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+ <title>Noites de Insomnia, offerecidas a quem não póde dormir, nº 4</title>
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+The Project Gutenberg EBook of Noites de insomnia, offerecidas a quem não
+póde dormir. Nº4, by Camilo Castelo Branco
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
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+Title: Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº4
+
+Author: Camilo Castelo Branco
+
+Release Date: April 21, 2008 [EBook #25114]
+
+Language: Portuguese
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+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK NOITES DE INSOMNIA, NO 4 ***
+
+
+
+
+Produced by Pedro Saborano
+
+
+
+
+
+</pre>
+
+<span class='pagenum'>[1]</span>
+<div class="capa">
+<p style="font-size: 1.2em;">BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA</p>
+<hr style="width: 6em;">
+<p style="font-size: 2em;">NOITES DE INSOMNIA</p>
+
+<p style="font-size: 0.7em;">OFFERECIDAS</p>
+
+<p>A QUEM NÃO PÓDE DORMIR</p>
+
+<p style="font-size: 0.7em;">POR</p>
+
+<p style="font-size: 1.2em;">Camillo Castello Branco</p>
+<hr style="width: 3em;">
+<p style="font-size: 0.7em;">PUBLICAÇÃO MENSAL</p>
+<br>
+<hr style="width: 3em;">
+<p style="font-size: 0.9em;">N.º 4--ABRIL</p>
+<hr style="width: 3em;">
+
+<table width="100%">
+<tr>
+<th colspan=2>
+LIVRARIA INTERNACIONAL<br>
+<span style="font-size: 0.7em;">DE</span>
+</th>
+</tr>
+<tr>
+<td style="border-right: solid 1px #000000;">
+<span style="font-size: 0.9em;">
+ERNESTO CHARDRON
+<br>
+<em>96, Largo dos Clerigos, 98</em><br>
+<strong>PORTO</strong>
+</span>
+</td>
+<td>
+<span style="font-size: 0.9em;">EUGENIO CHARDRON<br>
+<em>4, Largo de S. Francisco, 4</em><br>
+<strong>BRAGA</strong>
+</span>
+</td>
+</tr>
+</table>
+<hr style="width: 2em;">
+<p style="font-size: 0.9em;">1874</p>
+</div>
+<span class='pagenum'>[2]</span>
+
+<div id="impressor" style="text-align: center;">
+<br>
+<br>
+<br>
+<br>
+<hr style="width: 8em;">
+<p>PORTO</p>
+
+<p style="font-size: 0.9em;">TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA</p>
+
+<p style="font-size: 0.8em;">68--Rua da Cancella Velha--62</p>
+<hr style="width: 2em;">
+<p style="font-size: 0.9em;">1874</p>
+</div>
+<span class='pagenum'>[3]</span>
+
+<div id="sumario">
+<p style="text-align: center; font-size: 1.5em;">
+BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA
+</p>
+<hr style="width: 4em;">
+<p style="text-align: center; font-size: 2em;">
+NOITES DE INSOMNIA
+</p>
+<hr style="width: 4em;">
+<p style="text-align: center; font-size: 1.5em;">
+<strong>SUMMARIO</strong>
+</p>
+<p>
+<em><a href="#cap01">O cofre do capitão-mór</a>
+-- <a href="#cap02">O jogador</a>
+-- <a href="#cap03">Inedito do poeta Fr. Bernardo de Brito</a>
+-- <a href="#cap04">Lisboa</a>
+-- <a href="#cap05">Litteratura brazileira</a>
+-- <a href="#cap06"><em>Á «Actualidade»</em></a>
+-- <a href="#cap07">A ex.<sup>ma</sup> madrasta d'el-rei D. Luiz 1.º calumniada</a>
+-- <a href="#cap08">Os salões, pelo exc.<sup>mo</sup> snr. visconde de Ouguella</a>
+-- <a href="#cap09">O decepado</a>
+-- <a href="#cap10">Caridade barata e elegante</a>
+-- <a href="#cap11">Profunda reforma nos costumes da via-ferrea portugueza</a>
+-- <a href="#cap12">Formosa e infeliz</a>
+-- <a href="#cap13">Antonio Serrão de Castro</a></em>
+</p>
+</div>
+<span class='pagenum'>[5]</span>
+<div id="corpo">
+<hr>
+
+
+
+<a name="cap01"></a>
+<h1>O COFRE DO CAPITÃO-MÓR</h1>
+
+
+<p>O homem, concluida a guerra do Paraguay,
+liquidou quinhentos contos, e retirou-se com
+esposa e filha para Mondim de Basto, sua patria.</p>
+
+<p>Passou, acaso, um dia por perto das ruinas
+de um casarão, reparou na pedra de armas que
+encimava um vasto portal de quinta, e perguntou
+de quem eram aquelles pardieiros.</p>
+
+<p>O abbade, a quem a pergunta era feita, respondeu:</p>
+
+<p>--São da fazenda nacional, que se está cobrando,
+ha trinta e dous annos, de uma divida
+antiga de impostos e respectivos juros e custas.</p>
+
+<p>--E, depois que a fazenda nacional estiver
+embolsada, de quem é isto?</p>
+
+<p>--Veremos a qual dos credores a lei dá a primazia--tornou
+o abbade.</p>
+<span class='pagenum'>[6]</span>
+
+<p>--Acho que os donos d'estes pardieiros eram
+fidalgos, porque tem armas reaes á porta--volveu
+o brazileiro pouco versado em heraldica.</p>
+
+<p>--Estas armas não são as reaes--explicou o
+padre--é o brazão de Pachecos e Andrades,
+muito illustres senhores d'este paço, que, em bons
+tempos, se chamou a honra de Real de Oleiros.</p>
+
+<p>--Cahiram em pobreza?</p>
+
+<p>--Sim, senhor; mas pobreza que tem uma
+historia interessante. Meu avô conheceu esta familia
+no galarim. Contava elle que o capitão-mór
+Pedro Pacheco estava em Lisboa, quando o marquez
+de Tavora, com os seus parentes, tentaram
+matar D. José, que era o amante da marqueza
+nova. Havia marqueza velha e nova, como sabe...</p>
+
+<p>--A fallar a verdade, não sei isso muito bem--atalhou
+ingenuamente o snr. José Maria Guimarães--Então
+como foi lá essa pouca vergonha?</p>
+
+<p>--Contos largos. A marqueza velha foi degolada,
+por não aceitar a prostituição da nora; a
+marqueza nova foi para um mosteiro bem regalado,
+em quanto o marido ia para a masmorra, e
+da masmorra para o cadafalso. Contos largos,
+amigo e snr. Guimarães. Vamos cá ao nosso caso.
+O capitão-mór Pedro Pacheco era muito de casa
+do duque de Aveiro; e, como eu disse, estava em
+<span class='pagenum'>[7]</span>
+Lisboa, quando o duque foi preso na quinta de
+Azeitão. Assim que o soube, fugiu, e não fez mal;
+porque foi procurado lá e aqui. Logo que chegou
+a esta casa, que era então um paço feudal, deu
+ordem á mulher que se preparasse e mais dous
+filhos menores para sahirem do reino. E, em
+quanto enfardelavam as bagagens, o capitão-mór
+mandou chamar meu avô, lavrador abastado, alferes
+de ordenanças, e muito seu amigo, para lhe
+entregar um cofre de pau preto com braçadeiras
+de bronze, cheio de peças. O cofre era tão leve
+ou tão pesado que meu avô, querendo erguel-o
+pelas argolas, gemeu. Lá por noite fora, pegaram
+os dous no cofre, transportaram-o á casa que
+ainda é a minha, e metteram-o n'um falso que ficava
+escondido pelas costas do leito de meu avô.
+Disse então o fidalgo ao depositario da sua riqueza
+que n'aquelle caixote estavam trezentos mil e
+tantos cruzados em dobrões e peças de ouro, e
+outras moedas muito antigas. Disse mais que a
+sua casa ficava exposta a buscas de quadrilheiros
+e de tropa, que era o mesmo que deixal-a franca
+aos assaltos dos ladrões. Por tanto, confiava de
+meu avô o seu dinheiro, sentindo não ter mais
+valiosas cousas que confiar á sua honra.</p>
+
+<p>--Trezentos mil cruzados!--murmurou o
+<span class='pagenum'>[8]</span>
+snr. Guimarães, esbugalhando os olhos--era bem
+bom d'elle! E depois?</p>
+
+<p>--O fidalgo foi para Hespanha, e para Inglaterra,
+onde tinha um seu parente embaixador, e
+por lá esteve alguns annos. N'este comenos, meu
+avô pegou de adoentar-se de molestia ethica, e
+escreveu ao capitão-mór, pintando-lhe o seu estado,
+e pedindo-lhe que viesse ou mandasse tomar
+conta do cofre. O fidalgo appareceu aqui uma
+noite com o maior resguardo, e metteu-se no seu
+palacio, confiando-se de um criado sómente a
+quem deixára a feitorisação das terras. De madrugada,
+mandou chamar meu avô, passaram
+juntos o dia, e de noite trouxeram ambos o cofre.
+Contava meu pai,--parece que o estou ouvindo,--que
+meu avô muitas vezes lhe dissera que
+o fidalgo não declarára onde tencionava esconder
+o thesouro; mas positivamente lhe dissera que o
+não levava para Inglaterra, já por temer ladrões,
+já porque não precisava gastar mais que os rendimentos
+da sua grande casa.</p>
+
+<p>Meu avô morreu d'ahi a mezes; e o capitão-mór
+voltou para a patria, no anno de 1777, quando
+D. José morreu, e o marquez de Pombal foi
+desterrado.</p>
+
+<p>--Essa não sabia eu!--atalhou com civico
+enleio o snr. Guimarães.</p>
+<span class='pagenum'>[9]</span>
+
+<p>--Que é que v. s.<sup>a</sup> não sabia?</p>
+
+<p>--Que o grande marquez foi desterrado!
+Quem foram os marotos que...</p>
+
+<p>--São contos largos, snr. Guimarães. Vinha
+eu contando que o capitão-mór voltou, já viuvo,
+com dous filhos barbados, muito extravagantes,
+sem religião de casta nenhuma, criados entre hereges,
+destemidos, e levadinhos de todos os diabos.
+Ainda não ha muitos annos que morreram dous
+velhos do seu tempo que me contaram as malfeitorias
+que elles praticavam. Batiam a matar em todas
+as ordenanças que por ordem superior lhe tinham
+entrado em casa á procura do pai. Deshonestavam
+todas as cachopas d'estas tres leguas em roda.
+Em fim, amarguraram a velhice do pai, que
+era um santo homem, a ponto de lhe roubarem
+as pratas porque elle lhes não dava quanto dinheiro
+pediam. Finalmente, o velho morreu de
+repente em 1782, segundo reza o epitaphio que
+está na igreja de Refojos, convento que elle e seus
+ascendentes haviam beneficiado...</p>
+
+<p>--E os trezentos mil cruzados?--interrompeu
+o brazileiro.</p>
+
+<p>--Lá vou já. Assim que o pai se finou, os dous
+filhos abriram todas as gavetas, levantaram taboas,
+desladrilharam as lojas, escavaram debaixo
+dos toneis, escalavraram os forros, e nada toparam.
+<span class='pagenum'>[10]</span>
+Revolveram todos os papeis, a vêr se encontravam
+alguma indicação do dinheiro; e, com
+effeito, em um papelucho mettido n'uma carteira
+vermelha, acharam isto, que meu pai leu tambem:
+<em>Póde ser que a pobreza vos não corrija; mas
+a riqueza de certo vos faria tigres. Eu não morrerei
+com o remorso de vos deixar nas mãos o peor
+instrumento dos perversos, que é o ouro não adquirido
+com o proprio suor.</em> Tomaram-se de raiva,
+e romperam direitos a casa de meu pai, perguntando-lhe
+pelo dinheiro do seu.</p>
+
+<p>--Não ha duvida--respondeu meu pai--que
+n'esta casa e n'aquelle falso esteve um cofre do
+snr. capitão-mór; mas, alguns mezes antes de dar
+a alma a Deus, meu pai, que era honrado, entregou
+o cofre a quem lh'o dera a guardar.</p>
+
+<p>--E depois?--bradaram elles.</p>
+
+<p>--Depois, nada mais sei, senão isto que seu
+paisinho me repetiu muitas vezes.</p>
+
+<p>--Nós havemos de achar os ladrões.</p>
+
+<p>--Pois é procural-os--disse meu pai.</p>
+
+<p>Volveram a casa, e amarraram de pés e mãos
+o velho feitor do capitão-mór, determinados a não
+o desatarem sem elle denunciar a paragem do thesouro;
+porque o velho declarára que ninguem,
+senão elle, soubera da vinda do capitão-mór á patria,
+em quanto vegetou el-rei D. José, e o marquez
+<span class='pagenum'>[11]</span>
+de Pombal reinou. O feitor deixava-se martyrisar
+e morrer, ou porque realmente nada sabia,
+ou porque esperava que a final o deixassem.
+O caso é que, depois de solto, desappareceu d'estas
+terras, e nunca mais houve novas d'elle. Muita
+gente suppoz que o feitor levou os trezentos e
+tantos mil cruzados; mas meu pai, que o conheceu
+e teve em conta de muito honrado, affirmou que
+o dinheiro estava enterrado. Não sei; mas o desapparecimento
+do criado confidente do capitão-mór,
+a meu vêr, deixa suppôr que a estas horas,
+lá por esses reinos estrangeiros, vivem muito ricos
+os filhos do feitor. Deus sabe o que foi.</p>
+
+<p>--E então os dous filhos do capitão-mór ficaram
+pobres?--tornou o snr. Guimarães.</p>
+
+<p>--Pobres?! não, senhor. Quem tem sete
+quintas, que rendiam cinco a seis mil cruzados,
+que ha oitenta annos valiam dezoito mil cruzados
+de hoje em dia, não é pobre. O que elles fizeram
+foi tratar de se empobrecer. O morgado por aqui
+ficou, entretido com mulheres, galgos, caçadas,
+cavallos, feiras, jogo e valentias. O outro, que
+teve duas quintas de patrimonio, reduziu-as a
+moeda sonante, e foi para Lisboa requerer não
+sei que recompensas a D. Maria I, pensando que
+o ser seu pai amigo do duque de Aveiro, lhe dava
+direito a ser galardoado. Ora, se elle soubesse
+<span class='pagenum'>[12]</span>
+que a filha de D. José negou ao desventurado, ao
+innocente e quasi mendigo D. Martinho de Mascarenhas
+os bens de seu pai, duque de Aveiro,
+não iria allegar como cousa digna de premio o
+affecto do capitão-mór ao regicida suppliciado.</p>
+
+<p>--Conte-me lá isso por miudos...--atalhou o
+brazileiro que não lêra a <em>Historia portugueza</em> do
+snr. Viale.</p>
+
+<p>--São contos largos. Vamos primeiro á historia
+do ultimo senhor da honra do Real de
+Oleiros--respondeu o abbade, e continuou:
+Não sei onde nem quando morreu Sebastião
+Pacheco de Andrade, o filho segundo do capitão-mór.
+Ouvi, porém, dizer que morrêra novo,
+pobre e deshonrado. Quanto ao morgado, sei
+que elle casou com a menos digna das suas concubinas,
+já quando não toparia menina honesta
+que aceitasse o fidalgo de Real de Oleiros. Christovão
+Pacheco, apesar da libertinagem e desperdicio,
+ainda gozava o que se chama decente mediania,
+quando sahiu d'este mundo, antes dos
+cincoenta annos. Teve um filho ante-nupcial da
+criada com quem casou. Este conheci eu mui de
+perto e em conflicto muito deploravel, como lhe
+contarei. O pai, que desprezava frades, e zombava
+da religião, mandara-o educar em religião
+e com um parente frade da ordem benedictina.
+<span class='pagenum'>[13]</span>
+O rapaz alegrou-se grandemente ao noticiarem-lhe
+que o pai era morto e elle herdeiro.
+Veio aqui, por ahi esteve dous annos socegadamente,
+olhando pelos bens, posto que debaixo
+de tutela; e, quando orçava pelos dezenove annos,
+tão grandes amostras dava de homem de
+bem que se lhe offereceu para esposa uma senhora
+de linhagem illustre e dotada com vinte
+mil cruzados. Emancipado pelo casamento, apossou-se
+do casal, desempenhou parte das quintas
+hypothecadas, e manteve bons creditos por espaço
+de alguns annos.</p>
+
+<p>Em 1832 era elle ainda muito rapaz, e já então
+vestia a farda de capitão de milicias. Esteve
+no cerco do Porto, onde consta que procedera
+valentemente. Porém, no fim da guerra, os bons
+costumes com que sahira d'esta casa por lá ficaram.
+O homem voltou tão diverso, tão estragado
+na moral, que já ninguem o via e ouvia que se
+não lembrasse do pai. A esposa não sei se por
+santa, se por peccadora, fugiu-lhe com uma criança
+de cinco annos para a casa d'onde viera; e
+elle, hypothecando os bens já deteriorados com
+as prodigalidades da vida militar, levantou muitos
+contos de reis, e estabeleceu-se em Lisboa.</p>
+
+<p>Desde 1836 a 1843, o seu viver na capital deu
+brado por <em>aventuras amorosas</em>, como lá dizem os
+<span class='pagenum'>[14]</span>
+salteadores da honra das familias. Pedro de Andrade,
+que assim se chamava, como seu avô, era
+um homem gentil, bem feito, galhardo, e muito
+airoso. Tinha as seducções de Satanaz feito homem.
