diff options
| author | Roger Frank <rfrank@pglaf.org> | 2025-10-15 02:38:50 -0700 |
|---|---|---|
| committer | Roger Frank <rfrank@pglaf.org> | 2025-10-15 02:38:50 -0700 |
| commit | 7691ef588cb2e8ae67be8d16ec30fb92fbc058eb (patch) | |
| tree | ba973dafd0c11dc75306b7c884f181a6270a5e10 /28584-h | |
Diffstat (limited to '28584-h')
| -rw-r--r-- | 28584-h/28584-h.htm | 6138 |
1 files changed, 6138 insertions, 0 deletions
diff --git a/28584-h/28584-h.htm b/28584-h/28584-h.htm new file mode 100644 index 0000000..8e65a25 --- /dev/null +++ b/28584-h/28584-h.htm @@ -0,0 +1,6138 @@ +<!DOCTYPE html PUBLIC "-//W3C//DTD HTML 4.01 Transitional//EN" + "http://www.w3.org/TR/html4/loose.dtd"> +<html lang="pt"> +<head> + <meta http-equiv="content-type" content="text/html; charset=iso-8859-15"> + <meta name="author" content="Auguste Callet"> + <meta name="translator" content="Camilo Castelo Branco"> + <meta name="date" content="1871"> + <meta name="publisher" content="Livraria Nacional"> + <title>O Inferno, por Auguste Callet</title> + <style type="text/css"> + @media print { + .pagenum { visibility: hidden;} + } + @media handheld { + .pagenum { visibility: hidden;} + } + body{margin-left: 10%; + margin-right: 10%; + } + .pagenum { + text-indent: 0em; + position: absolute; + left: 92%; + font-size: 0.7em; + text-align: right; + color: silver; + } + hr {border: 0; border-bottom: 2px solid #000;} + #corpo p {text-align: justify; text-indent: 1em;} + h1 {text-align: center; margin-top: 3em; margin-bottom:2em;} + h2 {text-align: center; margin-top: 2em; margin-bottom:1em;} + h3 {text-align: center; margin-top: 2em; margin-bottom:1em;} + h4 {text-align: center;} + .rodape { + font-size: 0.9em; + margin: 1em; + } + a {text-decoration: none; font-family: sans-serif;} + </style> +</head> + +<body> + + +<pre> + +The Project Gutenberg EBook of O Inferno, by Auguste Callet + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: O Inferno + +Author: Auguste Callet + +Translator: Camilo Castelo Branco + +Release Date: April 22, 2009 [EBook #28584] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O INFERNO *** + + + + +Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed +Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was +produced from scanned images of public domain material +from the Google Print project.) + + + + + + +</pre> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:center; font-size: 1.5em;">O INFERNO</p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<div style="text-align:center; border: solid 1px #000; padding: 1em;"> +<p style="font-size: 1.2em;">AUGUSTO CALLET</p> +<hr> + +<p style="font-size: 3em;">O INFERNO</p> + +<p style="font-size: 0.8em;">TRASLADADO PARA PORTUGUEZ E PRECEDIDO DE UMA +ADVERTENCIA</p> + +<p style="font-size: 0.8em;">POR</p> + +<p>CAMILLO CASTELLO BRANCO</p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> +<hr style="width: 30%;"> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p>PORTO</p> + +<p><small>TYPOGRAPHIA DA LIVRARIA NACIONAL</small><br> +<small>2, Rua do Laranjal, 22</small><br> +<em>1871</em></p> +</div> + +<p><span class="pagenum">{<a name="pag_V">Pg. V</a>}</span></p> + +<h2>ADVERTENCIA DO TRADUCTOR</h2> + +<div id="corpo"> +<p>N'este memoravel anno de 1871, o sacerdocio militante da christandade +lusitana subiu aos baluartes mais desamparados, aos pulpitos de grande parte do +reino, e desembestou certeiras fréchadas ao rosto da impiedade.</p> + +<p>No pulpito da egreja de S. Martinho de Cedofeita, d'esta cidade do +Porto,—que não é a mais peccadora, porque é a menos +ociosa,—discorreu apostolicamente um padre italiano, que eu não ouvi.</p> + +<p>Não fui ouvil-o, porque já tenho muitissimos annos e bastante leitura para +conhecer que direitos tem Deus e o proximo ao meu amor.</p> + +<p>Não o fui ouvir pela mesma razão que evito alguns livros prohibidos, receoso +de que elles estremeçam os alicerces da minha fé.</p> + +<p>Não fui ouvil-o, emfim, porque ha um sermão que eu sei de cór, e repito +quando tenho sêde de fé, ancias<span class="pagenum">{<a name="pag_VI">Pg. +VI</a>}</span> de misericordia, tibiezas de esperança: é o sermão da montanha, +prégado aos pobres por nosso Senhor Jesus Christo.</p> + +<p>Este sermão ainda meus filhos o não sabem; mas hão de aprendel-o quando as +primeiras lagrimas lhes tiverem delido as manchas escuras do intendimento. É +preciso ter chorado para comprehender a bem-aventurança dos que choram. Jesus +Christo, se houvesse dito aquellas divinas palavras aos felizes, não seria +intendido no apostolado, nem seguido na vida, nem chorado na morte, nem +confessado no martyrio.</p> + +<p>Levantei, pois, o pequenino e fragil oratorio das minhas preces humildes +sobre a confiança do divino Pae; e, se em minha alma sinto o desejo de não ter +nascido para dôres deseguaes ao alento de cada homem, reconheço que o oratorio +do peccador está tanto á vista de Deus que o anjo da paciencia abre as suas +luzentissimas azas sobre os meus abysmos escuros.</p> + +<p>Ora eu sei de triste experiencia que os discursos do missionario em Portugal +me desataviam o espirito das vestes graves com que costumo entrar nos +templos.</p> + +<p>Na minha mocidade estudei grammatica, fui examinado em logica, decorei a +inutilissima cousa chamada rhetorica, cursei muito pela rama algumas aulas de +theologia; finalmente, poli quanto pude a razão para que se espelhassem n'ella +os preceitos e conceitos dos oradores sagrados.</p> + +<p>Pois acontecia que todos aquelles predicados, desde a grammatica de Lobato +até á theologia do bispo de Leão, cá no meu interior despiam a casaca e a +dalmacia venerandas, para galhofarem d'uns certos padres que se imaginavam<span +class="pagenum">{<a name="pag_VII">Pg. VII</a>}</span> favorecidos da infusão +scientifica, uma só vez milagrosamente concedida pelo Espirito Santo aos +santissimos ignorantes do Cenaculo.</p> + +<p>Arguiam-me de indiscreto os bons amigos que me ouviam deplorar a decadencia +da oratoria sacra, justificando o proposito pelos resultados, a uncção do +prégador pelo soluçar do auditorio, a fertilidade da palavra pela emenda das +culpas.</p> + +<p>O soluçar do auditorio era tão acceitavel e prestadio como as lagrimas no +theatro, que denotam, quando muito, corações sensiveis; aquillo, porém, de +emenda das culpas é que vinha desconceituar a argumentação dos meus amigos.</p> + +<p>As culpas! o desconcerto da vida, a irreverencia a Deus, o desamor ao +proximo, as intranhas descaroadas do rico, a rebellião cubiçosa do pobre, a mão +que se esquiva em levantar da lagem o orphão—estas e outras más fibras do +coração humano poderá retemperal-as a consciencia illustrada; mas a consciencia +espavorida pelo medo dos castigos eternos, essa não.</p> + +<p>E os missionarios, que ludibriavam a minha devoção ou curiosidade, +demonstravam a precisão de sermos continentes, sobrios, humildes, caritativos, +christãos emfim, para não sermos eternamente refervidos no lago de sulphur +candente.</p> + +<p>Eu nunca ouvi dizer na casa da oração que a providencial justiça tem o seu +tribunal em meio dos vivos; que o vicio deshonra, infama, e tolhe o goso dos +bens d'esta vida; que a repulsão do delinquente é um castigo; que a sociedade +pune primeiro que a lei; e que, se a justiça dos codigos algumas vezes erra, a +justiça complexa<span class="pagenum">{<a name="pag_VIII">Pg. VIII</a>}</span> +da opinião publica mantém a disciplina do supplicio, invisivel mas exulcerante +na consciencia do culpado.</p> + +<p>Nunca ouvi missionario que me parecesse mais illustrado que a maioria dos +seus ouvintes, nem vi espectaculo onde reluzissem mais vivos e tristes reflexos +da edade-media. Historias horrendas e ás vezes esqualidas de castigos +infernaes; immersões em caldeiras rubidas das lavaredas; corpos espedaçados por +dragões e logo recompostos para nova e eterna dilaceração; imborcações de +peçonha na bôcca dos gulosos; amplexos de serpentes escamosas de brazas +n'aquelles que lubricamente deleitaram os corpos n'este mundo: era isto, não +era o penetrante pejo do vicio que chamava aos olhos do auditorio as lagrimas +restauradoras.</p> + +<p>Mas, ao fechar da missão, o peito oppresso do peccador atterrado +desafogava-se na esperança de illudir o diabo com uma confissão geral e um +profundo pesar na hora da morte, visto que o missionario promettia o céo aos +que, nos ultimos instantes, se sentissem vivamente magoados de terem sido +perversos.</p> + +<p>O céo!</p> + +<p>E que promette o padre aos justos, aos que desde a juventude até á +decrepidez apenas prevaricaram venialmente? o céo.</p> + +<p>E aos apostolos que vão á fogueira offerecendo ao divino martyr o tributo de +suas agonias? o céo.</p> + +<p>O céo para o facinora contricto no ultimo momento, e o céo para o santo de +toda a vida! O céo para o martyr e o céo para o algoz que houve remorso de o +haver matado! Ó fé, revérbero de Deus, estarias apagada, se não fosses +divina!<span class="pagenum">{<a name="pag_IX">Pg. IX</a>}</span></p> + +<p>Em compensação, porém, que profusa prodigalidade de infernos além-tumulo! +Infernos legendarios, imitações do grego, do egypcio, do indostanico, todos os +infernos, excepto o verdadeiro—o inferno d'esta vida, a corrente do +remorso ao pelourinho da consciencia, e a desgraça implacavel ainda para os que +não têm consciencia nem remorso.</p> + +<p>Pois esta doce e misericordiosa alliança de Jesus com os attribulados, com +os frageis por compleição e por mal dirigidos na mocidade, comporta em si a +hypothese de Satanaz, que nos espia o ensejo favoravel e nos faz cambapé ás +suas voragens? Comprehendem acaso que Deus se não amerceie de homens +fraquissimos, vencidos por um gigante que não coube no céo? Não vêm que Lucifer +se atreveu com o Creador, e, depois de vencido, teve por homenagem o reinado de +um mundo, e o generalato de legiões immensas, todas a manobrarem na terra para +vencerem... a quem? um descendente de Adão, do logrado do Eden, Adão, que tinha +em si a plenitude da força, da sciencia; a força do corpo ainda aquecido da mão +de Deus; a força da alma iriada dos reflexos do seu Creador! E o homem, +debilitado pelo attrito de seis mil annos, que querem que elle seja? Porque lhe +decretam a elle—ao fraco—o inferno, se Deus apenas condemnou o +forte a viver do suor do seu rosto?</p> + +<p>Estas e outras meditações, dignas de que Deus m'as perdôe, se a palavra não +friza bem com a lisa intenção, me preoccupavam, quando li este livro de Callet, +com certo medo de violar o meu salutar costume de não lêr livros prohibidos, +tirante os uteis, os desenfastiados e principalmente os instructivos.<span +class="pagenum">{<a name="pag_X">Pg. X</a>}</span></p> + +<p>O auctor, comquanto excommungado, usou a christã bem-querença de prevenir-me +de que a sua obra estava condemnada. Decidi logo que o livro não seria de todo +mau. E, depois que o li, reflexionei que os cardeaes seriam mais discretos +esquivando-se a dar voga a escriptos que andariam menos procurados sem a +chancella da prohibição.</p> + +<p>A mim me quer parecer que o <em>Inferno</em> de Callet sahiria com fóros de +orthodoxo da assemblêa dos primitivos christãos, quero dizer, dos seguidores de +Jesus Christo anteriores áquella pestilencial sciencia chamada Theologia: tal é +a pureza, luz, amor e christianissimo espirito que ungem as paginas d'este +consolativo livro.</p> + +<p>Augmenta-lhe o valor o encontrar-se com os missionarios portuguezes, cada +vez mais attidos á rhetorica ardente do inferno, como se elles e ouvintes não +houvessem dado ainda um passo desde que é dia, desde que a razão fez pazes com +a fé illustrada.</p> + +<p>É tão verdade que este systema de moralisar nada aproveita, quanto é certo +que nas aldeias, onde mais trovejam as ameaças do missionario, encontrareis o +demonio da corrupção fazendo tregeitos ao padre ás portas das cabanas, onde o +vicio avulta mais esqualido com a hediondez dos seus farrapos.</p> + +<p>Não melhorareis a sociedade a prégar. E todavia, serodios apostolos, na +vossa sinceridade, creio eu, por não ter grande confiança na vossa illustração, +e me ser muito custoso suspeitar que sois hypocritas.</p> + +<p>Ora lêde este livro que se vos offerece em portuguez correntio, e dizei, se, +apagado o inferno, não será possivel accender pharol mais humano e mais divino +pelo<span class="pagenum">{<a name="pag_XI">Pg. XI</a>}</span> qual se norteie +a posteridade da peccadora Eva, esta immensa familia d'hoje, estygmatisada seis +mil annos antes!</p> + +<p> </p> + +<p>Julho de 1871.</p> + +<p> </p> + +<p style="text-align: right;"><em>Camillo Castello Branco.</em><span +class="pagenum">{<a name="pag_XII">Pg. XII</a>}</span></p> + +<p><span class="pagenum">{<a name="pag_XIII">Pg. XIII</a>}</span></p> + +<h1>PREFACIO</h1> + +<h2>DA SEGUNDA EDIÇÃO</h2> + +<p>Aos 20 de Junho de 1862 a sagrada congregação do Index condemnou em Roma +este livro ácerca do inferno. Caridosamente advirto a leitoras e leitores que +temos aqui fructo prohibido.</p> + +<p>Perguntam-me o que vem a ser a congregação do Index? Eis-aqui o pouco que +sei d'isso: o papa Paulo III publicou em 1539 um catalogo de livros cuja +leitura prohibiu aos fieis sob pena de excommunhão. Este catalogo, chamado +Index, foi approvado pelo concilio de Trento, enriquecido de numerosos artigos, +e por elle, antes de dissolver-se, recommendado a Pio IV. O papa Sixto V, que +não tinha vagar para lêr, creou, mais tarde, uma commissão permanente de +cardeaes encarregada de examinar e condemnar livros. Esta commissão de cardeaes +é o que se chama a sagrada congregação do Index.</p> + +<p>Convém saber que Paulo III, velho amigo de Alexandre VI, e tanto, como elle, +muito desacreditado por seus<span class="pagenum">{<a name="pag_XIV">Pg. +XIV</a>}</span> vicios, desmembrou dos dominios de S. Pedro as cidades e +territorios de Parma e Placença que elle deu com plena soberania, e com titulo +de ducado, a Pedro Luiz Farnezio, um dos seus filhos naturaes. Este tal fundou +a inquisição, instituiu a ordem dos capuchinhos, exercitou a astrologia, +fomentou e applaudiu a carnificina dos vandezes. Não discuto similhantes actos; +recordo-os porque elles se ligam á mesma idêa que creou o Index.</p> + +<p>Pio IV, a rogo dos Jesuitas, acrescentou algumas contas ao rozario, +augmentando-lhe as virtudes; fez estrangular o cardeal Caraffa, sobrinho do seu +predecessor Paulo IV; fez decapitar o duque de Palliano, irmão d'aquelle +cardeal, e outros muitos personagens cujas cabeças ensanguentadas, por sua +ordem, foram expostas sobre a porta do castello de S. Angelo; abafou o processo +instaurado em Espanha contra o clero accusado de libertinagem; mas em +compensação accendeu por toda a parte a guerra contra os herejes. Accuzam-no de +haver beneficiado mais a sua familia que ao povo romano. Eu por mim não lhe +contesto as virtudes, e menos ainda a orthodoxia. Na famosa bulla de 24 de +Abril de 1564 declarou excommungados, <em>ipso facto</em>, quem quer que no +futuro imprimisse, vendesse ou lesse algumas das obras inscriptas no Index pelo +concilio ou por elle mesmo; e bem assim quem, não as tendo lido, as emprestasse +ao visinho, ou, sem as ler ou communicar a alguem, as fechasse na sua +bibliotheca ou n'algum esconderijo da sua casa. Urgia, pois, queimar os livros +prohibidos quem quizesse evadir-se á excommunhão, e em seguida á condemnação +eterna. Como não podesse queimar os auctores, Pio IV desforrava-se fazendo-lhes +queimar as obras.<span class="pagenum">{<a name="pag_XV">Pg. XV</a>}</span></p> + +<p>A vida de Sixto V é bastantemente conhecida, não tem que vêr com a de S. +Pedro; mas sobejavam-lhe intelligencia e indole sufficientes ao exercicio do +poder absoluto. Era manhoso e cruel este grande papa, cujo systema de governar +compendiou em duas palavras: pão e páo.</p> + +<p>Dispensam-se pois os povos de pensar, como coisa perigosa: é bastante que +elles não morram de fome e que tremam sempre diante do algoz. Depois erijam-se +obeliscos e edifiquem-se templos.</p> + +<p>Este papa mandava decapitar os padecentes debaixo das suas janellas, antes +de sentar-se á meza, dizendo que isto lhe abria o appetite. As cabeças dos +suppliciados, que elle expunha e deixava apodrecer aos olhos dos caminhantes, +ameaçavam de peste a cidade. Apezar dos juizes, fez enforcar um mancebo de 16 +annos por haver resistido aos quadrilheiros que o prenderam. Ordenou que +cortassem as mãos e que traspassassem a lingua d'um auctor epigrammatico. +Excommungou a rainha Isabel, desquitando a nação do juramento de fidelidade; +excommungou o rei de Navarra, o principe de Condé e o rei de França, exaltando +até ao delirio o fanatismo dos partidarios da Liga; e depois do assassinio do +desgraçado Henrique III, elogiou em pleno consistorio Jacques Clement, +comparando-o a Judith e Eleazar, debeis mas fieis instrumentos do Deus dos +combates. E como signal sensibilissimo de sua terna solicitude pela salvação +das almas, restabeleceu ao mesmo tempo o santo officio e cumulou de +indulgencias a confraria do Santo Cordão. Era proprio d'este grande e devoto +papa continuar a guerra declarada por seus predecessores á razão humana e á +liberdade da consciencia, instituindo de par com o santo officio a congregação +do Index.<span class="pagenum">{<a name="pag_XVI">Pg. XVI</a>}</span></p> + +<p>Não cuideis, porém, que os livros condemnados por esta congregação fossem +lidos pelo papa ou sequer pelos cardeaes encarregados d'isso. Por via de regra +os cardeaes nada lêem. Á laia de Sixto V, encarregavam outros d'esse officio. Á +volta da congregação do Index formigavam monges e obscuros theologos de toda a +parte, chamados consultores, a quem incumbia o encargo quasi sempre fastidioso +de lêr obras novas. As formidaveis sentenças do Index, mediante as quaes uma +familia inteira era excommungada e condemnada, promanavam do relatorio d'estes +consultores: tal era a sorte de quem recusasse queimar um cartapacio +jansenista, herança de avó piedosa, ou as <em>Maximas dos Santos</em> de +Fénelon, ou os <em>Pensamentos</em> de Pascal, ou as <em>Reflexões moraes</em> +de Quesnel, embora approvadas pelo cardeal de Noailes, arcebispo de Pariz, ou a +<em>Theologia</em> de padre Lequeux—primeira edição—ou a +<em>Philosophia</em> de Cousin. Pelo que me toca, julguei que o inferno é uma +concepção immoral, profunda e forçosamente immoral pelas razões que adduzi. +Tambem mostrei, a diversas luzes, o perigo de similhante crença para o genero +humano. Por isso fui condemnado em Roma. Optimamente! Agora exijo que me +respondam. Graves e leaes são as minhas objeções: o decreto do Index as deixou +subsistir em todo o seu vigor.</p> + +<p>Quando a soberania temporal do papa, que não é dogma, deixar de absorver os +esforços todos dos defensores da fé, espero que elles tenham vagar de cuidar no +inferno, que é um dogma, e dogma tanto em perigo e tão +vacillante—fiquem-no sabendo—como o throno de Paulo III, de Pio IV, +e Pio V.<span class="pagenum">{<a name="pag_1">Pg. 1</a>}</span></p> + +<h1>INTRODUCÇÃO</h1> + +<h2>DOGMAS HEBRAICOS</h2> + +<p>É crença anterior á prégação de Christo, quanto ao texto, mas diversa do +espirito do Evangelho, a eternidade das penas. Prende esta crença com outros +dogmas rabbinicos, tão obscuros quanto descaridosos, que a Egreja nascente +adoptou e que ainda hoje formam o essencial da theologia christã. Podemos +reduzir aquelles dogmas a cinco, consubstanciados todos no Inferno. Vem a ser: +a Rebellião de Satan, o Castigo de Satan, o Paraiso terreal, a Maldição dos +homens, o Povo de Deus.</p> + +<p>Não intento esquadrinhar o sentido philosophico de taes dogmas: tal +canceira, superflua para leitores instruidos,<span class="pagenum">{<a +name="pag_2">Pg. 2</a>}</span> seria insipida e inutil para os ignorantes. Que +Satanaz, inferno, peccado original, etc., sejam ou não horrendos symbolos do +antigo pantheismo asiatico,—expressão viva d'um systema de methaphysica +mais terrivel que especioso, onde liberdade e mal se confundem, e o nada +divinisado tem consciencia de si, e Deus quasi deixa de ser—questões são +essas proprias de academias. Taes dogmas para mim são o que á letra significam; +sei d'elles o que nos ensinam; vejo-os como nos mandam vêl-os, como a multidão +os vê, coisas reaes, pessoas verdadeiras, e não chimeras. Considero-os pois sob +a fórma com que elles, ha muitos seculos, influem no genero humano: e não ha +mais seguro modo de lhes apreciar o valor moral.</p> + +<p>Entremos na exposição, clara quanta fôr possivel, d'estes dogmas +mysteriosos.</p> + +<h3>I</h3> + +<h4>Rebellião de Satanaz</h4> + +<p>A historia de Satanaz não se encontra na Biblia nem no Evangelho. Passou +tradicionalmente da synagoga á Egreja. No Thalmud e nos Padres é que vem +escripta.</p> + +<p>Satanaz era um anjo—como quem diz um espirito incorporeo, um sôpro de +Deus. Pureza, força e benção eram o principio e constituição de sua essencia. +Estava elle no ceo resguardado de exemplos e conselhos<span class="pagenum">{<a +name="pag_3">Pg. 3</a>}</span> maus. Creado para o bem alli vivia em condições +em que não é possivel conjecturar-lhe intenções más, contemplando Deus rosto a +rosto, actuando e reclinando-se em seu seio, testemunha intelligente d'aquella +superlativa sabedoria, bondade e omnipotencia que transpõe espaço e tempo.</p> + +<p>Infelizmente Satanaz era livre e peccou. É obra sua o mal que antes d'elle +não existia. Concebeu-o elle, e—caso estranho!—produziu-o alli +mesmo no ceo, em meio dos resplendores increados, e eternas bem-aventuranças, e +depois quiz-lhe como a seu, e propagou-o por entre os anjos.</p> + +<p>Este peccado, aliás inqualificavel, visto que lhe não conhecemos a especie, +é, como vou demonstrar, o verdadeiro peccado original. É a primitiva e +inexhaurivel fonte de dores do genero humano, posto que ainda não houvesse +genero humano na desconhecida época em que elle perturbou o céo. Todos os +transtornos do universo, mal physico e mal moral, é aquelle peccado que os +explica.</p> + +<p>Saibamos como Satanaz foi castigado.</p> + +<h3>II</h3> + +<h4>O Inferno</h4> + +<p>Deus não quiz anniquilar Satanaz nem perdoar-lhe. Creou o inferno, e +precipitou-o lá com os seus cumplices.<span class="pagenum">{<a +name="pag_4">Pg. 4</a>}</span></p> + +<p>Fogo, frio, esvahimentos de fome, tedios da saciedade, golpes de ferro, +trances de agonia, inveja, remorsos, tudo isso não basta a dar-nos muito em +sombra idêa dos tormentos d'aquelle abysmo. Corôa-lhe o horror não ser ahi +conhecida a morte. Se a morte lá podesse entrar, a esperança iria com ella, +deixando entrever o nada como acabamento de tão enormes penas.</p> + +<p>Se, porém, foi recusada a Satanaz esta miseravel consolação, goza-se de +outra em desforra. Deus, que o reduziu á desesperação, deixou-lhe a faculdade +de o molestar, atravessando-se-lhe nos intentos, contrariando-lhe as leis, +multiplicando e perpetuando o mal por toda a parte, salvante o ceo.</p> + +<p>É o inferno o senhorio de Satanaz; mas não cabe lá. É-lhe toda a creação +campo franco para a sua malfeitora actividade. Verdade é que leva comsigo, onde +quer que vá, a sua immortal tristeza, e, pelo tanto, toda a parte lhe é +inferno. Não obstante, é incomprehensivel que elle de lá sahisse, se lhe não +fosse algum hediondo regalo n'isso de fazer tudo quanto quer, excepto o +bem—poder singular que Deus lhe concedeu, e elle exercita +incansavelmente, seu prazer unico, necessidade propria da sua desgraça, e que +hade durar tanto como elle.</p> + +<p>Tal é o castigo de Satanaz. Crime e castigo são por egual espantosos e +inintelligiveis.</p> + +<p>Agora, vejamos o que d'ahi resulta.<span class="pagenum">{<a +name="pag_5">Pg. 5</a>}</span></p> + +<h3>III</h3> + +<h4>Paraiso terreal</h4> + +<p>No segundo e terceiro capitulos do <em>Genesis</em>, refere Moysés a creação +e queda do homem. Esta breve passagem foi diffusamente glossada por hebreus e +padres da Egreja, e raro haverá quem a não haja ouvido explicar do pulpito, +como eu brevissimamente a vou explicar, acrescentando-lhe reflexões minhas.</p> + +<p>Adão e sua companheira tinham recebido no Eden uma lei moral simplissima e +muito clara: era-lhes licito saborear todos os fructos d'aquella mansão de +delicias, tirante o fructo d'uma só arvore: feito isto, a sua felicidade seria +perfeita. Conta-se que elles estavam alli mais innocentes que os recemnascidos +e ao mesmo tempo mais instruidos que os anciãos d'hoje em dia. Obedecia-lhes a +natureza e elles comprehendiam-lhe a voz. Cuidados nenhuns, nenhumas lagrimas, +primavera eterna, e a mocidade immorredoira em todo o seu ser. Deus folgava +descer-se do ceo para n'elles contemplar a sua viva imagem; e então lhes +mostrava seu rosto e lhes fallava.</p> + +<p>Entretanto Satanaz foi esperal-os debaixo da arvore da Sciencia, cujo fructo +lhes fez comer. Não se corromperam per si mesmos como Satanaz; mas eram livres +e o tentador estava alli. Quem tinha seduzido os anjos como deixaria de +seduzil-os a elles? Que considerações<span class="pagenum">{<a name="pag_6">Pg. +6</a>}</span> o reteriam? Não receia Deus por que Deus lhe não póde aggravar o +supplicio, pois que esse supplicio é eterno, e o inexprimivel horror de tal +castigo consiste na eternidade d'elle. Pelo que respeita á piedade, é +sentimento que Satanaz não conhece, pois que Deus lh'a não mostrou a elle, o +primeiro de todos os seres que a necessitára. Á semelhança das outras +creaturas, tem sómente aquillo que recebe; e o que brilha em si não é o amor +divino, é a divina colera que o conserva devorando-o.</p> + +<p>Quaes foram as consequencias da queda?</p> + +<h3>IV</h3> + +<h4>A maldição</h4> + +<p>Não aceitou Deus as desculpas de Adão e Eva. De tal modo o irritou a +desobediencia, que, no auge da sua ira, amaldiçoou-os e com elles a terra que +os continha: dupla maldição que abrange alma e corpo, espirito e materia, +eternidade e tempo—o homem todo na intimidade de seu ser immortal e nas +condições exteriores da sua existencia transitoria.</p> + +<p>De feito, foi Adão condemnado á morte. O corpo reverteu ao pó e a alma cahiu +no inferno. Esperando, porém, este ultimo castigo, foi-lhe forçado soffrer +outro n'este mundo. Cahiu sob o poder de Satan. Os miraculosos conhecimentos, +que elle tinha, perdeu-os para sempre.<span class="pagenum">{<a +name="pag_7">Pg. 7</a>}</span></p> + +<p>Repulso do Eden, nada sabia do que tinha sabido n'aquelle lugar; e, como a +terra tambem se havia transformado, caminhava elle inexperiente atravez dos +estorvos d'uma vida nova. Precisões, lavor ingrato, enfermidades, padecimentos +de toda a natureza, desconfianças, medos, saudades inuteis, desejos inquietos +acompanhavam o vagabundo par. Satanaz seguia-os, julgando-os ainda bastante +felizes sobre a terra maldita, onde, se elle não fosse, o soffrimento seria +expiação, e a morte resgate.</p> + +<p>Penetremos mais dentro n'este mysterio, e consideremos com os theologos +quaes foram e ainda são hoje as deploraveis consequencias d'aquelles +successos.</p> + +<h3>V</h3> + +<h4>Consequencias da maldição</h4> + +<p>Os filhos de Adão que ainda não eram nascidos no momento da culpa, e os +filhos de seus filhos até á derradeira geração foram condemnados com elle, como +se tivessem peccado. Comprehende-se que elles não fossem melhores que seus +pais: peiores é que elles se tornaram. O mais velho d'esses reprobos matou seu +irmão, e a impiedade humana foi crescendo até ao diluvio para recomeçar, ao +sahir da arca, durante o somno de Noé.</p> + +<p>Uma tal punição não podia gerar outros effeitos.</p> + +<p>Considerai que nascemos aviltados, pervertidos, embriagados<span +class="pagenum">{<a name="pag_8">Pg. 8</a>}</span> do vinho que outros beberam, +escravos d'um poder occulto e maligno, odiados de Deus, odiando a Deus, só +bastantemente livres para praticar maldades e merecer por isso novos castigos; +incapazes todavia de praticar o bem. Está Satanaz no manancial onde bebemos a +vida; está nas fontes que a nutrem, no seio de nossa mãe e no seu leito; a si +nos attráe, encorporando-se na luz, na agua, nos alimentos, no ar que +respiramos, na voz que nos encanta o ouvido, na fragrancia que as auras nos +trazem, no amigo que nos abre os braços. Comnosco se identifica e nos enche de +seus cavilosos e insaciaveis appetites.</p> + +<p>De fóra chama-nos com uma doce voz, e com um interno aguilhão nos esporêa +para onde nos chama. Então nos cerca, invade-nos, possue-nos, e isto não é +ainda senão parte do nosso castigo. O inverno que nos engorgita os membros, a +fome que nos prostra, a trovoada que arrebata as sementeiras, a febre paludosa +que nos mata os filhos, as forças que se vão quando a experiencia chega, estes +flagellos todos da natureza contra nós desenfreados, estas necessidades +inexoraveis, amargas privações, e exulcerantes desenganos são tambem parte do +nosso castigo. Mas ainda não é tudo: a nossa insanavel ignorancia, orgulho, +fraqueza, toda a corrupção do nosso ser é parte integrante do mesmo castigo, +não do peccado original, cumpre notar, mas do castigo, pois que a transmissão +do peccado original é já de si um castigo. E não pára aqui a maldição; pelo +contrario, quando ella se<span class="pagenum">{<a name="pag_9">Pg. +9</a>}</span> nos mostra mais terrivel é n'este estado a que nos reduziu, +manietados pelas cadeias que nos forjou, porque as culpas que resultam d'esta +corrupção natura e involuntaria que é um castigo, d'esta possessão diabolica +que é um castigo, e de tantas dores accumuladas que são castigo—taes +culpas chamam sobre nós outros castigos. Qualquer lapso é reprehensivel; o +menor deslize é espiado e marcado; o minimo murmurio é uma offensa.</p> + +<p>Taes são, consoante a theologia dos hebreus, adoptada e assignada pelos +padres, as relações do homem com Deus e de Deus com o homem.</p> + +<p>Detestam-se. Desde a sahida do Eden que se digladiam em duello sem fim, +posto que desigual. Um primeiro crime gerou a colera divina; mas do primeiro +acto da colera divina surtiram outros crimes, os quaes geraram novas coleras, e +continuamente, em face um do outro, a colera e o crime se fecundam e reproduzem +sem descanso. Os homens n'esta lucta são incansaveis como Deus, e, posto que +trespassados e sanguinolentos e esmagados, ameaçam e conspiram ainda.</p> + +<p>De semelhante espectaculo não ha nome condigno! Está o odio por toda a +parte, na terra, no inferno, no ceo, nas creaturas e no Creador.</p> + +<p>Accrescentemos que o que melhor se comprehende neste systema é a rebellião +do homem, porquanto a nossa sorte é mais miseravel que a sorte de Adão, e cem +vezes mais miseravel que a de Satanaz. Mas faz-se mister esclarecer este ponto, +antes de passar além.<span class="pagenum">{<a name="pag_10">Pg. +10</a>}</span></p> + +<h3>VI</h3> + +<h4>Comparação da nossa sorte com a de Adão e de Satanaz</h4> + +<p>Em verdade nenhuma similhança temos com os habitantes do paraiso terreal; +não lhes herdamos o saber adquirido sem trabalho, nem a pureza, nem a +liberdade, que se agitava a bel-prazer em um tão vasto circulo, tendo um só +limite perfeitamente distincto; nem tão pouco lhes herdamos a tranquilla +felicidade. Para nós é tudo trevas, servidão, limite, trabalho e dôr. Apezar do +peccado, outra vantagem nos levavam. Puniu-os Deus d'uma maneira que nos +espanta; mas puniu-os pelo mal que propriamente fizeram. Comnosco não é assim. +Primeiramente, aquelles actos, que Deus tão severamente castigou n'elles, +continuam-se em nós, que não temos conhecimento d'elles senão por este +proseguimento vingativo; depois, sem attender á nossa infermidade nativa, nos +faz elle expiar nossas proprias faltas com tamanho rigor como se as nós +tivessemos commettido na liberdade, na sciencia, e nos jubilos do Eden.</p> + +<p>Se podeis, comparae agora a sorte do homem n'este mundo maldito á de Satanaz +no ceo; e os peccados d'aquella creatura debil, ignorante, decahida, envolta em +carne e sangue, cercada de precipicios e trevas, criminosa porque nasceu, e em +perigo porque vive;—comparae<span class="pagenum">{<a name="pag_11">Pg. +11</a>}</span> isto, se podeis, ao inexplicavel peccado do anjo. Similhança não +ha ahi nenhuma. Entre nós e aquelle espirito bemaventurado vae a differença de +noite a dia, e entre a sua culpa e a nossa a distancia da terra ao ceo. Sem +embargo disso, as penas são iguaes. Espera-nos o mesmo inferno. A unica +desegualdade que se nota n'este logar de soffrimento é que o homem ahi será a +eterna victima, e Satanaz o eterno algoz.</p> + +<p>É evidentissimo que é a mesma a pena applicada a seres que prevaricaram em +tão oppostas condições de actividade. Esta pena infinita só tem relação com o +poder infinito do juiz offendido; não tem alguma com as faculdades diversamente +limitadas dos culpados, e augmenta de gravidade á medida que desce sobre +peccadores d'uma natureza mais fragil, de Satanaz sobre Adão, de Adão sobre a +sua posteridade.</p> + +<p>Quando procuramos n'isto a justiça, dizem-nos que ella ahi está, mas +escondida. Oh! sim, meu Deus! Bem escondida, e a razão tambem, e a piedade +tambem!</p> + +<h3>VII</h3> + +<h4>O povo de Deus</h4> + +<p>Entretanto parece que a piedade se manifesta na formação do povo de Deus, e +em verdade ahi se denota, mas como excepção, privilegio e favor.</p> + +<p>Havia no Egypto uma raça de escravos; toma-os Deus pela mão, e atravez de +mil obstaculos os leva<span class="pagenum">{<a name="pag_12">Pg. +12</a>}</span> ao paiz de Chanaan; dá-lhes leis, ministros e prophetas; +illustra-os, defende-os, castiga-os, restaura-os, disputando a Satanaz, com +successivos milagres, essa nesga de terra onde quer ser adorado. Não obstante, +estas revelaçõens e sobrenatural assistencia não impedem que os judeus +idolatrem, que se prostituam, que usurem e se precipitem numerosissimos em +todas as voragens do mal. Por aqui se avalie a desgraça dos povos que occupavam +o resto da terra e a quem faltavam taes soccorros. Pezava n'elles sem +contrapezo o peccado original. Os que a maior grau de perfeição tinham levado +artes e sciencias estavam tão remotos da verdade como o selvagem mais +embrutecido. Não porque uns ou outros fossem atheus—pelo contrario, em +seus soffrimentos, levantavam olhos ao ceo; mas como procuravam a divindade nas +estrellas, nas altas montanhas, no concavo dos bosques, e nas mil imagens +compostas de materia impura, debalde rogavam, e inutilmente sacrificavam. +Salvante a de Moysés, todas as religiões eram engodo de Satanaz e conductoras +d'almas ao inferno, similhantes ás lumieiras que as hordas assalteadoras +accendem á beira das restingas, durante as noites tempestuosos, afim de que os +navegantes se percam. E Deus abandonava os gentios á sua ignorancia; +detestava-os em tanto extremo que prohibia o seu povo de os tratar, sobretudo +de misturar ao d'elles o seu sangue, excepto nas batalhas. Occasionado o +ensejo, era obra piedosa exterminal-os; mas attrahil-os ao seu coração, era, +em<span class="pagenum">{<a name="pag_13">Pg. 13</a>}</span> todos os lances, +um acto abominavel, por maneira que o leproso de Jerusalem recearia manchar-se, +se recebesse na sua enxerga infecta a mais pura donzella de Sidon.</p> + +<p>Tal é substancialmente o ultimo dogma que nos convém estudar. É certo que +elle nos revela a bondade de Deus; mas á similhança de pallida restea de luz em +espessa treva. O que nos ella esclarece é um ponto imperceptivel do espaço. +Está meio velada no ponto onde brilha, e tanto ahi, como no restante do mundo, +razão e justiça de Deus jazem de todo em todo escurecidas. Sobre a terra foi +Jacob o unico justo? Se houve mais, porque não fez Deus alliança com elles e +seus descendentes? Por que adoptou sómente os judeus, por que liberalisou a +estes luzes que negou aos outros? Se lhe aprazia dar á humanidade cabida e +obcecada pelo peccado meios de salvação, porque abençoou o sangue e a carne de +um só homem, amaldiçoando o sangue e a carne dos mais homens? Se isto é +verdade, força nos é exclamar com os theologos:—Razão impenetravel! +Impenetravel justiça!—Sendo que tudo isto essencialmente diverge das +idêas que podemos formar da pura razão e da verdadeira justiça.</p> + +<p>A lei do genero humano, em toda esta historia, é a lei ditada pela colera, +e, ainda quando a bondade ahi reluz, dá ares de um capricho.</p> + +<p>Os primeiros christãos, judeus de origem, não adoptaram menos estas idêas +por mais avessas que<span class="pagenum">{<a name="pag_14">Pg. 14</a>}</span> +fundamentalmente sejam, não só á revelação interior, ás luzes da consciencia, +mas tambem a tudo que mais luminoso do ensino de seu divino mestre nos +transmittiram. A Egreja, dilatando-se fóra de Jerusalem, conservou o sinete da +sua educação rabbinica<sup><a name="L2357" id="L2357" +href="#L2354">[1]</a></sup>, permanecendo meio judaica. Não mudou um til aos +dogmas sombrios e crueis da synagoga, mas transformou o dogma do povo de Deus; +ampliou-o espiritualisando-o, sem tirar ainda assim á clemencia divina, como +logo veremos, aquella mystica e excepcional indole que tinha entre os judeus. +Admittiu os gentios ao beneficio das graças de que Moysés os excluira, e tornou +judeus, mediante o baptismo, os que de sangue o não eram. Ao mesmo tempo, +repulsou do seu gremio os que só por sangue eram judeus, e o não eram por +baptismo, formando, com tal exclusão, outro povo de Deus, e ficando o antigo a +representar a<span class="pagenum">{<a name="pag_15">Pg. 15</a>}</span> figura +carnal do novo. Em summa, a Egreja moldurou quanto em si coube, o espirito +christão nas fôrmas antigas, que ella sempre venerava e considerava +expressamente feitas para o receber. Consoante a parabola, envasilhou o vinho +novo no tonel velho, onde ferve até estalar as aduelas; cuidado, porém, que a +velha vasilha póde fender-se; o vinho contheudo é o sangue de Christo; e o +genero humano, em prol de quem tal sangue ha manado, não deixará que uma gotta +se perca.</p> + +<p>Ha pouco disse eu que a egreja, adoptando as crenças da Judéa, não havia +modificado a indole estranha e excepcional que taes crenças argúem á bondade de +Deus. Por egual razão deixou ella condensarem-se as mesmas trevas sobre a sua +justiça. É facil demonstral-o.</p> + +<div class="rodape"> +<p><sup><a name="L2354" id="L2354" href="#L2357">[1]</a></sup> No concilio +feito pelos apostolos em Jerusalem, questionou-se sobre se se devia circumcidar +os judeus. Muitos pensaram que esta operação fosse indispensavel á salvação, +por isso que Moysés a ordenára; Paulo e Bernabé não foram d'esta opinião; a +duvida, porém, era tamanha que sahiram deputados para Jerusalem, afim de +combinarem com os apostolos e os padres. O concilio discutiu longo tempo. Pedro +fallou de harmonia com Paulo; mas as duvidas subsistiram. Thiago fallou por sua +vez, não invocando a palavra de Christo, mas repetindo algumas palavras dos +antigos prophetas; o que fechou a pendencia. Decidiram que a circumcisão era +desnecessaria á salvação. Todavia, logo adiante, Paulo, que contribuira para +este accordo, circumcidou Timotheo, «em razão de estarem judeus n'aquelle +logar, e saberem que seu pae era gentio.» Vid. <em>Actos dos Ap.</em>, cap. XV +e XVI.</p> +</div> + +<h3>VIII</h3> + +<h4>A egreja e o novo povo de Deus</h4> + +<p>Hoje em dia faz-se mister nascer em paiz catholico para ainda se crêr na +possibilidade de não ir infallivelmente ao inferno. Contra o espirito do mal +inda lá se encontra aquella miraculosa assistencia que outr'ora protegia apenas +o districto não grande do Oriente. Alargou-se o territorio da clemencia, mas +ainda assim não mede a quarta parte do globo. Além d'isso entre os novos, do +mesmo modo como entre os antigos judeus,<span class="pagenum">{<a +name="pag_16">Pg. 16</a>}</span> perdem-se muitos, porque Satanaz está sempre +comnosco, na carne de Adão, e a maldição sobranceia-nos sempre.</p> + +<p>Se o baptismo destróe esta maldição, não o faz completamente, salvo quando o +baptisado morre ao sahir do baptisterio; senão, nem nos dispensa das penas +eternas, nem nos arranca das prezas da necessidade das affeições, das +tentações, dos enganos innumeros que são os effeitos temporaes da maldição.</p> + +<p>Cresce, pobre creança, e se podes, cerra os ouvidos ás alegres cantilenas da +tua ama; foge ás caricias de tua mãe e a todas as seducções que já te rodeiam. +Não toques no bello fructo que a tua fome anceia. Na tua edade, sem que o +saibas, já Satanaz te falla; na bebida e na comida estão venenos d'elle; com o +mal te familiarisas, e perdida está a innocencia baptismal. Feito o primeiro +peccado, desluziu-se a graça; a maldição meia delida revive inteira; a Egreja +vem ainda com outros mysteriosos meios em nosso auxilio; porém, como n'este +mundo não ha destruir attracção e inclinação e a liberdade do mal, muitos dos +seus filhos se perdem, apesar d'ella, e para, melhor o dizer, em seus +braços.</p> + +<p>Attendendo aos perigos a que estão sujeitos ainda os filhos da luz n'esses +paizes favorecidos, considere-se em que estado de desesperação vivem os filhos +das trevas, isto é a maxima parte do genero humano. Em mil milhões de homens, +pouco mais ou menos, que actualmente soffrem na terra, o mais que<span +class="pagenum">{<a name="pag_17">Pg. 17</a>}</span> póde haver é duzentos +milhões de catholicos. O remanescente vive sem confissão, e o maior numero sem +baptismo, na ignorancia ou no odio da Egreja, e d'aqui vão como vieram sob o +poder de Satanaz. Tem elles culpa? Nasceram no abysmo e longe de soccorros. +Familia, tribu, cidade, patria, protectores naturaes, primeiros guias, ultimos +amigos, lições, exemplos, leis e costumes, tudo os engana. Quem é que póde +escolher o seu berço? Pois a nossa salvação póde depender de circumstancias e +successos que não dependem de nós? A nossa rasão corrompida absolve-os; o velho +Adão encontra sempre alguma desculpa ao peccado; mas a fé essa não. A fé +decreta a reprovação final dos gentios, dos infieis, dos hereticos e até a +reprovação final e eterna d'um grandissimo numero de catholicos; crê n'isto +como no peccado original, como na hereditariedade do crime e do castigo, bem +como na graça da salvação—coisas correlativas e de todo o ponto +inseparaveis. Adora em silencio todas estas apparentes iniquidades, convicta de +que ellas são sómente apparentes, e que um dia virá em que os proprios gentios +hão de confessar que Deus fez bem amaldiçoando-os: tão profundamente justo, +equitativo e rasoavel é na essencia aquillo que exteriormente tão pouco é.</p> + +<p>Não ha pois duvidar que milhões de milhões de creaturas humanas estão no +inferno. As almas despenham-se ahi de todos os lados, densas e rapidas como a +chuva, chuva que dura ha mais de seis mil annos,<span class="pagenum">{<a +name="pag_18">Pg. 18</a>}</span> e não acabará nunca. Todos nós temos no +inferno uma immensa familia: todos os nossos antepassados pagãos, durante +quatro mil annos, e Deus sabe quantos avós christãos!</p> + +<p>Os parentes e amigos de quem nos apartamos a chorar, o que fazem é ir +adiante de nós; os netos d'elles e os nossos, pela maior parte, lá vão ter +comnosco, e para tão horrivel fim é que nós nos reproduzimos.</p> + +<h3>IX</h3> + +<h4>Como se prova a verdade dos dogmas hebraicos, e com especialidade a +eternidade das penas</h4> + +<p>Todos estes dogmas estão ligados; porém, quando surge uma duvida, não basta +um para demonstrar o outro. Próvem-nos que Satanaz foi expulso do céo, e o +homem do Eden; e, quando o tiverem provado, nem por isso lhes cabe o direito de +concluir que Deus nunca perdoará a Satanaz nem aos homens. Um castigo que tira +aos pacientes a esperança, e ao divino juiz a piedade, é mais incomprehensivel +ainda que a fragilidade dos anjos: por consequencia, um tal castigo carece de +ser justificado por pessoas eguaes, senão melhores. Estes antigos mysterios não +derivam um do outro naturalmente; e, seja qual for o castigo que Deus reserve +em sua justiça ás prevaricações das creaturas livres, é certo que nós o +soffreriamos, ainda que Satanaz e Adão não tivessem peccado. A principal +questão<span class="pagenum">{<a name="pag_19">Pg. 19</a>}</span> é saber se +este castigo será eterno, e a tal respeito a corrupção original, a +reversibilidade das culpas, o poder do tentador augmentam nossas duvidas em vez +de diminuil-as.