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+The Project Gutenberg EBook of Noites de insomnia, offerecidas a quem não
+póde dormir. Nº4, by Camilo Castelo Branco
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº4
+
+Author: Camilo Castelo Branco
+
+Release Date: April 21, 2008 [EBook #25114]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK NOITES DE INSOMNIA, NO 4 ***
+
+
+
+
+Produced by Pedro Saborano
+
+
+
+
+
+
+BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA
+
+
+NOITES DE INSOMNIA
+
+OFFERECIDAS
+
+A QUEM NÃO PÓDE DORMIR
+
+POR
+
+Camillo Castello Branco
+
+PUBLICAÇÃO MENSAL
+
+
+N.º 4--ABRIL
+
+
+LIVRARIA INTERNACIONAL
+
+DE
+
+ERNESTO CHARDRON
+
+96, Largo dos Clerigos, 98
+
+PORTO
+
+EUGENIO CHARDRON
+
+4, Largo de S. Francisco, 4
+
+BRAGA
+
+1874
+
+
+PORTO
+
+TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA
+
+62--Rua da Cancella Velha--62
+
+1874
+
+
+BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA
+
+
+NOITES DE INSOMNIA
+
+
+SUMMARIO
+
+
+O cofre do capitão-mór--O jogador--Inedito do poeta Fr. Bernardo de
+Brito--Lisboa--Litteratura brazileira--Á «Actualidade»--A ex.^ma madrasta
+d'el-rei D. Luiz 1.^o calumniada--Os salões, pelo exc.^mo snr. visconde de
+Ouguella--O decepado--Caridade barata e elegante--Profunda reforma nos
+costumes da via-ferrea portugueza--Formosa e infeliz--Antonio Serrão de
+Castro
+
+
+
+
+O COFRE DO CAPITÃO-MÓR
+
+
+O homem, concluida a guerra do Paraguay, liquidou quinhentos contos, e
+retirou-se com esposa e filha para Mondim de Basto, sua patria.
+
+Passou, acaso, um dia por perto das ruinas de um casarão, reparou na pedra
+de armas que encimava um vasto portal de quinta, e perguntou de quem eram
+aquelles pardieiros.
+
+O abbade, a quem a pergunta era feita, respondeu:
+
+--São da fazenda nacional, que se está cobrando, ha trinta e dous annos,
+de uma divida antiga de impostos e respectivos juros e custas.
+
+--E, depois que a fazenda nacional estiver embolsada, de quem é isto?
+
+--Veremos a qual dos credores a lei dá a primazia--tornou
+o abbade.
+
+--Acho que os donos d'estes pardieiros eram fidalgos, porque tem armas
+reaes á porta--volveu o brazileiro pouco versado em heraldica.
+
+--Estas armas não são as reaes--explicou o padre--é o brazão de Pachecos e
+Andrades, muito illustres senhores d'este paço, que, em bons tempos, se
+chamou a honra de Real de Oleiros.
+
+--Cahiram em pobreza?
+
+--Sim, senhor; mas pobreza que tem uma historia interessante. Meu avô
+conheceu esta familia no galarim. Contava elle que o capitão-mór Pedro
+Pacheco estava em Lisboa, quando o marquez de Tavora, com os seus
+parentes, tentaram matar D. José, que era o amante da marqueza nova. Havia
+marqueza velha e nova, como sabe...
+
+--A fallar a verdade, não sei isso muito bem--atalhou ingenuamente o snr.
+José Maria Guimarães--Então como foi lá essa pouca vergonha?
+
+--Contos largos. A marqueza velha foi degolada, por não aceitar a
+prostituição da nora; a marqueza nova foi para um mosteiro bem regalado,
+em quanto o marido ia para a masmorra, e da masmorra para o cadafalso.
+Contos largos, amigo e snr. Guimarães. Vamos cá ao nosso caso. O
+capitão-mór Pedro Pacheco era muito de casa do duque de Aveiro; e, como eu
+disse, estava em Lisboa, quando o duque foi preso na quinta de Azeitão.
+Assim que o soube, fugiu, e não fez mal; porque foi procurado lá e aqui.
+Logo que chegou a esta casa, que era então um paço feudal, deu ordem á
+mulher que se preparasse e mais dous filhos menores para sahirem do reino.
+E, em quanto enfardelavam as bagagens, o capitão-mór mandou chamar meu
+avô, lavrador abastado, alferes de ordenanças, e muito seu amigo, para lhe
+entregar um cofre de pau preto com braçadeiras de bronze, cheio de peças.
+O cofre era tão leve ou tão pesado que meu avô, querendo erguel-o pelas
+argolas, gemeu. Lá por noite fora, pegaram os dous no cofre,
+transportaram-o á casa que ainda é a minha, e metteram-o n'um falso que
+ficava escondido pelas costas do leito de meu avô. Disse então o fidalgo
+ao depositario da sua riqueza que n'aquelle caixote estavam trezentos mil
+e tantos cruzados em dobrões e peças de ouro, e outras moedas muito
+antigas. Disse mais que a sua casa ficava exposta a buscas de
+quadrilheiros e de tropa, que era o mesmo que deixal-a franca aos assaltos
+dos ladrões. Por tanto, confiava de meu avô o seu dinheiro, sentindo não
+ter mais valiosas cousas que confiar á sua honra.
+
+--Trezentos mil cruzados!--murmurou o snr. Guimarães, esbugalhando os
+olhos--era bem bom d'elle! E depois?
+
+--O fidalgo foi para Hespanha, e para Inglaterra, onde tinha um seu
+parente embaixador, e por lá esteve alguns annos. N'este comenos, meu avô
+pegou de adoentar-se de molestia ethica, e escreveu ao capitão-mór,
+pintando-lhe o seu estado, e pedindo-lhe que viesse ou mandasse tomar
+conta do cofre. O fidalgo appareceu aqui uma noite com o maior resguardo,
+e metteu-se no seu palacio, confiando-se de um criado sómente a quem
+deixára a feitorisação das terras. De madrugada, mandou chamar meu avô,
+passaram juntos o dia, e de noite trouxeram ambos o cofre. Contava meu
+pai,--parece que o estou ouvindo,--que meu avô muitas vezes lhe dissera
+que o fidalgo não declarára onde tencionava esconder o thesouro; mas
+positivamente lhe dissera que o não levava para Inglaterra, já por temer
+ladrões, já porque não precisava gastar mais que os rendimentos da sua
+grande casa.
+
+Meu avô morreu d'ahi a mezes; e o capitão-mór voltou para a patria, no
+anno de 1777, quando D. José morreu, e o marquez de Pombal foi desterrado.
+
+--Essa não sabia eu!--atalhou com civico enleio o snr. Guimarães.
+
+--Que é que v. s.^a não sabia?
+
+--Que o grande marquez foi desterrado! Quem foram os marotos que...
+
+--São contos largos, snr. Guimarães. Vinha eu contando que o capitão-mór
+voltou, já viuvo, com dous filhos barbados, muito extravagantes, sem
+religião de casta nenhuma, criados entre hereges, destemidos, e levadinhos
+de todos os diabos. Ainda não ha muitos annos que morreram dous velhos do
+seu tempo que me contaram as malfeitorias que elles praticavam. Batiam a
+matar em todas as ordenanças que por ordem superior lhe tinham entrado em
+casa á procura do pai. Deshonestavam todas as cachopas d'estas tres leguas
+em roda. Em fim, amarguraram a velhice do pai, que era um santo homem, a
+ponto de lhe roubarem as pratas porque elle lhes não dava quanto dinheiro
+pediam. Finalmente, o velho morreu de repente em 1782, segundo reza o
+epitaphio que está na igreja de Refojos, convento que elle e seus
+ascendentes haviam beneficiado...
+
+--E os trezentos mil cruzados?--interrompeu o brazileiro.
+
+--Lá vou já. Assim que o pai se finou, os dous filhos abriram todas as
+gavetas, levantaram taboas, desladrilharam as lojas, escavaram debaixo dos
+toneis, escalavraram os forros, e nada toparam. Revolveram todos os
+papeis, a vêr se encontravam alguma indicação do dinheiro; e, com effeito,
+em um papelucho mettido n'uma carteira vermelha, acharam isto, que meu pai
+leu tambem: _Póde ser que a pobreza vos não corrija; mas a riqueza de
+certo vos faria tigres. Eu não morrerei com o remorso de vos deixar nas
+mãos o peor instrumento dos perversos, que é o ouro não adquirido com o
+proprio suor._ Tomaram-se de raiva, e romperam direitos a casa de meu pai,
+perguntando-lhe pelo dinheiro do seu.
+
+--Não ha duvida--respondeu meu pai--que n'esta casa e n'aquelle falso
+esteve um cofre do snr. capitão-mór; mas, alguns mezes antes de dar a alma
+a Deus, meu pai, que era honrado, entregou o cofre a quem lh'o dera a
+guardar.
+
+--E depois?--bradaram elles.
+
+--Depois, nada mais sei, senão isto que seu paisinho me repetiu muitas
+vezes.
+
+--Nós havemos de achar os ladrões.
+
+--Pois é procural-os--disse meu pai.
+
+Volveram a casa, e amarraram de pés e mãos o velho feitor do capitão-mór,
+determinados a não o desatarem sem elle denunciar a paragem do thesouro;
+porque o velho declarára que ninguem, senão elle, soubera da vinda do
+capitão-mór á patria, em quanto vegetou el-rei D. José, e o marquez de
+Pombal reinou. O feitor deixava-se martyrisar e morrer, ou porque
+realmente nada sabia, ou porque esperava que a final o deixassem. O caso é
+que, depois de solto, desappareceu d'estas terras, e nunca mais houve
+novas d'elle. Muita gente suppoz que o feitor levou os trezentos e tantos
+mil cruzados; mas meu pai, que o conheceu e teve em conta de muito
+honrado, affirmou que o dinheiro estava enterrado. Não sei; mas o
+desapparecimento do criado confidente do capitão-mór, a meu vêr, deixa
+suppôr que a estas horas, lá por esses reinos estrangeiros, vivem muito
+ricos os filhos do feitor. Deus sabe o que foi.
+
+--E então os dous filhos do capitão-mór ficaram pobres?--tornou o snr.
+Guimarães.
+
+--Pobres?! não, senhor. Quem tem sete quintas, que rendiam cinco a seis
+mil cruzados, que ha oitenta annos valiam dezoito mil cruzados de hoje em
+dia, não é pobre. O que elles fizeram foi tratar de se empobrecer. O
+morgado por aqui ficou, entretido com mulheres, galgos, caçadas, cavallos,
+feiras, jogo e valentias. O outro, que teve duas quintas de patrimonio,
+reduziu-as a moeda sonante, e foi para Lisboa requerer não sei que
+recompensas a D. Maria I, pensando que o ser seu pai amigo do duque de
+Aveiro, lhe dava direito a ser galardoado. Ora, se elle soubesse que a
+filha de D. José negou ao desventurado, ao innocente e quasi mendigo D.
+Martinho de Mascarenhas os bens de seu pai, duque de Aveiro, não iria
+allegar como cousa digna de premio o affecto do capitão-mór ao regicida
+suppliciado.
+
+--Conte-me lá isso por miudos...--atalhou o brazileiro que não lêra a
+_Historia portugueza_ do snr. Viale.
+
+--São contos largos. Vamos primeiro á historia do ultimo senhor da honra
+do Real de Oleiros--respondeu o abbade, e continuou: Não sei onde nem
+quando morreu Sebastião Pacheco de Andrade, o filho segundo do
+capitão-mór. Ouvi, porém, dizer que morrêra novo, pobre e deshonrado.
+Quanto ao morgado, sei que elle casou com a menos digna das suas
+concubinas, já quando não toparia menina honesta que aceitasse o fidalgo
+de Real de Oleiros. Christovão Pacheco, apesar da libertinagem e
+desperdicio, ainda gozava o que se chama decente mediania, quando sahiu
+d'este mundo, antes dos cincoenta annos. Teve um filho ante-nupcial da
+criada com quem casou. Este conheci eu mui de perto e em conflicto muito
+deploravel, como lhe contarei. O pai, que desprezava frades, e zombava da
+religião, mandara-o educar em religião e com um parente frade da ordem
+benedictina. O rapaz alegrou-se grandemente ao noticiarem-lhe que o pai
+era morto e elle herdeiro. Veio aqui, por ahi esteve dous annos
+socegadamente, olhando pelos bens, posto que debaixo de tutela; e, quando
+orçava pelos dezenove annos, tão grandes amostras dava de homem de bem que
+se lhe offereceu para esposa uma senhora de linhagem illustre e dotada com
+vinte mil cruzados. Emancipado pelo casamento, apossou-se do casal,
+desempenhou parte das quintas hypothecadas, e manteve bons creditos por
+espaço de alguns annos.
+
+Em 1832 era elle ainda muito rapaz, e já então vestia a farda de capitão
+de milicias. Esteve no cerco do Porto, onde consta que procedera
+valentemente. Porém, no fim da guerra, os bons costumes com que sahira
+d'esta casa por lá ficaram. O homem voltou tão diverso, tão estragado na
+moral, que já ninguem o via e ouvia que se não lembrasse do pai. A esposa
+não sei se por santa, se por peccadora, fugiu-lhe com uma criança de cinco
+annos para a casa d'onde viera; e elle, hypothecando os bens já
+deteriorados com as prodigalidades da vida militar, levantou muitos contos
+de reis, e estabeleceu-se em Lisboa.
+
+Desde 1836 a 1843, o seu viver na capital deu brado por _aventuras
+amorosas_, como lá dizem os salteadores da honra das familias. Pedro de
+Andrade, que assim se chamava, como seu avô, era um homem gentil, bem
+feito, galhardo, e muito airoso. Tinha as seducções de Satanaz feito
+homem. A corrupção de Lisboa era grande, e elle ainda maior; mas
+desgraçadamente, o maldito empestou muita menina innocente, e abriu muitos
+abysmos aos pés das virgens que pareciam ter postos no céo os olhos
+contemplativos.
+
+--Que grande maroto!--disse o brazileiro.
+
+--Em 1843, depois de uma ausencia de seis annos, appareceu aqui, de
+repente, Pedro de Andrade, e procurou-me a fim de me propôr a compra dos
+bens que ainda não estavam captivos de dividas. Eu desculpei-me com a
+falta de dinheiro, e outros aceitavam a proposta, se a mulher assignasse
+os contractos. N'este entretanto, recebi de Lisboa certa gazeta de que era
+assignante, onde li uma noticia que me abalou dolorosamente. E, estando em
+minha casa Pedro de Andrade, perguntei-lhe se tinha noticia do triste
+successo contado pelas gazetas.--Qual successo?--perguntou elle. «Eu lh'o
+leio» disse eu; e visto que estamos á minha porta, queira o snr. Guimarães
+entrar, que eu lhe vou lêr a gazeta, que Pedro de Andrade ouviu com
+inalterado semblante.
+
+ * * * * *
+
+O brazileiro entrou na saleta do abbade, que tirou da estante dos seus
+livros a _Revista Universal Lisbonense_ de 1843; e leo, a paginas 23, o
+seguinte:
+
+
+«A POMBA E O ABUTRE
+
+«Quasi todos os papeis publicos transcreveram do _Portugal Velho_ o caso
+de uma donzella fugida do paço real. Levantaram sobre isto altos clamores
+contra ella, contra o seductor, contra a perda da proverbial gravidade do
+palacio portuguez. Sentimol-o o calamos.--Era assumpto melindroso; para
+relatar e sentenciar careciamos ainda de evidencia. Hoje suppômo-nos
+habilitados para ratificar e completar a narração de um successo que,
+devida ou indevidamente, já cahiu no dominio do publico, e não é possivel
+extorquir-se-lhe da memoria.
+
+«No palacio velho da Ajuda vegetam ainda umas cincoenta ou mais
+solitarias, que, opprimidas dos annos e das molestias, recebem da caridade
+da soberana o pão pelos serviços, que outr'ora prestaram ás rainhas e
+princezas suas ascendentes;--são os ornamentos partidos e desfigurados de
+um seculo, que desabou para nunca mais ser reconstruido.--Todas estas
+mulheres são tristes como reliquias de tempos festivos, saudosas, ou
+antes, saudades ellas mesmas:--a presença de todas e de cada uma, aggrava
+a cada uma e a todas ellas a melancolia do crepusculo da morte, que já
+lhes vem anoitecendo.--Todo o reboliço, todas as quotidianas
+transformações materiaes, moraes e politicas da visinha capital, onde já
+foram vivas, moças e brilhantes, ou não chegam alli, ou só chegam como uns
+contos vãos e longinquos, como sonhos de cousas passadas em outro planeta:
+¿que tem ellas que vêr no berço que se apparelha para uma nova
+idade?--ellas, que já pendem para o sepulchro, a contemplar no fundo
+d'elle tantas cousas louçãs e vivazes, que lhes pertenciam!
+
+«Entretanto no meio d'este palacio de tristezas volteava ainda um raio de
+sol; um arbusto florejava purpuras no meio d'este cemiterio; uma avesinha
+cantava primavera entre o desconsolo d'estas ruinas; uma viração deliciosa
+fazia ás vezes susurrar agradavelmente estes musgos resequidos. Tudo isto
+era a joven Maria, lindeza de 18 annos, lindeza corporal como poucas,
+lindeza de espirito como ainda menos, lindeza de coração como quasi
+nenhuma, sobrinha e companheira de uma d'estas velhas, companheira e amiga
+de todas ellas. Maria, era realmente o feitiço, a Vida e o encantamento
+d'aquelle retiro sem porvir. Toda a casa a amava: era uma paga de divida;
+Maria queria-lhe muito, quasi que alli abrira os olhos, pelo menos outra
+nenhuma lhe lembrava; sob aquelles tectos brincára desde a idade de tres
+annos; entre aquellas cabeças encanecidas se fôra coroando a sua de longas
+tranças louras: entre o crescer de tantas rugas se desenvolveram e
+aperfeiçoaram as suas graças; entre o progressivo decahir de tantas
+prendas e esperanças como as folhas verde-pallidas que em pomar de outomno
+se despegam uma a uma, os seus talentos naturaes por uma desvelada
+educação, que a munificencia da snr.^a D. Maria I proporcionára a sua tia
+os meios de lh'a dar, tinham chegado ao seu maior auge.
+
+«Maria do Carmo reunia ás prendas manuaes proprias do seu sexo, um lêr e
+escrever primoroso, noções e gosto de litteratura, mórmente da franceza,
+em cuja lingua era mui versada, e musica, merecendo no piano as honras de
+mestra, e por corôa de elogio verdadeiro, os seus costumes eram puros e o
+seu coração religioso: nas orações que todas iam quotidianamente depôr aos
+pés do altar, as d'ella deviam rescender mais a innocente alegria que a
+temores ou remorsos.--A 25 de junho orava no côro com sua tia quando o
+relogio dos paços bateu as 6 da tarde. Levanta-se, pede licença para
+deixar o restante para depois, e ir entregar--que o prometteu--um debuxo
+de bordados a uma sua amiga fóra da casa.
+
+«Foi: correram horas, e não voltou.
+
+«Começaram e cresceram cuidados: mandou-se á busca por todas as partes:
+passou o serão, passou a noite, e passaram tambem dias, sem que a
+tornassem a vêr, nem a ouvir d'ella nova alguma.
+
+«N'essa tarde alguem se lembra de ter notado uma sege parada debaixo da
+arcada do paço. E um morador da casa acrescenta que, perto da noite,
+achando-se no caes do Sodré, vira chegar uma sege á porta de uma
+hospedaria, e um homem de chapéo branco apear uma menina, que lhe pareceu
+ella.
+
+«Devolvidos quatro mortaes dias, chega no domingo um gallego com uma carta
+para a consternada tia:--entrega-lh'a em mão propria, e ajunta, havel-a
+recebido de uma menina mui linda, que lavada em lagrimas e afogada em
+soluços lhe recommendára fosse leval-a correndo, e lhe trouxesse signal de
+ter sido recebida. O conteudo d'esta carta ninguem o soube, mas parte
+d'elle facilmente se póde presumir.--Ás nove horas d'essa mesma noite
+viram-se sahir pela portaria dous vultos rebuçados, que por mais que a
+porteira os interrogasse, partiram sem dar resposta. Á hora e meia da
+noite os mesmos dous vultos vieram bater á porta, trazendo entre si
+amparado e quasi em braços um terceiro, que ninguem reconheceu. Abriram
+uma porta, que havia muito não servia, e que dava passagem para a pousada
+da fugitiva, e entraram.
+
+«Pessoa do sitio por quem isto soubemos, nos acrescentou, que o estado de
+Maria na seguinte manhã, segundo lh'o descrevêra quem acabava de a vêr,
+cortava o coração. As suas tranças louras e espessas tinham desapparecido.
+O seu rosto pendia pallido e esmorecido. Duas fontes corriam dos seus
+olhos. A sua dôr via-se e era terrivel porque era muda.
+
+«As suas o occupações desde então teem sido orar e chorar: com isto leva
+no oratorio as horas do dia e da noite, abraçada com a imagem da
+consoladora dos afflictos, beijando-a nos pés, nas mãos e no rosto como
+filha a sua mãi--como filha prodiga, que procura, á força de se restituir
+toda, reconquistar o coração materno; como se coração materno se apartasse
+nunca. O pai aggravado perdôa, a mãi não, toda ella foi sempre amor, e o
+amor não sabe senão amar.
+
+«A unica pessoa, que além de sua tia, a tem visto, é o medico, alma
+sensivel, de quem recebe os soccorros mais assiduos e delicados.
+Entretanto o mal que a mina é grave. Quasi privada do alimento e do somno,
+os seus dias parecem ameaçados de um fim prematuro. Se a violencia mesma
+da sua dôr lhe não limitar em breve a duração, outro perigo pouco menos
+cruel que o da morte, parece ameaçal-a. O pranto continuo que afoga os
+seus olhos, receia-se que venha por ultimo a lh'os apagar, e que a
+pobresinha que, ainda ha pouco, era o raio de sol de toda a habitação,
+venha ainda a ser, mergulhada em trevas e sobrevivendo a si mesma, um
+objecto de profunda e esteril compaixão para tantas infelizes, a quem
+ella, pouco ha, repartia alegrias e emprestava mocidade.
+
+¡¿E agora quem a condemnará por um erro, cuja origem e historia nos são
+desconhecidos?! ¿quem a apedrejará entre os braços, sob o manto e sob os
+olhos da rainha dos anjos, que lhe deu o seu nome, lhe chama filha sua e
+com a vista serena e amorosa lhe está apontando para as alturas?! ¡¡¡Que
+delictos e crimes (quanto mais erros)! deixariam de se lavar com tantas
+lagrimas!!! ¡¡¡E ha entretanto aqui um homem, talvez entre nós, talvez
+festejado e respeitado--um homem, que ella generosa não nomeia, não
+nomeará nunca--um homem, cujo rosto mais duro que o de Caím se não
+transformou, se não tingiu de repente na côr de sua alma para o denunciar,
+como sacrificador da innocencia, da virtude, da formosura, e do amor, de
+um amor irresistivel, inspirado por elle, e que a elle sacrificava tudo
+até a vida,--tudo até o porvir--tudo--tudo até a honra!!! ¡¡¡Ha ahi um
+homem d'estes!! ¡Ha-o sem duvida! e se as justiças o descobrissem, este
+homem receberia uma pena: menos affrontosa que a do ladrão assassino...
+Este homem não havia de ser mandado por todas as cidades e villas do reino
+de braço dado com o carrasco, para ser atado a cada pelourinho, escarrado
+no rosto por todos os homens e mulheres, e esbofeteado depois pelo seu
+menos infame companheiro de jornada com a mão esquerda. Não: que importa o
+que padece uma mulher? Não crêsse nas palavras de quem a fascinára; não
+fosse moça, innocente e amante; não fosse mulher. As justiças da sociedade
+teem mais cousas em que pensar. ¿E de mais não se vê isto todos os dias?
+Não são conhecidos muitos outros que tambem matam assim o tempo com estas
+caçadas amorosas? ¿que o confessam com vangloria e que em companhias mui
+luzidas são por isso admirados e invejados! Tratemos dos interesses
+materiaes. O restante são chimeras, são fanatismos, são miserias, indignas
+da attenção de legisladores, e dos homens illustrados de 1843.»
+
+
+Concluida a leitura, o abbade proseguiu:
+
+--Ouvida a historia, o fidalgote sacudiu a poeira das calças com um
+chicotinho de baleia, e disse: «São vulgarissimos esses casos em Lisboa. O
+que a mim me espanta é que a imprensa vista o habito de Tartuffo, e sáia
+ás praças a prégar contra a corrupção que ella promoveu com os seus
+romances, com as suas philosophias, com as suas theses de liberdade, e com
+a perseguição de escarneo e de fome feita aos apostolos da sincera
+moralidade.»
+
+Discursou largamente n'este sentido, e despediu-se, deixando-me inclinado
+a dar-lhe razão.
+
+ * * * * *
+
+Passam-se tres dias:--continuou o abbade--era meia noite de 2 de agosto do
+mesmo anno de 1843. Recolhia-me á igreja de ter ministrado a extrema-unção
+a um moribundo, quando ouvi dous tiros a pouca distancia, e d'ahi a
+minutos o alarido de muitas vozes, gritando «homem morto!»
+
+Sahi ao adro, e encontrei pessoas que já vinham chamar-me para assistir
+aos paroxismos de Pedro de Andrade que estava mortalmente ferido á porta
+de sua casa.
+
+Quando cheguei, já o haviam transportado ao leito. Estava ainda vivo.
+Assim que me viu, acenou-me com anciedade, apertou-me convulsamente a mão,
+e segredou-me: «Quero confessar-me, que vou morrer.»
+
+Escutei-o por espaço de hora e meia; as phrases eram cortadas por gritos
+de agonia; ambas as balas lhe estavam dilacerando as entranhas do peito;
+e, ainda assim, aquelle demorado arrancar da vida me quiz parecer uma
+delonga providencial para que o grande criminoso tivesse tempo de penar e
+chorar suas culpas. Expirou com todos os sacramentos, pedindo-me que, em
+nome d'elle, pedisse perdão a seu filho e a sua mulher.
+
+O moribundo, quando me revelou o seu derradeiro delicto, rogou-me que
+désse publicidade ao crime e ao castigo a fim de que a sua desgraça
+podesse aproveitar aos centenares de delinquentes que lhe haviam dado o
+exemplo do vicio e da impunidade. E, por tanto, não escrupuliso em lhe
+dizer que o seductor da infeliz Maria do Carmo havia sido Pedro de
+Andrade, e que os vingadores da abandonada menina deviam ser seus
+parentes, posto que o assassinado os não houvesse conhecido, e lhes
+ouvisse apenas dizer, antes de desfecharem as clavinas, que lhe traziam
+saudades da prostituida senhora do paço da Ajuda.
+
+--Com effeito!--observou o snr. Guimarães--essa historia arripiou-me os
+cabellos!... V. s.^a ha de emprestar-me essa gazeta que eu quero copiar
+esse caso! Diga-me cá: e o filho d'esse desgraçado?
+
+--O filho do desgraçado, que tinha então onze annos e estava com sua mãi,
+póde dizer-se que ficou litteralmente pobre. Os credores e a fazenda
+nacional disputaram-se a posse do espolio. O rapaz, quando chegou á idade
+de tomar conta da honra de Real de Oleiros, convenceu-se que lhe era
+mister trabalhar para não morrer de fome. Os parentes de sua mãi, posto
+que abastados, não o protegeram, e tornaram-lhe pesada a esmola do pão e
+da cama. Um dia, o brioso moço sahiu com sua mãi da casa que lhe
+amargurava o bocado, e foi habitar um casebre nas visinhanças do escrivão,
+que o fizera seu amanuense, e lhe dava doze vintens por dia. V. s.^a
+conhece-o. É aquelle Alvaro de Andrade que tem lavrado as escripturas de
+compra de propriedades que o snr. Guimarães tem adquirido...
+
+--Pois é esse!... Aquelle homem humilde que me beijou as mãos quando eu
+lhe dei uma libra de gratificação...
+
+--É esse mesmo.
+
+--E nunca me disse de que familia era...
+
+--Não falla em familia, e parece até esquecido da sua procedencia. Que eu,
+a fallar verdade, uma vez, passando com elle defronte das ruinas da casa
+de seu pai, surprendi-o a olhar para as paredes derruidas com as lagrimas
+nos olhos. Perguntei-lhe por que chorava, e elle respondeu-me que chorava
+por sua mãi, lembrando-se que d'aquella casa sahira ella coberta de mais
+amargas lagrimas.
+
+--Coitado!--disse o brazileiro--hei de fazer-lhe o bem que poder.
+
+--E póde muito v. s.^a; mas faça-lh'o de modo que o não humilhe.
+
+--Eu cá sei, snr. abbade. Nós, os chamados brazileiros, sabemos todos os
+processos de dar esmolas aos nossos patricios de modo que elles se
+dispensem de nos agradecer, e até lhe deixamos o direito salvo de nos
+ridiculisar.
+
+A justiça inspirára este homem, que nunca fôra tão eloquente.
+
+ * * * * *
+
+Pouco tempo depois, annunciou-se a venda da quinta de Real de Oleiros e
+suas pertenças, a requerimento dos credores. José Maria Guimarães cobriu
+todos os lanços. Foi-lhe adjudicada a quinta por alto preço. Os
+licitantes, que eram os credores, acotovelavam-se jubilosos, e diziam
+entre si:
+
+--_Espiguêmol-o!_
+
+E, assim que o ramo lhe foi entregue, disseram unanimemente:
+
+--Foi _espigado_!
+
+O brazileiro pagou immediatamente ao instrumento da adjudicação, e disse,
+relançando a vista aos alegres credores de Pedro de Andrade:
+
+--Meus senhores, o que vale aos credores dos fidalgos, que não pagam, são
+estes _nossos irmãos de além-mar_, que, lá e cá, melhor fôra chamar-lhes
+_irmãos da misericordia_...
+
+--É parvo!--disse um poeta de Basto ao ouvido de um bacharel de
+Felgueiras.
+
+ * * * * *
+
+Passados dias, começaram obras de reedificação no local do palacete
+arruinado. O proprietario, fazendo-se encontradiço com o amanuense do
+tabellião, disse-lhe:
+
+--Ó snr. Alvaro, vá o snr. hoje, se não tiver que fazer, á quinta de Real,
+que temos que conversar a respeito de certos arranjos.
+
+--Sim, senhor--disse Alvaro--quando v. s.^a quizer.
+
+--Ás 4 da tarde; e leve tinteiro e papel, que não ha lá d'isso.
+
+Á hora aprazada, entrou o bisneto do capitão-mór na extincta honra dos
+Pachecos e Andrades. Já lá estava o brazileiro, ás testilhas com os
+alveneis. Assim que chegou o escrevente do tabellião, subiu com elle por
+entre um matagal de bravio até ao alto de um outeirinho onde se erguia um
+pombal já descaliçado, mas ainda assim a porção menos esboroada das
+pertenças da quinta, graças á fortaleza do tecto abobadado de pedra.
+
+Havia dentro uma banca de granito, onde outrora os senhores de Real se
+desenfastiavam em merendas, depois das fadigas da caça na tapada defeza.
+Já lá estavam duas cadeiras.
+
+--Sente-se ahi, snr. Alvaro--disse José Maria Guimarães,--e vá escrevendo.
+
+--Prompto!--respondeu o escrevente, rodando a sibilante tarracha do
+tinteiro de chifre.
+
+--Ponha ahi os nomes dos pobres da freguezia que não tem casa de seu.
+
+Alvaro Pacheco escreveu trinta e quatro nomes; quedou-se um momento, e
+perguntou:
+
+--De todos os pobres que não tem casa?
+
+--Sim, de todos os pobres que não tem casa propria.
+
+--Então, falta o meu nome. Somos trinta e cinco os pobres que não temos
+casa.
+
+E escreveu: _Alvaro, escrevente de tabellião._
+
+--Muito bem--volveu o brazileiro commovido--sabe o que eu quero?
+
+--V. s.^a o dirá.
+
+--É ceder metade d'esta quinta aos pobres para elles edificarem uma casa
+com seu quintalejo; já se vê que sou eu que pago as obras das casas; e,
+visto que o snr. Alvaro é um dos trinta e cinco pobres, escolha a local
+onde quer a sua casa feita. A escolha do local é sua; ora agora, o feitio
+da obra isso é cá por minha conta.
+
+--Os pobres aceitam, não escolhem--disse Alvaro.
+
+--Mau!--replicou José Maria Guimarães--Mau! ou bem que somos francos um
+com o outro, ou não temos nada feito. Eu cá sou assim!
+
+--Então quer v. s.^a...
