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authorRoger Frank <rfrank@pglaf.org>2025-10-15 02:38:50 -0700
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+ <meta name="author" content="Auguste Callet">
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+ <title>O Inferno, por Auguste Callet</title>
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+<body>
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+<pre>
+
+The Project Gutenberg EBook of O Inferno, by Auguste Callet
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
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+Title: O Inferno
+
+Author: Auguste Callet
+
+Translator: Camilo Castelo Branco
+
+Release Date: April 22, 2009 [EBook #28584]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O INFERNO ***
+
+
+
+
+Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed
+Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was
+produced from scanned images of public domain material
+from the Google Print project.)
+
+
+
+
+
+
+</pre>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:center; font-size: 1.5em;">O INFERNO</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div style="text-align:center; border: solid 1px #000; padding: 1em;">
+<p style="font-size: 1.2em;">AUGUSTO CALLET</p>
+<hr>
+
+<p style="font-size: 3em;">O INFERNO</p>
+
+<p style="font-size: 0.8em;">TRASLADADO PARA PORTUGUEZ E PRECEDIDO DE UMA
+ADVERTENCIA</p>
+
+<p style="font-size: 0.8em;">POR</p>
+
+<p>CAMILLO CASTELLO BRANCO</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+<hr style="width: 30%;">
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>PORTO</p>
+
+<p><small>TYPOGRAPHIA DA LIVRARIA NACIONAL</small><br>
+<small>2, Rua do Laranjal, 22</small><br>
+<em>1871</em></p>
+</div>
+
+<p><span class="pagenum">{<a name="pag_V">Pg. V</a>}</span></p>
+
+<h2>ADVERTENCIA DO TRADUCTOR</h2>
+
+<div id="corpo">
+<p>N'este memoravel anno de 1871, o sacerdocio militante da christandade
+lusitana subiu aos baluartes mais desamparados, aos pulpitos de grande parte do
+reino, e desembestou certeiras fréchadas ao rosto da impiedade.</p>
+
+<p>No pulpito da egreja de S. Martinho de Cedofeita, d'esta cidade do
+Porto,&mdash;que não é a mais peccadora, porque é a menos
+ociosa,&mdash;discorreu apostolicamente um padre italiano, que eu não ouvi.</p>
+
+<p>Não fui ouvil-o, porque já tenho muitissimos annos e bastante leitura para
+conhecer que direitos tem Deus e o proximo ao meu amor.</p>
+
+<p>Não o fui ouvir pela mesma razão que evito alguns livros prohibidos, receoso
+de que elles estremeçam os alicerces da minha fé.</p>
+
+<p>Não fui ouvil-o, emfim, porque ha um sermão que eu sei de cór, e repito
+quando tenho sêde de fé, ancias<span class="pagenum">{<a name="pag_VI">Pg.
+VI</a>}</span> de misericordia, tibiezas de esperança: é o sermão da montanha,
+prégado aos pobres por nosso Senhor Jesus Christo.</p>
+
+<p>Este sermão ainda meus filhos o não sabem; mas hão de aprendel-o quando as
+primeiras lagrimas lhes tiverem delido as manchas escuras do intendimento. É
+preciso ter chorado para comprehender a bem-aventurança dos que choram. Jesus
+Christo, se houvesse dito aquellas divinas palavras aos felizes, não seria
+intendido no apostolado, nem seguido na vida, nem chorado na morte, nem
+confessado no martyrio.</p>
+
+<p>Levantei, pois, o pequenino e fragil oratorio das minhas preces humildes
+sobre a confiança do divino Pae; e, se em minha alma sinto o desejo de não ter
+nascido para dôres deseguaes ao alento de cada homem, reconheço que o oratorio
+do peccador está tanto á vista de Deus que o anjo da paciencia abre as suas
+luzentissimas azas sobre os meus abysmos escuros.</p>
+
+<p>Ora eu sei de triste experiencia que os discursos do missionario em Portugal
+me desataviam o espirito das vestes graves com que costumo entrar nos
+templos.</p>
+
+<p>Na minha mocidade estudei grammatica, fui examinado em logica, decorei a
+inutilissima cousa chamada rhetorica, cursei muito pela rama algumas aulas de
+theologia; finalmente, poli quanto pude a razão para que se espelhassem n'ella
+os preceitos e conceitos dos oradores sagrados.</p>
+
+<p>Pois acontecia que todos aquelles predicados, desde a grammatica de Lobato
+até á theologia do bispo de Leão, cá no meu interior despiam a casaca e a
+dalmacia venerandas, para galhofarem d'uns certos padres que se imaginavam<span
+class="pagenum">{<a name="pag_VII">Pg. VII</a>}</span> favorecidos da infusão
+scientifica, uma só vez milagrosamente concedida pelo Espirito Santo aos
+santissimos ignorantes do Cenaculo.</p>
+
+<p>Arguiam-me de indiscreto os bons amigos que me ouviam deplorar a decadencia
+da oratoria sacra, justificando o proposito pelos resultados, a uncção do
+prégador pelo soluçar do auditorio, a fertilidade da palavra pela emenda das
+culpas.</p>
+
+<p>O soluçar do auditorio era tão acceitavel e prestadio como as lagrimas no
+theatro, que denotam, quando muito, corações sensiveis; aquillo, porém, de
+emenda das culpas é que vinha desconceituar a argumentação dos meus amigos.</p>
+
+<p>As culpas! o desconcerto da vida, a irreverencia a Deus, o desamor ao
+proximo, as intranhas descaroadas do rico, a rebellião cubiçosa do pobre, a mão
+que se esquiva em levantar da lagem o orphão&mdash;estas e outras más fibras do
+coração humano poderá retemperal-as a consciencia illustrada; mas a consciencia
+espavorida pelo medo dos castigos eternos, essa não.</p>
+
+<p>E os missionarios, que ludibriavam a minha devoção ou curiosidade,
+demonstravam a precisão de sermos continentes, sobrios, humildes, caritativos,
+christãos emfim, para não sermos eternamente refervidos no lago de sulphur
+candente.</p>
+
+<p>Eu nunca ouvi dizer na casa da oração que a providencial justiça tem o seu
+tribunal em meio dos vivos; que o vicio deshonra, infama, e tolhe o goso dos
+bens d'esta vida; que a repulsão do delinquente é um castigo; que a sociedade
+pune primeiro que a lei; e que, se a justiça dos codigos algumas vezes erra, a
+justiça complexa<span class="pagenum">{<a name="pag_VIII">Pg. VIII</a>}</span>
+da opinião publica mantém a disciplina do supplicio, invisivel mas exulcerante
+na consciencia do culpado.</p>
+
+<p>Nunca ouvi missionario que me parecesse mais illustrado que a maioria dos
+seus ouvintes, nem vi espectaculo onde reluzissem mais vivos e tristes reflexos
+da edade-media. Historias horrendas e ás vezes esqualidas de castigos
+infernaes; immersões em caldeiras rubidas das lavaredas; corpos espedaçados por
+dragões e logo recompostos para nova e eterna dilaceração; imborcações de
+peçonha na bôcca dos gulosos; amplexos de serpentes escamosas de brazas
+n'aquelles que lubricamente deleitaram os corpos n'este mundo: era isto, não
+era o penetrante pejo do vicio que chamava aos olhos do auditorio as lagrimas
+restauradoras.</p>
+
+<p>Mas, ao fechar da missão, o peito oppresso do peccador atterrado
+desafogava-se na esperança de illudir o diabo com uma confissão geral e um
+profundo pesar na hora da morte, visto que o missionario promettia o céo aos
+que, nos ultimos instantes, se sentissem vivamente magoados de terem sido
+perversos.</p>
+
+<p>O céo!</p>
+
+<p>E que promette o padre aos justos, aos que desde a juventude até á
+decrepidez apenas prevaricaram venialmente? o céo.</p>
+
+<p>E aos apostolos que vão á fogueira offerecendo ao divino martyr o tributo de
+suas agonias? o céo.</p>
+
+<p>O céo para o facinora contricto no ultimo momento, e o céo para o santo de
+toda a vida! O céo para o martyr e o céo para o algoz que houve remorso de o
+haver matado! Ó fé, revérbero de Deus, estarias apagada, se não fosses
+divina!<span class="pagenum">{<a name="pag_IX">Pg. IX</a>}</span></p>
+
+<p>Em compensação, porém, que profusa prodigalidade de infernos além-tumulo!
+Infernos legendarios, imitações do grego, do egypcio, do indostanico, todos os
+infernos, excepto o verdadeiro&mdash;o inferno d'esta vida, a corrente do
+remorso ao pelourinho da consciencia, e a desgraça implacavel ainda para os que
+não têm consciencia nem remorso.</p>
+
+<p>Pois esta doce e misericordiosa alliança de Jesus com os attribulados, com
+os frageis por compleição e por mal dirigidos na mocidade, comporta em si a
+hypothese de Satanaz, que nos espia o ensejo favoravel e nos faz cambapé ás
+suas voragens? Comprehendem acaso que Deus se não amerceie de homens
+fraquissimos, vencidos por um gigante que não coube no céo? Não vêm que Lucifer
+se atreveu com o Creador, e, depois de vencido, teve por homenagem o reinado de
+um mundo, e o generalato de legiões immensas, todas a manobrarem na terra para
+vencerem... a quem? um descendente de Adão, do logrado do Eden, Adão, que tinha
+em si a plenitude da força, da sciencia; a força do corpo ainda aquecido da mão
+de Deus; a força da alma iriada dos reflexos do seu Creador! E o homem,
+debilitado pelo attrito de seis mil annos, que querem que elle seja? Porque lhe
+decretam a elle&mdash;ao fraco&mdash;o inferno, se Deus apenas condemnou o
+forte a viver do suor do seu rosto?</p>
+
+<p>Estas e outras meditações, dignas de que Deus m'as perdôe, se a palavra não
+friza bem com a lisa intenção, me preoccupavam, quando li este livro de Callet,
+com certo medo de violar o meu salutar costume de não lêr livros prohibidos,
+tirante os uteis, os desenfastiados e principalmente os instructivos.<span
+class="pagenum">{<a name="pag_X">Pg. X</a>}</span></p>
+
+<p>O auctor, comquanto excommungado, usou a christã bem-querença de prevenir-me
+de que a sua obra estava condemnada. Decidi logo que o livro não seria de todo
+mau. E, depois que o li, reflexionei que os cardeaes seriam mais discretos
+esquivando-se a dar voga a escriptos que andariam menos procurados sem a
+chancella da prohibição.</p>
+
+<p>A mim me quer parecer que o <em>Inferno</em> de Callet sahiria com fóros de
+orthodoxo da assemblêa dos primitivos christãos, quero dizer, dos seguidores de
+Jesus Christo anteriores áquella pestilencial sciencia chamada Theologia: tal é
+a pureza, luz, amor e christianissimo espirito que ungem as paginas d'este
+consolativo livro.</p>
+
+<p>Augmenta-lhe o valor o encontrar-se com os missionarios portuguezes, cada
+vez mais attidos á rhetorica ardente do inferno, como se elles e ouvintes não
+houvessem dado ainda um passo desde que é dia, desde que a razão fez pazes com
+a fé illustrada.</p>
+
+<p>É tão verdade que este systema de moralisar nada aproveita, quanto é certo
+que nas aldeias, onde mais trovejam as ameaças do missionario, encontrareis o
+demonio da corrupção fazendo tregeitos ao padre ás portas das cabanas, onde o
+vicio avulta mais esqualido com a hediondez dos seus farrapos.</p>
+
+<p>Não melhorareis a sociedade a prégar. E todavia, serodios apostolos, na
+vossa sinceridade, creio eu, por não ter grande confiança na vossa illustração,
+e me ser muito custoso suspeitar que sois hypocritas.</p>
+
+<p>Ora lêde este livro que se vos offerece em portuguez correntio, e dizei, se,
+apagado o inferno, não será possivel accender pharol mais humano e mais divino
+pelo<span class="pagenum">{<a name="pag_XI">Pg. XI</a>}</span> qual se norteie
+a posteridade da peccadora Eva, esta immensa familia d'hoje, estygmatisada seis
+mil annos antes!</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Julho de 1871.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align: right;"><em>Camillo Castello Branco.</em><span
+class="pagenum">{<a name="pag_XII">Pg. XII</a>}</span></p>
+
+<p><span class="pagenum">{<a name="pag_XIII">Pg. XIII</a>}</span></p>
+
+<h1>PREFACIO</h1>
+
+<h2>DA SEGUNDA EDIÇÃO</h2>
+
+<p>Aos 20 de Junho de 1862 a sagrada congregação do Index condemnou em Roma
+este livro ácerca do inferno. Caridosamente advirto a leitoras e leitores que
+temos aqui fructo prohibido.</p>
+
+<p>Perguntam-me o que vem a ser a congregação do Index? Eis-aqui o pouco que
+sei d'isso: o papa Paulo III publicou em 1539 um catalogo de livros cuja
+leitura prohibiu aos fieis sob pena de excommunhão. Este catalogo, chamado
+Index, foi approvado pelo concilio de Trento, enriquecido de numerosos artigos,
+e por elle, antes de dissolver-se, recommendado a Pio IV. O papa Sixto V, que
+não tinha vagar para lêr, creou, mais tarde, uma commissão permanente de
+cardeaes encarregada de examinar e condemnar livros. Esta commissão de cardeaes
+é o que se chama a sagrada congregação do Index.</p>
+
+<p>Convém saber que Paulo III, velho amigo de Alexandre VI, e tanto, como elle,
+muito desacreditado por seus<span class="pagenum">{<a name="pag_XIV">Pg.
+XIV</a>}</span> vicios, desmembrou dos dominios de S. Pedro as cidades e
+territorios de Parma e Placença que elle deu com plena soberania, e com titulo
+de ducado, a Pedro Luiz Farnezio, um dos seus filhos naturaes. Este tal fundou
+a inquisição, instituiu a ordem dos capuchinhos, exercitou a astrologia,
+fomentou e applaudiu a carnificina dos vandezes. Não discuto similhantes actos;
+recordo-os porque elles se ligam á mesma idêa que creou o Index.</p>
+
+<p>Pio IV, a rogo dos Jesuitas, acrescentou algumas contas ao rozario,
+augmentando-lhe as virtudes; fez estrangular o cardeal Caraffa, sobrinho do seu
+predecessor Paulo IV; fez decapitar o duque de Palliano, irmão d'aquelle
+cardeal, e outros muitos personagens cujas cabeças ensanguentadas, por sua
+ordem, foram expostas sobre a porta do castello de S. Angelo; abafou o processo
+instaurado em Espanha contra o clero accusado de libertinagem; mas em
+compensação accendeu por toda a parte a guerra contra os herejes. Accuzam-no de
+haver beneficiado mais a sua familia que ao povo romano. Eu por mim não lhe
+contesto as virtudes, e menos ainda a orthodoxia. Na famosa bulla de 24 de
+Abril de 1564 declarou excommungados, <em>ipso facto</em>, quem quer que no
+futuro imprimisse, vendesse ou lesse algumas das obras inscriptas no Index pelo
+concilio ou por elle mesmo; e bem assim quem, não as tendo lido, as emprestasse
+ao visinho, ou, sem as ler ou communicar a alguem, as fechasse na sua
+bibliotheca ou n'algum esconderijo da sua casa. Urgia, pois, queimar os livros
+prohibidos quem quizesse evadir-se á excommunhão, e em seguida á condemnação
+eterna. Como não podesse queimar os auctores, Pio IV desforrava-se fazendo-lhes
+queimar as obras.<span class="pagenum">{<a name="pag_XV">Pg. XV</a>}</span></p>
+
+<p>A vida de Sixto V é bastantemente conhecida, não tem que vêr com a de S.
+Pedro; mas sobejavam-lhe intelligencia e indole sufficientes ao exercicio do
+poder absoluto. Era manhoso e cruel este grande papa, cujo systema de governar
+compendiou em duas palavras: pão e páo.</p>
+
+<p>Dispensam-se pois os povos de pensar, como coisa perigosa: é bastante que
+elles não morram de fome e que tremam sempre diante do algoz. Depois erijam-se
+obeliscos e edifiquem-se templos.</p>
+
+<p>Este papa mandava decapitar os padecentes debaixo das suas janellas, antes
+de sentar-se á meza, dizendo que isto lhe abria o appetite. As cabeças dos
+suppliciados, que elle expunha e deixava apodrecer aos olhos dos caminhantes,
+ameaçavam de peste a cidade. Apezar dos juizes, fez enforcar um mancebo de 16
+annos por haver resistido aos quadrilheiros que o prenderam. Ordenou que
+cortassem as mãos e que traspassassem a lingua d'um auctor epigrammatico.
+Excommungou a rainha Isabel, desquitando a nação do juramento de fidelidade;
+excommungou o rei de Navarra, o principe de Condé e o rei de França, exaltando
+até ao delirio o fanatismo dos partidarios da Liga; e depois do assassinio do
+desgraçado Henrique III, elogiou em pleno consistorio Jacques Clement,
+comparando-o a Judith e Eleazar, debeis mas fieis instrumentos do Deus dos
+combates. E como signal sensibilissimo de sua terna solicitude pela salvação
+das almas, restabeleceu ao mesmo tempo o santo officio e cumulou de
+indulgencias a confraria do Santo Cordão. Era proprio d'este grande e devoto
+papa continuar a guerra declarada por seus predecessores á razão humana e á
+liberdade da consciencia, instituindo de par com o santo officio a congregação
+do Index.<span class="pagenum">{<a name="pag_XVI">Pg. XVI</a>}</span></p>
+
+<p>Não cuideis, porém, que os livros condemnados por esta congregação fossem
+lidos pelo papa ou sequer pelos cardeaes encarregados d'isso. Por via de regra
+os cardeaes nada lêem. Á laia de Sixto V, encarregavam outros d'esse officio. Á
+volta da congregação do Index formigavam monges e obscuros theologos de toda a
+parte, chamados consultores, a quem incumbia o encargo quasi sempre fastidioso
+de lêr obras novas. As formidaveis sentenças do Index, mediante as quaes uma
+familia inteira era excommungada e condemnada, promanavam do relatorio d'estes
+consultores: tal era a sorte de quem recusasse queimar um cartapacio
+jansenista, herança de avó piedosa, ou as <em>Maximas dos Santos</em> de
+Fénelon, ou os <em>Pensamentos</em> de Pascal, ou as <em>Reflexões moraes</em>
+de Quesnel, embora approvadas pelo cardeal de Noailes, arcebispo de Pariz, ou a
+<em>Theologia</em> de padre Lequeux&mdash;primeira edição&mdash;ou a
+<em>Philosophia</em> de Cousin. Pelo que me toca, julguei que o inferno é uma
+concepção immoral, profunda e forçosamente immoral pelas razões que adduzi.
+Tambem mostrei, a diversas luzes, o perigo de similhante crença para o genero
+humano. Por isso fui condemnado em Roma. Optimamente! Agora exijo que me
+respondam. Graves e leaes são as minhas objeções: o decreto do Index as deixou
+subsistir em todo o seu vigor.</p>
+
+<p>Quando a soberania temporal do papa, que não é dogma, deixar de absorver os
+esforços todos dos defensores da fé, espero que elles tenham vagar de cuidar no
+inferno, que é um dogma, e dogma tanto em perigo e tão
+vacillante&mdash;fiquem-no sabendo&mdash;como o throno de Paulo III, de Pio IV,
+e Pio V.<span class="pagenum">{<a name="pag_1">Pg. 1</a>}</span></p>
+
+<h1>INTRODUCÇÃO</h1>
+
+<h2>DOGMAS HEBRAICOS</h2>
+
+<p>É crença anterior á prégação de Christo, quanto ao texto, mas diversa do
+espirito do Evangelho, a eternidade das penas. Prende esta crença com outros
+dogmas rabbinicos, tão obscuros quanto descaridosos, que a Egreja nascente
+adoptou e que ainda hoje formam o essencial da theologia christã. Podemos
+reduzir aquelles dogmas a cinco, consubstanciados todos no Inferno. Vem a ser:
+a Rebellião de Satan, o Castigo de Satan, o Paraiso terreal, a Maldição dos
+homens, o Povo de Deus.</p>
+
+<p>Não intento esquadrinhar o sentido philosophico de taes dogmas: tal
+canceira, superflua para leitores instruidos,<span class="pagenum">{<a
+name="pag_2">Pg. 2</a>}</span> seria insipida e inutil para os ignorantes. Que
+Satanaz, inferno, peccado original, etc., sejam ou não horrendos symbolos do
+antigo pantheismo asiatico,&mdash;expressão viva d'um systema de methaphysica
+mais terrivel que especioso, onde liberdade e mal se confundem, e o nada
+divinisado tem consciencia de si, e Deus quasi deixa de ser&mdash;questões são
+essas proprias de academias. Taes dogmas para mim são o que á letra significam;
+sei d'elles o que nos ensinam; vejo-os como nos mandam vêl-os, como a multidão
+os vê, coisas reaes, pessoas verdadeiras, e não chimeras. Considero-os pois sob
+a fórma com que elles, ha muitos seculos, influem no genero humano: e não ha
+mais seguro modo de lhes apreciar o valor moral.</p>
+
+<p>Entremos na exposição, clara quanta fôr possivel, d'estes dogmas
+mysteriosos.</p>
+
+<h3>I</h3>
+
+<h4>Rebellião de Satanaz</h4>
+
+<p>A historia de Satanaz não se encontra na Biblia nem no Evangelho. Passou
+tradicionalmente da synagoga á Egreja. No Thalmud e nos Padres é que vem
+escripta.</p>
+
+<p>Satanaz era um anjo&mdash;como quem diz um espirito incorporeo, um sôpro de
+Deus. Pureza, força e benção eram o principio e constituição de sua essencia.
+Estava elle no ceo resguardado de exemplos e conselhos<span class="pagenum">{<a
+name="pag_3">Pg. 3</a>}</span> maus. Creado para o bem alli vivia em condições
+em que não é possivel conjecturar-lhe intenções más, contemplando Deus rosto a
+rosto, actuando e reclinando-se em seu seio, testemunha intelligente d'aquella
+superlativa sabedoria, bondade e omnipotencia que transpõe espaço e tempo.</p>
+
+<p>Infelizmente Satanaz era livre e peccou. É obra sua o mal que antes d'elle
+não existia. Concebeu-o elle, e&mdash;caso estranho!&mdash;produziu-o alli
+mesmo no ceo, em meio dos resplendores increados, e eternas bem-aventuranças, e
+depois quiz-lhe como a seu, e propagou-o por entre os anjos.</p>
+
+<p>Este peccado, aliás inqualificavel, visto que lhe não conhecemos a especie,
+é, como vou demonstrar, o verdadeiro peccado original. É a primitiva e
+inexhaurivel fonte de dores do genero humano, posto que ainda não houvesse
+genero humano na desconhecida época em que elle perturbou o céo. Todos os
+transtornos do universo, mal physico e mal moral, é aquelle peccado que os
+explica.</p>
+
+<p>Saibamos como Satanaz foi castigado.</p>
+
+<h3>II</h3>
+
+<h4>O Inferno</h4>
+
+<p>Deus não quiz anniquilar Satanaz nem perdoar-lhe. Creou o inferno, e
+precipitou-o lá com os seus cumplices.<span class="pagenum">{<a
+name="pag_4">Pg. 4</a>}</span></p>
+
+<p>Fogo, frio, esvahimentos de fome, tedios da saciedade, golpes de ferro,
+trances de agonia, inveja, remorsos, tudo isso não basta a dar-nos muito em
+sombra idêa dos tormentos d'aquelle abysmo. Corôa-lhe o horror não ser ahi
+conhecida a morte. Se a morte lá podesse entrar, a esperança iria com ella,
+deixando entrever o nada como acabamento de tão enormes penas.</p>
+
+<p>Se, porém, foi recusada a Satanaz esta miseravel consolação, goza-se de
+outra em desforra. Deus, que o reduziu á desesperação, deixou-lhe a faculdade
+de o molestar, atravessando-se-lhe nos intentos, contrariando-lhe as leis,
+multiplicando e perpetuando o mal por toda a parte, salvante o ceo.</p>
+
+<p>É o inferno o senhorio de Satanaz; mas não cabe lá. É-lhe toda a creação
+campo franco para a sua malfeitora actividade. Verdade é que leva comsigo, onde
+quer que vá, a sua immortal tristeza, e, pelo tanto, toda a parte lhe é
+inferno. Não obstante, é incomprehensivel que elle de lá sahisse, se lhe não
+fosse algum hediondo regalo n'isso de fazer tudo quanto quer, excepto o
+bem&mdash;poder singular que Deus lhe concedeu, e elle exercita
+incansavelmente, seu prazer unico, necessidade propria da sua desgraça, e que
+hade durar tanto como elle.</p>
+
+<p>Tal é o castigo de Satanaz. Crime e castigo são por egual espantosos e
+inintelligiveis.</p>
+
+<p>Agora, vejamos o que d'ahi resulta.<span class="pagenum">{<a
+name="pag_5">Pg. 5</a>}</span></p>
+
+<h3>III</h3>
+
+<h4>Paraiso terreal</h4>
+
+<p>No segundo e terceiro capitulos do <em>Genesis</em>, refere Moysés a creação
+e queda do homem. Esta breve passagem foi diffusamente glossada por hebreus e
+padres da Egreja, e raro haverá quem a não haja ouvido explicar do pulpito,
+como eu brevissimamente a vou explicar, acrescentando-lhe reflexões minhas.</p>
+
+<p>Adão e sua companheira tinham recebido no Eden uma lei moral simplissima e
+muito clara: era-lhes licito saborear todos os fructos d'aquella mansão de
+delicias, tirante o fructo d'uma só arvore: feito isto, a sua felicidade seria
+perfeita. Conta-se que elles estavam alli mais innocentes que os recemnascidos
+e ao mesmo tempo mais instruidos que os anciãos d'hoje em dia. Obedecia-lhes a
+natureza e elles comprehendiam-lhe a voz. Cuidados nenhuns, nenhumas lagrimas,
+primavera eterna, e a mocidade immorredoira em todo o seu ser. Deus folgava
+descer-se do ceo para n'elles contemplar a sua viva imagem; e então lhes
+mostrava seu rosto e lhes fallava.</p>
+
+<p>Entretanto Satanaz foi esperal-os debaixo da arvore da Sciencia, cujo fructo
+lhes fez comer. Não se corromperam per si mesmos como Satanaz; mas eram livres
+e o tentador estava alli. Quem tinha seduzido os anjos como deixaria de
+seduzil-os a elles? Que considerações<span class="pagenum">{<a name="pag_6">Pg.
+6</a>}</span> o reteriam? Não receia Deus por que Deus lhe não póde aggravar o
+supplicio, pois que esse supplicio é eterno, e o inexprimivel horror de tal
+castigo consiste na eternidade d'elle. Pelo que respeita á piedade, é
+sentimento que Satanaz não conhece, pois que Deus lh'a não mostrou a elle, o
+primeiro de todos os seres que a necessitára. Á semelhança das outras
+creaturas, tem sómente aquillo que recebe; e o que brilha em si não é o amor
+divino, é a divina colera que o conserva devorando-o.</p>
+
+<p>Quaes foram as consequencias da queda?</p>
+
+<h3>IV</h3>
+
+<h4>A maldição</h4>
+
+<p>Não aceitou Deus as desculpas de Adão e Eva. De tal modo o irritou a
+desobediencia, que, no auge da sua ira, amaldiçoou-os e com elles a terra que
+os continha: dupla maldição que abrange alma e corpo, espirito e materia,
+eternidade e tempo&mdash;o homem todo na intimidade de seu ser immortal e nas
+condições exteriores da sua existencia transitoria.</p>
+
+<p>De feito, foi Adão condemnado á morte. O corpo reverteu ao pó e a alma cahiu
+no inferno. Esperando, porém, este ultimo castigo, foi-lhe forçado soffrer
+outro n'este mundo. Cahiu sob o poder de Satan. Os miraculosos conhecimentos,
+que elle tinha, perdeu-os para sempre.<span class="pagenum">{<a
+name="pag_7">Pg. 7</a>}</span></p>
+
+<p>Repulso do Eden, nada sabia do que tinha sabido n'aquelle lugar; e, como a
+terra tambem se havia transformado, caminhava elle inexperiente atravez dos
+estorvos d'uma vida nova. Precisões, lavor ingrato, enfermidades, padecimentos
+de toda a natureza, desconfianças, medos, saudades inuteis, desejos inquietos
+acompanhavam o vagabundo par. Satanaz seguia-os, julgando-os ainda bastante
+felizes sobre a terra maldita, onde, se elle não fosse, o soffrimento seria
+expiação, e a morte resgate.</p>
+
+<p>Penetremos mais dentro n'este mysterio, e consideremos com os theologos
+quaes foram e ainda são hoje as deploraveis consequencias d'aquelles
+successos.</p>
+
+<h3>V</h3>
+
+<h4>Consequencias da maldição</h4>
+
+<p>Os filhos de Adão que ainda não eram nascidos no momento da culpa, e os
+filhos de seus filhos até á derradeira geração foram condemnados com elle, como
+se tivessem peccado. Comprehende-se que elles não fossem melhores que seus
+pais: peiores é que elles se tornaram. O mais velho d'esses reprobos matou seu
+irmão, e a impiedade humana foi crescendo até ao diluvio para recomeçar, ao
+sahir da arca, durante o somno de Noé.</p>
+
+<p>Uma tal punição não podia gerar outros effeitos.</p>
+
+<p>Considerai que nascemos aviltados, pervertidos, embriagados<span
+class="pagenum">{<a name="pag_8">Pg. 8</a>}</span> do vinho que outros beberam,
+escravos d'um poder occulto e maligno, odiados de Deus, odiando a Deus, só
+bastantemente livres para praticar maldades e merecer por isso novos castigos;
+incapazes todavia de praticar o bem. Está Satanaz no manancial onde bebemos a
+vida; está nas fontes que a nutrem, no seio de nossa mãe e no seu leito; a si
+nos attráe, encorporando-se na luz, na agua, nos alimentos, no ar que
+respiramos, na voz que nos encanta o ouvido, na fragrancia que as auras nos
+trazem, no amigo que nos abre os braços. Comnosco se identifica e nos enche de
+seus cavilosos e insaciaveis appetites.</p>
+
+<p>De fóra chama-nos com uma doce voz, e com um interno aguilhão nos esporêa
+para onde nos chama. Então nos cerca, invade-nos, possue-nos, e isto não é
+ainda senão parte do nosso castigo. O inverno que nos engorgita os membros, a
+fome que nos prostra, a trovoada que arrebata as sementeiras, a febre paludosa
+que nos mata os filhos, as forças que se vão quando a experiencia chega, estes
+flagellos todos da natureza contra nós desenfreados, estas necessidades
+inexoraveis, amargas privações, e exulcerantes desenganos são tambem parte do
+nosso castigo. Mas ainda não é tudo: a nossa insanavel ignorancia, orgulho,
+fraqueza, toda a corrupção do nosso ser é parte integrante do mesmo castigo,
+não do peccado original, cumpre notar, mas do castigo, pois que a transmissão
+do peccado original é já de si um castigo. E não pára aqui a maldição; pelo
+contrario, quando ella se<span class="pagenum">{<a name="pag_9">Pg.
+9</a>}</span> nos mostra mais terrivel é n'este estado a que nos reduziu,
+manietados pelas cadeias que nos forjou, porque as culpas que resultam d'esta
+corrupção natura e involuntaria que é um castigo, d'esta possessão diabolica
+que é um castigo, e de tantas dores accumuladas que são castigo&mdash;taes
+culpas chamam sobre nós outros castigos. Qualquer lapso é reprehensivel; o
+menor deslize é espiado e marcado; o minimo murmurio é uma offensa.</p>
+
+<p>Taes são, consoante a theologia dos hebreus, adoptada e assignada pelos
+padres, as relações do homem com Deus e de Deus com o homem.</p>
+
+<p>Detestam-se. Desde a sahida do Eden que se digladiam em duello sem fim,
+posto que desigual. Um primeiro crime gerou a colera divina; mas do primeiro
+acto da colera divina surtiram outros crimes, os quaes geraram novas coleras, e
+continuamente, em face um do outro, a colera e o crime se fecundam e reproduzem
+sem descanso. Os homens n'esta lucta são incansaveis como Deus, e, posto que
+trespassados e sanguinolentos e esmagados, ameaçam e conspiram ainda.</p>
+
+<p>De semelhante espectaculo não ha nome condigno! Está o odio por toda a
+parte, na terra, no inferno, no ceo, nas creaturas e no Creador.</p>
+
+<p>Accrescentemos que o que melhor se comprehende neste systema é a rebellião
+do homem, porquanto a nossa sorte é mais miseravel que a sorte de Adão, e cem
+vezes mais miseravel que a de Satanaz. Mas faz-se mister esclarecer este ponto,
+antes de passar além.<span class="pagenum">{<a name="pag_10">Pg.
+10</a>}</span></p>
+
+<h3>VI</h3>
+
+<h4>Comparação da nossa sorte com a de Adão e de Satanaz</h4>
+
+<p>Em verdade nenhuma similhança temos com os habitantes do paraiso terreal;
+não lhes herdamos o saber adquirido sem trabalho, nem a pureza, nem a
+liberdade, que se agitava a bel-prazer em um tão vasto circulo, tendo um só
+limite perfeitamente distincto; nem tão pouco lhes herdamos a tranquilla
+felicidade. Para nós é tudo trevas, servidão, limite, trabalho e dôr. Apezar do
+peccado, outra vantagem nos levavam. Puniu-os Deus d'uma maneira que nos
+espanta; mas puniu-os pelo mal que propriamente fizeram. Comnosco não é assim.
+Primeiramente, aquelles actos, que Deus tão severamente castigou n'elles,
+continuam-se em nós, que não temos conhecimento d'elles senão por este
+proseguimento vingativo; depois, sem attender á nossa infermidade nativa, nos
+faz elle expiar nossas proprias faltas com tamanho rigor como se as nós
+tivessemos commettido na liberdade, na sciencia, e nos jubilos do Eden.</p>
+
+<p>Se podeis, comparae agora a sorte do homem n'este mundo maldito á de Satanaz
+no ceo; e os peccados d'aquella creatura debil, ignorante, decahida, envolta em
+carne e sangue, cercada de precipicios e trevas, criminosa porque nasceu, e em
+perigo porque vive;&mdash;comparae<span class="pagenum">{<a name="pag_11">Pg.
+11</a>}</span> isto, se podeis, ao inexplicavel peccado do anjo. Similhança não
+ha ahi nenhuma. Entre nós e aquelle espirito bemaventurado vae a differença de
+noite a dia, e entre a sua culpa e a nossa a distancia da terra ao ceo. Sem
+embargo disso, as penas são iguaes. Espera-nos o mesmo inferno. A unica
+desegualdade que se nota n'este logar de soffrimento é que o homem ahi será a
+eterna victima, e Satanaz o eterno algoz.</p>
+
+<p>É evidentissimo que é a mesma a pena applicada a seres que prevaricaram em
+tão oppostas condições de actividade. Esta pena infinita só tem relação com o
+poder infinito do juiz offendido; não tem alguma com as faculdades diversamente
+limitadas dos culpados, e augmenta de gravidade á medida que desce sobre
+peccadores d'uma natureza mais fragil, de Satanaz sobre Adão, de Adão sobre a
+sua posteridade.</p>
+
+<p>Quando procuramos n'isto a justiça, dizem-nos que ella ahi está, mas
+escondida. Oh! sim, meu Deus! Bem escondida, e a razão tambem, e a piedade
+tambem!</p>
+
+<h3>VII</h3>
+
+<h4>O povo de Deus</h4>
+
+<p>Entretanto parece que a piedade se manifesta na formação do povo de Deus, e
+em verdade ahi se denota, mas como excepção, privilegio e favor.</p>
+
+<p>Havia no Egypto uma raça de escravos; toma-os Deus pela mão, e atravez de
+mil obstaculos os leva<span class="pagenum">{<a name="pag_12">Pg.
+12</a>}</span> ao paiz de Chanaan; dá-lhes leis, ministros e prophetas;
+illustra-os, defende-os, castiga-os, restaura-os, disputando a Satanaz, com
+successivos milagres, essa nesga de terra onde quer ser adorado. Não obstante,
+estas revelaçõens e sobrenatural assistencia não impedem que os judeus
+idolatrem, que se prostituam, que usurem e se precipitem numerosissimos em
+todas as voragens do mal. Por aqui se avalie a desgraça dos povos que occupavam
+o resto da terra e a quem faltavam taes soccorros. Pezava n'elles sem
+contrapezo o peccado original. Os que a maior grau de perfeição tinham levado
+artes e sciencias estavam tão remotos da verdade como o selvagem mais
+embrutecido. Não porque uns ou outros fossem atheus&mdash;pelo contrario, em
+seus soffrimentos, levantavam olhos ao ceo; mas como procuravam a divindade nas
+estrellas, nas altas montanhas, no concavo dos bosques, e nas mil imagens
+compostas de materia impura, debalde rogavam, e inutilmente sacrificavam.
+Salvante a de Moysés, todas as religiões eram engodo de Satanaz e conductoras
+d'almas ao inferno, similhantes ás lumieiras que as hordas assalteadoras
+accendem á beira das restingas, durante as noites tempestuosos, afim de que os
+navegantes se percam. E Deus abandonava os gentios á sua ignorancia;
+detestava-os em tanto extremo que prohibia o seu povo de os tratar, sobretudo
+de misturar ao d'elles o seu sangue, excepto nas batalhas. Occasionado o
+ensejo, era obra piedosa exterminal-os; mas attrahil-os ao seu coração, era,
+em<span class="pagenum">{<a name="pag_13">Pg. 13</a>}</span> todos os lances,
+um acto abominavel, por maneira que o leproso de Jerusalem recearia manchar-se,
+se recebesse na sua enxerga infecta a mais pura donzella de Sidon.</p>
+
+<p>Tal é substancialmente o ultimo dogma que nos convém estudar. É certo que
+elle nos revela a bondade de Deus; mas á similhança de pallida restea de luz em
+espessa treva. O que nos ella esclarece é um ponto imperceptivel do espaço.
+Está meio velada no ponto onde brilha, e tanto ahi, como no restante do mundo,
+razão e justiça de Deus jazem de todo em todo escurecidas. Sobre a terra foi
+Jacob o unico justo? Se houve mais, porque não fez Deus alliança com elles e
+seus descendentes? Por que adoptou sómente os judeus, por que liberalisou a
+estes luzes que negou aos outros? Se lhe aprazia dar á humanidade cabida e
+obcecada pelo peccado meios de salvação, porque abençoou o sangue e a carne de
+um só homem, amaldiçoando o sangue e a carne dos mais homens? Se isto é
+verdade, força nos é exclamar com os theologos:&mdash;Razão impenetravel!
+Impenetravel justiça!&mdash;Sendo que tudo isto essencialmente diverge das
+idêas que podemos formar da pura razão e da verdadeira justiça.</p>
+
+<p>A lei do genero humano, em toda esta historia, é a lei ditada pela colera,
+e, ainda quando a bondade ahi reluz, dá ares de um capricho.</p>
+
+<p>Os primeiros christãos, judeus de origem, não adoptaram menos estas idêas
+por mais avessas que<span class="pagenum">{<a name="pag_14">Pg. 14</a>}</span>
+fundamentalmente sejam, não só á revelação interior, ás luzes da consciencia,
+mas tambem a tudo que mais luminoso do ensino de seu divino mestre nos
+transmittiram. A Egreja, dilatando-se fóra de Jerusalem, conservou o sinete da
+sua educação rabbinica<sup><a name="L2357" id="L2357"
+href="#L2354">[1]</a></sup>, permanecendo meio judaica. Não mudou um til aos
+dogmas sombrios e crueis da synagoga, mas transformou o dogma do povo de Deus;
+ampliou-o espiritualisando-o, sem tirar ainda assim á clemencia divina, como
+logo veremos, aquella mystica e excepcional indole que tinha entre os judeus.
+Admittiu os gentios ao beneficio das graças de que Moysés os excluira, e tornou
+judeus, mediante o baptismo, os que de sangue o não eram. Ao mesmo tempo,
+repulsou do seu gremio os que só por sangue eram judeus, e o não eram por
+baptismo, formando, com tal exclusão, outro povo de Deus, e ficando o antigo a
+representar a<span class="pagenum">{<a name="pag_15">Pg. 15</a>}</span> figura
+carnal do novo. Em summa, a Egreja moldurou quanto em si coube, o espirito
+christão nas fôrmas antigas, que ella sempre venerava e considerava
+expressamente feitas para o receber. Consoante a parabola, envasilhou o vinho
+novo no tonel velho, onde ferve até estalar as aduelas; cuidado, porém, que a
+velha vasilha póde fender-se; o vinho contheudo é o sangue de Christo; e o
+genero humano, em prol de quem tal sangue ha manado, não deixará que uma gotta
+se perca.</p>
+
+<p>Ha pouco disse eu que a egreja, adoptando as crenças da Judéa, não havia
+modificado a indole estranha e excepcional que taes crenças argúem á bondade de
+Deus. Por egual razão deixou ella condensarem-se as mesmas trevas sobre a sua
+justiça. É facil demonstral-o.</p>
+
+<div class="rodape">
+<p><sup><a name="L2354" id="L2354" href="#L2357">[1]</a></sup> No concilio
+feito pelos apostolos em Jerusalem, questionou-se sobre se se devia circumcidar
+os judeus. Muitos pensaram que esta operação fosse indispensavel á salvação,
+por isso que Moysés a ordenára; Paulo e Bernabé não foram d'esta opinião; a
+duvida, porém, era tamanha que sahiram deputados para Jerusalem, afim de
+combinarem com os apostolos e os padres. O concilio discutiu longo tempo. Pedro
+fallou de harmonia com Paulo; mas as duvidas subsistiram. Thiago fallou por sua
+vez, não invocando a palavra de Christo, mas repetindo algumas palavras dos
+antigos prophetas; o que fechou a pendencia. Decidiram que a circumcisão era
+desnecessaria á salvação. Todavia, logo adiante, Paulo, que contribuira para
+este accordo, circumcidou Timotheo, «em razão de estarem judeus n'aquelle
+logar, e saberem que seu pae era gentio.» Vid. <em>Actos dos Ap.</em>, cap. XV
+e XVI.</p>
+</div>
+
+<h3>VIII</h3>
+
+<h4>A egreja e o novo povo de Deus</h4>
+
+<p>Hoje em dia faz-se mister nascer em paiz catholico para ainda se crêr na
+possibilidade de não ir infallivelmente ao inferno. Contra o espirito do mal
+inda lá se encontra aquella miraculosa assistencia que outr'ora protegia apenas
+o districto não grande do Oriente. Alargou-se o territorio da clemencia, mas
+ainda assim não mede a quarta parte do globo. Além d'isso entre os novos, do
+mesmo modo como entre os antigos judeus,<span class="pagenum">{<a
+name="pag_16">Pg. 16</a>}</span> perdem-se muitos, porque Satanaz está sempre
+comnosco, na carne de Adão, e a maldição sobranceia-nos sempre.</p>
+
+<p>Se o baptismo destróe esta maldição, não o faz completamente, salvo quando o
+baptisado morre ao sahir do baptisterio; senão, nem nos dispensa das penas
+eternas, nem nos arranca das prezas da necessidade das affeições, das
+tentações, dos enganos innumeros que são os effeitos temporaes da maldição.</p>
+
+<p>Cresce, pobre creança, e se podes, cerra os ouvidos ás alegres cantilenas da
+tua ama; foge ás caricias de tua mãe e a todas as seducções que já te rodeiam.
+Não toques no bello fructo que a tua fome anceia. Na tua edade, sem que o
+saibas, já Satanaz te falla; na bebida e na comida estão venenos d'elle; com o
+mal te familiarisas, e perdida está a innocencia baptismal. Feito o primeiro
+peccado, desluziu-se a graça; a maldição meia delida revive inteira; a Egreja
+vem ainda com outros mysteriosos meios em nosso auxilio; porém, como n'este
+mundo não ha destruir attracção e inclinação e a liberdade do mal, muitos dos
+seus filhos se perdem, apesar d'ella, e para, melhor o dizer, em seus
+braços.</p>
+
+<p>Attendendo aos perigos a que estão sujeitos ainda os filhos da luz n'esses
+paizes favorecidos, considere-se em que estado de desesperação vivem os filhos
+das trevas, isto é a maxima parte do genero humano. Em mil milhões de homens,
+pouco mais ou menos, que actualmente soffrem na terra, o mais que<span
+class="pagenum">{<a name="pag_17">Pg. 17</a>}</span> póde haver é duzentos
+milhões de catholicos. O remanescente vive sem confissão, e o maior numero sem
+baptismo, na ignorancia ou no odio da Egreja, e d'aqui vão como vieram sob o
+poder de Satanaz. Tem elles culpa? Nasceram no abysmo e longe de soccorros.
