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diff --git a/24691-h/24691-h.htm b/24691-h/24691-h.htm new file mode 100644 index 0000000..d487b57 --- /dev/null +++ b/24691-h/24691-h.htm @@ -0,0 +1,2546 @@ +<!DOCTYPE HTML PUBLIC "-//W3C//DTD HTML 4.01 Transitional//EN" "http://www.w3.org/TR/html4/loose.dtd"> +<html> +<head> + <title>O vinho do Porto</title> + <meta name="AUTHOR" content="Camilo Castelo Branco"> + <meta http-equiv="Content-Type" content="text/html; charset=iso-8859-1"> + <meta name="KEYWORDS" content=""> + <style type="text/css"> + @media print { + .pagenum { display: none;} + } + @media handheld { + .pagenum { display: none;} + } + body {width: 520px; margin-left: 90px; text-align: justify;} + .pagenum {font-size: 0.6em; font-style: normal;color: #666666; +position:absolute; left: 630px;} + .capa {text-align: center; border: solid 1px #000000;} + hr { + border: none; + border-bottom: solid 2px #000000; + text-align: center; + } + a {text-decoration: none;} + sup {font-size: 0.8em;} + h2, h3, h4, h5, h6 {text-align: center;} + h1 {text-align: center; margin-top: 2em; margin-bottom: 2em;} + .small-caps { + font-variant: small-caps; + } + .direita { + text-align: right; + } + .centrado { + text-align: center; + } + .poesia { + margin: 2em; + text-align: left; + } + .citacao { + margin-left: 50%; + text-align: left; + } + blockquote { + font-size: 0.8em; + } + .rodape { + font-size: 0.8em; + margin: 2em; + } + #corpo p{ + line-height: 1.5em; + } + .dotted {border: 0; border-bottom: dotted 2px #000000;} + #sumario { + width: 75%; + margin: auto; + border-left: solid 1px #000000; + border-top: solid 1px #000000; + border-right: solid 3px #000000; + border-bottom: solid 3px #000000; + padding: 1em; + } + </style> +</head> + +<body> + + +<pre> + +The Project Gutenberg EBook of O vinho do Porto: processo de uma +bestialidade ingleza, by Camilo Castelo Branco + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: O vinho do Porto: processo de uma bestialidade ingleza + exposição a Thomaz Ribeiro + +Author: Camilo Castelo Branco + +Release Date: February 26, 2008 [EBook #24691] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O VINHO DO PORTO *** + + + + +Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images +of public domain material from Google Book Search) + + + + + + +</pre> + +<span class="pagenum">[1]</span> + +<h1>O vinho do Porto</h1> +<span class="pagenum">[2]</span> + +<h6>Porto—Imprensa Moderna</h6> +<span class="pagenum">[3]</span> + +<div class="capa"> +<h3>CAMILLO CASTELLO BRANCO</h3> + +<hr style="width: 10%"> + +<h1>O vinho do Porto</h1> + +<h4>PROCESSO D'UMA BESTIALIDADE INGLEZA</h4> + +<h6>EXPOSIÇÃO A</h6> + +<h4>THOMAZ RIBEIRO</h4> + +<hr style="width: 5%"> + +<h5>2.ª EDIÇÃO</h5> +<br> +<br> +<br> +<br> +<h6>PORTO +<br> +LIVRARIA CHARDRON +<br> +De Lello & Irmão, Editores +<br> +1903</h6> +</div> +<span class="pagenum">[4]</span> + +<h6>Propriedade absoluta dos editores</h6> + +<h6>Reproducção Interdicta</h6> +<span class="pagenum">[5]</span> + +<h2><span class="small-caps">a Thomaz Ribeiro</span></h2> + +<div class="citacao" style="font-size: 0.8em;"> +<p>Como sei que o teu amor ás perfidas trêtas e manhas da +Inglaterra não é +dos mais acrizolados, venho offerecer ao teu sorriso um <span +class="small-caps">specimen</span> de bestialidade ingleza.</p> +</div> +<span class="pagenum">[6]</span> <br> +<span class="pagenum">[7]</span> +<br> +<br> +<br> +<br> +<p>Ha trinta e cinco annos que um bretão anonymo lavrou na +<i>Westminster +Review</i> a condemnação do vinho do Porto como deleterio e +empeçonhado por +acetato de chumbo e outros toxicos anglicidas. O homem, pelas +rábidas +violencias do estylo, parece ter redigido a calumnia depois de jantar, +n'uma +exaltação capitosa do tannino do alvarilhão que elle +confundiu com as +afflicções dos venenos metallicos. Relembra lamentosamente, +com a lagrima das +<span class="pagenum">[8]</span> bebedeiras ternas, o seculo dezoito, em +que +o genuino licor do Porto era um repuxo de vida que irrigára a +preciosa +existencia de grandes personagens da Gran-Bretanha. Recorda Pitt e Dundas, +Sheridan e Fox, famigerados absorventes do nosso vinho. Diz que Lord Eldon +e +Lord Stowel, graças infinitas ao Porto, reverdejaram e floriram em +velhos; e +Sir William Grant, já decrepito, bebia duas garrafas de <i>Porto</i> +a cada +repasto, para conservar crystallinamente a limpidez das suas faculdades +mentaes e a rija musculatura de todos os seus membros já +locomotores, já +apprehensores, e o resto. Lamenta que Pitt, debil de +compleição, com o uso +immoderado d'este tonico, e em resultado de plethoras frequentes combatidas +com ammoniaco e sulfato de magnezia, vivesse dez annos menos do que +viveria, +se possuisse o incombustivel <span class="pagenum">[9]</span> estomago +curtido do veneravel Lord Dundas.</p> + +<p>Succedeu, porém, ao collaborador da <i>Westminster Review</i> +achar-se +dyspeptico, com azías, relaxes intestinaes, eructações +cloacinas, e o craneo +sempre flammejante como suja poncheira, com o encephalo em combustão +de +cognac e casquinha de limão—isto depois de +saturações copiosas dos vinhos +adulterados do Porto—<i>uma mixordia negra</i>, diz elle afflicto; +mas não +sabe decidir de prompto se a degeneração está na +raça saxonia, se no +vinho +portuguez. Pelo menos e provisoriamente considera-se envenenado, o +bruto.</p> + +<p>Pois o veneno que lograr infiltrar-se nas mucosas inglezas deve ter a +potencia esphacelante da Agua Tufana dos Borgias. Em Inglaterra os porcos +engordam na ceva do arsenico. Que fibras de raça <span +class="pagenum">[10]</span> aquella! É que a carne d'um +bretão diverge muito +da carnadura da restante Europa. O anthropologo Topinard observou que a +mortandade nos hospitaes inglezes, em seguimento ás +operações cirurgicas, +era +muito menor que a dos hospitaes francezes. O sabio Velpeau, consultado pela +Academia de Medicina, respondeu que <i>la chair anglaise et la chair +française n'etaient la même</i>. E não dá a +razão da differença, por que a +não sabia o grande biologo. Eu, na observancia do dictame do +Espirito Santo, +pela bocca do <i>Ecclesiastico</i>—«não escondas a tua +sabedoria» +illucidarei o snr. Velpeau. A razão, a scientifica é esta: +emborcações de +bebidas acidas, e mórmente de cerveja, combatem, como coadjuvantes +do acido +phenico, a gangrena; ora, o inglez, abeberado de cerveja, é +refractario á +podridão dos hospitaes. Como <span class="pagenum">[11]</span> se +vê, d'esta +causal tão obvia um anthropologo é capaz de espremer assumpto +para volumes +recheados de coisas abstrusas sobre ethnographia, climatologia, +morphologia, +mezologia, o diabo.</p> + +<p>Além da cerveja, a fibrina do porco, saturado de arsenico, +entretecida na +fibrina do inglez seu compatriota, faz d'elle um Mithridates para os saes +de +chumbo diluidos no vinho do Porto. O inglez não póde morrer +por ingestão +alcoolica. Se quer suicidar-se com instrumento liquido, tem de asfixiar-se, +afogar-se no tunel como o lendario Lord. Elle é immortal, +absorvendo; e só +póde morrer—absorvido. Estranho animal! E é senhor das +aguas e das melhores +garrafeiras! O destino, pela tuba sonorosa de Camões, disse ao +inglez:</p> + +<div class="poesia"> +<i>Entre no reino d'agua o rei do vinho.</i><br> + + +<p> (LUS. c. VI.)</p> +</div> +<span class="pagenum">[12]</span> + +<p>Que litros de <i>Porto</i> envenenado se calculam efficazes para +degenerar +um bretão até á dyspepsia e ás agonias da +morte?</p> + +<p class="centrado">*</p> + +<p>N'esta conjunctura, um possuidor de legitimo <i>Douro</i> convidou o +intoxicado a beber o elixir fornecido por um commerciante britannico +estabelecido no Porto. O negociante fornecedor era o Forrester que +desappareceu d'este alfôbre de charlatães forasteiros, de um +modo tragico, ha +vinte e trez annos. Logo te contarei essa catastrophe, meu amigo.</p> + +<p>A sensação intima que o hospede recebeu nas suas entranhas +foi uma +novidade, uma deleitação de refrigerio em todas as membranas +desde o céo da +bocca <span class="pagenum">[13]</span> até ao cego e +visinhança onde elle +sentia os ardores da zona torrida. Emborrachou-se como era de esperar, e +seria iniquidade censurar-lh'o; mas o seu cerebro de illuminado espelhava +agora as visualidades ethereas, irisadas, do americano Poë. Nem já o +ventre +lhe rugia como se lá tivesse uma besta-fera embetesgada n'uma +latrina, nem +elle nauseado recorria ás titilações na glote para +golphar o acetato de +chumbo. O possuidor da garrafeira, para o convencer de que o salvára +da +morte +propinada pelo vinho homicida do Porto, mostrou-lhe dois opusculos inglezes +recentemente publicados. Um era de J. James Forrester, e intitulava-se <i>A +Word of truth Port wine</i>. O outro, por Whittaker, em reforço ao +de +Forrester, chamava-se <i>Strictures on a «Word of truth on Port wine»</i>. +<i>London</i>, 1848.</p> +<span class="pagenum">[14]</span> + +<p>Forrester, no seu folheto, desbaratava o valor do vinho do Porto, +increpando os lavradores de não differençarem, no fabrico, as +temperaturas +humida, fria, secca e quente; que empregavam promiscuamente toda a casta de +uva, adulterando-a com ingredientes adequados ao paladar inglez, mas +corrosivos. Na operação do lagar, accusa o lavrador de +retardar a +fermentação, vasando em cada pipa de môsto entre dose e +vinte e quatro +gallões de agua-ardente. Que, passados dois mezes, a mixordia era +córada com +baga, mediante uns saccos de linhagem que espremiam sobre o vinho, e depois +atiravam o residuo ao tunel. Em seguida, novo despejo de agua-ardente, e +dois +mezes de descanço. Esta beberagem enviada para o Porto era novamente +«beneficiada» com o veneno alcoolico; e, nove mezes depois, ao sahir para +Inglaterra, <span class="pagenum">[15]</span> como golpe de misericordia, +nova infusão. De modo que o vinho entrava no estomago inconsciente +do +Reino-Unido á razão de vinte e seis gallões de +agua-ardente por +pipa. Depois, +descreve o que seja geropiga, e como ella entra n'estes horrendos mysterios +da Brinvilliers. Esta geropiga, como logo direi, fermentou a bestialidade +ingleza que passou victoriosamente na Europa em 1849.