A maior dôr foi essa!...</p>
+
+<p>Soror Angelica encostou a cabeça á mão e as lagrimas escorregaram-lhe por
+entre os dedos, uma a uma.</p>
+
+<p>&mdash;«Mas porque não fugiram? Para que se sujeitaram a essa lei odiosa?!</p>
+
+<p>&mdash;«Porque elle era o pai. E os filhos não podem ir contra as suas ordens
+terminantes. Sugeitou-se, sacrificou-se, pela felicidade paterna. Mas... pouco
+tempo depois a nova morgada, apesar de rica, autoritaria e feliz, não poude
+resistir á fatalidade. Logo ao dar á luz o primeiro filho morreu, cheia de
+pavôr do castigo, consolada e amparada pelo homem que sacrificara ao seu
+orgulho e ambição. Mêses depois, o filhito que ficara o herdeiro da fortuna
+morreu tambem deixando o pai consumido de remorsos, envelhecido e triste, e
+herdeiro de toda a casa. E aqui tem porque, sendo padre o filho mais velho,
+sempre este ficou o infeliz herdeiro de toda essa fortuna maldita.<span
+class="pn">{227}</span></p>
+
+<p>&mdash;«Então não acha, Madre Superiora, que foi absurda, que foi até um crime
+essa obediencia que destruiu duas vidas?</p>
+
+<p>&mdash;«Soror Manoela&mdash;e a voz da freira tinha uma entoação grave, que nunca lhe
+conhecera, como se fôsse o éco apenas duma alma pairando muito alto&mdash;esse
+absurdo não deixou remorsos nas almas que se irmanavam e se amavam até ao
+infinito. Elle morreu sorrindo e perdoando; ella... vive na esperança duma vida
+melhor, sem que&mdash;graças a Deus!&mdash;tivesse sentido ainda a dôr amarga de ter
+causado o mal alheio.</p>
+
+<p>&mdash;«Amarem-se dessa maneira, têrem diante de si a vida, e matarem por suas
+proprias mãos toda a esperança de felicidade, Senhor! Como tiveram coragem?
+Eram decerto duas almas santas&mdash;não se podem tomar como exemplo... E não posso,
+não posso seguir o seu conselho, Madre Superiora! Se os velhos são egoistas e
+impiedosos, os novos têm direito a reclamar a sua parte de felicidade na terra.
+</p>
+
+<p>&mdash;«Faça o que entender, minha filha. Mas fique certa que, volvidos tantos
+anos e choradas tantas lagrimas, ainda não trocaria a paz da consciencia e a
+dôce consolação da minha saüdade por uma alegria construida sobre as ruinas
+doutra existencia...</p>
+
+<p>&mdash;«Pois era a Madre Superiora?!...<span class="pn">{228}</span></p>
+
+<p>&mdash;«Eu, sim, que não tive nenhum merito, porque <em>elle</em> e só
+<em>elle</em> foi o inspirador da nossa conduta, <em>elle</em> o filho heroico
+que sacrificou, sem um protesto, a felicidade propria á felicidade de alguns
+anos de seu pai!...</p>
+
+<p>As duas calaram-se, entristecidas e como que suspensas, ouvindo uns gritos
+lancinantes que vinham da outra extremidade do corredor.</p>
+
+<p>&mdash;«Pobre Soror Claudea!...&mdash;lamentou Manoela&mdash;Anda agora tão louquinha!</p>
+
+<p>&mdash;«Ahi tem, Soror Manoela, uma que se não poude resignar de bôamente...</p>
+
+<p>&mdash;«O quê? Ella não foi sempre assim?</p>
+
+<p>&mdash;«Oh, não! Era a mais alegre, a mais encantadora, a mais viva de quantas
+têm vindo a esta casa procurar o repouso e a felicidade... que nunca poude
+encontrar entre nós. Se a visse!... Soror Claudea nunca teve vocação para
+freira e nunca pensou que o poderia sêr. Se entrou para o Convento das
+Bernardas foi na ideia de que de lá seria facil fugir á tirania do pai, que a
+queria fazer professa a todo o transe.</p>
+
+<p>&mdash;«Meu Deus! Mas porquê?!</p>
+
+<p>&mdash;«Porque a fortuna da casa era pequena e era preciso que ficasse toda
+reunida nas mãos do filho mais velho, o representante da familia.</p>
+
+<p>«As irmãs e irmãos de Madre Claudea espalharam-se, resignadamente, por
+varios conventos<span class="pn">{229}</span> e fôram homens e senhoras muito
+respeitados na religião. Ella é que se revoltou sempre, porque, para seu
+castigo, desde pequenina que queria, com um amôr profano e intenso, a um moço
+de modestos recursos, filho segundo como ella, que se desesperava por a não
+poder furtar ao poder despotico do pai.</p>
+
+<p>«Começava nesse tempo a falar-se nos liberais que se juntavam no desterro
+para conspirar, os quais, dizia-se, eram recebidos de braços abertos pelo
+imperador, desde que mostrassem sêr homens de valia e de coragem. Se a causa
+liberal triunfasse, dizia-se, esses ficariam ricos e cheios de dignidades. Na
+esperança de por esse meio conquistar a fortuna que lhe asseguraria a
+felicidade sonhada, o rapaz emigrou e voltou mais tarde com as tropas liberais
+pondo em todos os átos de coragem da sua brilhante carreira militar o unico
+fito de libertar a mulher que amava, prêsa num convento e obrigada a professar,
+embora protestasse sempre e chorasse sem descanso durante toda a ceremonia.</p>
+
+<p>&mdash;«Assistiu a essa cêna, sem lagrimas, Madre Angelica?»</p>
+
+<p>&mdash;«Felizmente não foi no nosso convento que a fizeram professar, mas, embora
+as freiras chorassem e a lamentassem, o que lhe podiam ellas fazer?... O sr.
+bispo era parente da<span class="pn">{230}</span> familia, e o sr. bispo é que
+aprovou a profissão.</p>
+
+<p>&mdash;«Pobre mulher!...</p>
+
+<p>&mdash;«E bem desditosa! Quando o namorado chegou a Portugal soube da sua
+profissão violentada, mas não desanimou. Combinou as coisas de modo que se
+poude corresponder com ella e... combinaram a fuga.</p>
+
+<p>&mdash;«Soror Claudea fugiu?</p>
+
+<p>&mdash;«Sim, chegou a sahir do convento, descendo por uma corda da altura dum
+segundo andar. Quando chegou á rua onde elle a esperava tinha as mãos em carne
+viva, tão feridas que ainda hôje conserva as cicatrizes e ficou com as
+articulações prêsas...</p>
+
+<p>&mdash;«Sim, já tinha reparado que mal pode trabalhar com desembaraço...</p>
+
+<p>&mdash;«Fugiram... mas na guerra não ha felicidade possivel. A morte foi tão
+cruel para o sacrílego como a familia o tinha sido para a desditosa...</p>
+
+<p>&mdash;«Infeliz mulher! E depois?</p>
+
+<p>&mdash;«Depois, abandonada de todos, aceitou este pobre refugio, apesar de não
+sêr professa da nossa Ordem. É desde então que Madre Claudea sofre as crises
+aflitivas que Soror Manoela conhece... Pobre Madre Claudea! Não soube
+conformar-se, e não foi por isso mais feliz fugindo á obediencia filial...<span
+class="pn">{231}</span></p>
+
+<p>&mdash;«Oh, Madre Angelica, sempre o peor é ter nascido mulher! Terá sido sempre
+assim? Será eternamente a mesma coisa?!...</p>
+
+<p>&mdash;«Quem o sabe?!...</p>
+
+<p>&mdash;«Que grande culpa a minha em têr dado vida a uma criatura que hade, como
+nós, sêr uma sacrificada!...&mdash;E Manoela torcia as mãos chorando numa crise de
+nervos, que a velha freira tentava aplacar.</p>
+
+<p>&mdash;«Tenha esperança, minha filha; quem sabe o que será o futuro?!... Houve
+sempre mulheres que escaparam ao destino comum e fôram felizes.<span
+class="pn">{232}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h3><a name="SECTION00415000000000000000">V</a></h3>
+
+<p>Manoela foi-se resignando a esperar, cedendo sempre, adiando de mês para mês
+a realisação do projéto que acariciava no seu coração, e que importava o áto
+público de rebeldia, que Madre Angelica tanto condenava.</p>
+
+<p>Os anos fôram decorrendo e ella assistindo, com o espirito dolorido e a
+vontade embotada, áquelle fim miserando de vidas que se iam extinguindo, num
+bater de azas lugubres que enregelava.</p>
+
+<p>O convento ia-se despovoando a pouco e pouco, como que tornando-se maior, á
+medida que as vélhinhas, uma a uma, iam sahindo, para não mais voltar, a tomar
+o seu modesto logar no cemiterio público.</p>
+
+<p>Manoela era agora a cabeça que por todos pensava, a alma e a energia que
+sustentava aquelle resto de vida conventual, dando-lhe uma aparencia de
+cohesão, que não tinha.</p>
+
+<p>Sentia-se apossada de todo esse vasto casarão, que parecia crescer a cada
+nova baixa que a morte marcava, com a sua fatalidade cega de força
+inconsciente, na comunidade já tão diminuida.<span class="pn">{233}</span></p>
+
+<p>Era a herdeira natural e incontestada dos santos que lhe iam deixando as
+pobres vélhinhas, como recordação, e na vaga esperança de que assim viveriam
+mais na sua memoria, unico abrigo ás suas almas exauridas.</p>
+
+<p>Das freiras que ao entrar a tinham enchido de blandicias e amimalhado como
+mães carinhosas, já poucas existiam. Iam-se mirrando e fenecendo, seguidamente
+umas atraz das outras, quasi sem doença e sem sofrimento, num descahir e
+murchar de vontade que nenhum ideal sustenta.</p>
+
+<p>Apenas três ou quatro vélhinhas entorpecidas pelos anos, Madre Angelica
+ainda energica apesar da sua idade e da sua dolorida existencia, e Madre
+Claudea cada vez mais dificil de aturar, fugindo endoidecida do convivio dos
+outros, seguindo apenas automaticamente as devoções obrigatorias do côro, que
+eram como que um farrapo de lucidez a alvejar no seu triste espirito
+entenebrecido. Chorava dias inteiros, com gritos dilacerantes, os pecados do
+mundo, que queria carregar sobre os seus miseraveis hombros, mais do que os dos
+outros pecadores, sem esperança de perdão. Tinha visões que assustavam as
+meninas do côro, e apavorava as criadas narrando-lhes: como na igreja do
+convento fôra uma vez enterrado um grande fidalgo da cidade cuja<span
+class="pn">{234}</span> alma em pena o diabo veiu buscar com medonho barulho.