+Familia, tribu, cidade, patria, protectores naturaes, primeiros guias, ultimos
+amigos, lições, exemplos, leis e costumes, tudo os engana. Quem é que póde
+escolher o seu berço? Pois a nossa salvação póde depender de circumstancias e
+successos que não dependem de nós? A nossa rasão corrompida absolve-os; o velho
+Adão encontra sempre alguma desculpa ao peccado; mas a fé essa não. A fé
+decreta a reprovação final dos gentios, dos infieis, dos hereticos e até a
+reprovação final e eterna d'um grandissimo numero de catholicos; crê n'isto
+como no peccado original, como na hereditariedade do crime e do castigo, bem
+como na graça da salvação&mdash;coisas correlativas e de todo o ponto
+inseparaveis. Adora em silencio todas estas apparentes iniquidades, convicta de
+que ellas são sómente apparentes, e que um dia virá em que os proprios gentios
+hão de confessar que Deus fez bem amaldiçoando-os: tão profundamente justo,
+equitativo e rasoavel é na essencia aquillo que exteriormente tão pouco é.</p>
+
+<p>Não ha pois duvidar que milhões de milhões de creaturas humanas estão no
+inferno. As almas despenham-se ahi de todos os lados, densas e rapidas como a
+chuva, chuva que dura ha mais de seis mil annos,<span class="pagenum">{<a
+name="pag_18">Pg. 18</a>}</span> e não acabará nunca. Todos nós temos no
+inferno uma immensa familia: todos os nossos antepassados pagãos, durante
+quatro mil annos, e Deus sabe quantos avós christãos!</p>
+
+<p>Os parentes e amigos de quem nos apartamos a chorar, o que fazem é ir
+adiante de nós; os netos d'elles e os nossos, pela maior parte, lá vão ter
+comnosco, e para tão horrivel fim é que nós nos reproduzimos.</p>
+
+<h3>IX</h3>
+
+<h4>Como se prova a verdade dos dogmas hebraicos, e com especialidade a
+eternidade das penas</h4>
+
+<p>Todos estes dogmas estão ligados; porém, quando surge uma duvida, não basta
+um para demonstrar o outro. Próvem-nos que Satanaz foi expulso do céo, e o
+homem do Eden; e, quando o tiverem provado, nem por isso lhes cabe o direito de
+concluir que Deus nunca perdoará a Satanaz nem aos homens. Um castigo que tira
+aos pacientes a esperança, e ao divino juiz a piedade, é mais incomprehensivel
+ainda que a fragilidade dos anjos: por consequencia, um tal castigo carece de
+ser justificado por pessoas eguaes, senão melhores. Estes antigos mysterios não
+derivam um do outro naturalmente; e, seja qual for o castigo que Deus reserve
+em sua justiça ás prevaricações das creaturas livres, é certo que nós o
+soffreriamos, ainda que Satanaz e Adão não tivessem peccado. A principal
+questão<span class="pagenum">{<a name="pag_19">Pg. 19</a>}</span> é saber se
+este castigo será eterno, e a tal respeito a corrupção original, a
+reversibilidade das culpas, o poder do tentador augmentam nossas duvidas em vez
+de diminuil-as.</p>
+
+<p>O que ahi ha para nós não são provas, são objecções. O inferno poderá ainda
+sem isso não satisfazer nossa razão; mas não a offenderá tanto. É urgente,
+pois, provar que elle existe.</p>
+
+<p>Prova-se pela revelação, isto é, pelas escripturas santas e pela auctoridade
+da Egreja, interprete infallivel d'ellas. Porém revelação biblica e
+infalibilidade de Egreja são já de si outros dogmas a favor dos quaes se
+escrevem todos os dias grossos volumes; e seria desviar-me grandemente do meu
+assumpto suscitando aqui similhante discussão. O pouco que a tal respeito hei
+de dizer vem no appendice que está no fim d'esta obra, sendo tanto para o
+leitor como para mim grande a pressa que temos de sahir d'este labyrintho de
+mysterios. Investigo provas d'outra ordem, mais especiaes, mais directas, mais
+apontadas ao bom senso, ao coração, á intelligencia, e que se prestam
+facilmente a ser entendidas e livremente discutidas. Se taes provas não
+existissem, não emprehenderia eu similhante trabalho; mas sustenta-se que
+existem, e em todas as apologias são invocadas como auxiliares das provas
+sobrenaturaes, e do ensinamento da Egreja, argumentos puramente philosophicos,
+dos quaes parece que a fé mesmamente está carecida. Dir-se-hia de vontade a
+respeito do inferno, o que Voltaire disse de Deus:<span class="pagenum">{<a
+name="pag_20">Pg. 20</a>}</span> que se elle não existisse, mister seria
+invental-o. Pois que podemos em verdade provar a existencia de Deus pela
+necessidade moral d'esta crença, pelo mesmo theor se intenta provar a
+existencia do inferno perpetuo: intenta-se fazer d'isto uma necessidade moral
+tão clara e evidente, quanto é evidente e clara a necessidade moral da crença
+em Deus, e é usual fundamentar tal raciocinio sobre o testemunho de todos os
+povos, que tanto importa a tradição chamada universal.</p>
+
+<p>A mim me basta a primeira prova; d'ella pende a meu vêr a questão capital.
+Se o inferno, ou sómente a idêa do inferno é moralmente util, existe o inferno,
+é necessario, e é divino. Porém, como quer que a evidencia d'esta utilidade não
+seja dogma, assiste-nos o direito de examinar com plena liberdade. Tal é a
+tarefa que me impuz. A tradição universal de que tratarei depois, é apenas a
+primeira face do problema.<span class="pagenum">{<a name="pag_21">Pg.
+21</a>}</span></p>
+
+<h1 style="font-size: 3em;">O INFERNO</h1>
+<hr>
+
+<h1>PARTE PRIMEIRA</h1>
+
+<h4>O INFERNO CONSIDERADO ÁQUÉM DA CAMPA, OU O HOMEM E A SOCIEDADE EM PRESENÇA
+DO INFERNO</h4>
+
+<h2>CAPITULO PRIMEIRO</h2>
+
+<h4>TRADIÇÕES</h4>
+
+<h3>I</h3>
+
+<h4>A tradição universal é a prova do inferno?</h4>
+
+<p>Quando nos querem fazer comprehender a necessidade da revelação christã,
+esforçam-se em requintar phrases aviltantes, para bem caracterisar o estado do
+mundo sob os reinados de Augusto e Tiberio.</p>
+
+<p>Não peço que se suavisem as pinturas. Todavia, se se tracta de nos incutir
+algum antigo dogma hebraico tenebrosissimo, repellentissimo, tal como o peccado
+original, a malicia dos diabos, o eternal inferno, então é vêr como esse genero
+humano tão vilescido se transfigura subitamente em oraculo. Claro é que a moral
+se lhe varrêra de todo; mas a theologia ficou. Eil-os a cavar no lodaçal das
+superstições orientaes, as mais putridas de quantas ahi houve, e querem
+entrever n'ellas uns certos vestigios de lá se haver conhecido<span
+class="pagenum">{<a name="pag_22">Pg. 22</a>}</span> Adão e Noé. Se se trata
+simplesmente do inferno, isso então acha-se em toda a parte. Um paria
+vagabundo, um pagão abjecto, um negro, um hottentote tremente em face d'um
+fetiche, eis as testemunhas, os consultados, os doutores. É mais que certo que
+taes miseraveis haviam perdido as noções todas do bem; dormiam com as servas e
+até com as irmãs; vendiam na feira as filhas e ás vezes as mães; profanavam os
+hospedes; eram ladrões, eram antropophagos; adoravam pedras, serpentes, sapos,
+e, peor que tudo, homens, facinoras ensanguentados; mas criam no inferno.
+Clarão de consciencia não lampejava n'elles só um; não estremavam raia entre
+virtude e vicio; e, posto que taes distincções lhes houvessem sido reveladas,
+tinham-nas esquecido. Vêde, porém, o prodigio: quanto ahi havia
+incomprehensivel para nós e ainda mais para elles; tudo que transcende a alçada
+da experiencia; tudo quanto a simples razão não póde revelar&mdash;tudo, em
+fim, que, pelo conseguinte, mais facilmente se desluz da memoria, oh! tudo isso
+lhes ficou na lembrança!</p>
+
+<p>Que argumento a pró do inferno!</p>
+
+<p>Quem ousa impugnar verdade tão de fundamento provada? Cafres, Papus, Saabs,
+Bushmans creram no inferno! Patagões, Muskogis, Algonquinos, Chipperrais, Sioux
+creram no inferno! Hunos, Alanos, Ostrogodos, Gepidas, Vandalos creram no
+inferno! Tambem creram n'isso Cananeos, Philisteos, Ninivitas e Babylonios!
+Sodoma e Gomorra tambem! Sardanapalo, Balthazar, Herodiada, Cleopatra, Nero,
+Attila, Gengiskhão,<span class="pagenum">{<a name="pag_23">Pg. 23</a>}</span>
+Tamerlão creram tambem no inferno! Querem prova mais concludente?</p>
+
+<p>Eu não sei se semelhante demonstração do inferno é bem feita para edificar
+uma assemblêa de fieis; receio muito que os incredulos se riam. Quer-me parecer
+que, se tentassem insinuar-nos reverencia a tal dogma, deveriam contentar-se
+com dizer-nos que aquellas raças degeneradas, aquellas nações estupidas,
+aquellas hordas faccinoras, aquelles sacerdotes embaidores, aquelles reis
+devassos, em fim, todos esses selvagens e monstros, nem criam na eternidade das
+penas, nem d'isso tinham vislumbres. Tal argumento, se fundado fosse,
+figurar-se-hia melhor que nenhum. Presumir-se-hia que esses homens, se tivessem
+á mão e perante os olhos barreira tal, não se infamariam tanto. Mas, da laia
+que elles são, darem-no'l-os como crentes no inferno, é mandar-nos descrer.
+Horrorisa-nos a immortalidade d'elles. Vão lá trazer taes arbitros para uma
+questão de altissimo interesse moral! Dizeis que elles creram no inferno? Oh
+Deus meu! é por isso mesmo talvez que elles tão mal comprehendiam a justiça, e
+tal vida viveram!<span class="pagenum">{<a name="pag_24">Pg. 24</a>}</span></p>
+
+<h3>II</h3>
+
+<h4>Explicação natural das tradições pagãs ácerca do inferno</h4>
+
+<p>Que monta recorrer a revelações miraculosas? É facilima coisa explicar
+naturalmente as tradições pagãs ácerca do inferno.</p>
+
+<p>Este social estado que conhecemos, no qual o direito de cada um é definido
+por lei, e protegido por força publica, não é o primitivo estado do genero
+humano. No principio, a unica sociedade foi a familia, e, por extensão, a
+tribu. Cada homem se protegia a si, e sahia em desaffronta propria; parentes e
+servos bandeavam-se na pendencia, e a menor tentativa contra o direito privado
+espadanava ondas de sangue. N'esses remotos tempos, vingança e justiça eram uma
+só cousa.</p>
+
+<p>Ora, é verdade que a vingança procede do sentimento de justiça, mas
+ultrapassa a justiça sempre, porque é egoista, cega, orgulhosa, colerica, não
+mede, não se compadece, dá mal por mal, e usurariamente o dá. A mais antiga das
+leis judaicas, a lei cruel de talião, foi lei misericordiosa; abalisou as
+retaliações; cabeça por cabeça, olho por olho, dente por dente, e mais nada. A
+vingança queria mais: arrancava os dois olhos, e não se saciava. Na Thracia, em
+Grecia e Roma, nas Gallias, na Germania, em toda a terra houve tempo em que os
+inimigos captivos eram sacrificados aos deoses, e estrangulados<span
+class="pagenum">{<a name="pag_25">Pg. 25</a>}</span> pelos sacerdotes do altar.
+Os que o ferro poupava eram ainda mais dignos de compaixão: condemnavam-os á
+escravidão com a sua posteridade&mdash;ao trabalhar sem proveito, e á miseria
+infinita. Entre as familias, tribus e raças ardiam odios hereditarios; pagava o
+innocente pelo culpado, porque era commum dever o assassinal-o.</p>
+
+<p>E tudo isto se figurava justo, e hoje ainda entre as nações christãs, aqui e
+alli, subsistem vestigios d'estes antigos costumes.</p>
+
+<p>Se insistem em que os pagãos conheciam o peccado original, a maldição do
+genero humano e as penas eternas, força é confessar que elles, segundo
+procediam, procuravam incitar a justiça divina. Que melhor modelo lhes sahiria
+a ponto?</p>
+
+<p>Para lhes condemnar o procedimento é mister conceder que elles de Deus e da
+sua justiça apenas tinham falsa idêa. Phantasiavam Deus á sua similhança,
+vingativo, descaroado. D'ahi, a idêa das raças malditas, dos crimes e castigos
+hereditarios. D'ahi os pavorosos sonhos do inferno sem fim, dos máos abrazados
+e espedaçados vivos, dos algozes enfurecidos sobre as suas prêas immortaes, o
+chorar incessante, o suspirar sem echo, e os engenhosos supplicios todos do
+Naraka, indostamio inferno que ainda flammeja, e do Amenthi, egypcio, e do
+Tartaro grego, antigos infernos já agora apagados e que ha tantos seculos não
+mettem medo a ninguem.<span class="pagenum">{<a name="pag_26">Pg.
+26</a>}</span></p>
+
+<h3>III</h3>
+
+<h4>Como o sacerdocio perpetuou estas tradições</h4>
+
+<p>A par e passo que a humanidade se illustra, vemos adoçarem-se por toda a
+parte as leis e os costumes; as religiões, porém, essas não: antes querem
+morrer que mudar; conservam como deposito precioso e inviolavel doutrinas
+antiquadas sem parentesco com as idêas e as necessidades das sociedades novas.
+Continuam a prégar aos povos policiados deoses ferozes. Faz-se mister um dia
+arrancar ao cutello sagrado as victimas humanas. Na Gallia foi forçoso derruir
+as áras e immolar os sacerdotes para acabar com os sacrificios abominaveis. Dá
+Moysés aos judeus a lei de talião, mas reserva a Jehovah a vingança, como os
+poetas gregos a reservavam a Jupiter. Querem homens bons e um Deus cruel,
+homens justos, e um Deus iniquo; e, sendo isto repugnante, fazem da justiça
+divina um mysterio, com a declaração de que o não podemos perceber. Préga Jesus
+exclusivamente a caridade, e morre em um madeiro perdoando a seus algozes.
+Tratam de conciliar a sua doutrina com os rabbinos, e logo nos figuram um Deus
+de duas faces: a doce face do Christo que contempla a terra, e no inverso
+d'esta face augusta e ungida de lagrimas, a face irritada de Jehovah, o Deus
+exterminador, o Deus inexoravel que persegue os filhos pelos crimes dos
+paes.<span class="pagenum">{<a name="pag_27">Pg. 27</a>}</span></p>
+
+<h3>IV</h3>
+
+<h4>Exemplo de um povo que permanece fiel a todas as suas antigas tradições</h4>
+
+<p>É a tradição a memoria do genero humano. Cumpre não menosprezal-a á conta
+das verdades que ella propaga; todavia não devemos escutal-a de joelhos, á
+feição de oraculo, por causa dos erros que a deturpam atravez de todas as
+edades e nações.</p>
+
+<p>Que nos faz a nós que os antigos crêssem nas penas eternas? Não será isso
+que as tornará eternas, se ellas o não são. Mais antiga que todas as opiniões
+dos homens é a bondade de Deus; e as verdades moraes bem como as physicas
+dispensam o nosso consentimento para subsistirem.</p>
+
+<p>Pois não girava a terra quando a julgavam immovel? Não era odiosa a
+escravidão quando a julgavam justa? Ha na profundeza do ceo estrellas que
+nossos paes não viram e nós vemos; e ha outras cuja luz não alcançamos e nossos
+netos verão brilhar.</p>
+
+<p>Cumpre ver o ceo com os nossos olhos, e não com a vista dos que já são
+mortos. Não seria blasphemia crêr n'um Deus vingador, quando em seu proprio
+coração o homem não tinha discriminado entre justiça e vingança, e por isso a
+Deus se concediam sentimentos e acções que n'este mundo eram honrosos.
+Attribuir-lhe, porém, acções que passariam por injustas,<span
+class="pagenum">{<a name="pag_28">Pg. 28</a>}</span> se commettidas fossem,
+seria arrogar-se o homem direitos de fazer-se melhor que Deus; e fôra
+verdadeira impiedade imaginar um Deus tal que envergonharia quem o imitasse. O
+passado lá vai. Os antigos deram suas contas; nós temos de dar as nossas.
+Quando um caminheiro cáe na estrada, quem se levanta côxo é elle e não seu pai.
+Qualquer crime que perpetreis servos-ha imputado a vós. Desquitar os homens, em
+nome das tradições, da responsabilidade da sua fé, seria remil-os da
+responsabilidade das suas obras. Ha quatro mil annos que os hindostanicos são
+escravos dos mesmos prejuizos, acorrentados nas mesmas castas, vinculados ás
+mesmas praticas, rojando e palpando no mesmo circulo d'erro e miserias, á
+similhança dos seus condemnados, no dedalo tenebroso e sem sahida do seu
+inferno. N'aquellas regiões morre o homem na condição em que nasceu: representa
+servilmente seu já morto pai, pensando e operando como elle. É, quanto menos
+póde ser, pessoa distincta e nova; é-lhe quasi inutil a razão; a memoria lhe
+basta; nem a consciencia vive em 'si; está fóra nas tradições oraes ou
+escriptas que reverenceia cegamente, porque antes de vir ao mundo já eram
+veneradas. Se ha verdade é o que essas tradições dizem; bem, é o que ellas
+ordenam; mal, é o que ellas prohibem.</p>
+
+<p>Investigar para que? Que mais quer elle? Bello reclinatorio para a preguiça!
+Excellente desculpa para vicios! Valente obstaculo para virtudes!</p>
+
+<p>Uma das glorias de Christo, um dos espinhos da<span class="pagenum">{<a
+name="pag_29">Pg. 29</a>}</span> sua corôa santa, foi contrapôr o direito da
+consciencia individual á tyrannia das opiniões, tradições e escripturas
+judaicas. Ensinou-nos elle a sobrepôr o juiz intimo sobranceiro a todos os
+juizes da terra, e responsabilisou perante Deus o homem por seus actos, ao
+mesmo passo que os responsabilisou por seus pensamentos e sua fé.</p>
+
+<h3>V</h3>
+
+<h4>Effeito d'estas tradições na edade media</h4>
+
+<p>As tradições judaicas e pagãs consubstanciavam-se profundamente na edade
+media, acerbando-lhes as suas leis penaes com supplicios e torturas. As prisões
+não tinham ar nem luz; o adorno das masmorras era palha podre, pão e agua.
+Havia prisões subterraneas, tumulos onde o homem entrava vivo e não sahia mais.
+Até os mosteiros as tinham. O furto era punido com a morte; a morte punia a
+transgressão da lei sobre a caça. Em cada encruzilhada uma forca. Para os
+hereges fogueiras. E frequentemente uma familia inteira era castigada pelo
+crime do chefe, bens confiscados, casa arrazada, o nome proscripto. Nada digo
+sobre a servidão, degradação hereditaria, especie de mancha original e quasi
+universal em cada paiz, horrenda reliquia da escravidão antiga, e das
+superstições do Oriente.</p>
+
+<p>Havia crença na efficacia d'aquelles horrendos castigos.<span
+class="pagenum">{<a name="pag_30">Pg. 30</a>}</span> E seriam por isso menos
+raros os crimes? O terror governava o mundo. E seria o mundo melhor governado?
+Ia n'isso a antiguidade das tradições. Dava-vos pena que ellas se abolissem?
+Quem ha ahi saudoso das torturas, masmorras, confiscações, fogueiras,
+escravidão? E quem ousaria pedir, por interesse da justiça e da moralidade, o
+restabelecimento das instituições da edade media?</p>
+
+<h3>VI</h3>
+
+<h4>Como a sociedade christã se desvia progressivamente d'aquellas antigas
+tradições</h4>
+
+<p>Não ha muito que nós ainda tinhamos o nosso inferno: eram as galés onde as
+condições peioravam. Destruiram-nas, e crearam as colonias penitenciarias.
+Antes de nós, se deram bem com isso os inglezes. D'aquelle antigo inferno
+terreal, paraizo em comparação do outro, resta-nos como terrivel vestigio a
+perpetuidade do castigo para certos culpados. Quiz o homem copiar o antigo Deus
+das vinganças, e infligir aos seus similhantes penas infinitas, tendo elle
+apenas um dia de seu. Taes penas se acham nos nossos codigos. A sabedoria
+humana é tão limitada como o seu poder. Mas, apezar de limitadissima, é
+admiravel! Com que arte a sociedade concilia os mais oppostos deveres&mdash;a
+protecção aos justos, e até a protecção aos culpados que ella extrema dos
+justos! Não os esquece nas<span class="pagenum">{<a name="pag_31">Pg.
+31</a>}</span> suas prisões, não renunciou ao direito de perdão; não
+desentranhou de si o sentimento da piedade. Sobre essa paragem de miserias está
+sempre fixo um olhar de dó, e attento um ouvido que escuta os gritos do
+arrependimento. E acaso se enfraquece por amor d'isso a lei penal? E se o
+perdão salva um d'esses prezos que a justiça ferira com perpetua pena, cuidaes
+que esse acto robusteça o mal, e dê nas prizões ou fóra d'ellas um exemplo
+funesto?</p>
+
+<p>Ainda mais: a sociedade amnistia algumas vezes propriamente o crime, derroga
+a sentença do juiz e restitue o criminoso em todos os direitos do innocente. Os
+crimes que ella amnistia quaes são? Os mais ultrajadores de sua authoridade,
+das suas leis, do seu repouso e existencia: amnistia os crimes de
+lesa-magestade, e contenta-se com perdoar os outros.</p>
+
+<p>Este é o espirito das legislações novas em toda a christandade, nas quaes a
+misericordia se abraça com a justiça.</p>
+
+<p>Inferno que nunca muda é só o theologico. É sempre o inferno da edade media,
+inferno de judeus e pagãos, os mesmos supplicios, os mesmos gritos, a mesma
+impiedade crescente, os mesmos horrores. Não querem que Deus tenha o direito de
+perdoar no outro mundo. Cá em baixo póde fazel-o, se lhe apraz, como qualquer
+rei da terra. Mas lá no seu reino não ha perdão nem amnistia! Colera infinita!
+Vingança perpetua! Inexoravel furor! Tal é, consoante o pintam, o Rei dos
+ceos.<span class="pagenum">{<a name="pag_32">Pg. 32</a>}</span></p>
+
+<p>Ditosos os povos cujos principes se não modelam por elle!</p>
+
+<p>Quem quizer encontrar hoje imitadores do Deus terrivel dos antigos, ha de ir
+procural-os no novo mundo e entre as tribus negras da Africa, e nas hordas
+barbarescas da Asia. A sociedade christã, com maravilhoso instincto,
+sequestrou-se d'essas idêas de outra edade; e, com os olhos postos na cruz,
+prosegue e anhela realisar em suas instituições e leis um ideal menos
+imperfeito da soberana justiça.<span class="pagenum">{<a name="pag_33">Pg.
+33</a>}</span></p>
+
+<h2>CAPITULO SEGUNDO</h2>
+
+<h4>A FÉ NOVA</h4>
+
+<h3>I</h3>
+
+<h4>Pater noster</h4>
+
+<p>Chamamos a Deus nosso pae e nos consideramos seus filhos. Um pae condemnaria
+seus filhos a supplicios eternos? Que a questão seja de ingratos e
+desobedientes, de rebeldes e de máos, embora: Deus é Deus, e nós somos
+homens.</p>
+
+<p>O mais sabio ancião n'este mundo é perante o Pae celestial o que diante
+d'esse velho mortal, curvado ao pezo dos annos, é uma criancinha no berço.
+Perante o Pae do ceo somos todos crianças balbuciantes que apenas caminhamos
+com andadeiras. E a comparação é ainda muitissimo ambiciosa! Ha mais proporção
+entre o menino que balbucia e os maximos doutores theologos, do que entre os
+maximos doutores em theologia e o eterno Pai. Cobertos de seus
+circumspectos<span class="pagenum">{<a name="pag_34">Pg. 34</a>}</span>
+barretes, aquelles doutores tartamudêam, gaguejam, balbuciam freneticamente,
+não se entendem a si proprios, descambam a cada passo, e movem á compaixão, se
+os compararmos a Deus. Dado que elles ainda durassem e crescessem em saber, ao
+mesmo passo que envelhecessem, nem por isso deixariam de estar como em perpetua
+infancia confrontados com Aquelle que tudo sabe, porque é infinito em
+sabedoria, em poder e bondade. Mas, d'outra fórma, a criancinha hontem nascida
+podeis já affoitamente comparal-a áquelles graves doutores; é um doutor que se
+aleita e entra em dentição: alguns dias mais, e vêl-a-heis defender these e
+supplantar os professores.</p>
+
+<p>Comprehendeis, pois, que, se o velho doutor em theologia fosse pae, mettesse
+o filho em um carcere cheio de serpentes e ahi o deixasse para sempre? Qualquer
+que houvesse sido a culpa do menino, julgareis justo e discreto similhante
+castigo? Não vos pareceria o mestre mais louco do que o discipulo, e o pae
+peior que o filho? O vosso primeiro empenho não seria pôr o algoz no logar da
+victima? Não se levantaria toda a sociedade contra esse sabio sem coração?
+Nossas leis, nossos tribunaes consentil-o-hiam? Ah! castigos, sim, mas castigos
+que corrijam, e o perdão a final: eis o que é justiça de pae. Não entendemos
+outra. Ao chefe de familia não se consente poder arbitrario sobre os seus: a
+esposa tem direitos; tem-os o filho, o servo, protegidos pela sociedade, que
+para esse fim especialmente se constituiu. Se isto repugna ás antigas
+tradições,<span class="pagenum">{<a name="pag_35">Pg. 35</a>}</span> nem por
+isso é menos racional, equitativo e moral.</p>
+
+<p>Ainda assim, por mais que fizesse este doutor atroz, seria menos cruel que o
+Deus prégado por elle. Se a morte não viesse rapidamente arrancar-lhe a
+victima, o officio de algoz cançal-o-hia. É difficil de supportar, ainda mesmo
+a um mau pai, o aspecto das torturas que elle exercita na pobre creatura que
+gerou. No coração humano tudo é mudavel, tanto o amor, como, por feliz
+compensação, o odio. Um principe morovingiano, chamado Charmne, revoltou-se
+contra Clotario; Clotario fez queimar vivos seu filho, a nora e os netos; mas
+diz a historia que elle se arrependêra. Se tal supplicio durasse uma semana
+sómente, de certo elle os teria salvado. Que bom pai! Que excellente rei!</p>
+
+<p>Que amavel é este Clotario de par com o Deus que nos pintam! Este Deus quer
+que pensemos no inferno, mas não que se morra ahi; á imitação do algoz das
+prizões feudaes, deixa viver os pacientes torturando-os e disvela-se em lhes
+protrahir a agonia! Manda-os soffrer, ouve-os gemer durante a eternidade, e
+procede sua vingança, sem fechar olhos, sem tapar ouvidos, e por isso mesmo é
+que n'elle reconhecemos não um homem variavel, mas o que elle é, um Deus.</p>
+
+<p>Ó Deus dos antigos, Bel, Teutates, Plutão, Eolin, seja qual fôr teu nome,
+Deus das batalhas, Deus do gladio, Deus dos fortes, guerreiro feroz, senhor
+irascivel, juiz sem entranhas, Deus dos eternos rancores,<span
+class="pagenum">{<a name="pag_36">Pg. 36</a>}</span> tu não és o meu Deus! O
+Deus que adoro, o unico e verdadeiro Deus, é o melhor dos Paes; apezar das
+minhas culpas, não me trata como inimigo nem como escravo; conhece melhor a
+minha fraqueza do que eu a sua força; e, até quando me castiga, não esquece que
+foi elle quem me creou e que eu sou seu filho.</p>
+
+<h3>II</h3>
+
+<h4>O purgatorio</h4>
+
+<p>É o purgatorio o logar incognito em que os mortos esperam, soffrendo, o
+perdão das culpas commettidas na terra. Ha ahi o chorar e o padecer; mas não se
+amaldiçôa Deus: bemdiz-se. Os soffrimentos ahi supportados são salutares porque
+se comprehende a justiça d'elles; e corrigem porque a esperança não é
+anniquillada.</p>
+
+<p>Se tal logar existe, de que serve o inferno?</p>
+
+<p>Deixar dizer que a eternidade é que apavora e refrêa o peccador. O peccador
+não sabe o que seja a eternidade; porque é impossivel absolutamente formar-se
+uma clara idêa do que seja isso. Se recuamos perante nós um pouco que seja as
+balisas do tempo, a nossa imaginação e razão se perdem; e cahimos nas prezas
+das mesmas angustias que sentiriamos, se vissemos a verdadeira eternidade.</p>
+
+<p>Para que o homem se aterre lhe basta imaginar o soffrimento de que é capaz a
+sua natural sensibilidade,<span class="pagenum">{<a name="pag_37">Pg.
+37</a>}</span> e qual o podem comprehender as faculdades do seu entendimento.
+Para que iremos mais longe? Não é bastante ameaçar os maus com castigos
+proporcionados ás suas faltas, durante um espaço de tempo desconhecido ou
+incalculavel n'este mundo? O que fôr mais do que isto é inintelligivel. Para lá
+d'estes limites, a ameaça nada importa; a alma está refarta de justiça,
+oppressa de terror, extenuada de padecer, dobra-se, cáe, aniquilla-se, adora,
+supplica perdão, não póde comprehender senão a piedade, está surda e insensivel
+a tudo o mais. O remate da justiça para nós é o perdão; e, se n'essas extremas
+alturas onde a imaginação póde chegar, e onde o peccado roja gemente, se em vez
+de perdão, nos mostraes o odio ainda flamejante, lá vai tudo: o terror tocou o
+apogeu; turva-se a razão, idêa de justiça e de bondade tudo se desfaz; a alma,
+que cahira crente, levanta-se atheista.</p>
+
+<p>Se o tal inferno existe, no outro mundo coisa comprehensivel ha uma só; é o
+blasfemar dos condemnados.</p>
+
+<p>Mas se tal inferno existe, de que serve o purgatorio? Pois os protestantes
+não o aboliram discretamente? Para os que podem crêr em tal inferno, que é cem
+mil annos de purgatorio? Este acaba e o inferno não; seculos e milhões de
+seculos de penitencia não se contam, esquecem-se. Em vista d'este sinistro
+inferno em que a misericordia é desconhecida, inutil o soffrimento, e a justiça
+um enigma, o purgatorio é um paraizo. Quem nos dera a certeza de lá ir! que os
+castigos ahi<span class="pagenum">{<a name="pag_38">Pg. 38</a>}</span>
+soffridos, por mais demorados e rigorosos que sejam, não ha temel-os:
+desejam-se. Por maneira que o mais terrivel castigo que imaginar se póde, o
+mais equitativo e rasoavel, deixa de impressionar as almas pervertidas pelo
+espectaculo d'uma punição sem siso nem justiça apparentes.</p>
+
+<p>As pobres almas aterradas, aturdidas, estupefactas são impellidas
+involuntariamente a offender a Deus de dois modos; primeiro temendo-lhe a
+vingança, segundo não lhe temendo a justiça. A idêa dos castigos inefficazes e
+dôres infructiferas, por muito monstruosa, odiosa e falsa que seja, se
+humanamente a consideramos, torna inutil a idêa dos castigos poderosos e dôres
+salutares, por muito bella, clara, natural e divina que ella seja.</p>
+
+<h3>III</h3>
+
+<h4>Necessidade do purgatorio</h4>
+
+<p>Quem quer que sejaes, senhor ou servo, rico ou pobre, esposo ou pai, viuva
+ou noiva, não negueis as expiações da vida futura. Não conheceis maus em
+prosperidade, cercados de respeitos, inaccessiveis á lei, e que se deitam e
+levantam sem remorsos? Não conheceis innocentes opprimidos, anciãos
+abandonados, orphãos desbalisados, pessoas honradas cuja vida é toda padecer e
+que nenhuma lei feita ou por fazer defenderia de homens ingratos e perversos?
+Se sois feliz<span class="pagenum">{<a name="pag_39">Pg. 39</a>}</span> hoje,
+sêl-o-heis amanhã? Convencei-vos de que negar a vida futura, seria o mesmo que
+negar a immortalidade da alma, e logo sua liberdade e responsabilidade; e, por
+consequencia, o mesmo seria negar virtude, direito, Providencia, e constituir
+este baixo mundo um verdadeiro inferno, um sonho, um pesadêlo, onde tudo seria
+horror e abominação, excepto o nada, tudo injusto, excepto o crime victorioso,
+tudo absurdo, excepto a inveja, o egoismo, a violencia, e a astucia que se
+roja. Ah! crêde na vida futura, com suas expiações e recompensas. E, se ha quem
+exclua do ceo a piedade, não vades vós, por uma irracional desforra, excluir
+tambem do ceo a justiça.</p>
+
+<h3>IV</h3>
+
+<h4>Mysterios</h4>
+
+<p>Não nos accusem os theologos de negarmos acintemente os mysterios.</p>
+
+<p>Os theologos referem o que vae no inferno como se tivessem por lá viajado.
+Pelo que elles dizem é paiz dos mais conhecidos: sabe-se o caminho, quaes são
+os seus productos, e qual o modo de viver dos seus moradores, bem como a
+origem, nomes e a gerarchia dos principes que lá reinam. Em outro capitulo
+estudaremos as edificantes descripções que fazem d'elle já physica, já
+moralmente.</p>
+
+<p>Ácerca do purgatorio tem havido mais prudencia<span class="pagenum">{<a
+name="pag_40">Pg. 40</a>}</span> quasi nada se sabe do que la se passa: é
+portanto mais mysterioso que o inferno. Todavia, sem impedimento de ser
+mysterioso, que differença! Quanto mais profundamos a eternidade penal, menos
+se acredita; ao invez, quanto mais pensamos no purgatorio, mais nos sentimos
+compellidos a crêl-o. É o inferno mysterioso como o diabo, como a noite, como a
+contradicção, a confusão e o chaos. É o purgatorio mysterioso como Deus, como a
+alma, como a consciencia, como a vida, como a luz que nos alumia, como a
+materia impenetravel, como toda a natureza, como a verdade, como tudo o que
+existe e de que nós apenas conhecemos em sombra a existencia e apenas
+percebemos atravez de um veo, mas o bastante para não poder duvidar. É elle tão
+certo como tudo o mais do mundo; assenta no intimo de nossa alma sobre as
+mesmas bases da moral, do direito, do dever, do respeito a outrem, piedade,
+liberdade, amor, e sentimento do infinito. É por tanto o purgatorio, quanto á
+razão, o verdadeiro mysterio da justiça divina, assim como a Incarnação e a
+Paixão, quanto á fé, são o mysterio do Amor divino;&mdash;mysterio de justiça
+que, de mais a mais, se concilia maravilhosamente com aquelles mysterios
+d'amor, dos quaes o inferno perpetuo seria a negação.</p>
+
+<p>Muitissimo nos espanta que os protestantes o não vissem. Quando tinham que
+escolher entre dous dogmas inconciliaveis, um velho e outro novo, sacrificaram,
+tanto em nome do Evangelho como da razão, um dos<span class="pagenum">{<a
+name="pag_41">Pg. 41</a>}</span> dois que mais se harmonisava com as leis da
+razão e a moral do Evangelho.</p>
+
+<h3>V</h3>
+
+<h4>O paraiso</h4>
+
+<p>Os protestantes não conhecem termo medio entre paraiso e inferno; os
+catholicos, porém, acreditam-no, e segundo elles é o purgatorio ceo nubloso e
+triste, inferno onde se ora e espera, e que deve acabar. Infelizmente os
+catholicos não enviam todos os mortos ao purgatorio, crendo que se póde
+transpor aquelle meio entre ceo e inferno, sem ainda lá pôr o pé. Á similhança
+dos protestantes, ensinam que muitas almas, apenas despidas do seu involucro
+mortal, são despenhadas para sempre no eterno abysmo, ao passo que outras
+almas, logo que despedem da terra, alam-se direitas ao paraiso. Ensinam tambem,
+uns e outros, que o mais abominavel patife, convertido á ultima hora, póde
+morrer contente: eil-o vai absolvido como o bom ladrão; não tem mais que fechar
+os olhos e acordar entre os anjinhos.</p>
+
+<p>É isto possivel? É isto verdadeiro? Que é pois o paraiso, e que idêa fazemos
+d'elle?</p>
+
+<p>Pois que! verei eu do seio da bemaventurança, e na inalteravel
+tranquillidade dos justos, verei sem remorso e sem afflicção, encadearem-se a
+meus pés, já na terra, já no inferno, as tristes consequencias das<span
+class="pagenum">{<a name="pag_42">Pg. 42</a>}</span> minhas iniquidades? Nas
+minhas noites de libertinagem, matei; durante o somno de homens que valiam mais
+do que eu, assassinei um aváro para o roubar, um amigo da minha infancia para
+entrar no seu leito, uma mulher que eu havia seduzido e que morreu beijando-me
+as mãos, pensando em mim, a louca, mais do que em Deus! D'entre elles os peores
+que eu feri eram innocentes comparados comigo, e eil-os mortos
+intempestivamente, sem terem tempo de se arrependerem; eil-os engolphados na
+gehenna, com o coração roido pelo verme que não morre, gementes, chorosos,
+amaldiçoando-me; e eu, seu assassino; eu, peccador envelhecido na impiedade e
+agraciado por um milagre, louvarei Deus eternamente, por me haver feito
+instrumento da condemnação d'aquellas pobres almas!</p>
+
+<p>Com as minhas delapidações, reduzi á miseria e a todas as tentações da
+miseria, e a todos os desvios da desesperação aquella familia que lá vejo em
+baixo: o irmão vende a irmã, a irmã vende a sobrinha, o pae vende os seus
+juramentos, os seus amigos, o seu paiz; a mãe arranca-se os cabellos; todos
+choram, todos soffrem, todos me accusam, e os seus gemidos chegam até mim; e eu
+hei de vêr imperturbavel, sem remorsos, sem dôr, aquelles fructos de meus
+crimes, aquellas ulceras, aquelles prantos, aquelles opprobrios, aquellas
+perfidias, aquelles escandalos em que eu tenho parte; e, pois que Deus se
+apiedou de mim, eu não terei piedade dos outros, e o que na terra me
+affligia,<span class="pagenum">{<a name="pag_43">Pg. 43</a>}</span> quando eu
+agonisava, não me ha de affligir depois da minha morte. Este deploravel
+espectaculo, bem visivel a meus olhos, não impedirá que eu me saboreie na
+felicidade dos escolhidos; convencer-me-hei que vae n'isso o influxo dos
+designios do Altissimo, e que o homem, faça o que fizer, não tem que vêr com o
+resultado das suas obras; e em vez de bater no peito a cada sobresalto dos meus
+proprios crimes, a cada repercussão das minhas proprias blasphemias, a cada
+reflorecer das venenosas sementes&mdash;vestigio unico que eu deixei da minha
+passagem na terra&mdash;vestirei a alva tunica, e beberei na taça dos anjos,
+das virgens, dos heroes, e dos martyres, como se eu fosse um d'elles.</p>
+
+<p>Na verdade é uma egregia doutrina esta da justificação do peccador, pelo
+reconhecimento e pezar de suas culpas; levada porém áquelle grau, similhante
+doutrina é tão incomprehensivel como a do inferno. De uma demasia nasceu outra:
+n'uma parte encareceram a justiça; na outra exaggeraram a piedade. Comtudo,
+entre o castigo infinito por um só peccado, e o immediato perdão apezar de mil
+peccados, havia o que quer que fosse que parece desconhecer-se: a justiça sem
+colera, a misericordia sem pusillanimidade.</p>
+
+<p>Salvam-nos como nos condemnam, com pouco custo ordinariamente, pois que se
+com facilidade nos abrem as portas do inferno, com a mesma nos abrem as do
+paraiso.</p>
+
+<p>Considerem entretanto o purgatorio, não como meio<span class="pagenum">{<a
+name="pag_44">Pg. 44</a>}</span> entre o paraiso e o inferno, mas entre a terra
+e o ceo, ponto que certas almas atravessam rapidamente e quasi sem soffrer, e
+onde outros são condemnados a padecimentos mais ou menos extensos e
+variadissimos, consoante a natureza de suas culpas, e disposição no ultimo
+momento. Este purgatorio com as suas penas indefinidas, proporcionaes,
+rigorosas, purificantes, e, cedo ou tarde, coroadas pelo perdão, não seria um
+freio moral mais rijo que o medo das penas eternas, temperado pela esperança da
+misericordia na ultima hora, e pela reforma de vida na ultima edade? Convenho
+que não haveria medo de ser condemnado sem remissão; assim é; mas tambem
+ninguem presumiria de fugir ao castigo com um momento de contricção, depois
+d'uma longa cadeia de crimes. D'esta arte, Deus mostraria melhor o que é,
+justo, mas não cruel; bom, em vez de tolerante. Que mal lhe viria d'ahi?
+Commiséravos o lastimavel ancião coberto do sangue das extorsões e o tyranno
+abjecto que sopesou e corrompeu milhares de homens; tendes d'elles piedade,
+quando morrem chorando? tendes razão; mas apiedae-vos tambem de suas victimas
+ainda palpitantes, d'essas creanças que elles definharam e ceifaram em flor, e
+que vós condemnaes. Piedade e justiça para todos. Não desespereis os que
+vagarosamente caminham sobre os abrolhos da penitencia, mas não lhes encurteis
+a escada para os subir ao ceo. Sabei que na outra vida se chora amargamente o
+mal feito ao proximo que n'este mundo nos sobrevive, as desordens que se
+motivaram, as existencias<span class="pagenum">{<a name="pag_45">Pg.
+45</a>}</span> que se transtornaram, as quedas moraes que se occasionaram, e
+que o arrependimento na hora extrema, posto que grandemente salutar, é apenas o
+principio, e não o fim, das expiações d'uma vida culpada.</p>
+
+<p>É de crer que na Biblia e nos padres da Igreja isto se não encontre
+escripto; mas está escripto nas consciencias. Limpem os oculos e leiam.<span
+class="pagenum">{<a name="pag_46">Pg. 46</a>}</span></p>
+
+<h2>CAPITULO TERCEIRO</h2>
+
+<h4>OS FRUCTOS DO INFERNO</h4>
+
+<h3>I</h3>
+
+<h4>O bem</h4>
+
+<p style="text-align:center; font-size: small;">(BEM NEGATIVO, MONGES,
+ANACHORETAS, ETC.)</p>
+
+<p>Se a morte vos sobresaltêa antes da penitencia, diz-se que sois condemnado
+por erro de espirito, por fraqueza dos sentidos, por um lance d'olhos, por um
+desejo culposo, e condemnado, sem esperança, tanto como se houvesseis sido um
+ladrão calejado, um parricida, um atheu. Lá vos está esperando o Senhor da
+vida; e ahi ides enredado em vosso peccado como ave cahida no laço. E tudo se
+acabou; tudo, sem que os vossos longos serviços ao genero humano contrabalancem
+o peccado final!</p>
+
+<p>Se, no entanto, comparaes tudo que se ha mister fazer para ganhar o ceo ao
+pouco que basta para cahir no inferno, sereis forçado a reconhecer que as<span
+class="pagenum">{<a name="pag_47">Pg. 47</a>}</span> probabilidades são
+dissimilhantes, e que o mais certo, faça-se o que se fizer, é a condemnação.</p>
+
+<p>D'onde procede nas imaginações vivas a dominante preoccupação de evitar o
+inferno; e d'ahi, pelo conseguinte, e desde os primeiros seculos, uma especie
+de singulares virtudes, mais espantosas que bellas, mais extravagantes que
+insinuativas: virtudes falsas, sem utilidade do proximo, bem que os theologos
+no'l-as inculquem por ideal da perfeição christã. Tal é o retiro ao deserto, a
+renunciação propria, o morrer antecipado, o fugir combates da vida, o desquite
+de deveres da familia e da cidade, a ociosidade contemplativa e penitente, a
+maceração, o jejum, o perpetuo silencio, a insulação, o odio ao mundo, a oração
+entre quatro paredes. É, tambem, a santificação do celibato, como se a
+fecundidade dos sexos houvesse sido amaldiçoada, como se fosse culpa continuar
+a filiação de Adão, e virtude esterilisar em si os embriões da vida humana.</p>
+
+<p>E certo é que, admittido o inferno, e a queda original, e o ensinamento que
+lhe anda annexo, que outra conclusão se colhe? Multiplicar os homens, para que?
+para multiplicar os peccados? Se é tão duvidosa a salvação! Se a condemnação é
+tão facil! Para que nos enlaçaremos á orla d'um abysmo onde o esposo póde
+despenhar-se com a esposa e o pae com os filhos? Bastantissimos mentecaptos se
+casam, e povoam terra e inferno de desgraçados. Não seria melhor deixar acabar
+o mundo? Bemaventurados os celibatarios! Os sabios<span class="pagenum">{<a
+name="pag_48">Pg. 48</a>}</span> são os reclusos, os anachoretas, os eremitas.
+São como os viajantes que, em navio a pique, desamparam os companheiros, e
+salvam-se a nado. Cuidam só do seu salvamento; cada qual por si; soccorrer o
+irmão tem o risco de naufragio. Fazei como elles, navegantes; deixae no navio
+em sossôbro mercadorias, thesouros, e vossas mulheres, e mães, e vossos filhos,
+e fazei-vos ao largo: recresce a borrasca; rasga-se a vela; quem poder
+salve-se.</p>
+
+<p>Bemditos sejam pois esses foragidos do mundo, mortos ao mundo e seus
+modelos, Simeão sobre a columna, João no muladar, esses desvariados todos
+macillentos, sujos, comidos de insectos. Grande vantagem levam: não tem que vêr
+com a terra, e já estão meios mettidos no ceo: o diabo já mal os póde
+aprezar.</p>
+
+<p>Não é, todavia, a perfeição dos ascetas aquella que o Filho do homem nos
+exemplificou. Trinta e tres annos habitou Elle a terra, e quarenta dias sómente
+ermou no deserto, não para nos lá attrahir; mas, a meu vêr, para nos
+distancear, pois que foi no deserto, e ahi tam sómente, que o espirito das
+trevas o tentou. Anteriormente havia Elle vivido trinta annos com a sua
+familia; e viveu o restante entre peccadores. É para notar que nas suas
+modestas occupações, sob o colmado do carpinteiro, e mais tarde nos campos, nas
+cidades, nas tavernas, em meio do povo que ensinou, curou e nutriu, não ousou o
+diabo tental-o!</p>
+
+<p>Mal imita Christo quem foge o mundo que Elle<span class="pagenum">{<a
+name="pag_49">Pg. 49</a>}</span> procurava. O sepultar-se um homem nos antros,
+a jejuar e a rezar por longo tempo, o sequestro da sociedade, o silencio,
+corpos macerados mal enroupados em pelles, exorcismos furiosos, luctas no
+vacuo, intrepidez baldada, e tantissimos outros piedosos desatinos não recordam
+exemplos do Salvador, mas sim as aberrações dos sectarios do oriente. Não póde
+ser isto a perfeição que Jesus veio ensinar aos homens; que tal chamada
+perfeição muitissimos seculos antes d'Elle já era conhecida dos pagãos
+idolatras, que tinham seus corybantes e vestaes, e bem assim dos judeus,
+mormente dos Essenios que a tinham aprendido dos magos da Chaldêa. Tal
+perfeição praticavam-a na India fanaticos sem numero, cuja raça ainda subsiste.