+A corrupção de Lisboa era grande, e elle
+ainda maior; mas desgraçadamente, o maldito
+empestou muita menina innocente, e abriu muitos
+abysmos aos pés das virgens que pareciam
+ter postos no céo os olhos contemplativos.</p>
+
+<p>--Que grande maroto!--disse o brazileiro.</p>
+
+<p>--Em 1843, depois de uma ausencia de seis
+annos, appareceu aqui, de repente, Pedro de
+Andrade, e procurou-me a fim de me propôr a
+compra dos bens que ainda não estavam captivos
+de dividas. Eu desculpei-me com a falta de
+dinheiro, e outros aceitavam a proposta, se a
+mulher assignasse os contractos. N'este entretanto,
+recebi de Lisboa certa gazeta de que era assignante,
+onde li uma noticia que me abalou dolorosamente.
+E, estando em minha casa Pedro
+de Andrade, perguntei-lhe se tinha noticia do
+triste successo contado pelas gazetas.--Qual
+successo?--perguntou elle. «Eu lh'o leio»
+disse eu; e visto que estamos á minha porta,
+queira o snr. Guimarães entrar, que eu lhe vou
+lêr a gazeta, que Pedro de Andrade ouviu com
+inalterado semblante.</p>
+<span class='pagenum'>[15]</span>
+
+<p class="centrado">*<br>* &nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp; *</p>
+
+<p>O brazileiro entrou na saleta do abbade, que
+tirou da estante dos seus livros a <em>Revista Universal
+Lisbonense</em> de 1843; e leo, a paginas 23, o seguinte:</p>
+<br>
+
+<p class="centrado">«A POMBA E O ABUTRE</p>
+
+<p>«Quasi todos os papeis publicos transcreveram
+do <em>Portugal Velho</em> o caso de uma donzella
+fugida do paço real. Levantaram sobre isto altos
+clamores contra ella, contra o seductor, contra a
+perda da proverbial gravidade do palacio portuguez.
+Sentimol-o o calamos.--Era assumpto melindroso;
+para relatar e sentenciar careciamos
+ainda de evidencia. Hoje suppômo-nos habilitados
+para ratificar e completar a narração de um
+successo que, devida ou indevidamente, já cahiu
+no dominio do publico, e não é possivel extorquir-se-lhe
+da memoria.</p>
+
+<p>«No palacio velho da Ajuda vegetam ainda
+umas cincoenta ou mais solitarias, que, opprimidas
+dos annos e das molestias, recebem da caridade
+da soberana o pão pelos serviços, que outr'ora
+prestaram ás rainhas e princezas suas ascendentes;--são
+<span class='pagenum'>[16]</span>
+os ornamentos partidos e desfigurados
+de um seculo, que desabou para nunca
+mais ser reconstruido.--Todas estas mulheres
+são tristes como reliquias de tempos festivos,
+saudosas, ou antes, saudades ellas mesmas:--a
+presença de todas e de cada uma, aggrava a
+cada uma e a todas ellas a melancolia do crepusculo
+da morte, que já lhes vem anoitecendo.--Todo
+o reboliço, todas as quotidianas transformações
+materiaes, moraes e politicas da visinha
+capital, onde já foram vivas, moças e brilhantes,
+ou não chegam alli, ou só chegam como
+uns contos vãos e longinquos, como sonhos de
+cousas passadas em outro planeta: ¿que tem ellas
+que vêr no berço que se apparelha para uma
+nova idade?--ellas, que já pendem para o sepulchro,
+a contemplar no fundo d'elle tantas cousas
+louçãs e vivazes, que lhes pertenciam!</p>
+
+<p>«Entretanto no meio d'este palacio de tristezas
+volteava ainda um raio de sol; um arbusto
+florejava purpuras no meio d'este cemiterio; uma
+avesinha cantava primavera entre o desconsolo
+d'estas ruinas; uma viração deliciosa fazia ás vezes
+susurrar agradavelmente estes musgos resequidos.
+Tudo isto era a joven Maria, lindeza de
+18 annos, lindeza corporal como poucas, lindeza
+de espirito como ainda menos, lindeza de coração
+<span class='pagenum'>[17]</span>
+como quasi nenhuma, sobrinha e companheira
+de uma d'estas velhas, companheira e
+amiga de todas ellas. Maria, era realmente o feitiço,
+a Vida e o encantamento d'aquelle retiro
+sem porvir. Toda a casa a amava: era uma paga
+de divida; Maria queria-lhe muito, quasi que alli
+abrira os olhos, pelo menos outra nenhuma lhe
+lembrava; sob aquelles tectos brincára desde a
+idade de tres annos; entre aquellas cabeças encanecidas
+se fôra coroando a sua de longas tranças
+louras: entre o crescer de tantas rugas se
+desenvolveram e aperfeiçoaram as suas graças;
+entre o progressivo decahir de tantas prendas e
+esperanças como as folhas verde-pallidas que em
+pomar de outomno se despegam uma a uma, os
+seus talentos naturaes por uma desvelada educação,
+que a munificencia da snr.ª D. Maria I proporcionára
+a sua tia os meios de lh'a dar, tinham
+chegado ao seu maior auge.</p>
+
+<p>«Maria do Carmo reunia ás prendas manuaes
+proprias do seu sexo, um lêr e escrever primoroso,
+noções e gosto de litteratura, mórmente da
+franceza, em cuja lingua era mui versada, e musica,
+merecendo no piano as honras de mestra, e
+por corôa de elogio verdadeiro, os seus costumes
+eram puros e o seu coração religioso: nas
+orações que todas iam quotidianamente depôr
+<span class='pagenum'>[18]</span>
+aos pés do altar, as d'ella deviam rescender mais
+a innocente alegria que a temores ou remorsos.--A
+25 de junho orava no côro com sua tia
+quando o relogio dos paços bateu as 6 da tarde.
+Levanta-se, pede licença para deixar o restante
+para depois, e ir entregar--que o prometteu--um
+debuxo de bordados a uma sua amiga fóra
+da casa.</p>
+
+<p>«Foi: correram horas, e não voltou.</p>
+
+<p>«Começaram e cresceram cuidados: mandou-se
+á busca por todas as partes: passou o serão,
+passou a noite, e passaram tambem dias,
+sem que a tornassem a vêr, nem a ouvir d'ella
+nova alguma.</p>
+
+<p>«N'essa tarde alguem se lembra de ter notado
+uma sege parada debaixo da arcada do paço.
+E um morador da casa acrescenta que, perto da
+noite, achando-se no caes do Sodré, vira chegar
+uma sege á porta de uma hospedaria, e um homem
+de chapéo branco apear uma menina, que
+lhe pareceu ella.</p>
+
+<p>«Devolvidos quatro mortaes dias, chega no
+domingo um gallego com uma carta para a consternada
+tia:--entrega-lh'a em mão propria, e
+ajunta, havel-a recebido de uma menina mui
+linda, que lavada em lagrimas e afogada em soluços
+lhe recommendára fosse leval-a correndo,
+<span class='pagenum'>[19]</span>
+e lhe trouxesse signal de ter sido recebida. O
+conteudo d'esta carta ninguem o soube, mas parte
+d'elle facilmente se póde presumir.--Ás nove
+horas d'essa mesma noite viram-se sahir pela
+portaria dous vultos rebuçados, que por mais
+que a porteira os interrogasse, partiram sem dar
+resposta. Á hora e meia da noite os mesmos
+dous vultos vieram bater á porta, trazendo entre
+si amparado e quasi em braços um terceiro, que
+ninguem reconheceu. Abriram uma porta, que
+havia muito não servia, e que dava passagem
+para a pousada da fugitiva, e entraram.</p>
+
+<p>«Pessoa do sitio por quem isto soubemos,
+nos acrescentou, que o estado de Maria na seguinte
+manhã, segundo lh'o descrevêra quem
+acabava de a vêr, cortava o coração. As suas
+tranças louras e espessas tinham desapparecido.
+O seu rosto pendia pallido e esmorecido. Duas
+fontes corriam dos seus olhos. A sua dôr via-se e
+era terrivel porque era muda.</p>
+
+<p>«As suas o occupações desde então teem sido
+orar e chorar: com isto leva no oratorio as horas
+do dia e da noite, abraçada com a imagem
+da consoladora dos afflictos, beijando-a nos
+pés, nas mãos e no rosto como filha a sua mãi--como
+filha prodiga, que procura, á força de
+se restituir toda, reconquistar o coração materno;
+<span class='pagenum'>[20]</span>
+como se coração materno se apartasse nunca.
+O pai aggravado perdôa, a mãi não, toda ella
+foi sempre amor, e o amor não sabe senão
+amar.</p>
+
+<p>«A unica pessoa, que além de sua tia, a tem
+visto, é o medico, alma sensivel, de quem recebe
+os soccorros mais assiduos e delicados. Entretanto
+o mal que a mina é grave. Quasi privada
+do alimento e do somno, os seus dias parecem
+ameaçados de um fim prematuro. Se a violencia
+mesma da sua dôr lhe não limitar em breve a
+duração, outro perigo pouco menos cruel que
+o da morte, parece ameaçal-a. O pranto continuo
+que afoga os seus olhos, receia-se que venha
+por ultimo a lh'os apagar, e que a pobresinha
+que, ainda ha pouco, era o raio de sol de toda
+a habitação, venha ainda a ser, mergulhada
+em trevas e sobrevivendo a si mesma, um objecto
+de profunda e esteril compaixão para tantas
+infelizes, a quem ella, pouco ha, repartia alegrias
+e emprestava mocidade.</p>
+
+<p>¡¿E agora quem a condemnará por um erro,
+cuja origem e historia nos são desconhecidos?!
+¿quem a apedrejará entre os braços, sob
+o manto e sob os olhos da rainha dos anjos, que
+lhe deu o seu nome, lhe chama filha sua e com a
+vista serena e amorosa lhe está apontando para
+<span class='pagenum'>[21]</span>
+as alturas?! ¡¡¡Que delictos e crimes (quanto
+mais erros)! deixariam de se lavar com tantas lagrimas!!!
+¡¡¡E ha entretanto aqui um homem,
+talvez entre nós, talvez festejado e respeitado--um
+homem, que ella generosa não nomeia, não
+nomeará nunca--um homem, cujo rosto mais
+duro que o de Caím se não transformou, se não
+tingiu de repente na côr de sua alma para o denunciar,
+como sacrificador da innocencia, da
+virtude, da formosura, e do amor, de um amor
+irresistivel, inspirado por elle, e que a elle sacrificava
+tudo até a vida,--tudo até o porvir--tudo--tudo
+até a honra!!! ¡¡¡Ha ahi um homem
+d'estes!! ¡Ha-o sem duvida! e se as justiças o
+descobrissem, este homem receberia uma pena:
+menos affrontosa que a do ladrão assassino... Este
+homem não havia de ser mandado por todas
+as cidades e villas do reino de braço dado com o
+carrasco, para ser atado a cada pelourinho, escarrado
+no rosto por todos os homens e mulheres,
+e esbofeteado depois pelo seu menos infame
+companheiro de jornada com a mão esquerda.
+Não: que importa o que padece uma mulher?
+Não crêsse nas palavras de quem a fascinára;
+não fosse moça, innocente e amante; não fosse
+mulher. As justiças da sociedade teem mais cousas
+em que pensar. ¿E de mais não se vê isto
+<span class='pagenum'>[22]</span>
+todos os dias? Não são conhecidos muitos outros
+que tambem matam assim o tempo com estas caçadas
+amorosas? ¿que o confessam com vangloria
+e que em companhias mui luzidas são por isso
+admirados e invejados! Tratemos dos interesses
+materiaes. O restante são chimeras, são fanatismos,
+são miserias, indignas da attenção de legisladores,
+e dos homens illustrados de 1843.»</p>
+
+<br>
+
+<p>Concluida a leitura, o abbade proseguiu:</p>
+
+<p>--Ouvida a historia, o fidalgote sacudiu a
+poeira das calças com um chicotinho de baleia, e
+disse: «São vulgarissimos esses casos em Lisboa.
+O que a mim me espanta é que a imprensa vista
+o habito de Tartuffo, e sáia ás praças a prégar
+contra a corrupção que ella promoveu com os
+seus romances, com as suas philosophias, com as
+suas theses de liberdade, e com a perseguição de
+escarneo e de fome feita aos apostolos da sincera
+moralidade.»</p>
+
+<p>Discursou largamente n'este sentido, e despediu-se,
+deixando-me inclinado a dar-lhe razão.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>* &nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp; *</p>
+
+<p>Passam-se tres dias:--continuou o abbade--era
+meia noite de 2 de agosto do mesmo anno
+<span class='pagenum'>[23]</span>
+de 1843. Recolhia-me á igreja de ter ministrado
+a extrema-unção a um moribundo, quando ouvi
+dous tiros a pouca distancia, e d'ahi a minutos o
+alarido de muitas vozes, gritando «homem morto!»</p>
+
+<p>Sahi ao adro, e encontrei pessoas que já vinham
+chamar-me para assistir aos paroxismos de
+Pedro de Andrade que estava mortalmente ferido
+á porta de sua casa.</p>
+
+<p>Quando cheguei, já o haviam transportado ao
+leito. Estava ainda vivo. Assim que me viu, acenou-me
+com anciedade, apertou-me convulsamente
+a mão, e segredou-me: «Quero confessar-me,
+que vou morrer.»</p>
+
+<p>Escutei-o por espaço de hora e meia; as
+phrases eram cortadas por gritos de agonia; ambas
+as balas lhe estavam dilacerando as entranhas
+do peito; e, ainda assim, aquelle demorado
+arrancar da vida me quiz parecer uma delonga
+providencial para que o grande criminoso tivesse
+tempo de penar e chorar suas culpas. Expirou
+com todos os sacramentos, pedindo-me que, em
+nome d'elle, pedisse perdão a seu filho e a sua
+mulher.</p>
+
+<p>O moribundo, quando me revelou o seu derradeiro
+delicto, rogou-me que désse publicidade
+ao crime e ao castigo a fim de que a sua desgraça
+<span class='pagenum'>[24]</span>
+podesse aproveitar aos centenares de delinquentes
+que lhe haviam dado o exemplo do vicio
+e da impunidade. E, por tanto, não escrupuliso
+em lhe dizer que o seductor da infeliz Maria do
+Carmo havia sido Pedro de Andrade, e que os
+vingadores da abandonada menina deviam ser
+seus parentes, posto que o assassinado os não
+houvesse conhecido, e lhes ouvisse apenas dizer,
+antes de desfecharem as clavinas, que lhe traziam
+saudades da prostituida senhora do paço da
+Ajuda.</p>
+
+<p>--Com effeito!--observou o snr. Guimarães--essa
+historia arripiou-me os cabellos!... V. s.ª
+ha de emprestar-me essa gazeta que eu quero
+copiar esse caso! Diga-me cá: e o filho d'esse
+desgraçado?</p>
+
+<p>--O filho do desgraçado, que tinha então onze
+annos e estava com sua mãi, póde dizer-se que
+ficou litteralmente pobre. Os credores e a fazenda
+nacional disputaram-se a posse do espolio. O
+rapaz, quando chegou á idade de tomar conta da
+honra de Real de Oleiros, convenceu-se que lhe
+era mister trabalhar para não morrer de fome.
+Os parentes de sua mãi, posto que abastados, não
+o protegeram, e tornaram-lhe pesada a esmola do
+pão e da cama. Um dia, o brioso moço sahiu com
+sua mãi da casa que lhe amargurava o bocado, e
+<span class='pagenum'>[25]</span>
+foi habitar um casebre nas visinhanças do escrivão,
+que o fizera seu amanuense, e lhe dava doze
+vintens por dia. V. s.ª conhece-o. É aquelle Alvaro
+de Andrade que tem lavrado as escripturas
+de compra de propriedades que o snr. Guimarães
+tem adquirido...</p>
+
+<p>--Pois é esse!... Aquelle homem humilde que
+me beijou as mãos quando eu lhe dei uma libra
+de gratificação...</p>
+
+<p>--É esse mesmo.</p>
+
+<p>--E nunca me disse de que familia era...</p>
+
+<p>--Não falla em familia, e parece até esquecido
+da sua procedencia. Que eu, a fallar verdade,
+uma vez, passando com elle defronte das ruinas
+da casa de seu pai, surprendi-o a olhar para as
+paredes derruidas com as lagrimas nos olhos.
+Perguntei-lhe por que chorava, e elle respondeu-me
+que chorava por sua mãi, lembrando-se que
+d'aquella casa sahira ella coberta de mais amargas
+lagrimas.</p>
+
+<p>--Coitado!--disse o brazileiro--hei de fazer-lhe
+o bem que poder.</p>
+
+<p>--E póde muito v. s.ª; mas faça-lh'o de modo
+que o não humilhe.</p>
+
+<p>--Eu cá sei, snr. abbade. Nós, os chamados
+brazileiros, sabemos todos os processos de dar esmolas
+aos nossos patricios de modo que elles se
+<span class='pagenum'>[26]</span>
+dispensem de nos agradecer, e até lhe deixamos
+o direito salvo de nos ridiculisar.</p>
+
+<p>A justiça inspirára este homem, que nunca
+fôra tão eloquente.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>* &nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp; *</p>
+
+<p>Pouco tempo depois, annunciou-se a venda
+da quinta de Real de Oleiros e suas pertenças, a
+requerimento dos credores. José Maria Guimarães
+cobriu todos os lanços. Foi-lhe adjudicada a
+quinta por alto preço. Os licitantes, que eram os
+credores, acotovelavam-se jubilosos, e diziam
+entre si:</p>
+
+<p>--<em>Espiguêmol-o!</em></p>
+
+<p>E, assim que o ramo lhe foi entregue, disseram
+unanimemente:</p>
+
+<p>--Foi <em>espigado</em>!</p>
+
+<p>O brazileiro pagou immediatamente ao instrumento
+da adjudicação, e disse, relançando a
+vista aos alegres credores de Pedro de Andrade:</p>
+
+<p>--Meus senhores, o que vale aos credores dos
+fidalgos, que não pagam, são estes <em>nossos irmãos
+de além-mar</em>, que, lá e cá, melhor fôra chamar-lhes
+<em>irmãos da misericordia</em>...</p>
+
+<p>--É parvo!--disse um poeta de Basto ao ouvido
+de um bacharel de Felgueiras.</p>
+<span class='pagenum'>[27]</span>
+
+<p class="centrado">*<br>* &nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp; *</p>
+
+<p>Passados dias, começaram obras de reedificação
+no local do palacete arruinado. O proprietario,
+fazendo-se encontradiço com o amanuense
+do tabellião, disse-lhe:</p>
+
+<p>--Ó snr. Alvaro, vá o snr. hoje, se não tiver
+que fazer, á quinta de Real, que temos que conversar
+a respeito de certos arranjos.</p>
+
+<p>--Sim, senhor--disse Alvaro--quando v. s.ª
+quizer.</p>
+
+<p>--Ás 4 da tarde; e leve tinteiro e papel, que
+não ha lá d'isso.</p>
+
+<p>Á hora aprazada, entrou o bisneto do capitão-mór
+na extincta honra dos Pachecos e Andrades.