</p> + +<p>Rematada a lista das falsificações, fraudes e ladroeiras +dos lavradores e +negociantes portuguezes, Forrester exclama: «Quem assim deteriora o vinho +é, +a meu vêr, mais criminoso que um ladrão vulgar»; e conclue o +seu opusculo +n'estes termos: «Os consummidores inglezes devem dar a Portugal uma +lição +prática, demonstrando que, se a esse paiz convém desfazer-se +da sua +agua-ardente, que não é nos vinhos do Porto que nos deve +impingil-a; <span +class="pagenum">[16]</span> por que nós, em Inglaterra, podemos +comprar baga +e melaço por preços muito mais em conta do que Portugal nos +incampa o seu +licor de que esses ingredientes formam o principal.»</p> + +<p class="centrado">*</p> + +<p>Parecia natural e patriota coisa que os negociantes e agricultores de +vinho accusassem este detrahidor á animadversão publica, e +que a +imprensa do +baluarte da liberdade o cobrisse de injurias, e algum viticultor mal +humorado +de bengaladas. Não, meu querido Thomaz Ribeiro. A sua casa luxuosa +na +Ramada-Alta era o confluente dos próceres portuenses e da provincia +vinicola. +Titulares, desembargadores-conselheiros, ministros <span +class="pagenum">[17]</span> de estado honorarios, os maiores proprietarios +do +Douro, e poetas arcadicos de pacotilha, que faziam dithyrambos ao +jantar:</p> + +<div class="centrado"> +<p><i>Evohé.</i></p> + +<p><i>Padre Lyêo!</i></p> + +<p><i>Sabohé,</i></p> + +<p><i>Grão Bassarêo!</i></p> +</div> + +<p>Ainda se usavam, na bonacheira dos velhos, estas rancidas semsaborias +remoçadas por uma copiosa tintura de bastardo.</p> + +<p>Ali concorria o desembargador Fortunato Leite cheirando os vinhos que +já +não podia deglutir e arrotando pelo nariz sobre os calices. Ao +pé d'elle +estava o visconde de Veiros, o Mello das Aguas-ferreas, expondo a dois +morgados de Riba-Douro a sua erudição em genealogia, uma +sciencia em que se +distinguem muitos <span class="pagenum">[18]</span> parvos, se tem memoria. +O +ministro de estado honorario, João Elias, alambasava-se em pudding +que comia +com a faca. O Affonso Botelho, de Passos, d'uma <i>gentilhommerie</i> +transmontana, paparrêta, rorejando as phrases e os circumstantes com +uma +salivação caudal expedida d'entre os dentes illegitimos, como +do crivo de um +borrifador. Elle chamára patife a Forrester em 1845, no <i>Periodico +dos +Pobres</i>, e acclamava-o então nos brindes o anjo tutelar do Douro +que lhe +comprava as colheitas a elle Affonso. Avultava o velho Manoel Browne, +dominando a vozeria com as suas gargalhadas estridentes e honradas. O +typico +Gonçalo de Barros, a correcção no despejo, negociante +de vinho, de casamentos +proprios e alheios, de tudo que é negociavel, com mais farças +e melodramas e +tragedias na sua vida que o Archivo <span class="pagenum">[19]</span> do +extincto theatro do Salitre; insinuando-se com incomparaveis negaças +de +artista nos corações dos amigos e sahindo pelas algibeiras +quando achava +estas avenidas aéreas de mais e metalisadas de menos. Elle foi, +não obstante, +um tracista infausto, por haver nascido em um meio estreito de mais para o +largo bracejar das suas faculdades mercantis. Seria o mais sagaz negociante +encyclopedico da monarchia, se os seus parceiros em veniagas não +fossem +tambem os negociantes mais sagazes da mesma monarchia, todos conjurados em +desabarem do seu legendario ponto d'alta honra a Praça do Porto. E a +Praça +sempre impavida em meio do fracassar das ruinas, como o homem justo de +Horacio, metaphoricamente fallando—<i>Impavidum</i>, etc. Via-se o +Eduardo +Moser, então visconde embrionario, a esperteza do alho e a finura +<span +class="pagenum">[20]</span> do coral feita homem; manancial de salvaterios +commerciaes, agricolas, industriaes, esterilisados pela inveja e pela +ignorancia dos seus auditorios; raro dom prelucido de profecia, mas +condemnado, como Cassandra, a não ser acreditado. Seria capaz de +inventar a +Methaphysica commercial, levando á transcendencia o phenomeno do +Cambio. +Usa +do telescopio de Herschell para vêr o Porto nas dimensões da +Philadelfia. Ás +vezes, cuida que vai scismando em emprezas arrojadas ao longo de <i>Regent +Street</i>, e encontra-se na rua dos Caldeireiros entre uma loja de funis e +uma tenda de tamancos. Vive miraculosamente no meio dos seus collegas da +rua +dos Inglezes e Cima do Muro como Daniel no fôjo dos leões. De +resto, com uma +estatura franzina, e menos de mediana, tem um temperamento de dynamite. +Quando lhe é forçoso cascar <span class="pagenum">[21]</span> +um sôco em um +homem alto (e eu já vi) cresce um covado pela medida velha. Tem a +elasticidade do Relatorio e do <i>boxing</i>. Produz uns Relatorios +colossaes +que, se lhe puxassem tanto pelo corpo como pelo espirito, s. exc.ª seria o +visconde mais corpulento da sua freguezia. Não obstante, e fallando +por +figura, elle hade ser sempre o gigante do Relatorio correcto, que +fará +alguma +vez impacientar o ouvinte futilmente leviano, mas nunca fará gemer a +Razão +filha de Deus, nem a Grammatica filha do Lobato.</p> + +<p>Confluia a todos os jantares assignalados o arcediago Cunha Reis, um +velho +palaciano de Braga, adiposo, apesar de ressicado interiormente por diversas +ingratas materialistas que elle idolatrava com psycologismo +incomprehendido, +mas consentaneo á sua idade séria. Sentindo-se fatigado e +algido da viagem +por <span class="pagenum">[22]</span> sobre o dezerto glacial da velhice, +foi +ao convento da Falperra, onde morava um egresso, fez confissão geral +e deixou +o coração penitente aos pés da Virgem. Depois, +renunciando o coração, nenhum +esteio amparador do gôsto de viver lhe ficou. Fechou-se no seu +quarto, e, +sósinho, morreu de uma congestão de saudade da sua juventude +que fôra um +manso idyllio de Gessner com ligeiras intermittencias febrís de +Saint-Preux. +Este adoravel cavalleiro-professo chamava-me filho; e, se ouvia fallar de +amores, chorava, dissimulando as lagrimas com um sorriso ironico da sua +fragilidade serôdia.</p> + +<p>Era certo o João Nogueira Gandra que recitava sonetos de +improviso com +quinze dias de lima e de contagem pelos dedos, sob a torrente da +inspiração. +O visconde d'Azevedo lia poemas de sua lavra engenhosa em fórma +graphica de +<span class="pagenum">[23]</span> copos e garrafas, cheias de versos de +varios metros e de larachas honestas. O Lopes de Vasconcellos, um gordo, +governador civil, ouvindo os poemas bacchicos, dava na barriga palmadas +sonoras, intelligentes, rindo muito, e—que a poesia era aquillo, uma +coisa +com pilheria, porque versos de choradeira não os podia +tragar,—affirmava, +alludindo ao episodio da Ignez de Castro, do Camões, recitado por +João Thomaz +Quillinan com uma sentimentalidade plangente e languida, toda feita de +moscatel de 1830. Em cavaqueira sábia e transcendente, o abbade de +Macieira, +pregador régio, um Massillon á altura do paiz, concordando +com o theologista +visconde de Azevedo, asseverava que Virgilio prophetisára o advento +do +divino +Messias; e os dois, com as pitadas engatilhadas aos narizes rubros, +recitavam +alternadamente, com emphase:</p> +<span class="pagenum">[24]</span> + +<div class="poesia"> +<p class="centrado">VISCONDE</p> + +<p><i>Ultima Cummœi venit jam carminis setas</i><br> +<i>Magnus ab integro sæclorum nascitur ordo.</i></p> + +<p class="centrado">ABBADE</p> + +<p><i>Jam nova progenies cœlo dimititur alto</i><br> +<i>Tu modo nascenti puero...</i></p> +</div> + +<p>O Quillinan, um atheu esclarecido, escutava-os; e, sublinhando o sorriso +heretico, perguntava se o <i>nascenti puero</i> virgiliano não seria +o filho +de Asinio Pollião, herdeiro de Augusto, protector do poeta da +Eneida. Os +theologos affirmavam que não, sibilando o seu meio-grosso, reserva +do mestre +da fabrica.</p> + +<p>Concorriam tambem os irmãos do D. Jeronymo bispo do Porto, dois +velhos +<span class="pagenum">[25]</span> casquilhos, vegetalisados em dois +pimentões +ao <i>toast</i>, sempre á cata d'umas Suzanas pouco ariscas, Suzanas +da +barcaça do João Coelho a 8 vinténs por banho—e +mordiscavam com as suas +dentaduras de gutta-percha varios pomos sorvados e nada prohibidos. +Fallavam +de amores sardanapalescos com o medico Assis, um frascario de muita +experiencia que lhes recommendava bifes na grelha e parcimonia, sopas de +vinho com canella e alguma pudicicia. Eram a justificação de +Lafontaine:</p> + +<div class="poesia"> +<p><i>...dans les mouvements de leurs tendres ardeurs,</i><br> +<i>Les bêtes ne sont pas si bêtes que l'on pense.</i></p> +</div> + +<p>Era tambem infallivel nos lautos banquetes do Forrester o Custodio +Pinheiro, visconde de Villa Verde, a contar ao <span +class="pagenum">[26]</span> João Elias que a sua esposa, cosinhava +uns ricos +<i>fósferinhos</i> (fofinhos) para o chá; mas que elle +já não podia +cear +senão chá preto com <i>fateias</i>. Defronte, o visconde de +Alpendurada, +presidente da camara, promettia a um jornalista, se os eleitores o +conservassem á testa do municipio, dotar o Porto com o +embellesamento das +latrinas <i>theodoras</i> (inodoras). Um folhetinista d'aquelle tempo, o +creador do espirito nas gazetas portuenses, Evaristo Basto, dizia-lhe que +seria melhor, em vez de dotar o Porto com latrinas theodoras, o +embellesasse +antes com algumas donzellas do mesmo nome. Estes dois viscondes, +aliás bons +homens e creadores de linhagens de boa medrança, vão +já tão +longe que, quando +me lembram, chego a confundil-os com os primordios das castas nobres, tal +qual como se elles, senhores <span class="pagenum">[27]</span> feudaes, +tivessem ido á conquista do santo sepulchro com os Godofredos e os +Tancredos.</p> + +<p>Elles, emfim, riam-se uns dos outros, e o José Borges, hoje +visconde do +seu Castello, ria-se de todos com um sorriso solertemente +cortezão.</p> + +<p>O Forrester, muito fôfo e empantufado, com as suas fanfarronias +<i>poseuses</i>, marrafa frizada e gravata branca assás conhecida, e +mais +os +bofes anilados da camisa, nas illustrações da burguezia dos +romances de +Dickens, batia no peito enchumassado e na testa com as pontas dos dedos; e, +com a cara açafroada em arreboes do Paraizo e das adegas do +Pinhão, apontava, +soluçante, para uma primorosa tela de Roquemont—o retrato de +sua defunta +esposa que o contemplava do céo em moldura de talha dourada; e elle +amava +tanto aquella vera effigie, testemunha <span class="pagenum">[28]</span> de +suas lagrimas, que a trocou, e mais outros bonecos de barro por vinhos de +Antonio Bernardo Ferreira. Bem bom negocio para o inglez—está +claro.