+Importamo'l-a dos mesmos paizes que nos mandaram a doutrina dos anjos rebeldes
+e a da reprovação dos homens&mdash;doutrinas cujo natural fructo é tal casta
+perfeição. Se o ideal da perfeição humana fosse isto, inutil seria o
+christianismo; pois que já os brahmanes a tinham ensinado dous mil annos antes
+do presepio, e os bouddhistas a tinham realisado mil annos antes dos monges da
+Thebaida.</p>
+
+<p>É certissimo que os bouddhistas não visam exactamente ao mesmo scôpo que os
+monges catholicos: aquelles buscam em suas austeridades a morte absoluta, a
+destruição de sua personalidade, o serem absorvidos no ser universal, ao mesmo
+tempo que os monges, se renunciam ao seu <em>eu</em> neste mundo, é para o
+retomarem n'outra vida. É, comtudo, egualmente<span class="pagenum">{<a
+name="pag_50">Pg. 50</a>}</span> certo que, sem embargo da diversidade dos
+fins, vigora em ambas as seitas um principio commum, sendo que por identicas
+vias e praticas procuram a eterna bemaventurança uns, e outros o perpetuo
+dormir, a eterna insensibilidade. Só de per si o desejo do ceo não bastaria a
+inspirar a uns o mesmo proceder que inspira aos outros o desejo da
+anniquilação: pelo que, não é o desejo, senão o medo que povôa os desertos. Os
+bouddhistas, por egual com os christãos transviados, temem os soffrimentos
+infindos, os males sempre a renascer, se n'este mundo não attingirem a vida
+perfeita; e tanto para elles como para os nossos monges, vida perfeita é o
+absterem-se da vida, é a virgindade, o jejum, a penitencia, a soledade, o
+extasis, o antecipar a morte, um complexo de estereis virtudes, não filhas do
+amor, senão do mêdo.</p>
+
+<p>Tal é, na sua mais elevada expressão, o bem que a crença do inferno produz
+n'esta vida. Causa espanto que os protestantes hajam conservado este dogma! É,
+porém, mais para espantar que elles, ao mesmo tempo que o conservam, destruam
+os mosteiros e inpugnem o celibato. Não ha ahi imaginar maior inconsequencia! A
+primitiva Igreja, que elles pretendem resurgir, cria sem duvida nas penas
+eternas, é isto mais que muito verdadeiro; mas pelo menos, operava em
+conformidade com sua fé. N'aquelle tempo, os esposos, ainda em vigorosa
+mocidade, guardavam continencia, sob pena de peccarem, durante o advento e
+quaresma, e nas festas e dias de jejum, pouco mais ou<span class="pagenum">{<a
+name="pag_51">Pg. 51</a>}</span> menos tres quartas partes do anno. D'elles
+alguns, para maior perfeição, não usavam nunca os direitos conjugaes, e
+envelheciam sob o tecto nupcial, em voluntario celibato, denegando-se as frias
+caricias que o irmão faz a sua irmã. Os ricos empobreciam-se, despojando-se
+espontaneamente de seus haveres, e os pobres lidavam para viver, mas
+descuidosos de amontoar, nem como previdencias para a velhice e infermidade,
+nem para legarem a filhos. Conta-se que desadoravam empregos publicos, e
+evitavam, como escolhos da alma, as emprezas lucrativas nomeadamente as
+commerciaes. Nunca espectaculos, nem jogos, nem dansas, nem folias. Sobriedade
+extrema, vestidos nem apontados nem de preço, jejuns em barda, orar dia e
+noite, lucta incessante e pertinaz contra a natureza. O seu distinctivo de
+christãos era aquelle. Uma leve falta, acareava-lhes a excommunhão; e, antes de
+absoltos, eram experimentados em seu arrependimento, por espaço de mezes e
+annos, quando o não eram até morrerem. Em quanto durava a penitencia, eram
+apontados, não só nos templos, durante os mysterios, senão tambem no exterior e
+nas relações da vida civil; e, por cima de ninguem os querer á sua meza, até as
+esmolas lhes regeitavam.</p>
+
+<p>Diz com rasão Fleury que a vida dos nossos monges regulares corre parêlhas
+com a do commum dos fieis da Igreja nascente, cuja continuação é<sup><a
+name="L2433" id="L2433" href="#L2435">[2]</a></sup>. E accrescenta<sup><a
+name="L2474" id="L2474" href="#L2476">[3]</a></sup><span class="pagenum">{<a
+name="pag_52">Pg. 52</a>}</span> que já entre aquelles fieis havia ascetas
+d'ambos os sexos vivendo reclusos. Eram os mais perfeitos, e exemplares. Taes
+ascetas, verdadeiros ascendentes dos monges contemplativos, trappistas,
+cartuchos, carmelitas, claristas, etc., esforçavam-se por imitar a vida de João
+Baptista no deserto e a de Elias no Carmelo.</p>
+
+<p>Curavam elles pois, como já dissemos, uma perfeição diversa da de Jesus:
+anhelavam a perfeição negativa, qual os judeus e os orientaes a preconisavam;
+judaisavam sem darem d'isso tento, e os christãos seus imitadores continuavam
+inadvertidamente a tradição, não já de Jesus, mas de João Baptista e Elias,
+tradição congruentissima com o inferno. Já no tempo das perseguições era
+povoada a Thebaida; não tinha então a Igreja um tecto debaixo do ceo; e só
+depois que principiou a erguer templos é que edificou mosteiros, sua primeira
+obra depois que sahiu das catacumbas. É pois evidentissimo, em que peze aos
+protestantes, que o catholicismo não se apartou do espirito dos tempos
+apostolicos, nem das praticas de então, e que a vida monachal detestada por
+elles, é ainda hoje em dia o que outr'ora foi, a mais bella flor, e o mais
+mimoso fructo dos dogmas hebraicos, que elles tão piedosamente tem
+conservado.<span class="pagenum">{<a name="pag_53">Pg. 53</a>}</span></p>
+
+<div class="rodape">
+<p><a name="L2435" id="L2435" href="#L2433"><sup>[2]</sup></a> <em>Costumes dos
+israelitas e christãos</em>, tom. II, cap. 53.</p>
+
+<p><a name="L2476" id="L2476" href="#L2474"><sup>[3]</sup></a> <em>Costumes dos
+israelitas e christãos</em>, cap. 26.&mdash;Citei esta excellente obra por que
+ella é manuseada por todos, e facilima de consultar. De mais a mais, depara-nos
+a indicação das fontes onde o auctor bebeu, dispensando-nos assim de as
+indicarmos n'este livro.</p>
+</div>
+
+<h3>II</h3>
+
+<h4>A carmelita ou o ideal da perfeição theologica.</h4>
+
+<p>Comvosco admiro as religiosas que, sob diversos nomes e com diversos
+habitos, assistem ao genero humano, tanto com suas orações, com o seu trabalho
+quotidiano, com toda a celeridade de seus pés, com toda a agilidade de suas
+mãos, como com todas as forças de seu ser. Credes que não é possivel seguir
+mais do que ellas os divinos vestigios do Salvador. Ah! quanto vos enganaes!
+Quanto são baixas e eivadas de heresia as vossas idêas! A perfeição não
+consiste na vida activa e benefica das irmãs da caridade; onde ella está,
+segundo o ensinamento dos theologos, é na vida contemplativa.</p>
+
+<p>Se procuraes, senhora, o modêlo para vós e vossos filhos, encontral-o-eis na
+carmelita, com preferencia á irmã da caridade. Aquella morreu para o mundo, jaz
+no seu cubiculo como em um tumulo. Vá quem quizer agasalhar orphãos, ensinar
+ignorantes, restaurar peccadores, curar doentes, ensinar officios a servos, dar
+voz a mudos. Affronte quem quizer o contagio de nossos vicios! Quem quizer que
+cure a nossa lepra! Esses cuidados vulgares não os quer a carmelita para si.
+Aos pés do altar, com os braços levantados ao Senhor, é o seu posto. Não se
+bulirá d'alli, ainda que todo o paiz arda ensanguentado. Não lhe digaes: vosso
+irmão está a morrer; vossos sobrinhos vos estão chamando.<span
+class="pagenum">{<a name="pag_54">Pg. 54</a>}</span> Não lhe digaes: arde a
+peste na cidade; á vossa porta está a maca. Ha muito que ella concebeu tedio do
+mundo; não lhes leveis novas d'elle, que perturbarieis o seu socego. Quanto
+menos ella se inquieta d'essas transitorias miserias, mais os theologos a
+admiram. N'isso mesmo,&mdash;crêl-o-eis?&mdash;é que está, segundo elles, a sua
+superioridade sobre a irmã da caridade, cujo coração virginal arfa como coração
+de mãe ao grito da criancinha<sup><a name="L2351" id="L2351"
+href="#L2356">[4]</a></sup>.</p>
+
+<p>A carmelita não pensa, nem tem que pensar senão em sua propria salvação, e
+tal pensar é um manancial das commoções que unicamente lhe são permittidas. Bem
+que ella viva dez, vinte, cincoenta annos sob o<span class="pagenum">{<a
+name="pag_55">Pg. 55</a>}</span> veo, fará todos os dias, á mesma hora e da
+mesma maneira, a mesma coisa sem poder por seu arbitrio alterar-lhe o minimo.
+São-lhe pautados os movimentos, e contados os passos. Em todo o curso de sua
+vida não ha a menor surpreza, o minimo abalo, o imprevisto, a menor liberdade,
+ou elevação espontanea das faculdades moraes. Estão definidas e immutaveis as
+suas relações com todas as coisas animadas ou inanimadas que a cercam: não se
+afeiçoa, não escolhe, não se decide. É-lhe prohibido ganhar affecto a coisas e
+a pessoas. A abelha é mais livre do que ella em sua colmeia, e menos inflexivel
+que as regras monasticas é o instincto que a dirige. Uma communidade de freiras
+parece-se a um povo de automatos e não a um enxame de seres viventes. E essa é
+que é a condição pela qual a harmonia subsiste. N'estas sociedades contra
+natureza, é prudente que a natureza seja algemada; pois, se lhe dessem folga,
+ella se revoltaria; e por tanto é forçoso esmagar a liberdade como cautela para
+que a licença não vingue. É pois a carmelita em todos os seus actos mera
+machina. Tem alma para obedecer e trabalhar na sua interior perfeição,
+destruindo em si, cada vez mais, vontades, desejos, e individualidade até ás
+raizes. Onde está a lucta está a vida. N'esse immutavel centro, solitario e
+silencioso, onde se caminha sem mudar de piso, passa a adolescencia sem
+curiosidade, e a velhice sem experiencia nem memoria. Ahi nada se renova; o dia
+que chega nada promette; o dia que finda nada deixa; é a vida um<span
+class="pagenum">{<a name="pag_56">Pg. 56</a>}</span> livro, cujas paginas em
+vão se folhêam: sobre essas paginas brancas ha uma só phrase, do começo ao fim,
+sempre a mesma: «pensa em ti, pensa na eternidade.»</p>
+
+<p>Ahi vem agora com que espancar o tedio do mosteiro. Á mingoa de grandes e
+formidaveis combates do lar domestico e da sociedade, isto é, da vida real qual
+Deus a fez, a ociosa carmelita pugna heroicamente contra sua razão, contra seus
+sentidos, imaginação, e faculdades inactivas. Crê resistir ao diabo, resistindo
+á necessidade de operar, de amar, de saber, e ser util: estafa em puerilidades
+a sua virtude. Se durante o officio, uma mosca lhe pousa no nariz, é um caso, é
+uma provação. Se está distrahida, assalteam-na remorsos; se impaciente, vai
+confessar-se d'isso. Uma pulga é outro inimigo terrivel, outra occasião de
+grande queda ou de grande victoria! Um alfinete mal pregado, um vêo
+descomposto, uma lembrança, um gemido, um pensamento clandestino, o rastilho
+d'um rato atraz do armario, um <em>Ave</em> esquecido, ó cathastrophe! ó
+remorso! ruina de Sião! prantos de Job! brados de Rachel! transportes de
+Jeremias! Qualquer bagatella a alvoroça como materia de peccado mortal;
+qualquer futilidade lhe avulta com proporções monstruosas; pesa grãos de areia,
+e mede os atomos.</p>
+
+<p>Pois se ella conseguiu esquecer sua familia, seu paiz e o mundo, não a
+cuideis completamente impassivel como se vos figura: o que ella fez foi
+concentrar em si e para si o amor e piedade que nega aos outros.<span
+class="pagenum">{<a name="pag_57">Pg. 57</a>}</span> Idolatra-se, não ao modo
+dos sybaritas, mas por um theor que, posto não seja sensual, não é menos
+egoista: absorve-se em contemplação de sua alma; no proprio coração preenche o
+vacuo de familia e de amigos, e de quantas creaturas de lá expulsou.
+Contempla-se sósinha, entre o inferno e o céo, a tremer perante um tal
+espectaculo, e sempre fluctuando entre estes abysmos, ora nas alturas, ora nas
+profundezas, passa de um delirio a outro, e das palpitações do terror ao extase
+dos seraphins.</p>
+
+<p>Eu por mim não sei se Deus sorri a taes futilidades, a tal vida que não é
+viver, e a tal morte que não é morrer; mas os theologos affirmam que é n'isto
+que a perfeição consiste.</p>
+
+<p>E forçoso é concordar que elles tem razão, se ha inferno. Se ha inferno, a
+irmã da caridade é imprudente, e nós, os admiradores d'ella, somos sandeus. O
+sequestro mais rigoroso é a consequencia legitima, natural, necessaria e fatal
+d'este dogma selvagem. O alicerce, a porta e o tecto do mosteiro é aquelle
+dogma, que desata as sociedades naturaes e viventes avinculadas pelo amor; é
+elle o occulto liame d'aquellas sociedades de automatos que não permaneceriam
+um dia, nem hora, nem momento, se tal dogma fosse proscripto. Sem inferno, a
+vida claustral não se percebe; com inferno, não ha imaginal-a mais a ponto, e é
+obrigatorio confessar que, de feito, a perfeição está n'ella, visto que a razão
+está com ella.</p>
+
+<p>Não obstante, filhos do seculo, não renuncieis<span class="pagenum">{<a
+name="pag_58">Pg. 58</a>}</span> afogadilho de seculo, que vol-o prohibem os
+theologos.</p>
+
+<p>Ficai entre peccadores, no foco das tentações, dos escandalos, dos erros, e
+das ciladas que vos tramam. Razoavel coisa seria fugir para o porto seguro que
+vos offerecem; mas não vades; continuae a navegar entre restingas, á mercê dos
+tufões, aos clarões dos relampagos. O convento não vos quadra; porque não foi
+feito para muitos.</p>
+
+<p>Entendo, direis, que o convento se abriu para os entes mais debeis, para os
+incapazes não só de ajudar a outrem, mas tambem da mesma mente se salvarem, sem
+se arriscarem ás tempestades. Faz-se mister ás almas frageis e justamente
+timidas o estreito cenobio do claustro, a protecção das gradarias, a
+escravidão, as regras, o véo sobre os olhos, a mordaça nos labios; sem o que se
+perderiam. Em quanto os valentes combatem, vão ellas esconder-se longe do
+inimigo.</p>
+
+<p>No seu caminho se arrastam gemebundos alguns fugitivos, fallidos de animo,
+cahidos por terra, feridos de suas proprias armas, e quem sabe se alguns heroes
+alanciados no coração! Entendo, direis, que o claustro é o refugio dos
+pusillanimes, o porto dos naufragados, o hospital dos infermos, e aqui se
+mostra a apparente razão porque nem toda a gente lá póde entrar.</p>
+
+<p>Está enganado o duro leitor, que nada percebe dos mysterios theologicos.
+Saiba pois que o claustro é o asylo dos fortes; e que só lá são recebidos os
+athletas<span class="pagenum">{<a name="pag_59">Pg. 59</a>}</span> a primor,
+mais puros e intrepidos, a flôr da juventude christã. Não soffre a menor duvida
+que é mil vezes mais de perigo a sociedade onde os soccorros são muito menos do
+que os retiros abençoados. Que nos faz isso! De logar abrigado e onde a graça
+superabunda é que os poucos são repulsos, com quanto, ao primeiro intuito, nos
+pareça creado para elles; ao mesmo tempo que do baluarte das luctas angustiosas
+se retiram os fortes, com quanto pareça tambem este o seu logar proprio.</p>
+
+<p>Os coxos, os cegos e os inermes são postos na liça sanguinosa; os mais
+aguerridos soldados enclaustram-se. Espantem-se e riam-se, que a coisa é assim;
+e, senão, perguntem-no á Sorbonna.</p>
+
+<p>E assim é preciso que seja, pois que a perfeita vida é a claustral, que, no
+entender dos theologos, vem a ser a mais avêssa ás inclinações de nossa
+natureza viciosa, e, por conseguinte, a de mais difficil observancia; mas,
+porque é impraticavel na sociedade, não se lhe dispensa de ser exemplo á
+sociedade; e, sem presumpções de lá chegar, devemos propender para ella
+continuamente, visto que estamos tanto mais á beira do inferno quanto longe
+d'aquella vida perfeita.</p>
+
+<p>Que se hade fazer, pois? Eis o problema. Cada qual tem no mosteiro um trilho
+feito, e o futuro certo, portanto está quite de cuidados que fóra d'ahi seguem
+a pobreza, o trabalho, e até a riqueza, além das responsabilidades que a toda a
+hora pendem dos actos de uma vontade livre, n'um viver sempre fluctuante.<span
+class="pagenum">{<a name="pag_60">Pg. 60</a>}</span></p>
+
+<p>No mosteiro é tudo exemplos edificantes; e, posto que seja defezo ahi
+grangear um amigo, em compensação não se adquirem inimigos.</p>
+
+<p>Nem impeços, nem disputas, nem conflictos, males que a liberdade produz,
+sendo que a servidão lhes esmaga os embriões. No exterior é tudo recolhimento,
+paz, ordem, silencio, e esforço; perturbações, se as ha lá, vem do intimo e do
+recondito do nosso ser. O unico inimigo que ahi ha que recear é o diabo, tal
+invisivel e impalpavel adversario que todos trazem comsigo, fracos e fortes,
+mundanos e frades; porém tal inimigo perde no claustro boa parte das suas
+prerogativas; porque alli não está elle como em sua casa, e no seu reino:
+são-lhe menos os ministros, os vassallos, e os recursos. O recluso, afóra a
+pessoal energia de que é dotado e lhe assignala a vocação, topa ahi de todos os
+lados conselhos e amparos; e como quer que tenha em frente aquelle unico
+inimigo, soccorre-se de mil auxilios, que faltam ao homem do seculo, e, máo
+grado a sua fraqueza original, vence-os. Que fazemos pois n'este misero mundo
+em que a infermidade nos algema? Ha aqui o rir, o chorar, o renhir, o disputar,
+o abraçar-mo-nos, o odiarmo-nos, perseguirmo-nos, e o aniquillar-se o homem
+contra homem: é uma reluctancia sem fim, e sem regra, um retinir de espadas, um
+estrondear de martellos, de carros, de machinas, de cantares, de gemidos, um
+cháos, uma desordem, da qual a clausura não poderia dar-nos sombra de idêa.
+Aqui, são mil os objectos em que a alma<span class="pagenum">{<a
+name="pag_61">Pg. 61</a>}</span> anda repartida; as diminutas forças que temos
+dispersam-se. Acolá o inimigo identificado comnosco, traz escolta de
+auxiliares, e a lucta interna de que ninguem se izempta, complica-se com as
+luctas externas e inevitaveis. Cada homem tem de bater-se com uma legião.
+Quantos cuidados! Quantos deveres! Quantas incertezas e anciedades! Quantas
+encruzilhadas sem nome, sem pharol, sem sahida! Que poeiras, e que sombras!</p>
+
+<p>Considerae aquella mãe de familia a quem encareceis as virtudes da
+carmelita.</p>
+
+<p>É pobre, todos os seus parentes são pobres, os filhinhos rotos, famintos,
+quasi sempre doentes, o marido alquebrado do trabalho, ou que, desanimando, se
+envileceu e a espanca, um patrão, um proprietario, credores, mestres, amos,
+amigos, e que amigos! conselheiros, mas conselheiros de Job! Se tal mãe é rica,
+tem uma casa que reger, creados a dirigir, os quaes nem fizeram voto de
+pobreza, nem de obediencia; filhos a educar, sagrados interesses que defender,
+relações que receber, um marido a contentar, quer seja honrado ou não, quer
+seja piedoso ou impio. Com vontade ou sem ella está continuamente a braços com
+as paixões alheias, com caprichos, interesses, vontades e affectos contrarios;
+de continuo em face de circumstancias imprevistas, casos litigiosos e incertos,
+onde lhe é forçoso resolver-se quando qualquer resolução é perigosa, não o
+sendo menos os perigos, se se absteem. É preciso que ella, se quer salvar-se,
+seja a um tempo<span class="pagenum">{<a name="pag_62">Pg. 62</a>}</span>
+economica e caritativa; communicativa, mas discreta; umas vezes branda, e
+outras inflexivel; expedita, mas reflexiva; previdente, mas conformada a todos
+os sobresaltos da fortuna; que viva ao mesmo tempo em si, e nos outros, para
+si, e para todos: missão indefinivel, cheia de contrastes, de atravancos, de
+cruzes, mais ardua e mais difficil que a missão da freira.</p>
+
+<p>Digam embora que esta mãe de familia tem na sua miseria satisfações,
+tranquillidade e jubilos que não goza a carmelita: depende isso de saber se os
+jubilos de que fallam são comparaveis ás dôres que a freira ignora. De mais,
+esqueceis que esses prazeres são um engodo e que se prendem n'elle sem o
+conhecer, e se prendem tambem quando o conhecem. A saciedade, o desgosto, e o
+cansaço são as naturaes barreiras da voluptuosidade. Chegará até ahi a mulher
+christã? Não o permitta Deus. Até onde irá? É ponto mathematico que separa o
+peccado do prazer licito; e, quando o limite se procura, onde fica elle já?
+Raras vezes estamos a sós com a serpente como Eva no Eden, e a freira na cella.
+Á mesa e em toda a parte ha quem vos distraia, seduza e arraste; bebemos sem
+sêde; está a bocca repleta, mas os olhos famintos; o gozo que satisfaz a
+precisão aguilhôa o desejo. Quem houver de parar a tempo na ladeira onde o
+aventurarmo-nos é permittido, ha de ter mil vezes mais vigilancia, cuidado e
+poder sobre si, do que lhe seria preciso para lá não pôr o pé. Conceder alguma
+coisa á natureza é contiçar o fogo que quizeramos extinguir;<span
+class="pagenum">{<a name="pag_63">Pg. 63</a>}</span> é alimentar o leão que
+desejaramos estrangular. Das delicias menos carnaes, toucador, conversação,
+emprego de teres e do tempo, é ainda mais desconhecido o limite, maior a
+liberdade, e mais temivel a responsabilidade.</p>
+
+<p>Não me fallem de umas satisfações mentirosas que o terror empeçonha quando
+se pensa n'ellas, e que o inferno corôa, quando se não pensa no inferno. Por
+certo que é duro, mas o mais prudente é regeital-as. A abstenção é uma lei
+simples, clara, e breve: é bastante que haja coragem para a praticar sobretudo
+nos votos conventuaes. A freira, com o andar do tempo, afaz-se á lucta;
+curva-se ao jugo; os sentidos privados de excitações amortecem, até que, por
+fim, a coragem se torna tão inutil quanto lhe foi em todo o tempo inutil o
+espirito de proceder. Mas, se a lucta intima se prolongasse, a freira para
+evitar os desvios e as fugitivas rebeldias do corpo e da vontade, careceria de
+ter até ao seu derradeiro suspiro o inferno diante dos olhos, o cilicio na
+cintura, e o terror na alma. Assim é, mas que importa? Comparado aos
+soffrimentos de uma mãe, o que é o cilicio de uma virgem? Quem ousará comparar
+essas duas existencias? Comparar receios pessoaes com receios generosos?
+Combates sem testemunhas a combates exemplares? Trabalhos infructiferos a
+fecundos suores? E fallando sisudamente, e na melhor fé, se uma d'essas duas
+pessoas devesse copiar a outra, não é de certo a mãe que deveria servir de
+modelo? A irmã da caridade não é<span class="pagenum">{<a name="pag_64">Pg.
+64</a>}</span> já de si mãe? E a esposa de José que trouxe em seu seio, e
+nutriu com seu leite o Filho do Homem, e ao pé da cruz lhe recebeu o ultimo
+alento, não foi ella, em sua amargura, a mãe adoptiva de João, o amigo
+d'Aquelle por quem chorava?</p>
+
+<p>Que jactancia é essa então d'um desprendimento de affectos e vontades? Para
+que querem insinuar em nossos lares taes inquietações, terrores e escrupulos,
+unicas occupações do claustro? E para que é, em nome do ceo, sobrecarregar de
+jejuns e abstinencias a jornaleira, a camponeza, a mãe, que já vacillam sob o
+fardo do padecer e trabalhar?</p>
+
+<p>Vê-se que theologia e bom siso são coisas infelizmente contradictorias.
+Vê-se que seria preciso abolir o inferno para que depois viesse a renuncia das
+macerações, terrores e falso ideal que um claro entendimento reprova.</p>
+
+<p>Mas porque não se apaga o inferno? Extincto elle, brilharia o purgatorio com
+luz mais viva e salutar. O inferno é que faz odiosa a liberdade, rebaixando-a e
+vilecendo-a; o purgatorio volve-a estimavel, realçando-lhe bellezas, dignidade
+e grandeza, sem lhe dissimular os perigos e as penas. Quem crê no castigo
+eterno, enterra o talento para que o Senhor lhe não toque. Quem melhor conhece
+o Senhor e sua justiça faz render cinco talentos em casa do banqueiro,
+arriscando-se a perdel-os. O purgatorio actualmente de que vos serve? Dizem que
+a pobre carmelita se abalança a lá arder milhares de annos, por causa de
+algum<span class="pagenum">{<a name="pag_65">Pg. 65</a>}</span> secreto
+estremecimento do seu corpo que ella tanto disciplinou; por causa do captivo
+espirito que tão enfreado trazia, ou, emfim, á conta do coração generoso, cujas
+pulsações tantas vezes abafára.</p>
+
+<p>O purgatorio deve aterrar principalmente a freira e os que vivem como ella;
+ora os mundanos não tem razão de se affligirem, antes devem consolar-se,
+pensando n'aquelle logar de supplicio. A nós, filhos do seculo, não nos é
+racionalmente permittido aspirar áquella dolorosa felicidade, que é castigo dos
+sanctos e o seu primeiro galardão ao mesmo tempo. Em vez, porém, de o desejar,
+e desejar em vão, como nós o temeriamos, se elle fosse a unica estancia em que
+se cumprisse a justiça de Deus! Que mudança se faria em tudo d'este mundo! A
+perfeição e a salvação não estaria na ociosidade em joelhos, no terror em
+oração, no fugir ao proximo, no entregarmo-nos a algumas privações e dôres
+corporaes, arbitrariamente substituidas ás dôres e sacrificios de uma vida
+proveitosa. Então se entenderia que ha dous modos de abusar de nossas
+faculdades, uma que está no desprezo d'ellas, com receio de as usar
+inconvenientemente; outra que consiste em nos servirmos d'ellas indiscretamente
+e ao avesso das intenções da Providencia que nol-as deu.</p>
+
+<p>A doutrina do Evangelho não é doutrina de abstenção; é doutrina de acção:
+causa porque o purgatorio lhe quadra melhor que o Evangelho. Carecemos menos de
+frades que de christãos. Se o inferno refreia o mal, tambem impede o bem. A
+ameaça seria<span class="pagenum">{<a name="pag_66">Pg. 66</a>}</span> salutar;
+mas ella faz mais que ameaçar, empedra como a cabeça de Meduza quem a encara a
+fito. Tende a supprir com uma especie de passibilidade estupida a livre e
+intelligente actividade da alma. Não derime o egoismo, exalta-o a mais não
+poder, e tal exaltação devidamente localisada no deserto, n'uma gruta, no
+claustro, é medonha de vêr-se no seio das familias.</p>
+
+<div class="rodape">
+<p><sup><a name="L2356" id="L2356" href="#L2351">[4]</a></sup> Elles comparam
+as irmãs da caridade áquella mulher de Bethania chamada Martha, a qual, vendo
+entrar Jesus em sua casa, se deu pressa em lhe servir a ceia; e comparam a
+carmelita á Magdalena que, em vez de ajudar Martha nas suas diligencias, lavava
+e perfumava os pés do divino hospede, enxugando-os com os seus cabellos. Diz
+porém o Evangelho que Jesus estava á meza quando Magdalena lhe abraçou e ungiu
+de lagrimas os pés. Não ha palavra na relação dos apostolos, d'onde possamos
+colher que é melhor orar pelos famintos do que alimental-os. O contrario é que
+lá se diz; e quando Jesus nos faz assistir de antemão ao julgamento do dia
+final, exclama: tive fome, e vós me alimentastes; tive frio, e me vestistes. A
+scena de Bethania, e o louvor dado a Magdalena, não desluz o claro ensino do
+Evangelho. Este episodio prova sómente que não basta alimentar os pobres, mas
+que tambem é mister instruil-os como filhos de Deus, os melhores amigos de
+Jesus, e sua visivel imagem na terra: o que rigorosamente fazem as irmãs da
+caridade, e não fazem as contemplativas.</p>
+</div>
+
+<h3>III</h3>
+
+<h4>Discurso de uma mulher de sociedade que havia tocado a perfectibilidade
+theologica</h4>
+
+<p>De que serve amar-se a gente n'este mundo? Acaso nascemos uns para os
+outros?</p>
+
+<p>Somos apenas companheiros de viagem que uma eventualidade ajuntou por
+momentos, mas que breve se hão de apartar, e talvez para sempre. Prestemo-nos
+de passagem alguns serviços, mas por amor de Deus, sem nos ligarmos
+reciprocamente. Por que ha de a gente amar-se? Vós que me ouvis, sabeis quem
+sou? E eu que vos fallo sei quem vós sois? Tendes um ar angelical, ó meu irmão,
+mas o interior de vossa alma não o vejo; o semblante do homem é enganador; a
+sua lingua é atraiçoada, as suas proprias virtudes são perfidas.</p>
+
+<p>N'este mundo é tudo armadilha e mentira. Que demencia o amar, quando, com
+certeza, ninguem póde fiar-se d'outrem! Que injustiça querer um que o
+amem,<span class="pagenum">{<a name="pag_67">Pg. 67</a>}</span> quando nem a si
+mesmo se conhece alguem, e a cada hora se altera o genio, e ninguem póde fiar
+mais da duração de seus sentimentos que da duração de sua vida! Viajamos
+mascarados, só conhecidos de Deus, mas tão occultos a nós mesmos quanto aos
+outros. A que propendemos? Mal o sabemos, tão fluctuante é a nossa razão. Se
+melhor nos conhecessemos, a maior parte de nós se mutuaria rancores; em vez,
+porém, de se odiarem, os homens se entre-buscam no seio das trevas, attrahidos
+pelo mysterio que os innubla, e que devêra, se elles fossem discretos,
+afugental-os uns dos outros.</p>
+
+<p>Ah! não nos amemos, não nos amemos! Ai d'aquelle que dá seus amores á
+creatura! Ai dos que se amam sobre a terra! É sombra que abraça a sombra, é o
+nada que se une ao nada. Amavel é só o bem: o restante é detestavel. Meu pai,
+honro-te e sirvo-te, por que vai n'isso um dever meu, e porque podes ser, sem
+que eu o saiba, um santo; amar-te, porém, não posso, porque, se n'este instante
+morresses, ninguem me certificaria de que Deus te perdoára. Eu devo amar em ti,
+sómente o bem occulto que ahi póde estar, e o amo em ti como nas outras
+creaturas, sem predilecção por alguma; porque esse bem occulto não provém
+d'ellas; e, se em ti existe&mdash;o que eu não sei, mas muito desejo&mdash;não
+procede de ti. Não te julgo, meu pai. Se eu escutasse o sangue, creio que te
+amaria até culpado, unicamente porque és meu pai, e eu me lembro de ter dormido
+em teus braços. Mas estes<span class="pagenum">{<a name="pag_68">Pg.
+68</a>}</span> momentos da natureza corrompida já eu venci. Nada me és. Tracto
+da minha salvação servindo-te e honorificando-te; mas amar-te seria perder-me,
+por que amar o homem em si mesmo é amar o peccado. Na outra vida não ha
+maridos, nem esposas, nem paes, nem filhos, nem familia. Pais e filhos, mães e
+filhas, irmãos e irmãs serão separados no dia do juizo, desatados todos os
+vinculos. Não amemos ninguem, ninguem! Já póde ser que o inferno se esteja
+escancarando para aquelle que amarmos, e quem sabe se nós não cahiremos lá
+tambem empurrados pelo nosso amor? Nada de sentimentos cegos; nada de
+sentimentos corruptores. A ternura do homem é um disfarce de odio; e mais
+valera que elle nos odiasse francamente. Não amemos ninguem! ninguem! Póde ser
+que por ao pé de nós andem condemnados, cujos nomes ignoramos. Não amemos
+alguem, que nos não vá sahir algum reprobo.</p>
+
+<p>Sou tua serva, ó meu esposo; servir-te-hei, obedecer-te-hei; e para te
+agradar o dever me forçará a cumprir o que me pedires do coração, que não é
+teu.</p>
+
+<p>São doentes os nossos filhos? Por que te assustas? São hospedes que te foram
+confiados, e que tu deves esperar vêr irem-se ao primeiro aceno de quem t'os
+mandou. Eu que os trouxe no seio e os criei, vel-os-hei ir, sem lagrimas. Quem
+sabe onde irão quando nos deixarem? Cumpria que lhes vissemos o fundo d'alma
+para os amarmos. Praza a Deus que elles morram na sua divina graça! É o meu
+mais ardente voto; e, se mais além eu fosse, a minha ternura seria
+fraqueza.<span class="pagenum">{<a name="pag_69">Pg. 69</a>}</span> Se elles
+vão ao céo, hei de eu chorar-lhe tamanha dita! E se são condemnados.... Não
+amemos ninguem, ninguem, nem os nossos filhos sequer! Familia temos só uma: é
+Deus com os seus anjos, e confessores e santos. Tudo mais não merece uma
+lagrima nem um sorriso. Roguemos, por tanto, uns pelos outros, filhos do
+peccado, mas nada de nos amarmos.</p>
+
+<h3>IV</h3>
+
+<h4>Discurso de um mundano, após bastos estudos ácerca da perfeição
+theologica</h4>
+
+<p>Em continuo pavor do inferno viveram os santos: orações, jejuns, cilicios,
+meditar nas escripturas, vigilias ao pé da cruz, bençãos de pobres soccorridos
+por elles, perpetua immolação, indigencia de cella, ninhos de palha, alimento a
+pão e agua, nem com tudo isto socegavam. Viviam como anjos, e temiam. Tremiam
+guerreiros, padres, doutores, pontifices&mdash;Mauricio á frente da sua legião;
+Gregorio, o Grande, sob a tiara; Agostinho, no pulpito; Jeronymo, em suas
+estudiosas viagens; Antonio e Pacomio no reconcavo das penedias. Noites
+alvoroçadas de pavor passava Thereza no claustro. Nem a innocencia da vida, nem
+a adoravel castidade das almas, nem a tunica immaculada, nem as mãos
+impollutas, nem o acerbo arrependimento dos penitentes, com o rosto sulcado de
+lagrimas, nada, nada lhes aquietava o medo da colera divina. Redobravam<span
+class="pagenum">{<a name="pag_70">Pg. 70</a>}</span> cada dia austeridades e
+sacrificios, persuadidos de que não mereciam a misericordia que tão precisa
+lhes era.</p>
+
+<p>Ah! se a alma só assim se salva, perdidos estamos todos, ó meus amigos!</p>
+
+<p>Bem ouço o theologo que nos diz: Não é assim; a salvação ganha-se com
+menores trabalhos. Deus não exige que todos os seus filhos sejam egualmente
+perfeitos. Mas ao theologo respondo: Estás perdido como nós, tu e tambem os
+teus mestres, e os teus discipulos, estaes perdidos todos. Os exemplos que nos
+cumpre seguir são os dos santos, não são os vossos. Mostrae-nos na Legenda um
+só santo que subisse ao céo pelo caminho commodo que descobristes. Debalde hei
+buscado, com fim de o imitar, um homem meio santo e meio peccador, servindo
+Deus e o mundo, temendo, como eu, a miseria, a dôr, as humilhações,
+condescendente comsigo proprio, almejando viver no coração de outra creatura,
+chorando sobre as illusões esmaecidas como Pedro sobre o seu peccado. Não
+encontrei tal homem. O mais que vi foi milagres de stoicismo, maridos que
+deixavam as mulheres, mulheres que deixavam os maridos, filhos que fugiam ao
+abrigo dos paes, ricos que todos seus haveres dispendiam, bispos que fallavam
+verdade aos reis da terra, á custa da vida até; ninguem que se contentasse de
+cumprir no rigor da palavra os preceitos de Deus e da Egreja; por toda a parte
+almas ardentes de zelo super-natural, tendo apenas de humanas os incançaveis
+escrupulos, os inquietos<span class="pagenum">{<a name="pag_71">Pg.
+71</a>}</span> terrores; justos sem socego, penitentes sem repouso, virgens
+lagrimosas e anachoretas angustiados.</p>
+
+<p>Vós, porém, que vos quereis salvar e salvar-nos com menos custo; vós, que
+viveis regalados em quanto o Christo mendiga á vossa porta; vós que tendes
+riquezas ao sol e riquezas á sombra, quando na vossa parochia tantas familias
+laboriosas carecem do mais urgente; vós, que cubiçaes a estola, a murça ou
+mitra; e achaes nas Escripturas louvores para outrem, além de Deus, oh! quanto
+differentes sois d'aquelles heroes christãos cujas imagens campêam nos nossos
+altares! Sois o que somos: haveis mais pavor das praticas dos santos que do
+proprio inferno; espanta-vos e desespera-vos a perfeição d'elles; a pesar
+vosso, amaes o que elles aborreciam, e aborreceis o que elles amavam; as vossas
+virtudes são mesmamente humanas, taes quaes as nossas, que não vem do alto, que
+se enroscam nos nossos vicios e nos acorrentam ao demonio.</p>
+
+<p>Ai! que perdidos estamos, ó meus amigos! Que lucramos em fechar os olhos?
+Estamos todos condemnados! Que monta o desprezo proprio pregoado pelos labios,
+se no intimo do coração tendes a propria estima sempre desvelada? Que
+aproveitam as momentaneas conversões, seguidas de quedas mais desastrosas? Que
+vos fazem certas privações associadas a tanto regalos? Em verdade vos digo que
+estamos perdidos!<span class="pagenum">{<a name="pag_72">Pg. 72</a>}</span></p>
+
+<p>Ora pois, se assim é, se o abysmo está aberto e o cahir é irremediavel,
+cerremos os olhos e não cogitemos mais em tal. Entre o céo inacessivel e o
+inferno d'onde não ha mais sahir, resta-nos um momento só: gozemol-o, ó meus
+amigos. Que é isto de estar a gente a empeçonhar, com terrores vãos, prazeres,
+tão raros quão fugitivos? Não pensemos no que será; pensar n'isso e desesperar
+é a mesma coisa: desesperar de entrar no céo, e desesperar de sahir do inferno.
+Saboreemos o presente. Vivamos terrenamente: aqui ha creaturas ridentes que nos
+alegram, fragrancias que nos deliciam, e licores que atrophiam a memoria.</p>
+
+<p>Quem é ahi o sandeu que falla em inferno? Não ha inferno, minha mãe! Conclue
+em paz os teus dias extremos. Não contristes com visões pavorosas essas
+creancinhas que te escutam, e que talvez falleçam antes de nós. Ride, ó meus
+filhinhos: a vida vos será breve e repleta de miserias, quando crescerdes.</p>
+
+<p>Eu desejo, senhora, que a minha casa seja mansão de jubilos e não de tedios:
+quero ser amado pelo que sou e não por caridade; quero ser obedecido
+amorosamente e não com submissão de escrava; aliás, buscarei quem me ame, e me
+corresponda. Engrinalda-te de rosas, minha bella! Não ha inferno, e o paraizo
+tem-l'o ahi á mão. Enche-me o copo, e dorme placidamente nos meus joelhos.
+Amar! amemo'-nos, até á morte; que da morte para além começa o odio!</p>
+
+<p>Ah! que bizarra invenção não foi esta do inferno! Um abysmo para onde
+naturalmente nos inclinamos,<span class="pagenum">{<a name="pag_73">Pg.
+73</a>}</span> attrahidos, impellidos por quanto ha, cahidos em fim, e depois,
+o abysmo... fechado para sempre! Oh! primorosa perspectiva para que façamos da
+terra uma estancia de delicias peccaminosas!</p>
+
+<h3>V</h3>
+
+<h4>O rebanho</h4>
+
+<p>Se não fosse preciso crêr na eternidade do inferno, e no pequeno numero dos
+escolhidos, e na inevitavel condemnação da maior parte dos homens, eu odiaria
+como vós os prazeres da vida; o sermão de Jesus na montanha se me figuraria
+mais bello e intelligivel; eu entenderia a felicidade das lagrimas, as delicias
+da pobreza e a doçura de todos os sacrificios.</p>
+
+<p>Quando, porém, se me diz que não é bastante haver chorado e soffrido muito
+n'este mundo para ganhar o perdão divino; quando se me diz que nada vale
+affrontar a ira dos tyrannos, defendendo, a verdade que os fere, ou o direito
+que elles avexam; quando me dizem que nada monta morrer no patibulo pela
+liberdade da patria ou no campo da batalha pela sua independencia; quando me
+dizem não importa nada envelhecer na miseria por haver preferido a honra ás
+honras, o estudo á opulencia, o trabalho aos prazeres; quando me dizem que tudo
+isto é fumo, que estas dores, esta coragem, privações, heroica vida, heroica
+morte, não podem resgatar minha alma d'um<span class="pagenum">{<a
+name="pag_74">Pg. 74</a>}</span> peccado mortal, e aos olhos de Deus não valem
+o cilicio d'um frade, ou a confissão de um salteador agonisante; ah! confesso
+que, ao dizerem-me estas cousas em todos os pulpitos christãos, não entendo o
+sermão da montanha, e pelo contrario começo a comprehender os prazeres d'esta
+vida.</p>
+
+<p>Vêdes aquelles pescadores que em fragil barquinha vão arrostar as ondas do
+oceano, e vogar, por dias, semanas e mezes, longe da praia, á mercê das
+tempestades para ganharem, á custa de mil perigos, o pão de seus filhos?</p>
+
+<p>Vêdes aquelles telhadores na aresta do vigamento? aquelles mineiros
+sepultados nas entranhas da terra, longe dos raios beneficos do sol? Vêdes o
+lavrador curvado sobre o sulco? o pallido tecelão diante das machinas
+devoradoras? tanto operario sem nome avergado ao pezo de um trabalho ingrato e
+sem descanço? Pois a maior parte d'aquelles é condemnada, por modo que os seus
+soffrimentos n'esta vida são preludios dos que lá os esperam na outra. Aquella
+mãe que não póde vestir seus filhos, e que relança olhares invejosos ao palacio
+visinho, onde os cavallos medram mais fartos que os filhinhos
+d'ella;&mdash;aquelles mendigos que vagamundêam nos campos; os orphãos que se
+recolhem aos hospitaes; os soldados que marcham para as fronteiras; os
+proscriptos esquecidos no solo estrangeiro, condemnados, quasi todos
+condemnados, meu Deus! Um repleto conego, risonho e bochechudo, sem familia nem
+cuidados, repastando-se<span class="pagenum">{<a name="pag_75">Pg.
+75</a>}</span> quatro vezes por dia, mas sem escandalisar ninguem, baixando a
+vista em presença das mulheres, pontual nos officios, está mais visinho do céo
+que todos aquelles desgraçados; e mais perto ainda do céo está um sancto
+anachoreta. Chorar, soffrer, trabalhar não é nada. Se choram, não choram as
+suas culpas, é a miseria dos filhos; se trabalham não é por penitencia, mas sim
+para grangear commodidades. Lagrimas de Babylonia, diz S. Agostinho. Avidos
+suores, vãs angustias! Muitos seculos ha que d'est'arte se lhes explica o
+sermão da montanha, e elles nem o comprehendem nem jámais o entenderão. É bem
+de ver que não vivem á maneira dos santos legendarios, nem dos conegos
+prebendados. Os que sabem lêr pouco lêem, á falta de tempo. Muitos não vão á
+egreja, e os que lá vão sahem como entraram. São profundamente ignorantes. A
+dura necessidade dobrou-lhes a cabeça sobre o torrão que regam com o seu suor;
+e a natureza, que lhes brada das entranhas da terra, diz-lhes cousas que elles
+percebem mais a preceito que os sermões. O estridor e o vapor das materias da
+sua obragem cega-os e ensurdece-os. Não sentem fome nem sêde da palavra divina,
+qual lh'a ensinavam algum dia. Digam-lhes que um eremita vae melhor do que
+elles, por que abandonou officio, casa e parentes, e todo se vagou á salvação
+da alma, e que ha vinte ou trinta annos resa, jejua e se disciplina, dizei-lhes
+isto que elles vos desfecharão uma gargalhada; mas, se ao mesmo tempo passar um
+soldado de bigodes brancos, ou<span class="pagenum">{<a name="pag_76">Pg.
+76</a>}</span> algum recruta aleijado em Africa ou Italia, ou algum repatriado
+do desterro, em vesperas de para lá voltar, se a occasião o exigir, elles o
+saudarão respeitosamente. Que appareça um velho sem occupação, uma viuva com
+filhos maltrapidos, e elles se fintarão para soccorrêl-os. Contae-lhes casos de
+bemfazer e lanços de gratidão, vêl-os-heis commovidos. As virtudes d'esses
+infelizes são, para assim dizer, selvaticas, probidade orgulhosa, amizades
+humanas, mas apuradas até á abnegação, instinctos lucidos do que é grande e
+formoso, mas formoso e grande pela craveira das coisas d'este mundo. De par com
+isto ha falhas, e até crimes. Impacientam-se, praguejam, largam a redea aos
+desejos, porque, no seu modo de pensar, se não ganham, tambem não perdem. Vivem
+á beira das charruas, das córtes, das forjas, e nas abegoarias. Este viver
+influe-lhes na linguagem e nos costumes. Não têm alma que se ale longo tempo e
+ao alto sem que as azas lhe falleçam: é que pezam n'ella os cuidados
+terrestres. Ventilam problemas que não podem resolver. Desconsolados do seu
+destino, perguntam porque ha ricos e pobres, e porque, no outro mundo, serão
+condemnados, depois de tanto haverem trabalhado e gemido n'este?</p>
+
+<p>O inferno não os apavora muito mais que a morte. Affizeram-se desde a
+infancia á vaga idêa de que hão de ser condemnados, seguindo a trilha commum da
+vida; todavia, apezar do proposito feito, nem por isso um terrivel pezo deixa
+de lhes aggravar o fardo das<span class="pagenum">{<a name="pag_77">Pg.
+77</a>}</span> dôres quotidianas. O sino que dobra, o sahimento que passa, o
+doente que vae para o hospital, o pedreiro que cae da parede, o obreiro
+apertado entre o encaixe de uma roda e triturado nos dentes d'ella, os
+terraplenadores sotterrados nas saibreiras aluidas, os marinheiros comidos
+pelas vagas, o typho que devasta um bairro inteiro de operarios, mulheres sem
+maridos, paes sem filhos, filhos sem mães, tudo isto por vezes lhes relembra o
+Deus rancoroso que lhes prégam, e as surprezas da morte, e os perigos de sua
+precaria existencia, e com as miserias que findam outras que principiam, para
+nunca mais acabarem. Este povo assim é como um rebanho que se leva ao
+matadouro, aguilhoado pelos pastores, lacerado pelos cães, atormentado pelas
+moscas, cançado, sanguento, sequioso, abatido, estupido.</p>
+
+<p>Compadecei-vos, pois, d'esses que nunca vos darão bons ermitões. Não ha, por
+ventura, um ideal mais aceitavel e ao mesmo tempo mais puro que lhe mostreis?
+Não ha senão esse a que aspira o ente sem familia, sem ligações e cuidados
+d'este mundo? Se, ao menos, podesseis annunciar-lhes a justiça de Deus sem os
+assombrar! Não são já de si que farte mysteriosas e raladoras as dôres d'esta
+vida? Não será de mais rematal-as com o terribilissimo mysterio do inferno?
+Pois se tendes a certeza que serão condemnados no trem de vida que levam,
+deixae-os respirar, e beber, e rir e dançar, em quanto o animo e tempo lhes não
+faltam; que a desesperação poderá leval-os a peores excessos.<span
+class="pagenum">{<a name="pag_78">Pg. 78</a>}</span></p>
+
+<p>Ó pobre genero humano! Será preciso que o Christo desça segunda vez do céo
+para te instruir, e que outra vez seja vindo e crucificado para salvar-te?<span
+class="pagenum">{<a name="pag_79">Pg. 79</a>}</span></p>
+
+<h2>CAPITULO QUARTO</h2>
+
+<h4>OUTROS FRUCTOS DO INFERNO</h4>
+
+<h4>O mal que produz o inferno.&mdash;Incredulidade, desalento,
+desesperação</h4>
+
+<p>Esquadrinhando o bem que procede do inferno, já divisamos o mal que produz.