</p> + +<p>O que ahi ha para nós não são provas, são objecções. O inferno poderá ainda +sem isso não satisfazer nossa razão; mas não a offenderá tanto. É urgente, +pois, provar que elle existe.</p> + +<p>Prova-se pela revelação, isto é, pelas escripturas santas e pela auctoridade +da Egreja, interprete infallivel d'ellas. Porém revelação biblica e +infalibilidade de Egreja são já de si outros dogmas a favor dos quaes se +escrevem todos os dias grossos volumes; e seria desviar-me grandemente do meu +assumpto suscitando aqui similhante discussão. O pouco que a tal respeito hei +de dizer vem no appendice que está no fim d'esta obra, sendo tanto para o +leitor como para mim grande a pressa que temos de sahir d'este labyrintho de +mysterios. Investigo provas d'outra ordem, mais especiaes, mais directas, mais +apontadas ao bom senso, ao coração, á intelligencia, e que se prestam +facilmente a ser entendidas e livremente discutidas. Se taes provas não +existissem, não emprehenderia eu similhante trabalho; mas sustenta-se que +existem, e em todas as apologias são invocadas como auxiliares das provas +sobrenaturaes, e do ensinamento da Egreja, argumentos puramente philosophicos, +dos quaes parece que a fé mesmamente está carecida. Dir-se-hia de vontade a +respeito do inferno, o que Voltaire disse de Deus:<span class="pagenum">{<a +name="pag_20">Pg. 20</a>}</span> que se elle não existisse, mister seria +invental-o. Pois que podemos em verdade provar a existencia de Deus pela +necessidade moral d'esta crença, pelo mesmo theor se intenta provar a +existencia do inferno perpetuo: intenta-se fazer d'isto uma necessidade moral +tão clara e evidente, quanto é evidente e clara a necessidade moral da crença +em Deus, e é usual fundamentar tal raciocinio sobre o testemunho de todos os +povos, que tanto importa a tradição chamada universal.</p> + +<p>A mim me basta a primeira prova; d'ella pende a meu vêr a questão capital. +Se o inferno, ou sómente a idêa do inferno é moralmente util, existe o inferno, +é necessario, e é divino. Porém, como quer que a evidencia d'esta utilidade não +seja dogma, assiste-nos o direito de examinar com plena liberdade. Tal é a +tarefa que me impuz. A tradição universal de que tratarei depois, é apenas a +primeira face do problema.<span class="pagenum">{<a name="pag_21">Pg. +21</a>}</span></p> + +<h1 style="font-size: 3em;">O INFERNO</h1> +<hr> + +<h1>PARTE PRIMEIRA</h1> + +<h4>O INFERNO CONSIDERADO ÁQUÉM DA CAMPA, OU O HOMEM E A SOCIEDADE EM PRESENÇA +DO INFERNO</h4> + +<h2>CAPITULO PRIMEIRO</h2> + +<h4>TRADIÇÕES</h4> + +<h3>I</h3> + +<h4>A tradição universal é a prova do inferno?</h4> + +<p>Quando nos querem fazer comprehender a necessidade da revelação christã, +esforçam-se em requintar phrases aviltantes, para bem caracterisar o estado do +mundo sob os reinados de Augusto e Tiberio.</p> + +<p>Não peço que se suavisem as pinturas. Todavia, se se tracta de nos incutir +algum antigo dogma hebraico tenebrosissimo, repellentissimo, tal como o peccado +original, a malicia dos diabos, o eternal inferno, então é vêr como esse genero +humano tão vilescido se transfigura subitamente em oraculo. Claro é que a moral +se lhe varrêra de todo; mas a theologia ficou. Eil-os a cavar no lodaçal das +superstições orientaes, as mais putridas de quantas ahi houve, e querem +entrever n'ellas uns certos vestigios de lá se haver conhecido<span +class="pagenum">{<a name="pag_22">Pg. 22</a>}</span> Adão e Noé. Se se trata +simplesmente do inferno, isso então acha-se em toda a parte. Um paria +vagabundo, um pagão abjecto, um negro, um hottentote tremente em face d'um +fetiche, eis as testemunhas, os consultados, os doutores. É mais que certo que +taes miseraveis haviam perdido as noções todas do bem; dormiam com as servas e +até com as irmãs; vendiam na feira as filhas e ás vezes as mães; profanavam os +hospedes; eram ladrões, eram antropophagos; adoravam pedras, serpentes, sapos, +e, peor que tudo, homens, facinoras ensanguentados; mas criam no inferno. +Clarão de consciencia não lampejava n'elles só um; não estremavam raia entre +virtude e vicio; e, posto que taes distincções lhes houvessem sido reveladas, +tinham-nas esquecido. Vêde, porém, o prodigio: quanto ahi havia +incomprehensivel para nós e ainda mais para elles; tudo que transcende a alçada +da experiencia; tudo quanto a simples razão não póde revelar—tudo, em +fim, que, pelo conseguinte, mais facilmente se desluz da memoria, oh! tudo isso +lhes ficou na lembrança!</p> + +<p>Que argumento a pró do inferno!</p> + +<p>Quem ousa impugnar verdade tão de fundamento provada? Cafres, Papus, Saabs, +Bushmans creram no inferno! Patagões, Muskogis, Algonquinos, Chipperrais, Sioux +creram no inferno! Hunos, Alanos, Ostrogodos, Gepidas, Vandalos creram no +inferno! Tambem creram n'isso Cananeos, Philisteos, Ninivitas e Babylonios! +Sodoma e Gomorra tambem! Sardanapalo, Balthazar, Herodiada, Cleopatra, Nero, +Attila, Gengiskhão,<span class="pagenum">{<a name="pag_23">Pg. 23</a>}</span> +Tamerlão creram tambem no inferno! Querem prova mais concludente?</p> + +<p>Eu não sei se semelhante demonstração do inferno é bem feita para edificar +uma assemblêa de fieis; receio muito que os incredulos se riam. Quer-me parecer +que, se tentassem insinuar-nos reverencia a tal dogma, deveriam contentar-se +com dizer-nos que aquellas raças degeneradas, aquellas nações estupidas, +aquellas hordas faccinoras, aquelles sacerdotes embaidores, aquelles reis +devassos, em fim, todos esses selvagens e monstros, nem criam na eternidade das +penas, nem d'isso tinham vislumbres. Tal argumento, se fundado fosse, +figurar-se-hia melhor que nenhum. Presumir-se-hia que esses homens, se tivessem +á mão e perante os olhos barreira tal, não se infamariam tanto. Mas, da laia +que elles são, darem-no'l-os como crentes no inferno, é mandar-nos descrer. +Horrorisa-nos a immortalidade d'elles. Vão lá trazer taes arbitros para uma +questão de altissimo interesse moral! Dizeis que elles creram no inferno? Oh +Deus meu! é por isso mesmo talvez que elles tão mal comprehendiam a justiça, e +tal vida viveram!<span class="pagenum">{<a name="pag_24">Pg. 24</a>}</span></p> + +<h3>II</h3> + +<h4>Explicação natural das tradições pagãs ácerca do inferno</h4> + +<p>Que monta recorrer a revelações miraculosas? É facilima coisa explicar +naturalmente as tradições pagãs ácerca do inferno.</p> + +<p>Este social estado que conhecemos, no qual o direito de cada um é definido +por lei, e protegido por força publica, não é o primitivo estado do genero +humano. No principio, a unica sociedade foi a familia, e, por extensão, a +tribu. Cada homem se protegia a si, e sahia em desaffronta propria; parentes e +servos bandeavam-se na pendencia, e a menor tentativa contra o direito privado +espadanava ondas de sangue. N'esses remotos tempos, vingança e justiça eram uma +só cousa.</p> + +<p>Ora, é verdade que a vingança procede do sentimento de justiça, mas +ultrapassa a justiça sempre, porque é egoista, cega, orgulhosa, colerica, não +mede, não se compadece, dá mal por mal, e usurariamente o dá. A mais antiga das +leis judaicas, a lei cruel de talião, foi lei misericordiosa; abalisou as +retaliações; cabeça por cabeça, olho por olho, dente por dente, e mais nada. A +vingança queria mais: arrancava os dois olhos, e não se saciava. Na Thracia, em +Grecia e Roma, nas Gallias, na Germania, em toda a terra houve tempo em que os +inimigos captivos eram sacrificados aos deoses, e estrangulados<span +class="pagenum">{<a name="pag_25">Pg. 25</a>}</span> pelos sacerdotes do altar. +Os que o ferro poupava eram ainda mais dignos de compaixão: condemnavam-os á +escravidão com a sua posteridade—ao trabalhar sem proveito, e á miseria +infinita. Entre as familias, tribus e raças ardiam odios hereditarios; pagava o +innocente pelo culpado, porque era commum dever o assassinal-o.</p> + +<p>E tudo isto se figurava justo, e hoje ainda entre as nações christãs, aqui e +alli, subsistem vestigios d'estes antigos costumes.</p> + +<p>Se insistem em que os pagãos conheciam o peccado original, a maldição do +genero humano e as penas eternas, força é confessar que elles, segundo +procediam, procuravam incitar a justiça divina. Que melhor modelo lhes sahiria +a ponto?</p> + +<p>Para lhes condemnar o procedimento é mister conceder que elles de Deus e da +sua justiça apenas tinham falsa idêa. Phantasiavam Deus á sua similhança, +vingativo, descaroado. D'ahi, a idêa das raças malditas, dos crimes e castigos +hereditarios. D'ahi os pavorosos sonhos do inferno sem fim, dos máos abrazados +e espedaçados vivos, dos algozes enfurecidos sobre as suas prêas immortaes, o +chorar incessante, o suspirar sem echo, e os engenhosos supplicios todos do +Naraka, indostamio inferno que ainda flammeja, e do Amenthi, egypcio, e do +Tartaro grego, antigos infernos já agora apagados e que ha tantos seculos não +mettem medo a ninguem.<span class="pagenum">{<a name="pag_26">Pg. +26</a>}</span></p> + +<h3>III</h3> + +<h4>Como o sacerdocio perpetuou estas tradições</h4> + +<p>A par e passo que a humanidade se illustra, vemos adoçarem-se por toda a +parte as leis e os costumes; as religiões, porém, essas não: antes querem +morrer que mudar; conservam como deposito precioso e inviolavel doutrinas +antiquadas sem parentesco com as idêas e as necessidades das sociedades novas. +Continuam a prégar aos povos policiados deoses ferozes. Faz-se mister um dia +arrancar ao cutello sagrado as victimas humanas. Na Gallia foi forçoso derruir +as áras e immolar os sacerdotes para acabar com os sacrificios abominaveis. Dá +Moysés aos judeus a lei de talião, mas reserva a Jehovah a vingança, como os +poetas gregos a reservavam a Jupiter. Querem homens bons e um Deus cruel, +homens justos, e um Deus iniquo; e, sendo isto repugnante, fazem da justiça +divina um mysterio, com a declaração de que o não podemos perceber. Préga Jesus +exclusivamente a caridade, e morre em um madeiro perdoando a seus algozes. +Tratam de conciliar a sua doutrina com os rabbinos, e logo nos figuram um Deus +de duas faces: a doce face do Christo que contempla a terra, e no inverso +d'esta face augusta e ungida de lagrimas, a face irritada de Jehovah, o Deus +exterminador, o Deus inexoravel que persegue os filhos pelos crimes dos +paes.<span class="pagenum">{<a name="pag_27">Pg. 27</a>}</span></p> + +<h3>IV</h3> + +<h4>Exemplo de um povo que permanece fiel a todas as suas antigas tradições</h4> + +<p>É a tradição a memoria do genero humano. Cumpre não menosprezal-a á conta +das verdades que ella propaga; todavia não devemos escutal-a de joelhos, á +feição de oraculo, por causa dos erros que a deturpam atravez de todas as +edades e nações.</p> + +<p>Que nos faz a nós que os antigos crêssem nas penas eternas? Não será isso +que as tornará eternas, se ellas o não são. Mais antiga que todas as opiniões +dos homens é a bondade de Deus; e as verdades moraes bem como as physicas +dispensam o nosso consentimento para subsistirem.</p> + +<p>Pois não girava a terra quando a julgavam immovel? Não era odiosa a +escravidão quando a julgavam justa? Ha na profundeza do ceo estrellas que +nossos paes não viram e nós vemos; e ha outras cuja luz não alcançamos e nossos +netos verão brilhar.</p> + +<p>Cumpre ver o ceo com os nossos olhos, e não com a vista dos que já são +mortos. Não seria blasphemia crêr n'um Deus vingador, quando em seu proprio +coração o homem não tinha discriminado entre justiça e vingança, e por isso a +Deus se concediam sentimentos e acções que n'este mundo eram honrosos. +Attribuir-lhe, porém, acções que passariam por injustas,<span +class="pagenum">{<a name="pag_28">Pg. 28</a>}</span> se commettidas fossem, +seria arrogar-se o homem direitos de fazer-se melhor que Deus; e fôra +verdadeira impiedade imaginar um Deus tal que envergonharia quem o imitasse. O +passado lá vai. Os antigos deram suas contas; nós temos de dar as nossas. +Quando um caminheiro cáe na estrada, quem se levanta côxo é elle e não seu pai. +Qualquer crime que perpetreis servos-ha imputado a vós. Desquitar os homens, em +nome das tradições, da responsabilidade da sua fé, seria remil-os da +responsabilidade das suas obras. Ha quatro mil annos que os hindostanicos são +escravos dos mesmos prejuizos, acorrentados nas mesmas castas, vinculados ás +mesmas praticas, rojando e palpando no mesmo circulo d'erro e miserias, á +similhança dos seus condemnados, no dedalo tenebroso e sem sahida do seu +inferno. N'aquellas regiões morre o homem na condição em que nasceu: representa +servilmente seu já morto pai, pensando e operando como elle. É, quanto menos +póde ser, pessoa distincta e nova; é-lhe quasi inutil a razão; a memoria lhe +basta; nem a consciencia vive em 'si; está fóra nas tradições oraes ou +escriptas que reverenceia cegamente, porque antes de vir ao mundo já eram +veneradas. Se ha verdade é o que essas tradições dizem; bem, é o que ellas +ordenam; mal, é o que ellas prohibem.</p> + +<p>Investigar para que? Que mais quer elle? Bello reclinatorio para a preguiça! +Excellente desculpa para vicios! Valente obstaculo para virtudes!</p> + +<p>Uma das glorias de Christo, um dos espinhos da<span class="pagenum">{<a +name="pag_29">Pg. 29</a>}</span> sua corôa santa, foi contrapôr o direito da +consciencia individual á tyrannia das opiniões, tradições e escripturas +judaicas. Ensinou-nos elle a sobrepôr o juiz intimo sobranceiro a todos os +juizes da terra, e responsabilisou perante Deus o homem por seus actos, ao +mesmo passo que os responsabilisou por seus pensamentos e sua fé.</p> + +<h3>V</h3> + +<h4>Effeito d'estas tradições na edade media</h4> + +<p>As tradições judaicas e pagãs consubstanciavam-se profundamente na edade +media, acerbando-lhes as suas leis penaes com supplicios e torturas. As prisões +não tinham ar nem luz; o adorno das masmorras era palha podre, pão e agua. +Havia prisões subterraneas, tumulos onde o homem entrava vivo e não sahia mais. +Até os mosteiros as tinham. O furto era punido com a morte; a morte punia a +transgressão da lei sobre a caça. Em cada encruzilhada uma forca. Para os +hereges fogueiras. E frequentemente uma familia inteira era castigada pelo +crime do chefe, bens confiscados, casa arrazada, o nome proscripto. Nada digo +sobre a servidão, degradação hereditaria, especie de mancha original e quasi +universal em cada paiz, horrenda reliquia da escravidão antiga, e das +superstições do Oriente.</p> + +<p>Havia crença na efficacia d'aquelles horrendos castigos.<span +class="pagenum">{<a name="pag_30">Pg. 30</a>}</span> E seriam por isso menos +raros os crimes? O terror governava o mundo. E seria o mundo melhor governado? +Ia n'isso a antiguidade das tradições. Dava-vos pena que ellas se abolissem? +Quem ha ahi saudoso das torturas, masmorras, confiscações, fogueiras, +escravidão? E quem ousaria pedir, por interesse da justiça e da moralidade, o +restabelecimento das instituições da edade media?</p> + +<h3>VI</h3> + +<h4>Como a sociedade christã se desvia progressivamente d'aquellas antigas +tradições</h4> + +<p>Não ha muito que nós ainda tinhamos o nosso inferno: eram as galés onde as +condições peioravam. Destruiram-nas, e crearam as colonias penitenciarias. +Antes de nós, se deram bem com isso os inglezes. D'aquelle antigo inferno +terreal, paraizo em comparação do outro, resta-nos como terrivel vestigio a +perpetuidade do castigo para certos culpados. Quiz o homem copiar o antigo Deus +das vinganças, e infligir aos seus similhantes penas infinitas, tendo elle +apenas um dia de seu. Taes penas se acham nos nossos codigos. A sabedoria +humana é tão limitada como o seu poder. Mas, apezar de limitadissima, é +admiravel! Com que arte a sociedade concilia os mais oppostos deveres—a +protecção aos justos, e até a protecção aos culpados que ella extrema dos +justos! Não os esquece nas<span class="pagenum">{<a name="pag_31">Pg. +31</a>}</span> suas prisões, não renunciou ao direito de perdão; não +desentranhou de si o sentimento da piedade. Sobre essa paragem de miserias está +sempre fixo um olhar de dó, e attento um ouvido que escuta os gritos do +arrependimento. E acaso se enfraquece por amor d'isso a lei penal? E se o +perdão salva um d'esses prezos que a justiça ferira com perpetua pena, cuidaes +que esse acto robusteça o mal, e dê nas prizões ou fóra d'ellas um exemplo +funesto?</p> + +<p>Ainda mais: a sociedade amnistia algumas vezes propriamente o crime, derroga +a sentença do juiz e restitue o criminoso em todos os direitos do innocente. Os +crimes que ella amnistia quaes são? Os mais ultrajadores de sua authoridade, +das suas leis, do seu repouso e existencia: amnistia os crimes de +lesa-magestade, e contenta-se com perdoar os outros.</p> + +<p>Este é o espirito das legislações novas em toda a christandade, nas quaes a +misericordia se abraça com a justiça.</p> + +<p>Inferno que nunca muda é só o theologico. É sempre o inferno da edade media, +inferno de judeus e pagãos, os mesmos supplicios, os mesmos gritos, a mesma +impiedade crescente, os mesmos horrores. Não querem que Deus tenha o direito de +perdoar no outro mundo. Cá em baixo póde fazel-o, se lhe apraz, como qualquer +rei da terra. Mas lá no seu reino não ha perdão nem amnistia! Colera infinita! +Vingança perpetua! Inexoravel furor! Tal é, consoante o pintam, o Rei dos +ceos.<span class="pagenum">{<a name="pag_32">Pg. 32</a>}</span></p> + +<p>Ditosos os povos cujos principes se não modelam por elle!</p> + +<p>Quem quizer encontrar hoje imitadores do Deus terrivel dos antigos, ha de ir +procural-os no novo mundo e entre as tribus negras da Africa, e nas hordas +barbarescas da Asia. A sociedade christã, com maravilhoso instincto, +sequestrou-se d'essas idêas de outra edade; e, com os olhos postos na cruz, +prosegue e anhela realisar em suas instituições e leis um ideal menos +imperfeito da soberana justiça.<span class="pagenum">{<a name="pag_33">Pg. +33</a>}</span></p> + +<h2>CAPITULO SEGUNDO</h2> + +<h4>A FÉ NOVA</h4> + +<h3>I</h3> + +<h4>Pater noster</h4> + +<p>Chamamos a Deus nosso pae e nos consideramos seus filhos. Um pae condemnaria +seus filhos a supplicios eternos? Que a questão seja de ingratos e +desobedientes, de rebeldes e de máos, embora: Deus é Deus, e nós somos +homens.</p> + +<p>O mais sabio ancião n'este mundo é perante o Pae celestial o que diante +d'esse velho mortal, curvado ao pezo dos annos, é uma criancinha no berço. +Perante o Pae do ceo somos todos crianças balbuciantes que apenas caminhamos +com andadeiras. E a comparação é ainda muitissimo ambiciosa! Ha mais proporção +entre o menino que balbucia e os maximos doutores theologos, do que entre os +maximos doutores em theologia e o eterno Pai. Cobertos de seus +circumspectos<span class="pagenum">{<a name="pag_34">Pg. 34</a>}</span> +barretes, aquelles doutores tartamudêam, gaguejam, balbuciam freneticamente, +não se entendem a si proprios, descambam a cada passo, e movem á compaixão, se +os compararmos a Deus. Dado que elles ainda durassem e crescessem em saber, ao +mesmo passo que envelhecessem, nem por isso deixariam de estar como em perpetua +infancia confrontados com Aquelle que tudo sabe, porque é infinito em +sabedoria, em poder e bondade. Mas, d'outra fórma, a criancinha hontem nascida +podeis já affoitamente comparal-a áquelles graves doutores; é um doutor que se +aleita e entra em dentição: alguns dias mais, e vêl-a-heis defender these e +supplantar os professores.</p> + +<p>Comprehendeis, pois, que, se o velho doutor em theologia fosse pae, mettesse +o filho em um carcere cheio de serpentes e ahi o deixasse para sempre? Qualquer +que houvesse sido a culpa do menino, julgareis justo e discreto similhante +castigo? Não vos pareceria o mestre mais louco do que o discipulo, e o pae +peior que o filho? O vosso primeiro empenho não seria pôr o algoz no logar da +victima? Não se levantaria toda a sociedade contra esse sabio sem coração? +Nossas leis, nossos tribunaes consentil-o-hiam? Ah! castigos, sim, mas castigos +que corrijam, e o perdão a final: eis o que é justiça de pae. Não entendemos +outra. Ao chefe de familia não se consente poder arbitrario sobre os seus: a +esposa tem direitos; tem-os o filho, o servo, protegidos pela sociedade, que +para esse fim especialmente se constituiu. Se isto repugna ás antigas +tradições,<span class="pagenum">{<a name="pag_35">Pg. 35</a>}</span> nem por +isso é menos racional, equitativo e moral.</p> + +<p>Ainda assim, por mais que fizesse este doutor atroz, seria menos cruel que o +Deus prégado por elle. Se a morte não viesse rapidamente arrancar-lhe a +victima, o officio de algoz cançal-o-hia. É difficil de supportar, ainda mesmo +a um mau pai, o aspecto das torturas que elle exercita na pobre creatura que +gerou. No coração humano tudo é mudavel, tanto o amor, como, por feliz +compensação, o odio. Um principe morovingiano, chamado Charmne, revoltou-se +contra Clotario; Clotario fez queimar vivos seu filho, a nora e os netos; mas +diz a historia que elle se arrependêra. Se tal supplicio durasse uma semana +sómente, de certo elle os teria salvado. Que bom pai! Que excellente rei!</p> + +<p>Que amavel é este Clotario de par com o Deus que nos pintam! Este Deus quer +que pensemos no inferno, mas não que se morra ahi; á imitação do algoz das +prizões feudaes, deixa viver os pacientes torturando-os e disvela-se em lhes +protrahir a agonia! Manda-os soffrer, ouve-os gemer durante a eternidade, e +procede sua vingança, sem fechar olhos, sem tapar ouvidos, e por isso mesmo é +que n'elle reconhecemos não um homem variavel, mas o que elle é, um Deus.</p> + +<p>Ó Deus dos antigos, Bel, Teutates, Plutão, Eolin, seja qual fôr teu nome, +Deus das batalhas, Deus do gladio, Deus dos fortes, guerreiro feroz, senhor +irascivel, juiz sem entranhas, Deus dos eternos rancores,<span +class="pagenum">{<a name="pag_36">Pg. 36</a>}</span> tu não és o meu Deus! O +Deus que adoro, o unico e verdadeiro Deus, é o melhor dos Paes; apezar das +minhas culpas, não me trata como inimigo nem como escravo; conhece melhor a +minha fraqueza do que eu a sua força; e, até quando me castiga, não esquece que +foi elle quem me creou e que eu sou seu filho.</p> + +<h3>II</h3> + +<h4>O purgatorio</h4> + +<p>É o purgatorio o logar incognito em que os mortos esperam, soffrendo, o +perdão das culpas commettidas na terra. Ha ahi o chorar e o padecer; mas não se +amaldiçôa Deus: bemdiz-se. Os soffrimentos ahi supportados são salutares porque +se comprehende a justiça d'elles; e corrigem porque a esperança não é +anniquillada.</p> + +<p>Se tal logar existe, de que serve o inferno?</p> + +<p>Deixar dizer que a eternidade é que apavora e refrêa o peccador. O peccador +não sabe o que seja a eternidade; porque é impossivel absolutamente formar-se +uma clara idêa do que seja isso. Se recuamos perante nós um pouco que seja as +balisas do tempo, a nossa imaginação e razão se perdem; e cahimos nas prezas +das mesmas angustias que sentiriamos, se vissemos a verdadeira eternidade.</p> + +<p>Para que o homem se aterre lhe basta imaginar o soffrimento de que é capaz a +sua natural sensibilidade,<span class="pagenum">{<a name="pag_37">Pg. +37</a>}</span> e qual o podem comprehender as faculdades do seu entendimento. +Para que iremos mais longe? Não é bastante ameaçar os maus com castigos +proporcionados ás suas faltas, durante um espaço de tempo desconhecido ou +incalculavel n'este mundo? O que fôr mais do que isto é inintelligivel. Para lá +d'estes limites, a ameaça nada importa; a alma está refarta de justiça, +oppressa de terror, extenuada de padecer, dobra-se, cáe, aniquilla-se, adora, +supplica perdão, não póde comprehender senão a piedade, está surda e insensivel +a tudo o mais. O remate da justiça para nós é o perdão; e, se n'essas extremas +alturas onde a imaginação póde chegar, e onde o peccado roja gemente, se em vez +de perdão, nos mostraes o odio ainda flamejante, lá vai tudo: o terror tocou o +apogeu; turva-se a razão, idêa de justiça e de bondade tudo se desfaz; a alma, +que cahira crente, levanta-se atheista.</p> + +<p>Se o tal inferno existe, no outro mundo coisa comprehensivel ha uma só; é o +blasfemar dos condemnados.</p> + +<p>Mas se tal inferno existe, de que serve o purgatorio? Pois os protestantes +não o aboliram discretamente? Para os que podem crêr em tal inferno, que é cem +mil annos de purgatorio? Este acaba e o inferno não; seculos e milhões de +seculos de penitencia não se contam, esquecem-se. Em vista d'este sinistro +inferno em que a misericordia é desconhecida, inutil o soffrimento, e a justiça +um enigma, o purgatorio é um paraizo. Quem nos dera a certeza de lá ir! que os +castigos ahi<span class="pagenum">{<a name="pag_38">Pg. 38</a>}</span> +soffridos, por mais demorados e rigorosos que sejam, não ha temel-os: +desejam-se. Por maneira que o mais terrivel castigo que imaginar se póde, o +mais equitativo e rasoavel, deixa de impressionar as almas pervertidas pelo +espectaculo d'uma punição sem siso nem justiça apparentes.</p> + +<p>As pobres almas aterradas, aturdidas, estupefactas são impellidas +involuntariamente a offender a Deus de dois modos; primeiro temendo-lhe a +vingança, segundo não lhe temendo a justiça. A idêa dos castigos inefficazes e +dôres infructiferas, por muito monstruosa, odiosa e falsa que seja, se +humanamente a consideramos, torna inutil a idêa dos castigos poderosos e dôres +salutares, por muito bella, clara, natural e divina que ella seja.</p> + +<h3>III</h3> + +<h4>Necessidade do purgatorio</h4> + +<p>Quem quer que sejaes, senhor ou servo, rico ou pobre, esposo ou pai, viuva +ou noiva, não negueis as expiações da vida futura. Não conheceis maus em +prosperidade, cercados de respeitos, inaccessiveis á lei, e que se deitam e +levantam sem remorsos? Não conheceis innocentes opprimidos, anciãos +abandonados, orphãos desbalisados, pessoas honradas cuja vida é toda padecer e +que nenhuma lei feita ou por fazer defenderia de homens ingratos e perversos? +Se sois feliz<span class="pagenum">{<a name="pag_39">Pg. 39</a>}</span> hoje, +sêl-o-heis amanhã? Convencei-vos de que negar a vida futura, seria o mesmo que +negar a immortalidade da alma, e logo sua liberdade e responsabilidade; e, por +consequencia, o mesmo seria negar virtude, direito, Providencia, e constituir +este baixo mundo um verdadeiro inferno, um sonho, um pesadêlo, onde tudo seria +horror e abominação, excepto o nada, tudo injusto, excepto o crime victorioso, +tudo absurdo, excepto a inveja, o egoismo, a violencia, e a astucia que se +roja. Ah! crêde na vida futura, com suas expiações e recompensas. E, se ha quem +exclua do ceo a piedade, não vades vós, por uma irracional desforra, excluir +tambem do ceo a justiça.</p> + +<h3>IV</h3> + +<h4>Mysterios</h4> + +<p>Não nos accusem os theologos de negarmos acintemente os mysterios.</p> + +<p>Os theologos referem o que vae no inferno como se tivessem por lá viajado. +Pelo que elles dizem é paiz dos mais conhecidos: sabe-se o caminho, quaes são +os seus productos, e qual o modo de viver dos seus moradores, bem como a +origem, nomes e a gerarchia dos principes que lá reinam. Em outro capitulo +estudaremos as edificantes descripções que fazem d'elle já physica, já +moralmente.</p> + +<p>Ácerca do purgatorio tem havido mais prudencia<span class="pagenum">{<a +name="pag_40">Pg. 40</a>}</span> quasi nada se sabe do que la se passa: é +portanto mais mysterioso que o inferno. Todavia, sem impedimento de ser +mysterioso, que differença! Quanto mais profundamos a eternidade penal, menos +se acredita; ao invez, quanto mais pensamos no purgatorio, mais nos sentimos +compellidos a crêl-o. É o inferno mysterioso como o diabo, como a noite, como a +contradicção, a confusão e o chaos. É o purgatorio mysterioso como Deus, como a +alma, como a consciencia, como a vida, como a luz que nos alumia, como a +materia impenetravel, como toda a natureza, como a verdade, como tudo o que +existe e de que nós apenas conhecemos em sombra a existencia e apenas +percebemos atravez de um veo, mas o bastante para não poder duvidar. É elle tão +certo como tudo o mais do mundo; assenta no intimo de nossa alma sobre as +mesmas bases da moral, do direito, do dever, do respeito a outrem, piedade, +liberdade, amor, e sentimento do infinito. É por tanto o purgatorio, quanto á +razão, o verdadeiro mysterio da justiça divina, assim como a Incarnação e a +Paixão, quanto á fé, são o mysterio do Amor divino;—mysterio de justiça +que, de mais a mais, se concilia maravilhosamente com aquelles mysterios +d'amor, dos quaes o inferno perpetuo seria a negação.</p> + +<p>Muitissimo nos espanta que os protestantes o não vissem. Quando tinham que +escolher entre dous dogmas inconciliaveis, um velho e outro novo, sacrificaram, +tanto em nome do Evangelho como da razão, um dos<span class="pagenum">{<a +name="pag_41">Pg. 41</a>}</span> dois que mais se harmonisava com as leis da +razão e a moral do Evangelho.</p> + +<h3>V</h3> + +<h4>O paraiso</h4> + +<p>Os protestantes não conhecem termo medio entre paraiso e inferno; os +catholicos, porém, acreditam-no, e segundo elles é o purgatorio ceo nubloso e +triste, inferno onde se ora e espera, e que deve acabar. Infelizmente os +catholicos não enviam todos os mortos ao purgatorio, crendo que se póde +transpor aquelle meio entre ceo e inferno, sem ainda lá pôr o pé. Á similhança +dos protestantes, ensinam que muitas almas, apenas despidas do seu involucro +mortal, são despenhadas para sempre no eterno abysmo, ao passo que outras +almas, logo que despedem da terra, alam-se direitas ao paraiso. Ensinam tambem, +uns e outros, que o mais abominavel patife, convertido á ultima hora, póde +morrer contente: eil-o vai absolvido como o bom ladrão; não tem mais que fechar +os olhos e acordar entre os anjinhos.</p> + +<p>É isto possivel? É isto verdadeiro? Que é pois o paraiso, e que idêa fazemos +d'elle?</p> + +<p>Pois que! verei eu do seio da bemaventurança, e na inalteravel +tranquillidade dos justos, verei sem remorso e sem afflicção, encadearem-se a +meus pés, já na terra, já no inferno, as tristes consequencias das<span +class="pagenum">{<a name="pag_42">Pg. 42</a>}</span> minhas iniquidades? Nas +minhas noites de libertinagem, matei; durante o somno de homens que valiam mais +do que eu, assassinei um aváro para o roubar, um amigo da minha infancia para +entrar no seu leito, uma mulher que eu havia seduzido e que morreu beijando-me +as mãos, pensando em mim, a louca, mais do que em Deus! D'entre elles os peores +que eu feri eram innocentes comparados comigo, e eil-os mortos +intempestivamente, sem terem tempo de se arrependerem; eil-os engolphados na +gehenna, com o coração roido pelo verme que não morre, gementes, chorosos, +amaldiçoando-me; e eu, seu assassino; eu, peccador envelhecido na impiedade e +agraciado por um milagre, louvarei Deus eternamente, por me haver feito +instrumento da condemnação d'aquellas pobres almas!</p> + +<p>Com as minhas delapidações, reduzi á miseria e a todas as tentações da +miseria, e a todos os desvios da desesperação aquella familia que lá vejo em +baixo: o irmão vende a irmã, a irmã vende a sobrinha, o pae vende os seus +juramentos, os seus amigos, o seu paiz; a mãe arranca-se os cabellos; todos +choram, todos soffrem, todos me accusam, e os seus gemidos chegam até mim; e eu +hei de vêr imperturbavel, sem remorsos, sem dôr, aquelles fructos de meus +crimes, aquellas ulceras, aquelles prantos, aquelles opprobrios, aquellas +perfidias, aquelles escandalos em que eu tenho parte; e, pois que Deus se +apiedou de mim, eu não terei piedade dos outros, e o que na terra me +affligia,<span class="pagenum">{<a name="pag_43">Pg. 43</a>}</span> quando eu +agonisava, não me ha de affligir depois da minha morte. Este deploravel +espectaculo, bem visivel a meus olhos, não impedirá que eu me saboreie na +felicidade dos escolhidos; convencer-me-hei que vae n'isso o influxo dos +designios do Altissimo, e que o homem, faça o que fizer, não tem que vêr com o +resultado das suas obras; e em vez de bater no peito a cada sobresalto dos meus +proprios crimes, a cada repercussão das minhas proprias blasphemias, a cada +reflorecer das venenosas sementes—vestigio unico que eu deixei da minha +passagem na terra—vestirei a alva tunica, e beberei na taça dos anjos, +das virgens, dos heroes, e dos martyres, como se eu fosse um d'elles.</p> + +<p>Na verdade é uma egregia doutrina esta da justificação do peccador, pelo +reconhecimento e pezar de suas culpas; levada porém áquelle grau, similhante +doutrina é tão incomprehensivel como a do inferno. De uma demasia nasceu outra: +n'uma parte encareceram a justiça; na outra exaggeraram a piedade. Comtudo, +entre o castigo infinito por um só peccado, e o immediato perdão apezar de mil +peccados, havia o que quer que fosse que parece desconhecer-se: a justiça sem +colera, a misericordia sem pusillanimidade.</p> + +<p>Salvam-nos como nos condemnam, com pouco custo ordinariamente, pois que se +com facilidade nos abrem as portas do inferno, com a mesma nos abrem as do +paraiso.</p> + +<p>Considerem entretanto o purgatorio, não como meio<span class="pagenum">{<a +name="pag_44">Pg. 44</a>}</span> entre o paraiso e o inferno, mas entre a terra +e o ceo, ponto que certas almas atravessam rapidamente e quasi sem soffrer, e +onde outros são condemnados a padecimentos mais ou menos extensos e +variadissimos, consoante a natureza de suas culpas, e disposição no ultimo +momento. Este purgatorio com as suas penas indefinidas, proporcionaes, +rigorosas, purificantes, e, cedo ou tarde, coroadas pelo perdão, não seria um +freio moral mais rijo que o medo das penas eternas, temperado pela esperança da +misericordia na ultima hora, e pela reforma de vida na ultima edade? Convenho +que não haveria medo de ser condemnado sem remissão; assim é; mas tambem +ninguem presumiria de fugir ao castigo com um momento de contricção, depois +d'uma longa cadeia de crimes. D'esta arte, Deus mostraria melhor o que é, +justo, mas não cruel; bom, em vez de tolerante. Que mal lhe viria d'ahi? +Commiséravos o lastimavel ancião coberto do sangue das extorsões e o tyranno +abjecto que sopesou e corrompeu milhares de homens; tendes d'elles piedade, +quando morrem chorando? tendes razão; mas apiedae-vos tambem de suas victimas +ainda palpitantes, d'essas creanças que elles definharam e ceifaram em flor, e +que vós condemnaes. Piedade e justiça para todos. Não desespereis os que +vagarosamente caminham sobre os abrolhos da penitencia, mas não lhes encurteis +a escada para os subir ao ceo. Sabei que na outra vida se chora amargamente o +mal feito ao proximo que n'este mundo nos sobrevive, as desordens que se +motivaram, as existencias<span class="pagenum">{<a name="pag_45">Pg. +45</a>}</span> que se transtornaram, as quedas moraes que se occasionaram, e +que o arrependimento na hora extrema, posto que grandemente salutar, é apenas o +principio, e não o fim, das expiações d'uma vida culpada.</p> + +<p>É de crer que na Biblia e nos padres da Igreja isto se não encontre +escripto; mas está escripto nas consciencias. Limpem os oculos e leiam.<span +class="pagenum">{<a name="pag_46">Pg. 46</a>}</span></p> + +<h2>CAPITULO TERCEIRO</h2> + +<h4>OS FRUCTOS DO INFERNO</h4> + +<h3>I</h3> + +<h4>O bem</h4> + +<p style="text-align:center; font-size: small;">(BEM NEGATIVO, MONGES, +ANACHORETAS, ETC.)</p> + +<p>Se a morte vos sobresaltêa antes da penitencia, diz-se que sois condemnado +por erro de espirito, por fraqueza dos sentidos, por um lance d'olhos, por um +desejo culposo, e condemnado, sem esperança, tanto como se houvesseis sido um +ladrão calejado, um parricida, um atheu. Lá vos está esperando o Senhor da +vida; e ahi ides enredado em vosso peccado como ave cahida no laço. E tudo se +acabou; tudo, sem que os vossos longos serviços ao genero humano contrabalancem +o peccado final!</p> + +<p>Se, no entanto, comparaes tudo que se ha mister fazer para ganhar o ceo ao +pouco que basta para cahir no inferno, sereis forçado a reconhecer que as<span +class="pagenum">{<a name="pag_47">Pg. 47</a>}</span> probabilidades são +dissimilhantes, e que o mais certo, faça-se o que se fizer, é a condemnação.</p> + +<p>D'onde procede nas imaginações vivas a dominante preoccupação de evitar o +inferno; e d'ahi, pelo conseguinte, e desde os primeiros seculos, uma especie +de singulares virtudes, mais espantosas que bellas, mais extravagantes que +insinuativas: virtudes falsas, sem utilidade do proximo, bem que os theologos +no'l-as inculquem por ideal da perfeição christã. Tal é o retiro ao deserto, a +renunciação propria, o morrer antecipado, o fugir combates da vida, o desquite +de deveres da familia e da cidade, a ociosidade contemplativa e penitente, a +maceração, o jejum, o perpetuo silencio, a insulação, o odio ao mundo, a oração +entre quatro paredes. É, tambem, a santificação do celibato, como se a +fecundidade dos sexos houvesse sido amaldiçoada, como se fosse culpa continuar +a filiação de Adão, e virtude esterilisar em si os embriões da vida humana.</p> + +<p>E certo é que, admittido o inferno, e a queda original, e o ensinamento que +lhe anda annexo, que outra conclusão se colhe? Multiplicar os homens, para que? +para multiplicar os peccados? Se é tão duvidosa a salvação! Se a condemnação é +tão facil! Para que nos enlaçaremos á orla d'um abysmo onde o esposo póde +despenhar-se com a esposa e o pae com os filhos? Bastantissimos mentecaptos se +casam, e povoam terra e inferno de desgraçados. Não seria melhor deixar acabar +o mundo? Bemaventurados os celibatarios! Os sabios<span class="pagenum">{<a +name="pag_48">Pg. 48</a>}</span> são os reclusos, os anachoretas, os eremitas. +São como os viajantes que, em navio a pique, desamparam os companheiros, e +salvam-se a nado. Cuidam só do seu salvamento; cada qual por si; soccorrer o +irmão tem o risco de naufragio. Fazei como elles, navegantes; deixae no navio +em sossôbro mercadorias, thesouros, e vossas mulheres, e mães, e vossos filhos, +e fazei-vos ao largo: recresce a borrasca; rasga-se a vela; quem poder +salve-se.</p> + +<p>Bemditos sejam pois esses foragidos do mundo, mortos ao mundo e seus +modelos, Simeão sobre a columna, João no muladar, esses desvariados todos +macillentos, sujos, comidos de insectos. Grande vantagem levam: não tem que vêr +com a terra, e já estão meios mettidos no ceo: o diabo já mal os póde +aprezar.</p> + +<p>Não é, todavia, a perfeição dos ascetas aquella que o Filho do homem nos +exemplificou. Trinta e tres annos habitou Elle a terra, e quarenta dias sómente +ermou no deserto, não para nos lá attrahir; mas, a meu vêr, para nos +distancear, pois que foi no deserto, e ahi tam sómente, que o espirito das +trevas o tentou. Anteriormente havia Elle vivido trinta annos com a sua +familia; e viveu o restante entre peccadores. É para notar que nas suas +modestas occupações, sob o colmado do carpinteiro, e mais tarde nos campos, nas +cidades, nas tavernas, em meio do povo que ensinou, curou e nutriu, não ousou o +diabo tental-o!</p> + +<p>Mal imita Christo quem foge o mundo que Elle<span class="pagenum">{<a +name="pag_49">Pg. 49</a>}</span> procurava. O sepultar-se um homem nos antros, +a jejuar e a rezar por longo tempo, o sequestro da sociedade, o silencio, +corpos macerados mal enroupados em pelles, exorcismos furiosos, luctas no +vacuo, intrepidez baldada, e tantissimos outros piedosos desatinos não recordam +exemplos do Salvador, mas sim as aberrações dos sectarios do oriente. Não póde +ser isto a perfeição que Jesus veio ensinar aos homens; que tal chamada +perfeição muitissimos seculos antes d'Elle já era conhecida dos pagãos +idolatras, que tinham seus corybantes e vestaes, e bem assim dos judeus, +mormente dos Essenios que a tinham aprendido dos magos da Chaldêa. Tal +perfeição praticavam-a na India fanaticos sem numero, cuja raça ainda subsiste. +Importamo'l-a dos mesmos paizes que nos mandaram a doutrina dos anjos rebeldes +e a da reprovação dos homens—doutrinas cujo natural fructo é tal casta +perfeição. Se o ideal da perfeição humana fosse isto, inutil seria o +christianismo; pois que já os brahmanes a tinham ensinado dous mil annos antes +do presepio, e os bouddhistas a tinham realisado mil annos antes dos monges da +Thebaida.</p> + +<p>É certissimo que os bouddhistas não visam exactamente ao mesmo scôpo que os +monges catholicos: aquelles buscam em suas austeridades a morte absoluta, a +destruição de sua personalidade, o serem absorvidos no ser universal, ao mesmo +tempo que os monges, se renunciam ao seu <em>eu</em> neste mundo, é para o +retomarem n'outra vida. É, comtudo, egualmente<span class="pagenum">{<a +name="pag_50">Pg. 50</a>}</span> certo que, sem embargo da diversidade dos +fins, vigora em ambas as seitas um principio commum, sendo que por identicas +vias e praticas procuram a eterna bemaventurança uns, e outros o perpetuo +dormir, a eterna insensibilidade. Só de per si o desejo do ceo não bastaria a +inspirar a uns o mesmo proceder que inspira aos outros o desejo da +anniquilação: pelo que, não é o desejo, senão o medo que povôa os desertos. Os +bouddhistas, por egual com os christãos transviados, temem os soffrimentos +infindos, os males sempre a renascer, se n'este mundo não attingirem a vida +perfeita; e tanto para elles como para os nossos monges, vida perfeita é o +absterem-se da vida, é a virgindade, o jejum, a penitencia, a soledade, o +extasis, o antecipar a morte, um complexo de estereis virtudes, não filhas do +amor, senão do mêdo.</p> + +<p>Tal é, na sua mais elevada expressão, o bem que a crença do inferno produz +n'esta vida. Causa espanto que os protestantes hajam conservado este dogma! É, +porém, mais para espantar que elles, ao mesmo tempo que o conservam, destruam +os mosteiros e inpugnem o celibato. Não ha ahi imaginar maior inconsequencia! A +primitiva Igreja, que elles pretendem resurgir, cria sem duvida nas penas +eternas, é isto mais que muito verdadeiro; mas pelo menos, operava em +conformidade com sua fé. N'aquelle tempo, os esposos, ainda em vigorosa +mocidade, guardavam continencia, sob pena de peccarem, durante o advento e +quaresma, e nas festas e dias de jejum, pouco mais ou<span class="pagenum">{<a +name="pag_51">Pg. 51</a>}</span> menos tres quartas partes do anno. D'elles +alguns, para maior perfeição, não usavam nunca os direitos conjugaes, e +envelheciam sob o tecto nupcial, em voluntario celibato, denegando-se as frias +caricias que o irmão faz a sua irmã. Os ricos empobreciam-se, despojando-se +espontaneamente de seus haveres, e os pobres lidavam para viver, mas +descuidosos de amontoar, nem como previdencias para a velhice e infermidade, +nem para legarem a filhos. Conta-se que desadoravam empregos publicos, e +evitavam, como escolhos da alma, as emprezas lucrativas nomeadamente as +commerciaes. Nunca espectaculos, nem jogos, nem dansas, nem folias. Sobriedade +extrema, vestidos nem apontados nem de preço, jejuns em barda, orar dia e +noite, lucta incessante e pertinaz contra a natureza. O seu distinctivo de +christãos era aquelle. Uma leve falta, acareava-lhes a excommunhão; e, antes de +absoltos, eram experimentados em seu arrependimento, por espaço de mezes e +annos, quando o não eram até morrerem. Em quanto durava a penitencia, eram +apontados, não só nos templos, durante os mysterios, senão tambem no exterior e +nas relações da vida civil; e, por cima de ninguem os querer á sua meza, até as +esmolas lhes regeitavam.