</p> + +<p>Ora estes commensaes de Forrester, quasi todos vinhateiros, ignoravam, +excepto dous ou trez, a lingua ingleza e desconheciam portanto o descredito +com que o amphitrião mareára os seus vinhos no mercado de +Londres; +mas o +governo, que possuia idiomas como um Calepino, pegou de uma corôa de +barão e +pôl-a na cabeça de J. James—<i>barão de +Forrester</i>. E, se não morre tão +cedo, e faz nova edição das calumnias contra a mais rica e +ameaçada industria +portugueza—uma segunda edição peorada e mais +incorrecta—o governo luso +fazia-o visconde, não é verdade? A pergunta não +é feita ao ministro do reino +de 1883: é ao Thomaz <span class="pagenum">[29]</span> Ribeiro que +em 1849 +entrava na adolescencia.<sup><a href="#nota1" name="mr1">1</a></sup></p> +<span class="pagenum">[30]</span> + +<p class="centrado">*</p> + +<p>Para corroborar o Forrester e açular as iras contra o vinho do +Porto, o +outro pamphletista, Whittaker, invoca a opinião unanime dos medicos +inglezes +que reputam o vinho procedente de Portugal uma peste para o estomago e para +o +figado; por quanto o summo da uva é quasi uma idea abstracta na +moxinifada de +aguardente, baga, melaço e <i>jeropiga</i>. Elle não escreve +sem desculpavel +horror a palavra <span class="small-caps">jeropiga</span>.</p> +<span class="pagenum">[31]</span> + +<p>Porquê? Vaes agora entrar no segredo da bestialidade ingleza, meu +amigo.</p> + +<p>Foi assim.</p> + +<p>James Forrester, tão respeitador dos vinhos portuguezes como da +nossa +orthographia, tinha escripto «Jeropiga» com J. Parece que d'esta bagatella +não devia surdir grande equivoco na percepção do +pensamento; porém, succede +que a palavra com <i>G</i> ou com J dá duas +significações de coisas e +serventias, e entradas e sahidas muito diversas. Whittaker, para saber +radicalmente o que era <i>Jeropiga</i>, abriu o <i>Diccionario +portuguez</i> +de Constancio, e encontrou: <span class="small-caps">jeropiga</span>, +<i>Ajuda</i>, <i>clyster</i>, <i>bebida medicinal</i>.</p> + +<p>Tremulo de indignação e livido de nôjo, brada o +inglez: «Esta ultima +expressão (<i>bebida medicinal</i>) é o mesmo que +<i>mézinha</i>; quanto ás +duas primeiras (<i>ajuda</i>, <i>clyster</i>) são a mesma coisa, tem +<span +class="pagenum">[32]</span> o mesmo sentido, e dispenso-me de as traduzir. +Que <i>bellas</i> coisas a gente bebe!»</p> + +<p>Ó Thomaz Ribeiro, quem não sentiria vontade de mandar o +inglez beber +outras?</p> + +<p>Mas o peor da passagem foi que a droga do clyster diluida no vinho do +Porto fez abalo intestinal no mercado de Londres. Raro seria o consummidor +de +vinhos portuguezes que não levasse as mãos convulsas á +região hypogastrica, +com ptyalismo e vomitos. O artigo foi logo trasladado a francez, em +Bruxellas, na <i>Revue Britannique ou choix d'articles traduits des +meilleurs +écrits périodiques de la Grande-Bretagne</i> (1849). Em Paris +foi commentada +desabridamente, com chalaças, a porca e pelintra fraude lusitana em +um artigo +da <i>Revue Œnologique</i>. Portugal, á conta do execravel +<i>jota</i> de +Sir James Forrester, foi considerado um paiz de immunda <span +class="pagenum">[33]</span> selvageria que, ministrando clysteres pela +bocca, +tornava communs de duas entradas as suas mézinhas. Triste!</p> + +<p>A honra e a limpeza de Portugal seriam desaffrontadas, se Forrester, +Whittaker e os seus traductores ignaros procurassem <i>Geropiga</i>, com +<i>G</i>, no Constancio ou no Moraes, <span +class="small-caps">jeropiga</span> (esclarece o segundo), <i>liquor feito +de +mosto de vinho, sobrecarregado de aguardente, que se usa no Douro para +tempero de vinhos</i>. E accrescenta: <span +class="small-caps">jeropiga</span>, <i>differe</i>.</p> + +<p class="centrado">*</p> + +<p>O aleivoso clyster que, provavelmente, ainda hoje traz impressionados e +receosos os espiritos e os baixos ventres dos nossos fieis alliados, +conspurca bastante a <span class="pagenum">[34]</span> memoria do +barão de +Forrester. Foi este inglez quem, empunhando a seringa da calumnia +involuntaria por insufficiencia de orthographia, deu essa antecipada ajuda +ao +sinistro destino que já então vaticinava a catastrophe do +paiz +vinicola. +Avoluma-se, porém, o delicto do barão quando é notorio +que elle deixou correr +o aleive bestial do seu patricio, e não acudiu a corrigir o erro e +as sujas +consequencias e derivações que Sir Whittaker tirou do +drastico <i>jota</i>. +Se elle fôsse um ignorante honesto, sahiria a protestar que a +geropiga, não +sendo clyster alimentario, nem medicamentoso, nem narcotico, nem laxante, +nunca tentou usurpar as virtudes emolientes e diluentes das malvas, nem do +laudano de Sydenham, e muito menos da jalapa e da mamona. Quanto ao +mechanismo de ingerir a geropiga no corpo humano, deveria ter explicado que +<span class="pagenum">[35]</span> funcciona por meio de taça, +calice, copo, +garrafa, pichel, cabaça, cangirão, caneca, e tambem borracha, +mas sem canudo +recto ou curvo; e, para destruir pela raiz a calumnia, deveria jurar pela +sua +honra que nenhum portuguez, quando absorve geropiga, faz uso do Clyso-bomba +de Darbo, ou do irrigador Eguisier; sendo certo que, na ingestão de +tal +liquido, se dá sempre a completa ausencia de canudos, bombas, +torneiras, +embolos e engrenagens que desandam e esguicham. A geropiga bebe-se, +engole-se, escorrupicha-se; mas não se seringa jámais. Que o +saiba a +Inglaterra. A não ser na perfida Albion, em parte alguma do velho e +novo +mundo o vinho do Porto incutiu suspeitas de penetrar nas entranhas humanas +por um impulso ascensional, com intenções dissolventes ou +refrigerantes. Os +nossos irmãos transatlanticos, afeiçoados <span +class="pagenum">[36]</span> +patrioticamente ao vinho do Porto, jámais o infiltraram na sua +economia +intima sob a hypothese pharmaceutica de que elle contenha anda-açu, +cayapó, +tayuyá ou a purga de João Paes.</p> + +<p>Nicolau Tolentino, no soneto realista dedicado á conjugicida +Isabel +Clesse,—soneto pouco digno de entrar no seio das familias, e quasi +indecente +como obra de mestre de Rhetorica—deixou, em dois versos, bem definido +o +methodo de matar clystermente:</p> + +<div class="poesia"> +<p><i>Que novo invento é este de impiedade</i><br> +<i>Que extirpar gente vem pela trazeira!</i></p> +</div> + +<p>Elle, como se vê, designa com rigor topographicamente anatomico a +parte +vulneravel. Essa inversão do processo homicida, isto é, o +clyster bebido, +apenas seria explicavel e até plausivel, se os catholicos <span +class="pagenum">[37]</span> lavradores do Douro, quando punham no vinho a +substancia irritante da ajuda, tivessem d'ôlho acabar com os hereges +inglezes, seguindo o conselho do poeta no mesmo soneto:</p> + +<div class="poesia"> +<p><i>Se tens desejos d'estas obras pias,</i><br> +<i>Vae fazer aos hereges esta esmola,</i><br> +<i>Serás a extirpação das heresias!</i></p> +</div> + +<p>Se Forrester, consultando este expositor, e mais o <i>Diccionario</i> +sobre <i>Geropiga</i>, e as praticas desobstruentes dos esponjosos +desembargadores avinhados seus comensaes, houvesse atirado aos quatro +ventos +da Europa estas leaes explicações, teria lubricado o ventre +da sua alma +perante a justiça divina com esse mesmo clyster que lhe peorou as +condições +excrementiciaes.</p> +<span class="pagenum">[38]</span> + +<p class="centrado">*</p> + +<p>A morte desastrosa do barão de Forrester, em 12 de maio de 1861, +é uma das +mais notaveis vinganças que o rio Douro tem exercido sobre os +detractores dos +seus vinhos. A familia Ferreirinha da Regoa, composta de D. Antonia +Adelaide, +de seu marido Silva Torres, o millionario, digno de o ser pela bizarria das +suas generosidades, de sua filha e genro, condes da Azambuja, tinham ido, +rio +acima, á sua celebrada quinta do Vesuvio, e convidaram o +barão de +Forrester a +passar uma semana em sua companhia. No dia 12, um alegre domingo, sahiram +todos do Vesuvio, na intenção de jantarem na Regoa. O Douro +tinha engrossado +com a chuva de dois dias, e a rapidez da corrente era caudalosa. Aproando +ao +ponto <span class="pagenum">[39]</span> do <i>Cachão</i>, formidavel +sorvedouro em que a onda referve e redemoinha vertiginosamente, o barco fez +um corcovo, estalou, abriu de golpe e mergulhou no declive da catadupa. O +barão soffrêra a pancada do mastro quando se lançava +á corrente, +nadando. +Ainda fez algum esforço por apégar á margem; mas, +fatigado de bracejar no +têzo da corrente ou aturdido pelo golpe, estrebuchou alguns segundos +de +agonia e desappareceu. Salvaram-se os outros, não todos, com a +protecção de +uns barcos que ahi estavam para recolher o despojo de outro naufragio de um +transporte de cereaes. Livrou-se Torres, o futuro par do reino, agarrado a +um +barril de azeite, até que o recolheram a um dos barcos. D. Antonia e +o conde +de Azambuja aferraram-se ás dragas do barco. A condessa foi salva +por um +marinheiro. Um juiz de direito, Aragão <span +class="pagenum">[40]</span> +Mascarenhas, agarrou-se á vára do barco rijamente, qual o +temos sempre +visto +filado á vara da Justiça, em naufragio de trapaças. +Mas nem todos sahiram +com +vida. Um creado de Torres foi logo tragado pela cachoeira; e, +abraçada com a +vella, já quando se lhe estendia um braço redemptor, +afogou-se uma creatura +a +quem os noticiaristas não deram a minima importancia.</p> + +<p>Pois foi uma pêrda insubstituivel. Era a Gertrudes, um thesouro de +joias +culinarias que a voragem enguliu. Foi esta mulher uma alma transmigrada das +refinadas civilisações pagans, a metempsycose de algum genio +do lar que +presidira ás ucharias da Roma dos Cezares. Foi a cozinheira +primacial do +Porto, onde residia. Tinha sido chamada por D. Antonia Ferreira para +dirigir +os jantares dados ao barão de Forrester, no Vesuvio.</p> +<span class="pagenum">[41]</span> + +<p>Ali acabou. O rôlo de uma onda regeitou-a morta contra um +lapêdo carcomido +de cavernas sonoras a gottejar o lodo da babugem.