+
+--Deixemo-nos de _senhorias_. Eu sou filho de um almocreve, e neto e
+bisneto de burriqueiros; e o snr. Alvaro Pacheco é descendente de
+capitães-móres a quem meus avós traziam presuntos de Melgaço nas suas
+recovas de machos. Deixemo-nos de _senhorias_. Vamos á questão. Onde quer
+a sua casa?
+
+--Aqui--disse Alvaro.
+
+--Aqui no pombal?!
+
+--Aqui, porque fica sendo casa, e ao mesmo tempo memoria de ter estado
+n'este sitio um homem honrado.
+
+--Ou dous--emendou o brasileiro--Dê cá um abraço, e vamos embora, que faz
+aqui frio.
+
+E, no decurso do caminho, proseguiu:
+
+--O snr. Alvaro ha de fazer-me o favor de se despedir do serviço do
+tabellião, se lhe não custar. Preciso de quem me represente n'estas obras,
+em quanto vou tratar de negocios a Lisboa. Eu cá lhe deixo as plantas das
+casas dos pobres, e o capital para o custeio das despezas.
+
+ * * * * *
+
+O brazileiro voltou, passados seis mezes. Todas as casas estavam já de
+parede e tecto, quando voltou, excepto a do pobre chamado Alvaro.
+
+--Com que então a casa n.^o 35 ainda não tem sequer os
+alicerces?---perguntou o bemfeitor.
+
+--É porque o pobre n.^o 35 não precisa tanto como os outros--respondeu o
+feitor.
+
+--Então vou eu ser agora o fiscal das suas obras--tornou José Maria.
+
+E, ao outro dia, fez convergir os melhores operarios para a bouça do
+pombal, e mandou arrazar a vivenda de centenares de andorinhas que se
+esvoaçavam ao primeiro troar dos alviões e marretas.
+
+Alvaro e José Maria assistiam ao derrubamento do pombal, um tanto
+condoidos do esgazear das espavoridas habitadoras das ruinas.
+
+N'isto, um pedreiro esboroando com a alavanca um pedaço de parede,
+descobriu uma superficie escura, que se lhe figurou lousa.
+
+--Que diabo de obra é esta de lousa em parede de cantaria?--disse o
+alvenel.
+
+O brazileiro abeirou-se da parede, apalpou a supposta lousa, e observou ao
+pedreiro que era pau e não lousa, mandando socavar dos lados, e alimpar a
+superficie do que quer que fosse.
+
+--Isto é um caixote!--disse o mestre da obra--querem vossês vêr que o
+diabo as arma?
+
+--Arma o quê?--perguntou José Maria Guimarães.
+
+--V. s.^a nunca ouvia dizer que os fidalgos de Real esconderam um thesouro
+que nunca se encontrou?
+
+--Já ouvi dizer isso. Atirem a baixo toda a pedra que está dos lados, e
+não embarrem no caixote. Cuidado lá com isso! Snr. Alvaro, parece-me que
+vai assistir á resurreição do melhor defunto dos seus avós--bradou o
+brazileiro.
+
+--Como?!--perguntou Alvaro, que vinha entrando no recinto do pombal.
+
+--Venha vêr. Apalpe. Que é isso?
+
+--Parece-me um caixote--disse o bisneto do capitão-mór.
+
+--Não é parece; é que é. Sabe o que lá está dentro? Sabe a historia dos
+trezentos e tantos mil cruzados de seu bisavô?
+
+--Ouvi dizer que...
+
+--Que nunca appareceram. Apparecem hoje. Estão alli.
+
+Alvaro de Andrade que tinha encarado o infortunio de trinta annos com
+intemerato aspecto, descorou em frente da taboa negra que devia ter dentro
+uma cousa chamada, bem ou mal, a _fortuna_.
+
+A este tempo, o caixote era apeado, suspenso entre quatro robustos braços.
+
+--Oh! como pesa!--gemeu um dos pedreiros.
+
+--Podéra não!--disse o brazileiro--trezentos e tantos mil cruzados!
+
+--Os rios correm para o mar, snr. Guimarães--observou o mestre d'obras.
+
+--Que quer dizer, mestre?--perguntou o brazileiro.
+
+--Que se v. s.^a era rico, é agora riquissimo.
+
+--Obrigado pelo conceito que faz de mim, mestre...--volveu José Maria
+entre risonho e agastado.
+
+--Ó meu senhor, pois eu...
+
+--Suspeita-me de ladrão...
+
+--Valha-me Deus!... o que apparecer em terra de v. s.^a seu é.
+
+--E esta terra é minha? Pois não sabe que este chão é d'este pobre que se
+chama Alvaro?
+
+--Ó snr. Guimarães!...-exclamou o filho do ultimo senhor da honra de Real
+de Oleiros, e não pôde articular outra expressão.
+
+--Vamos!--acudiu o brazileiro--para onde é que vai o thesouro de seu avô,
+snr. Alvaro Pacheco de Andrade, snr. barão, snr. visconde, snr. conde,
+snr.... Quer mais? Dê as suas ordens.
+
+José Maria casquinava uma risada de elevada intelligencia, em quanto os
+obreiros, rodeando o caixote, se embasbacavam uns nos outros, e todos no
+rosto de Alvaro com a mais sincera e respeitosa estupidez.
+
+Novamente instado para que dissesse onde o caixão devia ser levado, Alvaro
+respondeu:
+
+--A minha mãi, que sabe o que são pobres.
+
+ * * * * *
+
+E os primeiros pobres, que relativamente enriqueceram nas aldêas
+convisinhas, foram os descendentes dos irmãos d'aquelle feitor que muitos
+alcunharam de fugitivo ladrão do thesouro do capitão-mór, e que se fôra a
+morrer longe d'alli, e obscuramente, receoso de ser novamente martyrisado
+pelos filhos de seu amo.
+
+Alvaro Pacheco de Andrade, n'este anno de 1874, tem quarenta e nove annos,
+e é conhecido pelo fidalgo de Real de Oleiros. Aquella senhora de tez
+morena, com cinco formosos filhos, que brincam á volta de outra senhora de
+setenta annos, é a esposa de Alvaro, e filha de José Maria Guimarães. A
+dos cabellos brancos, que lhe alvejam na fronte como a corôa de açucenas
+de uma santa, é a viuva d'aquelle galhardo e infausto D. Juan, assassinado
+em 1843. O sacerdote ancião, que parece ser da familia, é aquelle abbade
+que nos leu a _Revista Universal Lisbonense_, e a quem eu devo e agradeço
+os commentarios ao fogoso e pungente artigo, que me parece ser do meu
+presado mestre e adorado amigo visconde de Castilho.
+
+
+
+
+O JOGADOR
+
+
+Hoje em dia, aquella denominação, nem é desprezivel nem affrontosa. O
+progresso indultou o jogador; deliu-lhe da fronte o antigo ferrete.
+
+Se eu jogar com sorte propicia, e mobilar um palacio, cujas alfaias e
+baixella representem os haveres e as lagrimas de muitas familias, serei o
+legitimo e respeitado proprietario do meu palacio.
+
+Se eu abrir os meus salões, a mais selecta sociedade virá pisar as
+alcatifas do meu palacio, e lisonjear a magnificencia do fino gosto que
+dirigiu as correntes do meu ouro. Ninguem me perguntará se herdei de avós,
+se ganhei de incautos a minha opulencia. Talvez que os meus convidados
+segredem entre si a proveniencia das minhas pompas; mas d'esses, duas
+vezes deshonrados, vingado estou. Deshonrados, porque entraram nas minhas
+salas, e deshonrados porque denegriram a honesta posse dos vinhos que me
+beberam.
+
+Continuando a auspiciosa hypothese: se eu fôr o jogador enriquecido,
+bemquisto das familias, pessoa séria, influente nas eleições bancarias,
+com folha corrida, insuspeito de falsificador de testamentos ou moeda, de
+certo me não distingo do homem de bem, laborioso, honrado e provado nas
+lutas da vida.
+
+Ha, todavia, entre nós uma pequena differença: eu dou bailes, e o meu
+honrado visinho não os dá.
+
+Mas isso depende da aristocracia da indole: elle póde descender d'algum
+servo de gleba, que lhe transmittiu genio caínho e o acanhamento de raça;
+em quanto eu obedeço a impulsos de outro sangue. As damas que se bamboavam
+nos coxins flaccidos das minhas othomanas com toda a certeza não
+calcularam quantos _micos_ infelizes dos meus parceiros representavam as
+copias de Raphael e os originaes de Murillo pendurados sobre as colgaduras
+das minhas paredes. Antes quero suppôr que ellas, no arrobo da sua
+admiração, meditaram que na minha cabeça havia o que quer que fosse digno
+da cabelleira encalamistrada de um Marialva, no reinado de D. João V.
+
+É profundo o fôsso que me separa do jogador em outras eras. Nasci quando
+devia nascer. Se eu viesse á luz no seculo XVI, este meu mister de jogador
+era synonymo de vadiagem (_Ord_, l. V, tit. 82). Nas minhas tertulias,
+devidas á sorte feliz da tavolagem, lograria apenas reunir jogadores. Se
+nascesse no seculo XVII ou XVIII, os corregedores dos Philippes, de D.
+João IV e Pedro II, e dos reis subsequentes, se eu désse bailes,
+carregavam-me com as leis sumptuarias por sobre a pêcha de vadio. Em tempo
+de D. João V, D. José ou D. Maria, tanto o Camões do Rocio, como o Marques
+Bacalhau, como o Pina Manique mandavam-me responder do Limoeiro pela
+procedencia dos meus lustres, dos meus sophás, dos meus jarrões, dos meus
+contadores marchetados, dos meus bronzes, dos meus frescos, dos meus
+pendulos, dos meus pavimentos de xadrez lustroso. E vestiam-me talvez uma
+das librés dos meus criados.
+
+Foi por isso que o facho da civilisação, passando pelas minhas salas de
+jogador feliz, radiou reverberos esplendidos da minha baixella, e me
+mostrou em meio dos meus convidados, com a fronte luzentissima das
+alegrias do homem de bem.
+
+Póde ser que, em outras eras tenebrosas, a felicidade no jogo fosse
+malsinada de fraude e roubo.
+
+Hoje não.
+
+O jogo, á luz de 1874, é um contracto bilateral, fundado no consentimento
+de ambas as partes.
+
+Se é forçoso que uma das partes fosse tola e desgraçada, eu de certo não
+fui.
+
+Está fechada a hypothese.
+
+
+
+
+INEDITO DO POETA FR. BERNARDO DE BRITO
+
+
+Escreveu o famoso cisterciense a _Sylvia de Lizardo_, e ninguem o trata de
+poeta quando o louva ou moteja. Chamam-lhe o _chronista_, o _classico_, o
+_douto_, o _mentiroso_, o _massador_, o _milagreiro_; poeta é que não; e
+houve até um frade da ordem d'elle, Fortunato de S. Boaventura, o author do
+_Punhal dos Corcundas_, que positivamente desbalisou de poeta e de author
+da _Sylvia de Lizardo_ o vernaculo author da _Chronica de Cistér_.
+
+Pois foi poeta, e dos bons do seu tempo, aquelle Balthazar de Brito de
+Andrade, que por amor do patriarcha se crismou em _Bernardo_.
+
+Teve elle o ruim sestro de desfazer na prosapia dos outros. Raro fidalgo
+lhe sahiu incolume do crisol em que por obrigação do officio de
+historiador, elle acendrava o fino ouro dos Trocozendos, dos Romarigues,
+dos Egas Bufas e outros condes das raças romana é goda.
+
+Nos descendentes do Espadeiro, que eram a geração dos _Coelhos_, beliscava
+elle, á conta do assassinio de Ignez de Castro. De si, dizia o frade, que
+os _Britos_, em Portugal, derivavam dos _Brutos_ de Roma.
+
+Um descendente de Egas Moniz, chamado João Soares de Alarcão, como era
+poeta, satyrisou a maledicencia de fr. Bernardo de Brito com este soneto:
+
+ Aos profundos imperios d'el-rei Pluto
+ Irás, Bernardo, pelo que has escripto,
+ Pois dizes que de _Bruto_ vem teu _Brito_,
+ Ficando tu só n'isso Brito e bruto.
+
+ Tu vens d'aquelles que a pé enxuto
+ Passaram, com Moysés, o mar do Egypto,
+ Ou vens do que com sangue do cabrito
+ Tantos guizados fez sem nenhum fructo.
+
+ Chamastes ao teu livro _Monarchia_,
+ Sendo _Mona_ que cria monstros varios,
+ E tornastes de ferro a idade de ouro.
+
+ Não te mettas em casos temerarios;
+ Pasta nas hervas, bebe da agua fria,
+ Ou na velha escudela o caldo louro.
+
+O monge de Cistér responde pelas mesmas rimas:
+
+ Maçarico dos charcos de el-rei Pluto,
+ Que taes marmanjarias has escripto,
+ Que ao douto frei Bernardo ou Bruto ou Brito
+ Picas com bico infame, sujo e bruto;
+
+ Jámais será de Ignez o pranto enxuto,
+ Pois a fazes mais quartos que um cabrito,
+ Dizendo que nas mãos deu o esp'rito
+ De Coelho matador, sagaz e astuto.
+
+ Não vem da lusitana monarchia
+ Martinho _mono_, pai de cascos varios,
+ Sua mãi de _Aguilar_, aguia, não de ouro.
+
+ Não te mettas em casos temerarios:
+ Que louro não honra tua musa fria,
+ Mas de uma pouca de... o caldo louro.
+
+As injurias do primeiro terceto entendem com os progenitores de João Soares
+de Alarcão. Martinho, se era _mono_, sobrava-lhe direito a ser da
+_monarchia_ lusitana; mas tambem o outro se demasiára, vituperando de
+_mona_ a _Monarchia_ do frade. Tratavam-se de macacões um ao outro. _Pai de
+cascos varios_, invectiva o poeta de Alcobaça. Pela variedade da cascaria,
+entende-se que capitulava de cavalgadura o adversario: saldo bem ajustado
+com o outro que lhe chamára _bruto_.
+
+Entra no soneto a mãi do poeta, que devia ser da familia de _Aguilares_: e
+era com effeito, sem ser de raça desprimorosa. Chamava-se D. Cecilia de
+Mendonça Aguilar e Lugo, filha de Philippe de Aguilar, mestre-sala de D.
+Sebastião, de D. Henrique, de D. Philippe, e tão amigo de Castella que
+chegou á mordomia-mór do rei intruso. Estes Aguilares e Aguiares foram
+sempre muito dos hespanhoes, e logo contarei um caso do mais notavel.
+
+_Martinho_, _mono_, diz frei Bernardo. Que o pai do poeta era Martinho
+Soares de Alarcão e Mello, 6.º senhor da casa de Torres-Vedras, não ha
+duvida; que fosse _mono_, não o inculcam os genealogistas. Seu filho, o
+poeta, foi alcaide-mór de Torres-Vedras, casou, teve nove filhos, e entre
+esses, o jesuita Francisco Soares de Alarcão, letrado eminente e guerreiro,
+que morreu queimado em uma explosão de polvora, quando guarnecia Juromenha,
+em tempo de D. João IV, capitaneando os noviços da companhia, cujo reitor
+era.
+
+Outro filho do _poeta dos cascos varios_, quando D. João IV o mandava
+governar Ceuta, passou-se para Philippe IV; e foi condemnado á morte[1].
+
+Teve a mãi de João Soares um primo chamado Damião de Aguiar Ribeiro, que
+era corregedor em Lisboa, reinando o cardeal. Como sabem, andavam então
+divididas as opiniões entre D. Antonio e Philippe II, ácerca da successão
+do throno. Damião de Aguiar era dos mais façanhosos propugnadores por
+Castella. Succedeu então que um homem do serviço de D. Antonio acutilasse
+na Padaria um vereador que fallava soltamente no senado contra o filho de
+Violante Gomes. Foi preso e summariamente condemnado á forca. Á hora em que
+o réo era levado, soube Damião de Aguiar na rua Nova que, na Ribeira, se
+ajuntava povo intencionado a tirar-lhe o padecente. Mandou o corregedor
+parar o prestito; fez lançar uma corda de uma janella, e alli mesmo ordenou
+que se enforcasse o homem, para evitar semsaborias. Tão grato lhe ficou por
+isto o rei de Castella que o nomeou desembargador do paço, e depois
+chanceller-mór do reino, commendador de S. Matheus de Soure e de S. Cosme
+de Gondomar, commendas que rendiam 3:500 cruzados.
+
+Foi, por tanto, riquissimo, e tão bom homem que fundou o convento das
+Capuchinhas da Merciana. Instituiu morgadio, comprehendendo uma extensa
+quinta que ia desde as portas de Santo Antão pela travessa da Annunciada
+até á chamada calçada de _Damião de Aguiar_.
+
+Casou duas vezes; procreou-se, e fez-se representar entre nós pelos snrs.
+condes de Povolide, de Valladares, etc.
+
+Rebello da Silva não reza bem d'este Damião na _Historia de Portugal_. Eu
+não rezo bem d'elle nem por elle; confesso, todavia, que era homem expedito
+nisto de enforcar a gente na janella de qualquer cidadão, mediante seis
+varas de corda.
+
+ [1] D. João Soares morreu em 1618, com 38 annos de idade. Escreveu e
+ imprimiu em lingua castelhana: _Archimusa de varias rimas y efetos_, e
+ _La iffanta coronada por el-rei D. Pedro, D. Ignez de Castro_, etc.
+ Este poema não devia ser mui lisonjeiro ás tradições de Pero Coelho,
+ avoengo do poeta.
+
+
+
+
+LISBOA
+
+
+Elucidemos a historia do viajante.
+
+O mordomo-mór que fugia era D. João de Mascarenhas, 4.º marquez de Gouvêa,
+e 7.º conde de Santa Cruz. Tinha 25 annos, e era casado com uma hespanhola,
+chamada D. Thereza de Moscoso e Aragão, filha do 7.º conde de Altamira.
+
+A senhora que fugiu com elle era D. Maria da Penha de França, tambem casada
+com seu primo-irmão D. Lourenço de Almada, muito moço.
+
+Tinham casado em 1722. Em junho de 1723 D. Maria da Penha de França deu á
+luz uma menina, que se chamou Violante. E, na noite de 11 de novembro de
+1724, a esposa, abandonando marido e filha, fugiu com o marquez.
+
+Este desastre não foi precedido de ardentes galanteios e grandes
+resistencias do pudor vencido pela paixão.
+
+D. Maria foi de visita ao paço, onde havia sido dama, como sua mãi D.
+Violante Henriques o fôra da rainha D. Maria Sophia de Saboya. Viu o
+marquez que era galan, audaz, e sem ser milagre, fulminou-o com o relampago
+da formosura. Fugiram e pararam em Tuy. Não foi em Vigo como diz o
+viajante. Julgavam-se salvos em terra estrangeira; mas o bispo, por ordem
+vinda de Madrid, prendeu D. Maria n'um mosteiro; e o marquez fugiu por
+Hespanha dentro, e mais tarde para Inglaterra.
+
+Tanto que em Lisboa se divulgou a prisão da mulher de D. Lourenço de
+Almada, certo poeta escreveu um soneto gravido de maus versos e boa moral,
+que diz isto:
+
+ D'esse claustro a sagrada penitencia
+ Pia te esconda, oh bella criminosa,
+ E converta-se em sombra a luz formosa
+ Que ardeu nos sacrificios da indecencia.
+
+ Tolera da prisão toda a violencia,
+ Perdida já a nobreza generosa;
+ Fique ainda entre a culpa indecorosa
+ Benemerita ao menos a paciencia.
+
+ Principia a morrer n'essa clausura
+ Encobrindo um descredito infinito
+ No antecipado horror da morte escura.
+
+ Mas ah! se em ti, por ultimo conflicto,
+ Como vai sendo de vida sepultura,
+ Chegasse a ser cadaver o delicto!
+
+Hei de escrever um livro que ha de chamar-se o DESTERRADO. Estes desastres
+hão de ser esmiuçados compridamente. O _Desterrado_ do meu romance não é o
+marquez de Gouvêa: é outra casta de personagem. Bem sei que esfrio o
+interesse do futuro livro, bosquejando-o aqui em poucas linhas. Não
+importa. A curiosidade do leitor é mais attendivel que as conveniencias
+mercantis d'uma novella.
+
+Como sabem, D. Maria da Penha deixou nos braços do abandonado marido uma
+filhinha de onze mezes, que se chamou Violante. Esta menina, ahi pelos
+dezesete annos, amou seu primo D. Luiz Francisco de Assis Sanches de Baena,
+alcaide-mór de Villa do Conde, capitão de cavallos, e uns gentilissimos
+vinte e nove annos. Na casa dos Almadas, onde D. Luiz fôra creado--porque
+sua mãi casára em segundas nupcias com D. Luiz José de Almada--havia um D.
+Antão, que se apaixonára por Violante, que era sua sobrinha. A menina
+esquivara-se ás caricias do tio, e deixou-se arrebatar nos braços do primo
+D. Luiz, quando uma ordem regia o desterrou para Moncorvo, a rogos de D.
+Antão de Almada. Os dous fugitivos (que desterro tão semelhante, o de mãi e
+filha!) esconderam-se e casaram em Zamora; mas ahi mesmo os enviados do
+cioso tio a foram colher de sobresalto e a trouxeram a Portugal.
+
+Esteve a menina reclusa alguns annos em Marvilla, com o proposito de
+professar, pois que a lei lhe annullára o casamento com o primo; não
+obstante, porém, a saudade do desterrado primo, ao fim de onze annos,
+aceitou seu tio para esposo, do mesmo passo que D. Luiz era banido e
+desnaturalisado para sempre. Aqui fica muito pela rama o entrecho do livro
+para o qual se estão aprestando as peças essenciaes da vida tempestuosa de
+D. Luiz Francisco de Assis Sanches de Baena, fallecido aos 75 annos, e
+terceiro avô do actual snr. visconde de Sanches de Baena[2].
+
+De D. Violante e de seu tio D. Antão de Almada (sem embargo das amarguras
+da violentada esposa) nasceu D. Lourenço de Almada, que foi o 1.º conde do
+seu appellido em 1793.
+
+ * * * * *
+
+Outra indicação do viajante que estimula a curiosidade:
+
+«A casa da rainha e dos principes são analogas á do rei. O posto de
+camareiro-mór da rainha vagou por morte do marquez das Minas, assassinado
+em 1721. Este senhor era genro do marechal de Villeroy; e seu filho, o
+conde do Prado, está presentemente na côrte de França.»
+
+Já d'este caso dei n'outro livro a noticia que transcrevo do citado
+periodico de Francisco Xavier de Oliveira:
+
+
+«Um corregedor guardava uma porta da igreja da casa professa dos jesuitas,
+quando alli se celebrava grande festividade. Sómente o rei havia de entrar
+por aquella porta. Chegaram aqui o marquez das Minas e o conde da Atalaya;
+mas o corregedor com razão lhes vedou o passo. Insistiram elles, dizendo ao
+ministro que as ordens recebidas não podiam entender-se com pessoas de sua
+esphera. Redarguiu o corregedor que as ordens ninguem exceptuavam, e por
+tanto, sem que o rei entrasse, não podia elle permittir que entrasse quem
+quer que fosse. Aquelles senhores podiam entrar por outras portas francas a
+toda a gente. Não obstante, pertinazmente exigiram do corregedor uma
+distincção que elle não podia dar-lhes sem transgredir os deveres... Os
+dous fidalgos, depois de o terem insultado, passaram ás ultimas. O conde da
+Atalaya deu com o chapéo na cara do corregedor, e o marquez das Minas
+traspassando-o com a espada, matou-o. Em seguida cavalgaram, e sahiram do
+reino. O marquez das Minas _foi perdoado e voltou ao reino_[3].»
+
+Crê o leitor que, não obstante o perdão, o marquez das Minas passaria o
+restante da vida sequestrado das graças do monarcha e da convivencia das
+pessoas de bem? Não faça juizos temerarios o leitor: o marquez das Minas
+recebeu o indulto, e ao mesmo tempo o bastão de general.
+
+Já vimos a justiça dos homens: agora vejamos a da Providencia. Servia no
+exercito portuguez um castelhano chamado D. Juan de la Cueva, que não dava
+_excellencia_ ao seu general, marquez das Minas, sem que este lhe désse
+_senhoria_. «Ora, o marquez, assassino do corregedor,--diz o cavalheiro de
+Oliveira--era soberbo e arrogante. Um dia, ao entardecer, sahia elle da
+portaria da congregação de S. Philippe Neri, a tempo que desgraçadamente
+_Juan de la Cueva_ ia entrando. Cortejou elle o marquez, que lhe não deu a
+pretendida _senhoria_, e por isso _de la Cueva_ lhe não deu _excellencia_.
+O general, grandemente irritado, levantou o bastão e proferiu palavras
+ameaçadoras. _De la Cueva_, sem lhe dizer palavra, traspassou-o com a
+espada. O marquez não tugiu nem mugiu: quando cahiu por terra, já ia morto.
+O padre, que o acompanhára até á portaria, e era confessor d'elle, apenas
+teve tempo de lhe apertar a mão. _D. Juan de la Cueva_ pôde escapar-se, e
+refugiou-se em Hespanha[4].»
+
+Na jurisprudencia divina a justiça mais seguida é a pena de Talião.
+
+ [2] Veja _Apontamentos biographicos_ ácerca de D. Luiz Francisco de
+ Assis Sanches de Baena, etc., por Innocencio Francisco da Silva,
+ Lisboa 1869.
+
+ [3] O cavalheiro de Oliveira não designa o tempo de expatriação do
+ marquez das Minas, conde do Prado. Deviam ser dez annos, segundo a
+ sentença manuscripta de que dá noticia o snr. Innocencio Francisco da
+ Silva, a pag. 233 do 7.º tom. do Dicc. Bibliog. Diz assim: «Sentença da
+ Relação de Lisboa, contra os condes do Prado e da Atalaya por matarem
+ publicamente o corregedor do Bairro-Alto no exercicio da sua
+ authoridade. O primeiro, tendo-se evadido, foi justiçado em estatua; o
+ segundo condemnado a degredo por dez annos, e ambos em multas
+ pecuniarias». Creio que ha equivoco, na transcripção da sentença. O
+ queimado em estatua foi o conde de Atalaya, que, no dizer do cavalheiro
+ de Oliveira, morreu furioso em Vienna, depois de ter militado no
+ exercito do imperador de Austria. Quanto ao marquez das Minas,
+ presume-se que lhe foi indultada a sentença, visto que o citado
+ Oliveira diz que obteve perdão e voltou a Lisboa.
+
+ [4] _Amusement_, 2.º v. pag. 147 e 148.
+
+
+
+
+LITTERATURA BRAZILEIRA
+
+
+Longo tempo se queixaram os estudiosos do descuido dos livreiros
+portuguezes em se fornecerem de livros brazileiros. Nomeavam-se de outiva
+os escriptores distinctos do imperio, e raro havia quem os tivesse nas suas
+livrarias. Nas bibliothecas publicas era escusado procural-os. Em
+compensação, sobravam n'ellas as edições raras de obras seculares que
+ninguem consulta.
+
+O mercado dos livros brazileiros abriu-se, ha poucos mezes, em Portugal.
+Devemol-o á actividade inteligente do snr. Ernesto Chardron. Foi elle quem
+primeiro divulgou um catalogo de variada litteratura, em que realçam os
+nomes de mais voga n'aquelle florentissimo paiz. Ahi se nos deparam, entre
+os poetas, Gonçalves de Magalhães, o correcto e sublime author da
+_Confederação dos tamoyos_; o lyrico e arrojado Alvares de Azevedo; o
+primaz dos escriptores brazileiros, e chorado Gonçalves Dias; o esperançoso
+devaneiador, fallecido no viço da idade, Casimiro de Abreu; Junqueira
+Freire que primou nos segredos da melodia e já não é d'este mundo; e o
+severo e cadencioso poeta de _Colombo_, tão estimado dos nossos. Entre os
+romancistas o fecundissimo Joaquim Manoel de Macedo, que disputa a
+supremacia a J. de Alencar, que tanta nomeada grangeou com o seu _Guarany_.
+Não lustram menos as novellas mimosissimas de Luiz Guimarães, e as
+arrobadas mesclas de prosa e verso de Machado de Assis. Em litteratura
+didascalica sobresahem os valiosos escriptos do professor, o snr. conego
+Fernandes Pinheiro, nomeadamente o _Resumo de historia litteraria_, que
+muito se avantaja a uns esbocêtos que em Portugal circulam nas escólas,
+e--o que é mais deploravel--nos estudos secundarios. São notabilissimos
+todos os livros do snr. J. M. Pereira da Silva, já na sciencia historica,
+já na politica, e ainda no romance, tão prosperamente estreiado na
+_Aspazia_. Sobre tudo, porém, os _Varões illustres do Brazil_ e a _Historia
+da fundação do imperio brasileiro_ são obras que denotam profundo estudo e
+muito engenho na boa disposição dos elementos e critica dos personagens
+historicos. Em varia sciencia, em livros elementares, em lexicologia, e
+ainda sobre motivos de religião é copioso o catalogo da livraria Chardron.
+Esta variedade argue a fertilidade de intelligencias que ajuntam á riqueza
+congenial d'aquelle solo os thesouros do espirito. E muito importa e cumpre
+observar que os brazileiros modernamente nos não cedem no zelo de imitar a
+linguagem pura dos grandes escriptores portuguezes dos seculos de ouro.
+
+Não esqueçamos, todavia, que o impulsor d'este brilhante movimento
+litterario no Rio de Janeiro, e por isso em todo o imperio, é o
+livreiro-editor Garnier, espirito emprehendedor que tanto faz luzir os
+talentos que divulga, quanto lucra para si a honra de os fazer conhecidos e
+laureados. Quem calcular o despendio grande de empresas semelhantes
+n'aquelle paiz, deprehenda o quanto cumpre que seja robusto e afouto o
+pulso que removeu as immensas difficuldades com que ha trinta annos lutavam
+os escriptores do Novo-mundo para se fazerem conhecidos. Coube esta gloria
+e este triumpho ao snr. Garnier.
+
+Falta dizer que os preços dos livros offerecidos no catalogo das casas
+Chardron, no Porto e em Braga, são modicos, reduzidos, e inferiores ao
+preço corrente das obras portuguezas de igual tomo.
+
+E, pois que estou agradavelmente recommendando livros de brazileiros, seria
+injustiça não graduar de passagem ao menos o merito de uma obra que
+recentemente sahia dos prélos portuenses. É o _Estudo sobre a colonização e
+emigração para o Brazil_. É seu author o snr. Augusto de Carvalho, que tão
+grave e prestadiamente abre carreira de escriptor, em annos ainda muito na
+flôr, e com o espirito já a fructear as mais sensatas considerações sobre
+as questões controversas inculcadas no titulo da sua obra. Á substancia do
+livro allia-se o primor da fórma, a propriedade do termo, a chaneza
+eloquente, e, a espaços, a elevação do estylo que não innubla a clareza da
+idéa. É o snr. Augusto de Carvalho um brazileiro que nobilita as letras da
+sua patria, e está grangeando um lugar entre os melhores escriptores, e,
+desde já, o tem distincto entre os bons pensadores e cultores de idéas
+proficuas. Congratulo-me com os seus conterraneos.
+
+
+
+
+Á ACTUALIDADE
+
+
+O meu nome foi banido das columnas d'aquelle jornal. Assim o rosnou o
+lebreu por entre os arames da mordaça.
+
+Foi realmente banido?
+
+Então, adeus, desgraçado!
+
+Que o mundo tenha tanta piedade de ti, lazaro, quanto eu me arrependo de te
+haver baldeado do charco da petulancia para outro peor--o do silencio.
+
+Adeusinho! coça a tua lepra com os teus folhetins; mas sume-te, escalracho!
+
+
+
+
+A EXC.^ma MADRASTA D'EL-REI D. LUIZ 1.º CALUMNIADA
+
+
+Se me arguirem de adulador da senhora condessa, madrasta d'el-rei D. Luiz
+I, são iniquos. Se esta ditosa dama, em vez de estar no paço das
+Necessidades, estivesse, a esta hora, em trances de cantora não
+escripturada, eu sahiria por honra do seu nome de artista contra o
+calumniador que lhe mareasse os applausos recebidos no theatro do Porto, ha
+quatorze annos.
+
+Em um numero da _Lanterna_, periodico truculento, li que a esposa do viuvo
+de D. Maria II havia sido pateada na rampa do theatro de S. João, em 1859.
+
+É calumnia, que vou desfazer com a imprensa contemporanea.
+
+Conceda-se-me a abstinencia de tratamentos regiamente honorificos, em
+quanto a nobre condessa de Edla me permitte pleitear em prol dos seus
+creditos de cantora.