+Bem negativo e limitadissimo; mal positivo mas profundo, extensissimo, apenas
+por em quanto entre-vimos. Faz-se mister examinal-o mais pelo miudo. Não
+perderemos o tempo.</p>
+
+<p>É facto incontestavel que a maior parte dos homens se occupa menos de céo e
+inferno que das precisões, interesses, prazeres e dôres da terra. A Egreja o
+confessa admirada e lacrimosa. Por que se admira? Que remedio senão ser assim?
+Pois acaso póde toda a gente retirar-se ao deserto? Pois todo o encanto da vida
+se apagou? Os direitos da natureza foram abolidos?</p>
+
+<p>Na sociedade cuja moral se funda sobre o medo<span class="pagenum">{<a
+name="pag_80">Pg. 80</a>}</span> das penas eternas, todo movimento paralysaria,
+se instinctivamente, e por necessidade de viver, não viesse o esquecimento
+d'esse tremendo futuro. A esperança do ceo não bastaria a contrabalançar os
+effeitos de tal susto, mormente quando nos affiançam que a porta do ceo é
+estreita, e que o inferno tem milhares de portas sempre abertas. Á medida que
+esta crença se incutir nas turbas, assim ellas hão de lidar por esquecel-a,
+abafando-a no seio, sem querer sequer meditar n'isso. Quanto mais pura,
+exigente, austera e angelica fôr a vossa moral, tanto mais impraticavel vol-a
+hão de considerar; e, se a fundamentaes no inferno, fechar-se-hão os ouvidos ao
+vosso apostolado, e ninguem quererá sequer aproximar-se d'aquella perfeição
+immaculada, que sómente florece em estufas claustraes, que se desbota ao leve
+bafejo do homem, e só está ao alcance de ociosos.</p>
+
+<p>Se no inferno tão sómente fossem castigados certos crimes monstruosos e
+excepcionaes, mas claramente definidos, taes como o assassinio, o incesto, o
+estupro, poder-se-hia ainda examinar a justiça de tão exorbitante penalidade:
+ao menos cada qual sabia quando lhe era applicada a pena. Porém, se vão ás
+chammas eternas o aváro, o glotão, o preguiçoso, o prodigo, o orgulhoso, o
+invejoso, o impaciente, o maledico, o voluptuoso, o incontinente, o ambicioso,
+o calumniador, o usurario, o mentiroso, o hypocrita, o lisongeiro, o ingrato, o
+philosophante, o rebelde, etc., etc., etc., congela-se o sangue nas veias;
+ninguem<span class="pagenum">{<a name="pag_81">Pg. 81</a>}</span> ousa vender,
+comprar, emprestar, traficar, fallar, pensar, beber, comer, respirar; por
+quanto, quem sabe onde começa a avareza? o orgulho? e a lisonja,
+reverendissimos senhores, onde começa a lisonja? e a usura? e os limites da
+temperança quem os abalisou? Occasiões, tentações e perigos em tudo!</p>
+
+<p>A questão não é saber se ahi ha crimes hediondos e puniveis: ninguem nega
+que os haja;&mdash;o que se tracta é de saber se é racional e discreto, e se os
+bons costumes lucram, que nos ameacem com eternos castigos, por peccados que
+mal podem definir-se. Quem ha ahi isempto de seu tanto ou quê de orgulho? Quem
+se presume bastante sobrio, bastante comedido nos prazeres licitos, menos
+egoista em suas legitimas affeições, menos desinteressado em seus lavores e
+mercantilismo, bastante paciente nos revezes e resignado nas desgraças? Quem se
+crê assaz justo, caritativo e perfeito? Ao parecer dos theologos, uma tal
+presumpção seria peccado capital, até nos conventos, até para os anachoretas
+envelhecidos em abstinencias e orações. Ninguem sabe ao certo o momento, o
+ponto em que um acto licito descahe no illicito; que dóse de alimento quadra á
+sua saude, e onde no rico principia o superfluo, que é o necessario do pobre.
+Para que vem seis pratos á meza? Se um basta, para que são dois? A regra onde
+está?</p>
+
+<p>Cautela! esse copo que chegaes aos beiços risonhos, em vez de vos apagar a
+sêde, vae abrazar-vos em sêde eterna. Cautela! Theologo nenhum poderá<span
+class="pagenum">{<a name="pag_82">Pg. 82</a>}</span> dizer-vos exactamente o
+que vos cumpre dar, o que vos cumpre não dar; e o caso é que, se vos enganaes
+com tal incerteza, folga o diabo. Um padre da Egreja, um papa, um santo,
+Gregorio o Grande, não disse que Deus nos arguiria de peccados que antes de
+morrer não conhecemos?</p>
+
+<p>Estas e outras mais terriveis cousas podeis lêr no <em>Quotidiano do
+Christão</em>, livro approvado e recommendado por todos os bispos, e que anda
+em mãos de creancinhas. Portanto, verdadeiras ha só duas cousas: a condemnação,
+se nos enganamos, e a abstenção para nos não enganarmos.</p>
+
+<p>Mas a abstenção não é viver. Viver é a actividade inteira, incessante, e
+arriscada a peccar. É lei do genero humano viver e perpetuar-se. Não nega, mas
+esquece os dogmas oppressores que lhe pesam na alma, e a cada passo lhe apontam
+aberto um alçapão do inferno. Vivem os homens n'uma especie de indifferença
+religiosa que os avilta, movidos unicamente por suas paixões, e apenas
+enfreados pela justiça temporal. Fóra com isso do futuro! fóra com remorsos!
+Fechemos olhos a todos os clarões, e os ouvidos a todos os rumores do outro
+mundo, e concentremos n'este a nossa inteira vida, todos os desejos e
+pensamentos.</p>
+
+<p>É effeito imprevisto, porém real, d'esta medonha crença induzir ao
+materialismo, não theorico, mas pratico, a maior parte dos que não leva ao
+ascetismo: attasca na lama os que não transvia nas nuvens; faz que se rojem
+durante o dia breve da existencia, grandes<span class="pagenum">{<a
+name="pag_83">Pg. 83</a>}</span> e pequenos. Os philosophos accusados d'este
+miseravel estado das almas, estão innocentissimos: não ha em tudo isso faisca
+de philosophia; raciocinio é coisa que ahi não vislumbra. O instincto é que
+desde tempos esquecidos, e não de ha pouco, nos propendeu áquelle cego
+materialismo: é a necessidade de arrostarmos com uma crença mortifera; é a vida
+que resalta d'entre as mãos desvairadas que intentam comprimil-a, e d'este
+desbordar de toda a fórma surdem os excessos.</p>
+
+<p>Já não lhes abasta esquecerem o inferno. Quem o esquece são os fracos; os
+fortes vão mais além: escarnecem-no. Anda já por ahi o diabo cantado, e do
+mesmo feitio o inferno, e o céo com os seus moradores. E de taes canções
+vendem-se tantos exemplares como dos <em>Canticos de S. Sulpicio</em>:
+antiquissima impiedade, de que ha vestigios, não só na Grecia pagã, mas tambem
+nas fabulas da edade média, e até nas paredes das vetustas cathedraes onde os
+artistas zombeteiros esculpiram, ha mais de seiscentos annos, o
+<em>Inferno</em> de Béranger. A ironia mascarava-se então com tregeitos
+beatificos; o impudor, porém, não se disfarçava nem se constrangia.</p>
+
+<p>Os lamuriantes da edade média talvez digam que, apezar das galhofas
+audazmente esculpidas nos portaes e córos das egrejas, esses antigos
+imaginarios criam no inferno, e que, no leito da morte, não foliavam, tremiam;
+que os fabulistas tambem tremiam, e que os castellãos e castellãs, plebe e
+burguezia, quantos se<span class="pagenum">{<a name="pag_84">Pg. 84</a>}</span>
+haviam regalado com as taes caricaturas, tremiam tambem. Sim, meu Deus, é
+verdade. Mas circumvagae a vista, e dizei-nos se, a tal respeito, a sociedade
+mudou. A mesma educação religiosa não produz continuamente identicos
+phenomenos? Acreditam no inferno os epicuristas, os trampolineiros, os
+usurarios, os prodigos e os ladrões, os famintos e os repletos, os invejosos e
+os ingratos, os indifferentes e os chasqueadores? No intimo da alma guardam
+elles as superstições das amas: que farte o denotam na vida, e principalmente
+na morte. Em quanto são moços, ageis, febris de saude e esperança, repulsam uma
+crença que lhes tornaria maldita a mocidade, a saude, a força, a razão de todas
+as dadivas do céo. Quando caducam, infermam e agonisam, espantam-se de haver
+ardido em desejos que já não tem, e haver motejado praticas que se lhes agora
+figuram facilimas. É chegada então a hora e situação conveniente para intender
+a moral do inferno, que é a privação em tudo e por tudo,&mdash;a morte na
+vida.</p>
+
+<p>Singular crença que não infrêa o maior numero de homens, quando o freio lhes
+é mais preciso; e quando o retêl-os é já inutil, e mais necessaria lhes seria a
+esperança, então, á entrada da sepultura, lhes sahe espantadora! Levado por
+ella vae o anachoreta ao suicidio, e o mundano ao embrutecimento. Esteril em
+verdadeiros dons, fertil em verdadeiros males, a crença no inferno bestialisa,
+desalenta, desespera, endurece. Melhor é esquecel-o á maneira das turbas,<span
+class="pagenum">{<a name="pag_85">Pg. 85</a>}</span> que pensar demasiado
+n'ella, que tanto monta sentir vertigens, sentir estontecida a cabeça á roda
+d'esse abysmo que vos attrahe e sorve. Mais algum prazer ou menos, defendido ou
+não, que faz? Lá no inferno não estaremos melhor nem peormente; a eternidade
+não terá hora menos ou hora mais. Constrangermo-nos para quê? Não ha termo
+medio entre o bem e o mal absolutos. Tudo que é humano é mau: é forçoso ser
+anjo ou demonio: seja-se diabo, que é mais comezinho. Vêde-me uns frades,
+padres, devotos, freiras, que a desanimação avassalou: não ha peores
+peccadores; rolam cada vez mais ao fundo, e vão-se consolando com as delicias
+que topam na sua queda. Um peccado de menos, que é na conta que hão de dar?
+Chegados a tal extremidade, qualquer boa acção lhes será vã. Como não podessem
+abster-se de tudo, os desgraçados já agora não se abstem de nada. Esta
+desesperada crença precipita-os abaixo do homem. D'ahi tem surdido mais
+libertinos que ermitões, mais blasphemos que santos, mais loucos que ajuizados;
+e, em verdade, é mister que o christianismo entranhe vivacissimos embriões,
+esplendorosissimas luzes, e poderosissimas verdades para resistir, como ha
+resistido, á influencia de taes doutrinas.</p>
+
+<p>Tirae-nos, por favor, esse inferno tão fatal aos que o recordam como aos que
+o esquecem. É verdade que teremos menos monges com o purgatorio; mas teremos
+mais christãos. No purgatorio será util pensar, comprehender-lhe a justiça, e
+sentir-se o homem melhor,<span class="pagenum">{<a name="pag_86">Pg.
+86</a>}</span> ainda a pesar seu; se é facil sacudir o jugo de uma revelação
+sobrenatural e inintelligivel, por mais beneficente que ser possa, não é facil
+desprendermo-nos de idêas excellentes e razoaveis, por mais importunas que nos
+sejam.<span class="pagenum">{<a name="pag_87">Pg. 87</a>}</span></p>
+
+<h2>CAPITULO QUINTO</h2>
+
+<h4>OS CINCO GRUPOS</h4>
+
+<h4>Divisão da sociedade em cinco grupos</h4>
+
+<p>Examinemos as coisas mais á beira. A sociedade não é toda formada de uma
+peça. Divide-se naturalmente em differentes grupos no discutir de seus
+interesses em este e no outro mundo. Religiosa e moralmente observada, podêmos
+dividil-a em cinco grupos.</p>
+
+<p>1.º O grupo dos philosophos, ou livres-pensantes como hoje se
+chamam&mdash;sugeitos que systematicamente regeitam a revelação, e por
+consequencia o inferno sem fim; todavia, desinteresseiros, estudiosos, graves e
+tractaveis com honra e confiança.</p>
+
+<p>2.º Longe d'estes a infinita distancia, e sem sombra de liga com os
+philosophos, está o grupo dos biltres professos, individuos relaxados, bandidos
+convictos, corruptos, desesperados.<span class="pagenum">{<a name="pag_88">Pg.
+88</a>}</span></p>
+
+<p>3.º Entre aquelle grupo de espiritos selectos e o das almas depravadas, mas
+entre si equidistantes, está o grupo immenso e indecomponivel dos
+indifferentes, dos tibios, dos duvidosos, dos espiritos futeis, dos espiritos
+inertes, dos espiritos acanhados, dos fura-vidas, dos pachorrentos&mdash;turba
+sem piedade nem philosophia, sem prática de casta alguma, vivendo de seu
+trabalho, das suas rendas ou officios, mais ou menos descançados&mdash;guardas
+nacionaes, jurados, eleitores, conselheiros de districto, e o mais. Estes são
+uns christãos que só vão á egreja quando ha enterro, casamento ou baptisado, ou
+ainda em dias de <em>Te Deum</em>, quando a posição official os obriga.</p>
+
+<p>4.º Ao lado e um tanto superior a este, está o grupo menos numeroso dos
+devotos; não dos hypocritas, que se ha de classificar no dos patifes, mas dos
+esforçados em praticar e que praticam, assim, mas com desinteresse, os
+mandamentos de Deus e da egreja. Estes vão á missa nos domingos, confessam-se
+ás vezes, e dão do seu gremio as irmandades e as confrarias.</p>
+
+<p>5.º Finalmente, o admiravel grupo dos justos, dos perfeitos christãos, dos
+santos, dos continuadores e verdadeiros imitadores da vida de Jesus.</p>
+
+<p>Vejamos se o dogma das penas eternas aproveita ás pessoas que formam
+aquelles differentes grupos.<span class="pagenum">{<a name="pag_89">Pg.
+89</a>}</span></p>
+
+<h3>I</h3>
+
+<h4>O grupo dos philosophos</h4>
+
+<p>Os philosophos crêem em Deus, crêem na liberdade e immortalidade da alma, na
+justiça, em todas as noções moraes derivativas d'aquellas primaciaes verdades.
+Em revelações sobrehumanas é que não acreditam.</p>
+
+<p>Ora, ameaças de inferno converterão tal gente? De quantos mysterios
+regeitam, o inferno é o mais incrivel; e tanto que irrita a propria fé, que, só
+abdicando o uso da razão, se submette. Dos philosophos não ha que esperar
+similhante sacrificio.</p>
+
+<p>Se o dogma do purgatorio vos aproxima d'elles, o inferno, barreira que vos
+separa de tudo que raciocina, alonga-os de vós.</p>
+
+<h3>II</h3>
+
+<h4>O grupo dos corruptos</h4>
+
+<p>Que lucram as pessoas de bem que esses patifes creiam no inferno? Está com
+isso a sociedade mais segura? E tal crença de que lhes serve a elles? O que os
+incommoda não é o diabo, é a policia; inquieta-os mais o degredo que o
+inferno.</p>
+
+<p>Vá lá!&mdash;dizem elles&mdash;venha o inferno que não<span
+class="pagenum">{<a name="pag_90">Pg. 90</a>}</span> nos ha de faltar boa
+camaradagem! Quantas pessoas toparemos lá d'umas que n'este mundo se
+empavonavam todas, e não queriam rossar-se por nós! Havemos de vêl-os lá, mais
+apoquentados e castigados do que nós, esses patetas condemnados por pensamentos
+e palavras, por coisa nenhuma. Quanto á pessoa d'elles, tanto monta como a
+nossa, pois que hão de ser tão condemnados como nós. Não ha dois infernos,
+parceiros; ha um. Lá nos esbarraremos com capitalistas, com fidalgos, com
+duquezas, com comicas. Andaremos á ilharga dos juizes, dos quadrilheiros, dos
+escrivães, dos jurados e melhor ainda&mdash;viva a patuscada!&mdash;com
+deputados, com camaristas reaes, com bispos, com abbadessas, com principes e
+princezas, reis e rainhas. Venha o inferno! é tentador lá ir com tal sucia.</p>
+
+<p>Tal é o raciocinio dos desalmados e a influencia que tem sobre elles aquella
+extravagante justiça, que nenhuma proporção gradua entre delictos e crimes,
+condemnando para sempre quem peccou uma hora, e o scelerado de toda a
+vida.<span class="pagenum">{<a name="pag_91">Pg. 91</a>}</span></p>
+
+<h3>III</h3>
+
+<h4>O grupo dos indifferentes, etc.</h4>
+
+<p>Estas pessoas cuidam em ser felizes com o auxilio da honestidade; pelo quê,
+se abstem do mal que o codigo define. Pelo que respeita aos sete peccados
+mortaes, não se preoccupam d'isso. Dizer que todos sejam invejosos, avarentos,
+luxuriosos, e o mais, seria mentir. N'esse innumeravel grupo abundam
+negociantes honrados, meninas castas, esposas fieis, pobres sem inveja,
+ignorantes modestos, ricos bemfazejos, e muitas abelhas para cada zangão; mas
+perfeito ahi não ha ninguem; ninguem ahi vive em graça; o melhor do rancho é
+aquelle a quem Deus, no dia do juizo, só accusar de ter violado sem escrupulo
+todos os mandamentos da Egreja. Mas, com esse só peccado na consciencia, o
+melhor do rancho será condemnado.</p>
+
+<p>Se o roubo e o homicidio são raros n'essa assemblêa, não procede isso do
+medo do inferno. Ahi é bastante motivo para condemnação uma folha de papel
+escripta, um «sim» apenas balbuciado e ouvido, um lance d'olhos, uma flor
+murcha, e essa, onde entra amor&mdash;amor no peccado, meu Deus!&mdash;é de
+todas as condemnações a que mais piedade desperta. Porém, n'esse immenso
+circulo, onde tudo pecca, cada qual se condemna á sua vontade: um por fastio;
+outro por vaidade, este por curioso, aquelle por pusillanime; condemna-se<span
+class="pagenum">{<a name="pag_92">Pg. 92</a>}</span> um por um casal, outro por
+uma venera, por um acepipe, por um prato de lentilhas, por um penacho, por uma
+fitinha, por um trapo, por trinta contos, por trinta reis. Condemna-se este a
+trabalhar, aquelle a passear, um a comer, outro a jejuar, a ler, a dansar, a
+palestrar, a meditar, a vestir, a despir, desde a aurora até ao escurecer,
+desde a noite até ao dia, todos se condemnam a bel-prazer.</p>
+
+<p>Distinguem-se lá os peccados que Deus pune indistinctamente. Permittem-se os
+que Deus castiga até com eternas penas, quando é elle só quem pune; recua-se,
+porém, dos que Deus castiga e a sociedade tambem. Não se diga pois que o
+inferno atalha os crimes dos indifferentes. Tambem ahi é manifestamente esteril
+similhante crença. O que se teme é o vigia, a patrulha, o commissario da
+policia, essas personificações vulgares, mas terriveis da opinião e da lei.
+Temem-se as algemas, o carcereiro, a masmorra, e ainda mais á mistura com os
+scelerados. Por muito dura e inevitavel que se figure, a pena material não os
+conterá sempre quando a paixão os esporêa. Do mesmo modo que affrontam o
+inferno, affrontariam a cadêa e até a forca, se a forca estivesse ás escuras;
+porém a vergonha, o estrondo da queda, é para o maior numero a pena
+intoleravel. Seriam capazes de desafiar carrascos e diabos; e não ousariam
+encarar o desprezo do amigo, do visinho, do estranho, do transeunte, do
+mendigo; não lhes faz grande mossa a ignominia diante de sua mãe ou de seus
+filhos, e tremem de se vêr baralhados com<span class="pagenum">{<a
+name="pag_93">Pg. 93</a>}</span> creaturas devassas que são máos sem
+repugnancia, e medram no mal como em seu nativo elemento.</p>
+
+<p>Ha d'elles, porém, que se forram ao mal, contidos por sentimento ainda mais
+nobre que o medo da opinião. Esquivam-se, não do peccado mortal, mas do
+maleficio que a sociedade civil pune ou reprova: afasta-os d'isso com asco um
+natural sentimento, sem esforço. Educação e habitos fortaleceram esses bons
+instinctos. Não são perfeitos, mas são probos, sinceros, generosos, capazes de
+grandes sacrificios occasionalmente. Com certos deveres nunca especulam.
+Denotam que a si se respeitam, que a propria estima se lhes faz precisa, ainda
+mais que a da sociedade, facil de transviar-se. E bem que não sejam philosophos
+nem devotos, sentem vivamente a dignidade de seu ser. É certo que este sentir
+lhes seria mais delicado e firme, se abrangessem as perspectivas da vida
+futura, em vez de concentrar-se cá; mas é forçoso aceitar os indifferentes
+quaes são; e tanto entre os peores como entre os melhores, a vida futura não é
+movel nem empêço: é uma coisa esquecida.</p>
+
+<h3>IV</h3>
+
+<h4>O grupo dos devotos</h4>
+
+<p>Será medo do inferno que impede os devotos de matar, de roubar, de se
+retoiçarem, como javardos, no lamaçal dos sentidos? Crer-se-ha que elles de
+per<span class="pagenum">{<a name="pag_94">Pg. 94</a>}</span> si sejam
+insensiveis á honra, ao opprobio, e aos mais freios moraes e nobres estimulos
+que regulam a ordem e andamento das sociedades temporaes? Ririam elles das
+galés e até da forca? Seriam elles, em verdade, infames da ultima ralé, se não
+receassem a condemnação?</p>
+
+<p>Se ha ahi tal raça de christãos, confesso que eu não confiaria d'elles nada,
+nem a minha bolsa, nem minha mulher, nem o meu segredo, nem eu mesmo
+adormeceria socegado entre elles. D'um scelerado a um devoto d'esta laia a
+distancia é tão curta que os meus pobres olhos não na enxergam. Dizem que ha
+uns pessimos soldados que, á vista do inimigo, olham para traz e só marcham
+para a frente com a bayoneta nos rins. E, se os não vigiaes, eil-os que
+desertam; e, até quando se batem, albergam a perfidia no coração. Pois bem:
+aquelles devotos são peores que os soldados tredos, por que destemem os homens
+e os juizos humanos, e os supplicios que os homens inventaram. O que elles
+sómente receiam é o fogo eterno, uma pena á qual se foge mediante a confissão.
+Ageitado o ensejo, roubam-vos, atraiçoam-vos, matam-vos, com a certeza de serem
+absolvidos occultamente, por uma <em>mêa culpâ</em>. Desgraçadamente é certo
+que a crença no inferno ha gerado monstros assim; a europa barbara tem milhares
+d'elles; ha bastantes para lá dos montes, e bem póde ser que mesmo cá; senão
+vejam aquelle devoto padre, cuja historia as gazetas contaram ha pouco: era um
+padre que matava todos os<span class="pagenum">{<a name="pag_95">Pg.
+95</a>}</span> seus filhos no berço para se forrar ao incommodo de os crear;
+mas é provavel que os baptisasse, com o receio de que se perdessem. Eu de mim
+não quero chamar christãos, nem sequer homens, a taes feras. Deus nos livre de
+encontrar similhantes christãos em uma serra por noite de luar.</p>
+
+<p>A honestidade d'estes meus devotos custa-lhes pouco; são creaturinhas que
+podem ver a felicidade dos outros sem sentirem cocegas de lh'a empalmar; não
+roubam nem matam por que a forca os embaraça, e a opinião dos homens ainda
+mais; pessoas, em fim, que tem mais mêdo ao crime que aos castigos
+correspondentes. Taes são os meus devotos. Devotos denomino eu todos os leigos
+que não duvidam, nem são indifferentes, nem se esquecem de ir á missa, nem
+deixam de confessar-se <em>ao menos uma vez cada anno</em>. É verdade que eu
+não os incampo a ninguem como anginhos já cosinhados para a canonisação. Se
+elles não andassem por igrejas com tanta regularidade, não sei bem como
+estremal-os, quanto ao seu proceder, do bando dos indifferentes. Não são elles
+os derradeiros a informar-se d'onde sopra o vento, onde aquece o sol, e onde
+está o idolo do dia para o saudarem, nem tambem são os ultimos a apedrejar o
+idolo da vespera. Quantas villanias sobre-douradas e quantas villanias bem nuas
+e patentes lhes não attrahem as barretadas, e os cumprimenteiros sorrisos! Como
+elles se curvam deante do que desprezam! Que impio acatamento prestam á força,
+e até, com medo de se enganarem,<span class="pagenum">{<a name="pag_96">Pg.
+96</a>}</span> ás apparencias da força! Que vulgares mexericos, que vulgares
+ambiçõezinhas, que exemplarissimas ingratidões!</p>
+
+<p>Não os accuseis de hypocritas, que elles são sinceros, não fazem momices,
+vão ás procissões com a melhor boa fé, assistem ás festas do Mez de Maria, tem
+rosario, agnus-Dei, e penduram no pescoço medalhinhas de cinco reis carregadas
+de indulgencias. E, assim mesmo apezar da sua boa fé em medalhas, é bonito
+vêl-os, em sua casa, evitar o escandalo com melhor exito, e mais vigilancia que
+o peccado. E nem assim o evitam. Se sois curiosos, apanhai-m'os no ultimo
+degráo da escada, ahi por perto do altar: vereis o conego ás más com o deão; o
+sineiro bate na mulher; o sacristão tem má lingua; um juiz de irmandade casa a
+filha violentada com um velho, e dá cabo d'ella; outro, á sobre-meza, faz-se
+truão de chalaças de ebrio; e é de natureza tal, que a mulher por certas razões
+não admitte em casa creadas que não tenham edade e figura bastante canonicas,
+capazes de edificarem um mosteiro de bernardos; lá está um que é rico, mas
+economico, e d'isso estão os pobres tristemente convencidos. Ora, a esses
+peccados habituaes ajuntem, se quizerem, os peccados de occasião, e digam-me
+como se distinguem, por suas obras, o commum dos indifferentes do commum dos
+devotos.</p>
+
+<p>Quereis subir ao primeiro degráo da escada? Luiz XI era devoto; Diana de
+Poitiers era devota; Brantôme devoto era; tambem era devota aquella
+regente<span class="pagenum">{<a name="pag_97">Pg. 97</a>}</span> de França que
+empregava as suas damas a seduzir, quero dizer, a converter os jovens huguenots
+e os velhos tambem. Todo o seculo XVII foi devoto, incluindo os cavalleiros
+farçolas, os bandidos, os abbades galans e os abbades demoniacos, os aváros e
+os glotões, os orgulhosos e os abjectos, as marquezas adulteras e os duques
+medianeiros, os magistrados venaes e as princezas aventureiras. Todos esses
+tinham bancada na egreja, iam aos sermões e discutiam ardentes sobre a materia
+da graça. Os amantes arrufavam-se na quaresma e faziam as pazes depois de
+Pascoa. Madame de Montespan, na côrte, cuidava em salvar-se, e ninguem quizesse
+obrigal-a a comer, á sexta feira, uma aza de borracho; o que ella então comia
+era salmão, lagostins, esperregado e pastelinhos de leite. Madame de Sévigné,
+uma das mais honestas e amaveis senhoras d'aquelle tempo, tambem devota, lia os
+<em>Contos de La Fontaine</em>, e ficava-se a rir com elles e mais a filha. O
+inferno era como se nada fosse n'essas coisas. Quem desgraçadamente pensava
+muito n'elle, enterrava-se no claustro, como Mr. de Rancé e M.<sup>elle</sup>
+de La Vallière; mas, pelo ordinario, havia pouco quem se debruçasse a espreitar
+o tal abysmo; e quem se desse a esses exames sahia impertinente, misanthropo e
+jansenista. Fallava-se do inferno; mas sem reflectir grande coisa; encaravam-no
+pela casca. O grande caso era rir, cortejar o rei, agradar a todos, inclusivè a
+Deus, dando-lhe a vêr com infinita habilidade, espectaculos de devoção, de
+jogo, de ambição e... do mais.<span class="pagenum">{<a name="pag_98">Pg.
+98</a>}</span></p>
+
+<p>O tempo e as revoluções que tantas mudanças tem feito, não mudaram o coração
+humano. Os devotos não são tantos como d'antes, mas são da mesma estôfa, e
+tanto montam estes como os outros, vistos a vulto. Relaxação extrema em
+fidalgos e populaça; sêde ardentissima de enriquecer; sordidissimos orgulhos;
+amores desatinados; paixões eriçadas de remordentes espiritos e blandiciadas de
+prazeres! Deus me defenda de calumniar peccadores a cheirarem ao incenso das
+igrejas! Bourdaloue, que os conhecia, e os demais prégadores assim antigos que
+modernos, disseram d'elles mais mal do que eu. O que sei é que o medo não faz
+bons aquelles que o bem, só de per si, não convida. O pejo do peccado poderá
+restaurar os cahidos; mas o medo, depois do peccado, é de todo o ponto
+inutil.</p>
+
+<p>Não esqueçamos, porém, que ha devotos quasi irreprehensiveis, os quaes, sem
+serem heroes nem se destinarem a tanto, cumprem, sem desfallecer, a modesta
+missão que lhes quadra sobre a terra. São bemfazejos em pequena escala;
+restringem-se a pouco mais de sua casa; quanto muito, chegam até á visinhança;
+e, se por vezes, a mão caridosa ultrapassa estes limites proveitosamente, de
+novo se retrahe ao seu limite, onde está a maior formosura e grandeza de sua
+missão. Estes devotos não se distinguem dos outros por grande assuidade nos
+templos; o que os differencêa é o serem esmoleres; e mais visivelmente se
+estremam por se absterem do mal. Não são rixosos nem maldizentes:<span
+class="pagenum">{<a name="pag_99">Pg. 99</a>}</span> tem ainda mais caridade na
+lingua do que nas mãos, por que ella os serve com inexhauriveis riquezas.
+D'aquelles peccados mortaes que a sociedade chama fraquezas, e em que
+diariamente as pessoas piedosas resvalam sem morrerem d'isso, fogem elles como
+d'um grande delicto. Amam a verdade, a ordem, a continencia, o pudor, a
+sobriedade, como vós amais a justiça. E, comquanto não descream do eterno fogo,
+a luz que os guia não esplende do inferno, vem de cima; no ceo é que elles a
+buscam em seu peregrinar; e assim vão alentados pela esperança e não pelo
+medo.</p>
+
+<h3>V</h3>
+
+<h4>O grupo dos santos</h4>
+
+<p>Chegados somos aos bemfeitores dos homens, verdadeiros imitadores de Jesus,
+entes mortaes mais proximos da perfeição, as irmãs da caridade, os padres
+virtuosos, quantos se consagram a servir pobres, infermos, ignorantes; quantos
+sacrificam, não esterilmente, mas ás nossas precisões, seus teres, belleza,
+juventude, affeições domesticas, vigor, saude, esperanças e quantas venturas
+terrenas ahi ha. Bem sei que todos esses crêem no inferno; mas não são regidos
+por tal crença; nada tem que vêr o seu proceder com ella; temem-se de offender
+Deus, não por que Deus é vingativo, mas antes por que Deus perdôa; e esta
+crença verdadeiramente<span class="pagenum">{<a name="pag_100">Pg.
+100</a>}</span> salutar é uma das mais affectivas maneiras de amar.</p>
+
+<p>Se o temor leva ao deserto, o amor conduz aos homens; se o temor se fecha á
+chave para dentro de grades, o amor quer sempre abertas as portas. Quem envia
+ao martyrio os missionarios é o amor; quem dá mãe a orphãos, filhas aos
+anciãos, irmãs aos soldados feridos, mestres aos aldeãos, amigos aos
+penitentes, tutores aos innocentes, guias aos transviados, é o amor. Todo bem
+feito n'este mundo é o amor que o faz; e este amor, que transborda da alma dos
+santos, em si mesmo haure sua fecundidade e bemfazeja energia.</p>
+
+<p>Permittam-me uma hypothese.</p>
+
+<p>Dê-se que um Concilio ecumenico se ajunta ámanhã, e declara, depois de haver
+invocado o Espirito Santo, que o inferno não é perpetuo, e que a palavra
+«eternidade», applicada ao castigo dos peccadores, significa tão sómente pena
+de infinita duração. Que ha de seguir-se a similhante proclamação? Imaginam que
+a irmã da caridade se retira logo do grabato do infermo, e se engolpha nas suas
+delicias mundanaes? Pensam que o benedictino, sacudindo o pó dos livros, se
+precipita na Bolsa? Que o joven lazarista, repatriando-se de regiões remotas,
+venderia o cajado e o breviario para ir ao theatro? Imaginam de boa fé que as
+irmãs da caridade se acabariam para logo? Se pensam isto, que idêa formam
+dessas bonissimas almas que os anjos e os homens admiram?<span
+class="pagenum">{<a name="pag_101">Pg. 101</a>}</span></p>
+
+<p>Consoante ao vosso modo de as julgar, a irmã da caridade diria: Ah! Deus não
+é implacavel? Então fui louca em amal-o. Deus não condemna irremissivelmente os
+peccadores? Louca fui em servil-o. Pois que! n'aquella bemaventurada
+eternidade, que eu tanto anhelava, não hei de ouvir os gritos da raiva e o
+estridor dos dentes dos condemnados? Que é d'então dos encantos do paraiso?
+Meninos, procurem quem os eduque; anciãos, procurem quem os alimente.
+Orphãosinhos desamparados, vós pensaveis que nós eramos vossas mães e irmãs;
+cuidaveis que vos amavamos por causa de vosso infortunio, e por vos termos em
+conta de membros soffredores de Jesus Christo, nosso modêlo e nosso Deus.
+Desenganai-vos! desenganai-vos! Não era por amor que vos amparavamos, era por
+medo que vos serviamos como lividas escravas, covardemente flexiveis a todos os
+caprichos de um senhor imperioso. Mas agora, visto dizerem-nos que o inferno
+acaba, buscai quem vos ame e sirva. Cada qual por si. Acabou-se o medo; nada de
+mais sacrificios. Abaixo, tunicas de burel; abaixo, veos que nos escondieis
+volupias da terra, mas não as dôres, abaixo! A pureza não é enlevo que nos
+contenha; gemidos de pobres não nos engodam; queremos ter vez na taça do
+peccado; bebamos, que a vida é curta e o inferno ha de acabar.</p>
+
+<p>Não ha conjunctura em que eu ousasse attribuir similhante linguagem ás irmãs
+da caridade. Nunca! ainda quando, em um nefasto dia, fosse abolido o dogma<span
+class="pagenum">{<a name="pag_102">Pg. 102</a>}</span> salutar da justiça
+divina; ainda quando pregoassem que tudo acaba no cemiterio, e que a sancção da
+moral está nos gosos e dôres deste mundo, as irmãs da caridade não fallariam
+assim. Se um concilio sahisse com aquellas decisões, regulal-o-hiam ellas.</p>
+
+<p>Como é que o dogma do purgatorio, com seus flagellos de duração ignorada,
+sempre consoantes á natureza e circumstancias do peccado, ás luzes e costumes
+do peccador,&mdash;como é que este dogma tão racional, certo, mysterioso e
+terrivel, poderia enfraquecer a virtude, e a virtude principalmente d'aquellas
+almas livres, viris e modestas, nas quaes o amor tem mais dominio que o
+medo?</p>
+
+<p>Crêde-me que é isso um demasiado aviltar a lama humana, que mostraes não
+conhecer; crêde-me. Se a Igreja ámanhã proclamasse a temporalidade das penas,
+nenhuma irmã da caridade deslisaria da sua fileira, nem um verdadeiro sacerdote
+abandonaria a sua grei, nem algum missionario acharia o Evangelho desataviado
+de excellencias que ensinar aos selvagens, nem a cruz radiaria menos, nem a
+palma dos martyres seria menos de invejar. Vêr-se-hia, ao invez e
+instantaneamente, encherem-se todas as igrejas, e justos e peccadores reunidos
+ao pé do altar, em um mesmo consenso de acção de graças, cantarem do fundo da
+alma:</p>
+
+<blockquote style="font-size: 0.8em;">
+ <p><em>Te-Deum, laudamus, in te, Domine, speravi; non confundebar in
+ æternum.</em></p>
+</blockquote>
+
+<p style="text-align:center;">FIM DA PRIMEIRA PARTE.<span class="pagenum">{<a
+name="pag_103">Pg. 103</a>}</span></p>
+
+<h1>SEGUNDA PARTE</h1>
+
+<h4>O INFERNO CONSIDERADO ÁLÉM-TUMULO, OS CONDEMNADOS NA PRESENÇA DE DEUS, NA
+PRESENÇA DOS SANTOS, E NA PRESENÇA DOS HOMENS.</h4>
+
+<h2>CAPITULO PRIMEIRO</h2>
+
+<h4>O INFERNO DE PLATÃO</h4>
+
+<p>Até agora consideramos o inferno sómente em relação aos resultados moraes
+que a crença de sua existencia tem produzido, produz e produzirá sempre n'este
+mundo. Já demonstramos que esta crença, fatal a quantos se compenetram d'ella,
+é inerte para os demais: é inutil aos verdadeiros virtuosos, por que não tem
+que ver com o bem que praticam, e tambem ao mal que não fazem; é inutil aos
+devotos e indifferentes, por que não os estorva de commetter basta dóse de
+peccados mortaes; e pelo que toca aos peccados que não commettem, tal abstenção
+explica-se em louvor d'elles, por motivos totalmente independentes das penas
+infernaes; é inutil para os philosophos, visto que estes a não acceitam; é,
+emfim, inutil aos scelerados,<span class="pagenum">{<a name="pag_104">Pg.
+104</a>}</span> por que os não impede de ser scelerados; e, de mais a mais
+concorre, umas vezes, a precipital-os no crime, outras a empedernil-os na
+perversidade.</p>
+
+<p>Falta agora considerar o inferno, não em referencia á terra, mas pelo que
+elle é em si, qual os padres, doutores e mysticos o pintaram, isto é, nas suas
+relações com Deus, com os predestinados e com os reprobos. Mas, antes d'isso,
+cumpre-nos dizer alguma coisa das opiniões de Platão ácerca da justiça divina e
+do inferno. Será isto, a um tempo, entrar no assumpto, e responder aos
+theologos que, á mingua de razões, invocam de vontade, n'esta materia, a
+auctoridade de Ovidio, de Horacio, de Lucrecio, de Virgilio, de Hesiodo, de
+Orpheo, e d'outros escriptores de costumes sobre modo extravagantes que, a tal
+respeito, repetiram as idêas do antigo paganismo e nada mais.</p>
+
+<p>A opinião de Platão, que elles mais acintemente allegam, deriva da mesma
+fonte; mas, alumiada pela indole e pura vida d'aquelle philosopho, ostenta-se
+mais respeitavel e seductora.</p>
+
+<p>É mister, no dizer de Platão, que um castigo seja razoavel para ser justo; e
+para que seja razoavel, uma de duas clausulas é precisa: ou que o castigo
+aproveite ao castigado, ou ás testemunhas d'elle.</p>
+
+<p>Partindo d'este principio, Platão não prodigalisa, á feição dos nossos
+theologos, as penas eternas, por quanto, a seu parecer, falta n'ellas a grande
+virtude das penas temporarias. São estas, em verdade, dobradamente prestadias,
+pois que ao mesmo tempo corrigem<span class="pagenum">{<a name="pag_105">Pg.
+105</a>}</span> o culpado e admoestam os espectadores; pelo contrario, as
+outras não corrigem o culpado e podem apenas admoestar os vivos que as
+conhecem: logo são menos prestantes e universaes e completas; falta-lhes
+aquella bemfazeja efficacia com que os deuses folgam de dulcificar as obras da
+sua justiça; digamol-o em pouco: são menos divinas.</p>
+
+<p>Eis-ahi porque Platão é aváro das penas eternas e perdoa ao maximo numero de
+peccadores, descontando-lhes os gemidos, lavando-os e purificando-os em suas
+proprias lagrimas, á excepção dos oppressores dos povos, de seus cumplices e
+louvaminheiros que expressamente exclue da lei commum. Para estes é elle
+durissimo; eternisa-lhes as dores; todavia, os deuses não podem ser accusados
+por isso de inutilmente rigorosos.</p>
+
+<p>De feito, se a tyrannia é o maior dos crimes, e o unico expiavel, é porque a
+liberdade, que ella anniquila, é o maior bem que os deuses nos doaram, unico
+impossivel de substituir; é porque, na sociedade escravisada, cessam os
+prazeres honestos, a verdadeira gloria, sabedoria e virtudes.</p>
+
+<p>Tal é o senso intimo do castigo excepcional que Platão applica aos tyrannos.
+Bastantemente está explicado a superioridade do terrivel castigo; mas o que não
+se explica é a razão da sua perpetuidade. Platão suppunha-o eterno porque não
+sabia, como nós, que a humanidade tem que percorrer no tempo um circulo
+limitado, e que este universo ha de acabar. Eternisava<span class="pagenum">{<a
+name="pag_106">Pg. 106</a>}</span> elle, por tanto, o supplicio dos tyrannos,
+por suppôr que o seu exemplo devia ser eternamente util na terra. Não ha outra
+maneira de lhe justificar o inferno no seu systema.</p>
+
+<p>Foi, porém, esta justificação do inferno destruida por Christo, o qual nos
+annunciou que todo o genero humano é, como cada homem, um passageiro na terra,
+e que um dia virá em que esta esphera que habitamos, e estes astros que nos
+alumiam, se sumirão no espaço como a poeira que o vento da noite espalha. Quem
+utilisaria com o supplicio dos condemnados, quando as testemunhas, em vez de
+fracos mortaes, fossem santos impeccaveis?</p>
+
+<p>O inferno dos theologos não é, pois, identico ao inferno de Platão: o de
+Platão devia ser util sempre; o dos theologos, por fructificar um dia, ficaria
+esteril para sempre. Essa esterilidade já lh'a nós presentimos. Indagamos a
+razão d'uns padecimentos improficuos á victima, ao juiz, a todos. O coração
+protesta contra tal crueldade sem intento e sem effeito. Córa a gente só de o
+crêr. Como que o homem se sente melhor do que essa divindade absurda, sedenta
+sempre de torturas, ebria sempre de ira, insensivel sempre, peior que o abutre
+do Prometheo, que ás vezes, ao menos, adormece sobre a preza. Só pensar n'isto
+gera o atheismo na alma.</p>
+
+<p>Erradamente, pois, se invoca, em pró de similhantes castigos, o testemunho
+de Platão, que se horrorisaria d'elles. Platão não condemnava o pobre
+pegureiro<span class="pagenum">{<a name="pag_107">Pg. 107</a>}</span> por algum
+roubo desconhecido ou tentativa malograda; mas bem póde ser que elle
+condemnasse inflexivelmente S. Clotario, S. Constantino e S. Carlos Magno. Além
+de que, elle tinha, para admittir um inferno sem fim, razões que não temos; e
+nós, para o rejeitarmos, temos razões que elle ignorava.<span
+class="pagenum">{<a name="pag_108">Pg. 108</a>}</span></p>
+
+<h2>CAPITULO SEGUNDO</h2>
+
+<h4>Opinião dos pagãos sobre a situação e vista interior do inferno</h4>
+
+<p>Os antigos situavam o inferno no centro da terra que habitamos, e pretendiam
+ter a este respeito pormenores muito satisfatorios. Os gregos e os romanos
+possuiam um mappa minucioso d'estas regiões subterraneas, a ponto de lhes
+conhecerem os rios, taes como o lodoso Cocyto, o ardente Phlegeton, e o
+invadiavel Acheronte; sabiam até que havia lá fetidas lagôas, em uma das quaes
+estava Tantalo atascado até aos queixos sem poder apagar a sêde; sabiam d'uns
+bosques medonhos em que certas almas se lamuriavam, debalde anciando o alvor do
+dia; conheciam montanhas, que outros condemnados, perseguidos pelas furias, em
+vão se esfalfavam por galgar. Contavam a historia de alguns desgraçados assim,
+e as particularidades<span class="pagenum">{<a name="pag_109">Pg.
+109</a>}</span> do seu supplicio. Comtudo, apezar da indole inteiramente
+physica d'aquelles diversos castigos, diziam que os pacientes não tinham corpo,
+que os mortos eram apenas sombras intangiveis, bem que animadas, e que o seu
+maximo tormento era não poderem jámais viver vida carnal á luz do nosso sol.
+Isto contavam-no elles com toda a certeza, fiados em pessoas que tinham descido
+ao Tartaro, e de lá tinham voltado. Era conhecida a estrada por onde essas
+pessoas tinham viajado; havia cavernas que os pastores conheciam, poços d'onde
+sahiam vapores lethiferos e por onde se descia ao inferno.</p>
+
+<p>Não eram menos instruidos os egypcios. Em assumpto de horrores visiveis, o
+Amenthi havia emprestado ao Tartaro pavorosos quadros. N'este Amenthi, que,
+segundo consta, quer dizer <em>paiz da noite</em>, estão o cão de sete cabeças
+e outros deuses de feitios monstruosos. Ahi se encontra o Acheronte e o seu
+batel, os marneis e as aridas gándaras, e todas as figurações do mundo
+devastado.</p>
+
+<p>Tem setenta e cinco circulos, e á entrada de cada circulo um genio armado.
+Giram as almas d'um circulo n'outro, algumas em fórma humana, outras com fórmas
+immundas, com cabeças de aves de rapina, pellagem de fera, e garras de reptil.
+O pavimento é sangue. Estrondeiam os gemidos. Pendem os condemnados dos ganchos
+á maneira de carneiros no açougue, ao passo que outros, ainda palpitantes, são
+mergulhados em caldeirões ferventes. Uns vão fugindo,<span class="pagenum">{<a
+name="pag_110">Pg. 110</a>}</span> com os braços estendidos, e a cabeça quasi
+separada do tronco, outros levam nas proprias mãos o coração que lhes
+arrancaram do peito que mostram lanhado.</p>
+
+<p>Conforme nos vamos aproximando das primitivas civilisações, e, por
+consequencia, do primitivo barbarismo, mais o genero humano parece deliciar-se
+no repasto espectaculoso de seus proprios soffrimentos, e o mundo invisivel é
+para elle um espelho de augmento das miserias e torturas do mundo visivel.</p>
+
+<p>Cada povo se espelha na imagem que nos deixou de seu inferno, com as suas
+idêas moraes, leis, necessidades, com seus costumes, temperamento e clima.</p>
+
+<p>Nas serranias do Thibet, onde rapidamente se passa do mais rigoroso frio ao
+mais suffocante calor, ensinam os lamas que o inferno, situado em determinado
+logar da Asia umas tantas legoas da superficie da terra, é formado de dezeseis
+circulos: oito onde se arde, oito onde se gela.</p>
+
+<p>Nas esplanadas da India, onde não ha inverno, e onde as populações,
+languidas de calor, corruptas pelas liberalidades da terra, apenas tem
+phantasia para inventar prazeres e supplicios, dizem os brahmanes que certos
+sitios do Naraka estão cheios de mosquitos, de serpentes venenosas, de
+escorpiões horriveis, de tigres, de abutres e de todos os flagellos proprios
+d'aquellas regiões ardentes; e que os outros circulos são o theatro das mais
+requintadas torturas que ainda póde conceber a malicia d'um rajah arrojado. Ahi
+os glotões<span class="pagenum">{<a name="pag_111">Pg. 111</a>}</span> são
+condemnados a comer calháos asperrimos de puas agudas; os luxuriosos são
+apertados nos braços de estatuas de ferro em braza.</p>
+
+<p>Contam pelo miudo todas as circumstancias d'estes infinitos martyrios, e
+taes narrativas fariam impallidecer Ixion sobre a sua roda, Sizipho debaixo do
+seu penedo. Sabem os hindostanicos pelos livros e pela tradição em que ponto da
+sua terra está situado o Naraka e a que profundeza se encontra. Mas não podem
+os mortos encerrados ahi achar os limites e as portas d'aquelle inferno.</p>
+
+<p>No inferno dos scandinavos, chamado Nifleim, não ha fogo. Essas antigas
+nações do norte gostam tanto de calor, que não poderam consideral-o um
+supplicio; pelo que o seu inferno é de neve, onde ha o tiritar, a fome, a
+febre, a velhice tremente, as torrentes glaciaes, as tempestades, o uivar dos
+lobos, o pavor que estaleja os dentes, e os cobardes, unicos condemnados que
+ahi vão.</p>
+
+<p>Concluamos esta historia, que daria assumpto para um livro. As reflexões
+moraes que ella suscita vão breve ser applicadas na descripção do nosso proprio
+inferno, que na essencia não se distingue dos infernos pagãos. Porém, sendo
+elle procedente do inferno judaico, paremos diante d'este.<span
+class="pagenum">{<a name="pag_112">Pg. 112</a>}</span></p>
+
+<h2>CAPITULO TERCEIRO</h2>
+
+<h4>Opinião dos judeus ácerca da vista interior do inferno.</h4>
+
+<p>Sabido é que o Antigo Testamento é muito sobrio de revelações do inferno.