</p> + +<p class="centrado">*</p> + +<p>Devo a esta creatura o gaudio ineffavel de me sentir viver nas +palpitações +de uma felicidade edenica desde os vinte e tres annos de idade até +esta +decrepitude verdejante de bucolicos musgos. Mal me lembra que pequeno +serviço +eu fizera ao marido d'ella, um bravo e envelhecido alferes de veteranos que +se reformára em 1835 por impedido de servir, crivado de ferimentos +graves +em +algumas batalhas do cêrco. Agora me recordo: o alferes estava +servindo em um +dos antigos telegrafos de paineis, no pincaro de qualquer <span +class="pagenum">[42]</span> serra muito agreste, e gemia o seu rheumatismo +seis mezes e saudades da mulher o resto do anno. Consegui que o deixassem +viver com a sua Gertrudes, que o não acompanhára ás +solidões dos +telegrafos +de taboinhas por não prescindir do grande estipendio como directora +de +cozinha nas lautas Lupercaes politicas, por esse tempo, frequentes no +Porto.</p> + +<p>Comia-se então muitissimo no Baluarte por excellencia. Ministro +ou general +que chegasse a fazer ou desfazer revoltas, cabecilha eleitoral que viesse +arregimentar as suas hostes, enchendo-lhes a consciencia de liberalismo e +carneiro guisado com batatas, era contar com opiparas comezanas em que os +cabralistas levavam enorme vantagem na profusão. Os homens de +Setembro, os +<i>patulêas</i>, em 1849, distinguiam-se na frugalidade. Os +irmãos Passos +alimentavam rusticamente <span class="pagenum">[43]</span> os seus +organismos +plebeus, de Cincinnatos, endurecidos na educação do toicinho +e das feculas de +Bouças. Os seus correligionarios andavam ainda na aprendisagem de +comer, e +ameaçavam a magra meza do orçamento para praticarem. Ainda +não tinha surgido +de vez o Apicio de todos os paladares, o Rodrigo da Fonseca +Magalhães, com as +suas raposías, o qual, entendendo com Aristoteles que o homem +é um animal +essencialmente politico, inaugurou o elasterio membranoso de todos os +esôphagos, sob o especioso lemma de homogeneidade de principios, pela +fusão +de todos em uma só consciencia que vinha a ser nenhuma propriamente +dita, ou +o relaxamento de todas as consciencias n'um estomago commum de duas ou trez +politicas. E assim conseguiu que todos os candidatos á panella do +Estado +esmoessem o corneo bôlo indigesto <span class="pagenum">[44]</span> +das suas +<i>Bernardas</i> no largo e fundo estomago da alma, <i>mentis nostrae +stomachum</i>, como disse S. Pedro Damião, profetisando a +physiologia do +espirito politico do seculo XIX (<span class="small-caps">opusc.</span> 12. +c, 38. <i>mihi.</i>)</p> + +<p>Gertrudes não tinha mãos a medir, se vinha ao Porto um +ministro de obras +publicas que deitasse passeio até á Foz e outro passeio +até Leixões, +tracejando barras com a badine nos páramos do Azul. Então, a +classe +argentea, +uma casta que se investira no patriciado pelo jús da moeda falsa, da +escravatura, do contrabando, e talvez do clyster no vinho do Porto, se esse +escandalo coubesse no possivel—os philistinos, uma fidalguia com a +raiz da +arvore de geração na Noruega, á americana—<i>the +codfich's +aristocracy</i>—senhores de navios e balcões unctuosos de +substancias +alimenticias adulteradas, andavam á compíta, a vêr qual +havia <span +class="pagenum">[45]</span> de espiritualisar mais os ventriculos +encephalicos do ministro, ingerindo-lhe altas dózes de phosphoro por +intermedio dos rodovalhos celebrados nos triclinios dos Cressus e Lucullos +das Congostas, Rebolleira e alfurjas circumjacentes. As barras da Foz e +Leixões ahi se ostentam uns primores d'arte hydrographica attestando +que os +ministros segregaram perfeitamente o phosphoro, o rodovalho—comeram o +peixe +e mais a isca. Os amphitriões, esses representam o anzol do anexim; +mas, +norteando a outras regiões, revelaram uma phantazia oriental, +malabar, nos +jogos de Bancos.</p> + + +<h5>PARENTHESIS</h5> + +<h6>O AUCTOR (<i>á parte</i>)</h6> + +<p>No Porto ha um grupo invulneravel de negociantes que preservam +incontaminadas <span class="pagenum">[46]</span> as tradições +da probidade +antiga. São esses os mais expostos ao azar de partirem os +braços, se tentarem +encravar as engrenagens dissolventes. Não ha fortuna grangeada com +honra que +ouse atravessar sem mêdo as maltas dos salteadores que sahem +ás encruzilhadas +da politica, se não topam viandantes incautos nas incruzilhadas do +negocio.</p> + +<p>Se a estocada dos melindres resvalou no arnez d'esta +satisfação dada aos +homens de bem, fecha-se o parenthesis.</p> + +<p class="centrado">*</p> + +<p>—Que ha de novo, madame Brillat-Savarin?</p> + +<p>Esqueceu-me prevenir-te, Thomaz Ribeiro, de que eu chamava <i>madame +Brillat-Savarin</i> <span class="pagenum">[47]</span> á Gertrudes. +Custava +muito aos melindres estheticos do meu espirito caprichoso em onomastica +chamar-lhe <i>Gertrudes</i>, um nome de que resa o Agiologio, é +certo, mas +não sôa lyricamente a orelhas classicas nem romanticas. +Auctorisado com as +minhas faculdades poeticamente episcopaes de chrismar, chamára-lhe +<i>Gertruria</i>. Ella, porém, não comprehendendo a +delicadeza do imperfeito +anagramma, tomava-o como galhofa. Depois, fiz-lhe entender, que os seus +talentos a nivellavam com um auctor de fama universal nas delicias do +paladar, e por isso me deixasse dar-lhe a ella, feminisando-o, esse nome +glorioso e novo no mais descurado ramo das artes uteis entre os +portuguezes, +incultos hottentotes quanto á culinaria, nutrindo-se com um <i>menu +fort +chiche</i>, pouco avantajado á cosinha dos epicos Affonsos que +não +conheceram +<span class="pagenum">[48]</span> os alimentos nervosos, e devoravam, para +acerar o musculo, javalis inteiros na braza como os esquimós comem +os ursos e +os kangurus. E Gertrudes consentiu que eu, maridando-a espiritualmente com +o +immortal regalão da França, lhe chamasse <i>madame +Brillat-Savarin</i>.</p> + +<p>Contava-me ella então os jantares que dirigira, a pedido de quem +e para +quem, com interessantes pormenores, miudezas, bisbilhotices, ridicularias +da +vida intima. Dest'arte, estava eu em dia com o evolucionismo politico, com +a +sociologia, com a ethnographia, com as crizes catemeniaes da <span +class="small-caps">carta</span> constitucional, com o fomento das obras +publicas, especialmente barras de Leixões e Foz. Emfim, eu sabia +tudo, sem +resalva das abominações procedentes do fogão; e os +deuses me são testemunhas +de que eu em cento e tantos <span class="pagenum">[49]</span> volumes de +analyse de ruins costumes nunca fiz máo uso dos segredos de +Gertruria, +quanto +a uns pasteis de lagostins e mexilhões que ella cosinhava, a pedido +de varias +familias, para entreterem sempre accêso o fogo da amisade—o +fogo sagrado das +vestaes, segundo a lei Pápia.</p> + +<p class="centrado">*</p> + +<p>Agora te vou contar como ella me salvou aos vinte e tres annos.</p> + +<p>Em 1849, a invasão subita de uma anemia vampirisou-me o pouco +sangue +desoxigenado, desfibrinado, e me poz os ossos em decomposição +gelatinosa, a +ponto de me deixar em uma ressicação óssea; e, se eu +ia durando, é porque já +me não <span class="pagenum">[50]</span> restava carne em que se +aferrasse a +garra adunca da dura Parca de então, ou da «sinistra rameira» como +ultimamente lhe chamam os vates.</p> + +<p>Gertruria, desde que eu fui á cama, visitava-me a miudo no +Hotel-Francez, +na rua da Fabrica, um velho palacio que tinha ao rés da rua a +officina e +escriptorio do <i>Nacional</i>, redigido pelo professor egresso Antonio +Alves +Martins, Almeida e Brito, Damazio, Parada Leitão, Nogueira Soares, +Evaristo +Basto, Lobo Gavião, Eu tinha a meu cargo a secção das +frioleiras. O meu +chorado amigo bispo de Vizeu exterminára-me do districto +sério do jornal, +quando descobriu que os meus <i>artigos-de-fundo</i> eram commentarios +perpetuos e paraphrases miguelistas ao <i>Rei-chegou</i>, escriptas <i>un +peu +à la diable</i>. E, na verdade, Thomaz Ribeiro, eu, áquelle +tempo, sentia +pelos monarchas <span class="pagenum">[51]</span> absolutos tamanho affecto +quanto é o odio que hoje professo á canalha absoluta. Um dos +meus collegas +do +andar-nobre d'aquelle edificio de papel ordinario da Abelheira, +Sebastião +d'Almeida e Brito, dous annos antes, sendo ministro da Junta Suprema do +Porto, quando viu a relé armada, urrando morras aos cabralistas +proprietarios, enfardelou a sua bagagem para emigrar para Tuy. Alguns dos +outros meus collegas nada enfardelaram, porque pouco mais tinham que +estylo, +um glossario de phrases redondas e polidas como bolas de strychnina contra +o +conde de Thomar; alguns cabeçalhos de proclamações ao +Povo chamando-lhe rei +coroado de espinhos; a tragedia de Jesus, o calvario, a esponja, etc., a +proposito de um patriota eximio a quem os caceteiros chamôrros +amolgaram duas +costellas; varios threnos gemebundos sobre a patria <span +class="pagenum">[52]</span> agonisante de Viriato, da Brites d'Aljubarrota, +de João Pinto Ribeiro e Fernandes Thomaz; e, afóra isto que +é de facil +transporte para quem emigra, todos tinham palpitantes anhelos na carta de +conselho, nas dragonas de general, na escrivaninha de direito, no baculo +prelaticio, etc. Pois todos aproaram e abicaram á terra da +promissão: só eu +fiquei um perpetuo cultor da secção das frioleiras. Nem +sequer já +possuo uma +e unica distincção que tinha, por que ha muitos annos se +dissolveu, sem ser +dissoluta, a <i>Philarmonica</i> da Rua das Hortas de que fui socio; de +maneira que hade ser muito difficil provar-se perante a posteridadade +perplexa, a minha identidade de portuguez do seculo decimo nono por falta +de +um habito de Christo. Nem um habito de Christo até á data +d'esta! Que este +suspiro te não chegue á alma como um remorso, <span +class="pagenum">[53]</span> ó Thomaz Ribeiro, ex-ministro do reino, +ex-claviculario do cofre das Graças régias! Ah! não. +Eu sei que me consideras +sobejamente afidalgado com as caricias das outras Graças +parnasianas, filhas +de Jupiter e de Venus, tres tarascas incortiçadas, flatulentas, com +hysterismos senis, fistulas e dôres osteócopas, +repercussões de antigas +lubricidades, em saturnaes de batuques compassados por cithara e arrabil +com +os lascivos Aonios e Melybeus nos outeiros monasticos, nas academias, e nos +natalicios das Marcias e Francelias. Sim: nós cá vamos +vivendo, ellas e eu, +n'um soccorro mutuo de cataplasmas de linhaça, de rapé e +chás de tilia.