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+The Project Gutenberg EBook of O vinho do Porto: processo de uma
+bestialidade ingleza, by Camilo Castelo Branco
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: O vinho do Porto: processo de uma bestialidade ingleza
+ exposição a Thomaz Ribeiro
+
+Author: Camilo Castelo Branco
+
+Release Date: February 26, 2008 [EBook #24691]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: UTF-8
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O VINHO DO PORTO ***
+
+
+
+
+Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images
+of public domain material from Google Book Search)
+
+
+
+
+
+
+
+O vinho do Porto
+
+Porto--Imprensa Moderna
+
+CAMILLO CASTELLO BRANCO
+
+
+O vinho do Porto
+
+PROCESSO D'UMA BESTIALIDADE INGLEZA
+
+EXPOSIÇÃO A
+
+THOMAZ RIBEIRO
+
+2.ª EDIÇÃO
+
+
+PORTO
+
+LIVRARIA CHARDRON
+
+De Lello & Irmão, Editores
+
+1903
+
+Propriedade absoluta dos editores
+
+Reproducção Interdicta
+
+
+
+
+A THOMAZ RIBEIRO
+
+
+ Como sei que o teu amor ás perfidas trêtas e manhas da Inglaterra
+ não é dos mais acrizolados, venho offerecer ao teu sorriso um
+ SPECIMEN de bestialidade ingleza.
+
+
+
+
+Ha trinta e cinco annos que um bretão anonymo lavrou na _Westminster
+Review_ a condemnação do vinho do Porto como deleterio e empeçonhado por
+acetato de chumbo e outros toxicos anglicidas. O homem, pelas rábidas
+violencias do estylo, parece ter redigido a calumnia depois de jantar,
+n'uma exaltação capitosa do tannino do alvarilhão que elle confundiu com
+as afflicções dos venenos metallicos. Relembra lamentosamente, com a
+lagrima das bebedeiras ternas, o seculo dezoito, em que o genuino licor
+do Porto era um repuxo de vida que irrigára a preciosa existencia de
+grandes personagens da Gran-Bretanha. Recorda Pitt e Dundas, Sheridan e
+Fox, famigerados absorventes do nosso vinho. Diz que Lord Eldon e Lord
+Stowel, graças infinitas ao Porto, reverdejaram e floriram em velhos; e
+Sir William Grant, já decrepito, bebia duas garrafas de _Porto_ a cada
+repasto, para conservar crystallinamente a limpidez das suas faculdades
+mentaes e a rija musculatura de todos os seus membros já locomotores, já
+apprehensores, e o resto. Lamenta que Pitt, debil de compleição, com o
+uso immoderado d'este tonico, e em resultado de plethoras frequentes
+combatidas com ammoniaco e sulfato de magnezia, vivesse dez annos menos
+do que viveria, se possuisse o incombustivel estomago curtido do
+veneravel Lord Dundas.
+
+Succedeu, porém, ao collaborador da _Westminster Review_ achar-se
+dyspeptico, com azías, relaxes intestinaes, eructações cloacinas, e o
+craneo sempre flammejante como suja poncheira, com o encephalo em
+combustão de cognac e casquinha de limão--isto depois de saturações
+copiosas dos vinhos adulterados do Porto--_uma mixordia negra_, diz elle
+afflicto; mas não sabe decidir de prompto se a degeneração está na raça
+saxonia, se no vinho portuguez. Pelo menos e provisoriamente
+considera-se envenenado, o bruto.
+
+Pois o veneno que lograr infiltrar-se nas mucosas inglezas deve ter a
+potencia esphacelante da Agua Tufana dos Borgias. Em Inglaterra os
+porcos engordam na ceva do arsenico. Que fibras de raça aquella! É que a
+carne d'um bretão diverge muito da carnadura da restante Europa. O
+anthropologo Topinard observou que a mortandade nos hospitaes inglezes,
+em seguimento ás operações cirurgicas, era muito menor que a dos
+hospitaes francezes. O sabio Velpeau, consultado pela Academia de
+Medicina, respondeu que _la chair anglaise et la chair française
+n'etaient la même_. E não dá a razão da differença, por que a não sabia
+o grande biologo. Eu, na observancia do dictame do Espirito Santo, pela
+bocca do _Ecclesiastico_--«não escondas a tua sabedoria» illucidarei o
+snr. Velpeau. A razão, a scientifica é esta: emborcações de bebidas
+acidas, e mórmente de cerveja, combatem, como coadjuvantes do acido
+phenico, a gangrena; ora, o inglez, abeberado de cerveja, é refractario
+á podridão dos hospitaes. Como se vê, d'esta causal tão obvia um
+anthropologo é capaz de espremer assumpto para volumes recheados de
+coisas abstrusas sobre ethnographia, climatologia, morphologia,
+mezologia, o diabo.
+
+Além da cerveja, a fibrina do porco, saturado de arsenico, entretecida
+na fibrina do inglez seu compatriota, faz d'elle um Mithridates para os
+saes de chumbo diluidos no vinho do Porto. O inglez não póde morrer por
+ingestão alcoolica. Se quer suicidar-se com instrumento liquido, tem de
+asfixiar-se, afogar-se no tunel como o lendario Lord. Elle é immortal,
+absorvendo; e só póde morrer--absorvido. Estranho animal! E é senhor das
+aguas e das melhores garrafeiras! O destino, pela tuba sonorosa de
+Camões, disse ao inglez:
+
+ _Entre no reino d'agua o rei do vinho._
+
+ (LUS. c. VI.)
+
+Que litros de _Porto_ envenenado se calculam efficazes para degenerar um
+bretão até á dyspepsia e ás agonias da morte?
+
+ * * * * *
+
+N'esta conjunctura, um possuidor de legitimo _Douro_ convidou o
+intoxicado a beber o elixir fornecido por um commerciante britannico
+estabelecido no Porto. O negociante fornecedor era o Forrester que
+desappareceu d'este alfôbre de charlatães forasteiros, de um modo
+tragico, ha vinte e trez annos. Logo te contarei essa catastrophe, meu
+amigo.
+
+A sensação intima que o hospede recebeu nas suas entranhas foi uma
+novidade, uma deleitação de refrigerio em todas as membranas desde o céo
+da bocca até ao cego e visinhança onde elle sentia os ardores da zona
+torrida. Emborrachou-se como era de esperar, e seria iniquidade
+censurar-lh'o; mas o seu cerebro de illuminado espelhava agora as
+visualidades ethereas, irisadas, do americano Poë. Nem já o ventre lhe
+rugia como se lá tivesse uma besta-fera embetesgada n'uma latrina, nem
+elle nauseado recorria ás titilações na glote para golphar o acetato de
+chumbo. O possuidor da garrafeira, para o convencer de que o salvára da
+morte propinada pelo vinho homicida do Porto, mostrou-lhe dois opusculos
+inglezes recentemente publicados. Um era de J. James Forrester, e
+intitulava-se _A Word of truth Port wine_. O outro, por Whittaker, em
+reforço ao de Forrester, chamava-se _Strictures on a «Word of truth on
+Port wine»_. _London_, 1848.
+
+Forrester, no seu folheto, desbaratava o valor do vinho do Porto,
+increpando os lavradores de não differençarem, no fabrico, as
+temperaturas humida, fria, secca e quente; que empregavam promiscuamente
+toda a casta de uva, adulterando-a com ingredientes adequados ao paladar
+inglez, mas corrosivos. Na operação do lagar, accusa o lavrador de
+retardar a fermentação, vasando em cada pipa de môsto entre dose e vinte
+e quatro gallões de agua-ardente. Que, passados dois mezes, a mixordia
+era córada com baga, mediante uns saccos de linhagem que espremiam sobre
+o vinho, e depois atiravam o residuo ao tunel. Em seguida, novo despejo
+de agua-ardente, e dois mezes de descanço. Esta beberagem enviada para o
+Porto era novamente «beneficiada» com o veneno alcoolico; e, nove mezes
+depois, ao sahir para Inglaterra, como golpe de misericordia, nova
+infusão. De modo que o vinho entrava no estomago inconsciente do
+Reino-Unido á razão de vinte e seis gallões de agua-ardente por pipa.
+Depois, descreve o que seja geropiga, e como ella entra n'estes
+horrendos mysterios da Brinvilliers. Esta geropiga, como logo direi,
+fermentou a bestialidade ingleza que passou victoriosamente na Europa em
+1849.
+
+Rematada a lista das falsificações, fraudes e ladroeiras dos lavradores
+e negociantes portuguezes, Forrester exclama: «Quem assim deteriora o
+vinho é, a meu vêr, mais criminoso que um ladrão vulgar»; e conclue o
+seu opusculo n'estes termos: «Os consummidores inglezes devem dar a
+Portugal uma lição prática, demonstrando que, se a esse paiz convém
+desfazer-se da sua agua-ardente, que não é nos vinhos do Porto que nos
+deve impingil-a; por que nós, em Inglaterra, podemos comprar baga e
+melaço por preços muito mais em conta do que Portugal nos incampa o seu
+licor de que esses ingredientes formam o principal.»
+
+ * * * * *
+
+Parecia natural e patriota coisa que os negociantes e agricultores de
+vinho accusassem este detrahidor á animadversão publica, e que a
+imprensa do baluarte da liberdade o cobrisse de injurias, e algum
+viticultor mal humorado de bengaladas. Não, meu querido Thomaz Ribeiro.
+A sua casa luxuosa na Ramada-Alta era o confluente dos próceres
+portuenses e da provincia vinicola. Titulares,
+desembargadores-conselheiros, ministros de estado honorarios, os maiores
+proprietarios do Douro, e poetas arcadicos de pacotilha, que faziam
+dithyrambos ao jantar:
+
+ _Evohé._
+
+ _Padre Lyêo!_
+
+ _Sabohé,_
+
+ _Grão Bassarêo!_
+
+Ainda se usavam, na bonacheira dos velhos, estas rancidas semsaborias
+remoçadas por uma copiosa tintura de bastardo.
+
+Ali concorria o desembargador Fortunato Leite cheirando os vinhos que já
+não podia deglutir e arrotando pelo nariz sobre os calices. Ao pé d'elle
+estava o visconde de Veiros, o Mello das Aguas-ferreas, expondo a dois
+morgados de Riba-Douro a sua erudição em genealogia, uma sciencia em que
+se distinguem muitos parvos, se tem memoria. O ministro de estado
+honorario, João Elias, alambasava-se em pudding que comia com a faca. O
+Affonso Botelho, de Passos, d'uma _gentilhommerie_ transmontana,
+paparrêta, rorejando as phrases e os circumstantes com uma salivação
+caudal expedida d'entre os dentes illegitimos, como do crivo de um
+borrifador. Elle chamára patife a Forrester em 1845, no _Periodico dos
+Pobres_, e acclamava-o então nos brindes o anjo tutelar do Douro que lhe
+comprava as colheitas a elle Affonso. Avultava o velho Manoel Browne,
+dominando a vozeria com as suas gargalhadas estridentes e honradas. O
+typico Gonçalo de Barros, a correcção no despejo, negociante de vinho,
+de casamentos proprios e alheios, de tudo que é negociavel, com mais
+farças e melodramas e tragedias na sua vida que o Archivo do extincto
+theatro do Salitre; insinuando-se com incomparaveis negaças de artista
+nos corações dos amigos e sahindo pelas algibeiras quando achava estas
+avenidas aéreas de mais e metalisadas de menos. Elle foi, não obstante,
+um tracista infausto, por haver nascido em um meio estreito de mais para
+o largo bracejar das suas faculdades mercantis. Seria o mais sagaz
+negociante encyclopedico da monarchia, se os seus parceiros em veniagas
+não fossem tambem os negociantes mais sagazes da mesma monarchia, todos
+conjurados em desabarem do seu legendario ponto d'alta honra a Praça do
+Porto. E a Praça sempre impavida em meio do fracassar das ruinas, como o
+homem justo de Horacio, metaphoricamente fallando--_Impavidum_, etc.
+Via-se o Eduardo Moser, então visconde embrionario, a esperteza do alho
+e a finura do coral feita homem; manancial de salvaterios commerciaes,
+agricolas, industriaes, esterilisados pela inveja e pela ignorancia dos
+seus auditorios; raro dom prelucido de profecia, mas condemnado, como
+Cassandra, a não ser acreditado. Seria capaz de inventar a Methaphysica
+commercial, levando á transcendencia o phenomeno do Cambio. Usa do
+telescopio de Herschell para vêr o Porto nas dimensões da Philadelfia.
+Ás vezes, cuida que vai scismando em emprezas arrojadas ao longo de
+_Regent Street_, e encontra-se na rua dos Caldeireiros entre uma loja de
+funis e uma tenda de tamancos. Vive miraculosamente no meio dos seus
+collegas da rua dos Inglezes e Cima do Muro como Daniel no fôjo dos
+leões. De resto, com uma estatura franzina, e menos de mediana, tem um
+temperamento de dynamite. Quando lhe é forçoso cascar um sôco em um
+homem alto (e eu já vi) cresce um covado pela medida velha. Tem a
+elasticidade do Relatorio e do _boxing_. Produz uns Relatorios colossaes
+que, se lhe puxassem tanto pelo corpo como pelo espirito, s. exc.ª seria
+o visconde mais corpulento da sua freguezia. Não obstante, e fallando
+por figura, elle hade ser sempre o gigante do Relatorio correcto, que
+fará alguma vez impacientar o ouvinte futilmente leviano, mas nunca fará
+gemer a Razão filha de Deus, nem a Grammatica filha do Lobato.
+
+Confluia a todos os jantares assignalados o arcediago Cunha Reis, um
+velho palaciano de Braga, adiposo, apesar de ressicado interiormente por
+diversas ingratas materialistas que elle idolatrava com psycologismo
+incomprehendido, mas consentaneo á sua idade séria. Sentindo-se fatigado
+e algido da viagem por sobre o dezerto glacial da velhice, foi ao
+convento da Falperra, onde morava um egresso, fez confissão geral e
+deixou o coração penitente aos pés da Virgem. Depois, renunciando o
+coração, nenhum esteio amparador do gôsto de viver lhe ficou. Fechou-se
+no seu quarto, e, sósinho, morreu de uma congestão de saudade da sua
+juventude que fôra um manso idyllio de Gessner com ligeiras
+intermittencias febrís de Saint-Preux. Este adoravel cavalleiro-professo
+chamava-me filho; e, se ouvia fallar de amores, chorava, dissimulando as
+lagrimas com um sorriso ironico da sua fragilidade serôdia.
+
+Era certo o João Nogueira Gandra que recitava sonetos de improviso com
+quinze dias de lima e de contagem pelos dedos, sob a torrente da
+inspiração. O visconde d'Azevedo lia poemas de sua lavra engenhosa em
+fórma graphica de copos e garrafas, cheias de versos de varios metros e
+de larachas honestas. O Lopes de Vasconcellos, um gordo, governador
+civil, ouvindo os poemas bacchicos, dava na barriga palmadas sonoras,
+intelligentes, rindo muito, e--que a poesia era aquillo, uma coisa com
+pilheria, porque versos de choradeira não os podia tragar,--affirmava,
+alludindo ao episodio da Ignez de Castro, do Camões, recitado por João
+Thomaz Quillinan com uma sentimentalidade plangente e languida, toda
+feita de moscatel de 1830. Em cavaqueira sábia e transcendente, o abbade
+de Macieira, pregador régio, um Massillon á altura do paiz, concordando
+com o theologista visconde de Azevedo, asseverava que Virgilio
+prophetisára o advento do divino Messias; e os dois, com as pitadas
+engatilhadas aos narizes rubros, recitavam alternadamente, com emphase:
+
+ VISCONDE
+
+ _Ultima Cummœi venit jam carminis setas_
+ _Magnus ab integro sæclorum nascitur ordo._
+
+ ABBADE
+
+ _Jam nova progenies cœlo dimititur alto_
+ _Tu modo nascenti puero..._
+
+O Quillinan, um atheu esclarecido, escutava-os; e, sublinhando o sorriso
+heretico, perguntava se o _nascenti puero_ virgiliano não seria o filho
+de Asinio Pollião, herdeiro de Augusto, protector do poeta da Eneida. Os
+theologos affirmavam que não, sibilando o seu meio-grosso, reserva do
+mestre da fabrica.
+
+Concorriam tambem os irmãos do D. Jeronymo bispo do Porto, dois velhos
+casquilhos, vegetalisados em dois pimentões ao _toast_, sempre á cata
+d'umas Suzanas pouco ariscas, Suzanas da barcaça do João Coelho a 8
+vinténs por banho--e mordiscavam com as suas dentaduras de gutta-percha
+varios pomos sorvados e nada prohibidos. Fallavam de amores
+sardanapalescos com o medico Assis, um frascario de muita experiencia
+que lhes recommendava bifes na grelha e parcimonia, sopas de vinho com
+canella e alguma pudicicia. Eram a justificação de Lafontaine:
+
+ _...dans les mouvements de leurs tendres ardeurs,_
+ _Les bêtes ne sont pas si bêtes que l'on pense._
+
+Era tambem infallivel nos lautos banquetes do Forrester o Custodio
+Pinheiro, visconde de Villa Verde, a contar ao João Elias que a sua
+esposa, cosinhava uns ricos _fósferinhos_ (fofinhos) para o chá; mas que
+elle já não podia cear senão chá preto com _fateias_. Defronte, o
+visconde de Alpendurada, presidente da camara, promettia a um
+jornalista, se os eleitores o conservassem á testa do municipio, dotar o
+Porto com o embellesamento das latrinas _theodoras_ (inodoras). Um
+folhetinista d'aquelle tempo, o creador do espirito nas gazetas
+portuenses, Evaristo Basto, dizia-lhe que seria melhor, em vez de dotar
+o Porto com latrinas theodoras, o embellesasse antes com algumas
+donzellas do mesmo nome. Estes dois viscondes, aliás bons homens e
+creadores de linhagens de boa medrança, vão já tão longe que, quando me
+lembram, chego a confundil-os com os primordios das castas nobres, tal
+qual como se elles, senhores feudaes, tivessem ido á conquista do santo
+sepulchro com os Godofredos e os Tancredos.