+Já lá estava o brazileiro, ás testilhas com os alveneis.
+Assim que chegou o escrevente do tabellião,
+subiu com elle por entre um matagal de bravio
+até ao alto de um outeirinho onde se erguia
+um pombal já descaliçado, mas ainda assim a
+porção menos esboroada das pertenças da quinta,
+graças á fortaleza do tecto abobadado de pedra.</p>
+
+<p>Havia dentro uma banca de granito, onde outrora
+os senhores de Real se desenfastiavam em
+merendas, depois das fadigas da caça na tapada
+defeza. Já lá estavam duas cadeiras.</p>
+<span class='pagenum'>[28]</span>
+
+<p>--Sente-se ahi, snr. Alvaro--disse José Maria
+Guimarães,--e vá escrevendo.</p>
+
+<p>--Prompto!--respondeu o escrevente, rodando
+a sibilante tarracha do tinteiro de chifre.</p>
+
+<p>--Ponha ahi os nomes dos pobres da freguezia
+que não tem casa de seu.</p>
+
+<p>Alvaro Pacheco escreveu trinta e quatro nomes;
+quedou-se um momento, e perguntou:</p>
+
+<p>--De todos os pobres que não tem casa?</p>
+
+<p>--Sim, de todos os pobres que não tem casa
+propria.</p>
+
+<p>--Então, falta o meu nome. Somos trinta e
+cinco os pobres que não temos casa.</p>
+
+<p>E escreveu: <em>Alvaro, escrevente de tabellião.</em></p>
+
+<p>--Muito bem--volveu o brazileiro commovido--sabe o que eu quero?</p>
+
+<p>--V. s.ª o dirá.</p>
+
+<p>--É ceder metade d'esta quinta aos pobres
+para elles edificarem uma casa com seu quintalejo;
+já se vê que sou eu que pago as obras das casas;
+e, visto que o snr. Alvaro é um dos trinta e
+cinco pobres, escolha a local onde quer a sua casa
+feita. A escolha do local é sua; ora agora, o feitio
+da obra isso é cá por minha conta.</p>
+
+<p>--Os pobres aceitam, não escolhem--disse
+Alvaro.</p>
+
+<p>--Mau!--replicou José Maria Guimarães--Mau!
+<span class='pagenum'>[29]</span>
+ou bem que somos francos um com o outro,
+ou não temos nada feito. Eu cá sou assim!</p>
+
+<p>--Então quer v. s.ª...</p>
+
+<p>--Deixemo-nos de <em>senhorias</em>. Eu sou filho de
+um almocreve, e neto e bisneto de burriqueiros;
+e o snr. Alvaro Pacheco é descendente de capitães-móres
+a quem meus avós traziam presuntos de
+Melgaço nas suas recovas de machos. Deixemo-nos
+de <em>senhorias</em>. Vamos á questão. Onde quer a
+sua casa?</p>
+
+<p>--Aqui--disse Alvaro.</p>
+
+<p>--Aqui no pombal?!</p>
+
+<p>--Aqui, porque fica sendo casa, e ao mesmo
+tempo memoria de ter estado n'este sitio um homem
+honrado.</p>
+
+<p>--Ou dous--emendou o brasileiro--Dê cá
+um abraço, e vamos embora, que faz aqui frio.</p>
+
+<p>E, no decurso do caminho, proseguiu:</p>
+
+<p>--O snr. Alvaro ha de fazer-me o favor de se
+despedir do serviço do tabellião, se lhe não custar.
+Preciso de quem me represente n'estas obras,
+em quanto vou tratar de negocios a Lisboa. Eu
+cá lhe deixo as plantas das casas dos pobres, e o
+capital para o custeio das despezas.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>* &nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp; *</p>
+<span class='pagenum'>[30]</span>
+
+<p>O brazileiro voltou, passados seis mezes. Todas
+as casas estavam já de parede e tecto, quando
+voltou, excepto a do pobre chamado Alvaro.</p>
+
+<p>--Com que então a casa n.º 35 ainda não
+tem sequer os alicerces?---perguntou o bemfeitor.</p>
+
+<p>--É porque o pobre n.º 35 não precisa tanto
+como os outros--respondeu o feitor.</p>
+
+<p>--Então vou eu ser agora o fiscal das suas
+obras--tornou José Maria.</p>
+
+<p>E, ao outro dia, fez convergir os melhores
+operarios para a bouça do pombal, e mandou arrazar
+a vivenda de centenares de andorinhas que
+se esvoaçavam ao primeiro troar dos alviões e
+marretas.</p>
+
+<p>Alvaro e José Maria assistiam ao derrubamento
+do pombal, um tanto condoidos do esgazear
+das espavoridas habitadoras das ruinas.</p>
+
+<p>N'isto, um pedreiro esboroando com a alavanca
+um pedaço de parede, descobriu uma superficie
+escura, que se lhe figurou lousa.</p>
+
+<p>--Que diabo de obra é esta de lousa em parede
+de cantaria?--disse o alvenel.</p>
+
+<p>O brazileiro abeirou-se da parede, apalpou a
+supposta lousa, e observou ao pedreiro que era
+pau e não lousa, mandando socavar dos lados, e
+alimpar a superficie do que quer que fosse.</p>
+<span class='pagenum'>[31]</span>
+
+<p>--Isto é um caixote!--disse o mestre da
+obra--querem vossês vêr que o diabo as arma?</p>
+
+<p>--Arma o quê?--perguntou José Maria Guimarães.</p>
+
+<p>--V. s.ª nunca ouvia dizer que os fidalgos de
+Real esconderam um thesouro que nunca se encontrou?</p>
+
+<p>--Já ouvi dizer isso. Atirem a baixo toda a
+pedra que está dos lados, e não embarrem no
+caixote. Cuidado lá com isso! Snr. Alvaro, parece-me
+que vai assistir á resurreição do melhor
+defunto dos seus avós--bradou o brazileiro.</p>
+
+<p>--Como?!--perguntou Alvaro, que vinha entrando
+no recinto do pombal.</p>
+
+<p>--Venha vêr. Apalpe. Que é isso?</p>
+
+<p>--Parece-me um caixote--disse o bisneto do
+capitão-mór.</p>
+
+<p>--Não é parece; é que é. Sabe o que lá está
+dentro? Sabe a historia dos trezentos e tantos mil
+cruzados de seu bisavô?</p>
+
+<p>--Ouvi dizer que...</p>
+
+<p>--Que nunca appareceram. Apparecem hoje.
+Estão alli.</p>
+
+<p>Alvaro de Andrade que tinha encarado o infortunio
+de trinta annos com intemerato aspecto,
+descorou em frente da taboa negra que devia ter
+<span class='pagenum'>[32]</span>
+dentro uma cousa chamada, bem ou mal, a <em>fortuna</em>.</p>
+
+<p>A este tempo, o caixote era apeado, suspenso
+entre quatro robustos braços.</p>
+
+<p>--Oh! como pesa!--gemeu um dos pedreiros.</p>
+
+<p>--Podéra não!--disse o brazileiro--trezentos
+e tantos mil cruzados!</p>
+
+<p>--Os rios correm para o mar, snr. Guimarães--observou
+o mestre d'obras.</p>
+
+<p>--Que quer dizer, mestre?--perguntou o
+brazileiro.</p>
+
+<p>--Que se v. s.ª era rico, é agora riquissimo.</p>
+
+<p>--Obrigado pelo conceito que faz de mim,
+mestre...--volveu José Maria entre risonho e
+agastado.</p>
+
+<p>--Ó meu senhor, pois eu...</p>
+
+<p>--Suspeita-me de ladrão...</p>
+
+<p>--Valha-me Deus!... o que apparecer em terra
+de v. s.ª seu é.</p>
+
+<p>--E esta terra é minha? Pois não sabe que
+este chão é d'este pobre que se chama Alvaro?</p>
+
+<p>--Ó snr. Guimarães!...-exclamou o filho
+do ultimo senhor da honra de Real de Oleiros, e
+não pôde articular outra expressão.</p>
+
+<p>--Vamos!--acudiu o brazileiro--para onde
+é que vai o thesouro de seu avô, snr. Alvaro
+<span class='pagenum'>[33]</span>
+Pacheco de Andrade, snr. barão, snr. visconde,
+snr. conde, snr.... Quer mais? Dê as suas ordens.</p>
+
+<p>José Maria casquinava uma risada de elevada
+intelligencia, em quanto os obreiros, rodeando o
+caixote, se embasbacavam uns nos outros, e todos
+no rosto de Alvaro com a mais sincera e respeitosa
+estupidez.</p>
+
+<p>Novamente instado para que dissesse onde o
+caixão devia ser levado, Alvaro respondeu:</p>
+
+<p>--A minha mãi, que sabe o que são pobres.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>* &nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp; *</p>
+
+<p>E os primeiros pobres, que relativamente enriqueceram
+nas aldêas convisinhas, foram os
+descendentes dos irmãos d'aquelle feitor que
+muitos alcunharam de fugitivo ladrão do thesouro
+do capitão-mór, e que se fôra a morrer longe
+d'alli, e obscuramente, receoso de ser novamente
+martyrisado pelos filhos de seu amo.</p>
+
+<p>Alvaro Pacheco de Andrade, n'este anno de
+1874, tem quarenta e nove annos, e é conhecido
+pelo fidalgo de Real de Oleiros. Aquella senhora
+de tez morena, com cinco formosos filhos, que
+brincam á volta de outra senhora de setenta annos,
+é a esposa de Alvaro, e filha de José Maria
+Guimarães. A dos cabellos brancos, que lhe alvejam
+<span class='pagenum'>[34]</span>
+na fronte como a corôa de açucenas de uma
+santa, é a viuva d'aquelle galhardo e infausto D.
+Juan, assassinado em 1843. O sacerdote ancião,
+que parece ser da familia, é aquelle abbade que
+nos leu a <em>Revista Universal Lisbonense</em>, e a quem
+eu devo e agradeço os commentarios ao fogoso e
+pungente artigo, que me parece ser do meu presado
+mestre e adorado amigo visconde de Castilho.</p>
+
+<hr>
+
+
+
+<a name="cap02"></a>
+<h1>O JOGADOR</h1>
+
+
+<p>Hoje em dia, aquella denominação, nem é
+desprezivel nem affrontosa. O progresso indultou
+o jogador; deliu-lhe da fronte o antigo ferrete.</p>
+
+<p>Se eu jogar com sorte propicia, e mobilar um
+palacio, cujas alfaias e baixella representem os
+haveres e as lagrimas de muitas familias, serei o
+legitimo e respeitado proprietario do meu palacio.</p>
+
+<p>Se eu abrir os meus salões, a mais selecta sociedade
+virá pisar as alcatifas do meu palacio, e
+lisonjear a magnificencia do fino gosto que dirigiu
+<span class='pagenum'>[35]</span>
+as correntes do meu ouro. Ninguem me perguntará
+se herdei de avós, se ganhei de incautos
+a minha opulencia. Talvez que os meus convidados
+segredem entre si a proveniencia das minhas
+pompas; mas d'esses, duas vezes deshonrados,
+vingado estou. Deshonrados, porque entraram
+nas minhas salas, e deshonrados porque denegriram
+a honesta posse dos vinhos que me beberam.</p>
+
+<p>Continuando a auspiciosa hypothese: se eu fôr
+o jogador enriquecido, bemquisto das familias,
+pessoa séria, influente nas eleições bancarias, com
+folha corrida, insuspeito de falsificador de testamentos
+ou moeda, de certo me não distingo do homem
+de bem, laborioso, honrado e provado nas
+lutas da vida.</p>
+
+<p>Ha, todavia, entre nós uma pequena differença:
+eu dou bailes, e o meu honrado visinho não
+os dá.</p>
+
+<p>Mas isso depende da aristocracia da indole:
+elle póde descender d'algum servo de gleba, que
+lhe transmittiu genio caínho e o acanhamento de
+raça; em quanto eu obedeço a impulsos de outro
+sangue. As damas que se bamboavam nos coxins
+flaccidos das minhas othomanas com toda a certeza
+não calcularam quantos <em>micos</em> infelizes dos meus
+parceiros representavam as copias de Raphael e
+<span class='pagenum'>[36]</span>
+os originaes de Murillo pendurados sobre as colgaduras
+das minhas paredes. Antes quero suppôr
+que ellas, no arrobo da sua admiração, meditaram
+que na minha cabeça havia o que quer que
+fosse digno da cabelleira encalamistrada de um
+Marialva, no reinado de D. João V.</p>
+
+<p>É profundo o fôsso que me separa do jogador
+em outras eras. Nasci quando devia nascer. Se eu
+viesse á luz no seculo XVI, este meu mister de jogador
+era synonymo de vadiagem (<em>Ord</em>, l. V, tit.
+82). Nas minhas tertulias, devidas á sorte feliz da
+tavolagem, lograria apenas reunir jogadores. Se
+nascesse no seculo XVII ou XVIII, os corregedores
+dos Philippes, de D. João IV e Pedro II, e dos reis
+subsequentes, se eu désse bailes, carregavam-me
+com as leis sumptuarias por sobre a pêcha de vadio.
+Em tempo de D. João V, D. José ou D. Maria,
+tanto o Camões do Rocio, como o Marques Bacalhau,
+como o Pina Manique mandavam-me responder
+do Limoeiro pela procedencia dos meus
+lustres, dos meus sophás, dos meus jarrões, dos
+meus contadores marchetados, dos meus bronzes,
+dos meus frescos, dos meus pendulos, dos
+meus pavimentos de xadrez lustroso. E vestiam-me
+talvez uma das librés dos meus criados.</p>
+
+<p>Foi por isso que o facho da civilisação, passando
+pelas minhas salas de jogador feliz, radiou
+<span class='pagenum'>[37]</span>
+reverberos esplendidos da minha baixella, e me
+mostrou em meio dos meus convidados, com a
+fronte luzentissima das alegrias do homem de
+bem.</p>
+
+<p>Póde ser que, em outras eras tenebrosas, a
+felicidade no jogo fosse malsinada de fraude e
+roubo.</p>
+
+<p>Hoje não.</p>
+
+<p>O jogo, á luz de 1874, é um contracto bilateral,
+fundado no consentimento de ambas as partes.</p>
+
+<p>Se é forçoso que uma das partes fosse tola e
+desgraçada, eu de certo não fui.</p>
+
+<p>Está fechada a hypothese.</p>
+
+<hr>
+
+
+
+<a name="cap03"></a>
+<h1>INEDITO DO POETA FR. BERNARDO DE BRITO</h1>
+
+
+<p>Escreveu o famoso cisterciense a <em>Sylvia de Lizardo</em>,
+e ninguem o trata de poeta quando o
+louva ou moteja. Chamam-lhe o <em>chronista</em>, o <em>classico</em>,
+o <em>douto</em>, o <em>mentiroso</em>, o <em>massador</em>, o <em>milagreiro</em>;
+poeta é que não; e houve até um frade da
+<span class='pagenum'>[38]</span>
+ordem d'elle, Fortunato de S. Boaventura, o author
+do <em>Punhal dos Corcundas</em>, que positivamente
+desbalisou de poeta e de author da <em>Sylvia de Lizardo</em>
+o vernaculo author da <em>Chronica de Cistér</em>.</p>
+
+<p>Pois foi poeta, e dos bons do seu tempo, aquelle
+Balthazar de Brito de Andrade, que por amor
+do patriarcha se crismou em <em>Bernardo</em>.</p>
+
+<p>Teve elle o ruim sestro de desfazer na prosapia
+dos outros. Raro fidalgo lhe sahiu incolume
+do crisol em que por obrigação do officio de historiador,
+elle acendrava o fino ouro dos Trocozendos,
+dos Romarigues, dos Egas Bufas e outros
+condes das raças romana é goda.</p>
+
+<p>Nos descendentes do Espadeiro, que eram a
+geração dos <em>Coelhos</em>, beliscava elle, á conta do assassinio
+de Ignez de Castro. De si, dizia o frade,
+que os <em>Britos</em>, em Portugal, derivavam dos <em>Brutos</em>
+de Roma.</p>
+
+<p>Um descendente de Egas Moniz, chamado João
+Soares de Alarcão, como era poeta, satyrisou a
+maledicencia de fr. Bernardo de Brito com este
+soneto:</p>
+
+<div class="poesia">
+Aos profundos imperios d'el-rei Pluto<br>
+Irás, Bernardo, pelo que has escripto,<br>
+Pois dizes que de <span class="ni">Bruto</span> vem teu <span class="ni">Brito</span>,<br>
+Ficando tu só n'isso Brito e bruto.<br>
+<span class='pagenum'>[39]</span>
+<br>
+Tu vens d'aquelles que a pé enxuto<br>
+Passaram, com Moysés, o mar do Egypto,<br>
+Ou vens do que com sangue do cabrito<br>
+Tantos guizados fez sem nenhum fructo.<br>
+<br>
+Chamastes ao teu livro <span class="ni">Monarchia</span>,<br>
+Sendo <span class="ni">Mona</span> que cria monstros varios,<br>
+E tornastes de ferro a idade de ouro.<br>
+<br>
+Não te mettas em casos temerarios;<br>
+Pasta nas hervas, bebe da agua fria,<br>
+Ou na velha escudela o caldo louro.<br>
+</div>
+
+<p>O monge de Cistér responde pelas mesmas
+rimas:</p>
+
+<div class="poesia">
+Maçarico dos charcos de el-rei Pluto,<br>
+Que taes marmanjarias has escripto,<br>
+Que ao douto frei Bernardo ou Bruto ou Brito<br>
+Picas com bico infame, sujo e bruto;<br>
+<br>
+Jámais será de Ignez o pranto enxuto,<br>
+Pois a fazes mais quartos que um cabrito,<br>
+Dizendo que nas mãos deu o esp'rito<br>
+De Coelho matador, sagaz e astuto.<br>
+<br>
+Não vem da lusitana monarchia<br>
+Martinho <span class="ni">mono</span>, pai de cascos varios,<br>
+Sua mãi de <span class="ni">Aguilar</span>, aguia, não de ouro.<br>
+<br>
+Não te mettas em casos temerarios:<br>
+Que louro não honra tua musa fria,<br>
+Mas de uma pouca de... o caldo louro.<br>
+</div>
+<span class='pagenum'>[40]</span>
+
+<p>As injurias do primeiro terceto entendem com
+os progenitores de João Soares de Alarcão. Martinho,
+se era <em>mono</em>, sobrava-lhe direito a ser da
+<em>monarchia</em> lusitana; mas tambem o outro se demasiára,
+vituperando de <em>mona</em> a <em>Monarchia</em> do
+frade. Tratavam-se de macacões um ao outro.