</p> + +<p>Tudo mais acabou. O palacio ardeu; os meus mestres e camaradas do +<i>Nacional</i> morreram todos; e este arcaboiço, que resta e +conserva o nome +que eu tinha <span class="pagenum">[54]</span> então, devem-o +á +Gertrudes a +litteratura nacional e as dezenas de boticas que eu tenho consummido, como +um +suicida recatado que não quer escandalos.</p> + +<p class="centrado">*</p> + +<p>Foi assim que ella me salvou... Mas receio enfastiar-te, meu amigo, sem +chegar a sensibilisar-te. O exterminio da Rhetorica foi uma calamidade para +os que pretendem commover. A gente, dantes, conhecia umas figuras de +eloquencia que puxavam arithmeticamente um certo numero de lagrimas das +coisas, <i>lacrimae rerum</i>, aos olhos das pessoas. Se a glandula do +liquido sentimento não se abria ao toque da metaphora, era seguro +fender-se +<span class="pagenum">[55]</span> golpeada pela penetrante hyperbole. Hoje +em +dia já se não chora senão com uma ophtalmia. De mais a +mais, +os artistas +superiores no officio de escrever, alveneis do templo da Memoria, Vitruvios +e +Possidonios do eterno Pantheon, com pouca argamassa de phrases, ageitavam +uns +rendilhados nichos de immortalidade para os seus amigos, em quanto eu, +cabouqueiro de obra grossa, terei de ser enfadonhamente palavroso para +esquadriar uma lousa, brunil-a, gravar-lhe um <i>vale</i> de saudade +agradecida, e assentai-a sobre uma campa... Uma campa! Não a teve a +pobre +Gertrudes. Lá se desfez na leiva barrenta de qualquer adro +desconhecido +d'aquellas desoladas charnecas do Douro.</p> +<span class="pagenum">[56]</span> + +<p class="centrado">*</p> + +<p>Assistira, um dia, Gertrudes ao meu jantar e viu que eu me confrangia +enjoado pelo espectaculo repulsivo de meia franga recozida e um caldo +branco +em que boiavam uns olhos amarellos da enxundia do oveiro da ave. Ella +cheirou +de longe o caldo fumegante, e disse com engulho:</p> + +<p>—Captiva! isto nem com fome de cão se podia tragar!</p> + +<p>Que o medico me não deixava comer outra coisa,—balbuciei +tão extenuado e +offegante que me parecia despegar-se o ultimo colchete da existencia n'um +esvahir de desmaio.</p> + +<p>—Sinto-me morrer...—murmurei flebilmente.</p> +<span class="pagenum">[57]</span> + +<p>—E morre decerto!—confirmou ella com sinistra +solemnidade—morre, se não +mudar de comida. Quer que eu o ponha rijo? Diga á dona da hospedaria +que a +sua enfermeira e cozinheira sou eu.</p> + +<p>Não esperou resposta e sahiu. Pouco depois, voltou muito +afreimada, tirou +a mantilha de sarja, mudou de calçado para não fazer bulha +com os tacões das +botinhas, cingiu um lenço na fronte recolhendo os bandós, +atou um avental de +riscadinho na cintura e foi para a cozinha. Quando entrou com uma +caçoula +coberta, o perfume vaporado do rebordo da tampa abriu subitamente no meu +olfacto uma fonte de vida, uma sensação entre espiritual e +nazal, um quasi +extasis, como a evidencia da immortalidade do <i>eu</i>. Arranjou a meza de +leito com o talher, afofou-me as travesseirinhas nas costas angulosas, +escadeadas como um <span class="pagenum">[58]</span> pedaço de velho +cancêllo +desengonçado, a cahir das dobradiças despregadas,—e +passou para uma travessa +o acepipe fumegante. Eram duas mãos de boi guizadas, loiras, de uma +unctuosidade oleosa que punha caricias ferozes nos dentes, e aguçava +na +abobada palatina as cobiças dantescas do faminto Ugolino e de um +professor +portuguez de instrucção primaria. Devorei uma das +mãos, sopeteando no molho +pedaços de pão que engulia inteiros, soffregamente, n'uma +intallação.</p> + +<p>—Poderei comer a outra mão, snr.ª Gertrudinhas? perguntei +esperando em +anciosa incerteza a resposta duvidosa.</p> + +<p>—Se tem vontade, coma. Que sente lá por dentro?</p> + +<p>—Fome, snr.ª Gertrudes, fome!</p> + +<p>—Então coma; a natureza que lh'o pede, é por que +não lhe faz mal.</p> + +<p>E não fez. Fumei um charuto que até <span +class="pagenum">[59]</span> +áquelle momento me nauzeára. Pedi café e cana de +Paraty. Estive quasi a +pedir +as calças para me levantar.</p> + +<p>—Nada de boticadas! intimou ella; e, pegando em dous frascos de +pilulas +de ferro de Blaud e de Vallet, e de meia garrafa de vinho quinado despejou +tudo na primeira vasilha concava que se offereceu á sua +indignação.—Fóra com +a porcaria!—bradava gesticulando, com a cólera scientifica e a +justiça +indefectivel de um medico homeopata.</p> + +<p>No dia seguinte deu-me de jantar troixas de recheio, bifes de presunto +de +Melgaço e meio melão. O medico assistente, o João +Ferreira, grande clinico, +veio á tarde, e poz-se a farejar.—Que lhe cheirava a +melão! se eu +praticára +a loucura de comer melão?!—A Gertrudes acudiu á minha +perplexidade:—que +fôra ella quem o comêra; que eu, coitadinho, <span +class="pagenum">[60]</span> estava a caldos e aza de franga, uma +desgraça!</p> + +<p>O doutor tomou-me o pulso, e fez um gesto de satisfação +tranquillisadora:—que eu estava melhor quanto ao pulso, um pouco +rapido, mas +regular; auscultou-me a região precordial; já mal percebeu o +<i>ruido de +folle</i>; porém, continuava a fariscar o melão, desconfiado, +chegando o seu +descompassado nariz absorvente ao meu perfido halito, quando me auscultava +as +arterias carotidas.</p> + +<p>Á noite, visitou-me outro medico, interessado na minha cura +duvidosa, +como +amigo. Era Camara Sinval, lente da Escóla Medico-Cirurgica, um que +prégava, +não por hypocrisia, mas por paixão desvairada da Arte dos +Vieira e +Bourdaloue, sermões ultramontanos empavezados de sapiencias +academicas com +grandes empolas de latim pagão. Nunca me receitava. <span +class="pagenum">[61]</span> Para as insomnias mandava-me lêr +philosophos e +poetas epicos. Disse-me que, na sua clinica, empregava primeiro as epopeas +desde a <i>Iliada</i> até á <i>Henriqueida</i>; e, em ultimo +recurso, os +systemas philosophicos desde Platão até Victor Cousin. Que +tivera—contava—um doente de insomnia rebelde que resistira +singularmente ao +1.º e parte do 2.º Canto dos <i>Luziadas</i>; mas, perdidas as +esperanças de +anesthesia, lhe lêra duas paginas de Kant, e o enfermo ficára +sopitado n'um +lethargo de Epimenides. Aconselhou-me a Homeopathia, medicina inoffensiva e +de vantagem para fantasistas supersticiosos. Apenas lhe achava o defeito de +ter entre os seus medicamentos uma <i>Eufrazia</i> e uma <i>Ignacia</i>; +por +que, se tivesse tambem uma <i>Athanasia</i>, seriam as trez Parcas com +pseudonymos lethaes. Entretanto, achou-me espantosamente <span +class="pagenum">[62]</span> melhor. Não acreditava. Queria saber o +que eu +tinha tomado. Referi-lhe a verdade—as mãos de boi, os bifes de +presunto, as +troixas, o melão, a Providencia, sobre tudo a Providencia na pessoa +de +Gertrudes.</p> + +<p>—É uma grande clinica a Gertrudes, disse elle; mas, se ella +ámanhã lhe +der lampreia, congro de caldeirada, timbal de camarões ou sallada de +pepino, +aconselho-lhe que se abstenha. A morte pela fome e a morte pelo +enfartamento +andam sempre de braço dado.</p> + +<p>—Mas, se a natureza pede...—atalhei plagiando Gertrudes.</p> + +<p>—Nada de pantheismo. A natureza compõe-se de dois elementos +em proporções +desiguaes: Deus como um, e Diabo como trez. Sou manicheu. Apenas concedo ao +Bem a quarta parte de acção na regedoria do universo. O Diabo +é quem <span +class="pagenum">[63]</span> faz os venenos dos vegetaes e dos mineraes, o +frio que gela o sangue e o calor que abraza o cerebro, e a hydrophobia, e o +raio e os terramotos, e a cholera asiatica, os miasmas homicidas dos +pantanos +e cavernas, e, sobre todos os flagellos, o homem que, fornecendo uma +pequena +parte de si, uma costella, produziu essa pessima coisa—a mulher. +Não se fie +na natureza, e muito menos na humana, por que essa é a mais +corruptivel, e a +mais fetida quando apodrece de todo. Por emquanto vá comendo as +mãos +de +vacca; mas fique por ahi que não vá metter os pés +pelas mãos.</p> + +<p>Isto, com embrechados de latim de Horacio e da Biblia, abalou-me quanto +á +dieta.</p> +<span class="pagenum">[64]</span> + +<p class="centrado">*</p> + +<p>Conversemos um pouco a respeito d'este medico, meu querido Thomaz +Ribeiro. +Sinval era geometricamente materialista, uma razão emancipada das +intercadencias pathologicas da Fé. E fazia e prégava +sermões nas egrejas +catholicas. Como n'esta farça da vida é ridiculo o papel dos +homens mais +intelligentes! Era atheu; por que «se existisse Deus (dizia o +precíto) duas +das suas muitissimas perfeições seriam a Bondade e a +Presciencia. Ora a +<i>maldade</i> da creatura contradiz a <i>bondade</i> do creador; e a +<i>liberdade</i> do homem, condemnado por causa d'ella, faz repugnancia +á +<i>presciencia</i> de Deus que teria creado o homem livre para o condemnar +como insubordinado. Cacologia!—exclamava elle.</p> +<span class="pagenum">[65]</span> + +<p>Mas que falta de logica! Se eu, n'um impeto de erudição +entupidora, lhe +citava o invicto argumento de Voltaire: «Se não existisse Deus, +seria preciso +invental-o», Sinval respondia-me com Diderot: <i>C'est ce qu'on a fait</i>. +E +quem ficava entupido, a final, era eu, por que as minhas lettras +theologicas +eram uma lastima. Havia de ser hoje!... Quanto á immortalidade da +alma, +dizia +elle que havia de esclarecer-se depois da morte. Eu não lhe +replicava, por +tambem me parecer esse expediente o mais acertado.</p> + +<p>—Mas desconfio que todas as minhas trez almas são +mortaes—acrescentou +elle.</p> + +<p>—Trez?!</p> + +<p>—São trez as almas que o divino Platão me concede no +<i>Timeu</i>. Dá-me +uma alma immortal na cabeça, e duas almas mortaes, uma no peito, e +outra na +barriga, separadas pelo diaphragma.</p> +<span class="pagenum">[66]</span> + +<p>E, com effeito, verifiquei depois que Platão, considerado por +alguns SS. +PP. o precursor do christianismo, dava trez almas a cada pessoa; e, nas +minhas especulações physiologicas, encontrei sugeitos com as +trez almas, +porém todas na barriga.