</p> + +<p>Diz com rasão Fleury que a vida dos nossos monges regulares corre parêlhas +com a do commum dos fieis da Igreja nascente, cuja continuação é<sup><a +name="L2433" id="L2433" href="#L2435">[2]</a></sup>. E accrescenta<sup><a +name="L2474" id="L2474" href="#L2476">[3]</a></sup><span class="pagenum">{<a +name="pag_52">Pg. 52</a>}</span> que já entre aquelles fieis havia ascetas +d'ambos os sexos vivendo reclusos. Eram os mais perfeitos, e exemplares. Taes +ascetas, verdadeiros ascendentes dos monges contemplativos, trappistas, +cartuchos, carmelitas, claristas, etc., esforçavam-se por imitar a vida de João +Baptista no deserto e a de Elias no Carmelo.</p> + +<p>Curavam elles pois, como já dissemos, uma perfeição diversa da de Jesus: +anhelavam a perfeição negativa, qual os judeus e os orientaes a preconisavam; +judaisavam sem darem d'isso tento, e os christãos seus imitadores continuavam +inadvertidamente a tradição, não já de Jesus, mas de João Baptista e Elias, +tradição congruentissima com o inferno. Já no tempo das perseguições era +povoada a Thebaida; não tinha então a Igreja um tecto debaixo do ceo; e só +depois que principiou a erguer templos é que edificou mosteiros, sua primeira +obra depois que sahiu das catacumbas. É pois evidentissimo, em que peze aos +protestantes, que o catholicismo não se apartou do espirito dos tempos +apostolicos, nem das praticas de então, e que a vida monachal detestada por +elles, é ainda hoje em dia o que outr'ora foi, a mais bella flor, e o mais +mimoso fructo dos dogmas hebraicos, que elles tão piedosamente tem +conservado.<span class="pagenum">{<a name="pag_53">Pg. 53</a>}</span></p> + +<div class="rodape"> +<p><a name="L2435" id="L2435" href="#L2433"><sup>[2]</sup></a> <em>Costumes dos +israelitas e christãos</em>, tom. II, cap. 53.</p> + +<p><a name="L2476" id="L2476" href="#L2474"><sup>[3]</sup></a> <em>Costumes dos +israelitas e christãos</em>, cap. 26.—Citei esta excellente obra por que +ella é manuseada por todos, e facilima de consultar. De mais a mais, depara-nos +a indicação das fontes onde o auctor bebeu, dispensando-nos assim de as +indicarmos n'este livro.</p> +</div> + +<h3>II</h3> + +<h4>A carmelita ou o ideal da perfeição theologica.</h4> + +<p>Comvosco admiro as religiosas que, sob diversos nomes e com diversos +habitos, assistem ao genero humano, tanto com suas orações, com o seu trabalho +quotidiano, com toda a celeridade de seus pés, com toda a agilidade de suas +mãos, como com todas as forças de seu ser. Credes que não é possivel seguir +mais do que ellas os divinos vestigios do Salvador. Ah! quanto vos enganaes! +Quanto são baixas e eivadas de heresia as vossas idêas! A perfeição não +consiste na vida activa e benefica das irmãs da caridade; onde ella está, +segundo o ensinamento dos theologos, é na vida contemplativa.</p> + +<p>Se procuraes, senhora, o modêlo para vós e vossos filhos, encontral-o-eis na +carmelita, com preferencia á irmã da caridade. Aquella morreu para o mundo, jaz +no seu cubiculo como em um tumulo. Vá quem quizer agasalhar orphãos, ensinar +ignorantes, restaurar peccadores, curar doentes, ensinar officios a servos, dar +voz a mudos. Affronte quem quizer o contagio de nossos vicios! Quem quizer que +cure a nossa lepra! Esses cuidados vulgares não os quer a carmelita para si. +Aos pés do altar, com os braços levantados ao Senhor, é o seu posto. Não se +bulirá d'alli, ainda que todo o paiz arda ensanguentado. Não lhe digaes: vosso +irmão está a morrer; vossos sobrinhos vos estão chamando.<span +class="pagenum">{<a name="pag_54">Pg. 54</a>}</span> Não lhe digaes: arde a +peste na cidade; á vossa porta está a maca. Ha muito que ella concebeu tedio do +mundo; não lhes leveis novas d'elle, que perturbarieis o seu socego. Quanto +menos ella se inquieta d'essas transitorias miserias, mais os theologos a +admiram. N'isso mesmo,—crêl-o-eis?—é que está, segundo elles, a sua +superioridade sobre a irmã da caridade, cujo coração virginal arfa como coração +de mãe ao grito da criancinha<sup><a name="L2351" id="L2351" +href="#L2356">[4]</a></sup>.</p> + +<p>A carmelita não pensa, nem tem que pensar senão em sua propria salvação, e +tal pensar é um manancial das commoções que unicamente lhe são permittidas. Bem +que ella viva dez, vinte, cincoenta annos sob o<span class="pagenum">{<a +name="pag_55">Pg. 55</a>}</span> veo, fará todos os dias, á mesma hora e da +mesma maneira, a mesma coisa sem poder por seu arbitrio alterar-lhe o minimo. +São-lhe pautados os movimentos, e contados os passos. Em todo o curso de sua +vida não ha a menor surpreza, o minimo abalo, o imprevisto, a menor liberdade, +ou elevação espontanea das faculdades moraes. Estão definidas e immutaveis as +suas relações com todas as coisas animadas ou inanimadas que a cercam: não se +afeiçoa, não escolhe, não se decide. É-lhe prohibido ganhar affecto a coisas e +a pessoas. A abelha é mais livre do que ella em sua colmeia, e menos inflexivel +que as regras monasticas é o instincto que a dirige. Uma communidade de freiras +parece-se a um povo de automatos e não a um enxame de seres viventes. E essa é +que é a condição pela qual a harmonia subsiste. N'estas sociedades contra +natureza, é prudente que a natureza seja algemada; pois, se lhe dessem folga, +ella se revoltaria; e por tanto é forçoso esmagar a liberdade como cautela para +que a licença não vingue. É pois a carmelita em todos os seus actos mera +machina. Tem alma para obedecer e trabalhar na sua interior perfeição, +destruindo em si, cada vez mais, vontades, desejos, e individualidade até ás +raizes. Onde está a lucta está a vida. N'esse immutavel centro, solitario e +silencioso, onde se caminha sem mudar de piso, passa a adolescencia sem +curiosidade, e a velhice sem experiencia nem memoria. Ahi nada se renova; o dia +que chega nada promette; o dia que finda nada deixa; é a vida um<span +class="pagenum">{<a name="pag_56">Pg. 56</a>}</span> livro, cujas paginas em +vão se folhêam: sobre essas paginas brancas ha uma só phrase, do começo ao fim, +sempre a mesma: «pensa em ti, pensa na eternidade.»</p> + +<p>Ahi vem agora com que espancar o tedio do mosteiro. Á mingoa de grandes e +formidaveis combates do lar domestico e da sociedade, isto é, da vida real qual +Deus a fez, a ociosa carmelita pugna heroicamente contra sua razão, contra seus +sentidos, imaginação, e faculdades inactivas. Crê resistir ao diabo, resistindo +á necessidade de operar, de amar, de saber, e ser util: estafa em puerilidades +a sua virtude. Se durante o officio, uma mosca lhe pousa no nariz, é um caso, é +uma provação. Se está distrahida, assalteam-na remorsos; se impaciente, vai +confessar-se d'isso. Uma pulga é outro inimigo terrivel, outra occasião de +grande queda ou de grande victoria! Um alfinete mal pregado, um vêo +descomposto, uma lembrança, um gemido, um pensamento clandestino, o rastilho +d'um rato atraz do armario, um <em>Ave</em> esquecido, ó cathastrophe! ó +remorso! ruina de Sião! prantos de Job! brados de Rachel! transportes de +Jeremias! Qualquer bagatella a alvoroça como materia de peccado mortal; +qualquer futilidade lhe avulta com proporções monstruosas; pesa grãos de areia, +e mede os atomos.</p> + +<p>Pois se ella conseguiu esquecer sua familia, seu paiz e o mundo, não a +cuideis completamente impassivel como se vos figura: o que ella fez foi +concentrar em si e para si o amor e piedade que nega aos outros.<span +class="pagenum">{<a name="pag_57">Pg. 57</a>}</span> Idolatra-se, não ao modo +dos sybaritas, mas por um theor que, posto não seja sensual, não é menos +egoista: absorve-se em contemplação de sua alma; no proprio coração preenche o +vacuo de familia e de amigos, e de quantas creaturas de lá expulsou. +Contempla-se sósinha, entre o inferno e o céo, a tremer perante um tal +espectaculo, e sempre fluctuando entre estes abysmos, ora nas alturas, ora nas +profundezas, passa de um delirio a outro, e das palpitações do terror ao extase +dos seraphins.</p> + +<p>Eu por mim não sei se Deus sorri a taes futilidades, a tal vida que não é +viver, e a tal morte que não é morrer; mas os theologos affirmam que é n'isto +que a perfeição consiste.</p> + +<p>E forçoso é concordar que elles tem razão, se ha inferno. Se ha inferno, a +irmã da caridade é imprudente, e nós, os admiradores d'ella, somos sandeus. O +sequestro mais rigoroso é a consequencia legitima, natural, necessaria e fatal +d'este dogma selvagem. O alicerce, a porta e o tecto do mosteiro é aquelle +dogma, que desata as sociedades naturaes e viventes avinculadas pelo amor; é +elle o occulto liame d'aquellas sociedades de automatos que não permaneceriam +um dia, nem hora, nem momento, se tal dogma fosse proscripto. Sem inferno, a +vida claustral não se percebe; com inferno, não ha imaginal-a mais a ponto, e é +obrigatorio confessar que, de feito, a perfeição está n'ella, visto que a razão +está com ella.</p> + +<p>Não obstante, filhos do seculo, não renuncieis<span class="pagenum">{<a +name="pag_58">Pg. 58</a>}</span> afogadilho de seculo, que vol-o prohibem os +theologos.</p> + +<p>Ficai entre peccadores, no foco das tentações, dos escandalos, dos erros, e +das ciladas que vos tramam. Razoavel coisa seria fugir para o porto seguro que +vos offerecem; mas não vades; continuae a navegar entre restingas, á mercê dos +tufões, aos clarões dos relampagos. O convento não vos quadra; porque não foi +feito para muitos.</p> + +<p>Entendo, direis, que o convento se abriu para os entes mais debeis, para os +incapazes não só de ajudar a outrem, mas tambem da mesma mente se salvarem, sem +se arriscarem ás tempestades. Faz-se mister ás almas frageis e justamente +timidas o estreito cenobio do claustro, a protecção das gradarias, a +escravidão, as regras, o véo sobre os olhos, a mordaça nos labios; sem o que se +perderiam. Em quanto os valentes combatem, vão ellas esconder-se longe do +inimigo.</p> + +<p>No seu caminho se arrastam gemebundos alguns fugitivos, fallidos de animo, +cahidos por terra, feridos de suas proprias armas, e quem sabe se alguns heroes +alanciados no coração! Entendo, direis, que o claustro é o refugio dos +pusillanimes, o porto dos naufragados, o hospital dos infermos, e aqui se +mostra a apparente razão porque nem toda a gente lá póde entrar.</p> + +<p>Está enganado o duro leitor, que nada percebe dos mysterios theologicos. +Saiba pois que o claustro é o asylo dos fortes; e que só lá são recebidos os +athletas<span class="pagenum">{<a name="pag_59">Pg. 59</a>}</span> a primor, +mais puros e intrepidos, a flôr da juventude christã. Não soffre a menor duvida +que é mil vezes mais de perigo a sociedade onde os soccorros são muito menos do +que os retiros abençoados. Que nos faz isso! De logar abrigado e onde a graça +superabunda é que os poucos são repulsos, com quanto, ao primeiro intuito, nos +pareça creado para elles; ao mesmo tempo que do baluarte das luctas angustiosas +se retiram os fortes, com quanto pareça tambem este o seu logar proprio.</p> + +<p>Os coxos, os cegos e os inermes são postos na liça sanguinosa; os mais +aguerridos soldados enclaustram-se. Espantem-se e riam-se, que a coisa é assim; +e, senão, perguntem-no á Sorbonna.</p> + +<p>E assim é preciso que seja, pois que a perfeita vida é a claustral, que, no +entender dos theologos, vem a ser a mais avêssa ás inclinações de nossa +natureza viciosa, e, por conseguinte, a de mais difficil observancia; mas, +porque é impraticavel na sociedade, não se lhe dispensa de ser exemplo á +sociedade; e, sem presumpções de lá chegar, devemos propender para ella +continuamente, visto que estamos tanto mais á beira do inferno quanto longe +d'aquella vida perfeita.</p> + +<p>Que se hade fazer, pois? Eis o problema. Cada qual tem no mosteiro um trilho +feito, e o futuro certo, portanto está quite de cuidados que fóra d'ahi seguem +a pobreza, o trabalho, e até a riqueza, além das responsabilidades que a toda a +hora pendem dos actos de uma vontade livre, n'um viver sempre fluctuante.<span +class="pagenum">{<a name="pag_60">Pg. 60</a>}</span></p> + +<p>No mosteiro é tudo exemplos edificantes; e, posto que seja defezo ahi +grangear um amigo, em compensação não se adquirem inimigos.</p> + +<p>Nem impeços, nem disputas, nem conflictos, males que a liberdade produz, +sendo que a servidão lhes esmaga os embriões. No exterior é tudo recolhimento, +paz, ordem, silencio, e esforço; perturbações, se as ha lá, vem do intimo e do +recondito do nosso ser. O unico inimigo que ahi ha que recear é o diabo, tal +invisivel e impalpavel adversario que todos trazem comsigo, fracos e fortes, +mundanos e frades; porém tal inimigo perde no claustro boa parte das suas +prerogativas; porque alli não está elle como em sua casa, e no seu reino: +são-lhe menos os ministros, os vassallos, e os recursos. O recluso, afóra a +pessoal energia de que é dotado e lhe assignala a vocação, topa ahi de todos os +lados conselhos e amparos; e como quer que tenha em frente aquelle unico +inimigo, soccorre-se de mil auxilios, que faltam ao homem do seculo, e, máo +grado a sua fraqueza original, vence-os. Que fazemos pois n'este misero mundo +em que a infermidade nos algema? Ha aqui o rir, o chorar, o renhir, o disputar, +o abraçar-mo-nos, o odiarmo-nos, perseguirmo-nos, e o aniquillar-se o homem +contra homem: é uma reluctancia sem fim, e sem regra, um retinir de espadas, um +estrondear de martellos, de carros, de machinas, de cantares, de gemidos, um +cháos, uma desordem, da qual a clausura não poderia dar-nos sombra de idêa. +Aqui, são mil os objectos em que a alma<span class="pagenum">{<a +name="pag_61">Pg. 61</a>}</span> anda repartida; as diminutas forças que temos +dispersam-se. Acolá o inimigo identificado comnosco, traz escolta de +auxiliares, e a lucta interna de que ninguem se izempta, complica-se com as +luctas externas e inevitaveis. Cada homem tem de bater-se com uma legião. +Quantos cuidados! Quantos deveres! Quantas incertezas e anciedades! Quantas +encruzilhadas sem nome, sem pharol, sem sahida! Que poeiras, e que sombras!</p> + +<p>Considerae aquella mãe de familia a quem encareceis as virtudes da +carmelita.</p> + +<p>É pobre, todos os seus parentes são pobres, os filhinhos rotos, famintos, +quasi sempre doentes, o marido alquebrado do trabalho, ou que, desanimando, se +envileceu e a espanca, um patrão, um proprietario, credores, mestres, amos, +amigos, e que amigos! conselheiros, mas conselheiros de Job! Se tal mãe é rica, +tem uma casa que reger, creados a dirigir, os quaes nem fizeram voto de +pobreza, nem de obediencia; filhos a educar, sagrados interesses que defender, +relações que receber, um marido a contentar, quer seja honrado ou não, quer +seja piedoso ou impio. Com vontade ou sem ella está continuamente a braços com +as paixões alheias, com caprichos, interesses, vontades e affectos contrarios; +de continuo em face de circumstancias imprevistas, casos litigiosos e incertos, +onde lhe é forçoso resolver-se quando qualquer resolução é perigosa, não o +sendo menos os perigos, se se absteem. É preciso que ella, se quer salvar-se, +seja a um tempo<span class="pagenum">{<a name="pag_62">Pg. 62</a>}</span> +economica e caritativa; communicativa, mas discreta; umas vezes branda, e +outras inflexivel; expedita, mas reflexiva; previdente, mas conformada a todos +os sobresaltos da fortuna; que viva ao mesmo tempo em si, e nos outros, para +si, e para todos: missão indefinivel, cheia de contrastes, de atravancos, de +cruzes, mais ardua e mais difficil que a missão da freira.</p> + +<p>Digam embora que esta mãe de familia tem na sua miseria satisfações, +tranquillidade e jubilos que não goza a carmelita: depende isso de saber se os +jubilos de que fallam são comparaveis ás dôres que a freira ignora. De mais, +esqueceis que esses prazeres são um engodo e que se prendem n'elle sem o +conhecer, e se prendem tambem quando o conhecem. A saciedade, o desgosto, e o +cansaço são as naturaes barreiras da voluptuosidade. Chegará até ahi a mulher +christã? Não o permitta Deus. Até onde irá? É ponto mathematico que separa o +peccado do prazer licito; e, quando o limite se procura, onde fica elle já? +Raras vezes estamos a sós com a serpente como Eva no Eden, e a freira na cella. +Á mesa e em toda a parte ha quem vos distraia, seduza e arraste; bebemos sem +sêde; está a bocca repleta, mas os olhos famintos; o gozo que satisfaz a +precisão aguilhôa o desejo. Quem houver de parar a tempo na ladeira onde o +aventurarmo-nos é permittido, ha de ter mil vezes mais vigilancia, cuidado e +poder sobre si, do que lhe seria preciso para lá não pôr o pé. Conceder alguma +coisa á natureza é contiçar o fogo que quizeramos extinguir;<span +class="pagenum">{<a name="pag_63">Pg. 63</a>}</span> é alimentar o leão que +desejaramos estrangular. Das delicias menos carnaes, toucador, conversação, +emprego de teres e do tempo, é ainda mais desconhecido o limite, maior a +liberdade, e mais temivel a responsabilidade.</p> + +<p>Não me fallem de umas satisfações mentirosas que o terror empeçonha quando +se pensa n'ellas, e que o inferno corôa, quando se não pensa no inferno. Por +certo que é duro, mas o mais prudente é regeital-as. A abstenção é uma lei +simples, clara, e breve: é bastante que haja coragem para a praticar sobretudo +nos votos conventuaes. A freira, com o andar do tempo, afaz-se á lucta; +curva-se ao jugo; os sentidos privados de excitações amortecem, até que, por +fim, a coragem se torna tão inutil quanto lhe foi em todo o tempo inutil o +espirito de proceder. Mas, se a lucta intima se prolongasse, a freira para +evitar os desvios e as fugitivas rebeldias do corpo e da vontade, careceria de +ter até ao seu derradeiro suspiro o inferno diante dos olhos, o cilicio na +cintura, e o terror na alma. Assim é, mas que importa? Comparado aos +soffrimentos de uma mãe, o que é o cilicio de uma virgem? Quem ousará comparar +essas duas existencias? Comparar receios pessoaes com receios generosos? +Combates sem testemunhas a combates exemplares? Trabalhos infructiferos a +fecundos suores? E fallando sisudamente, e na melhor fé, se uma d'essas duas +pessoas devesse copiar a outra, não é de certo a mãe que deveria servir de +modelo? A irmã da caridade não é<span class="pagenum">{<a name="pag_64">Pg. +64</a>}</span> já de si mãe? E a esposa de José que trouxe em seu seio, e +nutriu com seu leite o Filho do Homem, e ao pé da cruz lhe recebeu o ultimo +alento, não foi ella, em sua amargura, a mãe adoptiva de João, o amigo +d'Aquelle por quem chorava?</p> + +<p>Que jactancia é essa então d'um desprendimento de affectos e vontades? Para +que querem insinuar em nossos lares taes inquietações, terrores e escrupulos, +unicas occupações do claustro? E para que é, em nome do ceo, sobrecarregar de +jejuns e abstinencias a jornaleira, a camponeza, a mãe, que já vacillam sob o +fardo do padecer e trabalhar?</p> + +<p>Vê-se que theologia e bom siso são coisas infelizmente contradictorias. +Vê-se que seria preciso abolir o inferno para que depois viesse a renuncia das +macerações, terrores e falso ideal que um claro entendimento reprova.</p> + +<p>Mas porque não se apaga o inferno? Extincto elle, brilharia o purgatorio com +luz mais viva e salutar. O inferno é que faz odiosa a liberdade, rebaixando-a e +vilecendo-a; o purgatorio volve-a estimavel, realçando-lhe bellezas, dignidade +e grandeza, sem lhe dissimular os perigos e as penas. Quem crê no castigo +eterno, enterra o talento para que o Senhor lhe não toque. Quem melhor conhece +o Senhor e sua justiça faz render cinco talentos em casa do banqueiro, +arriscando-se a perdel-os. O purgatorio actualmente de que vos serve? Dizem que +a pobre carmelita se abalança a lá arder milhares de annos, por causa de +algum<span class="pagenum">{<a name="pag_65">Pg. 65</a>}</span> secreto +estremecimento do seu corpo que ella tanto disciplinou; por causa do captivo +espirito que tão enfreado trazia, ou, emfim, á conta do coração generoso, cujas +pulsações tantas vezes abafára.</p> + +<p>O purgatorio deve aterrar principalmente a freira e os que vivem como ella; +ora os mundanos não tem razão de se affligirem, antes devem consolar-se, +pensando n'aquelle logar de supplicio. A nós, filhos do seculo, não nos é +racionalmente permittido aspirar áquella dolorosa felicidade, que é castigo dos +sanctos e o seu primeiro galardão ao mesmo tempo. Em vez, porém, de o desejar, +e desejar em vão, como nós o temeriamos, se elle fosse a unica estancia em que +se cumprisse a justiça de Deus! Que mudança se faria em tudo d'este mundo! A +perfeição e a salvação não estaria na ociosidade em joelhos, no terror em +oração, no fugir ao proximo, no entregarmo-nos a algumas privações e dôres +corporaes, arbitrariamente substituidas ás dôres e sacrificios de uma vida +proveitosa. Então se entenderia que ha dous modos de abusar de nossas +faculdades, uma que está no desprezo d'ellas, com receio de as usar +inconvenientemente; outra que consiste em nos servirmos d'ellas indiscretamente +e ao avesso das intenções da Providencia que nol-as deu.</p> + +<p>A doutrina do Evangelho não é doutrina de abstenção; é doutrina de acção: +causa porque o purgatorio lhe quadra melhor que o Evangelho. Carecemos menos de +frades que de christãos. Se o inferno refreia o mal, tambem impede o bem. A +ameaça seria<span class="pagenum">{<a name="pag_66">Pg. 66</a>}</span> salutar; +mas ella faz mais que ameaçar, empedra como a cabeça de Meduza quem a encara a +fito. Tende a supprir com uma especie de passibilidade estupida a livre e +intelligente actividade da alma. Não derime o egoismo, exalta-o a mais não +poder, e tal exaltação devidamente localisada no deserto, n'uma gruta, no +claustro, é medonha de vêr-se no seio das familias.</p> + +<div class="rodape"> +<p><sup><a name="L2356" id="L2356" href="#L2351">[4]</a></sup> Elles comparam +as irmãs da caridade áquella mulher de Bethania chamada Martha, a qual, vendo +entrar Jesus em sua casa, se deu pressa em lhe servir a ceia; e comparam a +carmelita á Magdalena que, em vez de ajudar Martha nas suas diligencias, lavava +e perfumava os pés do divino hospede, enxugando-os com os seus cabellos. Diz +porém o Evangelho que Jesus estava á meza quando Magdalena lhe abraçou e ungiu +de lagrimas os pés. Não ha palavra na relação dos apostolos, d'onde possamos +colher que é melhor orar pelos famintos do que alimental-os. O contrario é que +lá se diz; e quando Jesus nos faz assistir de antemão ao julgamento do dia +final, exclama: tive fome, e vós me alimentastes; tive frio, e me vestistes. A +scena de Bethania, e o louvor dado a Magdalena, não desluz o claro ensino do +Evangelho. Este episodio prova sómente que não basta alimentar os pobres, mas +que tambem é mister instruil-os como filhos de Deus, os melhores amigos de +Jesus, e sua visivel imagem na terra: o que rigorosamente fazem as irmãs da +caridade, e não fazem as contemplativas.</p> +</div> + +<h3>III</h3> + +<h4>Discurso de uma mulher de sociedade que havia tocado a perfectibilidade +theologica</h4> + +<p>De que serve amar-se a gente n'este mundo? Acaso nascemos uns para os +outros?</p> + +<p>Somos apenas companheiros de viagem que uma eventualidade ajuntou por +momentos, mas que breve se hão de apartar, e talvez para sempre. Prestemo-nos +de passagem alguns serviços, mas por amor de Deus, sem nos ligarmos +reciprocamente. Por que ha de a gente amar-se? Vós que me ouvis, sabeis quem +sou? E eu que vos fallo sei quem vós sois? Tendes um ar angelical, ó meu irmão, +mas o interior de vossa alma não o vejo; o semblante do homem é enganador; a +sua lingua é atraiçoada, as suas proprias virtudes são perfidas.</p> + +<p>N'este mundo é tudo armadilha e mentira. Que demencia o amar, quando, com +certeza, ninguem póde fiar-se d'outrem! Que injustiça querer um que o +amem,<span class="pagenum">{<a name="pag_67">Pg. 67</a>}</span> quando nem a si +mesmo se conhece alguem, e a cada hora se altera o genio, e ninguem póde fiar +mais da duração de seus sentimentos que da duração de sua vida! Viajamos +mascarados, só conhecidos de Deus, mas tão occultos a nós mesmos quanto aos +outros. A que propendemos? Mal o sabemos, tão fluctuante é a nossa razão. Se +melhor nos conhecessemos, a maior parte de nós se mutuaria rancores; em vez, +porém, de se odiarem, os homens se entre-buscam no seio das trevas, attrahidos +pelo mysterio que os innubla, e que devêra, se elles fossem discretos, +afugental-os uns dos outros.</p> + +<p>Ah! não nos amemos, não nos amemos! Ai d'aquelle que dá seus amores á +creatura! Ai dos que se amam sobre a terra! É sombra que abraça a sombra, é o +nada que se une ao nada. Amavel é só o bem: o restante é detestavel. Meu pai, +honro-te e sirvo-te, por que vai n'isso um dever meu, e porque podes ser, sem +que eu o saiba, um santo; amar-te, porém, não posso, porque, se n'este instante +morresses, ninguem me certificaria de que Deus te perdoára. Eu devo amar em ti, +sómente o bem occulto que ahi póde estar, e o amo em ti como nas outras +creaturas, sem predilecção por alguma; porque esse bem occulto não provém +d'ellas; e, se em ti existe—o que eu não sei, mas muito desejo—não +procede de ti. Não te julgo, meu pai. Se eu escutasse o sangue, creio que te +amaria até culpado, unicamente porque és meu pai, e eu me lembro de ter dormido +em teus braços. Mas estes<span class="pagenum">{<a name="pag_68">Pg. +68</a>}</span> momentos da natureza corrompida já eu venci. Nada me és. Tracto +da minha salvação servindo-te e honorificando-te; mas amar-te seria perder-me, +por que amar o homem em si mesmo é amar o peccado. Na outra vida não ha +maridos, nem esposas, nem paes, nem filhos, nem familia. Pais e filhos, mães e +filhas, irmãos e irmãs serão separados no dia do juizo, desatados todos os +vinculos. Não amemos ninguem, ninguem! Já póde ser que o inferno se esteja +escancarando para aquelle que amarmos, e quem sabe se nós não cahiremos lá +tambem empurrados pelo nosso amor? Nada de sentimentos cegos; nada de +sentimentos corruptores. A ternura do homem é um disfarce de odio; e mais +valera que elle nos odiasse francamente. Não amemos ninguem! ninguem! Póde ser +que por ao pé de nós andem condemnados, cujos nomes ignoramos. Não amemos +alguem, que nos não vá sahir algum reprobo.</p> + +<p>Sou tua serva, ó meu esposo; servir-te-hei, obedecer-te-hei; e para te +agradar o dever me forçará a cumprir o que me pedires do coração, que não é +teu.</p> + +<p>São doentes os nossos filhos? Por que te assustas? São hospedes que te foram +confiados, e que tu deves esperar vêr irem-se ao primeiro aceno de quem t'os +mandou. Eu que os trouxe no seio e os criei, vel-os-hei ir, sem lagrimas. Quem +sabe onde irão quando nos deixarem? Cumpria que lhes vissemos o fundo d'alma +para os amarmos. Praza a Deus que elles morram na sua divina graça! É o meu +mais ardente voto; e, se mais além eu fosse, a minha ternura seria +fraqueza.<span class="pagenum">{<a name="pag_69">Pg. 69</a>}</span> Se elles +vão ao céo, hei de eu chorar-lhe tamanha dita! E se são condemnados.... Não +amemos ninguem, ninguem, nem os nossos filhos sequer! Familia temos só uma: é +Deus com os seus anjos, e confessores e santos. Tudo mais não merece uma +lagrima nem um sorriso. Roguemos, por tanto, uns pelos outros, filhos do +peccado, mas nada de nos amarmos.</p> + +<h3>IV</h3> + +<h4>Discurso de um mundano, após bastos estudos ácerca da perfeição +theologica</h4> + +<p>Em continuo pavor do inferno viveram os santos: orações, jejuns, cilicios, +meditar nas escripturas, vigilias ao pé da cruz, bençãos de pobres soccorridos +por elles, perpetua immolação, indigencia de cella, ninhos de palha, alimento a +pão e agua, nem com tudo isto socegavam. Viviam como anjos, e temiam. Tremiam +guerreiros, padres, doutores, pontifices—Mauricio á frente da sua legião; +Gregorio, o Grande, sob a tiara; Agostinho, no pulpito; Jeronymo, em suas +estudiosas viagens; Antonio e Pacomio no reconcavo das penedias. Noites +alvoroçadas de pavor passava Thereza no claustro. Nem a innocencia da vida, nem +a adoravel castidade das almas, nem a tunica immaculada, nem as mãos +impollutas, nem o acerbo arrependimento dos penitentes, com o rosto sulcado de +lagrimas, nada, nada lhes aquietava o medo da colera divina. Redobravam<span +class="pagenum">{<a name="pag_70">Pg. 70</a>}</span> cada dia austeridades e +sacrificios, persuadidos de que não mereciam a misericordia que tão precisa +lhes era.</p> + +<p>Ah! se a alma só assim se salva, perdidos estamos todos, ó meus amigos!</p> + +<p>Bem ouço o theologo que nos diz: Não é assim; a salvação ganha-se com +menores trabalhos. Deus não exige que todos os seus filhos sejam egualmente +perfeitos. Mas ao theologo respondo: Estás perdido como nós, tu e tambem os +teus mestres, e os teus discipulos, estaes perdidos todos. Os exemplos que nos +cumpre seguir são os dos santos, não são os vossos. Mostrae-nos na Legenda um +só santo que subisse ao céo pelo caminho commodo que descobristes. Debalde hei +buscado, com fim de o imitar, um homem meio santo e meio peccador, servindo +Deus e o mundo, temendo, como eu, a miseria, a dôr, as humilhações, +condescendente comsigo proprio, almejando viver no coração de outra creatura, +chorando sobre as illusões esmaecidas como Pedro sobre o seu peccado. Não +encontrei tal homem. O mais que vi foi milagres de stoicismo, maridos que +deixavam as mulheres, mulheres que deixavam os maridos, filhos que fugiam ao +abrigo dos paes, ricos que todos seus haveres dispendiam, bispos que fallavam +verdade aos reis da terra, á custa da vida até; ninguem que se contentasse de +cumprir no rigor da palavra os preceitos de Deus e da Egreja; por toda a parte +almas ardentes de zelo super-natural, tendo apenas de humanas os incançaveis +escrupulos, os inquietos<span class="pagenum">{<a name="pag_71">Pg. +71</a>}</span> terrores; justos sem socego, penitentes sem repouso, virgens +lagrimosas e anachoretas angustiados.</p> + +<p>Vós, porém, que vos quereis salvar e salvar-nos com menos custo; vós, que +viveis regalados em quanto o Christo mendiga á vossa porta; vós que tendes +riquezas ao sol e riquezas á sombra, quando na vossa parochia tantas familias +laboriosas carecem do mais urgente; vós, que cubiçaes a estola, a murça ou +mitra; e achaes nas Escripturas louvores para outrem, além de Deus, oh! quanto +differentes sois d'aquelles heroes christãos cujas imagens campêam nos nossos +altares! Sois o que somos: haveis mais pavor das praticas dos santos que do +proprio inferno; espanta-vos e desespera-vos a perfeição d'elles; a pesar +vosso, amaes o que elles aborreciam, e aborreceis o que elles amavam; as vossas +virtudes são mesmamente humanas, taes quaes as nossas, que não vem do alto, que +se enroscam nos nossos vicios e nos acorrentam ao demonio.</p> + +<p>Ai! que perdidos estamos, ó meus amigos! Que lucramos em fechar os olhos? +Estamos todos condemnados! Que monta o desprezo proprio pregoado pelos labios, +se no intimo do coração tendes a propria estima sempre desvelada? Que +aproveitam as momentaneas conversões, seguidas de quedas mais desastrosas? Que +vos fazem certas privações associadas a tanto regalos? Em verdade vos digo que +estamos perdidos!<span class="pagenum">{<a name="pag_72">Pg. 72</a>}</span></p> + +<p>Ora pois, se assim é, se o abysmo está aberto e o cahir é irremediavel, +cerremos os olhos e não cogitemos mais em tal. Entre o céo inacessivel e o +inferno d'onde não ha mais sahir, resta-nos um momento só: gozemol-o, ó meus +amigos. Que é isto de estar a gente a empeçonhar, com terrores vãos, prazeres, +tão raros quão fugitivos? Não pensemos no que será; pensar n'isso e desesperar +é a mesma coisa: desesperar de entrar no céo, e desesperar de sahir do inferno. +Saboreemos o presente. Vivamos terrenamente: aqui ha creaturas ridentes que nos +alegram, fragrancias que nos deliciam, e licores que atrophiam a memoria.</p> + +<p>Quem é ahi o sandeu que falla em inferno? Não ha inferno, minha mãe! Conclue +em paz os teus dias extremos. Não contristes com visões pavorosas essas +creancinhas que te escutam, e que talvez falleçam antes de nós. Ride, ó meus +filhinhos: a vida vos será breve e repleta de miserias, quando crescerdes.</p> + +<p>Eu desejo, senhora, que a minha casa seja mansão de jubilos e não de tedios: +quero ser amado pelo que sou e não por caridade; quero ser obedecido +amorosamente e não com submissão de escrava; aliás, buscarei quem me ame, e me +corresponda. Engrinalda-te de rosas, minha bella! Não ha inferno, e o paraizo +tem-l'o ahi á mão. Enche-me o copo, e dorme placidamente nos meus joelhos. +Amar! amemo'-nos, até á morte; que da morte para além começa o odio!</p> + +<p>Ah! que bizarra invenção não foi esta do inferno! Um abysmo para onde +naturalmente nos inclinamos,<span class="pagenum">{<a name="pag_73">Pg. +73</a>}</span> attrahidos, impellidos por quanto ha, cahidos em fim, e depois, +o abysmo... fechado para sempre! Oh! primorosa perspectiva para que façamos da +terra uma estancia de delicias peccaminosas!</p> + +<h3>V</h3> + +<h4>O rebanho</h4> + +<p>Se não fosse preciso crêr na eternidade do inferno, e no pequeno numero dos +escolhidos, e na inevitavel condemnação da maior parte dos homens, eu odiaria +como vós os prazeres da vida; o sermão de Jesus na montanha se me figuraria +mais bello e intelligivel; eu entenderia a felicidade das lagrimas, as delicias +da pobreza e a doçura de todos os sacrificios.</p> + +<p>Quando, porém, se me diz que não é bastante haver chorado e soffrido muito +n'este mundo para ganhar o perdão divino; quando se me diz que nada vale +affrontar a ira dos tyrannos, defendendo, a verdade que os fere, ou o direito +que elles avexam; quando me dizem que nada monta morrer no patibulo pela +liberdade da patria ou no campo da batalha pela sua independencia; quando me +dizem não importa nada envelhecer na miseria por haver preferido a honra ás +honras, o estudo á opulencia, o trabalho aos prazeres; quando me dizem que tudo +isto é fumo, que estas dores, esta coragem, privações, heroica vida, heroica +morte, não podem resgatar minha alma d'um<span class="pagenum">{<a +name="pag_74">Pg. 74</a>}</span> peccado mortal, e aos olhos de Deus não valem +o cilicio d'um frade, ou a confissão de um salteador agonisante; ah! confesso +que, ao dizerem-me estas cousas em todos os pulpitos christãos, não entendo o +sermão da montanha, e pelo contrario começo a comprehender os prazeres d'esta +vida.</p> + +<p>Vêdes aquelles pescadores que em fragil barquinha vão arrostar as ondas do +oceano, e vogar, por dias, semanas e mezes, longe da praia, á mercê das +tempestades para ganharem, á custa de mil perigos, o pão de seus filhos?</p> + +<p>Vêdes aquelles telhadores na aresta do vigamento? aquelles mineiros +sepultados nas entranhas da terra, longe dos raios beneficos do sol? Vêdes o +lavrador curvado sobre o sulco? o pallido tecelão diante das machinas +devoradoras? tanto operario sem nome avergado ao pezo de um trabalho ingrato e +sem descanço? Pois a maior parte d'aquelles é condemnada, por modo que os seus +soffrimentos n'esta vida são preludios dos que lá os esperam na outra. Aquella +mãe que não póde vestir seus filhos, e que relança olhares invejosos ao palacio +visinho, onde os cavallos medram mais fartos que os filhinhos +d'ella;—aquelles mendigos que vagamundêam nos campos; os orphãos que se +recolhem aos hospitaes; os soldados que marcham para as fronteiras; os +proscriptos esquecidos no solo estrangeiro, condemnados, quasi todos +condemnados, meu Deus! Um repleto conego, risonho e bochechudo, sem familia nem +cuidados, repastando-se<span class="pagenum">{<a name="pag_75">Pg. +75</a>}</span> quatro vezes por dia, mas sem escandalisar ninguem, baixando a +vista em presença das mulheres, pontual nos officios, está mais visinho do céo +que todos aquelles desgraçados; e mais perto ainda do céo está um sancto +anachoreta. Chorar, soffrer, trabalhar não é nada. Se choram, não choram as +suas culpas, é a miseria dos filhos; se trabalham não é por penitencia, mas sim +para grangear commodidades. Lagrimas de Babylonia, diz S. Agostinho. Avidos +suores, vãs angustias! Muitos seculos ha que d'est'arte se lhes explica o +sermão da montanha, e elles nem o comprehendem nem jámais o entenderão. É bem +de ver que não vivem á maneira dos santos legendarios, nem dos conegos +prebendados. Os que sabem lêr pouco lêem, á falta de tempo. Muitos não vão á +egreja, e os que lá vão sahem como entraram. São profundamente ignorantes. A +dura necessidade dobrou-lhes a cabeça sobre o torrão que regam com o seu suor; +e a natureza, que lhes brada das entranhas da terra, diz-lhes cousas que elles +percebem mais a preceito que os sermões. O estridor e o vapor das materias da +sua obragem cega-os e ensurdece-os. Não sentem fome nem sêde da palavra divina, +qual lh'a ensinavam algum dia. Digam-lhes que um eremita vae melhor do que +elles, por que abandonou officio, casa e parentes, e todo se vagou á salvação +da alma, e que ha vinte ou trinta annos resa, jejua e se disciplina, dizei-lhes +isto que elles vos desfecharão uma gargalhada; mas, se ao mesmo tempo passar um +soldado de bigodes brancos, ou<span class="pagenum">{<a name="pag_76">Pg. +76</a>}</span> algum recruta aleijado em Africa ou Italia, ou algum repatriado +do desterro, em vesperas de para lá voltar, se a occasião o exigir, elles o +saudarão respeitosamente. Que appareça um velho sem occupação, uma viuva com +filhos maltrapidos, e elles se fintarão para soccorrêl-os. Contae-lhes casos de +bemfazer e lanços de gratidão, vêl-os-heis commovidos. As virtudes d'esses +infelizes são, para assim dizer, selvaticas, probidade orgulhosa, amizades +humanas, mas apuradas até á abnegação, instinctos lucidos do que é grande e +formoso, mas formoso e grande pela craveira das coisas d'este mundo. De par com +isto ha falhas, e até crimes. Impacientam-se, praguejam, largam a redea aos +desejos, porque, no seu modo de pensar, se não ganham, tambem não perdem. Vivem +á beira das charruas, das córtes, das forjas, e nas abegoarias. Este viver +influe-lhes na linguagem e nos costumes. Não têm alma que se ale longo tempo e +ao alto sem que as azas lhe falleçam: é que pezam n'ella os cuidados +terrestres. Ventilam problemas que não podem resolver. Desconsolados do seu +destino, perguntam porque ha ricos e pobres, e porque, no outro mundo, serão +condemnados, depois de tanto haverem trabalhado e gemido n'este?</p> + +<p>O inferno não os apavora muito mais que a morte. Affizeram-se desde a +infancia á vaga idêa de que hão de ser condemnados, seguindo a trilha commum da +vida; todavia, apezar do proposito feito, nem por isso um terrivel pezo deixa +de lhes aggravar o fardo das<span class="pagenum">{<a name="pag_77">Pg. +77</a>}</span> dôres quotidianas. O sino que dobra, o sahimento que passa, o +doente que vae para o hospital, o pedreiro que cae da parede, o obreiro +apertado entre o encaixe de uma roda e triturado nos dentes d'ella, os +terraplenadores sotterrados nas saibreiras aluidas, os marinheiros comidos +pelas vagas, o typho que devasta um bairro inteiro de operarios, mulheres sem +maridos, paes sem filhos, filhos sem mães, tudo isto por vezes lhes relembra o +Deus rancoroso que lhes prégam, e as surprezas da morte, e os perigos de sua +precaria existencia, e com as miserias que findam outras que principiam, para +nunca mais acabarem. Este povo assim é como um rebanho que se leva ao +matadouro, aguilhoado pelos pastores, lacerado pelos cães, atormentado pelas +moscas, cançado, sanguento, sequioso, abatido, estupido.</p> + +<p>Compadecei-vos, pois, d'esses que nunca vos darão bons ermitões. Não ha, por +ventura, um ideal mais aceitavel e ao mesmo tempo mais puro que lhe mostreis? +Não ha senão esse a que aspira o ente sem familia, sem ligações e cuidados +d'este mundo? Se, ao menos, podesseis annunciar-lhes a justiça de Deus sem os +assombrar! Não são já de si que farte mysteriosas e raladoras as dôres d'esta +vida? Não será de mais rematal-as com o terribilissimo mysterio do inferno? +Pois se tendes a certeza que serão condemnados no trem de vida que levam, +deixae-os respirar, e beber, e rir e dançar, em quanto o animo e tempo lhes não +faltam; que a desesperação poderá leval-os a peores excessos.<span +class="pagenum">{<a name="pag_78">Pg. 78</a>}</span></p> + +<p>Ó pobre genero humano! Será preciso que o Christo desça segunda vez do céo +para te instruir, e que outra vez seja vindo e crucificado para salvar-te?<span +class="pagenum">{<a name="pag_79">Pg. 79</a>}</span></p> + +<h2>CAPITULO QUARTO</h2> + +<h4>OUTROS FRUCTOS DO INFERNO</h4> + +<h4>O mal que produz o inferno.—Incredulidade, desalento, +desesperação</h4> + +<p>Esquadrinhando o bem que procede do inferno, já divisamos o mal que produz. +Bem negativo e limitadissimo; mal positivo mas profundo, extensissimo, apenas +por em quanto entre-vimos. Faz-se mister examinal-o mais pelo miudo. Não +perderemos o tempo.</p> + +<p>É facto incontestavel que a maior parte dos homens se occupa menos de céo e +inferno que das precisões, interesses, prazeres e dôres da terra. A Egreja o +confessa admirada e lacrimosa. Por que se admira? Que remedio senão ser assim? +Pois acaso póde toda a gente retirar-se ao deserto? Pois todo o encanto da vida +se apagou? Os direitos da natureza foram abolidos?</p> + +<p>Na sociedade cuja moral se funda sobre o medo<span class="pagenum">{<a +name="pag_80">Pg. 80</a>}</span> das penas eternas, todo movimento paralysaria, +se instinctivamente, e por necessidade de viver, não viesse o esquecimento +d'esse tremendo futuro. A esperança do ceo não bastaria a contrabalançar os +effeitos de tal susto, mormente quando nos affiançam que a porta do ceo é +estreita, e que o inferno tem milhares de portas sempre abertas. Á medida que +esta crença se incutir nas turbas, assim ellas hão de lidar por esquecel-a, +abafando-a no seio, sem querer sequer meditar n'isso. Quanto mais pura, +exigente, austera e angelica fôr a vossa moral, tanto mais impraticavel vol-a +hão de considerar; e, se a fundamentaes no inferno, fechar-se-hão os ouvidos ao +vosso apostolado, e ninguem quererá sequer aproximar-se d'aquella perfeição +immaculada, que sómente florece em estufas claustraes, que se desbota ao leve +bafejo do homem, e só está ao alcance de ociosos.</p> + +<p>Se no inferno tão sómente fossem castigados certos crimes monstruosos e +excepcionaes, mas claramente definidos, taes como o assassinio, o incesto, o +estupro, poder-se-hia ainda examinar a justiça de tão exorbitante penalidade: +ao menos cada qual sabia quando lhe era applicada a pena. Porém, se vão ás +chammas eternas o aváro, o glotão, o preguiçoso, o prodigo, o orgulhoso, o +invejoso, o impaciente, o maledico, o voluptuoso, o incontinente, o ambicioso, +o calumniador, o usurario, o mentiroso, o hypocrita, o lisongeiro, o ingrato, o +philosophante, o rebelde, etc., etc., etc., congela-se o sangue nas veias; +ninguem<span class="pagenum">{<a name="pag_81">Pg. 81</a>}</span> ousa vender, +comprar, emprestar, traficar, fallar, pensar, beber, comer, respirar; por +quanto, quem sabe onde começa a avareza? o orgulho? e a lisonja, +reverendissimos senhores, onde começa a lisonja? e a usura? e os limites da +temperança quem os abalisou? Occasiões, tentações e perigos em tudo!</p> + +<p>A questão não é saber se ahi ha crimes hediondos e puniveis: ninguem nega +que os haja;—o que se tracta é de saber se é racional e discreto, e se os +bons costumes lucram, que nos ameacem com eternos castigos, por peccados que +mal podem definir-se. Quem ha ahi isempto de seu tanto ou quê de orgulho? Quem +se presume bastante sobrio, bastante comedido nos prazeres licitos, menos +egoista em suas legitimas affeições, menos desinteressado em seus lavores e +mercantilismo, bastante paciente nos revezes e resignado nas desgraças? Quem se +crê assaz justo, caritativo e perfeito? Ao parecer dos theologos, uma tal +presumpção seria peccado capital, até nos conventos, até para os anachoretas +envelhecidos em abstinencias e orações. Ninguem sabe ao certo o momento, o +ponto em que um acto licito descahe no illicito; que dóse de alimento quadra á +sua saude, e onde no rico principia o superfluo, que é o necessario do pobre. +Para que vem seis pratos á meza? Se um basta, para que são dois? A regra onde +está?