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| author | Roger Frank <rfrank@pglaf.org> | 2025-10-15 02:15:44 -0700 |
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Nº4 + +Author: Camilo Castelo Branco + +Release Date: April 21, 2008 [EBook #25114] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK NOITES DE INSOMNIA, NO 4 *** + + + + +Produced by Pedro Saborano + + + + + + +BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA + + +NOITES DE INSOMNIA + +OFFERECIDAS + +A QUEM NÃO PÓDE DORMIR + +POR + +Camillo Castello Branco + +PUBLICAÇÃO MENSAL + + +N.º 4--ABRIL + + +LIVRARIA INTERNACIONAL + +DE + +ERNESTO CHARDRON + +96, Largo dos Clerigos, 98 + +PORTO + +EUGENIO CHARDRON + +4, Largo de S. Francisco, 4 + +BRAGA + +1874 + + +PORTO + +TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA + +62--Rua da Cancella Velha--62 + +1874 + + +BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA + + +NOITES DE INSOMNIA + + +SUMMARIO + + +O cofre do capitão-mór--O jogador--Inedito do poeta Fr. Bernardo de +Brito--Lisboa--Litteratura brazileira--Á «Actualidade»--A ex.^ma madrasta +d'el-rei D. Luiz 1.^o calumniada--Os salões, pelo exc.^mo snr. visconde de +Ouguella--O decepado--Caridade barata e elegante--Profunda reforma nos +costumes da via-ferrea portugueza--Formosa e infeliz--Antonio Serrão de +Castro + + + + +O COFRE DO CAPITÃO-MÓR + + +O homem, concluida a guerra do Paraguay, liquidou quinhentos contos, e +retirou-se com esposa e filha para Mondim de Basto, sua patria. + +Passou, acaso, um dia por perto das ruinas de um casarão, reparou na pedra +de armas que encimava um vasto portal de quinta, e perguntou de quem eram +aquelles pardieiros. + +O abbade, a quem a pergunta era feita, respondeu: + +--São da fazenda nacional, que se está cobrando, ha trinta e dous annos, +de uma divida antiga de impostos e respectivos juros e custas. + +--E, depois que a fazenda nacional estiver embolsada, de quem é isto? + +--Veremos a qual dos credores a lei dá a primazia--tornou +o abbade. + +--Acho que os donos d'estes pardieiros eram fidalgos, porque tem armas +reaes á porta--volveu o brazileiro pouco versado em heraldica. + +--Estas armas não são as reaes--explicou o padre--é o brazão de Pachecos e +Andrades, muito illustres senhores d'este paço, que, em bons tempos, se +chamou a honra de Real de Oleiros. + +--Cahiram em pobreza? + +--Sim, senhor; mas pobreza que tem uma historia interessante. Meu avô +conheceu esta familia no galarim. Contava elle que o capitão-mór Pedro +Pacheco estava em Lisboa, quando o marquez de Tavora, com os seus +parentes, tentaram matar D. José, que era o amante da marqueza nova. Havia +marqueza velha e nova, como sabe... + +--A fallar a verdade, não sei isso muito bem--atalhou ingenuamente o snr. +José Maria Guimarães--Então como foi lá essa pouca vergonha? + +--Contos largos. A marqueza velha foi degolada, por não aceitar a +prostituição da nora; a marqueza nova foi para um mosteiro bem regalado, +em quanto o marido ia para a masmorra, e da masmorra para o cadafalso. +Contos largos, amigo e snr. Guimarães. Vamos cá ao nosso caso. O +capitão-mór Pedro Pacheco era muito de casa do duque de Aveiro; e, como eu +disse, estava em Lisboa, quando o duque foi preso na quinta de Azeitão. +Assim que o soube, fugiu, e não fez mal; porque foi procurado lá e aqui. +Logo que chegou a esta casa, que era então um paço feudal, deu ordem á +mulher que se preparasse e mais dous filhos menores para sahirem do reino. +E, em quanto enfardelavam as bagagens, o capitão-mór mandou chamar meu +avô, lavrador abastado, alferes de ordenanças, e muito seu amigo, para lhe +entregar um cofre de pau preto com braçadeiras de bronze, cheio de peças. +O cofre era tão leve ou tão pesado que meu avô, querendo erguel-o pelas +argolas, gemeu. Lá por noite fora, pegaram os dous no cofre, +transportaram-o á casa que ainda é a minha, e metteram-o n'um falso que +ficava escondido pelas costas do leito de meu avô. Disse então o fidalgo +ao depositario da sua riqueza que n'aquelle caixote estavam trezentos mil +e tantos cruzados em dobrões e peças de ouro, e outras moedas muito +antigas. Disse mais que a sua casa ficava exposta a buscas de +quadrilheiros e de tropa, que era o mesmo que deixal-a franca aos assaltos +dos ladrões. Por tanto, confiava de meu avô o seu dinheiro, sentindo não +ter mais valiosas cousas que confiar á sua honra. + +--Trezentos mil cruzados!--murmurou o snr. Guimarães, esbugalhando os +olhos--era bem bom d'elle! E depois? + +--O fidalgo foi para Hespanha, e para Inglaterra, onde tinha um seu +parente embaixador, e por lá esteve alguns annos. N'este comenos, meu avô +pegou de adoentar-se de molestia ethica, e escreveu ao capitão-mór, +pintando-lhe o seu estado, e pedindo-lhe que viesse ou mandasse tomar +conta do cofre. O fidalgo appareceu aqui uma noite com o maior resguardo, +e metteu-se no seu palacio, confiando-se de um criado sómente a quem +deixára a feitorisação das terras. De madrugada, mandou chamar meu avô, +passaram juntos o dia, e de noite trouxeram ambos o cofre. Contava meu +pai,--parece que o estou ouvindo,--que meu avô muitas vezes lhe dissera +que o fidalgo não declarára onde tencionava esconder o thesouro; mas +positivamente lhe dissera que o não levava para Inglaterra, já por temer +ladrões, já porque não precisava gastar mais que os rendimentos da sua +grande casa. + +Meu avô morreu d'ahi a mezes; e o capitão-mór voltou para a patria, no +anno de 1777, quando D. José morreu, e o marquez de Pombal foi desterrado. + +--Essa não sabia eu!--atalhou com civico enleio o snr. Guimarães. + +--Que é que v. s.^a não sabia? + +--Que o grande marquez foi desterrado! Quem foram os marotos que... + +--São contos largos, snr. Guimarães. Vinha eu contando que o capitão-mór +voltou, já viuvo, com dous filhos barbados, muito extravagantes, sem +religião de casta nenhuma, criados entre hereges, destemidos, e levadinhos +de todos os diabos. Ainda não ha muitos annos que morreram dous velhos do +seu tempo que me contaram as malfeitorias que elles praticavam. Batiam a +matar em todas as ordenanças que por ordem superior lhe tinham entrado em +casa á procura do pai. Deshonestavam todas as cachopas d'estas tres leguas +em roda. Em fim, amarguraram a velhice do pai, que era um santo homem, a +ponto de lhe roubarem as pratas porque elle lhes não dava quanto dinheiro +pediam. Finalmente, o velho morreu de repente em 1782, segundo reza o +epitaphio que está na igreja de Refojos, convento que elle e seus +ascendentes haviam beneficiado... + +--E os trezentos mil cruzados?--interrompeu o brazileiro. + +--Lá vou já. Assim que o pai se finou, os dous filhos abriram todas as +gavetas, levantaram taboas, desladrilharam as lojas, escavaram debaixo dos +toneis, escalavraram os forros, e nada toparam. Revolveram todos os +papeis, a vêr se encontravam alguma indicação do dinheiro; e, com effeito, +em um papelucho mettido n'uma carteira vermelha, acharam isto, que meu pai +leu tambem: _Póde ser que a pobreza vos não corrija; mas a riqueza de +certo vos faria tigres. Eu não morrerei com o remorso de vos deixar nas +mãos o peor instrumento dos perversos, que é o ouro não adquirido com o +proprio suor._ Tomaram-se de raiva, e romperam direitos a casa de meu pai, +perguntando-lhe pelo dinheiro do seu. + +--Não ha duvida--respondeu meu pai--que n'esta casa e n'aquelle falso +esteve um cofre do snr. capitão-mór; mas, alguns mezes antes de dar a alma +a Deus, meu pai, que era honrado, entregou o cofre a quem lh'o dera a +guardar. + +--E depois?--bradaram elles. + +--Depois, nada mais sei, senão isto que seu paisinho me repetiu muitas +vezes. + +--Nós havemos de achar os ladrões. + +--Pois é procural-os--disse meu pai. + +Volveram a casa, e amarraram de pés e mãos o velho feitor do capitão-mór, +determinados a não o desatarem sem elle denunciar a paragem do thesouro; +porque o velho declarára que ninguem, senão elle, soubera da vinda do +capitão-mór á patria, em quanto vegetou el-rei D. José, e o marquez de +Pombal reinou. O feitor deixava-se martyrisar e morrer, ou porque +realmente nada sabia, ou porque esperava que a final o deixassem. O caso é +que, depois de solto, desappareceu d'estas terras, e nunca mais houve +novas d'elle. Muita gente suppoz que o feitor levou os trezentos e tantos +mil cruzados; mas meu pai, que o conheceu e teve em conta de muito +honrado, affirmou que o dinheiro estava enterrado. Não sei; mas o +desapparecimento do criado confidente do capitão-mór, a meu vêr, deixa +suppôr que a estas horas, lá por esses reinos estrangeiros, vivem muito +ricos os filhos do feitor. Deus sabe o que foi. + +--E então os dous filhos do capitão-mór ficaram pobres?--tornou o snr. +Guimarães. + +--Pobres?! não, senhor. Quem tem sete quintas, que rendiam cinco a seis +mil cruzados, que ha oitenta annos valiam dezoito mil cruzados de hoje em +dia, não é pobre. O que elles fizeram foi tratar de se empobrecer. O +morgado por aqui ficou, entretido com mulheres, galgos, caçadas, cavallos, +feiras, jogo e valentias. O outro, que teve duas quintas de patrimonio, +reduziu-as a moeda sonante, e foi para Lisboa requerer não sei que +recompensas a D. Maria I, pensando que o ser seu pai amigo do duque de +Aveiro, lhe dava direito a ser galardoado. Ora, se elle soubesse que a +filha de D. José negou ao desventurado, ao innocente e quasi mendigo D. +Martinho de Mascarenhas os bens de seu pai, duque de Aveiro, não iria +allegar como cousa digna de premio o affecto do capitão-mór ao regicida +suppliciado. + +--Conte-me lá isso por miudos...--atalhou o brazileiro que não lêra a +_Historia portugueza_ do snr. Viale. + +--São contos largos. Vamos primeiro á historia do ultimo senhor da honra +do Real de Oleiros--respondeu o abbade, e continuou: Não sei onde nem +quando morreu Sebastião Pacheco de Andrade, o filho segundo do +capitão-mór. Ouvi, porém, dizer que morrêra novo, pobre e deshonrado. +Quanto ao morgado, sei que elle casou com a menos digna das suas +concubinas, já quando não toparia menina honesta que aceitasse o fidalgo +de Real de Oleiros. Christovão Pacheco, apesar da libertinagem e +desperdicio, ainda gozava o que se chama decente mediania, quando sahiu +d'este mundo, antes dos cincoenta annos. Teve um filho ante-nupcial da +criada com quem casou. Este conheci eu mui de perto e em conflicto muito +deploravel, como lhe contarei. O pai, que desprezava frades, e zombava da +religião, mandara-o educar em religião e com um parente frade da ordem +benedictina. O rapaz alegrou-se grandemente ao noticiarem-lhe que o pai +era morto e elle herdeiro. Veio aqui, por ahi esteve dous annos +socegadamente, olhando pelos bens, posto que debaixo de tutela; e, quando +orçava pelos dezenove annos, tão grandes amostras dava de homem de bem que +se lhe offereceu para esposa uma senhora de linhagem illustre e dotada com +vinte mil cruzados. Emancipado pelo casamento, apossou-se do casal, +desempenhou parte das quintas hypothecadas, e manteve bons creditos por +espaço de alguns annos. + +Em 1832 era elle ainda muito rapaz, e já então vestia a farda de capitão +de milicias. Esteve no cerco do Porto, onde consta que procedera +valentemente. Porém, no fim da guerra, os bons costumes com que sahira +d'esta casa por lá ficaram. O homem voltou tão diverso, tão estragado na +moral, que já ninguem o via e ouvia que se não lembrasse do pai. A esposa +não sei se por santa, se por peccadora, fugiu-lhe com uma criança de cinco +annos para a casa d'onde viera; e elle, hypothecando os bens já +deteriorados com as prodigalidades da vida militar, levantou muitos contos +de reis, e estabeleceu-se em Lisboa. + +Desde 1836 a 1843, o seu viver na capital deu brado por _aventuras +amorosas_, como lá dizem os salteadores da honra das familias. Pedro de +Andrade, que assim se chamava, como seu avô, era um homem gentil, bem +feito, galhardo, e muito airoso. Tinha as seducções de Satanaz feito +homem. A corrupção de Lisboa era grande, e elle ainda maior; mas +desgraçadamente, o maldito empestou muita menina innocente, e abriu muitos +abysmos aos pés das virgens que pareciam ter postos no céo os olhos +contemplativos. + +--Que grande maroto!--disse o brazileiro. + +--Em 1843, depois de uma ausencia de seis annos, appareceu aqui, de +repente, Pedro de Andrade, e procurou-me a fim de me propôr a compra dos +bens que ainda não estavam captivos de dividas. Eu desculpei-me com a +falta de dinheiro, e outros aceitavam a proposta, se a mulher assignasse +os contractos. N'este entretanto, recebi de Lisboa certa gazeta de que era +assignante, onde li uma noticia que me abalou dolorosamente. E, estando em +minha casa Pedro de Andrade, perguntei-lhe se tinha noticia do triste +successo contado pelas gazetas.--Qual successo?--perguntou elle. «Eu lh'o +leio» disse eu; e visto que estamos á minha porta, queira o snr. Guimarães +entrar, que eu lhe vou lêr a gazeta, que Pedro de Andrade ouviu com +inalterado semblante. + + * * * * * + +O brazileiro entrou na saleta do abbade, que tirou da estante dos seus +livros a _Revista Universal Lisbonense_ de 1843; e leo, a paginas 23, o +seguinte: + + +«A POMBA E O ABUTRE + +«Quasi todos os papeis publicos transcreveram do _Portugal Velho_ o caso +de uma donzella fugida do paço real. Levantaram sobre isto altos clamores +contra ella, contra o seductor, contra a perda da proverbial gravidade do +palacio portuguez. Sentimol-o o calamos.--Era assumpto melindroso; para +relatar e sentenciar careciamos ainda de evidencia. Hoje suppômo-nos +habilitados para ratificar e completar a narração de um successo que, +devida ou indevidamente, já cahiu no dominio do publico, e não é possivel +extorquir-se-lhe da memoria. + +«No palacio velho da Ajuda vegetam ainda umas cincoenta ou mais +solitarias, que, opprimidas dos annos e das molestias, recebem da caridade +da soberana o pão pelos serviços, que outr'ora prestaram ás rainhas e +princezas suas ascendentes;--são os ornamentos partidos e desfigurados de +um seculo, que desabou para nunca mais ser reconstruido.--Todas estas +mulheres são tristes como reliquias de tempos festivos, saudosas, ou +antes, saudades ellas mesmas:--a presença de todas e de cada uma, aggrava +a cada uma e a todas ellas a melancolia do crepusculo da morte, que já +lhes vem anoitecendo.--Todo o reboliço, todas as quotidianas +transformações materiaes, moraes e politicas da visinha capital, onde já +foram vivas, moças e brilhantes, ou não chegam alli, ou só chegam como uns +contos vãos e longinquos, como sonhos de cousas passadas em outro planeta: +¿que tem ellas que vêr no berço que se apparelha para uma nova +idade?--ellas, que já pendem para o sepulchro, a contemplar no fundo +d'elle tantas cousas louçãs e vivazes, que lhes pertenciam! + +«Entretanto no meio d'este palacio de tristezas volteava ainda um raio de +sol; um arbusto florejava purpuras no meio d'este cemiterio; uma avesinha +cantava primavera entre o desconsolo d'estas ruinas; uma viração deliciosa +fazia ás vezes susurrar agradavelmente estes musgos resequidos. Tudo isto +era a joven Maria, lindeza de 18 annos, lindeza corporal como poucas, +lindeza de espirito como ainda menos, lindeza de coração como quasi +nenhuma, sobrinha e companheira de uma d'estas velhas, companheira e amiga +de todas ellas. Maria, era realmente o feitiço, a Vida e o encantamento +d'aquelle retiro sem porvir. Toda a casa a amava: era uma paga de divida; +Maria queria-lhe muito, quasi que alli abrira os olhos, pelo menos outra +nenhuma lhe lembrava; sob aquelles tectos brincára desde a idade de tres +annos; entre aquellas cabeças encanecidas se fôra coroando a sua de longas +tranças louras: entre o crescer de tantas rugas se desenvolveram e +aperfeiçoaram as suas graças; entre o progressivo decahir de tantas +prendas e esperanças como as folhas verde-pallidas que em pomar de outomno +se despegam uma a uma, os seus talentos naturaes por uma desvelada +educação, que a munificencia da snr.^a D. Maria I proporcionára a sua tia +os meios de lh'a dar, tinham chegado ao seu maior auge. + +«Maria do Carmo reunia ás prendas manuaes proprias do seu sexo, um lêr e +escrever primoroso, noções e gosto de litteratura, mórmente da franceza, +em cuja lingua era mui versada, e musica, merecendo no piano as honras de +mestra, e por corôa de elogio verdadeiro, os seus costumes eram puros e o +seu coração religioso: nas orações que todas iam quotidianamente depôr aos +pés do altar, as d'ella deviam rescender mais a innocente alegria que a +temores ou remorsos.--A 25 de junho orava no côro com sua tia quando o +relogio dos paços bateu as 6 da tarde. Levanta-se, pede licença para +deixar o restante para depois, e ir entregar--que o prometteu--um debuxo +de bordados a uma sua amiga fóra da casa. + +«Foi: correram horas, e não voltou. + +«Começaram e cresceram cuidados: mandou-se á busca por todas as partes: +passou o serão, passou a noite, e passaram tambem dias, sem que a +tornassem a vêr, nem a ouvir d'ella nova alguma. + +«N'essa tarde alguem se lembra de ter notado uma sege parada debaixo da +arcada do paço. E um morador da casa acrescenta que, perto da noite, +achando-se no caes do Sodré, vira chegar uma sege á porta de uma +hospedaria, e um homem de chapéo branco apear uma menina, que lhe pareceu +ella. + +«Devolvidos quatro mortaes dias, chega no domingo um gallego com uma carta +para a consternada tia:--entrega-lh'a em mão propria, e ajunta, havel-a +recebido de uma menina mui linda, que lavada em lagrimas e afogada em +soluços lhe recommendára fosse leval-a correndo, e lhe trouxesse signal de +ter sido recebida. O conteudo d'esta carta ninguem o soube, mas parte +d'elle facilmente se póde presumir.--Ás nove horas d'essa mesma noite +viram-se sahir pela portaria dous vultos rebuçados, que por mais que a +porteira os interrogasse, partiram sem dar resposta. Á hora e meia da +noite os mesmos dous vultos vieram bater á porta, trazendo entre si +amparado e quasi em braços um terceiro, que ninguem reconheceu. Abriram +uma porta, que havia muito não servia, e que dava passagem para a pousada +da fugitiva, e entraram. + +«Pessoa do sitio por quem isto soubemos, nos acrescentou, que o estado de +Maria na seguinte manhã, segundo lh'o descrevêra quem acabava de a vêr, +cortava o coração. As suas tranças louras e espessas tinham desapparecido. +O seu rosto pendia pallido e esmorecido. Duas fontes corriam dos seus +olhos. A sua dôr via-se e era terrivel porque era muda. + +«As suas o occupações desde então teem sido orar e chorar: com isto leva +no oratorio as horas do dia e da noite, abraçada com a imagem da +consoladora dos afflictos, beijando-a nos pés, nas mãos e no rosto como +filha a sua mãi--como filha prodiga, que procura, á força de se restituir +toda, reconquistar o coração materno; como se coração materno se apartasse +nunca. O pai aggravado perdôa, a mãi não, toda ella foi sempre amor, e o +amor não sabe senão amar. + +«A unica pessoa, que além de sua tia, a tem visto, é o medico, alma +sensivel, de quem recebe os soccorros mais assiduos e delicados. +Entretanto o mal que a mina é grave. Quasi privada do alimento e do somno, +os seus dias parecem ameaçados de um fim prematuro. Se a violencia mesma +da sua dôr lhe não limitar em breve a duração, outro perigo pouco menos +cruel que o da morte, parece ameaçal-a. O pranto continuo que afoga os +seus olhos, receia-se que venha por ultimo a lh'os apagar, e que a +pobresinha que, ainda ha pouco, era o raio de sol de toda a habitação, +venha ainda a ser, mergulhada em trevas e sobrevivendo a si mesma, um +objecto de profunda e esteril compaixão para tantas infelizes, a quem +ella, pouco ha, repartia alegrias e emprestava mocidade. + +¡¿E agora quem a condemnará por um erro, cuja origem e historia nos são +desconhecidos?! ¿quem a apedrejará entre os braços, sob o manto e sob os +olhos da rainha dos anjos, que lhe deu o seu nome, lhe chama filha sua e +com a vista serena e amorosa lhe está apontando para as alturas?! ¡¡¡Que +delictos e crimes (quanto mais erros)! deixariam de se lavar com tantas +lagrimas!!! ¡¡¡E ha entretanto aqui um homem, talvez entre nós, talvez +festejado e respeitado--um homem, que ella generosa não nomeia, não +nomeará nunca--um homem, cujo rosto mais duro que o de Caím se não +transformou, se não tingiu de repente na côr de sua alma para o denunciar, +como sacrificador da innocencia, da virtude, da formosura, e do amor, de +um amor irresistivel, inspirado por elle, e que a elle sacrificava tudo +até a vida,--tudo até o porvir--tudo--tudo até a honra!!! ¡¡¡Ha ahi um +homem d'estes!! ¡Ha-o sem duvida! e se as justiças o descobrissem, este +homem receberia uma pena: menos affrontosa que a do ladrão assassino... +Este homem não havia de ser mandado por todas as cidades e villas do reino +de braço dado com o carrasco, para ser atado a cada pelourinho, escarrado +no rosto por todos os homens e mulheres, e esbofeteado depois pelo seu +menos infame companheiro de jornada com a mão esquerda. Não: que importa o +que padece uma mulher? Não crêsse nas palavras de quem a fascinára; não +fosse moça, innocente e amante; não fosse mulher. As justiças da sociedade +teem mais cousas em que pensar. ¿E de mais não se vê isto todos os dias? +Não são conhecidos muitos outros que tambem matam assim o tempo com estas +caçadas amorosas? ¿que o confessam com vangloria e que em companhias mui +luzidas são por isso admirados e invejados! Tratemos dos interesses +materiaes. O restante são chimeras, são fanatismos, são miserias, indignas +da attenção de legisladores, e dos homens illustrados de 1843.» + + +Concluida a leitura, o abbade proseguiu: + +--Ouvida a historia, o fidalgote sacudiu a poeira das calças com um +chicotinho de baleia, e disse: «São vulgarissimos esses casos em Lisboa. O +que a mim me espanta é que a imprensa vista o habito de Tartuffo, e sáia +ás praças a prégar contra a corrupção que ella promoveu com os seus +romances, com as suas philosophias, com as suas theses de liberdade, e com +a perseguição de escarneo e de fome feita aos apostolos da sincera +moralidade.» + +Discursou largamente n'este sentido, e despediu-se, deixando-me inclinado +a dar-lhe razão. + + * * * * * + +Passam-se tres dias:--continuou o abbade--era meia noite de 2 de agosto do +mesmo anno de 1843. Recolhia-me á igreja de ter ministrado a extrema-unção +a um moribundo, quando ouvi dous tiros a pouca distancia, e d'ahi a +minutos o alarido de muitas vozes, gritando «homem morto!» + +Sahi ao adro, e encontrei pessoas que já vinham chamar-me para assistir +aos paroxismos de Pedro de Andrade que estava mortalmente ferido á porta +de sua casa. + +Quando cheguei, já o haviam transportado ao leito. Estava ainda vivo. +Assim que me viu, acenou-me com anciedade, apertou-me convulsamente a mão, +e segredou-me: «Quero confessar-me, que vou morrer.» + +Escutei-o por espaço de hora e meia; as phrases eram cortadas por gritos +de agonia; ambas as balas lhe estavam dilacerando as entranhas do peito; +e, ainda assim, aquelle demorado arrancar da vida me quiz parecer uma +delonga providencial para que o grande criminoso tivesse tempo de penar e +chorar suas culpas. Expirou com todos os sacramentos, pedindo-me que, em +nome d'elle, pedisse perdão a seu filho e a sua mulher. + +O moribundo, quando me revelou o seu derradeiro delicto, rogou-me que +désse publicidade ao crime e ao castigo a fim de que a sua desgraça +podesse aproveitar aos centenares de delinquentes que lhe haviam dado o +exemplo do vicio e da impunidade. E, por tanto, não escrupuliso em lhe +dizer que o seductor da infeliz Maria do Carmo havia sido Pedro de +Andrade, e que os vingadores da abandonada menina deviam ser seus +parentes, posto que o assassinado os não houvesse conhecido, e lhes +ouvisse apenas dizer, antes de desfecharem as clavinas, que lhe traziam +saudades da prostituida senhora do paço da Ajuda. + +--Com effeito!--observou o snr. Guimarães--essa historia arripiou-me os +cabellos!... V. s.^a ha de emprestar-me essa gazeta que eu quero copiar +esse caso! Diga-me cá: e o filho d'esse desgraçado? + +--O filho do desgraçado, que tinha então onze annos e estava com sua mãi, +póde dizer-se que ficou litteralmente pobre. Os credores e a fazenda +nacional disputaram-se a posse do espolio. O rapaz, quando chegou á idade +de tomar conta da honra de Real de Oleiros, convenceu-se que lhe era +mister trabalhar para não morrer de fome. Os parentes de sua mãi, posto +que abastados, não o protegeram, e tornaram-lhe pesada a esmola do pão e +da cama. Um dia, o brioso moço sahiu com sua mãi da casa que lhe +amargurava o bocado, e foi habitar um casebre nas visinhanças do escrivão, +que o fizera seu amanuense, e lhe dava doze vintens por dia. V. s.^a +conhece-o. É aquelle Alvaro de Andrade que tem lavrado as escripturas de +compra de propriedades que o snr. Guimarães tem adquirido... + +--Pois é esse!... Aquelle homem humilde que me beijou as mãos quando eu +lhe dei uma libra de gratificação... + +--É esse mesmo. + +--E nunca me disse de que familia era... + +--Não falla em familia, e parece até esquecido da sua procedencia. Que eu, +a fallar verdade, uma vez, passando com elle defronte das ruinas da casa +de seu pai, surprendi-o a olhar para as paredes derruidas com as lagrimas +nos olhos. Perguntei-lhe por que chorava, e elle respondeu-me que chorava +por sua mãi, lembrando-se que d'aquella casa sahira ella coberta de mais +amargas lagrimas. + +--Coitado!--disse o brazileiro--hei de fazer-lhe o bem que poder. + +--E póde muito v. s.^a; mas faça-lh'o de modo que o não humilhe. + +--Eu cá sei, snr. abbade. Nós, os chamados brazileiros, sabemos todos os +processos de dar esmolas aos nossos patricios de modo que elles se +dispensem de nos agradecer, e até lhe deixamos o direito salvo de nos +ridiculisar. + +A justiça inspirára este homem, que nunca fôra tão eloquente. + + * * * * * + +Pouco tempo depois, annunciou-se a venda da quinta de Real de Oleiros e +suas pertenças, a requerimento dos credores. José Maria Guimarães cobriu +todos os lanços. Foi-lhe adjudicada a quinta por alto preço. Os +licitantes, que eram os credores, acotovelavam-se jubilosos, e diziam +entre si: + +--_Espiguêmol-o!_ + +E, assim que o ramo lhe foi entregue, disseram unanimemente: + +--Foi _espigado_! + +O brazileiro pagou immediatamente ao instrumento da adjudicação, e disse, +relançando a vista aos alegres credores de Pedro de Andrade: + +--Meus senhores, o que vale aos credores dos fidalgos, que não pagam, são +estes _nossos irmãos de além-mar_, que, lá e cá, melhor fôra chamar-lhes +_irmãos da misericordia_... + +--É parvo!--disse um poeta de Basto ao ouvido de um bacharel de +Felgueiras. + + * * * * * + +Passados dias, começaram obras de reedificação no local do palacete +arruinado. O proprietario, fazendo-se encontradiço com o amanuense do +tabellião, disse-lhe: + +--Ó snr. Alvaro, vá o snr. hoje, se não tiver que fazer, á quinta de Real, +que temos que conversar a respeito de certos arranjos. + +--Sim, senhor--disse Alvaro--quando v. s.^a quizer. + +--Ás 4 da tarde; e leve tinteiro e papel, que não ha lá d'isso. + +Á hora aprazada, entrou o bisneto do capitão-mór na extincta honra dos +Pachecos e Andrades. Já lá estava o brazileiro, ás testilhas com os +alveneis. Assim que chegou o escrevente do tabellião, subiu com elle por +entre um matagal de bravio até ao alto de um outeirinho onde se erguia um +pombal já descaliçado, mas ainda assim a porção menos esboroada das +pertenças da quinta, graças á fortaleza do tecto abobadado de pedra. + +Havia dentro uma banca de granito, onde outrora os senhores de Real se +desenfastiavam em merendas, depois das fadigas da caça na tapada defeza. +Já lá estavam duas cadeiras. + +--Sente-se ahi, snr. Alvaro--disse José Maria Guimarães,--e vá escrevendo. + +--Prompto!--respondeu o escrevente, rodando a sibilante tarracha do +tinteiro de chifre. + +--Ponha ahi os nomes dos pobres da freguezia que não tem casa de seu. + +Alvaro Pacheco escreveu trinta e quatro nomes; quedou-se um momento, e +perguntou: + +--De todos os pobres que não tem casa? + +--Sim, de todos os pobres que não tem casa propria. + +--Então, falta o meu nome. Somos trinta e cinco os pobres que não temos +casa. + +E escreveu: _Alvaro, escrevente de tabellião._ + +--Muito bem--volveu o brazileiro commovido--sabe o que eu quero? + +--V. s.