</p> + +<p>Lembram-me algumas definições d'este sensualista que sabia +o seu Lucrecio +de cór. Definia elle a virtude <i>um producto artificial da politica +e da +vaidade</i>. Aqui ha bastante sensatez; mas esta definição +estava dada por +Mandeville e impugnada por Berkeley, seculo e meio antes de Sinval +nascer.</p> + +<p>Definição do <i>homem</i>: «O homem é um organismo +servido por bons e máos +instinctos, alguns mais ferozes que os das alimarias, e nenhum tão +intelligente como os do castor, das formigas e das abelhas; além +d'isso, tem +o dom da palavra, <span class="pagenum">[67]</span> se lh'a ensinam, e vai +muito além do papagaio em glotica. Ha uma só +distincção que extrema o homem +de todos os outros animaes...»</p> + +<p>—A alma—interrompi eu perspicazmente.</p> + +<p>—Não. A mentira. O homem é o unico animal que +mente.</p> + +<p>Definição da <i>vida</i>: «É uma alternativa de +assimilação e +desassimilação, de secreção e +excreção. <i>Pensamento</i> é o resultado de +combinações chimicas.»</p> + +<p>—Então, vida organica e vida da consciencia é tudo +chimica? E o Amor +tambem?</p> + +<p>—É, e da mais grosseira e trivial, por ser a unica +exercitada na retorta +do boticario da aldeia. O amor do homem primitivo e selvagem era uma +paixão +genesica, typica, servida em todo o reino animal por orgãos +identicos, +histiologicamente <span class="pagenum">[68]</span> e physiologicamente +semelhantes, e a final de contas uma funcção exosmosica de um +lado e +endosmosica do outro, percebe você? O amor do homem actual e culto +é a mesma +exuberancia bruta do organismo, modificado por alguns sonetos á +fêmea; +porém, +no fundo da Natureza, está o inalteravel <i>cliché</i>.</p> + +<p>E eu, melancolicamente, com gestos desolados:</p> + +<p>—Com que então, <i>endosmose</i> o amor de Beatriz, de +Laura e Leonor!... +oh! oh!</p> + +<p>E elle sorridente:</p> + +<p>—<i>Sensiblerie</i> piegas, amigo meu, as suas +interjeições theatraes. Se +Beatriz e as outras meninas, em vez de gerarem, por +inspiração, sonetos e +poemas, tivessem occasião de gerar meninos robustos—com o +quê a litteratura +de cabotagem teria perdido bastante—você mal poderia <span +class="pagenum">[69]</span> explicar-me transcendentalmente o phenomeno +psychico do amor do Dante e dos outros e de Beatriz e das outras. Nas +regiões +selvaticas onde o sensualismo se retoiça desenfreadamente em +promiscuidade de +homens e mulheres, como classifica você esse estimulo bruto da carne? +É +talvez o classico Cupido que desembesta do arco flechas de amor aos coiros +fuscos dos australezes, hein? Vá perguntar a um cafre kuza se elle +sabe o +que +é <i>amor</i>, e pergunte á cafrina se ella entende o que +seja +<i>pudor</i>...</p> + +<p>—Perdão! o pudor é universal, particularmente nas +mulheres sem excepção +das raças mais atrazadas. Haja vista ás tangas...</p> + +<p>—Ora muito obrigado pelas suas tangas...—atalhou Sinval a +impulsos de +riso.—O celebre viajante Cook, na sua <i>Primeira viagem</i>, conta +que em +Taiti as <span class="pagenum">[70]</span> mulheres, por um refinamento de +educação esmerada, quando cumprimentam alguem, exhibem +aquella metade do +corpo menos usual nas exposições ao ar livre.</p> + +<p>—Quão delicadas!</p> + +<p>—E quão pudibundas!... Ha tribus selvagens, aliás +muito castiças, em cuja +linguagem falta a palavra <i>amor</i>, nem mesmo conhecem o beijo, essa +mimosa delicia da epiderme que os homens aprenderam dos pombos e das rolas, +por que a bêsta humana era incapaz de inventar o beijo.</p> + +<p>D'uma vez, resentido com aquella <i>litteratura de cabotagem</i> em que +elle mentalmente me classificava, e, de mais a mais, ferido nas minhas +convicções metaphisicas, sahi á liça +impavidamente, e discorri por largo, e +bem, com muita felicidade, provando a existencia de Deus pelo facto da +minha +existencia, e a divina formação do mundo pelo facto da +materia <span +class="pagenum">[71]</span> bruta não se poder espontaneamente +formar a si, +aliás o homem, materia menos bruta, faria alguma coisa com elementos +novos. +Innegavelmente despenhei-o; mas elle, como o Lucifer de Milton e do Braz +Martins no <i>Santo Antonio</i> ainda regougava lá do fundo do +abysmo:</p> + +<p>—Você conhece a philosophia de Xenophanes?</p> + +<p>Fiz um gesto de cabeça affirmativamente patarata, e elle +proseguiu com um +riso mordazmente suspeitoso de que eu não sabia nada de +Xenophanes.</p> + +<p>—Xenophanes—disse Sinval solemnisando o aspeito—aos +noventa e dois +annos de idade lia os seus poemas didaticos de moral santa, e pedia esmola +aos ouvintes para sepultar os filhos. Morreu mais de centenario estudando +sempre; e, pouco antes de expirar, fez esta profecia: «Ninguem soube, nem +sabe, nem saberá <span class="pagenum">[72]</span> nada +respectivamente a +Deus e á formação do mundo; e aquelle que mais +egregiamente fallar +d'essas +coisas, será tão ignorante como os outros.» Ora você +acaba de fallar +egregiamente.</p> + +<p>E retirou-se, provavelmente, confundido.</p> + +<p>Nunca me esqueceu a opinião scientifica d'este medico a respeito +do +adulterio. Dizia elle com aprumo cathedratico e um sorriso +rabelaiseano:—Esposa perfida e esposo trahido são effeitos +necessarios e +fataes de influencias celestes—coisas do Zodiaco. Uns homens, os +seductores, +nascem no Signo de Leão, e d'ahi vem chamarem-se +<i>leões</i>; outros homens, +os minotaurisados, nascem no signo de Capricornio, e d'ahi vem chamarem-se +o +que você sabe. É como eu penetro n'esta escura e hedionda +voragem do +adulterio, com o facho mathematico da Astronomia.</p> +<span class="pagenum">[73]</span> + +<p>—Em que Signo nasceria eu?—murmurei meditabundo, +ingenuamente.</p> + +<p>E elle, com solemnidade comica:</p> + +<p>—No Signo de <i>Libra</i> não seria por que o vejo bastante +falho d'essa +especie. Persuado-me que seria no de <i>Caranguejo</i>, (<i>Cancer</i>) +quando leio na gazeta as suas theorias sociologicas; mas, á vista do +candor +donzel da sua lyra amorosa, bem póde ser que você nascesse no +Signo de +<i>Virgem</i> (<i>Virgo</i>). Fôsse como fôsse, faço +votos amigos e sinceros +por que não nascesse no de <i>Capricornio</i>, nem no de +<i>Touro</i> +(<i>Taurus</i>), nem no de <i>Carneiro</i> (<i>Aries</i>), por que todos +tres +possuem excrecencias symbolicas por onde se explica a profusão dos +influenciados. Ha pontas de mais no Zodiaco, não acha?</p> + +<p>—Sim, acho bastante sortido o Zodiaco. Parece a capital de um +reino +civilisado.</p> +<span class="pagenum">[74]</span> + +<p>—Pois os legisladores não percebem d'isso nada. +Estão ainda com o direito +canonico da idade-média, permittindo que o trahido mate a adultera, +e +mandando em paz o marido adultero colhido em flagrante delicto. E note +você—exclamava Sinval n'uma irritação de +consciencia revoltada—note você +que a legislação christianisada da idade-média, muito +cruel para as mulheres +e indulgentissima para os homens, era feita sob o influxo dos concilios! +Realmente as mulheres devem grandes obsequios ao christianismo, e +pódem +fiar-se nos prégadores e nos moralistas <i>rococos</i> dos +Semanarios +religiosos que, uns por ignorancia e outros por obrigação do +officio, a +bigodeam com a sua emancipação! A certos respeitos, +não ha paiz como este +nosso para ossificações de umas certas ignorancias +convencionaes. Conta-se +que Jesus perdoára <span class="pagenum">[75]</span> a uma adultera, +por +que +entre os seus proprios discipulos e o mulherigo que a seguia escandalisado +na +piugada dos esbirros, não havia creatura limpa do mesmo peccado que +lhe +atirasse a primeira pedrada. Bem boa corja, <i>cela va sans dire!</i> Pois, +quer seja facto, quer seja parabola, temos muito que deslindar entre a +philosophia messianica de Christo e a religião dos christãos. +O ideal +humanissimamente caridoso de Jesus, quanto á fragilidade da mulher, +não tem +que vêr com o <i>Matrimonio do jesuita</i> Sanches e o <i>Livro V das +Ordenações</i>. Logo que Jesus, immolado inutilmente á +arraia-miuda da +Galilêa, fechou os olhos, as adulteras judias e as conversas ao +christianismo +deturpado de Paulo, continuaram a ser apedrejadas; e, rodados 1849 annos de +civilisação desde a tragedia do Golgotha até á +comedia da Carta-Gaioso, <span +class="pagenum">[76]</span> certo artigo do Codigo Penal, que nos rege, +permitte que o esposo trahido estrangule a adultera, sem lhe dar tempo a +invocar o misericordioso perdão exemplificado por Christo. Pobres +mulheres! +que rica emancipação!<sup><a href="#nota2" +name="mr2">2</a></sup></p> + +<p>Este trecho de discurso não era incontestavelmente um +modêlo de eloquencia +do pulpito catholico; mas o caso é que eu não sabia +então destecer-lhe os +fios do sophisma. Havia de ser hoje!... E este homem—que tinha um +talento +<span class="pagenum">[77]</span> anecdotico, relampejante de remoques de +Swift e de Voltaire, ironias feitas de potassa caustica, indultando com +risos +sarcasticos os vicios sociaes que afogam em lagrimas as suas +victimas—Camara +Sinval padecia no cerebro uma doença irrisoria, a monomania de +prégar sermões +bombasticos ácêrca do S. Sacramento, que por ahi andam em um +grosso volume +posthumo, com um prefacio meu, ha mais de vinte annos. A prosa de Sinval +tinha a sonoridade rythmica do verso heroico. <span +class="pagenum">[78]</span> Possui impressa uma das suas +orações proferidas +na abertura das aulas medico-cirurgicas. Começava assim: <i>Tem o +sanhudo +leão falcadas garras, tem a timida lebre agudo ouvido, vista +perspicaz a +aguia generosa...</i> São trez hendecassyllabos arcadicos bem +feitos, +pomposos.</p> + +<p class="centrado">*</p> + +<p>Voltando á minha enfermidade mortal, no dia seguinte restringi-me +ao +bacalháo assado muito saturado do alho estomacal. O bacalháo +conquistou na +moderna therapeutica das gastrodyneas, nas dyspepsias e gastrites chronicas +uma reputação tonica, restaurante; quanto ao alho, esse gosa +creditos de +antidoto da <span class="pagenum">[79]</span> raiva; porém, +n'aquelle tempo, +o reles pescado da Terra Nova era considerado comestivel apenas assimilavel +a +estomagos de patagões, com a potencia digestiva de ogres; e, a +respeito do +alho, pessoa que cheirasse a elle tinha as inquirições +tiradas desde malandro +até scelerado.