+
+Elles, emfim, riam-se uns dos outros, e o José Borges, hoje visconde do
+seu Castello, ria-se de todos com um sorriso solertemente cortezão.
+
+O Forrester, muito fôfo e empantufado, com as suas fanfarronias
+_poseuses_, marrafa frizada e gravata branca assás conhecida, e mais os
+bofes anilados da camisa, nas illustrações da burguezia dos romances de
+Dickens, batia no peito enchumassado e na testa com as pontas dos dedos;
+e, com a cara açafroada em arreboes do Paraizo e das adegas do Pinhão,
+apontava, soluçante, para uma primorosa tela de Roquemont--o retrato de
+sua defunta esposa que o contemplava do céo em moldura de talha dourada;
+e elle amava tanto aquella vera effigie, testemunha de suas lagrimas,
+que a trocou, e mais outros bonecos de barro por vinhos de Antonio
+Bernardo Ferreira. Bem bom negocio para o inglez--está claro.
+
+Ora estes commensaes de Forrester, quasi todos vinhateiros, ignoravam,
+excepto dous ou trez, a lingua ingleza e desconheciam portanto o
+descredito com que o amphitrião mareára os seus vinhos no mercado de
+Londres; mas o governo, que possuia idiomas como um Calepino, pegou de
+uma corôa de barão e pôl-a na cabeça de J. James--_barão de Forrester_.
+E, se não morre tão cedo, e faz nova edição das calumnias contra a mais
+rica e ameaçada industria portugueza--uma segunda edição peorada e mais
+incorrecta--o governo luso fazia-o visconde, não é verdade? A pergunta
+não é feita ao ministro do reino de 1883: é ao Thomaz Ribeiro que em
+1849 entrava na adolescencia.[1]
+
+ * * * * *
+
+Para corroborar o Forrester e açular as iras contra o vinho do Porto, o
+outro pamphletista, Whittaker, invoca a opinião unanime dos medicos
+inglezes que reputam o vinho procedente de Portugal uma peste para o
+estomago e para o figado; por quanto o summo da uva é quasi uma idea
+abstracta na moxinifada de aguardente, baga, melaço e _jeropiga_. Elle
+não escreve sem desculpavel horror a palavra JEROPIGA.
+
+Porquê? Vaes agora entrar no segredo da bestialidade ingleza, meu amigo.
+
+Foi assim.
+
+James Forrester, tão respeitador dos vinhos portuguezes como da nossa
+orthographia, tinha escripto «Jeropiga» com J. Parece que d'esta
+bagatella não devia surdir grande equivoco na percepção do pensamento;
+porém, succede que a palavra com _G_ ou com J dá duas significações de
+coisas e serventias, e entradas e sahidas muito diversas. Whittaker,
+para saber radicalmente o que era _Jeropiga_, abriu o _Diccionario
+portuguez_ de Constancio, e encontrou: JEROPIGA, _Ajuda_, _clyster_,
+_bebida medicinal_.
+
+Tremulo de indignação e livido de nôjo, brada o inglez: «Esta ultima
+expressão (_bebida medicinal_) é o mesmo que _mézinha_; quanto ás duas
+primeiras (_ajuda_, _clyster_) são a mesma coisa, tem o mesmo sentido, e
+dispenso-me de as traduzir. Que _bellas_ coisas a gente bebe!»
+
+Ó Thomaz Ribeiro, quem não sentiria vontade de mandar o inglez beber
+outras?
+
+Mas o peor da passagem foi que a droga do clyster diluida no vinho do
+Porto fez abalo intestinal no mercado de Londres. Raro seria o
+consummidor de vinhos portuguezes que não levasse as mãos convulsas á
+região hypogastrica, com ptyalismo e vomitos. O artigo foi logo
+trasladado a francez, em Bruxellas, na _Revue Britannique ou choix
+d'articles traduits des meilleurs écrits périodiques de la
+Grande-Bretagne_ (1849). Em Paris foi commentada desabridamente, com
+chalaças, a porca e pelintra fraude lusitana em um artigo da _Revue
+Œnologique_. Portugal, á conta do execravel _jota_ de Sir James
+Forrester, foi considerado um paiz de immunda selvageria que,
+ministrando clysteres pela bocca, tornava communs de duas entradas as
+suas mézinhas. Triste!
+
+A honra e a limpeza de Portugal seriam desaffrontadas, se Forrester,
+Whittaker e os seus traductores ignaros procurassem _Geropiga_, com _G_,
+no Constancio ou no Moraes, JEROPIGA (esclarece o segundo), _liquor
+feito de mosto de vinho, sobrecarregado de aguardente, que se usa no
+Douro para tempero de vinhos_. E accrescenta: JEROPIGA, _differe_.
+
+ * * * * *
+
+O aleivoso clyster que, provavelmente, ainda hoje traz impressionados e
+receosos os espiritos e os baixos ventres dos nossos fieis alliados,
+conspurca bastante a memoria do barão de Forrester. Foi este inglez
+quem, empunhando a seringa da calumnia involuntaria por insufficiencia
+de orthographia, deu essa antecipada ajuda ao sinistro destino que já
+então vaticinava a catastrophe do paiz vinicola. Avoluma-se, porém, o
+delicto do barão quando é notorio que elle deixou correr o aleive
+bestial do seu patricio, e não acudiu a corrigir o erro e as sujas
+consequencias e derivações que Sir Whittaker tirou do drastico _jota_.
+Se elle fôsse um ignorante honesto, sahiria a protestar que a geropiga,
+não sendo clyster alimentario, nem medicamentoso, nem narcotico, nem
+laxante, nunca tentou usurpar as virtudes emolientes e diluentes das
+malvas, nem do laudano de Sydenham, e muito menos da jalapa e da mamona.
+Quanto ao mechanismo de ingerir a geropiga no corpo humano, deveria ter
+explicado que funcciona por meio de taça, calice, copo, garrafa, pichel,
+cabaça, cangirão, caneca, e tambem borracha, mas sem canudo recto ou
+curvo; e, para destruir pela raiz a calumnia, deveria jurar pela sua
+honra que nenhum portuguez, quando absorve geropiga, faz uso do
+Clyso-bomba de Darbo, ou do irrigador Eguisier; sendo certo que, na
+ingestão de tal liquido, se dá sempre a completa ausencia de canudos,
+bombas, torneiras, embolos e engrenagens que desandam e esguicham. A
+geropiga bebe-se, engole-se, escorrupicha-se; mas não se seringa jámais.
+Que o saiba a Inglaterra. A não ser na perfida Albion, em parte alguma
+do velho e novo mundo o vinho do Porto incutiu suspeitas de penetrar nas
+entranhas humanas por um impulso ascensional, com intenções dissolventes
+ou refrigerantes. Os nossos irmãos transatlanticos, afeiçoados
+patrioticamente ao vinho do Porto, jámais o infiltraram na sua economia
+intima sob a hypothese pharmaceutica de que elle contenha anda-açu,
+cayapó, tayuyá ou a purga de João Paes.
+
+Nicolau Tolentino, no soneto realista dedicado á conjugicida Isabel
+Clesse,--soneto pouco digno de entrar no seio das familias, e quasi
+indecente como obra de mestre de Rhetorica--deixou, em dois versos, bem
+definido o methodo de matar clystermente:
+
+ _Que novo invento é este de impiedade_
+ _Que extirpar gente vem pela trazeira!_
+
+Elle, como se vê, designa com rigor topographicamente anatomico a parte
+vulneravel. Essa inversão do processo homicida, isto é, o clyster
+bebido, apenas seria explicavel e até plausivel, se os catholicos
+lavradores do Douro, quando punham no vinho a substancia irritante da
+ajuda, tivessem d'ôlho acabar com os hereges inglezes, seguindo o
+conselho do poeta no mesmo soneto:
+
+ _Se tens desejos d'estas obras pias,_
+ _Vae fazer aos hereges esta esmola,_
+ _Serás a extirpação das heresias!_
+
+Se Forrester, consultando este expositor, e mais o _Diccionario_ sobre
+_Geropiga_, e as praticas desobstruentes dos esponjosos desembargadores
+avinhados seus comensaes, houvesse atirado aos quatro ventos da Europa
+estas leaes explicações, teria lubricado o ventre da sua alma perante a
+justiça divina com esse mesmo clyster que lhe peorou as condições
+excrementiciaes.
+
+ * * * * *
+
+A morte desastrosa do barão de Forrester, em 12 de maio de 1861, é uma
+das mais notaveis vinganças que o rio Douro tem exercido sobre os
+detractores dos seus vinhos. A familia Ferreirinha da Regoa, composta de
+D. Antonia Adelaide, de seu marido Silva Torres, o millionario, digno de
+o ser pela bizarria das suas generosidades, de sua filha e genro, condes
+da Azambuja, tinham ido, rio acima, á sua celebrada quinta do Vesuvio, e
+convidaram o barão de Forrester a passar uma semana em sua companhia. No
+dia 12, um alegre domingo, sahiram todos do Vesuvio, na intenção de
+jantarem na Regoa. O Douro tinha engrossado com a chuva de dois dias, e
+a rapidez da corrente era caudalosa. Aproando ao ponto do _Cachão_,
+formidavel sorvedouro em que a onda referve e redemoinha
+vertiginosamente, o barco fez um corcovo, estalou, abriu de golpe e
+mergulhou no declive da catadupa. O barão soffrêra a pancada do mastro
+quando se lançava á corrente, nadando. Ainda fez algum esforço por
+apégar á margem; mas, fatigado de bracejar no têzo da corrente ou
+aturdido pelo golpe, estrebuchou alguns segundos de agonia e
+desappareceu. Salvaram-se os outros, não todos, com a protecção de uns
+barcos que ahi estavam para recolher o despojo de outro naufragio de um
+transporte de cereaes. Livrou-se Torres, o futuro par do reino, agarrado
+a um barril de azeite, até que o recolheram a um dos barcos. D. Antonia
+e o conde de Azambuja aferraram-se ás dragas do barco. A condessa foi
+salva por um marinheiro. Um juiz de direito, Aragão Mascarenhas,
+agarrou-se á vára do barco rijamente, qual o temos sempre visto filado á
+vara da Justiça, em naufragio de trapaças. Mas nem todos sahiram com
+vida. Um creado de Torres foi logo tragado pela cachoeira; e, abraçada
+com a vella, já quando se lhe estendia um braço redemptor, afogou-se uma
+creatura a quem os noticiaristas não deram a minima importancia.
+
+Pois foi uma pêrda insubstituivel. Era a Gertrudes, um thesouro de joias
+culinarias que a voragem enguliu. Foi esta mulher uma alma transmigrada
+das refinadas civilisações pagans, a metempsycose de algum genio do lar
+que presidira ás ucharias da Roma dos Cezares. Foi a cozinheira
+primacial do Porto, onde residia. Tinha sido chamada por D. Antonia
+Ferreira para dirigir os jantares dados ao barão de Forrester, no
+Vesuvio.
+
+Ali acabou. O rôlo de uma onda regeitou-a morta contra um lapêdo
+carcomido de cavernas sonoras a gottejar o lodo da babugem.
+
+ * * * * *
+
+Devo a esta creatura o gaudio ineffavel de me sentir viver nas
+palpitações de uma felicidade edenica desde os vinte e tres annos de
+idade até esta decrepitude verdejante de bucolicos musgos. Mal me lembra
+que pequeno serviço eu fizera ao marido d'ella, um bravo e envelhecido
+alferes de veteranos que se reformára em 1835 por impedido de servir,
+crivado de ferimentos graves em algumas batalhas do cêrco. Agora me
+recordo: o alferes estava servindo em um dos antigos telegrafos de
+paineis, no pincaro de qualquer serra muito agreste, e gemia o seu
+rheumatismo seis mezes e saudades da mulher o resto do anno. Consegui
+que o deixassem viver com a sua Gertrudes, que o não acompanhára ás
+solidões dos telegrafos de taboinhas por não prescindir do grande
+estipendio como directora de cozinha nas lautas Lupercaes politicas, por
+esse tempo, frequentes no Porto.
+
+Comia-se então muitissimo no Baluarte por excellencia. Ministro ou
+general que chegasse a fazer ou desfazer revoltas, cabecilha eleitoral
+que viesse arregimentar as suas hostes, enchendo-lhes a consciencia de
+liberalismo e carneiro guisado com batatas, era contar com opiparas
+comezanas em que os cabralistas levavam enorme vantagem na profusão. Os
+homens de Setembro, os _patulêas_, em 1849, distinguiam-se na
+frugalidade. Os irmãos Passos alimentavam rusticamente os seus
+organismos plebeus, de Cincinnatos, endurecidos na educação do toicinho
+e das feculas de Bouças. Os seus correligionarios andavam ainda na
+aprendisagem de comer, e ameaçavam a magra meza do orçamento para
+praticarem. Ainda não tinha surgido de vez o Apicio de todos os
+paladares, o Rodrigo da Fonseca Magalhães, com as suas raposías, o qual,
+entendendo com Aristoteles que o homem é um animal essencialmente
+politico, inaugurou o elasterio membranoso de todos os esôphagos, sob o
+especioso lemma de homogeneidade de principios, pela fusão de todos em
+uma só consciencia que vinha a ser nenhuma propriamente dita, ou o
+relaxamento de todas as consciencias n'um estomago commum de duas ou
+trez politicas. E assim conseguiu que todos os candidatos á panella do
+Estado esmoessem o corneo bôlo indigesto das suas _Bernardas_ no largo e
+fundo estomago da alma, _mentis nostrae stomachum_, como disse S. Pedro
+Damião, profetisando a physiologia do espirito politico do seculo XIX
+(OPUSC. 12. c, 38. _mihi._)
+
+Gertrudes não tinha mãos a medir, se vinha ao Porto um ministro de obras
+publicas que deitasse passeio até á Foz e outro passeio até Leixões,
+tracejando barras com a badine nos páramos do Azul. Então, a classe
+argentea, uma casta que se investira no patriciado pelo jús da moeda
+falsa, da escravatura, do contrabando, e talvez do clyster no vinho do
+Porto, se esse escandalo coubesse no possivel--os philistinos, uma
+fidalguia com a raiz da arvore de geração na Noruega, á americana--_the
+codfich's aristocracy_--senhores de navios e balcões unctuosos de
+substancias alimenticias adulteradas, andavam á compíta, a vêr qual
+havia de espiritualisar mais os ventriculos encephalicos do ministro,
+ingerindo-lhe altas dózes de phosphoro por intermedio dos rodovalhos
+celebrados nos triclinios dos Cressus e Lucullos das Congostas,
+Rebolleira e alfurjas circumjacentes. As barras da Foz e Leixões ahi se
+ostentam uns primores d'arte hydrographica attestando que os ministros
+segregaram perfeitamente o phosphoro, o rodovalho--comeram o peixe e
+mais a isca. Os amphitriões, esses representam o anzol do anexim; mas,
+norteando a outras regiões, revelaram uma phantazia oriental, malabar,
+nos jogos de Bancos.
+
+
+PARENTHESIS
+
+O AUCTOR (_á parte_)
+
+No Porto ha um grupo invulneravel de negociantes que preservam
+incontaminadas as tradições da probidade antiga. São esses os mais
+expostos ao azar de partirem os braços, se tentarem encravar as
+engrenagens dissolventes. Não ha fortuna grangeada com honra que ouse
+atravessar sem mêdo as maltas dos salteadores que sahem ás encruzilhadas
+da politica, se não topam viandantes incautos nas incruzilhadas do
+negocio.
+
+Se a estocada dos melindres resvalou no arnez d'esta satisfação dada aos
+homens de bem, fecha-se o parenthesis.
+
+ * * * * *
+
+--Que ha de novo, madame Brillat-Savarin?
+
+Esqueceu-me prevenir-te, Thomaz Ribeiro, de que eu chamava _madame
+Brillat-Savarin_ á Gertrudes. Custava muito aos melindres estheticos do
+meu espirito caprichoso em onomastica chamar-lhe _Gertrudes_, um nome de
+que resa o Agiologio, é certo, mas não sôa lyricamente a orelhas
+classicas nem romanticas. Auctorisado com as minhas faculdades
+poeticamente episcopaes de chrismar, chamára-lhe _Gertruria_. Ella,
+porém, não comprehendendo a delicadeza do imperfeito anagramma, tomava-o
+como galhofa. Depois, fiz-lhe entender, que os seus talentos a
+nivellavam com um auctor de fama universal nas delicias do paladar, e
+por isso me deixasse dar-lhe a ella, feminisando-o, esse nome glorioso e
+novo no mais descurado ramo das artes uteis entre os portuguezes,
+incultos hottentotes quanto á culinaria, nutrindo-se com um _menu fort
+chiche_, pouco avantajado á cosinha dos epicos Affonsos que não
+conheceram os alimentos nervosos, e devoravam, para acerar o musculo,
+javalis inteiros na braza como os esquimós comem os ursos e os kangurus.