^a o dirá. + +--É ceder metade d'esta quinta aos pobres para elles edificarem uma casa +com seu quintalejo; já se vê que sou eu que pago as obras das casas; e, +visto que o snr. Alvaro é um dos trinta e cinco pobres, escolha a local +onde quer a sua casa feita. A escolha do local é sua; ora agora, o feitio +da obra isso é cá por minha conta. + +--Os pobres aceitam, não escolhem--disse Alvaro. + +--Mau!--replicou José Maria Guimarães--Mau! ou bem que somos francos um +com o outro, ou não temos nada feito. Eu cá sou assim! + +--Então quer v. s.^a... + +--Deixemo-nos de _senhorias_. Eu sou filho de um almocreve, e neto e +bisneto de burriqueiros; e o snr. Alvaro Pacheco é descendente de +capitães-móres a quem meus avós traziam presuntos de Melgaço nas suas +recovas de machos. Deixemo-nos de _senhorias_. Vamos á questão. Onde quer +a sua casa? + +--Aqui--disse Alvaro. + +--Aqui no pombal?! + +--Aqui, porque fica sendo casa, e ao mesmo tempo memoria de ter estado +n'este sitio um homem honrado. + +--Ou dous--emendou o brasileiro--Dê cá um abraço, e vamos embora, que faz +aqui frio. + +E, no decurso do caminho, proseguiu: + +--O snr. Alvaro ha de fazer-me o favor de se despedir do serviço do +tabellião, se lhe não custar. Preciso de quem me represente n'estas obras, +em quanto vou tratar de negocios a Lisboa. Eu cá lhe deixo as plantas das +casas dos pobres, e o capital para o custeio das despezas. + + * * * * * + +O brazileiro voltou, passados seis mezes. Todas as casas estavam já de +parede e tecto, quando voltou, excepto a do pobre chamado Alvaro. + +--Com que então a casa n.^o 35 ainda não tem sequer os +alicerces?---perguntou o bemfeitor. + +--É porque o pobre n.^o 35 não precisa tanto como os outros--respondeu o +feitor. + +--Então vou eu ser agora o fiscal das suas obras--tornou José Maria. + +E, ao outro dia, fez convergir os melhores operarios para a bouça do +pombal, e mandou arrazar a vivenda de centenares de andorinhas que se +esvoaçavam ao primeiro troar dos alviões e marretas. + +Alvaro e José Maria assistiam ao derrubamento do pombal, um tanto +condoidos do esgazear das espavoridas habitadoras das ruinas. + +N'isto, um pedreiro esboroando com a alavanca um pedaço de parede, +descobriu uma superficie escura, que se lhe figurou lousa. + +--Que diabo de obra é esta de lousa em parede de cantaria?--disse o +alvenel. + +O brazileiro abeirou-se da parede, apalpou a supposta lousa, e observou ao +pedreiro que era pau e não lousa, mandando socavar dos lados, e alimpar a +superficie do que quer que fosse. + +--Isto é um caixote!--disse o mestre da obra--querem vossês vêr que o +diabo as arma? + +--Arma o quê?--perguntou José Maria Guimarães. + +--V. s.^a nunca ouvia dizer que os fidalgos de Real esconderam um thesouro +que nunca se encontrou? + +--Já ouvi dizer isso. Atirem a baixo toda a pedra que está dos lados, e +não embarrem no caixote. Cuidado lá com isso! Snr. Alvaro, parece-me que +vai assistir á resurreição do melhor defunto dos seus avós--bradou o +brazileiro. + +--Como?!--perguntou Alvaro, que vinha entrando no recinto do pombal. + +--Venha vêr. Apalpe. Que é isso? + +--Parece-me um caixote--disse o bisneto do capitão-mór. + +--Não é parece; é que é. Sabe o que lá está dentro? Sabe a historia dos +trezentos e tantos mil cruzados de seu bisavô? + +--Ouvi dizer que... + +--Que nunca appareceram. Apparecem hoje. Estão alli. + +Alvaro de Andrade que tinha encarado o infortunio de trinta annos com +intemerato aspecto, descorou em frente da taboa negra que devia ter dentro +uma cousa chamada, bem ou mal, a _fortuna_. + +A este tempo, o caixote era apeado, suspenso entre quatro robustos braços. + +--Oh! como pesa!--gemeu um dos pedreiros. + +--Podéra não!--disse o brazileiro--trezentos e tantos mil cruzados! + +--Os rios correm para o mar, snr. Guimarães--observou o mestre d'obras. + +--Que quer dizer, mestre?--perguntou o brazileiro. + +--Que se v. s.^a era rico, é agora riquissimo. + +--Obrigado pelo conceito que faz de mim, mestre...--volveu José Maria +entre risonho e agastado. + +--Ó meu senhor, pois eu... + +--Suspeita-me de ladrão... + +--Valha-me Deus!... o que apparecer em terra de v. s.^a seu é. + +--E esta terra é minha? Pois não sabe que este chão é d'este pobre que se +chama Alvaro? + +--Ó snr. Guimarães!...-exclamou o filho do ultimo senhor da honra de Real +de Oleiros, e não pôde articular outra expressão. + +--Vamos!--acudiu o brazileiro--para onde é que vai o thesouro de seu avô, +snr. Alvaro Pacheco de Andrade, snr. barão, snr. visconde, snr. conde, +snr.... Quer mais? Dê as suas ordens. + +José Maria casquinava uma risada de elevada intelligencia, em quanto os +obreiros, rodeando o caixote, se embasbacavam uns nos outros, e todos no +rosto de Alvaro com a mais sincera e respeitosa estupidez. + +Novamente instado para que dissesse onde o caixão devia ser levado, Alvaro +respondeu: + +--A minha mãi, que sabe o que são pobres. + + * * * * * + +E os primeiros pobres, que relativamente enriqueceram nas aldêas +convisinhas, foram os descendentes dos irmãos d'aquelle feitor que muitos +alcunharam de fugitivo ladrão do thesouro do capitão-mór, e que se fôra a +morrer longe d'alli, e obscuramente, receoso de ser novamente martyrisado +pelos filhos de seu amo. + +Alvaro Pacheco de Andrade, n'este anno de 1874, tem quarenta e nove annos, +e é conhecido pelo fidalgo de Real de Oleiros. Aquella senhora de tez +morena, com cinco formosos filhos, que brincam á volta de outra senhora de +setenta annos, é a esposa de Alvaro, e filha de José Maria Guimarães. A +dos cabellos brancos, que lhe alvejam na fronte como a corôa de açucenas +de uma santa, é a viuva d'aquelle galhardo e infausto D. Juan, assassinado +em 1843. O sacerdote ancião, que parece ser da familia, é aquelle abbade +que nos leu a _Revista Universal Lisbonense_, e a quem eu devo e agradeço +os commentarios ao fogoso e pungente artigo, que me parece ser do meu +presado mestre e adorado amigo visconde de Castilho. + + + + +O JOGADOR + + +Hoje em dia, aquella denominação, nem é desprezivel nem affrontosa. O +progresso indultou o jogador; deliu-lhe da fronte o antigo ferrete. + +Se eu jogar com sorte propicia, e mobilar um palacio, cujas alfaias e +baixella representem os haveres e as lagrimas de muitas familias, serei o +legitimo e respeitado proprietario do meu palacio. + +Se eu abrir os meus salões, a mais selecta sociedade virá pisar as +alcatifas do meu palacio, e lisonjear a magnificencia do fino gosto que +dirigiu as correntes do meu ouro. Ninguem me perguntará se herdei de avós, +se ganhei de incautos a minha opulencia. Talvez que os meus convidados +segredem entre si a proveniencia das minhas pompas; mas d'esses, duas +vezes deshonrados, vingado estou. Deshonrados, porque entraram nas minhas +salas, e deshonrados porque denegriram a honesta posse dos vinhos que me +beberam. + +Continuando a auspiciosa hypothese: se eu fôr o jogador enriquecido, +bemquisto das familias, pessoa séria, influente nas eleições bancarias, +com folha corrida, insuspeito de falsificador de testamentos ou moeda, de +certo me não distingo do homem de bem, laborioso, honrado e provado nas +lutas da vida. + +Ha, todavia, entre nós uma pequena differença: eu dou bailes, e o meu +honrado visinho não os dá. + +Mas isso depende da aristocracia da indole: elle póde descender d'algum +servo de gleba, que lhe transmittiu genio caínho e o acanhamento de raça; +em quanto eu obedeço a impulsos de outro sangue. As damas que se bamboavam +nos coxins flaccidos das minhas othomanas com toda a certeza não +calcularam quantos _micos_ infelizes dos meus parceiros representavam as +copias de Raphael e os originaes de Murillo pendurados sobre as colgaduras +das minhas paredes. Antes quero suppôr que ellas, no arrobo da sua +admiração, meditaram que na minha cabeça havia o que quer que fosse digno +da cabelleira encalamistrada de um Marialva, no reinado de D. João V. + +É profundo o fôsso que me separa do jogador em outras eras. Nasci quando +devia nascer. Se eu viesse á luz no seculo XVI, este meu mister de jogador +era synonymo de vadiagem (_Ord_, l. V, tit. 82). Nas minhas tertulias, +devidas á sorte feliz da tavolagem, lograria apenas reunir jogadores. Se +nascesse no seculo XVII ou XVIII, os corregedores dos Philippes, de D. +João IV e Pedro II, e dos reis subsequentes, se eu désse bailes, +carregavam-me com as leis sumptuarias por sobre a pêcha de vadio. Em tempo +de D. João V, D. José ou D. Maria, tanto o Camões do Rocio, como o Marques +Bacalhau, como o Pina Manique mandavam-me responder do Limoeiro pela +procedencia dos meus lustres, dos meus sophás, dos meus jarrões, dos meus +contadores marchetados, dos meus bronzes, dos meus frescos, dos meus +pendulos, dos meus pavimentos de xadrez lustroso. E vestiam-me talvez uma +das librés dos meus criados. + +Foi por isso que o facho da civilisação, passando pelas minhas salas de +jogador feliz, radiou reverberos esplendidos da minha baixella, e me +mostrou em meio dos meus convidados, com a fronte luzentissima das +alegrias do homem de bem. + +Póde ser que, em outras eras tenebrosas, a felicidade no jogo fosse +malsinada de fraude e roubo. + +Hoje não. + +O jogo, á luz de 1874, é um contracto bilateral, fundado no consentimento +de ambas as partes. + +Se é forçoso que uma das partes fosse tola e desgraçada, eu de certo não +fui. + +Está fechada a hypothese. + + + + +INEDITO DO POETA FR. BERNARDO DE BRITO + + +Escreveu o famoso cisterciense a _Sylvia de Lizardo_, e ninguem o trata de +poeta quando o louva ou moteja. Chamam-lhe o _chronista_, o _classico_, o +_douto_, o _mentiroso_, o _massador_, o _milagreiro_; poeta é que não; e +houve até um frade da ordem d'elle, Fortunato de S. Boaventura, o author do +_Punhal dos Corcundas_, que positivamente desbalisou de poeta e de author +da _Sylvia de Lizardo_ o vernaculo author da _Chronica de Cistér_. + +Pois foi poeta, e dos bons do seu tempo, aquelle Balthazar de Brito de +Andrade, que por amor do patriarcha se crismou em _Bernardo_. + +Teve elle o ruim sestro de desfazer na prosapia dos outros. Raro fidalgo +lhe sahiu incolume do crisol em que por obrigação do officio de +historiador, elle acendrava o fino ouro dos Trocozendos, dos Romarigues, +dos Egas Bufas e outros condes das raças romana é goda. + +Nos descendentes do Espadeiro, que eram a geração dos _Coelhos_, beliscava +elle, á conta do assassinio de Ignez de Castro. De si, dizia o frade, que +os _Britos_, em Portugal, derivavam dos _Brutos_ de Roma. + +Um descendente de Egas Moniz, chamado João Soares de Alarcão, como era +poeta, satyrisou a maledicencia de fr. Bernardo de Brito com este soneto: + + Aos profundos imperios d'el-rei Pluto + Irás, Bernardo, pelo que has escripto, + Pois dizes que de _Bruto_ vem teu _Brito_, + Ficando tu só n'isso Brito e bruto. + + Tu vens d'aquelles que a pé enxuto + Passaram, com Moysés, o mar do Egypto, + Ou vens do que com sangue do cabrito + Tantos guizados fez sem nenhum fructo. + + Chamastes ao teu livro _Monarchia_, + Sendo _Mona_ que cria monstros varios, + E tornastes de ferro a idade de ouro. + + Não te mettas em casos temerarios; + Pasta nas hervas, bebe da agua fria, + Ou na velha escudela o caldo louro. + +O monge de Cistér responde pelas mesmas rimas: + + Maçarico dos charcos de el-rei Pluto, + Que taes marmanjarias has escripto, + Que ao douto frei Bernardo ou Bruto ou Brito + Picas com bico infame, sujo e bruto; + + Jámais será de Ignez o pranto enxuto, + Pois a fazes mais quartos que um cabrito, + Dizendo que nas mãos deu o esp'rito + De Coelho matador, sagaz e astuto. + + Não vem da lusitana monarchia + Martinho _mono_, pai de cascos varios, + Sua mãi de _Aguilar_, aguia, não de ouro. + + Não te mettas em casos temerarios: + Que louro não honra tua musa fria, + Mas de uma pouca de... o caldo louro. + +As injurias do primeiro terceto entendem com os progenitores de João Soares +de Alarcão. Martinho, se era _mono_, sobrava-lhe direito a ser da +_monarchia_ lusitana; mas tambem o outro se demasiára, vituperando de +_mona_ a _Monarchia_ do frade. Tratavam-se de macacões um ao outro. _Pai de +cascos varios_, invectiva o poeta de Alcobaça. Pela variedade da cascaria, +entende-se que capitulava de cavalgadura o adversario: saldo bem ajustado +com o outro que lhe chamára _bruto_. + +Entra no soneto a mãi do poeta, que devia ser da familia de _Aguilares_: e +era com effeito, sem ser de raça desprimorosa. Chamava-se D. Cecilia de +Mendonça Aguilar e Lugo, filha de Philippe de Aguilar, mestre-sala de D. +Sebastião, de D. Henrique, de D. Philippe, e tão amigo de Castella que +chegou á mordomia-mór do rei intruso. Estes Aguilares e Aguiares foram +sempre muito dos hespanhoes, e logo contarei um caso do mais notavel. + +_Martinho_, _mono_, diz frei Bernardo. Que o pai do poeta era Martinho +Soares de Alarcão e Mello, 6.º senhor da casa de Torres-Vedras, não ha +duvida; que fosse _mono_, não o inculcam os genealogistas. Seu filho, o +poeta, foi alcaide-mór de Torres-Vedras, casou, teve nove filhos, e entre +esses, o jesuita Francisco Soares de Alarcão, letrado eminente e guerreiro, +que morreu queimado em uma explosão de polvora, quando guarnecia Juromenha, +em tempo de D. João IV, capitaneando os noviços da companhia, cujo reitor +era. + +Outro filho do _poeta dos cascos varios_, quando D. João IV o mandava +governar Ceuta, passou-se para Philippe IV; e foi condemnado á morte[1]. + +Teve a mãi de João Soares um primo chamado Damião de Aguiar Ribeiro, que +era corregedor em Lisboa, reinando o cardeal. Como sabem, andavam então +divididas as opiniões entre D. Antonio e Philippe II, ácerca da successão +do throno. Damião de Aguiar era dos mais façanhosos propugnadores por +Castella. Succedeu então que um homem do serviço de D. Antonio acutilasse +na Padaria um vereador que fallava soltamente no senado contra o filho de +Violante Gomes. Foi preso e summariamente condemnado á forca. Á hora em que +o réo era levado, soube Damião de Aguiar na rua Nova que, na Ribeira, se +ajuntava povo intencionado a tirar-lhe o padecente. Mandou o corregedor +parar o prestito; fez lançar uma corda de uma janella, e alli mesmo ordenou +que se enforcasse o homem, para evitar semsaborias. Tão grato lhe ficou por +isto o rei de Castella que o nomeou desembargador do paço, e depois +chanceller-mór do reino, commendador de S. Matheus de Soure e de S. Cosme +de Gondomar, commendas que rendiam 3:500 cruzados. + +Foi, por tanto, riquissimo, e tão bom homem que fundou o convento das +Capuchinhas da Merciana. Instituiu morgadio, comprehendendo uma extensa +quinta que ia desde as portas de Santo Antão pela travessa da Annunciada +até á chamada calçada de _Damião de Aguiar_. + +Casou duas vezes; procreou-se, e fez-se representar entre nós pelos snrs. +condes de Povolide, de Valladares, etc. + +Rebello da Silva não reza bem d'este Damião na _Historia de Portugal_. Eu +não rezo bem d'elle nem por elle; confesso, todavia, que era homem expedito +nisto de enforcar a gente na janella de qualquer cidadão, mediante seis +varas de corda. + + [1] D. João Soares morreu em 1618, com 38 annos de idade. Escreveu e + imprimiu em lingua castelhana: _Archimusa de varias rimas y efetos_, e + _La iffanta coronada por el-rei D. Pedro, D. Ignez de Castro_, etc. + Este poema não devia ser mui lisonjeiro ás tradições de Pero Coelho, + avoengo do poeta. + + + + +LISBOA + + +Elucidemos a historia do viajante. + +O mordomo-mór que fugia era D. João de Mascarenhas, 4.º marquez de Gouvêa, +e 7.º conde de Santa Cruz. Tinha 25 annos, e era casado com uma hespanhola, +chamada D. Thereza de Moscoso e Aragão, filha do 7.º conde de Altamira. + +A senhora que fugiu com elle era D. Maria da Penha de França, tambem casada +com seu primo-irmão D. Lourenço de Almada, muito moço. + +Tinham casado em 1722. Em junho de 1723 D. Maria da Penha de França deu á +luz uma menina, que se chamou Violante. E, na noite de 11 de novembro de +1724, a esposa, abandonando marido e filha, fugiu com o marquez. + +Este desastre não foi precedido de ardentes galanteios e grandes +resistencias do pudor vencido pela paixão. + +D. Maria foi de visita ao paço, onde havia sido dama, como sua mãi D. +Violante Henriques o fôra da rainha D. Maria Sophia de Saboya. Viu o +marquez que era galan, audaz, e sem ser milagre, fulminou-o com o relampago +da formosura. Fugiram e pararam em Tuy. Não foi em Vigo como diz o +viajante. Julgavam-se salvos em terra estrangeira; mas o bispo, por ordem +vinda de Madrid, prendeu D. Maria n'um mosteiro; e o marquez fugiu por +Hespanha dentro, e mais tarde para Inglaterra. + +Tanto que em Lisboa se divulgou a prisão da mulher de D. Lourenço de +Almada, certo poeta escreveu um soneto gravido de maus versos e boa moral, +que diz isto: + + D'esse claustro a sagrada penitencia + Pia te esconda, oh bella criminosa, + E converta-se em sombra a luz formosa + Que ardeu nos sacrificios da indecencia. + + Tolera da prisão toda a violencia, + Perdida já a nobreza generosa; + Fique ainda entre a culpa indecorosa + Benemerita ao menos a paciencia. + + Principia a morrer n'essa clausura + Encobrindo um descredito infinito + No antecipado horror da morte escura. + + Mas ah! se em ti, por ultimo conflicto, + Como vai sendo de vida sepultura, + Chegasse a ser cadaver o delicto! + +Hei de escrever um livro que ha de chamar-se o DESTERRADO. Estes desastres +hão de ser esmiuçados compridamente. O _Desterrado_ do meu romance não é o +marquez de Gouvêa: é outra casta de personagem. Bem sei que esfrio o +interesse do futuro livro, bosquejando-o aqui em poucas linhas. Não +importa. A curiosidade do leitor é mais attendivel que as conveniencias +mercantis d'uma novella. + +Como sabem, D. Maria da Penha deixou nos braços do abandonado marido uma +filhinha de onze mezes, que se chamou Violante. Esta menina, ahi pelos +dezesete annos, amou seu primo D. Luiz Francisco de Assis Sanches de Baena, +alcaide-mór de Villa do Conde, capitão de cavallos, e uns gentilissimos +vinte e nove annos. Na casa dos Almadas, onde D. Luiz fôra creado--porque +sua mãi casára em segundas nupcias com D. Luiz José de Almada--havia um D. +Antão, que se apaixonára por Violante, que era sua sobrinha. A menina +esquivara-se ás caricias do tio, e deixou-se arrebatar nos braços do primo +D. Luiz, quando uma ordem regia o desterrou para Moncorvo, a rogos de D. +Antão de Almada. Os dous fugitivos (que desterro tão semelhante, o de mãi e +filha!) esconderam-se e casaram em Zamora; mas ahi mesmo os enviados do +cioso tio a foram colher de sobresalto e a trouxeram a Portugal. + +Esteve a menina reclusa alguns annos em Marvilla, com o proposito de +professar, pois que a lei lhe annullára o casamento com o primo; não +obstante, porém, a saudade do desterrado primo, ao fim de onze annos, +aceitou seu tio para esposo, do mesmo passo que D. Luiz era banido e +desnaturalisado para sempre. Aqui fica muito pela rama o entrecho do livro +para o qual se estão aprestando as peças essenciaes da vida tempestuosa de +D. Luiz Francisco de Assis Sanches de Baena, fallecido aos 75 annos, e +terceiro avô do actual snr. visconde de Sanches de Baena[2]. + +De D. Violante e de seu tio D. Antão de Almada (sem embargo das amarguras +da violentada esposa) nasceu D. Lourenço de Almada, que foi o 1.º conde do +seu appellido em 1793. + + * * * * * + +Outra indicação do viajante que estimula a curiosidade: + +«A casa da rainha e dos principes são analogas á do rei. O posto de +camareiro-mór da rainha vagou por morte do marquez das Minas, assassinado +em 1721. Este senhor era genro do marechal de Villeroy; e seu filho, o +conde do Prado, está presentemente na côrte de França.» + +Já d'este caso dei n'outro livro a noticia que transcrevo do citado +periodico de Francisco Xavier de Oliveira: + + +«Um corregedor guardava uma porta da igreja da casa professa dos jesuitas, +quando alli se celebrava grande festividade. Sómente o rei havia de entrar +por aquella porta. Chegaram aqui o marquez das Minas e o conde da Atalaya; +mas o corregedor com razão lhes vedou o passo. Insistiram elles, dizendo ao +ministro que as ordens recebidas não podiam entender-se com pessoas de sua +esphera. Redarguiu o corregedor que as ordens ninguem exceptuavam, e por +tanto, sem que o rei entrasse, não podia elle permittir que entrasse quem +quer que fosse. Aquelles senhores podiam entrar por outras portas francas a +toda a gente. Não obstante, pertinazmente exigiram do corregedor uma +distincção que elle não podia dar-lhes sem transgredir os deveres... Os +dous fidalgos, depois de o terem insultado, passaram ás ultimas. O conde da +Atalaya deu com o chapéo na cara do corregedor, e o marquez das Minas +traspassando-o com a espada, matou-o. Em seguida cavalgaram, e sahiram do +reino. O marquez das Minas _foi perdoado e voltou ao reino_[3].» + +Crê o leitor que, não obstante o perdão, o marquez das Minas passaria o +restante da vida sequestrado das graças do monarcha e da convivencia das +pessoas de bem? Não faça juizos temerarios o leitor: o marquez das Minas +recebeu o indulto, e ao mesmo tempo o bastão de general. + +Já vimos a justiça dos homens: agora vejamos a da Providencia. Servia no +exercito portuguez um castelhano chamado D. Juan de la Cueva, que não dava +_excellencia_ ao seu general, marquez das Minas, sem que este lhe désse +_senhoria_. «Ora, o marquez, assassino do corregedor,--diz o cavalheiro de +Oliveira--era soberbo e arrogante. Um dia, ao entardecer, sahia elle da +portaria da congregação de S. Philippe Neri, a tempo que desgraçadamente +_Juan de la Cueva_ ia entrando. Cortejou elle o marquez, que lhe não deu a +pretendida _senhoria_, e por isso _de la Cueva_ lhe não deu _excellencia_. +O general, grandemente irritado, levantou o bastão e proferiu palavras +ameaçadoras. _De la Cueva_, sem lhe dizer palavra, traspassou-o com a +espada. O marquez não tugiu nem mugiu: quando cahiu por terra, já ia morto. +O padre, que o acompanhára até á portaria, e era confessor d'elle, apenas +teve tempo de lhe apertar a mão. _D. Juan de la Cueva_ pôde escapar-se, e +refugiou-se em Hespanha[4].» + +Na jurisprudencia divina a justiça mais seguida é a pena de Talião. + + [2] Veja _Apontamentos biographicos_ ácerca de D. Luiz Francisco de + Assis Sanches de Baena, etc., por Innocencio Francisco da Silva, + Lisboa 1869. + + [3] O cavalheiro de Oliveira não designa o tempo de expatriação do + marquez das Minas, conde do Prado. Deviam ser dez annos, segundo a + sentença manuscripta de que dá noticia o snr. Innocencio Francisco da + Silva, a pag. 233 do 7.º tom. do Dicc. Bibliog. Diz assim: «Sentença da + Relação de Lisboa, contra os condes do Prado e da Atalaya por matarem + publicamente o corregedor do Bairro-Alto no exercicio da sua + authoridade. O primeiro, tendo-se evadido, foi justiçado em estatua; o + segundo condemnado a degredo por dez annos, e ambos em multas + pecuniarias». Creio que ha equivoco, na transcripção da sentença. O + queimado em estatua foi o conde de Atalaya, que, no dizer do cavalheiro + de Oliveira, morreu furioso em Vienna, depois de ter militado no + exercito do imperador de Austria. Quanto ao marquez das Minas, + presume-se que lhe foi indultada a sentença, visto que o citado + Oliveira diz que obteve perdão e voltou a Lisboa. + + [4] _Amusement_, 2.º v. pag. 147 e 148. + + + + +LITTERATURA BRAZILEIRA + + +Longo tempo se queixaram os estudiosos do descuido dos livreiros +portuguezes em se fornecerem de livros brazileiros. Nomeavam-se de outiva +os escriptores distinctos do imperio, e raro havia quem os tivesse nas suas +livrarias. Nas bibliothecas publicas era escusado procural-os. Em +compensação, sobravam n'ellas as edições raras de obras seculares que +ninguem consulta. + +O mercado dos livros brazileiros abriu-se, ha poucos mezes, em Portugal. +Devemol-o á actividade inteligente do snr. Ernesto Chardron. Foi elle quem +primeiro divulgou um catalogo de variada litteratura, em que realçam os +nomes de mais voga n'aquelle florentissimo paiz. Ahi se nos deparam, entre +os poetas, Gonçalves de Magalhães, o correcto e sublime author da +_Confederação dos tamoyos_; o lyrico e arrojado Alvares de Azevedo; o +primaz dos escriptores brazileiros, e chorado Gonçalves Dias; o esperançoso +devaneiador, fallecido no viço da idade, Casimiro de Abreu; Junqueira +Freire que primou nos segredos da melodia e já não é d'este mundo; e o +severo e cadencioso poeta de _Colombo_, tão estimado dos nossos. Entre os +romancistas o fecundissimo Joaquim Manoel de Macedo, que disputa a +supremacia a J. de Alencar, que tanta nomeada grangeou com o seu _Guarany_. +Não lustram menos as novellas mimosissimas de Luiz Guimarães, e as +arrobadas mesclas de prosa e verso de Machado de Assis. Em litteratura +didascalica sobresahem os valiosos escriptos do professor, o snr. conego +Fernandes Pinheiro, nomeadamente o _Resumo de historia litteraria_, que +muito se avantaja a uns esbocêtos que em Portugal circulam nas escólas, +e--o que é mais deploravel--nos estudos secundarios. São notabilissimos +todos os livros do snr. J. M. Pereira da Silva, já na sciencia historica, +já na politica, e ainda no romance, tão prosperamente estreiado na +_Aspazia_. Sobre tudo, porém, os _Varões illustres do Brazil_ e a _Historia +da fundação do imperio brasileiro_ são obras que denotam profundo estudo e +muito engenho na boa disposição dos elementos e critica dos personagens +historicos. Em varia sciencia, em livros elementares, em lexicologia, e +ainda sobre motivos de religião é copioso o catalogo da livraria Chardron. +Esta variedade argue a fertilidade de intelligencias que ajuntam á riqueza +congenial d'aquelle solo os thesouros do espirito. E muito importa e cumpre +observar que os brazileiros modernamente nos não cedem no zelo de imitar a +linguagem pura dos grandes escriptores portuguezes dos seculos de ouro. + +Não esqueçamos, todavia, que o impulsor d'este brilhante movimento +litterario no Rio de Janeiro, e por isso em todo o imperio, é o +livreiro-editor Garnier, espirito emprehendedor que tanto faz luzir os +talentos que divulga, quanto lucra para si a honra de os fazer conhecidos e +laureados. Quem calcular o despendio grande de empresas semelhantes +n'aquelle paiz, deprehenda o quanto cumpre que seja robusto e afouto o +pulso que removeu as immensas difficuldades com que ha trinta annos lutavam +os escriptores do Novo-mundo para se fazerem conhecidos. Coube esta gloria +e este triumpho ao snr. Garnier. + +Falta dizer que os preços dos livros offerecidos no catalogo das casas +Chardron, no Porto e em Braga, são modicos, reduzidos, e inferiores ao +preço corrente das obras portuguezas de igual tomo. + +E, pois que estou agradavelmente recommendando livros de brazileiros, seria +injustiça não graduar de passagem ao menos o merito de uma obra que +recentemente sahia dos prélos portuenses. É o _Estudo sobre a colonização e +emigração para o Brazil_. É seu author o snr. Augusto de Carvalho, que tão +grave e prestadiamente abre carreira de escriptor, em annos ainda muito na +flôr, e com o espirito já a fructear as mais sensatas considerações sobre +as questões controversas inculcadas no titulo da sua obra. Á substancia do +livro allia-se o primor da fórma, a propriedade do termo, a chaneza +eloquente, e, a espaços, a elevação do estylo que não innubla a clareza da +idéa. É o snr. Augusto de Carvalho um brazileiro que nobilita as letras da +sua patria, e está grangeando um lugar entre os melhores escriptores, e, +desde já, o tem distincto entre os bons pensadores e cultores de idéas +proficuas. Congratulo-me com os seus conterraneos. + + + + +Á ACTUALIDADE + + +O meu nome foi banido das columnas d'aquelle jornal. Assim o rosnou o +lebreu por entre os arames da mordaça. + +Foi realmente banido? + +Então, adeus, desgraçado! + +Que o mundo tenha tanta piedade de ti, lazaro, quanto eu me arrependo de te +haver baldeado do charco da petulancia para outro peor--o do silencio. + +Adeusinho! coça a tua lepra com os teus folhetins; mas sume-te, escalracho! + + + + +A EXC.^ma MADRASTA D'EL-REI D. LUIZ 1.º CALUMNIADA + + +Se me arguirem de adulador da senhora condessa, madrasta d'el-rei D. Luiz +I, são iniquos. Se esta ditosa dama, em vez de estar no paço das +Necessidades, estivesse, a esta hora, em trances de cantora não +escripturada, eu sahiria por honra do seu nome de artista contra o +calumniador que lhe mareasse os applausos recebidos no theatro do Porto, ha +quatorze annos. + +Em um numero da _Lanterna_, periodico truculento, li que a esposa do viuvo +de D. Maria II havia sido pateada na rampa do theatro de S. João, em 1859. + +É calumnia, que vou desfazer com a imprensa contemporanea. + +Conceda-se-me a abstinencia de tratamentos regiamente honorificos, em +quanto a nobre condessa de Edla me permitte pleitear em prol dos seus +creditos de cantora. + +A snr.