</p> + +<p>Cautela! esse copo que chegaes aos beiços risonhos, em vez de vos apagar a +sêde, vae abrazar-vos em sêde eterna. Cautela! Theologo nenhum poderá<span +class="pagenum">{<a name="pag_82">Pg. 82</a>}</span> dizer-vos exactamente o +que vos cumpre dar, o que vos cumpre não dar; e o caso é que, se vos enganaes +com tal incerteza, folga o diabo. Um padre da Egreja, um papa, um santo, +Gregorio o Grande, não disse que Deus nos arguiria de peccados que antes de +morrer não conhecemos?</p> + +<p>Estas e outras mais terriveis cousas podeis lêr no <em>Quotidiano do +Christão</em>, livro approvado e recommendado por todos os bispos, e que anda +em mãos de creancinhas. Portanto, verdadeiras ha só duas cousas: a condemnação, +se nos enganamos, e a abstenção para nos não enganarmos.</p> + +<p>Mas a abstenção não é viver. Viver é a actividade inteira, incessante, e +arriscada a peccar. É lei do genero humano viver e perpetuar-se. Não nega, mas +esquece os dogmas oppressores que lhe pesam na alma, e a cada passo lhe apontam +aberto um alçapão do inferno. Vivem os homens n'uma especie de indifferença +religiosa que os avilta, movidos unicamente por suas paixões, e apenas +enfreados pela justiça temporal. Fóra com isso do futuro! fóra com remorsos! +Fechemos olhos a todos os clarões, e os ouvidos a todos os rumores do outro +mundo, e concentremos n'este a nossa inteira vida, todos os desejos e +pensamentos.</p> + +<p>É effeito imprevisto, porém real, d'esta medonha crença induzir ao +materialismo, não theorico, mas pratico, a maior parte dos que não leva ao +ascetismo: attasca na lama os que não transvia nas nuvens; faz que se rojem +durante o dia breve da existencia, grandes<span class="pagenum">{<a +name="pag_83">Pg. 83</a>}</span> e pequenos. Os philosophos accusados d'este +miseravel estado das almas, estão innocentissimos: não ha em tudo isso faisca +de philosophia; raciocinio é coisa que ahi não vislumbra. O instincto é que +desde tempos esquecidos, e não de ha pouco, nos propendeu áquelle cego +materialismo: é a necessidade de arrostarmos com uma crença mortifera; é a vida +que resalta d'entre as mãos desvairadas que intentam comprimil-a, e d'este +desbordar de toda a fórma surdem os excessos.</p> + +<p>Já não lhes abasta esquecerem o inferno. Quem o esquece são os fracos; os +fortes vão mais além: escarnecem-no. Anda já por ahi o diabo cantado, e do +mesmo feitio o inferno, e o céo com os seus moradores. E de taes canções +vendem-se tantos exemplares como dos <em>Canticos de S. Sulpicio</em>: +antiquissima impiedade, de que ha vestigios, não só na Grecia pagã, mas tambem +nas fabulas da edade média, e até nas paredes das vetustas cathedraes onde os +artistas zombeteiros esculpiram, ha mais de seiscentos annos, o +<em>Inferno</em> de Béranger. A ironia mascarava-se então com tregeitos +beatificos; o impudor, porém, não se disfarçava nem se constrangia.</p> + +<p>Os lamuriantes da edade média talvez digam que, apezar das galhofas +audazmente esculpidas nos portaes e córos das egrejas, esses antigos +imaginarios criam no inferno, e que, no leito da morte, não foliavam, tremiam; +que os fabulistas tambem tremiam, e que os castellãos e castellãs, plebe e +burguezia, quantos se<span class="pagenum">{<a name="pag_84">Pg. 84</a>}</span> +haviam regalado com as taes caricaturas, tremiam tambem. Sim, meu Deus, é +verdade. Mas circumvagae a vista, e dizei-nos se, a tal respeito, a sociedade +mudou. A mesma educação religiosa não produz continuamente identicos +phenomenos? Acreditam no inferno os epicuristas, os trampolineiros, os +usurarios, os prodigos e os ladrões, os famintos e os repletos, os invejosos e +os ingratos, os indifferentes e os chasqueadores? No intimo da alma guardam +elles as superstições das amas: que farte o denotam na vida, e principalmente +na morte. Em quanto são moços, ageis, febris de saude e esperança, repulsam uma +crença que lhes tornaria maldita a mocidade, a saude, a força, a razão de todas +as dadivas do céo. Quando caducam, infermam e agonisam, espantam-se de haver +ardido em desejos que já não tem, e haver motejado praticas que se lhes agora +figuram facilimas. É chegada então a hora e situação conveniente para intender +a moral do inferno, que é a privação em tudo e por tudo,—a morte na +vida.</p> + +<p>Singular crença que não infrêa o maior numero de homens, quando o freio lhes +é mais preciso; e quando o retêl-os é já inutil, e mais necessaria lhes seria a +esperança, então, á entrada da sepultura, lhes sahe espantadora! Levado por +ella vae o anachoreta ao suicidio, e o mundano ao embrutecimento. Esteril em +verdadeiros dons, fertil em verdadeiros males, a crença no inferno bestialisa, +desalenta, desespera, endurece. Melhor é esquecel-o á maneira das turbas,<span +class="pagenum">{<a name="pag_85">Pg. 85</a>}</span> que pensar demasiado +n'ella, que tanto monta sentir vertigens, sentir estontecida a cabeça á roda +d'esse abysmo que vos attrahe e sorve. Mais algum prazer ou menos, defendido ou +não, que faz? Lá no inferno não estaremos melhor nem peormente; a eternidade +não terá hora menos ou hora mais. Constrangermo-nos para quê? Não ha termo +medio entre o bem e o mal absolutos. Tudo que é humano é mau: é forçoso ser +anjo ou demonio: seja-se diabo, que é mais comezinho. Vêde-me uns frades, +padres, devotos, freiras, que a desanimação avassalou: não ha peores +peccadores; rolam cada vez mais ao fundo, e vão-se consolando com as delicias +que topam na sua queda. Um peccado de menos, que é na conta que hão de dar? +Chegados a tal extremidade, qualquer boa acção lhes será vã. Como não podessem +abster-se de tudo, os desgraçados já agora não se abstem de nada. Esta +desesperada crença precipita-os abaixo do homem. D'ahi tem surdido mais +libertinos que ermitões, mais blasphemos que santos, mais loucos que ajuizados; +e, em verdade, é mister que o christianismo entranhe vivacissimos embriões, +esplendorosissimas luzes, e poderosissimas verdades para resistir, como ha +resistido, á influencia de taes doutrinas.</p> + +<p>Tirae-nos, por favor, esse inferno tão fatal aos que o recordam como aos que +o esquecem. É verdade que teremos menos monges com o purgatorio; mas teremos +mais christãos. No purgatorio será util pensar, comprehender-lhe a justiça, e +sentir-se o homem melhor,<span class="pagenum">{<a name="pag_86">Pg. +86</a>}</span> ainda a pesar seu; se é facil sacudir o jugo de uma revelação +sobrenatural e inintelligivel, por mais beneficente que ser possa, não é facil +desprendermo-nos de idêas excellentes e razoaveis, por mais importunas que nos +sejam.<span class="pagenum">{<a name="pag_87">Pg. 87</a>}</span></p> + +<h2>CAPITULO QUINTO</h2> + +<h4>OS CINCO GRUPOS</h4> + +<h4>Divisão da sociedade em cinco grupos</h4> + +<p>Examinemos as coisas mais á beira. A sociedade não é toda formada de uma +peça. Divide-se naturalmente em differentes grupos no discutir de seus +interesses em este e no outro mundo. Religiosa e moralmente observada, podêmos +dividil-a em cinco grupos.</p> + +<p>1.º O grupo dos philosophos, ou livres-pensantes como hoje se +chamam—sugeitos que systematicamente regeitam a revelação, e por +consequencia o inferno sem fim; todavia, desinteresseiros, estudiosos, graves e +tractaveis com honra e confiança.</p> + +<p>2.º Longe d'estes a infinita distancia, e sem sombra de liga com os +philosophos, está o grupo dos biltres professos, individuos relaxados, bandidos +convictos, corruptos, desesperados.<span class="pagenum">{<a name="pag_88">Pg. +88</a>}</span></p> + +<p>3.º Entre aquelle grupo de espiritos selectos e o das almas depravadas, mas +entre si equidistantes, está o grupo immenso e indecomponivel dos +indifferentes, dos tibios, dos duvidosos, dos espiritos futeis, dos espiritos +inertes, dos espiritos acanhados, dos fura-vidas, dos pachorrentos—turba +sem piedade nem philosophia, sem prática de casta alguma, vivendo de seu +trabalho, das suas rendas ou officios, mais ou menos descançados—guardas +nacionaes, jurados, eleitores, conselheiros de districto, e o mais. Estes são +uns christãos que só vão á egreja quando ha enterro, casamento ou baptisado, ou +ainda em dias de <em>Te Deum</em>, quando a posição official os obriga.</p> + +<p>4.º Ao lado e um tanto superior a este, está o grupo menos numeroso dos +devotos; não dos hypocritas, que se ha de classificar no dos patifes, mas dos +esforçados em praticar e que praticam, assim, mas com desinteresse, os +mandamentos de Deus e da egreja. Estes vão á missa nos domingos, confessam-se +ás vezes, e dão do seu gremio as irmandades e as confrarias.</p> + +<p>5.º Finalmente, o admiravel grupo dos justos, dos perfeitos christãos, dos +santos, dos continuadores e verdadeiros imitadores da vida de Jesus.</p> + +<p>Vejamos se o dogma das penas eternas aproveita ás pessoas que formam +aquelles differentes grupos.<span class="pagenum">{<a name="pag_89">Pg. +89</a>}</span></p> + +<h3>I</h3> + +<h4>O grupo dos philosophos</h4> + +<p>Os philosophos crêem em Deus, crêem na liberdade e immortalidade da alma, na +justiça, em todas as noções moraes derivativas d'aquellas primaciaes verdades. +Em revelações sobrehumanas é que não acreditam.</p> + +<p>Ora, ameaças de inferno converterão tal gente? De quantos mysterios +regeitam, o inferno é o mais incrivel; e tanto que irrita a propria fé, que, só +abdicando o uso da razão, se submette. Dos philosophos não ha que esperar +similhante sacrificio.</p> + +<p>Se o dogma do purgatorio vos aproxima d'elles, o inferno, barreira que vos +separa de tudo que raciocina, alonga-os de vós.</p> + +<h3>II</h3> + +<h4>O grupo dos corruptos</h4> + +<p>Que lucram as pessoas de bem que esses patifes creiam no inferno? Está com +isso a sociedade mais segura? E tal crença de que lhes serve a elles? O que os +incommoda não é o diabo, é a policia; inquieta-os mais o degredo que o +inferno.</p> + +<p>Vá lá!—dizem elles—venha o inferno que não<span +class="pagenum">{<a name="pag_90">Pg. 90</a>}</span> nos ha de faltar boa +camaradagem! Quantas pessoas toparemos lá d'umas que n'este mundo se +empavonavam todas, e não queriam rossar-se por nós! Havemos de vêl-os lá, mais +apoquentados e castigados do que nós, esses patetas condemnados por pensamentos +e palavras, por coisa nenhuma. Quanto á pessoa d'elles, tanto monta como a +nossa, pois que hão de ser tão condemnados como nós. Não ha dois infernos, +parceiros; ha um. Lá nos esbarraremos com capitalistas, com fidalgos, com +duquezas, com comicas. Andaremos á ilharga dos juizes, dos quadrilheiros, dos +escrivães, dos jurados e melhor ainda—viva a patuscada!—com +deputados, com camaristas reaes, com bispos, com abbadessas, com principes e +princezas, reis e rainhas. Venha o inferno! é tentador lá ir com tal sucia.</p> + +<p>Tal é o raciocinio dos desalmados e a influencia que tem sobre elles aquella +extravagante justiça, que nenhuma proporção gradua entre delictos e crimes, +condemnando para sempre quem peccou uma hora, e o scelerado de toda a +vida.<span class="pagenum">{<a name="pag_91">Pg. 91</a>}</span></p> + +<h3>III</h3> + +<h4>O grupo dos indifferentes, etc.</h4> + +<p>Estas pessoas cuidam em ser felizes com o auxilio da honestidade; pelo quê, +se abstem do mal que o codigo define. Pelo que respeita aos sete peccados +mortaes, não se preoccupam d'isso. Dizer que todos sejam invejosos, avarentos, +luxuriosos, e o mais, seria mentir. N'esse innumeravel grupo abundam +negociantes honrados, meninas castas, esposas fieis, pobres sem inveja, +ignorantes modestos, ricos bemfazejos, e muitas abelhas para cada zangão; mas +perfeito ahi não ha ninguem; ninguem ahi vive em graça; o melhor do rancho é +aquelle a quem Deus, no dia do juizo, só accusar de ter violado sem escrupulo +todos os mandamentos da Egreja. Mas, com esse só peccado na consciencia, o +melhor do rancho será condemnado.</p> + +<p>Se o roubo e o homicidio são raros n'essa assemblêa, não procede isso do +medo do inferno. Ahi é bastante motivo para condemnação uma folha de papel +escripta, um «sim» apenas balbuciado e ouvido, um lance d'olhos, uma flor +murcha, e essa, onde entra amor—amor no peccado, meu Deus!—é de +todas as condemnações a que mais piedade desperta. Porém, n'esse immenso +circulo, onde tudo pecca, cada qual se condemna á sua vontade: um por fastio; +outro por vaidade, este por curioso, aquelle por pusillanime; condemna-se<span +class="pagenum">{<a name="pag_92">Pg. 92</a>}</span> um por um casal, outro por +uma venera, por um acepipe, por um prato de lentilhas, por um penacho, por uma +fitinha, por um trapo, por trinta contos, por trinta reis. Condemna-se este a +trabalhar, aquelle a passear, um a comer, outro a jejuar, a ler, a dansar, a +palestrar, a meditar, a vestir, a despir, desde a aurora até ao escurecer, +desde a noite até ao dia, todos se condemnam a bel-prazer.</p> + +<p>Distinguem-se lá os peccados que Deus pune indistinctamente. Permittem-se os +que Deus castiga até com eternas penas, quando é elle só quem pune; recua-se, +porém, dos que Deus castiga e a sociedade tambem. Não se diga pois que o +inferno atalha os crimes dos indifferentes. Tambem ahi é manifestamente esteril +similhante crença. O que se teme é o vigia, a patrulha, o commissario da +policia, essas personificações vulgares, mas terriveis da opinião e da lei. +Temem-se as algemas, o carcereiro, a masmorra, e ainda mais á mistura com os +scelerados. Por muito dura e inevitavel que se figure, a pena material não os +conterá sempre quando a paixão os esporêa. Do mesmo modo que affrontam o +inferno, affrontariam a cadêa e até a forca, se a forca estivesse ás escuras; +porém a vergonha, o estrondo da queda, é para o maior numero a pena +intoleravel. Seriam capazes de desafiar carrascos e diabos; e não ousariam +encarar o desprezo do amigo, do visinho, do estranho, do transeunte, do +mendigo; não lhes faz grande mossa a ignominia diante de sua mãe ou de seus +filhos, e tremem de se vêr baralhados com<span class="pagenum">{<a +name="pag_93">Pg. 93</a>}</span> creaturas devassas que são máos sem +repugnancia, e medram no mal como em seu nativo elemento.</p> + +<p>Ha d'elles, porém, que se forram ao mal, contidos por sentimento ainda mais +nobre que o medo da opinião. Esquivam-se, não do peccado mortal, mas do +maleficio que a sociedade civil pune ou reprova: afasta-os d'isso com asco um +natural sentimento, sem esforço. Educação e habitos fortaleceram esses bons +instinctos. Não são perfeitos, mas são probos, sinceros, generosos, capazes de +grandes sacrificios occasionalmente. Com certos deveres nunca especulam. +Denotam que a si se respeitam, que a propria estima se lhes faz precisa, ainda +mais que a da sociedade, facil de transviar-se. E bem que não sejam philosophos +nem devotos, sentem vivamente a dignidade de seu ser. É certo que este sentir +lhes seria mais delicado e firme, se abrangessem as perspectivas da vida +futura, em vez de concentrar-se cá; mas é forçoso aceitar os indifferentes +quaes são; e tanto entre os peores como entre os melhores, a vida futura não é +movel nem empêço: é uma coisa esquecida.</p> + +<h3>IV</h3> + +<h4>O grupo dos devotos</h4> + +<p>Será medo do inferno que impede os devotos de matar, de roubar, de se +retoiçarem, como javardos, no lamaçal dos sentidos? Crer-se-ha que elles de +per<span class="pagenum">{<a name="pag_94">Pg. 94</a>}</span> si sejam +insensiveis á honra, ao opprobio, e aos mais freios moraes e nobres estimulos +que regulam a ordem e andamento das sociedades temporaes? Ririam elles das +galés e até da forca? Seriam elles, em verdade, infames da ultima ralé, se não +receassem a condemnação?</p> + +<p>Se ha ahi tal raça de christãos, confesso que eu não confiaria d'elles nada, +nem a minha bolsa, nem minha mulher, nem o meu segredo, nem eu mesmo +adormeceria socegado entre elles. D'um scelerado a um devoto d'esta laia a +distancia é tão curta que os meus pobres olhos não na enxergam. Dizem que ha +uns pessimos soldados que, á vista do inimigo, olham para traz e só marcham +para a frente com a bayoneta nos rins. E, se os não vigiaes, eil-os que +desertam; e, até quando se batem, albergam a perfidia no coração. Pois bem: +aquelles devotos são peores que os soldados tredos, por que destemem os homens +e os juizos humanos, e os supplicios que os homens inventaram. O que elles +sómente receiam é o fogo eterno, uma pena á qual se foge mediante a confissão. +Ageitado o ensejo, roubam-vos, atraiçoam-vos, matam-vos, com a certeza de serem +absolvidos occultamente, por uma <em>mêa culpâ</em>. Desgraçadamente é certo +que a crença no inferno ha gerado monstros assim; a europa barbara tem milhares +d'elles; ha bastantes para lá dos montes, e bem póde ser que mesmo cá; senão +vejam aquelle devoto padre, cuja historia as gazetas contaram ha pouco: era um +padre que matava todos os<span class="pagenum">{<a name="pag_95">Pg. +95</a>}</span> seus filhos no berço para se forrar ao incommodo de os crear; +mas é provavel que os baptisasse, com o receio de que se perdessem. Eu de mim +não quero chamar christãos, nem sequer homens, a taes feras. Deus nos livre de +encontrar similhantes christãos em uma serra por noite de luar.</p> + +<p>A honestidade d'estes meus devotos custa-lhes pouco; são creaturinhas que +podem ver a felicidade dos outros sem sentirem cocegas de lh'a empalmar; não +roubam nem matam por que a forca os embaraça, e a opinião dos homens ainda +mais; pessoas, em fim, que tem mais mêdo ao crime que aos castigos +correspondentes. Taes são os meus devotos. Devotos denomino eu todos os leigos +que não duvidam, nem são indifferentes, nem se esquecem de ir á missa, nem +deixam de confessar-se <em>ao menos uma vez cada anno</em>. É verdade que eu +não os incampo a ninguem como anginhos já cosinhados para a canonisação. Se +elles não andassem por igrejas com tanta regularidade, não sei bem como +estremal-os, quanto ao seu proceder, do bando dos indifferentes. Não são elles +os derradeiros a informar-se d'onde sopra o vento, onde aquece o sol, e onde +está o idolo do dia para o saudarem, nem tambem são os ultimos a apedrejar o +idolo da vespera. Quantas villanias sobre-douradas e quantas villanias bem nuas +e patentes lhes não attrahem as barretadas, e os cumprimenteiros sorrisos! Como +elles se curvam deante do que desprezam! Que impio acatamento prestam á força, +e até, com medo de se enganarem,<span class="pagenum">{<a name="pag_96">Pg. +96</a>}</span> ás apparencias da força! Que vulgares mexericos, que vulgares +ambiçõezinhas, que exemplarissimas ingratidões!</p> + +<p>Não os accuseis de hypocritas, que elles são sinceros, não fazem momices, +vão ás procissões com a melhor boa fé, assistem ás festas do Mez de Maria, tem +rosario, agnus-Dei, e penduram no pescoço medalhinhas de cinco reis carregadas +de indulgencias. E, assim mesmo apezar da sua boa fé em medalhas, é bonito +vêl-os, em sua casa, evitar o escandalo com melhor exito, e mais vigilancia que +o peccado. E nem assim o evitam. Se sois curiosos, apanhai-m'os no ultimo +degráo da escada, ahi por perto do altar: vereis o conego ás más com o deão; o +sineiro bate na mulher; o sacristão tem má lingua; um juiz de irmandade casa a +filha violentada com um velho, e dá cabo d'ella; outro, á sobre-meza, faz-se +truão de chalaças de ebrio; e é de natureza tal, que a mulher por certas razões +não admitte em casa creadas que não tenham edade e figura bastante canonicas, +capazes de edificarem um mosteiro de bernardos; lá está um que é rico, mas +economico, e d'isso estão os pobres tristemente convencidos. Ora, a esses +peccados habituaes ajuntem, se quizerem, os peccados de occasião, e digam-me +como se distinguem, por suas obras, o commum dos indifferentes do commum dos +devotos.</p> + +<p>Quereis subir ao primeiro degráo da escada? Luiz XI era devoto; Diana de +Poitiers era devota; Brantôme devoto era; tambem era devota aquella +regente<span class="pagenum">{<a name="pag_97">Pg. 97</a>}</span> de França que +empregava as suas damas a seduzir, quero dizer, a converter os jovens huguenots +e os velhos tambem. Todo o seculo XVII foi devoto, incluindo os cavalleiros +farçolas, os bandidos, os abbades galans e os abbades demoniacos, os aváros e +os glotões, os orgulhosos e os abjectos, as marquezas adulteras e os duques +medianeiros, os magistrados venaes e as princezas aventureiras. Todos esses +tinham bancada na egreja, iam aos sermões e discutiam ardentes sobre a materia +da graça. Os amantes arrufavam-se na quaresma e faziam as pazes depois de +Pascoa. Madame de Montespan, na côrte, cuidava em salvar-se, e ninguem quizesse +obrigal-a a comer, á sexta feira, uma aza de borracho; o que ella então comia +era salmão, lagostins, esperregado e pastelinhos de leite. Madame de Sévigné, +uma das mais honestas e amaveis senhoras d'aquelle tempo, tambem devota, lia os +<em>Contos de La Fontaine</em>, e ficava-se a rir com elles e mais a filha. O +inferno era como se nada fosse n'essas coisas. Quem desgraçadamente pensava +muito n'elle, enterrava-se no claustro, como Mr. de Rancé e M.<sup>elle</sup> +de La Vallière; mas, pelo ordinario, havia pouco quem se debruçasse a espreitar +o tal abysmo; e quem se desse a esses exames sahia impertinente, misanthropo e +jansenista. Fallava-se do inferno; mas sem reflectir grande coisa; encaravam-no +pela casca. O grande caso era rir, cortejar o rei, agradar a todos, inclusivè a +Deus, dando-lhe a vêr com infinita habilidade, espectaculos de devoção, de +jogo, de ambição e... do mais.<span class="pagenum">{<a name="pag_98">Pg. +98</a>}</span></p> + +<p>O tempo e as revoluções que tantas mudanças tem feito, não mudaram o coração +humano. Os devotos não são tantos como d'antes, mas são da mesma estôfa, e +tanto montam estes como os outros, vistos a vulto. Relaxação extrema em +fidalgos e populaça; sêde ardentissima de enriquecer; sordidissimos orgulhos; +amores desatinados; paixões eriçadas de remordentes espiritos e blandiciadas de +prazeres! Deus me defenda de calumniar peccadores a cheirarem ao incenso das +igrejas! Bourdaloue, que os conhecia, e os demais prégadores assim antigos que +modernos, disseram d'elles mais mal do que eu. O que sei é que o medo não faz +bons aquelles que o bem, só de per si, não convida. O pejo do peccado poderá +restaurar os cahidos; mas o medo, depois do peccado, é de todo o ponto +inutil.</p> + +<p>Não esqueçamos, porém, que ha devotos quasi irreprehensiveis, os quaes, sem +serem heroes nem se destinarem a tanto, cumprem, sem desfallecer, a modesta +missão que lhes quadra sobre a terra. São bemfazejos em pequena escala; +restringem-se a pouco mais de sua casa; quanto muito, chegam até á visinhança; +e, se por vezes, a mão caridosa ultrapassa estes limites proveitosamente, de +novo se retrahe ao seu limite, onde está a maior formosura e grandeza de sua +missão. Estes devotos não se distinguem dos outros por grande assuidade nos +templos; o que os differencêa é o serem esmoleres; e mais visivelmente se +estremam por se absterem do mal. Não são rixosos nem maldizentes:<span +class="pagenum">{<a name="pag_99">Pg. 99</a>}</span> tem ainda mais caridade na +lingua do que nas mãos, por que ella os serve com inexhauriveis riquezas. +D'aquelles peccados mortaes que a sociedade chama fraquezas, e em que +diariamente as pessoas piedosas resvalam sem morrerem d'isso, fogem elles como +d'um grande delicto. Amam a verdade, a ordem, a continencia, o pudor, a +sobriedade, como vós amais a justiça. E, comquanto não descream do eterno fogo, +a luz que os guia não esplende do inferno, vem de cima; no ceo é que elles a +buscam em seu peregrinar; e assim vão alentados pela esperança e não pelo +medo.</p> + +<h3>V</h3> + +<h4>O grupo dos santos</h4> + +<p>Chegados somos aos bemfeitores dos homens, verdadeiros imitadores de Jesus, +entes mortaes mais proximos da perfeição, as irmãs da caridade, os padres +virtuosos, quantos se consagram a servir pobres, infermos, ignorantes; quantos +sacrificam, não esterilmente, mas ás nossas precisões, seus teres, belleza, +juventude, affeições domesticas, vigor, saude, esperanças e quantas venturas +terrenas ahi ha. Bem sei que todos esses crêem no inferno; mas não são regidos +por tal crença; nada tem que vêr o seu proceder com ella; temem-se de offender +Deus, não por que Deus é vingativo, mas antes por que Deus perdôa; e esta +crença verdadeiramente<span class="pagenum">{<a name="pag_100">Pg. +100</a>}</span> salutar é uma das mais affectivas maneiras de amar.</p> + +<p>Se o temor leva ao deserto, o amor conduz aos homens; se o temor se fecha á +chave para dentro de grades, o amor quer sempre abertas as portas. Quem envia +ao martyrio os missionarios é o amor; quem dá mãe a orphãos, filhas aos +anciãos, irmãs aos soldados feridos, mestres aos aldeãos, amigos aos +penitentes, tutores aos innocentes, guias aos transviados, é o amor. Todo bem +feito n'este mundo é o amor que o faz; e este amor, que transborda da alma dos +santos, em si mesmo haure sua fecundidade e bemfazeja energia.</p> + +<p>Permittam-me uma hypothese.</p> + +<p>Dê-se que um Concilio ecumenico se ajunta ámanhã, e declara, depois de haver +invocado o Espirito Santo, que o inferno não é perpetuo, e que a palavra +«eternidade», applicada ao castigo dos peccadores, significa tão sómente pena +de infinita duração. Que ha de seguir-se a similhante proclamação? Imaginam que +a irmã da caridade se retira logo do grabato do infermo, e se engolpha nas suas +delicias mundanaes? Pensam que o benedictino, sacudindo o pó dos livros, se +precipita na Bolsa? Que o joven lazarista, repatriando-se de regiões remotas, +venderia o cajado e o breviario para ir ao theatro? Imaginam de boa fé que as +irmãs da caridade se acabariam para logo? Se pensam isto, que idêa formam +dessas bonissimas almas que os anjos e os homens admiram?<span +class="pagenum">{<a name="pag_101">Pg. 101</a>}</span></p> + +<p>Consoante ao vosso modo de as julgar, a irmã da caridade diria: Ah! Deus não +é implacavel? Então fui louca em amal-o. Deus não condemna irremissivelmente os +peccadores? Louca fui em servil-o. Pois que! n'aquella bemaventurada +eternidade, que eu tanto anhelava, não hei de ouvir os gritos da raiva e o +estridor dos dentes dos condemnados? Que é d'então dos encantos do paraiso? +Meninos, procurem quem os eduque; anciãos, procurem quem os alimente. +Orphãosinhos desamparados, vós pensaveis que nós eramos vossas mães e irmãs; +cuidaveis que vos amavamos por causa de vosso infortunio, e por vos termos em +conta de membros soffredores de Jesus Christo, nosso modêlo e nosso Deus. +Desenganai-vos! desenganai-vos! Não era por amor que vos amparavamos, era por +medo que vos serviamos como lividas escravas, covardemente flexiveis a todos os +caprichos de um senhor imperioso. Mas agora, visto dizerem-nos que o inferno +acaba, buscai quem vos ame e sirva. Cada qual por si. Acabou-se o medo; nada de +mais sacrificios. Abaixo, tunicas de burel; abaixo, veos que nos escondieis +volupias da terra, mas não as dôres, abaixo! A pureza não é enlevo que nos +contenha; gemidos de pobres não nos engodam; queremos ter vez na taça do +peccado; bebamos, que a vida é curta e o inferno ha de acabar.</p> + +<p>Não ha conjunctura em que eu ousasse attribuir similhante linguagem ás irmãs +da caridade. Nunca! ainda quando, em um nefasto dia, fosse abolido o dogma<span +class="pagenum">{<a name="pag_102">Pg. 102</a>}</span> salutar da justiça +divina; ainda quando pregoassem que tudo acaba no cemiterio, e que a sancção da +moral está nos gosos e dôres deste mundo, as irmãs da caridade não fallariam +assim. Se um concilio sahisse com aquellas decisões, regulal-o-hiam ellas.</p> + +<p>Como é que o dogma do purgatorio, com seus flagellos de duração ignorada, +sempre consoantes á natureza e circumstancias do peccado, ás luzes e costumes +do peccador,—como é que este dogma tão racional, certo, mysterioso e +terrivel, poderia enfraquecer a virtude, e a virtude principalmente d'aquellas +almas livres, viris e modestas, nas quaes o amor tem mais dominio que o +medo?</p> + +<p>Crêde-me que é isso um demasiado aviltar a lama humana, que mostraes não +conhecer; crêde-me. Se a Igreja ámanhã proclamasse a temporalidade das penas, +nenhuma irmã da caridade deslisaria da sua fileira, nem um verdadeiro sacerdote +abandonaria a sua grei, nem algum missionario acharia o Evangelho desataviado +de excellencias que ensinar aos selvagens, nem a cruz radiaria menos, nem a +palma dos martyres seria menos de invejar. Vêr-se-hia, ao invez e +instantaneamente, encherem-se todas as igrejas, e justos e peccadores reunidos +ao pé do altar, em um mesmo consenso de acção de graças, cantarem do fundo da +alma:</p> + +<blockquote style="font-size: 0.8em;"> + <p><em>Te-Deum, laudamus, in te, Domine, speravi; non confundebar in + æternum.</em></p> +</blockquote> + +<p style="text-align:center;">FIM DA PRIMEIRA PARTE.<span class="pagenum">{<a +name="pag_103">Pg. 103</a>}</span></p> + +<h1>SEGUNDA PARTE</h1> + +<h4>O INFERNO CONSIDERADO ÁLÉM-TUMULO, OS CONDEMNADOS NA PRESENÇA DE DEUS, NA +PRESENÇA DOS SANTOS, E NA PRESENÇA DOS HOMENS.</h4> + +<h2>CAPITULO PRIMEIRO</h2> + +<h4>O INFERNO DE PLATÃO</h4> + +<p>Até agora consideramos o inferno sómente em relação aos resultados moraes +que a crença de sua existencia tem produzido, produz e produzirá sempre n'este +mundo. Já demonstramos que esta crença, fatal a quantos se compenetram d'ella, +é inerte para os demais: é inutil aos verdadeiros virtuosos, por que não tem +que ver com o bem que praticam, e tambem ao mal que não fazem; é inutil aos +devotos e indifferentes, por que não os estorva de commetter basta dóse de +peccados mortaes; e pelo que toca aos peccados que não commettem, tal abstenção +explica-se em louvor d'elles, por motivos totalmente independentes das penas +infernaes; é inutil para os philosophos, visto que estes a não acceitam; é, +emfim, inutil aos scelerados,<span class="pagenum">{<a name="pag_104">Pg. +104</a>}</span> por que os não impede de ser scelerados; e, de mais a mais +concorre, umas vezes, a precipital-os no crime, outras a empedernil-os na +perversidade.</p> + +<p>Falta agora considerar o inferno, não em referencia á terra, mas pelo que +elle é em si, qual os padres, doutores e mysticos o pintaram, isto é, nas suas +relações com Deus, com os predestinados e com os reprobos. Mas, antes d'isso, +cumpre-nos dizer alguma coisa das opiniões de Platão ácerca da justiça divina e +do inferno. Será isto, a um tempo, entrar no assumpto, e responder aos +theologos que, á mingua de razões, invocam de vontade, n'esta materia, a +auctoridade de Ovidio, de Horacio, de Lucrecio, de Virgilio, de Hesiodo, de +Orpheo, e d'outros escriptores de costumes sobre modo extravagantes que, a tal +respeito, repetiram as idêas do antigo paganismo e nada mais.</p> + +<p>A opinião de Platão, que elles mais acintemente allegam, deriva da mesma +fonte; mas, alumiada pela indole e pura vida d'aquelle philosopho, ostenta-se +mais respeitavel e seductora.</p> + +<p>É mister, no dizer de Platão, que um castigo seja razoavel para ser justo; e +para que seja razoavel, uma de duas clausulas é precisa: ou que o castigo +aproveite ao castigado, ou ás testemunhas d'elle.</p> + +<p>Partindo d'este principio, Platão não prodigalisa, á feição dos nossos +theologos, as penas eternas, por quanto, a seu parecer, falta n'ellas a grande +virtude das penas temporarias. São estas, em verdade, dobradamente prestadias, +pois que ao mesmo tempo corrigem<span class="pagenum">{<a name="pag_105">Pg. +105</a>}</span> o culpado e admoestam os espectadores; pelo contrario, as +outras não corrigem o culpado e podem apenas admoestar os vivos que as +conhecem: logo são menos prestantes e universaes e completas; falta-lhes +aquella bemfazeja efficacia com que os deuses folgam de dulcificar as obras da +sua justiça; digamol-o em pouco: são menos divinas.</p> + +<p>Eis-ahi porque Platão é aváro das penas eternas e perdoa ao maximo numero de +peccadores, descontando-lhes os gemidos, lavando-os e purificando-os em suas +proprias lagrimas, á excepção dos oppressores dos povos, de seus cumplices e +louvaminheiros que expressamente exclue da lei commum. Para estes é elle +durissimo; eternisa-lhes as dores; todavia, os deuses não podem ser accusados +por isso de inutilmente rigorosos.</p> + +<p>De feito, se a tyrannia é o maior dos crimes, e o unico expiavel, é porque a +liberdade, que ella anniquila, é o maior bem que os deuses nos doaram, unico +impossivel de substituir; é porque, na sociedade escravisada, cessam os +prazeres honestos, a verdadeira gloria, sabedoria e virtudes.</p> + +<p>Tal é o senso intimo do castigo excepcional que Platão applica aos tyrannos. +Bastantemente está explicado a superioridade do terrivel castigo; mas o que não +se explica é a razão da sua perpetuidade. Platão suppunha-o eterno porque não +sabia, como nós, que a humanidade tem que percorrer no tempo um circulo +limitado, e que este universo ha de acabar. Eternisava<span class="pagenum">{<a +name="pag_106">Pg. 106</a>}</span> elle, por tanto, o supplicio dos tyrannos, +por suppôr que o seu exemplo devia ser eternamente util na terra. Não ha outra +maneira de lhe justificar o inferno no seu systema.</p> + +<p>Foi, porém, esta justificação do inferno destruida por Christo, o qual nos +annunciou que todo o genero humano é, como cada homem, um passageiro na terra, +e que um dia virá em que esta esphera que habitamos, e estes astros que nos +alumiam, se sumirão no espaço como a poeira que o vento da noite espalha. Quem +utilisaria com o supplicio dos condemnados, quando as testemunhas, em vez de +fracos mortaes, fossem santos impeccaveis?</p> + +<p>O inferno dos theologos não é, pois, identico ao inferno de Platão: o de +Platão devia ser util sempre; o dos theologos, por fructificar um dia, ficaria +esteril para sempre. Essa esterilidade já lh'a nós presentimos. Indagamos a +razão d'uns padecimentos improficuos á victima, ao juiz, a todos. O coração +protesta contra tal crueldade sem intento e sem effeito. Córa a gente só de o +crêr. Como que o homem se sente melhor do que essa divindade absurda, sedenta +sempre de torturas, ebria sempre de ira, insensivel sempre, peior que o abutre +do Prometheo, que ás vezes, ao menos, adormece sobre a preza. Só pensar n'isto +gera o atheismo na alma.</p> + +<p>Erradamente, pois, se invoca, em pró de similhantes castigos, o testemunho +de Platão, que se horrorisaria d'elles. Platão não condemnava o pobre +pegureiro<span class="pagenum">{<a name="pag_107">Pg. 107</a>}</span> por algum +roubo desconhecido ou tentativa malograda; mas bem póde ser que elle +condemnasse inflexivelmente S. Clotario, S. Constantino e S. Carlos Magno. Além +de que, elle tinha, para admittir um inferno sem fim, razões que não temos; e +nós, para o rejeitarmos, temos razões que elle ignorava.<span +class="pagenum">{<a name="pag_108">Pg. 108</a>}</span></p> + +<h2>CAPITULO SEGUNDO</h2> + +<h4>Opinião dos pagãos sobre a situação e vista interior do inferno</h4> + +<p>Os antigos situavam o inferno no centro da terra que habitamos, e pretendiam +ter a este respeito pormenores muito satisfatorios. Os gregos e os romanos +possuiam um mappa minucioso d'estas regiões subterraneas, a ponto de lhes +conhecerem os rios, taes como o lodoso Cocyto, o ardente Phlegeton, e o +invadiavel Acheronte; sabiam até que havia lá fetidas lagôas, em uma das quaes +estava Tantalo atascado até aos queixos sem poder apagar a sêde; sabiam d'uns +bosques medonhos em que certas almas se lamuriavam, debalde anciando o alvor do +dia; conheciam montanhas, que outros condemnados, perseguidos pelas furias, em +vão se esfalfavam por galgar. Contavam a historia de alguns desgraçados assim, +e as particularidades<span class="pagenum">{<a name="pag_109">Pg. +109</a>}</span> do seu supplicio. Comtudo, apezar da indole inteiramente +physica d'aquelles diversos castigos, diziam que os pacientes não tinham corpo, +que os mortos eram apenas sombras intangiveis, bem que animadas, e que o seu +maximo tormento era não poderem jámais viver vida carnal á luz do nosso sol. +Isto contavam-no elles com toda a certeza, fiados em pessoas que tinham descido +ao Tartaro, e de lá tinham voltado. Era conhecida a estrada por onde essas +pessoas tinham viajado; havia cavernas que os pastores conheciam, poços d'onde +sahiam vapores lethiferos e por onde se descia ao inferno.</p> + +<p>Não eram menos instruidos os egypcios. Em assumpto de horrores visiveis, o +Amenthi havia emprestado ao Tartaro pavorosos quadros. N'este Amenthi, que, +segundo consta, quer dizer <em>paiz da noite</em>, estão o cão de sete cabeças +e outros deuses de feitios monstruosos. Ahi se encontra o Acheronte e o seu +batel, os marneis e as aridas gándaras, e todas as figurações do mundo +devastado.</p> + +<p>Tem setenta e cinco circulos, e á entrada de cada circulo um genio armado. +Giram as almas d'um circulo n'outro, algumas em fórma humana, outras com fórmas +immundas, com cabeças de aves de rapina, pellagem de fera, e garras de reptil. +O pavimento é sangue. Estrondeiam os gemidos. Pendem os condemnados dos ganchos +á maneira de carneiros no açougue, ao passo que outros, ainda palpitantes, são +mergulhados em caldeirões ferventes. Uns vão fugindo,<span class="pagenum">{<a +name="pag_110">Pg. 110</a>}</span> com os braços estendidos, e a cabeça quasi +separada do tronco, outros levam nas proprias mãos o coração que lhes +arrancaram do peito que mostram lanhado.</p> + +<p>Conforme nos vamos aproximando das primitivas civilisações, e, por +consequencia, do primitivo barbarismo, mais o genero humano parece deliciar-se +no repasto espectaculoso de seus proprios soffrimentos, e o mundo invisivel é +para elle um espelho de augmento das miserias e torturas do mundo visivel.</p> + +<p>Cada povo se espelha na imagem que nos deixou de seu inferno, com as suas +idêas moraes, leis, necessidades, com seus costumes, temperamento e clima.</p> + +<p>Nas serranias do Thibet, onde rapidamente se passa do mais rigoroso frio ao +mais suffocante calor, ensinam os lamas que o inferno, situado em determinado +logar da Asia umas tantas legoas da superficie da terra, é formado de dezeseis +circulos: oito onde se arde, oito onde se gela.</p> + +<p>Nas esplanadas da India, onde não ha inverno, e onde as populações, +languidas de calor, corruptas pelas liberalidades da terra, apenas tem +phantasia para inventar prazeres e supplicios, dizem os brahmanes que certos +sitios do Naraka estão cheios de mosquitos, de serpentes venenosas, de +escorpiões horriveis, de tigres, de abutres e de todos os flagellos proprios +d'aquellas regiões ardentes; e que os outros circulos são o theatro das mais +requintadas torturas que ainda póde conceber a malicia d'um rajah arrojado. Ahi +os glotões<span class="pagenum">{<a name="pag_111">Pg. 111</a>}</span> são +condemnados a comer calháos asperrimos de puas agudas; os luxuriosos são +apertados nos braços de estatuas de ferro em braza.</p> + +<p>Contam pelo miudo todas as circumstancias d'estes infinitos martyrios, e +taes narrativas fariam impallidecer Ixion sobre a sua roda, Sizipho debaixo do +seu penedo. Sabem os hindostanicos pelos livros e pela tradição em que ponto da +sua terra está situado o Naraka e a que profundeza se encontra. Mas não podem +os mortos encerrados ahi achar os limites e as portas d'aquelle inferno.</p> + +<p>No inferno dos scandinavos, chamado Nifleim, não ha fogo. Essas antigas +nações do norte gostam tanto de calor, que não poderam consideral-o um +supplicio; pelo que o seu inferno é de neve, onde ha o tiritar, a fome, a +febre, a velhice tremente, as torrentes glaciaes, as tempestades, o uivar dos +lobos, o pavor que estaleja os dentes, e os cobardes, unicos condemnados que +ahi vão.</p> + +<p>Concluamos esta historia, que daria assumpto para um livro. As reflexões +moraes que ella suscita vão breve ser applicadas na descripção do nosso proprio +inferno, que na essencia não se distingue dos infernos pagãos. Porém, sendo +elle procedente do inferno judaico, paremos diante d'este.<span +class="pagenum">{<a name="pag_112">Pg. 112</a>}</span></p> + +<h2>CAPITULO TERCEIRO</h2> + +<h4>Opinião dos judeus ácerca da vista interior do inferno.</h4> + +<p>Sabido é que o Antigo Testamento é muito sobrio de revelações do inferno. +Com muito custo se rebuscaram n'elle alguns versiculos tendentes a estabelecer +aquella crença entre os hebreus, antes da destruição do primeiro templo. Os +saduceos, que juravam sómente pela Biblia, negavam absolutamente a vida futura. +Ora, bastantes sabios tinham os saduceos em conta de melhores interpretes da +Biblia. Dizem elles que os judeus, durante as tristezas do captiveiro, souberam +da bôcca dos magos a immortalidade da alma e a sciencia demonologica. Todavia, +Abrahão era chaldeo; os filhos de Jacob haviam longo tempo estanciado no +Egypto;—isto dá a crer que os seus descendentes deviam possuir, antes de +exilados em Babylonia,<span class="pagenum">{<a name="pag_113">Pg. +113</a>}</span> parte dos conhecimentos que os escripturistas registavam. Não +exerciam os prophetas um ensino mystico, e não conservava o povo tantas +tradições grosseiras contemporaneas de Moysés e talvez anteriores? As passagens +respigadas na escriptura e nomeadamente em Isaias, relativas ao inferno, seriam +inexplicaveis, se não se lhe referissem; mas seriam egualmente inexplicaveis se +o povo não tivesse, para intendel-as, mais luz da que lhe dão essas passagens. +Estes trechos não encerram doutrina secreta dos prophetas, respeito á vida +futura; contém mais referencias que revelações á crença vulgar e formalissima +do inferno.</p> + +<p>O nome «Géhenna» que lá dão á paragem das expiações futuras, não era +estrangeiro; era o nome de um vale ao poente de Jerusalem, onde, desde a origem +de sua historia, iam os hebreus adorar Molock, e sacrificar-lhe no fogo +victimas humanas, e, ás vezes, seus proprios filhos. N'este sitio, tambem +denominado <em>Trophet</em>, ou «logar horrendo», eram lançados os cadaveres +dos justiçados e os despojos dos animaes. Este valle maldito, sagrado pela +superstição aos deuses sanguinarios, juncado de carnes putridas e ossadas +alvejantes, assombrado de larvas sinistras, resonante de gemidos e rugidos, +converteu-se para os moradores da cidade santa, não já em verdadeiro inferno, +mas no symbolo exterior e synonymo de inferno. No inferno verdadeiro, ardiam +Moloch e os seus idolatras na mesma fogueira; os máos eram roidos pelos vermes; +e estes vermes eram immorredouros como as suas<span class="pagenum">{<a +name="pag_114">Pg. 114</a>}</span> prêas:—idêas positivamente exprimidas +por Isaias, cap. LXVI, ultimo verso.</p> + +<p>É egualmente certo que os rabbinos e tambem o povo, tão pouco iniciados até +então andavam na mystica philosophia, que, se alguma vez discutiam, davam azo a +que os prophetas se rissem ou indignassem; porém, depois que os rabbinos e o +povo se recolheram do captiveiro, as suas noções eram mais amplas, e talvez as +mesmas que se escondiam nas escólas do Carmelo e de Galgala.</p> + +<p>Vamos vêr quaes são as noções não contidas no Antigo Testamento, mas +traçadas manifestamente no Novo, as quaes, quando S. Paulo, S. Mathias, S. João +e outros apostolos escreviam, já se haviam derramado na Judea, quinhentos ou +mais annos antes.</p> + +<p>Era dividido o Scheol, ou mundo futuro, em duas regiões, que comprehendiam o +paraiso e a géhenna. A géhenna, objecto d'este estudo, era contada no numero +das sete creações anteriores ao nosso universo. Á similhança do Amenthi egypcio +e do Naraka indiatico, era formada de diversos circulos, mas só tinha sete, +correspondendo aos sete dias do Genesis, e aos sete ceos ou sete circulos do +paraiso. Havia géhenna superior e géhenna inferior. A superior abrangia os seis +primeiros circulos: era uma especie de purgatorio onde baixavam, depois da +morte, os peccadores dignos de perdão: uns ficavam no sexto, outros no quinto, +outros no quarto circulo, outros no primeiro, conforme a gravidade ou leveza +dos seus peccados.