+E Gertrudes consentiu que eu, maridando-a espiritualmente com o immortal
+regalão da França, lhe chamasse _madame Brillat-Savarin_.
+
+Contava-me ella então os jantares que dirigira, a pedido de quem e para
+quem, com interessantes pormenores, miudezas, bisbilhotices,
+ridicularias da vida intima. Dest'arte, estava eu em dia com o
+evolucionismo politico, com a sociologia, com a ethnographia, com as
+crizes catemeniaes da CARTA constitucional, com o fomento das obras
+publicas, especialmente barras de Leixões e Foz. Emfim, eu sabia tudo,
+sem resalva das abominações procedentes do fogão; e os deuses me são
+testemunhas de que eu em cento e tantos volumes de analyse de ruins
+costumes nunca fiz máo uso dos segredos de Gertruria, quanto a uns
+pasteis de lagostins e mexilhões que ella cosinhava, a pedido de varias
+familias, para entreterem sempre accêso o fogo da amisade--o fogo
+sagrado das vestaes, segundo a lei Pápia.
+
+ * * * * *
+
+Agora te vou contar como ella me salvou aos vinte e tres annos.
+
+Em 1849, a invasão subita de uma anemia vampirisou-me o pouco sangue
+desoxigenado, desfibrinado, e me poz os ossos em decomposição
+gelatinosa, a ponto de me deixar em uma ressicação óssea; e, se eu ia
+durando, é porque já me não restava carne em que se aferrasse a garra
+adunca da dura Parca de então, ou da «sinistra rameira» como ultimamente
+lhe chamam os vates.
+
+Gertruria, desde que eu fui á cama, visitava-me a miudo no
+Hotel-Francez, na rua da Fabrica, um velho palacio que tinha ao rés da
+rua a officina e escriptorio do _Nacional_, redigido pelo professor
+egresso Antonio Alves Martins, Almeida e Brito, Damazio, Parada Leitão,
+Nogueira Soares, Evaristo Basto, Lobo Gavião, Eu tinha a meu cargo a
+secção das frioleiras. O meu chorado amigo bispo de Vizeu exterminára-me
+do districto sério do jornal, quando descobriu que os meus
+_artigos-de-fundo_ eram commentarios perpetuos e paraphrases miguelistas
+ao _Rei-chegou_, escriptas _un peu à la diable_. E, na verdade, Thomaz
+Ribeiro, eu, áquelle tempo, sentia pelos monarchas absolutos tamanho
+affecto quanto é o odio que hoje professo á canalha absoluta. Um dos
+meus collegas do andar-nobre d'aquelle edificio de papel ordinario da
+Abelheira, Sebastião d'Almeida e Brito, dous annos antes, sendo ministro
+da Junta Suprema do Porto, quando viu a relé armada, urrando morras aos
+cabralistas proprietarios, enfardelou a sua bagagem para emigrar para
+Tuy. Alguns dos outros meus collegas nada enfardelaram, porque pouco
+mais tinham que estylo, um glossario de phrases redondas e polidas como
+bolas de strychnina contra o conde de Thomar; alguns cabeçalhos de
+proclamações ao Povo chamando-lhe rei coroado de espinhos; a tragedia de
+Jesus, o calvario, a esponja, etc., a proposito de um patriota eximio a
+quem os caceteiros chamôrros amolgaram duas costellas; varios threnos
+gemebundos sobre a patria agonisante de Viriato, da Brites
+d'Aljubarrota, de João Pinto Ribeiro e Fernandes Thomaz; e, afóra isto
+que é de facil transporte para quem emigra, todos tinham palpitantes
+anhelos na carta de conselho, nas dragonas de general, na escrivaninha
+de direito, no baculo prelaticio, etc. Pois todos aproaram e abicaram á
+terra da promissão: só eu fiquei um perpetuo cultor da secção das
+frioleiras. Nem sequer já possuo uma e unica distincção que tinha, por
+que ha muitos annos se dissolveu, sem ser dissoluta, a _Philarmonica_ da
+Rua das Hortas de que fui socio; de maneira que hade ser muito difficil
+provar-se perante a posteridadade perplexa, a minha identidade de
+portuguez do seculo decimo nono por falta de um habito de Christo. Nem
+um habito de Christo até á data d'esta! Que este suspiro te não chegue á
+alma como um remorso, ó Thomaz Ribeiro, ex-ministro do reino,
+ex-claviculario do cofre das Graças régias! Ah! não. Eu sei que me
+consideras sobejamente afidalgado com as caricias das outras Graças
+parnasianas, filhas de Jupiter e de Venus, tres tarascas incortiçadas,
+flatulentas, com hysterismos senis, fistulas e dôres osteócopas,
+repercussões de antigas lubricidades, em saturnaes de batuques
+compassados por cithara e arrabil com os lascivos Aonios e Melybeus nos
+outeiros monasticos, nas academias, e nos natalicios das Marcias e
+Francelias. Sim: nós cá vamos vivendo, ellas e eu, n'um soccorro mutuo
+de cataplasmas de linhaça, de rapé e chás de tilia.
+
+Tudo mais acabou. O palacio ardeu; os meus mestres e camaradas do
+_Nacional_ morreram todos; e este arcaboiço, que resta e conserva o nome
+que eu tinha então, devem-o á Gertrudes a litteratura nacional e as
+dezenas de boticas que eu tenho consummido, como um suicida recatado que
+não quer escandalos.
+
+ * * * * *
+
+Foi assim que ella me salvou ... Mas receio enfastiar-te, meu amigo, sem
+chegar a sensibilisar-te. O exterminio da Rhetorica foi uma calamidade
+para os que pretendem commover. A gente, dantes, conhecia umas figuras
+de eloquencia que puxavam arithmeticamente um certo numero de lagrimas
+das coisas, _lacrimae rerum_, aos olhos das pessoas. Se a glandula do
+liquido sentimento não se abria ao toque da metaphora, era seguro
+fender-se golpeada pela penetrante hyperbole. Hoje em dia já se não
+chora senão com uma ophtalmia. De mais a mais, os artistas superiores no
+officio de escrever, alveneis do templo da Memoria, Vitruvios e
+Possidonios do eterno Pantheon, com pouca argamassa de phrases,
+ageitavam uns rendilhados nichos de immortalidade para os seus amigos,
+em quanto eu, cabouqueiro de obra grossa, terei de ser enfadonhamente
+palavroso para esquadriar uma lousa, brunil-a, gravar-lhe um _vale_ de
+saudade agradecida, e assentai-a sobre uma campa ... Uma campa! Não a
+teve a pobre Gertrudes. Lá se desfez na leiva barrenta de qualquer adro
+desconhecido d'aquellas desoladas charnecas do Douro.
+
+ * * * * *
+
+Assistira, um dia, Gertrudes ao meu jantar e viu que eu me confrangia
+enjoado pelo espectaculo repulsivo de meia franga recozida e um caldo
+branco em que boiavam uns olhos amarellos da enxundia do oveiro da ave.
+Ella cheirou de longe o caldo fumegante, e disse com engulho:
+
+--Captiva! isto nem com fome de cão se podia tragar!
+
+Que o medico me não deixava comer outra coisa,--balbuciei tão extenuado
+e offegante que me parecia despegar-se o ultimo colchete da existencia
+n'um esvahir de desmaio.
+
+--Sinto-me morrer ...--murmurei flebilmente.
+
+--E morre decerto!--confirmou ella com sinistra solemnidade--morre, se
+não mudar de comida. Quer que eu o ponha rijo? Diga á dona da hospedaria
+que a sua enfermeira e cozinheira sou eu.
+
+Não esperou resposta e sahiu. Pouco depois, voltou muito afreimada,
+tirou a mantilha de sarja, mudou de calçado para não fazer bulha com os
+tacões das botinhas, cingiu um lenço na fronte recolhendo os bandós,
+atou um avental de riscadinho na cintura e foi para a cozinha. Quando
+entrou com uma caçoula coberta, o perfume vaporado do rebordo da tampa
+abriu subitamente no meu olfacto uma fonte de vida, uma sensação entre
+espiritual e nazal, um quasi extasis, como a evidencia da immortalidade
+do _eu_. Arranjou a meza de leito com o talher, afofou-me as
+travesseirinhas nas costas angulosas, escadeadas como um pedaço de velho
+cancêllo desengonçado, a cahir das dobradiças despregadas,--e passou
+para uma travessa o acepipe fumegante. Eram duas mãos de boi guizadas,
+loiras, de uma unctuosidade oleosa que punha caricias ferozes nos
+dentes, e aguçava na abobada palatina as cobiças dantescas do faminto
+Ugolino e de um professor portuguez de instrucção primaria. Devorei uma
+das mãos, sopeteando no molho pedaços de pão que engulia inteiros,
+soffregamente, n'uma intallação.
+
+--Poderei comer a outra mão, snr.ª Gertrudinhas? perguntei esperando em
+anciosa incerteza a resposta duvidosa.
+
+--Se tem vontade, coma. Que sente lá por dentro?
+
+--Fome, snr.ª Gertrudes, fome!
+
+--Então coma; a natureza que lh'o pede, é por que não lhe faz mal.
+
+E não fez. Fumei um charuto que até áquelle momento me nauzeára. Pedi
+café e cana de Paraty. Estive quasi a pedir as calças para me levantar.
+
+--Nada de boticadas! intimou ella; e, pegando em dous frascos de pilulas
+de ferro de Blaud e de Vallet, e de meia garrafa de vinho quinado
+despejou tudo na primeira vasilha concava que se offereceu á sua
+indignação.--Fóra com a porcaria!--bradava gesticulando, com a cólera
+scientifica e a justiça indefectivel de um medico homeopata.
+
+No dia seguinte deu-me de jantar troixas de recheio, bifes de presunto
+de Melgaço e meio melão. O medico assistente, o João Ferreira, grande
+clinico, veio á tarde, e poz-se a farejar.--Que lhe cheirava a melão! se
+eu praticára a loucura de comer melão?!--A Gertrudes acudiu á minha
+perplexidade:--que fôra ella quem o comêra; que eu, coitadinho, estava a
+caldos e aza de franga, uma desgraça!
+
+O doutor tomou-me o pulso, e fez um gesto de satisfação
+tranquillisadora:--que eu estava melhor quanto ao pulso, um pouco
+rapido, mas regular; auscultou-me a região precordial; já mal percebeu o
+_ruido de folle_; porém, continuava a fariscar o melão, desconfiado,
+chegando o seu descompassado nariz absorvente ao meu perfido halito,
+quando me auscultava as arterias carotidas.
+
+Á noite, visitou-me outro medico, interessado na minha cura duvidosa,
+como amigo. Era Camara Sinval, lente da Escóla Medico-Cirurgica, um que
+prégava, não por hypocrisia, mas por paixão desvairada da Arte dos
+Vieira e Bourdaloue, sermões ultramontanos empavezados de sapiencias
+academicas com grandes empolas de latim pagão. Nunca me receitava. Para
+as insomnias mandava-me lêr philosophos e poetas epicos. Disse-me que,
+na sua clinica, empregava primeiro as epopeas desde a _Iliada_ até á
+_Henriqueida_; e, em ultimo recurso, os systemas philosophicos desde
+Platão até Victor Cousin. Que tivera--contava--um doente de insomnia
+rebelde que resistira singularmente ao 1.º e parte do 2.º Canto dos
+_Luziadas_; mas, perdidas as esperanças de anesthesia, lhe lêra duas
+paginas de Kant, e o enfermo ficára sopitado n'um lethargo de
+Epimenides. Aconselhou-me a Homeopathia, medicina inoffensiva e de
+vantagem para fantasistas supersticiosos. Apenas lhe achava o defeito de
+ter entre os seus medicamentos uma _Eufrazia_ e uma _Ignacia_; por que,
+se tivesse tambem uma _Athanasia_, seriam as trez Parcas com pseudonymos
+lethaes. Entretanto, achou-me espantosamente melhor. Não acreditava.
+Queria saber o que eu tinha tomado. Referi-lhe a verdade--as mãos de
+boi, os bifes de presunto, as troixas, o melão, a Providencia, sobre
+tudo a Providencia na pessoa de Gertrudes.
+
+--É uma grande clinica a Gertrudes, disse elle; mas, se ella ámanhã lhe
+der lampreia, congro de caldeirada, timbal de camarões ou sallada de
+pepino, aconselho-lhe que se abstenha. A morte pela fome e a morte pelo
+enfartamento andam sempre de braço dado.
+
+--Mas, se a natureza pede ...--atalhei plagiando Gertrudes.
+
+--Nada de pantheismo. A natureza compõe-se de dois elementos em
+proporções desiguaes: Deus como um, e Diabo como trez. Sou manicheu.
+Apenas concedo ao Bem a quarta parte de acção na regedoria do universo.
+O Diabo é quem faz os venenos dos vegetaes e dos mineraes, o frio que
+gela o sangue e o calor que abraza o cerebro, e a hydrophobia, e o raio
+e os terramotos, e a cholera asiatica, os miasmas homicidas dos pantanos
+e cavernas, e, sobre todos os flagellos, o homem que, fornecendo uma
+pequena parte de si, uma costella, produziu essa pessima coisa--a
+mulher. Não se fie na natureza, e muito menos na humana, por que essa é
+a mais corruptivel, e a mais fetida quando apodrece de todo. Por
+emquanto vá comendo as mãos de vacca; mas fique por ahi que não vá
+metter os pés pelas mãos.
+
+Isto, com embrechados de latim de Horacio e da Biblia, abalou-me quanto
+á dieta.
+
+ * * * * *
+
+Conversemos um pouco a respeito d'este medico, meu querido Thomaz
+Ribeiro. Sinval era geometricamente materialista, uma razão emancipada
+das intercadencias pathologicas da Fé. E fazia e prégava sermões nas
+egrejas catholicas. Como n'esta farça da vida é ridiculo o papel dos
+homens mais intelligentes! Era atheu; por que «se existisse Deus (dizia
+o precíto) duas das suas muitissimas perfeições seriam a Bondade e a
+Presciencia. Ora a _maldade_ da creatura contradiz a _bondade_ do
+creador; e a _liberdade_ do homem, condemnado por causa d'ella, faz
+repugnancia á _presciencia_ de Deus que teria creado o homem livre para
+o condemnar como insubordinado. Cacologia!--exclamava elle.
+
+Mas que falta de logica! Se eu, n'um impeto de erudição entupidora, lhe
+citava o invicto argumento de Voltaire: «Se não existisse Deus, seria
+preciso invental-o», Sinval respondia-me com Diderot: _C'est ce qu'on a
+fait_. E quem ficava entupido, a final, era eu, por que as minhas
+lettras theologicas eram uma lastima. Havia de ser hoje!... Quanto á
+immortalidade da alma, dizia elle que havia de esclarecer-se depois da
+morte. Eu não lhe replicava, por tambem me parecer esse expediente o
+mais acertado.
+
+--Mas desconfio que todas as minhas trez almas são mortaes--acrescentou
+elle.
+
+--Trez?!
+
+--São trez as almas que o divino Platão me concede no _Timeu_. Dá-me uma
+alma immortal na cabeça, e duas almas mortaes, uma no peito, e outra na
+barriga, separadas pelo diaphragma.
+
+E, com effeito, verifiquei depois que Platão, considerado por alguns SS.
+PP. o precursor do christianismo, dava trez almas a cada pessoa; e, nas
+minhas especulações physiologicas, encontrei sugeitos com as trez almas,
+porém todas na barriga.
+
+Lembram-me algumas definições d'este sensualista que sabia o seu
+Lucrecio de cór. Definia elle a virtude _um producto artificial da
+politica e da vaidade_. Aqui ha bastante sensatez; mas esta definição
+estava dada por Mandeville e impugnada por Berkeley, seculo e meio antes
+de Sinval nascer.
+
+Definição do _homem_: «O homem é um organismo servido por bons e máos
+instinctos, alguns mais ferozes que os das alimarias, e nenhum tão
+intelligente como os do castor, das formigas e das abelhas; além d'isso,
+tem o dom da palavra, se lh'a ensinam, e vai muito além do papagaio em
+glotica. Ha uma só distincção que extrema o homem de todos os outros
+animaes ...»
+
+--A alma--interrompi eu perspicazmente.
+
+--Não. A mentira. O homem é o unico animal que mente.
+
+Definição da _vida_: «É uma alternativa de assimilação e desassimilação,
+de secreção e excreção. _Pensamento_ é o resultado de combinações
+chimicas.»
+
+--Então, vida organica e vida da consciencia é tudo chimica? E o Amor
+tambem?
+
+--É, e da mais grosseira e trivial, por ser a unica exercitada na
+retorta do boticario da aldeia. O amor do homem primitivo e selvagem era
+uma paixão genesica, typica, servida em todo o reino animal por orgãos
+identicos, histiologicamente e physiologicamente semelhantes, e a final
+de contas uma funcção exosmosica de um lado e endosmosica do outro,
+percebe você? O amor do homem actual e culto é a mesma exuberancia bruta
+do organismo, modificado por alguns sonetos á fêmea; porém, no fundo da
+Natureza, está o inalteravel _cliché_.