+Com muito custo se rebuscaram n'elle alguns versiculos tendentes a estabelecer
+aquella crença entre os hebreus, antes da destruição do primeiro templo. Os
+saduceos, que juravam sómente pela Biblia, negavam absolutamente a vida futura.
+Ora, bastantes sabios tinham os saduceos em conta de melhores interpretes da
+Biblia. Dizem elles que os judeus, durante as tristezas do captiveiro, souberam
+da bôcca dos magos a immortalidade da alma e a sciencia demonologica. Todavia,
+Abrahão era chaldeo; os filhos de Jacob haviam longo tempo estanciado no
+Egypto;&mdash;isto dá a crer que os seus descendentes deviam possuir, antes de
+exilados em Babylonia,<span class="pagenum">{<a name="pag_113">Pg.
+113</a>}</span> parte dos conhecimentos que os escripturistas registavam. Não
+exerciam os prophetas um ensino mystico, e não conservava o povo tantas
+tradições grosseiras contemporaneas de Moysés e talvez anteriores? As passagens
+respigadas na escriptura e nomeadamente em Isaias, relativas ao inferno, seriam
+inexplicaveis, se não se lhe referissem; mas seriam egualmente inexplicaveis se
+o povo não tivesse, para intendel-as, mais luz da que lhe dão essas passagens.
+Estes trechos não encerram doutrina secreta dos prophetas, respeito á vida
+futura; contém mais referencias que revelações á crença vulgar e formalissima
+do inferno.</p>
+
+<p>O nome «Géhenna» que lá dão á paragem das expiações futuras, não era
+estrangeiro; era o nome de um vale ao poente de Jerusalem, onde, desde a origem
+de sua historia, iam os hebreus adorar Molock, e sacrificar-lhe no fogo
+victimas humanas, e, ás vezes, seus proprios filhos. N'este sitio, tambem
+denominado <em>Trophet</em>, ou «logar horrendo», eram lançados os cadaveres
+dos justiçados e os despojos dos animaes. Este valle maldito, sagrado pela
+superstição aos deuses sanguinarios, juncado de carnes putridas e ossadas
+alvejantes, assombrado de larvas sinistras, resonante de gemidos e rugidos,
+converteu-se para os moradores da cidade santa, não já em verdadeiro inferno,
+mas no symbolo exterior e synonymo de inferno. No inferno verdadeiro, ardiam
+Moloch e os seus idolatras na mesma fogueira; os máos eram roidos pelos vermes;
+e estes vermes eram immorredouros como as suas<span class="pagenum">{<a
+name="pag_114">Pg. 114</a>}</span> prêas:&mdash;idêas positivamente exprimidas
+por Isaias, cap. LXVI, ultimo verso.</p>
+
+<p>É egualmente certo que os rabbinos e tambem o povo, tão pouco iniciados até
+então andavam na mystica philosophia, que, se alguma vez discutiam, davam azo a
+que os prophetas se rissem ou indignassem; porém, depois que os rabbinos e o
+povo se recolheram do captiveiro, as suas noções eram mais amplas, e talvez as
+mesmas que se escondiam nas escólas do Carmelo e de Galgala.</p>
+
+<p>Vamos vêr quaes são as noções não contidas no Antigo Testamento, mas
+traçadas manifestamente no Novo, as quaes, quando S. Paulo, S. Mathias, S. João
+e outros apostolos escreviam, já se haviam derramado na Judea, quinhentos ou
+mais annos antes.</p>
+
+<p>Era dividido o Scheol, ou mundo futuro, em duas regiões, que comprehendiam o
+paraiso e a géhenna. A géhenna, objecto d'este estudo, era contada no numero
+das sete creações anteriores ao nosso universo. Á similhança do Amenthi egypcio
+e do Naraka indiatico, era formada de diversos circulos, mas só tinha sete,
+correspondendo aos sete dias do Genesis, e aos sete ceos ou sete circulos do
+paraiso. Havia géhenna superior e géhenna inferior. A superior abrangia os seis
+primeiros circulos: era uma especie de purgatorio onde baixavam, depois da
+morte, os peccadores dignos de perdão: uns ficavam no sexto, outros no quinto,
+outros no quarto circulo, outros no primeiro, conforme a gravidade ou leveza
+dos seus peccados.<span class="pagenum">{<a name="pag_115">Pg. 115</a>}</span>
+Trezentos e sessenta e cinco degráos, correspondentes aos trezentos e sessenta
+e cinco peccados assignalados pelos doutores, formavam escaleiras d'um circulo
+a outro, e em cada circulo era mister passar trezentos e sessenta e cinco dias.
+Porém, os grandes criminosos, abatidos sob o gravame de suas culpas,
+atravessavam, sem poder parar e com a rapidez de pedra arrojada por funda, os
+seis primeiros circulos da spiral, e cahiam no setimo, no fundo abysmo, na
+géhenna inferior, d'onde não ha mais sahir. Á frente de suas legiões ahi os
+recebia Samael, e então lhes começava o perpetuo supplicio, o insulto dos
+diabos, a saudade da vida, o fogo interno e externo, o tormento da sêde, e a
+miragem cruelissima que scintilla aos olhos dos peregrinos agonisantes no
+deserto<sup><a name="L2488" id="L2488" href="#L2486">[5]</a></sup>.</p>
+
+<p>Taes eram, em resumo, as opiniões da synagoga ácerca do inferno. Entretanto
+os essenios, seita monastica celibataria que vivia em commum para
+espiritualmente<span class="pagenum">{<a name="pag_116">Pg. 116</a>}</span> se
+reproduzir, professavam outra. O inferno d'elles, coisa notavel, similhava ao
+dos monges thibetanos; os soffrimentos ahi eram calor e frio, e todas as
+intemperies das estações em climas deseguaes.</p>
+
+<p>Agora vejamos o inferno dos nossos theologos.<span class="pagenum">{<a
+name="pag_117">Pg. 117</a>}</span></p>
+
+<div class="rodape">
+<p><sup><a name="L2486" id="L2486" href="#L2488">[5]</a></sup> O inferno
+mahometano é copia do judaico, mas copia singularmente alterada. O anjo Trakek
+é quem lá governa. Ha lá chuva de peçonha. Chama-se Géhenna e divide-se em sete
+circulos. Porém, exceptuado o primeiro circulo, reservado exclusivamente para
+os musulmanos, e o ultimo, destinado aos hypocritas, cada qual dos outros é
+pertencente a cada uma das religiões diversas que precederam o islamismo. Estes
+hereticos estão portanto em andares sobrepostos, quasi por ordem de sua
+antiguidade: os christãos no segundo, os judeus no terceiro, os sabeos no
+quarto, os guebros no quinto, os idolatras no sexto. D'estes seis ultimos
+ninguem sahe: ahi é o verdadeiro inferno; mas o primeiro, o circulo de honra
+dos crentes, é purgatorio, no dizer dos doutores.</p>
+</div>
+
+<h2>CAPITULO QUARTO</h2>
+
+<h4>O INFERNO DOS THEOLOGOS</h4>
+
+<h4><small>POR DUAS FACES VAMOS VER O NOSSO INFERNO; PRIMEIRA A MATERIAL,
+DEPOIS A MORAL</small></h4>
+
+<h3>I</h3>
+
+<h4>O inferno material</h4>
+
+<p>São puros espiritos os demonios, e tambem puros espiritos devem
+considerar-se os condemnados no inferno, por quanto só a alma d'elles lá
+desceu, e os ossos restituidos á terra se transformam continuamente em
+hervaçaes, plantas, fructos, mineraes, liquidos, desfigurando-se nas
+continuadas methamorphoses da materia.</p>
+
+<p>Tanto, porém, os condemnados como os santos hão-de resuscitar no dia final e
+reassumir para nunca mais o deixar um corpo carnal, o mesmo corpo com o qual
+passaram entre os vivos.</p>
+
+<p>A distincção d'uns a outros é que os eleitos hão de resurgir em corpos
+purificados e radiosos, e os condemnados em corpos poluidos e afeiados pela
+culpa.<span class="pagenum">{<a name="pag_118">Pg. 118</a>}</span> E de então
+ao diante não haverá sómente puros espiritos no inferno; mas sim homens como
+nós. É por consequencia o inferno uma localidade physica, geographica e
+material, visto que hão de povoal-o creaturas terrestres, dotadas de pés, mãos,
+bôcca, lingua, dentes, orelhas, olhos como os nossos, veias com sangue, e
+nervos sensiveis á dor.</p>
+
+<p>Onde está situado este inferno? Alguns doutores situam-no nas entranhas da
+terra; outros em certo planeta que eu não sei; mas a questão nenhum concilio
+ainda a resolveu. A este respeito é tudo conjecturas; o mais que se affirma é
+que o inferno, seja onde fôr, é um mundo composto de elementos materiaes, mas
+não tem sol, nem lua, nem estrellas, e é mais triste e inhospito, e mais ermo
+de todo o germen e apparencia de bem, do que todos os pontos inhabitaveis do
+mundo em que peccamos.</p>
+
+<p>Não se arriscam os discretos theologos a pintar, á similhança dos egypicos,
+indostanicos, e gregos, o immenso horror d'essa mansão; limitam-se a dar-nos
+como amostra o pouco que a escriptura denuncia, o lago de fogo, e o enxofre do
+Apocalypse, e mais os vermes de Isaias, aquelles vermes eternamente enxameando
+sobre as carcaças de Thophet, e os demonios atormentando os homens que
+perverteram, e os homens chorando e ringindo os dentes, segundo a expressão dos
+evangelistas.</p>
+
+<p>Santo Agostinho não concede que aquellas penas physicas sejam simples
+imagens das penas moraes;<span class="pagenum">{<a name="pag_119">Pg.
+119</a>}</span> contempla em um verdadeiro lago de enxofre vermes e serpentes
+verdadeiras encarniçadas sobre todas as partes dos condemnados, exacerbando com
+as suas mordeduras as ulcerações do fogo. Quer, conforme um verso de S. Marcos,
+que este estranho fogo, posto que material como o nosso, e actuando sobre
+corpos materiaes, os conservará como o sal conserva a carne das victimas sempre
+sacrificadas e sempre viventes, sentirão a dôr d'aquelle fogo que queima sem
+destruir, e lhes filtra aos musculos, saturando-lhes os membros, desde a
+medulla dos ossos e as pupillas dos olhos até as mais occultas e sensiveis
+fibras do seu ser.</p>
+
+<p>Se elles podessem submergir-se na cratera d'um vulcão, sentir-se-hiam ahi
+refrigerados e consolados.</p>
+
+<p>D'esta arte fallam com toda a segurança os mais timidos, os mais discretos e
+reservados theologos; não negam, porém, que no inferno haja outros supplicios
+corporaes; sómente dizem que não tem d'elles um sufficiente conhecimento, ou
+pelo menos tão positivo como aquelle que receberam ácerca do horrivel supplicio
+do fogo, e do afflictivo supplicio dos vermes. Ha no entanto theologos mais
+audazes e illustrados que nos dão descripções mais miudas, variadas, e
+completas do inferno; e, bem que não saibam em que local do espaço tal inferno
+esteja, consta-lhes que alguns santos o viram.</p>
+
+<p>De certo que estes santos lá não foram com a lyra em punho, como Orpheo, ou
+com a espada na mão,<span class="pagenum">{<a name="pag_120">Pg.
+120</a>}</span> á similhança de Ulysses: baixaram lá arrebatados em espirito.
+D'este numero é Santa Thereza.</p>
+
+<p>Quem lê a relação d'esta santa cuidará que no inferno ha cidades. Pelo menos
+lá viu ella uma especie de viella longa e estreita como ha tantas nas cidades
+antigas; entrou caminhando horrorisada sobre um terreno lamacento e fetido onde
+rastejavam reptis monstruosos; mas foi retida em seu transito por uma parede
+que atravancava a viella; e n'esta parede havia um nicho onde Santa Thereza se
+metteu sem saber como. Disse ella que este logar lhe estava destinado, se
+abusasse emquanto viva das graças que Deus difundia sobre a sua cella d'Avila.
+E, bem que ella se anichasse com maravilhosa facilidade n'aquella guarita de
+pedra, não podia nem assentar-se, nem deitar-se, nem estar de pé, nem safar-se;
+que estas horriveis paredes, apertando-a, envolviam-na, angustiavam-na, como se
+fossem animadas. Parecia-lhe que a abafavam, que a estrangulavam, e ao mesmo
+tempo a estripavam e a faziam pedaços.</p>
+
+<p>E sentia-se arder, e não havia genero de afflição que não experimentasse.
+Esperança de soccorro, nenhuma. Á volta d'ella tudo escuro; mas ainda assim,
+atravez d'essas trevas, entrevia, com grande espanto, a hedionda rua por onde
+tinha passado com toda a sua immunda visinhança: espectaculo que lhe era tão
+intoleravel como as intalladelas da prisão.</p>
+
+<p>Ora isto de certo era apenas um cantinho do inferno.<span
+class="pagenum">{<a name="pag_121">Pg. 121</a>}</span></p>
+
+<p>Outros viajantes espirituaes foram mais obsequiados. Houve tal que viu no
+inferno grandes cidades a arder, Babylonia e Ninive, e até Roma, com os seus
+palacios e templos abrazados, e os habitantes acorrentados, mercadejando no
+balcão, padres misturados com meretrizes nas salas dos festins, hurrando nas
+suas poltronas d'onde não podiam arrancar-se, e levando aos beiços, para apagar
+a sede, copos que golphavam lavaredas; validos em joelhos sobre almadraques
+ardentes, com as mãos postas, e principes vertendo sobre elles devorante lava
+d'ouro fundido. Outros viram no inferno descampados sem limites, cavados e
+semeados por lavradores famelicos. E d'essas plantas fumegantes de suor, como
+nenhum fructo vingasse, os lavradores devoravam-se uns aos outros; e, depois,
+tantos quantos tinham sido, magros e famintos do mesmo modo, dispersavam-se em
+bandos pelos horisontes fóra em cata de terras mais ditosas, e eram logo
+substituidos por outras colonias errantes de condemnados.</p>
+
+<p>Houve quem visse no inferno serranias cavadas de abysmos, de florestas
+gementes, poços sem agua, fontes de lagrimas, regatos de sangue, turbilhões de
+neve em desertos de gelo, barcos desesperados vogando em mar sem praia. Em fim
+lá viram quanto os pagãos tinham visto, o reflexo lugubre da terra, uma sombra
+incommensuravelmente augmentada de suas miserias, os seus naturaes soffrimentos
+eternisados, entrando<span class="pagenum">{<a name="pag_122">Pg.
+122</a>}</span> n'isto masmorras, forcas, e os instrumentos de tortura que as
+nossas proprias mãos forjaram.</p>
+
+<p>Ha com effeito lá n'essas profundezas demonios que se fazem corporeos, para
+mais a preceito atormentarem os homens em suas carnes. Uns tem azas de morcego,
+pontas, coiraças escamosas, griphos e agudissimos dentes. Temol-os visto
+pintados, armados de espadas, de forcados, de tenazes ardentes, de serras, de
+grelhas, de folles, de clavas, empregando tudo isto durante a eternidade n'uma
+especie de açougue e cosinha da carne humana. Ha outros transformados em leões,
+e viboras enormes, arrastando as prêas em solitarias cavernas.</p>
+
+<p>Alguns desfiguram-se em corvos para arrancar os olhos a certos padecentes,
+em quanto outros se transformam em dragões volateis, e vão carregados d'almas
+sanguentas e lastimosas atravez de tenebrosos espaços, e as precipitam no lago
+de enxofre. Além se vê nuvens de gafanhotos, e de agigantados escorpiões, cuja
+vista arripia, cujo cheiro enoja, cujo menor contacto convulsiona. Acolá estão
+os monstros polycephalos abrindo vorazes fauces, sacudindo as crinas formadas
+de aspides, triturando os condemnados entre os seus queixos sangrentos, e
+vomitando-os logo mastigados, mas ainda vivos, porque são immortaes.</p>
+
+<p>Estes demonios de fórma sensivel, recordando tão ao vivo os deoses do
+Amenthi e do Tartaro e os idolos que os phenicios, os moabitas e outros gentios
+visinhos da Judea adoravam, estes demonios não funccionam<span
+class="pagenum">{<a name="pag_123">Pg. 123</a>}</span> á toa; cada qual tem seu
+officio e sua tarefa: o mal que fazem no inferno corresponde ao mal que elles
+inspiraram e fizeram commetter n'este mundo. São os condemnados punidos em
+todos os sentidos e orgãos porque offenderam Deus por todos os orgãos e
+sentidos. Os comilões são punidos de certa maneira pelos demonios da
+intemperança, e d'outra maneira os calaceiros pelos demonios da preguiça, e
+ainda d'outra maneira os lascivos pelos demonios da sensualidade; em fim, são
+tantas as maneiras quantas as variedades de peccar. Dizem que elles até na
+fogueira terão frio, e no gelo se sentirão arder; estarão ávidos de descanso e
+irrequietos; sempre com fome, sempre com sede, e mil vezes mais cansados que o
+escravo no fim do dia, mais doentes que os moribundos, mais lacerados, mais
+escalavrados, mais lazaros que os martyres, e assim para todo o sempre.</p>
+
+<p>Nenhum demonio se desgosta nem desgostará jámais do seu terrivel officio;
+n'esta parte são elles disciplinados a ponto, e fidelissimos na execução das
+ordens vingativas que receberam. Se não fosse isso, que seria do inferno? Se os
+demonios tivessem rixas entre si ou se fatigassem, os pacientes descansariam.
+Mas nem uns descansam, nem os outros se desavêm; e posto que sejam máos e
+muitissimos, os demonios harmonisam-se d'um cabo a outro do abysmo, por tanta
+maneira que nunca na terra se viram nações mais submissas a seus principes,
+exercitos mais doceis a seus generaes, communidades fradescas mais
+obedientes<span class="pagenum">{<a name="pag_124">Pg. 124</a>}</span> a seus
+prelados. Nada se sabe da ralé dos demonios, d'essa canalha de espiritos
+villãos que formam legiões de vampiros, de sapos, de escorpiões, de corvos, de
+hydras, de salamandras e outra bicharia sem nome que constituem a zoologia das
+regiões infernaes; mas são conhecidos de nome muitos principes que commandam
+aquellas legiões, entre outros Belphegor, o demonio da luxuria, Abbaddon ou
+Apollyon, o demonio da carnificina, Beelzebuth, o demonio dos desejos impuros,
+ou o principe das moscas geradoras da podridão, e Mammou, o demonio da avareza,
+e Moloch, e Belial, e Baalgad, e Astaroth, e outros mais, e sobre todos o chefe
+universal, o sombrio archanjo que no céo se chamava Lucifer, e no inferno se
+chama Satan.</p>
+
+<p>Eis aqui, em summa, a idêa que se nos dá do inferno, observado em sua
+natureza physica, e nas penas corporaes que lá se padecem. Lêde os escriptos
+dos padres e antigos doutores, interrogae as piedosas legendas, examinae as
+esculpturas e paineis das nossas egrejas, attentae o ouvido no que se diz em
+nossos pulpitos e sabereis muitas outras coisas.<span class="pagenum">{<a
+name="pag_125">Pg. 125</a>}</span></p>
+
+<h3>II</h3>
+
+<h4>Reflexões sobre as penas materiaes dos condemnados</h4>
+
+<p>De qualquer modo que as figuremos, e quando mesmo por piedade ou qualquer
+outra razão se reduzissem só á acção do fogo, estas penas materiaes não
+poderiam ser eternas, porque, se a alma é immortal e póde soffrer sempre, não
+succede o mesmo ao seu involtorio terrestre: corpos de carne, á feição dos
+nossos, são de seu natural incapazes de resistir a similhantes agentes de
+destruição.</p>
+
+<p>É um milagre a resurreição dos corpos; mas faz-se mister um segundo milagre
+para dar a estes corpos mortaes, já usados pelos transitorios attritos da vida,
+e de mais a mais aniquillados, a virtude de subsistir, sem se dissolverem, na
+fornalha onde metaes se evaporassem. Diga-se embora que a alma é algoz de si
+mesma, que Deus a não persegue, mas que a desampara pelo estado desgraçado que
+ella escolheu: isso ainda póde rigorosamente comprehender-se, posto que o
+desamparo eterno d'um ser desvairado e padecente pareça pouco conforme á
+bondade do Creador; porém o que se diz da alma e das penas espirituaes não póde
+por modo algum ser dito a respeito dos corpos e das penas corporaes; que para
+eternisar as penas corporaes não basta que Deus retire a sua mão;<span
+class="pagenum">{<a name="pag_126">Pg. 126</a>}</span> pelo contrario, é
+forçoso que elle a mostre, que intervenha, que opere, sem o que o corpo
+succumbiria.</p>
+
+<p>Conjecturaram, pois, os theologos que Deus effectivamente opera, em seguida
+á resurreição, o segundo milagre de que fallamos. Primeiro, exhuma do sepulchro
+os corpos de argila que lá se haviam desfeito; tira-os taes quaes lá tinham
+entrado com as suas nativas infermidades e as degradações successivas da idade,
+da doença e do vicio, decrepitos, infesados, gotosos, cheios de precisões,
+sensiveis á ferroada d'uma abelha, cobertos das macerações que lhes fizeram o
+rossar da vida e da morte: eis o primeiro milagre. Depois, a estes corpos
+alquebrados, prestes a reverter ao pó d'onde surgiram, inflige uma propriedade
+que não tinham: a immortalidade, o mesmo dom que n'um lance de colera, ou, se o
+quereis, n'um lance de misericordia, elle tinha subtrahido a Adão quando o
+expulsou do Eden: eis o segundo milagre. Quando Adão era immortal, era
+invulneravel; e, quando cessou de ser invulneravel, tornou-se mortal. Á dôr
+seguiu-se o morrer.</p>
+
+<p>A resurreição, portanto, nem nos repõe nas condições physicas do homem
+innocente, nem nas condições physicas do homem culpado; é uma resurreição das
+nossas miserias sómente; mas com sobrecarga de novas miserias, infinitamente
+mais horriveis; é, até certo ponto, uma verdadeira creação, e mais maliciosa
+que imaginação alguma ainda concebeu.<span class="pagenum">{<a
+name="pag_127">Pg. 127</a>}</span> Dir-se-ha que Deus reconsidera e varia,
+quando accrescenta aos tormentos espirituaes dos peccadores tormentos corporaes
+de duração infinda, e muda de repente as leis e as propriedades por elle
+prescriptas ás composições da materia desde a origem d'ella. Resuscita carnes
+doentes e corruptas, e, atando com indesatavel nó elementos que tendem a
+separar-se, mantém e perpetúa, contra a ordem natural, aquella podridão
+vivente, que é posta no fogo, não para se depurar, mas para ser conservada qual
+é, sensivel, padecente, ardente e immortal.</p>
+
+<p>Por amor d'este milagre é Deus arvorado em um dos algozes do inferno; por
+que, se os condemnados só a si podem imputar seus males espirituaes, tambem não
+tem a quem imputar os outros senão a Deus. Já não era pouco abandonal-os,
+depois de mortos, á tristeza, ao remorso e a quantas agonias sente a alma que
+perdeu o bem supremo; mas ha ahi peor: irá Deus, no dizer dos theologos,
+procural-os nas trevas do seu abysmo; chamal-os-ha por instantes á luz, não
+para allivial-os, mas sim para vestil-os d'um corpo horrido, chammejante,
+immorredouro, e n'este acto os abandonará definitivamente. Mas não será isso
+ainda abandono, pois que céo, terra e inferno não subsistem senão por um acto
+permanente da divina vontade sempre activa. É força, então, que Deus os tenha
+sempre de sua mão, para obstar que o fogo se apague e os corpos se consumam, a
+fim de que esses desgraçados<span class="pagenum">{<a name="pag_128">Pg.
+128</a>}</span> immortaes contribuam, com a perennidade de seu supplicio, á
+edificação dos predestinados.</p>
+
+<p>Vem a ponto um episodio da historia da Egreja, que, máo grado nosso, nos
+veio á lembrança. Seja-me permittido recordarvo-lo.</p>
+
+<h3>III</h3>
+
+<h4>Os martyres de Nero</h4>
+
+<p>Foi Nero um poderoso imperador. Galardoava esplendidamente os escravos que o
+serviam; e, ao mesmo tempo, incutia-lhes medo salutar com o seu systema de
+tratar inimigos. Queimando Roma a fim de a reedificar mais formosa, assacou o
+crime aos christãos, gente indocil que o não bajulava, e cria em justiça mais
+amavel que a d'elle, e por esta e outras razões desagradava á plebe idólatra. O
+processo foi summario; a sentença de morte, e a execução espantosas, como vai
+vêr-se. Embrearam-os de resina, amarraram-os a postes de ferro, cravados
+distantes entre si nos bellos jardins de Sallustio, onde eram celebrados então
+os jogos nocturnos. Era já noite, quando as portas foram abertas á multidão.
+Eis que sôa o clangor das trombetas, e logo os verdugos infileirados chegaram
+lume ás tunicas dos christãos. Callam-se as trombetas; restrugem de todos os
+lados gritos estridentes. A subitas, arvores, flôres, estatuas, escadozes<span
+class="pagenum">{<a name="pag_129">Pg. 129</a>}</span> marmoreos, tanques,
+repuxos, tudo resplandeceu. Chega Cezar na sua carroça, escoltado de vistosa
+côrte, derramando, por sobre as turbas aterradas e jubilosas do seu sorriso,
+ouro e perolas. Servem-se banquetes. Dançam as filhas do oriente, em quanto os
+tocadores de alaude e cantores confundem a dôce melodia de seus concertos com
+os applausos do povo fiel e os derradeiros arrancos dos christãos que
+vasquejavam em suas tunicas ardentes.</p>
+
+<p>Pouco durou aquelle instructivo espectaculo. N'este mundo, as festas mais
+bisarras são curtas. Felizmente para os martyres, Nero não era Deus. Diz-se,
+porém: eil-os, os confessores de Christo apremiados, á volta de um Deus que dá
+ares de Nero, e como contemplando, á maneira do Cezar, em festa sem fim,
+milhares de creaturas humanas, estorcendo-se e clamando nas lavaredas, tochas
+ullulantes, fachos inextinguiveis, testemunho assás consolativo da
+superioridade do rei do céo sobre os regulos da terra.</p>
+
+<p>Haja paciencia, que ainda falta o mais essencial. Aquellas penas corporaes
+são quasi nada. Repugnantissimas que ellas se nos figurem, são essas, ainda
+assim, a menos repugnante cousa que o inferno encerra.<span class="pagenum">{<a
+name="pag_130">Pg. 130</a>}</span></p>
+
+<h3>IV</h3>
+
+<h4>O inferno espiritual</h4>
+
+<p>Em que meditam esses pobres entes atormentados? Que sentimentos os dominam?
+Que fazem elles, durante as suas inexpremiveis torturas, n'esse tempo
+illimitado em que os segundos são seculos, e os seculos menos que segundos? Os
+theologos tem investigado estas cousas; e, presupposto perpetuo o inferno, não
+ha dous modos de resolver aquellas perguntas. Uma breve reflexão vos dará a
+resposta que os theologos tem dado perfeitamente conforme a todas as
+tradições.</p>
+
+<p>Imaginai um lupanar de embriagados, um hospital de loucos, um covil de
+assassinos, uma caverna de ladrões, um bordel immundo; soltai ao mesmo tempo
+todos os moradores d'esses abominaveis logares, e tereis uma optima pintura do
+inferno espiritual, isto é, o estado mental dos condemnados. Novos e velhos,
+homens e mulheres, embaralhados todos, apostrophando, jurando, blasphemando,
+eternamente ebrios, eternamente vorazes, eternamente lascivos, eternamente
+invejosos e crueis, eternamente impios, eternamente sandeus.</p>
+
+<p>Como as sombras do Tartaro, choram o nosso sol, as sombras, as frescas
+ribeiras, os pampanos dos nossos vinhedos, e todos os prazeres sensuaes de
+que<span class="pagenum">{<a name="pag_131">Pg. 131</a>}</span> ávidamente
+estão sequiosos e privados. Os demonios, que os castigam por seus passados
+prazeres, alimentam n'elles inuteis saudades, e insensatos desejos, dos quaes
+nada póde distrahil-os, nem sequer as dôres corporaes, e agudissimas de que são
+atormentados todos os seus membros. N'isto, de mais a mais, os demonios o que
+fazem é executar as sentenças do soberano juiz&mdash;sentença promulgada no
+céo, pela qual são os reprobos intellectualmente torturados; pois diz Santo
+Agostinho no seu <em>Commentario aos psalmos</em>: faz-se mister que tudo
+quanto deliciou os homens, quando peccaram, se converta em instrumento do
+Senhor quando castiga. O desejo saciado é, pois, punido com o desejo
+insaciavel.</p>
+
+<p>Não imaginem que no inferno haja uma só alma que deplore a sua innocencia
+baptismal, e o céo promettido que ella perdeu, e a companhia dos anjos, e a
+bemaventurança dos eleitos. Os precitos fogem de Deus, não o procuram; viram-no
+no dia do juizo, tem-no presente sempre nos tormentos que soffrem. De certo os
+angustia estar tão longe d'elle; mas é angustia de raiva que não tem nada que
+vêr com as saudades e anceios do amor.</p>
+
+<p>Não pensem que entre as alegrias cuja perda lá nos dilacera o coração,
+estejam os castos prazeres do lar, a pratica dos anciãos, as meiguices das
+creanças, a ternura dos irmãos, a dôce confiança dos amigos, as consolações do
+trabalho e as recompensas do estudo. Verdadeiras alegrias eram aquellas de
+certo<span class="pagenum">{<a name="pag_132">Pg. 132</a>}</span> para os
+peccadores; mas os condemnados nem as desejam, nem d'ellas se lembram;
+abasta-lhes a sciencia que tem; e, pelo que toca ás affeições terrestres,
+mortas são todas: resta-lhes o odio sómente. A mãe que está no inferno, se tem
+um filho no paraizo, abomina-o, e elle a ella; se o tem no inferno, abomina-o
+tambem e é correspondida por igual, e, se o tem vivo no mundo a choral-a, da
+mesma sorte o abomina. Filhos, pae, marido, irmãos e irmãs, amigos, tudo lhe é
+igualmente odioso.</p>
+
+<p>O que os condemnados mais ardentemente desejam é coisa que se beba e se
+coma, e além d'isso as delicias sensuaes e a bruteza do coito carnal. São de
+tal sorte as suas disposições em meio de tantos soffrimentos que, se um só
+d'esses condemnados podesse por um momento voltar á vida, escandalisaria um
+alcouce. Entretanto, confessam a justiça da condemnação que os fere; mas é para
+amaldiçoal-a; e, bem que não sejam atheus, por que tal não podem ser em
+similhante lugar, são mais scelerados, ignobeis, impudentes e perversos do que
+poderia sêl-o uma nação de atheus. Uma nação de atheus, não sendo composta de
+immortaes, temer-se-hia do nada como d'um objecto de medo ou esperança, e
+tiraria d'ahi certas regras de proceder que bastariam a tornal-a menos
+miseravel e brutal; mas no inferno não ha que temer nem que esperar. Ha ahi um
+retouçar-se na dôr, em horrendos sonhos, que exulceram os appetites sem os
+satisfazer. Ahi é tudo obscenidade, egoismo, opprobrio, hediondez,<span
+class="pagenum">{<a name="pag_133">Pg. 133</a>}</span> a humanidade disforme,
+depravadissima, impudentissima, sem piedade, sem consciencia.</p>
+
+<p>A blasphemia é a unica distincção que separa os condemnados das feras
+assanhadas, e que os levanta algum tanto acima dos porcos, dos lobos, dos
+macacos, dos toiros, dos bodes e dos reptis. É logo a blasphemia o unico
+symptoma de razão que se lhes deixa, a sua unica e ultima grandeza! Os
+irracionaes nem quando soffrem blasphemam: a blasphemia é um acto intellectual
+que n'este mundo degrada, e no inferno exalta. Um condemnado que louvasse a
+Deus seria um santo, cujo supplicio cedo ou tarde acabaria; mas, sendo
+interminavel o supplicio d'elle e impossiveis os santos n'este abysmo, o
+condemnado que não blasphemasse seria um bruto infecto.</p>
+
+<p>É portanto de justiça que os façam blasphemar; d'isso inferimos que elles
+tem alma; e d'esse modo a mostram na unica maneira que podem; e, se não podem
+satisfazer a vil concupiscencia que os devora, desforram-se saboreando a pleno
+peito o agro prazer de insultar o Deus que os pune por tão singular
+maneira.<span class="pagenum">{<a name="pag_134">Pg. 134</a>}</span></p>
+
+<h3>V</h3>
+
+<h4>Continuação do inferno espiritual</h4>
+
+<p>Havendo só o inferno, já se vê que n'esta infame companhia os theologos
+misturam, como iguaes, qualquer homem honrado que morra na incredulidade dos
+mysterios. Isto lhe basta para ser condemnado. E com esse vae tambem a viuva
+pobre, que, em vez de ir á egreja no domingo, remenda os fatinhos das suas
+creanças: tambem não é preciso mais para ser condemnada.</p>
+
+<p>Tambem lá vão, á conta de não jejuarem, nossas mães e irmãs, mulheres e
+filhos: pois não é bastante razão para ir ao inferno quem come um bocado de pão
+com certo prazer?</p>
+
+<p>Este inferno, povoado de patifes incorrigiveis, é uma escóla: ninguem ahi se
+corrige, mas aprende cada qual a conhecer-se, e já não é pouco. Quem quer que
+ahi desce, logo que ahi está, é igual aos devassos, aos parricidas e aos
+traidores. Quem ahi se vê tão diverso do que se imaginava n'este mundo,
+aterra-se de si proprio. O bom que cada qual tinha em si quando vivia, com a
+vida se desvaneceu; e o mal que era apenas uma imperceptivel mancha, lavrou
+como a gangrena, de tal arte que alma e corpo é tudo uma chaga.<span
+class="pagenum">{<a name="pag_135">Pg. 135</a>}</span></p>
+
+<p>Que o homem se perdesse por um pomo ou por um imperio, por um beijo ou por
+um homicidio, o resultado é o mesmo: ninguem é condemnado com attenuantes. Não
+procureis no inferno um companheiro menos corrompido do que os outros, que se
+respeite ou que seja respeitavel por qualquer motivo; é coisa que lá não ha;
+ninguem conserva ahi vislumbre das qualidades que na terra se respeitam. Ou
+vades para a direita ou para a esquerda, para cima ou para baixo, girai em
+todas as direcções d'esse abysmo, que não achareis germen, relampago, sombra de
+virtude. Aquelles sabios cujas vigilias opulentaram os homens, e não deixaram
+dinheiro com que os enterrassem; aquelles philosophos estoicos, legisladores,
+magistrados, guerreiros illustres, e soldados obscuros mortos nas fronteiras;
+aquelles rigidos protestantes que psalmodeavam nas lavaredas, aquellas esposas
+extremosas, e as noivas cuja sepultura é juncada de rosas brancas&mdash;todos
+esses que não morreram em graça&mdash;de qualquer modo que pensassem e
+procedessem n'este mundo, os seus costumes e pensamentos são forçosamente os do
+outro. Os que lhe sabem a historia, e os amaram e lamentam, não hão de
+reconhecel-os. Eil-os preza de todos os vicios, paixões, e desejos dos
+condemnados. Grandes homens, sabios heroes, martyres, mães veneradas, donzellas
+castas, artistas sobrios e modestos, eil-os em côro de impios, fallando como
+ebrios, cynicos e assassinos. Abandonou-os Deus todos a um tempo, a um tempo os
+pune todos; o<span class="pagenum">{<a name="pag_136">Pg. 136</a>}</span> mesmo
+ferro lhes abrasa os corpos e a mesma febre lhes alanceia as almas.</p>
+
+<p>Ahi está o inferno espiritual.</p>
+
+<h3>VI</h3>
+
+<h4>Da immortalidade das penas espirituais do inferno.</h4>
+
+<p>É pois o inferno um máo logar, trescalando ao vicio e ao crime. Os demonios,
+guardas d'este máo logar, e professos na corrupção, usam do imperio que sobre
+os hospedes lhes é permittido, corrompendo-os incessantemente e sem lucta nem
+obstaculo.</p>
+
+<p>É propriedade d'elles a alma dos condemnados. Deus, entregando-lh'a para que
+elles façam d'ella o que poderem, não lh'a disputa e bastantemente sabe o que
+elles farão.</p>
+
+<p>Se as adições espirituaes dos condemnados fossem sómente crueis, seria isso
+bastante para nos auctorisar a duvidar da eternidade d'ellas; mas, além de
+crueis, impuras, é um direito, é até um dever negal-as. É certo que a natureza
+algumas vezes inflige ao homem esses impuros soffrimentos; mas são
+transitorios: uns morrem, alguns curam-se, e outros endoidecem: é outro genero
+de morte. Mas no inferno os furores sensuaes, os appetites phreneticos não
+matam nem remedeiam, não são venenos nem balsamos, são penas sem fructo e sem
+fim.<span class="pagenum">{<a name="pag_137">Pg. 137</a>}</span> «Que
+condemnação, diz S. Bernardo, a da vontade amarrada á precisão de crêr o
+<em>mal</em> e não crêr o <em>bem</em>; por tal modo que de qualquer maneira
+que se mova, é sempre <em>criminosa</em> e miseravelmente! Não ha de gozar
+jámais os prazeres <em>culpaveis</em> que deseja; e as <em>privações</em> que
+ella não quer é as que ella ha de ter por toda a eternidade.»</p>
+
+<p>Crêr o mal e não crêr o bem, é logo o resultado d'aquella condemnação. Por
+sentença do juiz, e de que juiz! é que lá eternamente se anceiam impudicos
+prazeres, ao mesmo passo que o espirito soffre a privação dos sentidos.
+Montesquieu, que, a fallar verdade, não era padre da Igreja nem monge, formava
+outra idêa da natureza moral das penas destinadas a servir de sancção aos
+accordãos da justiça da terra propriamente. Lêde no <em>Espirito das leis</em>
+certo capitulo intitulado: <em>Da violação do pudôr, no castigo dos
+crimes</em>. Assim começa o capitulo: «Ha regras de pudôr observadas em quasi
+todas as nações do mundo: absurdo seria violal-as no castigo dos crimes, o qual
+deve sempre ter em vista o restabelecimento da ordem.»</p>
+
+<p>Ainda que Montesquieu m'o não dissesse, a cousa é evidente por si. Satrapas
+em delirio, Cezares devassos, tyrannos corruptissimos, póde ser que alguma vez
+enviassem uma rapariga desobediente mas honesta a um bordel, e que, ajuntando
+calculadamente a indecencia ao castigo, convertessem a excitação dos sentidos
+em supplicio legal, deshonrando a lei para deshonrar o inimigo. Em todos os
+paizes civilisados castiga-se<span class="pagenum">{<a name="pag_138">Pg.
+138</a>}</span> para restabelecer a ordem material e a moral quanto póde
+ser.</p>
+
+<p>Cuida-se em esquivar o culpado ás seducções que o perderam; impedem-no de
+ser nocivo a si e aos outros; privam-no de satisfazer as paixões, não com o
+intento de lh'as irritar, mas de enfraquecel-as; sequestram-no da companhia das
+pessoas de bem, não para que as odeie, mas para que as chore; deseja-se que a
+sua maior afllicção consista em havel-as offendido, e que o arrependimento o
+rehabilite para tornar ao seio d'ellas; protegem-no contra a injuria;
+enviam-lhe a visita de caridade que o instrue, consola e ás vezes restaura.
+Estas conversões são raras certamente; quasi todas as nossas prisões são
+infectas; ahi a soledade corrompe; e a promiscuidade é contagiosa. Sabem-no os
+legisladores, e os juizes tambem. Não se diz, porém, que assim o querem juizes
+e legisladores? E, na verdade, querem-no assim!? Que se nos depara ahi senão o
+stygma da imperfeição das nossas obras, e a pequenez de recursos em comparação
+dos desejos? Mas nem por isso nos sentimos descrer dos intimos anhelos que nos
+incitam a buscar nas penas meio de restaurar a ordem perturbada, onde quer que
+seja, e até na alma do criminoso. O que a mesma imperfeição nos aconselha é que
+prosigam sem descanso no intento, que será completamente realisado no mundo em
+que a justiça é perfeita, e o poder do principe igual á sua justiça.</p>
+
+<p>Não nos mostrem, pois, no inferno, uma galé immensa,<span
+class="pagenum">{<a name="pag_139">Pg. 139</a>}</span> repleta de impudentes
+scelerados, porque vos será perguntado se Deus não póde, mais que os homens,
+vencer corações rebeldes, ou se mais lhe praz exercitar sua omnipotencia a
+perpetuar um feio espectaculo que nós, philosophos e christãos, bem quizeramos
+que fosse banido.</p>
+
+<p>Esta concepção do inferno, tão ignobil quanto atroz, data visivelmente de
+tempos barbaros, em que a vida physica afogava a moral, e a justiça não
+transparecia aos olhos propriamente do sabio senão atravez da nuvem sanguinosa
+da vingança.</p>
+
+<p>Punir eternamente o vicio com o vicio, a immoralidade com a immoralidade!
+que projecto! e, na execução d'elle, que prodigio! Pois não basta justiçar o
+homem no corpo? Será preciso que o aváro, durante a tortura, arda de saudades
+dos thesouros que tantos cuidados lhe custaram e tantas dôres grangearam? Ha de
+o comilão, deitado sobre grelhas em brasa estar a pensar sempre na cosinha e na
+garrafeira? O voluptuoso, comido de chammas e de bichos, ha de estar sempre a
+lagrimar pelas parceiras? Acham isto possivel? Sendo assim, no inferno sabe-se
+melhor do que na terra o que valem riquezas, prazeres, divisas, veneras,
+medalhas, sceptro e arminhos. Ahi, ser-se-ha, de facto, blasphemo, e
+intencionalmente devasso, adultero, usurario, despota, valido, mas tudo isto
+sobre brasas? Havemos de confessar que o local não é dos melhores para taes
+desejos, e que só por milagre, em tal sitio e por muito tempo, possa haver
+similhantes<span class="pagenum">{<a name="pag_140">Pg. 140</a>}</span>
+delirios. Ora ahi vedes que se attribue a Deus o milagre de fixar a alma dos
+condemnados sobre impuras imagens, immobilisando-as em appetites que o
+offendem. É o peccado eternisado, e eternisado por Deus. Não cabe a
+responsabilidade d'isso aos condemnados. Não os accuseis; lamentai-os; que
+esses infelizes não são viciosos de vontade propria: é a lei que os obriga.</p>
+
+<h3>VII</h3>
+
+<h4>Ultimas considerações ácerca do inferno theologico</h4>
+
+<p>Affirmam os theologos que a liberdade é um mero accidente da nossa vida
+mortal, e que, além da campa, se perde, tomando-nol-a Deus que nol-a dera, e
+quebrando entre nossas mãos, no momento da morte, aquelle instrumento de nossas
+provações. Os justos são esbulhados d'ella para permanecerem justos, e os máos
+tambem para ficarem máos. Diz-se que Satan prevaricou por que era livre; e,
+depois da queda de Satan, no céo não houve mais creaturas livres, nem tão pouco
+no inferno, onde o proprio archanjo está acorrentado ao peccado.</p>
+
+<p>Não são, por isso, livres os condemnados. Pensam, amam, desejam; mas não
+lhes é concedido meditar, amar e querer senão maldades. Soffrem e sabem o
+porquê; mas não podem aproveitar-se do que sabem e do que soffrem. Conhecem os
+seus crimes;<span class="pagenum">{<a name="pag_141">Pg. 141</a>}</span> porém,
+não se arrependem, porque o arrependimento é um bem, e o bem não podem elles
+sentil-o. Se peccam sempre, é que a tanto são obrigados por sentença. Conservam
+razão e sentidos; mas consciencia não a tem, não discernem entre justo e
+injusto; não são senhores de seus actos; soffrem avassalados pelos sentidos,
+apezar da razão.</p>
+
+<p>Esta escravidão absoluta, irremediavel e eterna, explica superabundantemente
+a immoralidade e o odioso de suas penas. Pois se de todo em todo lhes é
+impossivel a conversão, inutil e deshumano é o castigo corporal que os
+tortura.</p>
+
+<p>Se não fosse a perpetuidade d'esta escravidão, seriam intelligiveis a fome,
+a sede, o lago de sulphur, a cama d'espinhos, o cavalete, a roda, os tractos a
+fogo e ferro. Vá d'exemplo: eis aqui um criminoso impenitente, que ha folgado
+com os soffrimentos alheios e calcado todas as leis da terra. Morre. Acabou-se
+tudo para elle? Não. Que vá, n'outro mundo, saber á sua custa o que é dôr, e
+que piedade merecem os que soffrem. Deus é bastante poderoso para o castigar a
+ponto de o fazer bradar por misericordia; é justo que o não poupe; exige-o a
+humanidade, com a condição de que esse peccador castigado seja ainda homem,
+isto é, um ser não só intelligente e sensivel, mas livre, e, por consequencia,
+susceptivel de emenda. Mas, se antes de o ferir, lhe tira o recurso do
+arrependimento; se, em vez do homem, o que temos á vista é um mero bruto
+sobrenatural, monstruoso, ignobil, a quem a<span class="pagenum">{<a
+name="pag_142">Pg. 142</a>}</span> dôr nada ensina, e a razão nada presta, máo
+por necessidade, torturado, sangrento, nojoso, gemente... ah! quem falla ahi de
+justiça? desfaçam por piedade esse monstro; basta de padecer; logo que lhe
+tirastes a liberdade, restituida lhe foi a innocencia.</p>
+
+<p>Quando uma creança brinca á beira de um poço, e cahe apezar dos avisos da
+mãe, a pobre mãe não respira em quanto a não salva; corre logo sem attender á
+desobediencia, porque a vê mais carecida do soccorro quanto maior é o perigo;
+para castigo lhe basta a quéda. Que diriam os theologos, se aquella mãe, em vez
+de tirar do poço o filho, lhe fosse quebrar braços e pernas, e cobril-o de
+pedras? O que elles theologos imaginam que Deus faz, é aquillo mesmo.