+
+A snr.^a Elisa Hensler cantou, pela primeira vez, no theatro do Porto, na
+noite de 8 de outubro de 1859. O _Nacional_ do dia 10 escreve o seguinte:
+
+«_A companhia italiana estreou-se effectivamente no sabbado, e não se
+estreou mal. A escolha da opera foi acertada--«O Saltimbanco»; é uma bella
+partitura... e a prima-dona Hensler é bella, joven, e canta com mimo. A sua
+voz, se não é possante, é melodiosa e expressiva, tem alcance bastante para
+o nosso theatro. O publico ficou agradavelmente surprehendido, e deu
+lisongeiro acolhimento á mimosa cantora... Tanto no duetto como no rondó
+mostrou a snr.^a Hensler que possue dotes musicaes pouco vulgares. O
+sentimento com que cantou os andantes do duetto, a bravura e perfeição na
+execução da difficil parte do rondó, e aquelles trilos tão nitidos e puros,
+que ella faz em notas tão agudas no rondó, é sufficientemente para
+corroborar as grandes e vantajosas informações que a precederam; e o
+publico foi justo com os applausos e chamadas no fim da opera._»
+
+Receio que os detractores da mimosa cantora venham com artigos de suspeição
+ao _Nacional_, culpando-o de parcial e apaixonado, já no louvor, já na
+censura, em juizos theatraes. Contra esses artigos redargúo estampando a
+opinião do _Commercio do Porto_, o jornal mais serio do paiz:
+
+«_Abriu-se no sabbado com a opera o «Saltimbanco» de Paccini... Fizeram a
+sua estreia n'esta opera a primeira dama Elisa Hensler, etc. A prima dona
+Hensler foi applaudida e teve uma chamada no fim_.» (Commercio de 10 de
+outubro). E no folhetim de 15 do mesmo mez, confirma n'estes termos: «_A
+snr.^a Hensler é uma excellente cantora. A sua voz de soprano-agudo é de
+sonoro timbre; e, ainda que de pouco volume, extensa, flexivel, melodiosa e
+fresca. Possue, além d'estes dotes naturaes, outros não menos valiosos como
+cantora: conhecimento do mechanismo do canto, perfeita entoação e
+expressão. Revela a seu grande merito como cantatriz nos floreios, nas
+escalas chromaticas, e especialmente nos trinados. Na passagem da 1.^a á
+2.^a cavaletta do seu rondó final faz admirar os tres longos e bellos
+trinados em_ sol, lá _e_ si _agudos. Na difficil cavaletta de sua cavatina
+do 1.º acto são muito merecidos os applausos que tem colhido. No_ larghetto
+e cantabile _do duetto do baritono e soprano do 3.º acto, não obstante a
+agudissima_ tacitora _em que está escripto, não deixa a snr.^a Hensler nada
+a desejar. A todas estas excellentes condições como artista e cantora reune
+uma presença sympathica, qualidade esta de muito valor no theatro._»
+
+Já no _Nacional_ de 13 este parecer viera corroborado com estes gabos: «_E
+a prima-dona Hensler? Não desmereceu em nada das primeiras impressões que
+nos imprimiu._
+
+«_É sempre a cantora mimosa e correcta._»
+
+O _Commercio_ de 29 de outubro classifica maviosamente a dôce cantora com
+esta phrase: ... «_A prima-dona Hensler é o bijou da companhia._»
+
+Na noite de 6 de novembro cantou a snr.^a Hensler a parte de _Lucia_. O
+_Nacional_ diz o seguinte: «_A snr.^a Hensler na aria do 3.º acto remiu-se
+do fiasco do 2.º, e cantou com tal mimo e doçura que a platéa apesar de
+gelada rompeu então em reiterados applausos._» (Nacional de 7 de novembro).
+O _Commercio_, esquivando-se á ingrata e desmerecida palavra _fiasco_,
+escreve: «_A sr.^a Hensler foi muito applaudida no_ rondó, _e os applausos
+foram merecidos no_ andante, _que cantou lindamente, executando com
+admiravel justeza_ a cadencia _em unisono com a flauta... Na cavaletta não
+foi tão irreprehensivel a execução._» Está de accordo com o _Nacional_ de 8
+de novembro: «_A snr.^a Hensler continua a ser applaudida no_ rondó _do 3.º
+acto, onde a bella cantora revela muito talento. Se a sua voz fosse tão
+volumosa como é suave, seria uma artista de infinito merecimento._»
+
+A 12 de novembro principiam os jornaes a gemer sobre a gaveta do snr.
+Laneuville, empresario que se dissolvia, com quanto fosse insoluvel. Sem
+embargo, a snr.^a Hensler, na confirmação dos dous citados jornaes,
+excedia-se no mimo do canto. Dir-se-hia que attentava em captar com as
+harmonias dulcissimas da sua voz o archanjo torvo da miseria que espreitava
+o empresario por entre as bambolinas de cartão esgarçado.
+
+Alguns amadores, que previam o desastre da empresa nas cadeiras vasias da
+platéa, fermentaram a occultas dous bandos que, mais ou menos
+ficticiamente, se apaixonassem pelas duas damas. É o que se deprehende das
+revelações do _Commercio_ de 5 de novembro que reza assim:... «_No pessoal
+da companhia não ha nada que desafie enthusiamo e dê vida animada ao
+theatro, apesar dos esforços que alguns poucos frequentadores do theatro,
+dos mais desenfadados, empenham para crear partido ás duas damas._
+
+«_Houve já episodios curiosos; porém nem as damas, nem os seus admiradores
+conseguem fazer móça no indifferentismo do publico, que reconhece
+superioridade relativa na dama Hensler; mas não vê ainda assim motivo
+justificado para se enthusiasmar._»
+
+Com a sua usual discrição, omittiu o _Commercio_ os _episodios curiosos_.
+Bem é de vêr que o amor, ideal da arte das fusas e semifusas, não seria
+estranho aos sonegados episodios. A radiosa belleza da cantora sem duvida
+attrahia umas borboletas, que então douravam o seu polen sob as fulgurações
+do lustre; todavia, como a dignidade da artista se esquivasse ás intrigas
+de bastidor que, ás vezes, galvanisam os empresarios oxydados, a empresa
+falliu.
+
+Decorreram uns quinze dias angustiados para a companhia desvalida. Hermann,
+aquelle prestigiador cavalheiroso que morreu ha dous annos, estava então no
+Porto. Foi elle o generoso valedor dos artistas e ainda do empresario. A
+companhia, em fim de dezembro, estava dispersa, não deixando um vestigio de
+fragilidade no seu rasto de pobreza.
+
+Em 21 de dezembro d'aquelle anno, uma local do _Commercio_ dizia: «_O vapor
+Lusitania sahido hontem pelas 12 horas da manhã conduziu 118 passageiros,
+entre os quaes: Elisa F. Hensler_, etc.»
+
+Entrou, pois, na manhã do dia 21 em Lisboa a cantora. Devia levar na alma
+os lutos da natural vaidade ferida pela indifferença gelida d'uns
+pisa-verdes que honraram grandemente a mulher, menosprezando a artista. Dos
+frementes applausos, que a victoriaram quando assomou deslumbrante no
+palco, ao fastio com que as filas dos seus admiradores rarearam, vai a
+distancia que medeia entre a mulher honesta e a que permitte que lhe abram
+saldo de contas em que os applausos representam uma verba.
+
+Eu não sei se Hensler, a cantora, escripturada pela empresa de S. Carlos,
+ao encarar a princeza do Tejo, que devia vestir de negro n'aquelle dia de
+dezembro, sentiu pavores da sua futura sorte, em theatro de jerarchia tão
+elevada para suas forças. Não sei porque frontarias de palacios lhe avoejou
+a vista absorta nas tristezas de quem ia sósinha, forasteira, sem o genio
+grande que estua no peito as palpitações do triumpho. Não sei; mas, se
+encarou lá em cima os palacios dos dous reis--com que olhos a esposa do
+snr. rei D. Fernando avistará hoje o Tejo, por onde entrára n'aquella manhã
+pardacenta de nebrina carrancuda de agouros esquerdos! Se ella então
+preveria um marido rei nas Necessidades, um enteado rei na Ajuda, e toda
+aquella Lisboa, e todo este reino, e nós todos ás suas plantas, nós todos,
+os bons subditos do rei que é marido, e do rei que é enteado, e d'ella, que
+vale mais que todos, por que, offuscando-os com a aureola da arte,
+estrellada das seducções da belleza, nos revelou que os reis deslumbrados
+eram apenas homens!
+
+
+
+
+OS SALÕES
+
+
+CAPITULO II
+
+PLEBISCITUM
+
+
+ Homem plebeu. _Homo plebeius._ Nos antigos romanos havia tres
+ ordens. A ordem senatoria, equestre e plebea. A ordem plebea val o
+ mesmo que a gente do povo.
+
+ _Plebiscitum._ Termo da antiga jurisprudencia romana. Deriva-se do
+ latim: _plebs_, plebe, e _sciscere_, que val o mesmo que
+ _assentar_, _ordenar_, _determinar_. E assim _plebiscito_ era o
+ decreto, ou lei posta pelo povo, sem o suffragio dos senadores, mas
+ só ao pedir do tribuno, magistrado do povo. _Plebiscitum._
+
+ D. RAPHAEL BLUTEAU.
+
+ La conscience peut être géante, cela fait Socrate et Jésus: elle
+ peut être naine, cela fait Atrée et Judas.
+
+ La conscience petite est vite reptile...
+
+ Les catastrophes ont une sombre façon d'arranger les choses.
+
+ VICTOR HUGO.
+
+
+A luz não se exprime. Não tem definição. Como a não tem o calor, o
+magnetismo, a electricidade, e a vida.
+
+A luz é o agente ou a acção, que nos adverte a distancia da presença dos
+corpos luminosos pelo intermedio da vista.
+
+Vejamos.
+
+A luz propaga-se em linha recta nos meios homogeneos. Obrigada a parar, no
+seu caminho, pelo encontro d'um corpo opaco--produz os phenomenos da sombra
+e da penumbra.
+
+No mundo moral são a sombra e a penumbra as reacções da sciencia, da arte,
+da civilisação e do progresso.
+
+Analysemos as penumbras.
+
+Entremos nas sombras.
+
+Desçamos ás trevas.
+
+Fóra da vida physica são as trevas a ignorancia, e esta produz o silencio.
+Ora, o silencio é a paz dos sepulchros. Por que não deveria eu consultar a
+plebe?
+
+Ha por ahi, nas ultimas camadas sociaes, perdidas, nas solidões da miseria,
+almas tão nobres, aspirações tão vastas, crenças tão vivas...
+
+Por que não iria eu consultar os generosos sentimentos populares?
+
+E fui.
+
+Entrei n'um tugurio qualquer.--Que lhe importa o leitor qual foi? Havia uma
+mesa de pinho, duas cadeiras, e um catre. Era toda a mobilia. Mas, no meio
+d'esta hedionda miseria, existia um homem, feito á imagem de Deus; _et
+creavit Deus hominem ad imaginem suam._
+
+Era um veterano da liberdade. Desembarcára no Mindello. Tinha, na cabeceira
+do leito, pregada no travesseiro a insignia da Torre e Espada, ganha em
+Souto Redondo, em lutas titanicas, e em nome da liberdade.
+
+Não desenho o soldado, ainda hoje operario. Basta-nos ouvil-o.
+
+Li-lhe o manuscripto.
+
+Ficou pensativo, e triste. Encostou os cotovelos sobre a mesa, afagou o
+craneo, como se lhe tumultuassem tantas idéas lá dentro, que não podiam
+irromper d'aquella abobada de fogo, e depois, em voz baixa, como se
+receasse ser ouvido, começou assim:
+
+--Publique tudo isso.
+
+A abstenção politica é mais do que a morte: é a indifferença pelos males
+sociaes, é a historia d'este torpe individualismo, que nos corrompe, é a
+gangrena moral d'esta sociedade em dissolução, é a anasarca symptomatica da
+lesão organica que despedaça a nossa existencia, é o maior de todos os
+crimes, por que é uma tranquillidade ficticia, comprada á custa dos legados
+que nós iamos enthesourando para as gerações futuras.
+
+A democracia agonisa, no seculo dezenove, quando desabrochava, e se abria
+em flôr, na arvore, que nós todos plantamos, regada com o sangue precioso
+de tantos martyres, em nome dos que deviam colher e adorar no futuro, o
+fructo dos nossos trabalhos.
+
+O velho operario, o antigo soldado do cêrco do Porto meditou por alguns
+instantes, e continuou:
+
+--A historia vai esculpida em chronicas de reis, e memorias d'aulicos. A
+historia ha de escrevel-a um dia o povo, rasgando todas essas paginas
+mentirosas e lisonjeiras das décadas fabulosas, sahidas das mãos dos
+eunuchos d'estes harens do occidente.
+
+Esta paralysia social em que a geração presente cahiu, esta hesitação
+absurda e repugnante nos annaes da nossa vida actual tem uma explicação
+irrespondivel: o mundo espera uma crença viva para se alentar na sua
+marcha--para respirar, e viver. D'onde virá a fé?
+
+Habitantes d'uma peninsula á mercê de tantas invasões, raças tão diversas
+teem pisado este solo, que difficil, senão impossivel, será buscar-lhes a
+genealogia. Iberos, celtas, tyrios, phenicios, carthaginezes, numidas,
+berbéres, romanos, godos, alanos, suevos, mussulmanos, e varias hordas de
+gascões, e borgonhezes, afóra aragonezes, asturianos, e gallegos sulcaram
+este solo sagrado.
+
+Onde estão os lusitanos?--Onde corre esse sangue mosarabe com que a
+historia enche a vastidão das nossas campinas, e povôa a crista das nossas
+montanhas?--Nas trevas das invasões perdem-se os vestigios, e em presença
+dos aventureiros, que acompanhavam Henrique de Borgonha, apparece uma raça
+energica, robusta, e corajosa, que põe em derrota a meia lua dos sectarios
+do Islam, e obriga a dynastia affonsina a conceder-lhe cartas de foraes,
+que são os pergaminhos e armarias d'esta nobilissima raça hispanica.
+
+E o velho soldado do cêrco do Porto curvou a cabeça, e meditou.
+
+Depois disse:
+
+--Quem são, então, os duques e condes que acompanhavam o aventureiro, e
+bastardo real? Quem são os mercenarios, que se aformoseavam com as alcunhas
+ephemeras, e irrisorias dos cargos nobiliarchicos da côrte byzantina,
+quando estes titulos valiam, outr'ora, pela significação do mando, do
+poderio e da jurisdicção?
+
+Á face da nobre raça hispanica--raça que somos nós--eram elles o enxurro, e
+a vadiagem das côrtes em que nasceram.
+
+Nós eramos o povo, éramos a raça, éramos a tradição.
+
+Quem tomou Lisboa aos mouros? Quem levou os arabes e berbéres de vencida
+até ás costas do occidente? Quem povoou a patria, quando as quinas se
+desfraldaram em Ourique? Quem coroou D. João I, esmagando as traições de
+Castella? Quem promoveu a restauração de 1640, e lutou pela independencia
+da patria?
+
+Foi o povo.
+
+Deixemos Aljubarrota ao condestavel.
+
+Deixemos a restauração aos quarenta conjurados do palacio do conde de
+Almada. Que poderiam elles sem nós? O zelo, a coragem, o esforço, e o amor
+da patria só nos cabem a nós.--Vencemos sempre, porque eramos o povo.
+
+Batemos com os contos das nossas lanças ás portas de Ceuta, de Tanger, e
+d'Arzilla, e os bastiões africanos cediam aos nossos esforços. Aportamos em
+Calecut, Cochim, Gôa, Malaca e Ormuz--e o Oriente dobrou-se á nossa
+vontade. Que importa, que os cabos de guerra tenham os louros das
+victorias, e das conquistas? A gloria é nossa. Fomos o instrumento
+civilisador, o soldado que morre pela patria, o portuguez, que cahe
+alanceado junto do seu pendão.
+
+Para o condestavel, para Vasco da Gama, para Affonso d'Albuquerque, para D.
+João de Castro, para D. Francisco d'Almeida ha a chronica, ha o livro, ha
+as tenças, ha a narração dos feitos esforçados e valerosos, ha as
+recompensas da munificencia regia, e os brazões, que são a commemoração
+d'esses feitos, esculpidos nos portaes dos seus nobres solares.
+
+Para o homem do povo, que pelejou ao lado dos mais corajosos, que batalhou
+onde havia mais perigo, que abandonou mãi, mulher e filhos,--para esse, ha
+a valla de finados, triste, e obscura--e a chronica emmudece, porque não é
+para peões, e villanagem, que foi creada a historia dos reis, e a Torre do
+Tombo, onde se guardam, e archivam seus feitos e memorias.
+
+Para o povo ha o silencio.
+
+Quando d'elle falla a historia, alcunha-o de sedicioso, barbaro e
+turbulento.
+
+Para o povo ha o esquecimento.
+
+A humanidade é uma idéa abstracta, que vive para a historia, nos vaidosos
+triumphos dos Alexandres, dos Cesares e dos Pompeus.
+
+Quando um homem do povo cahe mutilado, pela arma homicida dos poderosos do
+dia, chama-se Socrates, chama-se Spartacus, chama-se Gracho, chama-se
+Galileu, chama-se Danton, chama-se Vergniaud, chama-se Armand Carrel,
+chama-se Gomes Freire, chama-se _legião_. Mas a historia atravessa estes
+periodos symbolicos da vida das nações sem commemorar estes nomes?
+
+Para que?--Levantou já alguem o estigma que pesa sobre Catilina?
+
+A historia divinisou Cesar, e applaudiu Cicero.
+
+Rasgaram já os crépes que envolvem o busto de Robespierre, e a fronte de
+Saint-Just?
+
+A França reclamou Bonaparte, e mais tarde victoriou o cossaco, que dos
+estepes da Russia vinha impôr leis e dynastias ao capitolio da raça latina.
+
+E nós?--Aqui o veterano fez uma pausa. Levantou a fronte como se sentira o
+clarim das batalhas, e continuou em voz sumida e cavernosa:
+
+--A nós deram-nos uma carta constitucional, que é como um foral--para não
+dizer carta d'alforria--a nós deram-nos uma mentira, escripta com o sangue
+do povo, no sólo sagrado da patria.
+
+E o veterano calou-se.
+
+Depois como despertado pelo ruido dos combates, como se aquella alma
+aspirasse a novas lutas, para sustentar os principios por que pelejára,
+ergueu-se do catre onde estava sentado, e rumorejou: E fallaes-nos de
+patria! patria aonde, e patria com quem? No Rocio em treze de março?--em
+Torres Vedras em 1846?--no Porto em 1851?--A patria é o sólo sagrado onde
+jazem as ossadas dos nossos avós. A patria é o local onde assenta o nosso
+lar domestico, onde vivem as nossas familias, onde está cravado o pendão
+dos nossos direitos. A patria é nossa por que derramamos o nosso sangue por
+ella.
+
+Em seguida curvou-se para mim, que estava sentado no fundo d'este triste e
+miseravel quarto, e disse-me em phrases breves:
+
+--Faça-me só um favor. É o unico que lhe peço. Como prologo d'esse
+manuscripto, publique este papel. É a meditação das minhas noites de
+insomnia. É o symbolo das minhas crenças. É o credo da minha religião
+politica. Morrerei contente.
+
+Começa por este prologo o manuscripto do desembargador.
+
+ VISCONDE DE OUGUELLA.
+
+
+
+
+O DECEPADO
+
+
+Duarte de Almeida, o alferes de Affonso V, conheço-o desde a minha
+infancia, por m'o apresentar em verso o meu finado amigo Ignacio Pizarro.
+
+Chorei por Duarte de Almeida, como se elle fosse meu avô, quando o infeliz,
+na volta de Toro, onde os castelhanos lhe deceparam as mãos, se lastimava
+assim pela bocca do poeta do _Romanceiro portuguez_:
+
+ Nem a espada, nem a lança
+ Posso nas mãos empunhar!...
+ Ai de mim! triste lembrança!...
+ Nem bandeira tremolar!...
+ Nem bordão de peregrino
+ Póde meu corpo arrimar!
+ Nem o meu pranto contino
+ Tenho mãos para limpar!...
+ Luiza! já me esqueceste?...
+ Talvez tu ora suspires
+ Por outro... se tal fizeste...
+ Coração! ah! não delires...
+ Morto já, tu me julgaste,
+ E se agora assim me viras,
+ D'aquelle a quem tanto amaste
+ Talvez agora fugiras.
+ Talvez nobre cavalleiro
+ Póde alcançar tua mão...
+ Queira o céo morra eu primeiro,
+ Não saiba a tua traição.
+ Que eu antes quero da morte
+ Ter gelado o coração,
+ Do que vir amor tão forte
+ Ter em premio a ingratidão.
+
+Com estas e outras piedosas queixas ia o namorado alferes caminho do
+castello de Aguiar, onde vivia a castellã Luiza.
+
+O leitor já me está dizendo que sabe o entrecho do romance de Pizarro: que
+a donosa castellã, julgando morto o seu amado, lhe fizera cantar os
+responsos em sumptuosos funeraes: que o cavalleiro, a deshoras, se
+annunciára na barbacã do castello; e, admittido á capella, encontrou Luiza
+a vestir o habito de monja: que o decepado, apertando-a ao peito, lhe fez
+vêr que estava vivo, e que ella, allegando o voto que fizera de professar,
+cahiu de encontro á eça, e morreu.
+
+Termina o trovador:
+
+ Seu amante desditoso,
+ Mais desgraçado, viveu;
+ Mas o seu fim lastimoso
+ Nunca ninguem conheceu.
+
+Bastantes annos--e que ditosos annos!--andei enganado pelo meu amigo
+Pizarro. Fui tres vezes ao castello do Pontido. Creio que já disse, não me
+lembra aonde, que encontrei entre as urzes da matta subjacente ao castello
+um espigão de espora sem rosêta, e suspeitei que ella houvesse sido do
+infausto amador da castellã. Figurou-se-me, ao cahir da noite, vêl-a no
+gothico balcão, voltada para os serros fronteiros, suspirar no alaude:
+
+ Adeus, serra do Mizio!
+ Adeus, val de Villa Pouca!
+ Adeus, castello sombrio!
+ Minha voz ouvi já rouca!
+
+Estas impressões da primeira mocidade revivem quando a razão as impugna ao
+sentimento. De envolta com as minhas indagações historicas na triste sorte
+da princeza D. Joanna, chamada a _excellente senhora_, o vulto que mais me
+preoccupava era o alferes da bandeira, Duarte de Almeida, o heroe, o amante
+da castellã, o decepado cujo
+
+ ..........fim lastimoso
+ Nunca ninguem conheceu.
+
+Quanto ao seu fim, citava Pizarro um trecho de Duarte Nunes de Leão
+(_Chronica de Affonso V_) muitissimo desconsolador. Alli se diz que o
+bravo, depois de tamanha proeza, vivera mais pobre que d'antes. Este
+opprobrio nacional confirma-o modernamente o snr. Pinheiro Chagas, com
+estas phrases austeras: «O cavalleiro heroico sobreviveu ás suas feridas, e
+voltou a Portugal onde foi sempre conhecido pelo glorioso nome do
+_Decepado_. Mas, ó vergonha! o homem que assim tão briosamente se portára,
+morreu na miseria, porque nenhuma recompensa lhe foi dada, e porque nem se
+quer podia ganhar a vida pelo seu trabalho, logo que o haviam
+impossibilitado de trabalhar as suas tristes mutilações[5].»
+
+Por honra da patria e da humanidade, apresso-me a declarar que é menos
+exacto o que Duarte Nunes diz e o snr. Pinheiro Chagas encarece. Logo me
+justificarei com documentos.
+
+Pelo que respeita ao romance de Pizarro, tão sómente dous elementos de
+verdade historica podemos aceitar-lhe: a existencia do alferes e a do
+castello de Aguiar. E o certo é que ao meu intelligente amigo não corria o
+dever de maiores exactidões.
+
+Primeiramente direi do castello.
+
+Lá está, e já lá estava assim, pouco mais ou menos, antes da fundação da
+monarchia portugueza. Quem o possuia ou governava, no tempo em que D.
+Affonso Henriques pleiteava nos arraiaes com sua mãi e com o imperador D.
+Affonso, era o rico-homem D. Gonçalo de Sousa, genro de Egas Moniz, e
+senhor da terra de Sousa. Traslada no tom. III da _Monarchia Lusitana_
+(pag. 112), fr. Antonio Brandão da _Vida de Santa Senhorinha_, codice
+áquelle tempo inedito, uma passagem que faz ao nosso intento[6].
+
+Reza assim, melhorado na orthographia:
+
+
+_«Digo-vos que estando folgando em sua terra um principe nobre e cavalleiro
+d'este reino, o qual era mui privado d'el-rei D. Affonso, e havia nome D.
+Gonçalo de Sousa, mui poderoso, e todo conselho d'el-rei estava em elle;
+estando, como disse, folgando, chegaram a elle mensageiros dizendo que os
+inimigos lhe corriam a terra, e que lhe tinham cercado o castello d'Aguiar;
+o qual logo chamou suas gentes que pôde haver, e foi-se para haver de
+descercar o dito castello. E chegando aonde jaz o corpo d'esta santa lhe
+fez reverencia, e oração não lhe lembrou; e indo ainda em vista da igreja
+metade de um campo, esteve pegada a mula, em que ia o cavalleiro, a qual
+elle com esporas e pancadas não podia abalar, mas antes a mula quedava mais
+rija e pero se desceu d'ella e a não podia abalar; e, vendo elle isto,
+lembrou-lhe como passára pela igreja da santa sem lhe pedir benção, e
+mercê, e sem fazer oração, e por isso lhe detinha a mula; e, soffreando a
+mula para traz para se tornar á igreja, a mula logo tornou, e o cavalleiro
+fez sua oração encommendando-se á santa, e des i fez seu caminho, e com
+suas companhas descercou seu castello, e correu depois os inimigos, e
+tornou a sua casa com victoria_, etc.»
+
+
+O chronista Brandão, por mal informado, escreve que o castello de Aguiar da
+Pena se avista com as montanhas de Barroso. Estas montanhas distam seis
+leguas do castello, e entre ellas e o valle em que negreja a fortaleza
+gothica estão os cabeços da serra de Alfarella, e no horisonte mais elevado
+alveja villa Pouca de Aguiar. Acrescenta que o castello «é crespo de
+torres, baluartes e cubellos, e está fundado sobre a corôa de uma penha
+talhada de uma parte por natureza, que parece obra feita á mão,» etc.
+
+Póde ser que no seculo XVII, quando Brandão escrevia, permanecessem ainda
+as torres e baluartes. O que ha vinte annos parecia ter robustez para
+seculos eram quatro alterosas quadrellas de alvenaria ameiadas com seus
+adarves, bastiões, e janellas gothicas sem lavores.
+
+Recordo-me ter lido na _Nova historia de Malta_ de José Anastacio de
+Figueiredo que o castello no seculo XIII pertencia á ordem hospitalaria de
+S. João de Jerusalem, e cita um aviso que obriga os lavradores
+circumvisinhos a carregarem pedra para reparos.
+
+E não sei mais nada quanto ao solar da phantastica Luiza.
+
+Agora vamos em cata do _Decepado_, depois que voltou de Castella.
+Encontramol-o na sua casa acastellada no seculo XII, que teve o nome de
+castello de Villarigas, no couto do Banho, hoje concelho de S. Pedro do
+Sul.
+
+É elle o herdeiro de seu pai Pedro Lourenço de Almeida. Afóra aquelle
+castello, tem outro na quinta chamada da Cavallaria, honrada por el-rei D.
+Fernando em 1419, e onde os linhagistas enraizam o tronco dos Almeidas.
+
+Quando alli chegou, esperavam-o a esposa e dous filhos.
+
+A esposa chamava-se D. Maria de Azevedo, filha do senhor da Louzã Rodrigo
+Affonso Valente e de D. Leonor d'Azevedo, que herdára grandes haveres de
+sua tia D. Ignez Gomes de Avellar.
+
+Os filhos do _Decepado_ chamaram-se Affonso Lopes, e Ruy Lopes de Almeida.
+Affonso, o successor das honras e coutos de Villarigas e Cavallaria, casou
+com D. Leonor Vaz Castello Branco, filha de João Vaz Cardoso, aio do conde
+de Barcellos.
+
+O filho segundo, Ruy, foi para Castella, como veador da princeza D. Joanna,
+filha de D. Duarte, e mulher de Henrique IV.
+
+Esta geração de fidalgos continuou honrada e rica até á duodecima neta de
+Duarte de Almeida, a snr.^a D. Eugenia de Almeida de Aguilar Monroy da Gama
+Mello Azambuja e Menezes que em 15 de setembro de 1834 casou com o snr.
+Fernando Telles da Silva, marquez de Penalva, de quem teve dous filhos,
+Luiz, que, nascendo em 1837, morreu ha poucos annos, e D. Henriqueta de
+Almeida, que nasceu em 1838, e vive solteira. Do snr. Luiz Telles, que foi
+casado com a snr.^a D. Maria Francisca Brandão, sua prima, existe uma
+filha, que é já senhora.
+
+Quanto á pobreza _e miseria em que morreu_ Duarte de Almeida, o snr.
+Pinheiro Chagas foi illudido por Duarte Nunes e Faria e Sousa, que na
+verdade o authorisaram a deplorar tão sentidamente a sorte do alferes de
+Affonso V.
+
+Duarte de Almeida succedera a D. Duarte de Menezes no posto nobilissimo de
+alferes-mór da bandeira. Militando nas guerras de Africa, salvou o pendão
+real das presas da mourisma, quando Affonso V deu batalha na serra de
+Benacofuf. (Faria e Sousa, _Africa_, cap. 6, §. 7.º)
+
+E tanto o rei não foi ingrato aos serviços do seu valente alferes, que,
+estando em Samora, em 1475, no anno anterior ao da batalha de Toro, ainda
+antes do heroico feito, lhe fez mercê pelos seus grandes serviços, para
+elle e seus filhos, de um reguengo no concelho de Lafões, cuja carta de
+mercê póde lêr-se na Torre do Tombo no _Livro que serviu na chancellaria de
+D. Affonso V_, folha 17, e começa: _A quantos esta minha carta virem faço
+saber que pelos muitos serviços que Duarte de Almeida, fidalgo de minha
+casa, e meu alferes-mór me tem feito assim n'estes reinos de Castella como
+de Portugal e em Africa, onde sempre me serviu muito bem e lealmente_, etc.
+
+O rei, que tanto o apreciára e galardoára, sabido é que foi para França
+solicitar debalde a alliança do velhaco de Luiz XI. Voltou a Portugal, onde
+viveu ainda cinco tristissimos annos, forçado a divorciar-se da esposa,
+desestimado do filho, e desvenerado dos vassallos. Não era, pois, tempo
+proprio aquelle para premiar heroismos batalha, cuja perda dissimulada em
+victoria, enlutára o brio e o coração de Affonso V.
+
+O decepado, por sua parte, lá tragava o fel dos seus derradeiros annos na
+abastança dos bens que, certo, lhe não mitigavam as angustias da mutilação;
+mas em pobreza e miseria não consintamos sequer á poesia que nol-o figure.
+
+Se D. João II não augmentou em coutos, honras e senhorios a casa do alferes
+de seu pai, não o arguamos por isso, sem haver a certeza de que Duarte de
+Almeida sobrevivesse ao Africano. Na batalha do Toro já devia ir no inverno
+da vida quem vinte annos antes desfraldára o pendão real em Alcacer-Ceguer,
+e quem já tinha um filho, que acompanhára como veador a Castella a mãi da
+princeza D. Joanna por amor de quem andava accesa a guerra. Afóra isso, é
+de crêr que Duarte de Almeida assistisse ao desastre de Alfarrobeira em
+1449, e não fosse dos menos carniceiros na mortandade do duque de Coimbra e
+dos seus leaes amigos. Ora, transluz da historia que D. João II odiára
+todos os fidalgos que, de parçaria com o duque de Bragança, malsinaram de
+traidor o infante D. Pedro. Ajuda estas suspeitas ser o primogenito de
+Duarte de Almeida casado com a filha de um que fôra aio do conde da
+Barcellos, antes de ser duque de Bragança.
+
+Já, porém, o successor de D. João II galardoou o neto do decepado,
+dando-lhe o senhorio da villa do Banho, a provedoria das caldas de Lafões,
+e lhe confirmou o privilegio e couto da quinta da Cavallaria.
+
+Em remate de tão derramadas provas, quero deixar bem assente que Duarte de
+Almeida, o meu tão chorado heroe do sentimentalismo da infancia, não morreu
+pobre, nem acabou na miseria do homem que, á mingua de mãos, não póde
+trabalhar.