+
+E eu, melancolicamente, com gestos desolados:
+
+--Com que então, _endosmose_ o amor de Beatriz, de Laura e Leonor!...
+oh! oh!
+
+E elle sorridente:
+
+--_Sensiblerie_ piegas, amigo meu, as suas interjeições theatraes. Se
+Beatriz e as outras meninas, em vez de gerarem, por inspiração, sonetos
+e poemas, tivessem occasião de gerar meninos robustos--com o quê a
+litteratura de cabotagem teria perdido bastante--você mal poderia
+explicar-me transcendentalmente o phenomeno psychico do amor do Dante e
+dos outros e de Beatriz e das outras. Nas regiões selvaticas onde o
+sensualismo se retoiça desenfreadamente em promiscuidade de homens e
+mulheres, como classifica você esse estimulo bruto da carne? É talvez o
+classico Cupido que desembesta do arco flechas de amor aos coiros fuscos
+dos australezes, hein? Vá perguntar a um cafre kuza se elle sabe o que é
+_amor_, e pergunte á cafrina se ella entende o que seja _pudor_ ...
+
+--Perdão! o pudor é universal, particularmente nas mulheres sem excepção
+das raças mais atrazadas. Haja vista ás tangas ...
+
+--Ora muito obrigado pelas suas tangas ...--atalhou Sinval a impulsos de
+riso.--O celebre viajante Cook, na sua _Primeira viagem_, conta que em
+Taiti as mulheres, por um refinamento de educação esmerada, quando
+cumprimentam alguem, exhibem aquella metade do corpo menos usual nas
+exposições ao ar livre.
+
+--Quão delicadas!
+
+--E quão pudibundas!... Ha tribus selvagens, aliás muito castiças, em
+cuja linguagem falta a palavra _amor_, nem mesmo conhecem o beijo, essa
+mimosa delicia da epiderme que os homens aprenderam dos pombos e das
+rolas, por que a bêsta humana era incapaz de inventar o beijo.
+
+D'uma vez, resentido com aquella _litteratura de cabotagem_ em que elle
+mentalmente me classificava, e, de mais a mais, ferido nas minhas
+convicções metaphisicas, sahi á liça impavidamente, e discorri por
+largo, e bem, com muita felicidade, provando a existencia de Deus pelo
+facto da minha existencia, e a divina formação do mundo pelo facto da
+materia bruta não se poder espontaneamente formar a si, aliás o homem,
+materia menos bruta, faria alguma coisa com elementos novos.
+Innegavelmente despenhei-o; mas elle, como o Lucifer de Milton e do Braz
+Martins no _Santo Antonio_ ainda regougava lá do fundo do abysmo:
+
+--Você conhece a philosophia de Xenophanes?
+
+Fiz um gesto de cabeça affirmativamente patarata, e elle proseguiu com
+um riso mordazmente suspeitoso de que eu não sabia nada de Xenophanes.
+
+--Xenophanes--disse Sinval solemnisando o aspeito--aos noventa e dois
+annos de idade lia os seus poemas didaticos de moral santa, e pedia
+esmola aos ouvintes para sepultar os filhos. Morreu mais de centenario
+estudando sempre; e, pouco antes de expirar, fez esta profecia: «Ninguem
+soube, nem sabe, nem saberá nada respectivamente a Deus e á formação do
+mundo; e aquelle que mais egregiamente fallar d'essas coisas, será tão
+ignorante como os outros.» Ora você acaba de fallar egregiamente.
+
+E retirou-se, provavelmente, confundido.
+
+Nunca me esqueceu a opinião scientifica d'este medico a respeito do
+adulterio. Dizia elle com aprumo cathedratico e um sorriso
+rabelaiseano:--Esposa perfida e esposo trahido são effeitos necessarios
+e fataes de influencias celestes--coisas do Zodiaco. Uns homens, os
+seductores, nascem no Signo de Leão, e d'ahi vem chamarem-se _leões_;
+outros homens, os minotaurisados, nascem no signo de Capricornio, e
+d'ahi vem chamarem-se o que você sabe. É como eu penetro n'esta escura e
+hedionda voragem do adulterio, com o facho mathematico da Astronomia.
+
+--Em que Signo nasceria eu?--murmurei meditabundo, ingenuamente.
+
+E elle, com solemnidade comica:
+
+--No Signo de _Libra_ não seria por que o vejo bastante falho d'essa
+especie. Persuado-me que seria no de _Caranguejo_, (_Cancer_) quando
+leio na gazeta as suas theorias sociologicas; mas, á vista do candor
+donzel da sua lyra amorosa, bem póde ser que você nascesse no Signo de
+_Virgem_ (_Virgo_). Fôsse como fôsse, faço votos amigos e sinceros por
+que não nascesse no de _Capricornio_, nem no de _Touro_ (_Taurus_), nem
+no de _Carneiro_ (_Aries_), por que todos tres possuem excrecencias
+symbolicas por onde se explica a profusão dos influenciados. Ha pontas
+de mais no Zodiaco, não acha?
+
+--Sim, acho bastante sortido o Zodiaco. Parece a capital de um reino
+civilisado.
+
+--Pois os legisladores não percebem d'isso nada. Estão ainda com o
+direito canonico da idade-média, permittindo que o trahido mate a
+adultera, e mandando em paz o marido adultero colhido em flagrante
+delicto. E note você--exclamava Sinval n'uma irritação de consciencia
+revoltada--note você que a legislação christianisada da idade-média,
+muito cruel para as mulheres e indulgentissima para os homens, era feita
+sob o influxo dos concilios! Realmente as mulheres devem grandes
+obsequios ao christianismo, e pódem fiar-se nos prégadores e nos
+moralistas _rococos_ dos Semanarios religiosos que, uns por ignorancia e
+outros por obrigação do officio, a bigodeam com a sua emancipação! A
+certos respeitos, não ha paiz como este nosso para ossificações de umas
+certas ignorancias convencionaes. Conta-se que Jesus perdoára a uma
+adultera, por que entre os seus proprios discipulos e o mulherigo que a
+seguia escandalisado na piugada dos esbirros, não havia creatura limpa
+do mesmo peccado que lhe atirasse a primeira pedrada. Bem boa corja,
+_cela va sans dire!_ Pois, quer seja facto, quer seja parabola, temos
+muito que deslindar entre a philosophia messianica de Christo e a
+religião dos christãos. O ideal humanissimamente caridoso de Jesus,
+quanto á fragilidade da mulher, não tem que vêr com o _Matrimonio do
+jesuita_ Sanches e o _Livro V das Ordenações_. Logo que Jesus, immolado
+inutilmente á arraia-miuda da Galilêa, fechou os olhos, as adulteras
+judias e as conversas ao christianismo deturpado de Paulo, continuaram a
+ser apedrejadas; e, rodados 1849 annos de civilisação desde a tragedia
+do Golgotha até á comedia da Carta-Gaioso, certo artigo do Codigo Penal,
+que nos rege, permitte que o esposo trahido estrangule a adultera, sem
+lhe dar tempo a invocar o misericordioso perdão exemplificado por
+Christo. Pobres mulheres! que rica emancipação![2]
+
+Este trecho de discurso não era incontestavelmente um modêlo de
+eloquencia do pulpito catholico; mas o caso é que eu não sabia então
+destecer-lhe os fios do sophisma. Havia de ser hoje!... E este
+homem--que tinha um talento anecdotico, relampejante de remoques de
+Swift e de Voltaire, ironias feitas de potassa caustica, indultando com
+risos sarcasticos os vicios sociaes que afogam em lagrimas as suas
+victimas--Camara Sinval padecia no cerebro uma doença irrisoria, a
+monomania de prégar sermões bombasticos ácêrca do S. Sacramento, que por
+ahi andam em um grosso volume posthumo, com um prefacio meu, ha mais de
+vinte annos. A prosa de Sinval tinha a sonoridade rythmica do verso
+heroico. Possui impressa uma das suas orações proferidas na abertura das
+aulas medico-cirurgicas. Começava assim: _Tem o sanhudo leão falcadas
+garras, tem a timida lebre agudo ouvido, vista perspicaz a aguia
+generosa ..._ São trez hendecassyllabos arcadicos bem feitos, pomposos.
+
+ * * * * *
+
+Voltando á minha enfermidade mortal, no dia seguinte restringi-me ao
+bacalháo assado muito saturado do alho estomacal. O bacalháo conquistou
+na moderna therapeutica das gastrodyneas, nas dyspepsias e gastrites
+chronicas uma reputação tonica, restaurante; quanto ao alho, esse gosa
+creditos de antidoto da raiva; porém, n'aquelle tempo, o reles pescado
+da Terra Nova era considerado comestivel apenas assimilavel a estomagos
+de patagões, com a potencia digestiva de ogres; e, a respeito do alho,
+pessoa que cheirasse a elle tinha as inquirições tiradas desde malandro
+até scelerado.
+
+Como quer que seja, eu, alternando o bacalháo com as tripas de boi--as
+tripas, o heroico brazão do Porto--um complexo aphrodysiaco de chispe,
+de paio, aves, hervanços e coloráo, recuperei, ao cabo de duas semanas,
+forças extraordinarias e tamanhas que, n'um transporte de gratidão,
+levantei Gertruria e passei-a triumphalmente nos meus braços. Quando as
+chloroses e as anemias estão grassando nos grandes centros como doença
+endemica da geração nova depauperada, eu faltaria ao sagrado dever
+altruista, se não offerecesse este boletim sanitario aos que padecem.
+Que elles principiem pela mão de vacca e concluam a sua cura com tripas
+sortidas.
+
+Entretanto, o doutor João Ferreira propalava a minha cura da perigosa
+opilação como a mais rara e inesperada da sua clinica, mediante o ferro
+e o vinho quinado. Tinha-me arrancado das prêzas da morte, dizia-se; e a
+minha engomadeira, uma devota velhinha, asseverava que fôra o martyr S.
+Torquato de Guimarães que a obsequiára mais uma vez, curando-me.
+
+ * * * * *
+
+Depois, no resvalar de doze annos, as vagas aparcelladas da minha
+derrota em demanda do Prestes-João do Ideal, sendo piloto o marido assás
+conhecido de Psyche, baldearam-me a regiões inhospitas onde não podia
+encontrar Gertrudes. Nunca mais a vi; mas, como a saudade me estava
+sempre negaceando para aquelle tempo, a imagem d'ella acompanhava as
+minhas recordações de perdas irreparaveis, desde uns aureos sonhos de
+trovador que eu sonhára, até outros «sonhos» de farinha e manteiga que a
+Gertrudes fazia com o auxilio dos ovos. Eu sentia, a um tempo, o perfume
+dos anhelitos de Marilia bella e o das murcellas incomparaveis de
+Gertruria. A vergonhosa dualidade do coração do homem! Se não fossem as
+falacias metrificadas, e o lyrico, depondo o alaude, se confessasse
+ingenuamente em prosa, não haveria arrôbo de alma que não sahisse
+apelintrado pela concumitancia ignobil das caçoulas.
+
+ * * * * *
+
+Quando li a noticia da morte de Gertrudes, e não pude duvidar que a
+naufragada era a minha restauradora, meditei solver a minha divida de
+gratidão com um artigo necrologico, por não ter sufficiente confiança na
+utilidade de uma missa _de requiem_, a doze vintens, vinho por conta do
+padre.
+
+Eu tinha pertencido por algum tempo a uma sociedade de homens de
+lettras, quasi exclusivamente dedicados á especialidade «necrologias de
+defunctos illustres». Eramos os gatos-pingados do Baluarte. Choravamos
+enormes artigos bem phraseados e estrangulados de interjeições
+afflictas, com epigraphes em latim, sobre defunctos analphabetos que, á
+mingua de instrucção primaria, não poderiam na celeste mansão tomar
+conhecimento da nossa prosa. Andavamos tão assanhados n'esse fariscar de
+chacaes o cêvo litterario de carne morta que seriamos capazes de
+assassinar pessoas distinctas, se as indigestões, as tuberculoses, a
+cachexia mercurial, o escrofulismo, os figados engorgitados e a
+pharmacia nos não dispensassem de alimentar com sangue humano o
+cannibalismo da Arte elegiaca. O presidente da sociedade era José
+Barbosa e Silva, um moço de grande talento, diplomata em Berlim,
+deputado por Vianna do Castello, sua patria. As necrologias que este
+adoravel rapaz estampou são as de todos os mortos seus contemporaneos,
+seus amigos, seus conhecidos, ou apenas amigos ou conhecidos de uns
+sujeitos que elle podia vir a conhecer. No torvelinho dos prazeres, que
+todos experimentou, José Barbosa parava de repente a olhar para o golpho
+que lhe sorvia um companheiro; e, como presagiava morrer aos vinte e
+oito annos, quando carpia os outros, ponderando a tristeza da morte,
+parecia chorar sobre si mesmo.
+
+Fallecido Barbosa e Silva, o maior numero de seus amigos escriptores
+tomou a sério a desgraça da morte, e experimentou a impossibilidade de
+escrever necrologias quando a dôr é sincera e inconsolavel. Os socios da
+instituição carpideira já quasi todos naufragaram por essas restingas
+dos cemiterios. Os raros que ainda restam, sentados á ourella do rio
+negro, encolhidos, a tiritar na algidez de decrepitos, e de mãos
+inclavinhadas nos joelhos, ainda ouvem as commemorações funebres da
+actualidade, e por vezes rejubilam na sua jactancia senil quando se vêem
+plagiados n'estas fórmas da necrologia moderna:
+
+ Mais uma saudade para a terra, mais um anjo para o céo, etc.
+
+ Mais uma vida ceifada em botão pela fouce, etc.
+
+ A aza negra da impavida morte acaba de roçar as faces do nosso
+ amigo, etc.
+
+ A sangrenta Parca acaba de cortar, etc.
+
+ A cega Atropos que tanto bate á porta do palacio como da choupana,
+ etc.
+
+E estes dizeres que já fôram formulas sérias, sacramentaes, e estimulo a
+torrentes de lagrimas, são hoje em dia uns humorismos inconscientes que
+despojam a morte de toda a sua respeitabilidade e circumspecção.
+
+ * * * * *
+
+Pois, Thomaz Ribeiro, não pude redigir a necrologia de Gertrudes!
+
+Tu que és sensivel e conheces os arcanos da arte,--que possues illesas
+do golpe dos desenganos as cellulas funccionaes das illusões queridas,
+(isto é--a alma incolume, com as suas 3 potencias, numeração antiga); e
+conservas a candura juvenil do coração, (_coração!_ o musculo nutriente
+com auriculas e ventricolos!--releva o archaismo provençalêsco que me
+faz coevo de Macias, o Enamorado), do musculo, digo, que não encaneceu
+em breves annos de infortunio sem treguas; e, na idade da prosa de
+ministro da corôa, ainda te commoves sob o impressionismo affectivo do
+inolvidavel poeta do D. JAYME, imaginas, porventura, que eu não pude
+escrever por que as dôres immensas são mudas, e os repellões da paixão
+turbulenta impedem que a phrase se acepilhe e pula e arredonde. Agradeço
+o teu conceito que ao mesmo tempo me lisongeia e adultéra; mas a razão é
+outra--é deploravel. Queres saber por que não escrevi a necrologia da
+humilde mulher que me salvou?--foi por que ella me salvou como
+cozinheira. Por mais combinações que fiz com as grosas de allegorias de
+que dispunha, por mais embrechados de figuras que os canones de
+Quintiliano me liberalisassem, não atinei com uma evasiva consentanea
+com a minha cathegoria de philaucioso casquilho em _redingotes_ do
+Catarro e lettras amenas. Eu tinha escripto bastantes artigos funebres,
+catadupas de pranto sobre os esquifes de matronas várias que haviam
+nascido _gertrudes_, e do tamborête da cozinha avoenga se esvoaçaram nas
+azas da bebada fortuna para os divans bysantinos e d'ahi para os jazigos
+marmoreos. A penna corria-me de vontade, no fremito da inspiração, e as
+perolas, crystalisações do muco lacrimal, saltavam-lhe dos bicos quando
+a defunta levava atraz da sua podridão muitas carruagens, e era
+suffragada na egreja refulgente de tochas, em uma neblina de incenso,
+por uma berrata fanhosa e barbarêsca de levitas, com barrigas
+basilicaes, que decerto, se os transportassem ás missões africanas,
+ririam ás escancaras da algazarra que fazem os cafres á volta de um
+morto.
+
+Figurou-se-me, além d'isso, que a imprensa, moderadamente democratica e
+cheia de conveniencias melindrosas, se constrangeria tolerando nas suas
+columnas, por comprazer á minha ridicula magua, a necrologia da
+cozinheira Gertrudes. De mais a mais, eu não sabia como alçar o estylo
+prismatico, de adjectivos rutilos, de modo a deslumbrar a critica soez,
+e a não desafiar o sorriso gaiato dos dandys pela importancia que eu
+dava á minha sanidade physiologica restaurada pela mão de vacca.
+Ser-me-hia talvez possivel equilibrar na gymnastica de locuções
+explosivas, victorhuguescas, onomatopaicas o interesse da morta,
+descrevendo o naufragio do barco rabêllo com os horrores do brigue
+_Mondego_ ou da fragata _Medusa_. Eu conhecia umas esfusiadas
+pyrothechnicas de metaphoras que punham enthusiasmos furiosos na
+dramatologia epileptica do Theatro-Normal, volcanisando as familias
+incendiarias da rua dos Bacalhoeiros; e ainda agora não passam de todo
+despercebidas á minha pasmaceira de minhôto palerma.