+<em>Pai de cascos varios</em>, invectiva o poeta de Alcobaça.
+Pela variedade da cascaria, entende-se que
+capitulava de cavalgadura o adversario: saldo
+bem ajustado com o outro que lhe chamára <em>bruto</em>.</p>
+
+<p>Entra no soneto a mãi do poeta, que devia ser
+da familia de <em>Aguilares</em>: e era com effeito, sem
+ser de raça desprimorosa. Chamava-se D. Cecilia
+de Mendonça Aguilar e Lugo, filha de Philippe
+de Aguilar, mestre-sala de D. Sebastião, de D.
+Henrique, de D. Philippe, e tão amigo de Castella
+que chegou á mordomia-mór do rei intruso.
+Estes Aguilares e Aguiares foram sempre muito
+dos hespanhoes, e logo contarei um caso do mais
+notavel.</p>
+
+<p><em>Martinho</em>, <em>mono</em>, diz frei Bernardo. Que o pai
+do poeta era Martinho Soares de Alarcão e Mello,
+6.º senhor da casa de Torres-Vedras, não ha duvida;
+que fosse <em>mono</em>, não o inculcam os genealogistas.
+Seu filho, o poeta, foi alcaide-mór de
+Torres-Vedras, casou, teve nove filhos, e entre
+esses, o jesuita Francisco Soares de Alarcão, letrado
+<span class='pagenum'>[41]</span>
+eminente e guerreiro, que morreu queimado
+em uma explosão de polvora, quando guarnecia
+Juromenha, em tempo de D. João IV, capitaneando
+os noviços da companhia, cujo reitor era.</p>
+
+<p>Outro filho do <em>poeta dos cascos varios</em>, quando
+D. João IV o mandava governar Ceuta, passou-se
+para Philippe IV; e foi condemnado á morte<sup><a name="mfn1" href="#fn1">[1]</a></sup>.</p>
+
+<p>Teve a mãi de João Soares um primo chamado
+Damião de Aguiar Ribeiro, que era corregedor
+em Lisboa, reinando o cardeal. Como sabem,
+andavam então divididas as opiniões entre D. Antonio
+e Philippe II, ácerca da successão do throno.
+Damião de Aguiar era dos mais façanhosos
+propugnadores por Castella. Succedeu então que
+um homem do serviço de D. Antonio acutilasse
+na Padaria um vereador que fallava soltamente
+no senado contra o filho de Violante Gomes. Foi
+preso e summariamente condemnado á forca. Á
+hora em que o réo era levado, soube Damião de
+Aguiar na rua Nova que, na Ribeira, se ajuntava
+povo intencionado a tirar-lhe o padecente. Mandou
+<span class='pagenum'>[42]</span>
+o corregedor parar o prestito; fez lançar uma
+corda de uma janella, e alli mesmo ordenou que se
+enforcasse o homem, para evitar semsaborias. Tão
+grato lhe ficou por isto o rei de Castella que o
+nomeou desembargador do paço, e depois chanceller-mór
+do reino, commendador de S. Matheus
+de Soure e de S. Cosme de Gondomar, commendas
+que rendiam 3:500 cruzados.</p>
+
+<p>Foi, por tanto, riquissimo, e tão bom homem
+que fundou o convento das Capuchinhas da Merciana.
+Instituiu morgadio, comprehendendo uma
+extensa quinta que ia desde as portas de Santo
+Antão pela travessa da Annunciada até á chamada
+calçada de <em>Damião de Aguiar</em>.</p>
+
+<p>Casou duas vezes; procreou-se, e fez-se representar
+entre nós pelos snrs. condes de Povolide,
+de Valladares, etc.</p>
+
+<p>Rebello da Silva não reza bem d'este Damião
+na <em>Historia de Portugal</em>. Eu não rezo bem d'elle
+nem por elle; confesso, todavia, que era homem
+expedito nisto de enforcar a gente na janella de
+qualquer cidadão, mediante seis varas de corda.</p>
+
+<div class="rodape">
+ <p><a name="fn1" href="#mfn1">[1]</a> D. João Soares morreu em 1618, com 38 annos de idade. Escreveu e imprimiu em lingua castelhana: <em>Archimusa de varias rimas y efetos</em>, e <em>La iffanta coronada por el-rei D. Pedro, D. Ignez de Castro</em>, etc. Este poema não devia ser mui lisonjeiro ás tradições de Pero Coelho, avoengo do poeta.</p>
+</div>
+<span class='pagenum'>[43]</span>
+
+<hr>
+
+
+
+<a name="cap04"></a>
+<h1>LISBOA</h1>
+
+
+<p>Elucidemos a historia do viajante.</p>
+
+<p>O mordomo-mór que fugia era D. João de
+Mascarenhas, 4.º marquez de Gouvêa, e 7.º conde
+de Santa Cruz. Tinha 25 annos, e era casado
+com uma hespanhola, chamada D. Thereza de
+Moscoso e Aragão, filha do 7.º conde de Altamira.</p>
+
+<p>A senhora que fugiu com elle era D. Maria da
+Penha de França, tambem casada com seu primo-irmão
+D. Lourenço de Almada, muito moço.</p>
+
+<p>Tinham casado em 1722. Em junho de 1723
+D. Maria da Penha de França deu á luz uma menina,
+que se chamou Violante. E, na noite de 11
+de novembro de 1724, a esposa, abandonando
+marido e filha, fugiu com o marquez.</p>
+
+<p>Este desastre não foi precedido de ardentes
+galanteios e grandes resistencias do pudor vencido
+pela paixão.</p>
+
+<p>D. Maria foi de visita ao paço, onde havia sido
+dama, como sua mãi D. Violante Henriques o
+fôra da rainha D. Maria Sophia de Saboya. Viu o
+<span class='pagenum'>[44]</span>
+marquez que era galan, audaz, e sem ser milagre,
+fulminou-o com o relampago da formosura.
+Fugiram e pararam em Tuy. Não foi em Vigo
+como diz o viajante. Julgavam-se salvos em terra
+estrangeira; mas o bispo, por ordem vinda de
+Madrid, prendeu D. Maria n'um mosteiro; e o
+marquez fugiu por Hespanha dentro, e mais tarde
+para Inglaterra.</p>
+
+<p>Tanto que em Lisboa se divulgou a prisão da
+mulher de D. Lourenço de Almada, certo poeta
+escreveu um soneto gravido de maus versos e
+boa moral, que diz isto:</p>
+
+<div class="poesia">
+D'esse claustro a sagrada penitencia<br>
+Pia te esconda, oh bella criminosa,<br>
+E converta-se em sombra a luz formosa<br>
+Que ardeu nos sacrificios da indecencia.<br>
+<br>
+Tolera da prisão toda a violencia,<br>
+Perdida já a nobreza generosa;<br>
+Fique ainda entre a culpa indecorosa<br>
+Benemerita ao menos a paciencia.<br>
+<br>
+Principia a morrer n'essa clausura<br>
+Encobrindo um descredito infinito<br>
+No antecipado horror da morte escura.<br>
+<br>
+Mas ah! se em ti, por ultimo conflicto,<br>
+Como vai sendo de vida sepultura,<br>
+Chegasse a ser cadaver o delicto!<br>
+</div>
+<span class='pagenum'>[45]</span>
+
+<p>Hei de escrever um livro que ha de chamar-se
+o <span class="small-caps">desterrado</span>. Estes desastres hão de ser
+esmiuçados compridamente. O <em>Desterrado</em> do
+meu romance não é o marquez de Gouvêa: é
+outra casta de personagem. Bem sei que esfrio o
+interesse do futuro livro, bosquejando-o aqui em
+poucas linhas. Não importa. A curiosidade do
+leitor é mais attendivel que as conveniencias
+mercantis d'uma novella.</p>
+
+<p>Como sabem, D. Maria da Penha deixou nos
+braços do abandonado marido uma filhinha de onze
+mezes, que se chamou Violante. Esta menina,
+ahi pelos dezesete annos, amou seu primo D. Luiz
+Francisco de Assis Sanches de Baena, alcaide-mór
+de Villa do Conde, capitão de cavallos, e uns
+gentilissimos vinte e nove annos. Na casa dos
+Almadas, onde D. Luiz fôra creado--porque sua
+mãi casára em segundas nupcias com D. Luiz
+José de Almada--havia um D. Antão, que se apaixonára
+por Violante, que era sua sobrinha. A
+menina esquivara-se ás caricias do tio, e deixou-se
+arrebatar nos braços do primo D. Luiz, quando
+uma ordem regia o desterrou para Moncorvo,
+a rogos de D. Antão de Almada. Os dous fugitivos
+(que desterro tão semelhante, o de mãi e filha!)
+esconderam-se e casaram em Zamora; mas
+<span class='pagenum'>[46]</span>
+ahi mesmo os enviados do cioso tio a foram colher
+de sobresalto e a trouxeram a Portugal.</p>
+
+<p>Esteve a menina reclusa alguns annos em
+Marvilla, com o proposito de professar, pois que
+a lei lhe annullára o casamento com o primo;
+não obstante, porém, a saudade do desterrado
+primo, ao fim de onze annos, aceitou seu tio para
+esposo, do mesmo passo que D. Luiz era banido
+e desnaturalisado para sempre. Aqui fica muito
+pela rama o entrecho do livro para o qual se estão
+aprestando as peças essenciaes da vida tempestuosa
+de D. Luiz Francisco de Assis Sanches de
+Baena, fallecido aos 75 annos, e terceiro avô do
+actual snr. visconde de Sanches de Baena<sup><a name="mfn2" href="#fn2">[2]</a></sup>.</p>
+
+<p>De D. Violante e de seu tio D. Antão de Almada
+(sem embargo das amarguras da violentada
+esposa) nasceu D. Lourenço de Almada, que
+foi o 1.º conde do seu appellido em 1793.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>* &nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp; *</p>
+
+<p>Outra indicação do viajante que estimula a
+curiosidade:</p>
+
+<p>«A casa da rainha e dos principes são analogas
+á do rei. O posto de camareiro-mór da
+<span class='pagenum'>[47]</span>
+rainha vagou por morte do marquez das Minas,
+assassinado em 1721. Este senhor era genro do
+marechal de Villeroy; e seu filho, o conde do
+Prado, está presentemente na côrte de França.»</p>
+
+<p>Já d'este caso dei n'outro livro a noticia que
+transcrevo do citado periodico de Francisco Xavier
+de Oliveira:</p>
+
+<br>
+<p>«Um corregedor guardava uma porta da
+igreja da casa professa dos jesuitas, quando alli
+se celebrava grande festividade. Sómente o rei
+havia de entrar por aquella porta. Chegaram
+aqui o marquez das Minas e o conde da Atalaya;
+mas o corregedor com razão lhes vedou o passo.
+Insistiram elles, dizendo ao ministro que as
+ordens recebidas não podiam entender-se com
+pessoas de sua esphera. Redarguiu o corregedor
+que as ordens ninguem exceptuavam, e por tanto,
+sem que o rei entrasse, não podia elle permittir
+que entrasse quem quer que fosse. Aquelles
+senhores podiam entrar por outras portas
+francas a toda a gente. Não obstante, pertinazmente
+exigiram do corregedor uma distincção
+que elle não podia dar-lhes sem transgredir os
+deveres... Os dous fidalgos, depois de o terem
+insultado, passaram ás ultimas. O conde da Atalaya
+deu com o chapéo na cara do corregedor, e
+<span class='pagenum'>[48]</span>
+o marquez das Minas traspassando-o com a espada,
+matou-o. Em seguida cavalgaram, e sahiram
+do reino. O marquez das Minas <em>foi perdoado e
+voltou ao reino</em><sup><a name="mfn3" href="#fn3">[3]</a></sup>.»</p>
+
+<p>Crê o leitor que, não obstante o perdão,
+o marquez das Minas passaria o restante da vida
+sequestrado das graças do monarcha e da convivencia
+das pessoas de bem? Não faça juizos
+temerarios o leitor: o marquez das Minas recebeu
+o indulto, e ao mesmo tempo o bastão de
+general.</p>
+
+<p>Já vimos a justiça dos homens: agora vejamos
+a da Providencia. Servia no exercito portuguez
+um castelhano chamado D. Juan de la Cueva,
+<span class='pagenum'>[49]</span>
+que não dava <em>excellencia</em> ao seu general,
+marquez das Minas, sem que este lhe désse <em>senhoria</em>.
+«Ora, o marquez, assassino do corregedor,--diz
+o cavalheiro de Oliveira--era soberbo
+e arrogante. Um dia, ao entardecer, sahia elle
+da portaria da congregação de S. Philippe Neri,
+a tempo que desgraçadamente <em>Juan de la
+Cueva</em> ia entrando. Cortejou elle o marquez, que
+lhe não deu a pretendida <em>senhoria</em>, e por isso <em>de
+la Cueva</em> lhe não deu <em>excellencia</em>. O general,
+grandemente irritado, levantou o bastão e proferiu
+palavras ameaçadoras. <em>De la Cueva</em>, sem lhe
+dizer palavra, traspassou-o com a espada. O
+marquez não tugiu nem mugiu: quando cahiu
+por terra, já ia morto. O padre, que o acompanhára
+até á portaria, e era confessor d'elle, apenas
+teve tempo de lhe apertar a mão. <em>D. Juan de
+la Cueva</em> pôde escapar-se, e refugiou-se em Hespanha<sup><a name="mfn4" href="#fn4">[4]</a></sup>.»</p>
+
+<p>Na jurisprudencia divina a justiça mais seguida
+é a pena de Talião.</p>
+
+<div class="rodape">
+ <p><a name="fn2" href="#mfn2">[2]</a> Veja <em>Apontamentos biographicos</em> ácerca de D. Luiz Francisco de Assis Sanches de Baena, etc., por Innocencio Francisco da Silva, Lisboa 1869.</p>
+
+ <p><a name="fn3" href="#mfn3">[3]</a> O cavalheiro de Oliveira não designa o tempo de expatriação do marquez das Minas, conde do Prado. Deviam ser dez annos, segundo a sentença manuscripta de que dá noticia o snr. Innocencio Francisco da Silva, a pag. 233 do 7.º tom. do Dicc. Bibliog. Diz assim: «Sentença da Relação de Lisboa, contra os condes do Prado e da Atalaya por matarem publicamente o corregedor do Bairro-Alto no exercicio da sua authoridade. O primeiro, tendo-se evadido, foi justiçado em estatua; o segundo condemnado a degredo por dez annos, e ambos em multas pecuniarias». Creio que ha equivoco, na transcripção da sentença. O queimado em estatua foi o conde de Atalaya, que, no dizer do cavalheiro de Oliveira, morreu furioso em Vienna, depois de ter militado no exercito do imperador de Austria. Quanto ao marquez das Minas, presume-se que lhe foi indultada a sentença, visto que o citado Oliveira diz que obteve perdão e voltou a Lisboa.</p>
+
+ <p><a name="fn4" href="#mfn4">[4]</a> <em>Amusement</em>, 2.º v. pag. 147 e 148.</p>
+</div>
+
+<hr>
+<span class='pagenum'>[50]</span>
+
+
+
+<a name="cap05"></a>
+<h1>LITTERATURA BRAZILEIRA</h1>
+
+
+<p>Longo tempo se queixaram os estudiosos
+do descuido dos livreiros portuguezes em se fornecerem
+de livros brazileiros. Nomeavam-se de
+outiva os escriptores distinctos do imperio, e raro
+havia quem os tivesse nas suas livrarias. Nas bibliothecas
+publicas era escusado procural-os.