+Ella não se lembrava, Soror Claudea não era desse tempo; mas ouvira contar
+bastas vezes ás santas freirinhas que tinham assistido a essa luta homerica do
+diabo, querendo levar uma alma abrigada pelas paredes santas daquella virtuosa
+casa. O fidalgo durante toda a vida não tivera uma palavra de justiça nem de
+piedade para ninguem, nem se lembrava de minorar a miseria alheia, a não sêr
+por orgulho e fama. Assim, logo que morreu e que o trouxeram com pompas
+principescas ao carneiro de familia, feito na igreja por deferencia especial a
+quem muito protegera a comunidade, um verdadeiro e espesso nevoeiro se levantou
+logo do chão escurecendo a vista ás freiras, que nem podiam distinguir o padre
+oficiando no altar. E, á noite, o ruido era tanto pela nave magestosa, que as
+freiras atemorisadas deixaram de abrir as grades do côro para as rezas
+noturnas. Era impossivel resistir ao pânico que se apoderou daquelle rancho de
+mulheres, que viam e ouviam tudo quanto diziam vêr e ouvir por um fenomeno
+vulgar de sugestão, que tanto milagre tem feito no mundo.</p>
+
+<p>Madre Claudea descrevia e pormenorisava, então, a festa do exorcismo que
+fôra feita por santos monges arrabidos auxiliados por<span
+class="pn">{235}</span> todas as outras comunidades dos arredores, que de cruz
+alçada entraram na igreja. Aberta a sepultura e aspergido o cadaver, uma nuvem
+negra sahiu da cova espalhando-se pela igreja e sahindo pela porta entre-aberta
+com fragôr. Depois tudo cahira no silencio, tudo se pacificara, ouvindo-se
+apenas as orações dos frades prostrados de joelhos num santo respeito por tão
+grande castigo.</p>
+
+<p>E quando fôram vêr a cova... não continha mais do que um punhado de cinza!
+</p>
+
+<p>Madre Claudea benzia-se murmurando exorcismos e orações, e as ouvintes
+entre-olhavam-se sentindo pela espinha um arrepio de pavôr.</p>
+
+<p>E não era só isto o que ella sabia. Uma ocasião&mdash;isso já fôra talvez ha
+seculos, mas o <em>Livro da fundação</em> lá o tinha escrito&mdash;aparecera um
+rapazinho trazendo um feixe de varas resequidas que ofereceu á irmã rodeira
+para plantar na cerca. Se ella as plantasse veria como dum instante para o
+outro, por milagre do Senhor, cresceriam logo e se tornariam em belas e
+frondosas arvores. A irmã rodeira ralhou com o garoto e despediu-o; mas como
+nessa ocasião passasse uma noviça, criança e amiga de brincar, disse-lhe com
+empenho:&mdash;deixe-me experimentar, irmã rodeira; não faz mal nenhum e sempre a
+gente se rirá da lembrança do rapazinho.<span class="pn">{236}</span></p>
+
+<p>Assim foi. Pegou numa das varas e foi a correr enterrá-la na cerca, seguida
+por outras noviças em recreio.</p>
+
+<p>Imediatamente&mdash;Santo Deus, os maleficios que faz o mafarrico!&mdash;a vara
+engrossou e cresceu desproporcionadamente e tornando-se numa arvore magnifica
+encheu de assombro as pobres noviças, que viam, sobre ella, uma multidão de
+macacos fazendo-lhes negaças. Foi o inferno na casa! Todas as que olhavam a
+arvore maldita ficavam possuidas do espirito imundo e faziam os maiores
+desacertos e gritarias. Como toda a comunidade corria a vêr a causa de tal
+alvoroço, toda ella sofreu do mesmo mal, e têr-se-iam perdido todas,
+certamente, se não fôsse a Madre Superiora, que, antes de mais nada, mandara
+chamar pela moça de recados os senhores capelães e confessores para pôr termo
+áquelle inferno com as suas preces e esconjuros.</p>
+
+<p>Madre Claudea sabia mais e mais, mas já se não lembrava bem e a sua memoria
+fraquejava ao recordar tantas coisas idas... Apertava a cabeça com as mãos e
+chorava, num chôro desfeito e infantil que enchia de lagrimas todos os olhos.
+</p>
+
+<p>Só Manoela podia apaziguá-la e por assim dizer chamá-la á realidade e, com a
+sua voz persuasiva e grave, fazê-la socegar e adormecer<span
+class="pn">{237}</span> confiada como uma pobre inocente. E olhando-a esqualida
+e apenas com os ossos cobertos por uma péle resequida e empergaminhada, Manoela
+pensava com amargura na linda rapariga que ella fôra, segundo lhe contara Madre
+Angelica, amada com paixão, amando com loucura, vítima de interesses e
+preconceitos alheios, um dia rebelde e desvairada rompendo com todas as peias,
+logo humilhada e cheia de remorsos, entrepondo-se voluntariamente á vida que
+engeitara, num terror atavico de escravo que não sabe o que hade fazer á
+liberdade, com sacrificios heroicos.</p>
+
+<p>Tambem Manoela teve um dia, e quando menos a esperava, depois de tantos anos
+de sujeição, a sua alforria, e tambem, como ella, a não soube usar, porque a
+sua vontade longamente oprimida não se fortalecera e definira.</p>
+
+<p>Ao princípio, quando chegou, a noticia da morte repentina da mãe, não se
+compenetrou bem do que essa morte representava para a sua existencia e apenas
+se sentiu surpreendida&mdash;não tendo a pretensão de querer sofrer, por costume, o
+que de facto não sentia, por aféto.</p>
+
+<p>Mas, relendo melhor as cartas do irmão e da Ama-Rita, compreendeu por fim
+que<span class="pn">{238}</span> era rica e senhora absoluta da sua pessôa.