+
+Ainda cheguei a ensaiar o genero ... _Os relampagos afuzilavam ... O céo
+phosphoreava as suas lampadas sinistras para vêr a lucta do abysmo. Eram
+os albatrozes, n'um arquejar estridente, a pairarem na treva superior
+com as suas azas de fogo. As aguias do Marão, acossadas pelos bulcões
+das cumiadas, acolhiam-se ás concavidades da serra, e passavam grasnando
+o threno da desolação por sobre o paroxismo dos naufragos. Zuniam
+furacões assobiando pelas espaldas angulosas dos penhascaes ... A
+tripulação, n'um clamor de agonias, a bradar «misericordia!» ... O baixel
+arfava no dorso do vagalhão, ou, cuspido ás nuvens, resvalava na voragem
+onde as pranchas descosidas ringiam asperrrrrrimamente._
+(Onomatopeia) ... _Castellos de nuvens atras desabavam_ _n'um estrallejar
+de ribombos; o escarceu verde-bronze, topetando com o ether zebrado de
+coriscos, baqueava-se depois n'um marulhar de espumas rugidoras ... O
+cahos de cima a descer, a descer com a mortalha de treva sobre o abysmo
+que subia, subia n'uma ressonancia de maldições ao FIAT, creador das
+sevas angustias ineluctaveis do homem. E o naufrago cravava olhos
+piedosos no céo; e via listrarem-se as centelhas dos raios, como se os
+Titans revolucionados arrojassem á cara de Jupiter as escumalhas igneas
+das suas forjas. E o barão de Forrester, ao portaló, hirto, impavido
+como Nelson no Trafalgar.., etc._ Tudo isto e o resto me sahiu ao
+pintar, e exacto como uma photographia, na descripção de um desastre de
+barco de pipas ido a pique entre dois calháos do Douro; mas, a final, o
+que eu não sabia era diluir em synonimias e paraphrases coherentes com a
+tremenda catastrophe o qualificativo «cozinheira». Ainda se Gertrudes,
+filha de um desembargador miguelista ou d'um brigadeiro capitulado em
+Evora-Monte, com alguns appellidos historicos, houvesse descido as
+escaleiras da necessidade, sem deslise da honra, até á baixeza do seu
+officio, talvez que eu ousasse arcar com a necrologia, apostrophando o
+flagello da guerra civil que acorrentou á grilheta do fogão e da bateria
+de panellas aquella mulher nascida para rastolhar, sobre tapetes,
+_moires_ crepitosas, laminadas de brilhos metalicos ondulantes, e para
+saltar com tregeitos desenvoltos, n'um derrengue arregaçado e
+esquadrilhado de _écuyère_, da estribeira do _landeau_, armorejado de
+paquifes arrogantes e escudos e timbres com passaros prehistoricos e
+hydras assanhadas, á porta das modistas;--para reinar, emfim, nos
+theatros, no turbilhão dos bailes, nos balcões dos bazares
+philantropicos, na Caridade-_Flirtation_, e talvez no _sport_ e no
+_turf_. Mas Gertrudes não tinha appellidos: era miseravelmente
+_Gertrudes Engracia_, d'um plebeismo razo, filha da Engracia, já celebre
+cozinheira dos fidalgos Mellos, casada com o Bento, cozinheiro famoso
+dos fidalgos Cyrnes, o qual cazára com uma cozinheira não menos
+distincta dos fidalgos Pamplonas. Esta genealogia, entre duas receitas
+de pudins de batata, encontrei-a escripta pelo pae de Gertrudes nas
+costas do frontispicio de um velho livro que ella me deu chamado _Alivio
+de tristes e consolação de queixosos_. E da mesma arvore de geração
+constava que seu terceiro avô materno fôra abbade de Miragaya e sua
+quinta avó paterna era filha de um frade loio. Estes dois clerigos
+propagadores, como elementos genealogicos, não me pareceram
+imperiosamente exuberantes de moralidade e justiça para que eu,
+apostrophando a execravel guerra civil, a responsabilisasse pela
+decahida posição servil da neta do frade e do abbade.
+
+ * * * * *
+
+Aqui tens, Thomaz Ribeiro, um coração aberto pelo remorso que se
+offerece á dissecção do teu bisturí. Santo Agostinho, imbecilitado pela
+piedade, e J. J. Rousseau, desbragado pela sua dissimulada philosophia
+cynica, deram-me o exemplo de vir á praça com a confissão tardia de uma
+pusillanimidade que dá a medida da miseria humana, e particularmente dos
+artistas de necrologias. N'este escripto, vim justiçar duas
+bestialidades protervas: a minha ingratidão e o clyster inglez. Agora,
+sinto-me bem, muito desabafado. Talvez lhe deva a elle, á _jeropiga_
+desobstruente do Forrester, este desempacho da consciencia. Ha exemplos
+confirmados por aforismos de Hippocrates.
+
+Se chegaste aqui sem fastio, és um anjo de paciencia e de problematico
+bom-gosto. Decerto uzurpei á patria uma hora das tuas contemplações
+sanitarias sobre a revisão da CARTA, que anda agora mui frequente na
+revista--o que me parece rasoavel, se ella, não obstante a _bigoterie_
+do Artigo 6.º, se tornou suspeita de virginismo insufficiente para reger
+um paiz pudibundo.
+
+Seja como fôr, n'este opusculo esfervilham episodios desvairados que
+desatremam do assumpto e do titulo. São exuberancias que extravasam de
+uma grande medida cogulada de annos e de reminiscencias. O criticismo
+unhará o abuso do subjectivismo indisciplinado, a desorientação do
+abjectivo impessoal, da Arte Pura com maiusculas, finalmente--o
+romanêsco. Affoito-me, todavia, a esperar que os criticos práticos,
+tendo em vista os episodios extravagantes, afóra os gallicismos de que é
+capaz o seu aristocrata Tokay, usarão com o meu modesto «vinho do Porto»
+a sua costumada indulgencia generosa. E permitta a minha benigna
+estrella que os almotacés d'este folheto, quando hajam de aquecer o seu
+criterio no calorifico de alguma beberagem nervosa e suggestiva,
+prefiram o Johannisberg palaciano ao garoto Cartaxo do _José dos
+Caracoes_; por que, a final de contas, nem todos os criticos espiritados
+por vinhos canalhas tem o _humour_ faiscante de Poe, de Hoffmann, de
+Marlowe, de Zacharias Werner e de Bocage--uma constellação de bebados
+immortalmente classicos.
+
+ * * * * *
+
+Ainda se não disse tudo.
+
+N'este pedaço de litteratura da decadencia, ou decahida de todo, observe
+a critica escorreita que ha dois projectos: um é patente, o outro é
+clandestino. O primeiro é--arrazar Inglaterra; e, com effeito,
+arraza-se. O projecto clandestino, um tanto arteiro, é obter pelo
+sophisma tortuoso da lettra redonda, typo-Elzevir, o que o mercieiro
+alcança com o correcto syllogismo dos azeites e dos farinhaceos. O
+Espiritual ousa correr o pário com o Comestivel: a meta é o habito de
+Christo. Que o mercieiro, melindrado na sua prosapia de anthropoide, não
+se agaste, se eu o lanço n'estas correrias de hippodromo. Não lhe
+conheço outros dons que o habilitem a entrar no _sport_.
+
+Emfim, quando voltares a ministrar os negocios do reino, Thomaz Ribeiro,
+não me percas d'ôlho o meu habito de Christo, merecido pela façanha
+heroica e pouco trivial de arrazar Inglaterra. Bem vês que estas
+ambições aliás temerarias, confesso, não ultrapassam desmedidamente as
+balisas do meu merecimento. A almejada venera é a infima, penso eu, a
+mais piranga caracteristica ethnica da raça que domina esta nesga
+rasgada da Espanha, (que m'o releve D. JAYME)--umas noventa leguas,
+metade incultas; e, assim mesmo, na povoação d'essa metade, inçam e
+pompeiam, segundo conta o _Almanach Commercial para 1884_, cento e vinte
+dois condes, trezentos e quatro viscondes, e cento e noventa barões.
+Quanto a commendadores, quem contou as gotas do mediterraneo, as areias
+do Saharah e as estrellas da Via-Lactea? Ora, a respeito do habito de
+Christo, isso já agora, bem sabes, é uma coisa que se exporta para o
+estrangeiro como amostra da nossa unica industria; mas envia-se
+gratuitamente como os _Grands Magasins du Printemps_ nos remettem de
+graça, francos de porte, os retalhinhos das suas fazendas.
+
+Ah! que eu não morra nú d'esse habito! Concedam-me, na morte ao menos,
+essa insignia de christão em terra de moiros.
+
+ _S. Miguel de Seide, abril, 20, 1884._
+
+ [1] Quando o barão de Forrester pereceu por desastre, um dos mais
+ authorisados jornaes do paiz, escreveu sentimentalmente o seguinte:
+ «... A morte desgraçada do snr. barão de Forrester a todos
+ penalisava, pois o muito que aquelle illustrado cavalheiro se
+ interessára sempre pela sorte do Douro, os bons serviços que lhe
+ prestou com os seus escriptos ... o tornaram geralmente estimado ...
+ Mostrou-se sempre muito dedicado a este paiz, e por muitas vezes
+ associou o seu nome aos dos que mais trabalharam para os seus
+ melhoramentos e progresso.»--_O Commercio do Porto_, de 14 de maio
+ de 1861.
+
+ Um correspondente da Regoa para o mesmo jornal e no numero seguinte,
+ escreveu: «É sincero o sentimento geral que produziu a noticia da
+ morte do snr. Forrester, e são bem justas as lagrimas que se
+ derramam por tão desastroso acontecimento. É uma divida sagrada que
+ se paga á memoria do distincto cavalheiro que tanto se sacrificou
+ por este paiz. Portugal e especialmente o Douro muito lhe devem ...
+ Apesar de estrangeiro era portuguez do coração por que poucos filhos
+ d'esta patria mais fizeram por ella nem mais a amaram ...»
+
+ Parece, pois, que os exemplares da diffamação do vinho do Porto eram
+ desconhecidos em Portugal. Que fé nos hade merecer a historia e a
+ biographia escripta por contemporaneos, quando o facto social
+ erradamente julgado, ou a vida de um individuo favorecida pela
+ adulação, ou deturpada pelo odio, não tiverem contradictores, tambem
+ coevos, a contrastal-a!
+
+ [2] _Nota illustrativa._--Joseph Gregorio Lopes da Camara Sinval era
+ esturrado patulêa da Junta rebelde do Porto, e commandára com honras
+ de coronel o batalhão academico. Além d'este predicado faccioso,
+ Sinval tinha o exemplo do austero historiador A. Herculano, que
+ escrevêra: _A historia do liberalismo é uma comedia de máo gosto._
+ E, resalvando as duas nobres personagens, D. Pedro IV e Mousinho da
+ Silveira, accrescentára: _O resto não vale a penna da menção. São
+ financeiros e barões, viscondes, condes e marquezes de fresca data e
+ mesmo de velha data, commendadores, grão-cruzes e conselheiros: uma
+ turba que grunhe, borborinha, fura, atropellando-se e
+ acotovellando-se, na obra de roer um magro osso, chamado orçamento,
+ e que grita aqui-d'el-rey! quando não póde tomar parte no regabofe._
+ Quanto á «Carta-Gaioso» a gente velha ainda conheceu no Porto a
+ corista d'aquelle appellido que cantou o hymno da Carta Restaurada
+ no theatro de S. João, e desde ahi ficou identificada, a Gaioso, com
+ o codigo das liberdades pátrias.
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of O vinho do Porto: processo de uma
+bestialidade ingleza, by Camilo Castelo Branco
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O VINHO DO PORTO ***
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+work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
+Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.
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+
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+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
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+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's
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+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
+809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at http://pglaf.org
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+For additional contact information:
+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
+
+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit http://pglaf.org
+
+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including checks, online payments and credit card donations.
+To donate, please visit: http://pglaf.org/donate
+
+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
+keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
+
+
+Most people start at our Web site which has the main PG search facility:
+
+ http://www.gutenberg.org
+
+This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
+including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
+Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
+subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
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@@ -0,0 +1,1700 @@
+The Project Gutenberg EBook of O vinho do Porto: processo de uma
+bestialidade ingleza, by Camilo Castelo Branco
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: O vinho do Porto: processo de uma bestialidade ingleza
+ exposio a Thomaz Ribeiro
+
+Author: Camilo Castelo Branco
+
+Release Date: February 26, 2008 [EBook #24691]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O VINHO DO PORTO ***
+
+
+
+
+Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images
+of public domain material from Google Book Search)
+
+
+
+
+
+
+
+O vinho do Porto
+
+Porto--Imprensa Moderna
+
+CAMILLO CASTELLO BRANCO
+
+
+O vinho do Porto
+
+PROCESSO D'UMA BESTIALIDADE INGLEZA
+
+EXPOSIO A
+
+THOMAZ RIBEIRO
+
+2. EDIO
+
+
+PORTO
+
+LIVRARIA CHARDRON
+
+De Lello & Irmo, Editores
+
+1903
+
+Propriedade absoluta dos editores
+
+Reproduco Interdicta
+
+
+
+
+A THOMAZ RIBEIRO
+
+
+ Como sei que o teu amor s perfidas trtas e manhas da Inglaterra
+ no dos mais acrizolados, venho offerecer ao teu sorriso um
+ SPECIMEN de bestialidade ingleza.
+
+
+
+
+Ha trinta e cinco annos que um breto anonymo lavrou na _Westminster
+Review_ a condemnao do vinho do Porto como deleterio e empeonhado por
+acetato de chumbo e outros toxicos anglicidas. O homem, pelas rbidas
+violencias do estylo, parece ter redigido a calumnia depois de jantar,
+n'uma exaltao capitosa do tannino do alvarilho que elle confundiu com
+as afflices dos venenos metallicos. Relembra lamentosamente, com a
+lagrima das bebedeiras ternas, o seculo dezoito, em que o genuino licor
+do Porto era um repuxo de vida que irrigra a preciosa existencia de
+grandes personagens da Gran-Bretanha. Recorda Pitt e Dundas, Sheridan e
+Fox, famigerados absorventes do nosso vinho. Diz que Lord Eldon e Lord
+Stowel, graas infinitas ao Porto, reverdejaram e floriram em velhos; e
+Sir William Grant, j decrepito, bebia duas garrafas de _Porto_ a cada
+repasto, para conservar crystallinamente a limpidez das suas faculdades
+mentaes e a rija musculatura de todos os seus membros j locomotores, j
+apprehensores, e o resto. Lamenta que Pitt, debil de compleio, com o
+uso immoderado d'este tonico, e em resultado de plethoras frequentes
+combatidas com ammoniaco e sulfato de magnezia, vivesse dez annos menos
+do que viveria, se possuisse o incombustivel estomago curtido do
+veneravel Lord Dundas.
+
+Succedeu, porm, ao collaborador da _Westminster Review_ achar-se
+dyspeptico, com azas, relaxes intestinaes, eructaes cloacinas, e o
+craneo sempre flammejante como suja poncheira, com o encephalo em
+combusto de cognac e casquinha de limo--isto depois de saturaes
+copiosas dos vinhos adulterados do Porto--_uma mixordia negra_, diz elle
+afflicto; mas no sabe decidir de prompto se a degenerao est na raa
+saxonia, se no vinho portuguez. Pelo menos e provisoriamente
+considera-se envenenado, o bruto.
+
+Pois o veneno que lograr infiltrar-se nas mucosas inglezas deve ter a
+potencia esphacelante da Agua Tufana dos Borgias. Em Inglaterra os
+porcos engordam na ceva do arsenico. Que fibras de raa aquella! que a
+carne d'um breto diverge muito da carnadura da restante Europa. O
+anthropologo Topinard observou que a mortandade nos hospitaes inglezes,
+em seguimento s operaes cirurgicas, era muito menor que a dos
+hospitaes francezes. O sabio Velpeau, consultado pela Academia de
+Medicina, respondeu que _la chair anglaise et la chair franaise
+n'etaient la mme_. E no d a razo da differena, por que a no sabia
+o grande biologo. Eu, na observancia do dictame do Espirito Santo, pela
+bocca do _Ecclesiastico_--no escondas a tua sabedoria illucidarei o
+snr. Velpeau. A razo, a scientifica esta: emborcaes de bebidas
+acidas, e mrmente de cerveja, combatem, como coadjuvantes do acido
+phenico, a gangrena; ora, o inglez, abeberado de cerveja, refractario
+ podrido dos hospitaes. Como se v, d'esta causal to obvia um
+anthropologo capaz de espremer assumpto para volumes recheados de
+coisas abstrusas sobre ethnographia, climatologia, morphologia,
+mezologia, o diabo.
+
+Alm da cerveja, a fibrina do porco, saturado de arsenico, entretecida
+na fibrina do inglez seu compatriota, faz d'elle um Mithridates para os
+saes de chumbo diluidos no vinho do Porto. O inglez no pde morrer por
+ingesto alcoolica. Se quer suicidar-se com instrumento liquido, tem de
+asfixiar-se, afogar-se no tunel como o lendario Lord. Elle immortal,
+absorvendo; e s pde morrer--absorvido. Estranho animal! E senhor das
+aguas e das melhores garrafeiras! O destino, pela tuba sonorosa de
+Cames, disse ao inglez:
+
+ _Entre no reino d'agua o rei do vinho._
+
+ (LUS. c. VI.)