<span class="pagenum">{<a name="pag_115">Pg. 115</a>}</span> +Trezentos e sessenta e cinco degráos, correspondentes aos trezentos e sessenta +e cinco peccados assignalados pelos doutores, formavam escaleiras d'um circulo +a outro, e em cada circulo era mister passar trezentos e sessenta e cinco dias. +Porém, os grandes criminosos, abatidos sob o gravame de suas culpas, +atravessavam, sem poder parar e com a rapidez de pedra arrojada por funda, os +seis primeiros circulos da spiral, e cahiam no setimo, no fundo abysmo, na +géhenna inferior, d'onde não ha mais sahir. Á frente de suas legiões ahi os +recebia Samael, e então lhes começava o perpetuo supplicio, o insulto dos +diabos, a saudade da vida, o fogo interno e externo, o tormento da sêde, e a +miragem cruelissima que scintilla aos olhos dos peregrinos agonisantes no +deserto<sup><a name="L2488" id="L2488" href="#L2486">[5]</a></sup>.</p> + +<p>Taes eram, em resumo, as opiniões da synagoga ácerca do inferno. Entretanto +os essenios, seita monastica celibataria que vivia em commum para +espiritualmente<span class="pagenum">{<a name="pag_116">Pg. 116</a>}</span> se +reproduzir, professavam outra. O inferno d'elles, coisa notavel, similhava ao +dos monges thibetanos; os soffrimentos ahi eram calor e frio, e todas as +intemperies das estações em climas deseguaes.</p> + +<p>Agora vejamos o inferno dos nossos theologos.<span class="pagenum">{<a +name="pag_117">Pg. 117</a>}</span></p> + +<div class="rodape"> +<p><sup><a name="L2486" id="L2486" href="#L2488">[5]</a></sup> O inferno +mahometano é copia do judaico, mas copia singularmente alterada. O anjo Trakek +é quem lá governa. Ha lá chuva de peçonha. Chama-se Géhenna e divide-se em sete +circulos. Porém, exceptuado o primeiro circulo, reservado exclusivamente para +os musulmanos, e o ultimo, destinado aos hypocritas, cada qual dos outros é +pertencente a cada uma das religiões diversas que precederam o islamismo. Estes +hereticos estão portanto em andares sobrepostos, quasi por ordem de sua +antiguidade: os christãos no segundo, os judeus no terceiro, os sabeos no +quarto, os guebros no quinto, os idolatras no sexto. D'estes seis ultimos +ninguem sahe: ahi é o verdadeiro inferno; mas o primeiro, o circulo de honra +dos crentes, é purgatorio, no dizer dos doutores.</p> +</div> + +<h2>CAPITULO QUARTO</h2> + +<h4>O INFERNO DOS THEOLOGOS</h4> + +<h4><small>POR DUAS FACES VAMOS VER O NOSSO INFERNO; PRIMEIRA A MATERIAL, +DEPOIS A MORAL</small></h4> + +<h3>I</h3> + +<h4>O inferno material</h4> + +<p>São puros espiritos os demonios, e tambem puros espiritos devem +considerar-se os condemnados no inferno, por quanto só a alma d'elles lá +desceu, e os ossos restituidos á terra se transformam continuamente em +hervaçaes, plantas, fructos, mineraes, liquidos, desfigurando-se nas +continuadas methamorphoses da materia.</p> + +<p>Tanto, porém, os condemnados como os santos hão-de resuscitar no dia final e +reassumir para nunca mais o deixar um corpo carnal, o mesmo corpo com o qual +passaram entre os vivos.</p> + +<p>A distincção d'uns a outros é que os eleitos hão de resurgir em corpos +purificados e radiosos, e os condemnados em corpos poluidos e afeiados pela +culpa.<span class="pagenum">{<a name="pag_118">Pg. 118</a>}</span> E de então +ao diante não haverá sómente puros espiritos no inferno; mas sim homens como +nós. É por consequencia o inferno uma localidade physica, geographica e +material, visto que hão de povoal-o creaturas terrestres, dotadas de pés, mãos, +bôcca, lingua, dentes, orelhas, olhos como os nossos, veias com sangue, e +nervos sensiveis á dor.</p> + +<p>Onde está situado este inferno? Alguns doutores situam-no nas entranhas da +terra; outros em certo planeta que eu não sei; mas a questão nenhum concilio +ainda a resolveu. A este respeito é tudo conjecturas; o mais que se affirma é +que o inferno, seja onde fôr, é um mundo composto de elementos materiaes, mas +não tem sol, nem lua, nem estrellas, e é mais triste e inhospito, e mais ermo +de todo o germen e apparencia de bem, do que todos os pontos inhabitaveis do +mundo em que peccamos.</p> + +<p>Não se arriscam os discretos theologos a pintar, á similhança dos egypicos, +indostanicos, e gregos, o immenso horror d'essa mansão; limitam-se a dar-nos +como amostra o pouco que a escriptura denuncia, o lago de fogo, e o enxofre do +Apocalypse, e mais os vermes de Isaias, aquelles vermes eternamente enxameando +sobre as carcaças de Thophet, e os demonios atormentando os homens que +perverteram, e os homens chorando e ringindo os dentes, segundo a expressão dos +evangelistas.</p> + +<p>Santo Agostinho não concede que aquellas penas physicas sejam simples +imagens das penas moraes;<span class="pagenum">{<a name="pag_119">Pg. +119</a>}</span> contempla em um verdadeiro lago de enxofre vermes e serpentes +verdadeiras encarniçadas sobre todas as partes dos condemnados, exacerbando com +as suas mordeduras as ulcerações do fogo. Quer, conforme um verso de S. Marcos, +que este estranho fogo, posto que material como o nosso, e actuando sobre +corpos materiaes, os conservará como o sal conserva a carne das victimas sempre +sacrificadas e sempre viventes, sentirão a dôr d'aquelle fogo que queima sem +destruir, e lhes filtra aos musculos, saturando-lhes os membros, desde a +medulla dos ossos e as pupillas dos olhos até as mais occultas e sensiveis +fibras do seu ser.</p> + +<p>Se elles podessem submergir-se na cratera d'um vulcão, sentir-se-hiam ahi +refrigerados e consolados.</p> + +<p>D'esta arte fallam com toda a segurança os mais timidos, os mais discretos e +reservados theologos; não negam, porém, que no inferno haja outros supplicios +corporaes; sómente dizem que não tem d'elles um sufficiente conhecimento, ou +pelo menos tão positivo como aquelle que receberam ácerca do horrivel supplicio +do fogo, e do afflictivo supplicio dos vermes. Ha no entanto theologos mais +audazes e illustrados que nos dão descripções mais miudas, variadas, e +completas do inferno; e, bem que não saibam em que local do espaço tal inferno +esteja, consta-lhes que alguns santos o viram.</p> + +<p>De certo que estes santos lá não foram com a lyra em punho, como Orpheo, ou +com a espada na mão,<span class="pagenum">{<a name="pag_120">Pg. +120</a>}</span> á similhança de Ulysses: baixaram lá arrebatados em espirito. +D'este numero é Santa Thereza.</p> + +<p>Quem lê a relação d'esta santa cuidará que no inferno ha cidades. Pelo menos +lá viu ella uma especie de viella longa e estreita como ha tantas nas cidades +antigas; entrou caminhando horrorisada sobre um terreno lamacento e fetido onde +rastejavam reptis monstruosos; mas foi retida em seu transito por uma parede +que atravancava a viella; e n'esta parede havia um nicho onde Santa Thereza se +metteu sem saber como. Disse ella que este logar lhe estava destinado, se +abusasse emquanto viva das graças que Deus difundia sobre a sua cella d'Avila. +E, bem que ella se anichasse com maravilhosa facilidade n'aquella guarita de +pedra, não podia nem assentar-se, nem deitar-se, nem estar de pé, nem safar-se; +que estas horriveis paredes, apertando-a, envolviam-na, angustiavam-na, como se +fossem animadas. Parecia-lhe que a abafavam, que a estrangulavam, e ao mesmo +tempo a estripavam e a faziam pedaços.</p> + +<p>E sentia-se arder, e não havia genero de afflição que não experimentasse. +Esperança de soccorro, nenhuma. Á volta d'ella tudo escuro; mas ainda assim, +atravez d'essas trevas, entrevia, com grande espanto, a hedionda rua por onde +tinha passado com toda a sua immunda visinhança: espectaculo que lhe era tão +intoleravel como as intalladelas da prisão.</p> + +<p>Ora isto de certo era apenas um cantinho do inferno.<span +class="pagenum">{<a name="pag_121">Pg. 121</a>}</span></p> + +<p>Outros viajantes espirituaes foram mais obsequiados. Houve tal que viu no +inferno grandes cidades a arder, Babylonia e Ninive, e até Roma, com os seus +palacios e templos abrazados, e os habitantes acorrentados, mercadejando no +balcão, padres misturados com meretrizes nas salas dos festins, hurrando nas +suas poltronas d'onde não podiam arrancar-se, e levando aos beiços, para apagar +a sede, copos que golphavam lavaredas; validos em joelhos sobre almadraques +ardentes, com as mãos postas, e principes vertendo sobre elles devorante lava +d'ouro fundido. Outros viram no inferno descampados sem limites, cavados e +semeados por lavradores famelicos. E d'essas plantas fumegantes de suor, como +nenhum fructo vingasse, os lavradores devoravam-se uns aos outros; e, depois, +tantos quantos tinham sido, magros e famintos do mesmo modo, dispersavam-se em +bandos pelos horisontes fóra em cata de terras mais ditosas, e eram logo +substituidos por outras colonias errantes de condemnados.</p> + +<p>Houve quem visse no inferno serranias cavadas de abysmos, de florestas +gementes, poços sem agua, fontes de lagrimas, regatos de sangue, turbilhões de +neve em desertos de gelo, barcos desesperados vogando em mar sem praia. Em fim +lá viram quanto os pagãos tinham visto, o reflexo lugubre da terra, uma sombra +incommensuravelmente augmentada de suas miserias, os seus naturaes soffrimentos +eternisados, entrando<span class="pagenum">{<a name="pag_122">Pg. +122</a>}</span> n'isto masmorras, forcas, e os instrumentos de tortura que as +nossas proprias mãos forjaram.</p> + +<p>Ha com effeito lá n'essas profundezas demonios que se fazem corporeos, para +mais a preceito atormentarem os homens em suas carnes. Uns tem azas de morcego, +pontas, coiraças escamosas, griphos e agudissimos dentes. Temol-os visto +pintados, armados de espadas, de forcados, de tenazes ardentes, de serras, de +grelhas, de folles, de clavas, empregando tudo isto durante a eternidade n'uma +especie de açougue e cosinha da carne humana. Ha outros transformados em leões, +e viboras enormes, arrastando as prêas em solitarias cavernas.</p> + +<p>Alguns desfiguram-se em corvos para arrancar os olhos a certos padecentes, +em quanto outros se transformam em dragões volateis, e vão carregados d'almas +sanguentas e lastimosas atravez de tenebrosos espaços, e as precipitam no lago +de enxofre. Além se vê nuvens de gafanhotos, e de agigantados escorpiões, cuja +vista arripia, cujo cheiro enoja, cujo menor contacto convulsiona. Acolá estão +os monstros polycephalos abrindo vorazes fauces, sacudindo as crinas formadas +de aspides, triturando os condemnados entre os seus queixos sangrentos, e +vomitando-os logo mastigados, mas ainda vivos, porque são immortaes.</p> + +<p>Estes demonios de fórma sensivel, recordando tão ao vivo os deoses do +Amenthi e do Tartaro e os idolos que os phenicios, os moabitas e outros gentios +visinhos da Judea adoravam, estes demonios não funccionam<span +class="pagenum">{<a name="pag_123">Pg. 123</a>}</span> á toa; cada qual tem seu +officio e sua tarefa: o mal que fazem no inferno corresponde ao mal que elles +inspiraram e fizeram commetter n'este mundo. São os condemnados punidos em +todos os sentidos e orgãos porque offenderam Deus por todos os orgãos e +sentidos. Os comilões são punidos de certa maneira pelos demonios da +intemperança, e d'outra maneira os calaceiros pelos demonios da preguiça, e +ainda d'outra maneira os lascivos pelos demonios da sensualidade; em fim, são +tantas as maneiras quantas as variedades de peccar. Dizem que elles até na +fogueira terão frio, e no gelo se sentirão arder; estarão ávidos de descanso e +irrequietos; sempre com fome, sempre com sede, e mil vezes mais cansados que o +escravo no fim do dia, mais doentes que os moribundos, mais lacerados, mais +escalavrados, mais lazaros que os martyres, e assim para todo o sempre.</p> + +<p>Nenhum demonio se desgosta nem desgostará jámais do seu terrivel officio; +n'esta parte são elles disciplinados a ponto, e fidelissimos na execução das +ordens vingativas que receberam. Se não fosse isso, que seria do inferno? Se os +demonios tivessem rixas entre si ou se fatigassem, os pacientes descansariam. +Mas nem uns descansam, nem os outros se desavêm; e posto que sejam máos e +muitissimos, os demonios harmonisam-se d'um cabo a outro do abysmo, por tanta +maneira que nunca na terra se viram nações mais submissas a seus principes, +exercitos mais doceis a seus generaes, communidades fradescas mais +obedientes<span class="pagenum">{<a name="pag_124">Pg. 124</a>}</span> a seus +prelados. Nada se sabe da ralé dos demonios, d'essa canalha de espiritos +villãos que formam legiões de vampiros, de sapos, de escorpiões, de corvos, de +hydras, de salamandras e outra bicharia sem nome que constituem a zoologia das +regiões infernaes; mas são conhecidos de nome muitos principes que commandam +aquellas legiões, entre outros Belphegor, o demonio da luxuria, Abbaddon ou +Apollyon, o demonio da carnificina, Beelzebuth, o demonio dos desejos impuros, +ou o principe das moscas geradoras da podridão, e Mammou, o demonio da avareza, +e Moloch, e Belial, e Baalgad, e Astaroth, e outros mais, e sobre todos o chefe +universal, o sombrio archanjo que no céo se chamava Lucifer, e no inferno se +chama Satan.</p> + +<p>Eis aqui, em summa, a idêa que se nos dá do inferno, observado em sua +natureza physica, e nas penas corporaes que lá se padecem. Lêde os escriptos +dos padres e antigos doutores, interrogae as piedosas legendas, examinae as +esculpturas e paineis das nossas egrejas, attentae o ouvido no que se diz em +nossos pulpitos e sabereis muitas outras coisas.<span class="pagenum">{<a +name="pag_125">Pg. 125</a>}</span></p> + +<h3>II</h3> + +<h4>Reflexões sobre as penas materiaes dos condemnados</h4> + +<p>De qualquer modo que as figuremos, e quando mesmo por piedade ou qualquer +outra razão se reduzissem só á acção do fogo, estas penas materiaes não +poderiam ser eternas, porque, se a alma é immortal e póde soffrer sempre, não +succede o mesmo ao seu involtorio terrestre: corpos de carne, á feição dos +nossos, são de seu natural incapazes de resistir a similhantes agentes de +destruição.</p> + +<p>É um milagre a resurreição dos corpos; mas faz-se mister um segundo milagre +para dar a estes corpos mortaes, já usados pelos transitorios attritos da vida, +e de mais a mais aniquillados, a virtude de subsistir, sem se dissolverem, na +fornalha onde metaes se evaporassem. Diga-se embora que a alma é algoz de si +mesma, que Deus a não persegue, mas que a desampara pelo estado desgraçado que +ella escolheu: isso ainda póde rigorosamente comprehender-se, posto que o +desamparo eterno d'um ser desvairado e padecente pareça pouco conforme á +bondade do Creador; porém o que se diz da alma e das penas espirituaes não póde +por modo algum ser dito a respeito dos corpos e das penas corporaes; que para +eternisar as penas corporaes não basta que Deus retire a sua mão;<span +class="pagenum">{<a name="pag_126">Pg. 126</a>}</span> pelo contrario, é +forçoso que elle a mostre, que intervenha, que opere, sem o que o corpo +succumbiria.</p> + +<p>Conjecturaram, pois, os theologos que Deus effectivamente opera, em seguida +á resurreição, o segundo milagre de que fallamos. Primeiro, exhuma do sepulchro +os corpos de argila que lá se haviam desfeito; tira-os taes quaes lá tinham +entrado com as suas nativas infermidades e as degradações successivas da idade, +da doença e do vicio, decrepitos, infesados, gotosos, cheios de precisões, +sensiveis á ferroada d'uma abelha, cobertos das macerações que lhes fizeram o +rossar da vida e da morte: eis o primeiro milagre. Depois, a estes corpos +alquebrados, prestes a reverter ao pó d'onde surgiram, inflige uma propriedade +que não tinham: a immortalidade, o mesmo dom que n'um lance de colera, ou, se o +quereis, n'um lance de misericordia, elle tinha subtrahido a Adão quando o +expulsou do Eden: eis o segundo milagre. Quando Adão era immortal, era +invulneravel; e, quando cessou de ser invulneravel, tornou-se mortal. Á dôr +seguiu-se o morrer.</p> + +<p>A resurreição, portanto, nem nos repõe nas condições physicas do homem +innocente, nem nas condições physicas do homem culpado; é uma resurreição das +nossas miserias sómente; mas com sobrecarga de novas miserias, infinitamente +mais horriveis; é, até certo ponto, uma verdadeira creação, e mais maliciosa +que imaginação alguma ainda concebeu.<span class="pagenum">{<a +name="pag_127">Pg. 127</a>}</span> Dir-se-ha que Deus reconsidera e varia, +quando accrescenta aos tormentos espirituaes dos peccadores tormentos corporaes +de duração infinda, e muda de repente as leis e as propriedades por elle +prescriptas ás composições da materia desde a origem d'ella. Resuscita carnes +doentes e corruptas, e, atando com indesatavel nó elementos que tendem a +separar-se, mantém e perpetúa, contra a ordem natural, aquella podridão +vivente, que é posta no fogo, não para se depurar, mas para ser conservada qual +é, sensivel, padecente, ardente e immortal.</p> + +<p>Por amor d'este milagre é Deus arvorado em um dos algozes do inferno; por +que, se os condemnados só a si podem imputar seus males espirituaes, tambem não +tem a quem imputar os outros senão a Deus. Já não era pouco abandonal-os, +depois de mortos, á tristeza, ao remorso e a quantas agonias sente a alma que +perdeu o bem supremo; mas ha ahi peor: irá Deus, no dizer dos theologos, +procural-os nas trevas do seu abysmo; chamal-os-ha por instantes á luz, não +para allivial-os, mas sim para vestil-os d'um corpo horrido, chammejante, +immorredouro, e n'este acto os abandonará definitivamente. Mas não será isso +ainda abandono, pois que céo, terra e inferno não subsistem senão por um acto +permanente da divina vontade sempre activa. É força, então, que Deus os tenha +sempre de sua mão, para obstar que o fogo se apague e os corpos se consumam, a +fim de que esses desgraçados<span class="pagenum">{<a name="pag_128">Pg. +128</a>}</span> immortaes contribuam, com a perennidade de seu supplicio, á +edificação dos predestinados.</p> + +<p>Vem a ponto um episodio da historia da Egreja, que, máo grado nosso, nos +veio á lembrança. Seja-me permittido recordarvo-lo.</p> + +<h3>III</h3> + +<h4>Os martyres de Nero</h4> + +<p>Foi Nero um poderoso imperador. Galardoava esplendidamente os escravos que o +serviam; e, ao mesmo tempo, incutia-lhes medo salutar com o seu systema de +tratar inimigos. Queimando Roma a fim de a reedificar mais formosa, assacou o +crime aos christãos, gente indocil que o não bajulava, e cria em justiça mais +amavel que a d'elle, e por esta e outras razões desagradava á plebe idólatra. O +processo foi summario; a sentença de morte, e a execução espantosas, como vai +vêr-se. Embrearam-os de resina, amarraram-os a postes de ferro, cravados +distantes entre si nos bellos jardins de Sallustio, onde eram celebrados então +os jogos nocturnos. Era já noite, quando as portas foram abertas á multidão. +Eis que sôa o clangor das trombetas, e logo os verdugos infileirados chegaram +lume ás tunicas dos christãos. Callam-se as trombetas; restrugem de todos os +lados gritos estridentes. A subitas, arvores, flôres, estatuas, escadozes<span +class="pagenum">{<a name="pag_129">Pg. 129</a>}</span> marmoreos, tanques, +repuxos, tudo resplandeceu. Chega Cezar na sua carroça, escoltado de vistosa +côrte, derramando, por sobre as turbas aterradas e jubilosas do seu sorriso, +ouro e perolas. Servem-se banquetes. Dançam as filhas do oriente, em quanto os +tocadores de alaude e cantores confundem a dôce melodia de seus concertos com +os applausos do povo fiel e os derradeiros arrancos dos christãos que +vasquejavam em suas tunicas ardentes.</p> + +<p>Pouco durou aquelle instructivo espectaculo. N'este mundo, as festas mais +bisarras são curtas. Felizmente para os martyres, Nero não era Deus. Diz-se, +porém: eil-os, os confessores de Christo apremiados, á volta de um Deus que dá +ares de Nero, e como contemplando, á maneira do Cezar, em festa sem fim, +milhares de creaturas humanas, estorcendo-se e clamando nas lavaredas, tochas +ullulantes, fachos inextinguiveis, testemunho assás consolativo da +superioridade do rei do céo sobre os regulos da terra.</p> + +<p>Haja paciencia, que ainda falta o mais essencial. Aquellas penas corporaes +são quasi nada. Repugnantissimas que ellas se nos figurem, são essas, ainda +assim, a menos repugnante cousa que o inferno encerra.<span class="pagenum">{<a +name="pag_130">Pg. 130</a>}</span></p> + +<h3>IV</h3> + +<h4>O inferno espiritual</h4> + +<p>Em que meditam esses pobres entes atormentados? Que sentimentos os dominam? +Que fazem elles, durante as suas inexpremiveis torturas, n'esse tempo +illimitado em que os segundos são seculos, e os seculos menos que segundos? Os +theologos tem investigado estas cousas; e, presupposto perpetuo o inferno, não +ha dous modos de resolver aquellas perguntas. Uma breve reflexão vos dará a +resposta que os theologos tem dado perfeitamente conforme a todas as +tradições.</p> + +<p>Imaginai um lupanar de embriagados, um hospital de loucos, um covil de +assassinos, uma caverna de ladrões, um bordel immundo; soltai ao mesmo tempo +todos os moradores d'esses abominaveis logares, e tereis uma optima pintura do +inferno espiritual, isto é, o estado mental dos condemnados. Novos e velhos, +homens e mulheres, embaralhados todos, apostrophando, jurando, blasphemando, +eternamente ebrios, eternamente vorazes, eternamente lascivos, eternamente +invejosos e crueis, eternamente impios, eternamente sandeus.</p> + +<p>Como as sombras do Tartaro, choram o nosso sol, as sombras, as frescas +ribeiras, os pampanos dos nossos vinhedos, e todos os prazeres sensuaes de +que<span class="pagenum">{<a name="pag_131">Pg. 131</a>}</span> ávidamente +estão sequiosos e privados. Os demonios, que os castigam por seus passados +prazeres, alimentam n'elles inuteis saudades, e insensatos desejos, dos quaes +nada póde distrahil-os, nem sequer as dôres corporaes, e agudissimas de que são +atormentados todos os seus membros. N'isto, de mais a mais, os demonios o que +fazem é executar as sentenças do soberano juiz—sentença promulgada no +céo, pela qual são os reprobos intellectualmente torturados; pois diz Santo +Agostinho no seu <em>Commentario aos psalmos</em>: faz-se mister que tudo +quanto deliciou os homens, quando peccaram, se converta em instrumento do +Senhor quando castiga. O desejo saciado é, pois, punido com o desejo +insaciavel.</p> + +<p>Não imaginem que no inferno haja uma só alma que deplore a sua innocencia +baptismal, e o céo promettido que ella perdeu, e a companhia dos anjos, e a +bemaventurança dos eleitos. Os precitos fogem de Deus, não o procuram; viram-no +no dia do juizo, tem-no presente sempre nos tormentos que soffrem. De certo os +angustia estar tão longe d'elle; mas é angustia de raiva que não tem nada que +vêr com as saudades e anceios do amor.</p> + +<p>Não pensem que entre as alegrias cuja perda lá nos dilacera o coração, +estejam os castos prazeres do lar, a pratica dos anciãos, as meiguices das +creanças, a ternura dos irmãos, a dôce confiança dos amigos, as consolações do +trabalho e as recompensas do estudo. Verdadeiras alegrias eram aquellas de +certo<span class="pagenum">{<a name="pag_132">Pg. 132</a>}</span> para os +peccadores; mas os condemnados nem as desejam, nem d'ellas se lembram; +abasta-lhes a sciencia que tem; e, pelo que toca ás affeições terrestres, +mortas são todas: resta-lhes o odio sómente. A mãe que está no inferno, se tem +um filho no paraizo, abomina-o, e elle a ella; se o tem no inferno, abomina-o +tambem e é correspondida por igual, e, se o tem vivo no mundo a choral-a, da +mesma sorte o abomina. Filhos, pae, marido, irmãos e irmãs, amigos, tudo lhe é +igualmente odioso.</p> + +<p>O que os condemnados mais ardentemente desejam é coisa que se beba e se +coma, e além d'isso as delicias sensuaes e a bruteza do coito carnal. São de +tal sorte as suas disposições em meio de tantos soffrimentos que, se um só +d'esses condemnados podesse por um momento voltar á vida, escandalisaria um +alcouce. Entretanto, confessam a justiça da condemnação que os fere; mas é para +amaldiçoal-a; e, bem que não sejam atheus, por que tal não podem ser em +similhante lugar, são mais scelerados, ignobeis, impudentes e perversos do que +poderia sêl-o uma nação de atheus. Uma nação de atheus, não sendo composta de +immortaes, temer-se-hia do nada como d'um objecto de medo ou esperança, e +tiraria d'ahi certas regras de proceder que bastariam a tornal-a menos +miseravel e brutal; mas no inferno não ha que temer nem que esperar. Ha ahi um +retouçar-se na dôr, em horrendos sonhos, que exulceram os appetites sem os +satisfazer. Ahi é tudo obscenidade, egoismo, opprobrio, hediondez,<span +class="pagenum">{<a name="pag_133">Pg. 133</a>}</span> a humanidade disforme, +depravadissima, impudentissima, sem piedade, sem consciencia.</p> + +<p>A blasphemia é a unica distincção que separa os condemnados das feras +assanhadas, e que os levanta algum tanto acima dos porcos, dos lobos, dos +macacos, dos toiros, dos bodes e dos reptis. É logo a blasphemia o unico +symptoma de razão que se lhes deixa, a sua unica e ultima grandeza! Os +irracionaes nem quando soffrem blasphemam: a blasphemia é um acto intellectual +que n'este mundo degrada, e no inferno exalta. Um condemnado que louvasse a +Deus seria um santo, cujo supplicio cedo ou tarde acabaria; mas, sendo +interminavel o supplicio d'elle e impossiveis os santos n'este abysmo, o +condemnado que não blasphemasse seria um bruto infecto.</p> + +<p>É portanto de justiça que os façam blasphemar; d'isso inferimos que elles +tem alma; e d'esse modo a mostram na unica maneira que podem; e, se não podem +satisfazer a vil concupiscencia que os devora, desforram-se saboreando a pleno +peito o agro prazer de insultar o Deus que os pune por tão singular +maneira.<span class="pagenum">{<a name="pag_134">Pg. 134</a>}</span></p> + +<h3>V</h3> + +<h4>Continuação do inferno espiritual</h4> + +<p>Havendo só o inferno, já se vê que n'esta infame companhia os theologos +misturam, como iguaes, qualquer homem honrado que morra na incredulidade dos +mysterios. Isto lhe basta para ser condemnado. E com esse vae tambem a viuva +pobre, que, em vez de ir á egreja no domingo, remenda os fatinhos das suas +creanças: tambem não é preciso mais para ser condemnada.</p> + +<p>Tambem lá vão, á conta de não jejuarem, nossas mães e irmãs, mulheres e +filhos: pois não é bastante razão para ir ao inferno quem come um bocado de pão +com certo prazer?</p> + +<p>Este inferno, povoado de patifes incorrigiveis, é uma escóla: ninguem ahi se +corrige, mas aprende cada qual a conhecer-se, e já não é pouco. Quem quer que +ahi desce, logo que ahi está, é igual aos devassos, aos parricidas e aos +traidores. Quem ahi se vê tão diverso do que se imaginava n'este mundo, +aterra-se de si proprio. O bom que cada qual tinha em si quando vivia, com a +vida se desvaneceu; e o mal que era apenas uma imperceptivel mancha, lavrou +como a gangrena, de tal arte que alma e corpo é tudo uma chaga.<span +class="pagenum">{<a name="pag_135">Pg. 135</a>}</span></p> + +<p>Que o homem se perdesse por um pomo ou por um imperio, por um beijo ou por +um homicidio, o resultado é o mesmo: ninguem é condemnado com attenuantes. Não +procureis no inferno um companheiro menos corrompido do que os outros, que se +respeite ou que seja respeitavel por qualquer motivo; é coisa que lá não ha; +ninguem conserva ahi vislumbre das qualidades que na terra se respeitam. Ou +vades para a direita ou para a esquerda, para cima ou para baixo, girai em +todas as direcções d'esse abysmo, que não achareis germen, relampago, sombra de +virtude. Aquelles sabios cujas vigilias opulentaram os homens, e não deixaram +dinheiro com que os enterrassem; aquelles philosophos estoicos, legisladores, +magistrados, guerreiros illustres, e soldados obscuros mortos nas fronteiras; +aquelles rigidos protestantes que psalmodeavam nas lavaredas, aquellas esposas +extremosas, e as noivas cuja sepultura é juncada de rosas brancas—todos +esses que não morreram em graça—de qualquer modo que pensassem e +procedessem n'este mundo, os seus costumes e pensamentos são forçosamente os do +outro. Os que lhe sabem a historia, e os amaram e lamentam, não hão de +reconhecel-os. Eil-os preza de todos os vicios, paixões, e desejos dos +condemnados. Grandes homens, sabios heroes, martyres, mães veneradas, donzellas +castas, artistas sobrios e modestos, eil-os em côro de impios, fallando como +ebrios, cynicos e assassinos. Abandonou-os Deus todos a um tempo, a um tempo os +pune todos; o<span class="pagenum">{<a name="pag_136">Pg. 136</a>}</span> mesmo +ferro lhes abrasa os corpos e a mesma febre lhes alanceia as almas.</p> + +<p>Ahi está o inferno espiritual.</p> + +<h3>VI</h3> + +<h4>Da immortalidade das penas espirituais do inferno.</h4> + +<p>É pois o inferno um máo logar, trescalando ao vicio e ao crime. Os demonios, +guardas d'este máo logar, e professos na corrupção, usam do imperio que sobre +os hospedes lhes é permittido, corrompendo-os incessantemente e sem lucta nem +obstaculo.</p> + +<p>É propriedade d'elles a alma dos condemnados. Deus, entregando-lh'a para que +elles façam d'ella o que poderem, não lh'a disputa e bastantemente sabe o que +elles farão.</p> + +<p>Se as adições espirituaes dos condemnados fossem sómente crueis, seria isso +bastante para nos auctorisar a duvidar da eternidade d'ellas; mas, além de +crueis, impuras, é um direito, é até um dever negal-as. É certo que a natureza +algumas vezes inflige ao homem esses impuros soffrimentos; mas são +transitorios: uns morrem, alguns curam-se, e outros endoidecem: é outro genero +de morte. Mas no inferno os furores sensuaes, os appetites phreneticos não +matam nem remedeiam, não são venenos nem balsamos, são penas sem fructo e sem +fim.<span class="pagenum">{<a name="pag_137">Pg. 137</a>}</span> «Que +condemnação, diz S. Bernardo, a da vontade amarrada á precisão de crêr o +<em>mal</em> e não crêr o <em>bem</em>; por tal modo que de qualquer maneira +que se mova, é sempre <em>criminosa</em> e miseravelmente! Não ha de gozar +jámais os prazeres <em>culpaveis</em> que deseja; e as <em>privações</em> que +ella não quer é as que ella ha de ter por toda a eternidade.»</p> + +<p>Crêr o mal e não crêr o bem, é logo o resultado d'aquella condemnação. Por +sentença do juiz, e de que juiz! é que lá eternamente se anceiam impudicos +prazeres, ao mesmo passo que o espirito soffre a privação dos sentidos. +Montesquieu, que, a fallar verdade, não era padre da Igreja nem monge, formava +outra idêa da natureza moral das penas destinadas a servir de sancção aos +accordãos da justiça da terra propriamente. Lêde no <em>Espirito das leis</em> +certo capitulo intitulado: <em>Da violação do pudôr, no castigo dos +crimes</em>. Assim começa o capitulo: «Ha regras de pudôr observadas em quasi +todas as nações do mundo: absurdo seria violal-as no castigo dos crimes, o qual +deve sempre ter em vista o restabelecimento da ordem.»</p> + +<p>Ainda que Montesquieu m'o não dissesse, a cousa é evidente por si. Satrapas +em delirio, Cezares devassos, tyrannos corruptissimos, póde ser que alguma vez +enviassem uma rapariga desobediente mas honesta a um bordel, e que, ajuntando +calculadamente a indecencia ao castigo, convertessem a excitação dos sentidos +em supplicio legal, deshonrando a lei para deshonrar o inimigo. Em todos os +paizes civilisados castiga-se<span class="pagenum">{<a name="pag_138">Pg. +138</a>}</span> para restabelecer a ordem material e a moral quanto póde +ser.</p> + +<p>Cuida-se em esquivar o culpado ás seducções que o perderam; impedem-no de +ser nocivo a si e aos outros; privam-no de satisfazer as paixões, não com o +intento de lh'as irritar, mas de enfraquecel-as; sequestram-no da companhia das +pessoas de bem, não para que as odeie, mas para que as chore; deseja-se que a +sua maior afllicção consista em havel-as offendido, e que o arrependimento o +rehabilite para tornar ao seio d'ellas; protegem-no contra a injuria; +enviam-lhe a visita de caridade que o instrue, consola e ás vezes restaura. +Estas conversões são raras certamente; quasi todas as nossas prisões são +infectas; ahi a soledade corrompe; e a promiscuidade é contagiosa. Sabem-no os +legisladores, e os juizes tambem. Não se diz, porém, que assim o querem juizes +e legisladores? E, na verdade, querem-no assim!? Que se nos depara ahi senão o +stygma da imperfeição das nossas obras, e a pequenez de recursos em comparação +dos desejos? Mas nem por isso nos sentimos descrer dos intimos anhelos que nos +incitam a buscar nas penas meio de restaurar a ordem perturbada, onde quer que +seja, e até na alma do criminoso. O que a mesma imperfeição nos aconselha é que +prosigam sem descanso no intento, que será completamente realisado no mundo em +que a justiça é perfeita, e o poder do principe igual á sua justiça.</p> + +<p>Não nos mostrem, pois, no inferno, uma galé immensa,<span +class="pagenum">{<a name="pag_139">Pg. 139</a>}</span> repleta de impudentes +scelerados, porque vos será perguntado se Deus não póde, mais que os homens, +vencer corações rebeldes, ou se mais lhe praz exercitar sua omnipotencia a +perpetuar um feio espectaculo que nós, philosophos e christãos, bem quizeramos +que fosse banido.</p> + +<p>Esta concepção do inferno, tão ignobil quanto atroz, data visivelmente de +tempos barbaros, em que a vida physica afogava a moral, e a justiça não +transparecia aos olhos propriamente do sabio senão atravez da nuvem sanguinosa +da vingança.</p> + +<p>Punir eternamente o vicio com o vicio, a immoralidade com a immoralidade! +que projecto! e, na execução d'elle, que prodigio! Pois não basta justiçar o +homem no corpo? Será preciso que o aváro, durante a tortura, arda de saudades +dos thesouros que tantos cuidados lhe custaram e tantas dôres grangearam? Ha de +o comilão, deitado sobre grelhas em brasa estar a pensar sempre na cosinha e na +garrafeira? O voluptuoso, comido de chammas e de bichos, ha de estar sempre a +lagrimar pelas parceiras? Acham isto possivel? Sendo assim, no inferno sabe-se +melhor do que na terra o que valem riquezas, prazeres, divisas, veneras, +medalhas, sceptro e arminhos. Ahi, ser-se-ha, de facto, blasphemo, e +intencionalmente devasso, adultero, usurario, despota, valido, mas tudo isto +sobre brasas? Havemos de confessar que o local não é dos melhores para taes +desejos, e que só por milagre, em tal sitio e por muito tempo, possa haver +similhantes<span class="pagenum">{<a name="pag_140">Pg. 140</a>}</span> +delirios. Ora ahi vedes que se attribue a Deus o milagre de fixar a alma dos +condemnados sobre impuras imagens, immobilisando-as em appetites que o +offendem. É o peccado eternisado, e eternisado por Deus. Não cabe a +responsabilidade d'isso aos condemnados. Não os accuseis; lamentai-os; que +esses infelizes não são viciosos de vontade propria: é a lei que os obriga.</p> + +<h3>VII</h3> + +<h4>Ultimas considerações ácerca do inferno theologico</h4> + +<p>Affirmam os theologos que a liberdade é um mero accidente da nossa vida +mortal, e que, além da campa, se perde, tomando-nol-a Deus que nol-a dera, e +quebrando entre nossas mãos, no momento da morte, aquelle instrumento de nossas +provações. Os justos são esbulhados d'ella para permanecerem justos, e os máos +tambem para ficarem máos. Diz-se que Satan prevaricou por que era livre; e, +depois da queda de Satan, no céo não houve mais creaturas livres, nem tão pouco +no inferno, onde o proprio archanjo está acorrentado ao peccado.</p> + +<p>Não são, por isso, livres os condemnados. Pensam, amam, desejam; mas não +lhes é concedido meditar, amar e querer senão maldades. Soffrem e sabem o +porquê; mas não podem aproveitar-se do que sabem e do que soffrem. Conhecem os +seus crimes;<span class="pagenum">{<a name="pag_141">Pg. 141</a>}</span> porém, +não se arrependem, porque o arrependimento é um bem, e o bem não podem elles +sentil-o. Se peccam sempre, é que a tanto são obrigados por sentença. Conservam +razão e sentidos; mas consciencia não a tem, não discernem entre justo e +injusto; não são senhores de seus actos; soffrem avassalados pelos sentidos, +apezar da razão.</p> + +<p>Esta escravidão absoluta, irremediavel e eterna, explica superabundantemente +a immoralidade e o odioso de suas penas. Pois se de todo em todo lhes é +impossivel a conversão, inutil e deshumano é o castigo corporal que os +tortura.</p> + +<p>Se não fosse a perpetuidade d'esta escravidão, seriam intelligiveis a fome, +a sede, o lago de sulphur, a cama d'espinhos, o cavalete, a roda, os tractos a +fogo e ferro. Vá d'exemplo: eis aqui um criminoso impenitente, que ha folgado +com os soffrimentos alheios e calcado todas as leis da terra. Morre. Acabou-se +tudo para elle? Não. Que vá, n'outro mundo, saber á sua custa o que é dôr, e +que piedade merecem os que soffrem. Deus é bastante poderoso para o castigar a +ponto de o fazer bradar por misericordia; é justo que o não poupe; exige-o a +humanidade, com a condição de que esse peccador castigado seja ainda homem, +isto é, um ser não só intelligente e sensivel, mas livre, e, por consequencia, +susceptivel de emenda. Mas, se antes de o ferir, lhe tira o recurso do +arrependimento; se, em vez do homem, o que temos á vista é um mero bruto +sobrenatural, monstruoso, ignobil, a quem a<span class="pagenum">{<a +name="pag_142">Pg. 142</a>}</span> dôr nada ensina, e a razão nada presta, máo +por necessidade, torturado, sangrento, nojoso, gemente... ah! quem falla ahi de +justiça? desfaçam por piedade esse monstro; basta de padecer; logo que lhe +tirastes a liberdade, restituida lhe foi a innocencia.</p> + +<p>Quando uma creança brinca á beira de um poço, e cahe apezar dos avisos da +mãe, a pobre mãe não respira em quanto a não salva; corre logo sem attender á +desobediencia, porque a vê mais carecida do soccorro quanto maior é o perigo; +para castigo lhe basta a quéda. Que diriam os theologos, se aquella mãe, em vez +de tirar do poço o filho, lhe fosse quebrar braços e pernas, e cobril-o de +pedras? O que elles theologos imaginam que Deus faz, é aquillo mesmo. +Aviltam-no quanto podem.<span class="pagenum">{<a name="pag_143">Pg. +143</a>}</span></p> + +<h2>CAPITULO QUINTO</h2> + +<h4>SURSUM CORDA</h4> + +<h3>I</h3> + +<p>Fujamos d'este lamaçal. Lavemos pés, mãos, cabeça e vestidos. Cauterisemos +os beiços com um carvão acceso. Demonios, chammas impuras, espiritos +malfeitores, odios, vinganças, carnificinas, ferozes alegrias, estupidos +terrores, sonhos do homem primitivo adormecido em antro á ourela de lagôas +turbidas, com o estomago regorgitado de carnes sanguentas, com a mão sobre a +clava, e a alma ainda fremente das paixões do dia; mystagogia antiga; sapiencia +idolatra; delirios renovados dos barbaros orientaes e occidentaes; confuso +acervo de subtilezas methaphysicas e torpes fabulas e aspirações, sublimes e +baixos erros, inferno velho e inferno novo, palacios oscillantes edificados com +ruinas, Naraka, Amenthi, Tartaro e Géhenna,<span class="pagenum">{<a +name="pag_144">Pg. 144</a>}</span> sumi-vos! O tempo avança; é já dia; a +calhandra já cantou, vamos á serra vêr o repontar do sol. Acima, ainda mais +para o alto, subamos ás espigas da montanha, onde o ar é mais sadio e o +horisonte mais amplo. Azas, azas! vamos admirar o sol que regenera a vida e a +fecundidade da terra, e a todo o ser a sua vera fórma, e aos homens, que +desperta do somno fundo, a consciencia de si mesmos e o sentimento das +realidades que o rodeam. Mais ao alto! Mais ainda! azas, azas, ó minha alma! +Voemos até á origem da luz, de que este pallido sol é apenas sombra!</p> + +<h3>II</h3> + +<p>Deus é uno, com infinita variedade de attributos, cuja manifestação lhe não +lesa a unidade. Conhecemol-o n'este mundo por fé unicamente, porque o não vemos +qual é, e não temos d'elle, em nossos corações, senão uma imagem imperfeita, e, +para assim dizer, mutilada. Por tanto, aquelle sagrado nome exprime o que +sabemos realmente, mas tambem o que não sabemos, e o que saberemos de Deus, no +dia derradeiro. Encerra Deus todas as perfeições, cujo complexo, de que apenas +concebemos parte minima, é o mysterio que adoramos atravez d'um véo, que a +morte levantará, assim para santos como para pecadores.</p> + +<p>Sem duvida que os mais obdurados peccadores hão<span class="pagenum">{<a +name="pag_145">Pg. 145</a>}</span> de vêr Deus; e hão de vêr não sómente alguns +attributos seus, mas todos; não hão de vêr sómente a sua eternidade, por quanto +a eternidade está em Deus, mas a eternidade não é Deus; não hão de vêr sómente +a sua justiça e infinita omnipotencia, por quanto a justiça infinita e +omnipotencia são em Deus, mas não constituem toda a sua essencia; não hão de +vêr sómente a sua justiça, por quanto a justiça está em Deus; mas só ou unida +ao poder eterno a justiça não é Deus: senão seriam tantos os deuses quantos são +os attributos e virtudes distinctas na unidade divina.</p> + +<p>Quando os peccadores virem Deus, então hão de vêr quanto ha em Deus, sua +bondade, misericordia e justiça; vel-o-hão a toda a luz, d'um só lance de +olhos, por que tudo o que a nossa lingua separa é inseparavel em Deus; e, se +elle retrahisse dos peccadores um só resplendor de sua face, ficaria sendo o +Deus abscondito que a nossa fé adora, e não o Deus visivel perante o qual toda +a incredulidade se dissipa. Pelo que, ao mesmo tempo que sua justiça encher de +medo as almas, a sua bondade as consolará mediante a confiança e +arrependimento.</p> + +<h3>III</h3> + +<p>Grandes e pequenos, doutos e ignorantes, todos os peccadores serão +castigados, cada qual á medida de suas culpas. Nenhuma será esquecida; mas, por +isso mesmo, todas as virtudes serão lembradas. Ao<span class="pagenum">{<a +name="pag_146">Pg. 146</a>}</span> pessimo peccador que em sua vida teve um bom +sentimento, um bom desejo sequer, isto lhe será como torcida ainda fumegante a +qual o sopro de Deus accenderá em flamma. O pouquinho bem que praticou lhe será +contado, até ao ceitil, até ao pucaro de agua dado ao caminheiro, até ao grão +de painço dado á avezinha, até ao movimento do dedo mendinho em que a creança +vacillante se amparou, até ao olhar compadecido pôsto na face do attribulado. +Estas são as unicas acções que elle quereria recomeçar e multiplicar n'esta +vida, se lhe fosse dado aqui voltar, por que é esse o sagrado laço que o une +ainda, posto que de longe, á assemblêa dos justos; e o mal que fez, esse ainda +subsiste, mas só na dôr que sente de havêl-o feito, e no arrependimento com que +o recorda. Prazeres torpes, revezados de inquietações amargas não os cubiça. +Deplora o ceo, e não a terra. Sómente saudades do ceo pódem enternecer a +lagrimas entes racionaes, desempeçados das trevas d'este mundo.</p> + +<h3>IV</h3> + +<p>Os mortos que Deus pune viram a Deus, e, a um tempo, se sentiram attrahidos +para elle, e repulsos e como repuxados para longe pelo iman de seus peccados. +Abriu-se o abysmo e cahiram, mas com a vista sempre fita n'aquella ineffavel +luz que lhe foge, e os braços estendidos para o Deus misericordioso que os<span +class="pagenum">{<a name="pag_147">Pg. 147</a>}</span> exila temporariamente +por causa de suas offensas. Cahem levando comsigo a indelevel memoria d'aquella +formosura e sabedoria infinitas que só instantaneamente viram, e ao +baquearem-se, exclamam: «Havei piedade de mim!»</p> + +<p>Os mortos que Deus castiga viram Deus; e para logo o amaram, que é +impossivel vêl-o sem o amar. Viram-o e esqueceram a terra; viram-o, e arderam +em sede inextinguivel de tornar a vêl-o e possuil-o. Verdadeiro castigo! +Expiação dolorosa, mas efficaz! Ardentes lagrimas, mas salutares, que o amor +derrama, e o amor enxugará.</p> + +<h3>V</h3> + +<p>Blasphemar que é? É negar Deus ou algum dos seus divinos attributos ou +alguma das eternas e infinitas propriedades do seu ser.</p> + +<p>Negar-lhe a existencia é blasphemia; negar-lhe o poder é blasphemia; +negar-lhe a immensidade, a eternidade ou a sabedoria é blasphemia.