+
+Por fim, não sahirei do paço senhorial da Cavallaria sem consolar o leitor
+pio e mais lido em cousas do céo que em nobiliarios, que n'aquella casa
+nasceu o bemaventurado S. frei Gil, chamado de Santarem, e que Almeida
+Garrett ajoujou com o dr. Fausto no poema _D. Branca_ e nas _Viagens_.
+
+Ainda hoje, n'aquella casa, perdura uma capella edificada na alcova onde
+nasceu o sabio feiticeiro e pactuario do demonio. Observe-se que o conde D.
+Pedro, no _Livro das Linhagens_, tit. 25, pag. 151, diz que Gil fôra
+assassinado por Pedro Soares Galinato; mas o chronista-mór João Baptista
+Lavanha desfaz o erro,--o que eu muito estimo para que se não desluza a
+substancia da bella prosa de fr. Luiz de Sousa, historiador do santo.
+
+ [5] _Historia de Portugal_, tom. III, pag. 28.
+
+ [6] O codice está integralmente impresso nas _Memorias resuscitadas da
+ antiga Guimarães_, pelo padre Torquato Peixoto de Azevedo, em 1692,
+ pag. 444-476. Sirvo-me d'esta copia, corrigindo os erros do traslado de
+ Brandão.
+
+
+
+
+CARIDADE BARATA E ELEGANTE
+
+
+O advogado Sampaio Efrin morreu, ha cinco annos, em Lisboa, e deixou dous
+filhos illegitimos, que já não tinham mãi.
+
+Amára-os extremadamente. As duas crianças excruciaram-lhe a agonia; mas
+expirára com a certeza de que seus filhos, e herdeiros de parte de seus
+haveres, não balbuciariam, em horas de fome, o nome de seu pai.
+
+Mas a justiça desherdou os orphãos, e deu o espolio do advogado á sua
+viuva.
+
+O menino alimentou-se cinco annos da caridade de uma criada de seu pai.
+
+E, quando tinha seis, appareceu livido e pobremente vestido a pedir esmola
+no tribunal da Boa-Hora--alli, onde seu pai triumphára nas lides da
+eloquencia.
+
+A bemfeitora que, até áquelle dia lhe repartira do seu pão, quando sentia a
+mão da morte sobre o seio, disse á criança que fosse ao tribunal e
+mendigasse, lembrando-se que alli concorriam pessoas que tinham conhecido
+seu pai.
+
+O snr. João Bernardino da Silva Borges viu o menino andrajoso, a tiritar,
+com o espasmo da fome nos olhos--aquelle olhar espavorido da miseria--que
+parece sagrada nas criancinhas--aquelle olhar torvo, expressão de assombro
+do anjo a tremer sobre o cairel d'este inferno do mundo.
+
+O menino tinha uma carta na mão. O snr. Silva Borges leu a carta. Era a
+supplica da moribunda a favor do desvalido filho de seu amo.
+
+E conduziu a criança, onde lhe dessem a esmola do jantar e da cama.
+
+Ao outro dia, o _Jornal da Noite_, publicando uma carta commovente do
+protector do orphão, acompanhava a invocação á caridade de sentidas e
+pungentes palavras.
+
+E, no dia immediato, o mesmo jornal exultava noticiando que o orphãosinho
+estava amparado, no regaço da caridade abundante, nos braços de alguem que
+ouvira o echo das divinas palavras de Jesus: «Deixai que as criancinhas se
+aconcheguem de mim.»
+
+Volvidas duas semanas, á volta do menino, a caridade faz-se representar por
+nove senhoras illustres, quanto cabe inferir dos appellidos.
+
+Nove anjos, as nove musas da inspiração santissima, nove corações a
+desbordar de generosidade, dezoito mãos cheias de caricias e do superfluo
+da sua riqueza, para afagar, alimentar e educar um menino a quem esta
+setima primavera bafeja os primeiros risos de sua enfezadinha puericia. É
+muito!
+
+Mas estas nove damas assumem cada qual sua nomenclatura:
+
+Uma, chama-se _presidenta_;
+
+Outra, _vice-presidenta_;
+
+Quatro, são _vogaes_;
+
+Uma, é _thesoureira_;
+
+E as outras, são _secretarias_.
+
+Mas que tem isto que vêr com o orphão? O congresso das senhoras, assim
+qualificadas em categorias de banco, de junta de parochia, de empresa
+aurificia, de companhia das aguas, organisou-se d'este feitio para dar uma
+pensão de 300 reis diarios--o bastante--ao pequenino no collegio?
+
+Quer-me parecer dispensavel tamanho funccionalismo em operações tão
+singelas! São nove senhoras abastadas que se fintam, quotisando-se cada uma
+em 33 reis por dia, ou dez tostões por mez. É, na verdade, barato o
+salvar-se um menino e fazel-o homem! Seis ou oito annos do pão e estudo
+d'aquella creatura--que ss. exc.^as hão de enfiar com santa vaidade diante
+da sepultura de seu pai--não póde custar a cada uma tanto como dous dos
+seus vestidos medianamente guarnecidos.
+
+Então, qual vem a ser a missão das exc.^mas presidenta, vice, vogaes,
+thesoureira, secretarias?
+
+Leitor, que estás a impar de ternura, e tens o rosto banhado de lagrimas de
+consolação, saberás que as referidas nove senhoras--que tu já conheces dos
+lautos bailes, e das _toilettes_ esplendidas--congregaram-se agora _para
+promover um beneficio ao orphão no theatro de D. Maria_.
+
+Ahi está o que é. Ainda agora é que estas dadivosas senhoras vão sondar a
+magnanimidade publica; vão dar uns toques de elegante apparato á caridade,
+e ao mesmo tempo convidar-vos a pôr hombros áquella ponderosa empresa de
+agasalhar uma criancinha que se alimenta com um pouco de amor e algumas
+migalhas sacudidas das cêas opiparas. A caridade de Lisboa! A caridade do
+espalhafato! Aqui, no Porto, o orphão, a esta hora, estaria agasalhado, sem
+que a imprensa conhecesse o nome do bemfeitor.
+
+E a imprensa de Lisboa exalça encarecidamente a exuberante bizarria das
+senhoras que promovem nos corações alheios o sentimento da esmola. Peço
+licença para tambem me accender em admiração de tamanho arrojo, e
+perguntar, por esta occasião, aos jornalistas se, no seu cadoz de phrases,
+ficou alguma com que se louve aquella criada pobresinha que sustentou o
+menino cinco annos, e o largou do seu seio quando o coração se lhe afogou
+nas ultimas lagrimas.
+
+
+
+
+PROFUNDA REFORMA NOS COSTUMES DA VIA-FERREA PORTUGUEZA
+
+
+Quando Portugal emergia das trevas da meia-idade, em 1873, e a via-ferrea
+de Portugal era roupa de francezes, o scintillante escriptor Ramalho
+Ortigão enviou aos snrs. _François et Ladame_ (cumpre não aceitar a
+traducção de Bordalo Pinheiro--_Francisco e a mulher_) uns urbanos
+queixumes ácerca da bruta ladroeira que os funccionarios da via-ferrea
+perpretaram em parte das batatas de um sacco enviado desde o Minho ao
+percuciente critico. Ortigão, cujo agudo espirito argúe abstinencia de
+alimentação farinacea, conclue a sua epistola, modêlo de graça
+portugueza--que é a graça de todo o mundo--offerecendo aos directores da
+via-ferrea todas as futuras e porvindouras batatas, visto que ss. s.^as,
+cedendo-lhe algumas, soffriam tal qual desfalque.
+
+N'esse tempo, estava eu em Lisboa a vasquejar nos demorados paroxismos da
+anemia, resultante de dyspepsia, complicada com hepatite, e prodhromos de
+encephalite, e symptomas de curvatura de espinha, e esgotamento de fluido
+nervoso, afóra a espinhela cahida.
+
+Escrevi, n'esta concurrencia pathologica, a um amigo meu, residente no
+Porto, que me comprasse alli doze garrafas do mais antigo e secco vinho que
+se lhe deparasse em garrafeira particular. Quando conclui a carta, cuidei
+que expirava, por que tinha consumido em quatro idéas sem estylo o oxygeneo
+e acido carbonico de que podia dispôr.
+
+D'ahi a dias, o meu amigo enviou-me o titulo de recepção de doze garrafas
+de vinho, compradas por 12 libras, e enviadas pela «grande velocidade»,
+cuidando elle que os ladrões não as apanhariam na carreira.
+
+Como se as doze garrafas se me figurassem outras tantas botelhas de Leyde a
+descarregarem electricidade sobre os meus grandes-sympathicos e regiões
+limitrophes, saltei da cama, e fui receber o meu vinho--a minha salvação--a
+Santa Apolonia.
+
+Recolhido o caixote á sege, e baixados os stores, debrucei as regiões do
+meu olfacto sobre as fisgas da tampa do caixão, na esperança de aspirar
+alguns atomos de tanino.
+
+Cheirou-me a azeite. Entendi que havia perversão na minha membrana
+pituitaria, uma narizite, unica molestia que me faltava.
+
+Assim que entrei em casa e o caixão se abriu, não sei bem o que vi, nem
+como perdi a consciencia dos dous _eus_. Sei que, volvidas horas,
+recobrando o espirito, e querendo recordar as causas de tão comprido
+lethargo, perguntei aos circumstantes, distillados em lagrimas, se eu tinha
+lido algum livro de Theophilo.
+
+--Não, infeliz!--respondeu-me voz sincera--não foi tamanha a desgraça que
+te fulminou; o que tu viste foi seis garrafas do teu vinho, que te custaram
+seis libras, substituidas por seis garrafas vasias que tiveram azeite.
+
+A minha primeira idéa foi gritar á d'el-rei; lembrando-me, porém, que o rei
+não governa, quiz chamar o cabo da rua; depois, passou-me pelo espirito
+recorrer á camara «baixa» e ao patriarcha. E, por fim, chorei copiosamente,
+e bebi dous tragos de uma das seis; e logo, á semelhança das nações
+oppressas, que se levantam como um só homem, tambem eu me levantei sósinho;
+e, clamando um rugido grande, pedi á Providencia das raças latinas que nos
+désse um administrador dos caminhos de ferro, nascido e baptisado n'esta
+terra dos Affonsos e dos Joões.
+
+Fui ouvido, e as cousas melhoraram consideravelmente.
+
+N'este anno de 1874, 2.º da Emancipação, tenho recebido reiteradas provas
+da melindrosa cortezia que assiste ao funccionalismo do transporte da
+via-ferrea portugueza. Se em 1871 não chorei mediante os prelos, hoje
+lamento não ser um cytharista bastante lyrico para dignamente arpejar um
+fado expresso do citado funccionalismo.
+
+Direi da cortezia com que alli são tratadas as minhas cousas. Tendo eu
+recebido em Lisboa seis garrafões de aguardente das nossas colonias,
+lacrados e cheios, enviei-os d'alli para o Porto cheios e lacrados. Ao cabo
+de onze dias de jornada, os garrafões chegaram a minha casa... inteirinhos!
+Se isto não é probidade, a virtude era aquillo que dizia Catão. Notei,
+porém, uma insignificante cousa: os garrafões chegaram deslacrados, e
+levavam pouco menos de metade do liquido; mas inteiros, perfeitos, sem
+rachadella, nem esquirola de menos.
+
+Um d'estes dias, em dous caixões de vinho da Madeira, que me eram enviados
+de Lisboa,--e foram retidos para despacho nas Devezas, posto que já em
+Lisboa houvessem pago direitos--observei ainda mais refinada cortezia;
+porque, apparecendo algumas garrafas quebradas, teve aquella honrada e
+limpa gente o cuidado de lhes trasfegar o vinho a fim de que as outras se
+não molhassem--de modo que chegaram enxutas.
+
+E fez mais: teve outro sim a bondade de tirar algumas garrafas para que as
+outras chegassem mais desafogadas da pressão das visinhas!
+
+Eu não conheço maneira mais subtil de obrigar a gente a um reconhecimento
+eterno, e a... acautelar o relogio.
+
+
+
+
+FORMOSA E INFELIZ
+
+
+ A dita e a formosura,
+ Dizem patranhas antigas,
+ Que pelejaram um dia,
+ Sendo d'antes muito amigas.
+
+ Muitos hão que é phantasia;
+ Eu que vi tempos e annos,
+ Nenhuma cousa duvido
+ Como ella é azo de damnos.
+
+ BERNARDIM RIBEIRO.
+
+
+São verdadeiras as trovas do poeta das _Saudades_.
+
+Aquella Maria da Penha que o leitor viu, ainda agora, carpida n'um soneto,
+foi muito incensada por formosa antes da sua queda. Uns poetas a
+embriagaram com o perfume da lisonja, em quanto ella se manteve honesta;
+outros lhe depozeram alguns bagos de assafetida na ambula funeraria, quando
+os seus creditos eram mortos e responsados no catafalco que a sociedade
+levanta ás suas mesmas victimas.
+
+E já que eu trasladei o soneto, como epitaphio do seu tumulo no convento
+onde se finou, trasladarei tambem uns versos que lhe deram alor e azas á
+vaidade que a perdeu.
+
+Suspeito que o poeta d'estes cantares não fosse o fidalgo que a levou
+arrebatada de entre um thalamo e um berço. Os poetas, por via de regra,
+costumam enflorar os holocaustos sacrificados nas aras da prosa. Assim o
+requer o equilibrio do cosmos. Á poesia--a lyra que insinua no coração da
+mulher as phantasias com que mais se alinda e encarece; á prosa--as
+delicias d'essas bellas cousas, o dominio das aves do paraiso, que os
+poetas farejam, á laia de nebris que pairam a denuncial-as ao caçador
+sagaz.
+
+A meu vêr, em quanto o marquez de Gouvêa mandava ajaezar os cavallos para a
+funesta fuga, um dos muitos idolatras da formosissima Maria motejava uma
+quadra e derivava d'ella a glosa tão presada n'aquelles tempos:
+
+
+
+ A D. MARIA DA PENHA DE FRANÇA
+
+ MOTE
+
+ Abre-te, _penha_ constante,
+ serás minha sepultura;
+ e, se os meus ais te não movem,
+ digo-te, penha, que és dura,
+
+ GLOSA
+
+ _Penha_, já sei que és tão dura,
+ porque dous soes te geraram;
+ seus raios te despojaram
+ das reliquias da ternura:
+ Porém, se a corrente pura
+ de meus olhos incessante
+ abrandar um diamante;
+ a meu pranto sucessivo,
+ quebra-te, marmore vivo,
+ abre-te, penha constante.
+
+ Até nas mais duras _penhas_,
+ lavrador o tempo sendo,
+ as aguas, que vão correndo,
+ fazem regos, abrem brenhas.
+ Não receies tu que venhas
+ a perder por menos dura;
+ pois meu pranto o que procura
+ é desfazer-te em piedade;
+ e, se abrir concavidade,
+ serás minha sepultura.
+
+ Lagrimas não te enternecem
+ antes te tornam mais dura;
+ roubou-lhe o preço a ventura
+ ou por minhas desmerecem.
+ Meus ais sentidos parecem
+ golpes, que pedras commovem;
+ mas como faiscas chovem
+ de ti, que farei, oh _penha_,
+ se o teu rigor mais se empenha
+ e se os meus ais te não movem?
+
+ Teu nome a dizer se empenha
+ quem tu és por semelhança;
+ pois no garbo és toda _frança_,
+ na dureza és toda _penha_:
+ _Penha_ em que pienha tenha
+ essa rara formosura;
+ mas, se estatua ser procura
+ a meu suspiro incessante,
+ mais que o mais duro diamante,
+ digo-te, _penha_, que és dura.
+
+
+
+
+ANTONIO SERRÃO DE CASTRO
+
+
+As indagações de Diogo Barbosa Machado, ácerca do poeta Serrão, reduzem-se
+a datar-lhe o nascimento.
+
+Á falta de outros subsidios, bastariam as poesias do travesso sujeito a
+esclarecer-lhe a vida mysteriosa aos mais atilados investigadores. O maior
+numero d'ellas está inedito. E o seu mais notavel poema, em tercetos, que
+perfazem 2:090 versos octosyllabos, chama-se _Os ratos da inquisição_.
+
+No palacio da inquisição passou elle alguns annos de sua vida, que de certo
+não foram os melhores.
+
+Pelos modos, era hebreu dos quatro costados; mas não adorava o bezerro, nem
+se abstinha dos paios do Alemtejo. Em quanto o deixaram, viveu e medrou á
+lei da natureza. Seguiu fervorosamente a religião do prazer, repartindo
+alma e versos por judias, christãs e mouras, consoante lhe sahiam a talho
+de fouce. Tanto afinava a lyra para cantar fidalgas como regateiras. Entre
+estas, houve uma vendilhona de maçãs camoezas que não foi das menos amadas
+e menos esquivas. Se os poetas modernos querem ajuizar do lyrismo plebeu
+d'este seu bisavô, aqui teem uma das cançonetas dedicadas á saloia das
+camoezas, e cantada pelos cytharedos d'aquelle tempo:
+
+ Para a feira vai Luiza
+ Co seu balaio á cabeça
+ Todo enramado de louro
+ E cheio de camoezas.
+
+ Leva saia de jilezia,
+ Tambem jubão branco leva,
+ Que serve o jubão de branco[7]
+ D'onde Amor atira as flechas.
+
+ Sobre os dedos, pendurados
+ Leva seus punhos de renda,
+ Tão valentona caminha
+ Que treme o bairro de vêl-a.
+
+ Lá no meio do Rocio
+ Levanta a voz mui serena
+ Como se aprendera solfa:
+ «Eu já tenho camoezas.»
+
+ A voz tão divina e grave,
+ A voz tão de prata e bella,
+ Os galantes se alvorotam
+ E ferve a bulha na feira.
+
+ Deixam todos as boninas
+ Só por ver esta açucena;
+ Em um momento, cercada
+ Se viu esta fortaleza.
+
+ Os requebros que lhe dizem
+ São balas de feras peças:
+ Mas no muro de seu peito
+ Acham grande resistencia.
+
+ Uns apreçavam a fruta,
+ Outros tiram da algibeira
+ Ás mancheias os tostões,
+ Aos alqueires as moedas.
+
+ Mas Luiza, mui de espaço,
+ Levantando a voz tão bella,
+ De quando em quando repete:
+ «Eu já tenho camoezas.»
+
+Hoje em dia, por acerto haverá ahi poetastro a quem pareçam, sequer
+toleraveis, estas linhas toadas, sem faisca de ideal, sem realismo, sem as
+satanisações modernas; no entanto, o coração entende-se melhor n'aquelles
+poetas que, em vez de se evolarem á poeira luminosa da via-lactea, andavam
+alli pelo Rocio amoriscados de fruteiras de camoezas.
+
+Por causa d'estes amores innocentes e frescos, não foi Antonio Serrão de
+Castro disputar aos ratos da inquisição a magra pitança da sua alcofa. O
+leitor alguma vez ha de lêr os queixumes do hebreu, repassados de tanta
+ironia, que a gente se admira que os graves monges de S. Domingos lhe não
+acendrassem o engenho no fogo.
+
+Quando o poema satyrico se escoou das grades do carcere para a assembléa
+dos catholicos, um poeta christão, no intuito de apressar o processo do
+judeu, divulgou as seguintes decimas:
+
+ Judeu de mau proceder,
+ Que, se em teus versos discorro,
+ Logo pareces cachorro,
+ No ladrar e no morder.
+ Ainda espero vêr-te arder,
+ Pois com tanta sem-razão
+ Murmuras da inquisição;
+ Porém, é força em teu erro,
+ Se te tratam como perro;
+ Que te vingues como cão.
+
+ Dos ratos, d'esta maneira,
+ Te queixas e de seus tratos;
+ É mau queixar-te dos ratos,
+ Estando na ratoeira.
+ Tua allusão sorrateira
+ Saber o engenho procura,
+ E a rhetorica se apura
+ N'esta allusão que formaste,
+ Pois d'esta figura usaste,
+ Antes de fazer figura.
+
+ Nescio, depois de judeu,
+ Quando o sambenito mamas,
+ Triste portuguez te chamas,
+ Sendo o mais astuto hebreu!
+ Quem te vira posto em breu
+ Ou partido de uma bala!
+ Ninguem comtigo se iguala,
+ Pois fazes, quando precito,
+ Sendo infame o sambenito,
+ D'esse sambenito gala.
+
+ Se viveste descortez,
+ Com repetida torpeza,
+ Mais á lei da natureza
+ Do que na lei de Moysés,
+ Queixa-te só d'esta vez
+ De ti, mas não de outro trato;
+ Que eu sei que nunca do rato
+ Te queixarás, asneirão,
+ Se assim como foste cão,
+ Poderás tornar-te gato.
+
+Os ferventes desejos d'este catholico, assim rimados, chegaram ao ergastulo
+do cantor dos ratos, e vibraram-lhe os nervos da espinha dorsal. Não lhe
+pareceu caso novo e original queimarem-no. Embridou, por tanto, a musa da
+galhofa, e cahiu em si. Começou de escrever poesias orthodoxas ao
+nascimento do Menino-Deus, aos santos e santas mais em voga, ungindo tudo
+de lagrimas de contrição que era uma piedade lêr-lhe os sonetos, os quaes,
+ainda agora, li bastantemente commovido. O certo é que o vaticinio do bardo
+christão foi desmentido pelo hebreu que sahiu absolto, e por ahi andou por
+Lisboa até aos setenta e quatro annos, rindo de tudo com resalva das
+conveniencias, e vivendo com as largas, que lhe davam os seus admiradores,
+e acamaradado com os primeiros fidalgos. Nasceu em 1610 e morreu em 1684.
+
+ [7] Alvo.
+
+
+
+FIM DO 4.º NUMERO
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of Noites de insomnia, offerecidas a quem
+não póde dormir. Nº4, by Camilo Castelo Branco
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK NOITES DE INSOMNIA, NO 4 ***
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+assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's
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+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
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+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
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+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
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+works.
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+ <title>Noites de Insomnia, offerecidas a quem não póde dormir, nº 4</title>
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+The Project Gutenberg EBook of Noites de insomnia, offerecidas a quem não
+póde dormir. Nº4, by Camilo Castelo Branco
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
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+
+Title: Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº4
+
+Author: Camilo Castelo Branco
+
+Release Date: April 21, 2008 [EBook #25114]
+
+Language: Portuguese
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+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK NOITES DE INSOMNIA, NO 4 ***
+
+
+
+
+Produced by Pedro Saborano
+
+
+
+
+
+</pre>
+
+<span class='pagenum'>[1]</span>
+<div class="capa">
+<p style="font-size: 1.2em;">BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA</p>
+<hr style="width: 6em;">
+<p style="font-size: 2em;">NOITES DE INSOMNIA</p>
+
+<p style="font-size: 0.7em;">OFFERECIDAS</p>
+
+<p>A QUEM NÃO PÓDE DORMIR</p>
+
+<p style="font-size: 0.7em;">POR</p>
+
+<p style="font-size: 1.2em;">Camillo Castello Branco</p>
+<hr style="width: 3em;">
+<p style="font-size: 0.7em;">PUBLICAÇÃO MENSAL</p>
+<br>
+<hr style="width: 3em;">
+<p style="font-size: 0.9em;">N.º 4--ABRIL</p>
+<hr style="width: 3em;">
+
+<table width="100%">
+<tr>
+<th colspan=2>
+LIVRARIA INTERNACIONAL<br>
+<span style="font-size: 0.7em;">DE</span>
+</th>
+</tr>
+<tr>
+<td style="border-right: solid 1px #000000;">
+<span style="font-size: 0.9em;">
+ERNESTO CHARDRON
+<br>
+<em>96, Largo dos Clerigos, 98</em><br>
+<strong>PORTO</strong>
+</span>
+</td>
+<td>
+<span style="font-size: 0.9em;">EUGENIO CHARDRON<br>
+<em>4, Largo de S. Francisco, 4</em><br>
+<strong>BRAGA</strong>
+</span>
+</td>
+</tr>
+</table>
+<hr style="width: 2em;">
+<p style="font-size: 0.9em;">1874</p>
+</div>
+<span class='pagenum'>[2]</span>
+
+<div id="impressor" style="text-align: center;">
+<br>
+<br>
+<br>
+<br>
+<hr style="width: 8em;">
+<p>PORTO</p>
+
+<p style="font-size: 0.9em;">TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA</p>
+
+<p style="font-size: 0.8em;">68--Rua da Cancella Velha--62</p>
+<hr style="width: 2em;">
+<p style="font-size: 0.9em;">1874</p>
+</div>
+<span class='pagenum'>[3]</span>
+
+<div id="sumario">
+<p style="text-align: center; font-size: 1.5em;">
+BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA
+</p>
+<hr style="width: 4em;">
+<p style="text-align: center; font-size: 2em;">
+NOITES DE INSOMNIA
+</p>
+<hr style="width: 4em;">
+<p style="text-align: center; font-size: 1.5em;">
+<strong>SUMMARIO</strong>
+</p>
+<p>
+<em><a href="#cap01">O cofre do capitão-mór</a>
+-- <a href="#cap02">O jogador</a>
+-- <a href="#cap03">Inedito do poeta Fr. Bernardo de Brito</a>
+-- <a href="#cap04">Lisboa</a>
+-- <a href="#cap05">Litteratura brazileira</a>
+-- <a href="#cap06"><em>Á «Actualidade»</em></a>
+-- <a href="#cap07">A ex.<sup>ma</sup> madrasta d'el-rei D. Luiz 1.º calumniada</a>
+-- <a href="#cap08">Os salões, pelo exc.<sup>mo</sup> snr. visconde de Ouguella</a>
+-- <a href="#cap09">O decepado</a>
+-- <a href="#cap10">Caridade barata e elegante</a>
+-- <a href="#cap11">Profunda reforma nos costumes da via-ferrea portugueza</a>
+-- <a href="#cap12">Formosa e infeliz</a>
+-- <a href="#cap13">Antonio Serrão de Castro</a></em>
+</p>
+</div>
+<span class='pagenum'>[5]</span>
+<div id="corpo">
+<hr>
+
+
+
+<a name="cap01"></a>
+<h1>O COFRE DO CAPITÃO-MÓR</h1>
+
+
+<p>O homem, concluida a guerra do Paraguay,
+liquidou quinhentos contos, e retirou-se com
+esposa e filha para Mondim de Basto, sua patria.</p>
+
+<p>Passou, acaso, um dia por perto das ruinas
+de um casarão, reparou na pedra de armas que
+encimava um vasto portal de quinta, e perguntou
+de quem eram aquelles pardieiros.</p>
+
+<p>O abbade, a quem a pergunta era feita, respondeu:</p>
+
+<p>--São da fazenda nacional, que se está cobrando,
+ha trinta e dous annos, de uma divida
+antiga de impostos e respectivos juros e custas.</p>
+
+<p>--E, depois que a fazenda nacional estiver
+embolsada, de quem é isto?</p>
+
+<p>--Veremos a qual dos credores a lei dá a primazia--tornou
+o abbade.</p>
+<span class='pagenum'>[6]</span>
+
+<p>--Acho que os donos d'estes pardieiros eram
+fidalgos, porque tem armas reaes á porta--volveu
+o brazileiro pouco versado em heraldica.</p>
+
+<p>--Estas armas não são as reaes--explicou o
+padre--é o brazão de Pachecos e Andrades,
+muito illustres senhores d'este paço, que, em bons
+tempos, se chamou a honra de Real de Oleiros.</p>
+
+<p>--Cahiram em pobreza?</p>
+
+<p>--Sim, senhor; mas pobreza que tem uma
+historia interessante. Meu avô conheceu esta familia
+no galarim. Contava elle que o capitão-mór
+Pedro Pacheco estava em Lisboa, quando o marquez
+de Tavora, com os seus parentes, tentaram
+matar D. José, que era o amante da marqueza
+nova. Havia marqueza velha e nova, como sabe...</p>
+
+<p>--A fallar a verdade, não sei isso muito bem--atalhou
+ingenuamente o snr. José Maria Guimarães--Então
+como foi lá essa pouca vergonha?</p>
+
+<p>--Contos largos. A marqueza velha foi degolada,
+por não aceitar a prostituição da nora; a
+marqueza nova foi para um mosteiro bem regalado,
+em quanto o marido ia para a masmorra, e
+da masmorra para o cadafalso. Contos largos,
+amigo e snr. Guimarães. Vamos cá ao nosso caso.
+O capitão-mór Pedro Pacheco era muito de casa
+do duque de Aveiro; e, como eu disse, estava em
+<span class='pagenum'>[7]</span>
+Lisboa, quando o duque foi preso na quinta de
+Azeitão. Assim que o soube, fugiu, e não fez mal;
+porque foi procurado lá e aqui. Logo que chegou
+a esta casa, que era então um paço feudal, deu
+ordem á mulher que se preparasse e mais dous
+filhos menores para sahirem do reino. E, em
+quanto enfardelavam as bagagens, o capitão-mór
+mandou chamar meu avô, lavrador abastado, alferes
+de ordenanças, e muito seu amigo, para lhe
+entregar um cofre de pau preto com braçadeiras
+de bronze, cheio de peças. O cofre era tão leve
+ou tão pesado que meu avô, querendo erguel-o
+pelas argolas, gemeu. Lá por noite fora, pegaram
+os dous no cofre, transportaram-o á casa que
+ainda é a minha, e metteram-o n'um falso que ficava
+escondido pelas costas do leito de meu avô.
+Disse então o fidalgo ao depositario da sua riqueza
+que n'aquelle caixote estavam trezentos mil e
+tantos cruzados em dobrões e peças de ouro, e
+outras moedas muito antigas. Disse mais que a
+sua casa ficava exposta a buscas de quadrilheiros
+e de tropa, que era o mesmo que deixal-a franca
+aos assaltos dos ladrões. Por tanto, confiava de
+meu avô o seu dinheiro, sentindo não ter mais
+valiosas cousas que confiar á sua honra.</p>
+
+<p>--Trezentos mil cruzados!--murmurou o
+<span class='pagenum'>[8]</span>
+snr. Guimarães, esbugalhando os olhos--era bem
+bom d'elle! E depois?</p>
+
+<p>--O fidalgo foi para Hespanha, e para Inglaterra,
+onde tinha um seu parente embaixador, e
+por lá esteve alguns annos. N'este comenos, meu
+avô pegou de adoentar-se de molestia ethica, e
+escreveu ao capitão-mór, pintando-lhe o seu estado,
+e pedindo-lhe que viesse ou mandasse tomar
+conta do cofre. O fidalgo appareceu aqui uma
+noite com o maior resguardo, e metteu-se no seu
+palacio, confiando-se de um criado sómente a
+quem deixára a feitorisação das terras. De madrugada,
+mandou chamar meu avô, passaram
+juntos o dia, e de noite trouxeram ambos o cofre.
+Contava meu pai,--parece que o estou ouvindo,--que
+meu avô muitas vezes lhe dissera que
+o fidalgo não declarára onde tencionava esconder
+o thesouro; mas positivamente lhe dissera que o
+não levava para Inglaterra, já por temer ladrões,
+já porque não precisava gastar mais que os rendimentos
+da sua grande casa.</p>
+
+<p>Meu avô morreu d'ahi a mezes; e o capitão-mór
+voltou para a patria, no anno de 1777, quando
+D. José morreu, e o marquez de Pombal foi
+desterrado.</p>
+
+<p>--Essa não sabia eu!--atalhou com civico
+enleio o snr. Guimarães.</p>
+<span class='pagenum'>[9]</span>
+
+<p>--Que é que v. s.<sup>a</sup> não sabia?</p>
+
+<p>--Que o grande marquez foi desterrado!
+Quem foram os marotos que...</p>
+
+<p>--São contos largos, snr. Guimarães. Vinha
+eu contando que o capitão-mór voltou, já viuvo,
+com dous filhos barbados, muito extravagantes,
+sem religião de casta nenhuma, criados entre hereges,
+destemidos, e levadinhos de todos os diabos.
+Ainda não ha muitos annos que morreram dous
+velhos do seu tempo que me contaram as malfeitorias
+que elles praticavam. Batiam a matar em todas
+as ordenanças que por ordem superior lhe tinham
+entrado em casa á procura do pai. Deshonestavam
+todas as cachopas d'estas tres leguas em roda.