</p> + +<p>Como quer que seja, eu, alternando o bacalháo com as tripas de +boi—as +tripas, o heroico brazão do Porto—um complexo aphrodysiaco de +chispe, de +paio, aves, hervanços e coloráo, recuperei, ao cabo de duas +semanas, forças +extraordinarias e tamanhas que, n'um transporte de gratidão, +levantei +Gertruria e passei-a triumphalmente nos meus braços. Quando as +chloroses e as +anemias estão grassando nos grandes centros como doença +endemica da geração +nova depauperada, eu faltaria ao sagrado dever altruista, se não +offerecesse +este boletim sanitario aos que padecem. <span class="pagenum">[80]</span> +Que +elles principiem pela mão de vacca e concluam a sua cura com tripas +sortidas.</p> + +<p>Entretanto, o doutor João Ferreira propalava a minha cura da +perigosa +opilação como a mais rara e inesperada da sua clinica, +mediante o ferro e o +vinho quinado. Tinha-me arrancado das prêzas da morte, dizia-se; e a +minha +engomadeira, uma devota velhinha, asseverava que fôra o martyr S. +Torquato de +Guimarães que a obsequiára mais uma vez, curando-me.</p> + +<p class="centrado">*</p> + +<p>Depois, no resvalar de doze annos, as vagas aparcelladas da minha +derrota +em demanda do Prestes-João do Ideal, sendo <span +class="pagenum">[81]</span> +piloto o marido assás conhecido de Psyche, baldearam-me a +regiões inhospitas +onde não podia encontrar Gertrudes. Nunca mais a vi; mas, como a +saudade me +estava sempre negaceando para aquelle tempo, a imagem d'ella acompanhava as +minhas recordações de perdas irreparaveis, desde uns aureos +sonhos de +trovador que eu sonhára, até outros «sonhos» de farinha e +manteiga que a +Gertrudes fazia com o auxilio dos ovos. Eu sentia, a um tempo, o perfume +dos +anhelitos de Marilia bella e o das murcellas incomparaveis de Gertruria. A +vergonhosa dualidade do coração do homem! Se não +fossem as falacias +metrificadas, e o lyrico, depondo o alaude, se confessasse ingenuamente em +prosa, não haveria arrôbo de alma que não sahisse +apelintrado pela +concumitancia ignobil das caçoulas.</p> +<span class="pagenum">[82]</span> + +<p class="centrado">*</p> + +<p>Quando li a noticia da morte de Gertrudes, e não pude duvidar que +a +naufragada era a minha restauradora, meditei solver a minha divida de +gratidão com um artigo necrologico, por não ter sufficiente +confiança na +utilidade de uma missa <i>de requiem</i>, a doze vintens, vinho por conta +do +padre.</p> + +<p>Eu tinha pertencido por algum tempo a uma sociedade de homens de +lettras, +quasi exclusivamente dedicados á especialidade «necrologias de +defunctos +illustres». Eramos os gatos-pingados do Baluarte. Choravamos enormes +artigos +bem phraseados e estrangulados de interjeições afflictas, com +epigraphes em +latim, sobre defunctos analphabetos que, á mingua <span +class="pagenum">[83]</span> de instrucção primaria, +não poderiam na celeste +mansão tomar conhecimento da nossa prosa. Andavamos tão +assanhados n'esse +fariscar de chacaes o cêvo litterario de carne morta que seriamos +capazes de +assassinar pessoas distinctas, se as indigestões, as tuberculoses, a +cachexia +mercurial, o escrofulismo, os figados engorgitados e a pharmacia nos +não +dispensassem de alimentar com sangue humano o cannibalismo da Arte +elegiaca. +O presidente da sociedade era José Barbosa e Silva, um moço +de grande +talento, diplomata em Berlim, deputado por Vianna do Castello, sua patria. +As +necrologias que este adoravel rapaz estampou são as de todos os +mortos seus +contemporaneos, seus amigos, seus conhecidos, ou apenas amigos ou +conhecidos +de uns sujeitos que elle podia vir a conhecer. No torvelinho dos prazeres, +que <span class="pagenum">[84]</span> todos experimentou, José +Barbosa parava +de repente a olhar para o golpho que lhe sorvia um companheiro; e, como +presagiava morrer aos vinte e oito annos, quando carpia os outros, +ponderando +a tristeza da morte, parecia chorar sobre si mesmo.</p> + +<p>Fallecido Barbosa e Silva, o maior numero de seus amigos escriptores +tomou +a sério a desgraça da morte, e experimentou a impossibilidade +de escrever +necrologias quando a dôr é sincera e inconsolavel. Os socios +da instituição +carpideira já quasi todos naufragaram por essas restingas dos +cemiterios. +Os +raros que ainda restam, sentados á ourella do rio negro, encolhidos, +a +tiritar na algidez de decrepitos, e de mãos inclavinhadas nos +joelhos, ainda +ouvem as commemorações funebres da actualidade, e por vezes +rejubilam na sua +jactancia senil quando se <span class="pagenum">[85]</span> vêem +plagiados +n'estas fórmas da necrologia moderna:</p> + +<blockquote> +<p>Mais uma saudade para a terra, mais um anjo para o céo, etc.</p> + +<p>Mais uma vida ceifada em botão pela fouce, etc.</p> + +<p>A aza negra da impavida morte acaba de roçar as faces do nosso +amigo, +etc.</p> + +<p>A sangrenta Parca acaba de cortar, etc.</p> + +<p>A cega Atropos que tanto bate á porta do palacio como da +choupana, +etc.</p> +</blockquote> + +<p>E estes dizeres que já fôram formulas sérias, +sacramentaes, e estimulo a +torrentes de lagrimas, são hoje em dia uns humorismos inconscientes +que +despojam a morte de toda a sua respeitabilidade e +circumspecção.</p> +<span class="pagenum">[86]</span> + +<p class="centrado">*</p> + +<p>Pois, Thomaz Ribeiro, não pude redigir a necrologia de +Gertrudes!</p> + +<p>Tu que és sensivel e conheces os arcanos da arte,—que +possues illesas do +golpe dos desenganos as cellulas funccionaes das illusões queridas, +(isto +é—a alma incolume, com as suas 3 potencias, +numeração antiga); e conservas a +candura juvenil do coração, (<i>coração!</i> o +musculo nutriente com +auriculas e ventricolos!—releva o archaismo +provençalêsco que me faz coevo +de Macias, o Enamorado), do musculo, digo, que não encaneceu em +breves annos +de infortunio sem treguas; e, na idade da prosa de ministro da corôa, +ainda +te commoves sob o impressionismo affectivo do inolvidavel poeta do <span +class="small-caps">D. Jayme</span>, imaginas, porventura, <span +class="pagenum">[87]</span> que eu não pude escrever por que as +dôres +immensas são mudas, e os repellões da paixão +turbulenta impedem que a phrase +se acepilhe e pula e arredonde. Agradeço o teu conceito que ao mesmo +tempo me +lisongeia e adultéra; mas a razão é +outra—é deploravel. Queres saber por que +não escrevi a necrologia da humilde mulher que me salvou?—foi +por que ella +me salvou como cozinheira. Por mais combinações que fiz com +as grosas de +allegorias de que dispunha, por mais embrechados de figuras que os canones +de +Quintiliano me liberalisassem, não atinei com uma evasiva +consentanea com a +minha cathegoria de philaucioso casquilho em <i>redingotes</i> do Catarro e +lettras amenas. Eu tinha escripto bastantes artigos funebres, catadupas de +pranto sobre os esquifes de matronas várias que haviam nascido +<i>gertrudes</i>, e do tamborête <span class="pagenum">[88]</span> da +cozinha +avoenga se esvoaçaram nas azas da bebada fortuna para os divans +bysantinos e +d'ahi para os jazigos marmoreos. A penna corria-me de vontade, no fremito +da +inspiração, e as perolas, crystalisações do +muco lacrimal, saltavam-lhe dos +bicos quando a defunta levava atraz da sua podridão muitas +carruagens, e era +suffragada na egreja refulgente de tochas, em uma neblina de incenso, por +uma +berrata fanhosa e barbarêsca de levitas, com barrigas basilicaes, que +decerto, se os transportassem ás missões africanas, ririam +ás escancaras da +algazarra que fazem os cafres á volta de um morto.</p> + +<p>Figurou-se-me, além d'isso, que a imprensa, moderadamente +democratica e +cheia de conveniencias melindrosas, se constrangeria tolerando nas suas +columnas, por comprazer á minha ridicula <span +class="pagenum">[89]</span> +magua, a necrologia da cozinheira Gertrudes. De mais a mais, eu não +sabia +como alçar o estylo prismatico, de adjectivos rutilos, de modo a +deslumbrar a +critica soez, e a não desafiar o sorriso gaiato dos dandys pela +importancia +que eu dava á minha sanidade physiologica restaurada pela mão +de +vacca. +Ser-me-hia talvez possivel equilibrar na gymnastica de +locuções explosivas, +victorhuguescas, onomatopaicas o interesse da morta, descrevendo o +naufragio +do barco rabêllo com os horrores do brigue <i>Mondego</i> ou da +fragata +<i>Medusa</i>. Eu conhecia umas esfusiadas pyrothechnicas de metaphoras que +punham enthusiasmos furiosos na dramatologia epileptica do Theatro-Normal, +volcanisando as familias incendiarias da rua dos Bacalhoeiros; e ainda +agora +não passam de todo despercebidas á minha pasmaceira de +minhôto +palerma.</p> +<span class="pagenum">[90]</span> + +<p>Ainda cheguei a ensaiar o genero... <i>Os relampagos afuzilavam... O +céo +phosphoreava as suas lampadas sinistras para vêr a lucta do abysmo. +Eram os +albatrozes, n'um arquejar estridente, a pairarem na treva superior com as +suas azas de fogo. As aguias do Marão, acossadas pelos +bulcões das cumiadas, +acolhiam-se ás concavidades da serra, e passavam grasnando o threno +da +desolação por sobre o paroxismo dos naufragos. Zuniam +furacões assobiando +pelas espaldas angulosas dos penhascaes... A tripulação, n'um +clamor de +agonias, a bradar «misericordia!»... O baixel arfava no dorso do +vagalhão, +ou, cuspido ás nuvens, resvalava na voragem onde as pranchas +descosidas +ringiam asperrrrrrimamente.</i> (Onomatopeia)... <i>Castellos de nuvens +atras +desabavam</i> <span class="pagenum">[91]</span> <i>n'um estrallejar de +ribombos; o escarceu verde-bronze, topetando com o ether zebrado de +coriscos, +baqueava-se depois n'um marulhar de espumas rugidoras... O cahos de cima a +descer, a descer com a mortalha de treva sobre o abysmo que subia, subia +n'uma ressonancia de maldições ao <span +class="small-caps">fiat</span>, +creador das sevas angustias ineluctaveis do homem. E o naufrago cravava +olhos +piedosos no céo; e via listrarem-se as centelhas dos raios, como se +os Titans +revolucionados arrojassem á cara de Jupiter as escumalhas igneas das +suas +forjas. E o barão de Forrester, ao portaló, hirto, impavido +como Nelson no +Trafalgar.., etc.