</p> + +<p>A blasphemia é somente praticavel n'estas regiões de duvida e mysterio em +que Deus escassamente se deixa entrever atravez d'um veo. Mas o veo cahiu na +presença dos mortos.</p> + +<p>Os cegos viram; os paralyticos andaram; os mudos fallaram. Confessam todos +que Deus existe, que é eterno e poderoso e justo. Negar-lhe a justiça como +poderiam elles, se sentem até ao amago de seu ser a<span class="pagenum">{<a +name="pag_148">Pg. 148</a>}</span> claridade ardente e purificante? E, se não +podem negal-a, como ousariam affrontal-a? Mas, se querem que elles blasphemem, +digam-nos qual das perfeições divinas elles negarão?</p> + +<p>Ai! aos theologos aprouve que os condemnados negassem a que mais valiosa +lhes seria. Os condemnados negarão a bondade de Deus; injuriando-o de máo, de +cruel, de implacavel, de escarnecedor de suas agonias, de vingativo, de +carrasco, e não juiz. Isto, com effeito, é que é blasphemar.</p> + +<p>Mas estes impios discursos não os vociferam os mortos castigados por Deus; +sois vós, scribas e doutores, que lh'os inventastes; e o que a isso vos levou +foi o imaginardes um inferno perpetuo, e, pelo tanto, o effeito que o castigo +esteril devia produzir sobre soffredores immortaes. Entrai mentalmente n'essa +catacumba infecta, tomai por instantes o logar das victimas, e ousai fallar em +bondade de Deus. Não acreditareis em tal. Máo grado vosso, a blasphemia vos +fugirá da bôcca.</p> + +<p>Os primeiros blasphemadores são, logo, os inventores d'aquelle imaginario +supplicio. Á maneira dos idolatras, fraccionaram Deus, extremando entre justiça +e bondade—attributos indistintos. De modo que essas presumidas +blasphemias do inferno são sómente um ecco das que esbravejaram nas almas +d'elles, ao contemplarem a sua obra.<span class="pagenum">{<a +name="pag_149">Pg. 149</a>}</span></p> + +<h3>VI</h3> + +<p>Deus é justiça e misericordia conjuncta e indivisivelmente. Nos actos da sua +justiça ha sempre um fundamento de misericordia; e, nos actos em que sómente a +sua misericordia realça, ha um fundamento de justiça. É offendel-o dizer que é +misericordioso sem justiça para uns, e justiceiro sem misericordia para outros. +Isto é falso quanto ao tempo e quanto á eternidade. É justo Deus com os justos +coroando-os, por que se a salvação d'estes fosse gratuita e mera complacencia +particular, favor e não recompensa, o castigo dos peccadores seria iniquo. Na +gloria, pois, dos bemaventurados reina tanta justiça quanta misericordia.</p> + +<p>Mas, se Deus, no outro mundo, é justo para os eleitos, por que não ha de ser +misericordioso com os peccadores?</p> + +<p>Mostrais-me a sua misericordia no ceo; e eu tambem lá vejo a sua justiça.</p> + +<p>Mostrais-me a sua justiça no inferno, e eu tambem lá procuro a sua +misericordia.</p> + +<h3>VII</h3> + +<p>A condemnação do vosso inferno está na necessidade logica e invisivel que lá +obriga a offender e amaldiçoar Deus. É isso possivel? Deus quer ser +injuriado<span class="pagenum">{<a name="pag_150">Pg. 150</a>}</span> +eternamente? Não quererá antes ser adorado e abençoado por todas as creaturas? +Adoram-no os santos em jubilo, e os mortos, que pune, adoram-no em penas, por +que sabem que ellas hão de ter fim.</p> + +<p>Seja-me testemunha o Evangelho.<span class="pagenum">{<a name="pag_151">Pg. +151</a>}</span></p> + +<h2>CAPITULO SEXTO</h2> + +<h4>A parabola do rico avarento</h4> + +<p style="text-align: right;"><em><small>Lux in tenebris.</small></em></p> + +<p>Lêde no Evangelho de S. Lucas, capitulo XVI, a parabola do rico avarento.</p> + +<p>Do fundo do inferno, o rico avarento levanta a voz para seu pae Abrahão: +«Compadece-te de mim, e manda cá a Lazaro, para que molhe em agua a ponta do +seu dedo, a fim de me refrescar a lingua.» Lazaro não se bole, em quanto o +patriarcha lembra ao padecente a pena de talião; cabe agora ao opulento +mendigar, e ao pobre fartar-se.</p> + +<p>O rico avarento baixou os olhos, e não pediu mais agua: resignou-se, não +murmurou, não blasphemou, renunciou a gottinha d'agua como renunciára as vestes +purpureas e as regalias da meza. Todavia, ainda outra vez se dirigiu ao pae +Abrahão: «Eu te rogo<span class="pagenum">{<a name="pag_152">Pg. +152</a>}</span> que o mandes a casa de meu pae, pois que tenho cinco irmãos, +para que lhes dê testemunho, não succeda virem tambem elles parar a este logar +de tormento.» E Abrahão lhe disse: «Elles lá tem Moysés e os prophetas: +ouçam-os.» Ainda assim, o padecente insiste: «Mas, se algum morto lá fôr, elles +farão penitencia.»</p> + +<p>Ahi está mudada não só a fortuna do rico avarento, mas o coração tambem. +Eil-o humilde, supplicante, submisso. Recebe as recusas sem irar-se; e, em meio +de suas dôres, lembra-se enternecido de cinco irmãos que deixou na terra. Não +lhes inveja os haveres; pelo contrario, quer incutir-lhes caridade, e só por +amor d'elles importuna o seu ascendente Abrahão. Porém, Lazaro e Abrahão +sahem-lhe tão rijos como elle tinha sido para com as dôres alheias. O tal +Lazaro, cujas chagas os cães lambiam, tornou-se menos piedoso com o proximo do +que haviam sido com elle os cães. Refocila-se nas delicias do ceo, como o rico +avarento se refocilára nas da terra, e esqueceu o que era penar, e o que se +deve a quem pede. No tocante ao patriarcha, esse, em vez de consolar o neto +supplicante, desespera-o; e, a segunda vez que o desgraçado ousa pedir-lhe um +milagre de bondade, não para si, mas para os irmãos, que lhe responde o outro? +Responde seccamente que os irmãos lá tem as escripturas tão dignas de credito +como os mortos, pelo menos.</p> + +<p>Admiravel, mas, para theologos, incomprehensivel parabola! Eis aqui o +inferno converso, repêso, enternecido, o rico aváro deplorativo e caridoso, e +por cima,<span class="pagenum">{<a name="pag_153">Pg. 153</a>}</span> um ceo de +bronze, uns santos descaroados. Este não é o inferno judaico, é christão; mas o +paraiso esse é que é judaico, e não christão.<span class="pagenum">{<a +name="pag_154">Pg. 154</a>}</span></p> + +<h2>CAPITULO SETIMO</h2> + +<h4>Terra, inferno, ceo.</h4> + +<h4><small>DESVIRTUAR O INFERNO É DESVIRTUAR A TERRA E O CEO. NÃO É OUTRO O +SENTIDO LATENTE DA PARABOLA DE LAZARO</small></h4> + +<h3>I</h3> + +<h4>TERRA</h4> + +<p>As affeições d'esta vida continuam na outra. Mesmamente no ceo, a Virgem é +Mãe de Christo. Todos esperam reconhecer, além-tumulo, as pessoas que na terra +estremeceram. Reconhecer-se-hão os esposos, pois que hão de reconhecer os +filhos. Esta esperança é a maior consolação d'esta vida, e uma das forças que +nos attrahem para o ceo. Mas o perpetuo inferno nos escurece aquella esperança +e nos esfria os mais santos affectos.</p> + +<p>Eis um pae de familia que morre subitamente ou de violenta morte, ou na sua +cama, sem padre, sem sacramentos, ao cabo de uma vida devota. Imaginem a +incerteza da viuva e dos orphãos quanto á salvação d'esse ente que os amou, +educou, nutriu, instruiu e<span class="pagenum">{<a name="pag_155">Pg. +155</a>}</span> consolou. Se ha coisa verdadeira no ensino dos theologos, +podemos apostar mil contra um que este homem cahiu no inferno para sempre.</p> + +<p>Que afflicção para acrescentar ás angustias d'aquella familia! Se elles +tivessem a certeza de amar um peccador penitente, a quem rogos e boas obras +podessem levar refrigerio, que supplicas, que piedosas obras não fariam! Mas +amar um condemnado! suffragar um condemnado! amarrarem-se á memoria de um +condemnado! guardar-lhe as reliquias, as cartas, o retrato! Choral-o, suspirar +por ir vêl-o! De repente, morrer para odial-o! Saber, e pensar estas coisas! +Seja embora uma duvida; é duvida que gela a oração no peito; quebra o animo +para o bem-proceder; espanca a piedade do lar; e aconselha o estontecer-se e +esquecer-se um homem—coisa tão natural ao mundano egoismo—; ou +então, o outro egoismo feroz e sombrio do frade que immola á sua propria +salvação todos os affectos humanos.</p> + +<h3>II</h3> + +<h4>Ceo</h4> + +<p>Haverá no ceo familias que se encontrem; mas tambem no ceo haverá orphãos +eternos, e viuvas eternas, e mães eternamente sem filhos. Se isto é motivo para +amarguras, ahi está o agro das doçuras do ceo; mas, se é motivo para alegrias, +que horriveis alegrias!<span class="pagenum">{<a name="pag_156">Pg. +156</a>}</span></p> + +<p>O rico avarento do Evangelho seria em verdade melhor do que os eleitos. Sem +duvida, mais caridade haveria no inferno que no ceo.<span class="pagenum">{<a +name="pag_157">Pg. 157</a>}</span></p> + +<h2>CAPITULO OITAVO</h2> + +<h4>HISTORIA DE UM SONHO</h4> + +<h3>I</h3> + +<p>Ganhou um medico, á cabeceira de um pobre, doença mortal. Chegou tão +depressa a morte que não lhe deu tempo de chamar o padre. Chegou o padre, +quando elle era já morto. Circumvagou os olhos pelos assistentes, disse que o +chamaram tarde, e sahiu dando aos hombros.</p> + +<p>As poucas palavras e o gesto impressionaram vivamente a viuva, que se quedou +a pensar n'aquillo todo dia.</p> + +<h3>II</h3> + +<p>E eu velava á sombra do funebre leito. A viuva estava ali orando, soluçando, +e sempre preoccupada,<span class="pagenum">{<a name="pag_158">Pg. +158</a>}</span> a pezar seu, com as palavras do padre. A intervallos, olhava +ella para mim chorando, invocava-me como testemunha da virtude de seu marido, e +dizia-me com anciedade: «Não se salvará elle?»—Não duvide, +senhora—dizia-lhe eu; porém tristemente eu via que as minhas respostas a +não socegavam.</p> + +<p>Ao cahir da tarde, como ella desde a vespera não comesse nem dormisse, fiz +que seu filhinho lhe offerecesse algum alimento. Debalde se esforçou por +engulir. Então pediu um livro de orações. Abriu ao acaso um que lhe deram, +esperando achar ali algum alivio, que não achou; pelo contrario, com a leitura +cresceu-lhe a inquietação. Vi-lhe então no rosto uns tregeitos involuntarios, e +um crispar de mãos, e por fim um grito e logo cahiu desmaiada nos braços de +quem a levou d'ali.</p> + +<h3>III</h3> + +<p>Apanhei o livro cahido de suas mãos. Denominava-se <em>Quotidiano do +christão</em>, e facilmente conheci nas paginas avincadas as passagens que ella +tinha lido: eram os <em>Pensamentos christãos para todos os dias do mez</em>, +pelo padre Bouhours, da companhia de Jesus. Tinha ella desmaiado quando lia no +<em>quinto dia</em> uma meditação ácerca do <em>Juizo final</em>. Acontece +sempre que o ferido ao cahir bate sempre na chaga. Alguns trechos do capitulo, +cujas margens estavam laceradas, diziam assim: «Quão terrivel é o dia da ira do +Senhor!<span class="pagenum">{<a name="pag_159">Pg. 159</a>}</span> Os justos +escassamente serão havidos como taes: que será dos peccadores? Que sentença +póde esperar o peccador impenitente de um Deus inexoravel? Oh! que +terribilissima sentença! <em>Ide, malditos, arder em fogo eterno!</em> Ai! onde +irão, Senhor, esses desgraçados que amaldiçoaes? Para que ponto do mundo +quereis que se afastem, distanciando-se de vós? Onde é que está paragem tão +funesta?</p> + +<p> </p> + +<p style="text-align: center;">«SEXTO DIA</p> + +<p style="text-align: center;"><small>«O INFERNO</small></p> + +<p>«I. Que horror ganhariamos ao inferno, se podessemos ouvir os lamentaveis +gritos dos condemnados! Suspiram, gemem, urram como bestas-feras em meio de +lavaredas. Accusam-se de seus peccados, chorando-se, detestando-os; mas +<small>É TARDE</small>. <em>O chorar não lhes faz senão augmentar o ardor do +fogo que os queima sem consumil-os.</em> Penitencia dos condemnados! quanto és +rigorosa, e <em>inutil</em>!</p> + +<p>«II. Não vêr Deus nunca, arder em fogo de que o nosso é apenas sombra; +soffrer ao mesmo tempo quantos males ha ahi, <em>sem allivio, sem repouso; +sempre com os olhos postos nos demonios, sempre com o coração raivoso e +desesperado</em>, que vida!</p> + +<p>«III. Esses desgraçados <em>enfuriam-se</em> por terem desprezado tantas +occasiões de salvarem-se. <em>O recordarem os prazeres passados é-lhes um de +seus mais penosos tormentos</em>; mas o tormento superior a todos<span +class="pagenum">{<a name="pag_160">Pg. 160</a>}</span> é a lembrança de terem, +por sua culpa, perdido Deus.»<sup><a name="L2808" id="L2808" +href="#L2806">[6]</a></sup></p> + +<p>Pobre mulher!—disse eu entre mim lendo aquelle capitulo—vêr seu +marido, tão bom homem, alcunhado de besta-fera! E topar em livro de piedade, +onde procurava consolar-se, esta cruel sentença que de manhã ouvira da bôcca +d'um sacerdote: <small>É MUITO TARDE</small>!... Quiz fechar o livro; mas o +titulo do <em>Dia</em> seguinte, impresso em versaletes, susteve-me.</p> + +<p> </p> + +<p style="text-align: center;">«SETIMO DIA</p> + +<p style="text-align: center;"><small>«DA ETERNIDADE DAS PENAS DO +INFERNO</small></p> + +<p>«I. Poderá ir mais adiante a cólera de Deus <em>que castiga prazeres que tão +pouco duram com supplicios sem fim</em>? Que desgraça não é isto! Não bastará +que os males d'um condemnado sejam extremos? É forçoso que sejam eternos? Uma +picada de alfinete é mal bem leve; todavia, se este mal durasse sempre, +tornar-se-hia insupportavel. Ora, os tormentos do inferno que serão?<span +class="pagenum">{<a name="pag_161">Pg. 161</a>}</span></p> + +<p>«II. Ó eternidade! <em>Quando um condemnado podesse derramar lagrimas +bastantes para fazerem quantos mares e rios tem o mundo, ainda que vertesse uma +só lagrima em cada seculo, elle não estaria mais adiantado, depois de tantos +milhões d'annos, como quando começou a penar.</em></p> + +<p>«<em>Ser-lhe-ha forçoso recomeçar como se não tivesse nada padecido; e, +quando tiver recomeçado tantas vezes quantos são os grãos de areia nas praias, +os atomos no ar e as folhas nos bosques, nada d'isso lhe será contado.</em></p> + +<p>«III. Não só por toda a eternidade os condemnados soffrerão; <em>mas, a cada +instante, soffrem a eternidade inteira</em>. Está-lhes sempre á vista a +eternidade; em todas as dôres se lhes côa a eternidade. <em>As penas infinitas +continuamente lhes estão no espirito.</em> Cruel idêa! deploravel situação! +<em>Arder por uma eternidade! chorar eternamente! Raivar sem fim!</em>»</p> + +<p>Esta meditação corresponde ao <em>Setimo dia</em>, que é<span +class="pagenum">{<a name="pag_162">Pg. 162</a>}</span> aquelle em que o Senhor +entrou em descanso para admirar suas obras.</p> + +<div class="rodape"> +<p><sup><a name="L2806" id="L2806" href="#L2808">[6]</a></sup> O padre Bouhours +foi um solerte engenho, bastante mundanal, que distillava a frio no seu +gabinete aquella rhetorica medonha, cuja leitura, se lhe dessem valor serio, +seria capaz de fazer abortar uma mulher gravida. Acintemente abastarda elle +n'este livro a verdadeira doutrina ácerca do inferno, doutrina em que se +aprende que os condemnados amam o peccado, pois que amar o peccado é odiar +Deus; conhecendo, porém, a desmoralisação de tal pena, o padre Bouhours presume +que os condemnados abominam o peccado, mas que os seus olhos se abriram <em>já +tarde</em>, por maneira que substitue á pena immoral, mas apparentemente justa, +uma pena de apparencia moral, mas para isso mesmo horrivelmente iniqua, por que +detestar o peccado é amar o que ha mais avêsso ao peccado, isto é, a virtude, +ou, mais ao claro, Deus. Segue-se que Deus deixaria infernados os que o amam e +se arrependem de o haver offendido. N'outro capitulo da mesma obra o mesmo +padre é de parecer que os condemnados não podem amar Deus. Mas, se elles não +amam o bem nem o mal, nada amam; e então que vem a ser as penas espirituaes? +Que soffrem? por que soffrem? por que se afflijem do perdimento d'um bem que +não amam? e por que os afflige a perda dos prazeres que abominam? Tudo isso +dispára n'um apontoado de sandices.</p> +</div> + +<h3>IV</h3> + +<p>Acabava eu de lêr, agitado, aquella pagina, quando a viuva recuperou os +sentidos; mas quasi mentecapta. Exclamava ella que tinha a certeza de seu +marido ter sido condemnado, por que não acreditava em tudo que a egreja +ensinava, e morrêra sem confissão; accrescentava que o marido era bom para ella +e para todos; que, ainda mesmo que a houvesse offendido, lhe perdoava pelo +muito que elle estava padecendo, e que desejava ir juntar-se-lhe e consolal-o +no inferno. Fallava em matar-se para mais depressa o vêr; e, dizendo isto, +aconchegava o filho do seio, sorria-lhe, beijava-o convulsivamente, em duvida +se devia matal-o; por quanto, dizia ella, o menino iria ao paraizo, se morresse +então; e não se veriam mais, desejando ella leval-o ao pae.</p> + +<p>Assim que ouvi os gritos, sahi do quarto mortuario para soccorrer, se fosse +preciso, aquella afflicta gente, sobrecarregada com outra desgraça. Cercamos a +joven viuva, vigiando angustiosamente os seus menores movimentos, por medo de +que ella não praticasse algum acto de desesperação, de que dera mostras. +Quizemos tirar-lhe o filho; mas ella dava ares de querer afogal-o antes que +lh'o tirassem. Parecia já mais tranquilla<span class="pagenum">{<a +name="pag_163">Pg. 163</a>}</span> que todos nós. Desfigurou-se-lhe +cadavericamente o semblante; os olhos porém brilhavam, e o sorrir tinha um ar +celestial. Fallava sem cessar do marido, e do prazer que ella teria em +acompanhal-o no soffrimento. A mãe ajoelhou-se diante d'ella, que a levantou +amorosamente, rogando-lhe que não pedisse a Deus pela sua alma.</p> + +<p>Conseguimos em fim separal-a do filho, e levamol-os um apoz outro, elle já +adormecido, e ella luctando comnosco, desgrenhada e rota. Seguiram-na os +parentes, e eu fiquei sósinho á beira do cadaver.</p> + +<h3>V</h3> + +<p>Bem desejava eu tambem saír: carecia de distrahir-me. Piedade, cólera, fé, +duvida, terror, mil contrarios sentimentos me agitavam, dos quaes eu não podia +defender-me ao pé do esquife, e depois de similhante espectaculo! Encostei-me á +banca onde estava deitado sobre uma alva coberta um crucifixo de marfim, e, +contemplando aquella divina imagem, recolhi-me no mais intimo retrahimento +d'alma. Perguntava eu a mim mesmo, com o coração apertado, o que devia crer-se +da vida e morte de Christo, e se era certo que elle descesse do céo, como se +dizia, para assombrar os justos, desesperar os peccadores, e conturbar a razão +dos fracos. E a mim me quiz parecer que Jesus estava ali, e pensei vêl-o +chorar, e<span class="pagenum">{<a name="pag_164">Pg. 164</a>}</span> que uma +de suas lagrimas resvalou sobre o <em>Quotidiano do christão</em>, e tudo que +eu havia lido n'aquelle livro subitamente se desfez.</p> + +<p>Estava ainda comtudo a minha alma perturbada. Interroguei o Christo. Não me +respondeu. Então entrei em duvida se eu estava adormecido ou desperto. +Vi—seria sonho?—um oceano de trevas alcantilar-se á volta de mim, e +no seio d'essa escuridão immensa lampejava um frouxo raio de luz. E esta luz +saia das fendas de um sepulchro, e Jesus estava deitado vivo n'esse sepulchro. +Eu quiz levantar a pedra que o cobria, mas uns verdugos envoltos em trevas me +deceparam as mãos; eu quiz balbuciar, e arrancaram-me a lingua; e assim +mutilado, cego e mudo senti-me arrebatado e precipitado ás entranhas de um +abysmo, e comprehendi que estava no inferno. O meu unico soffrimento ahi era a +cegueira, e a espectativa anciadissima dos supplicios que me esperavam. E, como +só tivesse ouvidos para entender, escutei, e comprehendi o seguinte.</p> + +<h3>VI</h3> + +<p>Ao principio ouvi um rumorejar estranho, que rolava prolongando-se ao travez +dos espaços infinitos, e depois decrescia até ao ciciar da folhagem que a brisa +da tarde acaricia, e por fim augmentava em estridor até exceder o roncar das +vagas cavadas pela borrasca.<span class="pagenum">{<a name="pag_165">Pg. +165</a>}</span> Estas comparações tiradas da terra não dão idêa da tristeza, do +pungente e solemne d'aquelle immenso rugir de seres sem nome que eu não podia +vêr e ouvir gemer. De toda a parte, suspiros, brados, soluços, gritos +exhorativos, mas tudo distincto, conglobando-se sem confundir-se, e formando um +brado unisono. Debaixo do sol não ha ahi espectaculo tão variado como o +prantear d'aquellas almas, ressoando em choro universal quasi claro ainda, e +mais afflictivo. Ao ouvir estes estrondos figurava-se-me que o sangue me +escorria dos pulsos cortados, e o suor da fronte, e as lagrimas dos olhos, e +tanto eu como tudo em redor soffriamos e supplicavamos.</p> + +<h3>VII</h3> + +<p>E uma voz exclamava: Oh! quanto eu soffro, Deus meu! Isto não terá fim? Vós, +Senhor, que me atirastes ignorante a um mundo escuro, não me julgaes, apoz +tantos seculos, bastante castigado dos meus desvios d'um dia?</p> + +<p>E outra voz exclamava: Quando os meus peccados aqui me abysmaram, vossa mão, +ó Deus, me amparava, e me ampara ainda; e, assim mesmo, em logar de diminuir, o +meu supplicio augmenta. Soffro com quantos de longe molestei: tenho fome com os +que eu poderia fartar; tenho frio com os que eu poderia vestir; peza sobre mim +a cada hora e cada<span class="pagenum">{<a name="pag_166">Pg. 166</a>}</span> +vez mais esmagadora a carga de males que fiz pezar sobre outros. +Multiplicaram-se as minhas offensas como a herva sobre a minha campa esquecida, +e as minhas feridas sangram sempre, e as minhas chagas lavram sem cessar. Isto +é justo, meu Deus! Poderia eu ser feliz no céo, se visse o effeito de minhas +obras? Em quanto fructifica a arvore fatal que plantei na terra, puni-me, +Senhor! Mas não me tireis a esperança! O pouquinho bem que fiz na vida não +germinará nem cobrirá, se o permittirdes, os vestigios das minhas iniquidades? +Oh! quando nenhum ente vivo, n'algum logar do mundo, já não podér imputar-me +seus soffrimentos, tende então piedade de mim, meu Deus!</p> + +<p>E todas as almas peccadoras, unindo-se em um brado de misericordia, +repetiram juntas, lá das reconditas profundezas: Tende piedade de mim! Tende +piedade de mim!</p> + +<p>Esta supplica em commum era a um tempo tão suave e dilacerante que eu +imaginei que o ceo se abriria. Mas a noite que me envolvia espessou-se mais +glacial; e o abysmo emmudeceu; e, apoz um instante de esperança, continuou a +lamentar-se, correndo como o oceano nas fragarias da costa.</p> + +<p>Ai! ai!—conclamavam os gritos que se extinguiam soluçando—é +surdo o céo! é surdo o céo!</p> + +<p>Nunca! nunca!—diziam outras vozes—Nunca! nunca! Meu Deus, que +resposta á dôr! Nunca! nunca!</p> + +<p>Descançai, filhos!—bradou um condemnado, que se me figurou, no tom de +voz, ser um dos patriarchas do<span class="pagenum">{<a name="pag_167">Pg. +167</a>}</span> abysmo—Não profirais essa palavra horrida. Ahi sôa em +vossos pobres seios um ecco das maldições da terra, e não palavra descida do +céo. Ha mais de mil annos que padeço, e oro, e escuto o céo, e não ouço a +resposta. Oremos, oremos sempre!</p> + +<p>E o ancião entoou um cantico; e, ao primeiro versiculo, parou e debulhou-se +em lagrimas.</p> + +<p>Ai!—ressoavam ao longe milhões de almas gementes—Ai! o céo é +surdo! o céo é surdo!</p> + +<p>N'este lance, uma voz sobrelevou a todas, dizendo:—Ensinai-nos, ao +menos, Senhor, a utilidade dos padecimentos. Se nos perdoasseis, acaso a vossa +gloria padeceria com isso? A felicidade dos justos soffreria diminuição? +Revoltar-se-hiam elles contra vós? Logo que as creaturas entraram á vossa +presença, não se lhes acrisolaram os sentimentos de piedade? O padre que me +estendia a mão quando era mortal e sujeito ao peccado, a esposa que eu amava, a +mãe que me gerou, os amigos que me trahiram e aos quaes perdoei, os pobres que +soccorri, e uma filha ingrata e amada a quem eu daria a comer o meu coração em +ancias de fome, nem essa, ninguem vos intercede por mim? Hontem oravam elles +quando eu me rejubilava nas culpas; pranteavam-me vivo e oravam por mim; e hoje +esquecem-me, pendem para o crime, fogem da dôr; o amor a quem soffre e geme é +sentimento ephemero, que vai mal para entes bemaventurados.</p> + +<p>E a voz que fallava assim ergueu-se ainda para amaldiçoar, mas falleceu-lhe +a força, e á maneira do<span class="pagenum">{<a name="pag_168">Pg. +168</a>}</span> vagalhão que rossa a nuvem rugindo, subita recaiu e expirou em +prolongado gemido.</p> + +<p>Mas logo um brado novo retumba mais estridente ainda, e, eu, ouvindo-o, não +distinguia se era oração, se blasphemia.</p> + +<p>E bradava:—Creio na vossa justiça, meu Deus; mas deixai-me crêr na +vossa misericordia. Não é ella tão infinita como a vossa justiça? Não é eterna? +Se me perdoaveis quando eu estava na terra, porque não me perdoais aqui? Se eu +sou o mesmo peccador, não sois vós o mesmo Deus? E, se a morte me mudou, pôde a +morte d'um ente como eu mudar a vossa immutavel natureza? Cansou-se acaso a +vossa bondade? Exhauriu-se? Sois vós susceptivel de cansaço? E, se alguma de +vossas virtudes é transitoria, de circumstancia e occasional, é forçoso que +seja a bondade, aquella ineffavel bondade que nós ignorantemente consideravamos +lá em cima a mesma essencial e inalteravel virtude vossa! Se assim +é—proseguiu a voz desesperada—anniquilai-me, Deus Omnipotente! Esta +existencia é inutil; sou de mais no universo. Que lucraes com as minhas dôres? +Tendes precisão d'ellas? Retomai esta vida de que sem duvida abusei, e esta +intelligencia que perverti; apagai em mim esta luz, visto que principiam a +rasgar-se os veos que a escurentavam.</p> + +<p>Tirai-me a lembrança do céo, a ancia de ser feliz, a necessidade d'amar, a +necessidade de saber; tirai-me, sobre tudo, por piedade, o sentimento da +justiça,<span class="pagenum">{<a name="pag_169">Pg. 169</a>}</span> porque eu +não sou Deus, e a vossa justiça é um mysterio, e contra minha vontade, a +blasphemarei. Deixai-me morrer, ó Deus! Deixai morrer quem soffre! Matai o +peccado incuravel e a dôr esteril, a fim de que na creação não haja um só atomo +que não palpite de reconhecimento e alegria, ao ouvir o vosso nome +santissimo.</p> + +<p>E um clamor horrendo abafou a voz que fallava; e, d'um angulo a outro do +abysmo, todas as almas em tortura escabujavam, rogando a Deus que as deixasse +morrer. E pediam a morte como os famintos mendigam pão; chamavam-na com os +gritos da mulher em angustias de parto do seu primogenito, com a dôr da victima +na fogueira, com o rugido da leôa que perdeu os cachorros, com o balido do +cordeirinho que procura a mãe. E eu tambem a chamava, e me pareceu vêl-a +aproximar-se, e beijei-lhe a mão glacial; e, quando me sentia morrer, +despertei.<span class="pagenum">{<a name="pag_170">Pg. 170</a>}</span></p> + +<h2>CAPITULO NONO</h2> + +<h4>JUDAS ISCARIOTE</h4> + +<h3>I</h3> + +<p>Eu escolheria d'entre os condemnados o mais desprezivel, se no inferno +existisse um miseravel maior do que Judas.</p> + +<p>Este vivia na amisade de Jesus; ninguem lhe conhecia mais de perto a +innocencia; e, como elle fosse o particular distribuidor das esmolas +(<em>João</em>, c. 13, v. 29), ninguem lhe conhecia melhor a bondade. Não +obstante, vendeu-o; e, depois de o atraiçoar, voltou, ceou com elle, e, ao +escurecer, guiou os soldados que o prenderam; e, como os soldados o não +conhecessem, deu-lhes signal, abraçando-o. Eis aqui o crime circumstanciado. +Premeditação, cubiça, villeza, tem de tudo. Judas vende o mestre e o amigo, o +sabio e o justo. Vende-o sem colera, sem paixão, por bom dinheiro<span +class="pagenum">{<a name="pag_171">Pg. 171</a>}</span> de contado, como +venderia na feira um jumento ou um boi. Sabe que desejam matal-o; não importa! +vende-o. E que será depois da Mãe de Jesus? e dos doentes que elle curava? e +dos ignorantes que ensinava? Ah! que tem Judas com as lagrimas de mãe e com a +ignorancia e lastimas do povo? Negociou com todas essas dores como mercadejou +com a amisade, com a sabedoria, com a innocencia, com tudo que ahi ha divinal +n'este mundo. Embolsou o preço; e, a fallar verdade, nem os phariseus nem elle +avaliaram cara a mercancia: trinta dinheiros! dez vezes menos que a libra dos +perfumes de Magdalena.</p> + +<h3>II</h3> + +<p>Um dos primeiros effeitos da perfidia de Judas foi a defecção dos apostolos. +Em vez de seguirem o Mestre, falsamente accusado de sacrilego e seductor, +dispersaram-se: Thiago, Simão, Thadeu, que elle chamava seus irmãos, João, o +seu amigo dilecto, todos por egual covardes, não cuidaram senão em salvar-se. +«Conheces este homem?» perguntaram a Pedro.—Não,—diz Pedro, o +chefe, o mais corajoso de todos—não o conheço.—Renegou-o trez +vezes; trez vezes mentiu; trez vezes testemunhou de falso em face dos +accusadores: depois, chorou na escuridão, e calou-se. Todos deixaram injuriar, +calumniar, chibatar e morrer Jesus, sem erguerem brado em sua defeza e<span +class="pagenum">{<a name="pag_172">Pg. 172</a>}</span> duvidando que fosse +Deus, duvidando-lhe da missão, das promessas; bem que, para grande opprobrio +d'elles, certos de sua amisade, pureza de vida, e excellencia da moral. Para se +reanimarem foi preciso o milagre que o pae Abrahão recusou ao rico avarento; +nada menos que resuscitarem os mortos, e que propriamente Jesus saísse do +sepulchro, e que elles o vissem, e conversassem e comessem em sua companhia, e +que Thomé lhe tocasse as chagas. Desde então é que prégaram com inabalavel fé a +divindade de Jesus.</p> + +<h3>III</h3> + +<p>O peccado dos apostolos, n'esta lamentavel historia da Paixão, é, na +essencia, egual ao de Judas, bem que não tanto odioso. Faltou-lhes a todos a +fé; porém, sendo a fé um dom sobrenatural, não devemos arguil-os desabridamente +porque não receberam o dom. O que do seu proceder nos irrita é deixarem ir até +final, sem publico protesto, a obra de Judas; é que abandonassem o innocente +amigo que os outros tinham vendido; é que não dissessem a Pilato ou Herodes: +«Não! este homem não é sedicioso; quer que se dê a Cezar o que é de Cezar, e a +Deus o que é de Deus; paz, desinteresse, e caridade são a sua doutrinação.» +Isto bem o sabiam elles, e não o disseram, e deviam têl-o dito, sem medo, e não +abafarem, como fizeram, o grito da consciencia. Este é que é o<span +class="pagenum">{<a name="pag_173">Pg. 173</a>}</span> crime dos apostolos, +crime natural, como o de Judas.</p> + +<p>Bem se deixa vêr que, se Judas vendeu o seu Deus, não pensava elle que +vendia Deus: vendeu-o sem vêl-o, sem reconhecêl-o divino. O que elle a sabidas +vendeu e quiz vender era um homem, pelo mesmo theor que os apostolos +desampararam e quizeram desamparar um homem, mas o melhor e mais sabio homem, e +o mais carinhoso amigo.</p> + +<p>Vender Deus! renegar Deus! É isso crivel quando se crê em Deus? Tal crime, á +força de disparatado, ficaria impune, como acto de sandice! Judas foi ingrato, +ladrão, egoista, traidor doble, fallacioso, assassino; tudo isso foi e mais +ainda; mas o certo é que, no intimo de seu coração, Judas não se julgava +deicida.</p> + +<h3>IV</h3> + +<p>Por mais infame que haja sido, Judas não o era tanto que não comprehendesse +a torpeza do seu acto. Tanto a comprehendeu que não se pôde afazer á sua +villania; e, em quanto os apostolos se escondiam, foi elle—dolorosissimo +acto!—confessar sua perfidia no templo, e restituir o dinheiro aos +compradores, dizendo: «Vendi o sangue do innocente.» Mas ninguem se desata do +seu remorso, como de um dinheiro que encrava espinhos na consciencia; e, na +bôcca de um traidor, o testimunho a favor da innocencia perde<span +class="pagenum">{<a name="pag_174">Pg. 174</a>}</span> muito de sua efficacia. +Sentiu-o vivissimamente Judas quando, apoz confessar-se do crime, os phariseus +lhe responderam: «Que se nos dá d'isso? Lá te avém.» Saíu então do templo, +convicto de que não estava em sua mão sustar as consequencias do seu crime, +corrido, desesperado, indo ao encontro da morte que merecêra, mas que ninguem +lhe dava, para que a sua penitencia fosse maior n'este mundo.</p> + +<h3>V</h3> + +<p>Vida de opprobrio e remorsos é expiação. Judas deveria viver. Porque se +matou? Se elle cresse na divindade de Jesus, não se mataria, pois que, +matando-se, ía entregar-se nas mãos d'Aquelle que atraiçoára. Por que se matou? +O suicidio nada remedeia, e tira da contemplação dos homens o salutar +espectaculo d'um criminoso contricto. Procurava elle anniquilar-se? A +anniquilação ser-lhe-hia doce refugio: o nada não é pena. Ora é certo que +ninguem disse que Judas fosse atheu. Se elle descrêsse de Deus e da vida +futura, como explicar-lhe os remorsos? Que é crime, quando se crê que tudo +acaba comnosco? Se não cresse em Deus, Judas guardaria os trinta dinheiros. Que +temia elle? Como cumplices de seu crime tinha todo Israel, os padres que o +corromperam, os senadores, Pilato, Caiphás, e a côrte de Herodes, e os proprios +apostolos que negaram a victima. Então por que se matou?<span +class="pagenum">{<a name="pag_175">Pg. 175</a>}</span></p> + +<h3>VI</h3> + +<p>No suicidio de Judas ha terrivel mysterio; mas tambem, n'este mysterio, ha +relance luminoso, e vem a ser que Judas, depois de confessar a perfidia, na +face dos tentadores, calcando o ouro recebido, vagando loucamente pelas ruas de +Jerusalem, valia tanto pelo menos como o senado judaico que continuava +deliberando friamente a morte do justo, como Pilato que lavava as mãos, como +Herodes e sua côrte que riam de tudo, e como os covardes amigos cujo +testemunho, n'aquella conjunctura, seria muito mais importante que o d'elle. +Tal monstro revertido a homem, de si mesmo horrorisado, saiu da cidade, entrou +aos campos por onde tantas vezes estancára com o affavel Mestre, viu-se indigno +de apertar a mão d'um amigo, porque havia trahido o mais fiel de todos; viu-se +indigno de piedade por que a não tivera; e, por fim, desejou acabar. Nunca +tinha sentido como então, nem quando ouvia Christo, o nada das riquezas, a +vaidade do mundo, o desgosto dos prazeres, o horror dos vicios que os seguem. +Oh! se elle podesse retroceder, delir de sua vida aquella nodoa de sangue, +sacudir o pezo que lhe abafava o coração, quão diverso do que fôra não seria! +Como agora se lhe figurava formosa a innocencia! Como as tentações lhe pareciam +boas de subjugar! Ah! se elle podesse quebrar as prisões<span +class="pagenum">{<a name="pag_176">Pg. 176</a>}</span> de Jesus, e banhar-lhe +os pés com suas lagrimas! Se podesse offerecer a vida a trôco da que o povo ía +sacrificar! Com que prazer se deitaria na cruz, e ahi morreria em paz, se lhe +fosse dado perdão de seu crime com tal condição!... Mas, ao longe, estrugia a +grita da multidão enfuriada, bradando: «Crucifica-o!» Escutava o tropel dos +cavallos, o retinir das armas, e a pancada do martello que cravava os pregos +nas mãos bemfazejas do amigo que elle vendêra. Iriçaram-se-lhe os cabellos, +reçumou-lhe suor glacial ao rosto, mal se tinha nas pernas como ebrio, sentia +retrahir-se-lhe o chão debaixo dos pés. Oh! como Jesus padecia! Mas Judas +padecia mais, porque soffria como criminoso, e não como justo. Os soffrimentos +de Judas excedem todo o confronto. Não ha ahi agonia que lhes compareis. Em um +dia, n'uma hora soffreu mais do que cem annos de penitencia no deserto, cem +annos de vergonhas e supplicios entre os homens. A sua alma era uma fornalha em +chammas. Os caminhos abrolhavam-lhe espinhos dilacerantes debaixo dos pés. Com +os proprios dentes lacerava os beiços. O sangue estuára-lhe nas veias. Aquelle +viver já não era vida de homem. Nem fome nem sede o espertavam do lethargo +horrendo. Fulgurava-lhe um só sentimento: o horror do seu crime. O que elle +levava pelos campos além era um cadaver já insensivel á dôr; e esse vil cadaver +é o que elle estrangulou pendente da arvore. Fez mal. Melhor lhe fôra morrer +ajoelhando, supplicando misericordia. Ah! acaso sabemos como elle morreu?<span +class="pagenum">{<a name="pag_177">Pg. 177</a>}</span> Por ventura, a dôr +refinada até aquelle extremo não será a mais eloquente supplica? Quem o sabe +n'este mundo?</p> + +<h3>VII</h3> + +<p>Seja, porém! Prosiga elle na outra vida o medonho supplicio que tentou +abreviar! Que esse incomportavel castigo redobre de hora a hora, de anno a +anno, de seculo a seculo. É justo. <em>Amen! amen!</em></p> + +<p>Conte-se e publique-se em todas as linguas da terra que ha dezoito seculos +Judas trahiu o Filho do homem, seu bemfeitor, seu amigo e mestre, e que o seu +castigo dura ainda. Maldito seja elle e todos os seus similhantes! Maldito seja +de pobres e ricos, dos filhos e das mães! Padres de Jesus Christo, levai esta +nova a todas as choças e palacios; dizei-a a grandes e pequenos, aos que +balanceam thuribulos, e aos que floream gladios, aos que julgam a terra e aos +que são julgados! Ai dos hypocritas! ai dos ingratos! ai dos homens de duas +linguas e duas caras! ai dos servos e dos irmãos tredos! ai dos que antepõem a +amisade á justiça, e vendem sua alma ao sanhedrin, e contam as suas moedas em +quanto o innocente é atormentado.</p> + +<p>Dizei isto a toda a terra, padres de Jesus Christo, que não haverá ahi +palavra que vos impugne.</p> + +<p>Sim! Não ha ahi crueza de morte, e mormente voluntaria morte que expie +tamanho crime. Judas soffre<span class="pagenum">{<a name="pag_178">Pg. +178</a>}</span> ha dois mil annos, e d'aqui a quatro mil soffrerá ainda, e em +quanto o genero humano não terminar a sua peregrinação terrestre, viverá em +supplicio recrescente de tormentos inauditos.</p> + +<h3>VIII</h3> + +<p>Entretanto, meu Deus, este mundo de provações, segundo dissestes e tudo o +confirma, ha de acabar. E, quando este mundo fôr destruido e renovado, quando +já não houver sol, nem berços, nem sepulchros, nem gerações de peccadores, não +perdoareis então a Judas? Quando elle apparecer á vossa presença no dia do +juizo, depois de tantos seculos de indescriptiveis dôres, não vos lembrareis de +que elle foi vosso amigo? Dar-se-ha caso que Pedro, esquecido da sua culpa e do +perdão que a disfarçou, diga ainda outra vez: «Não conheço este homem?» João, +Matheus, Thomé e Thiago, voltarão o rosto indignado, como se não houvessem +tambem peccado e duvidado? Não vos dirá o côro inteiro dos apostolos: «Senhor, +apiedai-vos d'elle. Sem a vossa graça, o que não teriamos feito nós?»</p> + +<p>Apiedai-vos d'elle, Senhor!—dirão todos os bemaventurados—que +elle, sem o saber, foi o instrumento e a victima da salvação dos homens. Feliz +culpa! dizia Santo Agostinho do peccado de Adão, feliz culpa que grangeou para +o genero humano situação melhor que a do Eden. Feliz tambem, meu Deus, a culpa +de<span class="pagenum">{<a name="pag_179">Pg. 179</a>}</span> Judas, pois era +mister que, em cumprimento de vossos decretos, fosseis trahido por um dos +vossos amigos. Horrendo, mas inevitavel crime, predicto muito antes pelos +prophetas; crime salutar, introito mysterioso da paixão; crime que foi +amaldiçoado e devia sêl-o, mas que hoje devemos perdoar e bemdizer, por quanto, +sem tal crime, ó dôce Jesus, nem vós terieis morrido, nem o mundo estaria +resgatado.</p> + +<p>Apiedai-vos, pois, de Judas! Commiserem-vos seus remorsos, tormentos e +lagrimas! Compadeça-vos a cegueira d'elle! É bem de crêr que fechais os olhos +da alma aos culpados e esta milagrosa cegueira com que os affligis é já per si +um castigo. Mas tambem os castigareis por peccados e erros commettidos com +vossa licença, no seio d'aquellas vingadoras trevas que derramastes no seu +caminho? Não, não, meu Deus, vós o dissestes. Lembrai-vos de vossas derradeiras +palavras na cruz redemptora, quando pedieis a vosso Pae perdão para os algozes, +para os sacerdotes que vos haviam comprado, para o amigo desleal que vos tinha +vendido, para o soldado cruel que vos cuspiu na face, para o povo desvairado +que vos injuriava no supplicio: «Perdoai-lhes, pae, que elles não sabem o que +fazem!»</p> + +<p>E vosso Pae, que tudo vos concede, perdoou-lhes o sacrilegio, a blasphemia, +e tudo quanto em seu crime entendia com a vossa abscondita divindade; +perdoou-lhes o que a justiça e caridade querem que se perdoe aos insensatos e +aos cegos, e a quantos <em>não sabem o que fazem</em>. O que ficou sobre elles +pezando<span class="pagenum">{<a name="pag_180">Pg. 180</a>}</span> é o peccado +contra a humanidade, por que bem conheciam os peccadores a sua culpa no momento +em que a commetteram. Meu Deus, perdoai-lhes! Pedevol-o o genero humano +ensinado por vossas lições e exemplos, e resgatado por vosso sangue.<span +class="pagenum">{<a name="pag_181">Pg. 181</a>}</span></p> + +<h2>CAPITULO DECIMO</h2> + +<h4>Conclusão em fórma de parabola</h4> + +<p>O pae de familia dizia aos seus servos: Ide aos meus celleiros; tomai a flôr +do grão que eu mesmo escolhi e ensaquei á parte em saco novo, e ide semear o +meu campo. Não lhe mistureis o grão do saco velho; porque esse embriaga o homem +e não o alimenta, e só para os cevados é bom.</p> + +<p>Cumpriram os servos as ordens do amo; deixaram, porém, por descuido, cahir +no saco novo os grãos malfazejos que o amo havia separado, e, logo que se +misturaram, não poderam extremal-os, e cegamente os atiraram á uma para os +sulcos.</p> + +<p>Chegado o estio, um caminheiro que passava admirou a belleza das espigas que +medravam na seara, mas reconheceu entre as espigas as plantas nocivas.<span +class="pagenum">{<a name="pag_182">Pg. 182</a>}</span> Arrancava elle +discretamente as que haviam germinado até á beira da estrada, quando os servos, +armados de páos, correram a prohibir-lhe que tocasse na seara que era de seu +amo. Perguntou-lhes o caminheiro onde estava o amo, e soube d'elles que era +fallecido, mas lhes recommendára que vigiassem a messe preparada para seus +filhos.</p> + +<p>O caminheiro, ouvida tal resposta, contristou-se, e lhes fez vêr a +differença que havia entre o joio e o trigo. E disse-lhes: Acautelai-vos de os +mandar juntos ao moinho, e não façais pão que não seja de puro fermento.</p> + +<p>Os servos, não obstante, persuadidos da sabedoria do amo e do cumprimento +fiel ás ordens recebidas, desconfiaram do caminhante, e de seus proprios olhos +até, quando lhes apontava a differença das duas plantas. Se isto é joio, +diziam, não fômos nós que o fizemos rebentar.</p> + +<p>Certo é que não—disse o passageiro—não fostes vós quem fez +germinar o trigo nem o joio, nem communicastes a cada um dos dois sua diversa +virtude, nem tão pouco lh'as podereis tirar; mas, se não sois quem os fez +crescer, fostes vós quem os semeou, depois de misturar os grãos que o pae de +familia havia cuidadosamente separado. Se amais os filhos de vosso amo, fazei o +que elle faria: não lhes deis a comer pão que empeçonha, porque d'elle +adoecerão, e outros hão de morrer.</p> + +<p>Turbaram-se grandemente os servos com tal discurso.<span class="pagenum">{<a +name="pag_183">Pg. 183</a>}</span> Um disse entre si: «Póde ser que o homem +tenha razão: aqui ha plantas que não parecem eguaes; e é acertado não desprezar +bons avisos, venham d'onde vierem, porque, um dia, quem sabe se nos serão +pedidas contas?» Outros, no entanto, diziam: «Este homem póde ser um impostor. +Quem sabe d'onde vem ou para onde vai? Quem lhe deu direito de nos ensinar? E +porque não hemos de dar d'este pão aos filhos de nosso amo? Nós comeremos +tambem d'elle.»</p> + +<p>Dizendo isto, abaixaram-se a apanhar pedras, e remessaram-as contra o +caminheiro que se affastou.<span class="pagenum">{<a name="pag_184">Pg. +184</a>}</span> <span class="pagenum">{<a name="pag_185">Pg. 185</a>}</span></p> + +<h1>APPENDICE</h1> + +<h2>CAPITULO PRIMEIRO</h2> + +<h4>PROVAS MYSTICAS DO INFERNO</h4> + +<h3>I</h3> + +<h4>Da auctoridade da Biblia</h4> + +<p>Ninguem nega que a Biblia contém brilhantes verdades; mas essas brilhantes +verdades não nos encantam por estarem na Biblia; em qualquer parte onde as +vissemos, as amariamos por seu natural resplendor. Da natureza d'ellas, as +encontrais nos escriptos dos antigos sabios. São taes verdades como a noiva dos +Cantares: a sua belleza é toda sua, e não reflexa, e todo seu imperio lhes +promana da formosura.</p> + +<p>Porém, a Biblia tambem encerra pensamentos que, pomposamente vestidos, nos +tocam o espirito por inverso modo. Quanto mais os examinamos tanto mais os +regeitamos. Afóra a visinhança, nada tem commum com as sympathicas verdades, +entre as quaes se nos deparam. É-nos, todavia, prohibido de as distinguir,<span +class="pagenum">{<a name="pag_186">Pg. 186</a>}</span> e confiar em uns com +desconfiança d'outros; dizem-nos que tudo é verdadeiro, e verdadeiro com o +mesmissimo titulo, não porque sejam umas cousas mais ou menos persuasivas que +outras, mas porque se acham escriptas n'aquelle livro.