+Em fim, amarguraram a velhice do pai, que
+era um santo homem, a ponto de lhe roubarem
+as pratas porque elle lhes não dava quanto dinheiro
+pediam. Finalmente, o velho morreu de
+repente em 1782, segundo reza o epitaphio que
+está na igreja de Refojos, convento que elle e seus
+ascendentes haviam beneficiado...</p>
+
+<p>--E os trezentos mil cruzados?--interrompeu
+o brazileiro.</p>
+
+<p>--Lá vou já. Assim que o pai se finou, os dous
+filhos abriram todas as gavetas, levantaram taboas,
+desladrilharam as lojas, escavaram debaixo
+dos toneis, escalavraram os forros, e nada toparam.
+<span class='pagenum'>[10]</span>
+Revolveram todos os papeis, a vêr se encontravam
+alguma indicação do dinheiro; e, com
+effeito, em um papelucho mettido n'uma carteira
+vermelha, acharam isto, que meu pai leu tambem:
+<em>Póde ser que a pobreza vos não corrija; mas
+a riqueza de certo vos faria tigres. Eu não morrerei
+com o remorso de vos deixar nas mãos o peor
+instrumento dos perversos, que é o ouro não adquirido
+com o proprio suor.</em> Tomaram-se de raiva,
+e romperam direitos a casa de meu pai, perguntando-lhe
+pelo dinheiro do seu.</p>
+
+<p>--Não ha duvida--respondeu meu pai--que
+n'esta casa e n'aquelle falso esteve um cofre do
+snr. capitão-mór; mas, alguns mezes antes de dar
+a alma a Deus, meu pai, que era honrado, entregou
+o cofre a quem lh'o dera a guardar.</p>
+
+<p>--E depois?--bradaram elles.</p>
+
+<p>--Depois, nada mais sei, senão isto que seu
+paisinho me repetiu muitas vezes.</p>
+
+<p>--Nós havemos de achar os ladrões.</p>
+
+<p>--Pois é procural-os--disse meu pai.</p>
+
+<p>Volveram a casa, e amarraram de pés e mãos
+o velho feitor do capitão-mór, determinados a não
+o desatarem sem elle denunciar a paragem do thesouro;
+porque o velho declarára que ninguem,
+senão elle, soubera da vinda do capitão-mór á patria,
+em quanto vegetou el-rei D. José, e o marquez
+<span class='pagenum'>[11]</span>
+de Pombal reinou. O feitor deixava-se martyrisar
+e morrer, ou porque realmente nada sabia,
+ou porque esperava que a final o deixassem.
+O caso é que, depois de solto, desappareceu d'estas
+terras, e nunca mais houve novas d'elle. Muita
+gente suppoz que o feitor levou os trezentos e
+tantos mil cruzados; mas meu pai, que o conheceu
+e teve em conta de muito honrado, affirmou que
+o dinheiro estava enterrado. Não sei; mas o desapparecimento
+do criado confidente do capitão-mór,
+a meu vêr, deixa suppôr que a estas horas,
+lá por esses reinos estrangeiros, vivem muito ricos
+os filhos do feitor. Deus sabe o que foi.</p>
+
+<p>--E então os dous filhos do capitão-mór ficaram
+pobres?--tornou o snr. Guimarães.</p>
+
+<p>--Pobres?! não, senhor. Quem tem sete
+quintas, que rendiam cinco a seis mil cruzados,
+que ha oitenta annos valiam dezoito mil cruzados
+de hoje em dia, não é pobre. O que elles fizeram
+foi tratar de se empobrecer. O morgado por aqui
+ficou, entretido com mulheres, galgos, caçadas,
+cavallos, feiras, jogo e valentias. O outro, que
+teve duas quintas de patrimonio, reduziu-as a
+moeda sonante, e foi para Lisboa requerer não
+sei que recompensas a D. Maria I, pensando que
+o ser seu pai amigo do duque de Aveiro, lhe dava
+direito a ser galardoado. Ora, se elle soubesse
+<span class='pagenum'>[12]</span>
+que a filha de D. José negou ao desventurado, ao
+innocente e quasi mendigo D. Martinho de Mascarenhas
+os bens de seu pai, duque de Aveiro,
+não iria allegar como cousa digna de premio o
+affecto do capitão-mór ao regicida suppliciado.</p>
+
+<p>--Conte-me lá isso por miudos...--atalhou o
+brazileiro que não lêra a <em>Historia portugueza</em> do
+snr. Viale.</p>
+
+<p>--São contos largos. Vamos primeiro á historia
+do ultimo senhor da honra do Real de
+Oleiros--respondeu o abbade, e continuou:
+Não sei onde nem quando morreu Sebastião
+Pacheco de Andrade, o filho segundo do capitão-mór.
+Ouvi, porém, dizer que morrêra novo,
+pobre e deshonrado. Quanto ao morgado, sei
+que elle casou com a menos digna das suas concubinas,
+já quando não toparia menina honesta
+que aceitasse o fidalgo de Real de Oleiros. Christovão
+Pacheco, apesar da libertinagem e desperdicio,
+ainda gozava o que se chama decente mediania,
+quando sahiu d'este mundo, antes dos
+cincoenta annos. Teve um filho ante-nupcial da
+criada com quem casou. Este conheci eu mui de
+perto e em conflicto muito deploravel, como lhe
+contarei. O pai, que desprezava frades, e zombava
+da religião, mandara-o educar em religião
+e com um parente frade da ordem benedictina.
+<span class='pagenum'>[13]</span>
+O rapaz alegrou-se grandemente ao noticiarem-lhe
+que o pai era morto e elle herdeiro.
+Veio aqui, por ahi esteve dous annos socegadamente,
+olhando pelos bens, posto que debaixo
+de tutela; e, quando orçava pelos dezenove annos,
+tão grandes amostras dava de homem de
+bem que se lhe offereceu para esposa uma senhora
+de linhagem illustre e dotada com vinte
+mil cruzados. Emancipado pelo casamento, apossou-se
+do casal, desempenhou parte das quintas
+hypothecadas, e manteve bons creditos por espaço
+de alguns annos.</p>
+
+<p>Em 1832 era elle ainda muito rapaz, e já então
+vestia a farda de capitão de milicias. Esteve
+no cerco do Porto, onde consta que procedera
+valentemente. Porém, no fim da guerra, os bons
+costumes com que sahira d'esta casa por lá ficaram.
+O homem voltou tão diverso, tão estragado
+na moral, que já ninguem o via e ouvia que se
+não lembrasse do pai. A esposa não sei se por
+santa, se por peccadora, fugiu-lhe com uma criança
+de cinco annos para a casa d'onde viera; e
+elle, hypothecando os bens já deteriorados com
+as prodigalidades da vida militar, levantou muitos
+contos de reis, e estabeleceu-se em Lisboa.</p>
+
+<p>Desde 1836 a 1843, o seu viver na capital deu
+brado por <em>aventuras amorosas</em>, como lá dizem os
+<span class='pagenum'>[14]</span>
+salteadores da honra das familias. Pedro de Andrade,
+que assim se chamava, como seu avô, era
+um homem gentil, bem feito, galhardo, e muito
+airoso. Tinha as seducções de Satanaz feito homem.
+A corrupção de Lisboa era grande, e elle
+ainda maior; mas desgraçadamente, o maldito
+empestou muita menina innocente, e abriu muitos
+abysmos aos pés das virgens que pareciam
+ter postos no céo os olhos contemplativos.</p>
+
+<p>--Que grande maroto!--disse o brazileiro.</p>
+
+<p>--Em 1843, depois de uma ausencia de seis
+annos, appareceu aqui, de repente, Pedro de
+Andrade, e procurou-me a fim de me propôr a
+compra dos bens que ainda não estavam captivos
+de dividas. Eu desculpei-me com a falta de
+dinheiro, e outros aceitavam a proposta, se a
+mulher assignasse os contractos. N'este entretanto,
+recebi de Lisboa certa gazeta de que era assignante,
+onde li uma noticia que me abalou dolorosamente.
+E, estando em minha casa Pedro
+de Andrade, perguntei-lhe se tinha noticia do
+triste successo contado pelas gazetas.--Qual
+successo?--perguntou elle. «Eu lh'o leio»
+disse eu; e visto que estamos á minha porta,
+queira o snr. Guimarães entrar, que eu lhe vou
+lêr a gazeta, que Pedro de Andrade ouviu com
+inalterado semblante.</p>
+<span class='pagenum'>[15]</span>
+
+<p class="centrado">*<br>* &nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp; *</p>
+
+<p>O brazileiro entrou na saleta do abbade, que
+tirou da estante dos seus livros a <em>Revista Universal
+Lisbonense</em> de 1843; e leo, a paginas 23, o seguinte:</p>
+<br>
+
+<p class="centrado">«A POMBA E O ABUTRE</p>
+
+<p>«Quasi todos os papeis publicos transcreveram
+do <em>Portugal Velho</em> o caso de uma donzella
+fugida do paço real. Levantaram sobre isto altos
+clamores contra ella, contra o seductor, contra a
+perda da proverbial gravidade do palacio portuguez.
+Sentimol-o o calamos.--Era assumpto melindroso;
+para relatar e sentenciar careciamos
+ainda de evidencia. Hoje suppômo-nos habilitados
+para ratificar e completar a narração de um
+successo que, devida ou indevidamente, já cahiu
+no dominio do publico, e não é possivel extorquir-se-lhe
+da memoria.</p>
+
+<p>«No palacio velho da Ajuda vegetam ainda
+umas cincoenta ou mais solitarias, que, opprimidas
+dos annos e das molestias, recebem da caridade
+da soberana o pão pelos serviços, que outr'ora
+prestaram ás rainhas e princezas suas ascendentes;--são
+<span class='pagenum'>[16]</span>
+os ornamentos partidos e desfigurados
+de um seculo, que desabou para nunca
+mais ser reconstruido.--Todas estas mulheres
+são tristes como reliquias de tempos festivos,
+saudosas, ou antes, saudades ellas mesmas:--a
+presença de todas e de cada uma, aggrava a
+cada uma e a todas ellas a melancolia do crepusculo
+da morte, que já lhes vem anoitecendo.--Todo
+o reboliço, todas as quotidianas transformações
+materiaes, moraes e politicas da visinha
+capital, onde já foram vivas, moças e brilhantes,
+ou não chegam alli, ou só chegam como
+uns contos vãos e longinquos, como sonhos de
+cousas passadas em outro planeta: ¿que tem ellas
+que vêr no berço que se apparelha para uma
+nova idade?--ellas, que já pendem para o sepulchro,
+a contemplar no fundo d'elle tantas cousas
+louçãs e vivazes, que lhes pertenciam!</p>
+
+<p>«Entretanto no meio d'este palacio de tristezas
+volteava ainda um raio de sol; um arbusto
+florejava purpuras no meio d'este cemiterio; uma
+avesinha cantava primavera entre o desconsolo
+d'estas ruinas; uma viração deliciosa fazia ás vezes
+susurrar agradavelmente estes musgos resequidos.
+Tudo isto era a joven Maria, lindeza de
+18 annos, lindeza corporal como poucas, lindeza
+de espirito como ainda menos, lindeza de coração
+<span class='pagenum'>[17]</span>
+como quasi nenhuma, sobrinha e companheira
+de uma d'estas velhas, companheira e
+amiga de todas ellas. Maria, era realmente o feitiço,
+a Vida e o encantamento d'aquelle retiro
+sem porvir. Toda a casa a amava: era uma paga
+de divida; Maria queria-lhe muito, quasi que alli
+abrira os olhos, pelo menos outra nenhuma lhe
+lembrava; sob aquelles tectos brincára desde a
+idade de tres annos; entre aquellas cabeças encanecidas
+se fôra coroando a sua de longas tranças
+louras: entre o crescer de tantas rugas se
+desenvolveram e aperfeiçoaram as suas graças;
+entre o progressivo decahir de tantas prendas e
+esperanças como as folhas verde-pallidas que em
+pomar de outomno se despegam uma a uma, os
+seus talentos naturaes por uma desvelada educação,
+que a munificencia da snr.ª D. Maria I proporcionára
+a sua tia os meios de lh'a dar, tinham
+chegado ao seu maior auge.</p>
+
+<p>«Maria do Carmo reunia ás prendas manuaes
+proprias do seu sexo, um lêr e escrever primoroso,
+noções e gosto de litteratura, mórmente da
+franceza, em cuja lingua era mui versada, e musica,
+merecendo no piano as honras de mestra, e
+por corôa de elogio verdadeiro, os seus costumes
+eram puros e o seu coração religioso: nas
+orações que todas iam quotidianamente depôr
+<span class='pagenum'>[18]</span>
+aos pés do altar, as d'ella deviam rescender mais
+a innocente alegria que a temores ou remorsos.--A
+25 de junho orava no côro com sua tia
+quando o relogio dos paços bateu as 6 da tarde.
+Levanta-se, pede licença para deixar o restante
+para depois, e ir entregar--que o prometteu--um
+debuxo de bordados a uma sua amiga fóra
+da casa.</p>
+
+<p>«Foi: correram horas, e não voltou.</p>
+
+<p>«Começaram e cresceram cuidados: mandou-se
+á busca por todas as partes: passou o serão,
+passou a noite, e passaram tambem dias,
+sem que a tornassem a vêr, nem a ouvir d'ella
+nova alguma.</p>
+
+<p>«N'essa tarde alguem se lembra de ter notado
+uma sege parada debaixo da arcada do paço.
+E um morador da casa acrescenta que, perto da
+noite, achando-se no caes do Sodré, vira chegar
+uma sege á porta de uma hospedaria, e um homem
+de chapéo branco apear uma menina, que
+lhe pareceu ella.</p>
+
+<p>«Devolvidos quatro mortaes dias, chega no
+domingo um gallego com uma carta para a consternada
+tia:--entrega-lh'a em mão propria, e
+ajunta, havel-a recebido de uma menina mui
+linda, que lavada em lagrimas e afogada em soluços
+lhe recommendára fosse leval-a correndo,
+<span class='pagenum'>[19]</span>
+e lhe trouxesse signal de ter sido recebida. O
+conteudo d'esta carta ninguem o soube, mas parte
+d'elle facilmente se póde presumir.--Ás nove
+horas d'essa mesma noite viram-se sahir pela
+portaria dous vultos rebuçados, que por mais
+que a porteira os interrogasse, partiram sem dar
+resposta. Á hora e meia da noite os mesmos
+dous vultos vieram bater á porta, trazendo entre
+si amparado e quasi em braços um terceiro, que
+ninguem reconheceu. Abriram uma porta, que
+havia muito não servia, e que dava passagem
+para a pousada da fugitiva, e entraram.</p>
+
+<p>«Pessoa do sitio por quem isto soubemos,
+nos acrescentou, que o estado de Maria na seguinte
+manhã, segundo lh'o descrevêra quem
+acabava de a vêr, cortava o coração. As suas
+tranças louras e espessas tinham desapparecido.
+O seu rosto pendia pallido e esmorecido. Duas
+fontes corriam dos seus olhos. A sua dôr via-se e
+era terrivel porque era muda.</p>
+
+<p>«As suas o occupações desde então teem sido
+orar e chorar: com isto leva no oratorio as horas
+do dia e da noite, abraçada com a imagem
+da consoladora dos afflictos, beijando-a nos
+pés, nas mãos e no rosto como filha a sua mãi--como
+filha prodiga, que procura, á força de
+se restituir toda, reconquistar o coração materno;
+<span class='pagenum'>[20]</span>
+como se coração materno se apartasse nunca.
+O pai aggravado perdôa, a mãi não, toda ella
+foi sempre amor, e o amor não sabe senão
+amar.</p>
+
+<p>«A unica pessoa, que além de sua tia, a tem
+visto, é o medico, alma sensivel, de quem recebe
+os soccorros mais assiduos e delicados. Entretanto
+o mal que a mina é grave. Quasi privada
+do alimento e do somno, os seus dias parecem
+ameaçados de um fim prematuro. Se a violencia
+mesma da sua dôr lhe não limitar em breve a
+duração, outro perigo pouco menos cruel que
+o da morte, parece ameaçal-a. O pranto continuo
+que afoga os seus olhos, receia-se que venha
+por ultimo a lh'os apagar, e que a pobresinha
+que, ainda ha pouco, era o raio de sol de toda
+a habitação, venha ainda a ser, mergulhada
+em trevas e sobrevivendo a si mesma, um objecto
+de profunda e esteril compaixão para tantas
+infelizes, a quem ella, pouco ha, repartia alegrias
+e emprestava mocidade.</p>
+
+<p>¡¿E agora quem a condemnará por um erro,
+cuja origem e historia nos são desconhecidos?!
+¿quem a apedrejará entre os braços, sob
+o manto e sob os olhos da rainha dos anjos, que
+lhe deu o seu nome, lhe chama filha sua e com a
+vista serena e amorosa lhe está apontando para
+<span class='pagenum'>[21]</span>
+as alturas?! ¡¡¡Que delictos e crimes (quanto
+mais erros)! deixariam de se lavar com tantas lagrimas!!!
+¡¡¡E ha entretanto aqui um homem,
+talvez entre nós, talvez festejado e respeitado--um
+homem, que ella generosa não nomeia, não
+nomeará nunca--um homem, cujo rosto mais
+duro que o de Caím se não transformou, se não
+tingiu de repente na côr de sua alma para o denunciar,
+como sacrificador da innocencia, da
+virtude, da formosura, e do amor, de um amor
+irresistivel, inspirado por elle, e que a elle sacrificava
+tudo até a vida,--tudo até o porvir--tudo--tudo
+até a honra!!! ¡¡¡Ha ahi um homem
+d'estes!! ¡Ha-o sem duvida! e se as justiças o
+descobrissem, este homem receberia uma pena:
+menos affrontosa que a do ladrão assassino... Este
+homem não havia de ser mandado por todas
+as cidades e villas do reino de braço dado com o
+carrasco, para ser atado a cada pelourinho, escarrado
+no rosto por todos os homens e mulheres,
+e esbofeteado depois pelo seu menos infame
+companheiro de jornada com a mão esquerda.
+Não: que importa o que padece uma mulher?
+Não crêsse nas palavras de quem a fascinára;
+não fosse moça, innocente e amante; não fosse
+mulher. As justiças da sociedade teem mais cousas
+em que pensar. ¿E de mais não se vê isto
+<span class='pagenum'>[22]</span>
+todos os dias? Não são conhecidos muitos outros
+que tambem matam assim o tempo com estas caçadas
+amorosas? ¿que o confessam com vangloria
+e que em companhias mui luzidas são por isso
+admirados e invejados! Tratemos dos interesses
+materiaes. O restante são chimeras, são fanatismos,
+são miserias, indignas da attenção de legisladores,
+e dos homens illustrados de 1843.»</p>
+
+<br>
+
+<p>Concluida a leitura, o abbade proseguiu:</p>
+
+<p>--Ouvida a historia, o fidalgote sacudiu a
+poeira das calças com um chicotinho de baleia, e
+disse: «São vulgarissimos esses casos em Lisboa.
+O que a mim me espanta é que a imprensa vista
+o habito de Tartuffo, e sáia ás praças a prégar
+contra a corrupção que ella promoveu com os
+seus romances, com as suas philosophias, com as
+suas theses de liberdade, e com a perseguição de
+escarneo e de fome feita aos apostolos da sincera
+moralidade.»</p>
+
+<p>Discursou largamente n'este sentido, e despediu-se,
+deixando-me inclinado a dar-lhe razão.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>* &nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp; *</p>
+
+<p>Passam-se tres dias:--continuou o abbade--era
+meia noite de 2 de agosto do mesmo anno
+<span class='pagenum'>[23]</span>
+de 1843. Recolhia-me á igreja de ter ministrado
+a extrema-unção a um moribundo, quando ouvi
+dous tiros a pouca distancia, e d'ahi a minutos o
+alarido de muitas vozes, gritando «homem morto!»</p>
+
+<p>Sahi ao adro, e encontrei pessoas que já vinham
+chamar-me para assistir aos paroxismos de
+Pedro de Andrade que estava mortalmente ferido
+á porta de sua casa.</p>
+
+<p>Quando cheguei, já o haviam transportado ao
+leito. Estava ainda vivo. Assim que me viu, acenou-me
+com anciedade, apertou-me convulsamente
+a mão, e segredou-me: «Quero confessar-me,
+que vou morrer.»</p>
+
+<p>Escutei-o por espaço de hora e meia; as
+phrases eram cortadas por gritos de agonia; ambas
+as balas lhe estavam dilacerando as entranhas
+do peito; e, ainda assim, aquelle demorado
+arrancar da vida me quiz parecer uma delonga
+providencial para que o grande criminoso tivesse
+tempo de penar e chorar suas culpas. Expirou
+com todos os sacramentos, pedindo-me que, em
+nome d'elle, pedisse perdão a seu filho e a sua
+mulher.</p>
+
+<p>O moribundo, quando me revelou o seu derradeiro
+delicto, rogou-me que désse publicidade
+ao crime e ao castigo a fim de que a sua desgraça
+<span class='pagenum'>[24]</span>
+podesse aproveitar aos centenares de delinquentes
+que lhe haviam dado o exemplo do vicio
+e da impunidade. E, por tanto, não escrupuliso
+em lhe dizer que o seductor da infeliz Maria do
+Carmo havia sido Pedro de Andrade, e que os
+vingadores da abandonada menina deviam ser
+seus parentes, posto que o assassinado os não
+houvesse conhecido, e lhes ouvisse apenas dizer,
+antes de desfecharem as clavinas, que lhe traziam
+saudades da prostituida senhora do paço da
+Ajuda.</p>
+
+<p>--Com effeito!--observou o snr. Guimarães--essa
+historia arripiou-me os cabellos!... V. s.ª
+ha de emprestar-me essa gazeta que eu quero
+copiar esse caso! Diga-me cá: e o filho d'esse
+desgraçado?</p>
+
+<p>--O filho do desgraçado, que tinha então onze
+annos e estava com sua mãi, póde dizer-se que
+ficou litteralmente pobre. Os credores e a fazenda
+nacional disputaram-se a posse do espolio. O
+rapaz, quando chegou á idade de tomar conta da
+honra de Real de Oleiros, convenceu-se que lhe
+era mister trabalhar para não morrer de fome.
+Os parentes de sua mãi, posto que abastados, não
+o protegeram, e tornaram-lhe pesada a esmola do
+pão e da cama. Um dia, o brioso moço sahiu com
+sua mãi da casa que lhe amargurava o bocado, e
+<span class='pagenum'>[25]</span>
+foi habitar um casebre nas visinhanças do escrivão,
+que o fizera seu amanuense, e lhe dava doze
+vintens por dia. V. s.ª conhece-o. É aquelle Alvaro
+de Andrade que tem lavrado as escripturas
+de compra de propriedades que o snr. Guimarães
+tem adquirido...</p>
+
+<p>--Pois é esse!... Aquelle homem humilde que
+me beijou as mãos quando eu lhe dei uma libra
+de gratificação...</p>
+
+<p>--É esse mesmo.</p>
+
+<p>--E nunca me disse de que familia era...</p>
+
+<p>--Não falla em familia, e parece até esquecido
+da sua procedencia. Que eu, a fallar verdade,
+uma vez, passando com elle defronte das ruinas
+da casa de seu pai, surprendi-o a olhar para as
+paredes derruidas com as lagrimas nos olhos.
+Perguntei-lhe por que chorava, e elle respondeu-me
+que chorava por sua mãi, lembrando-se que
+d'aquella casa sahira ella coberta de mais amargas
+lagrimas.</p>
+
+<p>--Coitado!--disse o brazileiro--hei de fazer-lhe
+o bem que poder.</p>
+
+<p>--E póde muito v. s.ª; mas faça-lh'o de modo
+que o não humilhe.</p>
+
+<p>--Eu cá sei, snr. abbade. Nós, os chamados
+brazileiros, sabemos todos os processos de dar esmolas
+aos nossos patricios de modo que elles se
+<span class='pagenum'>[26]</span>
+dispensem de nos agradecer, e até lhe deixamos
+o direito salvo de nos ridiculisar.</p>
+
+<p>A justiça inspirára este homem, que nunca
+fôra tão eloquente.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>* &nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp; *</p>
+
+<p>Pouco tempo depois, annunciou-se a venda
+da quinta de Real de Oleiros e suas pertenças, a
+requerimento dos credores. José Maria Guimarães
+cobriu todos os lanços. Foi-lhe adjudicada a
+quinta por alto preço. Os licitantes, que eram os
+credores, acotovelavam-se jubilosos, e diziam
+entre si:</p>
+
+<p>--<em>Espiguêmol-o!</em></p>
+
+<p>E, assim que o ramo lhe foi entregue, disseram
+unanimemente:</p>
+
+<p>--Foi <em>espigado</em>!</p>
+
+<p>O brazileiro pagou immediatamente ao instrumento
+da adjudicação, e disse, relançando a
+vista aos alegres credores de Pedro de Andrade:</p>
+
+<p>--Meus senhores, o que vale aos credores dos
+fidalgos, que não pagam, são estes <em>nossos irmãos
+de além-mar</em>, que, lá e cá, melhor fôra chamar-lhes
+<em>irmãos da misericordia</em>...</p>
+
+<p>--É parvo!--disse um poeta de Basto ao ouvido
+de um bacharel de Felgueiras.</p>
+<span class='pagenum'>[27]</span>
+
+<p class="centrado">*<br>* &nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp; *</p>
+
+<p>Passados dias, começaram obras de reedificação
+no local do palacete arruinado. O proprietario,
+fazendo-se encontradiço com o amanuense
+do tabellião, disse-lhe:</p>
+
+<p>--Ó snr. Alvaro, vá o snr. hoje, se não tiver
+que fazer, á quinta de Real, que temos que conversar
+a respeito de certos arranjos.</p>
+
+<p>--Sim, senhor--disse Alvaro--quando v. s.ª
+quizer.</p>
+
+<p>--Ás 4 da tarde; e leve tinteiro e papel, que
+não ha lá d'isso.</p>
+
+<p>Á hora aprazada, entrou o bisneto do capitão-mór
+na extincta honra dos Pachecos e Andrades.
+Já lá estava o brazileiro, ás testilhas com os alveneis.
+Assim que chegou o escrevente do tabellião,
+subiu com elle por entre um matagal de bravio
+até ao alto de um outeirinho onde se erguia
+um pombal já descaliçado, mas ainda assim a
+porção menos esboroada das pertenças da quinta,
+graças á fortaleza do tecto abobadado de pedra.</p>
+
+<p>Havia dentro uma banca de granito, onde outrora
+os senhores de Real se desenfastiavam em
+merendas, depois das fadigas da caça na tapada
+defeza. Já lá estavam duas cadeiras.</p>
+<span class='pagenum'>[28]</span>
+
+<p>--Sente-se ahi, snr. Alvaro--disse José Maria
+Guimarães,--e vá escrevendo.</p>
+
+<p>--Prompto!--respondeu o escrevente, rodando
+a sibilante tarracha do tinteiro de chifre.</p>
+
+<p>--Ponha ahi os nomes dos pobres da freguezia
+que não tem casa de seu.</p>
+
+<p>Alvaro Pacheco escreveu trinta e quatro nomes;
+quedou-se um momento, e perguntou:</p>
+
+<p>--De todos os pobres que não tem casa?</p>
+
+<p>--Sim, de todos os pobres que não tem casa
+propria.</p>
+
+<p>--Então, falta o meu nome. Somos trinta e
+cinco os pobres que não temos casa.</p>
+
+<p>E escreveu: <em>Alvaro, escrevente de tabellião.</em></p>
+
+<p>--Muito bem--volveu o brazileiro commovido--sabe o que eu quero?</p>
+
+<p>--V. s.ª o dirá.</p>
+
+<p>--É ceder metade d'esta quinta aos pobres
+para elles edificarem uma casa com seu quintalejo;
+já se vê que sou eu que pago as obras das casas;
+e, visto que o snr. Alvaro é um dos trinta e
+cinco pobres, escolha a local onde quer a sua casa
+feita. A escolha do local é sua; ora agora, o feitio
+da obra isso é cá por minha conta.</p>
+
+<p>--Os pobres aceitam, não escolhem--disse
+Alvaro.</p>
+
+<p>--Mau!--replicou José Maria Guimarães--Mau!
+<span class='pagenum'>[29]</span>
+ou bem que somos francos um com o outro,
+ou não temos nada feito. Eu cá sou assim!</p>
+
+<p>--Então quer v. s.ª...</p>
+
+<p>--Deixemo-nos de <em>senhorias</em>. Eu sou filho de
+um almocreve, e neto e bisneto de burriqueiros;
+e o snr. Alvaro Pacheco é descendente de capitães-móres
+a quem meus avós traziam presuntos de
+Melgaço nas suas recovas de machos. Deixemo-nos
+de <em>senhorias</em>. Vamos á questão. Onde quer a
+sua casa?</p>
+
+<p>--Aqui--disse Alvaro.</p>
+
+<p>--Aqui no pombal?!</p>
+
+<p>--Aqui, porque fica sendo casa, e ao mesmo
+tempo memoria de ter estado n'este sitio um homem
+honrado.</p>
+
+<p>--Ou dous--emendou o brasileiro--Dê cá
+um abraço, e vamos embora, que faz aqui frio.</p>
+
+<p>E, no decurso do caminho, proseguiu:</p>
+
+<p>--O snr. Alvaro ha de fazer-me o favor de se
+despedir do serviço do tabellião, se lhe não custar.
+Preciso de quem me represente n'estas obras,
+em quanto vou tratar de negocios a Lisboa. Eu
+cá lhe deixo as plantas das casas dos pobres, e o
+capital para o custeio das despezas.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>* &nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp; *</p>
+<span class='pagenum'>[30]</span>
+
+<p>O brazileiro voltou, passados seis mezes. Todas
+as casas estavam já de parede e tecto, quando
+voltou, excepto a do pobre chamado Alvaro.</p>
+
+<p>--Com que então a casa n.º 35 ainda não
+tem sequer os alicerces?---perguntou o bemfeitor.</p>
+
+<p>--É porque o pobre n.º 35 não precisa tanto
+como os outros--respondeu o feitor.</p>
+
+<p>--Então vou eu ser agora o fiscal das suas
+obras--tornou José Maria.</p>
+
+<p>E, ao outro dia, fez convergir os melhores
+operarios para a bouça do pombal, e mandou arrazar
+a vivenda de centenares de andorinhas que
+se esvoaçavam ao primeiro troar dos alviões e
+marretas.</p>
+
+<p>Alvaro e José Maria assistiam ao derrubamento
+do pombal, um tanto condoidos do esgazear
+das espavoridas habitadoras das ruinas.</p>
+
+<p>N'isto, um pedreiro esboroando com a alavanca
+um pedaço de parede, descobriu uma superficie
+escura, que se lhe figurou lousa.</p>
+
+<p>--Que diabo de obra é esta de lousa em parede
+de cantaria?--disse o alvenel.</p>
+
+<p>O brazileiro abeirou-se da parede, apalpou a
+supposta lousa, e observou ao pedreiro que era
+pau e não lousa, mandando socavar dos lados, e
+alimpar a superficie do que quer que fosse.</p>
+<span class='pagenum'>[31]</span>
+
+<p>--Isto é um caixote!--disse o mestre da
+obra--querem vossês vêr que o diabo as arma?</p>
+
+<p>--Arma o quê?--perguntou José Maria Guimarães.</p>
+
+<p>--V. s.ª nunca ouvia dizer que os fidalgos de
+Real esconderam um thesouro que nunca se encontrou?</p>
+
+<p>--Já ouvi dizer isso. Atirem a baixo toda a
+pedra que está dos lados, e não embarrem no
+caixote. Cuidado lá com isso! Snr. Alvaro, parece-me
+que vai assistir á resurreição do melhor
+defunto dos seus avós--bradou o brazileiro.</p>
+
+<p>--Como?!--perguntou Alvaro, que vinha entrando
+no recinto do pombal.</p>
+
+<p>--Venha vêr. Apalpe. Que é isso?</p>
+
+<p>--Parece-me um caixote--disse o bisneto do
+capitão-mór.</p>
+
+<p>--Não é parece; é que é. Sabe o que lá está
+dentro? Sabe a historia dos trezentos e tantos mil
+cruzados de seu bisavô?</p>
+
+<p>--Ouvi dizer que...</p>
+
+<p>--Que nunca appareceram. Apparecem hoje.