+Em compensação, sobravam n'ellas as edições
+raras de obras seculares que ninguem consulta.</p>
+
+<p>O mercado dos livros brazileiros abriu-se, ha
+poucos mezes, em Portugal. Devemol-o á actividade
+inteligente do snr. Ernesto Chardron. Foi
+elle quem primeiro divulgou um catalogo de
+variada litteratura, em que realçam os nomes de
+mais voga n'aquelle florentissimo paiz. Ahi se
+nos deparam, entre os poetas, Gonçalves de Magalhães,
+o correcto e sublime author da <em>Confederação
+dos tamoyos</em>; o lyrico e arrojado Alvares
+de Azevedo; o primaz dos escriptores brazileiros,
+e chorado Gonçalves Dias; o esperançoso devaneiador,
+fallecido no viço da idade, Casimiro de
+Abreu; Junqueira Freire que primou nos segredos
+da melodia e já não é d'este mundo; e o severo
+<span class='pagenum'>[51]</span>
+e cadencioso poeta de <em>Colombo</em>, tão estimado
+dos nossos. Entre os romancistas o fecundissimo
+Joaquim Manoel de Macedo, que disputa
+a supremacia a J. de Alencar, que tanta nomeada
+grangeou com o seu <em>Guarany</em>. Não lustram
+menos as novellas mimosissimas de Luiz Guimarães,
+e as arrobadas mesclas de prosa e verso de
+Machado de Assis. Em litteratura didascalica sobresahem
+os valiosos escriptos do professor, o
+snr. conego Fernandes Pinheiro, nomeadamente
+o <em>Resumo de historia litteraria</em>, que muito se
+avantaja a uns esbocêtos que em Portugal circulam
+nas escólas, e--o que é mais deploravel--nos
+estudos secundarios. São notabilissimos
+todos os livros do snr. J. M. Pereira da Silva,
+já na sciencia historica, já na politica, e ainda
+no romance, tão prosperamente estreiado na
+<em>Aspazia</em>. Sobre tudo, porém, os <em>Varões illustres
+do Brazil</em> e a <em>Historia da fundação do imperio
+brasileiro</em> são obras que denotam profundo estudo
+e muito engenho na boa disposição dos elementos
+e critica dos personagens historicos. Em
+varia sciencia, em livros elementares, em lexicologia,
+e ainda sobre motivos de religião é copioso
+o catalogo da livraria Chardron. Esta variedade
+argue a fertilidade de intelligencias que ajuntam
+á riqueza congenial d'aquelle solo os thesouros
+<span class='pagenum'>[52]</span>
+do espirito. E muito importa e cumpre
+observar que os brazileiros modernamente nos
+não cedem no zelo de imitar a linguagem pura
+dos grandes escriptores portuguezes dos seculos
+de ouro.</p>
+
+<p>Não esqueçamos, todavia, que o impulsor
+d'este brilhante movimento litterario no Rio de
+Janeiro, e por isso em todo o imperio, é o livreiro-editor
+Garnier, espirito emprehendedor
+que tanto faz luzir os talentos que divulga, quanto
+lucra para si a honra de os fazer conhecidos e
+laureados. Quem calcular o despendio grande de
+empresas semelhantes n'aquelle paiz, deprehenda
+o quanto cumpre que seja robusto e afouto o
+pulso que removeu as immensas difficuldades
+com que ha trinta annos lutavam os escriptores
+do Novo-mundo para se fazerem conhecidos.
+Coube esta gloria e este triumpho ao snr. Garnier.</p>
+
+<p>Falta dizer que os preços dos livros offerecidos
+no catalogo das casas Chardron, no Porto e
+em Braga, são modicos, reduzidos, e inferiores
+ao preço corrente das obras portuguezas de igual
+tomo.</p>
+
+<p>E, pois que estou agradavelmente recommendando
+livros de brazileiros, seria injustiça não
+graduar de passagem ao menos o merito de uma
+<span class='pagenum'>[53]</span>
+obra que recentemente sahia dos prélos portuenses.
+É o <em>Estudo sobre a colonização e emigração
+para o Brazil</em>. É seu author o snr. Augusto
+de Carvalho, que tão grave e prestadiamente
+abre carreira de escriptor, em annos ainda
+muito na flôr, e com o espirito já a fructear
+as mais sensatas considerações sobre as questões
+controversas inculcadas no titulo da sua obra. Á
+substancia do livro allia-se o primor da fórma, a
+propriedade do termo, a chaneza eloquente, e, a
+espaços, a elevação do estylo que não innubla a
+clareza da idéa. É o snr. Augusto de Carvalho
+um brazileiro que nobilita as letras da sua patria,
+e está grangeando um lugar entre os melhores
+escriptores, e, desde já, o tem distincto entre os
+bons pensadores e cultores de idéas proficuas.
+Congratulo-me com os seus conterraneos.</p>
+
+<hr>
+
+
+
+<a name="cap06"></a>
+<h1>Á ACTUALIDADE</h1>
+
+
+<p>O meu nome foi banido das columnas d'aquelle
+jornal. Assim o rosnou o lebreu por entre os
+arames da mordaça.</p>
+<span class='pagenum'>[54]</span>
+
+<p>Foi realmente banido?</p>
+
+<p>Então, adeus, desgraçado!</p>
+
+<p>Que o mundo tenha tanta piedade de ti, lazaro,
+quanto eu me arrependo de te haver baldeado
+do charco da petulancia para outro peor--o do
+silencio.</p>
+
+<p>Adeusinho! coça a tua lepra com os teus folhetins;
+mas sume-te, escalracho!</p>
+
+<hr>
+
+
+
+<a name="cap07"></a>
+<h1>A EXC.<sup>ma</sup> MADRASTA D'EL-REI D. LUIZ 1.º CALUMNIADA</h1>
+
+
+<p>Se me arguirem de adulador da senhora condessa,
+madrasta d'el-rei D. Luiz I, são iniquos.
+Se esta ditosa dama, em vez de estar no paço das
+Necessidades, estivesse, a esta hora, em trances
+de cantora não escripturada, eu sahiria por honra
+do seu nome de artista contra o calumniador
+que lhe mareasse os applausos recebidos no theatro
+do Porto, ha quatorze annos.</p>
+
+<p>Em um numero da <em>Lanterna</em>, periodico truculento,
+li que a esposa do viuvo de D. Maria II
+<span class='pagenum'>[55]</span>
+havia sido pateada na rampa do theatro de S.
+João, em 1859.</p>
+
+<p>É calumnia, que vou desfazer com a imprensa
+contemporanea.</p>
+
+<p>Conceda-se-me a abstinencia de tratamentos
+regiamente honorificos, em quanto a nobre condessa
+de Edla me permitte pleitear em prol dos
+seus creditos de cantora.</p>
+
+<p>A snr.ª Elisa Hensler cantou, pela primeira
+vez, no theatro do Porto, na noite de 8 de outubro
+de 1859. O <em>Nacional</em> do dia 10 escreve o seguinte:</p>
+
+<p>«<em>A companhia italiana estreou-se effectivamente
+no sabbado, e não se estreou mal. A escolha da
+opera foi acertada--«O Saltimbanco»; é uma bella
+partitura... e a prima-dona Hensler é bella, joven,
+e canta com mimo. A sua voz, se não é possante,
+é melodiosa e expressiva, tem alcance bastante
+para o nosso theatro. O publico ficou agradavelmente
+surprehendido, e deu lisongeiro acolhimento
+á mimosa cantora... Tanto no duetto como no rondó
+mostrou a snr.ª Hensler que possue dotes musicaes
+pouco vulgares. O sentimento com que cantou
+os andantes do duetto, a bravura e perfeição na
+execução da difficil parte do rondó, e aquelles trilos
+tão nitidos e puros, que ella faz em notas tão agudas
+no rondó, é sufficientemente para corroborar
+<span class='pagenum'>[56]</span>
+as grandes e vantajosas informações que a precederam;
+e o publico foi justo com os applausos e chamadas
+no fim da opera.</em>»</p>
+
+<p>Receio que os detractores da mimosa cantora
+venham com artigos de suspeição ao <em>Nacional</em>,
+culpando-o de parcial e apaixonado, já no louvor,
+já na censura, em juizos theatraes. Contra esses
+artigos redargúo estampando a opinião do <em>Commercio
+do Porto</em>, o jornal mais serio do paiz:</p>
+
+<p>«<em>Abriu-se no sabbado com a opera o «Saltimbanco»
+de Paccini... Fizeram a sua estreia n'esta
+opera a primeira dama Elisa Hensler, etc. A prima
+dona Hensler foi applaudida e teve uma chamada
+no fim</em>.» (Commercio de 10 de outubro). E no
+folhetim de 15 do mesmo mez, confirma n'estes
+termos: «<em>A snr.ª Hensler é uma excellente cantora.
+A sua voz de soprano-agudo é de sonoro timbre; e,
+ainda que de pouco volume, extensa, flexivel, melodiosa
+e fresca. Possue, além d'estes dotes naturaes,
+outros não menos valiosos como cantora: conhecimento
+do mechanismo do canto, perfeita entoação e
+expressão. Revela a seu grande merito como cantatriz
+nos floreios, nas escalas chromaticas, e especialmente
+nos trinados. Na passagem da 1.ª á 2.ª
+cavaletta do seu rondó final faz admirar os tres
+longos e bellos trinados em <span class="ni">sol</span>, <span class="ni">lá</span> e <span class="ni">si</span> agudos. Na
+difficil cavaletta de sua cavatina do 1.º acto são
+<span class='pagenum'>[57]</span>
+muito merecidos os applausos que tem colhido. No
+<span class="ni">larghetto e cantabile</span> do duetto do baritono e soprano
+do 3.º acto, não obstante a agudissima <span class="ni">tacitora</span>
+em que está escripto, não deixa a snr.ª Hensler
+nada a desejar. A todas estas excellentes condições
+como artista e cantora reune uma presença sympathica,
+qualidade esta de muito valor no theatro.</em>»</p>
+
+<p>Já no <em>Nacional</em> de 13 este parecer viera corroborado
+com estes gabos: «<em>E a prima-dona Hensler?
+Não desmereceu em nada das primeiras impressões
+que nos imprimiu.</em></p>
+
+<p>«<em>É sempre a cantora mimosa e correcta.</em>»</p>
+
+<p>O <em>Commercio</em> de 29 de outubro classifica maviosamente
+a dôce cantora com esta phrase:...
+«<em>A prima-dona Hensler é o bijou da companhia.</em>»</p>
+
+<p>Na noite de 6 de novembro cantou a snr.ª
+Hensler a parte de <em>Lucia</em>. O <em>Nacional</em> diz o seguinte:
+«<em>A snr.ª Hensler na aria do 3.º acto remiu-se
+do fiasco do 2.º, e cantou com tal mimo e
+doçura que a platéa apesar de gelada rompeu então
+em reiterados applausos.</em>» (Nacional de 7 de novembro).
+O <em>Commercio</em>, esquivando-se á ingrata e
+desmerecida palavra <em>fiasco</em>, escreve: «<em>A sr.ª Hensler
+foi muito applaudida no <span class="ni">rondó</span>, e os applausos
+foram merecidos no <span class="ni">andante</span>, que cantou lindamente,
+executando com admiravel justeza <span class="ni">a cadencia</span>
+em unisono com a flauta... Na cavaletta não foi tão
+<span class='pagenum'>[58]</span>
+irreprehensivel a execução.</em>» Está de accordo com o
+<em>Nacional</em> de 8 de novembro: «<em>A snr.ª Hensler continua
+a ser applaudida no <span class="ni">rondó</span> do 3.º acto, onde
+a bella cantora revela muito talento. Se a sua voz
+fosse tão volumosa como é suave, seria uma artista
+de infinito merecimento.</em>»</p>
+
+<p>A 12 de novembro principiam os jornaes a
+gemer sobre a gaveta do snr. Laneuville, empresario
+que se dissolvia, com quanto fosse insoluvel.
+Sem embargo, a snr.ª Hensler, na confirmação
+dos dous citados jornaes, excedia-se no mimo
+do canto. Dir-se-hia que attentava em captar
+com as harmonias dulcissimas da sua voz o archanjo
+torvo da miseria que espreitava o empresario
+por entre as bambolinas de cartão esgarçado.</p>
+
+<p>Alguns amadores, que previam o desastre da
+empresa nas cadeiras vasias da platéa, fermentaram
+a occultas dous bandos que, mais ou menos
+ficticiamente, se apaixonassem pelas duas damas.
+É o que se deprehende das revelações do <em>Commercio</em>
+de 5 de novembro que reza assim:... «<em>No
+pessoal da companhia não ha nada que desafie enthusiamo
+e dê vida animada ao theatro, apesar
+dos esforços que alguns poucos frequentadores do
+theatro, dos mais desenfadados, empenham para
+crear partido ás duas damas.</em></p>
+<span class='pagenum'>[50]</span>
+
+<p>«<em>Houve já episodios curiosos; porém nem as damas,
+nem os seus admiradores conseguem fazer
+móça no indifferentismo do publico, que reconhece
+superioridade relativa na dama Hensler; mas
+não vê ainda assim motivo justificado para se enthusiasmar.</em>»</p>
+
+<p>Com a sua usual discrição, omittiu o <em>Commercio</em>
+os <em>episodios curiosos</em>. Bem é de vêr que o amor,
+ideal da arte das fusas e semifusas, não seria estranho
+aos sonegados episodios. A radiosa belleza
+da cantora sem duvida attrahia umas borboletas,
+que então douravam o seu polen sob as fulgurações
+do lustre; todavia, como a dignidade da artista
+se esquivasse ás intrigas de bastidor que, ás
+vezes, galvanisam os empresarios oxydados, a empresa
+falliu.</p>
+
+<p>Decorreram uns quinze dias angustiados para
+a companhia desvalida. Hermann, aquelle prestigiador
+cavalheiroso que morreu ha dous annos,
+estava então no Porto. Foi elle o generoso valedor
+dos artistas e ainda do empresario. A companhia,
+em fim de dezembro, estava dispersa, não
+deixando um vestigio de fragilidade no seu rasto
+de pobreza.</p>
+
+<p>Em 21 de dezembro d'aquelle anno, uma local
+do <em>Commercio</em> dizia: «<em>O vapor Lusitania sahido
+<span class='pagenum'>[60]</span>
+hontem pelas 12 horas da manhã conduziu 118
+passageiros, entre os quaes: Elisa F. Hensler</em>, etc.»</p>
+
+<p>Entrou, pois, na manhã do dia 21 em Lisboa
+a cantora. Devia levar na alma os lutos da natural
+vaidade ferida pela indifferença gelida d'uns
+pisa-verdes que honraram grandemente a mulher,
+menosprezando a artista. Dos frementes
+applausos, que a victoriaram quando assomou
+deslumbrante no palco, ao fastio com que as filas
+dos seus admiradores rarearam, vai a distancia
+que medeia entre a mulher honesta e a que
+permitte que lhe abram saldo de contas em que
+os applausos representam uma verba.</p>
+
+<p>Eu não sei se Hensler, a cantora, escripturada
+pela empresa de S. Carlos, ao encarar a princeza
+do Tejo, que devia vestir de negro n'aquelle dia
+de dezembro, sentiu pavores da sua futura sorte,
+em theatro de jerarchia tão elevada para suas
+forças. Não sei porque frontarias de palacios lhe
+avoejou a vista absorta nas tristezas de quem ia
+sósinha, forasteira, sem o genio grande que estua
+no peito as palpitações do triumpho. Não sei;
+mas, se encarou lá em cima os palacios dos dous
+reis--com que olhos a esposa do snr. rei D. Fernando
+avistará hoje o Tejo, por onde entrára
+n'aquella manhã pardacenta de nebrina carrancuda
+de agouros esquerdos! Se ella então preveria
+<span class='pagenum'>[61]</span>
+um marido rei nas Necessidades, um enteado
+rei na Ajuda, e toda aquella Lisboa, e todo este
+reino, e nós todos ás suas plantas, nós todos, os
+bons subditos do rei que é marido, e do rei que
+é enteado, e d'ella, que vale mais que todos, por
+que, offuscando-os com a aureola da arte, estrellada
+das seducções da belleza, nos revelou que os
+reis deslumbrados eram apenas homens!</p>
+<span class='pagenum'>[62]</span>
+
+<hr>
+
+
+
+<a name="cap08"></a>
+<h1>OS SALÕES</h1>
+
+
+<h2>CAPITULO II</h2>
+
+<h2>PLEBISCITUM</h2>
+
+<div class="citacao">
+<p>Homem plebeu. <em>Homo plebeius.</em> Nos antigos
+romanos havia tres ordens. A ordem senatoria,
+equestre e plebea. A ordem plebea
+val o mesmo que a gente do povo.</p>
+
+<p><em>Plebiscitum.</em> Termo da antiga jurisprudencia
+romana. Deriva-se do latim: <em>plebs</em>, plebe,
+e <em>sciscere</em>, que val o mesmo que <em>assentar</em>,
+<em>ordenar</em>, <em>determinar</em>. E assim <em>plebiscito</em> era
+o decreto, ou lei posta pelo povo, sem o suffragio
+dos senadores, mas só ao pedir do tribuno,
+magistrado do povo. <em>Plebiscitum.</em></p>
+
+<p class="direita">D. RAPHAEL BLUTEAU.</p>
+
+<p>La conscience peut être géante, cela fait
+Socrate et Jésus: elle peut être naine, cela
+fait Atrée et Judas.</p>
+
+<p>La conscience petite est vite reptile...</p>
+
+<p>Les catastrophes ont une sombre façon
+d'arranger les choses.</p>
+
+<p class="direita">VICTOR HUGO.</p>
+</div>
+
+<p>A luz não se exprime. Não tem definição.
+Como a não tem o calor, o magnetismo, a electricidade,
+e a vida.