^a Elisa Hensler cantou, pela primeira vez, no theatro do Porto, na +noite de 8 de outubro de 1859. O _Nacional_ do dia 10 escreve o seguinte: + +«_A companhia italiana estreou-se effectivamente no sabbado, e não se +estreou mal. A escolha da opera foi acertada--«O Saltimbanco»; é uma bella +partitura... e a prima-dona Hensler é bella, joven, e canta com mimo. A sua +voz, se não é possante, é melodiosa e expressiva, tem alcance bastante para +o nosso theatro. O publico ficou agradavelmente surprehendido, e deu +lisongeiro acolhimento á mimosa cantora... Tanto no duetto como no rondó +mostrou a snr.^a Hensler que possue dotes musicaes pouco vulgares. O +sentimento com que cantou os andantes do duetto, a bravura e perfeição na +execução da difficil parte do rondó, e aquelles trilos tão nitidos e puros, +que ella faz em notas tão agudas no rondó, é sufficientemente para +corroborar as grandes e vantajosas informações que a precederam; e o +publico foi justo com os applausos e chamadas no fim da opera._» + +Receio que os detractores da mimosa cantora venham com artigos de suspeição +ao _Nacional_, culpando-o de parcial e apaixonado, já no louvor, já na +censura, em juizos theatraes. Contra esses artigos redargúo estampando a +opinião do _Commercio do Porto_, o jornal mais serio do paiz: + +«_Abriu-se no sabbado com a opera o «Saltimbanco» de Paccini... Fizeram a +sua estreia n'esta opera a primeira dama Elisa Hensler, etc. A prima dona +Hensler foi applaudida e teve uma chamada no fim_.» (Commercio de 10 de +outubro). E no folhetim de 15 do mesmo mez, confirma n'estes termos: «_A +snr.^a Hensler é uma excellente cantora. A sua voz de soprano-agudo é de +sonoro timbre; e, ainda que de pouco volume, extensa, flexivel, melodiosa e +fresca. Possue, além d'estes dotes naturaes, outros não menos valiosos como +cantora: conhecimento do mechanismo do canto, perfeita entoação e +expressão. Revela a seu grande merito como cantatriz nos floreios, nas +escalas chromaticas, e especialmente nos trinados. Na passagem da 1.^a á +2.^a cavaletta do seu rondó final faz admirar os tres longos e bellos +trinados em_ sol, lá _e_ si _agudos. Na difficil cavaletta de sua cavatina +do 1.º acto são muito merecidos os applausos que tem colhido. No_ larghetto +e cantabile _do duetto do baritono e soprano do 3.º acto, não obstante a +agudissima_ tacitora _em que está escripto, não deixa a snr.^a Hensler nada +a desejar. A todas estas excellentes condições como artista e cantora reune +uma presença sympathica, qualidade esta de muito valor no theatro._» + +Já no _Nacional_ de 13 este parecer viera corroborado com estes gabos: «_E +a prima-dona Hensler? Não desmereceu em nada das primeiras impressões que +nos imprimiu._ + +«_É sempre a cantora mimosa e correcta._» + +O _Commercio_ de 29 de outubro classifica maviosamente a dôce cantora com +esta phrase: ... «_A prima-dona Hensler é o bijou da companhia._» + +Na noite de 6 de novembro cantou a snr.^a Hensler a parte de _Lucia_. O +_Nacional_ diz o seguinte: «_A snr.^a Hensler na aria do 3.º acto remiu-se +do fiasco do 2.º, e cantou com tal mimo e doçura que a platéa apesar de +gelada rompeu então em reiterados applausos._» (Nacional de 7 de novembro). +O _Commercio_, esquivando-se á ingrata e desmerecida palavra _fiasco_, +escreve: «_A sr.^a Hensler foi muito applaudida no_ rondó, _e os applausos +foram merecidos no_ andante, _que cantou lindamente, executando com +admiravel justeza_ a cadencia _em unisono com a flauta... Na cavaletta não +foi tão irreprehensivel a execução._» Está de accordo com o _Nacional_ de 8 +de novembro: «_A snr.^a Hensler continua a ser applaudida no_ rondó _do 3.º +acto, onde a bella cantora revela muito talento. Se a sua voz fosse tão +volumosa como é suave, seria uma artista de infinito merecimento._» + +A 12 de novembro principiam os jornaes a gemer sobre a gaveta do snr. +Laneuville, empresario que se dissolvia, com quanto fosse insoluvel. Sem +embargo, a snr.^a Hensler, na confirmação dos dous citados jornaes, +excedia-se no mimo do canto. Dir-se-hia que attentava em captar com as +harmonias dulcissimas da sua voz o archanjo torvo da miseria que espreitava +o empresario por entre as bambolinas de cartão esgarçado. + +Alguns amadores, que previam o desastre da empresa nas cadeiras vasias da +platéa, fermentaram a occultas dous bandos que, mais ou menos +ficticiamente, se apaixonassem pelas duas damas. É o que se deprehende das +revelações do _Commercio_ de 5 de novembro que reza assim:... «_No pessoal +da companhia não ha nada que desafie enthusiamo e dê vida animada ao +theatro, apesar dos esforços que alguns poucos frequentadores do theatro, +dos mais desenfadados, empenham para crear partido ás duas damas._ + +«_Houve já episodios curiosos; porém nem as damas, nem os seus admiradores +conseguem fazer móça no indifferentismo do publico, que reconhece +superioridade relativa na dama Hensler; mas não vê ainda assim motivo +justificado para se enthusiasmar._» + +Com a sua usual discrição, omittiu o _Commercio_ os _episodios curiosos_. +Bem é de vêr que o amor, ideal da arte das fusas e semifusas, não seria +estranho aos sonegados episodios. A radiosa belleza da cantora sem duvida +attrahia umas borboletas, que então douravam o seu polen sob as fulgurações +do lustre; todavia, como a dignidade da artista se esquivasse ás intrigas +de bastidor que, ás vezes, galvanisam os empresarios oxydados, a empresa +falliu. + +Decorreram uns quinze dias angustiados para a companhia desvalida. Hermann, +aquelle prestigiador cavalheiroso que morreu ha dous annos, estava então no +Porto. Foi elle o generoso valedor dos artistas e ainda do empresario. A +companhia, em fim de dezembro, estava dispersa, não deixando um vestigio de +fragilidade no seu rasto de pobreza. + +Em 21 de dezembro d'aquelle anno, uma local do _Commercio_ dizia: «_O vapor +Lusitania sahido hontem pelas 12 horas da manhã conduziu 118 passageiros, +entre os quaes: Elisa F. Hensler_, etc.» + +Entrou, pois, na manhã do dia 21 em Lisboa a cantora. Devia levar na alma +os lutos da natural vaidade ferida pela indifferença gelida d'uns +pisa-verdes que honraram grandemente a mulher, menosprezando a artista. Dos +frementes applausos, que a victoriaram quando assomou deslumbrante no +palco, ao fastio com que as filas dos seus admiradores rarearam, vai a +distancia que medeia entre a mulher honesta e a que permitte que lhe abram +saldo de contas em que os applausos representam uma verba. + +Eu não sei se Hensler, a cantora, escripturada pela empresa de S. Carlos, +ao encarar a princeza do Tejo, que devia vestir de negro n'aquelle dia de +dezembro, sentiu pavores da sua futura sorte, em theatro de jerarchia tão +elevada para suas forças. Não sei porque frontarias de palacios lhe avoejou +a vista absorta nas tristezas de quem ia sósinha, forasteira, sem o genio +grande que estua no peito as palpitações do triumpho. Não sei; mas, se +encarou lá em cima os palacios dos dous reis--com que olhos a esposa do +snr. rei D. Fernando avistará hoje o Tejo, por onde entrára n'aquella manhã +pardacenta de nebrina carrancuda de agouros esquerdos! Se ella então +preveria um marido rei nas Necessidades, um enteado rei na Ajuda, e toda +aquella Lisboa, e todo este reino, e nós todos ás suas plantas, nós todos, +os bons subditos do rei que é marido, e do rei que é enteado, e d'ella, que +vale mais que todos, por que, offuscando-os com a aureola da arte, +estrellada das seducções da belleza, nos revelou que os reis deslumbrados +eram apenas homens! + + + + +OS SALÕES + + +CAPITULO II + +PLEBISCITUM + + + Homem plebeu. _Homo plebeius._ Nos antigos romanos havia tres + ordens. A ordem senatoria, equestre e plebea. A ordem plebea val o + mesmo que a gente do povo. + + _Plebiscitum._ Termo da antiga jurisprudencia romana. Deriva-se do + latim: _plebs_, plebe, e _sciscere_, que val o mesmo que + _assentar_, _ordenar_, _determinar_. E assim _plebiscito_ era o + decreto, ou lei posta pelo povo, sem o suffragio dos senadores, mas + só ao pedir do tribuno, magistrado do povo. _Plebiscitum._ + + D. RAPHAEL BLUTEAU. + + La conscience peut être géante, cela fait Socrate et Jésus: elle + peut être naine, cela fait Atrée et Judas. + + La conscience petite est vite reptile... + + Les catastrophes ont une sombre façon d'arranger les choses. + + VICTOR HUGO. + + +A luz não se exprime. Não tem definição. Como a não tem o calor, o +magnetismo, a electricidade, e a vida. + +A luz é o agente ou a acção, que nos adverte a distancia da presença dos +corpos luminosos pelo intermedio da vista. + +Vejamos. + +A luz propaga-se em linha recta nos meios homogeneos. Obrigada a parar, no +seu caminho, pelo encontro d'um corpo opaco--produz os phenomenos da sombra +e da penumbra. + +No mundo moral são a sombra e a penumbra as reacções da sciencia, da arte, +da civilisação e do progresso. + +Analysemos as penumbras. + +Entremos nas sombras. + +Desçamos ás trevas. + +Fóra da vida physica são as trevas a ignorancia, e esta produz o silencio. +Ora, o silencio é a paz dos sepulchros. Por que não deveria eu consultar a +plebe? + +Ha por ahi, nas ultimas camadas sociaes, perdidas, nas solidões da miseria, +almas tão nobres, aspirações tão vastas, crenças tão vivas... + +Por que não iria eu consultar os generosos sentimentos populares? + +E fui. + +Entrei n'um tugurio qualquer.--Que lhe importa o leitor qual foi? Havia uma +mesa de pinho, duas cadeiras, e um catre. Era toda a mobilia. Mas, no meio +d'esta hedionda miseria, existia um homem, feito á imagem de Deus; _et +creavit Deus hominem ad imaginem suam._ + +Era um veterano da liberdade. Desembarcára no Mindello. Tinha, na cabeceira +do leito, pregada no travesseiro a insignia da Torre e Espada, ganha em +Souto Redondo, em lutas titanicas, e em nome da liberdade. + +Não desenho o soldado, ainda hoje operario. Basta-nos ouvil-o. + +Li-lhe o manuscripto. + +Ficou pensativo, e triste. Encostou os cotovelos sobre a mesa, afagou o +craneo, como se lhe tumultuassem tantas idéas lá dentro, que não podiam +irromper d'aquella abobada de fogo, e depois, em voz baixa, como se +receasse ser ouvido, começou assim: + +--Publique tudo isso. + +A abstenção politica é mais do que a morte: é a indifferença pelos males +sociaes, é a historia d'este torpe individualismo, que nos corrompe, é a +gangrena moral d'esta sociedade em dissolução, é a anasarca symptomatica da +lesão organica que despedaça a nossa existencia, é o maior de todos os +crimes, por que é uma tranquillidade ficticia, comprada á custa dos legados +que nós iamos enthesourando para as gerações futuras. + +A democracia agonisa, no seculo dezenove, quando desabrochava, e se abria +em flôr, na arvore, que nós todos plantamos, regada com o sangue precioso +de tantos martyres, em nome dos que deviam colher e adorar no futuro, o +fructo dos nossos trabalhos. + +O velho operario, o antigo soldado do cêrco do Porto meditou por alguns +instantes, e continuou: + +--A historia vai esculpida em chronicas de reis, e memorias d'aulicos. A +historia ha de escrevel-a um dia o povo, rasgando todas essas paginas +mentirosas e lisonjeiras das décadas fabulosas, sahidas das mãos dos +eunuchos d'estes harens do occidente. + +Esta paralysia social em que a geração presente cahiu, esta hesitação +absurda e repugnante nos annaes da nossa vida actual tem uma explicação +irrespondivel: o mundo espera uma crença viva para se alentar na sua +marcha--para respirar, e viver. D'onde virá a fé? + +Habitantes d'uma peninsula á mercê de tantas invasões, raças tão diversas +teem pisado este solo, que difficil, senão impossivel, será buscar-lhes a +genealogia. Iberos, celtas, tyrios, phenicios, carthaginezes, numidas, +berbéres, romanos, godos, alanos, suevos, mussulmanos, e varias hordas de +gascões, e borgonhezes, afóra aragonezes, asturianos, e gallegos sulcaram +este solo sagrado. + +Onde estão os lusitanos?--Onde corre esse sangue mosarabe com que a +historia enche a vastidão das nossas campinas, e povôa a crista das nossas +montanhas?--Nas trevas das invasões perdem-se os vestigios, e em presença +dos aventureiros, que acompanhavam Henrique de Borgonha, apparece uma raça +energica, robusta, e corajosa, que põe em derrota a meia lua dos sectarios +do Islam, e obriga a dynastia affonsina a conceder-lhe cartas de foraes, +que são os pergaminhos e armarias d'esta nobilissima raça hispanica. + +E o velho soldado do cêrco do Porto curvou a cabeça, e meditou. + +Depois disse: + +--Quem são, então, os duques e condes que acompanhavam o aventureiro, e +bastardo real? Quem são os mercenarios, que se aformoseavam com as alcunhas +ephemeras, e irrisorias dos cargos nobiliarchicos da côrte byzantina, +quando estes titulos valiam, outr'ora, pela significação do mando, do +poderio e da jurisdicção? + +Á face da nobre raça hispanica--raça que somos nós--eram elles o enxurro, e +a vadiagem das côrtes em que nasceram. + +Nós eramos o povo, éramos a raça, éramos a tradição. + +Quem tomou Lisboa aos mouros? Quem levou os arabes e berbéres de vencida +até ás costas do occidente? Quem povoou a patria, quando as quinas se +desfraldaram em Ourique? Quem coroou D. João I, esmagando as traições de +Castella? Quem promoveu a restauração de 1640, e lutou pela independencia +da patria? + +Foi o povo. + +Deixemos Aljubarrota ao condestavel. + +Deixemos a restauração aos quarenta conjurados do palacio do conde de +Almada. Que poderiam elles sem nós? O zelo, a coragem, o esforço, e o amor +da patria só nos cabem a nós.--Vencemos sempre, porque eramos o povo. + +Batemos com os contos das nossas lanças ás portas de Ceuta, de Tanger, e +d'Arzilla, e os bastiões africanos cediam aos nossos esforços. Aportamos em +Calecut, Cochim, Gôa, Malaca e Ormuz--e o Oriente dobrou-se á nossa +vontade. Que importa, que os cabos de guerra tenham os louros das +victorias, e das conquistas? A gloria é nossa. Fomos o instrumento +civilisador, o soldado que morre pela patria, o portuguez, que cahe +alanceado junto do seu pendão. + +Para o condestavel, para Vasco da Gama, para Affonso d'Albuquerque, para D. +João de Castro, para D. Francisco d'Almeida ha a chronica, ha o livro, ha +as tenças, ha a narração dos feitos esforçados e valerosos, ha as +recompensas da munificencia regia, e os brazões, que são a commemoração +d'esses feitos, esculpidos nos portaes dos seus nobres solares. + +Para o homem do povo, que pelejou ao lado dos mais corajosos, que batalhou +onde havia mais perigo, que abandonou mãi, mulher e filhos,--para esse, ha +a valla de finados, triste, e obscura--e a chronica emmudece, porque não é +para peões, e villanagem, que foi creada a historia dos reis, e a Torre do +Tombo, onde se guardam, e archivam seus feitos e memorias. + +Para o povo ha o silencio. + +Quando d'elle falla a historia, alcunha-o de sedicioso, barbaro e +turbulento. + +Para o povo ha o esquecimento. + +A humanidade é uma idéa abstracta, que vive para a historia, nos vaidosos +triumphos dos Alexandres, dos Cesares e dos Pompeus. + +Quando um homem do povo cahe mutilado, pela arma homicida dos poderosos do +dia, chama-se Socrates, chama-se Spartacus, chama-se Gracho, chama-se +Galileu, chama-se Danton, chama-se Vergniaud, chama-se Armand Carrel, +chama-se Gomes Freire, chama-se _legião_. Mas a historia atravessa estes +periodos symbolicos da vida das nações sem commemorar estes nomes? + +Para que?--Levantou já alguem o estigma que pesa sobre Catilina? + +A historia divinisou Cesar, e applaudiu Cicero. + +Rasgaram já os crépes que envolvem o busto de Robespierre, e a fronte de +Saint-Just? + +A França reclamou Bonaparte, e mais tarde victoriou o cossaco, que dos +estepes da Russia vinha impôr leis e dynastias ao capitolio da raça latina. + +E nós?--Aqui o veterano fez uma pausa. Levantou a fronte como se sentira o +clarim das batalhas, e continuou em voz sumida e cavernosa: + +--A nós deram-nos uma carta constitucional, que é como um foral--para não +dizer carta d'alforria--a nós deram-nos uma mentira, escripta com o sangue +do povo, no sólo sagrado da patria. + +E o veterano calou-se. + +Depois como despertado pelo ruido dos combates, como se aquella alma +aspirasse a novas lutas, para sustentar os principios por que pelejára, +ergueu-se do catre onde estava sentado, e rumorejou: E fallaes-nos de +patria! patria aonde, e patria com quem? No Rocio em treze de março?--em +Torres Vedras em 1846?--no Porto em 1851?--A patria é o sólo sagrado onde +jazem as ossadas dos nossos avós. A patria é o local onde assenta o nosso +lar domestico, onde vivem as nossas familias, onde está cravado o pendão +dos nossos direitos. A patria é nossa por que derramamos o nosso sangue por +ella. + +Em seguida curvou-se para mim, que estava sentado no fundo d'este triste e +miseravel quarto, e disse-me em phrases breves: + +--Faça-me só um favor. É o unico que lhe peço. Como prologo d'esse +manuscripto, publique este papel. É a meditação das minhas noites de +insomnia. É o symbolo das minhas crenças. É o credo da minha religião +politica. Morrerei contente. + +Começa por este prologo o manuscripto do desembargador. + + VISCONDE DE OUGUELLA. + + + + +O DECEPADO + + +Duarte de Almeida, o alferes de Affonso V, conheço-o desde a minha +infancia, por m'o apresentar em verso o meu finado amigo Ignacio Pizarro. + +Chorei por Duarte de Almeida, como se elle fosse meu avô, quando o infeliz, +na volta de Toro, onde os castelhanos lhe deceparam as mãos, se lastimava +assim pela bocca do poeta do _Romanceiro portuguez_: + + Nem a espada, nem a lança + Posso nas mãos empunhar!... + Ai de mim! triste lembrança!... + Nem bandeira tremolar!... + Nem bordão de peregrino + Póde meu corpo arrimar! + Nem o meu pranto contino + Tenho mãos para limpar!... + Luiza! já me esqueceste?... + Talvez tu ora suspires + Por outro... se tal fizeste... + Coração! ah! não delires... + Morto já, tu me julgaste, + E se agora assim me viras, + D'aquelle a quem tanto amaste + Talvez agora fugiras. + Talvez nobre cavalleiro + Póde alcançar tua mão... + Queira o céo morra eu primeiro, + Não saiba a tua traição. + Que eu antes quero da morte + Ter gelado o coração, + Do que vir amor tão forte + Ter em premio a ingratidão. + +Com estas e outras piedosas queixas ia o namorado alferes caminho do +castello de Aguiar, onde vivia a castellã Luiza. + +O leitor já me está dizendo que sabe o entrecho do romance de Pizarro: que +a donosa castellã, julgando morto o seu amado, lhe fizera cantar os +responsos em sumptuosos funeraes: que o cavalleiro, a deshoras, se +annunciára na barbacã do castello; e, admittido á capella, encontrou Luiza +a vestir o habito de monja: que o decepado, apertando-a ao peito, lhe fez +vêr que estava vivo, e que ella, allegando o voto que fizera de professar, +cahiu de encontro á eça, e morreu. + +Termina o trovador: + + Seu amante desditoso, + Mais desgraçado, viveu; + Mas o seu fim lastimoso + Nunca ninguem conheceu. + +Bastantes annos--e que ditosos annos!--andei enganado pelo meu amigo +Pizarro. Fui tres vezes ao castello do Pontido. Creio que já disse, não me +lembra aonde, que encontrei entre as urzes da matta subjacente ao castello +um espigão de espora sem rosêta, e suspeitei que ella houvesse sido do +infausto amador da castellã. Figurou-se-me, ao cahir da noite, vêl-a no +gothico balcão, voltada para os serros fronteiros, suspirar no alaude: + + Adeus, serra do Mizio! + Adeus, val de Villa Pouca! + Adeus, castello sombrio! + Minha voz ouvi já rouca! + +Estas impressões da primeira mocidade revivem quando a razão as impugna ao +sentimento. De envolta com as minhas indagações historicas na triste sorte +da princeza D. Joanna, chamada a _excellente senhora_, o vulto que mais me +preoccupava era o alferes da bandeira, Duarte de Almeida, o heroe, o amante +da castellã, o decepado cujo + + ..........fim lastimoso + Nunca ninguem conheceu. + +Quanto ao seu fim, citava Pizarro um trecho de Duarte Nunes de Leão +(_Chronica de Affonso V_) muitissimo desconsolador. Alli se diz que o +bravo, depois de tamanha proeza, vivera mais pobre que d'antes. Este +opprobrio nacional confirma-o modernamente o snr. Pinheiro Chagas, com +estas phrases austeras: «O cavalleiro heroico sobreviveu ás suas feridas, e +voltou a Portugal onde foi sempre conhecido pelo glorioso nome do +_Decepado_. Mas, ó vergonha! o homem que assim tão briosamente se portára, +morreu na miseria, porque nenhuma recompensa lhe foi dada, e porque nem se +quer podia ganhar a vida pelo seu trabalho, logo que o haviam +impossibilitado de trabalhar as suas tristes mutilações[5].» + +Por honra da patria e da humanidade, apresso-me a declarar que é menos +exacto o que Duarte Nunes diz e o snr. Pinheiro Chagas encarece. Logo me +justificarei com documentos. + +Pelo que respeita ao romance de Pizarro, tão sómente dous elementos de +verdade historica podemos aceitar-lhe: a existencia do alferes e a do +castello de Aguiar. E o certo é que ao meu intelligente amigo não corria o +dever de maiores exactidões. + +Primeiramente direi do castello. + +Lá está, e já lá estava assim, pouco mais ou menos, antes da fundação da +monarchia portugueza. Quem o possuia ou governava, no tempo em que D. +Affonso Henriques pleiteava nos arraiaes com sua mãi e com o imperador D. +Affonso, era o rico-homem D. Gonçalo de Sousa, genro de Egas Moniz, e +senhor da terra de Sousa. Traslada no tom. III da _Monarchia Lusitana_ +(pag. 112), fr. Antonio Brandão da _Vida de Santa Senhorinha_, codice +áquelle tempo inedito, uma passagem que faz ao nosso intento[6]. + +Reza assim, melhorado na orthographia: + + +_«Digo-vos que estando folgando em sua terra um principe nobre e cavalleiro +d'este reino, o qual era mui privado d'el-rei D. Affonso, e havia nome D. +Gonçalo de Sousa, mui poderoso, e todo conselho d'el-rei estava em elle; +estando, como disse, folgando, chegaram a elle mensageiros dizendo que os +inimigos lhe corriam a terra, e que lhe tinham cercado o castello d'Aguiar; +o qual logo chamou suas gentes que pôde haver, e foi-se para haver de +descercar o dito castello. E chegando aonde jaz o corpo d'esta santa lhe +fez reverencia, e oração não lhe lembrou; e indo ainda em vista da igreja +metade de um campo, esteve pegada a mula, em que ia o cavalleiro, a qual +elle com esporas e pancadas não podia abalar, mas antes a mula quedava mais +rija e pero se desceu d'ella e a não podia abalar; e, vendo elle isto, +lembrou-lhe como passára pela igreja da santa sem lhe pedir benção, e +mercê, e sem fazer oração, e por isso lhe detinha a mula; e, soffreando a +mula para traz para se tornar á igreja, a mula logo tornou, e o cavalleiro +fez sua oração encommendando-se á santa, e des i fez seu caminho, e com +suas companhas descercou seu castello, e correu depois os inimigos, e +tornou a sua casa com victoria_, etc.» + + +O chronista Brandão, por mal informado, escreve que o castello de Aguiar da +Pena se avista com as montanhas de Barroso. Estas montanhas distam seis +leguas do castello, e entre ellas e o valle em que negreja a fortaleza +gothica estão os cabeços da serra de Alfarella, e no horisonte mais elevado +alveja villa Pouca de Aguiar. Acrescenta que o castello «é crespo de +torres, baluartes e cubellos, e está fundado sobre a corôa de uma penha +talhada de uma parte por natureza, que parece obra feita á mão,» etc. + +Póde ser que no seculo XVII, quando Brandão escrevia, permanecessem ainda +as torres e baluartes. O que ha vinte annos parecia ter robustez para +seculos eram quatro alterosas quadrellas de alvenaria ameiadas com seus +adarves, bastiões, e janellas gothicas sem lavores. + +Recordo-me ter lido na _Nova historia de Malta_ de José Anastacio de +Figueiredo que o castello no seculo XIII pertencia á ordem hospitalaria de +S. João de Jerusalem, e cita um aviso que obriga os lavradores +circumvisinhos a carregarem pedra para reparos. + +E não sei mais nada quanto ao solar da phantastica Luiza. + +Agora vamos em cata do _Decepado_, depois que voltou de Castella. +Encontramol-o na sua casa acastellada no seculo XII, que teve o nome de +castello de Villarigas, no couto do Banho, hoje concelho de S. Pedro do +Sul. + +É elle o herdeiro de seu pai Pedro Lourenço de Almeida. Afóra aquelle +castello, tem outro na quinta chamada da Cavallaria, honrada por el-rei D. +Fernando em 1419, e onde os linhagistas enraizam o tronco dos Almeidas. + +Quando alli chegou, esperavam-o a esposa e dous filhos. + +A esposa chamava-se D. Maria de Azevedo, filha do senhor da Louzã Rodrigo +Affonso Valente e de D. Leonor d'Azevedo, que herdára grandes haveres de +sua tia D. Ignez Gomes de Avellar. + +Os filhos do _Decepado_ chamaram-se Affonso Lopes, e Ruy Lopes de Almeida. +Affonso, o successor das honras e coutos de Villarigas e Cavallaria, casou +com D. Leonor Vaz Castello Branco, filha de João Vaz Cardoso, aio do conde +de Barcellos. + +O filho segundo, Ruy, foi para Castella, como veador da princeza D. Joanna, +filha de D. Duarte, e mulher de Henrique IV. + +Esta geração de fidalgos continuou honrada e rica até á duodecima neta de +Duarte de Almeida, a snr.^a D. Eugenia de Almeida de Aguilar Monroy da Gama +Mello Azambuja e Menezes que em 15 de setembro de 1834 casou com o snr. +Fernando Telles da Silva, marquez de Penalva, de quem teve dous filhos, +Luiz, que, nascendo em 1837, morreu ha poucos annos, e D. Henriqueta de +Almeida, que nasceu em 1838, e vive solteira. Do snr. Luiz Telles, que foi +casado com a snr.^a D. Maria Francisca Brandão, sua prima, existe uma +filha, que é já senhora. + +Quanto á pobreza _e miseria em que morreu_ Duarte de Almeida, o snr. +Pinheiro Chagas foi illudido por Duarte Nunes e Faria e Sousa, que na +verdade o authorisaram a deplorar tão sentidamente a sorte do alferes de +Affonso V. + +Duarte de Almeida succedera a D. Duarte de Menezes no posto nobilissimo de +alferes-mór da bandeira. Militando nas guerras de Africa, salvou o pendão +real das presas da mourisma, quando Affonso V deu batalha na serra de +Benacofuf. (Faria e Sousa, _Africa_, cap. 6, §. 7.