+
+Que litros de _Porto_ envenenado se calculam efficazes para degenerar um
+breto at dyspepsia e s agonias da morte?
+
+ * * * * *
+
+N'esta conjunctura, um possuidor de legitimo _Douro_ convidou o
+intoxicado a beber o elixir fornecido por um commerciante britannico
+estabelecido no Porto. O negociante fornecedor era o Forrester que
+desappareceu d'este alfbre de charlates forasteiros, de um modo
+tragico, ha vinte e trez annos. Logo te contarei essa catastrophe, meu
+amigo.
+
+A sensao intima que o hospede recebeu nas suas entranhas foi uma
+novidade, uma deleitao de refrigerio em todas as membranas desde o co
+da bocca at ao cego e visinhana onde elle sentia os ardores da zona
+torrida. Emborrachou-se como era de esperar, e seria iniquidade
+censurar-lh'o; mas o seu cerebro de illuminado espelhava agora as
+visualidades ethereas, irisadas, do americano Po. Nem j o ventre lhe
+rugia como se l tivesse uma besta-fera embetesgada n'uma latrina, nem
+elle nauseado recorria s titilaes na glote para golphar o acetato de
+chumbo. O possuidor da garrafeira, para o convencer de que o salvra da
+morte propinada pelo vinho homicida do Porto, mostrou-lhe dois opusculos
+inglezes recentemente publicados. Um era de J. James Forrester, e
+intitulava-se _A Word of truth Port wine_. O outro, por Whittaker, em
+reforo ao de Forrester, chamava-se _Strictures on a Word of truth on
+Port wine_. _London_, 1848.
+
+Forrester, no seu folheto, desbaratava o valor do vinho do Porto,
+increpando os lavradores de no differenarem, no fabrico, as
+temperaturas humida, fria, secca e quente; que empregavam promiscuamente
+toda a casta de uva, adulterando-a com ingredientes adequados ao paladar
+inglez, mas corrosivos. Na operao do lagar, accusa o lavrador de
+retardar a fermentao, vasando em cada pipa de msto entre dose e vinte
+e quatro galles de agua-ardente. Que, passados dois mezes, a mixordia
+era crada com baga, mediante uns saccos de linhagem que espremiam sobre
+o vinho, e depois atiravam o residuo ao tunel. Em seguida, novo despejo
+de agua-ardente, e dois mezes de descano. Esta beberagem enviada para o
+Porto era novamente beneficiada com o veneno alcoolico; e, nove mezes
+depois, ao sahir para Inglaterra, como golpe de misericordia, nova
+infuso. De modo que o vinho entrava no estomago inconsciente do
+Reino-Unido razo de vinte e seis galles de agua-ardente por pipa.
+Depois, descreve o que seja geropiga, e como ella entra n'estes
+horrendos mysterios da Brinvilliers. Esta geropiga, como logo direi,
+fermentou a bestialidade ingleza que passou victoriosamente na Europa em
+1849.
+
+Rematada a lista das falsificaes, fraudes e ladroeiras dos lavradores
+e negociantes portuguezes, Forrester exclama: Quem assim deteriora o
+vinho , a meu vr, mais criminoso que um ladro vulgar; e conclue o
+seu opusculo n'estes termos: Os consummidores inglezes devem dar a
+Portugal uma lio prtica, demonstrando que, se a esse paiz convm
+desfazer-se da sua agua-ardente, que no nos vinhos do Porto que nos
+deve impingil-a; por que ns, em Inglaterra, podemos comprar baga e
+melao por preos muito mais em conta do que Portugal nos incampa o seu
+licor de que esses ingredientes formam o principal.
+
+ * * * * *
+
+Parecia natural e patriota coisa que os negociantes e agricultores de
+vinho accusassem este detrahidor animadverso publica, e que a
+imprensa do baluarte da liberdade o cobrisse de injurias, e algum
+viticultor mal humorado de bengaladas. No, meu querido Thomaz Ribeiro.
+A sua casa luxuosa na Ramada-Alta era o confluente dos prceres
+portuenses e da provincia vinicola. Titulares,
+desembargadores-conselheiros, ministros de estado honorarios, os maiores
+proprietarios do Douro, e poetas arcadicos de pacotilha, que faziam
+dithyrambos ao jantar:
+
+ _Evoh._
+
+ _Padre Lyo!_
+
+ _Saboh,_
+
+ _Gro Bassaro!_
+
+Ainda se usavam, na bonacheira dos velhos, estas rancidas semsaborias
+remoadas por uma copiosa tintura de bastardo.
+
+Ali concorria o desembargador Fortunato Leite cheirando os vinhos que j
+no podia deglutir e arrotando pelo nariz sobre os calices. Ao p d'elle
+estava o visconde de Veiros, o Mello das Aguas-ferreas, expondo a dois
+morgados de Riba-Douro a sua erudio em genealogia, uma sciencia em que
+se distinguem muitos parvos, se tem memoria. O ministro de estado
+honorario, Joo Elias, alambasava-se em pudding que comia com a faca. O
+Affonso Botelho, de Passos, d'uma _gentilhommerie_ transmontana,
+paparrta, rorejando as phrases e os circumstantes com uma salivao
+caudal expedida d'entre os dentes illegitimos, como do crivo de um
+borrifador. Elle chamra patife a Forrester em 1845, no _Periodico dos
+Pobres_, e acclamava-o ento nos brindes o anjo tutelar do Douro que lhe
+comprava as colheitas a elle Affonso. Avultava o velho Manoel Browne,
+dominando a vozeria com as suas gargalhadas estridentes e honradas. O
+typico Gonalo de Barros, a correco no despejo, negociante de vinho,
+de casamentos proprios e alheios, de tudo que negociavel, com mais
+faras e melodramas e tragedias na sua vida que o Archivo do extincto
+theatro do Salitre; insinuando-se com incomparaveis negaas de artista
+nos coraes dos amigos e sahindo pelas algibeiras quando achava estas
+avenidas areas de mais e metalisadas de menos. Elle foi, no obstante,
+um tracista infausto, por haver nascido em um meio estreito de mais para
+o largo bracejar das suas faculdades mercantis. Seria o mais sagaz
+negociante encyclopedico da monarchia, se os seus parceiros em veniagas
+no fossem tambem os negociantes mais sagazes da mesma monarchia, todos
+conjurados em desabarem do seu legendario ponto d'alta honra a Praa do
+Porto. E a Praa sempre impavida em meio do fracassar das ruinas, como o
+homem justo de Horacio, metaphoricamente fallando--_Impavidum_, etc.
+Via-se o Eduardo Moser, ento visconde embrionario, a esperteza do alho
+e a finura do coral feita homem; manancial de salvaterios commerciaes,
+agricolas, industriaes, esterilisados pela inveja e pela ignorancia dos
+seus auditorios; raro dom prelucido de profecia, mas condemnado, como
+Cassandra, a no ser acreditado. Seria capaz de inventar a Methaphysica
+commercial, levando transcendencia o phenomeno do Cambio. Usa do
+telescopio de Herschell para vr o Porto nas dimenses da Philadelfia.
+s vezes, cuida que vai scismando em emprezas arrojadas ao longo de
+_Regent Street_, e encontra-se na rua dos Caldeireiros entre uma loja de
+funis e uma tenda de tamancos. Vive miraculosamente no meio dos seus
+collegas da rua dos Inglezes e Cima do Muro como Daniel no fjo dos
+lees. De resto, com uma estatura franzina, e menos de mediana, tem um
+temperamento de dynamite. Quando lhe foroso cascar um sco em um
+homem alto (e eu j vi) cresce um covado pela medida velha. Tem a
+elasticidade do Relatorio e do _boxing_. Produz uns Relatorios colossaes
+que, se lhe puxassem tanto pelo corpo como pelo espirito, s. exc. seria
+o visconde mais corpulento da sua freguezia. No obstante, e fallando
+por figura, elle hade ser sempre o gigante do Relatorio correcto, que
+far alguma vez impacientar o ouvinte futilmente leviano, mas nunca far
+gemer a Razo filha de Deus, nem a Grammatica filha do Lobato.
+
+Confluia a todos os jantares assignalados o arcediago Cunha Reis, um
+velho palaciano de Braga, adiposo, apesar de ressicado interiormente por
+diversas ingratas materialistas que elle idolatrava com psycologismo
+incomprehendido, mas consentaneo sua idade sria. Sentindo-se fatigado
+e algido da viagem por sobre o dezerto glacial da velhice, foi ao
+convento da Falperra, onde morava um egresso, fez confisso geral e
+deixou o corao penitente aos ps da Virgem. Depois, renunciando o
+corao, nenhum esteio amparador do gsto de viver lhe ficou. Fechou-se
+no seu quarto, e, ssinho, morreu de uma congesto de saudade da sua
+juventude que fra um manso idyllio de Gessner com ligeiras
+intermittencias febrs de Saint-Preux. Este adoravel cavalleiro-professo
+chamava-me filho; e, se ouvia fallar de amores, chorava, dissimulando as
+lagrimas com um sorriso ironico da sua fragilidade serdia.
+
+Era certo o Joo Nogueira Gandra que recitava sonetos de improviso com
+quinze dias de lima e de contagem pelos dedos, sob a torrente da
+inspirao. O visconde d'Azevedo lia poemas de sua lavra engenhosa em
+frma graphica de copos e garrafas, cheias de versos de varios metros e
+de larachas honestas. O Lopes de Vasconcellos, um gordo, governador
+civil, ouvindo os poemas bacchicos, dava na barriga palmadas sonoras,
+intelligentes, rindo muito, e--que a poesia era aquillo, uma coisa com
+pilheria, porque versos de choradeira no os podia tragar,--affirmava,
+alludindo ao episodio da Ignez de Castro, do Cames, recitado por Joo
+Thomaz Quillinan com uma sentimentalidade plangente e languida, toda
+feita de moscatel de 1830. Em cavaqueira sbia e transcendente, o abbade
+de Macieira, pregador rgio, um Massillon altura do paiz, concordando
+com o theologista visconde de Azevedo, asseverava que Virgilio
+prophetisra o advento do divino Messias; e os dois, com as pitadas
+engatilhadas aos narizes rubros, recitavam alternadamente, com emphase:
+
+ VISCONDE
+
+ _Ultima Cummoei venit jam carminis setas_
+ _Magnus ab integro sclorum nascitur ordo._
+
+ ABBADE
+
+ _Jam nova progenies coelo dimititur alto_
+ _Tu modo nascenti puero..._
+
+O Quillinan, um atheu esclarecido, escutava-os; e, sublinhando o sorriso
+heretico, perguntava se o _nascenti puero_ virgiliano no seria o filho
+de Asinio Pollio, herdeiro de Augusto, protector do poeta da Eneida. Os
+theologos affirmavam que no, sibilando o seu meio-grosso, reserva do
+mestre da fabrica.
+
+Concorriam tambem os irmos do D. Jeronymo bispo do Porto, dois velhos
+casquilhos, vegetalisados em dois pimentes ao _toast_, sempre cata
+d'umas Suzanas pouco ariscas, Suzanas da barcaa do Joo Coelho a 8
+vintns por banho--e mordiscavam com as suas dentaduras de gutta-percha
+varios pomos sorvados e nada prohibidos. Fallavam de amores
+sardanapalescos com o medico Assis, um frascario de muita experiencia
+que lhes recommendava bifes na grelha e parcimonia, sopas de vinho com
+canella e alguma pudicicia. Eram a justificao de Lafontaine:
+
+ _...dans les mouvements de leurs tendres ardeurs,_
+ _Les btes ne sont pas si btes que l'on pense._
+
+Era tambem infallivel nos lautos banquetes do Forrester o Custodio
+Pinheiro, visconde de Villa Verde, a contar ao Joo Elias que a sua
+esposa, cosinhava uns ricos _fsferinhos_ (fofinhos) para o ch; mas que
+elle j no podia cear seno ch preto com _fateias_. Defronte, o
+visconde de Alpendurada, presidente da camara, promettia a um
+jornalista, se os eleitores o conservassem testa do municipio, dotar o
+Porto com o embellesamento das latrinas _theodoras_ (inodoras). Um
+folhetinista d'aquelle tempo, o creador do espirito nas gazetas
+portuenses, Evaristo Basto, dizia-lhe que seria melhor, em vez de dotar
+o Porto com latrinas theodoras, o embellesasse antes com algumas
+donzellas do mesmo nome. Estes dois viscondes, alis bons homens e
+creadores de linhagens de boa medrana, vo j to longe que, quando me
+lembram, chego a confundil-os com os primordios das castas nobres, tal
+qual como se elles, senhores feudaes, tivessem ido conquista do santo
+sepulchro com os Godofredos e os Tancredos.
+
+Elles, emfim, riam-se uns dos outros, e o Jos Borges, hoje visconde do
+seu Castello, ria-se de todos com um sorriso solertemente cortezo.
+
+O Forrester, muito ffo e empantufado, com as suas fanfarronias
+_poseuses_, marrafa frizada e gravata branca asss conhecida, e mais os
+bofes anilados da camisa, nas illustraes da burguezia dos romances de
+Dickens, batia no peito enchumassado e na testa com as pontas dos dedos;
+e, com a cara aafroada em arreboes do Paraizo e das adegas do Pinho,
+apontava, soluante, para uma primorosa tela de Roquemont--o retrato de
+sua defunta esposa que o contemplava do co em moldura de talha dourada;
+e elle amava tanto aquella vera effigie, testemunha de suas lagrimas,
+que a trocou, e mais outros bonecos de barro por vinhos de Antonio
+Bernardo Ferreira. Bem bom negocio para o inglez--est claro.
+
+Ora estes commensaes de Forrester, quasi todos vinhateiros, ignoravam,
+excepto dous ou trez, a lingua ingleza e desconheciam portanto o
+descredito com que o amphitrio marera os seus vinhos no mercado de
+Londres; mas o governo, que possuia idiomas como um Calepino, pegou de
+uma cora de baro e pl-a na cabea de J. James--_baro de Forrester_.
+E, se no morre to cedo, e faz nova edio das calumnias contra a mais
+rica e ameaada industria portugueza--uma segunda edio peorada e mais
+incorrecta--o governo luso fazia-o visconde, no verdade? A pergunta
+no feita ao ministro do reino de 1883: ao Thomaz Ribeiro que em
+1849 entrava na adolescencia.[1]
+
+ * * * * *
+
+Para corroborar o Forrester e aular as iras contra o vinho do Porto, o
+outro pamphletista, Whittaker, invoca a opinio unanime dos medicos
+inglezes que reputam o vinho procedente de Portugal uma peste para o
+estomago e para o figado; por quanto o summo da uva quasi uma idea
+abstracta na moxinifada de aguardente, baga, melao e _jeropiga_. Elle
+no escreve sem desculpavel horror a palavra JEROPIGA.
+
+Porqu? Vaes agora entrar no segredo da bestialidade ingleza, meu amigo.
+
+Foi assim.
+
+James Forrester, to respeitador dos vinhos portuguezes como da nossa
+orthographia, tinha escripto Jeropiga com J. Parece que d'esta
+bagatella no devia surdir grande equivoco na percepo do pensamento;
+porm, succede que a palavra com _G_ ou com J d duas significaes de
+coisas e serventias, e entradas e sahidas muito diversas. Whittaker,
+para saber radicalmente o que era _Jeropiga_, abriu o _Diccionario
+portuguez_ de Constancio, e encontrou: JEROPIGA, _Ajuda_, _clyster_,
+_bebida medicinal_.
+
+Tremulo de indignao e livido de njo, brada o inglez: Esta ultima
+expresso (_bebida medicinal_) o mesmo que _mzinha_; quanto s duas
+primeiras (_ajuda_, _clyster_) so a mesma coisa, tem o mesmo sentido, e
+dispenso-me de as traduzir. Que _bellas_ coisas a gente bebe!
+
+ Thomaz Ribeiro, quem no sentiria vontade de mandar o inglez beber
+outras?
+
+Mas o peor da passagem foi que a droga do clyster diluida no vinho do
+Porto fez abalo intestinal no mercado de Londres. Raro seria o
+consummidor de vinhos portuguezes que no levasse as mos convulsas
+regio hypogastrica, com ptyalismo e vomitos. O artigo foi logo
+trasladado a francez, em Bruxellas, na _Revue Britannique ou choix
+d'articles traduits des meilleurs crits priodiques de la
+Grande-Bretagne_ (1849). Em Paris foi commentada desabridamente, com
+chalaas, a porca e pelintra fraude lusitana em um artigo da _Revue
+OEnologique_. Portugal, conta do execravel _jota_ de Sir James
+Forrester, foi considerado um paiz de immunda selvageria que,
+ministrando clysteres pela bocca, tornava communs de duas entradas as
+suas mzinhas. Triste!
+
+A honra e a limpeza de Portugal seriam desaffrontadas, se Forrester,
+Whittaker e os seus traductores ignaros procurassem _Geropiga_, com _G_,
+no Constancio ou no Moraes, JEROPIGA (esclarece o segundo), _liquor
+feito de mosto de vinho, sobrecarregado de aguardente, que se usa no
+Douro para tempero de vinhos_. E accrescenta: JEROPIGA, _differe_.