+<span class='pagenum'>[63]</span>
+
+<p>A luz é o agente ou a acção, que nos adverte
+a distancia da presença dos corpos luminosos pelo
+intermedio da vista.</p>
+
+<p>Vejamos.</p>
+
+<p>A luz propaga-se em linha recta nos meios
+homogeneos. Obrigada a parar, no seu caminho,
+pelo encontro d'um corpo opaco--produz os phenomenos
+da sombra e da penumbra.</p>
+
+<p>No mundo moral são a sombra e a penumbra
+as reacções da sciencia, da arte, da civilisação
+e do progresso.</p>
+
+<p>Analysemos as penumbras.</p>
+
+<p>Entremos nas sombras.</p>
+
+<p>Desçamos ás trevas.</p>
+
+<p>Fóra da vida physica são as trevas a ignorancia,
+e esta produz o silencio. Ora, o silencio
+é a paz dos sepulchros. Por que não deveria eu
+consultar a plebe?</p>
+
+<p>Ha por ahi, nas ultimas camadas sociaes,
+perdidas, nas solidões da miseria, almas tão nobres,
+aspirações tão vastas, crenças tão vivas...</p>
+
+<p>Por que não iria eu consultar os generosos
+sentimentos populares?</p>
+
+<p>E fui.</p>
+
+<p>Entrei n'um tugurio qualquer.--Que lhe importa
+o leitor qual foi? Havia uma mesa de pinho,
+duas cadeiras, e um catre. Era toda a mobilia.
+<span class='pagenum'>[64]</span>
+Mas, no meio d'esta hedionda miseria,
+existia um homem, feito á imagem de Deus; <em>et
+creavit Deus hominem ad imaginem suam.</em></p>
+
+<p>Era um veterano da liberdade. Desembarcára
+no Mindello. Tinha, na cabeceira do leito, pregada
+no travesseiro a insignia da Torre e Espada,
+ganha em Souto Redondo, em lutas titanicas, e
+em nome da liberdade.</p>
+
+<p>Não desenho o soldado, ainda hoje operario.
+Basta-nos ouvil-o.</p>
+
+<p>Li-lhe o manuscripto.</p>
+
+<p>Ficou pensativo, e triste. Encostou os cotovelos
+sobre a mesa, afagou o craneo, como se
+lhe tumultuassem tantas idéas lá dentro, que não
+podiam irromper d'aquella abobada de fogo, e
+depois, em voz baixa, como se receasse ser ouvido,
+começou assim:</p>
+
+<p>--Publique tudo isso.</p>
+
+<p>A abstenção politica é mais do que a morte:
+é a indifferença pelos males sociaes, é a historia
+d'este torpe individualismo, que nos corrompe, é
+a gangrena moral d'esta sociedade em dissolução,
+é a anasarca symptomatica da lesão organica
+que despedaça a nossa existencia, é o maior
+de todos os crimes, por que é uma tranquillidade
+ficticia, comprada á custa dos legados que nós
+iamos enthesourando para as gerações futuras.</p>
+<span class='pagenum'>[65]</span>
+
+<p>A democracia agonisa, no seculo dezenove,
+quando desabrochava, e se abria em flôr, na arvore,
+que nós todos plantamos, regada com o
+sangue precioso de tantos martyres, em nome
+dos que deviam colher e adorar no futuro, o
+fructo dos nossos trabalhos.</p>
+
+<p>O velho operario, o antigo soldado do cêrco do
+Porto meditou por alguns instantes, e continuou:</p>
+
+<p>--A historia vai esculpida em chronicas de reis,
+e memorias d'aulicos. A historia ha de escrevel-a
+um dia o povo, rasgando todas essas paginas
+mentirosas e lisonjeiras das décadas fabulosas,
+sahidas das mãos dos eunuchos d'estes harens
+do occidente.</p>
+
+<p>Esta paralysia social em que a geração presente
+cahiu, esta hesitação absurda e repugnante
+nos annaes da nossa vida actual tem uma explicação
+irrespondivel: o mundo espera uma
+crença viva para se alentar na sua marcha--para
+respirar, e viver. D'onde virá a fé?</p>
+
+<p>Habitantes d'uma peninsula á mercê de tantas
+invasões, raças tão diversas teem pisado este
+solo, que difficil, senão impossivel, será buscar-lhes
+a genealogia. Iberos, celtas, tyrios, phenicios,
+carthaginezes, numidas, berbéres, romanos,
+godos, alanos, suevos, mussulmanos, e varias
+hordas de gascões, e borgonhezes, afóra
+<span class='pagenum'>[66]</span>
+aragonezes, asturianos, e gallegos sulcaram este
+solo sagrado.</p>
+
+<p>Onde estão os lusitanos?--Onde corre esse
+sangue mosarabe com que a historia enche a
+vastidão das nossas campinas, e povôa a crista
+das nossas montanhas?--Nas trevas das invasões
+perdem-se os vestigios, e em presença dos aventureiros,
+que acompanhavam Henrique de Borgonha,
+apparece uma raça energica, robusta, e
+corajosa, que põe em derrota a meia lua dos
+sectarios do Islam, e obriga a dynastia affonsina
+a conceder-lhe cartas de foraes, que são os pergaminhos
+e armarias d'esta nobilissima raça hispanica.</p>
+
+<p>E o velho soldado do cêrco do Porto curvou
+a cabeça, e meditou.</p>
+
+<p>Depois disse:</p>
+
+<p>--Quem são, então, os duques e condes que
+acompanhavam o aventureiro, e bastardo real?
+Quem são os mercenarios, que se aformoseavam
+com as alcunhas ephemeras, e irrisorias dos cargos
+nobiliarchicos da côrte byzantina, quando
+estes titulos valiam, outr'ora, pela significação
+do mando, do poderio e da jurisdicção?</p>
+
+<p>Á face da nobre raça hispanica--raça que
+somos nós--eram elles o enxurro, e a vadiagem
+das côrtes em que nasceram.</p>
+<span class='pagenum'>[67]</span>
+
+<p>Nós eramos o povo, éramos a raça, éramos a
+tradição.</p>
+
+<p>Quem tomou Lisboa aos mouros? Quem levou
+os arabes e berbéres de vencida até ás costas
+do occidente? Quem povoou a patria, quando as
+quinas se desfraldaram em Ourique? Quem coroou
+D. João I, esmagando as traições de Castella?
+Quem promoveu a restauração de 1640, e
+lutou pela independencia da patria?</p>
+
+<p>Foi o povo.</p>
+
+<p>Deixemos Aljubarrota ao condestavel.</p>
+
+<p>Deixemos a restauração aos quarenta conjurados
+do palacio do conde de Almada. Que poderiam
+elles sem nós? O zelo, a coragem, o esforço,
+e o amor da patria só nos cabem a nós.--Vencemos
+sempre, porque eramos o povo.</p>
+
+<p>Batemos com os contos das nossas lanças ás
+portas de Ceuta, de Tanger, e d'Arzilla, e os
+bastiões africanos cediam aos nossos esforços.
+Aportamos em Calecut, Cochim, Gôa, Malaca e
+Ormuz--e o Oriente dobrou-se á nossa vontade.
+Que importa, que os cabos de guerra tenham
+os louros das victorias, e das conquistas? A gloria
+é nossa. Fomos o instrumento civilisador, o
+soldado que morre pela patria, o portuguez, que
+cahe alanceado junto do seu pendão.</p>
+
+<p>Para o condestavel, para Vasco da Gama,
+<span class='pagenum'>[68]</span>
+para Affonso d'Albuquerque, para D. João de
+Castro, para D. Francisco d'Almeida ha a chronica,
+ha o livro, ha as tenças, ha a narração
+dos feitos esforçados e valerosos, ha as recompensas
+da munificencia regia, e os brazões, que
+são a commemoração d'esses feitos, esculpidos
+nos portaes dos seus nobres solares.</p>
+
+<p>Para o homem do povo, que pelejou ao lado
+dos mais corajosos, que batalhou onde havia
+mais perigo, que abandonou mãi, mulher e filhos,--para
+esse, ha a valla de finados, triste, e
+obscura--e a chronica emmudece, porque
+não é para peões, e villanagem, que foi creada
+a historia dos reis, e a Torre do Tombo, onde
+se guardam, e archivam seus feitos e memorias.</p>
+
+<p>Para o povo ha o silencio.</p>
+
+<p>Quando d'elle falla a historia, alcunha-o de
+sedicioso, barbaro e turbulento.</p>
+
+<p>Para o povo ha o esquecimento.</p>
+
+<p>A humanidade é uma idéa abstracta, que vive
+para a historia, nos vaidosos triumphos dos
+Alexandres, dos Cesares e dos Pompeus.</p>
+
+<p>Quando um homem do povo cahe mutilado,
+pela arma homicida dos poderosos do dia, chama-se
+Socrates, chama-se Spartacus, chama-se
+Gracho, chama-se Galileu, chama-se Danton,
+<span class='pagenum'>[69]</span>
+chama-se Vergniaud, chama-se Armand Carrel,
+chama-se Gomes Freire, chama-se <em>legião</em>. Mas a
+historia atravessa estes periodos symbolicos da
+vida das nações sem commemorar estes nomes?</p>
+
+<p>Para que?--Levantou já alguem o estigma
+que pesa sobre Catilina?</p>
+
+<p>A historia divinisou Cesar, e applaudiu Cicero.</p>
+
+<p>Rasgaram já os crépes que envolvem o busto
+de Robespierre, e a fronte de Saint-Just?</p>
+
+<p>A França reclamou Bonaparte, e mais tarde
+victoriou o cossaco, que dos estepes da Russia
+vinha impôr leis e dynastias ao capitolio da raça
+latina.</p>
+
+<p>E nós?--Aqui o veterano fez uma pausa. Levantou
+a fronte como se sentira o clarim das batalhas,
+e continuou em voz sumida e cavernosa:</p>
+
+<p>--A nós deram-nos uma carta constitucional, que
+é como um foral--para não dizer carta d'alforria--a
+nós deram-nos uma mentira, escripta com
+o sangue do povo, no sólo sagrado da patria.</p>
+
+<p>E o veterano calou-se.</p>
+
+<p>Depois como despertado pelo ruido dos combates,
+como se aquella alma aspirasse a novas
+lutas, para sustentar os principios por que pelejára,
+ergueu-se do catre onde estava sentado, e
+rumorejou: E fallaes-nos de patria! patria aonde,
+e patria com quem? No Rocio em treze de
+<span class='pagenum'>[70]</span>
+março?--em Torres Vedras em 1846?--no
+Porto em 1851?--A patria é o sólo sagrado onde
+jazem as ossadas dos nossos avós. A patria
+é o local onde assenta o nosso lar domestico, onde
+vivem as nossas familias, onde está cravado o
+pendão dos nossos direitos. A patria é nossa por
+que derramamos o nosso sangue por ella.</p>
+
+<p>Em seguida curvou-se para mim, que estava
+sentado no fundo d'este triste e miseravel quarto,
+e disse-me em phrases breves:</p>
+
+<p>--Faça-me só um favor. É o unico que lhe peço.
+Como prologo d'esse manuscripto, publique
+este papel. É a meditação das minhas noites de
+insomnia. É o symbolo das minhas crenças. É o
+credo da minha religião politica. Morrerei contente.</p>
+
+<p>Começa por este prologo o manuscripto do
+desembargador.</p>
+
+<p class="direita">VISCONDE DE OUGUELLA.</p>
+<span class='pagenum'>[71]</span>
+
+<hr>
+
+
+
+<a name="cap09"></a>
+<h1>O DECEPADO</h1>
+
+
+<p>Duarte de Almeida, o alferes de Affonso V, conheço-o
+desde a minha infancia, por m'o apresentar
+em verso o meu finado amigo Ignacio Pizarro.</p>
+
+<p>Chorei por Duarte de Almeida, como se elle
+fosse meu avô, quando o infeliz, na volta de Toro,
+onde os castelhanos lhe deceparam as mãos, se
+lastimava assim pela bocca do poeta do <em>Romanceiro
+portuguez</em>:</p>
+
+<div class="poesia">
+Nem a espada, nem a lança<br>
+Posso nas mãos empunhar!...<br>
+Ai de mim! triste lembrança!...<br>
+Nem bandeira tremolar!...<br>
+Nem bordão de peregrino<br>
+Póde meu corpo arrimar!<br>
+Nem o meu pranto contino<br>
+Tenho mãos para limpar!...<br>
+Luiza! já me esqueceste?...<br>
+Talvez tu ora suspires<br>
+Por outro... se tal fizeste...<br>
+Coração! ah! não delires...<br>
+Morto já, tu me julgaste,<br>
+E se agora assim me viras,<br>
+D'aquelle a quem tanto amaste<br>
+Talvez agora fugiras.<br>
+<span class='pagenum'>[72]</span>
+Talvez nobre cavalleiro<br>
+Póde alcançar tua mão...<br>
+Queira o céo morra eu primeiro,<br>
+Não saiba a tua traição.<br>
+Que eu antes quero da morte<br>
+Ter gelado o coração,<br>
+Do que vir amor tão forte<br>
+Ter em premio a ingratidão.<br>
+</div>
+
+<p>Com estas e outras piedosas queixas ia o namorado
+alferes caminho do castello de Aguiar,
+onde vivia a castellã Luiza.</p>
+
+<p>O leitor já me está dizendo que sabe o entrecho
+do romance de Pizarro: que a donosa castellã,
+julgando morto o seu amado, lhe fizera cantar
+os responsos em sumptuosos funeraes: que o
+cavalleiro, a deshoras, se annunciára na barbacã
+do castello; e, admittido á capella, encontrou
+Luiza a vestir o habito de monja: que o decepado,
+apertando-a ao peito, lhe fez vêr que estava
+vivo, e que ella, allegando o voto que fizera de
+professar, cahiu de encontro á eça, e morreu.</p>
+
+<p>Termina o trovador:</p>
+
+<div class="poesia">
+Seu amante desditoso,<br>
+Mais desgraçado, viveu;<br>
+Mas o seu fim lastimoso<br>
+Nunca ninguem conheceu.<br>
+</div>
+
+<p>Bastantes annos--e que ditosos annos!--andei
+enganado pelo meu amigo Pizarro. Fui tres
+<span class='pagenum'>[73]</span>
+vezes ao castello do Pontido. Creio que já disse,
+não me lembra aonde, que encontrei entre as urzes
+da matta subjacente ao castello um espigão
+de espora sem rosêta, e suspeitei que ella houvesse
+sido do infausto amador da castellã. Figurou-se-me,
+ao cahir da noite, vêl-a no gothico
+balcão, voltada para os serros fronteiros, suspirar
+no alaude:</p>
+
+<div class="poesia">
+Adeus, serra do Mizio!<br>
+Adeus, val de Villa Pouca!<br>
+Adeus, castello sombrio!<br>
+Minha voz ouvi já rouca!<br>
+</div>
+
+<p>Estas impressões da primeira mocidade revivem
+quando a razão as impugna ao sentimento.
+De envolta com as minhas indagações historicas
+na triste sorte da princeza D. Joanna, chamada a
+<em>excellente senhora</em>, o vulto que mais me preoccupava
+era o alferes da bandeira, Duarte de Almeida,
+o heroe, o amante da castellã, o decepado
+cujo</p>
+
+<div class="poesia">
+..........fim lastimoso<br>
+Nunca ninguem conheceu.<br>
+</div>
+
+<p>Quanto ao seu fim, citava Pizarro um trecho
+de Duarte Nunes de Leão (<em>Chronica de Affonso V</em>)
+muitissimo desconsolador. Alli se diz que o bravo,
+<span class='pagenum'>[74]</span>
+depois de tamanha proeza, vivera mais pobre
+que d'antes. Este opprobrio nacional confirma-o
+modernamente o snr. Pinheiro Chagas, com estas
+phrases austeras: «O cavalleiro heroico sobreviveu
+ás suas feridas, e voltou a Portugal onde
+foi sempre conhecido pelo glorioso nome do <em>Decepado</em>.
+Mas, ó vergonha! o homem que assim
+tão briosamente se portára, morreu na miseria,
+porque nenhuma recompensa lhe foi dada, e porque
+nem se quer podia ganhar a vida pelo seu
+trabalho, logo que o haviam impossibilitado de
+trabalhar as suas tristes mutilações<sup><a name="mfn5" href="#fn5">[5]</a></sup>.»</p>
+
+<p>Por honra da patria e da humanidade, apresso-me
+a declarar que é menos exacto o que Duarte
+Nunes diz e o snr. Pinheiro Chagas encarece. Logo
+me justificarei com documentos.</p>
+
+<p>Pelo que respeita ao romance de Pizarro, tão
+sómente dous elementos de verdade historica podemos
+aceitar-lhe: a existencia do alferes e a do
+castello de Aguiar. E o certo é que ao meu intelligente
+amigo não corria o dever de maiores exactidões.</p>
+
+<p>Primeiramente direi do castello.</p>
+
+<p>Lá está, e já lá estava assim, pouco mais ou
+menos, antes da fundação da monarchia portugueza.
+<span class='pagenum'>[75]</span>
+Quem o possuia ou governava, no tempo
+em que D. Affonso Henriques pleiteava nos arraiaes
+com sua mãi e com o imperador D. Affonso,
+era o rico-homem D. Gonçalo de Sousa, genro
+de Egas Moniz, e senhor da terra de Sousa.
+Traslada no tom. III da <em>Monarchia Lusitana</em> (pag.