+Estão alli.</p>
+
+<p>Alvaro de Andrade que tinha encarado o infortunio
+de trinta annos com intemerato aspecto,
+descorou em frente da taboa negra que devia ter
+<span class='pagenum'>[32]</span>
+dentro uma cousa chamada, bem ou mal, a <em>fortuna</em>.</p>
+
+<p>A este tempo, o caixote era apeado, suspenso
+entre quatro robustos braços.</p>
+
+<p>--Oh! como pesa!--gemeu um dos pedreiros.</p>
+
+<p>--Podéra não!--disse o brazileiro--trezentos
+e tantos mil cruzados!</p>
+
+<p>--Os rios correm para o mar, snr. Guimarães--observou
+o mestre d'obras.</p>
+
+<p>--Que quer dizer, mestre?--perguntou o
+brazileiro.</p>
+
+<p>--Que se v. s.ª era rico, é agora riquissimo.</p>
+
+<p>--Obrigado pelo conceito que faz de mim,
+mestre...--volveu José Maria entre risonho e
+agastado.</p>
+
+<p>--Ó meu senhor, pois eu...</p>
+
+<p>--Suspeita-me de ladrão...</p>
+
+<p>--Valha-me Deus!... o que apparecer em terra
+de v. s.ª seu é.</p>
+
+<p>--E esta terra é minha? Pois não sabe que
+este chão é d'este pobre que se chama Alvaro?</p>
+
+<p>--Ó snr. Guimarães!...-exclamou o filho
+do ultimo senhor da honra de Real de Oleiros, e
+não pôde articular outra expressão.</p>
+
+<p>--Vamos!--acudiu o brazileiro--para onde
+é que vai o thesouro de seu avô, snr. Alvaro
+<span class='pagenum'>[33]</span>
+Pacheco de Andrade, snr. barão, snr. visconde,
+snr. conde, snr.... Quer mais? Dê as suas ordens.</p>
+
+<p>José Maria casquinava uma risada de elevada
+intelligencia, em quanto os obreiros, rodeando o
+caixote, se embasbacavam uns nos outros, e todos
+no rosto de Alvaro com a mais sincera e respeitosa
+estupidez.</p>
+
+<p>Novamente instado para que dissesse onde o
+caixão devia ser levado, Alvaro respondeu:</p>
+
+<p>--A minha mãi, que sabe o que são pobres.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>* &nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp; *</p>
+
+<p>E os primeiros pobres, que relativamente enriqueceram
+nas aldêas convisinhas, foram os
+descendentes dos irmãos d'aquelle feitor que
+muitos alcunharam de fugitivo ladrão do thesouro
+do capitão-mór, e que se fôra a morrer longe
+d'alli, e obscuramente, receoso de ser novamente
+martyrisado pelos filhos de seu amo.</p>
+
+<p>Alvaro Pacheco de Andrade, n'este anno de
+1874, tem quarenta e nove annos, e é conhecido
+pelo fidalgo de Real de Oleiros. Aquella senhora
+de tez morena, com cinco formosos filhos, que
+brincam á volta de outra senhora de setenta annos,
+é a esposa de Alvaro, e filha de José Maria
+Guimarães. A dos cabellos brancos, que lhe alvejam
+<span class='pagenum'>[34]</span>
+na fronte como a corôa de açucenas de uma
+santa, é a viuva d'aquelle galhardo e infausto D.
+Juan, assassinado em 1843. O sacerdote ancião,
+que parece ser da familia, é aquelle abbade que
+nos leu a <em>Revista Universal Lisbonense</em>, e a quem
+eu devo e agradeço os commentarios ao fogoso e
+pungente artigo, que me parece ser do meu presado
+mestre e adorado amigo visconde de Castilho.</p>
+
+<hr>
+
+
+
+<a name="cap02"></a>
+<h1>O JOGADOR</h1>
+
+
+<p>Hoje em dia, aquella denominação, nem é
+desprezivel nem affrontosa. O progresso indultou
+o jogador; deliu-lhe da fronte o antigo ferrete.</p>
+
+<p>Se eu jogar com sorte propicia, e mobilar um
+palacio, cujas alfaias e baixella representem os
+haveres e as lagrimas de muitas familias, serei o
+legitimo e respeitado proprietario do meu palacio.</p>
+
+<p>Se eu abrir os meus salões, a mais selecta sociedade
+virá pisar as alcatifas do meu palacio, e
+lisonjear a magnificencia do fino gosto que dirigiu
+<span class='pagenum'>[35]</span>
+as correntes do meu ouro. Ninguem me perguntará
+se herdei de avós, se ganhei de incautos
+a minha opulencia. Talvez que os meus convidados
+segredem entre si a proveniencia das minhas
+pompas; mas d'esses, duas vezes deshonrados,
+vingado estou. Deshonrados, porque entraram
+nas minhas salas, e deshonrados porque denegriram
+a honesta posse dos vinhos que me beberam.</p>
+
+<p>Continuando a auspiciosa hypothese: se eu fôr
+o jogador enriquecido, bemquisto das familias,
+pessoa séria, influente nas eleições bancarias, com
+folha corrida, insuspeito de falsificador de testamentos
+ou moeda, de certo me não distingo do homem
+de bem, laborioso, honrado e provado nas
+lutas da vida.</p>
+
+<p>Ha, todavia, entre nós uma pequena differença:
+eu dou bailes, e o meu honrado visinho não
+os dá.</p>
+
+<p>Mas isso depende da aristocracia da indole:
+elle póde descender d'algum servo de gleba, que
+lhe transmittiu genio caínho e o acanhamento de
+raça; em quanto eu obedeço a impulsos de outro
+sangue. As damas que se bamboavam nos coxins
+flaccidos das minhas othomanas com toda a certeza
+não calcularam quantos <em>micos</em> infelizes dos meus
+parceiros representavam as copias de Raphael e
+<span class='pagenum'>[36]</span>
+os originaes de Murillo pendurados sobre as colgaduras
+das minhas paredes. Antes quero suppôr
+que ellas, no arrobo da sua admiração, meditaram
+que na minha cabeça havia o que quer que
+fosse digno da cabelleira encalamistrada de um
+Marialva, no reinado de D. João V.</p>
+
+<p>É profundo o fôsso que me separa do jogador
+em outras eras. Nasci quando devia nascer. Se eu
+viesse á luz no seculo XVI, este meu mister de jogador
+era synonymo de vadiagem (<em>Ord</em>, l. V, tit.
+82). Nas minhas tertulias, devidas á sorte feliz da
+tavolagem, lograria apenas reunir jogadores. Se
+nascesse no seculo XVII ou XVIII, os corregedores
+dos Philippes, de D. João IV e Pedro II, e dos reis
+subsequentes, se eu désse bailes, carregavam-me
+com as leis sumptuarias por sobre a pêcha de vadio.
+Em tempo de D. João V, D. José ou D. Maria,
+tanto o Camões do Rocio, como o Marques Bacalhau,
+como o Pina Manique mandavam-me responder
+do Limoeiro pela procedencia dos meus
+lustres, dos meus sophás, dos meus jarrões, dos
+meus contadores marchetados, dos meus bronzes,
+dos meus frescos, dos meus pendulos, dos
+meus pavimentos de xadrez lustroso. E vestiam-me
+talvez uma das librés dos meus criados.</p>
+
+<p>Foi por isso que o facho da civilisação, passando
+pelas minhas salas de jogador feliz, radiou
+<span class='pagenum'>[37]</span>
+reverberos esplendidos da minha baixella, e me
+mostrou em meio dos meus convidados, com a
+fronte luzentissima das alegrias do homem de
+bem.</p>
+
+<p>Póde ser que, em outras eras tenebrosas, a
+felicidade no jogo fosse malsinada de fraude e
+roubo.</p>
+
+<p>Hoje não.</p>
+
+<p>O jogo, á luz de 1874, é um contracto bilateral,
+fundado no consentimento de ambas as partes.</p>
+
+<p>Se é forçoso que uma das partes fosse tola e
+desgraçada, eu de certo não fui.</p>
+
+<p>Está fechada a hypothese.</p>
+
+<hr>
+
+
+
+<a name="cap03"></a>
+<h1>INEDITO DO POETA FR. BERNARDO DE BRITO</h1>
+
+
+<p>Escreveu o famoso cisterciense a <em>Sylvia de Lizardo</em>,
+e ninguem o trata de poeta quando o
+louva ou moteja. Chamam-lhe o <em>chronista</em>, o <em>classico</em>,
+o <em>douto</em>, o <em>mentiroso</em>, o <em>massador</em>, o <em>milagreiro</em>;
+poeta é que não; e houve até um frade da
+<span class='pagenum'>[38]</span>
+ordem d'elle, Fortunato de S. Boaventura, o author
+do <em>Punhal dos Corcundas</em>, que positivamente
+desbalisou de poeta e de author da <em>Sylvia de Lizardo</em>
+o vernaculo author da <em>Chronica de Cistér</em>.</p>
+
+<p>Pois foi poeta, e dos bons do seu tempo, aquelle
+Balthazar de Brito de Andrade, que por amor
+do patriarcha se crismou em <em>Bernardo</em>.</p>
+
+<p>Teve elle o ruim sestro de desfazer na prosapia
+dos outros. Raro fidalgo lhe sahiu incolume
+do crisol em que por obrigação do officio de historiador,
+elle acendrava o fino ouro dos Trocozendos,
+dos Romarigues, dos Egas Bufas e outros
+condes das raças romana é goda.</p>
+
+<p>Nos descendentes do Espadeiro, que eram a
+geração dos <em>Coelhos</em>, beliscava elle, á conta do assassinio
+de Ignez de Castro. De si, dizia o frade,
+que os <em>Britos</em>, em Portugal, derivavam dos <em>Brutos</em>
+de Roma.</p>
+
+<p>Um descendente de Egas Moniz, chamado João
+Soares de Alarcão, como era poeta, satyrisou a
+maledicencia de fr. Bernardo de Brito com este
+soneto:</p>
+
+<div class="poesia">
+Aos profundos imperios d'el-rei Pluto<br>
+Irás, Bernardo, pelo que has escripto,<br>
+Pois dizes que de <span class="ni">Bruto</span> vem teu <span class="ni">Brito</span>,<br>
+Ficando tu só n'isso Brito e bruto.<br>
+<span class='pagenum'>[39]</span>
+<br>
+Tu vens d'aquelles que a pé enxuto<br>
+Passaram, com Moysés, o mar do Egypto,<br>
+Ou vens do que com sangue do cabrito<br>
+Tantos guizados fez sem nenhum fructo.<br>
+<br>
+Chamastes ao teu livro <span class="ni">Monarchia</span>,<br>
+Sendo <span class="ni">Mona</span> que cria monstros varios,<br>
+E tornastes de ferro a idade de ouro.<br>
+<br>
+Não te mettas em casos temerarios;<br>
+Pasta nas hervas, bebe da agua fria,<br>
+Ou na velha escudela o caldo louro.<br>
+</div>
+
+<p>O monge de Cistér responde pelas mesmas
+rimas:</p>
+
+<div class="poesia">
+Maçarico dos charcos de el-rei Pluto,<br>
+Que taes marmanjarias has escripto,<br>
+Que ao douto frei Bernardo ou Bruto ou Brito<br>
+Picas com bico infame, sujo e bruto;<br>
+<br>
+Jámais será de Ignez o pranto enxuto,<br>
+Pois a fazes mais quartos que um cabrito,<br>
+Dizendo que nas mãos deu o esp'rito<br>
+De Coelho matador, sagaz e astuto.<br>
+<br>
+Não vem da lusitana monarchia<br>
+Martinho <span class="ni">mono</span>, pai de cascos varios,<br>
+Sua mãi de <span class="ni">Aguilar</span>, aguia, não de ouro.<br>
+<br>
+Não te mettas em casos temerarios:<br>
+Que louro não honra tua musa fria,<br>
+Mas de uma pouca de... o caldo louro.<br>
+</div>
+<span class='pagenum'>[40]</span>
+
+<p>As injurias do primeiro terceto entendem com
+os progenitores de João Soares de Alarcão. Martinho,
+se era <em>mono</em>, sobrava-lhe direito a ser da
+<em>monarchia</em> lusitana; mas tambem o outro se demasiára,
+vituperando de <em>mona</em> a <em>Monarchia</em> do
+frade. Tratavam-se de macacões um ao outro.
+<em>Pai de cascos varios</em>, invectiva o poeta de Alcobaça.
+Pela variedade da cascaria, entende-se que
+capitulava de cavalgadura o adversario: saldo
+bem ajustado com o outro que lhe chamára <em>bruto</em>.</p>
+
+<p>Entra no soneto a mãi do poeta, que devia ser
+da familia de <em>Aguilares</em>: e era com effeito, sem
+ser de raça desprimorosa. Chamava-se D. Cecilia
+de Mendonça Aguilar e Lugo, filha de Philippe
+de Aguilar, mestre-sala de D. Sebastião, de D.
+Henrique, de D. Philippe, e tão amigo de Castella
+que chegou á mordomia-mór do rei intruso.
+Estes Aguilares e Aguiares foram sempre muito
+dos hespanhoes, e logo contarei um caso do mais
+notavel.</p>
+
+<p><em>Martinho</em>, <em>mono</em>, diz frei Bernardo. Que o pai
+do poeta era Martinho Soares de Alarcão e Mello,
+6.º senhor da casa de Torres-Vedras, não ha duvida;
+que fosse <em>mono</em>, não o inculcam os genealogistas.
+Seu filho, o poeta, foi alcaide-mór de
+Torres-Vedras, casou, teve nove filhos, e entre
+esses, o jesuita Francisco Soares de Alarcão, letrado
+<span class='pagenum'>[41]</span>
+eminente e guerreiro, que morreu queimado
+em uma explosão de polvora, quando guarnecia
+Juromenha, em tempo de D. João IV, capitaneando
+os noviços da companhia, cujo reitor era.</p>
+
+<p>Outro filho do <em>poeta dos cascos varios</em>, quando
+D. João IV o mandava governar Ceuta, passou-se
+para Philippe IV; e foi condemnado á morte<sup><a name="mfn1" href="#fn1">[1]</a></sup>.</p>
+
+<p>Teve a mãi de João Soares um primo chamado
+Damião de Aguiar Ribeiro, que era corregedor
+em Lisboa, reinando o cardeal. Como sabem,
+andavam então divididas as opiniões entre D. Antonio
+e Philippe II, ácerca da successão do throno.
+Damião de Aguiar era dos mais façanhosos
+propugnadores por Castella. Succedeu então que
+um homem do serviço de D. Antonio acutilasse
+na Padaria um vereador que fallava soltamente
+no senado contra o filho de Violante Gomes. Foi
+preso e summariamente condemnado á forca. Á
+hora em que o réo era levado, soube Damião de
+Aguiar na rua Nova que, na Ribeira, se ajuntava
+povo intencionado a tirar-lhe o padecente. Mandou
+<span class='pagenum'>[42]</span>
+o corregedor parar o prestito; fez lançar uma
+corda de uma janella, e alli mesmo ordenou que se
+enforcasse o homem, para evitar semsaborias. Tão
+grato lhe ficou por isto o rei de Castella que o
+nomeou desembargador do paço, e depois chanceller-mór
+do reino, commendador de S. Matheus
+de Soure e de S. Cosme de Gondomar, commendas
+que rendiam 3:500 cruzados.</p>
+
+<p>Foi, por tanto, riquissimo, e tão bom homem
+que fundou o convento das Capuchinhas da Merciana.
+Instituiu morgadio, comprehendendo uma
+extensa quinta que ia desde as portas de Santo
+Antão pela travessa da Annunciada até á chamada
+calçada de <em>Damião de Aguiar</em>.</p>
+
+<p>Casou duas vezes; procreou-se, e fez-se representar
+entre nós pelos snrs. condes de Povolide,
+de Valladares, etc.</p>
+
+<p>Rebello da Silva não reza bem d'este Damião
+na <em>Historia de Portugal</em>. Eu não rezo bem d'elle
+nem por elle; confesso, todavia, que era homem
+expedito nisto de enforcar a gente na janella de
+qualquer cidadão, mediante seis varas de corda.</p>
+
+<div class="rodape">
+ <p><a name="fn1" href="#mfn1">[1]</a> D. João Soares morreu em 1618, com 38 annos de idade. Escreveu e imprimiu em lingua castelhana: <em>Archimusa de varias rimas y efetos</em>, e <em>La iffanta coronada por el-rei D. Pedro, D. Ignez de Castro</em>, etc. Este poema não devia ser mui lisonjeiro ás tradições de Pero Coelho, avoengo do poeta.</p>
+</div>
+<span class='pagenum'>[43]</span>
+
+<hr>
+
+
+
+<a name="cap04"></a>
+<h1>LISBOA</h1>
+
+
+<p>Elucidemos a historia do viajante.</p>
+
+<p>O mordomo-mór que fugia era D. João de
+Mascarenhas, 4.º marquez de Gouvêa, e 7.º conde
+de Santa Cruz. Tinha 25 annos, e era casado
+com uma hespanhola, chamada D. Thereza de
+Moscoso e Aragão, filha do 7.º conde de Altamira.</p>
+
+<p>A senhora que fugiu com elle era D. Maria da
+Penha de França, tambem casada com seu primo-irmão
+D. Lourenço de Almada, muito moço.</p>
+
+<p>Tinham casado em 1722. Em junho de 1723
+D. Maria da Penha de França deu á luz uma menina,
+que se chamou Violante. E, na noite de 11
+de novembro de 1724, a esposa, abandonando
+marido e filha, fugiu com o marquez.</p>
+
+<p>Este desastre não foi precedido de ardentes
+galanteios e grandes resistencias do pudor vencido
+pela paixão.</p>
+
+<p>D. Maria foi de visita ao paço, onde havia sido
+dama, como sua mãi D. Violante Henriques o
+fôra da rainha D. Maria Sophia de Saboya. Viu o
+<span class='pagenum'>[44]</span>
+marquez que era galan, audaz, e sem ser milagre,
+fulminou-o com o relampago da formosura.
+Fugiram e pararam em Tuy. Não foi em Vigo
+como diz o viajante. Julgavam-se salvos em terra
+estrangeira; mas o bispo, por ordem vinda de
+Madrid, prendeu D. Maria n'um mosteiro; e o
+marquez fugiu por Hespanha dentro, e mais tarde
+para Inglaterra.</p>
+
+<p>Tanto que em Lisboa se divulgou a prisão da
+mulher de D. Lourenço de Almada, certo poeta
+escreveu um soneto gravido de maus versos e
+boa moral, que diz isto:</p>
+
+<div class="poesia">
+D'esse claustro a sagrada penitencia<br>
+Pia te esconda, oh bella criminosa,<br>
+E converta-se em sombra a luz formosa<br>
+Que ardeu nos sacrificios da indecencia.<br>
+<br>
+Tolera da prisão toda a violencia,<br>
+Perdida já a nobreza generosa;<br>
+Fique ainda entre a culpa indecorosa<br>
+Benemerita ao menos a paciencia.<br>
+<br>
+Principia a morrer n'essa clausura<br>
+Encobrindo um descredito infinito<br>
+No antecipado horror da morte escura.<br>
+<br>
+Mas ah! se em ti, por ultimo conflicto,<br>
+Como vai sendo de vida sepultura,<br>
+Chegasse a ser cadaver o delicto!<br>
+</div>
+<span class='pagenum'>[45]</span>
+
+<p>Hei de escrever um livro que ha de chamar-se
+o <span class="small-caps">desterrado</span>. Estes desastres hão de ser
+esmiuçados compridamente. O <em>Desterrado</em> do
+meu romance não é o marquez de Gouvêa: é
+outra casta de personagem. Bem sei que esfrio o
+interesse do futuro livro, bosquejando-o aqui em
+poucas linhas. Não importa. A curiosidade do
+leitor é mais attendivel que as conveniencias
+mercantis d'uma novella.</p>
+
+<p>Como sabem, D. Maria da Penha deixou nos
+braços do abandonado marido uma filhinha de onze
+mezes, que se chamou Violante. Esta menina,
+ahi pelos dezesete annos, amou seu primo D. Luiz
+Francisco de Assis Sanches de Baena, alcaide-mór
+de Villa do Conde, capitão de cavallos, e uns
+gentilissimos vinte e nove annos. Na casa dos
+Almadas, onde D. Luiz fôra creado--porque sua
+mãi casára em segundas nupcias com D. Luiz
+José de Almada--havia um D. Antão, que se apaixonára
+por Violante, que era sua sobrinha. A
+menina esquivara-se ás caricias do tio, e deixou-se
+arrebatar nos braços do primo D. Luiz, quando
+uma ordem regia o desterrou para Moncorvo,
+a rogos de D. Antão de Almada. Os dous fugitivos
+(que desterro tão semelhante, o de mãi e filha!)
+esconderam-se e casaram em Zamora; mas
+<span class='pagenum'>[46]</span>
+ahi mesmo os enviados do cioso tio a foram colher
+de sobresalto e a trouxeram a Portugal.</p>
+
+<p>Esteve a menina reclusa alguns annos em
+Marvilla, com o proposito de professar, pois que
+a lei lhe annullára o casamento com o primo;
+não obstante, porém, a saudade do desterrado
+primo, ao fim de onze annos, aceitou seu tio para
+esposo, do mesmo passo que D. Luiz era banido
+e desnaturalisado para sempre. Aqui fica muito
+pela rama o entrecho do livro para o qual se estão
+aprestando as peças essenciaes da vida tempestuosa
+de D. Luiz Francisco de Assis Sanches de
+Baena, fallecido aos 75 annos, e terceiro avô do
+actual snr. visconde de Sanches de Baena<sup><a name="mfn2" href="#fn2">[2]</a></sup>.</p>
+
+<p>De D. Violante e de seu tio D. Antão de Almada
+(sem embargo das amarguras da violentada
+esposa) nasceu D. Lourenço de Almada, que
+foi o 1.º conde do seu appellido em 1793.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>* &nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp; *</p>
+
+<p>Outra indicação do viajante que estimula a
+curiosidade:</p>
+
+<p>«A casa da rainha e dos principes são analogas
+á do rei. O posto de camareiro-mór da
+<span class='pagenum'>[47]</span>
+rainha vagou por morte do marquez das Minas,
+assassinado em 1721. Este senhor era genro do
+marechal de Villeroy; e seu filho, o conde do
+Prado, está presentemente na côrte de França.»</p>
+
+<p>Já d'este caso dei n'outro livro a noticia que
+transcrevo do citado periodico de Francisco Xavier
+de Oliveira:</p>
+
+<br>
+<p>«Um corregedor guardava uma porta da
+igreja da casa professa dos jesuitas, quando alli
+se celebrava grande festividade. Sómente o rei
+havia de entrar por aquella porta. Chegaram
+aqui o marquez das Minas e o conde da Atalaya;
+mas o corregedor com razão lhes vedou o passo.
+Insistiram elles, dizendo ao ministro que as
+ordens recebidas não podiam entender-se com
+pessoas de sua esphera. Redarguiu o corregedor
+que as ordens ninguem exceptuavam, e por tanto,
+sem que o rei entrasse, não podia elle permittir
+que entrasse quem quer que fosse. Aquelles
+senhores podiam entrar por outras portas
+francas a toda a gente. Não obstante, pertinazmente
+exigiram do corregedor uma distincção
+que elle não podia dar-lhes sem transgredir os
+deveres... Os dous fidalgos, depois de o terem
+insultado, passaram ás ultimas. O conde da Atalaya
+deu com o chapéo na cara do corregedor, e
+<span class='pagenum'>[48]</span>
+o marquez das Minas traspassando-o com a espada,
+matou-o. Em seguida cavalgaram, e sahiram
+do reino. O marquez das Minas <em>foi perdoado e
+voltou ao reino</em><sup><a name="mfn3" href="#fn3">[3]</a></sup>.»</p>
+
+<p>Crê o leitor que, não obstante o perdão,
+o marquez das Minas passaria o restante da vida
+sequestrado das graças do monarcha e da convivencia
+das pessoas de bem? Não faça juizos
+temerarios o leitor: o marquez das Minas recebeu
+o indulto, e ao mesmo tempo o bastão de
+general.</p>
+
+<p>Já vimos a justiça dos homens: agora vejamos
+a da Providencia. Servia no exercito portuguez
+um castelhano chamado D. Juan de la Cueva,
+<span class='pagenum'>[49]</span>
+que não dava <em>excellencia</em> ao seu general,
+marquez das Minas, sem que este lhe désse <em>senhoria</em>.
+«Ora, o marquez, assassino do corregedor,--diz
+o cavalheiro de Oliveira--era soberbo
+e arrogante. Um dia, ao entardecer, sahia elle
+da portaria da congregação de S. Philippe Neri,
+a tempo que desgraçadamente <em>Juan de la
+Cueva</em> ia entrando. Cortejou elle o marquez, que
+lhe não deu a pretendida <em>senhoria</em>, e por isso <em>de
+la Cueva</em> lhe não deu <em>excellencia</em>. O general,
+grandemente irritado, levantou o bastão e proferiu
+palavras ameaçadoras. <em>De la Cueva</em>, sem lhe
+dizer palavra, traspassou-o com a espada. O
+marquez não tugiu nem mugiu: quando cahiu
+por terra, já ia morto. O padre, que o acompanhára
+até á portaria, e era confessor d'elle, apenas
+teve tempo de lhe apertar a mão. <em>D. Juan de
+la Cueva</em> pôde escapar-se, e refugiou-se em Hespanha<sup><a name="mfn4" href="#fn4">[4]</a></sup>.»</p>
+
+<p>Na jurisprudencia divina a justiça mais seguida
+é a pena de Talião.</p>
+
+<div class="rodape">
+ <p><a name="fn2" href="#mfn2">[2]</a> Veja <em>Apontamentos biographicos</em> ácerca de D. Luiz Francisco de Assis Sanches de Baena, etc., por Innocencio Francisco da Silva, Lisboa 1869.</p>
+
+ <p><a name="fn3" href="#mfn3">[3]</a> O cavalheiro de Oliveira não designa o tempo de expatriação do marquez das Minas, conde do Prado. Deviam ser dez annos, segundo a sentença manuscripta de que dá noticia o snr. Innocencio Francisco da Silva, a pag. 233 do 7.º tom. do Dicc. Bibliog. Diz assim: «Sentença da Relação de Lisboa, contra os condes do Prado e da Atalaya por matarem publicamente o corregedor do Bairro-Alto no exercicio da sua authoridade. O primeiro, tendo-se evadido, foi justiçado em estatua; o segundo condemnado a degredo por dez annos, e ambos em multas pecuniarias». Creio que ha equivoco, na transcripção da sentença. O queimado em estatua foi o conde de Atalaya, que, no dizer do cavalheiro de Oliveira, morreu furioso em Vienna, depois de ter militado no exercito do imperador de Austria. Quanto ao marquez das Minas, presume-se que lhe foi indultada a sentença, visto que o citado Oliveira diz que obteve perdão e voltou a Lisboa.</p>
+
+ <p><a name="fn4" href="#mfn4">[4]</a> <em>Amusement</em>, 2.º v. pag. 147 e 148.</p>
+</div>
+
+<hr>
+<span class='pagenum'>[50]</span>
+
+
+
+<a name="cap05"></a>
+<h1>LITTERATURA BRAZILEIRA</h1>
+
+
+<p>Longo tempo se queixaram os estudiosos
+do descuido dos livreiros portuguezes em se fornecerem
+de livros brazileiros. Nomeavam-se de
+outiva os escriptores distinctos do imperio, e raro
+havia quem os tivesse nas suas livrarias. Nas bibliothecas
+publicas era escusado procural-os.
+Em compensação, sobravam n'ellas as edições
+raras de obras seculares que ninguem consulta.</p>
+
+<p>O mercado dos livros brazileiros abriu-se, ha
+poucos mezes, em Portugal. Devemol-o á actividade
+inteligente do snr. Ernesto Chardron. Foi
+elle quem primeiro divulgou um catalogo de
+variada litteratura, em que realçam os nomes de
+mais voga n'aquelle florentissimo paiz. Ahi se
+nos deparam, entre os poetas, Gonçalves de Magalhães,
+o correcto e sublime author da <em>Confederação
+dos tamoyos</em>; o lyrico e arrojado Alvares
+de Azevedo; o primaz dos escriptores brazileiros,
+e chorado Gonçalves Dias; o esperançoso devaneiador,
+fallecido no viço da idade, Casimiro de
+Abreu; Junqueira Freire que primou nos segredos
+da melodia e já não é d'este mundo; e o severo
+<span class='pagenum'>[51]</span>
+e cadencioso poeta de <em>Colombo</em>, tão estimado
+dos nossos. Entre os romancistas o fecundissimo
+Joaquim Manoel de Macedo, que disputa
+a supremacia a J. de Alencar, que tanta nomeada
+grangeou com o seu <em>Guarany</em>. Não lustram
+menos as novellas mimosissimas de Luiz Guimarães,
+e as arrobadas mesclas de prosa e verso de
+Machado de Assis. Em litteratura didascalica sobresahem
+os valiosos escriptos do professor, o
+snr. conego Fernandes Pinheiro, nomeadamente
+o <em>Resumo de historia litteraria</em>, que muito se
+avantaja a uns esbocêtos que em Portugal circulam
+nas escólas, e--o que é mais deploravel--nos
+estudos secundarios. São notabilissimos
+todos os livros do snr. J. M. Pereira da Silva,
+já na sciencia historica, já na politica, e ainda
+no romance, tão prosperamente estreiado na
+<em>Aspazia</em>. Sobre tudo, porém, os <em>Varões illustres
+do Brazil</em> e a <em>Historia da fundação do imperio
+brasileiro</em> são obras que denotam profundo estudo
+e muito engenho na boa disposição dos elementos
+e critica dos personagens historicos. Em
+varia sciencia, em livros elementares, em lexicologia,
+e ainda sobre motivos de religião é copioso
+o catalogo da livraria Chardron. Esta variedade
+argue a fertilidade de intelligencias que ajuntam
+á riqueza congenial d'aquelle solo os thesouros
+<span class='pagenum'>[52]</span>
+do espirito. E muito importa e cumpre
+observar que os brazileiros modernamente nos
+não cedem no zelo de imitar a linguagem pura
+dos grandes escriptores portuguezes dos seculos
+de ouro.</p>
+
+<p>Não esqueçamos, todavia, que o impulsor
+d'este brilhante movimento litterario no Rio de
+Janeiro, e por isso em todo o imperio, é o livreiro-editor
+Garnier, espirito emprehendedor
+que tanto faz luzir os talentos que divulga, quanto
+lucra para si a honra de os fazer conhecidos e
+laureados. Quem calcular o despendio grande de
+empresas semelhantes n'aquelle paiz, deprehenda
+o quanto cumpre que seja robusto e afouto o
+pulso que removeu as immensas difficuldades
+com que ha trinta annos lutavam os escriptores
+do Novo-mundo para se fazerem conhecidos.
+Coube esta gloria e este triumpho ao snr. Garnier.</p>
+
+<p>Falta dizer que os preços dos livros offerecidos
+no catalogo das casas Chardron, no Porto e
+em Braga, são modicos, reduzidos, e inferiores
+ao preço corrente das obras portuguezas de igual
+tomo.</p>
+
+<p>E, pois que estou agradavelmente recommendando
+livros de brazileiros, seria injustiça não
+graduar de passagem ao menos o merito de uma
+<span class='pagenum'>[53]</span>
+obra que recentemente sahia dos prélos portuenses.
+É o <em>Estudo sobre a colonização e emigração
+para o Brazil</em>. É seu author o snr. Augusto
+de Carvalho, que tão grave e prestadiamente
+abre carreira de escriptor, em annos ainda
+muito na flôr, e com o espirito já a fructear
+as mais sensatas considerações sobre as questões
+controversas inculcadas no titulo da sua obra. Á
+substancia do livro allia-se o primor da fórma, a
+propriedade do termo, a chaneza eloquente, e, a
+espaços, a elevação do estylo que não innubla a
+clareza da idéa. É o snr. Augusto de Carvalho
+um brazileiro que nobilita as letras da sua patria,
+e está grangeando um lugar entre os melhores
+escriptores, e, desde já, o tem distincto entre os
+bons pensadores e cultores de idéas proficuas.
+Congratulo-me com os seus conterraneos.</p>
+
+<hr>
+
+
+
+<a name="cap06"></a>
+<h1>Á ACTUALIDADE</h1>
+
+
+<p>O meu nome foi banido das columnas d'aquelle
+jornal. Assim o rosnou o lebreu por entre os
+arames da mordaça.</p>
+<span class='pagenum'>[54]</span>
+
+<p>Foi realmente banido?</p>
+
+<p>Então, adeus, desgraçado!</p>
+
+<p>Que o mundo tenha tanta piedade de ti, lazaro,
+quanto eu me arrependo de te haver baldeado
+do charco da petulancia para outro peor--o do
+silencio.</p>
+
+<p>Adeusinho! coça a tua lepra com os teus folhetins;
+mas sume-te, escalracho!</p>
+
+<hr>
+
+
+
+<a name="cap07"></a>
+<h1>A EXC.<sup>ma</sup> MADRASTA D'EL-REI D. LUIZ 1.º CALUMNIADA</h1>
+
+
+<p>Se me arguirem de adulador da senhora condessa,
+madrasta d'el-rei D. Luiz I, são iniquos.