+Isto não lhe podia de pronto dar a sensação da liberdade que por vezes pensara
+deveria sentir, porque o hábito lhe dera uma nova servidão, que os timidos e os
+prisioneiros conhecem.</p>
+
+<p>Mas, a pouco e pouco apossando-se de si mesma, resolveu fazer prontamente o
+que havia tanto desejava com ânsia: mandar buscar a filha, reconhecê-la como
+tal, e conservá-la junto do seu coração e até á morte, triplicando em carinhos
+os anos de amargurada saüdade em que a tinham conservado.</p>
+
+<p>Foi têr com Madre Angelica, que era ainda a Superiora venerada e querida,
+que anos antes a acolhera no seu coração maternal.</p>
+
+<p>Parecia outra, galgando lestamente as escadarias e correndo pelos corredores
+que levavam até á céla da Superiora, que já quasi nunca sahia do seu cantinho
+cheio de sol. Com os seus trinta e quatro anos vividos numa vida quasi
+vegetativa, os traços finos do seu rosto, que fôra duma formosura discreta de
+morena, conservavam, apesar de tudo, a delicadeza e a graça ingenua que fôram o
+grande encanto da sua mocidade, quando a tinham trazido para ali.</p>
+
+<p>Nos momentos&mdash;raros momentos que elles fôram!&mdash;de perfeita felicidade para o
+seu<span class="pn">{239}</span> coração, toda a sua pessôa irradiava uma
+alegria confiante, que a tornavam singularmente encantadora.</p>
+
+<p>Quando Madre Angelica levantou os olhos do livro de orações para dar a
+licença que ella lhe pedia á porta, foi já com o assombro que causa uma grande
+mudança numa pessôa querida, porque a propria voz da recolhida era outra&mdash;um
+novo timbre de alegria a fazia desconhecivel.</p>
+
+<p>&mdash;«O que é, Soror Manoela?!... Alguma novidade lá por baixo?</p>
+
+<p>&mdash;«Não, Madre Angelica, a novidade é só minha... é uma coisa que eu pensei e
+que lhe venho participar...</p>
+
+<p>E Manoela explanou, diante da pobre freira sobresaltada, o projéto, que tão
+simples se lhe afigurara.</p>
+
+<p>&mdash;«A sua filha para aqui, Soror Manoela, pensou isso?!...&mdash;perguntou
+apavorada.</p>
+
+<p>&mdash;« Sim, para aqui, então não hade sêr para aqui?!</p>
+
+<p>&mdash;«Oh, meu Deus, meu Deus! Para que estou eu guardada, santo
+Deus?!&mdash;lamentava a Superiora.</p>
+
+<p>&mdash;«Mas eu não compreendo o seu espanto, Madre Angelica! Então não sabia o
+motivo porque estou aqui ha dezoito anos? Não foi a Madre Angelica que me levou
+á obediencia<span class="pn">{240}</span> a minha mãe adiando até agora a
+realisação do meu desejo?!...</p>
+
+<p>&mdash;«Sempre imaginei morrer antes de vêr esse escandalo!... Meu Deus, meu
+Deus! Então a minha filha quer dar a essas meninas o público espétáculo da sua
+antiga culpa?!... Quer sêr o riso e a fabula de toda a cidade?! O que dirão de
+nós?! Com tanta má vontade contra as casas religiosas, com tanta calúnia que se
+tem levantado, se Soror Manoela vai agora apresentar publicamente a sua filha,
+o que não dirão?!...</p>
+
+<p>&mdash;«E que me importa tudo isso?!&mdash;não sou eu livre porventura?!</p>
+
+<p>&mdash;«Oh, livre, livre!... Ninguem é livre de alardear os seus
+pecados&mdash;respondeu a freira, impacientada.</p>
+
+<p>&mdash;«Não é isso o que nos diz a nossa religião, Madre Superiora. Esconder um
+pecado ou culpa é uma prova de orgulho que Deus condena.</p>
+
+<p>&mdash;«Mas não neste caso, em que a sua publicação trará descrédito e vergonha
+para a nossa santa casa. O que dirão, sabe, Soror Angelica?... Dirão que nesta
+casa a imoralidade chegou ao ponto de se apresentarem publicamente as filhas
+das freiras!...</p>
+
+<p>&mdash;«Dirão uma mentira, que eu propria desfarei contando a verdade. Bem sabe,
+Madre<span class="pn">{241}</span> Angelica, que se não fiz isto ha muitos anos
+foi por seguir os seus conselhos, nos quais me mostrou que devia obediencia a
+minha mãe. Por ella, por esse respeito de que me falou para com uma pessôa que
+me afastou da casa de meu pai, que me expulsou como a uma criminosa, sofri
+dezoito anos dum silencio que considero uma covardia hôje... Ah, dezoito anos
+de saüdades por uma filha que se não conhece e pela qual se morre de amôr!...
+Ah, Madre Angelica, como fôram crueis comigo! A culpa, se a houve, se uma
+criança, como eu era, a pode têr por se deixar iludir por um homem da sua
+casta, um amigo de seu irmão... essa culpa bem a tenho lavado com lagrimas de
+um coração ansioso por conhecer a sua propria filha. Ah, a Madre Superiora é
+cruel: foi-o comigo, quando me fez recuar ante a minha justa vontade; é-o agora
+ainda, porque não compreende este meu sentir!... Mas agora sou livre; quero a
+minha filha&mdash;e heide tê-la!...</p>
+
+<p>Manoela, sempre tão delicada no dizer e tão submissa, chegava nesse momento
+á voluptuosidade das almas sacrificadas quando uma vez chegam á consolação de
+poderem articular a verdade, que lhe sahia em palavras que pareciam golfadas,
+num atropêlo de quem<span class="pn">{242}</span> esteve encarcerado largos
+anos e vê por acaso uma porta escancarada.</p>
+
+<p>&mdash;«E seus irmãos, o que dirão elles desse áto?&mdash;arriscou a Superiora
+tentando dissuadi-la.</p>
+
+<p>&mdash;«Meus irmãos!?... Que lhes devo eu, Madre Superiora? Ha dezoito anos que
+me viram partir de casa, um amaldiçoando-me, os outros nem perguntando a causa
+dessa sahida, e só agora me escrevem porque apesar de tudo a lei me confere o
+direito de partilhar com elles a herança de nossos pais. Meus irmãos!? Quasi os
+não conheço... Nem lhes devo amizade, nem respeito. Á minha filha, sim, a essa
+devo todo o meu amôr, todos os momentos do resto da minha existencia.</p>
+
+<p>&mdash;«Soror Manoela, pense bem. Será um escandalo! O que dirão essas meninas do
+côro, as criadas, as senhoras que nos protegem e nos dão a sua amizade?!...
+Para que estava eu guardada, Senhor!?&mdash;E a freira levantava as mãos e os olhos
+ao céo, num gesto implorativo, murmurando:&mdash;Ah, se Madre Gertrudes fôsse
+viva!...</p>
+
+<p>&mdash;«Sim,&mdash;volveu a outra com vivacidade, tão pouco do seu costume&mdash;tem razão!