</p> + +<p>Dispensam-nos de procurar na Biblia o cunho interior que Deus gravou na +verdade para que a reconheçamos. Caracteres naturaes e distinctivos do erro +podem guiar-nos em tudo; mas na Biblia não. N'outros livros é facultativo +discernir o justo do injusto; para o quê temos regras certissimas, e +instrumentos agudissimos; mas é peccado querer julgar a Biblia. Cumpre-nos, +lendo-a, desconfiar do nosso coração, do nosso espirito, de tudo, salvo d'ella. +Assiste-nos o direito de dizer, como Platão que Homero ultraja a divina +magestade, quando mistura o Olympo com as paixões humanas; porém, quando a +Biblia glorifica a perfidia de Jahel, e a cavillação de Judith, e o roubo e +carnificina dos chananeos, e faz collaborar Deus em tantas traições e +morticinios, não nos é permittido o duvidar. Se Isaias nos figura o Salvador de +Israel calcando o povo como o vinhateiro esmaga a uva no lagar, foliando sobre +elle e sacudindo com selvagem alegria os seus vestidos aspergidos de sangue, +não seu, mas dos homens, devemos dizer: <em>Amen!</em> eis aqui o bom pastor, o +cordeiro de Deus, a mansa victima do Calvario, o Christo na sua gloria! E +quando o psalmista comparar o Senhor a um homem embriagado do vinho que lhe +redobra as forças e lhe faz expedir<span class="pagenum">{<a name="pag_187">Pg. +187</a>}</span> pavorosos gritos, devemos sem escrupulo responder: Assim seja! +Claro é que nenhum de nós quereria similhar-se ao vindimador sanguinolento nem +ao guerreiro ebrio; ninguem ousaria assim fallar de Atila recolhido á tenda, +com receio de ser ouvido; mas similhantes confrontos que envileceriam Jupiter e +offenderiam o rei dos hunos, prodigalisal-os-hemos ao nosso Deus, em seu +templo, attendendo a que os prophetas sabiam melhor do que nós quaes são os +elogios que lhe prazem. Taes sujeitos nada diziam do seu chefe: tudo que +escreviam era o espirito santo que lh'o ditava, desde os successos até ás +expressões significativas d'elles. Ora ahi está por que tudo é sagrado quanto a +Biblia contém, e por que tal pensamento, que n'outro livro trescalaria a +impiedade, é, na Biblia, uma adoravel coisa. Ha n'isso mysterio não menos +profundo que o do inferno, se tentarmos esclarecel-o; e tal mysterio, com que +se quer demonstrar outro, promove discussões que o catholicismo impugnou +sempre, servindo-se d'isso como arma contra os protestantes.</p> + +<p>O catholicismo diz aos protestantes: Como sabeis que a Biblia é divina? +Conhecestes Moysés? Quando Deus lhe fallou do cimo da montanha, estaveis +presente? Passastes a pé enxuto o mar vermelho, ou bebestes agua da rocha de +Horeb? Quem vos affirmou que aquelle homem era propheta? Que provas vedes na +Biblia de que não é toda ella obra de homens? Milagres? Outros livros os +contam, e vos fazem rir. Verdades? Outros livros as encerram sem que as +imputeis<span class="pagenum">{<a name="pag_188">Pg. 188</a>}</span> ao +Espirito Santo. Obscuridades? Coisa naturalissima, sendo tantas em todos os +auctores, e nos vossos não menos. Quem sois vós, para que vos acreditemos, +quando nos affirmaes inverosimilhanças? Não vos conhecemos. Que caução nos +dais? Sois inspirados? Fazeis milagres? Vejamol-os. Não basta dizer: a Biblia é +divina; é mister proval-o irrefutavelmente. O numero dos vossos partidarios não +faz nada á questão. O livro dos Vedas, que se gosa do foro de divino na Asia, é +tão antigo como a Biblia, e não tem menos sequazes. Se a Deus aprouvesse, +communicar-se aos homens por meios naturaes, como dizeis, fal-o-hia por lances +de bondade, com o fim de os unir, como filhos do mesmo pae, por que, a par e +passo que melhor se conhece Deus, mais se conhecem a caridade e justiça. Como é +pois que tantas nações, presumindo possuirem taes oraculos, em vez de viverem +unidas, luctam discordes, erigindo altar contra altar, injuriando-se, +perseguindo-se, e votando-se reciprocamente ás chammas eternas! O que as divide +é as obscuridades da Biblia; não é as verdades naturaes que lá se vos deparam. +Quem alumiará a escureza em que dizeis está Deus involto, e no seio da qual os +homens se dilaceram, desprezando naturaes e luminosissimas verdades? Os judeus +entendem as prophecias diversamente do vosso parecer; e, tão de boa fé as +interpretam, que sustentam a sua opinião em desterros, carceres, fogueiras, +durante seculos, fugindo, e deixando rasto de sangue por toda a parte do mundo. +Qual seita protestante não arrancou da espada<span class="pagenum">{<a +name="pag_189">Pg. 189</a>}</span> contra a sua irmã? Todas tem tido martyres e +verdugos. Isso não nos parece prova da divindade da Biblia. Nem sequer lhe +podereis provar a authenticidade. Os originaes d'esse livro miraculoso onde +param? Perderam-se, comeu-os a traça, como succede por tempo a tudo que é obra +de homens. Porção consideravel d'esse antigo monumento acabou ás mãos dos +hebreus, depositarios d'elle. O que nos resta são reliquias. Se capitulos +inteiros, de que apenas sabemos os titulos, já não existem, quem vos auctorisa +a pensar que os capitulos subsistentes não foram alterados? Estariam elles a +melhor resguardo? Por quem? Por que? E como? Quem os copiou? Quem os traduziu? +Quem abona a fidelidade de tantos copistas, e a intelligencia e sciencia dos +traductores? Por que signaes se conhece qual é a melhor entre as copias +antigas, e entre as differentes copias antigas? Em qual traducção confiaremos +entre tantas diversas? Reportar-nos-hemos ao livreiro, ao impressor, ou ao +editor? A quem? A mortos desconhecidos, a vivos ignorantes, ou a sabios sem +missão e cuja sciencia nos é ainda problematica? Pois que venha ahi quem +quizer, e mostrando um papel rabiscado exclame: eis-aqui a palavra de Deus! E +sem mais nem menos ponha-se a gente de joelhos! Á vista d'isso ninguem póde ser +accusado de idolatria. Se não tendes á mão outras provas da authenticidade e +divindade da Biblia, todo o homem cordato regeitará a Biblia, sem salvar o Novo +Testamento. O christianismo foi prégado antes da redacção<span +class="pagenum">{<a name="pag_190">Pg. 190</a>}</span> dos evangelhos, ás +multidões que não sabiam ler. Quando essas prégações começaram a correr +escriptas, os evangelhos eram aos cardumes; appareceram logo cincoenta +attribuidos aos apostolos e aos discipulos de Jesus.</p> + +<p>Quem se entenderia n'este cháos? Quem poderia decidir que o evangelho de +Thiago não era de Thiago, e que o evangelho de João era de João? Quem poderia +discriminar entre o verdadeiro e o falso? Entre o de Deus e o dos homens? Quem +poderia discernir e acreditar a boa copia entre as copias falsificadas de João? +A coisa não era de si tão luminosa que podessemos aceital-a hoje em dia.</p> + +<p>No quarto seculo, bem perto dos tempos apostolicos, esta questão enleava +gravissimos doutores, um dos quaes, testemunha de taes incertezas, Santo +Agostinho, dizia que elle sem o testemunho da Egreja não prestaria fé ao +verdadeiro evangelho. Não achava elle portanto nos escriptos de João, de Lucas, +de Marcos, de Matheus e de Paulo a prova intrinseca da sua divindade; com mais +forte razão não acharia a mesma prova intrinseca nos escriptos de Moysés, de +Samuel, de Esdras e outros prophetas.</p> + +<p>Se eu não debilitei, resumindo-as, as razões com que os catholicos intentam +reconduzir ao seu gremio as seitas dissidentes, expuz tudo o que tinha a expor +sobre a primeira prova mystica do inferno, extrahida das Escripturas. Passemos +á segunda prova que é o testemunho da Egreja.<span class="pagenum">{<a +name="pag_191">Pg. 191</a>}</span></p> + +<h3>II</h3> + +<h4>Da auctoridade da Egreja</h4> + +<p>Diz-nos a Egreja catholica que é preciso crêr o que ella nos ensina como se +Deus nos fallasse. Quando nos annuncia que todos nós peccamos antes de nascer, +e que a Virgem, mãe de Christo, nasceu sem peccado—o que se não acha no +evangelho—devemos acredital-o como se o evangelho o dissesse. A Egreja +supre o silencio das escripturas, interpreta os textos, umas vezes prende-se á +letra, outras descobre um entendimento occulto que só ella vê, o unico +verdadeiro. Como possue, com a Biblia, a tradição oral dos patriarchas, dos +prophetas e dos apostolos, a nova synagoga continúa no tempo e no espaço a +immortal cadêa, guardando, diz ella, o dom de prophecia e o dom dos +milagres.</p> + +<p>A Egreja catholica é mais que a imagem de Jesus Christo: está +consubstanciada n'elle como sua esposa. Testemunha do passado, luz do presente +e do futuro, legislador infallivel, juiz sem appellação, devemos consideral-a +sempre como viva incarnação do Verbo eterno. Seria a Biblia um livro duvidoso +em seu texto, se ella não asseverasse a autenticidade d'elle, e duvidoso em seu +espirito se não recebesse a missão de o explicar aos homens. De modo que toda a +auctoridade n'este<span class="pagenum">{<a name="pag_192">Pg. 192</a>}</span> +mundo, já a da razão, já a dos livros sagrados, sóme-se absorvida na soberana +auctoridade d'ella.</p> + +<p>Esta segunda prova do inferno é de natureza analoga á primeira: é mysterio. +Exponho-o sem o discutir. Mas os protestantes discutem-no; negam-o, reprovam-o +em nome dos prophetas e dos apostolos, e milhares e centenas de milhares +d'elles affrontariam a fome, o frio, a penuria, o exilio, os carceres, a +tortura ordinaria e extraordinaria, o poder de Cezar e toda a casta de +supplicios, com o denodo dos primitivos martyres, antes de vergar o joelho ante +a Egreja—o que elles qualificariam de idolatria. Não posso abster-me de +relatar algumas de suas objecções, as quaes, bem que sejam forçadas +sobrenaturalmente com versiculos do Apocalypse ou das Visões de Isaias, nem por +isso me parecem menos debeis.</p> + +<p>Temos, dizem, um facil meio de nos certificarmos da infallibilidade da +Egreja. Perguntai-lhe o que deve fazer-se em frequentes circumstancias da vida, +quando os mais doutos homens se bandeam em dous ou tres arraiaes, dizendo uns: +deve fazer-se isto; não,—dizem outros—isso é pessimo—; e os +terceiros sustentam que não se deve fazer nada, ainda que a inacção pareça aos +outros criminosa. Pelo facto de nos prohibirem actos manifestamente culposos +aos olhos da razão, já prohibidos por lei natural, pelo decalogo e pelos +philosophos, isso não convence que possuam luzes milagrosas para regerem almas. +O que queremos é que nos guiem no lance em que os outros<span +class="pagenum">{<a name="pag_193">Pg. 193</a>}</span> conductores nos +abandonam, nos pontos em que elles se desavém, em que se calam; emfim, na +conjunctura em que os homens tem grande interesse em conhecer a verdade que se +lhes occulta. Venha a Egreja n'um d'estes casos. Não affrontemos com os +casuistas multidão de problemas onde o nosso partido seria grande; busquemos +antes, nas relações da vida civil, um só d'esses factos duvidosos, sobre os +quaes a sabedoria humana está indecisa. Vá de exemplo o emprestar a juro, e +exponhamos primeiro a questão muito pelo alto.</p> + +<p>Deve emprestar um homem ao seu visinho, dinheiro ou qualquer outro valor, +gratuitamente? É, pelo contrario, licito haver parte dos lucros da quantia cujo +uso se permitte, por tempo marcado, ao visinho? Como principio, ninguem +condemna o emprestimo gratuito, o qual, á maneira da esmola, é um acto de +liberalidade muito para louvar-se, mas que seria nocivo, sendo praticado sem +discernimento. Todavia, alguns philosophos, e modernamente alguns caudilhos das +seitas communistas, defendem que o emprestimo gratuito é o unico bem consoante +á equidade natural, e que a minima usura é roubo. Estes philosophos tem sido +arregimentados na peor especie de utopistas. Toda a gente sisuda recusa +considerar a gratuidade do emprestimo como obrigação moral. Tal preceito +usurparia á mediania económica os meios de valer ao indigente laborioso; o pae +de familias não arriscaria as migalhas penosamente poupadas, se o não +acoroçoasse<span class="pagenum">{<a name="pag_194">Pg. 194</a>}</span> +esperança d'um beneficio adequado ao serviço que presta e aos perigos que +corre. Os que nada tem caíriam, por conseguinte, em mais apertada dependencia +dos que tem tudo profusamente. Nas modernas sociedades, similhante preceito +multiplicaria os invejosos, multiplicando os avarentos. Feriria de esterilidade +o campo da viuva, estagnaria o movimento da industria e commercio, e, pelo +tanto, o desenvolvimento da riqueza e vantagens moraes que ella proporciona. O +emprestimo a juro é logo geralmente admittido como justo e fertil em toda a +especie de prosperos resultados. Mas surdem para logo novos obstaculos. Deve-se +limitar a taxa do juro que o devedor pede ao crédor? Como se hão de avaliar os +prejuizos do devedor, e os lucros conjecturaes do crédor? Ha nada mais +hypothetico e variavel! Que differença entre a qualidade e os productos de duas +terras convisinhas, entre tal e tal mister, entre a capacidade d'este e a +d'aquelle! O juro legal, ás vezes pequenissimo, casos haverá em que seja +pezado; mas, como é legal, pezará com todo seu pezo sobre os que menos lh'o +podem supportar. Será elle até motivo a encarecerem os generos, e redundará em +incommodo e vexame. Tal é, quando menos, a opinião de celeberrimos +philosophos.</p> + +<p>Mas deve-se, como elles querem, deixar livre plenamente a vontade dos +contrahentes?</p> + +<p>Cuidar-se-ha que tudo isto é mera questão de economia politica: não é +verdade. Aqui, mais que tudo,<span class="pagenum">{<a name="pag_195">Pg. +195</a>}</span> militam questões moraes complicadas e de alto melindre, de +interesse quotidiano e universal, questões que enliçam elevadissimos espiritos, +e sobre as quaes devemos, por isso, interrogar a Egreja.</p> + +<p>Se consultamos os canones dos concilios, e nomeadamente os de Nicea, +d'Arles, de Carthago e de Elvira, achamos que a Egreja condemna, em theoria, o +emprestimo a juro. Na pratica, porém, tolera-o. Não insistamos na contradicção. +Se é permittido o emprestimo a juro, quaes são as condições? Tem alguem direito +de fixar o beneficio do devedor? Quem é? O Estado? Se é o Estado que fixa a +taxa do juro, é o Estado quem definitivamente decide do que Deus concede e do +que Deus prohibe, do que é e do que não é peccado, e por tanto a lei divina +varia com a phantasia da lei. Se não é o Estado, é o uso da terra? Ha nada mais +injusto e irregular? Que principio cumpre adoptar? Onde está o direito? Onde o +abuso? Que é da regra? Não ha nenhuma? Não ha. A tal respeito é tamanha a +desordem entre os theologos como entre os estadistas, e philosophos, e +economistas e jurisconsultos, e entre os confessores e penitentes. Varia em +cada diocese a jurisprudencia: não vamos tão longe; varia em cada parochia. +Mudai de confessor, e vereis que o mesmo facto, cercado das mesmas +circumstancias, muda o nome: peccado mortal, injustiça, expoliação no +confessionario á direita, acto licito no confessionario á esquerda, debaixo do +mesmo campanario, em nossas opiniões, e o seu facho milagroso vasqueja<span +class="pagenum">{<a name="pag_196">Pg. 196</a>}</span> ao pé do mesmo altar. Um +parocho vos condemna e outro vos salva. Parece pois que a infallibilidade +ecclesiastica é aleijada n'esta questão vital em que os ricos a invocam para +tranquillisarem suas consciencias, e os pobres para satisfazerem as necessidade +do corpo e as da alma, porque elles pedem de emprestimo para trabalhar, para +nutrir os filhos, educal-os, casal-os, auxiliar os seus parentes velhos, e +sepultal-os, e para isso é mister que achem quem lhes empreste.</p> + +<p>Quanto a materia politica, reinam as mesmas contradicções e incertezas dos +negocios civis. Ha factos criminosos perante a razão, e todavia são absolvidos +e até glorificados por uma parte do clero, sem excepção dos bispos, ao mesmo +tempo que uma outra parte da cleresia os condemna a meia voz; mas de modo que a +ouçam. A carnificina chamada de <em>Saint Barthélemy</em> foi approvada em Roma +e celebrada em quasi todos os pulpitos. A revocação do edito de Nantes foi +approvada pelo Papa e pela maioria dos bispos. Sobejar-nos-hiam exemplos, se os +quizessemos, sem ir tão longe. Por outro lado, ha factos legitimos, heroicos, +louvaveis, perante a razão, e esses são malsinados e condemnados como crimes +por parte do clero, sem excepção dos bispos, ao mesmo passo que outra parte do +clero os approva, e ás vezes tem parte n'elles. E tambem do clero ha porção que +se abstem de julgar taes actos. As ultimas insurreições da Polonia e Italia nos +dão exemplo recente e ainda sanguinolento. Aquillo que um Papa censurou, e +outro Papa<span class="pagenum">{<a name="pag_197">Pg. 197</a>}</span> +stygmatisou, outros padres applaudiram, alentaram e abençoaram! Estas +diversidades de opiniões sobre successos tão graves, e culpaveis, se o são, tão +admiraveis pelo contrario, se não são culpaveis, manifestam-se no secreto do +tribunal da penitencia como nos escriptos e actos publicos. O confessor de +Carlos IX considerou d'Orther subdito rebelde porque recusou ser assassino.</p> + +<p>O bispo de Abranches talvez negasse a absolvição ao confessor de Carlos IX. +Tal italiano, injuriado por um frade, seria festejado pelo seu cura. De maneira +que á vista d'uma auctoridade moral infallivel, bastantes catholicos, +testemunhas d'este espectaculo, vendo para onde Roma pende, perguntam +amargamente se em verdade os povos tem direitos, e meios de fazerem respeitar +os seus direitos; se a desobediencia ao rei é só permittida em materia de +dogma; se a liberdade, o trabalho do pensamento, da escripta e da voz não +merecem ser defendidos, comtanto que vos deixem a liberdade de rezar; se ha +outra patria além da Egreja; se o servilismo, já cégo, já illustrado, não é a +principal virtude civica; se, emfim, n'este mundo o belprazer dos poderosos não +é a suprema justiça. Estas e muitas outras perguntas tem sido +contradictoriamente respondidas pela Egreja, que não sabe melhor que nós onde +estão bem e mal, virtude e crime, em conjecturas solemnes e frequentes, nas +quaes bem e mal, virtude e crime avultam a proporções enormes. A Egreja hesita +comnosco, duvida comnosco, bandeia-se<span class="pagenum">{<a +name="pag_198">Pg. 198</a>}</span> e apaga-se quando entra nas veredas obscuras +em que o genero humano é forçado a entrar, as quaes inevitavelmente conduzem ao +céo ou ao inferno. A Egreja sabe que a Virgem foi concebida sem peccado; +conhece a gerarchia dos anjos; dogmatisa onde a incerteza seria talvez +prudente, e a ignorancia saudavel; porém, se procuramos regras de proceder, +esteio e guia nos tempos difficeis em que parece que a infallibilidade vai +resplandecer, activar-se e resolver a questão, a Egreja perturba-se, balbucia, +contradiz-se e desampara-nos á discrição.</p> + +<p>Como é então que ella prova a sua infallibilidade? Prohibe-nos de +esquadrinhar na Biblia as regras da nossa fé, allegando que a Biblia é livro +inintelligivel para nós. E, se lhe pedimos a razão d'isto, abre o livro que +incessantemente lemos, esse mesmo livro cuja authenticidade e sentido só ella +garante e explica. É ahi que ella pretende mostrar-nos a prova que lhe pedimos; +mas nós sustentamos que ahi não ha tal prova. Além d'isso, se é mister crêr +primeiro na Egreja quem houver de crêr nas Escripturas e entendel-as, que +argumento é esse? Póde qualquer, em um processo, invocar contra o seu +adversario um documento de que elle só se constitue interprete e juiz? +Contente-se pois a Egreja em affirmar que é infallivel, mas abstenha-se de o +provar.</p> + +<p>Eu por mim não creio. A infallibilidade é um attributo incommunicavel de +Deus como a eternidade e a omnipotencia. Se o Papa e os bispos fossem +infalliveis,<span class="pagenum">{<a name="pag_199">Pg. 199</a>}</span> não +bastaria respeital-os, seria mister adoral-os. Disso nos defenda Deus! São +homens como nós. E, quando o Espirito Santo nos illustra, somos como +similhantes aos candelabros do templo, e, sem o querer, confundimos a nossa +sombra com a luz que dardejamos em redor.</p> + +<p>Assim fallam os protestantes. Não digo que taes discursos sejam +concludentes: não me compete a mim julgal-os; mas d'este capitulo e do anterior +inferimos uma conclusão cuja justiça creio que ninguem contesta.</p> + +<h3>III</h3> + +<h4>Conclusão do que fica dito</h4> + +<p>A conclusão que eu desejaria tirar do que fica dito é que a Biblia e a +Egreja, estas duas auctoridades que se invocam em favor das penas eternas, não +tem o mesmo valor no conceito de toda a gente. Um protestante renegaria o +inferno, apezar dos anathemas dos Concilios, se a Escriptura lh'o não +annunciasse; mas um catholico renegaria o inferno, apezar da lucidez dos textos +biblicos, se aprouvesse á Egreja attribuir áquelles textos, segundo o parecer +de Origenes, um sentido visivelmente conforme á justiça e bondade de Deus.</p> + +<p>Tanto em Genebra como em Roma crê-se no inferno; mas por diversas razões; e +o que parece argumento decisivo para metade dos christãos, não têm a<span +class="pagenum">{<a name="pag_200">Pg. 200</a>}</span> mesma efficacia para a +outra metade. Conformam-se sobre a verdade d'um prodigio, recusando de ambas as +partes uma das duas testemunhas que o affirmam; os de Genebra considerando a +Egreja um professorado do erro; os de Roma sustentando que a Biblia +desencaminha aquelles que exclusivamente se fiam n'ella.<span +class="pagenum">{<a name="pag_201">Pg. 201</a>}</span></p> + +<h2>CAPITULO SEGUNDO</h2> + +<h4>Resposta a uma objecção</h4> + +<p>Fallei da multidão dos condemnados, e tirei d'esse facto, contra a +eternidade das penas, inferencia que me parece valiosa. É certo que a maioria +dos homens seja condemnada? Os fieis, que estudaram este assumpto em livros +modernamente escriptos, crêem que não, e vos dizem que os philosophos +maliciosamente assacaram aquella opinião aos seus adversarios para os tornar +odiosos. Não duvidam que ha inferno; não os inquieta a natureza do supplicio, +mas sim a quantidade dos suppliciados. Mil, cem mil, um milhão d'almas a +padecerem eternamente parece-lhes coisa muito de crêr-se, moralissima, +certissima. Não póde suppôr-se que o inferno esteja vasio; aliás melhor seria +supprimil-o. Um milhão ou alguns milhões d'almas,<span class="pagenum">{<a +name="pag_202">Pg. 202</a>}</span> se Deus as abandona, tambem ellas abandonam +a Deus; é bastante para exemplo, é bastante para justiça; porém metade do +genero humano e mais de metade, é excesso, é monstruoso: não se crê. Não é +isso, quer-nos parecer, a boa nova que celebraram ha mil e oito centos annos os +magos e os pastores nos caminhos de Bethelem. Mas os velhos dogmas de Israel +por tal arte andam baralhados com as verdades christãs, e tanto a primitiva +Egreja com elles se identificou formando um corpo doutrinal, que um homem +instruido não póde hoje, sem risco de heresia, tentar separal-as.</p> + +<p>Sem embargo, opera-se no seio do christianismo um singular trabalho, de que +o clero não dá tento, bem que a iniciativa de ha muito proceda d'elle mesmo. +Este trabalho de que as obras de Sanchez, de Escobar, do padre Annat, do padre +Lémoine, e d'outros casuistas, tão agramente invectivados por Pascal, eram +apenas indicios, tende a neutralisar cada vez mais a acção n'outro tempo tão +vigorosa dos elementos hebraicos do christianimo. Sentimentos, que debalde +quereriamos suffocar, rompem á luz; o coração reclama, bem que timidamente, +seus direitos; a consciencia, constrangida debaixo do pezo de abafadoras +tradições, não repulsa, mas a tremer levanta do peito o fardo, como para +respirar. Verdade é que ainda nos pregam os velhos mysterios da synagoga; mas, +ao mesmo tempo, cuidam em dissimular-lhes as consesequencias logicas relativas +á vida futura, e—notabilissimo caso!—não insistem nas consequencias +praticas,<span class="pagenum">{<a name="pag_203">Pg. 203</a>}</span> no +tocante á vida presente. Este ultimo facto, muito significativo, provém dos +casuistas. Foram elles quem primeiro quiz achanar aos homens a estrada do céo. +Como não soubessem conciliar as necessidades da vida terrestre com as da fé, e +não ousassem embarrar pelo inferno, com medo de torriscar os dedos, derruiram +audazmente a moral. Graças lhes sejam dadas, que isto de peccados mortaes está +por um fio! O assassino, mal lavou as mãos, e o perjuro mal lavou a lingua, são +admittidos ao sagrado banquete, O pulpito continua a fuzilar trovoadas +minacissimas; é ainda Isaias e S. Paulo a bradarem; mas, no tribunal da +penitencia, os coriscos apagam-se; quem confessa é o tolerante padre Lémoine, +que perfeitamente percebe que uma duqueza, uma capitalista, uma burgueza +opulenta não podem viver de favas, nem trajar de serguilha, nem dormir no +taboado, nem imitar sequer de longe a perfeição negativa das santas reclusas, +cujas virtudes andam celebradas nos pulpitos. Descobrir, porém, no complexo dos +actos dos homens, o limite exacto do dever, isso é desvario: ou prohibir, ou +permittir tudo quando se renuncia e dirigir verdadeiramente as peccadoras +mundanas para o antigo ideal da abstinencia ascetica. O theatro, o baile, os +hombros nús, a maledicencia, as prodigalidades do luxo, a parcimonia das +esmolas, a lisonja, a ambição, a cupidez, a ingratidão, as desavenças, tudo +passa, tudo é venial, nada impede da desobriga. Nem o juiz nem o penitente +conhecem regra. O mais virtuoso e austero padre<span class="pagenum">{<a +name="pag_204">Pg. 204</a>}</span> póde ser integerrimo no pulpito; mas, no +confessionario, treme, receia afugentar a alma que o procura; lembra-lhe o Bom +Pastor, o céo promettido ao ladrão que se accusa, o perdão da adultera, e +involuntariamente contribue a facilitar as quedas, e as reincidencias, +facilitando a expiação. Pois os primitivos christãos não tinham ouvido fallar +do bom ladrão, e da mulher adultera, e da parabola do Bom Pastor? Comparem com +a disciplina de hoje a de então que eu já referi. Se o padre Lémoine lesse nas +catacumbas um capitulo da <em>Devoção commoda</em>, o congresso de fieis e +martyres surgiria em pezo contra tal innovador, e o bispo excommungal-o-hia. +Tenho minhas duvidas que o proprio S. Francisco de Salles o tractasse bem. É +que os primitivos christãos nunca perdiam d'olho Satanaz, peccado original, +inferno, e conformavam o seu procedimento, não a tal artigo de fé ageitada a +dar alentos á esperança, mas ao complexo tremendo da doutrina que aprendiam.</p> + +<p>A harmonia que primordialmente se deu entre a disciplina da Egreja e as +crenças da Egreja, está por tanto desde muito desacorde. Port-Royal tentou +afinal-a. Foi esse o segredo da sua lucta com os casuistas mas os casuistas +venceram. A contenda acabou.</p> + +<p>Meditemos agora nas consequencias logicas dos nossos dogmas, relativos á +outra vida, dos esforços que debalde se envidam para lhes amaciar as asperezas +e edulcorar-lhes o travor, com medo de que lhes não atirem fóra copo e +remedio.<span class="pagenum">{<a name="pag_205">Pg. 205</a>}</span></p> + +<p>Em louvor dos theologos modernos, declaro que poucos ha que possam encarar +impassiveis a multidão de pagãos e hereges que regorgita do +inferno—multidão que sem intercadencia augmenta com muitos milhares +d'almas cada dia, muitos milhares cada anno. Elles, pois, escondem as vinganças +divinas, em vez de nol-as mostrarem, no seu trilho aterrador á maneira dos +antigos. Quando cuidam em nos animar, tambem elles se animam em seus proprios +quebrantamentos, sentindo que a piedade desborda e arrasta a fé; e não só a +piedade, mas tambem a justiça.</p> + +<p>S. Thomaz de Aquino, incapaz de ceder unicamente á piedade, estacou diante +d'esse problema de justiça, e diligenciou, a seu modo, resolvêl-o, por feição +que podesse, sem offensa da fé, contemporisar com a sua razão.</p> + +<p>Imaginou um justo fóra da Egreja, ignorando as verdades salvadoras, e +predestinado ao inferno por culpa de sua ignorancia. Ora um anjo celestial, +quando este justo agonisava, desceu a revelar-lhe a verdade, dando-lhe assim +entrada na Egreja por uma porta falsa, e mantendo por este theor milagrosamente +a inteireza dos dogmas. Pouco importava a S. Thomaz, tão grande e inflexivel +logico, salvar as regras explicitamente formuladas pelos concilios; e, se taes +regras podiam ferir a justiça, lá estavam os anjos para concilial-as. O que +elle queria era salvar os gentios.</p> + +<p>Mas, hoje em dia, os theologos avantajam-se a S. Thomaz. Já não ha recorrer +a milagre. Dizem que, se<span class="pagenum">{<a name="pag_206">Pg. +206</a>}</span> entre infieis, e até entre os hereticos, ha pessoas honestas, +Deus bem as vê: essas pertencem á Egreja, não corporal, mas espiritualmente; +creem implicitamente as verdades que ignoram, e basta isso: são catholicos lá +do seu feitio. É pois prohibido condemnar a esmo gentios e hereges, cegos +innocentes, virtuosos transviados, erros invenciveis<a name="L2947" id="L2947" +href="#L2943"><sup>[7]</sup></a>. Já se diz que ninguem é condemnado, tirante +os máos, qualquer que seja a religião que professem.</p> + +<p>Bella é a linguagem, mas tambem é evidentemente illusoria; por onde vamos +vêr que tal piedade, bem que sincera, não póde aproveitar a alguem. Vós não +condemnais todos os gentios nem todos os hereges; é verdade. Os dogmas que nos +ensinais é que os condemnam. Ora, se, acaso, os cinco dogmas tirados do +judaismo fossem falsos, bem sabemos que não estava em vossa alçada condemnar, +ainda que o quizesseis, um só idolatra, por peor que houvesse sido; mas, ao +invez, se taes dogmas são verdadeiros, tambem sabemos que não cabe em vossa +alçada salvar um só gentio nem um só herege, ainda que o quizesseis. Mais: em +virtude de taes dogmas, é de fé que o homem nasce máo, e que o crime que lhe +mancha o berço, explica,<span class="pagenum">{<a name="pag_207">Pg. +207</a>}</span> mas não lhe justifica os erros da vida. Irroga-se culpa a quem +se liga á religião de sua familia e patria, quando tal religião não é a +genuina. Se assim não fosse, vêde bem que melhor seria ter nascido sarraceno +que catholico; que um turco salvar-se-hia procurando de boa fé, como os +patriarchas, prazeres que a nós nos perdem para sempre; e o maximo das bençãos +seria nascer e morrer selvagem, n'alguma ilha incognita, longe dos formidaveis +clarões que nos privam de desculpar com a ignorancia os nossos peccados. Fossem +embora salvas alguns milhares de creaturas apenas entre os billiões d'ellas que +morrem em peccado original, uma duzia só que fosse, seria que farte para +argumentar que ha salvação fóra da Egreja, e sem algum dos soccorros +extraordinarios de que ella dispõe. Estes theologos tolerantes não reparam que +inutilisam a revelação, que despojam a Egreja das chaves do céo, ou, pelo +menos, indiciam que ha chaves em duplicado para lá entrar, e que judeu, +musulmano, lutherano, philosopho, todo homem honrado tem uma chave. A opinião +assim pelo claro não ousariam elles exhibil-a, e, a bem dizer, tudo aquillo não +é opinião sua; é, melhor ainda, expansão de alma que aspira á verdade e +justiça; é protesto da humanidade christã contra o judaismo, protesto mais +revelante por não ser voluntario, nem saber-se a si mesmo comprehender. O +raciocinio não é o essencial do protesto, como em S. Thomaz d'Aquino; quasi que +não é parte em taes discursos, pois que os discursadores não concluem<span +class="pagenum">{<a name="pag_208">Pg. 208</a>}</span> como deviam, se +raciocinam; e não podem fundamentar a sua argumentação sobre ensino authentico +da egreja<sup><a name="L3003" id="L3003" href="#L3005">[8]</a></sup>. É mister, +por desgraça, renunciar á orthodoxia ou condemnar despiedosamente mais de tres +quartos do genero humano. O justo, estranho á Egreja, a quem nos prohibem de +offerecer a mão, não existe aos olhos da fé: é um phantasma que avulta á vossa +piedade. Se ha ignorancia involuntaria e invencivel, não é a do idiota? Ora ahi +está! o idiota, o cretino, o aborto sem olhos nem ouvidos peccaram no ventre +materno, peccaram mortalmente, e só pelo baptismo conseguirão justificar-se. +Como é então que ha de subtrahir-se ás tentações e ás sincadilhas de que tanto +a custo se escapam os filhos da Egreja, um ente egualmente viciado em sua +natureza, mas mais livre, se envelheceu sem revelação e sacramentos? Onde +ganhará elle amor ao bem e vigor para pratical-o? Tal hypothese é heresia por +atacado; só poderemos aceital-a como excepção milagrosa; e, n'essa qualidade, +não<span class="pagenum">{<a name="pag_209">Pg. 209</a>}</span> vingaria +dulcificar o sentir que esperta em nossa alma o perpetuo inferno, onde, ha seis +mil annos, se vão acamando as gerações humanas.<span class="pagenum">{<a +name="pag_210">Pg. 210</a>}</span></p> + +<div class="rodape"> +<p><a name="L2943" id="L2943" href="#L2947"><sup>[7]</sup></a> Veja entre +outras obras os <em>Estudos a respeito do Christianismo</em> por Nicolas, tom. +III, c. 14. Este livro foi approvado, louvado e recommendado pela auctoridade +ecclesiastica, e nomeadamente por Mons. Cardeal Donnet, Arceb. de Bordeaux. O +padre Lacordaire protegeu-o assignaladamente, considerando-o a mais completa e +melhor apologia da fé catholica.</p> + +<p><sup><a name="L3005" id="L3005" href="#L3003">[8]</a></sup> Este ensino +multiplicou-se com diversos aspectos: peccado original; necessidade do +baptismo; ha uma só fé e um só baptismo; fóra da egreja não ha salvação; +necessidade dos sacramentos da penitencia, de confirmação, etc., como +auxiliares de nossas enfermidades, depois do baptismo, necessidade e +conjunctamente insufficiencia da prégação e da leitura; inefficacia das boas +obras sem os sacramentos; manhas e poderio de Satan; impossibilidade de viver e +morrer em estado de graça fóra da Egreja que é a dispenseira das graças, etc., +etc. Encheriam um volume os decretos, promulgados áquelle intento, e os +anathemas fulminados contra quem houvesse dito ou viesse a dizer o contrario +d'esses decretos.</p> +</div> + +<h2>CAPITULO TERCEIRO</h2> + +<h4>DA DESCIDA DE CHRISTO AOS INFERNOS</h4> + +<blockquote style="margin-left: 30%; font-size: 0.8em;"> + <p>Descendit <em>ad Inferos</em>; tertià die resurrexit à mortuis; ascendit + ad c[oe]los, sedet ad dexteram Patris, indè venturus est judicare vivos et + mortuos.</p> + + <p>Credo in Spiritum sanctum, in sanctam Ecclesiam catholicam et apostolicam, + in communionem sanctorum, in remissionem peccatorum, carnis ressurrectionem + et vitam æternam. Amen.</p> + + <p style="text-align:right;">(<em>Symb. apostolorum</em>).</p> +</blockquote> + +<h3>I</h3> + +<p>O Filho do homem, expedindo sobre a cruz sua vida mortal, desceu aos +infernos. Não é o Evangelho que o refere; é um documento não menos venerado, o +qual, com o <em>Pater</em> e <em>Ave</em>, é parte das orações que a Egreja +ensina aos seus filhos: documento, ao que parece, anterior á redacção dos +Evangelhos e resumo da fé apostolica: é o <em>Credo</em>.<sup><a name="L3082" +id="L3082" href="#L3084">[9]</a></sup></p> + +<p>Jesus morto vai annunciar aos mortos a boa nova:<span class="pagenum">{<a +name="pag_211">Pg. 211</a>}</span> Satanaz vencido, os peccadores resgatados, o +céo aberto aos que oram, aos que choram, aos que soffrem. Para estes +exclusivamente é que seu sangue aspergiu o chão do calvario. Jesus não dispensa +da penitencia os que morreram culpados; mas dá-lhes a esperança que as antigas +crenças deixavam luzir na terra sómente, e apagavam no tumulo.</p> + +<p>Sei de sobra que os theologos querem que o inferno, visitado por Christo, +não seja o verdadeiro inferno; mas sim o limbo, o purgatorio, os seis primeiros +circulos da Géhenna, e não o ultimo. Esta distincção, porém, não está no +<em>Credo</em>. O inferno ahi diz-se com todas as letras, e, mais pelo claro, +<em>os infernos</em>, como quem indistinctamente diz todos os logares de +soffrimento onde podem penar os mortos.</p> + +<p>«Desceu aos infernos, diz o <em>Credo</em>, e ao terceiro dia resurgiu dos +mortos.»</p> + +<p>Quem eram esses mortos com quem Jesus passou trez dias? A interpretação +natural é—todos os homens que, desde o principio do mundo, haviam +desparecido de sobre a terra; não só patriarchas e prophetas, senão todos os +judeus; não só todos os judeus, mas todos os gentios. Eis aqui, entendidas ao +natural, o que dizem as palavras: «Desceu aos infernos, e habitou trez dias com +os <em>mortos</em>.» Quereis dar áquellas<span class="pagenum">{<a +name="pag_212">Pg. 212</a>}</span> palavras uma accepção espiritual? Temos +ainda mais. luz na questão. Os mortos espirituaes são os condemnados, os que +eram considerados em perpetua privação dos resplendores eternos. Não são os +prophetas, os patriarchas, os eleitos, os santos, nem ainda alguns d'esses que +por peccados haviam merecido as penas temporarias, por que não estavam +espiritualmente mas só carnalmente mortos, crendo, esperando, amando, vivendo. +Seja qual for a interpretação adoptada, leva-nos a concluir o inverso do que os +theologos affirmam. Do citado trecho do <em>Credo</em> colhe-se que Jesus +desceu, não só ao limbo, mas tambem ao inferno, não só aos patriarchas que +esperavam sua vinda,—explicação acanhada e violenta dos hebreus conversos +e dos christãos judaisantes—mas aos mortos de todos os tempos e paizes, +aos peccadores que a lei antiga e antigas crenças haviam ferido de morte +espiritual, eterna, incuravel, da verdadeira morte. O Redemptor, o Crucificado, +o Messias visitou-os, mostrou-se-lhes, e elles rejubilaram ao verem-no e +choraram lagrimas d'amor d'aquelles olhos aridos. Jesus não destruiu o inferno; +converteu-o em purgatorio. Do inferno judaico e gentilico fez o inferno +christão, inferno que corrige, inferno onde ha o chorar sem blasphemar, onde ha +o soffrer sem desesperança nem rancores.</p> + +<p>Outras luzes póde dar o symbolo dos apostolos ás almas piedosas. Mais +abaixo, diz: «Creio na vida eterna» mas não diz: «Creio na morte eterna.» Este +horrivel dogma não se lê no credo apostolico. Se ahi se<span +class="pagenum">{<a name="pag_213">Pg. 213</a>}</span> falla em infernos é para +nos ensinar que Jesus Christo lá foi, e de lá sahiu, mas como devia sahir, +vivo, glorioso, triumphante e bemdito.</p> + +<p>Diz finalmente o <em>Credo</em> que Christo subiu ao céo, onde está sentado +á dextra do Padre, d'onde virá a julgar <em>vivos e mortos</em>.</p> + +<p>Quaes vivos? os justos? Quaes mortos? os peccadores, os ultimos povoadores +da terra e os antigos habitantes d'aquellas tenebrosas mansões onde a esperança +radiou com o Christo quando tudo foi consummado na Cruz? Não é possivel que uma +só palavra tenha dois sentidos com tão breve intervallo. Quereis que os mortos +d'entre os quaes resurgiu ao fim do terceiro dia sejam os antigos reprobos? +Tambem eu quero. Quereis antes inferir de taes palavras que os nossos avós +judeus e os pagãos, quantos então eram mortos, viveriam, n'outra parte, +jubilosos ou suppliciados? Tambem eu quero. Adoptai um sentido, ou outro, ou +ambos juntamente, que a mim não se me dá d'isso. O que ha de sempre +forçosamente reconhecer-se é que a phrase representa a mesma idêa significada +uma ou duas linhas abaixo. Será, conseguintemente, preciso confessar que os +mortos visitados por Christo são os mesmos que elle virá julgar quando julgar +os vivos. Direi pois logo que na descida aos infernos, Jesus morou trez dias +não entre os justos esperançados, mas entre os condemnados á desesperação para +os ungir de seu sangue, consolal-os e salval-os. E, senão, para que os +visitou?<span class="pagenum">{<a name="pag_214">Pg. 214</a>}</span></p> + +<p>Faz-se mister prescindir de entender qualquer palavra divina ou humana, se +do <em>Credo</em> se colhe o dogma das penas eternas. Não está lá: o contrario +é que está. O veneravel texto é mil vezes mais luminoso que todas as glosas dos +doutores.</p> + +<div class="rodape"> +<p><sup><a name="L3084" id="L3084" href="#L3082">[9]</a></sup> Conta-se que os +apostolos, antes de se apartarem para levar aos gentios a boa nova, trez annos +pouco mais ou menos depois da morte do divino Mestre, se reuniram e compozeram +o <em>Credo</em>, elenco das verdades cujo ensino lhes fôra confiado. O +Evangelho ainda não corria escripto. Só depois da separação, é que foi composto +o de S. Matheus, que antecede a todos. O symbolo da fé apostolica tambem não +andava escripto; mas ensinava-se de cór aos fieis, e por isso longo tempo se +conservou na Egreja, bem como a tradição egualmente oral da sua origem.</p> +</div> + +<h3>II</h3> + +<p>Viveu Origenes quasi coevo dos tempos apostolicos. Toda a gente ouviu fallar +da santidade de seu viver, pureza de costumes, alento nas perseguições, vasta +sabedoria e raro engenho. Pois ainda assim, aquelle insigne doutor, e illustre +confessor de Christo, negava as penas eternas. Acaso receberia elle a +verdadeira tradição dos apostolos, ou, á força de reflectir, atinára com a +genuina accepção do Evangelho? Não sei. Todavia confesso envergonhadamente que +ainda não li as poucas obras restantes que tão assignalado sujeito escreveu +sobre tal materia. O que mais sei é que foi condemnado, muito tempo depois que +morreu, por um edito do imperador Justiniano, e anathematisado, com a porção da +obra relativa ás penas eternas, por o concilio ecumenico de Constantinopla, +anno 553.<sup><a name="L3150" id="L3150" href="#L3152">[10]</a></sup> Não se +deram os bispos á canceira<span class="pagenum">{<a name="pag_215">Pg. +215</a>}</span> de provar que elle era ruim logico; declararam-o herege, que +era mais summario, e por contagem de votos.</p> + +<p>É muito para notar que o primeiro concilio ecumenico de Nicea, anno 325, e o +segundo de Constantinopla, anno 381, se abstivessem de decidir sobre a doutrina +de Origenes, ainda nova e florecentissima, e á conta d'isso mais funesta, se +por ventura escondesse perigo. Divergiam sobre o assumpto as opiniões dos +padres d'aquelle tempo? Recusariam não se conciliarem? A questão +confundil-os-hia? Inclino-me a crer que sim. O mais notavel documento que os +dois concilios nos deixaram, denota indecisão de natureza a um tempo estranha e +evidentissima: é uma profissão de fé muito particularisada, a mesma que hoje se +entôa aos domingos na missa cantada nas egrejas do oriente e occidente.</p> + +<p>O concilio de Nicea, ao redigir o symbolo da sua fé, desenvolveu em certos +pontos o symbolo dos apostolos; mas, quanto ao mais, abreviou aquelle antigo +symbolo, e o que mais espanta é a suppressão completa do descendimento aos +infernos.</p> + +<p>O concilio de Constantinopla, adoptando o symbolo de Nicea, aperfeiçoou-o, e +additou-lhe alguns artigos, mas não lhe repoz a descida aos infernos.</p> + +<p>Que quer dizer esta eliminação? Desceu ou não desceu Christo aos infernos? +Se desceu, por que o não dizem? Acham que é insignificante o caso? Não merecerá +a pena relembral-o?<span class="pagenum">{<a name="pag_216">Pg. +216</a>}</span></p> + +<p>Felizmente o symbolo dos apostolos subsiste, e os de Nicea e Constantinopla +não vingarão desluzil-o.<span class="pagenum">{<a name="pag_217">Pg. +217</a>}</span></p> + +<div class="rodape"> +<p><sup><a name="L3152" id="L3152" href="#L3150">[10]</a></sup> No anno 321, +Origenes foi denunciado ao Concilio de Alexandria, e interdicto do sacerdocio. +S. Jeronymo attribue esta condemnação a ciumes e invejas que inspirava a +eloquencia de Origenes aos Padres reunidos n'aquelle Concilio.</p> +</div> + +<h2>CAPITULO QUARTO</h2> + +<h4>ADVERTENCIA FINAL</h4> + +<h3>I</h3> + +<p>As idêas que empreguei no discurso d'esta obra andam por tantos livros +disseminadas, e prégadas de tantos pulpitos, e tão notorias e populares, que me +não temo de que m'as neguem. Diligenciei exprimir claramente os dogmas, +preceitos, maximas, opiniões sempre admittidas nas faculdades de theologia, nos +seminarios e conventos: era acto de boa fé e tambem de prudencia; que toda +minha argumentação claudicaria, se eu attribuisse aos propugnadores do inferno +linguagem que não fosse a d'elles.