º) + +E tanto o rei não foi ingrato aos serviços do seu valente alferes, que, +estando em Samora, em 1475, no anno anterior ao da batalha de Toro, ainda +antes do heroico feito, lhe fez mercê pelos seus grandes serviços, para +elle e seus filhos, de um reguengo no concelho de Lafões, cuja carta de +mercê póde lêr-se na Torre do Tombo no _Livro que serviu na chancellaria de +D. Affonso V_, folha 17, e começa: _A quantos esta minha carta virem faço +saber que pelos muitos serviços que Duarte de Almeida, fidalgo de minha +casa, e meu alferes-mór me tem feito assim n'estes reinos de Castella como +de Portugal e em Africa, onde sempre me serviu muito bem e lealmente_, etc. + +O rei, que tanto o apreciára e galardoára, sabido é que foi para França +solicitar debalde a alliança do velhaco de Luiz XI. Voltou a Portugal, onde +viveu ainda cinco tristissimos annos, forçado a divorciar-se da esposa, +desestimado do filho, e desvenerado dos vassallos. Não era, pois, tempo +proprio aquelle para premiar heroismos batalha, cuja perda dissimulada em +victoria, enlutára o brio e o coração de Affonso V. + +O decepado, por sua parte, lá tragava o fel dos seus derradeiros annos na +abastança dos bens que, certo, lhe não mitigavam as angustias da mutilação; +mas em pobreza e miseria não consintamos sequer á poesia que nol-o figure. + +Se D. João II não augmentou em coutos, honras e senhorios a casa do alferes +de seu pai, não o arguamos por isso, sem haver a certeza de que Duarte de +Almeida sobrevivesse ao Africano. Na batalha do Toro já devia ir no inverno +da vida quem vinte annos antes desfraldára o pendão real em Alcacer-Ceguer, +e quem já tinha um filho, que acompanhára como veador a Castella a mãi da +princeza D. Joanna por amor de quem andava accesa a guerra. Afóra isso, é +de crêr que Duarte de Almeida assistisse ao desastre de Alfarrobeira em +1449, e não fosse dos menos carniceiros na mortandade do duque de Coimbra e +dos seus leaes amigos. Ora, transluz da historia que D. João II odiára +todos os fidalgos que, de parçaria com o duque de Bragança, malsinaram de +traidor o infante D. Pedro. Ajuda estas suspeitas ser o primogenito de +Duarte de Almeida casado com a filha de um que fôra aio do conde da +Barcellos, antes de ser duque de Bragança. + +Já, porém, o successor de D. João II galardoou o neto do decepado, +dando-lhe o senhorio da villa do Banho, a provedoria das caldas de Lafões, +e lhe confirmou o privilegio e couto da quinta da Cavallaria. + +Em remate de tão derramadas provas, quero deixar bem assente que Duarte de +Almeida, o meu tão chorado heroe do sentimentalismo da infancia, não morreu +pobre, nem acabou na miseria do homem que, á mingua de mãos, não póde +trabalhar. + +Por fim, não sahirei do paço senhorial da Cavallaria sem consolar o leitor +pio e mais lido em cousas do céo que em nobiliarios, que n'aquella casa +nasceu o bemaventurado S. frei Gil, chamado de Santarem, e que Almeida +Garrett ajoujou com o dr. Fausto no poema _D. Branca_ e nas _Viagens_. + +Ainda hoje, n'aquella casa, perdura uma capella edificada na alcova onde +nasceu o sabio feiticeiro e pactuario do demonio. Observe-se que o conde D. +Pedro, no _Livro das Linhagens_, tit. 25, pag. 151, diz que Gil fôra +assassinado por Pedro Soares Galinato; mas o chronista-mór João Baptista +Lavanha desfaz o erro,--o que eu muito estimo para que se não desluza a +substancia da bella prosa de fr. Luiz de Sousa, historiador do santo. + + [5] _Historia de Portugal_, tom. III, pag. 28. + + [6] O codice está integralmente impresso nas _Memorias resuscitadas da + antiga Guimarães_, pelo padre Torquato Peixoto de Azevedo, em 1692, + pag. 444-476. Sirvo-me d'esta copia, corrigindo os erros do traslado de + Brandão. + + + + +CARIDADE BARATA E ELEGANTE + + +O advogado Sampaio Efrin morreu, ha cinco annos, em Lisboa, e deixou dous +filhos illegitimos, que já não tinham mãi. + +Amára-os extremadamente. As duas crianças excruciaram-lhe a agonia; mas +expirára com a certeza de que seus filhos, e herdeiros de parte de seus +haveres, não balbuciariam, em horas de fome, o nome de seu pai. + +Mas a justiça desherdou os orphãos, e deu o espolio do advogado á sua +viuva. + +O menino alimentou-se cinco annos da caridade de uma criada de seu pai. + +E, quando tinha seis, appareceu livido e pobremente vestido a pedir esmola +no tribunal da Boa-Hora--alli, onde seu pai triumphára nas lides da +eloquencia. + +A bemfeitora que, até áquelle dia lhe repartira do seu pão, quando sentia a +mão da morte sobre o seio, disse á criança que fosse ao tribunal e +mendigasse, lembrando-se que alli concorriam pessoas que tinham conhecido +seu pai. + +O snr. João Bernardino da Silva Borges viu o menino andrajoso, a tiritar, +com o espasmo da fome nos olhos--aquelle olhar espavorido da miseria--que +parece sagrada nas criancinhas--aquelle olhar torvo, expressão de assombro +do anjo a tremer sobre o cairel d'este inferno do mundo. + +O menino tinha uma carta na mão. O snr. Silva Borges leu a carta. Era a +supplica da moribunda a favor do desvalido filho de seu amo. + +E conduziu a criança, onde lhe dessem a esmola do jantar e da cama. + +Ao outro dia, o _Jornal da Noite_, publicando uma carta commovente do +protector do orphão, acompanhava a invocação á caridade de sentidas e +pungentes palavras. + +E, no dia immediato, o mesmo jornal exultava noticiando que o orphãosinho +estava amparado, no regaço da caridade abundante, nos braços de alguem que +ouvira o echo das divinas palavras de Jesus: «Deixai que as criancinhas se +aconcheguem de mim.» + +Volvidas duas semanas, á volta do menino, a caridade faz-se representar por +nove senhoras illustres, quanto cabe inferir dos appellidos. + +Nove anjos, as nove musas da inspiração santissima, nove corações a +desbordar de generosidade, dezoito mãos cheias de caricias e do superfluo +da sua riqueza, para afagar, alimentar e educar um menino a quem esta +setima primavera bafeja os primeiros risos de sua enfezadinha puericia. É +muito! + +Mas estas nove damas assumem cada qual sua nomenclatura: + +Uma, chama-se _presidenta_; + +Outra, _vice-presidenta_; + +Quatro, são _vogaes_; + +Uma, é _thesoureira_; + +E as outras, são _secretarias_. + +Mas que tem isto que vêr com o orphão? O congresso das senhoras, assim +qualificadas em categorias de banco, de junta de parochia, de empresa +aurificia, de companhia das aguas, organisou-se d'este feitio para dar uma +pensão de 300 reis diarios--o bastante--ao pequenino no collegio? + +Quer-me parecer dispensavel tamanho funccionalismo em operações tão +singelas! São nove senhoras abastadas que se fintam, quotisando-se cada uma +em 33 reis por dia, ou dez tostões por mez. É, na verdade, barato o +salvar-se um menino e fazel-o homem! Seis ou oito annos do pão e estudo +d'aquella creatura--que ss. exc.^as hão de enfiar com santa vaidade diante +da sepultura de seu pai--não póde custar a cada uma tanto como dous dos +seus vestidos medianamente guarnecidos. + +Então, qual vem a ser a missão das exc.^mas presidenta, vice, vogaes, +thesoureira, secretarias? + +Leitor, que estás a impar de ternura, e tens o rosto banhado de lagrimas de +consolação, saberás que as referidas nove senhoras--que tu já conheces dos +lautos bailes, e das _toilettes_ esplendidas--congregaram-se agora _para +promover um beneficio ao orphão no theatro de D. Maria_. + +Ahi está o que é. Ainda agora é que estas dadivosas senhoras vão sondar a +magnanimidade publica; vão dar uns toques de elegante apparato á caridade, +e ao mesmo tempo convidar-vos a pôr hombros áquella ponderosa empresa de +agasalhar uma criancinha que se alimenta com um pouco de amor e algumas +migalhas sacudidas das cêas opiparas. A caridade de Lisboa! A caridade do +espalhafato! Aqui, no Porto, o orphão, a esta hora, estaria agasalhado, sem +que a imprensa conhecesse o nome do bemfeitor. + +E a imprensa de Lisboa exalça encarecidamente a exuberante bizarria das +senhoras que promovem nos corações alheios o sentimento da esmola. Peço +licença para tambem me accender em admiração de tamanho arrojo, e +perguntar, por esta occasião, aos jornalistas se, no seu cadoz de phrases, +ficou alguma com que se louve aquella criada pobresinha que sustentou o +menino cinco annos, e o largou do seu seio quando o coração se lhe afogou +nas ultimas lagrimas. + + + + +PROFUNDA REFORMA NOS COSTUMES DA VIA-FERREA PORTUGUEZA + + +Quando Portugal emergia das trevas da meia-idade, em 1873, e a via-ferrea +de Portugal era roupa de francezes, o scintillante escriptor Ramalho +Ortigão enviou aos snrs. _François et Ladame_ (cumpre não aceitar a +traducção de Bordalo Pinheiro--_Francisco e a mulher_) uns urbanos +queixumes ácerca da bruta ladroeira que os funccionarios da via-ferrea +perpretaram em parte das batatas de um sacco enviado desde o Minho ao +percuciente critico. Ortigão, cujo agudo espirito argúe abstinencia de +alimentação farinacea, conclue a sua epistola, modêlo de graça +portugueza--que é a graça de todo o mundo--offerecendo aos directores da +via-ferrea todas as futuras e porvindouras batatas, visto que ss. s.^as, +cedendo-lhe algumas, soffriam tal qual desfalque. + +N'esse tempo, estava eu em Lisboa a vasquejar nos demorados paroxismos da +anemia, resultante de dyspepsia, complicada com hepatite, e prodhromos de +encephalite, e symptomas de curvatura de espinha, e esgotamento de fluido +nervoso, afóra a espinhela cahida. + +Escrevi, n'esta concurrencia pathologica, a um amigo meu, residente no +Porto, que me comprasse alli doze garrafas do mais antigo e secco vinho que +se lhe deparasse em garrafeira particular. Quando conclui a carta, cuidei +que expirava, por que tinha consumido em quatro idéas sem estylo o oxygeneo +e acido carbonico de que podia dispôr. + +D'ahi a dias, o meu amigo enviou-me o titulo de recepção de doze garrafas +de vinho, compradas por 12 libras, e enviadas pela «grande velocidade», +cuidando elle que os ladrões não as apanhariam na carreira. + +Como se as doze garrafas se me figurassem outras tantas botelhas de Leyde a +descarregarem electricidade sobre os meus grandes-sympathicos e regiões +limitrophes, saltei da cama, e fui receber o meu vinho--a minha salvação--a +Santa Apolonia. + +Recolhido o caixote á sege, e baixados os stores, debrucei as regiões do +meu olfacto sobre as fisgas da tampa do caixão, na esperança de aspirar +alguns atomos de tanino. + +Cheirou-me a azeite. Entendi que havia perversão na minha membrana +pituitaria, uma narizite, unica molestia que me faltava. + +Assim que entrei em casa e o caixão se abriu, não sei bem o que vi, nem +como perdi a consciencia dos dous _eus_. Sei que, volvidas horas, +recobrando o espirito, e querendo recordar as causas de tão comprido +lethargo, perguntei aos circumstantes, distillados em lagrimas, se eu tinha +lido algum livro de Theophilo. + +--Não, infeliz!--respondeu-me voz sincera--não foi tamanha a desgraça que +te fulminou; o que tu viste foi seis garrafas do teu vinho, que te custaram +seis libras, substituidas por seis garrafas vasias que tiveram azeite. + +A minha primeira idéa foi gritar á d'el-rei; lembrando-me, porém, que o rei +não governa, quiz chamar o cabo da rua; depois, passou-me pelo espirito +recorrer á camara «baixa» e ao patriarcha. E, por fim, chorei copiosamente, +e bebi dous tragos de uma das seis; e logo, á semelhança das nações +oppressas, que se levantam como um só homem, tambem eu me levantei sósinho; +e, clamando um rugido grande, pedi á Providencia das raças latinas que nos +désse um administrador dos caminhos de ferro, nascido e baptisado n'esta +terra dos Affonsos e dos Joões. + +Fui ouvido, e as cousas melhoraram consideravelmente. + +N'este anno de 1874, 2.º da Emancipação, tenho recebido reiteradas provas +da melindrosa cortezia que assiste ao funccionalismo do transporte da +via-ferrea portugueza. Se em 1871 não chorei mediante os prelos, hoje +lamento não ser um cytharista bastante lyrico para dignamente arpejar um +fado expresso do citado funccionalismo. + +Direi da cortezia com que alli são tratadas as minhas cousas. Tendo eu +recebido em Lisboa seis garrafões de aguardente das nossas colonias, +lacrados e cheios, enviei-os d'alli para o Porto cheios e lacrados. Ao cabo +de onze dias de jornada, os garrafões chegaram a minha casa... inteirinhos! +Se isto não é probidade, a virtude era aquillo que dizia Catão. Notei, +porém, uma insignificante cousa: os garrafões chegaram deslacrados, e +levavam pouco menos de metade do liquido; mas inteiros, perfeitos, sem +rachadella, nem esquirola de menos. + +Um d'estes dias, em dous caixões de vinho da Madeira, que me eram enviados +de Lisboa,--e foram retidos para despacho nas Devezas, posto que já em +Lisboa houvessem pago direitos--observei ainda mais refinada cortezia; +porque, apparecendo algumas garrafas quebradas, teve aquella honrada e +limpa gente o cuidado de lhes trasfegar o vinho a fim de que as outras se +não molhassem--de modo que chegaram enxutas. + +E fez mais: teve outro sim a bondade de tirar algumas garrafas para que as +outras chegassem mais desafogadas da pressão das visinhas! + +Eu não conheço maneira mais subtil de obrigar a gente a um reconhecimento +eterno, e a... acautelar o relogio. + + + + +FORMOSA E INFELIZ + + + A dita e a formosura, + Dizem patranhas antigas, + Que pelejaram um dia, + Sendo d'antes muito amigas. + + Muitos hão que é phantasia; + Eu que vi tempos e annos, + Nenhuma cousa duvido + Como ella é azo de damnos. + + BERNARDIM RIBEIRO. + + +São verdadeiras as trovas do poeta das _Saudades_. + +Aquella Maria da Penha que o leitor viu, ainda agora, carpida n'um soneto, +foi muito incensada por formosa antes da sua queda. Uns poetas a +embriagaram com o perfume da lisonja, em quanto ella se manteve honesta; +outros lhe depozeram alguns bagos de assafetida na ambula funeraria, quando +os seus creditos eram mortos e responsados no catafalco que a sociedade +levanta ás suas mesmas victimas. + +E já que eu trasladei o soneto, como epitaphio do seu tumulo no convento +onde se finou, trasladarei tambem uns versos que lhe deram alor e azas á +vaidade que a perdeu. + +Suspeito que o poeta d'estes cantares não fosse o fidalgo que a levou +arrebatada de entre um thalamo e um berço. Os poetas, por via de regra, +costumam enflorar os holocaustos sacrificados nas aras da prosa. Assim o +requer o equilibrio do cosmos. Á poesia--a lyra que insinua no coração da +mulher as phantasias com que mais se alinda e encarece; á prosa--as +delicias d'essas bellas cousas, o dominio das aves do paraiso, que os +poetas farejam, á laia de nebris que pairam a denuncial-as ao caçador +sagaz. + +A meu vêr, em quanto o marquez de Gouvêa mandava ajaezar os cavallos para a +funesta fuga, um dos muitos idolatras da formosissima Maria motejava uma +quadra e derivava d'ella a glosa tão presada n'aquelles tempos: + + + + A D. MARIA DA PENHA DE FRANÇA + + MOTE + + Abre-te, _penha_ constante, + serás minha sepultura; + e, se os meus ais te não movem, + digo-te, penha, que és dura, + + GLOSA + + _Penha_, já sei que és tão dura, + porque dous soes te geraram; + seus raios te despojaram + das reliquias da ternura: + Porém, se a corrente pura + de meus olhos incessante + abrandar um diamante; + a meu pranto sucessivo, + quebra-te, marmore vivo, + abre-te, penha constante. + + Até nas mais duras _penhas_, + lavrador o tempo sendo, + as aguas, que vão correndo, + fazem regos, abrem brenhas. + Não receies tu que venhas + a perder por menos dura; + pois meu pranto o que procura + é desfazer-te em piedade; + e, se abrir concavidade, + serás minha sepultura. + + Lagrimas não te enternecem + antes te tornam mais dura; + roubou-lhe o preço a ventura + ou por minhas desmerecem. + Meus ais sentidos parecem + golpes, que pedras commovem; + mas como faiscas chovem + de ti, que farei, oh _penha_, + se o teu rigor mais se empenha + e se os meus ais te não movem? + + Teu nome a dizer se empenha + quem tu és por semelhança; + pois no garbo és toda _frança_, + na dureza és toda _penha_: + _Penha_ em que pienha tenha + essa rara formosura; + mas, se estatua ser procura + a meu suspiro incessante, + mais que o mais duro diamante, + digo-te, _penha_, que és dura. + + + + +ANTONIO SERRÃO DE CASTRO + + +As indagações de Diogo Barbosa Machado, ácerca do poeta Serrão, reduzem-se +a datar-lhe o nascimento. + +Á falta de outros subsidios, bastariam as poesias do travesso sujeito a +esclarecer-lhe a vida mysteriosa aos mais atilados investigadores. O maior +numero d'ellas está inedito. E o seu mais notavel poema, em tercetos, que +perfazem 2:090 versos octosyllabos, chama-se _Os ratos da inquisição_. + +No palacio da inquisição passou elle alguns annos de sua vida, que de certo +não foram os melhores. + +Pelos modos, era hebreu dos quatro costados; mas não adorava o bezerro, nem +se abstinha dos paios do Alemtejo. Em quanto o deixaram, viveu e medrou á +lei da natureza. Seguiu fervorosamente a religião do prazer, repartindo +alma e versos por judias, christãs e mouras, consoante lhe sahiam a talho +de fouce. Tanto afinava a lyra para cantar fidalgas como regateiras. Entre +estas, houve uma vendilhona de maçãs camoezas que não foi das menos amadas +e menos esquivas. Se os poetas modernos querem ajuizar do lyrismo plebeu +d'este seu bisavô, aqui teem uma das cançonetas dedicadas á saloia das +camoezas, e cantada pelos cytharedos d'aquelle tempo: + + Para a feira vai Luiza + Co seu balaio á cabeça + Todo enramado de louro + E cheio de camoezas. + + Leva saia de jilezia, + Tambem jubão branco leva, + Que serve o jubão de branco[7] + D'onde Amor atira as flechas. + + Sobre os dedos, pendurados + Leva seus punhos de renda, + Tão valentona caminha + Que treme o bairro de vêl-a. + + Lá no meio do Rocio + Levanta a voz mui serena + Como se aprendera solfa: + «Eu já tenho camoezas.» + + A voz tão divina e grave, + A voz tão de prata e bella, + Os galantes se alvorotam + E ferve a bulha na feira. + + Deixam todos as boninas + Só por ver esta açucena; + Em um momento, cercada + Se viu esta fortaleza. + + Os requebros que lhe dizem + São balas de feras peças: + Mas no muro de seu peito + Acham grande resistencia. + + Uns apreçavam a fruta, + Outros tiram da algibeira + Ás mancheias os tostões, + Aos alqueires as moedas. + + Mas Luiza, mui de espaço, + Levantando a voz tão bella, + De quando em quando repete: + «Eu já tenho camoezas.» + +Hoje em dia, por acerto haverá ahi poetastro a quem pareçam, sequer +toleraveis, estas linhas toadas, sem faisca de ideal, sem realismo, sem as +satanisações modernas; no entanto, o coração entende-se melhor n'aquelles +poetas que, em vez de se evolarem á poeira luminosa da via-lactea, andavam +alli pelo Rocio amoriscados de fruteiras de camoezas. + +Por causa d'estes amores innocentes e frescos, não foi Antonio Serrão de +Castro disputar aos ratos da inquisição a magra pitança da sua alcofa. O +leitor alguma vez ha de lêr os queixumes do hebreu, repassados de tanta +ironia, que a gente se admira que os graves monges de S. Domingos lhe não +acendrassem o engenho no fogo. + +Quando o poema satyrico se escoou das grades do carcere para a assembléa +dos catholicos, um poeta christão, no intuito de apressar o processo do +judeu, divulgou as seguintes decimas: + + Judeu de mau proceder, + Que, se em teus versos discorro, + Logo pareces cachorro, + No ladrar e no morder. + Ainda espero vêr-te arder, + Pois com tanta sem-razão + Murmuras da inquisição; + Porém, é força em teu erro, + Se te tratam como perro; + Que te vingues como cão. + + Dos ratos, d'esta maneira, + Te queixas e de seus tratos; + É mau queixar-te dos ratos, + Estando na ratoeira. + Tua allusão sorrateira + Saber o engenho procura, + E a rhetorica se apura + N'esta allusão que formaste, + Pois d'esta figura usaste, + Antes de fazer figura. + + Nescio, depois de judeu, + Quando o sambenito mamas, + Triste portuguez te chamas, + Sendo o mais astuto hebreu! + Quem te vira posto em breu + Ou partido de uma bala! + Ninguem comtigo se iguala, + Pois fazes, quando precito, + Sendo infame o sambenito, + D'esse sambenito gala. + + Se viveste descortez, + Com repetida torpeza, + Mais á lei da natureza + Do que na lei de Moysés, + Queixa-te só d'esta vez + De ti, mas não de outro trato; + Que eu sei que nunca do rato + Te queixarás, asneirão, + Se assim como foste cão, + Poderás tornar-te gato. + +Os ferventes desejos d'este catholico, assim rimados, chegaram ao ergastulo +do cantor dos ratos, e vibraram-lhe os nervos da espinha dorsal. Não lhe +pareceu caso novo e original queimarem-no. Embridou, por tanto, a musa da +galhofa, e cahiu em si. Começou de escrever poesias orthodoxas ao +nascimento do Menino-Deus, aos santos e santas mais em voga, ungindo tudo +de lagrimas de contrição que era uma piedade lêr-lhe os sonetos, os quaes, +ainda agora, li bastantemente commovido. O certo é que o vaticinio do bardo +christão foi desmentido pelo hebreu que sahiu absolto, e por ahi andou por +Lisboa até aos setenta e quatro annos, rindo de tudo com resalva das +conveniencias, e vivendo com as largas, que lhe davam os seus admiradores, +e acamaradado com os primeiros fidalgos. Nasceu em 1610 e morreu em 1684. + + [7] Alvo. + + + +FIM DO 4.º NUMERO + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of Noites de insomnia, offerecidas a quem +não póde dormir. Nº4, by Camilo Castelo Branco + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK NOITES DE INSOMNIA, NO 4 *** + +***** This file should be named 25114-8.txt or 25114-8.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/2/5/1/1/25114/ + +Produced by Pedro Saborano + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. Special rules, +set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to +copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to +protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact +information can be found at the Foundation's web site and official +page at https://pglaf.org + +For additional contact information: + Dr. Gregory B. Newby + Chief Executive and Director + gbnewby@pglaf.org + + +Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation + +Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide +spread public support and donations to carry out its mission of +increasing the number of public domain and licensed works that can be +freely distributed in machine readable form accessible by the widest +array of equipment including outdated equipment. Many small donations +($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt +status with the IRS. + +The Foundation is committed to complying with the laws regulating +charities and charitable donations in all 50 states of the United +States. 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Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. diff --git a/25114-8.zip b/25114-8.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..b06d95d --- /dev/null +++ b/25114-8.zip diff --git a/25114-h.zip b/25114-h.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..75bbaab --- /dev/null +++ b/25114-h.zip diff --git a/25114-h/25114-h.htm b/25114-h/25114-h.htm new file mode 100644 index 0000000..6c599be --- /dev/null +++ b/25114-h/25114-h.htm @@ -0,0 +1,3599 @@ +<!DOCTYPE HTML PUBLIC "-//W3C//DTD HTML 4.01 Transitional//EN" "http://www.w3.org/TR/html4/loose.dtd"> +<html> + +<head> + <title>Noites de Insomnia, offerecidas a quem não póde dormir, nº 4</title> + <meta name="author" content="Camilo Castelo Branco"> + <meta http-equiv="Content-Type" content="text/html; charset=iso-8859-1"> + <meta name="KEYWORDS" content=""> + <style type="text/css"> + @media print { + .pagenum { display: none;} + } + @media handheld { + .pagenum { display: none;} + } + body {width: 520px; margin-left: 90px; text-align: justify;} + .pagenum {font-size: 0.6em; font-style: normal; color: #666666; position:absolute; left: 630px;} + .capa {text-align: center; border: solid 1px #000000;} + hr { + border: none; + border-bottom: solid 2px #000000; + text-align: center; + } + a {color: #000000; text-decoration: none;} + sup {font-size: 0.8em; font-style: normal;} + h2, h3, h4 {text-align: center;} + h1 {text-align: center; margin-top: 2em; margin-bottom: 2em;} + .small-caps { + font-variant: small-caps; + } + .direita { + text-align: right; + } + .centrado { + text-align: center; + } + .poesia { + margin-left: 30%; + font-size: 80%; + text-align: left; + font-style: italic; + } + .citacao { + margin-left: 40%; + margin-right: 5%; + font-size: 0.8em; + text-align: left; + } + + .ni{ + font-style: normal; + } + .rodape { + font-size: 0.8em; + margin: 2em; + } + #corpo p{ + line-height: 1.5em; + } + p { + text-indent: 1em; + } + .dotted {border: 0; border-bottom: dotted 2px #000000;} + #sumario { + width: 75%; + margin: auto; + border-left: solid 1px #000000; + border-top: solid 1px #000000; + border-right: solid 3px #000000; + border-bottom: solid 3px #000000; + padding: 1em; + } + </style> +</head> +<body> + + +<pre> + +The Project Gutenberg EBook of Noites de insomnia, offerecidas a quem não +póde dormir. Nº4, by Camilo Castelo Branco + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº4 + +Author: Camilo Castelo Branco + +Release Date: April 21, 2008 [EBook #25114] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK NOITES DE INSOMNIA, NO 4 *** + + + + +Produced by Pedro Saborano + + + + + +</pre> + +<span class='pagenum'>[1]</span> +<div class="capa"> +<p style="font-size: 1.2em;">BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA</p> +<hr style="width: 6em;"> +<p style="font-size: 2em;">NOITES DE INSOMNIA</p> + +<p style="font-size: 0.7em;">OFFERECIDAS</p> + +<p>A QUEM NÃO PÓDE DORMIR</p> + +<p style="font-size: 0.7em;">POR</p> + +<p style="font-size: 1.2em;">Camillo Castello Branco</p> +<hr style="width: 3em;"> +<p style="font-size: 0.7em;">PUBLICAÇÃO MENSAL</p> +<br> +<hr style="width: 3em;"> +<p style="font-size: 0.9em;">N.º 4--ABRIL</p> +<hr style="width: 3em;"> + +<table width="100%"> +<tr> +<th colspan=2> +LIVRARIA INTERNACIONAL<br> +<span style="font-size: 0.7em;">DE</span> +</th> +</tr> +<tr> +<td style="border-right: solid 1px #000000;"> +<span style="font-size: 0.9em;"> +ERNESTO CHARDRON +<br> +<em>96, Largo dos Clerigos, 98</em><br> +<strong>PORTO</strong> +</span> +</td> +<td> +<span style="font-size: 0.9em;">EUGENIO CHARDRON<br> +<em>4, Largo de S. Francisco, 4</em><br> +<strong>BRAGA</strong> +</span> +</td> +</tr> +</table> +<hr style="width: 2em;"> +<p style="font-size: 0.9em;">1874</p> +</div> +<span class='pagenum'>[2]</span> + +<div id="impressor" style="text-align: center;"> +<br> +<br> +<br> +<br> +<hr style="width: 8em;"> +<p>PORTO</p> + +<p style="font-size: 0.9em;">TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA</p> + +<p style="font-size: 0.8em;">68--Rua da Cancella Velha--62</p> +<hr style="width: 2em;"> +<p style="font-size: 0.9em;">1874</p> +</div> +<span class='pagenum'>[3]</span> + +<div id="sumario"> +<p style="text-align: center; font-size: 1.5em;"> +BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA +</p> +<hr style="width: 4em;"> +<p style="text-align: center; font-size: 2em;"> +NOITES DE INSOMNIA +</p> +<hr style="width: 4em;"> +<p style="text-align: center; font-size: 1.5em;"> +<strong>SUMMARIO</strong> +</p> +<p> +<em><a href="#cap01">O cofre do capitão-mór</a> +-- <a href="#cap02">O jogador</a> +-- <a href="#cap03">Inedito do poeta Fr. Bernardo de Brito</a> +-- <a href="#cap04">Lisboa</a> +-- <a href="#cap05">Litteratura brazileira</a> +-- <a href="#cap06"><em>Á «Actualidade»</em></a> +-- <a href="#cap07">A ex.<sup>ma</sup> madrasta d'el-rei D. Luiz 1.º calumniada</a> +-- <a href="#cap08">Os salões, pelo exc.<sup>mo</sup> snr. visconde de Ouguella</a> +-- <a href="#cap09">O decepado</a> +-- <a href="#cap10">Caridade barata e elegante</a> +-- <a href="#cap11">Profunda reforma nos costumes da via-ferrea portugueza</a> +-- <a href="#cap12">Formosa e infeliz</a> +-- <a href="#cap13">Antonio Serrão de Castro</a></em> +</p> +</div> +<span class='pagenum'>[5]</span> +<div id="corpo"> +<hr> + + + +<a name="cap01"></a> +<h1>O COFRE DO CAPITÃO-MÓR</h1> + + +<p>O homem, concluida a guerra do Paraguay, +liquidou quinhentos contos, e retirou-se com +esposa e filha para Mondim de Basto, sua patria.</p> + +<p>Passou, acaso, um dia por perto das ruinas +de um casarão, reparou na pedra de armas que +encimava um vasto portal de quinta, e perguntou +de quem eram aquelles pardieiros.</p> + +<p>O abbade, a quem a pergunta era feita, respondeu:</p> + +<p>--São da fazenda nacional, que se está cobrando, +ha trinta e dous annos, de uma divida +antiga de impostos e respectivos juros e custas.</p> + +<p>--E, depois que a fazenda nacional estiver +embolsada, de quem é isto?</p> + +<p>--Veremos a qual dos credores a lei dá a primazia--tornou +o abbade.</p> +<span class='pagenum'>[6]</span> + +<p>--Acho que os donos d'estes pardieiros eram +fidalgos, porque tem armas reaes á porta--volveu +o brazileiro pouco versado em heraldica.</p> + +<p>--Estas armas não são as reaes--explicou o +padre--é o brazão de Pachecos e Andrades, +muito illustres senhores d'este paço, que, em bons +tempos, se chamou a honra de Real de Oleiros.</p> + +<p>--Cahiram em pobreza?</p> + +<p>--Sim, senhor; mas pobreza que tem uma +historia interessante. Meu avô conheceu esta familia +no galarim. Contava elle que o capitão-mór +Pedro Pacheco estava em Lisboa, quando o marquez +de Tavora, com os seus parentes, tentaram +matar D. José, que era o amante da marqueza +nova. Havia marqueza velha e nova, como sabe...</p> + +<p>--A fallar a verdade, não sei isso muito bem--atalhou +ingenuamente o snr. José Maria Guimarães--Então +como foi lá essa pouca vergonha?</p> + +<p>--Contos largos. A marqueza velha foi degolada, +por não aceitar a prostituição da nora; a +marqueza nova foi para um mosteiro bem regalado, +em quanto o marido ia para a masmorra, e +da masmorra para o cadafalso. Contos largos, +amigo e snr. Guimarães. Vamos cá ao nosso caso. +O capitão-mór Pedro Pacheco era muito de casa +do duque de Aveiro; e, como eu disse, estava em +<span class='pagenum'>[7]</span> +Lisboa, quando o duque foi preso na quinta de +Azeitão. Assim que o soube, fugiu, e não fez mal; +porque foi procurado lá e aqui. Logo que chegou +a esta casa, que era então um paço feudal, deu +ordem á mulher que se preparasse e mais dous +filhos menores para sahirem do reino. E, em +quanto enfardelavam as bagagens, o capitão-mór +mandou chamar meu avô, lavrador abastado, alferes +de ordenanças, e muito seu amigo, para lhe +entregar um cofre de pau preto com braçadeiras +de bronze, cheio de peças. O cofre era tão leve +ou tão pesado que meu avô, querendo erguel-o +pelas argolas, gemeu. Lá por noite fora, pegaram +os dous no cofre, transportaram-o á casa que +ainda é a minha, e metteram-o n'um falso que ficava +escondido pelas costas do leito de meu avô. +Disse então o fidalgo ao depositario da sua riqueza +que n'aquelle caixote estavam trezentos mil e +tantos cruzados em dobrões e peças de ouro, e +outras moedas muito antigas. Disse mais que a +sua casa ficava exposta a buscas de quadrilheiros +e de tropa, que era o mesmo que deixal-a franca +aos assaltos dos ladrões. Por tanto, confiava de +meu avô o seu dinheiro, sentindo não ter mais +valiosas cousas que confiar á sua honra.