+Se minha tia fôsse viva, ella seria a primeira a chamar a si essa pobre criança
+que tem sido escorraçada de todos como um cão tinhoso.<span
+class="pn">{243}</span> E já que a não posso trazer para esta casa que me foi
+abrigo nas horas tristes da vida, sahirei daqui. Irei viver com minha filha
+livremente...</p>
+
+<p>&mdash;«O que diz, Soror Manoela, deixar-nos!? Quer deixar-nos agora que estamos
+com os pés para a cova, e é a unica pessôa que aqui temos para nos ajudar a bem
+morrer, acabando em paz na nossa santa casa?!...</p>
+
+<p>Os soluços sufocaram-na. Tambem ella sofria com a dôr da sua pupila; tambem
+dos seus olhos, que já deveriam estar esgotados, por tanto terem chorado,
+cahiram lagrimas que Manoela recolheu no coração angustiado.</p>
+
+<p>Soror Angelica abriu-lhe os braços, e por largo tempo ficaram chorando
+juntas o desespero dessa primeira desinteligencia em tantos anos de confiada e
+dôce amizade. Foi a freira que quebrou o silencio:</p>
+
+<p>&mdash;«Soror Manoela, mande vir a menina; mas, se lhe merecem alguma
+consideração as suas velhas companheiras, não a reconheça desde já
+publicamente. Deixe que a morte feche as portas do nosso convento, e então será
+completamente livre para fazer a sua vontade.</p>
+
+<p>&mdash;«Mas que nome dará á amizade por uma criança que tão empenhadamente mando
+vir para junto de mim?<span class="pn">{244}</span></p>
+
+<p>&mdash;«Não poderá sêr uma afilhada?...</p>
+
+<p>&mdash;«Afilhada?!....&mdash;Manoela hesitava, pesando-lhe muito aquella fraqueza como
+uma verdadeira covardia. Mas as velhas companheiras de toda a sua existencia de
+expulsa mereciam alguma consideração... Cederia.</p>
+
+<p>Tinha de sêr&mdash;mais uma vez sacrificando ao descanso dos outros os seus
+sonhos, as suas revoltas, as suas alegrias, a sua vontade.<span
+class="pn">{245}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h3><a name="SECTION00416000000000000000">VI</a></h3>
+
+<p>Alguns dias depois chegava Christina, acompanhada pela Ama-Rita, que chorava
+de comoção só com o pensamento de revêr a sua querida menina.</p>
+
+<p>Manoela foi esperá-las á portaria, escondendo a custo a ansiedade da sua
+alma que tumultuava em desejos loucos de tomar a filha nos braços e gritar bem
+alto a sua paixão.</p>
+
+<p>Toda ella tremia, sorrindo contrafeita ás conversas e perguntas das outras
+senhoras, amparada pela Madre Superiora, que extraordinariamente sahira do
+cantinho da sua céla para a fortalecer naquella suprema prova.</p>
+
+<p>Veiu por fim a hora da chegada; abriu-se a portaria, e Manoela poude vêr
+pela grade entreaberta a Ama-Rita, muito vélhita e trôpega, acompanhada por uma
+mulher, uma verdadeira mulher forte e desempenada, que olhava com visivel
+curiosidade essas paredes enegrecidas que iam sêr o seu novo abrigo&mdash;sahida dum
+convento, onde a mãe pagara para a educarem, para entrar naquelle como
+recolhida.</p>
+
+<p>Manoela, á medida que a filha se ia aproximando, subindo a escada para
+entrar no<span class="pn">{246}</span> palratorio, ia recuando espavorida,
+sentindo um frio de morte no coração, que a asfixiava. É que diante dos seus
+olhos estava, não a filha que amava e chamara febrilmente durante anos de
+paixão esteril em que se consumira, mas a imagem viva do homem que, na rétidão
+do seu caráter, apenas podera desprezar como um sêr ignobil e ascoroso.</p>
+
+<p>Christina não era nada, nada do que ella tinha idealisado. Não era a
+<em>sua</em> filha, era a filha <em>delle</em>, que a natureza, inconsciente na
+fatalidade da sua força, lhe punha nos braços.</p>
+
+<p>Vencendo a repugnancia instintiva que essa semelhança lhe inspirava, foi
+sorrisonha e meiga que recebeu a afilhada, mas Christina não correspondeu
+tambem a esse apêlo. Os seus olhos garços ficaram frios e dominadores, como
+eram habitualmente; a sua bôca não se desdobrou álêm do sorriso escarninho que
+lhe errava habitualmente nos labios.</p>
+
+<p>Foi tristemente resignada que Manoela a acompanhou ao dormitorio cheio de
+luz onde ella dormia, e onde, com amoroso cuidado, lhe arranjara a cama velada
+com cortinados de inexcedivel brancura, fresca como um berço de criança.</p>
+
+<p>Ama-Rita seguiu-as falando muito, abraçando de quando em quando a sua
+querida menina, que ainda era capaz de reconhecer<span class="pn">{247}</span>
+entre muitas apesar de tão mudada e tão triste.</p>
+
+<p>Christina não despertou a simpatia viva que a mãe inspirara a toda a
+comunidade logo ao entrar no convento.</p>
+
+<p>Pagava com sorrisos contrafeitos os carinhos que lhe faziam, e mal atentava
+nos mimos com que a mãe a rodeava. Aborrecia-se e impacientava-se com as pobres
+vélhinhas, que procuravam nessa mocidade a alegria que as aquecesse e lhes
+reflorisse as existencias a extinguirem-se. Como á mãe, outrora, todas abriram
+o coração a esse coração, mas este permaneceu fechado e frio, afastando-as
+descaroavelmente.</p>
+
+<p>Tinha revoltas bruscas, respondia sêcamente, e queixava-se á Ama-Rita de que
+a queriam sepultar entre quatro paredes e que a tinham tirado duma prisão para
+a fecharem noutra peor. Manoela sofria com todas essas pequenas coisas, que se
+iam avolumando, tornando-a odiada por todas as outras companheiras; mas temia
+fazer-lhe qualquer observação receando o seu genio, que presentia violento e
+áspero...</p>
+
+<p>Até que um dia Christina, de combinação com uma menina do côro que levou á
+rebelião, pôs uma verdadeira nota de escandalo no meio conventual, subindo com
+ella ao<span class="pn">{248}</span> telhado para vêr o que se passava no largo
+apinhado de gente para a feira.</p>
+
+<p>Manoela foi obrigada a proceder, advertida pela Madre Superiora, que a
+acusava, com a sua voz dôce, de falta de energia para com a filha.</p>
+
+<p>&mdash;«Christina&mdash;dizia-lhe meigamente&mdash;para que me obriga a admoestá-la? Para
+que faz coisas... que não ficam bem a uma menina?...</p>
+
+<p>&mdash;«Mas o que fiz eu, minha senhora? Foi algum crime subir ao telhado para
+tomar um pouco de ar, para fugir um instante desta sensaboria?!</p>
+
+<p>&mdash;«Mas a Christina não está bem, não gosta de estar no convento?</p>
+
+<p>&mdash;«Não, minha senhora, não gosto de estar nesta prisão.</p>
+
+<p>&mdash;«Mas oiça: hade sahir, tenha paciencia um pouco. Isto não pode durar
+muito; são apenas duas as freiras que ainda existem, e quando ellas morrerem
+sahiremos ambas. Continuará aqui a sua educação; a Christina sabe tão pouco que
+mal se poderá apresentar no mundo, onde ha muita exigencia para as senhoras da
+nossa classe.</p>
+
+<p>&mdash;«Ah, sim!? Conselhos, conselhos tenho ouvido muitos. Eu já tenho educação
+bastante, não preciso mais...<span class="pn">{249}</span></p>
+
+<p>&mdash;«Christina!?</p>
+
+<p>&mdash;«Minha senhora!?</p>
+
+<p>&mdash;«Então não está bem ao pé de mim?...&mdash;E querendo-a convencer, com a sua
+voz dum carinho maternal:&mdash;Não diga que não, que é sêr ingrata. Se soubesse
+como sou sua amiga!...</p>
+
+<p>&mdash;«Minha amiga?! Se o fôsse, não me prendia aqui como uma criminosa. Se o
+fôsse, não me chamava afilhada&mdash;quando eu sei muito bem que tenho outro nome...
+</p>
+
+<p>Manoela interrompeu-a com um grito desvairado:</p>
+
+<p>&mdash;«Christina, Christina, cala-te! Tu não sabes, tu não podes compreender
+nada do tormento da minha vida!...</p>
+
+<p>&mdash;«Ah, sim, um bom meio de me obrigar a calar, quando eu posso falar porque
+sou sua filha&mdash;respondeu brutalmente.</p>
+
+<p>Manoela empalideceu; aos seus ouvidos soou uma zoeira congestiva e o seu
+coração quasi a sufocou na onda de sangue que lhe atirou á cara.</p>
+
+<p>&mdash;«Sua mãe!? Está enganada, menina! Nem sequer é minha afilhada. Mandei-a
+criar e educar por dó, e é por dó que a tenho comigo.</p>
+
+<p>Conhecendo o orgulho da filha, pagava essa afronta com afronta maior. Tambem
+ella se<span class="pn">{250}</span> sentia ferida; tambem ella tinha
+necessidade de revoltar-se contra a crueldade alheia. Tambem ella tinha um
+temperamento violento, que a extrema sensibilidade e o prematuro infortunio
+tinham enfraquecido mas não aniquilado.</p>
+
+<p>&mdash;«Quer sahir?!&mdash;e o seu peito era sacudido por uma gargalhada nervosa, que
+tornava ásperas as palavras&mdash;quer sahir?! Pois sáia! Que me importa!? Recolhi-a
+por dó... não a obrigo a receber um beneficio que não merece.</p>
+
+<p>Mas Christina, como todos os egoistas, tinha a covardia das resoluções
+rapidas. Diante da indignação da mãe, queria recuar, submetia-se, desejava tudo
+conciliar...</p>
+
+<p>&mdash;«Sahir, minha senhora?! Mas para onde?</p>
+
+<p>&mdash;«Para onde estiver melhor, para onde quizer. Que me importa a sua vida?! E
+é melhor fazê-lo já, já.</p>
+
+<p>Manoela, com todos os nervos retesados numa crise dolorosa, tinha-se tornado
+duma palidez esverdeada, os beiços trémulos e descoloridos, o coração a
+afogá-la numa galopada infernal após uma como rapida suspensão de movimento.
+</p>
+
+<p>Ante aquella ordem e o gesto de repulsa que a acompanhava, Christina não
+resistiu, dirigindo-se para a porta, de cabeça baixa,<span
+class="pn">{251}</span> contrafeita, unicamente arrependida de têr provocado
+uma cólera que a privava, dum instante para outro, de todo o bem-estar material
+a que se afizera.</p>
+
+<p>A mãe olhava-a tristemente:&mdash;era afinal aquella a filha que tanto amara e
+tanto desejara!... Um resto de piedade venceu ainda a indignação e o desgosto.