+Se esta ditosa dama, em vez de estar no paço das
+Necessidades, estivesse, a esta hora, em trances
+de cantora não escripturada, eu sahiria por honra
+do seu nome de artista contra o calumniador
+que lhe mareasse os applausos recebidos no theatro
+do Porto, ha quatorze annos.</p>
+
+<p>Em um numero da <em>Lanterna</em>, periodico truculento,
+li que a esposa do viuvo de D. Maria II
+<span class='pagenum'>[55]</span>
+havia sido pateada na rampa do theatro de S.
+João, em 1859.</p>
+
+<p>É calumnia, que vou desfazer com a imprensa
+contemporanea.</p>
+
+<p>Conceda-se-me a abstinencia de tratamentos
+regiamente honorificos, em quanto a nobre condessa
+de Edla me permitte pleitear em prol dos
+seus creditos de cantora.</p>
+
+<p>A snr.ª Elisa Hensler cantou, pela primeira
+vez, no theatro do Porto, na noite de 8 de outubro
+de 1859. O <em>Nacional</em> do dia 10 escreve o seguinte:</p>
+
+<p>«<em>A companhia italiana estreou-se effectivamente
+no sabbado, e não se estreou mal. A escolha da
+opera foi acertada--«O Saltimbanco»; é uma bella
+partitura... e a prima-dona Hensler é bella, joven,
+e canta com mimo. A sua voz, se não é possante,
+é melodiosa e expressiva, tem alcance bastante
+para o nosso theatro. O publico ficou agradavelmente
+surprehendido, e deu lisongeiro acolhimento
+á mimosa cantora... Tanto no duetto como no rondó
+mostrou a snr.ª Hensler que possue dotes musicaes
+pouco vulgares. O sentimento com que cantou
+os andantes do duetto, a bravura e perfeição na
+execução da difficil parte do rondó, e aquelles trilos
+tão nitidos e puros, que ella faz em notas tão agudas
+no rondó, é sufficientemente para corroborar
+<span class='pagenum'>[56]</span>
+as grandes e vantajosas informações que a precederam;
+e o publico foi justo com os applausos e chamadas
+no fim da opera.</em>»</p>
+
+<p>Receio que os detractores da mimosa cantora
+venham com artigos de suspeição ao <em>Nacional</em>,
+culpando-o de parcial e apaixonado, já no louvor,
+já na censura, em juizos theatraes. Contra esses
+artigos redargúo estampando a opinião do <em>Commercio
+do Porto</em>, o jornal mais serio do paiz:</p>
+
+<p>«<em>Abriu-se no sabbado com a opera o «Saltimbanco»
+de Paccini... Fizeram a sua estreia n'esta
+opera a primeira dama Elisa Hensler, etc. A prima
+dona Hensler foi applaudida e teve uma chamada
+no fim</em>.» (Commercio de 10 de outubro). E no
+folhetim de 15 do mesmo mez, confirma n'estes
+termos: «<em>A snr.ª Hensler é uma excellente cantora.
+A sua voz de soprano-agudo é de sonoro timbre; e,
+ainda que de pouco volume, extensa, flexivel, melodiosa
+e fresca. Possue, além d'estes dotes naturaes,
+outros não menos valiosos como cantora: conhecimento
+do mechanismo do canto, perfeita entoação e
+expressão. Revela a seu grande merito como cantatriz
+nos floreios, nas escalas chromaticas, e especialmente
+nos trinados. Na passagem da 1.ª á 2.ª
+cavaletta do seu rondó final faz admirar os tres
+longos e bellos trinados em <span class="ni">sol</span>, <span class="ni">lá</span> e <span class="ni">si</span> agudos. Na
+difficil cavaletta de sua cavatina do 1.º acto são
+<span class='pagenum'>[57]</span>
+muito merecidos os applausos que tem colhido. No
+<span class="ni">larghetto e cantabile</span> do duetto do baritono e soprano
+do 3.º acto, não obstante a agudissima <span class="ni">tacitora</span>
+em que está escripto, não deixa a snr.ª Hensler
+nada a desejar. A todas estas excellentes condições
+como artista e cantora reune uma presença sympathica,
+qualidade esta de muito valor no theatro.</em>»</p>
+
+<p>Já no <em>Nacional</em> de 13 este parecer viera corroborado
+com estes gabos: «<em>E a prima-dona Hensler?
+Não desmereceu em nada das primeiras impressões
+que nos imprimiu.</em></p>
+
+<p>«<em>É sempre a cantora mimosa e correcta.</em>»</p>
+
+<p>O <em>Commercio</em> de 29 de outubro classifica maviosamente
+a dôce cantora com esta phrase:...
+«<em>A prima-dona Hensler é o bijou da companhia.</em>»</p>
+
+<p>Na noite de 6 de novembro cantou a snr.ª
+Hensler a parte de <em>Lucia</em>. O <em>Nacional</em> diz o seguinte:
+«<em>A snr.ª Hensler na aria do 3.º acto remiu-se
+do fiasco do 2.º, e cantou com tal mimo e
+doçura que a platéa apesar de gelada rompeu então
+em reiterados applausos.</em>» (Nacional de 7 de novembro).
+O <em>Commercio</em>, esquivando-se á ingrata e
+desmerecida palavra <em>fiasco</em>, escreve: «<em>A sr.ª Hensler
+foi muito applaudida no <span class="ni">rondó</span>, e os applausos
+foram merecidos no <span class="ni">andante</span>, que cantou lindamente,
+executando com admiravel justeza <span class="ni">a cadencia</span>
+em unisono com a flauta... Na cavaletta não foi tão
+<span class='pagenum'>[58]</span>
+irreprehensivel a execução.</em>» Está de accordo com o
+<em>Nacional</em> de 8 de novembro: «<em>A snr.ª Hensler continua
+a ser applaudida no <span class="ni">rondó</span> do 3.º acto, onde
+a bella cantora revela muito talento. Se a sua voz
+fosse tão volumosa como é suave, seria uma artista
+de infinito merecimento.</em>»</p>
+
+<p>A 12 de novembro principiam os jornaes a
+gemer sobre a gaveta do snr. Laneuville, empresario
+que se dissolvia, com quanto fosse insoluvel.
+Sem embargo, a snr.ª Hensler, na confirmação
+dos dous citados jornaes, excedia-se no mimo
+do canto. Dir-se-hia que attentava em captar
+com as harmonias dulcissimas da sua voz o archanjo
+torvo da miseria que espreitava o empresario
+por entre as bambolinas de cartão esgarçado.</p>
+
+<p>Alguns amadores, que previam o desastre da
+empresa nas cadeiras vasias da platéa, fermentaram
+a occultas dous bandos que, mais ou menos
+ficticiamente, se apaixonassem pelas duas damas.
+É o que se deprehende das revelações do <em>Commercio</em>
+de 5 de novembro que reza assim:... «<em>No
+pessoal da companhia não ha nada que desafie enthusiamo
+e dê vida animada ao theatro, apesar
+dos esforços que alguns poucos frequentadores do
+theatro, dos mais desenfadados, empenham para
+crear partido ás duas damas.</em></p>
+<span class='pagenum'>[50]</span>
+
+<p>«<em>Houve já episodios curiosos; porém nem as damas,
+nem os seus admiradores conseguem fazer
+móça no indifferentismo do publico, que reconhece
+superioridade relativa na dama Hensler; mas
+não vê ainda assim motivo justificado para se enthusiasmar.</em>»</p>
+
+<p>Com a sua usual discrição, omittiu o <em>Commercio</em>
+os <em>episodios curiosos</em>. Bem é de vêr que o amor,
+ideal da arte das fusas e semifusas, não seria estranho
+aos sonegados episodios. A radiosa belleza
+da cantora sem duvida attrahia umas borboletas,
+que então douravam o seu polen sob as fulgurações
+do lustre; todavia, como a dignidade da artista
+se esquivasse ás intrigas de bastidor que, ás
+vezes, galvanisam os empresarios oxydados, a empresa
+falliu.</p>
+
+<p>Decorreram uns quinze dias angustiados para
+a companhia desvalida. Hermann, aquelle prestigiador
+cavalheiroso que morreu ha dous annos,
+estava então no Porto. Foi elle o generoso valedor
+dos artistas e ainda do empresario. A companhia,
+em fim de dezembro, estava dispersa, não
+deixando um vestigio de fragilidade no seu rasto
+de pobreza.</p>
+
+<p>Em 21 de dezembro d'aquelle anno, uma local
+do <em>Commercio</em> dizia: «<em>O vapor Lusitania sahido
+<span class='pagenum'>[60]</span>
+hontem pelas 12 horas da manhã conduziu 118
+passageiros, entre os quaes: Elisa F. Hensler</em>, etc.»</p>
+
+<p>Entrou, pois, na manhã do dia 21 em Lisboa
+a cantora. Devia levar na alma os lutos da natural
+vaidade ferida pela indifferença gelida d'uns
+pisa-verdes que honraram grandemente a mulher,
+menosprezando a artista. Dos frementes
+applausos, que a victoriaram quando assomou
+deslumbrante no palco, ao fastio com que as filas
+dos seus admiradores rarearam, vai a distancia
+que medeia entre a mulher honesta e a que
+permitte que lhe abram saldo de contas em que
+os applausos representam uma verba.</p>
+
+<p>Eu não sei se Hensler, a cantora, escripturada
+pela empresa de S. Carlos, ao encarar a princeza
+do Tejo, que devia vestir de negro n'aquelle dia
+de dezembro, sentiu pavores da sua futura sorte,
+em theatro de jerarchia tão elevada para suas
+forças. Não sei porque frontarias de palacios lhe
+avoejou a vista absorta nas tristezas de quem ia
+sósinha, forasteira, sem o genio grande que estua
+no peito as palpitações do triumpho. Não sei;
+mas, se encarou lá em cima os palacios dos dous
+reis--com que olhos a esposa do snr. rei D. Fernando
+avistará hoje o Tejo, por onde entrára
+n'aquella manhã pardacenta de nebrina carrancuda
+de agouros esquerdos! Se ella então preveria
+<span class='pagenum'>[61]</span>
+um marido rei nas Necessidades, um enteado
+rei na Ajuda, e toda aquella Lisboa, e todo este
+reino, e nós todos ás suas plantas, nós todos, os
+bons subditos do rei que é marido, e do rei que
+é enteado, e d'ella, que vale mais que todos, por
+que, offuscando-os com a aureola da arte, estrellada
+das seducções da belleza, nos revelou que os
+reis deslumbrados eram apenas homens!</p>
+<span class='pagenum'>[62]</span>
+
+<hr>
+
+
+
+<a name="cap08"></a>
+<h1>OS SALÕES</h1>
+
+
+<h2>CAPITULO II</h2>
+
+<h2>PLEBISCITUM</h2>
+
+<div class="citacao">
+<p>Homem plebeu. <em>Homo plebeius.</em> Nos antigos
+romanos havia tres ordens. A ordem senatoria,
+equestre e plebea. A ordem plebea
+val o mesmo que a gente do povo.</p>
+
+<p><em>Plebiscitum.</em> Termo da antiga jurisprudencia
+romana. Deriva-se do latim: <em>plebs</em>, plebe,
+e <em>sciscere</em>, que val o mesmo que <em>assentar</em>,
+<em>ordenar</em>, <em>determinar</em>. E assim <em>plebiscito</em> era
+o decreto, ou lei posta pelo povo, sem o suffragio
+dos senadores, mas só ao pedir do tribuno,
+magistrado do povo. <em>Plebiscitum.</em></p>
+
+<p class="direita">D. RAPHAEL BLUTEAU.</p>
+
+<p>La conscience peut être géante, cela fait
+Socrate et Jésus: elle peut être naine, cela
+fait Atrée et Judas.</p>
+
+<p>La conscience petite est vite reptile...</p>
+
+<p>Les catastrophes ont une sombre façon
+d'arranger les choses.</p>
+
+<p class="direita">VICTOR HUGO.</p>
+</div>
+
+<p>A luz não se exprime. Não tem definição.
+Como a não tem o calor, o magnetismo, a electricidade,
+e a vida.
+<span class='pagenum'>[63]</span>
+
+<p>A luz é o agente ou a acção, que nos adverte
+a distancia da presença dos corpos luminosos pelo
+intermedio da vista.</p>
+
+<p>Vejamos.</p>
+
+<p>A luz propaga-se em linha recta nos meios
+homogeneos. Obrigada a parar, no seu caminho,
+pelo encontro d'um corpo opaco--produz os phenomenos
+da sombra e da penumbra.</p>
+
+<p>No mundo moral são a sombra e a penumbra
+as reacções da sciencia, da arte, da civilisação
+e do progresso.</p>
+
+<p>Analysemos as penumbras.</p>
+
+<p>Entremos nas sombras.</p>
+
+<p>Desçamos ás trevas.</p>
+
+<p>Fóra da vida physica são as trevas a ignorancia,
+e esta produz o silencio. Ora, o silencio
+é a paz dos sepulchros. Por que não deveria eu
+consultar a plebe?</p>
+
+<p>Ha por ahi, nas ultimas camadas sociaes,
+perdidas, nas solidões da miseria, almas tão nobres,
+aspirações tão vastas, crenças tão vivas...</p>
+
+<p>Por que não iria eu consultar os generosos
+sentimentos populares?</p>
+
+<p>E fui.</p>
+
+<p>Entrei n'um tugurio qualquer.--Que lhe importa
+o leitor qual foi? Havia uma mesa de pinho,
+duas cadeiras, e um catre. Era toda a mobilia.
+<span class='pagenum'>[64]</span>
+Mas, no meio d'esta hedionda miseria,
+existia um homem, feito á imagem de Deus; <em>et
+creavit Deus hominem ad imaginem suam.</em></p>
+
+<p>Era um veterano da liberdade. Desembarcára
+no Mindello. Tinha, na cabeceira do leito, pregada
+no travesseiro a insignia da Torre e Espada,
+ganha em Souto Redondo, em lutas titanicas, e
+em nome da liberdade.</p>
+
+<p>Não desenho o soldado, ainda hoje operario.
+Basta-nos ouvil-o.</p>
+
+<p>Li-lhe o manuscripto.</p>
+
+<p>Ficou pensativo, e triste. Encostou os cotovelos
+sobre a mesa, afagou o craneo, como se
+lhe tumultuassem tantas idéas lá dentro, que não
+podiam irromper d'aquella abobada de fogo, e
+depois, em voz baixa, como se receasse ser ouvido,
+começou assim:</p>
+
+<p>--Publique tudo isso.</p>
+
+<p>A abstenção politica é mais do que a morte:
+é a indifferença pelos males sociaes, é a historia
+d'este torpe individualismo, que nos corrompe, é
+a gangrena moral d'esta sociedade em dissolução,
+é a anasarca symptomatica da lesão organica
+que despedaça a nossa existencia, é o maior
+de todos os crimes, por que é uma tranquillidade
+ficticia, comprada á custa dos legados que nós
+iamos enthesourando para as gerações futuras.</p>
+<span class='pagenum'>[65]</span>
+
+<p>A democracia agonisa, no seculo dezenove,
+quando desabrochava, e se abria em flôr, na arvore,
+que nós todos plantamos, regada com o
+sangue precioso de tantos martyres, em nome
+dos que deviam colher e adorar no futuro, o
+fructo dos nossos trabalhos.</p>
+
+<p>O velho operario, o antigo soldado do cêrco do
+Porto meditou por alguns instantes, e continuou:</p>
+
+<p>--A historia vai esculpida em chronicas de reis,
+e memorias d'aulicos. A historia ha de escrevel-a
+um dia o povo, rasgando todas essas paginas
+mentirosas e lisonjeiras das décadas fabulosas,
+sahidas das mãos dos eunuchos d'estes harens
+do occidente.</p>
+
+<p>Esta paralysia social em que a geração presente
+cahiu, esta hesitação absurda e repugnante
+nos annaes da nossa vida actual tem uma explicação
+irrespondivel: o mundo espera uma
+crença viva para se alentar na sua marcha--para
+respirar, e viver. D'onde virá a fé?</p>
+
+<p>Habitantes d'uma peninsula á mercê de tantas
+invasões, raças tão diversas teem pisado este
+solo, que difficil, senão impossivel, será buscar-lhes
+a genealogia. Iberos, celtas, tyrios, phenicios,
+carthaginezes, numidas, berbéres, romanos,
+godos, alanos, suevos, mussulmanos, e varias
+hordas de gascões, e borgonhezes, afóra
+<span class='pagenum'>[66]</span>
+aragonezes, asturianos, e gallegos sulcaram este
+solo sagrado.</p>
+
+<p>Onde estão os lusitanos?--Onde corre esse
+sangue mosarabe com que a historia enche a
+vastidão das nossas campinas, e povôa a crista
+das nossas montanhas?--Nas trevas das invasões
+perdem-se os vestigios, e em presença dos aventureiros,
+que acompanhavam Henrique de Borgonha,
+apparece uma raça energica, robusta, e
+corajosa, que põe em derrota a meia lua dos
+sectarios do Islam, e obriga a dynastia affonsina
+a conceder-lhe cartas de foraes, que são os pergaminhos
+e armarias d'esta nobilissima raça hispanica.</p>
+
+<p>E o velho soldado do cêrco do Porto curvou
+a cabeça, e meditou.</p>
+
+<p>Depois disse:</p>
+
+<p>--Quem são, então, os duques e condes que
+acompanhavam o aventureiro, e bastardo real?
+Quem são os mercenarios, que se aformoseavam
+com as alcunhas ephemeras, e irrisorias dos cargos
+nobiliarchicos da côrte byzantina, quando
+estes titulos valiam, outr'ora, pela significação
+do mando, do poderio e da jurisdicção?</p>
+
+<p>Á face da nobre raça hispanica--raça que
+somos nós--eram elles o enxurro, e a vadiagem
+das côrtes em que nasceram.</p>
+<span class='pagenum'>[67]</span>
+
+<p>Nós eramos o povo, éramos a raça, éramos a
+tradição.</p>
+
+<p>Quem tomou Lisboa aos mouros? Quem levou
+os arabes e berbéres de vencida até ás costas
+do occidente? Quem povoou a patria, quando as
+quinas se desfraldaram em Ourique? Quem coroou
+D. João I, esmagando as traições de Castella?
+Quem promoveu a restauração de 1640, e
+lutou pela independencia da patria?</p>
+
+<p>Foi o povo.</p>
+
+<p>Deixemos Aljubarrota ao condestavel.</p>
+
+<p>Deixemos a restauração aos quarenta conjurados
+do palacio do conde de Almada. Que poderiam
+elles sem nós? O zelo, a coragem, o esforço,
+e o amor da patria só nos cabem a nós.--Vencemos
+sempre, porque eramos o povo.</p>
+
+<p>Batemos com os contos das nossas lanças ás
+portas de Ceuta, de Tanger, e d'Arzilla, e os
+bastiões africanos cediam aos nossos esforços.
+Aportamos em Calecut, Cochim, Gôa, Malaca e
+Ormuz--e o Oriente dobrou-se á nossa vontade.
+Que importa, que os cabos de guerra tenham
+os louros das victorias, e das conquistas? A gloria
+é nossa. Fomos o instrumento civilisador, o
+soldado que morre pela patria, o portuguez, que
+cahe alanceado junto do seu pendão.</p>
+
+<p>Para o condestavel, para Vasco da Gama,
+<span class='pagenum'>[68]</span>
+para Affonso d'Albuquerque, para D. João de
+Castro, para D. Francisco d'Almeida ha a chronica,
+ha o livro, ha as tenças, ha a narração
+dos feitos esforçados e valerosos, ha as recompensas
+da munificencia regia, e os brazões, que
+são a commemoração d'esses feitos, esculpidos
+nos portaes dos seus nobres solares.</p>
+
+<p>Para o homem do povo, que pelejou ao lado
+dos mais corajosos, que batalhou onde havia
+mais perigo, que abandonou mãi, mulher e filhos,--para
+esse, ha a valla de finados, triste, e
+obscura--e a chronica emmudece, porque
+não é para peões, e villanagem, que foi creada
+a historia dos reis, e a Torre do Tombo, onde
+se guardam, e archivam seus feitos e memorias.</p>
+
+<p>Para o povo ha o silencio.</p>
+
+<p>Quando d'elle falla a historia, alcunha-o de
+sedicioso, barbaro e turbulento.</p>
+
+<p>Para o povo ha o esquecimento.</p>
+
+<p>A humanidade é uma idéa abstracta, que vive
+para a historia, nos vaidosos triumphos dos
+Alexandres, dos Cesares e dos Pompeus.</p>
+
+<p>Quando um homem do povo cahe mutilado,
+pela arma homicida dos poderosos do dia, chama-se
+Socrates, chama-se Spartacus, chama-se
+Gracho, chama-se Galileu, chama-se Danton,
+<span class='pagenum'>[69]</span>
+chama-se Vergniaud, chama-se Armand Carrel,
+chama-se Gomes Freire, chama-se <em>legião</em>. Mas a
+historia atravessa estes periodos symbolicos da
+vida das nações sem commemorar estes nomes?</p>
+
+<p>Para que?--Levantou já alguem o estigma
+que pesa sobre Catilina?</p>
+
+<p>A historia divinisou Cesar, e applaudiu Cicero.</p>
+
+<p>Rasgaram já os crépes que envolvem o busto
+de Robespierre, e a fronte de Saint-Just?</p>
+
+<p>A França reclamou Bonaparte, e mais tarde
+victoriou o cossaco, que dos estepes da Russia
+vinha impôr leis e dynastias ao capitolio da raça
+latina.</p>
+
+<p>E nós?--Aqui o veterano fez uma pausa. Levantou
+a fronte como se sentira o clarim das batalhas,
+e continuou em voz sumida e cavernosa:</p>
+
+<p>--A nós deram-nos uma carta constitucional, que
+é como um foral--para não dizer carta d'alforria--a
+nós deram-nos uma mentira, escripta com
+o sangue do povo, no sólo sagrado da patria.</p>
+
+<p>E o veterano calou-se.</p>
+
+<p>Depois como despertado pelo ruido dos combates,
+como se aquella alma aspirasse a novas
+lutas, para sustentar os principios por que pelejára,
+ergueu-se do catre onde estava sentado, e
+rumorejou: E fallaes-nos de patria! patria aonde,
+e patria com quem? No Rocio em treze de
+<span class='pagenum'>[70]</span>
+março?--em Torres Vedras em 1846?--no
+Porto em 1851?--A patria é o sólo sagrado onde
+jazem as ossadas dos nossos avós. A patria
+é o local onde assenta o nosso lar domestico, onde
+vivem as nossas familias, onde está cravado o
+pendão dos nossos direitos. A patria é nossa por
+que derramamos o nosso sangue por ella.</p>
+
+<p>Em seguida curvou-se para mim, que estava
+sentado no fundo d'este triste e miseravel quarto,
+e disse-me em phrases breves:</p>
+
+<p>--Faça-me só um favor. É o unico que lhe peço.
+Como prologo d'esse manuscripto, publique
+este papel. É a meditação das minhas noites de
+insomnia. É o symbolo das minhas crenças. É o
+credo da minha religião politica. Morrerei contente.</p>
+
+<p>Começa por este prologo o manuscripto do
+desembargador.</p>
+
+<p class="direita">VISCONDE DE OUGUELLA.</p>
+<span class='pagenum'>[71]</span>
+
+<hr>
+
+
+
+<a name="cap09"></a>
+<h1>O DECEPADO</h1>
+
+
+<p>Duarte de Almeida, o alferes de Affonso V, conheço-o
+desde a minha infancia, por m'o apresentar
+em verso o meu finado amigo Ignacio Pizarro.</p>
+
+<p>Chorei por Duarte de Almeida, como se elle
+fosse meu avô, quando o infeliz, na volta de Toro,
+onde os castelhanos lhe deceparam as mãos, se
+lastimava assim pela bocca do poeta do <em>Romanceiro
+portuguez</em>:</p>
+
+<div class="poesia">
+Nem a espada, nem a lança<br>
+Posso nas mãos empunhar!...<br>
+Ai de mim! triste lembrança!...<br>
+Nem bandeira tremolar!...<br>
+Nem bordão de peregrino<br>
+Póde meu corpo arrimar!<br>
+Nem o meu pranto contino<br>
+Tenho mãos para limpar!...<br>
+Luiza! já me esqueceste?...<br>
+Talvez tu ora suspires<br>
+Por outro... se tal fizeste...<br>
+Coração! ah! não delires...<br>
+Morto já, tu me julgaste,<br>
+E se agora assim me viras,<br>
+D'aquelle a quem tanto amaste<br>
+Talvez agora fugiras.<br>
+<span class='pagenum'>[72]</span>
+Talvez nobre cavalleiro<br>
+Póde alcançar tua mão...<br>
+Queira o céo morra eu primeiro,<br>
+Não saiba a tua traição.<br>
+Que eu antes quero da morte<br>
+Ter gelado o coração,<br>
+Do que vir amor tão forte<br>
+Ter em premio a ingratidão.<br>
+</div>
+
+<p>Com estas e outras piedosas queixas ia o namorado
+alferes caminho do castello de Aguiar,
+onde vivia a castellã Luiza.</p>
+
+<p>O leitor já me está dizendo que sabe o entrecho
+do romance de Pizarro: que a donosa castellã,
+julgando morto o seu amado, lhe fizera cantar
+os responsos em sumptuosos funeraes: que o
+cavalleiro, a deshoras, se annunciára na barbacã
+do castello; e, admittido á capella, encontrou
+Luiza a vestir o habito de monja: que o decepado,
+apertando-a ao peito, lhe fez vêr que estava
+vivo, e que ella, allegando o voto que fizera de
+professar, cahiu de encontro á eça, e morreu.</p>
+
+<p>Termina o trovador:</p>
+
+<div class="poesia">
+Seu amante desditoso,<br>
+Mais desgraçado, viveu;<br>
+Mas o seu fim lastimoso<br>
+Nunca ninguem conheceu.<br>
+</div>
+
+<p>Bastantes annos--e que ditosos annos!--andei
+enganado pelo meu amigo Pizarro. Fui tres
+<span class='pagenum'>[73]</span>
+vezes ao castello do Pontido. Creio que já disse,
+não me lembra aonde, que encontrei entre as urzes
+da matta subjacente ao castello um espigão
+de espora sem rosêta, e suspeitei que ella houvesse
+sido do infausto amador da castellã. Figurou-se-me,
+ao cahir da noite, vêl-a no gothico
+balcão, voltada para os serros fronteiros, suspirar
+no alaude:</p>
+
+<div class="poesia">
+Adeus, serra do Mizio!<br>
+Adeus, val de Villa Pouca!<br>
+Adeus, castello sombrio!<br>
+Minha voz ouvi já rouca!<br>
+</div>
+
+<p>Estas impressões da primeira mocidade revivem
+quando a razão as impugna ao sentimento.
+De envolta com as minhas indagações historicas
+na triste sorte da princeza D. Joanna, chamada a
+<em>excellente senhora</em>, o vulto que mais me preoccupava
+era o alferes da bandeira, Duarte de Almeida,
+o heroe, o amante da castellã, o decepado
+cujo</p>
+
+<div class="poesia">
+..........fim lastimoso<br>
+Nunca ninguem conheceu.<br>
+</div>
+
+<p>Quanto ao seu fim, citava Pizarro um trecho
+de Duarte Nunes de Leão (<em>Chronica de Affonso V</em>)
+muitissimo desconsolador. Alli se diz que o bravo,
+<span class='pagenum'>[74]</span>
+depois de tamanha proeza, vivera mais pobre
+que d'antes. Este opprobrio nacional confirma-o
+modernamente o snr. Pinheiro Chagas, com estas
+phrases austeras: «O cavalleiro heroico sobreviveu
+ás suas feridas, e voltou a Portugal onde
+foi sempre conhecido pelo glorioso nome do <em>Decepado</em>.
+Mas, ó vergonha! o homem que assim
+tão briosamente se portára, morreu na miseria,
+porque nenhuma recompensa lhe foi dada, e porque
+nem se quer podia ganhar a vida pelo seu
+trabalho, logo que o haviam impossibilitado de
+trabalhar as suas tristes mutilações<sup><a name="mfn5" href="#fn5">[5]</a></sup>.»</p>
+
+<p>Por honra da patria e da humanidade, apresso-me
+a declarar que é menos exacto o que Duarte
+Nunes diz e o snr. Pinheiro Chagas encarece. Logo
+me justificarei com documentos.</p>
+
+<p>Pelo que respeita ao romance de Pizarro, tão
+sómente dous elementos de verdade historica podemos
+aceitar-lhe: a existencia do alferes e a do
+castello de Aguiar. E o certo é que ao meu intelligente
+amigo não corria o dever de maiores exactidões.</p>
+
+<p>Primeiramente direi do castello.</p>
+
+<p>Lá está, e já lá estava assim, pouco mais ou
+menos, antes da fundação da monarchia portugueza.
+<span class='pagenum'>[75]</span>
+Quem o possuia ou governava, no tempo
+em que D. Affonso Henriques pleiteava nos arraiaes
+com sua mãi e com o imperador D. Affonso,
+era o rico-homem D. Gonçalo de Sousa, genro
+de Egas Moniz, e senhor da terra de Sousa.
+Traslada no tom. III da <em>Monarchia Lusitana</em> (pag.
+112), fr. Antonio Brandão da <em>Vida de Santa Senhorinha</em>,
+codice áquelle tempo inedito, uma passagem
+que faz ao nosso intento<sup><a name="mfn6" href="#fn6">[6]</a></sup>.</p>
+
+<p>Reza assim, melhorado na orthographia:</p>
+
+<br>
+<p><em>«Digo-vos que estando folgando em sua terra
+um principe nobre e cavalleiro d'este reino, o qual
+era mui privado d'el-rei D. Affonso, e havia nome
+D. Gonçalo de Sousa, mui poderoso, e todo conselho
+d'el-rei estava em elle; estando, como disse, folgando,
+chegaram a elle mensageiros dizendo que os inimigos
+lhe corriam a terra, e que lhe tinham cercado
+o castello d'Aguiar; o qual logo chamou suas
+gentes que pôde haver, e foi-se para haver de descercar
+o dito castello. E chegando aonde jaz o corpo
+d'esta santa lhe fez reverencia, e oração não lhe
+lembrou; e indo ainda em vista da igreja metade
+<span class='pagenum'>[76]</span>
+de um campo, esteve pegada a mula, em que ia o
+cavalleiro, a qual elle com esporas e pancadas não
+podia abalar, mas antes a mula quedava mais rija
+e pero se desceu d'ella e a não podia abalar; e, vendo
+elle isto, lembrou-lhe como passára pela igreja
+da santa sem lhe pedir benção, e mercê, e sem fazer
+oração, e por isso lhe detinha a mula; e, soffreando
+a mula para traz para se tornar á igreja,
+a mula logo tornou, e o cavalleiro fez sua oração
+encommendando-se á santa, e des i fez seu caminho,
+e com suas companhas descercou seu castello,
+e correu depois os inimigos, e tornou a sua casa
+com victoria</em>, etc.»</p>
+
+<br>
+<p>O chronista Brandão, por mal informado, escreve
+que o castello de Aguiar da Pena se avista
+com as montanhas de Barroso. Estas montanhas
+distam seis leguas do castello, e entre ellas e o
+valle em que negreja a fortaleza gothica estão os
+cabeços da serra de Alfarella, e no horisonte mais
+elevado alveja villa Pouca de Aguiar. Acrescenta
+que o castello «é crespo de torres, baluartes e cubellos,
+e está fundado sobre a corôa de uma penha
+talhada de uma parte por natureza, que parece
+obra feita á mão,» etc.</p>
+
+<p>Póde ser que no seculo XVII, quando Brandão
+escrevia, permanecessem ainda as torres e baluartes.
+<span class='pagenum'>[77]</span>
+O que ha vinte annos parecia ter robustez
+para seculos eram quatro alterosas quadrellas
+de alvenaria ameiadas com seus adarves, bastiões,
+e janellas gothicas sem lavores.</p>
+
+<p>Recordo-me ter lido na <em>Nova historia de Malta</em>
+de José Anastacio de Figueiredo que o castello no
+seculo XIII pertencia á ordem hospitalaria de S.