</p> + +<p>Fui eu quem inventou a queda de Satan, o poder e maleficios da corte +infernal, o peccado do Eden, e a maldição dos homens? Fui eu quem encerrou no +claustro o ideal da perfeição christã? Fui o auctor<span class="pagenum">{<a +name="pag_218">Pg. 218</a>}</span> das sentenças desesperadoras fulminadas +contra o mundo e contra os affectos e luzes naturaes, contra o bom siso e +contra a vida? Inventei eu as devotas reflexões, azadas para mirrar os corações +das mães e dos filhos, e uns pensamentos afogueados que calcinam o cerebro como +o alcool, embrutecendo uns, e desvairando outros em devaneios melancolicos? É +culpa minha se o inferno parece coisa atroz? Não suavisei eu em vez de +encarecer as pinturas conhecidas? Se é immoral, estava a meu cargo mudar-lhe a +condição? Attribui eu ao padre Bohours palavras alheias, ou a S. Bernardo coisa +que elle não dissesse?</p> + +<p>É verdade que eu muitas vezes poderia auctorisar-me com textos, e dizer em +grego ou latim, ou italiano ou allemão, em nome d'outrem, o que expuz a meu +modo. Mas que tinha eu a ganhar com esse systema? Nenhuma das idêas que discuti +pertence nominalmente a este ou áquelle theologo; junta ou separadamente todas +lhes pertencem: é dominio commum. Seria apoucar e abater a questão conferir a +uma crença tradicional visos de opinião particular. Acato a virtude, admiro o +engenho, onde quer que os encontro, até nos mesmos que me ameaçam com as penas +eternas; não mal-quero por tanto a S. Gregorio, nem a S. Jeronymo, nem ao padre +Nicole, nem a algum theologo morto ou vivo. Não me estive a quebrar lanças com +personagens mais ou menos eminentes: que são apenas eccos de doutrinas que +vogaram muito antes d'elles. Se eu tivesse em cada pagina citado um doutor, +julgar-se-hia<span class="pagenum">{<a name="pag_219">Pg. 219</a>}</span> que +os outros doutores, não mencionados, depunham contra mim. Não aconteceu isso a +Pascal? Nomeia elle as suas testemunhas, transcreve-lhes litteralmente as +proposições, e vos remette ao volume e pagina d'onde as trasladou; pois +responderam-lhe que se as proposições que elle combate estão nos livros d'onde +as copiou, a culpa é dos auctores, e não da companhia que os instruiu. Claro +está que eu tenho por mim auctoridades muito mais embaraçosas que os padres +Petau, Penterau, Hurtado, Bille, Sanchez, Suarez, Escobard, Bauny, Molina, +Reginaldo, Tannero, Filicitius e Azor. Tenho-as numerosissimas, a ponto de a +mim mesmo me embaraçarem. Qual hei de escolher entre tantas? Que mais vale uma +do que outra? Um capuchinho canonizado vale ou não vale um papa não canonizado, +mas fallando <em>ex-cathedrâ</em>? E de mais um só auctor, por extremo que +fosse o gráo de sua respeitabilidade, bastaria a tapar a bôcca aos +altercadores? Quantos textos seria preciso adduzir para authenticar certas +phrases alcunhadas de perigosas, levianas, absurdas e escandalosas? Quantos +padres, papas, bispos e doutores teria eu de dispôr em batalha a meu favor? +Confesso que não sei. Fui, pois, sobrio em citações, não por mingua do +assumpto, mas antes por excesso. Convençam-se de que não ha linha n'este livro +á qual eu não podesse cerzir, se me aprouvesse, paginas inteiras, senão volumes +de annotações justificativas, hauridas nas fontes mais puras, mais frequentadas +e veneradas.<span class="pagenum">{<a name="pag_220">Pg. 220</a>}</span></p> + +<p>Similhante lavor, porém, ainda que eu o compendiasse á essencia do debate, +cansaria a paciencia dos leitores, que se dispensam de tão barbaro apparato +para saberem ao que devem atter-se do que lhe ensinaram desde o berço. Mas as +provas de memoria as sabem; sobejam-lhes nas suas livrarias; não carecem de +folhear concilios, obras de santos padres, bullarios, constituições de +bispados, revelações de Santa Catharina, Santa Thereza, e outras +bem-aventuradas; não se lhes faz preciso consultar Bossuet, Bourdaloue, +Massillon, nem outros illustrissimos oraculos que nem sempre nos estão á mão. +Mais boas de encontrar são as minhas provas: acham-se nos labios e nos ouvidos +das creanças que estudam o cathecismo; acham-se em mãos de nossas irmãs, +esposas, e mães, na sua <em>Imitação</em>, no <em>Quotidiano christão</em>, no +<em>Combate espiritual</em>, na <em>Vida dos Santos</em>, no <em>Livro +d'ouro</em>, no <em>Pensai-o-bem</em>, e em milhares de livrinhos d'este jaez, +approvados pelos bispos e universalmente manuseados.</p> + +<p>Os paladinos do inferno, se os houvesse, não ousariam, talvez, atacar as +passagens d'este livro, de antemão atalaiadas d'uma guarnição formidavel de +batinas, de chapeos vermelhos e de barretes; mas quem sabe se atacariam como +abastardados, alterados, e erroneos os trechos que eu desprecavidamente não +defendesse? Em tal caso, nada me valeria amontoar notas. Se m'as pedirem, eu +lh'as darei em quantidade que lhes pareça de mais. Convenho, se quizerem, em +incommodar com ellas os adversarios; mas tão sómente<span class="pagenum">{<a +name="pag_221">Pg. 221</a>}</span> os adversarios; quanto ao publico, a minha +intenção não é adormecêl-o; antes eu quizera acordal-o, esclarecêl-o e +agradar-lhe. Mal andaria eu se, a proposito de taes polemicas, sacudia aos +olhos dos leitores a poeira dos meus livros traçados!</p> + +<h3>II</h3> + +<p>Se não podem accusar-me de má fé na exposição dos principios que tentei +impugnar, não faltará quem me accuse de máo juiz em tudo o mais. Estejam certos +que não ficará aqui. O inferno tem seus devotos que não sacrificam ás Graças, +mas ás Eumenides. Bem os ouço gritar: impio! incredulo! ignorante! detestavel +pensador! monstro! scelerado! por que o não prendem, e mandam ás galés! Ousar +descrer das penas eternas! Que faz o ministerio publico? Onde está o carrasco? +Em França já não há lenha para uma fogueira? Votamos pelo inferno, queremos que +os nossos paes e os nossos filhos sejam condemnados. Ao fogo com os selvagens, +idolatras musulmanos, judeus, indianos, herejes! Ao fogo com os peccadores +recalcitrantes! fogo eterno com os philosophos impenitentes! Não nos esbulhem +d'esta amavel crença. Que havia de ser da moral? Queremos inferno e diabo, a +maldição e o mal. Se muita gente se condemna, peior é isso, mas a culpa é +d'ella. Que ardam para sempre! É vontade de Deus. O teu debil sopro, ruim +pensador,<span class="pagenum">{<a name="pag_222">Pg. 222</a>}</span> não +apagará as chammas salutares que não corrigem os mortos, que pouco emendam os +vivos, mas fazem tremer as freiras nas suas cellas e alegrar os santos no +paraiso. Viva o inferno! Se se elle apagasse, haviamos de accendêl-o com os +teus livros. Queremos o inferno e seus supplicios, embora lá vamos cahir com as +nossas mães e com as creancinhas que riem no collo d'ellas. Sem inferno não ha +fé, nem Egreja, nem religião, nem lei, nem familia, nem moralidade, não ha +nada. Conservemos o inferno! É absurdo? mais um motivo. <em>Crédo quia +absurdum.</em> Parece-te isto injusto, incredulo, impio, perverso que não +queres acreditar que Deus creasse tantos entes fracos para perdel-os sem +missão! Imprudente! que ousas escutar a tua consciencia, quando a tradição +falla! Malvado! coração de pedra que não dás dinheiro ao Papa para lhe redourar +a thiara e vais dal-o a pobres e proscriptos, e estás ahi a lastimar os +billiões de creaturas que povoam o abysmo. Ó sandeu! Ó miseravel! Algum +proveito colhes atacando verdades tão uteis. És como os malfeitores que quebram +os lampeões. Se assim vais, arrasarás os carceres. É bem de vêr, lá tens as +tuas razões para querer destruir o inferno; se fosses de melhor casta havias de +crêr n'elle.<span class="pagenum">{<a name="pag_223">Pg. 223</a>}</span></p> + +<h3>III</h3> + +<p>Advogados do inferno, que sabeis a tal respeito? Sereis acaso mais +innocentes do que eu? É verdade que sou peccador. Se todavia as minhas acções e +as vossas fossem pezadas, talvez eu podesse estar a respeito do futuro tão +tranquillo como vós. Mas Deus não me ha de comparar comvosco para absolver-me +ou condemnar-me: será com o modêlo de perfeição que eu tenho no espirito, e que +eu devêra ter copiado no decurso de minha vida. Não pratiquei—de mais o +sei—todo o bem que podia; condescendi com fraquezas que vós, por ventura, +não conhecestes; mas talvez que eu, sem que o soubesseis, me esforçasse e +vencesse nos conflictos em que succumbistes. Eu não vos julgo, ó crentes no +inferno, que encaraes sem impallidecer; eu, porém, que não creio no vosso +inferno, não posso sem pavor meditar no julgamento divino. Não desespero na +bondade de Deus, mas creio em sua justiça, e nutro viventissimo sentimento da +perfeição evangelica, e por isso mesmo sinto grandissimo pezar de minhas +culpas, e não me considero isento de expiação.</p> + +<p>Oxalá que eu podesse dar de mim melhor testemunho! Podesse eu chegar mais +confiadamente ao tribunal do soberano juiz! Tivesse eu tão socegado o espirito +como inculcais o vosso, ou tão puro como vós<span class="pagenum">{<a +name="pag_224">Pg. 224</a>}</span> imaginais que o tendes! Quem me dera ser +santo, não aos meus proprios olhos, como dir-se-ha que sois aos vossos, mas aos +olhos das pessoas de bem e das multidões. Então impugnaria eu a eternidade das +penas, não já com melhores razões, nem com argumentos de mais justiça, mas com +a auctoridade que uma vida santa e reconhecida como tal imprime na palavra +humana. Ha ahi quem se não renda ao vigor de um discurso, e se docilise á +virtude ou ao renome de quem discorre.</p> + +<p>Não discutamos, pois, a minha vida, que eu não tenho que entender com a +vossa. Em meu soccorro valho-me unicamente do raciocinio; desadoro outro +prestigio, e não me dobro a outro poder. Refutai-me, se podeis, com razões tão +claras como as minhas; mas deixemo-nos de insinuações calumniosas; nada de +injurias. Isso que prova? Quando fosse verdade que todos sois pessoas virtuosas +que vão direitas ao paraizo, e que eu sou máo, e o peor dos homens, sêde +francos, seria isso prova de que eu argumento mal, e vós argumentais bem? +Inferirieis d'ahi o que quer que seja contra a infinita misericordia de Deus? A +isto é que é preciso responder, senhores. Eu por mim digo que a dôr, n'este e +no outro mundo, é meio de expiação; digo que a dôr, n'este e no outro mundo, +acarêa a piedade; digo que o castigo mais justo deve ter fim, e que o perdão é +o fim, a corôa, a perfeição e explendor das obras da justiça; que um castigo +infindo seria um castigo desarrasoado, sem escopo, sem<span class="pagenum">{<a +name="pag_225">Pg. 225</a>}</span> moralidade, inutil ao culpado, ás +testemunhas e ao juiz;—um acto de colera, de odio e furor—um feito +sombrio e sinistro como transportes de demencia incuravel. Digo que tal crença +é mal cimentada, e assim funesta em este mundo, como odiosa no outro; que nem o +mal nem o castigo são eternos; que eterno é só o bem, a omnipotencia, a +bondade, a justiça e misericordia de Deus, e que estas coisas, que separais, +são inseparaveis em Deus. Digo, conforme a S. Paulo, que ceo e terra hão de +passar; que a fé ha de passar tambem, e tambem ha de passar a Esperança, e que +tudo ha de acabar, salvante a Caridade.</p> + +<p>Que vos parece isto? que redarguís? Ser-vos-ha mister mudar a propriedade +das palavras, crear linguagem nova, dirimir as leis da razão, e cuidar em +extinguir tanto em vós como nos outros as vivas luzes da consciencia, se +quereis impugnar estas proposições.</p> + +<h3>IV</h3> + +<p>Mas ninguem póde desluzir de seu espirito o reflexo que ahi lampeja a +verdadeira luz, se uma vez a entre-viu. Quando houverdes lido este livro, +ser-vos-ha aprasivel fechar os olhos, e injuriar-me; não obstante, +sentir-vos-heis alumiados, crentes na verdade a vosso pezar; e, embora o +negueis, é a vós mesmos que mentis. Negal-o-heis com a bôcca; mas não com a +consciencia.<span class="pagenum">{<a name="pag_226">Pg. 226</a>}</span></p> + +<h3>V</h3> + +<p>Espero resignadamente as insolencias. Se m'as não disserem alto, dil-as-hão +baixinho. Este livro irá ao <em>Index</em>, e tal, que o não tiver lido, se +julgará abundantemente auctorisado a prohibil-o aos outros, como livro +pernicioso. Vedar-se-ha ao peccador inveterado, contentissimo de sua recente +conversão, de buscar aqui motivos para ser mais humilde; vedar-se-ha á viuva +lagrimosa de procurar consolar-se n'esta leitura. Divulgar-se-ha que este livro +é <em>tição do inferno</em>, que queima os dedos que lhe tocam. E ha de haver +muito quem o diga na melhor boa fé.</p> + +<p>A Egreja não alenta curiosidades de espirito. Porquê? De que se teme? +Profunde-se cada vez mais a moral de Christo; que ella nos irradiará cada vez +mais formosa, mais salutar e verdadeira. Por si mesma se justifica; dispensa +pregões; nos labios d'um menino inflora-se tão bella como nos discursos d'um +sabio.</p> + +<p>As leis moraes não são arbitrarias; não são caprichos divinos nem tenebrosos +decretos cuja sabedoria se esconde á nossa intelligencia. São perfeitamente +adequadas á nossa natureza e necessidades. Não ha uma só, cuja inobservancia +não surta graves desordens; uma só que não proteja a dignidade humana, a +liberdade, o direito, o debil contra o forte, o innocente contra o cavilloso. +São freio de paixões, luz e regras<span class="pagenum">{<a name="pag_227">Pg. +227</a>}</span> das acções publicas ou clandestinas, particulares ou +collectivas, condição que influe no desenvolvimento de nossas faculdades, +caução de nosso repouso, e complexamente de todos os nossos actos.</p> + +<p>A Egreja, n'este ponto, desconhece a sua força, se a discussão a intimida; +mas, por outro lado, cumpre confessar que ella desconheceria sua fraqueza, se +tolerasse discussão de certos dogmas, e em particular do dogma das penas +eternas. Se quer que haja crença no inferno com fé egual á crença da redempção; +se quer a mesma fé para a colera sem fim e para o amor illimitado, imponha +silencio a respeito de tudo, que é prudente. Mas d'essa imposição de silencio o +resultado é este:</p> + +<h3>VI</h3> + +<p>Resulta que os fieis creiam cegamente coisas profundamente +contradictorias—a verdade radiosa e o erro inintelligivel, Deus e +inferno. Tambem resulta que as multidões sempre a multiplicarem-se rejeitem +cegamente o inferno, e com o inferno os mais idoneos dictames da moral, +indiscretamente sumidos n'esse abysmo. Imaginam uns que a mesma voz que ensina +uma injustiça não póde ensinar uma verdade; imaginam outros que a mesma voz que +ensina consoladoras verdades, não póde ensinar erros. A má educação, que, no +rodar de muitos seculos, lhes deram, torna-os<span class="pagenum">{<a +name="pag_228">Pg. 228</a>}</span> a todos egualmente incapazes de discernir o +que é falso do que é verdadeiro, na mesma idêa: encaram-na a vulto, qual lh'a +offerecem, e ou a guardam ou rejeitam á tôa, verdade e mentira de mistura, +porque ambas as idêas estão identificadas em uma no espirito d'elles.</p> + +<p>Todavia todos os partidos são máos, e nenhum póde, relativamente á questão +presente, socegar a alma. Ainda não encontrei fiel que se me confessasse +impassivel ao horror das penas eternas, quando pensava n'isso. E tambem não +encontrareis incredulo que não haja confusamente sentido a precisão de +sobreviver a si proprio, e não haja suspirado pela justiça do céo, vendo as +iniquidades da terra. A verdade falla assim ao coração de todo homem, +alvoroçando-o até que elle a comprehenda.</p> + +<p>O fiel diz de si para comsigo: «Deus é cruel»; mas, reportando-se á Egreja, +cuida que as inspirações de sua consciencia são suggestões diabolicas, e vai +aterrado rezar diante da cruz um acto de fé em um Deus sem misericordia. Pelo +contrario, o incredulo diz entre si: «Deus existe; os máos serão castigados»; +e, se em seguida se aturde e apaga no intimo aquelle presentimento lucido da +justiça divina, é porque lhe estão sempre figurando o brazido inextinguivel e +as atrocidades sem fim que enterneceriam tigres e fariam chorar as pedras sobre +o destino dos condemnados.<span class="pagenum">{<a name="pag_229">Pg. +229</a>}</span></p> + +<h3>VII</h3> + +<p>Tal é hoje em dia o estado das almas relativamente a um dos mais importantes +dogmas da religião. Fé cega, incredulidade cega, fé que acceita um Deus +vingativo e exclue do céo a piedade, incredulidade que busca um Deus +compadecido, e, por que não acha piedade no céo, exclue de lá a justiça. E +entre estes dois bandos de almas atormentadas, está uma corporação docente, que +se inculca infallivel, mas que, no intento de proteger sua infalibilidade, +anathematisa a razão humana e excommunga a consciencia.</p> + +<h3>VIII</h3> + +<p>Eu tenho tido parte nas angustias da fé que, até de olhos fechados, conhece +que a transviam; e, se, mais tarde, abre os olhos afeitos á escuridão, como os +de Saul deslumbrado, nada vê, e caminha ás apalpadellas. São passados esses +dias de turvação; mas talvez n'este livro negrejem vestigios d'elles.</p> + +<p>Não achareis n'esta obra um tratado methodico cujas partes se encadeiam e +deduzem logicamente, desde a primeira até á ultima pagina. Em questão, a um +tempo, tão complexa e excitante, ser-me-hia custoso sujeitar-me aos vagares do +methodo. A tal qual<span class="pagenum">{<a name="pag_230">Pg. 230</a>}</span> +ordem que trava as peças d'este escripto, vem como compendiada no assentamento +das reflexões e meditações que a formam. Ninguem melhor do que eu sabe quanta +deficiencia desvalia o escripto. Não importa. Eu, por mim, rodeei o alcaçar de +Satan; e, se lhe não puz cerco segundo as regras da arte, não lhe deixei parede +nem pedra que não soffresse algum abalo. Não se faz mister tempestade para lh'o +baquear: um leve sôpro o fará cahir.</p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:center;">FIM<span class="pagenum">{<a name="pag_231">Pg. +231</a>}</span></p> +</div> + +<h1>INDICE</h1> + +<table align="center" summary="Indice"> + <tbody> + <tr> + <td colspan="2"></td> + <td><em>Pag.</em></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2">Advertencia do traductor</td> + <td><a href="#pag_V">V</a></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2">Prefacio da segunda edição</td> + <td><a href="#pag_XIII">XIII</a></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="3" style="text-align:center;">INTRODUCÇÃO</td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2">Dogmas hebraicos</td> + <td><a href="#pag_1">1</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">I—</td> + <td>Rebellião de Satanaz</td> + <td><a href="#pag_2">2</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">II—</td> + <td>O inferno</td> + <td><a href="#pag_3">3</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">III—</td> + <td>Paraizo terreal</td> + <td><a href="#pag_5">5</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">IV—</td> + <td>A maldição</td> + <td><a href="#pag_6">6</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">V—</td> + <td>Consequencias da maldição</td> + <td><a href="#pag_7">7</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">VI—</td> + <td>Comparação da nossa sorte com a de Adão e de Satanaz</td> + <td><a href="#pag_10">10</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">VII—</td> + <td>O povo de Deus</td> + <td><a href="#pag_11">11</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">VIII—</td> + <td>A egreja e o novo povo de Deus</td> + <td><a href="#pag_15">15</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">IX—</td> + <td>Como se prova a verdade dos dogmas hebraicos, e com especialidade a + eternidade das penas</td> + <td><a href="#pag_18">18</a></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="3" style="text-align:center;">PARTE PRIMEIRA</td> + </tr> + <tr> + <td colspan="3" style="text-align:center;"><em>Tradições</em></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">Capit. I—</td> + <td>A tradição universal é a prova do inferno?</td> + <td><a href="#pag_21">21</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">II—</td> + <td>Explicação natural das tradições pagãs ácerca do inferno</td> + <td><a href="#pag_24">24</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">III—</td> + <td>Como o sacerdocio perpetuou estas tradições</td> + <td><a href="#pag_26">26</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">IV—</td> + <td>Exemplo de um povo que permaneceu fiel a todas as suas antigas + tradições</td> + <td><a href="#pag_27">27</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">V—</td> + <td>Effeito d'estas tradições na edade media</td> + <td><a href="#pag_29">29</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">VI—</td> + <td>Como a sociedade christã se desvia progressivamente d'aquellas + antigas tradições</td> + <td><a href="#pag_30">30</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">Capit. II—</td> + <td>A fé nova</td> + <td><a href="#pag_33">33</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">I—</td> + <td>Pater noster</td> + <td><a href="#pag_33">33</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">II—</td> + <td>O purgatorio</td> + <td><a href="#pag_36">36</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">III—</td> + <td>Necessidade do purgatorio</td> + <td><a href="#pag_38">38</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">IV—</td> + <td>Mysterios</td> + <td><a href="#pag_39">39</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">V—</td> + <td>O paraizo</td> + <td><a href="#pag_41">41</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">Capit. III—</td> + <td>Os fructos do inferno</td> + <td><a href="#pag_46">46</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">I—</td> + <td>O bem</td> + <td><a href="#pag_46">46</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">II—</td> + <td>A carmelita ou o ideal da perfeição theologica</td> + <td><a href="#pag_53">53</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">III—</td> + <td>Discurso d'uma mulher de sociedade que havia tocado a + perfectibilidade theologica</td> + <td><a href="#pag_66">66</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">IV—</td> + <td>Discurso d'um mundano, apoz bastos estudos ácerca da perfeição + theologica</td> + <td><a href="#pag_69">69</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">V—</td> + <td>O rebanho</td> + <td><a href="#pag_73">73</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">Capit. IV—</td> + <td>Outros fructos do inferno</td> + <td><a href="#pag_79">79</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">I—</td> + <td>O mal</td> + <td><a href="#pag_79">79</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">Capit. V—</td> + <td>Os cinco grupos</td> + <td><a href="#pag_87">87</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">I—</td> + <td>O grupo dos philosophos</td> + <td><a href="#pag_89">89</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">II—</td> + <td>O grupo dos corruptos</td> + <td><a href="#pag_89">89</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">III—</td> + <td>O grupo dos indifferentes</td> + <td><a href="#pag_91">91</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">IV—</td> + <td>O grupo dos devotos</td> + <td><a href="#pag_93">93</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">V—</td> + <td>O grupo dos santos</td> + <td><a href="#pag_99">99</a></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="3" style="text-align:center;">SEGUNDA PARTE</td> + </tr> + <tr> + <td colspan="3" style="text-align:center;"><em>O inferno considerado + além-tumulo, os condemnados na presença de Deus, na presença dos + santos, e na presença dos homens</em></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">Capit. I—</td> + <td>O inferno de Platão</td> + <td><a href="#pag_103">103</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">Capit. II—</td> + <td>Opinião dos pagãos sobre a situação e vista interior do inferno</td> + <td><a href="#pag_108">108</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">Capit. III—</td> + <td>Opinião dos judeus ácerca da vista interior do inferno</td> + <td><a href="#pag_112">112</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">Capit. IV—</td> + <td>O inferno dos theologos</td> + <td><a href="#pag_117">117</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">I—</td> + <td>O inferno material</td> + <td><a href="#pag_117">117</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">II—</td> + <td>Reflexões sobre as penas materiaes dos condemnados</td> + <td><a href="#pag_125">125</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">III—</td> + <td>Os martyres de Nero</td> + <td><a href="#pag_128">128</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">IV—</td> + <td>O inferno espiritual</td> + <td><a href="#pag_130">130</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">V—</td> + <td>Continuação</td> + <td><a href="#pag_134">134</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">VI—</td> + <td>Da immortalidade das penas espirituaes do inferno</td> + <td><a href="#pag_136">136</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">VII—</td> + <td>Ultimas considerações ácerca do inferno theologico</td> + <td><a href="#pag_140">140</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">Capit. V—</td> + <td>Sursum corda</td> + <td><a href="#pag_143">143</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">Capit. VI—</td> + <td>A parabola do rico avarento</td> + <td><a href="#pag_151">151</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">Capit. VII—</td> + <td>Terra, inferno, céo</td> + <td><a href="#pag_154">154</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">I—</td> + <td>Terra</td> + <td><a href="#pag_154">154</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">II—</td> + <td>Ceo</td> + <td><a href="#pag_155">155</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">Capit. VIII—</td> + <td>Historia d'um sonho</td> + <td><a href="#pag_157">157</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">Capit. IX—</td> + <td>Judas Iscariote</td> + <td><a href="#pag_170">170</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">Capit. X—</td> + <td>Conclusão em fórma de parabola</td> + <td><a href="#pag_181">181</a></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2" style="text-align:center;">APPENDICE</td> + <td></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">Capit. I—</td> + <td>Provas mysticas do inferno</td> + <td><a href="#pag_185">185</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">I</td> + <td>Da auctoridade da Biblia</td> + <td><a href="#pag_185">185</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">II</td> + <td>Da auctoridade da Egreja</td> + <td><a href="#pag_191">191</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">III</td> + <td>Conclusão do que fica dito</td> + <td><a href="#pag_199">199</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">Capit. II—</td> + <td>Resposta a uma objecção</td> + <td><a href="#pag_201">201</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">Capit. III—</td> + <td>Descida de Christo aos infernos</td> + <td><a href="#pag_210">210</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">Capit. IV—</td> + <td>Advertencia final</td> + <td><a href="#pag_216">216</a></td> + </tr> + </tbody> +</table> + +<p><span class="pagenum">{<a name="pag_234">Pg. 234</a>}</span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:center;"><small>N.º 423—Porto: Typographia da +livraria Nacional, Laranjal, 2 a 22—1871</small><span class="pagenum">{<a +name="pag_235">Pg. 235</a>}</span></p> + +<p><span class="pagenum">{<a name="pag_236">Pg. 236</a>}</span></p> + +<p> </p> + +<h4>Erros corrigidos</h4> + +<table align="center" summary="errata"> + <tbody> + <tr> + <th>Pág.</th> + <th>no original</th> + <th>correcção</th> + </tr> + <tr> + <td><a href="#pag_12">12</a></td> + <td>divindidade</td> + <td>divindade</td> + </tr> + <tr> + <td><a href="#pag_12">12</a></td> + <td>todas as religões eram</td> + <td>todas as religiões eram</td> + </tr> + <tr> + <td><a href="#pag_151">151</a></td> + <td>CAPITULO SETIMO</td> + <td>CAPITULO SEXTO</td> + </tr> + <tr> + <td><a href="#pag_154">154</a></td> + <td>CAPITULO OITAVO</td> + <td>CAPITULO SETIMO</td> + </tr> + <tr> + <td><a href="#pag_199">199</a></td> + <td>Espirto Santo</td> + <td>Espirito Santo</td> + </tr> + <tr> + <td><a href="#pag_215">215</a></td> + <td>particuralisada</td> + <td>particularisada</td> + </tr> + <tr> + <td><a href="#pag_217">217</a></td> + <td>pupulares</td> + <td>populares</td> + </tr> + </tbody> +</table> + + + + + + + +<pre> + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of O Inferno, by Auguste Callet + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O INFERNO *** + +***** This file should be named 28584-h.htm or 28584-h.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/2/8/5/8/28584/ + +Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed +Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was +produced from scanned images of public domain material +from the Google Print project.) + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. Special rules, +set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to +copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to +protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. Project +Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you +charge for the eBooks, unless you receive specific permission. If you +do not charge anything for copies of this eBook, complying with the +rules is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose +such as creation of derivative works, reports, performances and +research. They may be modified and printed and given away--you may do +practically ANYTHING with public domain eBooks. Redistribution is +subject to the trademark license, especially commercial +redistribution. + + + +*** START: FULL LICENSE *** + +THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE +PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK + +To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free +distribution of electronic works, by using or distributing this work +(or any other work associated in any way with the phrase "Project +Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project +Gutenberg-tm License (available with this file or online at +https://gutenberg.org/license). + + +Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm +electronic works + +1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm +electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to +and accept all the terms of this license and intellectual property +(trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all +the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy +all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession. +If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project +Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the +terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or +entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. + +1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be +used on or associated in any way with an electronic work by people who +agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few +things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works +even without complying with the full terms of this agreement. See +paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project +Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement +and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic +works. See paragraph 1.E below. + +1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation" +or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project +Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the +collection are in the public domain in the United States. If an +individual work is in the public domain in the United States and you are +located in the United States, we do not claim a right to prevent you from +copying, distributing, performing, displaying or creating derivative +works based on the work as long as all references to Project Gutenberg +are removed. Of course, we hope that you will support the Project +Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by +freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of +this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with +the work. You can easily comply with the terms of this agreement by +keeping this work in the same format with its attached full Project +Gutenberg-tm License when you share it without charge with others. + +1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern +what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in +a constant state of change. If you are outside the United States, check +the laws of your country in addition to the terms of this agreement +before downloading, copying, displaying, performing, distributing or +creating derivative works based on this work or any other Project +Gutenberg-tm work. The Foundation makes no representations concerning +the copyright status of any work in any country outside the United +States. + +1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg: + +1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate +access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently +whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the +phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project +Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed, +copied or distributed: + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + +1.E.2. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived +from the public domain (does not contain a notice indicating that it is +posted with permission of the copyright holder), the work can be copied +and distributed to anyone in the United States without paying any fees +or charges. If you are redistributing or providing access to a work +with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the +work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1 +through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the +Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or +1.E.9. + +1.E.3. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted +with the permission of the copyright holder, your use and distribution +must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional +terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked +to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the +permission of the copyright holder found at the beginning of this work. + +1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm +License terms from this work, or any files containing a part of this +work or any other work associated with Project Gutenberg-tm. + +1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this +electronic work, or any part of this electronic work, without +prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with +active links or immediate access to the full terms of the Project +Gutenberg-tm License. + +1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, +compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any +word processing or hypertext form. However, if you provide access to or +distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than +"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version +posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org), +you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a +copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon +request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other +form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm +License as specified in paragraph 1.E.1. + +1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, +performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works +unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9. + +1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing +access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided +that + +- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from + the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method + you already use to calculate your applicable taxes. The fee is + owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he + has agreed to donate royalties under this paragraph to the + Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments + must be paid within 60 days following each date on which you + prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax + returns. Royalty payments should be clearly marked as such and + sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the + address specified in Section 4, "Information about donations to + the Project Gutenberg Literary Archive Foundation." + +- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies + you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he + does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm + License. You must require such a user to return or + destroy all copies of the works possessed in a physical medium + and discontinue all use of and all access to other copies of + Project Gutenberg-tm works. + +- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any + money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the + electronic work is discovered and reported to you within 90 days + of receipt of the work. + +- You comply with all other terms of this agreement for free + distribution of Project Gutenberg-tm works. + +1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm +electronic work or group of works on different terms than are set +forth in this agreement, you must obtain permission in writing from +both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael +Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the +Foundation as set forth in Section 3 below. + +1.F. + +1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable +effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread +public domain works in creating the Project Gutenberg-tm +collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic +works, and the medium on which they may be stored, may contain +"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or +corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual +property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a +computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by +your equipment. + +1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right +of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project +Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project +Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all +liability to you for damages, costs and expenses, including legal +fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT +LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE +PROVIDED IN PARAGRAPH F3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE +TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE +LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR +INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH +DAMAGE. + +1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a +defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can +receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a +written explanation to the person you received the work from. If you +received the work on a physical medium, you must return the medium with +your written explanation. The person or entity that provided you with +the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a +refund. If you received the work electronically, the person or entity +providing it to you may choose to give you a second opportunity to +receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy +is also defective, you may demand a refund in writing without further +opportunities to fix the problem. + +1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth +in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER +WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO +WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. + +1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied +warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. +If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the +law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be +interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by +the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any +provision of this agreement shall not void the remaining provisions. + +1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the +trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone +providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance +with this agreement, and any volunteers associated with the production, +promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works, +harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees, +that arise directly or indirectly from any of the following which you do +or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm +work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any +Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause. + + +Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm + +Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of +electronic works in formats readable by the widest variety of computers +including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact +information can be found at the Foundation's web site and official +page at https://pglaf.org + +For additional contact information: + Dr. Gregory B. Newby + Chief Executive and Director + gbnewby@pglaf.org + + +Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation + +Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide +spread public support and donations to carry out its mission of +increasing the number of public domain and licensed works that can be +freely distributed in machine readable form accessible by the widest +array of equipment including outdated equipment. Many small donations +($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt +status with the IRS. + +The Foundation is committed to complying with the laws regulating +charities and charitable donations in all 50 states of the United +States. Compliance requirements are not uniform and it takes a +considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up +with these requirements. We do not solicit donations in locations +where we have not received written confirmation of compliance. To +SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any +particular state visit https://pglaf.org + +While we cannot and do not solicit contributions from states where we +have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition +against accepting unsolicited donations from donors in such states who +approach us with offers to donate. + +International donations are gratefully accepted, but we cannot make +any statements concerning tax treatment of donations received from +outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. + +Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation +methods and addresses. Donations are accepted in a number of other +ways including including checks, online payments and credit card +donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate + + +Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic +works. + +Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm +concept of a library of electronic works that could be freely shared +with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project +Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. + + +Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed +editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. +unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. + + +</pre> + +</body> +</html> |