+</p>
+
+<p>&mdash;«Oiça&mdash;disse-lhe quando estava quasi ao fundo do dormitorio, fazendo-a
+voltar rapidamente a cabeça numa ânsia de esperançada.</p>
+
+<p>&mdash;«Minha senhora, chamou?</p>
+
+<p>&mdash;«Sim, venha cá.&mdash;E, sem a fitar, num repelão de magua que lhe causava a
+atitude tão diferente da filha, agora de cabeça baixa e ar hipocrita.&mdash;Custa-me
+abandoná-la para ahi, sem familia nem protéção... Vou pedir a meu irmão para a
+receber em sua casa, como afilhada... Se elle consentir, ficará contente?</p>
+
+<p>&mdash;«Sim, minha senhora; seria uma felicidade para mim. Quanto lhe devo,
+madrinha!</p>
+
+<p>&mdash;«Não, não me deve nada. Vá á sua vida, e tenha paciencia alguns dias mais.
+</p>
+
+<p>&mdash;«Mas... eu queria pedir desculpa...</p>
+
+<p>&mdash;«Não; não me ofendeu. Pode ir.</p>
+
+<p>Tinha pressa de se encontrar só. Dizia bem: o seu coração não estava
+ofendido; estava despedaçado, calcado aos pés, por<span class="pn">{252}</span>
+aquella que tinha sido o encanto da sua existencia antes de a conhecer e depois
+não fôra senão motivo para desilusões e evocações pungentes.</p>
+
+<p>O desespero da sua alma contrastava com a serenidade da lua, em crescente,
+que se erguia manso e manso num céo translucido, ainda tingido de oirenta
+púrpura no poente, e era como um alfange de oiro pronto a vibrar-lhe o último
+golpe.</p>
+
+<p>Soluçava; já não podia mais.</p>
+
+<p>Pela janela gradeada, os olhos nublados de lagrimas mal distinguiam as
+linhas dessa paisagem, revista em cada dia durante anos, e que umas vezes lhe
+parecia grandiosa no seu aspéto cenografico, outras banal e triste, conforme as
+impressões do seu espirito, tranquilo ou perturbado.</p>
+
+<p>Sentia um agro prazer em chorar, e em soluçar como uma criança, numa
+desconsolação de abandôno e de desespero. O que fôra o seu passado? Apenas uma
+existencia sacrificada ao convencionalismo ou ao egoismo alheio. O presente era
+essa amargura de se sentir desamparada das suas proprias ilusões&mdash;as últimas
+companheiras dos que mais sofrem.</p>
+
+<p>O futuro... Santo Deus! o que lhe traria o futuro se não lhe trouxesse o
+hábito de viver para si mesma?!...<span class="pn">{253}</span></p>
+
+<p>Madre Angelica, prevenida pela Ama-Rita que vigiava sempre a sua menina,
+veiu têr com ella, arrastando-se vagarosamente ao longo do dormitorio, como uma
+sombra que o luar fazia destacar.</p>
+
+<p>&mdash;«Soror Manoela, o que tem, o que lhe fizeram para estar assim
+agoniada?!...</p>
+
+<p>&mdash;«Ai, Madre Angelica!... Estava ahi? Ainda bem, ainda bem que a tenho junto
+de mim neste momento. Julguei-me olvidada de todos&mdash;até de Deus!...</p>
+
+<p>&mdash;«Soror Manoela....&mdash;tornou a velha freira com severidade, adoçada pela sua
+muita estima á reclusa&mdash;veja o que diz, minha filha. Deus é pai e um pai não
+esquece nem aflige propositadamente os seus filhos. Elle ama os mais
+amargurados&mdash;e serão esses os que mais perto estarão da sua eterna gloria.</p>
+
+<p>&mdash;«Ah, mas custa muito chegar até lá, pelo caminho da vida...</p>
+
+<p>&mdash;«Tenha resignação, Soror Manoela; aprenda no exemplo dado pelo nosso
+Salvador: olhe para a sua santa imagem, coberta de chagas e coroada de
+espinhos! E tudo quanto sofreu, inocente e bom, foi para remir o mundo, para
+salvar aquelles que o flagelavam.</p>
+
+<p>&mdash;«Tem razão... terá razão&mdash;soluçou Manoela, humilhada. Mas logo, numa
+revolta subitânea que toda a sua devoção não poude<span class="pn">{254}</span>
+evitar&mdash;mas elle era Deus, sofreu por sua vontade, e morreu logo!! O seu
+martirio não foi uma longa vida arrastada na dôr e no suplício! Mas eu que
+vivo, eu que tenho vivido anos e anos para sofrer em cada hora mais do que a
+morte...</p>
+
+<p>&mdash;«Soror Manoela!...&mdash;reprimendou a freira.</p>
+
+<p>&mdash;«Perdão, perdão! Meu Deus, se o sofrimento enlouquece!...</p>
+
+<p>E de joelhos, aflita, soluçante, apavorada com a sua propria heresia, foi-se
+arrastando até ao crucifixo que se destacava no fundo, tremulamente alumiado
+por uma lampada de cobre, e ali ficou agarrada aos pés chagados da grande
+imagem, num choro convulsivamente desfeito e tragico.</p>
+
+<p>Madre Angelica apiedou-se, ella que era o unico coração capaz de compreender
+e estimar a misera criatura, e tentou levantá-la com as suas poucas forças, e
+disse-lhe baixinho, numa voz que era uma consolação para essa alma torturada e
+desgraçada:</p>
+
+<p>&mdash;«Vamos, Soror Manoela, diga-me o que assim a faz sofrer. Conte-me a sua
+magua&mdash;que verá como ella diminue...</p>
+
+<p>&mdash;«Ai, Madre Angelica, morro de saüdades pela minha filha. Trocaram-ma. Não
+é esta! Como fui castigada, Santo Deus!<span class="pn">{255}</span></p>
+
+<p>E a freira, sinceramente surpreendida na sua credulidade ingenua:</p>
+
+<p>&mdash;«O que me diz?! Então a Christina não é a sua filha?... Será possivel?!...
+</p>
+
+<p>&mdash;«Não é!&mdash;volveu Manoela, sobreexcitada, não reparando sequer na dúvida da
+velha Madre.&mdash;Não é, não é a minha filha, que alimentei do meu proprio sangue,
+que sahiu do meu corpo como a flôr sai da planta. É uma estranha, é uma alma
+gelada, que não compreendo nem estimo. Veja-a, veja-a bem, Madre Angelica;
+veja-lhe bem os olhos frios e crueis, os seus olhos metalicos como os do
+<em>outro</em>! Veja-lhe o riso escarninho, que é <em>delle</em>...
+Consulte-lhe a alma soberba e impiedosa, como a da avó... Avalie a minha
+desgraça, Madre Angelica! Tenho uma filha que não tem nada, que não é nada de
+mim!... E despreza-me, a criaturinha!...&mdash;terminou num riso cascalhado, que era
+uma derivação do choro histérico que a tomara.</p>
+
+<p>&mdash;«Socegue, minha irmã. Então!?... Isso não é proprio de si...</p>
+
+<p>&mdash;«Sim, tem razão! Eu não devo sofrer assim, mas que fazer?! Não posso, não
+posso habituar-me a esta desolação; querer amar a minha filha tal como é e não
+como a sonhei, e não poder, não poder!...<span class="pn">{256}</span></p>
+
+<p>Falou longo tempo, num soluçar entrecortado que a esfrangalhava e
+halucinava, e só muito tarde, conseguindo levá-la para a sua céla, onde estavam
+mais á vontade, Madre Angelica lhe poude insuflar um pouco de coragem e
+resignação para vencer aquella crise dolorosissima.<span
+class="pn">{257}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h3><a name="SECTION00417000000000000000">VII</a></h3>
+
+<p>O irmão de Manoela respondeu afirmativamente á carta muito digna que ella
+lhe escrevera, consentindo em receber Christina como se fôsse uma filha.</p>
+
+<p>A morte da mãe deixara-lhe um vacuo imenso no grande casarão, onde só de
+quando em quando os irmãos, já casados e cada um em sua terra, o visitavam por
+ceremonia.</p>
+
+<p>«Christina pode vir&mdash;dizia na sua carta á irmã&mdash;quando quizer, e na certeza
+de que já a estimo como filha.</p>
+
+<p>Sentia-se só, e estava na idade em que uma nova amizade é um pouco de vida
+nova que se insufla na alma amortecida.</p>
+
+<p>«Manoela, que fôsse tambem; dezenove anos de penitencia teriam por certo
+depurado toda a mácula...»</p>
+
+<p>Esquecia o passado; talvez um pouco de inconfessado remorso o estivesse a
+maguar, agora que se sentia tão só e inclinado á vida serena duma familia a
+refazer.</p>
+
+<p>Mas a irmã não ia; agradecia-lhe muito, tanto a prontidão da resposta como a
+aquiescencia ao seu pedido e o desejo de a revêr...<span
+class="pn">{258}</span> Mas não iria. Tinha ali uma triste missão a cumprir;
+não abandonaria, no fim da vida, as companheiras de tantos anos de angustia.