</i> Tudo isto e o resto me sahiu ao pintar, e exacto como +uma photographia, na descripção de um desastre de barco de +pipas ido a pique +entre dois calháos do Douro; mas, a <span +class="pagenum">[92]</span> +final, +o que eu não sabia era diluir em synonimias e paraphrases coherentes +com a +tremenda catastrophe o qualificativo «cozinheira». Ainda se Gertrudes, +filha +de um desembargador miguelista ou d'um brigadeiro capitulado em +Evora-Monte, +com alguns appellidos historicos, houvesse descido as escaleiras da +necessidade, sem deslise da honra, até á baixeza do seu +officio, talvez que +eu ousasse arcar com a necrologia, apostrophando o flagello da guerra civil +que acorrentou á grilheta do fogão e da bateria de panellas +aquella +mulher +nascida para rastolhar, sobre tapetes, <i>moires</i> crepitosas, laminadas +de +brilhos metalicos ondulantes, e para saltar com tregeitos desenvoltos, n'um +derrengue arregaçado e esquadrilhado de <i>écuyère</i>, da +estribeira do +<i>landeau</i>, armorejado de paquifes arrogantes e escudos e timbres com +passaros prehistoricos <span class="pagenum">[93]</span> e hydras +assanhadas, +á porta das modistas;—para reinar, emfim, nos theatros, no +turbilhão dos +bailes, nos balcões dos bazares philantropicos, na +Caridade-<i>Flirtation</i>, e talvez no <i>sport</i> e no <i>turf</i>. Mas +Gertrudes não tinha appellidos: era miseravelmente <i>Gertrudes +Engracia</i>, +d'um plebeismo razo, filha da Engracia, já celebre cozinheira dos +fidalgos +Mellos, casada com o Bento, cozinheiro famoso dos fidalgos Cyrnes, o qual +cazára com uma cozinheira não menos distincta dos fidalgos +Pamplonas. Esta +genealogia, entre duas receitas de pudins de batata, encontrei-a escripta +pelo pae de Gertrudes nas costas do frontispicio de um velho livro que ella +me deu chamado <i>Alivio de tristes e consolação de +queixosos</i>. E da mesma +arvore de geração constava que seu terceiro avô materno +fôra abbade de +Miragaya e sua quinta avó paterna era filha <span +class="pagenum">[94]</span> +de um frade loio. Estes dois clerigos propagadores, como elementos +genealogicos, não me pareceram imperiosamente exuberantes de +moralidade e +justiça para que eu, apostrophando a execravel guerra civil, a +responsabilisasse pela decahida posição servil da neta do +frade e do +abbade.</p> + +<p class="centrado">*</p> + +<p>Aqui tens, Thomaz Ribeiro, um coração aberto pelo remorso +que se offerece +á dissecção do teu bisturí. Santo Agostinho, +imbecilitado pela +piedade, e J. +J. Rousseau, desbragado pela sua dissimulada philosophia cynica, deram-me o +exemplo de vir á praça com a confissão tardia de uma +pusillanimidade +que dá a +<span class="pagenum">[95]</span> medida da miseria humana, e +particularmente +dos artistas de necrologias. N'este escripto, vim justiçar duas +bestialidades +protervas: a minha ingratidão e o clyster inglez. Agora, sinto-me +bem, muito +desabafado. Talvez lhe deva a elle, á <i>jeropiga</i> desobstruente +do +Forrester, este desempacho da consciencia. Ha exemplos confirmados por +aforismos de Hippocrates.</p> + +<p>Se chegaste aqui sem fastio, és um anjo de paciencia e de +problematico +bom-gosto. Decerto uzurpei á patria uma hora das tuas +contemplações +sanitarias sobre a revisão da <span class="small-caps">carta</span>, +que anda +agora mui frequente na revista—o que me parece rasoavel, se ella, +não +obstante a <i>bigoterie</i> do Artigo 6.º, se tornou suspeita de virginismo +insufficiente para reger um paiz pudibundo.</p> + +<p>Seja como fôr, n'este opusculo esfervilham <span +class="pagenum">[96]</span> episodios desvairados que desatremam do +assumpto +e do titulo. São exuberancias que extravasam de uma grande medida +cogulada de +annos e de reminiscencias. O criticismo unhará o abuso do +subjectivismo +indisciplinado, a desorientação do abjectivo impessoal, da +Arte Pura com +maiusculas, finalmente—o romanêsco. Affoito-me, todavia, a +esperar que os +criticos práticos, tendo em vista os episodios extravagantes, +afóra os +gallicismos de que é capaz o seu aristocrata Tokay, usarão +com o meu modesto +«vinho do Porto» a sua costumada indulgencia generosa. E permitta a minha +benigna estrella que os almotacés d'este folheto, quando hajam de +aquecer o +seu criterio no calorifico de alguma beberagem nervosa e suggestiva, +prefiram +o Johannisberg palaciano ao garoto Cartaxo do <i>José dos +Caracoes</i>; por +que, a final <span class="pagenum">[97]</span> de contas, nem todos os +criticos espiritados por vinhos canalhas tem o <i>humour</i> faiscante de +Poe, de Hoffmann, de Marlowe, de Zacharias Werner e de Bocage—uma +constellação de bebados immortalmente classicos.</p> + +<hr style="width: 15%"> + +<p>Ainda se não disse tudo.</p> + +<p>N'este pedaço de litteratura da decadencia, ou decahida de todo, +observe a +critica escorreita que ha dois projectos: um é patente, o outro +é +clandestino. O primeiro é—arrazar Inglaterra; e, com effeito, +arraza-se. O +projecto clandestino, um tanto arteiro, é obter pelo sophisma +tortuoso da +lettra redonda, typo-Elzevir, o que o mercieiro alcança com o +correcto +syllogismo dos azeites e dos farinhaceos. O Espiritual ousa correr o +pário +com o <span class="pagenum">[98]</span> Comestivel: a meta é o +habito de +Christo. Que o mercieiro, melindrado na sua prosapia de anthropoide, +não se +agaste, se eu o lanço n'estas correrias de hippodromo. Não +lhe conheço outros +dons que o habilitem a entrar no <i>sport</i>.</p> + +<p>Emfim, quando voltares a ministrar os negocios do reino, Thomaz Ribeiro, +não me percas d'ôlho o meu habito de Christo, merecido pela +façanha heroica e +pouco trivial de arrazar Inglaterra. Bem vês que estas +ambições aliás +temerarias, confesso, não ultrapassam desmedidamente as balisas do +meu +merecimento. A almejada venera é a infima, penso eu, a mais piranga +caracteristica ethnica da raça que domina esta nesga rasgada da +Espanha, (que +m'o releve <span class="small-caps">d. Jayme</span>)—umas noventa +leguas, +metade incultas; e, assim mesmo, na povoação d'essa metade, +inçam e pompeiam, +segundo conta <span class="pagenum">[99]</span> o <i>Almanach Commercial +para +1884</i>, cento e vinte dois condes, trezentos e quatro viscondes, e cento +e +noventa barões. Quanto a commendadores, quem contou as gotas do +mediterraneo, +as areias do Saharah e as estrellas da Via-Lactea? Ora, a respeito do +habito +de Christo, isso já agora, bem sabes, é uma coisa que se +exporta para o +estrangeiro como amostra da nossa unica industria; mas envia-se +gratuitamente +como os <i>Grands Magasins du Printemps</i> nos remettem de graça, +francos de +porte, os retalhinhos das suas fazendas.</p> + +<p>Ah! que eu não morra nú d'esse habito! Concedam-me, na +morte ao menos, +essa insignia de christão em terra de moiros.</p> + +<p class="direita"><i>S. Miguel de Seide, abril, 20, 1884.</i></p> +<span class="pagenum">[100]</span> + +<div class="rodape"> +<p><sup><a href="#mr1" name="nota1">1</a></sup> Quando o barão de +Forrester +pereceu por desastre, um dos mais authorisados jornaes do paiz, escreveu +sentimentalmente o seguinte: «... A morte desgraçada do snr. +barão de +Forrester a todos penalisava, pois o muito que aquelle illustrado +cavalheiro +se interessára sempre pela sorte do Douro, os bons serviços +que lhe prestou +com os seus escriptos... o tornaram geralmente estimado... Mostrou-se +sempre +muito dedicado a este paiz, e por muitas vezes associou o seu nome aos dos +que mais trabalharam para os seus melhoramentos e progresso.»—<i>O +Commercio +do Porto</i>, de 14 de maio de 1861.</p> + +<p>Um correspondente da Regoa para o mesmo jornal e no numero seguinte, +escreveu: «É sincero o sentimento geral que produziu a noticia da +morte do +snr. Forrester, e são bem justas as lagrimas que se derramam por +tão +desastroso acontecimento. É uma divida sagrada que se paga á +memoria do +distincto cavalheiro que tanto se sacrificou por este paiz. Portugal e +especialmente o Douro muito lhe devem... Apesar de estrangeiro era +portuguez +do coração por que poucos filhos d'esta patria mais fizeram +por ella nem mais +a amaram...»</p> + +<p>Parece, pois, que os exemplares da diffamação do vinho do +Porto eram +desconhecidos em Portugal. Que fé nos hade merecer a historia e a +biographia +escripta por contemporaneos, quando o facto social erradamente julgado, ou +a +vida de um individuo favorecida pela adulação, ou deturpada +pelo odio, não +tiverem contradictores, tambem coevos, a contrastal-a!</p> + +<p><sup><a href="#mr2" name="nota2">2</a></sup> <i>Nota +illustrativa.</i>—Joseph Gregorio Lopes da Camara Sinval era +esturrado +patulêa da Junta rebelde do Porto, e commandára com honras de +coronel o +batalhão academico. Além d'este predicado faccioso, Sinval +tinha o exemplo do +austero historiador A. Herculano, que escrevêra: <i>A historia do +liberalismo +é uma comedia de máo gosto.</i> E, resalvando as duas nobres +personagens, +D. +Pedro IV e Mousinho da Silveira, accrescentára: <i>O resto +não vale +a penna +da menção. São financeiros e barões, viscondes, +condes e marquezes de fresca +data e mesmo de velha data, commendadores, grão-cruzes e +conselheiros: uma +turba que grunhe, borborinha, fura, atropellando-se e acotovellando-se, na +obra de roer um magro osso, chamado orçamento, e que grita +aqui-d'el-rey! +quando não póde tomar parte no regabofe.</i> Quanto á +«Carta-Gaioso» +a gente +velha ainda conheceu no Porto a corista d'aquelle appellido que cantou o +hymno da Carta Restaurada no theatro de S. João, e desde ahi ficou +identificada, a Gaioso, com o codigo das liberdades pátrias.</p> +</div> + + + + + + + +<pre> + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of O vinho do Porto: processo de uma +bestialidade ingleza, by Camilo Castelo Branco + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O VINHO DO PORTO *** + +***** This file should be named 24691-h.htm or 24691-h.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + http://www.gutenberg.org/2/4/6/9/24691/ + +Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images +of public domain material from Google Book Search) + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at http://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. 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