+Aviltam-no quanto podem.<span class="pagenum">{<a name="pag_143">Pg.
+143</a>}</span></p>
+
+<h2>CAPITULO QUINTO</h2>
+
+<h4>SURSUM CORDA</h4>
+
+<h3>I</h3>
+
+<p>Fujamos d'este lamaçal. Lavemos pés, mãos, cabeça e vestidos. Cauterisemos
+os beiços com um carvão acceso. Demonios, chammas impuras, espiritos
+malfeitores, odios, vinganças, carnificinas, ferozes alegrias, estupidos
+terrores, sonhos do homem primitivo adormecido em antro á ourela de lagôas
+turbidas, com o estomago regorgitado de carnes sanguentas, com a mão sobre a
+clava, e a alma ainda fremente das paixões do dia; mystagogia antiga; sapiencia
+idolatra; delirios renovados dos barbaros orientaes e occidentaes; confuso
+acervo de subtilezas methaphysicas e torpes fabulas e aspirações, sublimes e
+baixos erros, inferno velho e inferno novo, palacios oscillantes edificados com
+ruinas, Naraka, Amenthi, Tartaro e Géhenna,<span class="pagenum">{<a
+name="pag_144">Pg. 144</a>}</span> sumi-vos! O tempo avança; é já dia; a
+calhandra já cantou, vamos á serra vêr o repontar do sol. Acima, ainda mais
+para o alto, subamos ás espigas da montanha, onde o ar é mais sadio e o
+horisonte mais amplo. Azas, azas! vamos admirar o sol que regenera a vida e a
+fecundidade da terra, e a todo o ser a sua vera fórma, e aos homens, que
+desperta do somno fundo, a consciencia de si mesmos e o sentimento das
+realidades que o rodeam. Mais ao alto! Mais ainda! azas, azas, ó minha alma!
+Voemos até á origem da luz, de que este pallido sol é apenas sombra!</p>
+
+<h3>II</h3>
+
+<p>Deus é uno, com infinita variedade de attributos, cuja manifestação lhe não
+lesa a unidade. Conhecemol-o n'este mundo por fé unicamente, porque o não vemos
+qual é, e não temos d'elle, em nossos corações, senão uma imagem imperfeita, e,
+para assim dizer, mutilada. Por tanto, aquelle sagrado nome exprime o que
+sabemos realmente, mas tambem o que não sabemos, e o que saberemos de Deus, no
+dia derradeiro. Encerra Deus todas as perfeições, cujo complexo, de que apenas
+concebemos parte minima, é o mysterio que adoramos atravez d'um véo, que a
+morte levantará, assim para santos como para pecadores.</p>
+
+<p>Sem duvida que os mais obdurados peccadores hão<span class="pagenum">{<a
+name="pag_145">Pg. 145</a>}</span> de vêr Deus; e hão de vêr não sómente alguns
+attributos seus, mas todos; não hão de vêr sómente a sua eternidade, por quanto
+a eternidade está em Deus, mas a eternidade não é Deus; não hão de vêr sómente
+a sua justiça e infinita omnipotencia, por quanto a justiça infinita e
+omnipotencia são em Deus, mas não constituem toda a sua essencia; não hão de
+vêr sómente a sua justiça, por quanto a justiça está em Deus; mas só ou unida
+ao poder eterno a justiça não é Deus: senão seriam tantos os deuses quantos são
+os attributos e virtudes distinctas na unidade divina.</p>
+
+<p>Quando os peccadores virem Deus, então hão de vêr quanto ha em Deus, sua
+bondade, misericordia e justiça; vel-o-hão a toda a luz, d'um só lance de
+olhos, por que tudo o que a nossa lingua separa é inseparavel em Deus; e, se
+elle retrahisse dos peccadores um só resplendor de sua face, ficaria sendo o
+Deus abscondito que a nossa fé adora, e não o Deus visivel perante o qual toda
+a incredulidade se dissipa. Pelo que, ao mesmo tempo que sua justiça encher de
+medo as almas, a sua bondade as consolará mediante a confiança e
+arrependimento.</p>
+
+<h3>III</h3>
+
+<p>Grandes e pequenos, doutos e ignorantes, todos os peccadores serão
+castigados, cada qual á medida de suas culpas. Nenhuma será esquecida; mas, por
+isso mesmo, todas as virtudes serão lembradas. Ao<span class="pagenum">{<a
+name="pag_146">Pg. 146</a>}</span> pessimo peccador que em sua vida teve um bom
+sentimento, um bom desejo sequer, isto lhe será como torcida ainda fumegante a
+qual o sopro de Deus accenderá em flamma. O pouquinho bem que praticou lhe será
+contado, até ao ceitil, até ao pucaro de agua dado ao caminheiro, até ao grão
+de painço dado á avezinha, até ao movimento do dedo mendinho em que a creança
+vacillante se amparou, até ao olhar compadecido pôsto na face do attribulado.
+Estas são as unicas acções que elle quereria recomeçar e multiplicar n'esta
+vida, se lhe fosse dado aqui voltar, por que é esse o sagrado laço que o une
+ainda, posto que de longe, á assemblêa dos justos; e o mal que fez, esse ainda
+subsiste, mas só na dôr que sente de havêl-o feito, e no arrependimento com que
+o recorda. Prazeres torpes, revezados de inquietações amargas não os cubiça.
+Deplora o ceo, e não a terra. Sómente saudades do ceo pódem enternecer a
+lagrimas entes racionaes, desempeçados das trevas d'este mundo.</p>
+
+<h3>IV</h3>
+
+<p>Os mortos que Deus pune viram a Deus, e, a um tempo, se sentiram attrahidos
+para elle, e repulsos e como repuxados para longe pelo iman de seus peccados.
+Abriu-se o abysmo e cahiram, mas com a vista sempre fita n'aquella ineffavel
+luz que lhe foge, e os braços estendidos para o Deus misericordioso que os<span
+class="pagenum">{<a name="pag_147">Pg. 147</a>}</span> exila temporariamente
+por causa de suas offensas. Cahem levando comsigo a indelevel memoria d'aquella
+formosura e sabedoria infinitas que só instantaneamente viram, e ao
+baquearem-se, exclamam: «Havei piedade de mim!»</p>
+
+<p>Os mortos que Deus castiga viram Deus; e para logo o amaram, que é
+impossivel vêl-o sem o amar. Viram-o e esqueceram a terra; viram-o, e arderam
+em sede inextinguivel de tornar a vêl-o e possuil-o. Verdadeiro castigo!
+Expiação dolorosa, mas efficaz! Ardentes lagrimas, mas salutares, que o amor
+derrama, e o amor enxugará.</p>
+
+<h3>V</h3>
+
+<p>Blasphemar que é? É negar Deus ou algum dos seus divinos attributos ou
+alguma das eternas e infinitas propriedades do seu ser.</p>
+
+<p>Negar-lhe a existencia é blasphemia; negar-lhe o poder é blasphemia;
+negar-lhe a immensidade, a eternidade ou a sabedoria é blasphemia.</p>
+
+<p>A blasphemia é somente praticavel n'estas regiões de duvida e mysterio em
+que Deus escassamente se deixa entrever atravez d'um veo. Mas o veo cahiu na
+presença dos mortos.</p>
+
+<p>Os cegos viram; os paralyticos andaram; os mudos fallaram. Confessam todos
+que Deus existe, que é eterno e poderoso e justo. Negar-lhe a justiça como
+poderiam elles, se sentem até ao amago de seu ser a<span class="pagenum">{<a
+name="pag_148">Pg. 148</a>}</span> claridade ardente e purificante? E, se não
+podem negal-a, como ousariam affrontal-a? Mas, se querem que elles blasphemem,
+digam-nos qual das perfeições divinas elles negarão?</p>
+
+<p>Ai! aos theologos aprouve que os condemnados negassem a que mais valiosa
+lhes seria. Os condemnados negarão a bondade de Deus; injuriando-o de máo, de
+cruel, de implacavel, de escarnecedor de suas agonias, de vingativo, de
+carrasco, e não juiz. Isto, com effeito, é que é blasphemar.</p>
+
+<p>Mas estes impios discursos não os vociferam os mortos castigados por Deus;
+sois vós, scribas e doutores, que lh'os inventastes; e o que a isso vos levou
+foi o imaginardes um inferno perpetuo, e, pelo tanto, o effeito que o castigo
+esteril devia produzir sobre soffredores immortaes. Entrai mentalmente n'essa
+catacumba infecta, tomai por instantes o logar das victimas, e ousai fallar em
+bondade de Deus. Não acreditareis em tal. Máo grado vosso, a blasphemia vos
+fugirá da bôcca.</p>
+
+<p>Os primeiros blasphemadores são, logo, os inventores d'aquelle imaginario
+supplicio. Á maneira dos idolatras, fraccionaram Deus, extremando entre justiça
+e bondade&mdash;attributos indistintos. De modo que essas presumidas
+blasphemias do inferno são sómente um ecco das que esbravejaram nas almas
+d'elles, ao contemplarem a sua obra.<span class="pagenum">{<a
+name="pag_149">Pg. 149</a>}</span></p>
+
+<h3>VI</h3>
+
+<p>Deus é justiça e misericordia conjuncta e indivisivelmente. Nos actos da sua
+justiça ha sempre um fundamento de misericordia; e, nos actos em que sómente a
+sua misericordia realça, ha um fundamento de justiça. É offendel-o dizer que é
+misericordioso sem justiça para uns, e justiceiro sem misericordia para outros.
+Isto é falso quanto ao tempo e quanto á eternidade. É justo Deus com os justos
+coroando-os, por que se a salvação d'estes fosse gratuita e mera complacencia
+particular, favor e não recompensa, o castigo dos peccadores seria iniquo. Na
+gloria, pois, dos bemaventurados reina tanta justiça quanta misericordia.</p>
+
+<p>Mas, se Deus, no outro mundo, é justo para os eleitos, por que não ha de ser
+misericordioso com os peccadores?</p>
+
+<p>Mostrais-me a sua misericordia no ceo; e eu tambem lá vejo a sua justiça.</p>
+
+<p>Mostrais-me a sua justiça no inferno, e eu tambem lá procuro a sua
+misericordia.</p>
+
+<h3>VII</h3>
+
+<p>A condemnação do vosso inferno está na necessidade logica e invisivel que lá
+obriga a offender e amaldiçoar Deus. É isso possivel? Deus quer ser
+injuriado<span class="pagenum">{<a name="pag_150">Pg. 150</a>}</span>
+eternamente? Não quererá antes ser adorado e abençoado por todas as creaturas?
+Adoram-no os santos em jubilo, e os mortos, que pune, adoram-no em penas, por
+que sabem que ellas hão de ter fim.</p>
+
+<p>Seja-me testemunha o Evangelho.<span class="pagenum">{<a name="pag_151">Pg.
+151</a>}</span></p>
+
+<h2>CAPITULO SEXTO</h2>
+
+<h4>A parabola do rico avarento</h4>
+
+<p style="text-align: right;"><em><small>Lux in tenebris.</small></em></p>
+
+<p>Lêde no Evangelho de S. Lucas, capitulo XVI, a parabola do rico avarento.</p>
+
+<p>Do fundo do inferno, o rico avarento levanta a voz para seu pae Abrahão:
+«Compadece-te de mim, e manda cá a Lazaro, para que molhe em agua a ponta do
+seu dedo, a fim de me refrescar a lingua.» Lazaro não se bole, em quanto o
+patriarcha lembra ao padecente a pena de talião; cabe agora ao opulento
+mendigar, e ao pobre fartar-se.</p>
+
+<p>O rico avarento baixou os olhos, e não pediu mais agua: resignou-se, não
+murmurou, não blasphemou, renunciou a gottinha d'agua como renunciára as vestes
+purpureas e as regalias da meza. Todavia, ainda outra vez se dirigiu ao pae
+Abrahão: «Eu te rogo<span class="pagenum">{<a name="pag_152">Pg.
+152</a>}</span> que o mandes a casa de meu pae, pois que tenho cinco irmãos,
+para que lhes dê testemunho, não succeda virem tambem elles parar a este logar
+de tormento.» E Abrahão lhe disse: «Elles lá tem Moysés e os prophetas:
+ouçam-os.» Ainda assim, o padecente insiste: «Mas, se algum morto lá fôr, elles
+farão penitencia.»</p>
+
+<p>Ahi está mudada não só a fortuna do rico avarento, mas o coração tambem.
+Eil-o humilde, supplicante, submisso. Recebe as recusas sem irar-se; e, em meio
+de suas dôres, lembra-se enternecido de cinco irmãos que deixou na terra. Não
+lhes inveja os haveres; pelo contrario, quer incutir-lhes caridade, e só por
+amor d'elles importuna o seu ascendente Abrahão. Porém, Lazaro e Abrahão
+sahem-lhe tão rijos como elle tinha sido para com as dôres alheias. O tal
+Lazaro, cujas chagas os cães lambiam, tornou-se menos piedoso com o proximo do
+que haviam sido com elle os cães. Refocila-se nas delicias do ceo, como o rico
+avarento se refocilára nas da terra, e esqueceu o que era penar, e o que se
+deve a quem pede. No tocante ao patriarcha, esse, em vez de consolar o neto
+supplicante, desespera-o; e, a segunda vez que o desgraçado ousa pedir-lhe um
+milagre de bondade, não para si, mas para os irmãos, que lhe responde o outro?
+Responde seccamente que os irmãos lá tem as escripturas tão dignas de credito
+como os mortos, pelo menos.</p>
+
+<p>Admiravel, mas, para theologos, incomprehensivel parabola! Eis aqui o
+inferno converso, repêso, enternecido, o rico aváro deplorativo e caridoso, e
+por cima,<span class="pagenum">{<a name="pag_153">Pg. 153</a>}</span> um ceo de
+bronze, uns santos descaroados. Este não é o inferno judaico, é christão; mas o
+paraiso esse é que é judaico, e não christão.<span class="pagenum">{<a
+name="pag_154">Pg. 154</a>}</span></p>
+
+<h2>CAPITULO SETIMO</h2>
+
+<h4>Terra, inferno, ceo.</h4>
+
+<h4><small>DESVIRTUAR O INFERNO É DESVIRTUAR A TERRA E O CEO. NÃO É OUTRO O
+SENTIDO LATENTE DA PARABOLA DE LAZARO</small></h4>
+
+<h3>I</h3>
+
+<h4>TERRA</h4>
+
+<p>As affeições d'esta vida continuam na outra. Mesmamente no ceo, a Virgem é
+Mãe de Christo. Todos esperam reconhecer, além-tumulo, as pessoas que na terra
+estremeceram. Reconhecer-se-hão os esposos, pois que hão de reconhecer os
+filhos. Esta esperança é a maior consolação d'esta vida, e uma das forças que
+nos attrahem para o ceo. Mas o perpetuo inferno nos escurece aquella esperança
+e nos esfria os mais santos affectos.</p>
+
+<p>Eis um pae de familia que morre subitamente ou de violenta morte, ou na sua
+cama, sem padre, sem sacramentos, ao cabo de uma vida devota. Imaginem a
+incerteza da viuva e dos orphãos quanto á salvação d'esse ente que os amou,
+educou, nutriu, instruiu e<span class="pagenum">{<a name="pag_155">Pg.
+155</a>}</span> consolou. Se ha coisa verdadeira no ensino dos theologos,
+podemos apostar mil contra um que este homem cahiu no inferno para sempre.</p>
+
+<p>Que afflicção para acrescentar ás angustias d'aquella familia! Se elles
+tivessem a certeza de amar um peccador penitente, a quem rogos e boas obras
+podessem levar refrigerio, que supplicas, que piedosas obras não fariam! Mas
+amar um condemnado! suffragar um condemnado! amarrarem-se á memoria de um
+condemnado! guardar-lhe as reliquias, as cartas, o retrato! Choral-o, suspirar
+por ir vêl-o! De repente, morrer para odial-o! Saber, e pensar estas coisas!
+Seja embora uma duvida; é duvida que gela a oração no peito; quebra o animo
+para o bem-proceder; espanca a piedade do lar; e aconselha o estontecer-se e
+esquecer-se um homem&mdash;coisa tão natural ao mundano egoismo&mdash;; ou
+então, o outro egoismo feroz e sombrio do frade que immola á sua propria
+salvação todos os affectos humanos.</p>
+
+<h3>II</h3>
+
+<h4>Ceo</h4>
+
+<p>Haverá no ceo familias que se encontrem; mas tambem no ceo haverá orphãos
+eternos, e viuvas eternas, e mães eternamente sem filhos. Se isto é motivo para
+amarguras, ahi está o agro das doçuras do ceo; mas, se é motivo para alegrias,
+que horriveis alegrias!<span class="pagenum">{<a name="pag_156">Pg.
+156</a>}</span></p>
+
+<p>O rico avarento do Evangelho seria em verdade melhor do que os eleitos. Sem
+duvida, mais caridade haveria no inferno que no ceo.<span class="pagenum">{<a
+name="pag_157">Pg. 157</a>}</span></p>
+
+<h2>CAPITULO OITAVO</h2>
+
+<h4>HISTORIA DE UM SONHO</h4>
+
+<h3>I</h3>
+
+<p>Ganhou um medico, á cabeceira de um pobre, doença mortal. Chegou tão
+depressa a morte que não lhe deu tempo de chamar o padre. Chegou o padre,
+quando elle era já morto. Circumvagou os olhos pelos assistentes, disse que o
+chamaram tarde, e sahiu dando aos hombros.</p>
+
+<p>As poucas palavras e o gesto impressionaram vivamente a viuva, que se quedou
+a pensar n'aquillo todo dia.</p>
+
+<h3>II</h3>
+
+<p>E eu velava á sombra do funebre leito. A viuva estava ali orando, soluçando,
+e sempre preoccupada,<span class="pagenum">{<a name="pag_158">Pg.
+158</a>}</span> a pezar seu, com as palavras do padre. A intervallos, olhava
+ella para mim chorando, invocava-me como testemunha da virtude de seu marido, e
+dizia-me com anciedade: «Não se salvará elle?»&mdash;Não duvide,
+senhora&mdash;dizia-lhe eu; porém tristemente eu via que as minhas respostas a
+não socegavam.</p>
+
+<p>Ao cahir da tarde, como ella desde a vespera não comesse nem dormisse, fiz
+que seu filhinho lhe offerecesse algum alimento. Debalde se esforçou por
+engulir. Então pediu um livro de orações. Abriu ao acaso um que lhe deram,
+esperando achar ali algum alivio, que não achou; pelo contrario, com a leitura
+cresceu-lhe a inquietação. Vi-lhe então no rosto uns tregeitos involuntarios, e
+um crispar de mãos, e por fim um grito e logo cahiu desmaiada nos braços de
+quem a levou d'ali.</p>
+
+<h3>III</h3>
+
+<p>Apanhei o livro cahido de suas mãos. Denominava-se <em>Quotidiano do
+christão</em>, e facilmente conheci nas paginas avincadas as passagens que ella
+tinha lido: eram os <em>Pensamentos christãos para todos os dias do mez</em>,
+pelo padre Bouhours, da companhia de Jesus. Tinha ella desmaiado quando lia no
+<em>quinto dia</em> uma meditação ácerca do <em>Juizo final</em>. Acontece
+sempre que o ferido ao cahir bate sempre na chaga. Alguns trechos do capitulo,
+cujas margens estavam laceradas, diziam assim: «Quão terrivel é o dia da ira do
+Senhor!<span class="pagenum">{<a name="pag_159">Pg. 159</a>}</span> Os justos
+escassamente serão havidos como taes: que será dos peccadores? Que sentença
+póde esperar o peccador impenitente de um Deus inexoravel? Oh! que
+terribilissima sentença! <em>Ide, malditos, arder em fogo eterno!</em> Ai! onde
+irão, Senhor, esses desgraçados que amaldiçoaes? Para que ponto do mundo
+quereis que se afastem, distanciando-se de vós? Onde é que está paragem tão
+funesta?</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align: center;">«SEXTO DIA</p>
+
+<p style="text-align: center;"><small>«O INFERNO</small></p>
+
+<p>«I. Que horror ganhariamos ao inferno, se podessemos ouvir os lamentaveis
+gritos dos condemnados! Suspiram, gemem, urram como bestas-feras em meio de
+lavaredas. Accusam-se de seus peccados, chorando-se, detestando-os; mas
+<small>É TARDE</small>. <em>O chorar não lhes faz senão augmentar o ardor do
+fogo que os queima sem consumil-os.</em> Penitencia dos condemnados! quanto és
+rigorosa, e <em>inutil</em>!</p>
+
+<p>«II. Não vêr Deus nunca, arder em fogo de que o nosso é apenas sombra;
+soffrer ao mesmo tempo quantos males ha ahi, <em>sem allivio, sem repouso;
+sempre com os olhos postos nos demonios, sempre com o coração raivoso e
+desesperado</em>, que vida!</p>
+
+<p>«III. Esses desgraçados <em>enfuriam-se</em> por terem desprezado tantas
+occasiões de salvarem-se. <em>O recordarem os prazeres passados é-lhes um de
+seus mais penosos tormentos</em>; mas o tormento superior a todos<span
+class="pagenum">{<a name="pag_160">Pg. 160</a>}</span> é a lembrança de terem,
+por sua culpa, perdido Deus.»<sup><a name="L2808" id="L2808"
+href="#L2806">[6]</a></sup></p>
+
+<p>Pobre mulher!&mdash;disse eu entre mim lendo aquelle capitulo&mdash;vêr seu
+marido, tão bom homem, alcunhado de besta-fera! E topar em livro de piedade,
+onde procurava consolar-se, esta cruel sentença que de manhã ouvira da bôcca
+d'um sacerdote: <small>É MUITO TARDE</small>!... Quiz fechar o livro; mas o
+titulo do <em>Dia</em> seguinte, impresso em versaletes, susteve-me.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align: center;">«SETIMO DIA</p>
+
+<p style="text-align: center;"><small>«DA ETERNIDADE DAS PENAS DO
+INFERNO</small></p>
+
+<p>«I. Poderá ir mais adiante a cólera de Deus <em>que castiga prazeres que tão
+pouco duram com supplicios sem fim</em>? Que desgraça não é isto! Não bastará
+que os males d'um condemnado sejam extremos? É forçoso que sejam eternos? Uma
+picada de alfinete é mal bem leve; todavia, se este mal durasse sempre,
+tornar-se-hia insupportavel. Ora, os tormentos do inferno que serão?<span
+class="pagenum">{<a name="pag_161">Pg. 161</a>}</span></p>
+
+<p>«II. Ó eternidade! <em>Quando um condemnado podesse derramar lagrimas
+bastantes para fazerem quantos mares e rios tem o mundo, ainda que vertesse uma
+só lagrima em cada seculo, elle não estaria mais adiantado, depois de tantos
+milhões d'annos, como quando começou a penar.</em></p>
+
+<p>«<em>Ser-lhe-ha forçoso recomeçar como se não tivesse nada padecido; e,
+quando tiver recomeçado tantas vezes quantos são os grãos de areia nas praias,
+os atomos no ar e as folhas nos bosques, nada d'isso lhe será contado.</em></p>
+
+<p>«III. Não só por toda a eternidade os condemnados soffrerão; <em>mas, a cada
+instante, soffrem a eternidade inteira</em>. Está-lhes sempre á vista a
+eternidade; em todas as dôres se lhes côa a eternidade. <em>As penas infinitas
+continuamente lhes estão no espirito.</em> Cruel idêa! deploravel situação!
+<em>Arder por uma eternidade! chorar eternamente! Raivar sem fim!</em>»</p>
+
+<p>Esta meditação corresponde ao <em>Setimo dia</em>, que é<span
+class="pagenum">{<a name="pag_162">Pg. 162</a>}</span> aquelle em que o Senhor
+entrou em descanso para admirar suas obras.</p>
+
+<div class="rodape">
+<p><sup><a name="L2806" id="L2806" href="#L2808">[6]</a></sup> O padre Bouhours
+foi um solerte engenho, bastante mundanal, que distillava a frio no seu
+gabinete aquella rhetorica medonha, cuja leitura, se lhe dessem valor serio,
+seria capaz de fazer abortar uma mulher gravida. Acintemente abastarda elle
+n'este livro a verdadeira doutrina ácerca do inferno, doutrina em que se
+aprende que os condemnados amam o peccado, pois que amar o peccado é odiar
+Deus; conhecendo, porém, a desmoralisação de tal pena, o padre Bouhours presume
+que os condemnados abominam o peccado, mas que os seus olhos se abriram <em>já
+tarde</em>, por maneira que substitue á pena immoral, mas apparentemente justa,
+uma pena de apparencia moral, mas para isso mesmo horrivelmente iniqua, por que
+detestar o peccado é amar o que ha mais avêsso ao peccado, isto é, a virtude,
+ou, mais ao claro, Deus. Segue-se que Deus deixaria infernados os que o amam e
+se arrependem de o haver offendido. N'outro capitulo da mesma obra o mesmo
+padre é de parecer que os condemnados não podem amar Deus. Mas, se elles não
+amam o bem nem o mal, nada amam; e então que vem a ser as penas espirituaes?
+Que soffrem? por que soffrem? por que se afflijem do perdimento d'um bem que
+não amam? e por que os afflige a perda dos prazeres que abominam? Tudo isso
+dispára n'um apontoado de sandices.</p>
+</div>
+
+<h3>IV</h3>
+
+<p>Acabava eu de lêr, agitado, aquella pagina, quando a viuva recuperou os
+sentidos; mas quasi mentecapta. Exclamava ella que tinha a certeza de seu
+marido ter sido condemnado, por que não acreditava em tudo que a egreja
+ensinava, e morrêra sem confissão; accrescentava que o marido era bom para ella
+e para todos; que, ainda mesmo que a houvesse offendido, lhe perdoava pelo
+muito que elle estava padecendo, e que desejava ir juntar-se-lhe e consolal-o
+no inferno. Fallava em matar-se para mais depressa o vêr; e, dizendo isto,
+aconchegava o filho do seio, sorria-lhe, beijava-o convulsivamente, em duvida
+se devia matal-o; por quanto, dizia ella, o menino iria ao paraizo, se morresse
+então; e não se veriam mais, desejando ella leval-o ao pae.</p>
+
+<p>Assim que ouvi os gritos, sahi do quarto mortuario para soccorrer, se fosse
+preciso, aquella afflicta gente, sobrecarregada com outra desgraça. Cercamos a
+joven viuva, vigiando angustiosamente os seus menores movimentos, por medo de
+que ella não praticasse algum acto de desesperação, de que dera mostras.
+Quizemos tirar-lhe o filho; mas ella dava ares de querer afogal-o antes que
+lh'o tirassem. Parecia já mais tranquilla<span class="pagenum">{<a
+name="pag_163">Pg. 163</a>}</span> que todos nós. Desfigurou-se-lhe
+cadavericamente o semblante; os olhos porém brilhavam, e o sorrir tinha um ar
+celestial. Fallava sem cessar do marido, e do prazer que ella teria em
+acompanhal-o no soffrimento. A mãe ajoelhou-se diante d'ella, que a levantou
+amorosamente, rogando-lhe que não pedisse a Deus pela sua alma.</p>
+
+<p>Conseguimos em fim separal-a do filho, e levamol-os um apoz outro, elle já
+adormecido, e ella luctando comnosco, desgrenhada e rota. Seguiram-na os
+parentes, e eu fiquei sósinho á beira do cadaver.</p>
+
+<h3>V</h3>
+
+<p>Bem desejava eu tambem saír: carecia de distrahir-me. Piedade, cólera, fé,
+duvida, terror, mil contrarios sentimentos me agitavam, dos quaes eu não podia
+defender-me ao pé do esquife, e depois de similhante espectaculo! Encostei-me á
+banca onde estava deitado sobre uma alva coberta um crucifixo de marfim, e,
+contemplando aquella divina imagem, recolhi-me no mais intimo retrahimento
+d'alma. Perguntava eu a mim mesmo, com o coração apertado, o que devia crer-se
+da vida e morte de Christo, e se era certo que elle descesse do céo, como se
+dizia, para assombrar os justos, desesperar os peccadores, e conturbar a razão
+dos fracos. E a mim me quiz parecer que Jesus estava ali, e pensei vêl-o
+chorar, e<span class="pagenum">{<a name="pag_164">Pg. 164</a>}</span> que uma
+de suas lagrimas resvalou sobre o <em>Quotidiano do christão</em>, e tudo que
+eu havia lido n'aquelle livro subitamente se desfez.</p>
+
+<p>Estava ainda comtudo a minha alma perturbada. Interroguei o Christo. Não me
+respondeu. Então entrei em duvida se eu estava adormecido ou desperto.
+Vi&mdash;seria sonho?&mdash;um oceano de trevas alcantilar-se á volta de mim, e
+no seio d'essa escuridão immensa lampejava um frouxo raio de luz. E esta luz
+saia das fendas de um sepulchro, e Jesus estava deitado vivo n'esse sepulchro.
+Eu quiz levantar a pedra que o cobria, mas uns verdugos envoltos em trevas me
+deceparam as mãos; eu quiz balbuciar, e arrancaram-me a lingua; e assim
+mutilado, cego e mudo senti-me arrebatado e precipitado ás entranhas de um
+abysmo, e comprehendi que estava no inferno. O meu unico soffrimento ahi era a
+cegueira, e a espectativa anciadissima dos supplicios que me esperavam. E, como
+só tivesse ouvidos para entender, escutei, e comprehendi o seguinte.</p>
+
+<h3>VI</h3>
+
+<p>Ao principio ouvi um rumorejar estranho, que rolava prolongando-se ao travez
+dos espaços infinitos, e depois decrescia até ao ciciar da folhagem que a brisa
+da tarde acaricia, e por fim augmentava em estridor até exceder o roncar das
+vagas cavadas pela borrasca.<span class="pagenum">{<a name="pag_165">Pg.
+165</a>}</span> Estas comparações tiradas da terra não dão idêa da tristeza, do
+pungente e solemne d'aquelle immenso rugir de seres sem nome que eu não podia
+vêr e ouvir gemer. De toda a parte, suspiros, brados, soluços, gritos
+exhorativos, mas tudo distincto, conglobando-se sem confundir-se, e formando um
+brado unisono. Debaixo do sol não ha ahi espectaculo tão variado como o
+prantear d'aquellas almas, ressoando em choro universal quasi claro ainda, e
+mais afflictivo. Ao ouvir estes estrondos figurava-se-me que o sangue me
+escorria dos pulsos cortados, e o suor da fronte, e as lagrimas dos olhos, e
+tanto eu como tudo em redor soffriamos e supplicavamos.</p>
+
+<h3>VII</h3>
+
+<p>E uma voz exclamava: Oh! quanto eu soffro, Deus meu! Isto não terá fim? Vós,
+Senhor, que me atirastes ignorante a um mundo escuro, não me julgaes, apoz
+tantos seculos, bastante castigado dos meus desvios d'um dia?</p>
+
+<p>E outra voz exclamava: Quando os meus peccados aqui me abysmaram, vossa mão,
+ó Deus, me amparava, e me ampara ainda; e, assim mesmo, em logar de diminuir, o
+meu supplicio augmenta. Soffro com quantos de longe molestei: tenho fome com os
+que eu poderia fartar; tenho frio com os que eu poderia vestir; peza sobre mim
+a cada hora e cada<span class="pagenum">{<a name="pag_166">Pg. 166</a>}</span>
+vez mais esmagadora a carga de males que fiz pezar sobre outros.
+Multiplicaram-se as minhas offensas como a herva sobre a minha campa esquecida,
+e as minhas feridas sangram sempre, e as minhas chagas lavram sem cessar. Isto
+é justo, meu Deus! Poderia eu ser feliz no céo, se visse o effeito de minhas
+obras? Em quanto fructifica a arvore fatal que plantei na terra, puni-me,
+Senhor! Mas não me tireis a esperança! O pouquinho bem que fiz na vida não
+germinará nem cobrirá, se o permittirdes, os vestigios das minhas iniquidades?
+Oh! quando nenhum ente vivo, n'algum logar do mundo, já não podér imputar-me
+seus soffrimentos, tende então piedade de mim, meu Deus!</p>
+
+<p>E todas as almas peccadoras, unindo-se em um brado de misericordia,
+repetiram juntas, lá das reconditas profundezas: Tende piedade de mim! Tende
+piedade de mim!</p>
+
+<p>Esta supplica em commum era a um tempo tão suave e dilacerante que eu
+imaginei que o ceo se abriria. Mas a noite que me envolvia espessou-se mais
+glacial; e o abysmo emmudeceu; e, apoz um instante de esperança, continuou a
+lamentar-se, correndo como o oceano nas fragarias da costa.</p>
+
+<p>Ai! ai!&mdash;conclamavam os gritos que se extinguiam soluçando&mdash;é
+surdo o céo! é surdo o céo!</p>
+
+<p>Nunca! nunca!&mdash;diziam outras vozes&mdash;Nunca! nunca! Meu Deus, que
+resposta á dôr! Nunca! nunca!</p>
+
+<p>Descançai, filhos!&mdash;bradou um condemnado, que se me figurou, no tom de
+voz, ser um dos patriarchas do<span class="pagenum">{<a name="pag_167">Pg.
+167</a>}</span> abysmo&mdash;Não profirais essa palavra horrida. Ahi sôa em
+vossos pobres seios um ecco das maldições da terra, e não palavra descida do
+céo. Ha mais de mil annos que padeço, e oro, e escuto o céo, e não ouço a
+resposta. Oremos, oremos sempre!</p>
+
+<p>E o ancião entoou um cantico; e, ao primeiro versiculo, parou e debulhou-se
+em lagrimas.</p>
+
+<p>Ai!&mdash;ressoavam ao longe milhões de almas gementes&mdash;Ai! o céo é
+surdo! o céo é surdo!</p>
+
+<p>N'este lance, uma voz sobrelevou a todas, dizendo:&mdash;Ensinai-nos, ao
+menos, Senhor, a utilidade dos padecimentos. Se nos perdoasseis, acaso a vossa
+gloria padeceria com isso? A felicidade dos justos soffreria diminuição?
+Revoltar-se-hiam elles contra vós? Logo que as creaturas entraram á vossa
+presença, não se lhes acrisolaram os sentimentos de piedade? O padre que me
+estendia a mão quando era mortal e sujeito ao peccado, a esposa que eu amava, a
+mãe que me gerou, os amigos que me trahiram e aos quaes perdoei, os pobres que
+soccorri, e uma filha ingrata e amada a quem eu daria a comer o meu coração em
+ancias de fome, nem essa, ninguem vos intercede por mim? Hontem oravam elles
+quando eu me rejubilava nas culpas; pranteavam-me vivo e oravam por mim; e hoje
+esquecem-me, pendem para o crime, fogem da dôr; o amor a quem soffre e geme é
+sentimento ephemero, que vai mal para entes bemaventurados.</p>
+
+<p>E a voz que fallava assim ergueu-se ainda para amaldiçoar, mas falleceu-lhe
+a força, e á maneira do<span class="pagenum">{<a name="pag_168">Pg.
+168</a>}</span> vagalhão que rossa a nuvem rugindo, subita recaiu e expirou em
+prolongado gemido.</p>
+
+<p>Mas logo um brado novo retumba mais estridente ainda, e, eu, ouvindo-o, não
+distinguia se era oração, se blasphemia.</p>
+
+<p>E bradava:&mdash;Creio na vossa justiça, meu Deus; mas deixai-me crêr na
+vossa misericordia. Não é ella tão infinita como a vossa justiça? Não é eterna?
+Se me perdoaveis quando eu estava na terra, porque não me perdoais aqui? Se eu
+sou o mesmo peccador, não sois vós o mesmo Deus? E, se a morte me mudou, pôde a
+morte d'um ente como eu mudar a vossa immutavel natureza? Cansou-se acaso a
+vossa bondade? Exhauriu-se? Sois vós susceptivel de cansaço? E, se alguma de
+vossas virtudes é transitoria, de circumstancia e occasional, é forçoso que
+seja a bondade, aquella ineffavel bondade que nós ignorantemente consideravamos
+lá em cima a mesma essencial e inalteravel virtude vossa! Se assim
+é&mdash;proseguiu a voz desesperada&mdash;anniquilai-me, Deus Omnipotente! Esta
+existencia é inutil; sou de mais no universo. Que lucraes com as minhas dôres?
+Tendes precisão d'ellas? Retomai esta vida de que sem duvida abusei, e esta
+intelligencia que perverti; apagai em mim esta luz, visto que principiam a
+rasgar-se os veos que a escurentavam.</p>
+
+<p>Tirai-me a lembrança do céo, a ancia de ser feliz, a necessidade d'amar, a
+necessidade de saber; tirai-me, sobre tudo, por piedade, o sentimento da
+justiça,<span class="pagenum">{<a name="pag_169">Pg. 169</a>}</span> porque eu
+não sou Deus, e a vossa justiça é um mysterio, e contra minha vontade, a
+blasphemarei. Deixai-me morrer, ó Deus! Deixai morrer quem soffre! Matai o
+peccado incuravel e a dôr esteril, a fim de que na creação não haja um só atomo
+que não palpite de reconhecimento e alegria, ao ouvir o vosso nome
+santissimo.</p>
+
+<p>E um clamor horrendo abafou a voz que fallava; e, d'um angulo a outro do
+abysmo, todas as almas em tortura escabujavam, rogando a Deus que as deixasse
+morrer. E pediam a morte como os famintos mendigam pão; chamavam-na com os
+gritos da mulher em angustias de parto do seu primogenito, com a dôr da victima
+na fogueira, com o rugido da leôa que perdeu os cachorros, com o balido do
+cordeirinho que procura a mãe. E eu tambem a chamava, e me pareceu vêl-a
+aproximar-se, e beijei-lhe a mão glacial; e, quando me sentia morrer,
+despertei.<span class="pagenum">{<a name="pag_170">Pg. 170</a>}</span></p>
+
+<h2>CAPITULO NONO</h2>
+
+<h4>JUDAS ISCARIOTE</h4>
+
+<h3>I</h3>
+
+<p>Eu escolheria d'entre os condemnados o mais desprezivel, se no inferno
+existisse um miseravel maior do que Judas.</p>
+
+<p>Este vivia na amisade de Jesus; ninguem lhe conhecia mais de perto a
+innocencia; e, como elle fosse o particular distribuidor das esmolas
+(<em>João</em>, c. 13, v. 29), ninguem lhe conhecia melhor a bondade. Não
+obstante, vendeu-o; e, depois de o atraiçoar, voltou, ceou com elle, e, ao
+escurecer, guiou os soldados que o prenderam; e, como os soldados o não
+conhecessem, deu-lhes signal, abraçando-o. Eis aqui o crime circumstanciado.
+Premeditação, cubiça, villeza, tem de tudo. Judas vende o mestre e o amigo, o
+sabio e o justo. Vende-o sem colera, sem paixão, por bom dinheiro<span
+class="pagenum">{<a name="pag_171">Pg. 171</a>}</span> de contado, como
+venderia na feira um jumento ou um boi. Sabe que desejam matal-o; não importa!
+vende-o. E que será depois da Mãe de Jesus? e dos doentes que elle curava? e
+dos ignorantes que ensinava? Ah! que tem Judas com as lagrimas de mãe e com a
+ignorancia e lastimas do povo? Negociou com todas essas dores como mercadejou
+com a amisade, com a sabedoria, com a innocencia, com tudo que ahi ha divinal
+n'este mundo. Embolsou o preço; e, a fallar verdade, nem os phariseus nem elle
+avaliaram cara a mercancia: trinta dinheiros! dez vezes menos que a libra dos
+perfumes de Magdalena.</p>
+
+<h3>II</h3>
+
+<p>Um dos primeiros effeitos da perfidia de Judas foi a defecção dos apostolos.
+Em vez de seguirem o Mestre, falsamente accusado de sacrilego e seductor,
+dispersaram-se: Thiago, Simão, Thadeu, que elle chamava seus irmãos, João, o
+seu amigo dilecto, todos por egual covardes, não cuidaram senão em salvar-se.
+«Conheces este homem?» perguntaram a Pedro.&mdash;Não,&mdash;diz Pedro, o
+chefe, o mais corajoso de todos&mdash;não o conheço.&mdash;Renegou-o trez
+vezes; trez vezes mentiu; trez vezes testemunhou de falso em face dos
+accusadores: depois, chorou na escuridão, e calou-se. Todos deixaram injuriar,
+calumniar, chibatar e morrer Jesus, sem erguerem brado em sua defeza e<span
+class="pagenum">{<a name="pag_172">Pg. 172</a>}</span> duvidando que fosse
+Deus, duvidando-lhe da missão, das promessas; bem que, para grande opprobrio
+d'elles, certos de sua amisade, pureza de vida, e excellencia da moral. Para se
+reanimarem foi preciso o milagre que o pae Abrahão recusou ao rico avarento;
+nada menos que resuscitarem os mortos, e que propriamente Jesus saísse do
+sepulchro, e que elles o vissem, e conversassem e comessem em sua companhia, e
+que Thomé lhe tocasse as chagas. Desde então é que prégaram com inabalavel fé a
+divindade de Jesus.</p>
+
+<h3>III</h3>
+
+<p>O peccado dos apostolos, n'esta lamentavel historia da Paixão, é, na
+essencia, egual ao de Judas, bem que não tanto odioso. Faltou-lhes a todos a
+fé; porém, sendo a fé um dom sobrenatural, não devemos arguil-os desabridamente
+porque não receberam o dom. O que do seu proceder nos irrita é deixarem ir até
+final, sem publico protesto, a obra de Judas; é que abandonassem o innocente
+amigo que os outros tinham vendido; é que não dissessem a Pilato ou Herodes:
+«Não! este homem não é sedicioso; quer que se dê a Cezar o que é de Cezar, e a
+Deus o que é de Deus; paz, desinteresse, e caridade são a sua doutrinação.»
+Isto bem o sabiam elles, e não o disseram, e deviam têl-o dito, sem medo, e não
+abafarem, como fizeram, o grito da consciencia. Este é que é o<span
+class="pagenum">{<a name="pag_173">Pg. 173</a>}</span> crime dos apostolos,
+crime natural, como o de Judas.</p>
+
+<p>Bem se deixa vêr que, se Judas vendeu o seu Deus, não pensava elle que
+vendia Deus: vendeu-o sem vêl-o, sem reconhecêl-o divino. O que elle a sabidas
+vendeu e quiz vender era um homem, pelo mesmo theor que os apostolos
+desampararam e quizeram desamparar um homem, mas o melhor e mais sabio homem, e
+o mais carinhoso amigo.</p>
+
+<p>Vender Deus! renegar Deus! É isso crivel quando se crê em Deus? Tal crime, á
+força de disparatado, ficaria impune, como acto de sandice! Judas foi ingrato,
+ladrão, egoista, traidor doble, fallacioso, assassino; tudo isso foi e mais
+ainda; mas o certo é que, no intimo de seu coração, Judas não se julgava
+deicida.</p>
+
+<h3>IV</h3>
+
+<p>Por mais infame que haja sido, Judas não o era tanto que não comprehendesse
+a torpeza do seu acto. Tanto a comprehendeu que não se pôde afazer á sua
+villania; e, em quanto os apostolos se escondiam, foi elle&mdash;dolorosissimo
+acto!&mdash;confessar sua perfidia no templo, e restituir o dinheiro aos
+compradores, dizendo: «Vendi o sangue do innocente.» Mas ninguem se desata do
+seu remorso, como de um dinheiro que encrava espinhos na consciencia; e, na
+bôcca de um traidor, o testimunho a favor da innocencia perde<span
+class="pagenum">{<a name="pag_174">Pg. 174</a>}</span> muito de sua efficacia.
+Sentiu-o vivissimamente Judas quando, apoz confessar-se do crime, os phariseus
+lhe responderam: «Que se nos dá d'isso? Lá te avém.» Saíu então do templo,
+convicto de que não estava em sua mão sustar as consequencias do seu crime,
+corrido, desesperado, indo ao encontro da morte que merecêra, mas que ninguem
+lhe dava, para que a sua penitencia fosse maior n'este mundo.</p>
+
+<h3>V</h3>
+
+<p>Vida de opprobrio e remorsos é expiação. Judas deveria viver. Porque se
+matou? Se elle cresse na divindade de Jesus, não se mataria, pois que,
+matando-se, ía entregar-se nas mãos d'Aquelle que atraiçoára. Por que se matou?
+O suicidio nada remedeia, e tira da contemplação dos homens o salutar
+espectaculo d'um criminoso contricto. Procurava elle anniquilar-se? A
+anniquilação ser-lhe-hia doce refugio: o nada não é pena. Ora é certo que
+ninguem disse que Judas fosse atheu. Se elle descrêsse de Deus e da vida
+futura, como explicar-lhe os remorsos? Que é crime, quando se crê que tudo
+acaba comnosco? Se não cresse em Deus, Judas guardaria os trinta dinheiros. Que
+temia elle? Como cumplices de seu crime tinha todo Israel, os padres que o
+corromperam, os senadores, Pilato, Caiphás, e a côrte de Herodes, e os proprios
+apostolos que negaram a victima. Então por que se matou?<span
+class="pagenum">{<a name="pag_175">Pg. 175</a>}</span></p>
+
+<h3>VI</h3>
+
+<p>No suicidio de Judas ha terrivel mysterio; mas tambem, n'este mysterio, ha
+relance luminoso, e vem a ser que Judas, depois de confessar a perfidia, na
+face dos tentadores, calcando o ouro recebido, vagando loucamente pelas ruas de
+Jerusalem, valia tanto pelo menos como o senado judaico que continuava
+deliberando friamente a morte do justo, como Pilato que lavava as mãos, como
+Herodes e sua côrte que riam de tudo, e como os covardes amigos cujo
+testemunho, n'aquella conjunctura, seria muito mais importante que o d'elle.
+Tal monstro revertido a homem, de si mesmo horrorisado, saiu da cidade, entrou
+aos campos por onde tantas vezes estancára com o affavel Mestre, viu-se indigno
+de apertar a mão d'um amigo, porque havia trahido o mais fiel de todos; viu-se
+indigno de piedade por que a não tivera; e, por fim, desejou acabar. Nunca
+tinha sentido como então, nem quando ouvia Christo, o nada das riquezas, a
+vaidade do mundo, o desgosto dos prazeres, o horror dos vicios que os seguem.
+Oh! se elle podesse retroceder, delir de sua vida aquella nodoa de sangue,
+sacudir o pezo que lhe abafava o coração, quão diverso do que fôra não seria!