+
+ * * * * *
+
+O aleivoso clyster que, provavelmente, ainda hoje traz impressionados e
+receosos os espiritos e os baixos ventres dos nossos fieis alliados,
+conspurca bastante a memoria do baro de Forrester. Foi este inglez
+quem, empunhando a seringa da calumnia involuntaria por insufficiencia
+de orthographia, deu essa antecipada ajuda ao sinistro destino que j
+ento vaticinava a catastrophe do paiz vinicola. Avoluma-se, porm, o
+delicto do baro quando notorio que elle deixou correr o aleive
+bestial do seu patricio, e no acudiu a corrigir o erro e as sujas
+consequencias e derivaes que Sir Whittaker tirou do drastico _jota_.
+Se elle fsse um ignorante honesto, sahiria a protestar que a geropiga,
+no sendo clyster alimentario, nem medicamentoso, nem narcotico, nem
+laxante, nunca tentou usurpar as virtudes emolientes e diluentes das
+malvas, nem do laudano de Sydenham, e muito menos da jalapa e da mamona.
+Quanto ao mechanismo de ingerir a geropiga no corpo humano, deveria ter
+explicado que funcciona por meio de taa, calice, copo, garrafa, pichel,
+cabaa, cangiro, caneca, e tambem borracha, mas sem canudo recto ou
+curvo; e, para destruir pela raiz a calumnia, deveria jurar pela sua
+honra que nenhum portuguez, quando absorve geropiga, faz uso do
+Clyso-bomba de Darbo, ou do irrigador Eguisier; sendo certo que, na
+ingesto de tal liquido, se d sempre a completa ausencia de canudos,
+bombas, torneiras, embolos e engrenagens que desandam e esguicham. A
+geropiga bebe-se, engole-se, escorrupicha-se; mas no se seringa jmais.
+Que o saiba a Inglaterra. A no ser na perfida Albion, em parte alguma
+do velho e novo mundo o vinho do Porto incutiu suspeitas de penetrar nas
+entranhas humanas por um impulso ascensional, com intenes dissolventes
+ou refrigerantes. Os nossos irmos transatlanticos, afeioados
+patrioticamente ao vinho do Porto, jmais o infiltraram na sua economia
+intima sob a hypothese pharmaceutica de que elle contenha anda-au,
+cayap, tayuy ou a purga de Joo Paes.
+
+Nicolau Tolentino, no soneto realista dedicado conjugicida Isabel
+Clesse,--soneto pouco digno de entrar no seio das familias, e quasi
+indecente como obra de mestre de Rhetorica--deixou, em dois versos, bem
+definido o methodo de matar clystermente:
+
+ _Que novo invento este de impiedade_
+ _Que extirpar gente vem pela trazeira!_
+
+Elle, como se v, designa com rigor topographicamente anatomico a parte
+vulneravel. Essa inverso do processo homicida, isto , o clyster
+bebido, apenas seria explicavel e at plausivel, se os catholicos
+lavradores do Douro, quando punham no vinho a substancia irritante da
+ajuda, tivessem d'lho acabar com os hereges inglezes, seguindo o
+conselho do poeta no mesmo soneto:
+
+ _Se tens desejos d'estas obras pias,_
+ _Vae fazer aos hereges esta esmola,_
+ _Sers a extirpao das heresias!_
+
+Se Forrester, consultando este expositor, e mais o _Diccionario_ sobre
+_Geropiga_, e as praticas desobstruentes dos esponjosos desembargadores
+avinhados seus comensaes, houvesse atirado aos quatro ventos da Europa
+estas leaes explicaes, teria lubricado o ventre da sua alma perante a
+justia divina com esse mesmo clyster que lhe peorou as condies
+excrementiciaes.
+
+ * * * * *
+
+A morte desastrosa do baro de Forrester, em 12 de maio de 1861, uma
+das mais notaveis vinganas que o rio Douro tem exercido sobre os
+detractores dos seus vinhos. A familia Ferreirinha da Regoa, composta de
+D. Antonia Adelaide, de seu marido Silva Torres, o millionario, digno de
+o ser pela bizarria das suas generosidades, de sua filha e genro, condes
+da Azambuja, tinham ido, rio acima, sua celebrada quinta do Vesuvio, e
+convidaram o baro de Forrester a passar uma semana em sua companhia. No
+dia 12, um alegre domingo, sahiram todos do Vesuvio, na inteno de
+jantarem na Regoa. O Douro tinha engrossado com a chuva de dois dias, e
+a rapidez da corrente era caudalosa. Aproando ao ponto do _Cacho_,
+formidavel sorvedouro em que a onda referve e redemoinha
+vertiginosamente, o barco fez um corcovo, estalou, abriu de golpe e
+mergulhou no declive da catadupa. O baro soffrra a pancada do mastro
+quando se lanava corrente, nadando. Ainda fez algum esforo por
+apgar margem; mas, fatigado de bracejar no tzo da corrente ou
+aturdido pelo golpe, estrebuchou alguns segundos de agonia e
+desappareceu. Salvaram-se os outros, no todos, com a proteco de uns
+barcos que ahi estavam para recolher o despojo de outro naufragio de um
+transporte de cereaes. Livrou-se Torres, o futuro par do reino, agarrado
+a um barril de azeite, at que o recolheram a um dos barcos. D. Antonia
+e o conde de Azambuja aferraram-se s dragas do barco. A condessa foi
+salva por um marinheiro. Um juiz de direito, Arago Mascarenhas,
+agarrou-se vra do barco rijamente, qual o temos sempre visto filado
+vara da Justia, em naufragio de trapaas. Mas nem todos sahiram com
+vida. Um creado de Torres foi logo tragado pela cachoeira; e, abraada
+com a vella, j quando se lhe estendia um brao redemptor, afogou-se uma
+creatura a quem os noticiaristas no deram a minima importancia.
+
+Pois foi uma prda insubstituivel. Era a Gertrudes, um thesouro de joias
+culinarias que a voragem enguliu. Foi esta mulher uma alma transmigrada
+das refinadas civilisaes pagans, a metempsycose de algum genio do lar
+que presidira s ucharias da Roma dos Cezares. Foi a cozinheira
+primacial do Porto, onde residia. Tinha sido chamada por D. Antonia
+Ferreira para dirigir os jantares dados ao baro de Forrester, no
+Vesuvio.
+
+Ali acabou. O rlo de uma onda regeitou-a morta contra um lapdo
+carcomido de cavernas sonoras a gottejar o lodo da babugem.
+
+ * * * * *
+
+Devo a esta creatura o gaudio ineffavel de me sentir viver nas
+palpitaes de uma felicidade edenica desde os vinte e tres annos de
+idade at esta decrepitude verdejante de bucolicos musgos. Mal me lembra
+que pequeno servio eu fizera ao marido d'ella, um bravo e envelhecido
+alferes de veteranos que se reformra em 1835 por impedido de servir,
+crivado de ferimentos graves em algumas batalhas do crco. Agora me
+recordo: o alferes estava servindo em um dos antigos telegrafos de
+paineis, no pincaro de qualquer serra muito agreste, e gemia o seu
+rheumatismo seis mezes e saudades da mulher o resto do anno. Consegui
+que o deixassem viver com a sua Gertrudes, que o no acompanhra s
+solides dos telegrafos de taboinhas por no prescindir do grande
+estipendio como directora de cozinha nas lautas Lupercaes politicas, por
+esse tempo, frequentes no Porto.
+
+Comia-se ento muitissimo no Baluarte por excellencia. Ministro ou
+general que chegasse a fazer ou desfazer revoltas, cabecilha eleitoral
+que viesse arregimentar as suas hostes, enchendo-lhes a consciencia de
+liberalismo e carneiro guisado com batatas, era contar com opiparas
+comezanas em que os cabralistas levavam enorme vantagem na profuso. Os
+homens de Setembro, os _patulas_, em 1849, distinguiam-se na
+frugalidade. Os irmos Passos alimentavam rusticamente os seus
+organismos plebeus, de Cincinnatos, endurecidos na educao do toicinho
+e das feculas de Bouas. Os seus correligionarios andavam ainda na
+aprendisagem de comer, e ameaavam a magra meza do oramento para
+praticarem. Ainda no tinha surgido de vez o Apicio de todos os
+paladares, o Rodrigo da Fonseca Magalhes, com as suas raposas, o qual,
+entendendo com Aristoteles que o homem um animal essencialmente
+politico, inaugurou o elasterio membranoso de todos os esphagos, sob o
+especioso lemma de homogeneidade de principios, pela fuso de todos em
+uma s consciencia que vinha a ser nenhuma propriamente dita, ou o
+relaxamento de todas as consciencias n'um estomago commum de duas ou
+trez politicas. E assim conseguiu que todos os candidatos panella do
+Estado esmoessem o corneo blo indigesto das suas _Bernardas_ no largo e
+fundo estomago da alma, _mentis nostrae stomachum_, como disse S. Pedro
+Damio, profetisando a physiologia do espirito politico do seculo XIX
+(OPUSC. 12. c, 38. _mihi._)
+
+Gertrudes no tinha mos a medir, se vinha ao Porto um ministro de obras
+publicas que deitasse passeio at Foz e outro passeio at Leixes,
+tracejando barras com a badine nos pramos do Azul. Ento, a classe
+argentea, uma casta que se investira no patriciado pelo js da moeda
+falsa, da escravatura, do contrabando, e talvez do clyster no vinho do
+Porto, se esse escandalo coubesse no possivel--os philistinos, uma
+fidalguia com a raiz da arvore de gerao na Noruega, americana--_the
+codfich's aristocracy_--senhores de navios e balces unctuosos de
+substancias alimenticias adulteradas, andavam compta, a vr qual
+havia de espiritualisar mais os ventriculos encephalicos do ministro,
+ingerindo-lhe altas dzes de phosphoro por intermedio dos rodovalhos
+celebrados nos triclinios dos Cressus e Lucullos das Congostas,
+Rebolleira e alfurjas circumjacentes. As barras da Foz e Leixes ahi se
+ostentam uns primores d'arte hydrographica attestando que os ministros
+segregaram perfeitamente o phosphoro, o rodovalho--comeram o peixe e
+mais a isca. Os amphitries, esses representam o anzol do anexim; mas,
+norteando a outras regies, revelaram uma phantazia oriental, malabar,
+nos jogos de Bancos.
+
+
+PARENTHESIS
+
+O AUCTOR (_ parte_)
+
+No Porto ha um grupo invulneravel de negociantes que preservam
+incontaminadas as tradies da probidade antiga. So esses os mais
+expostos ao azar de partirem os braos, se tentarem encravar as
+engrenagens dissolventes. No ha fortuna grangeada com honra que ouse
+atravessar sem mdo as maltas dos salteadores que sahem s encruzilhadas
+da politica, se no topam viandantes incautos nas incruzilhadas do
+negocio.
+
+Se a estocada dos melindres resvalou no arnez d'esta satisfao dada aos
+homens de bem, fecha-se o parenthesis.
+
+ * * * * *
+
+--Que ha de novo, madame Brillat-Savarin?
+
+Esqueceu-me prevenir-te, Thomaz Ribeiro, de que eu chamava _madame
+Brillat-Savarin_ Gertrudes. Custava muito aos melindres estheticos do
+meu espirito caprichoso em onomastica chamar-lhe _Gertrudes_, um nome de
+que resa o Agiologio, certo, mas no sa lyricamente a orelhas
+classicas nem romanticas. Auctorisado com as minhas faculdades
+poeticamente episcopaes de chrismar, chamra-lhe _Gertruria_. Ella,
+porm, no comprehendendo a delicadeza do imperfeito anagramma, tomava-o
+como galhofa. Depois, fiz-lhe entender, que os seus talentos a
+nivellavam com um auctor de fama universal nas delicias do paladar, e
+por isso me deixasse dar-lhe a ella, feminisando-o, esse nome glorioso e
+novo no mais descurado ramo das artes uteis entre os portuguezes,
+incultos hottentotes quanto culinaria, nutrindo-se com um _menu fort
+chiche_, pouco avantajado cosinha dos epicos Affonsos que no
+conheceram os alimentos nervosos, e devoravam, para acerar o musculo,
+javalis inteiros na braza como os esquims comem os ursos e os kangurus.
+E Gertrudes consentiu que eu, maridando-a espiritualmente com o immortal
+regalo da Frana, lhe chamasse _madame Brillat-Savarin_.
+
+Contava-me ella ento os jantares que dirigira, a pedido de quem e para
+quem, com interessantes pormenores, miudezas, bisbilhotices,
+ridicularias da vida intima. Dest'arte, estava eu em dia com o
+evolucionismo politico, com a sociologia, com a ethnographia, com as
+crizes catemeniaes da CARTA constitucional, com o fomento das obras
+publicas, especialmente barras de Leixes e Foz. Emfim, eu sabia tudo,
+sem resalva das abominaes procedentes do fogo; e os deuses me so
+testemunhas de que eu em cento e tantos volumes de analyse de ruins
+costumes nunca fiz mo uso dos segredos de Gertruria, quanto a uns
+pasteis de lagostins e mexilhes que ella cosinhava, a pedido de varias
+familias, para entreterem sempre accso o fogo da amisade--o fogo
+sagrado das vestaes, segundo a lei Ppia.
+
+ * * * * *
+
+Agora te vou contar como ella me salvou aos vinte e tres annos.
+
+Em 1849, a invaso subita de uma anemia vampirisou-me o pouco sangue
+desoxigenado, desfibrinado, e me poz os ossos em decomposio
+gelatinosa, a ponto de me deixar em uma ressicao ssea; e, se eu ia
+durando, porque j me no restava carne em que se aferrasse a garra
+adunca da dura Parca de ento, ou da sinistra rameira como ultimamente
+lhe chamam os vates.
+
+Gertruria, desde que eu fui cama, visitava-me a miudo no
+Hotel-Francez, na rua da Fabrica, um velho palacio que tinha ao rs da
+rua a officina e escriptorio do _Nacional_, redigido pelo professor
+egresso Antonio Alves Martins, Almeida e Brito, Damazio, Parada Leito,
+Nogueira Soares, Evaristo Basto, Lobo Gavio, Eu tinha a meu cargo a
+seco das frioleiras. O meu chorado amigo bispo de Vizeu exterminra-me
+do districto srio do jornal, quando descobriu que os meus
+_artigos-de-fundo_ eram commentarios perpetuos e paraphrases miguelistas
+ao _Rei-chegou_, escriptas _un peu la diable_. E, na verdade, Thomaz
+Ribeiro, eu, quelle tempo, sentia pelos monarchas absolutos tamanho
+affecto quanto o odio que hoje professo canalha absoluta. Um dos
+meus collegas do andar-nobre d'aquelle edificio de papel ordinario da
+Abelheira, Sebastio d'Almeida e Brito, dous annos antes, sendo ministro
+da Junta Suprema do Porto, quando viu a rel armada, urrando morras aos
+cabralistas proprietarios, enfardelou a sua bagagem para emigrar para
+Tuy. Alguns dos outros meus collegas nada enfardelaram, porque pouco
+mais tinham que estylo, um glossario de phrases redondas e polidas como
+bolas de strychnina contra o conde de Thomar; alguns cabealhos de
+proclamaes ao Povo chamando-lhe rei coroado de espinhos; a tragedia de
+Jesus, o calvario, a esponja, etc., a proposito de um patriota eximio a
+quem os caceteiros chamrros amolgaram duas costellas; varios threnos
+gemebundos sobre a patria agonisante de Viriato, da Brites
+d'Aljubarrota, de Joo Pinto Ribeiro e Fernandes Thomaz; e, afra isto
+que de facil transporte para quem emigra, todos tinham palpitantes
+anhelos na carta de conselho, nas dragonas de general, na escrivaninha
+de direito, no baculo prelaticio, etc. Pois todos aproaram e abicaram
+terra da promisso: s eu fiquei um perpetuo cultor da seco das
+frioleiras. Nem sequer j possuo uma e unica distinco que tinha, por
+que ha muitos annos se dissolveu, sem ser dissoluta, a _Philarmonica_ da
+Rua das Hortas de que fui socio; de maneira que hade ser muito difficil
+provar-se perante a posteridadade perplexa, a minha identidade de
+portuguez do seculo decimo nono por falta de um habito de Christo. Nem
+um habito de Christo at data d'esta! Que este suspiro te no chegue
+alma como um remorso, Thomaz Ribeiro, ex-ministro do reino,
+ex-claviculario do cofre das Graas rgias! Ah! no. Eu sei que me
+consideras sobejamente afidalgado com as caricias das outras Graas
+parnasianas, filhas de Jupiter e de Venus, tres tarascas incortiadas,
+flatulentas, com hysterismos senis, fistulas e dres ostecopas,
+repercusses de antigas lubricidades, em saturnaes de batuques
+compassados por cithara e arrabil com os lascivos Aonios e Melybeus nos
+outeiros monasticos, nas academias, e nos natalicios das Marcias e
+Francelias. Sim: ns c vamos vivendo, ellas e eu, n'um soccorro mutuo
+de cataplasmas de linhaa, de rap e chs de tilia.
+
+Tudo mais acabou. O palacio ardeu; os meus mestres e camaradas do
+_Nacional_ morreram todos; e este arcaboio, que resta e conserva o nome
+que eu tinha ento, devem-o Gertrudes a litteratura nacional e as
+dezenas de boticas que eu tenho consummido, como um suicida recatado que
+no quer escandalos.