+</p>
+
+<p>Christina partiu alegre, numa ansiedade de prisioneira que reentra no mundo
+por que tem suspirado durante longos dias inresignados.</p>
+
+<p>Manoela ficava sem saüdades dessa filha que fôra durante anos a sua razão de
+viver; antes sentia, ao despedir-se, uma vaga sensação de alívio, não isenta de
+cavada amargura.</p>
+
+<p>&mdash;«Adeus, Christina,&mdash;disse-lhe na hora da despedida&mdash;diga a meu irmão que
+resolvi fazer o meu testamento deixando-a herdeira do que me pertence. Elle que
+administre a casa nesse sentido, pois só quero dispôr do usofruto por causa
+destas pobres criaturas que me rodeiam.</p>
+
+<p>&mdash;«Deixe-me agradecer-lhe, madrinha...&mdash;e tentava beijar-lhe a mão.</p>
+
+<p>&mdash;«Para quê?...&mdash;respondeu sorrindo com ironia e encolhendo os hombros á
+sincera alegria de Christina.</p>
+
+<p>Era com um profundo desdem que atirava essa fortuna, que lhe era
+indiferente, para o poder da filha que não a soubera amar nem reconhecera o
+presente inestimavel que lhe dera antes, tendo-lhe dado o seu amôr.</p>
+
+<p>Partiu, acompanhada de Ama-Rita, que apenas levava o encargo de a entregar
+ao tio<span class="pn">{259}</span> e voltar logo, pois essa é que,
+decididamente, não abandonaria mais a sua menina.</p>
+
+<p>Para ella a menina era Manoela, que nunca deixava de revêr como fôra: a
+filha adótiva do seu coração, a estranha que tomara na sua alma o verdadeiro
+logar da filha morta á nascença.</p>
+
+<p>Mas bastante mudara nos últimos tempos, apesar della se não querer convencer
+do que via: a mulher que pouco tempo antes ella encontrara, senão a linda
+rapariga que vira partir, lavada em lagrimas, crucificada de dôres, pelo menos
+uma mocidade ainda florescente, estendendo-se por um outôno que se anunciava
+formosissimo.</p>
+
+<p>Em poucos mêses Manoela fez uma diferença que saltava aos olhos e afligia
+toda a comunidade, que só nella fundava as suas esperanças e as suas alegrias.
+O cabelo embranquecia-lhe nas fontes; a péle amarelecida, enrugava-se
+impercétivelmente a princípio, mas visivelmente nos últimos dias em que umas
+olheiras inchadas lhe davam no rosto o aspéto desolador da doença que lhe
+fizera do coração uma pobre maquina sem regulamento.</p>
+
+<p>Podia dizer-se que ia morrendo aos poucos, das feridas incuraveis que nelle
+sentira, durante toda essa existencia de eterna sacrificada, em<span
+class="pn">{260}</span> que a alma se lhe esfacelara pelos agudos e impiedosos
+espinhos do egoismo alheio.</p>
+
+<p>Com a doença de Manoela, entrou o desânimo em todas as almas e a morte
+encontrou facil caminho entre aquelles organismos depauperados e sem
+resistencia moral.</p>
+
+<p>Todos os mêses havia mortes no convento: ora as freiras, ora as velhas
+criadas e recolhidas, lá se iam, umas atraz das outras, em debandada
+desoladora. E para ella, a morte que rodeava agora como companheira inseparavel
+a velha casa conventual, tão suavemente serena e risonha, era um aflar de azas
+sinistro que lhe deixava na alma o luto de toda essa querida familia
+espiritual, a unica que verdadeiramente estimava agora.</p>
+
+<p>O convento acabava dia a dia, hora a hora,&mdash;sentia-se, numa halucinação de
+presentimentos e presagios tetricos, avisos sobrenaturais e factos estranhos
+que causavam a perturbação e o pânico de todas aquellas criaturas enfraquecidas
+e mais ou menos doentes, senão do corpo pelo menos da alma.</p>
+
+<p>Assim, a sineta que no claustro de cima apenas era tocada quando alguem na
+casa entrava na agonia, para que as almas se recolhessem com Deus e na sua
+ânsia de bem merecer auxiliassem a que estava para partir, a desligar-se, sem
+pena nem pecado, desta<span class="pn">{261}</span> vida defeituosa e amarga,
+começara uma tarde, á hora calma do Angelus, a tocar freneticamente conclamando
+toda a comunidade, que se olhava espavorida e convicta do tragico aviso.&mdash;Era
+certo: aquella sineta, que uma só vez tocara assim, segundo constava,
+anunciando a morte de duas freiras em cheiro de santidade, anunciava agora a
+morte, o fim da santa casa que fôra abrigo de tanta pobre alma de mulher
+revoltada ou submissa, mas todas crentes numa eternidade de venturas de que não
+tinham tido na terra a compensação.</p>
+
+<p>E todas ellas, velhas e novas, míseras sombras duma outra idade ou raparigas
+que a educação conservara afastadas do tempo em que vieram ao mundo, todas
+curvaram a cabeça á convicção de que a campa as chamava, de que era a morte que
+as libertaria em breve. Sim, ellas estavam prontas, mas quanta tristeza nesse
+fim de existencias que já mal se arrastavam, numa vida que não compreendiam
+já!...</p>
+
+<p>Outro dia era um reboliço enorme nas casas deshabitadas, que as fazia tremer
+de apavorante susto, pensando nas irmãs mortas ultimamente e em tantas que
+descansavam sob as lages frias do claustro.</p>
+
+<p>E eram vozes misteriosas vindas da terra, perfumes deliciosos e estranhos
+que se espalhavam<span class="pn">{262}</span> pelos casarões vasios, fantasmas
+silenciosos de freiras mortas havia seculos e que deslisavam sorridentes como
+que a animarem as pobres irmãs que assistiam ao fim da sua casa tão amada!...
+</p>
+
+<p>Manoela, apesar de todo o seu bom-senso, não resistia ao contágio e, como as
+outras, vivia numa atmosfera de prodigios e de mêdos que mais activava o
+progresso do mal que a consumia.</p>
+
+<p>Mas não abandonava por esse motivo as velhas companheiras, que só nella
+achavam conforto para bem morrerem.</p>
+
+<p>Foi Soror Claudea a última a deixar a vida, que tão dolorida lhe fôra; foi
+ella, a pobre louca, quem fechou, como um ponto final simbolico, mais um
+periodo de historia feminina, tecida de sacrificios e servidões e ilusões
+profundas, e sem um fecundo e nobre e belo ideal de vida!</p>
+
+<p>Ali ou na familia, no claustro ou no mundo, a existencia feminina pouco
+diferia; pouco mais era que esse decorrer estirado de anos partilhados entre
+pequenos deveres, insignificantes trabalhos, apagadas alegrias e supliciantes
+sacrificios a que ninguem prestava atenção, tão naturais são aos servos e aos
+inferiores...</p>
+
+<p>Morta Madre Claudea, e participado o caso ás autoridades, teve Manoela que
+aceitar<span class="pn">{263}</span> o depósito da casa para fazer a entrega
+legal.</p>
+
+<p>Acabada a clausura e o convento, por assim dizer franqueado ao público,
+começou um novo martirio para Manoela, que se não podia furtar á indelicada e
+faminta curiosidade de toda a gente da cidade, que já depois fazia da visita ao
+convento uma distráção a quebrar a monotonia da vida provinciana.</p>
+
+<p>A querida casa tão recatada e fechada a todos os olhares indiscretos, foi
+uma coisa pública escancarada e esquadrinhada por todos os indiferentes, uns
+sob a capa amavel da simpatia e da piedade, outros rancorosos ou hostis,
+desrespeitando as suas crenças ingenuas ou troçando com as suas alardeadas
+superioridades as infantis preocupações daquelles sêres inuteis...</p>
+
+<p>Manoela afétava uma serenidade que lhe custava anos de vida, não querendo
+dar aos indiferentes o espétáculo duma dôr que era apenas sua e das suas pobres
+companheiras, as recolhidas, as meninas do côro e as criadas, que em breve
+seriam arremessadas para o mundo como folhas inertes e sem vida, e dispersadas
+ao sabôr do acaso, que as levaria sabe Deus a que dôres e a que miserias!&mdash;tão
+mal preparadas como estavam para a luta de cá fóra, quasi todas pobres e<span
+class="pn">{264}</span> sem amigos ou familia que as tivesse como suas...</p>
+
+<p>Já que não podia furtar a casa e as coisas á profanação dos olhos estranhos,
+fechava a sua alma num silencio orgulhoso que a tornava respeitada, e
+conservava uma certa distinção naquelle acabar de comunidade que sem ella seria
+um levantar de feira sem grandeza nem simpatia.</p>
+
+<p>O inventario feito, a pilhagem executada por ordem superior, viu com
+profunda amargura os preciosos <em>Grão-Vascos</em> desprendidos das paredes
+seguirem, com os azulejos hispano-arabes que foi possivel arrancar, a pouca
+mobilia rica que havia, os livros e as tapeçarias de valôr, encaixotados,
+segundo diziam, para os museus de Lisbôa... Eram livros velhos aos cantos,
+pelos corredores, bahus e caixões devassados e esvasiados...</p>
+
+<p>E ainda lhe foi preciso assistir, sem que a desligassem do triste encargo de
+testamenteira, á invasão dos operarios que vinham transformar a casa, para novo
+destino mais em harmonia com a época.</p>
+
+<p>Portas escancaradas, divisões deitadas abaixo, montes de caliça pelos pateos
+e claustros, deslocadas as fontes murmurosas, mortas as plantas que eram o seu
+encanto&mdash;aquilo afigurava-se-lhe uma ruina completa, um desabar<span
+class="pn">{265}</span> de todo um passado que morria sem têr criado raizes,
+como morre sem seiva, inutilisada, a planta nascida em terreno pobre e rochoso.