</p> + +<p>--Trezentos mil cruzados!--murmurou o +<span class='pagenum'>[8]</span> +snr. Guimarães, esbugalhando os olhos--era bem +bom d'elle! E depois?</p> + +<p>--O fidalgo foi para Hespanha, e para Inglaterra, +onde tinha um seu parente embaixador, e +por lá esteve alguns annos. N'este comenos, meu +avô pegou de adoentar-se de molestia ethica, e +escreveu ao capitão-mór, pintando-lhe o seu estado, +e pedindo-lhe que viesse ou mandasse tomar +conta do cofre. O fidalgo appareceu aqui uma +noite com o maior resguardo, e metteu-se no seu +palacio, confiando-se de um criado sómente a +quem deixára a feitorisação das terras. De madrugada, +mandou chamar meu avô, passaram +juntos o dia, e de noite trouxeram ambos o cofre. +Contava meu pai,--parece que o estou ouvindo,--que +meu avô muitas vezes lhe dissera que +o fidalgo não declarára onde tencionava esconder +o thesouro; mas positivamente lhe dissera que o +não levava para Inglaterra, já por temer ladrões, +já porque não precisava gastar mais que os rendimentos +da sua grande casa.</p> + +<p>Meu avô morreu d'ahi a mezes; e o capitão-mór +voltou para a patria, no anno de 1777, quando +D. José morreu, e o marquez de Pombal foi +desterrado.</p> + +<p>--Essa não sabia eu!--atalhou com civico +enleio o snr. Guimarães.</p> +<span class='pagenum'>[9]</span> + +<p>--Que é que v. s.<sup>a</sup> não sabia?</p> + +<p>--Que o grande marquez foi desterrado! +Quem foram os marotos que...</p> + +<p>--São contos largos, snr. Guimarães. Vinha +eu contando que o capitão-mór voltou, já viuvo, +com dous filhos barbados, muito extravagantes, +sem religião de casta nenhuma, criados entre hereges, +destemidos, e levadinhos de todos os diabos. +Ainda não ha muitos annos que morreram dous +velhos do seu tempo que me contaram as malfeitorias +que elles praticavam. Batiam a matar em todas +as ordenanças que por ordem superior lhe tinham +entrado em casa á procura do pai. Deshonestavam +todas as cachopas d'estas tres leguas em roda. +Em fim, amarguraram a velhice do pai, que +era um santo homem, a ponto de lhe roubarem +as pratas porque elle lhes não dava quanto dinheiro +pediam. Finalmente, o velho morreu de +repente em 1782, segundo reza o epitaphio que +está na igreja de Refojos, convento que elle e seus +ascendentes haviam beneficiado...</p> + +<p>--E os trezentos mil cruzados?--interrompeu +o brazileiro.</p> + +<p>--Lá vou já. Assim que o pai se finou, os dous +filhos abriram todas as gavetas, levantaram taboas, +desladrilharam as lojas, escavaram debaixo +dos toneis, escalavraram os forros, e nada toparam. +<span class='pagenum'>[10]</span> +Revolveram todos os papeis, a vêr se encontravam +alguma indicação do dinheiro; e, com +effeito, em um papelucho mettido n'uma carteira +vermelha, acharam isto, que meu pai leu tambem: +<em>Póde ser que a pobreza vos não corrija; mas +a riqueza de certo vos faria tigres. Eu não morrerei +com o remorso de vos deixar nas mãos o peor +instrumento dos perversos, que é o ouro não adquirido +com o proprio suor.</em> Tomaram-se de raiva, +e romperam direitos a casa de meu pai, perguntando-lhe +pelo dinheiro do seu.</p> + +<p>--Não ha duvida--respondeu meu pai--que +n'esta casa e n'aquelle falso esteve um cofre do +snr. capitão-mór; mas, alguns mezes antes de dar +a alma a Deus, meu pai, que era honrado, entregou +o cofre a quem lh'o dera a guardar.</p> + +<p>--E depois?--bradaram elles.</p> + +<p>--Depois, nada mais sei, senão isto que seu +paisinho me repetiu muitas vezes.</p> + +<p>--Nós havemos de achar os ladrões.</p> + +<p>--Pois é procural-os--disse meu pai.</p> + +<p>Volveram a casa, e amarraram de pés e mãos +o velho feitor do capitão-mór, determinados a não +o desatarem sem elle denunciar a paragem do thesouro; +porque o velho declarára que ninguem, +senão elle, soubera da vinda do capitão-mór á patria, +em quanto vegetou el-rei D. José, e o marquez +<span class='pagenum'>[11]</span> +de Pombal reinou. O feitor deixava-se martyrisar +e morrer, ou porque realmente nada sabia, +ou porque esperava que a final o deixassem. +O caso é que, depois de solto, desappareceu d'estas +terras, e nunca mais houve novas d'elle. Muita +gente suppoz que o feitor levou os trezentos e +tantos mil cruzados; mas meu pai, que o conheceu +e teve em conta de muito honrado, affirmou que +o dinheiro estava enterrado. Não sei; mas o desapparecimento +do criado confidente do capitão-mór, +a meu vêr, deixa suppôr que a estas horas, +lá por esses reinos estrangeiros, vivem muito ricos +os filhos do feitor. Deus sabe o que foi.</p> + +<p>--E então os dous filhos do capitão-mór ficaram +pobres?--tornou o snr. Guimarães.</p> + +<p>--Pobres?! não, senhor. Quem tem sete +quintas, que rendiam cinco a seis mil cruzados, +que ha oitenta annos valiam dezoito mil cruzados +de hoje em dia, não é pobre. O que elles fizeram +foi tratar de se empobrecer. O morgado por aqui +ficou, entretido com mulheres, galgos, caçadas, +cavallos, feiras, jogo e valentias. O outro, que +teve duas quintas de patrimonio, reduziu-as a +moeda sonante, e foi para Lisboa requerer não +sei que recompensas a D. Maria I, pensando que +o ser seu pai amigo do duque de Aveiro, lhe dava +direito a ser galardoado. Ora, se elle soubesse +<span class='pagenum'>[12]</span> +que a filha de D. José negou ao desventurado, ao +innocente e quasi mendigo D. Martinho de Mascarenhas +os bens de seu pai, duque de Aveiro, +não iria allegar como cousa digna de premio o +affecto do capitão-mór ao regicida suppliciado.</p> + +<p>--Conte-me lá isso por miudos...--atalhou o +brazileiro que não lêra a <em>Historia portugueza</em> do +snr. Viale.</p> + +<p>--São contos largos. Vamos primeiro á historia +do ultimo senhor da honra do Real de +Oleiros--respondeu o abbade, e continuou: +Não sei onde nem quando morreu Sebastião +Pacheco de Andrade, o filho segundo do capitão-mór. +Ouvi, porém, dizer que morrêra novo, +pobre e deshonrado. Quanto ao morgado, sei +que elle casou com a menos digna das suas concubinas, +já quando não toparia menina honesta +que aceitasse o fidalgo de Real de Oleiros. Christovão +Pacheco, apesar da libertinagem e desperdicio, +ainda gozava o que se chama decente mediania, +quando sahiu d'este mundo, antes dos +cincoenta annos. Teve um filho ante-nupcial da +criada com quem casou. Este conheci eu mui de +perto e em conflicto muito deploravel, como lhe +contarei. O pai, que desprezava frades, e zombava +da religião, mandara-o educar em religião +e com um parente frade da ordem benedictina. +<span class='pagenum'>[13]</span> +O rapaz alegrou-se grandemente ao noticiarem-lhe +que o pai era morto e elle herdeiro. +Veio aqui, por ahi esteve dous annos socegadamente, +olhando pelos bens, posto que debaixo +de tutela; e, quando orçava pelos dezenove annos, +tão grandes amostras dava de homem de +bem que se lhe offereceu para esposa uma senhora +de linhagem illustre e dotada com vinte +mil cruzados. Emancipado pelo casamento, apossou-se +do casal, desempenhou parte das quintas +hypothecadas, e manteve bons creditos por espaço +de alguns annos.</p> + +<p>Em 1832 era elle ainda muito rapaz, e já então +vestia a farda de capitão de milicias. Esteve +no cerco do Porto, onde consta que procedera +valentemente. Porém, no fim da guerra, os bons +costumes com que sahira d'esta casa por lá ficaram. +O homem voltou tão diverso, tão estragado +na moral, que já ninguem o via e ouvia que se +não lembrasse do pai. A esposa não sei se por +santa, se por peccadora, fugiu-lhe com uma criança +de cinco annos para a casa d'onde viera; e +elle, hypothecando os bens já deteriorados com +as prodigalidades da vida militar, levantou muitos +contos de reis, e estabeleceu-se em Lisboa.</p> + +<p>Desde 1836 a 1843, o seu viver na capital deu +brado por <em>aventuras amorosas</em>, como lá dizem os +<span class='pagenum'>[14]</span> +salteadores da honra das familias. Pedro de Andrade, +que assim se chamava, como seu avô, era +um homem gentil, bem feito, galhardo, e muito +airoso. Tinha as seducções de Satanaz feito homem. +A corrupção de Lisboa era grande, e elle +ainda maior; mas desgraçadamente, o maldito +empestou muita menina innocente, e abriu muitos +abysmos aos pés das virgens que pareciam +ter postos no céo os olhos contemplativos.</p> + +<p>--Que grande maroto!--disse o brazileiro.</p> + +<p>--Em 1843, depois de uma ausencia de seis +annos, appareceu aqui, de repente, Pedro de +Andrade, e procurou-me a fim de me propôr a +compra dos bens que ainda não estavam captivos +de dividas. Eu desculpei-me com a falta de +dinheiro, e outros aceitavam a proposta, se a +mulher assignasse os contractos. N'este entretanto, +recebi de Lisboa certa gazeta de que era assignante, +onde li uma noticia que me abalou dolorosamente. +E, estando em minha casa Pedro +de Andrade, perguntei-lhe se tinha noticia do +triste successo contado pelas gazetas.--Qual +successo?--perguntou elle. «Eu lh'o leio» +disse eu; e visto que estamos á minha porta, +queira o snr. Guimarães entrar, que eu lhe vou +lêr a gazeta, que Pedro de Andrade ouviu com +inalterado semblante.</p> +<span class='pagenum'>[15]</span> + +<p class="centrado">*<br>* *</p> + +<p>O brazileiro entrou na saleta do abbade, que +tirou da estante dos seus livros a <em>Revista Universal +Lisbonense</em> de 1843; e leo, a paginas 23, o seguinte:</p> +<br> + +<p class="centrado">«A POMBA E O ABUTRE</p> + +<p>«Quasi todos os papeis publicos transcreveram +do <em>Portugal Velho</em> o caso de uma donzella +fugida do paço real. Levantaram sobre isto altos +clamores contra ella, contra o seductor, contra a +perda da proverbial gravidade do palacio portuguez. +Sentimol-o o calamos.--Era assumpto melindroso; +para relatar e sentenciar careciamos +ainda de evidencia. Hoje suppômo-nos habilitados +para ratificar e completar a narração de um +successo que, devida ou indevidamente, já cahiu +no dominio do publico, e não é possivel extorquir-se-lhe +da memoria.</p> + +<p>«No palacio velho da Ajuda vegetam ainda +umas cincoenta ou mais solitarias, que, opprimidas +dos annos e das molestias, recebem da caridade +da soberana o pão pelos serviços, que outr'ora +prestaram ás rainhas e princezas suas ascendentes;--são +<span class='pagenum'>[16]</span> +os ornamentos partidos e desfigurados +de um seculo, que desabou para nunca +mais ser reconstruido.--Todas estas mulheres +são tristes como reliquias de tempos festivos, +saudosas, ou antes, saudades ellas mesmas:--a +presença de todas e de cada uma, aggrava a +cada uma e a todas ellas a melancolia do crepusculo +da morte, que já lhes vem anoitecendo.--Todo +o reboliço, todas as quotidianas transformações +materiaes, moraes e politicas da visinha +capital, onde já foram vivas, moças e brilhantes, +ou não chegam alli, ou só chegam como +uns contos vãos e longinquos, como sonhos de +cousas passadas em outro planeta: ¿que tem ellas +que vêr no berço que se apparelha para uma +nova idade?--ellas, que já pendem para o sepulchro, +a contemplar no fundo d'elle tantas cousas +louçãs e vivazes, que lhes pertenciam!</p> + +<p>«Entretanto no meio d'este palacio de tristezas +volteava ainda um raio de sol; um arbusto +florejava purpuras no meio d'este cemiterio; uma +avesinha cantava primavera entre o desconsolo +d'estas ruinas; uma viração deliciosa fazia ás vezes +susurrar agradavelmente estes musgos resequidos. +Tudo isto era a joven Maria, lindeza de +18 annos, lindeza corporal como poucas, lindeza +de espirito como ainda menos, lindeza de coração +<span class='pagenum'>[17]</span> +como quasi nenhuma, sobrinha e companheira +de uma d'estas velhas, companheira e +amiga de todas ellas. Maria, era realmente o feitiço, +a Vida e o encantamento d'aquelle retiro +sem porvir. Toda a casa a amava: era uma paga +de divida; Maria queria-lhe muito, quasi que alli +abrira os olhos, pelo menos outra nenhuma lhe +lembrava; sob aquelles tectos brincára desde a +idade de tres annos; entre aquellas cabeças encanecidas +se fôra coroando a sua de longas tranças +louras: entre o crescer de tantas rugas se +desenvolveram e aperfeiçoaram as suas graças; +entre o progressivo decahir de tantas prendas e +esperanças como as folhas verde-pallidas que em +pomar de outomno se despegam uma a uma, os +seus talentos naturaes por uma desvelada educação, +que a munificencia da snr.ª D. Maria I proporcionára +a sua tia os meios de lh'a dar, tinham +chegado ao seu maior auge.</p> + +<p>«Maria do Carmo reunia ás prendas manuaes +proprias do seu sexo, um lêr e escrever primoroso, +noções e gosto de litteratura, mórmente da +franceza, em cuja lingua era mui versada, e musica, +merecendo no piano as honras de mestra, e +por corôa de elogio verdadeiro, os seus costumes +eram puros e o seu coração religioso: nas +orações que todas iam quotidianamente depôr +<span class='pagenum'>[18]</span> +aos pés do altar, as d'ella deviam rescender mais +a innocente alegria que a temores ou remorsos.--A +25 de junho orava no côro com sua tia +quando o relogio dos paços bateu as 6 da tarde. +Levanta-se, pede licença para deixar o restante +para depois, e ir entregar--que o prometteu--um +debuxo de bordados a uma sua amiga fóra +da casa.</p> + +<p>«Foi: correram horas, e não voltou.</p> + +<p>«Começaram e cresceram cuidados: mandou-se +á busca por todas as partes: passou o serão, +passou a noite, e passaram tambem dias, +sem que a tornassem a vêr, nem a ouvir d'ella +nova alguma.</p> + +<p>«N'essa tarde alguem se lembra de ter notado +uma sege parada debaixo da arcada do paço. +E um morador da casa acrescenta que, perto da +noite, achando-se no caes do Sodré, vira chegar +uma sege á porta de uma hospedaria, e um homem +de chapéo branco apear uma menina, que +lhe pareceu ella.</p> + +<p>«Devolvidos quatro mortaes dias, chega no +domingo um gallego com uma carta para a consternada +tia:--entrega-lh'a em mão propria, e +ajunta, havel-a recebido de uma menina mui +linda, que lavada em lagrimas e afogada em soluços +lhe recommendára fosse leval-a correndo, +<span class='pagenum'>[19]</span> +e lhe trouxesse signal de ter sido recebida. O +conteudo d'esta carta ninguem o soube, mas parte +d'elle facilmente se póde presumir.--Ás nove +horas d'essa mesma noite viram-se sahir pela +portaria dous vultos rebuçados, que por mais +que a porteira os interrogasse, partiram sem dar +resposta. Á hora e meia da noite os mesmos +dous vultos vieram bater á porta, trazendo entre +si amparado e quasi em braços um terceiro, que +ninguem reconheceu. Abriram uma porta, que +havia muito não servia, e que dava passagem +para a pousada da fugitiva, e entraram.</p> + +<p>«Pessoa do sitio por quem isto soubemos, +nos acrescentou, que o estado de Maria na seguinte +manhã, segundo lh'o descrevêra quem +acabava de a vêr, cortava o coração. As suas +tranças louras e espessas tinham desapparecido. +O seu rosto pendia pallido e esmorecido. Duas +fontes corriam dos seus olhos. A sua dôr via-se e +era terrivel porque era muda.</p> + +<p>«As suas o occupações desde então teem sido +orar e chorar: com isto leva no oratorio as horas +do dia e da noite, abraçada com a imagem +da consoladora dos afflictos, beijando-a nos +pés, nas mãos e no rosto como filha a sua mãi--como +filha prodiga, que procura, á força de +se restituir toda, reconquistar o coração materno; +<span class='pagenum'>[20]</span> +como se coração materno se apartasse nunca. +O pai aggravado perdôa, a mãi não, toda ella +foi sempre amor, e o amor não sabe senão +amar.</p> + +<p>«A unica pessoa, que além de sua tia, a tem +visto, é o medico, alma sensivel, de quem recebe +os soccorros mais assiduos e delicados. Entretanto +o mal que a mina é grave. Quasi privada +do alimento e do somno, os seus dias parecem +ameaçados de um fim prematuro. Se a violencia +mesma da sua dôr lhe não limitar em breve a +duração, outro perigo pouco menos cruel que +o da morte, parece ameaçal-a. O pranto continuo +que afoga os seus olhos, receia-se que venha +por ultimo a lh'os apagar, e que a pobresinha +que, ainda ha pouco, era o raio de sol de toda +a habitação, venha ainda a ser, mergulhada +em trevas e sobrevivendo a si mesma, um objecto +de profunda e esteril compaixão para tantas +infelizes, a quem ella, pouco ha, repartia alegrias +e emprestava mocidade.</p> + +<p>¡¿E agora quem a condemnará por um erro, +cuja origem e historia nos são desconhecidos?! +¿quem a apedrejará entre os braços, sob +o manto e sob os olhos da rainha dos anjos, que +lhe deu o seu nome, lhe chama filha sua e com a +vista serena e amorosa lhe está apontando para +<span class='pagenum'>[21]</span> +as alturas?! ¡¡¡Que delictos e crimes (quanto +mais erros)! deixariam de se lavar com tantas lagrimas!!! +¡¡¡E ha entretanto aqui um homem, +talvez entre nós, talvez festejado e respeitado--um +homem, que ella generosa não nomeia, não +nomeará nunca--um homem, cujo rosto mais +duro que o de Caím se não transformou, se não +tingiu de repente na côr de sua alma para o denunciar, +como sacrificador da innocencia, da +virtude, da formosura, e do amor, de um amor +irresistivel, inspirado por elle, e que a elle sacrificava +tudo até a vida,--tudo até o porvir--tudo--tudo +até a honra!!! ¡¡¡Ha ahi um homem +d'estes!! ¡Ha-o sem duvida! e se as justiças o +descobrissem, este homem receberia uma pena: +menos affrontosa que a do ladrão assassino... Este +homem não havia de ser mandado por todas +as cidades e villas do reino de braço dado com o +carrasco, para ser atado a cada pelourinho, escarrado +no rosto por todos os homens e mulheres, +e esbofeteado depois pelo seu menos infame +companheiro de jornada com a mão esquerda. +Não: que importa o que padece uma mulher? +Não crêsse nas palavras de quem a fascinára; +não fosse moça, innocente e amante; não fosse +mulher. As justiças da sociedade teem mais cousas +em que pensar. ¿E de mais não se vê isto +<span class='pagenum'>[22]</span> +todos os dias? Não são conhecidos muitos outros +que tambem matam assim o tempo com estas caçadas +amorosas? ¿que o confessam com vangloria +e que em companhias mui luzidas são por isso +admirados e invejados! Tratemos dos interesses +materiaes. O restante são chimeras, são fanatismos, +são miserias, indignas da attenção de legisladores, +e dos homens illustrados de 1843.»</p> + +<br> + +<p>Concluida a leitura, o abbade proseguiu:</p> + +<p>--Ouvida a historia, o fidalgote sacudiu a +poeira das calças com um chicotinho de baleia, e +disse: «São vulgarissimos esses casos em Lisboa. +O que a mim me espanta é que a imprensa vista +o habito de Tartuffo, e sáia ás praças a prégar +contra a corrupção que ella promoveu com os +seus romances, com as suas philosophias, com as +suas theses de liberdade, e com a perseguição de +escarneo e de fome feita aos apostolos da sincera +moralidade.»</p> + +<p>Discursou largamente n'este sentido, e despediu-se, +deixando-me inclinado a dar-lhe razão.</p> + +<p class="centrado">*<br>* *</p> + +<p>Passam-se tres dias:--continuou o abbade--era +meia noite de 2 de agosto do mesmo anno +<span class='pagenum'>[23]</span> +de 1843. Recolhia-me á igreja de ter ministrado +a extrema-unção a um moribundo, quando ouvi +dous tiros a pouca distancia, e d'ahi a minutos o +alarido de muitas vozes, gritando «homem morto!»</p> + +<p>Sahi ao adro, e encontrei pessoas que já vinham +chamar-me para assistir aos paroxismos de +Pedro de Andrade que estava mortalmente ferido +á porta de sua casa.</p> + +<p>Quando cheguei, já o haviam transportado ao +leito. Estava ainda vivo. Assim que me viu, acenou-me +com anciedade, apertou-me convulsamente +a mão, e segredou-me: «Quero confessar-me, +que vou morrer.»</p> + +<p>Escutei-o por espaço de hora e meia; as +phrases eram cortadas por gritos de agonia; ambas +as balas lhe estavam dilacerando as entranhas +do peito; e, ainda assim, aquelle demorado +arrancar da vida me quiz parecer uma delonga +providencial para que o grande criminoso tivesse +tempo de penar e chorar suas culpas. Expirou +com todos os sacramentos, pedindo-me que, em +nome d'elle, pedisse perdão a seu filho e a sua +mulher.</p> + +<p>O moribundo, quando me revelou o seu derradeiro +delicto, rogou-me que désse publicidade +ao crime e ao castigo a fim de que a sua desgraça +<span class='pagenum'>[24]</span> +podesse aproveitar aos centenares de delinquentes +que lhe haviam dado o exemplo do vicio +e da impunidade. E, por tanto, não escrupuliso +em lhe dizer que o seductor da infeliz Maria do +Carmo havia sido Pedro de Andrade, e que os +vingadores da abandonada menina deviam ser +seus parentes, posto que o assassinado os não +houvesse conhecido, e lhes ouvisse apenas dizer, +antes de desfecharem as clavinas, que lhe traziam +saudades da prostituida senhora do paço da +Ajuda.</p> + +<p>--Com effeito!--observou o snr. Guimarães--essa +historia arripiou-me os cabellos!... V. s.ª +ha de emprestar-me essa gazeta que eu quero +copiar esse caso! Diga-me cá: e o filho d'esse +desgraçado?</p> + +<p>--O filho do desgraçado, que tinha então onze +annos e estava com sua mãi, póde dizer-se que +ficou litteralmente pobre. Os credores e a fazenda +nacional disputaram-se a posse do espolio. O +rapaz, quando chegou á idade de tomar conta da +honra de Real de Oleiros, convenceu-se que lhe +era mister trabalhar para não morrer de fome. +Os parentes de sua mãi, posto que abastados, não +o protegeram, e tornaram-lhe pesada a esmola do +pão e da cama. Um dia, o brioso moço sahiu com +sua mãi da casa que lhe amargurava o bocado, e +<span class='pagenum'>[25]</span> +foi habitar um casebre nas visinhanças do escrivão, +que o fizera seu amanuense, e lhe dava doze +vintens por dia. V. s.ª conhece-o. É aquelle Alvaro +de Andrade que tem lavrado as escripturas +de compra de propriedades que o snr. Guimarães +tem adquirido...</p> + +<p>--Pois é esse!... Aquelle homem humilde que +me beijou as mãos quando eu lhe dei uma libra +de gratificação...</p> + +<p>--É esse mesmo.</p> + +<p>--E nunca me disse de que familia era...</p> + +<p>--Não falla em familia, e parece até esquecido +da sua procedencia. Que eu, a fallar verdade, +uma vez, passando com elle defronte das ruinas +da casa de seu pai, surprendi-o a olhar para as +paredes derruidas com as lagrimas nos olhos. +Perguntei-lhe por que chorava, e elle respondeu-me +que chorava por sua mãi, lembrando-se que +d'aquella casa sahira ella coberta de mais amargas +lagrimas.</p> + +<p>--Coitado!--disse o brazileiro--hei de fazer-lhe +o bem que poder.</p> + +<p>--E póde muito v. s.ª; mas faça-lh'o de modo +que o não humilhe.</p> + +<p>--Eu cá sei, snr. abbade. Nós, os chamados +brazileiros, sabemos todos os processos de dar esmolas +aos nossos patricios de modo que elles se +<span class='pagenum'>[26]</span> +dispensem de nos agradecer, e até lhe deixamos +o direito salvo de nos ridiculisar.</p> + +<p>A justiça inspirára este homem, que nunca +fôra tão eloquente.</p> + +<p class="centrado">*<br>* *</p> + +<p>Pouco tempo depois, annunciou-se a venda +da quinta de Real de Oleiros e suas pertenças, a +requerimento dos credores. José Maria Guimarães +cobriu todos os lanços. Foi-lhe adjudicada a +quinta por alto preço. Os licitantes, que eram os +credores, acotovelavam-se jubilosos, e diziam +entre si:</p> + +<p>--<em>Espiguêmol-o!</em></p> + +<p>E, assim que o ramo lhe foi entregue, disseram +unanimemente:</p> + +<p>--Foi <em>espigado</em>!</p> + +<p>O brazileiro pagou immediatamente ao instrumento +da adjudicação, e disse, relançando a +vista aos alegres credores de Pedro de Andrade:</p> + +<p>--Meus senhores, o que vale aos credores dos +fidalgos, que não pagam, são estes <em>nossos irmãos +de além-mar</em>, que, lá e cá, melhor fôra chamar-lhes +<em>irmãos da misericordia</em>...</p> + +<p>--É parvo!--disse um poeta de Basto ao ouvido +de um bacharel de Felgueiras.</p> +<span class='pagenum'>[27]</span> + +<p class="centrado">*<br>* *</p> + +<p>Passados dias, começaram obras de reedificação +no local do palacete arruinado. O proprietario, +fazendo-se encontradiço com o amanuense +do tabellião, disse-lhe:</p> + +<p>--Ó snr. Alvaro, vá o snr. hoje, se não tiver +que fazer, á quinta de Real, que temos que conversar +a respeito de certos arranjos.</p> + +<p>--Sim, senhor--disse Alvaro--quando v. s.ª +quizer.</p> + +<p>--Ás 4 da tarde; e leve tinteiro e papel, que +não ha lá d'isso.</p> + +<p>Á hora aprazada, entrou o bisneto do capitão-mór +na extincta honra dos Pachecos e Andrades. +Já lá estava o brazileiro, ás testilhas com os alveneis. +Assim que chegou o escrevente do tabellião, +subiu com elle por entre um matagal de bravio +até ao alto de um outeirinho onde se erguia +um pombal já descaliçado, mas ainda assim a +porção menos esboroada das pertenças da quinta, +graças á fortaleza do tecto abobadado de pedra.</p> + +<p>Havia dentro uma banca de granito, onde outrora +os senhores de Real se desenfastiavam em +merendas, depois das fadigas da caça na tapada +defeza. Já lá estavam duas cadeiras.</p> +<span class='pagenum'>[28]</span> + +<p>--Sente-se ahi, snr. Alvaro--disse José Maria +Guimarães,--e vá escrevendo.</p> + +<p>--Prompto!--respondeu o escrevente, rodando +a sibilante tarracha do tinteiro de chifre.</p> + +<p>--Ponha ahi os nomes dos pobres da freguezia +que não tem casa de seu.</p> + +<p>Alvaro Pacheco escreveu trinta e quatro nomes; +quedou-se um momento, e perguntou:</p> + +<p>--De todos os pobres que não tem casa?</p> + +<p>--Sim, de todos os pobres que não tem casa +propria.</p> + +<p>--Então, falta o meu nome. Somos trinta e +cinco os pobres que não temos casa.</p> + +<p>E escreveu: <em>Alvaro, escrevente de tabellião.</em></p> + +<p>--Muito bem--volveu o brazileiro commovido--sabe o que eu quero?</p> + +<p>--V. s.ª o dirá.</p> + +<p>--É ceder metade d'esta quinta aos pobres +para elles edificarem uma casa com seu quintalejo; +já se vê que sou eu que pago as obras das casas; +e, visto que o snr. Alvaro é um dos trinta e +cinco pobres, escolha a local onde quer a sua casa +feita. A escolha do local é sua; ora agora, o feitio +da obra isso é cá por minha conta.</p> + +<p>--Os pobres aceitam, não escolhem--disse +Alvaro.</p> + +<p>--Mau!--replicou José Maria Guimarães--Mau! +<span class='pagenum'>[29]</span> +ou bem que somos francos um com o outro, +ou não temos nada feito. Eu cá sou assim!</p> + +<p>--Então quer v. s.ª...</p> + +<p>--Deixemo-nos de <em>senhorias</em>. Eu sou filho de +um almocreve, e neto e bisneto de burriqueiros; +e o snr. Alvaro Pacheco é descendente de capitães-móres +a quem meus avós traziam presuntos de +Melgaço nas suas recovas de machos. Deixemo-nos +de <em>senhorias</em>. Vamos á questão. Onde quer a +sua casa?</p> + +<p>--Aqui--disse Alvaro.</p> + +<p>--Aqui no pombal?!</p> + +<p>--Aqui, porque fica sendo casa, e ao mesmo +tempo memoria de ter estado n'este sitio um homem +honrado.</p> + +<p>--Ou dous--emendou o brasileiro--Dê cá +um abraço, e vamos embora, que faz aqui frio.</p> + +<p>E, no decurso do caminho, proseguiu:</p> + +<p>--O snr. Alvaro ha de fazer-me o favor de se +despedir do serviço do tabellião, se lhe não custar. +Preciso de quem me represente n'estas obras, +em quanto vou tratar de negocios a Lisboa. Eu +cá lhe deixo as plantas das casas dos pobres, e o +capital para o custeio das despezas.</p> + +<p class="centrado">*<br>* *</p> +<span class='pagenum'>[30]</span> + +<p>O brazileiro voltou, passados seis mezes. Todas +as casas estavam já de parede e tecto, quando +voltou, excepto a do pobre chamado Alvaro.</p> + +<p>--Com que então a casa n.º 35 ainda não +tem sequer os alicerces?---perguntou o bemfeitor.</p> + +<p>--É porque o pobre n.º 35 não precisa tanto +como os outros--respondeu o feitor.</p> + +<p>--Então vou eu ser agora o fiscal das suas +obras--tornou José Maria.</p> + +<p>E, ao outro dia, fez convergir os melhores +operarios para a bouça do pombal, e mandou arrazar +a vivenda de centenares de andorinhas que +se esvoaçavam ao primeiro troar dos alviões e +marretas.