+112), fr. Antonio Brandão da <em>Vida de Santa Senhorinha</em>,
+codice áquelle tempo inedito, uma passagem
+que faz ao nosso intento<sup><a name="mfn6" href="#fn6">[6]</a></sup>.</p>
+
+<p>Reza assim, melhorado na orthographia:</p>
+
+<br>
+<p><em>«Digo-vos que estando folgando em sua terra
+um principe nobre e cavalleiro d'este reino, o qual
+era mui privado d'el-rei D. Affonso, e havia nome
+D. Gonçalo de Sousa, mui poderoso, e todo conselho
+d'el-rei estava em elle; estando, como disse, folgando,
+chegaram a elle mensageiros dizendo que os inimigos
+lhe corriam a terra, e que lhe tinham cercado
+o castello d'Aguiar; o qual logo chamou suas
+gentes que pôde haver, e foi-se para haver de descercar
+o dito castello. E chegando aonde jaz o corpo
+d'esta santa lhe fez reverencia, e oração não lhe
+lembrou; e indo ainda em vista da igreja metade
+<span class='pagenum'>[76]</span>
+de um campo, esteve pegada a mula, em que ia o
+cavalleiro, a qual elle com esporas e pancadas não
+podia abalar, mas antes a mula quedava mais rija
+e pero se desceu d'ella e a não podia abalar; e, vendo
+elle isto, lembrou-lhe como passára pela igreja
+da santa sem lhe pedir benção, e mercê, e sem fazer
+oração, e por isso lhe detinha a mula; e, soffreando
+a mula para traz para se tornar á igreja,
+a mula logo tornou, e o cavalleiro fez sua oração
+encommendando-se á santa, e des i fez seu caminho,
+e com suas companhas descercou seu castello,
+e correu depois os inimigos, e tornou a sua casa
+com victoria</em>, etc.»</p>
+
+<br>
+<p>O chronista Brandão, por mal informado, escreve
+que o castello de Aguiar da Pena se avista
+com as montanhas de Barroso. Estas montanhas
+distam seis leguas do castello, e entre ellas e o
+valle em que negreja a fortaleza gothica estão os
+cabeços da serra de Alfarella, e no horisonte mais
+elevado alveja villa Pouca de Aguiar. Acrescenta
+que o castello «é crespo de torres, baluartes e cubellos,
+e está fundado sobre a corôa de uma penha
+talhada de uma parte por natureza, que parece
+obra feita á mão,» etc.</p>
+
+<p>Póde ser que no seculo XVII, quando Brandão
+escrevia, permanecessem ainda as torres e baluartes.
+<span class='pagenum'>[77]</span>
+O que ha vinte annos parecia ter robustez
+para seculos eram quatro alterosas quadrellas
+de alvenaria ameiadas com seus adarves, bastiões,
+e janellas gothicas sem lavores.</p>
+
+<p>Recordo-me ter lido na <em>Nova historia de Malta</em>
+de José Anastacio de Figueiredo que o castello no
+seculo XIII pertencia á ordem hospitalaria de S.
+João de Jerusalem, e cita um aviso que obriga os
+lavradores circumvisinhos a carregarem pedra
+para reparos.</p>
+
+<p>E não sei mais nada quanto ao solar da phantastica
+Luiza.</p>
+
+<p>Agora vamos em cata do <em>Decepado</em>, depois que
+voltou de Castella. Encontramol-o na sua casa
+acastellada no seculo XII, que teve o nome de
+castello de Villarigas, no couto do Banho, hoje
+concelho de S. Pedro do Sul.</p>
+
+<p>É elle o herdeiro de seu pai Pedro Lourenço
+de Almeida. Afóra aquelle castello, tem outro na
+quinta chamada da Cavallaria, honrada por el-rei
+D. Fernando em 1419, e onde os linhagistas enraizam
+o tronco dos Almeidas.</p>
+
+<p>Quando alli chegou, esperavam-o a esposa e
+dous filhos.</p>
+
+<p>A esposa chamava-se D. Maria de Azevedo,
+filha do senhor da Louzã Rodrigo Affonso Valente
+e de D. Leonor d'Azevedo, que herdára
+<span class='pagenum'>[78]</span>
+grandes haveres de sua tia D. Ignez Gomes de
+Avellar.</p>
+
+<p>Os filhos do <em>Decepado</em> chamaram-se Affonso
+Lopes, e Ruy Lopes de Almeida. Affonso, o successor
+das honras e coutos de Villarigas e Cavallaria,
+casou com D. Leonor Vaz Castello Branco,
+filha de João Vaz Cardoso, aio do conde de Barcellos.</p>
+
+<p>O filho segundo, Ruy, foi para Castella, como
+veador da princeza D. Joanna, filha de D. Duarte,
+e mulher de Henrique IV.</p>
+
+<p>Esta geração de fidalgos continuou honrada e
+rica até á duodecima neta de Duarte de Almeida,
+a snr.ª D. Eugenia de Almeida de Aguilar Monroy
+da Gama Mello Azambuja e Menezes que em 15 de
+setembro de 1834 casou com o snr. Fernando
+Telles da Silva, marquez de Penalva, de quem
+teve dous filhos, Luiz, que, nascendo em 1837,
+morreu ha poucos annos, e D. Henriqueta de Almeida,
+que nasceu em 1838, e vive solteira.
+Do snr. Luiz Telles, que foi casado com a snr.ª D.
+Maria Francisca Brandão, sua prima, existe uma
+filha, que é já senhora.</p>
+
+<p>Quanto á pobreza <em>e miseria em que morreu</em>
+Duarte de Almeida, o snr. Pinheiro Chagas foi illudido
+por Duarte Nunes e Faria e Sousa, que na
+<span class='pagenum'>[79]</span>
+verdade o authorisaram a deplorar tão sentidamente
+a sorte do alferes de Affonso V.</p>
+
+<p>Duarte de Almeida succedera a D. Duarte de
+Menezes no posto nobilissimo de alferes-mór da
+bandeira. Militando nas guerras de Africa, salvou
+o pendão real das presas da mourisma, quando
+Affonso V deu batalha na serra de Benacofuf. (Faria
+e Sousa, <em>Africa</em>, cap. 6, §. 7.º)</p>
+
+<p>E tanto o rei não foi ingrato aos serviços do
+seu valente alferes, que, estando em Samora, em
+1475, no anno anterior ao da batalha de Toro,
+ainda antes do heroico feito, lhe fez mercê pelos
+seus grandes serviços, para elle e seus filhos, de
+um reguengo no concelho de Lafões, cuja carta
+de mercê póde lêr-se na Torre do Tombo no <em>Livro
+que serviu na chancellaria de D. Affonso V</em>,
+folha 17, e começa: <em>A quantos esta minha carta
+virem faço saber que pelos muitos serviços que
+Duarte de Almeida, fidalgo de minha casa, e meu
+alferes-mór me tem feito assim n'estes reinos de
+Castella como de Portugal e em Africa, onde sempre
+me serviu muito bem e lealmente</em>, etc.</p>
+
+<p>O rei, que tanto o apreciára e galardoára, sabido
+é que foi para França solicitar debalde a alliança
+do velhaco de Luiz XI. Voltou a Portugal,
+onde viveu ainda cinco tristissimos annos, forçado
+a divorciar-se da esposa, desestimado do filho,
+<span class='pagenum'>[80]</span>
+e desvenerado dos vassallos. Não era, pois, tempo
+proprio aquelle para premiar heroismos batalha,
+cuja perda dissimulada em victoria, enlutára
+o brio e o coração de Affonso V.</p>
+
+<p>O decepado, por sua parte, lá tragava o fel
+dos seus derradeiros annos na abastança dos bens
+que, certo, lhe não mitigavam as angustias da
+mutilação; mas em pobreza e miseria não consintamos
+sequer á poesia que nol-o figure.</p>
+
+<p>Se D. João II não augmentou em coutos, honras
+e senhorios a casa do alferes de seu pai, não
+o arguamos por isso, sem haver a certeza de que
+Duarte de Almeida sobrevivesse ao Africano. Na
+batalha do Toro já devia ir no inverno da vida
+quem vinte annos antes desfraldára o pendão real
+em Alcacer-Ceguer, e quem já tinha um filho, que
+acompanhára como veador a Castella a mãi da
+princeza D. Joanna por amor de quem andava accesa
+a guerra. Afóra isso, é de crêr que Duarte
+de Almeida assistisse ao desastre de Alfarrobeira
+em 1449, e não fosse dos menos carniceiros na
+mortandade do duque de Coimbra e dos seus
+leaes amigos. Ora, transluz da historia que D.
+João II odiára todos os fidalgos que, de parçaria
+com o duque de Bragança, malsinaram de traidor
+o infante D. Pedro. Ajuda estas suspeitas ser o
+primogenito de Duarte de Almeida casado com a
+<span class='pagenum'>[81]</span>
+filha de um que fôra aio do conde da Barcellos,
+antes de ser duque de Bragança.</p>
+
+<p>Já, porém, o successor de D. João II galardoou
+o neto do decepado, dando-lhe o senhorio da villa
+do Banho, a provedoria das caldas de Lafões,
+e lhe confirmou o privilegio e couto da quinta da
+Cavallaria.</p>
+
+<p>Em remate de tão derramadas provas, quero
+deixar bem assente que Duarte de Almeida, o
+meu tão chorado heroe do sentimentalismo da
+infancia, não morreu pobre, nem acabou na miseria
+do homem que, á mingua de mãos, não
+póde trabalhar.</p>
+
+<p>Por fim, não sahirei do paço senhorial da Cavallaria
+sem consolar o leitor pio e mais lido em
+cousas do céo que em nobiliarios, que n'aquella
+casa nasceu o bemaventurado S. frei Gil, chamado
+de Santarem, e que Almeida Garrett ajoujou
+com o dr. Fausto no poema <em>D. Branca</em> e nas
+<em>Viagens</em>.</p>
+
+<p>Ainda hoje, n'aquella casa, perdura uma capella
+edificada na alcova onde nasceu o sabio feiticeiro
+e pactuario do demonio. Observe-se que o
+conde D. Pedro, no <em>Livro das Linhagens</em>, tit. 25,
+pag. 151, diz que Gil fôra assassinado por Pedro
+Soares Galinato; mas o chronista-mór João Baptista
+Lavanha desfaz o erro,--o que eu muito
+<span class='pagenum'>[82]</span>
+estimo para que se não desluza a substancia da
+bella prosa de fr. Luiz de Sousa, historiador do
+santo.</p>
+
+<div class="rodape">
+ <p><a name="fn5" href="#mfn5">[5]</a> <em>Historia de Portugal</em>, tom. III, pag. 28.</p>
+
+ <p><a name="fn6" href="#mfn6">[6]</a> O codice está integralmente impresso nas <em>Memorias resuscitadas da antiga Guimarães</em>, pelo padre Torquato Peixoto de Azevedo, em 1692, pag. 444-476. Sirvo-me d'esta copia, corrigindo os erros do traslado de Brandão.</p>
+</div>
+
+<hr>
+
+
+
+<a name="cap10"></a>
+<h1>CARIDADE BARATA E ELEGANTE</h1>
+
+
+<p>O advogado Sampaio Efrin morreu, ha cinco
+annos, em Lisboa, e deixou dous filhos illegitimos,
+que já não tinham mãi.</p>
+
+<p>Amára-os extremadamente. As duas crianças
+excruciaram-lhe a agonia; mas expirára com a
+certeza de que seus filhos, e herdeiros de parte
+de seus haveres, não balbuciariam, em horas de
+fome, o nome de seu pai.</p>
+
+<p>Mas a justiça desherdou os orphãos, e deu o
+espolio do advogado á sua viuva.</p>
+
+<p>O menino alimentou-se cinco annos da caridade
+de uma criada de seu pai.</p>
+
+<p>E, quando tinha seis, appareceu livido e pobremente
+vestido a pedir esmola no tribunal da
+Boa-Hora--alli, onde seu pai triumphára nas lides
+da eloquencia.</p>
+<span class='pagenum'>[83]</span>
+
+<p>A bemfeitora que, até áquelle dia lhe repartira
+do seu pão, quando sentia a mão da morte
+sobre o seio, disse á criança que fosse ao tribunal
+e mendigasse, lembrando-se que alli concorriam
+pessoas que tinham conhecido seu pai.</p>
+
+<p>O snr. João Bernardino da Silva Borges viu o
+menino andrajoso, a tiritar, com o espasmo da fome
+nos olhos--aquelle olhar espavorido da miseria--que
+parece sagrada nas criancinhas--aquelle
+olhar torvo, expressão de assombro do
+anjo a tremer sobre o cairel d'este inferno do
+mundo.</p>
+
+<p>O menino tinha uma carta na mão. O snr.
+Silva Borges leu a carta. Era a supplica da moribunda
+a favor do desvalido filho de seu amo.</p>
+
+<p>E conduziu a criança, onde lhe dessem a esmola
+do jantar e da cama.</p>
+
+<p>Ao outro dia, o <em>Jornal da Noite</em>, publicando
+uma carta commovente do protector do orphão,
+acompanhava a invocação á caridade de sentidas
+e pungentes palavras.</p>
+
+<p>E, no dia immediato, o mesmo jornal exultava
+noticiando que o orphãosinho estava amparado,
+no regaço da caridade abundante, nos braços de
+alguem que ouvira o echo das divinas palavras de
+Jesus: «Deixai que as criancinhas se aconcheguem
+de mim.»</p>
+<span class='pagenum'>[84]</span>
+
+<p>Volvidas duas semanas, á volta do menino, a
+caridade faz-se representar por nove senhoras illustres,
+quanto cabe inferir dos appellidos.</p>
+
+<p>Nove anjos, as nove musas da inspiração santissima,
+nove corações a desbordar de generosidade,
+dezoito mãos cheias de caricias e do superfluo
+da sua riqueza, para afagar, alimentar e educar
+um menino a quem esta setima primavera
+bafeja os primeiros risos de sua enfezadinha
+puericia. É muito!</p>
+
+<p>Mas estas nove damas assumem cada qual sua
+nomenclatura:</p>
+
+<p>Uma, chama-se <em>presidenta</em>;</p>
+
+<p>Outra, <em>vice-presidenta</em></p>;
+
+<p>Quatro, são <em>vogaes</em>;</p>
+
+<p>Uma, é <em>thesoureira</em>;</p>
+
+<p>E as outras, são <em>secretarias</em>.</p>
+
+<p>Mas que tem isto que vêr com o orphão? O
+congresso das senhoras, assim qualificadas em
+categorias de banco, de junta de parochia, de
+empresa aurificia, de companhia das aguas, organisou-se
+d'este feitio para dar uma pensão de
+300 reis diarios--o bastante--ao pequenino no
+collegio?</p>
+
+<p>Quer-me parecer dispensavel tamanho funccionalismo
+em operações tão singelas! São nove senhoras
+abastadas que se fintam, quotisando-se cada
+<span class='pagenum'>[85]</span>
+uma em 33 reis por dia, ou dez tostões por mez.
+É, na verdade, barato o salvar-se um menino e fazel-o
+homem! Seis ou oito annos do pão e estudo
+d'aquella creatura--que ss. exc.<sup>as</sup> hão de enfiar
+com santa vaidade diante da sepultura de seu
+pai--não póde custar a cada uma tanto como
+dous dos seus vestidos medianamente guarnecidos.</p>
+
+<p>Então, qual vem a ser a missão das exc.<sup>mas</sup>
+presidenta, vice, vogaes, thesoureira, secretarias?</p>
+
+<p>Leitor, que estás a impar de ternura, e tens o
+rosto banhado de lagrimas de consolação, saberás
+que as referidas nove senhoras--que tu já
+conheces dos lautos bailes, e das <em>toilettes</em> esplendidas--congregaram-se
+agora <em>para promover um
+beneficio ao orphão no theatro de D. Maria</em>.</p>
+
+<p>Ahi está o que é. Ainda agora é que estas dadivosas
+senhoras vão sondar a magnanimidade publica;
+vão dar uns toques de elegante apparato á
+caridade, e ao mesmo tempo convidar-vos a pôr
+hombros áquella ponderosa empresa de agasalhar
+uma criancinha que se alimenta com um pouco
+de amor e algumas migalhas sacudidas das cêas
+opiparas. A caridade de Lisboa! A caridade do espalhafato!
+Aqui, no Porto, o orphão, a esta hora,
+estaria agasalhado, sem que a imprensa conhecesse
+o nome do bemfeitor.</p>
+<span class='pagenum'>[86]</span>
+
+<p>E a imprensa de Lisboa exalça encarecidamente
+a exuberante bizarria das senhoras que
+promovem nos corações alheios o sentimento da
+esmola. Peço licença para tambem me accender
+em admiração de tamanho arrojo, e perguntar,
+por esta occasião, aos jornalistas se, no seu cadoz
+de phrases, ficou alguma com que se louve aquella
+criada pobresinha que sustentou o menino cinco
+annos, e o largou do seu seio quando o coração
+se lhe afogou nas ultimas lagrimas.</p>
+
+<hr>
+
+
+
+<a name="cap11"></a>
+<h1>PROFUNDA REFORMA NOS COSTUMES DA VIA-FERREA PORTUGUEZA</h1>
+
+
+<p>Quando Portugal emergia das trevas da meia-idade,
+em 1873, e a via-ferrea de Portugal era
+roupa de francezes, o scintillante escriptor Ramalho
+Ortigão enviou aos snrs. <em>François et Ladame</em>
+(cumpre não aceitar a traducção de Bordalo
+Pinheiro--<em>Francisco e a mulher</em>) uns urbanos
+queixumes ácerca da bruta ladroeira que os funccionarios
+<span class='pagenum'>[87]</span>
+da via-ferrea perpretaram em parte das
+batatas de um sacco enviado desde o Minho ao
+percuciente critico. Ortigão, cujo agudo espirito
+argúe abstinencia de alimentação farinacea, conclue
+a sua epistola, modêlo de graça portugueza--que
+é a graça de todo o mundo--offerecendo
+aos directores da via-ferrea todas as futuras e porvindouras
+batatas, visto que ss. s.<sup>as</sup>, cedendo-lhe
+algumas, soffriam tal qual desfalque.</p>
+
+<p>N'esse tempo, estava eu em Lisboa a vasquejar
+nos demorados paroxismos da anemia, resultante
+de dyspepsia, complicada com hepatite, e
+prodhromos de encephalite, e symptomas de curvatura
+de espinha, e esgotamento de fluido nervoso,
+afóra a espinhela cahida.</p>
+
+<p>Escrevi, n'esta concurrencia pathologica, a um
+amigo meu, residente no Porto, que me comprasse
+alli doze garrafas do mais antigo e secco vinho
+que se lhe deparasse em garrafeira particular.