+</p>
+
+<p>Libertada, porfim, foi acabar de viver para uma pequena casa de campo que a
+Ama-Rita descobriu escondida entre tufos de verdura tenra e uma dôce paz
+idilica a rodeá-la.</p>
+
+<p>Sentia-se de mal a peor, e sem esforço deixava-se morrer, desligada da vida,
+sem afeições ou deveres que a prendessem.</p>
+
+<p>Álêm do amôr humilde da simples camponeza que a criara e a cumulava de
+carinhos e ternuras na morte, como a rodeara na infancia, nada lhe restava.</p>
+
+<p>Christina, muito prática, muito á sua vontade, talhara para si um logar
+amplo na vida. A última carta do irmão de Manoela pedia-lha em casamento, e a
+della, que vinha junta, pedia, pró-forma, o consentimento da madrinha.</p>
+
+<p>Manoela sorriu: era a sua vingança, uma como rehabilitação do seu sangue, da
+sua propria carne expulsa outróra como coisa imunda da casa e da familia.</p>
+
+<p>Era a vida omnipotente readquirindo os seus direitos, a natureza triunfando
+dos preconceitos, que desprezava as convenções e entrava como senhora donde
+fôra expulsa como réproba.<span class="pn">{266}</span></p>
+
+<p>Christina, na sua cega e egoista caminhada para a vida, fôra a força
+invencivel da razão e da justiça, fôra a suprema e triunfante palavra do
+futuro.</p>
+
+<p>A mãe, amoravel, generosa e submetida, dera a existencia aos pedaços para
+satisfazer as outras.</p>
+
+<p>A filha, egoista e revoltada, e sem exageros de sentimentalidade que só
+provocam a dôr, recebia uma por uma transformadas em alegrias as lagrimas da
+mãe.</p>
+
+<p>Manoela sorria: era a sua rehabilitação, era, saboreada com infinito
+gôsto&mdash;tão certo é que nenhum sacrificio se perde, aproveitando quasi sempre a
+quem menos o merece.<span class="pn">{267}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h3><a name="SECTION00418000000000000000">VIII</a></h3>
+
+<p>Em toda a noite Manoela não pudera dormir, angustiada, sentindo sobre o
+peito um pêso esmagador, sufocada e aflita.</p>
+
+<p>Com a manhã, que rompera radiosa empoeirando de oiro todo o campo e doirando
+as montanhas que se destacavam no fundo roseo do céo, serenava um pouco.</p>
+
+<p>Sentia-se mais aliviada e quiz arrastar-se até á janela aonde se sentou na
+cadeira de braços, que era o seu poiso habitual. Olhava atenta a bandada de
+pombas brancas que sahia do pombal em vôos estonteados e incertos,
+embaraçando-se nos ramos das laranjeiras que floriam de branco e perfumavam
+delicadamente a atmosfera.</p>
+
+<p>&mdash;«Ah, como era linda a natureza, sempre renovada e sempre a mesma,&mdash;e como
+era bom viver!...</p>
+
+<p>E a pobre doente ouvia, num encanto de esperança, nunca extincta no coração
+humano, as palavras de consolação que a bôa Ama-Rita lhe ia dizendo.</p>
+
+<p>&mdash;«Porque não iam passar uns tempos a casa do sr. Morgado?... Havia de fazer
+bem á senhora...<span class="pn">{268}</span></p>
+
+<p>&mdash;«Sim, iriam&mdash;concordava Manoela&mdash;mas não já, a primavera começara apenas,
+e a Ama-Rita bem sabia como eram ainda invernosos e frios esses mêses de
+primavera lá na terra.</p>
+
+<p>Oh, se sabia! Quantas noites enregeladas passara acalentando nos braços a
+sua menina; quantos dias fechada em casa porque a neve e o frio não dava
+licença, até maio, de se sahir da lareira...</p>
+
+<p>Manoela, sorrisonha ás recordações da bôa vélhota, prometia fazer essa
+viagem&mdash;em vindo o bom tempo.</p>
+
+<p>&mdash;«E o menino, quando nascerá?&mdash;perguntava a Ama.</p>
+
+<p>&mdash;«Já tens pressa de o chamar teu, não é assim?...</p>
+
+<p>E comparava, com um certo sorriso ironico a aflorar-lhe aos labios
+descórados, a ansiosa espera em que se andava pela vinda do primeiro filho de
+Christina e os transes porque ella passara para que a mãe chegasse a este
+mundo, onde era agora uma triunfadora. Recordava... e recordar era tornar a
+sofrer as horas de desânimo e desespero que por milagre a não tinham atirado
+para um hospital de doidos ou para o cemiterio.</p>
+
+<p>Tornava a vêr a casa em ruinas, onde a criança nascera como um animal
+bravio, que<span class="pn">{269}</span> anda a monte, para não ofender com os
+seus gritos de filho ilegal as consciencias socegadas...</p>
+
+<p>Como isso já ia longe e como tudo tinha mudado! Quem lhe diria então que
+Christina, a sua filha, essa vergonha viva, essa nodoa na familia fidalga de
+que descendia, anos volvidos seria a senhora morgada a quem todos adivinhavam
+os desejos e amaciavam o caminho para que désse sem precalço o novo herdeiro da
+casa?!...</p>
+
+<p>E tão desemelhante destino só porque uma tinha um pai que legalmente
+reivindicava os seus direitos, emquanto a outra era filha dum homem, que na sua
+inconsciencia de bruto apenas cuidara do prazer material e passageiro, com
+tanta mais perfidia quanto era maior o seu conhecimento da indulgencia da
+sociedade para com as leviandades do homem transformadas em crimes para as
+mulheres.</p>
+
+<p>E Manoela, meditando e revendo toda a sua existencia naquella hora de
+passageiro repouso, que a doença lhe dera, pensava com amargurado remorso no
+que chamava agora a sua covardia:</p>
+
+<p>&mdash;«Sim, Christina, no impulso do seu egoismo e da sua ânsia de viver, é quem
+estava na verdade!<span class="pn">{270}</span></p>
+
+<p>«A transigencia, a covardia, a fraqueza, mesmo quando são filhas do
+sentimento, acarretam consigo o triste premio da sua inferioridade. E assim,
+pela covardia a que tinham dado o bonito nome de bondade, ella ali estava sem
+familia, sem amigos, sem uma alegria que a prendesse á vida que a ia
+abandonando como fardo inutil, que já não presta para nada.</p>
+
+<p>«Não, não se deve transigir, não se deve esconder uma áção que em nossa
+consciencia não é um crime, embora a sociedade na sua hipocrisia a mostre,
+ferozmente, como tal!</p>
+
+<p>«A sociedade acostuma-se a respeitar os fortes e só pede contas severas aos
+fracos, aos que transigem, aos que a ella se não adaptam ou a não dominam, as
+duas unicas fórmas de a vencer.</p>
+
+<p>«Christina tivera razão: ella não fôra uma bôa mãe, não soubera desempenhar
+o seu nobre papel, ferindo implacavel porque fôra ferida, cobrindo com a sua
+revolta o destino da criança que chamara a uma vida que lhe não pedira. Não
+tinha desculpa. Fôra necessario que a filha, no seu bom-senso de bastarda,
+soubesse encontrar a desforra no sacrificio do proprio corpo procurando nesse
+casamento sem amôr o nome que ella lhe negara.<span class="pn">{271}</span></p>
+
+<p>«E valia muito o amôr?... Ah, ella sorria, com dó de si mesma, recordando
+como se entregara toda inteira a esse sentimento, o corpo palpitante, a alma
+fremente, sem uma reserva, sem um pensamento mesquinho de dúvida, com a pureza
+duma criança, cuja alma não fôra maculada pela desconfiança&mdash;e o que lhe deram
+em troca?!...</p>
+
+<p>«Pois bem, ia reparar a sua falta.</p>
+
+<p>E, chamando a Ama, que dava uma certa ordem ao quarto, respeitando a sua
+meditação, Manoela pediu a escrevaninha portatil que estava sobre a mêsa de
+cabeceira, pegou num papel e ia a escrever...</p>
+
+<p>Depois suspendeu-se, sorriu com amargura, e pôs a penna de parte. O que ia
+fazer com essa declaração a juntar ao testamento?!</p>
+
+<p>Christina já não precisava do seu nome, mais amplamente coberta com o do
+marido que a tomara como filha de pais incognitos, e a sua declaração
+extemporanea apenas lhe traria vergonha inutil e dissabores...</p>
+
+<p>Não a fazia&mdash;era já tarde para isso.</p>
+
+<p>Recostando-se ás almofadas que a Ama-Rita lhe ageitava na cadeira, sentiu-se
+agoniada, pediu agua, depois fechou os olhos, franziu frouxamente os labios
+descórados, e a cabeça tombou-lhe para o lado sem vida.<span
+class="pn">{272}</span></p>
+
+<p>&mdash;«Deixou de sofrer!&mdash;dizia a velha, soluçando alto, para a criada e para a
+mulher do quinteiro que chamara aflita na primeira impressão de inevitavel
+surpresa. E alisava-lhe os cabelos sobre a fronte, juntava-lhe as mãos numa
+atitude de prece. Deixou de sofrer, coitadinha! Toda, toda a vida&mdash;uma
+sacrificada!...<span class="pn">{273}</span></p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:center;">INDICE</p>
+
+<p>Pag.</p>
+
+<p><a href="#SECTION00100000000000000000">A Vinha <span class="direita">7</span></a></p>
+
+<p><a href="#SECTION00200000000000000000">A Feiticeira <span class="direita">37</span></a></p>
+
+<p><a href="#SECTION00300000000000000000">Diario duma criança <span class="direita">81</span></a></p>
+
+<p><a href="#SECTION00400000000000000000">Sacrificada <span class="direita">181</span></a></p>
+
+<p><span class="pn">{274}<br>{275}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:center;">OBRAS DA MESMA AUTORA</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+<ul style="margin-left: 0em; width: 75%; font-size: 0.8em;">