</p> + +<p>Alvaro e José Maria assistiam ao derrubamento +do pombal, um tanto condoidos do esgazear +das espavoridas habitadoras das ruinas.</p> + +<p>N'isto, um pedreiro esboroando com a alavanca +um pedaço de parede, descobriu uma superficie +escura, que se lhe figurou lousa.</p> + +<p>--Que diabo de obra é esta de lousa em parede +de cantaria?--disse o alvenel.</p> + +<p>O brazileiro abeirou-se da parede, apalpou a +supposta lousa, e observou ao pedreiro que era +pau e não lousa, mandando socavar dos lados, e +alimpar a superficie do que quer que fosse.</p> +<span class='pagenum'>[31]</span> + +<p>--Isto é um caixote!--disse o mestre da +obra--querem vossês vêr que o diabo as arma?</p> + +<p>--Arma o quê?--perguntou José Maria Guimarães.</p> + +<p>--V. s.ª nunca ouvia dizer que os fidalgos de +Real esconderam um thesouro que nunca se encontrou?</p> + +<p>--Já ouvi dizer isso. Atirem a baixo toda a +pedra que está dos lados, e não embarrem no +caixote. Cuidado lá com isso! Snr. Alvaro, parece-me +que vai assistir á resurreição do melhor +defunto dos seus avós--bradou o brazileiro.</p> + +<p>--Como?!--perguntou Alvaro, que vinha entrando +no recinto do pombal.</p> + +<p>--Venha vêr. Apalpe. Que é isso?</p> + +<p>--Parece-me um caixote--disse o bisneto do +capitão-mór.</p> + +<p>--Não é parece; é que é. Sabe o que lá está +dentro? Sabe a historia dos trezentos e tantos mil +cruzados de seu bisavô?</p> + +<p>--Ouvi dizer que...</p> + +<p>--Que nunca appareceram. Apparecem hoje. +Estão alli.</p> + +<p>Alvaro de Andrade que tinha encarado o infortunio +de trinta annos com intemerato aspecto, +descorou em frente da taboa negra que devia ter +<span class='pagenum'>[32]</span> +dentro uma cousa chamada, bem ou mal, a <em>fortuna</em>.</p> + +<p>A este tempo, o caixote era apeado, suspenso +entre quatro robustos braços.</p> + +<p>--Oh! como pesa!--gemeu um dos pedreiros.</p> + +<p>--Podéra não!--disse o brazileiro--trezentos +e tantos mil cruzados!</p> + +<p>--Os rios correm para o mar, snr. Guimarães--observou +o mestre d'obras.</p> + +<p>--Que quer dizer, mestre?--perguntou o +brazileiro.</p> + +<p>--Que se v. s.ª era rico, é agora riquissimo.</p> + +<p>--Obrigado pelo conceito que faz de mim, +mestre...--volveu José Maria entre risonho e +agastado.</p> + +<p>--Ó meu senhor, pois eu...</p> + +<p>--Suspeita-me de ladrão...</p> + +<p>--Valha-me Deus!... o que apparecer em terra +de v. s.ª seu é.</p> + +<p>--E esta terra é minha? Pois não sabe que +este chão é d'este pobre que se chama Alvaro?</p> + +<p>--Ó snr. Guimarães!...-exclamou o filho +do ultimo senhor da honra de Real de Oleiros, e +não pôde articular outra expressão.</p> + +<p>--Vamos!--acudiu o brazileiro--para onde +é que vai o thesouro de seu avô, snr. Alvaro +<span class='pagenum'>[33]</span> +Pacheco de Andrade, snr. barão, snr. visconde, +snr. conde, snr.... Quer mais? Dê as suas ordens.</p> + +<p>José Maria casquinava uma risada de elevada +intelligencia, em quanto os obreiros, rodeando o +caixote, se embasbacavam uns nos outros, e todos +no rosto de Alvaro com a mais sincera e respeitosa +estupidez.</p> + +<p>Novamente instado para que dissesse onde o +caixão devia ser levado, Alvaro respondeu:</p> + +<p>--A minha mãi, que sabe o que são pobres.</p> + +<p class="centrado">*<br>* *</p> + +<p>E os primeiros pobres, que relativamente enriqueceram +nas aldêas convisinhas, foram os +descendentes dos irmãos d'aquelle feitor que +muitos alcunharam de fugitivo ladrão do thesouro +do capitão-mór, e que se fôra a morrer longe +d'alli, e obscuramente, receoso de ser novamente +martyrisado pelos filhos de seu amo.</p> + +<p>Alvaro Pacheco de Andrade, n'este anno de +1874, tem quarenta e nove annos, e é conhecido +pelo fidalgo de Real de Oleiros. Aquella senhora +de tez morena, com cinco formosos filhos, que +brincam á volta de outra senhora de setenta annos, +é a esposa de Alvaro, e filha de José Maria +Guimarães. A dos cabellos brancos, que lhe alvejam +<span class='pagenum'>[34]</span> +na fronte como a corôa de açucenas de uma +santa, é a viuva d'aquelle galhardo e infausto D. +Juan, assassinado em 1843. O sacerdote ancião, +que parece ser da familia, é aquelle abbade que +nos leu a <em>Revista Universal Lisbonense</em>, e a quem +eu devo e agradeço os commentarios ao fogoso e +pungente artigo, que me parece ser do meu presado +mestre e adorado amigo visconde de Castilho.</p> + +<hr> + + + +<a name="cap02"></a> +<h1>O JOGADOR</h1> + + +<p>Hoje em dia, aquella denominação, nem é +desprezivel nem affrontosa. O progresso indultou +o jogador; deliu-lhe da fronte o antigo ferrete.</p> + +<p>Se eu jogar com sorte propicia, e mobilar um +palacio, cujas alfaias e baixella representem os +haveres e as lagrimas de muitas familias, serei o +legitimo e respeitado proprietario do meu palacio.</p> + +<p>Se eu abrir os meus salões, a mais selecta sociedade +virá pisar as alcatifas do meu palacio, e +lisonjear a magnificencia do fino gosto que dirigiu +<span class='pagenum'>[35]</span> +as correntes do meu ouro. Ninguem me perguntará +se herdei de avós, se ganhei de incautos +a minha opulencia. Talvez que os meus convidados +segredem entre si a proveniencia das minhas +pompas; mas d'esses, duas vezes deshonrados, +vingado estou. Deshonrados, porque entraram +nas minhas salas, e deshonrados porque denegriram +a honesta posse dos vinhos que me beberam.</p> + +<p>Continuando a auspiciosa hypothese: se eu fôr +o jogador enriquecido, bemquisto das familias, +pessoa séria, influente nas eleições bancarias, com +folha corrida, insuspeito de falsificador de testamentos +ou moeda, de certo me não distingo do homem +de bem, laborioso, honrado e provado nas +lutas da vida.</p> + +<p>Ha, todavia, entre nós uma pequena differença: +eu dou bailes, e o meu honrado visinho não +os dá.</p> + +<p>Mas isso depende da aristocracia da indole: +elle póde descender d'algum servo de gleba, que +lhe transmittiu genio caínho e o acanhamento de +raça; em quanto eu obedeço a impulsos de outro +sangue. As damas que se bamboavam nos coxins +flaccidos das minhas othomanas com toda a certeza +não calcularam quantos <em>micos</em> infelizes dos meus +parceiros representavam as copias de Raphael e +<span class='pagenum'>[36]</span> +os originaes de Murillo pendurados sobre as colgaduras +das minhas paredes. Antes quero suppôr +que ellas, no arrobo da sua admiração, meditaram +que na minha cabeça havia o que quer que +fosse digno da cabelleira encalamistrada de um +Marialva, no reinado de D. João V.</p> + +<p>É profundo o fôsso que me separa do jogador +em outras eras. Nasci quando devia nascer. Se eu +viesse á luz no seculo XVI, este meu mister de jogador +era synonymo de vadiagem (<em>Ord</em>, l. V, tit. +82). Nas minhas tertulias, devidas á sorte feliz da +tavolagem, lograria apenas reunir jogadores. Se +nascesse no seculo XVII ou XVIII, os corregedores +dos Philippes, de D. João IV e Pedro II, e dos reis +subsequentes, se eu désse bailes, carregavam-me +com as leis sumptuarias por sobre a pêcha de vadio. +Em tempo de D. João V, D. José ou D. Maria, +tanto o Camões do Rocio, como o Marques Bacalhau, +como o Pina Manique mandavam-me responder +do Limoeiro pela procedencia dos meus +lustres, dos meus sophás, dos meus jarrões, dos +meus contadores marchetados, dos meus bronzes, +dos meus frescos, dos meus pendulos, dos +meus pavimentos de xadrez lustroso. E vestiam-me +talvez uma das librés dos meus criados.</p> + +<p>Foi por isso que o facho da civilisação, passando +pelas minhas salas de jogador feliz, radiou +<span class='pagenum'>[37]</span> +reverberos esplendidos da minha baixella, e me +mostrou em meio dos meus convidados, com a +fronte luzentissima das alegrias do homem de +bem.</p> + +<p>Póde ser que, em outras eras tenebrosas, a +felicidade no jogo fosse malsinada de fraude e +roubo.</p> + +<p>Hoje não.</p> + +<p>O jogo, á luz de 1874, é um contracto bilateral, +fundado no consentimento de ambas as partes.</p> + +<p>Se é forçoso que uma das partes fosse tola e +desgraçada, eu de certo não fui.</p> + +<p>Está fechada a hypothese.</p> + +<hr> + + + +<a name="cap03"></a> +<h1>INEDITO DO POETA FR. BERNARDO DE BRITO</h1> + + +<p>Escreveu o famoso cisterciense a <em>Sylvia de Lizardo</em>, +e ninguem o trata de poeta quando o +louva ou moteja. Chamam-lhe o <em>chronista</em>, o <em>classico</em>, +o <em>douto</em>, o <em>mentiroso</em>, o <em>massador</em>, o <em>milagreiro</em>; +poeta é que não; e houve até um frade da +<span class='pagenum'>[38]</span> +ordem d'elle, Fortunato de S. Boaventura, o author +do <em>Punhal dos Corcundas</em>, que positivamente +desbalisou de poeta e de author da <em>Sylvia de Lizardo</em> +o vernaculo author da <em>Chronica de Cistér</em>.</p> + +<p>Pois foi poeta, e dos bons do seu tempo, aquelle +Balthazar de Brito de Andrade, que por amor +do patriarcha se crismou em <em>Bernardo</em>.</p> + +<p>Teve elle o ruim sestro de desfazer na prosapia +dos outros. Raro fidalgo lhe sahiu incolume +do crisol em que por obrigação do officio de historiador, +elle acendrava o fino ouro dos Trocozendos, +dos Romarigues, dos Egas Bufas e outros +condes das raças romana é goda.</p> + +<p>Nos descendentes do Espadeiro, que eram a +geração dos <em>Coelhos</em>, beliscava elle, á conta do assassinio +de Ignez de Castro. De si, dizia o frade, +que os <em>Britos</em>, em Portugal, derivavam dos <em>Brutos</em> +de Roma.</p> + +<p>Um descendente de Egas Moniz, chamado João +Soares de Alarcão, como era poeta, satyrisou a +maledicencia de fr. Bernardo de Brito com este +soneto:</p> + +<div class="poesia"> +Aos profundos imperios d'el-rei Pluto<br> +Irás, Bernardo, pelo que has escripto,<br> +Pois dizes que de <span class="ni">Bruto</span> vem teu <span class="ni">Brito</span>,<br> +Ficando tu só n'isso Brito e bruto.<br> +<span class='pagenum'>[39]</span> +<br> +Tu vens d'aquelles que a pé enxuto<br> +Passaram, com Moysés, o mar do Egypto,<br> +Ou vens do que com sangue do cabrito<br> +Tantos guizados fez sem nenhum fructo.<br> +<br> +Chamastes ao teu livro <span class="ni">Monarchia</span>,<br> +Sendo <span class="ni">Mona</span> que cria monstros varios,<br> +E tornastes de ferro a idade de ouro.<br> +<br> +Não te mettas em casos temerarios;<br> +Pasta nas hervas, bebe da agua fria,<br> +Ou na velha escudela o caldo louro.<br> +</div> + +<p>O monge de Cistér responde pelas mesmas +rimas:</p> + +<div class="poesia"> +Maçarico dos charcos de el-rei Pluto,<br> +Que taes marmanjarias has escripto,<br> +Que ao douto frei Bernardo ou Bruto ou Brito<br> +Picas com bico infame, sujo e bruto;<br> +<br> +Jámais será de Ignez o pranto enxuto,<br> +Pois a fazes mais quartos que um cabrito,<br> +Dizendo que nas mãos deu o esp'rito<br> +De Coelho matador, sagaz e astuto.<br> +<br> +Não vem da lusitana monarchia<br> +Martinho <span class="ni">mono</span>, pai de cascos varios,<br> +Sua mãi de <span class="ni">Aguilar</span>, aguia, não de ouro.<br> +<br> +Não te mettas em casos temerarios:<br> +Que louro não honra tua musa fria,<br> +Mas de uma pouca de... o caldo louro.<br> +</div> +<span class='pagenum'>[40]</span> + +<p>As injurias do primeiro terceto entendem com +os progenitores de João Soares de Alarcão. Martinho, +se era <em>mono</em>, sobrava-lhe direito a ser da +<em>monarchia</em> lusitana; mas tambem o outro se demasiára, +vituperando de <em>mona</em> a <em>Monarchia</em> do +frade. Tratavam-se de macacões um ao outro. +<em>Pai de cascos varios</em>, invectiva o poeta de Alcobaça. +Pela variedade da cascaria, entende-se que +capitulava de cavalgadura o adversario: saldo +bem ajustado com o outro que lhe chamára <em>bruto</em>.</p> + +<p>Entra no soneto a mãi do poeta, que devia ser +da familia de <em>Aguilares</em>: e era com effeito, sem +ser de raça desprimorosa. Chamava-se D. Cecilia +de Mendonça Aguilar e Lugo, filha de Philippe +de Aguilar, mestre-sala de D. Sebastião, de D. +Henrique, de D. Philippe, e tão amigo de Castella +que chegou á mordomia-mór do rei intruso. +Estes Aguilares e Aguiares foram sempre muito +dos hespanhoes, e logo contarei um caso do mais +notavel.</p> + +<p><em>Martinho</em>, <em>mono</em>, diz frei Bernardo. Que o pai +do poeta era Martinho Soares de Alarcão e Mello, +6.º senhor da casa de Torres-Vedras, não ha duvida; +que fosse <em>mono</em>, não o inculcam os genealogistas. +Seu filho, o poeta, foi alcaide-mór de +Torres-Vedras, casou, teve nove filhos, e entre +esses, o jesuita Francisco Soares de Alarcão, letrado +<span class='pagenum'>[41]</span> +eminente e guerreiro, que morreu queimado +em uma explosão de polvora, quando guarnecia +Juromenha, em tempo de D. João IV, capitaneando +os noviços da companhia, cujo reitor era.</p> + +<p>Outro filho do <em>poeta dos cascos varios</em>, quando +D. João IV o mandava governar Ceuta, passou-se +para Philippe IV; e foi condemnado á morte<sup><a name="mfn1" href="#fn1">[1]</a></sup>.</p> + +<p>Teve a mãi de João Soares um primo chamado +Damião de Aguiar Ribeiro, que era corregedor +em Lisboa, reinando o cardeal. Como sabem, +andavam então divididas as opiniões entre D. Antonio +e Philippe II, ácerca da successão do throno. +Damião de Aguiar era dos mais façanhosos +propugnadores por Castella. Succedeu então que +um homem do serviço de D. Antonio acutilasse +na Padaria um vereador que fallava soltamente +no senado contra o filho de Violante Gomes. Foi +preso e summariamente condemnado á forca. Á +hora em que o réo era levado, soube Damião de +Aguiar na rua Nova que, na Ribeira, se ajuntava +povo intencionado a tirar-lhe o padecente. Mandou +<span class='pagenum'>[42]</span> +o corregedor parar o prestito; fez lançar uma +corda de uma janella, e alli mesmo ordenou que se +enforcasse o homem, para evitar semsaborias. Tão +grato lhe ficou por isto o rei de Castella que o +nomeou desembargador do paço, e depois chanceller-mór +do reino, commendador de S. Matheus +de Soure e de S. Cosme de Gondomar, commendas +que rendiam 3:500 cruzados.</p> + +<p>Foi, por tanto, riquissimo, e tão bom homem +que fundou o convento das Capuchinhas da Merciana. +Instituiu morgadio, comprehendendo uma +extensa quinta que ia desde as portas de Santo +Antão pela travessa da Annunciada até á chamada +calçada de <em>Damião de Aguiar</em>.</p> + +<p>Casou duas vezes; procreou-se, e fez-se representar +entre nós pelos snrs. condes de Povolide, +de Valladares, etc.</p> + +<p>Rebello da Silva não reza bem d'este Damião +na <em>Historia de Portugal</em>. Eu não rezo bem d'elle +nem por elle; confesso, todavia, que era homem +expedito nisto de enforcar a gente na janella de +qualquer cidadão, mediante seis varas de corda.</p> + +<div class="rodape"> + <p><a name="fn1" href="#mfn1">[1]</a> D. João Soares morreu em 1618, com 38 annos de idade. Escreveu e imprimiu em lingua castelhana: <em>Archimusa de varias rimas y efetos</em>, e <em>La iffanta coronada por el-rei D. Pedro, D. Ignez de Castro</em>, etc. Este poema não devia ser mui lisonjeiro ás tradições de Pero Coelho, avoengo do poeta.</p> +</div> +<span class='pagenum'>[43]</span> + +<hr> + + + +<a name="cap04"></a> +<h1>LISBOA</h1> + + +<p>Elucidemos a historia do viajante.</p> + +<p>O mordomo-mór que fugia era D. João de +Mascarenhas, 4.º marquez de Gouvêa, e 7.º conde +de Santa Cruz. Tinha 25 annos, e era casado +com uma hespanhola, chamada D. Thereza de +Moscoso e Aragão, filha do 7.º conde de Altamira.</p> + +<p>A senhora que fugiu com elle era D. Maria da +Penha de França, tambem casada com seu primo-irmão +D. Lourenço de Almada, muito moço.</p> + +<p>Tinham casado em 1722. Em junho de 1723 +D. Maria da Penha de França deu á luz uma menina, +que se chamou Violante. E, na noite de 11 +de novembro de 1724, a esposa, abandonando +marido e filha, fugiu com o marquez.</p> + +<p>Este desastre não foi precedido de ardentes +galanteios e grandes resistencias do pudor vencido +pela paixão.</p> + +<p>D. Maria foi de visita ao paço, onde havia sido +dama, como sua mãi D. Violante Henriques o +fôra da rainha D. Maria Sophia de Saboya. Viu o +<span class='pagenum'>[44]</span> +marquez que era galan, audaz, e sem ser milagre, +fulminou-o com o relampago da formosura. +Fugiram e pararam em Tuy. Não foi em Vigo +como diz o viajante. Julgavam-se salvos em terra +estrangeira; mas o bispo, por ordem vinda de +Madrid, prendeu D. Maria n'um mosteiro; e o +marquez fugiu por Hespanha dentro, e mais tarde +para Inglaterra.</p> + +<p>Tanto que em Lisboa se divulgou a prisão da +mulher de D. Lourenço de Almada, certo poeta +escreveu um soneto gravido de maus versos e +boa moral, que diz isto:</p> + +<div class="poesia"> +D'esse claustro a sagrada penitencia<br> +Pia te esconda, oh bella criminosa,<br> +E converta-se em sombra a luz formosa<br> +Que ardeu nos sacrificios da indecencia.<br> +<br> +Tolera da prisão toda a violencia,<br> +Perdida já a nobreza generosa;<br> +Fique ainda entre a culpa indecorosa<br> +Benemerita ao menos a paciencia.<br> +<br> +Principia a morrer n'essa clausura<br> +Encobrindo um descredito infinito<br> +No antecipado horror da morte escura.<br> +<br> +Mas ah! se em ti, por ultimo conflicto,<br> +Como vai sendo de vida sepultura,<br> +Chegasse a ser cadaver o delicto!<br> +</div> +<span class='pagenum'>[45]</span> + +<p>Hei de escrever um livro que ha de chamar-se +o <span class="small-caps">desterrado</span>. Estes desastres hão de ser +esmiuçados compridamente. O <em>Desterrado</em> do +meu romance não é o marquez de Gouvêa: é +outra casta de personagem. Bem sei que esfrio o +interesse do futuro livro, bosquejando-o aqui em +poucas linhas. Não importa. A curiosidade do +leitor é mais attendivel que as conveniencias +mercantis d'uma novella.</p> + +<p>Como sabem, D. Maria da Penha deixou nos +braços do abandonado marido uma filhinha de onze +mezes, que se chamou Violante. Esta menina, +ahi pelos dezesete annos, amou seu primo D. Luiz +Francisco de Assis Sanches de Baena, alcaide-mór +de Villa do Conde, capitão de cavallos, e uns +gentilissimos vinte e nove annos. Na casa dos +Almadas, onde D. Luiz fôra creado--porque sua +mãi casára em segundas nupcias com D. Luiz +José de Almada--havia um D. Antão, que se apaixonára +por Violante, que era sua sobrinha. A +menina esquivara-se ás caricias do tio, e deixou-se +arrebatar nos braços do primo D. Luiz, quando +uma ordem regia o desterrou para Moncorvo, +a rogos de D. Antão de Almada. Os dous fugitivos +(que desterro tão semelhante, o de mãi e filha!) +esconderam-se e casaram em Zamora; mas +<span class='pagenum'>[46]</span> +ahi mesmo os enviados do cioso tio a foram colher +de sobresalto e a trouxeram a Portugal.</p> + +<p>Esteve a menina reclusa alguns annos em +Marvilla, com o proposito de professar, pois que +a lei lhe annullára o casamento com o primo; +não obstante, porém, a saudade do desterrado +primo, ao fim de onze annos, aceitou seu tio para +esposo, do mesmo passo que D. Luiz era banido +e desnaturalisado para sempre. Aqui fica muito +pela rama o entrecho do livro para o qual se estão +aprestando as peças essenciaes da vida tempestuosa +de D. Luiz Francisco de Assis Sanches de +Baena, fallecido aos 75 annos, e terceiro avô do +actual snr. visconde de Sanches de Baena<sup><a name="mfn2" href="#fn2">[2]</a></sup>.</p> + +<p>De D. Violante e de seu tio D. Antão de Almada +(sem embargo das amarguras da violentada +esposa) nasceu D. Lourenço de Almada, que +foi o 1.º conde do seu appellido em 1793.</p> + +<p class="centrado">*<br>* *</p> + +<p>Outra indicação do viajante que estimula a +curiosidade:</p> + +<p>«A casa da rainha e dos principes são analogas +á do rei. O posto de camareiro-mór da +<span class='pagenum'>[47]</span> +rainha vagou por morte do marquez das Minas, +assassinado em 1721. Este senhor era genro do +marechal de Villeroy; e seu filho, o conde do +Prado, está presentemente na côrte de França.»</p> + +<p>Já d'este caso dei n'outro livro a noticia que +transcrevo do citado periodico de Francisco Xavier +de Oliveira:</p> + +<br> +<p>«Um corregedor guardava uma porta da +igreja da casa professa dos jesuitas, quando alli +se celebrava grande festividade. Sómente o rei +havia de entrar por aquella porta. Chegaram +aqui o marquez das Minas e o conde da Atalaya; +mas o corregedor com razão lhes vedou o passo. +Insistiram elles, dizendo ao ministro que as +ordens recebidas não podiam entender-se com +pessoas de sua esphera. Redarguiu o corregedor +que as ordens ninguem exceptuavam, e por tanto, +sem que o rei entrasse, não podia elle permittir +que entrasse quem quer que fosse. Aquelles +senhores podiam entrar por outras portas +francas a toda a gente. Não obstante, pertinazmente +exigiram do corregedor uma distincção +que elle não podia dar-lhes sem transgredir os +deveres... Os dous fidalgos, depois de o terem +insultado, passaram ás ultimas. O conde da Atalaya +deu com o chapéo na cara do corregedor, e +<span class='pagenum'>[48]</span> +o marquez das Minas traspassando-o com a espada, +matou-o. Em seguida cavalgaram, e sahiram +do reino. O marquez das Minas <em>foi perdoado e +voltou ao reino</em><sup><a name="mfn3" href="#fn3">[3]</a></sup>.»</p> + +<p>Crê o leitor que, não obstante o perdão, +o marquez das Minas passaria o restante da vida +sequestrado das graças do monarcha e da convivencia +das pessoas de bem? Não faça juizos +temerarios o leitor: o marquez das Minas recebeu +o indulto, e ao mesmo tempo o bastão de +general.</p> + +<p>Já vimos a justiça dos homens: agora vejamos +a da Providencia. Servia no exercito portuguez +um castelhano chamado D. Juan de la Cueva, +<span class='pagenum'>[49]</span> +que não dava <em>excellencia</em> ao seu general, +marquez das Minas, sem que este lhe désse <em>senhoria</em>. +«Ora, o marquez, assassino do corregedor,--diz +o cavalheiro de Oliveira--era soberbo +e arrogante. Um dia, ao entardecer, sahia elle +da portaria da congregação de S. Philippe Neri, +a tempo que desgraçadamente <em>Juan de la +Cueva</em> ia entrando. Cortejou elle o marquez, que +lhe não deu a pretendida <em>senhoria</em>, e por isso <em>de +la Cueva</em> lhe não deu <em>excellencia</em>. O general, +grandemente irritado, levantou o bastão e proferiu +palavras ameaçadoras. <em>De la Cueva</em>, sem lhe +dizer palavra, traspassou-o com a espada. O +marquez não tugiu nem mugiu: quando cahiu +por terra, já ia morto. O padre, que o acompanhára +até á portaria, e era confessor d'elle, apenas +teve tempo de lhe apertar a mão. <em>D. Juan de +la Cueva</em> pôde escapar-se, e refugiou-se em Hespanha<sup><a name="mfn4" href="#fn4">[4]</a></sup>.»</p> + +<p>Na jurisprudencia divina a justiça mais seguida +é a pena de Talião.</p> + +<div class="rodape"> + <p><a name="fn2" href="#mfn2">[2]</a> Veja <em>Apontamentos biographicos</em> ácerca de D. Luiz Francisco de Assis Sanches de Baena, etc., por Innocencio Francisco da Silva, Lisboa 1869.</p> + + <p><a name="fn3" href="#mfn3">[3]</a> O cavalheiro de Oliveira não designa o tempo de expatriação do marquez das Minas, conde do Prado. Deviam ser dez annos, segundo a sentença manuscripta de que dá noticia o snr. Innocencio Francisco da Silva, a pag. 233 do 7.º tom. do Dicc. Bibliog. Diz assim: «Sentença da Relação de Lisboa, contra os condes do Prado e da Atalaya por matarem publicamente o corregedor do Bairro-Alto no exercicio da sua authoridade. O primeiro, tendo-se evadido, foi justiçado em estatua; o segundo condemnado a degredo por dez annos, e ambos em multas pecuniarias». Creio que ha equivoco, na transcripção da sentença. O queimado em estatua foi o conde de Atalaya, que, no dizer do cavalheiro de Oliveira, morreu furioso em Vienna, depois de ter militado no exercito do imperador de Austria. Quanto ao marquez das Minas, presume-se que lhe foi indultada a sentença, visto que o citado Oliveira diz que obteve perdão e voltou a Lisboa.</p> + + <p><a name="fn4" href="#mfn4">[4]</a> <em>Amusement</em>, 2.º v. pag. 147 e 148.</p> +</div> + +<hr> +<span class='pagenum'>[50]</span> + + + +<a name="cap05"></a> +<h1>LITTERATURA BRAZILEIRA</h1> + + +<p>Longo tempo se queixaram os estudiosos +do descuido dos livreiros portuguezes em se fornecerem +de livros brazileiros. Nomeavam-se de +outiva os escriptores distinctos do imperio, e raro +havia quem os tivesse nas suas livrarias. Nas bibliothecas +publicas era escusado procural-os. +Em compensação, sobravam n'ellas as edições +raras de obras seculares que ninguem consulta.</p> + +<p>O mercado dos livros brazileiros abriu-se, ha +poucos mezes, em Portugal. Devemol-o á actividade +inteligente do snr. Ernesto Chardron. Foi +elle quem primeiro divulgou um catalogo de +variada litteratura, em que realçam os nomes de +mais voga n'aquelle florentissimo paiz. Ahi se +nos deparam, entre os poetas, Gonçalves de Magalhães, +o correcto e sublime author da <em>Confederação +dos tamoyos</em>; o lyrico e arrojado Alvares +de Azevedo; o primaz dos escriptores brazileiros, +e chorado Gonçalves Dias; o esperançoso devaneiador, +fallecido no viço da idade, Casimiro de +Abreu; Junqueira Freire que primou nos segredos +da melodia e já não é d'este mundo; e o severo +<span class='pagenum'>[51]</span> +e cadencioso poeta de <em>Colombo</em>, tão estimado +dos nossos. Entre os romancistas o fecundissimo +Joaquim Manoel de Macedo, que disputa +a supremacia a J. de Alencar, que tanta nomeada +grangeou com o seu <em>Guarany</em>. Não lustram +menos as novellas mimosissimas de Luiz Guimarães, +e as arrobadas mesclas de prosa e verso de +Machado de Assis. Em litteratura didascalica sobresahem +os valiosos escriptos do professor, o +snr. conego Fernandes Pinheiro, nomeadamente +o <em>Resumo de historia litteraria</em>, que muito se +avantaja a uns esbocêtos que em Portugal circulam +nas escólas, e--o que é mais deploravel--nos +estudos secundarios. São notabilissimos +todos os livros do snr. J. M. Pereira da Silva, +já na sciencia historica, já na politica, e ainda +no romance, tão prosperamente estreiado na +<em>Aspazia</em>. Sobre tudo, porém, os <em>Varões illustres +do Brazil</em> e a <em>Historia da fundação do imperio +brasileiro</em> são obras que denotam profundo estudo +e muito engenho na boa disposição dos elementos +e critica dos personagens historicos. Em +varia sciencia, em livros elementares, em lexicologia, +e ainda sobre motivos de religião é copioso +o catalogo da livraria Chardron. Esta variedade +argue a fertilidade de intelligencias que ajuntam +á riqueza congenial d'aquelle solo os thesouros +<span class='pagenum'>[52]</span> +do espirito. E muito importa e cumpre +observar que os brazileiros modernamente nos +não cedem no zelo de imitar a linguagem pura +dos grandes escriptores portuguezes dos seculos +de ouro.</p> + +<p>Não esqueçamos, todavia, que o impulsor +d'este brilhante movimento litterario no Rio de +Janeiro, e por isso em todo o imperio, é o livreiro-editor +Garnier, espirito emprehendedor +que tanto faz luzir os talentos que divulga, quanto +lucra para si a honra de os fazer conhecidos e +laureados. Quem calcular o despendio grande de +empresas semelhantes n'aquelle paiz, deprehenda +o quanto cumpre que seja robusto e afouto o +pulso que removeu as immensas difficuldades +com que ha trinta annos lutavam os escriptores +do Novo-mundo para se fazerem conhecidos. +Coube esta gloria e este triumpho ao snr. Garnier.</p> + +<p>Falta dizer que os preços dos livros offerecidos +no catalogo das casas Chardron, no Porto e +em Braga, são modicos, reduzidos, e inferiores +ao preço corrente das obras portuguezas de igual +tomo.</p> + +<p>E, pois que estou agradavelmente recommendando +livros de brazileiros, seria injustiça não +graduar de passagem ao menos o merito de uma +<span class='pagenum'>[53]</span> +obra que recentemente sahia dos prélos portuenses. +É o <em>Estudo sobre a colonização e emigração +para o Brazil</em>. É seu author o snr. Augusto +de Carvalho, que tão grave e prestadiamente +abre carreira de escriptor, em annos ainda +muito na flôr, e com o espirito já a fructear +as mais sensatas considerações sobre as questões +controversas inculcadas no titulo da sua obra. Á +substancia do livro allia-se o primor da fórma, a +propriedade do termo, a chaneza eloquente, e, a +espaços, a elevação do estylo que não innubla a +clareza da idéa. É o snr. Augusto de Carvalho +um brazileiro que nobilita as letras da sua patria, +e está grangeando um lugar entre os melhores +escriptores, e, desde já, o tem distincto entre os +bons pensadores e cultores de idéas proficuas. +Congratulo-me com os seus conterraneos.