+Quando conclui a carta, cuidei que expirava, por
+que tinha consumido em quatro idéas sem estylo
+o oxygeneo e acido carbonico de que podia dispôr.</p>
+
+<p>D'ahi a dias, o meu amigo enviou-me o titulo
+de recepção de doze garrafas de vinho, compradas
+por 12 libras, e enviadas pela «grande velocidade»,
+cuidando elle que os ladrões não as apanhariam
+na carreira.</p>
+<span class='pagenum'>[88]</span>
+
+<p>Como se as doze garrafas se me figurassem
+outras tantas botelhas de Leyde a descarregarem
+electricidade sobre os meus grandes-sympathicos
+e regiões limitrophes, saltei da cama, e fui receber
+o meu vinho--a minha salvação--a Santa
+Apolonia.</p>
+
+<p>Recolhido o caixote á sege, e baixados os stores,
+debrucei as regiões do meu olfacto sobre
+as fisgas da tampa do caixão, na esperança de
+aspirar alguns atomos de tanino.</p>
+
+<p>Cheirou-me a azeite. Entendi que havia perversão
+na minha membrana pituitaria, uma narizite,
+unica molestia que me faltava.</p>
+
+<p>Assim que entrei em casa e o caixão se abriu,
+não sei bem o que vi, nem como perdi a consciencia
+dos dous <em>eus</em>. Sei que, volvidas horas, recobrando
+o espirito, e querendo recordar as causas
+de tão comprido lethargo, perguntei aos circumstantes,
+distillados em lagrimas, se eu tinha
+lido algum livro de Theophilo.</p>
+
+<p>--Não, infeliz!--respondeu-me voz sincera--não
+foi tamanha a desgraça que te fulminou;
+o que tu viste foi seis garrafas do teu vinho, que
+te custaram seis libras, substituidas por seis garrafas
+vasias que tiveram azeite.</p>
+
+<p>A minha primeira idéa foi gritar á d'el-rei;
+lembrando-me, porém, que o rei não governa,
+<span class='pagenum'>[89]</span>
+quiz chamar o cabo da rua; depois, passou-me
+pelo espirito recorrer á camara «baixa» e ao patriarcha.
+E, por fim, chorei copiosamente, e bebi
+dous tragos de uma das seis; e logo, á semelhança
+das nações oppressas, que se levantam
+como um só homem, tambem eu me levantei sósinho;
+e, clamando um rugido grande, pedi á
+Providencia das raças latinas que nos désse um
+administrador dos caminhos de ferro, nascido e
+baptisado n'esta terra dos Affonsos e dos Joões.</p>
+
+<p>Fui ouvido, e as cousas melhoraram consideravelmente.</p>
+
+<p>N'este anno de 1874, 2.º da Emancipação, tenho
+recebido reiteradas provas da melindrosa
+cortezia que assiste ao funccionalismo do transporte
+da via-ferrea portugueza. Se em 1871 não
+chorei mediante os prelos, hoje lamento não ser
+um cytharista bastante lyrico para dignamente arpejar
+um fado expresso do citado funccionalismo.</p>
+
+<p>Direi da cortezia com que alli são tratadas as
+minhas cousas. Tendo eu recebido em Lisboa seis
+garrafões de aguardente das nossas colonias, lacrados
+e cheios, enviei-os d'alli para o Porto
+cheios e lacrados. Ao cabo de onze dias de jornada,
+os garrafões chegaram a minha casa... inteirinhos!
+Se isto não é probidade, a virtude era
+aquillo que dizia Catão. Notei, porém, uma insignificante
+<span class='pagenum'>[90]</span>
+cousa: os garrafões chegaram deslacrados,
+e levavam pouco menos de metade do liquido;
+mas inteiros, perfeitos, sem rachadella,
+nem esquirola de menos.</p>
+
+<p>Um d'estes dias, em dous caixões de vinho da
+Madeira, que me eram enviados de Lisboa,--e
+foram retidos para despacho nas Devezas, posto
+que já em Lisboa houvessem pago direitos--observei
+ainda mais refinada cortezia; porque,
+apparecendo algumas garrafas quebradas, teve
+aquella honrada e limpa gente o cuidado de lhes
+trasfegar o vinho a fim de que as outras se não
+molhassem--de modo que chegaram enxutas.</p>
+
+<p>E fez mais: teve outro sim a bondade de tirar
+algumas garrafas para que as outras chegassem
+mais desafogadas da pressão das visinhas!</p>
+
+<p>Eu não conheço maneira mais subtil de obrigar
+a gente a um reconhecimento eterno, e a...
+acautelar o relogio.</p>
+<span class='pagenum'>[91]</span>
+
+<hr>
+
+
+
+<a name="cap12"></a>
+<h1>FORMOSA E INFELIZ</h1>
+
+
+<div class="citacao">
+A dita e a formosura,<br>
+Dizem patranhas antigas,<br>
+Que pelejaram um dia,<br>
+Sendo d'antes muito amigas.<br>
+<br>
+Muitos hão que é phantasia;<br>
+Eu que vi tempos e annos,<br>
+Nenhuma cousa duvido<br>
+Como ella é azo de damnos.<br>
+<br>
+<p class="direita">BERNARDIM RIBEIRO.</p>
+</div>
+
+<p>São verdadeiras as trovas do poeta das <em>Saudades</em>.</p>
+
+<p>Aquella Maria da Penha que o leitor viu, ainda
+agora, carpida n'um soneto, foi muito incensada
+por formosa antes da sua queda. Uns poetas
+a embriagaram com o perfume da lisonja, em
+quanto ella se manteve honesta; outros lhe depozeram
+alguns bagos de assafetida na ambula funeraria,
+quando os seus creditos eram mortos e
+responsados no catafalco que a sociedade levanta
+ás suas mesmas victimas.</p>
+
+<p>E já que eu trasladei o soneto, como epitaphio
+do seu tumulo no convento onde se finou, trasladarei
+<span class='pagenum'>[92]</span>
+tambem uns versos que lhe deram alor e
+azas á vaidade que a perdeu.</p>
+
+<p>Suspeito que o poeta d'estes cantares não fosse
+o fidalgo que a levou arrebatada de entre um
+thalamo e um berço. Os poetas, por via de regra,
+costumam enflorar os holocaustos sacrificados nas
+aras da prosa. Assim o requer o equilibrio do
+cosmos. Á poesia--a lyra que insinua no coração
+da mulher as phantasias com que mais se alinda e
+encarece; á prosa--as delicias d'essas bellas cousas,
+o dominio das aves do paraiso, que os poetas
+farejam, á laia de nebris que pairam a denuncial-as
+ao caçador sagaz.</p>
+
+<p>A meu vêr, em quanto o marquez de Gouvêa
+mandava ajaezar os cavallos para a funesta fuga,
+um dos muitos idolatras da formosissima Maria
+motejava uma quadra e derivava d'ella a glosa tão
+presada n'aquelles tempos:</p>
+
+<br>
+
+<p class="centrado">A D. MARIA DA PENHA DE FRANÇA</p>
+
+<p class="centrado">MOTE</p>
+
+<div class="poesia">
+Abre-te, <span class="ni">penha</span> constante,<br>
+serás minha sepultura;<br>
+e, se os meus ais te não movem,<br>
+digo-te, penha, que és dura,<br>
+</div>
+<span class='pagenum'>[93]</span>
+
+<p class="centrado">GLOSA</p>
+
+<div class="poesia">
+<span class="ni">Penha</span>, já sei que és tão dura,<br>
+porque dous soes te geraram;<br>
+seus raios te despojaram<br>
+das reliquias da ternura:<br>
+Porém, se a corrente pura<br>
+de meus olhos incessante<br>
+abrandar um diamante;<br>
+a meu pranto sucessivo,<br>
+quebra-te, marmore vivo,<br>
+abre-te, penha constante.<br>
+<br>
+Até nas mais duras <span class="ni">penhas</span>,<br>
+lavrador o tempo sendo,<br>
+as aguas, que vão correndo,<br>
+fazem regos, abrem brenhas.<br>
+Não receies tu que venhas<br>
+a perder por menos dura;<br>
+pois meu pranto o que procura<br>
+é desfazer-te em piedade;<br>
+e, se abrir concavidade,<br>
+serás minha sepultura.<br>
+<br>
+Lagrimas não te enternecem<br>
+antes te tornam mais dura;<br>
+roubou-lhe o preço a ventura<br>
+ou por minhas desmerecem.<br>
+Meus ais sentidos parecem<br>
+golpes, que pedras commovem;<br>
+mas como faiscas chovem<br>
+de ti, que farei, oh <span class="ni">penha</span>,<br>
+se o teu rigor mais se empenha<br>
+e se os meus ais te não movem?<br>
+<span class='pagenum'>[94]</span>
+<br>
+Teu nome a dizer se empenha<br>
+quem tu és por semelhança;<br>
+pois no garbo és toda <span class="ni">frança</span>,<br>
+na dureza és toda <span class="ni">penha</span>:<br>
+<span class="ni">Penha</span> em que pienha tenha<br>
+essa rara formosura;<br>
+mas, se estatua ser procura<br>
+a meu suspiro incessante,<br>
+mais que o mais duro diamante,<br>
+digo-te, <span class="ni">penha</span>, que és dura.<br>
+</div>
+
+<hr>
+
+
+
+<a name="cap13"></a>
+<h1>ANTONIO SERRÃO DE CASTRO</h1>
+
+
+<p>As indagações de Diogo Barbosa Machado,
+ácerca do poeta Serrão, reduzem-se a datar-lhe
+o nascimento.</p>
+
+<p>Á falta de outros subsidios, bastariam as poesias
+do travesso sujeito a esclarecer-lhe a vida
+mysteriosa aos mais atilados investigadores. O
+maior numero d'ellas está inedito. E o seu mais
+notavel poema, em tercetos, que perfazem 2:090
+versos octosyllabos, chama-se <em>Os ratos da inquisição</em>.</p>
+
+<p>No palacio da inquisição passou elle alguns annos
+de sua vida, que de certo não foram os melhores.</p>
+<span class='pagenum'>[95]</span>
+
+<p>Pelos modos, era hebreu dos quatro costados;
+mas não adorava o bezerro, nem se abstinha dos
+paios do Alemtejo. Em quanto o deixaram, viveu
+e medrou á lei da natureza. Seguiu fervorosamente
+a religião do prazer, repartindo alma e versos
+por judias, christãs e mouras, consoante lhe sahiam
+a talho de fouce. Tanto afinava a lyra para
+cantar fidalgas como regateiras. Entre estas, houve
+uma vendilhona de maçãs camoezas que não
+foi das menos amadas e menos esquivas. Se os
+poetas modernos querem ajuizar do lyrismo plebeu
+d'este seu bisavô, aqui teem uma das cançonetas
+dedicadas á saloia das camoezas, e cantada
+pelos cytharedos d'aquelle tempo:</p>
+
+<div class="poesia">
+Para a feira vai Luiza<br>
+Co seu balaio á cabeça<br>
+Todo enramado de louro<br>
+E cheio de camoezas.<br>
+<br>
+Leva saia de jilezia,<br>
+Tambem jubão branco leva,<br>
+Que serve o jubão de branco<sup><a name="mfn7" href="#fn7">[7]</a></sup><br>
+D'onde Amor atira as flechas.<br>
+<br>
+Sobre os dedos, pendurados<br>
+Leva seus punhos de renda,<br>
+Tão valentona caminha<br>
+Que treme o bairro de vêl-a.<br>
+<span class='pagenum'>[96]</span>
+<br>
+Lá no meio do Rocio<br>
+Levanta a voz mui serena<br>
+Como se aprendera solfa:<br>
+«Eu já tenho camoezas.»<br>
+<br>
+A voz tão divina e grave,<br>
+A voz tão de prata e bella,<br>
+Os galantes se alvorotam<br>
+E ferve a bulha na feira.<br>
+<br>
+Deixam todos as boninas<br>
+Só por ver esta açucena;<br>
+Em um momento, cercada<br>
+Se viu esta fortaleza.<br>
+<br>
+Os requebros que lhe dizem<br>
+São balas de feras peças:<br>
+Mas no muro de seu peito<br>
+Acham grande resistencia.<br>
+<br>
+Uns apreçavam a fruta,<br>
+Outros tiram da algibeira<br>
+Ás mancheias os tostões,<br>
+Aos alqueires as moedas.<br>
+<br>
+Mas Luiza, mui de espaço,<br>
+Levantando a voz tão bella,<br>
+De quando em quando repete:<br>
+«Eu já tenho camoezas.»<br>
+</div>
+
+<p>Hoje em dia, por acerto haverá ahi poetastro
+a quem pareçam, sequer toleraveis, estas linhas
+toadas, sem faisca de ideal, sem realismo, sem as
+satanisações modernas; no entanto, o coração entende-se
+melhor n'aquelles poetas que, em vez de
+<span class='pagenum'>[97]</span>
+se evolarem á poeira luminosa da via-lactea, andavam
+alli pelo Rocio amoriscados de fruteiras
+de camoezas.</p>
+
+<p>Por causa d'estes amores innocentes e frescos,
+não foi Antonio Serrão de Castro disputar aos ratos
+da inquisição a magra pitança da sua alcofa.
+O leitor alguma vez ha de lêr os queixumes do
+hebreu, repassados de tanta ironia, que a gente
+se admira que os graves monges de S. Domingos
+lhe não acendrassem o engenho no fogo.</p>
+
+<p>Quando o poema satyrico se escoou das grades
+do carcere para a assembléa dos catholicos, um
+poeta christão, no intuito de apressar o processo
+do judeu, divulgou as seguintes decimas:</p>
+
+<div class="poesia">
+Judeu de mau proceder,<br>
+Que, se em teus versos discorro,<br>
+Logo pareces cachorro,<br>
+No ladrar e no morder.<br>
+Ainda espero vêr-te arder,<br>
+Pois com tanta sem-razão<br>
+Murmuras da inquisição;<br>
+Porém, é força em teu erro,<br>
+Se te tratam como perro;<br>
+Que te vingues como cão.<br>
+<br>
+Dos ratos, d'esta maneira,<br>
+Te queixas e de seus tratos;<br>
+É mau queixar-te dos ratos,<br>
+Estando na ratoeira.<br>
+Tua allusão sorrateira<br>
+<span class='pagenum'>[98]</span>
+Saber o engenho procura,<br>
+E a rhetorica se apura<br>
+N'esta allusão que formaste,<br>
+Pois d'esta figura usaste,<br>
+Antes de fazer figura.<br>
+<br>
+Nescio, depois de judeu,<br>
+Quando o sambenito mamas,<br>
+Triste portuguez te chamas,<br>
+Sendo o mais astuto hebreu!<br>
+Quem te vira posto em breu<br>
+Ou partido de uma bala!<br>
+Ninguem comtigo se iguala,<br>
+Pois fazes, quando precito,<br>
+Sendo infame o sambenito,<br>
+D'esse sambenito gala.<br>
+<br>
+Se viveste descortez,<br>
+Com repetida torpeza,<br>
+Mais á lei da natureza<br>
+Do que na lei de Moysés,<br>
+Queixa-te só d'esta vez<br>
+De ti, mas não de outro trato;<br>
+Que eu sei que nunca do rato<br>
+Te queixarás, asneirão,<br>
+Se assim como foste cão,<br>
+Poderás tornar-te gato.<br>
+</div>
+
+<p>Os ferventes desejos d'este catholico, assim
+rimados, chegaram ao ergastulo do cantor dos
+ratos, e vibraram-lhe os nervos da espinha dorsal.
+Não lhe pareceu caso novo e original queimarem-no.
+Embridou, por tanto, a musa da galhofa,
+e cahiu em si. Começou de escrever poesias orthodoxas
+<span class='pagenum'>[99]</span>
+ao nascimento do Menino-Deus, aos santos
+e santas mais em voga, ungindo tudo de lagrimas
+de contrição que era uma piedade lêr-lhe
+os sonetos, os quaes, ainda agora, li bastantemente
+commovido. O certo é que o vaticinio do bardo
+christão foi desmentido pelo hebreu que sahiu
+absolto, e por ahi andou por Lisboa até aos setenta
+e quatro annos, rindo de tudo com resalva das
+conveniencias, e vivendo com as largas, que lhe
+davam os seus admiradores, e acamaradado com
+os primeiros fidalgos. Nasceu em 1610 e morreu
+em 1684.</p>
+
+<div class="rodape">
+ <p><a name="fn7" href="#mfn7">[7]</a> Alvo.</p>
+</div>
+
+<br>
+
+<p class="centrado">FIM DO 4.º NUMERO</p>
+
+</div>
+
+
+
+
+
+
+
+<pre>
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of Noites de insomnia, offerecidas a quem
+não póde dormir. Nº4, by Camilo Castelo Branco
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK NOITES DE INSOMNIA, NO 4 ***
+
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+
+Produced by Pedro Saborano
+
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+works. See paragraph 1.E below.
+
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+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit https://pglaf.org
+
+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including including checks, online payments and credit card
+donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate
+
+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
+keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
+
+
+Most people start at our Web site which has the main PG search facility:
+
+ https://www.gutenberg.org
+
+This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
+including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
+Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
+subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
+
+
+</pre>
+
+</body>
+</html>