+João de Jerusalem, e cita um aviso que obriga os
+lavradores circumvisinhos a carregarem pedra
+para reparos.</p>
+
+<p>E não sei mais nada quanto ao solar da phantastica
+Luiza.</p>
+
+<p>Agora vamos em cata do <em>Decepado</em>, depois que
+voltou de Castella. Encontramol-o na sua casa
+acastellada no seculo XII, que teve o nome de
+castello de Villarigas, no couto do Banho, hoje
+concelho de S. Pedro do Sul.</p>
+
+<p>É elle o herdeiro de seu pai Pedro Lourenço
+de Almeida. Afóra aquelle castello, tem outro na
+quinta chamada da Cavallaria, honrada por el-rei
+D. Fernando em 1419, e onde os linhagistas enraizam
+o tronco dos Almeidas.</p>
+
+<p>Quando alli chegou, esperavam-o a esposa e
+dous filhos.</p>
+
+<p>A esposa chamava-se D. Maria de Azevedo,
+filha do senhor da Louzã Rodrigo Affonso Valente
+e de D. Leonor d'Azevedo, que herdára
+<span class='pagenum'>[78]</span>
+grandes haveres de sua tia D. Ignez Gomes de
+Avellar.</p>
+
+<p>Os filhos do <em>Decepado</em> chamaram-se Affonso
+Lopes, e Ruy Lopes de Almeida. Affonso, o successor
+das honras e coutos de Villarigas e Cavallaria,
+casou com D. Leonor Vaz Castello Branco,
+filha de João Vaz Cardoso, aio do conde de Barcellos.</p>
+
+<p>O filho segundo, Ruy, foi para Castella, como
+veador da princeza D. Joanna, filha de D. Duarte,
+e mulher de Henrique IV.</p>
+
+<p>Esta geração de fidalgos continuou honrada e
+rica até á duodecima neta de Duarte de Almeida,
+a snr.ª D. Eugenia de Almeida de Aguilar Monroy
+da Gama Mello Azambuja e Menezes que em 15 de
+setembro de 1834 casou com o snr. Fernando
+Telles da Silva, marquez de Penalva, de quem
+teve dous filhos, Luiz, que, nascendo em 1837,
+morreu ha poucos annos, e D. Henriqueta de Almeida,
+que nasceu em 1838, e vive solteira.
+Do snr. Luiz Telles, que foi casado com a snr.ª D.
+Maria Francisca Brandão, sua prima, existe uma
+filha, que é já senhora.</p>
+
+<p>Quanto á pobreza <em>e miseria em que morreu</em>
+Duarte de Almeida, o snr. Pinheiro Chagas foi illudido
+por Duarte Nunes e Faria e Sousa, que na
+<span class='pagenum'>[79]</span>
+verdade o authorisaram a deplorar tão sentidamente
+a sorte do alferes de Affonso V.</p>
+
+<p>Duarte de Almeida succedera a D. Duarte de
+Menezes no posto nobilissimo de alferes-mór da
+bandeira. Militando nas guerras de Africa, salvou
+o pendão real das presas da mourisma, quando
+Affonso V deu batalha na serra de Benacofuf. (Faria
+e Sousa, <em>Africa</em>, cap. 6, §. 7.º)</p>
+
+<p>E tanto o rei não foi ingrato aos serviços do
+seu valente alferes, que, estando em Samora, em
+1475, no anno anterior ao da batalha de Toro,
+ainda antes do heroico feito, lhe fez mercê pelos
+seus grandes serviços, para elle e seus filhos, de
+um reguengo no concelho de Lafões, cuja carta
+de mercê póde lêr-se na Torre do Tombo no <em>Livro
+que serviu na chancellaria de D. Affonso V</em>,
+folha 17, e começa: <em>A quantos esta minha carta
+virem faço saber que pelos muitos serviços que
+Duarte de Almeida, fidalgo de minha casa, e meu
+alferes-mór me tem feito assim n'estes reinos de
+Castella como de Portugal e em Africa, onde sempre
+me serviu muito bem e lealmente</em>, etc.</p>
+
+<p>O rei, que tanto o apreciára e galardoára, sabido
+é que foi para França solicitar debalde a alliança
+do velhaco de Luiz XI. Voltou a Portugal,
+onde viveu ainda cinco tristissimos annos, forçado
+a divorciar-se da esposa, desestimado do filho,
+<span class='pagenum'>[80]</span>
+e desvenerado dos vassallos. Não era, pois, tempo
+proprio aquelle para premiar heroismos batalha,
+cuja perda dissimulada em victoria, enlutára
+o brio e o coração de Affonso V.</p>
+
+<p>O decepado, por sua parte, lá tragava o fel
+dos seus derradeiros annos na abastança dos bens
+que, certo, lhe não mitigavam as angustias da
+mutilação; mas em pobreza e miseria não consintamos
+sequer á poesia que nol-o figure.</p>
+
+<p>Se D. João II não augmentou em coutos, honras
+e senhorios a casa do alferes de seu pai, não
+o arguamos por isso, sem haver a certeza de que
+Duarte de Almeida sobrevivesse ao Africano. Na
+batalha do Toro já devia ir no inverno da vida
+quem vinte annos antes desfraldára o pendão real
+em Alcacer-Ceguer, e quem já tinha um filho, que
+acompanhára como veador a Castella a mãi da
+princeza D. Joanna por amor de quem andava accesa
+a guerra. Afóra isso, é de crêr que Duarte
+de Almeida assistisse ao desastre de Alfarrobeira
+em 1449, e não fosse dos menos carniceiros na
+mortandade do duque de Coimbra e dos seus
+leaes amigos. Ora, transluz da historia que D.
+João II odiára todos os fidalgos que, de parçaria
+com o duque de Bragança, malsinaram de traidor
+o infante D. Pedro. Ajuda estas suspeitas ser o
+primogenito de Duarte de Almeida casado com a
+<span class='pagenum'>[81]</span>
+filha de um que fôra aio do conde da Barcellos,
+antes de ser duque de Bragança.</p>
+
+<p>Já, porém, o successor de D. João II galardoou
+o neto do decepado, dando-lhe o senhorio da villa
+do Banho, a provedoria das caldas de Lafões,
+e lhe confirmou o privilegio e couto da quinta da
+Cavallaria.</p>
+
+<p>Em remate de tão derramadas provas, quero
+deixar bem assente que Duarte de Almeida, o
+meu tão chorado heroe do sentimentalismo da
+infancia, não morreu pobre, nem acabou na miseria
+do homem que, á mingua de mãos, não
+póde trabalhar.</p>
+
+<p>Por fim, não sahirei do paço senhorial da Cavallaria
+sem consolar o leitor pio e mais lido em
+cousas do céo que em nobiliarios, que n'aquella
+casa nasceu o bemaventurado S. frei Gil, chamado
+de Santarem, e que Almeida Garrett ajoujou
+com o dr. Fausto no poema <em>D. Branca</em> e nas
+<em>Viagens</em>.</p>
+
+<p>Ainda hoje, n'aquella casa, perdura uma capella
+edificada na alcova onde nasceu o sabio feiticeiro
+e pactuario do demonio. Observe-se que o
+conde D. Pedro, no <em>Livro das Linhagens</em>, tit. 25,
+pag. 151, diz que Gil fôra assassinado por Pedro
+Soares Galinato; mas o chronista-mór João Baptista
+Lavanha desfaz o erro,--o que eu muito
+<span class='pagenum'>[82]</span>
+estimo para que se não desluza a substancia da
+bella prosa de fr. Luiz de Sousa, historiador do
+santo.</p>
+
+<div class="rodape">
+ <p><a name="fn5" href="#mfn5">[5]</a> <em>Historia de Portugal</em>, tom. III, pag. 28.</p>
+
+ <p><a name="fn6" href="#mfn6">[6]</a> O codice está integralmente impresso nas <em>Memorias resuscitadas da antiga Guimarães</em>, pelo padre Torquato Peixoto de Azevedo, em 1692, pag. 444-476. Sirvo-me d'esta copia, corrigindo os erros do traslado de Brandão.</p>
+</div>
+
+<hr>
+
+
+
+<a name="cap10"></a>
+<h1>CARIDADE BARATA E ELEGANTE</h1>
+
+
+<p>O advogado Sampaio Efrin morreu, ha cinco
+annos, em Lisboa, e deixou dous filhos illegitimos,
+que já não tinham mãi.</p>
+
+<p>Amára-os extremadamente. As duas crianças
+excruciaram-lhe a agonia; mas expirára com a
+certeza de que seus filhos, e herdeiros de parte
+de seus haveres, não balbuciariam, em horas de
+fome, o nome de seu pai.</p>
+
+<p>Mas a justiça desherdou os orphãos, e deu o
+espolio do advogado á sua viuva.</p>
+
+<p>O menino alimentou-se cinco annos da caridade
+de uma criada de seu pai.</p>
+
+<p>E, quando tinha seis, appareceu livido e pobremente
+vestido a pedir esmola no tribunal da
+Boa-Hora--alli, onde seu pai triumphára nas lides
+da eloquencia.</p>
+<span class='pagenum'>[83]</span>
+
+<p>A bemfeitora que, até áquelle dia lhe repartira
+do seu pão, quando sentia a mão da morte
+sobre o seio, disse á criança que fosse ao tribunal
+e mendigasse, lembrando-se que alli concorriam
+pessoas que tinham conhecido seu pai.</p>
+
+<p>O snr. João Bernardino da Silva Borges viu o
+menino andrajoso, a tiritar, com o espasmo da fome
+nos olhos--aquelle olhar espavorido da miseria--que
+parece sagrada nas criancinhas--aquelle
+olhar torvo, expressão de assombro do
+anjo a tremer sobre o cairel d'este inferno do
+mundo.</p>
+
+<p>O menino tinha uma carta na mão. O snr.
+Silva Borges leu a carta. Era a supplica da moribunda
+a favor do desvalido filho de seu amo.</p>
+
+<p>E conduziu a criança, onde lhe dessem a esmola
+do jantar e da cama.</p>
+
+<p>Ao outro dia, o <em>Jornal da Noite</em>, publicando
+uma carta commovente do protector do orphão,
+acompanhava a invocação á caridade de sentidas
+e pungentes palavras.</p>
+
+<p>E, no dia immediato, o mesmo jornal exultava
+noticiando que o orphãosinho estava amparado,
+no regaço da caridade abundante, nos braços de
+alguem que ouvira o echo das divinas palavras de
+Jesus: «Deixai que as criancinhas se aconcheguem
+de mim.»</p>
+<span class='pagenum'>[84]</span>
+
+<p>Volvidas duas semanas, á volta do menino, a
+caridade faz-se representar por nove senhoras illustres,
+quanto cabe inferir dos appellidos.</p>
+
+<p>Nove anjos, as nove musas da inspiração santissima,
+nove corações a desbordar de generosidade,
+dezoito mãos cheias de caricias e do superfluo
+da sua riqueza, para afagar, alimentar e educar
+um menino a quem esta setima primavera
+bafeja os primeiros risos de sua enfezadinha
+puericia. É muito!</p>
+
+<p>Mas estas nove damas assumem cada qual sua
+nomenclatura:</p>
+
+<p>Uma, chama-se <em>presidenta</em>;</p>
+
+<p>Outra, <em>vice-presidenta</em></p>;
+
+<p>Quatro, são <em>vogaes</em>;</p>
+
+<p>Uma, é <em>thesoureira</em>;</p>
+
+<p>E as outras, são <em>secretarias</em>.</p>
+
+<p>Mas que tem isto que vêr com o orphão? O
+congresso das senhoras, assim qualificadas em
+categorias de banco, de junta de parochia, de
+empresa aurificia, de companhia das aguas, organisou-se
+d'este feitio para dar uma pensão de
+300 reis diarios--o bastante--ao pequenino no
+collegio?</p>
+
+<p>Quer-me parecer dispensavel tamanho funccionalismo
+em operações tão singelas! São nove senhoras
+abastadas que se fintam, quotisando-se cada
+<span class='pagenum'>[85]</span>
+uma em 33 reis por dia, ou dez tostões por mez.
+É, na verdade, barato o salvar-se um menino e fazel-o
+homem! Seis ou oito annos do pão e estudo
+d'aquella creatura--que ss. exc.<sup>as</sup> hão de enfiar
+com santa vaidade diante da sepultura de seu
+pai--não póde custar a cada uma tanto como
+dous dos seus vestidos medianamente guarnecidos.</p>
+
+<p>Então, qual vem a ser a missão das exc.<sup>mas</sup>
+presidenta, vice, vogaes, thesoureira, secretarias?</p>
+
+<p>Leitor, que estás a impar de ternura, e tens o
+rosto banhado de lagrimas de consolação, saberás
+que as referidas nove senhoras--que tu já
+conheces dos lautos bailes, e das <em>toilettes</em> esplendidas--congregaram-se
+agora <em>para promover um
+beneficio ao orphão no theatro de D. Maria</em>.</p>
+
+<p>Ahi está o que é. Ainda agora é que estas dadivosas
+senhoras vão sondar a magnanimidade publica;
+vão dar uns toques de elegante apparato á
+caridade, e ao mesmo tempo convidar-vos a pôr
+hombros áquella ponderosa empresa de agasalhar
+uma criancinha que se alimenta com um pouco
+de amor e algumas migalhas sacudidas das cêas
+opiparas. A caridade de Lisboa! A caridade do espalhafato!
+Aqui, no Porto, o orphão, a esta hora,
+estaria agasalhado, sem que a imprensa conhecesse
+o nome do bemfeitor.</p>
+<span class='pagenum'>[86]</span>
+
+<p>E a imprensa de Lisboa exalça encarecidamente
+a exuberante bizarria das senhoras que
+promovem nos corações alheios o sentimento da
+esmola. Peço licença para tambem me accender
+em admiração de tamanho arrojo, e perguntar,
+por esta occasião, aos jornalistas se, no seu cadoz
+de phrases, ficou alguma com que se louve aquella
+criada pobresinha que sustentou o menino cinco
+annos, e o largou do seu seio quando o coração
+se lhe afogou nas ultimas lagrimas.</p>
+
+<hr>
+
+
+
+<a name="cap11"></a>
+<h1>PROFUNDA REFORMA NOS COSTUMES DA VIA-FERREA PORTUGUEZA</h1>
+
+
+<p>Quando Portugal emergia das trevas da meia-idade,
+em 1873, e a via-ferrea de Portugal era
+roupa de francezes, o scintillante escriptor Ramalho
+Ortigão enviou aos snrs. <em>François et Ladame</em>
+(cumpre não aceitar a traducção de Bordalo
+Pinheiro--<em>Francisco e a mulher</em>) uns urbanos
+queixumes ácerca da bruta ladroeira que os funccionarios
+<span class='pagenum'>[87]</span>
+da via-ferrea perpretaram em parte das
+batatas de um sacco enviado desde o Minho ao
+percuciente critico. Ortigão, cujo agudo espirito
+argúe abstinencia de alimentação farinacea, conclue
+a sua epistola, modêlo de graça portugueza--que
+é a graça de todo o mundo--offerecendo
+aos directores da via-ferrea todas as futuras e porvindouras
+batatas, visto que ss. s.<sup>as</sup>, cedendo-lhe
+algumas, soffriam tal qual desfalque.</p>
+
+<p>N'esse tempo, estava eu em Lisboa a vasquejar
+nos demorados paroxismos da anemia, resultante
+de dyspepsia, complicada com hepatite, e
+prodhromos de encephalite, e symptomas de curvatura
+de espinha, e esgotamento de fluido nervoso,
+afóra a espinhela cahida.</p>
+
+<p>Escrevi, n'esta concurrencia pathologica, a um
+amigo meu, residente no Porto, que me comprasse
+alli doze garrafas do mais antigo e secco vinho
+que se lhe deparasse em garrafeira particular.
+Quando conclui a carta, cuidei que expirava, por
+que tinha consumido em quatro idéas sem estylo
+o oxygeneo e acido carbonico de que podia dispôr.</p>
+
+<p>D'ahi a dias, o meu amigo enviou-me o titulo
+de recepção de doze garrafas de vinho, compradas
+por 12 libras, e enviadas pela «grande velocidade»,
+cuidando elle que os ladrões não as apanhariam
+na carreira.</p>
+<span class='pagenum'>[88]</span>
+
+<p>Como se as doze garrafas se me figurassem
+outras tantas botelhas de Leyde a descarregarem
+electricidade sobre os meus grandes-sympathicos
+e regiões limitrophes, saltei da cama, e fui receber
+o meu vinho--a minha salvação--a Santa
+Apolonia.</p>
+
+<p>Recolhido o caixote á sege, e baixados os stores,
+debrucei as regiões do meu olfacto sobre
+as fisgas da tampa do caixão, na esperança de
+aspirar alguns atomos de tanino.</p>
+
+<p>Cheirou-me a azeite. Entendi que havia perversão
+na minha membrana pituitaria, uma narizite,
+unica molestia que me faltava.</p>
+
+<p>Assim que entrei em casa e o caixão se abriu,
+não sei bem o que vi, nem como perdi a consciencia
+dos dous <em>eus</em>. Sei que, volvidas horas, recobrando
+o espirito, e querendo recordar as causas
+de tão comprido lethargo, perguntei aos circumstantes,
+distillados em lagrimas, se eu tinha
+lido algum livro de Theophilo.</p>
+
+<p>--Não, infeliz!--respondeu-me voz sincera--não
+foi tamanha a desgraça que te fulminou;
+o que tu viste foi seis garrafas do teu vinho, que
+te custaram seis libras, substituidas por seis garrafas
+vasias que tiveram azeite.</p>
+
+<p>A minha primeira idéa foi gritar á d'el-rei;
+lembrando-me, porém, que o rei não governa,
+<span class='pagenum'>[89]</span>
+quiz chamar o cabo da rua; depois, passou-me
+pelo espirito recorrer á camara «baixa» e ao patriarcha.
+E, por fim, chorei copiosamente, e bebi
+dous tragos de uma das seis; e logo, á semelhança
+das nações oppressas, que se levantam
+como um só homem, tambem eu me levantei sósinho;
+e, clamando um rugido grande, pedi á
+Providencia das raças latinas que nos désse um
+administrador dos caminhos de ferro, nascido e
+baptisado n'esta terra dos Affonsos e dos Joões.</p>
+
+<p>Fui ouvido, e as cousas melhoraram consideravelmente.</p>
+
+<p>N'este anno de 1874, 2.º da Emancipação, tenho
+recebido reiteradas provas da melindrosa
+cortezia que assiste ao funccionalismo do transporte
+da via-ferrea portugueza. Se em 1871 não
+chorei mediante os prelos, hoje lamento não ser
+um cytharista bastante lyrico para dignamente arpejar
+um fado expresso do citado funccionalismo.</p>
+
+<p>Direi da cortezia com que alli são tratadas as
+minhas cousas. Tendo eu recebido em Lisboa seis
+garrafões de aguardente das nossas colonias, lacrados
+e cheios, enviei-os d'alli para o Porto
+cheios e lacrados. Ao cabo de onze dias de jornada,
+os garrafões chegaram a minha casa... inteirinhos!
+Se isto não é probidade, a virtude era
+aquillo que dizia Catão. Notei, porém, uma insignificante
+<span class='pagenum'>[90]</span>
+cousa: os garrafões chegaram deslacrados,
+e levavam pouco menos de metade do liquido;
+mas inteiros, perfeitos, sem rachadella,
+nem esquirola de menos.</p>
+
+<p>Um d'estes dias, em dous caixões de vinho da
+Madeira, que me eram enviados de Lisboa,--e
+foram retidos para despacho nas Devezas, posto
+que já em Lisboa houvessem pago direitos--observei
+ainda mais refinada cortezia; porque,
+apparecendo algumas garrafas quebradas, teve
+aquella honrada e limpa gente o cuidado de lhes
+trasfegar o vinho a fim de que as outras se não
+molhassem--de modo que chegaram enxutas.</p>
+
+<p>E fez mais: teve outro sim a bondade de tirar
+algumas garrafas para que as outras chegassem
+mais desafogadas da pressão das visinhas!</p>
+
+<p>Eu não conheço maneira mais subtil de obrigar
+a gente a um reconhecimento eterno, e a...
+acautelar o relogio.</p>
+<span class='pagenum'>[91]</span>
+
+<hr>
+
+
+
+<a name="cap12"></a>
+<h1>FORMOSA E INFELIZ</h1>
+
+
+<div class="citacao">
+A dita e a formosura,<br>
+Dizem patranhas antigas,<br>
+Que pelejaram um dia,<br>
+Sendo d'antes muito amigas.<br>
+<br>
+Muitos hão que é phantasia;<br>
+Eu que vi tempos e annos,<br>
+Nenhuma cousa duvido<br>
+Como ella é azo de damnos.<br>
+<br>
+<p class="direita">BERNARDIM RIBEIRO.</p>
+</div>
+
+<p>São verdadeiras as trovas do poeta das <em>Saudades</em>.</p>
+
+<p>Aquella Maria da Penha que o leitor viu, ainda
+agora, carpida n'um soneto, foi muito incensada
+por formosa antes da sua queda. Uns poetas
+a embriagaram com o perfume da lisonja, em
+quanto ella se manteve honesta; outros lhe depozeram
+alguns bagos de assafetida na ambula funeraria,
+quando os seus creditos eram mortos e
+responsados no catafalco que a sociedade levanta
+ás suas mesmas victimas.</p>
+
+<p>E já que eu trasladei o soneto, como epitaphio
+do seu tumulo no convento onde se finou, trasladarei
+<span class='pagenum'>[92]</span>
+tambem uns versos que lhe deram alor e
+azas á vaidade que a perdeu.</p>
+
+<p>Suspeito que o poeta d'estes cantares não fosse
+o fidalgo que a levou arrebatada de entre um
+thalamo e um berço. Os poetas, por via de regra,
+costumam enflorar os holocaustos sacrificados nas
+aras da prosa. Assim o requer o equilibrio do
+cosmos. Á poesia--a lyra que insinua no coração
+da mulher as phantasias com que mais se alinda e
+encarece; á prosa--as delicias d'essas bellas cousas,
+o dominio das aves do paraiso, que os poetas
+farejam, á laia de nebris que pairam a denuncial-as
+ao caçador sagaz.</p>
+
+<p>A meu vêr, em quanto o marquez de Gouvêa
+mandava ajaezar os cavallos para a funesta fuga,
+um dos muitos idolatras da formosissima Maria
+motejava uma quadra e derivava d'ella a glosa tão
+presada n'aquelles tempos:</p>
+
+<br>
+
+<p class="centrado">A D. MARIA DA PENHA DE FRANÇA</p>
+
+<p class="centrado">MOTE</p>
+
+<div class="poesia">
+Abre-te, <span class="ni">penha</span> constante,<br>
+serás minha sepultura;<br>
+e, se os meus ais te não movem,<br>
+digo-te, penha, que és dura,<br>
+</div>
+<span class='pagenum'>[93]</span>
+
+<p class="centrado">GLOSA</p>
+
+<div class="poesia">
+<span class="ni">Penha</span>, já sei que és tão dura,<br>
+porque dous soes te geraram;<br>
+seus raios te despojaram<br>
+das reliquias da ternura:<br>
+Porém, se a corrente pura<br>
+de meus olhos incessante<br>
+abrandar um diamante;<br>
+a meu pranto sucessivo,<br>
+quebra-te, marmore vivo,<br>
+abre-te, penha constante.<br>
+<br>
+Até nas mais duras <span class="ni">penhas</span>,<br>
+lavrador o tempo sendo,<br>
+as aguas, que vão correndo,<br>
+fazem regos, abrem brenhas.<br>
+Não receies tu que venhas<br>
+a perder por menos dura;<br>
+pois meu pranto o que procura<br>
+é desfazer-te em piedade;<br>
+e, se abrir concavidade,<br>
+serás minha sepultura.<br>
+<br>
+Lagrimas não te enternecem<br>
+antes te tornam mais dura;<br>
+roubou-lhe o preço a ventura<br>
+ou por minhas desmerecem.<br>
+Meus ais sentidos parecem<br>
+golpes, que pedras commovem;<br>
+mas como faiscas chovem<br>
+de ti, que farei, oh <span class="ni">penha</span>,<br>
+se o teu rigor mais se empenha<br>
+e se os meus ais te não movem?<br>
+<span class='pagenum'>[94]</span>
+<br>
+Teu nome a dizer se empenha<br>
+quem tu és por semelhança;<br>
+pois no garbo és toda <span class="ni">frança</span>,<br>
+na dureza és toda <span class="ni">penha</span>:<br>
+<span class="ni">Penha</span> em que pienha tenha<br>
+essa rara formosura;<br>
+mas, se estatua ser procura<br>
+a meu suspiro incessante,<br>
+mais que o mais duro diamante,<br>
+digo-te, <span class="ni">penha</span>, que és dura.<br>
+</div>
+
+<hr>
+
+
+
+<a name="cap13"></a>
+<h1>ANTONIO SERRÃO DE CASTRO</h1>
+
+
+<p>As indagações de Diogo Barbosa Machado,
+ácerca do poeta Serrão, reduzem-se a datar-lhe
+o nascimento.</p>
+
+<p>Á falta de outros subsidios, bastariam as poesias
+do travesso sujeito a esclarecer-lhe a vida
+mysteriosa aos mais atilados investigadores. O
+maior numero d'ellas está inedito. E o seu mais
+notavel poema, em tercetos, que perfazem 2:090
+versos octosyllabos, chama-se <em>Os ratos da inquisição</em>.</p>
+
+<p>No palacio da inquisição passou elle alguns annos
+de sua vida, que de certo não foram os melhores.</p>
+<span class='pagenum'>[95]</span>
+
+<p>Pelos modos, era hebreu dos quatro costados;
+mas não adorava o bezerro, nem se abstinha dos
+paios do Alemtejo. Em quanto o deixaram, viveu
+e medrou á lei da natureza. Seguiu fervorosamente
+a religião do prazer, repartindo alma e versos
+por judias, christãs e mouras, consoante lhe sahiam
+a talho de fouce. Tanto afinava a lyra para
+cantar fidalgas como regateiras. Entre estas, houve
+uma vendilhona de maçãs camoezas que não
+foi das menos amadas e menos esquivas. Se os
+poetas modernos querem ajuizar do lyrismo plebeu
+d'este seu bisavô, aqui teem uma das cançonetas
+dedicadas á saloia das camoezas, e cantada
+pelos cytharedos d'aquelle tempo:</p>
+
+<div class="poesia">
+Para a feira vai Luiza<br>
+Co seu balaio á cabeça<br>
+Todo enramado de louro<br>
+E cheio de camoezas.<br>
+<br>
+Leva saia de jilezia,<br>
+Tambem jubão branco leva,<br>
+Que serve o jubão de branco<sup><a name="mfn7" href="#fn7">[7]</a></sup><br>
+D'onde Amor atira as flechas.<br>
+<br>
+Sobre os dedos, pendurados<br>
+Leva seus punhos de renda,<br>
+Tão valentona caminha<br>
+Que treme o bairro de vêl-a.<br>
+<span class='pagenum'>[96]</span>
+<br>
+Lá no meio do Rocio<br>
+Levanta a voz mui serena<br>
+Como se aprendera solfa:<br>
+«Eu já tenho camoezas.»<br>
+<br>
+A voz tão divina e grave,<br>
+A voz tão de prata e bella,<br>
+Os galantes se alvorotam<br>
+E ferve a bulha na feira.<br>
+<br>
+Deixam todos as boninas<br>
+Só por ver esta açucena;<br>
+Em um momento, cercada<br>
+Se viu esta fortaleza.<br>
+<br>
+Os requebros que lhe dizem<br>
+São balas de feras peças:<br>
+Mas no muro de seu peito<br>
+Acham grande resistencia.<br>
+<br>
+Uns apreçavam a fruta,<br>
+Outros tiram da algibeira<br>
+Ás mancheias os tostões,<br>
+Aos alqueires as moedas.<br>
+<br>
+Mas Luiza, mui de espaço,<br>
+Levantando a voz tão bella,<br>
+De quando em quando repete:<br>
+«Eu já tenho camoezas.»<br>
+</div>
+
+<p>Hoje em dia, por acerto haverá ahi poetastro
+a quem pareçam, sequer toleraveis, estas linhas
+toadas, sem faisca de ideal, sem realismo, sem as
+satanisações modernas; no entanto, o coração entende-se
+melhor n'aquelles poetas que, em vez de
+<span class='pagenum'>[97]</span>
+se evolarem á poeira luminosa da via-lactea, andavam
+alli pelo Rocio amoriscados de fruteiras
+de camoezas.</p>
+
+<p>Por causa d'estes amores innocentes e frescos,
+não foi Antonio Serrão de Castro disputar aos ratos
+da inquisição a magra pitança da sua alcofa.
+O leitor alguma vez ha de lêr os queixumes do
+hebreu, repassados de tanta ironia, que a gente
+se admira que os graves monges de S. Domingos
+lhe não acendrassem o engenho no fogo.</p>
+
+<p>Quando o poema satyrico se escoou das grades
+do carcere para a assembléa dos catholicos, um
+poeta christão, no intuito de apressar o processo
+do judeu, divulgou as seguintes decimas:</p>
+
+<div class="poesia">
+Judeu de mau proceder,<br>
+Que, se em teus versos discorro,<br>
+Logo pareces cachorro,<br>
+No ladrar e no morder.<br>
+Ainda espero vêr-te arder,<br>
+Pois com tanta sem-razão<br>
+Murmuras da inquisição;<br>
+Porém, é força em teu erro,<br>
+Se te tratam como perro;<br>
+Que te vingues como cão.<br>
+<br>
+Dos ratos, d'esta maneira,<br>
+Te queixas e de seus tratos;<br>
+É mau queixar-te dos ratos,<br>
+Estando na ratoeira.<br>
+Tua allusão sorrateira<br>
+<span class='pagenum'>[98]</span>
+Saber o engenho procura,<br>
+E a rhetorica se apura<br>
+N'esta allusão que formaste,<br>
+Pois d'esta figura usaste,<br>
+Antes de fazer figura.<br>
+<br>
+Nescio, depois de judeu,<br>
+Quando o sambenito mamas,<br>
+Triste portuguez te chamas,<br>
+Sendo o mais astuto hebreu!<br>
+Quem te vira posto em breu<br>
+Ou partido de uma bala!<br>
+Ninguem comtigo se iguala,<br>
+Pois fazes, quando precito,<br>
+Sendo infame o sambenito,<br>
+D'esse sambenito gala.<br>
+<br>
+Se viveste descortez,<br>
+Com repetida torpeza,<br>
+Mais á lei da natureza<br>
+Do que na lei de Moysés,<br>
+Queixa-te só d'esta vez<br>
+De ti, mas não de outro trato;<br>
+Que eu sei que nunca do rato<br>
+Te queixarás, asneirão,<br>
+Se assim como foste cão,<br>
+Poderás tornar-te gato.<br>
+</div>
+
+<p>Os ferventes desejos d'este catholico, assim
+rimados, chegaram ao ergastulo do cantor dos
+ratos, e vibraram-lhe os nervos da espinha dorsal.
+Não lhe pareceu caso novo e original queimarem-no.
+Embridou, por tanto, a musa da galhofa,
+e cahiu em si. Começou de escrever poesias orthodoxas
+<span class='pagenum'>[99]</span>
+ao nascimento do Menino-Deus, aos santos
+e santas mais em voga, ungindo tudo de lagrimas
+de contrição que era uma piedade lêr-lhe
+os sonetos, os quaes, ainda agora, li bastantemente
+commovido. O certo é que o vaticinio do bardo
+christão foi desmentido pelo hebreu que sahiu
+absolto, e por ahi andou por Lisboa até aos setenta
+e quatro annos, rindo de tudo com resalva das
+conveniencias, e vivendo com as largas, que lhe
+davam os seus admiradores, e acamaradado com
+os primeiros fidalgos. Nasceu em 1610 e morreu
+em 1684.</p>
+
+<div class="rodape">
+ <p><a name="fn7" href="#mfn7">[7]</a> Alvo.</p>
+</div>
+
+<br>
+
+<p class="centrado">FIM DO 4.º NUMERO</p>
+
+</div>
+
+
+
+
+
+
+
+<pre>
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of Noites de insomnia, offerecidas a quem
+não póde dormir. Nº4, by Camilo Castelo Branco
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK NOITES DE INSOMNIA, NO 4 ***
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+Produced by Pedro Saborano
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+and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
+works. See paragraph 1.E below.
+
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+or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
+Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the
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+Foundation
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+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit https://pglaf.org
+
+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including including checks, online payments and credit card
+donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate
+
+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
+keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
+
+
+Most people start at our Web site which has the main PG search facility:
+
+ https://www.gutenberg.org
+
+This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
+including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
+Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
+subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
+
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+This eBook, including all associated images, markup, improvements,
+metadata, and any other content or labor, has been confirmed to be
+in the PUBLIC DOMAIN IN THE UNITED STATES.
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+Procedures for determining public domain status are described in
+the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org.
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+No investigation has been made concerning possible copyrights in
+jurisdictions other than the United States. Anyone seeking to utilize
+this eBook outside of the United States should confirm copyright
+status under the laws that apply to them.
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+Project Gutenberg (https://www.gutenberg.org) public repository for
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