+Como agora se lhe figurava formosa a innocencia! Como as tentações lhe pareciam
+boas de subjugar! Ah! se elle podesse quebrar as prisões<span
+class="pagenum">{<a name="pag_176">Pg. 176</a>}</span> de Jesus, e banhar-lhe
+os pés com suas lagrimas! Se podesse offerecer a vida a trôco da que o povo ía
+sacrificar! Com que prazer se deitaria na cruz, e ahi morreria em paz, se lhe
+fosse dado perdão de seu crime com tal condição!... Mas, ao longe, estrugia a
+grita da multidão enfuriada, bradando: «Crucifica-o!» Escutava o tropel dos
+cavallos, o retinir das armas, e a pancada do martello que cravava os pregos
+nas mãos bemfazejas do amigo que elle vendêra. Iriçaram-se-lhe os cabellos,
+reçumou-lhe suor glacial ao rosto, mal se tinha nas pernas como ebrio, sentia
+retrahir-se-lhe o chão debaixo dos pés. Oh! como Jesus padecia! Mas Judas
+padecia mais, porque soffria como criminoso, e não como justo. Os soffrimentos
+de Judas excedem todo o confronto. Não ha ahi agonia que lhes compareis. Em um
+dia, n'uma hora soffreu mais do que cem annos de penitencia no deserto, cem
+annos de vergonhas e supplicios entre os homens. A sua alma era uma fornalha em
+chammas. Os caminhos abrolhavam-lhe espinhos dilacerantes debaixo dos pés. Com
+os proprios dentes lacerava os beiços. O sangue estuára-lhe nas veias. Aquelle
+viver já não era vida de homem. Nem fome nem sede o espertavam do lethargo
+horrendo. Fulgurava-lhe um só sentimento: o horror do seu crime. O que elle
+levava pelos campos além era um cadaver já insensivel á dôr; e esse vil cadaver
+é o que elle estrangulou pendente da arvore. Fez mal. Melhor lhe fôra morrer
+ajoelhando, supplicando misericordia. Ah! acaso sabemos como elle morreu?<span
+class="pagenum">{<a name="pag_177">Pg. 177</a>}</span> Por ventura, a dôr
+refinada até aquelle extremo não será a mais eloquente supplica? Quem o sabe
+n'este mundo?</p>
+
+<h3>VII</h3>
+
+<p>Seja, porém! Prosiga elle na outra vida o medonho supplicio que tentou
+abreviar! Que esse incomportavel castigo redobre de hora a hora, de anno a
+anno, de seculo a seculo. É justo. <em>Amen! amen!</em></p>
+
+<p>Conte-se e publique-se em todas as linguas da terra que ha dezoito seculos
+Judas trahiu o Filho do homem, seu bemfeitor, seu amigo e mestre, e que o seu
+castigo dura ainda. Maldito seja elle e todos os seus similhantes! Maldito seja
+de pobres e ricos, dos filhos e das mães! Padres de Jesus Christo, levai esta
+nova a todas as choças e palacios; dizei-a a grandes e pequenos, aos que
+balanceam thuribulos, e aos que floream gladios, aos que julgam a terra e aos
+que são julgados! Ai dos hypocritas! ai dos ingratos! ai dos homens de duas
+linguas e duas caras! ai dos servos e dos irmãos tredos! ai dos que antepõem a
+amisade á justiça, e vendem sua alma ao sanhedrin, e contam as suas moedas em
+quanto o innocente é atormentado.</p>
+
+<p>Dizei isto a toda a terra, padres de Jesus Christo, que não haverá ahi
+palavra que vos impugne.</p>
+
+<p>Sim! Não ha ahi crueza de morte, e mormente voluntaria morte que expie
+tamanho crime. Judas soffre<span class="pagenum">{<a name="pag_178">Pg.
+178</a>}</span> ha dois mil annos, e d'aqui a quatro mil soffrerá ainda, e em
+quanto o genero humano não terminar a sua peregrinação terrestre, viverá em
+supplicio recrescente de tormentos inauditos.</p>
+
+<h3>VIII</h3>
+
+<p>Entretanto, meu Deus, este mundo de provações, segundo dissestes e tudo o
+confirma, ha de acabar. E, quando este mundo fôr destruido e renovado, quando
+já não houver sol, nem berços, nem sepulchros, nem gerações de peccadores, não
+perdoareis então a Judas? Quando elle apparecer á vossa presença no dia do
+juizo, depois de tantos seculos de indescriptiveis dôres, não vos lembrareis de
+que elle foi vosso amigo? Dar-se-ha caso que Pedro, esquecido da sua culpa e do
+perdão que a disfarçou, diga ainda outra vez: «Não conheço este homem?» João,
+Matheus, Thomé e Thiago, voltarão o rosto indignado, como se não houvessem
+tambem peccado e duvidado? Não vos dirá o côro inteiro dos apostolos: «Senhor,
+apiedai-vos d'elle. Sem a vossa graça, o que não teriamos feito nós?»</p>
+
+<p>Apiedai-vos d'elle, Senhor!&mdash;dirão todos os bemaventurados&mdash;que
+elle, sem o saber, foi o instrumento e a victima da salvação dos homens. Feliz
+culpa! dizia Santo Agostinho do peccado de Adão, feliz culpa que grangeou para
+o genero humano situação melhor que a do Eden. Feliz tambem, meu Deus, a culpa
+de<span class="pagenum">{<a name="pag_179">Pg. 179</a>}</span> Judas, pois era
+mister que, em cumprimento de vossos decretos, fosseis trahido por um dos
+vossos amigos. Horrendo, mas inevitavel crime, predicto muito antes pelos
+prophetas; crime salutar, introito mysterioso da paixão; crime que foi
+amaldiçoado e devia sêl-o, mas que hoje devemos perdoar e bemdizer, por quanto,
+sem tal crime, ó dôce Jesus, nem vós terieis morrido, nem o mundo estaria
+resgatado.</p>
+
+<p>Apiedai-vos, pois, de Judas! Commiserem-vos seus remorsos, tormentos e
+lagrimas! Compadeça-vos a cegueira d'elle! É bem de crêr que fechais os olhos
+da alma aos culpados e esta milagrosa cegueira com que os affligis é já per si
+um castigo. Mas tambem os castigareis por peccados e erros commettidos com
+vossa licença, no seio d'aquellas vingadoras trevas que derramastes no seu
+caminho? Não, não, meu Deus, vós o dissestes. Lembrai-vos de vossas derradeiras
+palavras na cruz redemptora, quando pedieis a vosso Pae perdão para os algozes,
+para os sacerdotes que vos haviam comprado, para o amigo desleal que vos tinha
+vendido, para o soldado cruel que vos cuspiu na face, para o povo desvairado
+que vos injuriava no supplicio: «Perdoai-lhes, pae, que elles não sabem o que
+fazem!»</p>
+
+<p>E vosso Pae, que tudo vos concede, perdoou-lhes o sacrilegio, a blasphemia,
+e tudo quanto em seu crime entendia com a vossa abscondita divindade;
+perdoou-lhes o que a justiça e caridade querem que se perdoe aos insensatos e
+aos cegos, e a quantos <em>não sabem o que fazem</em>. O que ficou sobre elles
+pezando<span class="pagenum">{<a name="pag_180">Pg. 180</a>}</span> é o peccado
+contra a humanidade, por que bem conheciam os peccadores a sua culpa no momento
+em que a commetteram. Meu Deus, perdoai-lhes! Pedevol-o o genero humano
+ensinado por vossas lições e exemplos, e resgatado por vosso sangue.<span
+class="pagenum">{<a name="pag_181">Pg. 181</a>}</span></p>
+
+<h2>CAPITULO DECIMO</h2>
+
+<h4>Conclusão em fórma de parabola</h4>
+
+<p>O pae de familia dizia aos seus servos: Ide aos meus celleiros; tomai a flôr
+do grão que eu mesmo escolhi e ensaquei á parte em saco novo, e ide semear o
+meu campo. Não lhe mistureis o grão do saco velho; porque esse embriaga o homem
+e não o alimenta, e só para os cevados é bom.</p>
+
+<p>Cumpriram os servos as ordens do amo; deixaram, porém, por descuido, cahir
+no saco novo os grãos malfazejos que o amo havia separado, e, logo que se
+misturaram, não poderam extremal-os, e cegamente os atiraram á uma para os
+sulcos.</p>
+
+<p>Chegado o estio, um caminheiro que passava admirou a belleza das espigas que
+medravam na seara, mas reconheceu entre as espigas as plantas nocivas.<span
+class="pagenum">{<a name="pag_182">Pg. 182</a>}</span> Arrancava elle
+discretamente as que haviam germinado até á beira da estrada, quando os servos,
+armados de páos, correram a prohibir-lhe que tocasse na seara que era de seu
+amo. Perguntou-lhes o caminheiro onde estava o amo, e soube d'elles que era
+fallecido, mas lhes recommendára que vigiassem a messe preparada para seus
+filhos.</p>
+
+<p>O caminheiro, ouvida tal resposta, contristou-se, e lhes fez vêr a
+differença que havia entre o joio e o trigo. E disse-lhes: Acautelai-vos de os
+mandar juntos ao moinho, e não façais pão que não seja de puro fermento.</p>
+
+<p>Os servos, não obstante, persuadidos da sabedoria do amo e do cumprimento
+fiel ás ordens recebidas, desconfiaram do caminhante, e de seus proprios olhos
+até, quando lhes apontava a differença das duas plantas. Se isto é joio,
+diziam, não fômos nós que o fizemos rebentar.</p>
+
+<p>Certo é que não&mdash;disse o passageiro&mdash;não fostes vós quem fez
+germinar o trigo nem o joio, nem communicastes a cada um dos dois sua diversa
+virtude, nem tão pouco lh'as podereis tirar; mas, se não sois quem os fez
+crescer, fostes vós quem os semeou, depois de misturar os grãos que o pae de
+familia havia cuidadosamente separado. Se amais os filhos de vosso amo, fazei o
+que elle faria: não lhes deis a comer pão que empeçonha, porque d'elle
+adoecerão, e outros hão de morrer.</p>
+
+<p>Turbaram-se grandemente os servos com tal discurso.<span class="pagenum">{<a
+name="pag_183">Pg. 183</a>}</span> Um disse entre si: «Póde ser que o homem
+tenha razão: aqui ha plantas que não parecem eguaes; e é acertado não desprezar
+bons avisos, venham d'onde vierem, porque, um dia, quem sabe se nos serão
+pedidas contas?» Outros, no entanto, diziam: «Este homem póde ser um impostor.
+Quem sabe d'onde vem ou para onde vai? Quem lhe deu direito de nos ensinar? E
+porque não hemos de dar d'este pão aos filhos de nosso amo? Nós comeremos
+tambem d'elle.»</p>
+
+<p>Dizendo isto, abaixaram-se a apanhar pedras, e remessaram-as contra o
+caminheiro que se affastou.<span class="pagenum">{<a name="pag_184">Pg.
+184</a>}</span> <span class="pagenum">{<a name="pag_185">Pg. 185</a>}</span></p>
+
+<h1>APPENDICE</h1>
+
+<h2>CAPITULO PRIMEIRO</h2>
+
+<h4>PROVAS MYSTICAS DO INFERNO</h4>
+
+<h3>I</h3>
+
+<h4>Da auctoridade da Biblia</h4>
+
+<p>Ninguem nega que a Biblia contém brilhantes verdades; mas essas brilhantes
+verdades não nos encantam por estarem na Biblia; em qualquer parte onde as
+vissemos, as amariamos por seu natural resplendor. Da natureza d'ellas, as
+encontrais nos escriptos dos antigos sabios. São taes verdades como a noiva dos
+Cantares: a sua belleza é toda sua, e não reflexa, e todo seu imperio lhes
+promana da formosura.</p>
+
+<p>Porém, a Biblia tambem encerra pensamentos que, pomposamente vestidos, nos
+tocam o espirito por inverso modo. Quanto mais os examinamos tanto mais os
+regeitamos. Afóra a visinhança, nada tem commum com as sympathicas verdades,
+entre as quaes se nos deparam. É-nos, todavia, prohibido de as distinguir,<span
+class="pagenum">{<a name="pag_186">Pg. 186</a>}</span> e confiar em uns com
+desconfiança d'outros; dizem-nos que tudo é verdadeiro, e verdadeiro com o
+mesmissimo titulo, não porque sejam umas cousas mais ou menos persuasivas que
+outras, mas porque se acham escriptas n'aquelle livro.</p>
+
+<p>Dispensam-nos de procurar na Biblia o cunho interior que Deus gravou na
+verdade para que a reconheçamos. Caracteres naturaes e distinctivos do erro
+podem guiar-nos em tudo; mas na Biblia não. N'outros livros é facultativo
+discernir o justo do injusto; para o quê temos regras certissimas, e
+instrumentos agudissimos; mas é peccado querer julgar a Biblia. Cumpre-nos,
+lendo-a, desconfiar do nosso coração, do nosso espirito, de tudo, salvo d'ella.
+Assiste-nos o direito de dizer, como Platão que Homero ultraja a divina
+magestade, quando mistura o Olympo com as paixões humanas; porém, quando a
+Biblia glorifica a perfidia de Jahel, e a cavillação de Judith, e o roubo e
+carnificina dos chananeos, e faz collaborar Deus em tantas traições e
+morticinios, não nos é permittido o duvidar. Se Isaias nos figura o Salvador de
+Israel calcando o povo como o vinhateiro esmaga a uva no lagar, foliando sobre
+elle e sacudindo com selvagem alegria os seus vestidos aspergidos de sangue,
+não seu, mas dos homens, devemos dizer: <em>Amen!</em> eis aqui o bom pastor, o
+cordeiro de Deus, a mansa victima do Calvario, o Christo na sua gloria! E
+quando o psalmista comparar o Senhor a um homem embriagado do vinho que lhe
+redobra as forças e lhe faz expedir<span class="pagenum">{<a name="pag_187">Pg.
+187</a>}</span> pavorosos gritos, devemos sem escrupulo responder: Assim seja!
+Claro é que nenhum de nós quereria similhar-se ao vindimador sanguinolento nem
+ao guerreiro ebrio; ninguem ousaria assim fallar de Atila recolhido á tenda,
+com receio de ser ouvido; mas similhantes confrontos que envileceriam Jupiter e
+offenderiam o rei dos hunos, prodigalisal-os-hemos ao nosso Deus, em seu
+templo, attendendo a que os prophetas sabiam melhor do que nós quaes são os
+elogios que lhe prazem. Taes sujeitos nada diziam do seu chefe: tudo que
+escreviam era o espirito santo que lh'o ditava, desde os successos até ás
+expressões significativas d'elles. Ora ahi está por que tudo é sagrado quanto a
+Biblia contém, e por que tal pensamento, que n'outro livro trescalaria a
+impiedade, é, na Biblia, uma adoravel coisa. Ha n'isso mysterio não menos
+profundo que o do inferno, se tentarmos esclarecel-o; e tal mysterio, com que
+se quer demonstrar outro, promove discussões que o catholicismo impugnou
+sempre, servindo-se d'isso como arma contra os protestantes.</p>
+
+<p>O catholicismo diz aos protestantes: Como sabeis que a Biblia é divina?
+Conhecestes Moysés? Quando Deus lhe fallou do cimo da montanha, estaveis
+presente? Passastes a pé enxuto o mar vermelho, ou bebestes agua da rocha de
+Horeb? Quem vos affirmou que aquelle homem era propheta? Que provas vedes na
+Biblia de que não é toda ella obra de homens? Milagres? Outros livros os
+contam, e vos fazem rir. Verdades? Outros livros as encerram sem que as
+imputeis<span class="pagenum">{<a name="pag_188">Pg. 188</a>}</span> ao
+Espirito Santo. Obscuridades? Coisa naturalissima, sendo tantas em todos os
+auctores, e nos vossos não menos. Quem sois vós, para que vos acreditemos,
+quando nos affirmaes inverosimilhanças? Não vos conhecemos. Que caução nos
+dais? Sois inspirados? Fazeis milagres? Vejamol-os. Não basta dizer: a Biblia é
+divina; é mister proval-o irrefutavelmente. O numero dos vossos partidarios não
+faz nada á questão. O livro dos Vedas, que se gosa do foro de divino na Asia, é
+tão antigo como a Biblia, e não tem menos sequazes. Se a Deus aprouvesse,
+communicar-se aos homens por meios naturaes, como dizeis, fal-o-hia por lances
+de bondade, com o fim de os unir, como filhos do mesmo pae, por que, a par e
+passo que melhor se conhece Deus, mais se conhecem a caridade e justiça. Como é
+pois que tantas nações, presumindo possuirem taes oraculos, em vez de viverem
+unidas, luctam discordes, erigindo altar contra altar, injuriando-se,
+perseguindo-se, e votando-se reciprocamente ás chammas eternas! O que as divide
+é as obscuridades da Biblia; não é as verdades naturaes que lá se vos deparam.
+Quem alumiará a escureza em que dizeis está Deus involto, e no seio da qual os
+homens se dilaceram, desprezando naturaes e luminosissimas verdades? Os judeus
+entendem as prophecias diversamente do vosso parecer; e, tão de boa fé as
+interpretam, que sustentam a sua opinião em desterros, carceres, fogueiras,
+durante seculos, fugindo, e deixando rasto de sangue por toda a parte do mundo.
+Qual seita protestante não arrancou da espada<span class="pagenum">{<a
+name="pag_189">Pg. 189</a>}</span> contra a sua irmã? Todas tem tido martyres e
+verdugos. Isso não nos parece prova da divindade da Biblia. Nem sequer lhe
+podereis provar a authenticidade. Os originaes d'esse livro miraculoso onde
+param? Perderam-se, comeu-os a traça, como succede por tempo a tudo que é obra
+de homens. Porção consideravel d'esse antigo monumento acabou ás mãos dos
+hebreus, depositarios d'elle. O que nos resta são reliquias. Se capitulos
+inteiros, de que apenas sabemos os titulos, já não existem, quem vos auctorisa
+a pensar que os capitulos subsistentes não foram alterados? Estariam elles a
+melhor resguardo? Por quem? Por que? E como? Quem os copiou? Quem os traduziu?
+Quem abona a fidelidade de tantos copistas, e a intelligencia e sciencia dos
+traductores? Por que signaes se conhece qual é a melhor entre as copias
+antigas, e entre as differentes copias antigas? Em qual traducção confiaremos
+entre tantas diversas? Reportar-nos-hemos ao livreiro, ao impressor, ou ao
+editor? A quem? A mortos desconhecidos, a vivos ignorantes, ou a sabios sem
+missão e cuja sciencia nos é ainda problematica? Pois que venha ahi quem
+quizer, e mostrando um papel rabiscado exclame: eis-aqui a palavra de Deus! E
+sem mais nem menos ponha-se a gente de joelhos! Á vista d'isso ninguem póde ser
+accusado de idolatria. Se não tendes á mão outras provas da authenticidade e
+divindade da Biblia, todo o homem cordato regeitará a Biblia, sem salvar o Novo
+Testamento. O christianismo foi prégado antes da redacção<span
+class="pagenum">{<a name="pag_190">Pg. 190</a>}</span> dos evangelhos, ás
+multidões que não sabiam ler. Quando essas prégações começaram a correr
+escriptas, os evangelhos eram aos cardumes; appareceram logo cincoenta
+attribuidos aos apostolos e aos discipulos de Jesus.</p>
+
+<p>Quem se entenderia n'este cháos? Quem poderia decidir que o evangelho de
+Thiago não era de Thiago, e que o evangelho de João era de João? Quem poderia
+discriminar entre o verdadeiro e o falso? Entre o de Deus e o dos homens? Quem
+poderia discernir e acreditar a boa copia entre as copias falsificadas de João?
+A coisa não era de si tão luminosa que podessemos aceital-a hoje em dia.</p>
+
+<p>No quarto seculo, bem perto dos tempos apostolicos, esta questão enleava
+gravissimos doutores, um dos quaes, testemunha de taes incertezas, Santo
+Agostinho, dizia que elle sem o testemunho da Egreja não prestaria fé ao
+verdadeiro evangelho. Não achava elle portanto nos escriptos de João, de Lucas,
+de Marcos, de Matheus e de Paulo a prova intrinseca da sua divindade; com mais
+forte razão não acharia a mesma prova intrinseca nos escriptos de Moysés, de
+Samuel, de Esdras e outros prophetas.</p>
+
+<p>Se eu não debilitei, resumindo-as, as razões com que os catholicos intentam
+reconduzir ao seu gremio as seitas dissidentes, expuz tudo o que tinha a expor
+sobre a primeira prova mystica do inferno, extrahida das Escripturas. Passemos
+á segunda prova que é o testemunho da Egreja.<span class="pagenum">{<a
+name="pag_191">Pg. 191</a>}</span></p>
+
+<h3>II</h3>
+
+<h4>Da auctoridade da Egreja</h4>
+
+<p>Diz-nos a Egreja catholica que é preciso crêr o que ella nos ensina como se
+Deus nos fallasse. Quando nos annuncia que todos nós peccamos antes de nascer,
+e que a Virgem, mãe de Christo, nasceu sem peccado&mdash;o que se não acha no
+evangelho&mdash;devemos acredital-o como se o evangelho o dissesse. A Egreja
+supre o silencio das escripturas, interpreta os textos, umas vezes prende-se á
+letra, outras descobre um entendimento occulto que só ella vê, o unico
+verdadeiro. Como possue, com a Biblia, a tradição oral dos patriarchas, dos
+prophetas e dos apostolos, a nova synagoga continúa no tempo e no espaço a
+immortal cadêa, guardando, diz ella, o dom de prophecia e o dom dos
+milagres.</p>
+
+<p>A Egreja catholica é mais que a imagem de Jesus Christo: está
+consubstanciada n'elle como sua esposa. Testemunha do passado, luz do presente
+e do futuro, legislador infallivel, juiz sem appellação, devemos consideral-a
+sempre como viva incarnação do Verbo eterno. Seria a Biblia um livro duvidoso
+em seu texto, se ella não asseverasse a autenticidade d'elle, e duvidoso em seu
+espirito se não recebesse a missão de o explicar aos homens. De modo que toda a
+auctoridade n'este<span class="pagenum">{<a name="pag_192">Pg. 192</a>}</span>
+mundo, já a da razão, já a dos livros sagrados, sóme-se absorvida na soberana
+auctoridade d'ella.</p>
+
+<p>Esta segunda prova do inferno é de natureza analoga á primeira: é mysterio.
+Exponho-o sem o discutir. Mas os protestantes discutem-no; negam-o, reprovam-o
+em nome dos prophetas e dos apostolos, e milhares e centenas de milhares
+d'elles affrontariam a fome, o frio, a penuria, o exilio, os carceres, a
+tortura ordinaria e extraordinaria, o poder de Cezar e toda a casta de
+supplicios, com o denodo dos primitivos martyres, antes de vergar o joelho ante
+a Egreja&mdash;o que elles qualificariam de idolatria. Não posso abster-me de
+relatar algumas de suas objecções, as quaes, bem que sejam forçadas
+sobrenaturalmente com versiculos do Apocalypse ou das Visões de Isaias, nem por
+isso me parecem menos debeis.</p>
+
+<p>Temos, dizem, um facil meio de nos certificarmos da infallibilidade da
+Egreja. Perguntai-lhe o que deve fazer-se em frequentes circumstancias da vida,
+quando os mais doutos homens se bandeam em dous ou tres arraiaes, dizendo uns:
+deve fazer-se isto; não,&mdash;dizem outros&mdash;isso é pessimo&mdash;; e os
+terceiros sustentam que não se deve fazer nada, ainda que a inacção pareça aos
+outros criminosa. Pelo facto de nos prohibirem actos manifestamente culposos
+aos olhos da razão, já prohibidos por lei natural, pelo decalogo e pelos
+philosophos, isso não convence que possuam luzes milagrosas para regerem almas.
+O que queremos é que nos guiem no lance em que os outros<span
+class="pagenum">{<a name="pag_193">Pg. 193</a>}</span> conductores nos
+abandonam, nos pontos em que elles se desavém, em que se calam; emfim, na
+conjunctura em que os homens tem grande interesse em conhecer a verdade que se
+lhes occulta. Venha a Egreja n'um d'estes casos. Não affrontemos com os
+casuistas multidão de problemas onde o nosso partido seria grande; busquemos
+antes, nas relações da vida civil, um só d'esses factos duvidosos, sobre os
+quaes a sabedoria humana está indecisa. Vá de exemplo o emprestar a juro, e
+exponhamos primeiro a questão muito pelo alto.</p>
+
+<p>Deve emprestar um homem ao seu visinho, dinheiro ou qualquer outro valor,
+gratuitamente? É, pelo contrario, licito haver parte dos lucros da quantia cujo
+uso se permitte, por tempo marcado, ao visinho? Como principio, ninguem
+condemna o emprestimo gratuito, o qual, á maneira da esmola, é um acto de
+liberalidade muito para louvar-se, mas que seria nocivo, sendo praticado sem
+discernimento. Todavia, alguns philosophos, e modernamente alguns caudilhos das
+seitas communistas, defendem que o emprestimo gratuito é o unico bem consoante
+á equidade natural, e que a minima usura é roubo. Estes philosophos tem sido
+arregimentados na peor especie de utopistas. Toda a gente sisuda recusa
+considerar a gratuidade do emprestimo como obrigação moral. Tal preceito
+usurparia á mediania económica os meios de valer ao indigente laborioso; o pae
+de familias não arriscaria as migalhas penosamente poupadas, se o não
+acoroçoasse<span class="pagenum">{<a name="pag_194">Pg. 194</a>}</span>
+esperança d'um beneficio adequado ao serviço que presta e aos perigos que
+corre. Os que nada tem caíriam, por conseguinte, em mais apertada dependencia
+dos que tem tudo profusamente. Nas modernas sociedades, similhante preceito
+multiplicaria os invejosos, multiplicando os avarentos. Feriria de esterilidade
+o campo da viuva, estagnaria o movimento da industria e commercio, e, pelo
+tanto, o desenvolvimento da riqueza e vantagens moraes que ella proporciona. O
+emprestimo a juro é logo geralmente admittido como justo e fertil em toda a
+especie de prosperos resultados. Mas surdem para logo novos obstaculos. Deve-se
+limitar a taxa do juro que o devedor pede ao crédor? Como se hão de avaliar os
+prejuizos do devedor, e os lucros conjecturaes do crédor? Ha nada mais
+hypothetico e variavel! Que differença entre a qualidade e os productos de duas
+terras convisinhas, entre tal e tal mister, entre a capacidade d'este e a
+d'aquelle! O juro legal, ás vezes pequenissimo, casos haverá em que seja
+pezado; mas, como é legal, pezará com todo seu pezo sobre os que menos lh'o
+podem supportar. Será elle até motivo a encarecerem os generos, e redundará em
+incommodo e vexame. Tal é, quando menos, a opinião de celeberrimos
+philosophos.</p>
+
+<p>Mas deve-se, como elles querem, deixar livre plenamente a vontade dos
+contrahentes?</p>
+
+<p>Cuidar-se-ha que tudo isto é mera questão de economia politica: não é
+verdade. Aqui, mais que tudo,<span class="pagenum">{<a name="pag_195">Pg.
+195</a>}</span> militam questões moraes complicadas e de alto melindre, de
+interesse quotidiano e universal, questões que enliçam elevadissimos espiritos,
+e sobre as quaes devemos, por isso, interrogar a Egreja.</p>
+
+<p>Se consultamos os canones dos concilios, e nomeadamente os de Nicea,
+d'Arles, de Carthago e de Elvira, achamos que a Egreja condemna, em theoria, o
+emprestimo a juro. Na pratica, porém, tolera-o. Não insistamos na contradicção.
+Se é permittido o emprestimo a juro, quaes são as condições? Tem alguem direito
+de fixar o beneficio do devedor? Quem é? O Estado? Se é o Estado que fixa a
+taxa do juro, é o Estado quem definitivamente decide do que Deus concede e do
+que Deus prohibe, do que é e do que não é peccado, e por tanto a lei divina
+varia com a phantasia da lei. Se não é o Estado, é o uso da terra? Ha nada mais
+injusto e irregular? Que principio cumpre adoptar? Onde está o direito? Onde o
+abuso? Que é da regra? Não ha nenhuma? Não ha. A tal respeito é tamanha a
+desordem entre os theologos como entre os estadistas, e philosophos, e
+economistas e jurisconsultos, e entre os confessores e penitentes. Varia em
+cada diocese a jurisprudencia: não vamos tão longe; varia em cada parochia.
+Mudai de confessor, e vereis que o mesmo facto, cercado das mesmas
+circumstancias, muda o nome: peccado mortal, injustiça, expoliação no
+confessionario á direita, acto licito no confessionario á esquerda, debaixo do
+mesmo campanario, em nossas opiniões, e o seu facho milagroso vasqueja<span
+class="pagenum">{<a name="pag_196">Pg. 196</a>}</span> ao pé do mesmo altar. Um
+parocho vos condemna e outro vos salva. Parece pois que a infallibilidade
+ecclesiastica é aleijada n'esta questão vital em que os ricos a invocam para
+tranquillisarem suas consciencias, e os pobres para satisfazerem as necessidade
+do corpo e as da alma, porque elles pedem de emprestimo para trabalhar, para
+nutrir os filhos, educal-os, casal-os, auxiliar os seus parentes velhos, e
+sepultal-os, e para isso é mister que achem quem lhes empreste.</p>
+
+<p>Quanto a materia politica, reinam as mesmas contradicções e incertezas dos
+negocios civis. Ha factos criminosos perante a razão, e todavia são absolvidos
+e até glorificados por uma parte do clero, sem excepção dos bispos, ao mesmo
+tempo que uma outra parte da cleresia os condemna a meia voz; mas de modo que a
+ouçam. A carnificina chamada de <em>Saint Barthélemy</em> foi approvada em Roma
+e celebrada em quasi todos os pulpitos. A revocação do edito de Nantes foi
+approvada pelo Papa e pela maioria dos bispos. Sobejar-nos-hiam exemplos, se os
+quizessemos, sem ir tão longe. Por outro lado, ha factos legitimos, heroicos,
+louvaveis, perante a razão, e esses são malsinados e condemnados como crimes
+por parte do clero, sem excepção dos bispos, ao mesmo passo que outra parte do
+clero os approva, e ás vezes tem parte n'elles. E tambem do clero ha porção que
+se abstem de julgar taes actos. As ultimas insurreições da Polonia e Italia nos
+dão exemplo recente e ainda sanguinolento. Aquillo que um Papa censurou, e
+outro Papa<span class="pagenum">{<a name="pag_197">Pg. 197</a>}</span>
+stygmatisou, outros padres applaudiram, alentaram e abençoaram! Estas
+diversidades de opiniões sobre successos tão graves, e culpaveis, se o são, tão
+admiraveis pelo contrario, se não são culpaveis, manifestam-se no secreto do
+tribunal da penitencia como nos escriptos e actos publicos. O confessor de
+Carlos IX considerou d'Orther subdito rebelde porque recusou ser assassino.</p>
+
+<p>O bispo de Abranches talvez negasse a absolvição ao confessor de Carlos IX.
+Tal italiano, injuriado por um frade, seria festejado pelo seu cura. De maneira
+que á vista d'uma auctoridade moral infallivel, bastantes catholicos,
+testemunhas d'este espectaculo, vendo para onde Roma pende, perguntam
+amargamente se em verdade os povos tem direitos, e meios de fazerem respeitar
+os seus direitos; se a desobediencia ao rei é só permittida em materia de
+dogma; se a liberdade, o trabalho do pensamento, da escripta e da voz não
+merecem ser defendidos, comtanto que vos deixem a liberdade de rezar; se ha
+outra patria além da Egreja; se o servilismo, já cégo, já illustrado, não é a
+principal virtude civica; se, emfim, n'este mundo o belprazer dos poderosos não
+é a suprema justiça. Estas e muitas outras perguntas tem sido
+contradictoriamente respondidas pela Egreja, que não sabe melhor que nós onde
+estão bem e mal, virtude e crime, em conjecturas solemnes e frequentes, nas
+quaes bem e mal, virtude e crime avultam a proporções enormes. A Egreja hesita
+comnosco, duvida comnosco, bandeia-se<span class="pagenum">{<a
+name="pag_198">Pg. 198</a>}</span> e apaga-se quando entra nas veredas obscuras
+em que o genero humano é forçado a entrar, as quaes inevitavelmente conduzem ao
+céo ou ao inferno. A Egreja sabe que a Virgem foi concebida sem peccado;
+conhece a gerarchia dos anjos; dogmatisa onde a incerteza seria talvez
+prudente, e a ignorancia saudavel; porém, se procuramos regras de proceder,
+esteio e guia nos tempos difficeis em que parece que a infallibilidade vai
+resplandecer, activar-se e resolver a questão, a Egreja perturba-se, balbucia,
+contradiz-se e desampara-nos á discrição.</p>
+
+<p>Como é então que ella prova a sua infallibilidade? Prohibe-nos de
+esquadrinhar na Biblia as regras da nossa fé, allegando que a Biblia é livro
+inintelligivel para nós. E, se lhe pedimos a razão d'isto, abre o livro que
+incessantemente lemos, esse mesmo livro cuja authenticidade e sentido só ella
+garante e explica. É ahi que ella pretende mostrar-nos a prova que lhe pedimos;
+mas nós sustentamos que ahi não ha tal prova. Além d'isso, se é mister crêr
+primeiro na Egreja quem houver de crêr nas Escripturas e entendel-as, que
+argumento é esse? Póde qualquer, em um processo, invocar contra o seu
+adversario um documento de que elle só se constitue interprete e juiz?
+Contente-se pois a Egreja em affirmar que é infallivel, mas abstenha-se de o
+provar.</p>
+
+<p>Eu por mim não creio. A infallibilidade é um attributo incommunicavel de
+Deus como a eternidade e a omnipotencia. Se o Papa e os bispos fossem
+infalliveis,<span class="pagenum">{<a name="pag_199">Pg. 199</a>}</span> não
+bastaria respeital-os, seria mister adoral-os. Disso nos defenda Deus! São
+homens como nós. E, quando o Espirito Santo nos illustra, somos como
+similhantes aos candelabros do templo, e, sem o querer, confundimos a nossa
+sombra com a luz que dardejamos em redor.</p>
+
+<p>Assim fallam os protestantes. Não digo que taes discursos sejam
+concludentes: não me compete a mim julgal-os; mas d'este capitulo e do anterior
+inferimos uma conclusão cuja justiça creio que ninguem contesta.</p>
+
+<h3>III</h3>
+
+<h4>Conclusão do que fica dito</h4>
+
+<p>A conclusão que eu desejaria tirar do que fica dito é que a Biblia e a
+Egreja, estas duas auctoridades que se invocam em favor das penas eternas, não
+tem o mesmo valor no conceito de toda a gente. Um protestante renegaria o
+inferno, apezar dos anathemas dos Concilios, se a Escriptura lh'o não
+annunciasse; mas um catholico renegaria o inferno, apezar da lucidez dos textos
+biblicos, se aprouvesse á Egreja attribuir áquelles textos, segundo o parecer
+de Origenes, um sentido visivelmente conforme á justiça e bondade de Deus.</p>
+
+<p>Tanto em Genebra como em Roma crê-se no inferno; mas por diversas razões; e
+o que parece argumento decisivo para metade dos christãos, não têm a<span
+class="pagenum">{<a name="pag_200">Pg. 200</a>}</span> mesma efficacia para a
+outra metade. Conformam-se sobre a verdade d'um prodigio, recusando de ambas as
+partes uma das duas testemunhas que o affirmam; os de Genebra considerando a
+Egreja um professorado do erro; os de Roma sustentando que a Biblia
+desencaminha aquelles que exclusivamente se fiam n'ella.<span
+class="pagenum">{<a name="pag_201">Pg. 201</a>}</span></p>
+
+<h2>CAPITULO SEGUNDO</h2>
+
+<h4>Resposta a uma objecção</h4>
+
+<p>Fallei da multidão dos condemnados, e tirei d'esse facto, contra a
+eternidade das penas, inferencia que me parece valiosa. É certo que a maioria
+dos homens seja condemnada? Os fieis, que estudaram este assumpto em livros
+modernamente escriptos, crêem que não, e vos dizem que os philosophos
+maliciosamente assacaram aquella opinião aos seus adversarios para os tornar
+odiosos. Não duvidam que ha inferno; não os inquieta a natureza do supplicio,
+mas sim a quantidade dos suppliciados. Mil, cem mil, um milhão d'almas a
+padecerem eternamente parece-lhes coisa muito de crêr-se, moralissima,
+certissima. Não póde suppôr-se que o inferno esteja vasio; aliás melhor seria
+supprimil-o. Um milhão ou alguns milhões d'almas,<span class="pagenum">{<a
+name="pag_202">Pg. 202</a>}</span> se Deus as abandona, tambem ellas abandonam
+a Deus; é bastante para exemplo, é bastante para justiça; porém metade do
+genero humano e mais de metade, é excesso, é monstruoso: não se crê. Não é
+isso, quer-nos parecer, a boa nova que celebraram ha mil e oito centos annos os
+magos e os pastores nos caminhos de Bethelem. Mas os velhos dogmas de Israel
+por tal arte andam baralhados com as verdades christãs, e tanto a primitiva
+Egreja com elles se identificou formando um corpo doutrinal, que um homem
+instruido não póde hoje, sem risco de heresia, tentar separal-as.</p>
+
+<p>Sem embargo, opera-se no seio do christianismo um singular trabalho, de que
+o clero não dá tento, bem que a iniciativa de ha muito proceda d'elle mesmo.
+Este trabalho de que as obras de Sanchez, de Escobar, do padre Annat, do padre
+Lémoine, e d'outros casuistas, tão agramente invectivados por Pascal, eram
+apenas indicios, tende a neutralisar cada vez mais a acção n'outro tempo tão
+vigorosa dos elementos hebraicos do christianimo. Sentimentos, que debalde
+quereriamos suffocar, rompem á luz; o coração reclama, bem que timidamente,
+seus direitos; a consciencia, constrangida debaixo do pezo de abafadoras
+tradições, não repulsa, mas a tremer levanta do peito o fardo, como para
+respirar. Verdade é que ainda nos pregam os velhos mysterios da synagoga; mas,
+ao mesmo tempo, cuidam em dissimular-lhes as consesequencias logicas relativas
+á vida futura, e&mdash;notabilissimo caso!&mdash;não insistem nas consequencias
+praticas,<span class="pagenum">{<a name="pag_203">Pg. 203</a>}</span> no
+tocante á vida presente. Este ultimo facto, muito significativo, provém dos
+casuistas. Foram elles quem primeiro quiz achanar aos homens a estrada do céo.
+Como não soubessem conciliar as necessidades da vida terrestre com as da fé, e
+não ousassem embarrar pelo inferno, com medo de torriscar os dedos, derruiram
+audazmente a moral. Graças lhes sejam dadas, que isto de peccados mortaes está
+por um fio! O assassino, mal lavou as mãos, e o perjuro mal lavou a lingua, são
+admittidos ao sagrado banquete, O pulpito continua a fuzilar trovoadas
+minacissimas; é ainda Isaias e S. Paulo a bradarem; mas, no tribunal da
+penitencia, os coriscos apagam-se; quem confessa é o tolerante padre Lémoine,
+que perfeitamente percebe que uma duqueza, uma capitalista, uma burgueza
+opulenta não podem viver de favas, nem trajar de serguilha, nem dormir no
+taboado, nem imitar sequer de longe a perfeição negativa das santas reclusas,
+cujas virtudes andam celebradas nos pulpitos. Descobrir, porém, no complexo dos
+actos dos homens, o limite exacto do dever, isso é desvario: ou prohibir, ou
+permittir tudo quando se renuncia e dirigir verdadeiramente as peccadoras
+mundanas para o antigo ideal da abstinencia ascetica. O theatro, o baile, os
+hombros nús, a maledicencia, as prodigalidades do luxo, a parcimonia das
+esmolas, a lisonja, a ambição, a cupidez, a ingratidão, as desavenças, tudo
+passa, tudo é venial, nada impede da desobriga. Nem o juiz nem o penitente
+conhecem regra. O mais virtuoso e austero padre<span class="pagenum">{<a
+name="pag_204">Pg. 204</a>}</span> póde ser integerrimo no pulpito; mas, no
+confessionario, treme, receia afugentar a alma que o procura; lembra-lhe o Bom
+Pastor, o céo promettido ao ladrão que se accusa, o perdão da adultera, e
+involuntariamente contribue a facilitar as quedas, e as reincidencias,
+facilitando a expiação. Pois os primitivos christãos não tinham ouvido fallar
+do bom ladrão, e da mulher adultera, e da parabola do Bom Pastor? Comparem com
+a disciplina de hoje a de então que eu já referi. Se o padre Lémoine lesse nas
+catacumbas um capitulo da <em>Devoção commoda</em>, o congresso de fieis e
+martyres surgiria em pezo contra tal innovador, e o bispo excommungal-o-hia.
+Tenho minhas duvidas que o proprio S. Francisco de Salles o tractasse bem. É
+que os primitivos christãos nunca perdiam d'olho Satanaz, peccado original,
+inferno, e conformavam o seu procedimento, não a tal artigo de fé ageitada a
+dar alentos á esperança, mas ao complexo tremendo da doutrina que aprendiam.</p>
+
+<p>A harmonia que primordialmente se deu entre a disciplina da Egreja e as
+crenças da Egreja, está por tanto desde muito desacorde. Port-Royal tentou
+afinal-a. Foi esse o segredo da sua lucta com os casuistas mas os casuistas
+venceram. A contenda acabou.</p>
+
+<p>Meditemos agora nas consequencias logicas dos nossos dogmas, relativos á
+outra vida, dos esforços que debalde se envidam para lhes amaciar as asperezas
+e edulcorar-lhes o travor, com medo de que lhes não atirem fóra copo e
+remedio.<span class="pagenum">{<a name="pag_205">Pg. 205</a>}</span></p>
+
+<p>Em louvor dos theologos modernos, declaro que poucos ha que possam encarar
+impassiveis a multidão de pagãos e hereges que regorgita do
+inferno&mdash;multidão que sem intercadencia augmenta com muitos milhares
+d'almas cada dia, muitos milhares cada anno. Elles, pois, escondem as vinganças
+divinas, em vez de nol-as mostrarem, no seu trilho aterrador á maneira dos
+antigos. Quando cuidam em nos animar, tambem elles se animam em seus proprios
+quebrantamentos, sentindo que a piedade desborda e arrasta a fé; e não só a
+piedade, mas tambem a justiça.</p>
+
+<p>S. Thomaz de Aquino, incapaz de ceder unicamente á piedade, estacou diante
+d'esse problema de justiça, e diligenciou, a seu modo, resolvêl-o, por feição
+que podesse, sem offensa da fé, contemporisar com a sua razão.</p>
+
+<p>Imaginou um justo fóra da Egreja, ignorando as verdades salvadoras, e
+predestinado ao inferno por culpa de sua ignorancia. Ora um anjo celestial,
+quando este justo agonisava, desceu a revelar-lhe a verdade, dando-lhe assim
+entrada na Egreja por uma porta falsa, e mantendo por este theor milagrosamente
+a inteireza dos dogmas. Pouco importava a S. Thomaz, tão grande e inflexivel
+logico, salvar as regras explicitamente formuladas pelos concilios; e, se taes
+regras podiam ferir a justiça, lá estavam os anjos para concilial-as. O que
+elle queria era salvar os gentios.</p>
+
+<p>Mas, hoje em dia, os theologos avantajam-se a S. Thomaz. Já não ha recorrer
+a milagre. Dizem que, se<span class="pagenum">{<a name="pag_206">Pg.
+206</a>}</span> entre infieis, e até entre os hereticos, ha pessoas honestas,
+Deus bem as vê: essas pertencem á Egreja, não corporal, mas espiritualmente;
+creem implicitamente as verdades que ignoram, e basta isso: são catholicos lá
+do seu feitio. É pois prohibido condemnar a esmo gentios e hereges, cegos
+innocentes, virtuosos transviados, erros invenciveis<a name="L2947" id="L2947"
+href="#L2943"><sup>[7]</sup></a>. Já se diz que ninguem é condemnado, tirante
+os máos, qualquer que seja a religião que professem.</p>
+
+<p>Bella é a linguagem, mas tambem é evidentemente illusoria; por onde vamos
+vêr que tal piedade, bem que sincera, não póde aproveitar a alguem. Vós não
+condemnais todos os gentios nem todos os hereges; é verdade. Os dogmas que nos
+ensinais é que os condemnam. Ora, se, acaso, os cinco dogmas tirados do
+judaismo fossem falsos, bem sabemos que não estava em vossa alçada condemnar,
+ainda que o quizesseis, um só idolatra, por peor que houvesse sido; mas, ao
+invez, se taes dogmas são verdadeiros, tambem sabemos que não cabe em vossa
+alçada salvar um só gentio nem um só herege, ainda que o quizesseis. Mais: em
+virtude de taes dogmas, é de fé que o homem nasce máo, e que o crime que lhe
+mancha o berço, explica,<span class="pagenum">{<a name="pag_207">Pg.
+207</a>}</span> mas não lhe justifica os erros da vida. Irroga-se culpa a quem
+se liga á religião de sua familia e patria, quando tal religião não é a
+genuina. Se assim não fosse, vêde bem que melhor seria ter nascido sarraceno
+que catholico; que um turco salvar-se-hia procurando de boa fé, como os
+patriarchas, prazeres que a nós nos perdem para sempre; e o maximo das bençãos
+seria nascer e morrer selvagem, n'alguma ilha incognita, longe dos formidaveis
+clarões que nos privam de desculpar com a ignorancia os nossos peccados. Fossem
+embora salvas alguns milhares de creaturas apenas entre os billiões d'ellas que
+morrem em peccado original, uma duzia só que fosse, seria que farte para
+argumentar que ha salvação fóra da Egreja, e sem algum dos soccorros
+extraordinarios de que ella dispõe. Estes theologos tolerantes não reparam que
+inutilisam a revelação, que despojam a Egreja das chaves do céo, ou, pelo
+menos, indiciam que ha chaves em duplicado para lá entrar, e que judeu,
+musulmano, lutherano, philosopho, todo homem honrado tem uma chave. A opinião
+assim pelo claro não ousariam elles exhibil-a, e, a bem dizer, tudo aquillo não
+é opinião sua; é, melhor ainda, expansão de alma que aspira á verdade e
+justiça; é protesto da humanidade christã contra o judaismo, protesto mais
+revelante por não ser voluntario, nem saber-se a si mesmo comprehender. O
+raciocinio não é o essencial do protesto, como em S. Thomaz d'Aquino; quasi que
+não é parte em taes discursos, pois que os discursadores não concluem<span
+class="pagenum">{<a name="pag_208">Pg. 208</a>}</span> como deviam, se
+raciocinam; e não podem fundamentar a sua argumentação sobre ensino authentico
+da egreja<sup><a name="L3003" id="L3003" href="#L3005">[8]</a></sup>. É mister,
+por desgraça, renunciar á orthodoxia ou condemnar despiedosamente mais de tres
+quartos do genero humano. O justo, estranho á Egreja, a quem nos prohibem de
+offerecer a mão, não existe aos olhos da fé: é um phantasma que avulta á vossa
+piedade. Se ha ignorancia involuntaria e invencivel, não é a do idiota? Ora ahi
+está! o idiota, o cretino, o aborto sem olhos nem ouvidos peccaram no ventre
+materno, peccaram mortalmente, e só pelo baptismo conseguirão justificar-se.