</p> + +<hr> + + + +<a name="cap06"></a> +<h1>Á ACTUALIDADE</h1> + + +<p>O meu nome foi banido das columnas d'aquelle +jornal. Assim o rosnou o lebreu por entre os +arames da mordaça.</p> +<span class='pagenum'>[54]</span> + +<p>Foi realmente banido?</p> + +<p>Então, adeus, desgraçado!</p> + +<p>Que o mundo tenha tanta piedade de ti, lazaro, +quanto eu me arrependo de te haver baldeado +do charco da petulancia para outro peor--o do +silencio.</p> + +<p>Adeusinho! coça a tua lepra com os teus folhetins; +mas sume-te, escalracho!</p> + +<hr> + + + +<a name="cap07"></a> +<h1>A EXC.<sup>ma</sup> MADRASTA D'EL-REI D. LUIZ 1.º CALUMNIADA</h1> + + +<p>Se me arguirem de adulador da senhora condessa, +madrasta d'el-rei D. Luiz I, são iniquos. +Se esta ditosa dama, em vez de estar no paço das +Necessidades, estivesse, a esta hora, em trances +de cantora não escripturada, eu sahiria por honra +do seu nome de artista contra o calumniador +que lhe mareasse os applausos recebidos no theatro +do Porto, ha quatorze annos.</p> + +<p>Em um numero da <em>Lanterna</em>, periodico truculento, +li que a esposa do viuvo de D. Maria II +<span class='pagenum'>[55]</span> +havia sido pateada na rampa do theatro de S. +João, em 1859.</p> + +<p>É calumnia, que vou desfazer com a imprensa +contemporanea.</p> + +<p>Conceda-se-me a abstinencia de tratamentos +regiamente honorificos, em quanto a nobre condessa +de Edla me permitte pleitear em prol dos +seus creditos de cantora.</p> + +<p>A snr.ª Elisa Hensler cantou, pela primeira +vez, no theatro do Porto, na noite de 8 de outubro +de 1859. O <em>Nacional</em> do dia 10 escreve o seguinte:</p> + +<p>«<em>A companhia italiana estreou-se effectivamente +no sabbado, e não se estreou mal. A escolha da +opera foi acertada--«O Saltimbanco»; é uma bella +partitura... e a prima-dona Hensler é bella, joven, +e canta com mimo. A sua voz, se não é possante, +é melodiosa e expressiva, tem alcance bastante +para o nosso theatro. O publico ficou agradavelmente +surprehendido, e deu lisongeiro acolhimento +á mimosa cantora... Tanto no duetto como no rondó +mostrou a snr.ª Hensler que possue dotes musicaes +pouco vulgares. O sentimento com que cantou +os andantes do duetto, a bravura e perfeição na +execução da difficil parte do rondó, e aquelles trilos +tão nitidos e puros, que ella faz em notas tão agudas +no rondó, é sufficientemente para corroborar +<span class='pagenum'>[56]</span> +as grandes e vantajosas informações que a precederam; +e o publico foi justo com os applausos e chamadas +no fim da opera.</em>»</p> + +<p>Receio que os detractores da mimosa cantora +venham com artigos de suspeição ao <em>Nacional</em>, +culpando-o de parcial e apaixonado, já no louvor, +já na censura, em juizos theatraes. Contra esses +artigos redargúo estampando a opinião do <em>Commercio +do Porto</em>, o jornal mais serio do paiz:</p> + +<p>«<em>Abriu-se no sabbado com a opera o «Saltimbanco» +de Paccini... Fizeram a sua estreia n'esta +opera a primeira dama Elisa Hensler, etc. A prima +dona Hensler foi applaudida e teve uma chamada +no fim</em>.» (Commercio de 10 de outubro). E no +folhetim de 15 do mesmo mez, confirma n'estes +termos: «<em>A snr.ª Hensler é uma excellente cantora. +A sua voz de soprano-agudo é de sonoro timbre; e, +ainda que de pouco volume, extensa, flexivel, melodiosa +e fresca. Possue, além d'estes dotes naturaes, +outros não menos valiosos como cantora: conhecimento +do mechanismo do canto, perfeita entoação e +expressão. Revela a seu grande merito como cantatriz +nos floreios, nas escalas chromaticas, e especialmente +nos trinados. Na passagem da 1.ª á 2.ª +cavaletta do seu rondó final faz admirar os tres +longos e bellos trinados em <span class="ni">sol</span>, <span class="ni">lá</span> e <span class="ni">si</span> agudos. Na +difficil cavaletta de sua cavatina do 1.º acto são +<span class='pagenum'>[57]</span> +muito merecidos os applausos que tem colhido. No +<span class="ni">larghetto e cantabile</span> do duetto do baritono e soprano +do 3.º acto, não obstante a agudissima <span class="ni">tacitora</span> +em que está escripto, não deixa a snr.ª Hensler +nada a desejar. A todas estas excellentes condições +como artista e cantora reune uma presença sympathica, +qualidade esta de muito valor no theatro.</em>»</p> + +<p>Já no <em>Nacional</em> de 13 este parecer viera corroborado +com estes gabos: «<em>E a prima-dona Hensler? +Não desmereceu em nada das primeiras impressões +que nos imprimiu.</em></p> + +<p>«<em>É sempre a cantora mimosa e correcta.</em>»</p> + +<p>O <em>Commercio</em> de 29 de outubro classifica maviosamente +a dôce cantora com esta phrase:... +«<em>A prima-dona Hensler é o bijou da companhia.</em>»</p> + +<p>Na noite de 6 de novembro cantou a snr.ª +Hensler a parte de <em>Lucia</em>. O <em>Nacional</em> diz o seguinte: +«<em>A snr.ª Hensler na aria do 3.º acto remiu-se +do fiasco do 2.º, e cantou com tal mimo e +doçura que a platéa apesar de gelada rompeu então +em reiterados applausos.</em>» (Nacional de 7 de novembro). +O <em>Commercio</em>, esquivando-se á ingrata e +desmerecida palavra <em>fiasco</em>, escreve: «<em>A sr.ª Hensler +foi muito applaudida no <span class="ni">rondó</span>, e os applausos +foram merecidos no <span class="ni">andante</span>, que cantou lindamente, +executando com admiravel justeza <span class="ni">a cadencia</span> +em unisono com a flauta... Na cavaletta não foi tão +<span class='pagenum'>[58]</span> +irreprehensivel a execução.</em>» Está de accordo com o +<em>Nacional</em> de 8 de novembro: «<em>A snr.ª Hensler continua +a ser applaudida no <span class="ni">rondó</span> do 3.º acto, onde +a bella cantora revela muito talento. Se a sua voz +fosse tão volumosa como é suave, seria uma artista +de infinito merecimento.</em>»</p> + +<p>A 12 de novembro principiam os jornaes a +gemer sobre a gaveta do snr. Laneuville, empresario +que se dissolvia, com quanto fosse insoluvel. +Sem embargo, a snr.ª Hensler, na confirmação +dos dous citados jornaes, excedia-se no mimo +do canto. Dir-se-hia que attentava em captar +com as harmonias dulcissimas da sua voz o archanjo +torvo da miseria que espreitava o empresario +por entre as bambolinas de cartão esgarçado.</p> + +<p>Alguns amadores, que previam o desastre da +empresa nas cadeiras vasias da platéa, fermentaram +a occultas dous bandos que, mais ou menos +ficticiamente, se apaixonassem pelas duas damas. +É o que se deprehende das revelações do <em>Commercio</em> +de 5 de novembro que reza assim:... «<em>No +pessoal da companhia não ha nada que desafie enthusiamo +e dê vida animada ao theatro, apesar +dos esforços que alguns poucos frequentadores do +theatro, dos mais desenfadados, empenham para +crear partido ás duas damas.</em></p> +<span class='pagenum'>[50]</span> + +<p>«<em>Houve já episodios curiosos; porém nem as damas, +nem os seus admiradores conseguem fazer +móça no indifferentismo do publico, que reconhece +superioridade relativa na dama Hensler; mas +não vê ainda assim motivo justificado para se enthusiasmar.</em>»</p> + +<p>Com a sua usual discrição, omittiu o <em>Commercio</em> +os <em>episodios curiosos</em>. Bem é de vêr que o amor, +ideal da arte das fusas e semifusas, não seria estranho +aos sonegados episodios. A radiosa belleza +da cantora sem duvida attrahia umas borboletas, +que então douravam o seu polen sob as fulgurações +do lustre; todavia, como a dignidade da artista +se esquivasse ás intrigas de bastidor que, ás +vezes, galvanisam os empresarios oxydados, a empresa +falliu.</p> + +<p>Decorreram uns quinze dias angustiados para +a companhia desvalida. Hermann, aquelle prestigiador +cavalheiroso que morreu ha dous annos, +estava então no Porto. Foi elle o generoso valedor +dos artistas e ainda do empresario. A companhia, +em fim de dezembro, estava dispersa, não +deixando um vestigio de fragilidade no seu rasto +de pobreza.</p> + +<p>Em 21 de dezembro d'aquelle anno, uma local +do <em>Commercio</em> dizia: «<em>O vapor Lusitania sahido +<span class='pagenum'>[60]</span> +hontem pelas 12 horas da manhã conduziu 118 +passageiros, entre os quaes: Elisa F. Hensler</em>, etc.»</p> + +<p>Entrou, pois, na manhã do dia 21 em Lisboa +a cantora. Devia levar na alma os lutos da natural +vaidade ferida pela indifferença gelida d'uns +pisa-verdes que honraram grandemente a mulher, +menosprezando a artista. Dos frementes +applausos, que a victoriaram quando assomou +deslumbrante no palco, ao fastio com que as filas +dos seus admiradores rarearam, vai a distancia +que medeia entre a mulher honesta e a que +permitte que lhe abram saldo de contas em que +os applausos representam uma verba.</p> + +<p>Eu não sei se Hensler, a cantora, escripturada +pela empresa de S. Carlos, ao encarar a princeza +do Tejo, que devia vestir de negro n'aquelle dia +de dezembro, sentiu pavores da sua futura sorte, +em theatro de jerarchia tão elevada para suas +forças. Não sei porque frontarias de palacios lhe +avoejou a vista absorta nas tristezas de quem ia +sósinha, forasteira, sem o genio grande que estua +no peito as palpitações do triumpho. Não sei; +mas, se encarou lá em cima os palacios dos dous +reis--com que olhos a esposa do snr. rei D. Fernando +avistará hoje o Tejo, por onde entrára +n'aquella manhã pardacenta de nebrina carrancuda +de agouros esquerdos! Se ella então preveria +<span class='pagenum'>[61]</span> +um marido rei nas Necessidades, um enteado +rei na Ajuda, e toda aquella Lisboa, e todo este +reino, e nós todos ás suas plantas, nós todos, os +bons subditos do rei que é marido, e do rei que +é enteado, e d'ella, que vale mais que todos, por +que, offuscando-os com a aureola da arte, estrellada +das seducções da belleza, nos revelou que os +reis deslumbrados eram apenas homens!</p> +<span class='pagenum'>[62]</span> + +<hr> + + + +<a name="cap08"></a> +<h1>OS SALÕES</h1> + + +<h2>CAPITULO II</h2> + +<h2>PLEBISCITUM</h2> + +<div class="citacao"> +<p>Homem plebeu. <em>Homo plebeius.</em> Nos antigos +romanos havia tres ordens. A ordem senatoria, +equestre e plebea. A ordem plebea +val o mesmo que a gente do povo.</p> + +<p><em>Plebiscitum.</em> Termo da antiga jurisprudencia +romana. Deriva-se do latim: <em>plebs</em>, plebe, +e <em>sciscere</em>, que val o mesmo que <em>assentar</em>, +<em>ordenar</em>, <em>determinar</em>. E assim <em>plebiscito</em> era +o decreto, ou lei posta pelo povo, sem o suffragio +dos senadores, mas só ao pedir do tribuno, +magistrado do povo. <em>Plebiscitum.</em></p> + +<p class="direita">D. RAPHAEL BLUTEAU.</p> + +<p>La conscience peut être géante, cela fait +Socrate et Jésus: elle peut être naine, cela +fait Atrée et Judas.</p> + +<p>La conscience petite est vite reptile...</p> + +<p>Les catastrophes ont une sombre façon +d'arranger les choses.</p> + +<p class="direita">VICTOR HUGO.</p> +</div> + +<p>A luz não se exprime. Não tem definição. +Como a não tem o calor, o magnetismo, a electricidade, +e a vida. +<span class='pagenum'>[63]</span> + +<p>A luz é o agente ou a acção, que nos adverte +a distancia da presença dos corpos luminosos pelo +intermedio da vista.</p> + +<p>Vejamos.</p> + +<p>A luz propaga-se em linha recta nos meios +homogeneos. Obrigada a parar, no seu caminho, +pelo encontro d'um corpo opaco--produz os phenomenos +da sombra e da penumbra.</p> + +<p>No mundo moral são a sombra e a penumbra +as reacções da sciencia, da arte, da civilisação +e do progresso.</p> + +<p>Analysemos as penumbras.</p> + +<p>Entremos nas sombras.</p> + +<p>Desçamos ás trevas.</p> + +<p>Fóra da vida physica são as trevas a ignorancia, +e esta produz o silencio. Ora, o silencio +é a paz dos sepulchros. Por que não deveria eu +consultar a plebe?</p> + +<p>Ha por ahi, nas ultimas camadas sociaes, +perdidas, nas solidões da miseria, almas tão nobres, +aspirações tão vastas, crenças tão vivas...</p> + +<p>Por que não iria eu consultar os generosos +sentimentos populares?</p> + +<p>E fui.</p> + +<p>Entrei n'um tugurio qualquer.--Que lhe importa +o leitor qual foi? Havia uma mesa de pinho, +duas cadeiras, e um catre. Era toda a mobilia. +<span class='pagenum'>[64]</span> +Mas, no meio d'esta hedionda miseria, +existia um homem, feito á imagem de Deus; <em>et +creavit Deus hominem ad imaginem suam.</em></p> + +<p>Era um veterano da liberdade. Desembarcára +no Mindello. Tinha, na cabeceira do leito, pregada +no travesseiro a insignia da Torre e Espada, +ganha em Souto Redondo, em lutas titanicas, e +em nome da liberdade.</p> + +<p>Não desenho o soldado, ainda hoje operario. +Basta-nos ouvil-o.</p> + +<p>Li-lhe o manuscripto.</p> + +<p>Ficou pensativo, e triste. Encostou os cotovelos +sobre a mesa, afagou o craneo, como se +lhe tumultuassem tantas idéas lá dentro, que não +podiam irromper d'aquella abobada de fogo, e +depois, em voz baixa, como se receasse ser ouvido, +começou assim:</p> + +<p>--Publique tudo isso.</p> + +<p>A abstenção politica é mais do que a morte: +é a indifferença pelos males sociaes, é a historia +d'este torpe individualismo, que nos corrompe, é +a gangrena moral d'esta sociedade em dissolução, +é a anasarca symptomatica da lesão organica +que despedaça a nossa existencia, é o maior +de todos os crimes, por que é uma tranquillidade +ficticia, comprada á custa dos legados que nós +iamos enthesourando para as gerações futuras.</p> +<span class='pagenum'>[65]</span> + +<p>A democracia agonisa, no seculo dezenove, +quando desabrochava, e se abria em flôr, na arvore, +que nós todos plantamos, regada com o +sangue precioso de tantos martyres, em nome +dos que deviam colher e adorar no futuro, o +fructo dos nossos trabalhos.</p> + +<p>O velho operario, o antigo soldado do cêrco do +Porto meditou por alguns instantes, e continuou:</p> + +<p>--A historia vai esculpida em chronicas de reis, +e memorias d'aulicos. A historia ha de escrevel-a +um dia o povo, rasgando todas essas paginas +mentirosas e lisonjeiras das décadas fabulosas, +sahidas das mãos dos eunuchos d'estes harens +do occidente.</p> + +<p>Esta paralysia social em que a geração presente +cahiu, esta hesitação absurda e repugnante +nos annaes da nossa vida actual tem uma explicação +irrespondivel: o mundo espera uma +crença viva para se alentar na sua marcha--para +respirar, e viver. D'onde virá a fé?</p> + +<p>Habitantes d'uma peninsula á mercê de tantas +invasões, raças tão diversas teem pisado este +solo, que difficil, senão impossivel, será buscar-lhes +a genealogia. Iberos, celtas, tyrios, phenicios, +carthaginezes, numidas, berbéres, romanos, +godos, alanos, suevos, mussulmanos, e varias +hordas de gascões, e borgonhezes, afóra +<span class='pagenum'>[66]</span> +aragonezes, asturianos, e gallegos sulcaram este +solo sagrado.</p> + +<p>Onde estão os lusitanos?--Onde corre esse +sangue mosarabe com que a historia enche a +vastidão das nossas campinas, e povôa a crista +das nossas montanhas?--Nas trevas das invasões +perdem-se os vestigios, e em presença dos aventureiros, +que acompanhavam Henrique de Borgonha, +apparece uma raça energica, robusta, e +corajosa, que põe em derrota a meia lua dos +sectarios do Islam, e obriga a dynastia affonsina +a conceder-lhe cartas de foraes, que são os pergaminhos +e armarias d'esta nobilissima raça hispanica.</p> + +<p>E o velho soldado do cêrco do Porto curvou +a cabeça, e meditou.</p> + +<p>Depois disse:</p> + +<p>--Quem são, então, os duques e condes que +acompanhavam o aventureiro, e bastardo real? +Quem são os mercenarios, que se aformoseavam +com as alcunhas ephemeras, e irrisorias dos cargos +nobiliarchicos da côrte byzantina, quando +estes titulos valiam, outr'ora, pela significação +do mando, do poderio e da jurisdicção?</p> + +<p>Á face da nobre raça hispanica--raça que +somos nós--eram elles o enxurro, e a vadiagem +das côrtes em que nasceram.</p> +<span class='pagenum'>[67]</span> + +<p>Nós eramos o povo, éramos a raça, éramos a +tradição.</p> + +<p>Quem tomou Lisboa aos mouros? Quem levou +os arabes e berbéres de vencida até ás costas +do occidente? Quem povoou a patria, quando as +quinas se desfraldaram em Ourique? Quem coroou +D. João I, esmagando as traições de Castella? +Quem promoveu a restauração de 1640, e +lutou pela independencia da patria?</p> + +<p>Foi o povo.</p> + +<p>Deixemos Aljubarrota ao condestavel.</p> + +<p>Deixemos a restauração aos quarenta conjurados +do palacio do conde de Almada. Que poderiam +elles sem nós? O zelo, a coragem, o esforço, +e o amor da patria só nos cabem a nós.--Vencemos +sempre, porque eramos o povo.</p> + +<p>Batemos com os contos das nossas lanças ás +portas de Ceuta, de Tanger, e d'Arzilla, e os +bastiões africanos cediam aos nossos esforços. +Aportamos em Calecut, Cochim, Gôa, Malaca e +Ormuz--e o Oriente dobrou-se á nossa vontade. +Que importa, que os cabos de guerra tenham +os louros das victorias, e das conquistas? A gloria +é nossa. Fomos o instrumento civilisador, o +soldado que morre pela patria, o portuguez, que +cahe alanceado junto do seu pendão.</p> + +<p>Para o condestavel, para Vasco da Gama, +<span class='pagenum'>[68]</span> +para Affonso d'Albuquerque, para D. João de +Castro, para D. Francisco d'Almeida ha a chronica, +ha o livro, ha as tenças, ha a narração +dos feitos esforçados e valerosos, ha as recompensas +da munificencia regia, e os brazões, que +são a commemoração d'esses feitos, esculpidos +nos portaes dos seus nobres solares.</p> + +<p>Para o homem do povo, que pelejou ao lado +dos mais corajosos, que batalhou onde havia +mais perigo, que abandonou mãi, mulher e filhos,--para +esse, ha a valla de finados, triste, e +obscura--e a chronica emmudece, porque +não é para peões, e villanagem, que foi creada +a historia dos reis, e a Torre do Tombo, onde +se guardam, e archivam seus feitos e memorias.</p> + +<p>Para o povo ha o silencio.</p> + +<p>Quando d'elle falla a historia, alcunha-o de +sedicioso, barbaro e turbulento.</p> + +<p>Para o povo ha o esquecimento.</p> + +<p>A humanidade é uma idéa abstracta, que vive +para a historia, nos vaidosos triumphos dos +Alexandres, dos Cesares e dos Pompeus.</p> + +<p>Quando um homem do povo cahe mutilado, +pela arma homicida dos poderosos do dia, chama-se +Socrates, chama-se Spartacus, chama-se +Gracho, chama-se Galileu, chama-se Danton, +<span class='pagenum'>[69]</span> +chama-se Vergniaud, chama-se Armand Carrel, +chama-se Gomes Freire, chama-se <em>legião</em>. Mas a +historia atravessa estes periodos symbolicos da +vida das nações sem commemorar estes nomes?</p> + +<p>Para que?--Levantou já alguem o estigma +que pesa sobre Catilina?</p> + +<p>A historia divinisou Cesar, e applaudiu Cicero.</p> + +<p>Rasgaram já os crépes que envolvem o busto +de Robespierre, e a fronte de Saint-Just?</p> + +<p>A França reclamou Bonaparte, e mais tarde +victoriou o cossaco, que dos estepes da Russia +vinha impôr leis e dynastias ao capitolio da raça +latina.</p> + +<p>E nós?--Aqui o veterano fez uma pausa. Levantou +a fronte como se sentira o clarim das batalhas, +e continuou em voz sumida e cavernosa:</p> + +<p>--A nós deram-nos uma carta constitucional, que +é como um foral--para não dizer carta d'alforria--a +nós deram-nos uma mentira, escripta com +o sangue do povo, no sólo sagrado da patria.</p> + +<p>E o veterano calou-se.</p> + +<p>Depois como despertado pelo ruido dos combates, +como se aquella alma aspirasse a novas +lutas, para sustentar os principios por que pelejára, +ergueu-se do catre onde estava sentado, e +rumorejou: E fallaes-nos de patria! patria aonde, +e patria com quem? No Rocio em treze de +<span class='pagenum'>[70]</span> +março?--em Torres Vedras em 1846?--no +Porto em 1851?--A patria é o sólo sagrado onde +jazem as ossadas dos nossos avós. A patria +é o local onde assenta o nosso lar domestico, onde +vivem as nossas familias, onde está cravado o +pendão dos nossos direitos. A patria é nossa por +que derramamos o nosso sangue por ella.</p> + +<p>Em seguida curvou-se para mim, que estava +sentado no fundo d'este triste e miseravel quarto, +e disse-me em phrases breves:</p> + +<p>--Faça-me só um favor. É o unico que lhe peço. +Como prologo d'esse manuscripto, publique +este papel. É a meditação das minhas noites de +insomnia. É o symbolo das minhas crenças. É o +credo da minha religião politica. Morrerei contente.</p> + +<p>Começa por este prologo o manuscripto do +desembargador.</p> + +<p class="direita">VISCONDE DE OUGUELLA.</p> +<span class='pagenum'>[71]</span> + +<hr> + + + +<a name="cap09"></a> +<h1>O DECEPADO</h1> + + +<p>Duarte de Almeida, o alferes de Affonso V, conheço-o +desde a minha infancia, por m'o apresentar +em verso o meu finado amigo Ignacio Pizarro.</p> + +<p>Chorei por Duarte de Almeida, como se elle +fosse meu avô, quando o infeliz, na volta de Toro, +onde os castelhanos lhe deceparam as mãos, se +lastimava assim pela bocca do poeta do <em>Romanceiro +portuguez</em>:</p> + +<div class="poesia"> +Nem a espada, nem a lança<br> +Posso nas mãos empunhar!...<br> +Ai de mim! triste lembrança!...<br> +Nem bandeira tremolar!...<br> +Nem bordão de peregrino<br> +Póde meu corpo arrimar!<br> +Nem o meu pranto contino<br> +Tenho mãos para limpar!...<br> +Luiza! já me esqueceste?...<br> +Talvez tu ora suspires<br> +Por outro... se tal fizeste...<br> +Coração! ah! não delires...<br> +Morto já, tu me julgaste,<br> +E se agora assim me viras,<br> +D'aquelle a quem tanto amaste<br> +Talvez agora fugiras.<br> +<span class='pagenum'>[72]</span> +Talvez nobre cavalleiro<br> +Póde alcançar tua mão...<br> +Queira o céo morra eu primeiro,<br> +Não saiba a tua traição.<br> +Que eu antes quero da morte<br> +Ter gelado o coração,<br> +Do que vir amor tão forte<br> +Ter em premio a ingratidão.<br> +</div> + +<p>Com estas e outras piedosas queixas ia o namorado +alferes caminho do castello de Aguiar, +onde vivia a castellã Luiza.</p> + +<p>O leitor já me está dizendo que sabe o entrecho +do romance de Pizarro: que a donosa castellã, +julgando morto o seu amado, lhe fizera cantar +os responsos em sumptuosos funeraes: que o +cavalleiro, a deshoras, se annunciára na barbacã +do castello; e, admittido á capella, encontrou +Luiza a vestir o habito de monja: que o decepado, +apertando-a ao peito, lhe fez vêr que estava +vivo, e que ella, allegando o voto que fizera de +professar, cahiu de encontro á eça, e morreu.</p> + +<p>Termina o trovador:</p> + +<div class="poesia"> +Seu amante desditoso,<br> +Mais desgraçado, viveu;<br> +Mas o seu fim lastimoso<br> +Nunca ninguem conheceu.<br> +</div> + +<p>Bastantes annos--e que ditosos annos!--andei +enganado pelo meu amigo Pizarro. Fui tres +<span class='pagenum'>[73]</span> +vezes ao castello do Pontido. Creio que já disse, +não me lembra aonde, que encontrei entre as urzes +da matta subjacente ao castello um espigão +de espora sem rosêta, e suspeitei que ella houvesse +sido do infausto amador da castellã. Figurou-se-me, +ao cahir da noite, vêl-a no gothico +balcão, voltada para os serros fronteiros, suspirar +no alaude:</p> + +<div class="poesia"> +Adeus, serra do Mizio!<br> +Adeus, val de Villa Pouca!<br> +Adeus, castello sombrio!<br> +Minha voz ouvi já rouca!<br> +</div> + +<p>Estas impressões da primeira mocidade revivem +quando a razão as impugna ao sentimento. +De envolta com as minhas indagações historicas +na triste sorte da princeza D. Joanna, chamada a +<em>excellente senhora</em>, o vulto que mais me preoccupava +era o alferes da bandeira, Duarte de Almeida, +o heroe, o amante da castellã, o decepado +cujo</p> + +<div class="poesia"> +..........fim lastimoso<br> +Nunca ninguem conheceu.<br> +</div> + +<p>Quanto ao seu fim, citava Pizarro um trecho +de Duarte Nunes de Leão (<em>Chronica de Affonso V</em>) +muitissimo desconsolador. Alli se diz que o bravo, +<span class='pagenum'>[74]</span> +depois de tamanha proeza, vivera mais pobre +que d'antes. Este opprobrio nacional confirma-o +modernamente o snr. Pinheiro Chagas, com estas +phrases austeras: «O cavalleiro heroico sobreviveu +ás suas feridas, e voltou a Portugal onde +foi sempre conhecido pelo glorioso nome do <em>Decepado</em>. +Mas, ó vergonha! o homem que assim +tão briosamente se portára, morreu na miseria, +porque nenhuma recompensa lhe foi dada, e porque +nem se quer podia ganhar a vida pelo seu +trabalho, logo que o haviam impossibilitado de +trabalhar as suas tristes mutilações<sup><a name="mfn5" href="#fn5">[5]</a></sup>.»</p> + +<p>Por honra da patria e da humanidade, apresso-me +a declarar que é menos exacto o que Duarte +Nunes diz e o snr. Pinheiro Chagas encarece. Logo +me justificarei com documentos.</p> + +<p>Pelo que respeita ao romance de Pizarro, tão +sómente dous elementos de verdade historica podemos +aceitar-lhe: a existencia do alferes e a do +castello de Aguiar. E o certo é que ao meu intelligente +amigo não corria o dever de maiores exactidões.</p> + +<p>Primeiramente direi do castello.</p> + +<p>Lá está, e já lá estava assim, pouco mais ou +menos, antes da fundação da monarchia portugueza. +<span class='pagenum'>[75]</span> +Quem o possuia ou governava, no tempo +em que D. Affonso Henriques pleiteava nos arraiaes +com sua mãi e com o imperador D. Affonso, +era o rico-homem D. Gonçalo de Sousa, genro +de Egas Moniz, e senhor da terra de Sousa. +Traslada no tom. III da <em>Monarchia Lusitana</em> (pag. +112), fr. Antonio Brandão da <em>Vida de Santa Senhorinha</em>, +codice áquelle tempo inedito, uma passagem +que faz ao nosso intento<sup><a name="mfn6" href="#fn6">[6]</a></sup>.</p> + +<p>Reza assim, melhorado na orthographia:</p> + +<br> +<p><em>«Digo-vos que estando folgando em sua terra +um principe nobre e cavalleiro d'este reino, o qual +era mui privado d'el-rei D. Affonso, e havia nome +D. Gonçalo de Sousa, mui poderoso, e todo conselho +d'el-rei estava em elle; estando, como disse, folgando, +chegaram a elle mensageiros dizendo que os inimigos +lhe corriam a terra, e que lhe tinham cercado +o castello d'Aguiar; o qual logo chamou suas +gentes que pôde haver, e foi-se para haver de descercar +o dito castello. E chegando aonde jaz o corpo +d'esta santa lhe fez reverencia, e oração não lhe +lembrou; e indo ainda em vista da igreja metade +<span class='pagenum'>[76]</span> +de um campo, esteve pegada a mula, em que ia o +cavalleiro, a qual elle com esporas e pancadas não +podia abalar, mas antes a mula quedava mais rija +e pero se desceu d'ella e a não podia abalar; e, vendo +elle isto, lembrou-lhe como passára pela igreja +da santa sem lhe pedir benção, e mercê, e sem fazer +oração, e por isso lhe detinha a mula; e, soffreando +a mula para traz para se tornar á igreja, +a mula logo tornou, e o cavalleiro fez sua oração +encommendando-se á santa, e des i fez seu caminho, +e com suas companhas descercou seu castello, +e correu depois os inimigos, e tornou a sua casa +com victoria</em>, etc.»</p> + +<br> +<p>O chronista Brandão, por mal informado, escreve +que o castello de Aguiar da Pena se avista +com as montanhas de Barroso. Estas montanhas +distam seis leguas do castello, e entre ellas e o +valle em que negreja a fortaleza gothica estão os +cabeços da serra de Alfarella, e no horisonte mais +elevado alveja villa Pouca de Aguiar. Acrescenta +que o castello «é crespo de torres, baluartes e cubellos, +e está fundado sobre a corôa de uma penha +talhada de uma parte por natureza, que parece +obra feita á mão,» etc.</p> + +<p>Póde ser que no seculo XVII, quando Brandão +escrevia, permanecessem ainda as torres e baluartes. +<span class='pagenum'>[77]</span> +O que ha vinte annos parecia ter robustez +para seculos eram quatro alterosas quadrellas +de alvenaria ameiadas com seus adarves, bastiões, +e janellas gothicas sem lavores.</p> + +<p>Recordo-me ter lido na <em>Nova historia de Malta</em> +de José Anastacio de Figueiredo que o castello no +seculo XIII pertencia á ordem hospitalaria de S. +João de Jerusalem, e cita um aviso que obriga os +lavradores circumvisinhos a carregarem pedra +para reparos.</p> + +<p>E não sei mais nada quanto ao solar da phantastica +Luiza.</p> + +<p>Agora vamos em cata do <em>Decepado</em>, depois que +voltou de Castella. Encontramol-o na sua casa +acastellada no seculo XII, que teve o nome de +castello de Villarigas, no couto do Banho, hoje +concelho de S. Pedro do Sul.</p> + +<p>É elle o herdeiro de seu pai Pedro Lourenço +de Almeida. Afóra aquelle castello, tem outro na +quinta chamada da Cavallaria, honrada por el-rei +D. Fernando em 1419, e onde os linhagistas enraizam +o tronco dos Almeidas.</p> + +<p>Quando alli chegou, esperavam-o a esposa e +dous filhos.