+ <li>A<small>MBIÇÕES</small> (romance) <span class="direita">700</span></li>
+ <li>I<small>NFELIZES</small> (historias vividas). Esgotado.</li>
+ <li>A <small>BEM DA </small>P<small>ATRIA</small>: Bibliotéca de propaganda
+ educativa e distribuição gratuita:
+ <ul>
+ <li>1.º <em>As mães devem amamentar seus filhos.</em></li>
+ <li>2.º <em>A educação da criança pela mulher.</em></li>
+ </ul>
+ </li>
+ <li>B<small>EM PRÉGA FREI </small>T<small>HOMAZ</small> (comedia) <span class="direita">300</span></li>
+ <li>T<small>EATRO INFANTIL</small>:
+ <ul>
+ <li><em>A comedia da Lili</em> <span class="direita">200</span></li>
+ <li><em>Um sermão do Snr. Cura</em> <span class="direita">60</span></li>
+ </ul>
+ <li>A G<small>ARRETT.</small> No seu primeiro centenario.&mdash;De colaboração com
+ Paulino de Oliveira <span class="direita">500</span></li>
+ <li>G<small>ARRETT NO </small>P<small>ANTHEON.</small>&mdash;De colaboração com
+ Paulino de Oliveira <span class="direita">50</span></li>
+ <li>A <small>NOSSA HOMENAGEM A </small>B<small>OCAGE</small> <span class="direita">100</span></li>
+ <li> Á<small>S
+ MULHERES PORTUGUÊSAS.</small>&mdash;Livro feminista de critica e propaganda <span class="direita">600</span>
+ </li>
+ <li>A <small>MINHA PATRIA.</small>&mdash;Livro aprovado oficialmente para premios
+ escolares. Encadernação de luxo, desenho de Roque Gameiro, 400 paginas em
+ magnifico papel e inumeras ilustrações <span class="direita">1$000</span></li>
+ <li>P<small>ARA AS CRIANÇAS</small>: Publicação mensal ilustrada fundada em
+ 1897. Publicados 15 volumes com magnificas gravuras.
+ <ul>
+ <li><em>Contos tradicionaes portuguêses</em>, 10 volumes.</li>
+ <li><em>Contos de Grimm</em>, traduzidos do alemão. 1 volume.</li>
+ <li><em>Alma infantil</em>, original de Anna de Castro Osorio</li>
+ <li><em>Animais</em>, original de Anna de Castro Osorio</li>
+ <li><em>Boas crianças</em>, original de Anna de Castro Osorio</li>
+ <li><em>Historias escolhidas</em> (tradução diréta do alemão).
+ <ul>
+ <li>Cada volume desta publicação avulso. <span class="direita">400</span></li>
+ </ul>
+ </li>
+ </ul>
+ </li>
+ <li>I<small>NSTRUÇÃO E EDUCAÇÃO</small> (Festas infantis).&mdash;Folheto de
+ critica pedagogica <span class="direita">100</span></li>
+</ul>
+
+
+
+
+
+
+
+<pre>
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of Quatro Novelas, by Ana de Castro Osório
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK QUATRO NOVELAS ***
+
+***** This file should be named 29968-h.htm or 29968-h.zip *****
+This and all associated files of various formats will be found in:
+ http://www.gutenberg.org/2/9/9/6/29968/
+
+Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed
+Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This book was
+produced from scanned images of public domain material
+from the Google Print project.)
+
+
+Updated editions will replace the previous one--the old editions
+will be renamed.
+
+Creating the works from public domain print editions means that no
+one owns a United States copyright in these works, so the Foundation
+(and you!) can copy and distribute it in the United States without
+permission and without paying copyright royalties. Special rules,
+set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to
+copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to
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+Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you
+charge for the eBooks, unless you receive specific permission. If you
+do not charge anything for copies of this eBook, complying with the
+rules is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose
+such as creation of derivative works, reports, performances and
+research. They may be modified and printed and given away--you may do
+practically ANYTHING with public domain eBooks. Redistribution is
+subject to the trademark license, especially commercial
+redistribution.
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+Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
+and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
+works. See paragraph 1.E below.
+
+1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
+or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
+Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the
+collection are in the public domain in the United States. If an
+individual work is in the public domain in the United States and you are
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+ money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
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+ of receipt of the work.
+
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+ distribution of Project Gutenberg-tm works.
+
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+Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the
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+1.F.
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+works, and the medium on which they may be stored, may contain
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+receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy
+is also defective, you may demand a refund in writing without further
+opportunities to fix the problem.
+
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+in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
+WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
+WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.
+
+1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied
+warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
+If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
+law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
+interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
+the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any
+provision of this agreement shall not void the remaining provisions.
+
+1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
+trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
+providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
+with this agreement, and any volunteers associated with the production,
+promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
+harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
+that arise directly or indirectly from any of the following which you do
+or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
+work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
+Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.
+
+
+Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm
+
+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
+electronic works in formats readable by the widest variety of computers
+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
+people in all walks of life.
+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need, are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
+809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at http://pglaf.org
+
+For additional contact information:
+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
+
+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit http://pglaf.org
+
+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including checks, online payments and credit card donations.
+To donate, please visit: http://pglaf.org/donate
+
+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
+keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
+
+
+Most people start at our Web site which has the main PG search facility:
+
+ http://www.gutenberg.org
+
+This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
+including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
+Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
+subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
+
+
+</pre>
+
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diff --git a/LICENSE.txt b/LICENSE.txt
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index 0000000..6312041
--- /dev/null
+++ b/LICENSE.txt
@@ -0,0 +1,11 @@
+This eBook, including all associated images, markup, improvements,
+metadata, and any other content or labor, has been confirmed to be
+in the PUBLIC DOMAIN IN THE UNITED STATES.
+
+Procedures for determining public domain status are described in
+the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org.
+
+No investigation has been made concerning possible copyrights in
+jurisdictions other than the United States. Anyone seeking to utilize
+this eBook outside of the United States should confirm copyright
+status under the laws that apply to them.
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--- /dev/null
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@@ -0,0 +1,2 @@
+Project Gutenberg (https://www.gutenberg.org) public repository for
+eBook #29968 (https://www.gutenberg.org/ebooks/29968)