+Como é então que ha de subtrahir-se ás tentações e ás sincadilhas de que tanto
+a custo se escapam os filhos da Egreja, um ente egualmente viciado em sua
+natureza, mas mais livre, se envelheceu sem revelação e sacramentos? Onde
+ganhará elle amor ao bem e vigor para pratical-o? Tal hypothese é heresia por
+atacado; só poderemos aceital-a como excepção milagrosa; e, n'essa qualidade,
+não<span class="pagenum">{<a name="pag_209">Pg. 209</a>}</span> vingaria
+dulcificar o sentir que esperta em nossa alma o perpetuo inferno, onde, ha seis
+mil annos, se vão acamando as gerações humanas.<span class="pagenum">{<a
+name="pag_210">Pg. 210</a>}</span></p>
+
+<div class="rodape">
+<p><a name="L2943" id="L2943" href="#L2947"><sup>[7]</sup></a> Veja entre
+outras obras os <em>Estudos a respeito do Christianismo</em> por Nicolas, tom.
+III, c. 14. Este livro foi approvado, louvado e recommendado pela auctoridade
+ecclesiastica, e nomeadamente por Mons. Cardeal Donnet, Arceb. de Bordeaux. O
+padre Lacordaire protegeu-o assignaladamente, considerando-o a mais completa e
+melhor apologia da fé catholica.</p>
+
+<p><sup><a name="L3005" id="L3005" href="#L3003">[8]</a></sup> Este ensino
+multiplicou-se com diversos aspectos: peccado original; necessidade do
+baptismo; ha uma só fé e um só baptismo; fóra da egreja não ha salvação;
+necessidade dos sacramentos da penitencia, de confirmação, etc., como
+auxiliares de nossas enfermidades, depois do baptismo, necessidade e
+conjunctamente insufficiencia da prégação e da leitura; inefficacia das boas
+obras sem os sacramentos; manhas e poderio de Satan; impossibilidade de viver e
+morrer em estado de graça fóra da Egreja que é a dispenseira das graças, etc.,
+etc. Encheriam um volume os decretos, promulgados áquelle intento, e os
+anathemas fulminados contra quem houvesse dito ou viesse a dizer o contrario
+d'esses decretos.</p>
+</div>
+
+<h2>CAPITULO TERCEIRO</h2>
+
+<h4>DA DESCIDA DE CHRISTO AOS INFERNOS</h4>
+
+<blockquote style="margin-left: 30%; font-size: 0.8em;">
+ <p>Descendit <em>ad Inferos</em>; tertià die resurrexit à mortuis; ascendit
+ ad c[oe]los, sedet ad dexteram Patris, indè venturus est judicare vivos et
+ mortuos.</p>
+
+ <p>Credo in Spiritum sanctum, in sanctam Ecclesiam catholicam et apostolicam,
+ in communionem sanctorum, in remissionem peccatorum, carnis ressurrectionem
+ et vitam æternam. Amen.</p>
+
+ <p style="text-align:right;">(<em>Symb. apostolorum</em>).</p>
+</blockquote>
+
+<h3>I</h3>
+
+<p>O Filho do homem, expedindo sobre a cruz sua vida mortal, desceu aos
+infernos. Não é o Evangelho que o refere; é um documento não menos venerado, o
+qual, com o <em>Pater</em> e <em>Ave</em>, é parte das orações que a Egreja
+ensina aos seus filhos: documento, ao que parece, anterior á redacção dos
+Evangelhos e resumo da fé apostolica: é o <em>Credo</em>.<sup><a name="L3082"
+id="L3082" href="#L3084">[9]</a></sup></p>
+
+<p>Jesus morto vai annunciar aos mortos a boa nova:<span class="pagenum">{<a
+name="pag_211">Pg. 211</a>}</span> Satanaz vencido, os peccadores resgatados, o
+céo aberto aos que oram, aos que choram, aos que soffrem. Para estes
+exclusivamente é que seu sangue aspergiu o chão do calvario. Jesus não dispensa
+da penitencia os que morreram culpados; mas dá-lhes a esperança que as antigas
+crenças deixavam luzir na terra sómente, e apagavam no tumulo.</p>
+
+<p>Sei de sobra que os theologos querem que o inferno, visitado por Christo,
+não seja o verdadeiro inferno; mas sim o limbo, o purgatorio, os seis primeiros
+circulos da Géhenna, e não o ultimo. Esta distincção, porém, não está no
+<em>Credo</em>. O inferno ahi diz-se com todas as letras, e, mais pelo claro,
+<em>os infernos</em>, como quem indistinctamente diz todos os logares de
+soffrimento onde podem penar os mortos.</p>
+
+<p>«Desceu aos infernos, diz o <em>Credo</em>, e ao terceiro dia resurgiu dos
+mortos.»</p>
+
+<p>Quem eram esses mortos com quem Jesus passou trez dias? A interpretação
+natural é&mdash;todos os homens que, desde o principio do mundo, haviam
+desparecido de sobre a terra; não só patriarchas e prophetas, senão todos os
+judeus; não só todos os judeus, mas todos os gentios. Eis aqui, entendidas ao
+natural, o que dizem as palavras: «Desceu aos infernos, e habitou trez dias com
+os <em>mortos</em>.» Quereis dar áquellas<span class="pagenum">{<a
+name="pag_212">Pg. 212</a>}</span> palavras uma accepção espiritual? Temos
+ainda mais. luz na questão. Os mortos espirituaes são os condemnados, os que
+eram considerados em perpetua privação dos resplendores eternos. Não são os
+prophetas, os patriarchas, os eleitos, os santos, nem ainda alguns d'esses que
+por peccados haviam merecido as penas temporarias, por que não estavam
+espiritualmente mas só carnalmente mortos, crendo, esperando, amando, vivendo.
+Seja qual for a interpretação adoptada, leva-nos a concluir o inverso do que os
+theologos affirmam. Do citado trecho do <em>Credo</em> colhe-se que Jesus
+desceu, não só ao limbo, mas tambem ao inferno, não só aos patriarchas que
+esperavam sua vinda,&mdash;explicação acanhada e violenta dos hebreus conversos
+e dos christãos judaisantes&mdash;mas aos mortos de todos os tempos e paizes,
+aos peccadores que a lei antiga e antigas crenças haviam ferido de morte
+espiritual, eterna, incuravel, da verdadeira morte. O Redemptor, o Crucificado,
+o Messias visitou-os, mostrou-se-lhes, e elles rejubilaram ao verem-no e
+choraram lagrimas d'amor d'aquelles olhos aridos. Jesus não destruiu o inferno;
+converteu-o em purgatorio. Do inferno judaico e gentilico fez o inferno
+christão, inferno que corrige, inferno onde ha o chorar sem blasphemar, onde ha
+o soffrer sem desesperança nem rancores.</p>
+
+<p>Outras luzes póde dar o symbolo dos apostolos ás almas piedosas. Mais
+abaixo, diz: «Creio na vida eterna» mas não diz: «Creio na morte eterna.» Este
+horrivel dogma não se lê no credo apostolico. Se ahi se<span
+class="pagenum">{<a name="pag_213">Pg. 213</a>}</span> falla em infernos é para
+nos ensinar que Jesus Christo lá foi, e de lá sahiu, mas como devia sahir,
+vivo, glorioso, triumphante e bemdito.</p>
+
+<p>Diz finalmente o <em>Credo</em> que Christo subiu ao céo, onde está sentado
+á dextra do Padre, d'onde virá a julgar <em>vivos e mortos</em>.</p>
+
+<p>Quaes vivos? os justos? Quaes mortos? os peccadores, os ultimos povoadores
+da terra e os antigos habitantes d'aquellas tenebrosas mansões onde a esperança
+radiou com o Christo quando tudo foi consummado na Cruz? Não é possivel que uma
+só palavra tenha dois sentidos com tão breve intervallo. Quereis que os mortos
+d'entre os quaes resurgiu ao fim do terceiro dia sejam os antigos reprobos?
+Tambem eu quero. Quereis antes inferir de taes palavras que os nossos avós
+judeus e os pagãos, quantos então eram mortos, viveriam, n'outra parte,
+jubilosos ou suppliciados? Tambem eu quero. Adoptai um sentido, ou outro, ou
+ambos juntamente, que a mim não se me dá d'isso. O que ha de sempre
+forçosamente reconhecer-se é que a phrase representa a mesma idêa significada
+uma ou duas linhas abaixo. Será, conseguintemente, preciso confessar que os
+mortos visitados por Christo são os mesmos que elle virá julgar quando julgar
+os vivos. Direi pois logo que na descida aos infernos, Jesus morou trez dias
+não entre os justos esperançados, mas entre os condemnados á desesperação para
+os ungir de seu sangue, consolal-os e salval-os. E, senão, para que os
+visitou?<span class="pagenum">{<a name="pag_214">Pg. 214</a>}</span></p>
+
+<p>Faz-se mister prescindir de entender qualquer palavra divina ou humana, se
+do <em>Credo</em> se colhe o dogma das penas eternas. Não está lá: o contrario
+é que está. O veneravel texto é mil vezes mais luminoso que todas as glosas dos
+doutores.</p>
+
+<div class="rodape">
+<p><sup><a name="L3084" id="L3084" href="#L3082">[9]</a></sup> Conta-se que os
+apostolos, antes de se apartarem para levar aos gentios a boa nova, trez annos
+pouco mais ou menos depois da morte do divino Mestre, se reuniram e compozeram
+o <em>Credo</em>, elenco das verdades cujo ensino lhes fôra confiado. O
+Evangelho ainda não corria escripto. Só depois da separação, é que foi composto
+o de S. Matheus, que antecede a todos. O symbolo da fé apostolica tambem não
+andava escripto; mas ensinava-se de cór aos fieis, e por isso longo tempo se
+conservou na Egreja, bem como a tradição egualmente oral da sua origem.</p>
+</div>
+
+<h3>II</h3>
+
+<p>Viveu Origenes quasi coevo dos tempos apostolicos. Toda a gente ouviu fallar
+da santidade de seu viver, pureza de costumes, alento nas perseguições, vasta
+sabedoria e raro engenho. Pois ainda assim, aquelle insigne doutor, e illustre
+confessor de Christo, negava as penas eternas. Acaso receberia elle a
+verdadeira tradição dos apostolos, ou, á força de reflectir, atinára com a
+genuina accepção do Evangelho? Não sei. Todavia confesso envergonhadamente que
+ainda não li as poucas obras restantes que tão assignalado sujeito escreveu
+sobre tal materia. O que mais sei é que foi condemnado, muito tempo depois que
+morreu, por um edito do imperador Justiniano, e anathematisado, com a porção da
+obra relativa ás penas eternas, por o concilio ecumenico de Constantinopla,
+anno 553.<sup><a name="L3150" id="L3150" href="#L3152">[10]</a></sup> Não se
+deram os bispos á canceira<span class="pagenum">{<a name="pag_215">Pg.
+215</a>}</span> de provar que elle era ruim logico; declararam-o herege, que
+era mais summario, e por contagem de votos.</p>
+
+<p>É muito para notar que o primeiro concilio ecumenico de Nicea, anno 325, e o
+segundo de Constantinopla, anno 381, se abstivessem de decidir sobre a doutrina
+de Origenes, ainda nova e florecentissima, e á conta d'isso mais funesta, se
+por ventura escondesse perigo. Divergiam sobre o assumpto as opiniões dos
+padres d'aquelle tempo? Recusariam não se conciliarem? A questão
+confundil-os-hia? Inclino-me a crer que sim. O mais notavel documento que os
+dois concilios nos deixaram, denota indecisão de natureza a um tempo estranha e
+evidentissima: é uma profissão de fé muito particularisada, a mesma que hoje se
+entôa aos domingos na missa cantada nas egrejas do oriente e occidente.</p>
+
+<p>O concilio de Nicea, ao redigir o symbolo da sua fé, desenvolveu em certos
+pontos o symbolo dos apostolos; mas, quanto ao mais, abreviou aquelle antigo
+symbolo, e o que mais espanta é a suppressão completa do descendimento aos
+infernos.</p>
+
+<p>O concilio de Constantinopla, adoptando o symbolo de Nicea, aperfeiçoou-o, e
+additou-lhe alguns artigos, mas não lhe repoz a descida aos infernos.</p>
+
+<p>Que quer dizer esta eliminação? Desceu ou não desceu Christo aos infernos?
+Se desceu, por que o não dizem? Acham que é insignificante o caso? Não merecerá
+a pena relembral-o?<span class="pagenum">{<a name="pag_216">Pg.
+216</a>}</span></p>
+
+<p>Felizmente o symbolo dos apostolos subsiste, e os de Nicea e Constantinopla
+não vingarão desluzil-o.<span class="pagenum">{<a name="pag_217">Pg.
+217</a>}</span></p>
+
+<div class="rodape">
+<p><sup><a name="L3152" id="L3152" href="#L3150">[10]</a></sup> No anno 321,
+Origenes foi denunciado ao Concilio de Alexandria, e interdicto do sacerdocio.
+S. Jeronymo attribue esta condemnação a ciumes e invejas que inspirava a
+eloquencia de Origenes aos Padres reunidos n'aquelle Concilio.</p>
+</div>
+
+<h2>CAPITULO QUARTO</h2>
+
+<h4>ADVERTENCIA FINAL</h4>
+
+<h3>I</h3>
+
+<p>As idêas que empreguei no discurso d'esta obra andam por tantos livros
+disseminadas, e prégadas de tantos pulpitos, e tão notorias e populares, que me
+não temo de que m'as neguem. Diligenciei exprimir claramente os dogmas,
+preceitos, maximas, opiniões sempre admittidas nas faculdades de theologia, nos
+seminarios e conventos: era acto de boa fé e tambem de prudencia; que toda
+minha argumentação claudicaria, se eu attribuisse aos propugnadores do inferno
+linguagem que não fosse a d'elles.</p>
+
+<p>Fui eu quem inventou a queda de Satan, o poder e maleficios da corte
+infernal, o peccado do Eden, e a maldição dos homens? Fui eu quem encerrou no
+claustro o ideal da perfeição christã? Fui o auctor<span class="pagenum">{<a
+name="pag_218">Pg. 218</a>}</span> das sentenças desesperadoras fulminadas
+contra o mundo e contra os affectos e luzes naturaes, contra o bom siso e
+contra a vida? Inventei eu as devotas reflexões, azadas para mirrar os corações
+das mães e dos filhos, e uns pensamentos afogueados que calcinam o cerebro como
+o alcool, embrutecendo uns, e desvairando outros em devaneios melancolicos? É
+culpa minha se o inferno parece coisa atroz? Não suavisei eu em vez de
+encarecer as pinturas conhecidas? Se é immoral, estava a meu cargo mudar-lhe a
+condição? Attribui eu ao padre Bohours palavras alheias, ou a S. Bernardo coisa
+que elle não dissesse?</p>
+
+<p>É verdade que eu muitas vezes poderia auctorisar-me com textos, e dizer em
+grego ou latim, ou italiano ou allemão, em nome d'outrem, o que expuz a meu
+modo. Mas que tinha eu a ganhar com esse systema? Nenhuma das idêas que discuti
+pertence nominalmente a este ou áquelle theologo; junta ou separadamente todas
+lhes pertencem: é dominio commum. Seria apoucar e abater a questão conferir a
+uma crença tradicional visos de opinião particular. Acato a virtude, admiro o
+engenho, onde quer que os encontro, até nos mesmos que me ameaçam com as penas
+eternas; não mal-quero por tanto a S. Gregorio, nem a S. Jeronymo, nem ao padre
+Nicole, nem a algum theologo morto ou vivo. Não me estive a quebrar lanças com
+personagens mais ou menos eminentes: que são apenas eccos de doutrinas que
+vogaram muito antes d'elles. Se eu tivesse em cada pagina citado um doutor,
+julgar-se-hia<span class="pagenum">{<a name="pag_219">Pg. 219</a>}</span> que
+os outros doutores, não mencionados, depunham contra mim. Não aconteceu isso a
+Pascal? Nomeia elle as suas testemunhas, transcreve-lhes litteralmente as
+proposições, e vos remette ao volume e pagina d'onde as trasladou; pois
+responderam-lhe que se as proposições que elle combate estão nos livros d'onde
+as copiou, a culpa é dos auctores, e não da companhia que os instruiu. Claro
+está que eu tenho por mim auctoridades muito mais embaraçosas que os padres
+Petau, Penterau, Hurtado, Bille, Sanchez, Suarez, Escobard, Bauny, Molina,
+Reginaldo, Tannero, Filicitius e Azor. Tenho-as numerosissimas, a ponto de a
+mim mesmo me embaraçarem. Qual hei de escolher entre tantas? Que mais vale uma
+do que outra? Um capuchinho canonizado vale ou não vale um papa não canonizado,
+mas fallando <em>ex-cathedrâ</em>? E de mais um só auctor, por extremo que
+fosse o gráo de sua respeitabilidade, bastaria a tapar a bôcca aos
+altercadores? Quantos textos seria preciso adduzir para authenticar certas
+phrases alcunhadas de perigosas, levianas, absurdas e escandalosas? Quantos
+padres, papas, bispos e doutores teria eu de dispôr em batalha a meu favor?
+Confesso que não sei. Fui, pois, sobrio em citações, não por mingua do
+assumpto, mas antes por excesso. Convençam-se de que não ha linha n'este livro
+á qual eu não podesse cerzir, se me aprouvesse, paginas inteiras, senão volumes
+de annotações justificativas, hauridas nas fontes mais puras, mais frequentadas
+e veneradas.<span class="pagenum">{<a name="pag_220">Pg. 220</a>}</span></p>
+
+<p>Similhante lavor, porém, ainda que eu o compendiasse á essencia do debate,
+cansaria a paciencia dos leitores, que se dispensam de tão barbaro apparato
+para saberem ao que devem atter-se do que lhe ensinaram desde o berço. Mas as
+provas de memoria as sabem; sobejam-lhes nas suas livrarias; não carecem de
+folhear concilios, obras de santos padres, bullarios, constituições de
+bispados, revelações de Santa Catharina, Santa Thereza, e outras
+bem-aventuradas; não se lhes faz preciso consultar Bossuet, Bourdaloue,
+Massillon, nem outros illustrissimos oraculos que nem sempre nos estão á mão.
+Mais boas de encontrar são as minhas provas: acham-se nos labios e nos ouvidos
+das creanças que estudam o cathecismo; acham-se em mãos de nossas irmãs,
+esposas, e mães, na sua <em>Imitação</em>, no <em>Quotidiano christão</em>, no
+<em>Combate espiritual</em>, na <em>Vida dos Santos</em>, no <em>Livro
+d'ouro</em>, no <em>Pensai-o-bem</em>, e em milhares de livrinhos d'este jaez,
+approvados pelos bispos e universalmente manuseados.</p>
+
+<p>Os paladinos do inferno, se os houvesse, não ousariam, talvez, atacar as
+passagens d'este livro, de antemão atalaiadas d'uma guarnição formidavel de
+batinas, de chapeos vermelhos e de barretes; mas quem sabe se atacariam como
+abastardados, alterados, e erroneos os trechos que eu desprecavidamente não
+defendesse? Em tal caso, nada me valeria amontoar notas. Se m'as pedirem, eu
+lh'as darei em quantidade que lhes pareça de mais. Convenho, se quizerem, em
+incommodar com ellas os adversarios; mas tão sómente<span class="pagenum">{<a
+name="pag_221">Pg. 221</a>}</span> os adversarios; quanto ao publico, a minha
+intenção não é adormecêl-o; antes eu quizera acordal-o, esclarecêl-o e
+agradar-lhe. Mal andaria eu se, a proposito de taes polemicas, sacudia aos
+olhos dos leitores a poeira dos meus livros traçados!</p>
+
+<h3>II</h3>
+
+<p>Se não podem accusar-me de má fé na exposição dos principios que tentei
+impugnar, não faltará quem me accuse de máo juiz em tudo o mais. Estejam certos
+que não ficará aqui. O inferno tem seus devotos que não sacrificam ás Graças,
+mas ás Eumenides. Bem os ouço gritar: impio! incredulo! ignorante! detestavel
+pensador! monstro! scelerado! por que o não prendem, e mandam ás galés! Ousar
+descrer das penas eternas! Que faz o ministerio publico? Onde está o carrasco?
+Em França já não há lenha para uma fogueira? Votamos pelo inferno, queremos que
+os nossos paes e os nossos filhos sejam condemnados. Ao fogo com os selvagens,
+idolatras musulmanos, judeus, indianos, herejes! Ao fogo com os peccadores
+recalcitrantes! fogo eterno com os philosophos impenitentes! Não nos esbulhem
+d'esta amavel crença. Que havia de ser da moral? Queremos inferno e diabo, a
+maldição e o mal. Se muita gente se condemna, peior é isso, mas a culpa é
+d'ella. Que ardam para sempre! É vontade de Deus. O teu debil sopro, ruim
+pensador,<span class="pagenum">{<a name="pag_222">Pg. 222</a>}</span> não
+apagará as chammas salutares que não corrigem os mortos, que pouco emendam os
+vivos, mas fazem tremer as freiras nas suas cellas e alegrar os santos no
+paraiso. Viva o inferno! Se se elle apagasse, haviamos de accendêl-o com os
+teus livros. Queremos o inferno e seus supplicios, embora lá vamos cahir com as
+nossas mães e com as creancinhas que riem no collo d'ellas. Sem inferno não ha
+fé, nem Egreja, nem religião, nem lei, nem familia, nem moralidade, não ha
+nada. Conservemos o inferno! É absurdo? mais um motivo. <em>Crédo quia
+absurdum.</em> Parece-te isto injusto, incredulo, impio, perverso que não
+queres acreditar que Deus creasse tantos entes fracos para perdel-os sem
+missão! Imprudente! que ousas escutar a tua consciencia, quando a tradição
+falla! Malvado! coração de pedra que não dás dinheiro ao Papa para lhe redourar
+a thiara e vais dal-o a pobres e proscriptos, e estás ahi a lastimar os
+billiões de creaturas que povoam o abysmo. Ó sandeu! Ó miseravel! Algum
+proveito colhes atacando verdades tão uteis. És como os malfeitores que quebram
+os lampeões. Se assim vais, arrasarás os carceres. É bem de vêr, lá tens as
+tuas razões para querer destruir o inferno; se fosses de melhor casta havias de
+crêr n'elle.<span class="pagenum">{<a name="pag_223">Pg. 223</a>}</span></p>
+
+<h3>III</h3>
+
+<p>Advogados do inferno, que sabeis a tal respeito? Sereis acaso mais
+innocentes do que eu? É verdade que sou peccador. Se todavia as minhas acções e
+as vossas fossem pezadas, talvez eu podesse estar a respeito do futuro tão
+tranquillo como vós. Mas Deus não me ha de comparar comvosco para absolver-me
+ou condemnar-me: será com o modêlo de perfeição que eu tenho no espirito, e que
+eu devêra ter copiado no decurso de minha vida. Não pratiquei&mdash;de mais o
+sei&mdash;todo o bem que podia; condescendi com fraquezas que vós, por ventura,
+não conhecestes; mas talvez que eu, sem que o soubesseis, me esforçasse e
+vencesse nos conflictos em que succumbistes. Eu não vos julgo, ó crentes no
+inferno, que encaraes sem impallidecer; eu, porém, que não creio no vosso
+inferno, não posso sem pavor meditar no julgamento divino. Não desespero na
+bondade de Deus, mas creio em sua justiça, e nutro viventissimo sentimento da
+perfeição evangelica, e por isso mesmo sinto grandissimo pezar de minhas
+culpas, e não me considero isento de expiação.</p>
+
+<p>Oxalá que eu podesse dar de mim melhor testemunho! Podesse eu chegar mais
+confiadamente ao tribunal do soberano juiz! Tivesse eu tão socegado o espirito
+como inculcais o vosso, ou tão puro como vós<span class="pagenum">{<a
+name="pag_224">Pg. 224</a>}</span> imaginais que o tendes! Quem me dera ser
+santo, não aos meus proprios olhos, como dir-se-ha que sois aos vossos, mas aos
+olhos das pessoas de bem e das multidões. Então impugnaria eu a eternidade das
+penas, não já com melhores razões, nem com argumentos de mais justiça, mas com
+a auctoridade que uma vida santa e reconhecida como tal imprime na palavra
+humana. Ha ahi quem se não renda ao vigor de um discurso, e se docilise á
+virtude ou ao renome de quem discorre.</p>
+
+<p>Não discutamos, pois, a minha vida, que eu não tenho que entender com a
+vossa. Em meu soccorro valho-me unicamente do raciocinio; desadoro outro
+prestigio, e não me dobro a outro poder. Refutai-me, se podeis, com razões tão
+claras como as minhas; mas deixemo-nos de insinuações calumniosas; nada de
+injurias. Isso que prova? Quando fosse verdade que todos sois pessoas virtuosas
+que vão direitas ao paraizo, e que eu sou máo, e o peor dos homens, sêde
+francos, seria isso prova de que eu argumento mal, e vós argumentais bem?
+Inferirieis d'ahi o que quer que seja contra a infinita misericordia de Deus? A
+isto é que é preciso responder, senhores. Eu por mim digo que a dôr, n'este e
+no outro mundo, é meio de expiação; digo que a dôr, n'este e no outro mundo,
+acarêa a piedade; digo que o castigo mais justo deve ter fim, e que o perdão é
+o fim, a corôa, a perfeição e explendor das obras da justiça; que um castigo
+infindo seria um castigo desarrasoado, sem escopo, sem<span class="pagenum">{<a
+name="pag_225">Pg. 225</a>}</span> moralidade, inutil ao culpado, ás
+testemunhas e ao juiz;&mdash;um acto de colera, de odio e furor&mdash;um feito
+sombrio e sinistro como transportes de demencia incuravel. Digo que tal crença
+é mal cimentada, e assim funesta em este mundo, como odiosa no outro; que nem o
+mal nem o castigo são eternos; que eterno é só o bem, a omnipotencia, a
+bondade, a justiça e misericordia de Deus, e que estas coisas, que separais,
+são inseparaveis em Deus. Digo, conforme a S. Paulo, que ceo e terra hão de
+passar; que a fé ha de passar tambem, e tambem ha de passar a Esperança, e que
+tudo ha de acabar, salvante a Caridade.</p>
+
+<p>Que vos parece isto? que redarguís? Ser-vos-ha mister mudar a propriedade
+das palavras, crear linguagem nova, dirimir as leis da razão, e cuidar em
+extinguir tanto em vós como nos outros as vivas luzes da consciencia, se
+quereis impugnar estas proposições.</p>
+
+<h3>IV</h3>
+
+<p>Mas ninguem póde desluzir de seu espirito o reflexo que ahi lampeja a
+verdadeira luz, se uma vez a entre-viu. Quando houverdes lido este livro,
+ser-vos-ha aprasivel fechar os olhos, e injuriar-me; não obstante,
+sentir-vos-heis alumiados, crentes na verdade a vosso pezar; e, embora o
+negueis, é a vós mesmos que mentis. Negal-o-heis com a bôcca; mas não com a
+consciencia.<span class="pagenum">{<a name="pag_226">Pg. 226</a>}</span></p>
+
+<h3>V</h3>
+
+<p>Espero resignadamente as insolencias. Se m'as não disserem alto, dil-as-hão
+baixinho. Este livro irá ao <em>Index</em>, e tal, que o não tiver lido, se
+julgará abundantemente auctorisado a prohibil-o aos outros, como livro
+pernicioso. Vedar-se-ha ao peccador inveterado, contentissimo de sua recente
+conversão, de buscar aqui motivos para ser mais humilde; vedar-se-ha á viuva
+lagrimosa de procurar consolar-se n'esta leitura. Divulgar-se-ha que este livro
+é <em>tição do inferno</em>, que queima os dedos que lhe tocam. E ha de haver
+muito quem o diga na melhor boa fé.</p>
+
+<p>A Egreja não alenta curiosidades de espirito. Porquê? De que se teme?
+Profunde-se cada vez mais a moral de Christo; que ella nos irradiará cada vez
+mais formosa, mais salutar e verdadeira. Por si mesma se justifica; dispensa
+pregões; nos labios d'um menino inflora-se tão bella como nos discursos d'um
+sabio.</p>
+
+<p>As leis moraes não são arbitrarias; não são caprichos divinos nem tenebrosos
+decretos cuja sabedoria se esconde á nossa intelligencia. São perfeitamente
+adequadas á nossa natureza e necessidades. Não ha uma só, cuja inobservancia
+não surta graves desordens; uma só que não proteja a dignidade humana, a
+liberdade, o direito, o debil contra o forte, o innocente contra o cavilloso.
+São freio de paixões, luz e regras<span class="pagenum">{<a name="pag_227">Pg.
+227</a>}</span> das acções publicas ou clandestinas, particulares ou
+collectivas, condição que influe no desenvolvimento de nossas faculdades,
+caução de nosso repouso, e complexamente de todos os nossos actos.</p>
+
+<p>A Egreja, n'este ponto, desconhece a sua força, se a discussão a intimida;
+mas, por outro lado, cumpre confessar que ella desconheceria sua fraqueza, se
+tolerasse discussão de certos dogmas, e em particular do dogma das penas
+eternas. Se quer que haja crença no inferno com fé egual á crença da redempção;
+se quer a mesma fé para a colera sem fim e para o amor illimitado, imponha
+silencio a respeito de tudo, que é prudente. Mas d'essa imposição de silencio o
+resultado é este:</p>
+
+<h3>VI</h3>
+
+<p>Resulta que os fieis creiam cegamente coisas profundamente
+contradictorias&mdash;a verdade radiosa e o erro inintelligivel, Deus e
+inferno. Tambem resulta que as multidões sempre a multiplicarem-se rejeitem
+cegamente o inferno, e com o inferno os mais idoneos dictames da moral,
+indiscretamente sumidos n'esse abysmo. Imaginam uns que a mesma voz que ensina
+uma injustiça não póde ensinar uma verdade; imaginam outros que a mesma voz que
+ensina consoladoras verdades, não póde ensinar erros. A má educação, que, no
+rodar de muitos seculos, lhes deram, torna-os<span class="pagenum">{<a
+name="pag_228">Pg. 228</a>}</span> a todos egualmente incapazes de discernir o
+que é falso do que é verdadeiro, na mesma idêa: encaram-na a vulto, qual lh'a
+offerecem, e ou a guardam ou rejeitam á tôa, verdade e mentira de mistura,
+porque ambas as idêas estão identificadas em uma no espirito d'elles.</p>
+
+<p>Todavia todos os partidos são máos, e nenhum póde, relativamente á questão
+presente, socegar a alma. Ainda não encontrei fiel que se me confessasse
+impassivel ao horror das penas eternas, quando pensava n'isso. E tambem não
+encontrareis incredulo que não haja confusamente sentido a precisão de
+sobreviver a si proprio, e não haja suspirado pela justiça do céo, vendo as
+iniquidades da terra. A verdade falla assim ao coração de todo homem,
+alvoroçando-o até que elle a comprehenda.</p>
+
+<p>O fiel diz de si para comsigo: «Deus é cruel»; mas, reportando-se á Egreja,
+cuida que as inspirações de sua consciencia são suggestões diabolicas, e vai
+aterrado rezar diante da cruz um acto de fé em um Deus sem misericordia. Pelo
+contrario, o incredulo diz entre si: «Deus existe; os máos serão castigados»;
+e, se em seguida se aturde e apaga no intimo aquelle presentimento lucido da
+justiça divina, é porque lhe estão sempre figurando o brazido inextinguivel e
+as atrocidades sem fim que enterneceriam tigres e fariam chorar as pedras sobre
+o destino dos condemnados.<span class="pagenum">{<a name="pag_229">Pg.
+229</a>}</span></p>
+
+<h3>VII</h3>
+
+<p>Tal é hoje em dia o estado das almas relativamente a um dos mais importantes
+dogmas da religião. Fé cega, incredulidade cega, fé que acceita um Deus
+vingativo e exclue do céo a piedade, incredulidade que busca um Deus
+compadecido, e, por que não acha piedade no céo, exclue de lá a justiça. E
+entre estes dois bandos de almas atormentadas, está uma corporação docente, que
+se inculca infallivel, mas que, no intento de proteger sua infalibilidade,
+anathematisa a razão humana e excommunga a consciencia.</p>
+
+<h3>VIII</h3>
+
+<p>Eu tenho tido parte nas angustias da fé que, até de olhos fechados, conhece
+que a transviam; e, se, mais tarde, abre os olhos afeitos á escuridão, como os
+de Saul deslumbrado, nada vê, e caminha ás apalpadellas. São passados esses
+dias de turvação; mas talvez n'este livro negrejem vestigios d'elles.</p>
+
+<p>Não achareis n'esta obra um tratado methodico cujas partes se encadeiam e
+deduzem logicamente, desde a primeira até á ultima pagina. Em questão, a um
+tempo, tão complexa e excitante, ser-me-hia custoso sujeitar-me aos vagares do
+methodo. A tal qual<span class="pagenum">{<a name="pag_230">Pg. 230</a>}</span>
+ordem que trava as peças d'este escripto, vem como compendiada no assentamento
+das reflexões e meditações que a formam. Ninguem melhor do que eu sabe quanta
+deficiencia desvalia o escripto. Não importa. Eu, por mim, rodeei o alcaçar de
+Satan; e, se lhe não puz cerco segundo as regras da arte, não lhe deixei parede
+nem pedra que não soffresse algum abalo. Não se faz mister tempestade para lh'o
+baquear: um leve sôpro o fará cahir.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:center;">FIM<span class="pagenum">{<a name="pag_231">Pg.
+231</a>}</span></p>
+</div>
+
+<h1>INDICE</h1>
+
+<table align="center" summary="Indice">
+ <tbody>
+ <tr>
+ <td colspan="2"></td>
+ <td><em>Pag.</em></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td colspan="2">Advertencia do traductor</td>
+ <td><a href="#pag_V">V</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td colspan="2">Prefacio da segunda edição</td>
+ <td><a href="#pag_XIII">XIII</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td colspan="3" style="text-align:center;">INTRODUCÇÃO</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td colspan="2">Dogmas hebraicos</td>
+ <td><a href="#pag_1">1</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">I&mdash;</td>
+ <td>Rebellião de Satanaz</td>
+ <td><a href="#pag_2">2</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">II&mdash;</td>
+ <td>O inferno</td>
+ <td><a href="#pag_3">3</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">III&mdash;</td>
+ <td>Paraizo terreal</td>
+ <td><a href="#pag_5">5</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">IV&mdash;</td>
+ <td>A maldição</td>
+ <td><a href="#pag_6">6</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">V&mdash;</td>
+ <td>Consequencias da maldição</td>
+ <td><a href="#pag_7">7</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">VI&mdash;</td>
+ <td>Comparação da nossa sorte com a de Adão e de Satanaz</td>
+ <td><a href="#pag_10">10</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">VII&mdash;</td>
+ <td>O povo de Deus</td>
+ <td><a href="#pag_11">11</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">VIII&mdash;</td>
+ <td>A egreja e o novo povo de Deus</td>
+ <td><a href="#pag_15">15</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">IX&mdash;</td>
+ <td>Como se prova a verdade dos dogmas hebraicos, e com especialidade a
+ eternidade das penas</td>
+ <td><a href="#pag_18">18</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td colspan="3" style="text-align:center;">PARTE PRIMEIRA</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td colspan="3" style="text-align:center;"><em>Tradições</em></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">Capit. I&mdash;</td>
+ <td>A tradição universal é a prova do inferno?</td>
+ <td><a href="#pag_21">21</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">II&mdash;</td>
+ <td>Explicação natural das tradições pagãs ácerca do inferno</td>
+ <td><a href="#pag_24">24</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">III&mdash;</td>
+ <td>Como o sacerdocio perpetuou estas tradições</td>
+ <td><a href="#pag_26">26</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">IV&mdash;</td>
+ <td>Exemplo de um povo que permaneceu fiel a todas as suas antigas
+ tradições</td>
+ <td><a href="#pag_27">27</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">V&mdash;</td>
+ <td>Effeito d'estas tradições na edade media</td>
+ <td><a href="#pag_29">29</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">VI&mdash;</td>
+ <td>Como a sociedade christã se desvia progressivamente d'aquellas
+ antigas tradições</td>
+ <td><a href="#pag_30">30</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">Capit. II&mdash;</td>
+ <td>A fé nova</td>
+ <td><a href="#pag_33">33</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">I&mdash;</td>
+ <td>Pater noster</td>
+ <td><a href="#pag_33">33</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">II&mdash;</td>
+ <td>O purgatorio</td>
+ <td><a href="#pag_36">36</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">III&mdash;</td>
+ <td>Necessidade do purgatorio</td>
+ <td><a href="#pag_38">38</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">IV&mdash;</td>
+ <td>Mysterios</td>
+ <td><a href="#pag_39">39</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">V&mdash;</td>
+ <td>O paraizo</td>
+ <td><a href="#pag_41">41</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">Capit. III&mdash;</td>
+ <td>Os fructos do inferno</td>
+ <td><a href="#pag_46">46</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">I&mdash;</td>
+ <td>O bem</td>
+ <td><a href="#pag_46">46</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">II&mdash;</td>
+ <td>A carmelita ou o ideal da perfeição theologica</td>
+ <td><a href="#pag_53">53</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">III&mdash;</td>
+ <td>Discurso d'uma mulher de sociedade que havia tocado a
+ perfectibilidade theologica</td>
+ <td><a href="#pag_66">66</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">IV&mdash;</td>
+ <td>Discurso d'um mundano, apoz bastos estudos ácerca da perfeição
+ theologica</td>
+ <td><a href="#pag_69">69</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">V&mdash;</td>
+ <td>O rebanho</td>
+ <td><a href="#pag_73">73</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">Capit. IV&mdash;</td>
+ <td>Outros fructos do inferno</td>
+ <td><a href="#pag_79">79</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">I&mdash;</td>
+ <td>O mal</td>
+ <td><a href="#pag_79">79</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">Capit. V&mdash;</td>
+ <td>Os cinco grupos</td>
+ <td><a href="#pag_87">87</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">I&mdash;</td>
+ <td>O grupo dos philosophos</td>
+ <td><a href="#pag_89">89</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">II&mdash;</td>
+ <td>O grupo dos corruptos</td>
+ <td><a href="#pag_89">89</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">III&mdash;</td>
+ <td>O grupo dos indifferentes</td>
+ <td><a href="#pag_91">91</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">IV&mdash;</td>
+ <td>O grupo dos devotos</td>
+ <td><a href="#pag_93">93</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">V&mdash;</td>
+ <td>O grupo dos santos</td>
+ <td><a href="#pag_99">99</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td colspan="3" style="text-align:center;">SEGUNDA PARTE</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td colspan="3" style="text-align:center;"><em>O inferno considerado
+ além-tumulo, os condemnados na presença de Deus, na presença dos
+ santos, e na presença dos homens</em></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">Capit. I&mdash;</td>
+ <td>O inferno de Platão</td>
+ <td><a href="#pag_103">103</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">Capit. II&mdash;</td>
+ <td>Opinião dos pagãos sobre a situação e vista interior do inferno</td>
+ <td><a href="#pag_108">108</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">Capit. III&mdash;</td>
+ <td>Opinião dos judeus ácerca da vista interior do inferno</td>
+ <td><a href="#pag_112">112</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">Capit. IV&mdash;</td>
+ <td>O inferno dos theologos</td>
+ <td><a href="#pag_117">117</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">I&mdash;</td>
+ <td>O inferno material</td>
+ <td><a href="#pag_117">117</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">II&mdash;</td>
+ <td>Reflexões sobre as penas materiaes dos condemnados</td>
+ <td><a href="#pag_125">125</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">III&mdash;</td>
+ <td>Os martyres de Nero</td>
+ <td><a href="#pag_128">128</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">IV&mdash;</td>
+ <td>O inferno espiritual</td>
+ <td><a href="#pag_130">130</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">V&mdash;</td>
+ <td>Continuação</td>
+ <td><a href="#pag_134">134</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">VI&mdash;</td>
+ <td>Da immortalidade das penas espirituaes do inferno</td>
+ <td><a href="#pag_136">136</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">VII&mdash;</td>
+ <td>Ultimas considerações ácerca do inferno theologico</td>
+ <td><a href="#pag_140">140</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">Capit. V&mdash;</td>
+ <td>Sursum corda</td>
+ <td><a href="#pag_143">143</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">Capit. VI&mdash;</td>
+ <td>A parabola do rico avarento</td>
+ <td><a href="#pag_151">151</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">Capit. VII&mdash;</td>
+ <td>Terra, inferno, céo</td>
+ <td><a href="#pag_154">154</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">I&mdash;</td>
+ <td>Terra</td>
+ <td><a href="#pag_154">154</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">II&mdash;</td>
+ <td>Ceo</td>
+ <td><a href="#pag_155">155</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">Capit. VIII&mdash;</td>
+ <td>Historia d'um sonho</td>
+ <td><a href="#pag_157">157</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">Capit. IX&mdash;</td>
+ <td>Judas Iscariote</td>
+ <td><a href="#pag_170">170</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">Capit. X&mdash;</td>
+ <td>Conclusão em fórma de parabola</td>
+ <td><a href="#pag_181">181</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td colspan="2" style="text-align:center;">APPENDICE</td>
+ <td></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">Capit. I&mdash;</td>
+ <td>Provas mysticas do inferno</td>
+ <td><a href="#pag_185">185</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">I</td>
+ <td>Da auctoridade da Biblia</td>
+ <td><a href="#pag_185">185</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">II</td>
+ <td>Da auctoridade da Egreja</td>
+ <td><a href="#pag_191">191</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">III</td>
+ <td>Conclusão do que fica dito</td>
+ <td><a href="#pag_199">199</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">Capit. II&mdash;</td>
+ <td>Resposta a uma objecção</td>
+ <td><a href="#pag_201">201</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">Capit. III&mdash;</td>
+ <td>Descida de Christo aos infernos</td>
+ <td><a href="#pag_210">210</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="text-align:right;">Capit. IV&mdash;</td>
+ <td>Advertencia final</td>
+ <td><a href="#pag_216">216</a></td>
+ </tr>
+ </tbody>
+</table>
+
+<p><span class="pagenum">{<a name="pag_234">Pg. 234</a>}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:center;"><small>N.º 423&mdash;Porto: Typographia da
+livraria Nacional, Laranjal, 2 a 22&mdash;1871</small><span class="pagenum">{<a
+name="pag_235">Pg. 235</a>}</span></p>
+
+<p><span class="pagenum">{<a name="pag_236">Pg. 236</a>}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h4>Erros corrigidos</h4>
+
+<table align="center" summary="errata">
+ <tbody>
+ <tr>
+ <th>Pág.</th>
+ <th>no original</th>
+ <th>correcção</th>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><a href="#pag_12">12</a></td>
+ <td>divindidade</td>
+ <td>divindade</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><a href="#pag_12">12</a></td>
+ <td>todas as religões eram</td>
+ <td>todas as religiões eram</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><a href="#pag_151">151</a></td>
+ <td>CAPITULO SETIMO</td>
+ <td>CAPITULO SEXTO</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><a href="#pag_154">154</a></td>
+ <td>CAPITULO OITAVO</td>
+ <td>CAPITULO SETIMO</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><a href="#pag_199">199</a></td>
+ <td>Espirto Santo</td>
+ <td>Espirito Santo</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><a href="#pag_215">215</a></td>
+ <td>particuralisada</td>
+ <td>particularisada</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><a href="#pag_217">217</a></td>
+ <td>pupulares</td>
+ <td>populares</td>
+ </tr>
+ </tbody>
+</table>
+
+
+
+
+
+
+
+<pre>
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of O Inferno, by Auguste Callet
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O INFERNO ***
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+If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project
+Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the
+terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or
+entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8.
+
+1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be
+used on or associated in any way with an electronic work by people who
+agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few
+things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
+even without complying with the full terms of this agreement. See
+paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project
+Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
+and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
+works. See paragraph 1.E below.
+
+1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
+or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
+Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the
+collection are in the public domain in the United States. If an
+individual work is in the public domain in the United States and you are
+located in the United States, we do not claim a right to prevent you from
+copying, distributing, performing, displaying or creating derivative
+works based on the work as long as all references to Project Gutenberg
+are removed. Of course, we hope that you will support the Project
+Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by
+freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of
+this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with
+the work. You can easily comply with the terms of this agreement by
+keeping this work in the same format with its attached full Project
+Gutenberg-tm License when you share it without charge with others.
+
+1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern
+what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in
+a constant state of change. If you are outside the United States, check
+the laws of your country in addition to the terms of this agreement
+before downloading, copying, displaying, performing, distributing or
+creating derivative works based on this work or any other Project
+Gutenberg-tm work. The Foundation makes no representations concerning
+the copyright status of any work in any country outside the United
+States.
+
+1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg:
+
+1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate
+access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently
+whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the
+phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project
+Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed,
+copied or distributed:
+
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+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
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+from the public domain (does not contain a notice indicating that it is
+posted with permission of the copyright holder), the work can be copied
+and distributed to anyone in the United States without paying any fees
+or charges. If you are redistributing or providing access to a work
+with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the
+work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1
+through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the
+Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or
+1.E.9.
+
+1.E.3. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted
+with the permission of the copyright holder, your use and distribution
+must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional
+terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked
+to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the
+permission of the copyright holder found at the beginning of this work.
+
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+License terms from this work, or any files containing a part of this
+work or any other work associated with Project Gutenberg-tm.
+
+1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this
+electronic work, or any part of this electronic work, without
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+active links or immediate access to the full terms of the Project
+Gutenberg-tm License.
+
+1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary,
+compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any
+word processing or hypertext form. However, if you provide access to or
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+"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version
+posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org),
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+request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other
+form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm
+License as specified in paragraph 1.E.1.
+
+1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
+performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works
+unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.
+
+1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing
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+that
+
+- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
+ the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
+ you already use to calculate your applicable taxes. The fee is
+ owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
+ has agreed to donate royalties under this paragraph to the
+ Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments
+ must be paid within 60 days following each date on which you
+ prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
+ returns. Royalty payments should be clearly marked as such and
+ sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
+ address specified in Section 4, "Information about donations to
+ the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."
+
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+ you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
+ does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
+ License. You must require such a user to return or
+ destroy all copies of the works possessed in a physical medium
+ and discontinue all use of and all access to other copies of
+ Project Gutenberg-tm works.
+
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+ money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
+ electronic work is discovered and reported to you within 90 days
+ of receipt of the work.
+
+- You comply with all other terms of this agreement for free
+ distribution of Project Gutenberg-tm works.
+
+1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
+electronic work or group of works on different terms than are set
+forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
+both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
+Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the
+Foundation as set forth in Section 3 below.
+
+1.F.
+
+1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
+effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
+public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
+collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
+works, and the medium on which they may be stored, may contain
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+is also defective, you may demand a refund in writing without further
+opportunities to fix the problem.
+
+1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth
+in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
+WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
+WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.
+
+1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied
+warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
+If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
+law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
+interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
+the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any
+provision of this agreement shall not void the remaining provisions.
+
+1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
+trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
+providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
+with this agreement, and any volunteers associated with the production,
+promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
+harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
+that arise directly or indirectly from any of the following which you do
+or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
+work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
+Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.
+
+
+Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm
+
+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
+electronic works in formats readable by the widest variety of computers
+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
+people in all walks of life.
+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
+809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at https://pglaf.org
+
+For additional contact information:
+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
+
+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit https://pglaf.org
+
+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including including checks, online payments and credit card
+donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate
+
+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
+keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
+
+
+Most people start at our Web site which has the main PG search facility:
+
+ https://www.gutenberg.org
+
+This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
+including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
+Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
+subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
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