</p> + +<p>A esposa chamava-se D. Maria de Azevedo, +filha do senhor da Louzã Rodrigo Affonso Valente +e de D. Leonor d'Azevedo, que herdára +<span class='pagenum'>[78]</span> +grandes haveres de sua tia D. Ignez Gomes de +Avellar.</p> + +<p>Os filhos do <em>Decepado</em> chamaram-se Affonso +Lopes, e Ruy Lopes de Almeida. Affonso, o successor +das honras e coutos de Villarigas e Cavallaria, +casou com D. Leonor Vaz Castello Branco, +filha de João Vaz Cardoso, aio do conde de Barcellos.</p> + +<p>O filho segundo, Ruy, foi para Castella, como +veador da princeza D. Joanna, filha de D. Duarte, +e mulher de Henrique IV.</p> + +<p>Esta geração de fidalgos continuou honrada e +rica até á duodecima neta de Duarte de Almeida, +a snr.ª D. Eugenia de Almeida de Aguilar Monroy +da Gama Mello Azambuja e Menezes que em 15 de +setembro de 1834 casou com o snr. Fernando +Telles da Silva, marquez de Penalva, de quem +teve dous filhos, Luiz, que, nascendo em 1837, +morreu ha poucos annos, e D. Henriqueta de Almeida, +que nasceu em 1838, e vive solteira. +Do snr. Luiz Telles, que foi casado com a snr.ª D. +Maria Francisca Brandão, sua prima, existe uma +filha, que é já senhora.</p> + +<p>Quanto á pobreza <em>e miseria em que morreu</em> +Duarte de Almeida, o snr. Pinheiro Chagas foi illudido +por Duarte Nunes e Faria e Sousa, que na +<span class='pagenum'>[79]</span> +verdade o authorisaram a deplorar tão sentidamente +a sorte do alferes de Affonso V.</p> + +<p>Duarte de Almeida succedera a D. Duarte de +Menezes no posto nobilissimo de alferes-mór da +bandeira. Militando nas guerras de Africa, salvou +o pendão real das presas da mourisma, quando +Affonso V deu batalha na serra de Benacofuf. (Faria +e Sousa, <em>Africa</em>, cap. 6, §. 7.º)</p> + +<p>E tanto o rei não foi ingrato aos serviços do +seu valente alferes, que, estando em Samora, em +1475, no anno anterior ao da batalha de Toro, +ainda antes do heroico feito, lhe fez mercê pelos +seus grandes serviços, para elle e seus filhos, de +um reguengo no concelho de Lafões, cuja carta +de mercê póde lêr-se na Torre do Tombo no <em>Livro +que serviu na chancellaria de D. Affonso V</em>, +folha 17, e começa: <em>A quantos esta minha carta +virem faço saber que pelos muitos serviços que +Duarte de Almeida, fidalgo de minha casa, e meu +alferes-mór me tem feito assim n'estes reinos de +Castella como de Portugal e em Africa, onde sempre +me serviu muito bem e lealmente</em>, etc.</p> + +<p>O rei, que tanto o apreciára e galardoára, sabido +é que foi para França solicitar debalde a alliança +do velhaco de Luiz XI. Voltou a Portugal, +onde viveu ainda cinco tristissimos annos, forçado +a divorciar-se da esposa, desestimado do filho, +<span class='pagenum'>[80]</span> +e desvenerado dos vassallos. Não era, pois, tempo +proprio aquelle para premiar heroismos batalha, +cuja perda dissimulada em victoria, enlutára +o brio e o coração de Affonso V.</p> + +<p>O decepado, por sua parte, lá tragava o fel +dos seus derradeiros annos na abastança dos bens +que, certo, lhe não mitigavam as angustias da +mutilação; mas em pobreza e miseria não consintamos +sequer á poesia que nol-o figure.</p> + +<p>Se D. João II não augmentou em coutos, honras +e senhorios a casa do alferes de seu pai, não +o arguamos por isso, sem haver a certeza de que +Duarte de Almeida sobrevivesse ao Africano. Na +batalha do Toro já devia ir no inverno da vida +quem vinte annos antes desfraldára o pendão real +em Alcacer-Ceguer, e quem já tinha um filho, que +acompanhára como veador a Castella a mãi da +princeza D. Joanna por amor de quem andava accesa +a guerra. Afóra isso, é de crêr que Duarte +de Almeida assistisse ao desastre de Alfarrobeira +em 1449, e não fosse dos menos carniceiros na +mortandade do duque de Coimbra e dos seus +leaes amigos. Ora, transluz da historia que D. +João II odiára todos os fidalgos que, de parçaria +com o duque de Bragança, malsinaram de traidor +o infante D. Pedro. Ajuda estas suspeitas ser o +primogenito de Duarte de Almeida casado com a +<span class='pagenum'>[81]</span> +filha de um que fôra aio do conde da Barcellos, +antes de ser duque de Bragança.</p> + +<p>Já, porém, o successor de D. João II galardoou +o neto do decepado, dando-lhe o senhorio da villa +do Banho, a provedoria das caldas de Lafões, +e lhe confirmou o privilegio e couto da quinta da +Cavallaria.</p> + +<p>Em remate de tão derramadas provas, quero +deixar bem assente que Duarte de Almeida, o +meu tão chorado heroe do sentimentalismo da +infancia, não morreu pobre, nem acabou na miseria +do homem que, á mingua de mãos, não +póde trabalhar.</p> + +<p>Por fim, não sahirei do paço senhorial da Cavallaria +sem consolar o leitor pio e mais lido em +cousas do céo que em nobiliarios, que n'aquella +casa nasceu o bemaventurado S. frei Gil, chamado +de Santarem, e que Almeida Garrett ajoujou +com o dr. Fausto no poema <em>D. Branca</em> e nas +<em>Viagens</em>.</p> + +<p>Ainda hoje, n'aquella casa, perdura uma capella +edificada na alcova onde nasceu o sabio feiticeiro +e pactuario do demonio. Observe-se que o +conde D. Pedro, no <em>Livro das Linhagens</em>, tit. 25, +pag. 151, diz que Gil fôra assassinado por Pedro +Soares Galinato; mas o chronista-mór João Baptista +Lavanha desfaz o erro,--o que eu muito +<span class='pagenum'>[82]</span> +estimo para que se não desluza a substancia da +bella prosa de fr. Luiz de Sousa, historiador do +santo.</p> + +<div class="rodape"> + <p><a name="fn5" href="#mfn5">[5]</a> <em>Historia de Portugal</em>, tom. III, pag. 28.</p> + + <p><a name="fn6" href="#mfn6">[6]</a> O codice está integralmente impresso nas <em>Memorias resuscitadas da antiga Guimarães</em>, pelo padre Torquato Peixoto de Azevedo, em 1692, pag. 444-476. Sirvo-me d'esta copia, corrigindo os erros do traslado de Brandão.</p> +</div> + +<hr> + + + +<a name="cap10"></a> +<h1>CARIDADE BARATA E ELEGANTE</h1> + + +<p>O advogado Sampaio Efrin morreu, ha cinco +annos, em Lisboa, e deixou dous filhos illegitimos, +que já não tinham mãi.</p> + +<p>Amára-os extremadamente. As duas crianças +excruciaram-lhe a agonia; mas expirára com a +certeza de que seus filhos, e herdeiros de parte +de seus haveres, não balbuciariam, em horas de +fome, o nome de seu pai.</p> + +<p>Mas a justiça desherdou os orphãos, e deu o +espolio do advogado á sua viuva.</p> + +<p>O menino alimentou-se cinco annos da caridade +de uma criada de seu pai.</p> + +<p>E, quando tinha seis, appareceu livido e pobremente +vestido a pedir esmola no tribunal da +Boa-Hora--alli, onde seu pai triumphára nas lides +da eloquencia.</p> +<span class='pagenum'>[83]</span> + +<p>A bemfeitora que, até áquelle dia lhe repartira +do seu pão, quando sentia a mão da morte +sobre o seio, disse á criança que fosse ao tribunal +e mendigasse, lembrando-se que alli concorriam +pessoas que tinham conhecido seu pai.</p> + +<p>O snr. João Bernardino da Silva Borges viu o +menino andrajoso, a tiritar, com o espasmo da fome +nos olhos--aquelle olhar espavorido da miseria--que +parece sagrada nas criancinhas--aquelle +olhar torvo, expressão de assombro do +anjo a tremer sobre o cairel d'este inferno do +mundo.</p> + +<p>O menino tinha uma carta na mão. O snr. +Silva Borges leu a carta. Era a supplica da moribunda +a favor do desvalido filho de seu amo.</p> + +<p>E conduziu a criança, onde lhe dessem a esmola +do jantar e da cama.</p> + +<p>Ao outro dia, o <em>Jornal da Noite</em>, publicando +uma carta commovente do protector do orphão, +acompanhava a invocação á caridade de sentidas +e pungentes palavras.</p> + +<p>E, no dia immediato, o mesmo jornal exultava +noticiando que o orphãosinho estava amparado, +no regaço da caridade abundante, nos braços de +alguem que ouvira o echo das divinas palavras de +Jesus: «Deixai que as criancinhas se aconcheguem +de mim.»</p> +<span class='pagenum'>[84]</span> + +<p>Volvidas duas semanas, á volta do menino, a +caridade faz-se representar por nove senhoras illustres, +quanto cabe inferir dos appellidos.</p> + +<p>Nove anjos, as nove musas da inspiração santissima, +nove corações a desbordar de generosidade, +dezoito mãos cheias de caricias e do superfluo +da sua riqueza, para afagar, alimentar e educar +um menino a quem esta setima primavera +bafeja os primeiros risos de sua enfezadinha +puericia. É muito!</p> + +<p>Mas estas nove damas assumem cada qual sua +nomenclatura:</p> + +<p>Uma, chama-se <em>presidenta</em>;</p> + +<p>Outra, <em>vice-presidenta</em></p>; + +<p>Quatro, são <em>vogaes</em>;</p> + +<p>Uma, é <em>thesoureira</em>;</p> + +<p>E as outras, são <em>secretarias</em>.</p> + +<p>Mas que tem isto que vêr com o orphão? O +congresso das senhoras, assim qualificadas em +categorias de banco, de junta de parochia, de +empresa aurificia, de companhia das aguas, organisou-se +d'este feitio para dar uma pensão de +300 reis diarios--o bastante--ao pequenino no +collegio?</p> + +<p>Quer-me parecer dispensavel tamanho funccionalismo +em operações tão singelas! São nove senhoras +abastadas que se fintam, quotisando-se cada +<span class='pagenum'>[85]</span> +uma em 33 reis por dia, ou dez tostões por mez. +É, na verdade, barato o salvar-se um menino e fazel-o +homem! Seis ou oito annos do pão e estudo +d'aquella creatura--que ss. exc.<sup>as</sup> hão de enfiar +com santa vaidade diante da sepultura de seu +pai--não póde custar a cada uma tanto como +dous dos seus vestidos medianamente guarnecidos.</p> + +<p>Então, qual vem a ser a missão das exc.<sup>mas</sup> +presidenta, vice, vogaes, thesoureira, secretarias?</p> + +<p>Leitor, que estás a impar de ternura, e tens o +rosto banhado de lagrimas de consolação, saberás +que as referidas nove senhoras--que tu já +conheces dos lautos bailes, e das <em>toilettes</em> esplendidas--congregaram-se +agora <em>para promover um +beneficio ao orphão no theatro de D. Maria</em>.</p> + +<p>Ahi está o que é. Ainda agora é que estas dadivosas +senhoras vão sondar a magnanimidade publica; +vão dar uns toques de elegante apparato á +caridade, e ao mesmo tempo convidar-vos a pôr +hombros áquella ponderosa empresa de agasalhar +uma criancinha que se alimenta com um pouco +de amor e algumas migalhas sacudidas das cêas +opiparas. A caridade de Lisboa! A caridade do espalhafato! +Aqui, no Porto, o orphão, a esta hora, +estaria agasalhado, sem que a imprensa conhecesse +o nome do bemfeitor.</p> +<span class='pagenum'>[86]</span> + +<p>E a imprensa de Lisboa exalça encarecidamente +a exuberante bizarria das senhoras que +promovem nos corações alheios o sentimento da +esmola. Peço licença para tambem me accender +em admiração de tamanho arrojo, e perguntar, +por esta occasião, aos jornalistas se, no seu cadoz +de phrases, ficou alguma com que se louve aquella +criada pobresinha que sustentou o menino cinco +annos, e o largou do seu seio quando o coração +se lhe afogou nas ultimas lagrimas.</p> + +<hr> + + + +<a name="cap11"></a> +<h1>PROFUNDA REFORMA NOS COSTUMES DA VIA-FERREA PORTUGUEZA</h1> + + +<p>Quando Portugal emergia das trevas da meia-idade, +em 1873, e a via-ferrea de Portugal era +roupa de francezes, o scintillante escriptor Ramalho +Ortigão enviou aos snrs. <em>François et Ladame</em> +(cumpre não aceitar a traducção de Bordalo +Pinheiro--<em>Francisco e a mulher</em>) uns urbanos +queixumes ácerca da bruta ladroeira que os funccionarios +<span class='pagenum'>[87]</span> +da via-ferrea perpretaram em parte das +batatas de um sacco enviado desde o Minho ao +percuciente critico. Ortigão, cujo agudo espirito +argúe abstinencia de alimentação farinacea, conclue +a sua epistola, modêlo de graça portugueza--que +é a graça de todo o mundo--offerecendo +aos directores da via-ferrea todas as futuras e porvindouras +batatas, visto que ss. s.<sup>as</sup>, cedendo-lhe +algumas, soffriam tal qual desfalque.</p> + +<p>N'esse tempo, estava eu em Lisboa a vasquejar +nos demorados paroxismos da anemia, resultante +de dyspepsia, complicada com hepatite, e +prodhromos de encephalite, e symptomas de curvatura +de espinha, e esgotamento de fluido nervoso, +afóra a espinhela cahida.</p> + +<p>Escrevi, n'esta concurrencia pathologica, a um +amigo meu, residente no Porto, que me comprasse +alli doze garrafas do mais antigo e secco vinho +que se lhe deparasse em garrafeira particular. +Quando conclui a carta, cuidei que expirava, por +que tinha consumido em quatro idéas sem estylo +o oxygeneo e acido carbonico de que podia dispôr.</p> + +<p>D'ahi a dias, o meu amigo enviou-me o titulo +de recepção de doze garrafas de vinho, compradas +por 12 libras, e enviadas pela «grande velocidade», +cuidando elle que os ladrões não as apanhariam +na carreira.</p> +<span class='pagenum'>[88]</span> + +<p>Como se as doze garrafas se me figurassem +outras tantas botelhas de Leyde a descarregarem +electricidade sobre os meus grandes-sympathicos +e regiões limitrophes, saltei da cama, e fui receber +o meu vinho--a minha salvação--a Santa +Apolonia.</p> + +<p>Recolhido o caixote á sege, e baixados os stores, +debrucei as regiões do meu olfacto sobre +as fisgas da tampa do caixão, na esperança de +aspirar alguns atomos de tanino.</p> + +<p>Cheirou-me a azeite. Entendi que havia perversão +na minha membrana pituitaria, uma narizite, +unica molestia que me faltava.</p> + +<p>Assim que entrei em casa e o caixão se abriu, +não sei bem o que vi, nem como perdi a consciencia +dos dous <em>eus</em>. Sei que, volvidas horas, recobrando +o espirito, e querendo recordar as causas +de tão comprido lethargo, perguntei aos circumstantes, +distillados em lagrimas, se eu tinha +lido algum livro de Theophilo.</p> + +<p>--Não, infeliz!--respondeu-me voz sincera--não +foi tamanha a desgraça que te fulminou; +o que tu viste foi seis garrafas do teu vinho, que +te custaram seis libras, substituidas por seis garrafas +vasias que tiveram azeite.</p> + +<p>A minha primeira idéa foi gritar á d'el-rei; +lembrando-me, porém, que o rei não governa, +<span class='pagenum'>[89]</span> +quiz chamar o cabo da rua; depois, passou-me +pelo espirito recorrer á camara «baixa» e ao patriarcha. +E, por fim, chorei copiosamente, e bebi +dous tragos de uma das seis; e logo, á semelhança +das nações oppressas, que se levantam +como um só homem, tambem eu me levantei sósinho; +e, clamando um rugido grande, pedi á +Providencia das raças latinas que nos désse um +administrador dos caminhos de ferro, nascido e +baptisado n'esta terra dos Affonsos e dos Joões.</p> + +<p>Fui ouvido, e as cousas melhoraram consideravelmente.</p> + +<p>N'este anno de 1874, 2.º da Emancipação, tenho +recebido reiteradas provas da melindrosa +cortezia que assiste ao funccionalismo do transporte +da via-ferrea portugueza. Se em 1871 não +chorei mediante os prelos, hoje lamento não ser +um cytharista bastante lyrico para dignamente arpejar +um fado expresso do citado funccionalismo.</p> + +<p>Direi da cortezia com que alli são tratadas as +minhas cousas. Tendo eu recebido em Lisboa seis +garrafões de aguardente das nossas colonias, lacrados +e cheios, enviei-os d'alli para o Porto +cheios e lacrados. Ao cabo de onze dias de jornada, +os garrafões chegaram a minha casa... inteirinhos! +Se isto não é probidade, a virtude era +aquillo que dizia Catão. Notei, porém, uma insignificante +<span class='pagenum'>[90]</span> +cousa: os garrafões chegaram deslacrados, +e levavam pouco menos de metade do liquido; +mas inteiros, perfeitos, sem rachadella, +nem esquirola de menos.</p> + +<p>Um d'estes dias, em dous caixões de vinho da +Madeira, que me eram enviados de Lisboa,--e +foram retidos para despacho nas Devezas, posto +que já em Lisboa houvessem pago direitos--observei +ainda mais refinada cortezia; porque, +apparecendo algumas garrafas quebradas, teve +aquella honrada e limpa gente o cuidado de lhes +trasfegar o vinho a fim de que as outras se não +molhassem--de modo que chegaram enxutas.</p> + +<p>E fez mais: teve outro sim a bondade de tirar +algumas garrafas para que as outras chegassem +mais desafogadas da pressão das visinhas!</p> + +<p>Eu não conheço maneira mais subtil de obrigar +a gente a um reconhecimento eterno, e a... +acautelar o relogio.</p> +<span class='pagenum'>[91]</span> + +<hr> + + + +<a name="cap12"></a> +<h1>FORMOSA E INFELIZ</h1> + + +<div class="citacao"> +A dita e a formosura,<br> +Dizem patranhas antigas,<br> +Que pelejaram um dia,<br> +Sendo d'antes muito amigas.<br> +<br> +Muitos hão que é phantasia;<br> +Eu que vi tempos e annos,<br> +Nenhuma cousa duvido<br> +Como ella é azo de damnos.<br> +<br> +<p class="direita">BERNARDIM RIBEIRO.</p> +</div> + +<p>São verdadeiras as trovas do poeta das <em>Saudades</em>.</p> + +<p>Aquella Maria da Penha que o leitor viu, ainda +agora, carpida n'um soneto, foi muito incensada +por formosa antes da sua queda. Uns poetas +a embriagaram com o perfume da lisonja, em +quanto ella se manteve honesta; outros lhe depozeram +alguns bagos de assafetida na ambula funeraria, +quando os seus creditos eram mortos e +responsados no catafalco que a sociedade levanta +ás suas mesmas victimas.</p> + +<p>E já que eu trasladei o soneto, como epitaphio +do seu tumulo no convento onde se finou, trasladarei +<span class='pagenum'>[92]</span> +tambem uns versos que lhe deram alor e +azas á vaidade que a perdeu.</p> + +<p>Suspeito que o poeta d'estes cantares não fosse +o fidalgo que a levou arrebatada de entre um +thalamo e um berço. Os poetas, por via de regra, +costumam enflorar os holocaustos sacrificados nas +aras da prosa. Assim o requer o equilibrio do +cosmos. Á poesia--a lyra que insinua no coração +da mulher as phantasias com que mais se alinda e +encarece; á prosa--as delicias d'essas bellas cousas, +o dominio das aves do paraiso, que os poetas +farejam, á laia de nebris que pairam a denuncial-as +ao caçador sagaz.</p> + +<p>A meu vêr, em quanto o marquez de Gouvêa +mandava ajaezar os cavallos para a funesta fuga, +um dos muitos idolatras da formosissima Maria +motejava uma quadra e derivava d'ella a glosa tão +presada n'aquelles tempos:</p> + +<br> + +<p class="centrado">A D. MARIA DA PENHA DE FRANÇA</p> + +<p class="centrado">MOTE</p> + +<div class="poesia"> +Abre-te, <span class="ni">penha</span> constante,<br> +serás minha sepultura;<br> +e, se os meus ais te não movem,<br> +digo-te, penha, que és dura,<br> +</div> +<span class='pagenum'>[93]</span> + +<p class="centrado">GLOSA</p> + +<div class="poesia"> +<span class="ni">Penha</span>, já sei que és tão dura,<br> +porque dous soes te geraram;<br> +seus raios te despojaram<br> +das reliquias da ternura:<br> +Porém, se a corrente pura<br> +de meus olhos incessante<br> +abrandar um diamante;<br> +a meu pranto sucessivo,<br> +quebra-te, marmore vivo,<br> +abre-te, penha constante.<br> +<br> +Até nas mais duras <span class="ni">penhas</span>,<br> +lavrador o tempo sendo,<br> +as aguas, que vão correndo,<br> +fazem regos, abrem brenhas.<br> +Não receies tu que venhas<br> +a perder por menos dura;<br> +pois meu pranto o que procura<br> +é desfazer-te em piedade;<br> +e, se abrir concavidade,<br> +serás minha sepultura.<br> +<br> +Lagrimas não te enternecem<br> +antes te tornam mais dura;<br> +roubou-lhe o preço a ventura<br> +ou por minhas desmerecem.<br> +Meus ais sentidos parecem<br> +golpes, que pedras commovem;<br> +mas como faiscas chovem<br> +de ti, que farei, oh <span class="ni">penha</span>,<br> +se o teu rigor mais se empenha<br> +e se os meus ais te não movem?<br> +<span class='pagenum'>[94]</span> +<br> +Teu nome a dizer se empenha<br> +quem tu és por semelhança;<br> +pois no garbo és toda <span class="ni">frança</span>,<br> +na dureza és toda <span class="ni">penha</span>:<br> +<span class="ni">Penha</span> em que pienha tenha<br> +essa rara formosura;<br> +mas, se estatua ser procura<br> +a meu suspiro incessante,<br> +mais que o mais duro diamante,<br> +digo-te, <span class="ni">penha</span>, que és dura.<br> +</div> + +<hr> + + + +<a name="cap13"></a> +<h1>ANTONIO SERRÃO DE CASTRO</h1> + + +<p>As indagações de Diogo Barbosa Machado, +ácerca do poeta Serrão, reduzem-se a datar-lhe +o nascimento.</p> + +<p>Á falta de outros subsidios, bastariam as poesias +do travesso sujeito a esclarecer-lhe a vida +mysteriosa aos mais atilados investigadores. O +maior numero d'ellas está inedito. E o seu mais +notavel poema, em tercetos, que perfazem 2:090 +versos octosyllabos, chama-se <em>Os ratos da inquisição</em>.</p> + +<p>No palacio da inquisição passou elle alguns annos +de sua vida, que de certo não foram os melhores.</p> +<span class='pagenum'>[95]</span> + +<p>Pelos modos, era hebreu dos quatro costados; +mas não adorava o bezerro, nem se abstinha dos +paios do Alemtejo. Em quanto o deixaram, viveu +e medrou á lei da natureza. Seguiu fervorosamente +a religião do prazer, repartindo alma e versos +por judias, christãs e mouras, consoante lhe sahiam +a talho de fouce. Tanto afinava a lyra para +cantar fidalgas como regateiras. Entre estas, houve +uma vendilhona de maçãs camoezas que não +foi das menos amadas e menos esquivas. Se os +poetas modernos querem ajuizar do lyrismo plebeu +d'este seu bisavô, aqui teem uma das cançonetas +dedicadas á saloia das camoezas, e cantada +pelos cytharedos d'aquelle tempo:</p> + +<div class="poesia"> +Para a feira vai Luiza<br> +Co seu balaio á cabeça<br> +Todo enramado de louro<br> +E cheio de camoezas.<br> +<br> +Leva saia de jilezia,<br> +Tambem jubão branco leva,<br> +Que serve o jubão de branco<sup><a name="mfn7" href="#fn7">[7]</a></sup><br> +D'onde Amor atira as flechas.<br> +<br> +Sobre os dedos, pendurados<br> +Leva seus punhos de renda,<br> +Tão valentona caminha<br> +Que treme o bairro de vêl-a.<br> +<span class='pagenum'>[96]</span> +<br> +Lá no meio do Rocio<br> +Levanta a voz mui serena<br> +Como se aprendera solfa:<br> +«Eu já tenho camoezas.»<br> +<br> +A voz tão divina e grave,<br> +A voz tão de prata e bella,<br> +Os galantes se alvorotam<br> +E ferve a bulha na feira.<br> +<br> +Deixam todos as boninas<br> +Só por ver esta açucena;<br> +Em um momento, cercada<br> +Se viu esta fortaleza.<br> +<br> +Os requebros que lhe dizem<br> +São balas de feras peças:<br> +Mas no muro de seu peito<br> +Acham grande resistencia.<br> +<br> +Uns apreçavam a fruta,<br> +Outros tiram da algibeira<br> +Ás mancheias os tostões,<br> +Aos alqueires as moedas.<br> +<br> +Mas Luiza, mui de espaço,<br> +Levantando a voz tão bella,<br> +De quando em quando repete:<br> +«Eu já tenho camoezas.»<br> +</div> + +<p>Hoje em dia, por acerto haverá ahi poetastro +a quem pareçam, sequer toleraveis, estas linhas +toadas, sem faisca de ideal, sem realismo, sem as +satanisações modernas; no entanto, o coração entende-se +melhor n'aquelles poetas que, em vez de +<span class='pagenum'>[97]</span> +se evolarem á poeira luminosa da via-lactea, andavam +alli pelo Rocio amoriscados de fruteiras +de camoezas.</p> + +<p>Por causa d'estes amores innocentes e frescos, +não foi Antonio Serrão de Castro disputar aos ratos +da inquisição a magra pitança da sua alcofa. +O leitor alguma vez ha de lêr os queixumes do +hebreu, repassados de tanta ironia, que a gente +se admira que os graves monges de S. Domingos +lhe não acendrassem o engenho no fogo.</p> + +<p>Quando o poema satyrico se escoou das grades +do carcere para a assembléa dos catholicos, um +poeta christão, no intuito de apressar o processo +do judeu, divulgou as seguintes decimas:</p> + +<div class="poesia"> +Judeu de mau proceder,<br> +Que, se em teus versos discorro,<br> +Logo pareces cachorro,<br> +No ladrar e no morder.<br> +Ainda espero vêr-te arder,<br> +Pois com tanta sem-razão<br> +Murmuras da inquisição;<br> +Porém, é força em teu erro,<br> +Se te tratam como perro;<br> +Que te vingues como cão.<br> +<br> +Dos ratos, d'esta maneira,<br> +Te queixas e de seus tratos;<br> +É mau queixar-te dos ratos,<br> +Estando na ratoeira.<br> +Tua allusão sorrateira<br> +<span class='pagenum'>[98]</span> +Saber o engenho procura,<br> +E a rhetorica se apura<br> +N'esta allusão que formaste,<br> +Pois d'esta figura usaste,<br> +Antes de fazer figura.<br> +<br> +Nescio, depois de judeu,<br> +Quando o sambenito mamas,<br> +Triste portuguez te chamas,<br> +Sendo o mais astuto hebreu!<br> +Quem te vira posto em breu<br> +Ou partido de uma bala!<br> +Ninguem comtigo se iguala,<br> +Pois fazes, quando precito,<br> +Sendo infame o sambenito,<br> +D'esse sambenito gala.<br> +<br> +Se viveste descortez,<br> +Com repetida torpeza,<br> +Mais á lei da natureza<br> +Do que na lei de Moysés,<br> +Queixa-te só d'esta vez<br> +De ti, mas não de outro trato;<br> +Que eu sei que nunca do rato<br> +Te queixarás, asneirão,<br> +Se assim como foste cão,<br> +Poderás tornar-te gato.<br> +</div> + +<p>Os ferventes desejos d'este catholico, assim +rimados, chegaram ao ergastulo do cantor dos +ratos, e vibraram-lhe os nervos da espinha dorsal. +Não lhe pareceu caso novo e original queimarem-no. +Embridou, por tanto, a musa da galhofa, +e cahiu em si. Começou de escrever poesias orthodoxas +<span class='pagenum'>[99]</span> +ao nascimento do Menino-Deus, aos santos +e santas mais em voga, ungindo tudo de lagrimas +de contrição que era uma piedade lêr-lhe +os sonetos, os quaes, ainda agora, li bastantemente +commovido. O certo é que o vaticinio do bardo +christão foi desmentido pelo hebreu que sahiu +absolto, e por ahi andou por Lisboa até aos setenta +e quatro annos, rindo de tudo com resalva das +conveniencias, e vivendo com as largas, que lhe +davam os seus admiradores, e acamaradado com +os primeiros fidalgos. Nasceu em 1610 e morreu +em 1684.</p> + +<div class="rodape"> + <p><a name="fn7" href="#mfn7">[7]</a> Alvo.</p> +</div> + +<br> + +<p class="centrado">FIM DO 4.º NUMERO</p> + +</div> + + + + + + + +<pre> + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of Noites de insomnia, offerecidas a quem +não póde dormir. Nº4, by Camilo Castelo Branco + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK NOITES DE INSOMNIA, NO 4 *** + +***** This file should be named 25114-h.htm or 25114-h.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/2/5/1/1/25114/ + +Produced by Pedro Saborano + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. Special rules, +set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to +copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to +protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact +information can be found at the Foundation's web site and official +page at https://pglaf.org + +For additional contact information: + Dr. Gregory B. Newby + Chief Executive and Director + gbnewby@pglaf.org + + +Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation + +Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide +spread public support and donations to carry out its mission of +increasing the number of public domain and licensed works that can be +freely distributed in machine readable form accessible by the widest +array of equipment including outdated equipment. Many small donations +($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt +status with the IRS. + +The Foundation is committed to complying with the laws regulating +charities and charitable donations in all 50 states of the United +States. 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Donations are accepted in a number of other +ways including including checks, online payments and credit card +donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate + + +Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic +works. + +Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm +concept of a library of electronic works that could be freely shared +with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project +Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. + + +Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed +editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. +unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. + + +</pre> + +</body> +</html> diff --git a/LICENSE.txt b/LICENSE.txt new file mode 100644 index 0000000..6312041 --- /dev/null +++ b/LICENSE.txt @@ -0,0 +1,11 @@ +This eBook, including all associated images, markup, improvements, +metadata, and any other content or labor, has been confirmed to be +in the PUBLIC DOMAIN IN THE UNITED STATES. + +Procedures for determining public domain status are described in +the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org. + +No investigation has been made concerning possible copyrights in +jurisdictions other than the United States. 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