+
+ * * * * *
+
+Foi assim que ella me salvou ... Mas receio enfastiar-te, meu amigo, sem
+chegar a sensibilisar-te. O exterminio da Rhetorica foi uma calamidade
+para os que pretendem commover. A gente, dantes, conhecia umas figuras
+de eloquencia que puxavam arithmeticamente um certo numero de lagrimas
+das coisas, _lacrimae rerum_, aos olhos das pessoas. Se a glandula do
+liquido sentimento no se abria ao toque da metaphora, era seguro
+fender-se golpeada pela penetrante hyperbole. Hoje em dia j se no
+chora seno com uma ophtalmia. De mais a mais, os artistas superiores no
+officio de escrever, alveneis do templo da Memoria, Vitruvios e
+Possidonios do eterno Pantheon, com pouca argamassa de phrases,
+ageitavam uns rendilhados nichos de immortalidade para os seus amigos,
+em quanto eu, cabouqueiro de obra grossa, terei de ser enfadonhamente
+palavroso para esquadriar uma lousa, brunil-a, gravar-lhe um _vale_ de
+saudade agradecida, e assentai-a sobre uma campa ... Uma campa! No a
+teve a pobre Gertrudes. L se desfez na leiva barrenta de qualquer adro
+desconhecido d'aquellas desoladas charnecas do Douro.
+
+ * * * * *
+
+Assistira, um dia, Gertrudes ao meu jantar e viu que eu me confrangia
+enjoado pelo espectaculo repulsivo de meia franga recozida e um caldo
+branco em que boiavam uns olhos amarellos da enxundia do oveiro da ave.
+Ella cheirou de longe o caldo fumegante, e disse com engulho:
+
+--Captiva! isto nem com fome de co se podia tragar!
+
+Que o medico me no deixava comer outra coisa,--balbuciei to extenuado
+e offegante que me parecia despegar-se o ultimo colchete da existencia
+n'um esvahir de desmaio.
+
+--Sinto-me morrer ...--murmurei flebilmente.
+
+--E morre decerto!--confirmou ella com sinistra solemnidade--morre, se
+no mudar de comida. Quer que eu o ponha rijo? Diga dona da hospedaria
+que a sua enfermeira e cozinheira sou eu.
+
+No esperou resposta e sahiu. Pouco depois, voltou muito afreimada,
+tirou a mantilha de sarja, mudou de calado para no fazer bulha com os
+taces das botinhas, cingiu um leno na fronte recolhendo os bands,
+atou um avental de riscadinho na cintura e foi para a cozinha. Quando
+entrou com uma caoula coberta, o perfume vaporado do rebordo da tampa
+abriu subitamente no meu olfacto uma fonte de vida, uma sensao entre
+espiritual e nazal, um quasi extasis, como a evidencia da immortalidade
+do _eu_. Arranjou a meza de leito com o talher, afofou-me as
+travesseirinhas nas costas angulosas, escadeadas como um pedao de velho
+cancllo desengonado, a cahir das dobradias despregadas,--e passou
+para uma travessa o acepipe fumegante. Eram duas mos de boi guizadas,
+loiras, de uma unctuosidade oleosa que punha caricias ferozes nos
+dentes, e aguava na abobada palatina as cobias dantescas do faminto
+Ugolino e de um professor portuguez de instruco primaria. Devorei uma
+das mos, sopeteando no molho pedaos de po que engulia inteiros,
+soffregamente, n'uma intallao.
+
+--Poderei comer a outra mo, snr. Gertrudinhas? perguntei esperando em
+anciosa incerteza a resposta duvidosa.
+
+--Se tem vontade, coma. Que sente l por dentro?
+
+--Fome, snr. Gertrudes, fome!
+
+--Ento coma; a natureza que lh'o pede, por que no lhe faz mal.
+
+E no fez. Fumei um charuto que at quelle momento me nauzera. Pedi
+caf e cana de Paraty. Estive quasi a pedir as calas para me levantar.
+
+--Nada de boticadas! intimou ella; e, pegando em dous frascos de pilulas
+de ferro de Blaud e de Vallet, e de meia garrafa de vinho quinado
+despejou tudo na primeira vasilha concava que se offereceu sua
+indignao.--Fra com a porcaria!--bradava gesticulando, com a clera
+scientifica e a justia indefectivel de um medico homeopata.
+
+No dia seguinte deu-me de jantar troixas de recheio, bifes de presunto
+de Melgao e meio melo. O medico assistente, o Joo Ferreira, grande
+clinico, veio tarde, e poz-se a farejar.--Que lhe cheirava a melo! se
+eu praticra a loucura de comer melo?!--A Gertrudes acudiu minha
+perplexidade:--que fra ella quem o comra; que eu, coitadinho, estava a
+caldos e aza de franga, uma desgraa!
+
+O doutor tomou-me o pulso, e fez um gesto de satisfao
+tranquillisadora:--que eu estava melhor quanto ao pulso, um pouco
+rapido, mas regular; auscultou-me a regio precordial; j mal percebeu o
+_ruido de folle_; porm, continuava a fariscar o melo, desconfiado,
+chegando o seu descompassado nariz absorvente ao meu perfido halito,
+quando me auscultava as arterias carotidas.
+
+ noite, visitou-me outro medico, interessado na minha cura duvidosa,
+como amigo. Era Camara Sinval, lente da Escla Medico-Cirurgica, um que
+prgava, no por hypocrisia, mas por paixo desvairada da Arte dos
+Vieira e Bourdaloue, sermes ultramontanos empavezados de sapiencias
+academicas com grandes empolas de latim pago. Nunca me receitava. Para
+as insomnias mandava-me lr philosophos e poetas epicos. Disse-me que,
+na sua clinica, empregava primeiro as epopeas desde a _Iliada_ at
+_Henriqueida_; e, em ultimo recurso, os systemas philosophicos desde
+Plato at Victor Cousin. Que tivera--contava--um doente de insomnia
+rebelde que resistira singularmente ao 1. e parte do 2. Canto dos
+_Luziadas_; mas, perdidas as esperanas de anesthesia, lhe lra duas
+paginas de Kant, e o enfermo ficra sopitado n'um lethargo de
+Epimenides. Aconselhou-me a Homeopathia, medicina inoffensiva e de
+vantagem para fantasistas supersticiosos. Apenas lhe achava o defeito de
+ter entre os seus medicamentos uma _Eufrazia_ e uma _Ignacia_; por que,
+se tivesse tambem uma _Athanasia_, seriam as trez Parcas com pseudonymos
+lethaes. Entretanto, achou-me espantosamente melhor. No acreditava.
+Queria saber o que eu tinha tomado. Referi-lhe a verdade--as mos de
+boi, os bifes de presunto, as troixas, o melo, a Providencia, sobre
+tudo a Providencia na pessoa de Gertrudes.
+
+-- uma grande clinica a Gertrudes, disse elle; mas, se ella manh lhe
+der lampreia, congro de caldeirada, timbal de camares ou sallada de
+pepino, aconselho-lhe que se abstenha. A morte pela fome e a morte pelo
+enfartamento andam sempre de brao dado.
+
+--Mas, se a natureza pede ...--atalhei plagiando Gertrudes.
+
+--Nada de pantheismo. A natureza compe-se de dois elementos em
+propores desiguaes: Deus como um, e Diabo como trez. Sou manicheu.
+Apenas concedo ao Bem a quarta parte de aco na regedoria do universo.
+O Diabo quem faz os venenos dos vegetaes e dos mineraes, o frio que
+gela o sangue e o calor que abraza o cerebro, e a hydrophobia, e o raio
+e os terramotos, e a cholera asiatica, os miasmas homicidas dos pantanos
+e cavernas, e, sobre todos os flagellos, o homem que, fornecendo uma
+pequena parte de si, uma costella, produziu essa pessima coisa--a
+mulher. No se fie na natureza, e muito menos na humana, por que essa
+a mais corruptivel, e a mais fetida quando apodrece de todo. Por
+emquanto v comendo as mos de vacca; mas fique por ahi que no v
+metter os ps pelas mos.
+
+Isto, com embrechados de latim de Horacio e da Biblia, abalou-me quanto
+ dieta.
+
+ * * * * *
+
+Conversemos um pouco a respeito d'este medico, meu querido Thomaz
+Ribeiro. Sinval era geometricamente materialista, uma razo emancipada
+das intercadencias pathologicas da F. E fazia e prgava sermes nas
+egrejas catholicas. Como n'esta fara da vida ridiculo o papel dos
+homens mais intelligentes! Era atheu; por que se existisse Deus (dizia
+o precto) duas das suas muitissimas perfeies seriam a Bondade e a
+Presciencia. Ora a _maldade_ da creatura contradiz a _bondade_ do
+creador; e a _liberdade_ do homem, condemnado por causa d'ella, faz
+repugnancia _presciencia_ de Deus que teria creado o homem livre para
+o condemnar como insubordinado. Cacologia!--exclamava elle.
+
+Mas que falta de logica! Se eu, n'um impeto de erudio entupidora, lhe
+citava o invicto argumento de Voltaire: Se no existisse Deus, seria
+preciso invental-o, Sinval respondia-me com Diderot: _C'est ce qu'on a
+fait_. E quem ficava entupido, a final, era eu, por que as minhas
+lettras theologicas eram uma lastima. Havia de ser hoje!... Quanto
+immortalidade da alma, dizia elle que havia de esclarecer-se depois da
+morte. Eu no lhe replicava, por tambem me parecer esse expediente o
+mais acertado.
+
+--Mas desconfio que todas as minhas trez almas so mortaes--acrescentou
+elle.
+
+--Trez?!
+
+--So trez as almas que o divino Plato me concede no _Timeu_. D-me uma
+alma immortal na cabea, e duas almas mortaes, uma no peito, e outra na
+barriga, separadas pelo diaphragma.
+
+E, com effeito, verifiquei depois que Plato, considerado por alguns SS.
+PP. o precursor do christianismo, dava trez almas a cada pessoa; e, nas
+minhas especulaes physiologicas, encontrei sugeitos com as trez almas,
+porm todas na barriga.
+
+Lembram-me algumas definies d'este sensualista que sabia o seu
+Lucrecio de cr. Definia elle a virtude _um producto artificial da
+politica e da vaidade_. Aqui ha bastante sensatez; mas esta definio
+estava dada por Mandeville e impugnada por Berkeley, seculo e meio antes
+de Sinval nascer.
+
+Definio do _homem_: O homem um organismo servido por bons e mos
+instinctos, alguns mais ferozes que os das alimarias, e nenhum to
+intelligente como os do castor, das formigas e das abelhas; alm d'isso,
+tem o dom da palavra, se lh'a ensinam, e vai muito alm do papagaio em
+glotica. Ha uma s distinco que extrema o homem de todos os outros
+animaes ...
+
+--A alma--interrompi eu perspicazmente.
+
+--No. A mentira. O homem o unico animal que mente.
+
+Definio da _vida_: uma alternativa de assimilao e desassimilao,
+de secreo e excreo. _Pensamento_ o resultado de combinaes
+chimicas.
+
+--Ento, vida organica e vida da consciencia tudo chimica? E o Amor
+tambem?
+
+--, e da mais grosseira e trivial, por ser a unica exercitada na
+retorta do boticario da aldeia. O amor do homem primitivo e selvagem era
+uma paixo genesica, typica, servida em todo o reino animal por orgos
+identicos, histiologicamente e physiologicamente semelhantes, e a final
+de contas uma funco exosmosica de um lado e endosmosica do outro,
+percebe voc? O amor do homem actual e culto a mesma exuberancia bruta
+do organismo, modificado por alguns sonetos fmea; porm, no fundo da
+Natureza, est o inalteravel _clich_.
+
+E eu, melancolicamente, com gestos desolados:
+
+--Com que ento, _endosmose_ o amor de Beatriz, de Laura e Leonor!...
+oh! oh!
+
+E elle sorridente:
+
+--_Sensiblerie_ piegas, amigo meu, as suas interjeies theatraes. Se
+Beatriz e as outras meninas, em vez de gerarem, por inspirao, sonetos
+e poemas, tivessem occasio de gerar meninos robustos--com o qu a
+litteratura de cabotagem teria perdido bastante--voc mal poderia
+explicar-me transcendentalmente o phenomeno psychico do amor do Dante e
+dos outros e de Beatriz e das outras. Nas regies selvaticas onde o
+sensualismo se retoia desenfreadamente em promiscuidade de homens e
+mulheres, como classifica voc esse estimulo bruto da carne? talvez o
+classico Cupido que desembesta do arco flechas de amor aos coiros fuscos
+dos australezes, hein? V perguntar a um cafre kuza se elle sabe o que
+_amor_, e pergunte cafrina se ella entende o que seja _pudor_ ...
+
+--Perdo! o pudor universal, particularmente nas mulheres sem excepo
+das raas mais atrazadas. Haja vista s tangas ...
+
+--Ora muito obrigado pelas suas tangas ...--atalhou Sinval a impulsos de
+riso.--O celebre viajante Cook, na sua _Primeira viagem_, conta que em
+Taiti as mulheres, por um refinamento de educao esmerada, quando
+cumprimentam alguem, exhibem aquella metade do corpo menos usual nas
+exposies ao ar livre.
+
+--Quo delicadas!
+
+--E quo pudibundas!... Ha tribus selvagens, alis muito castias, em
+cuja linguagem falta a palavra _amor_, nem mesmo conhecem o beijo, essa
+mimosa delicia da epiderme que os homens aprenderam dos pombos e das
+rolas, por que a bsta humana era incapaz de inventar o beijo.
+
+D'uma vez, resentido com aquella _litteratura de cabotagem_ em que elle
+mentalmente me classificava, e, de mais a mais, ferido nas minhas
+convices metaphisicas, sahi lia impavidamente, e discorri por
+largo, e bem, com muita felicidade, provando a existencia de Deus pelo
+facto da minha existencia, e a divina formao do mundo pelo facto da
+materia bruta no se poder espontaneamente formar a si, alis o homem,
+materia menos bruta, faria alguma coisa com elementos novos.
+Innegavelmente despenhei-o; mas elle, como o Lucifer de Milton e do Braz
+Martins no _Santo Antonio_ ainda regougava l do fundo do abysmo:
+
+--Voc conhece a philosophia de Xenophanes?
+
+Fiz um gesto de cabea affirmativamente patarata, e elle proseguiu com
+um riso mordazmente suspeitoso de que eu no sabia nada de Xenophanes.
+
+--Xenophanes--disse Sinval solemnisando o aspeito--aos noventa e dois
+annos de idade lia os seus poemas didaticos de moral santa, e pedia
+esmola aos ouvintes para sepultar os filhos. Morreu mais de centenario
+estudando sempre; e, pouco antes de expirar, fez esta profecia: Ninguem
+soube, nem sabe, nem saber nada respectivamente a Deus e formao do
+mundo; e aquelle que mais egregiamente fallar d'essas coisas, ser to
+ignorante como os outros. Ora voc acaba de fallar egregiamente.
+
+E retirou-se, provavelmente, confundido.
+
+Nunca me esqueceu a opinio scientifica d'este medico a respeito do
+adulterio. Dizia elle com aprumo cathedratico e um sorriso
+rabelaiseano:--Esposa perfida e esposo trahido so effeitos necessarios
+e fataes de influencias celestes--coisas do Zodiaco. Uns homens, os
+seductores, nascem no Signo de Leo, e d'ahi vem chamarem-se _lees_;
+outros homens, os minotaurisados, nascem no signo de Capricornio, e
+d'ahi vem chamarem-se o que voc sabe. como eu penetro n'esta escura e
+hedionda voragem do adulterio, com o facho mathematico da Astronomia.
+
+--Em que Signo nasceria eu?--murmurei meditabundo, ingenuamente.
+
+E elle, com solemnidade comica:
+
+--No Signo de _Libra_ no seria por que o vejo bastante falho d'essa
+especie. Persuado-me que seria no de _Caranguejo_, (_Cancer_) quando
+leio na gazeta as suas theorias sociologicas; mas, vista do candor
+donzel da sua lyra amorosa, bem pde ser que voc nascesse no Signo de
+_Virgem_ (_Virgo_). Fsse como fsse, fao votos amigos e sinceros por
+que no nascesse no de _Capricornio_, nem no de _Touro_ (_Taurus_), nem
+no de _Carneiro_ (_Aries_), por que todos tres possuem excrecencias
+symbolicas por onde se explica a profuso dos influenciados. Ha pontas
+de mais no Zodiaco, no acha?
+
+--Sim, acho bastante sortido o Zodiaco. Parece a capital de um reino
+civilisado.
+
+--Pois os legisladores no percebem d'isso nada. Esto ainda com o
+direito canonico da idade-mdia, permittindo que o trahido mate a
+adultera, e mandando em paz o marido adultero colhido em flagrante
+delicto. E note voc--exclamava Sinval n'uma irritao de consciencia
+revoltada--note voc que a legislao christianisada da idade-mdia,
+muito cruel para as mulheres e indulgentissima para os homens, era feita
+sob o influxo dos concilios! Realmente as mulheres devem grandes
+obsequios ao christianismo, e pdem fiar-se nos prgadores e nos
+moralistas _rococos_ dos Semanarios religiosos que, uns por ignorancia e
+outros por obrigao do officio, a bigodeam com a sua emancipao! A
+certos respeitos, no ha paiz como este nosso para ossificaes de umas
+certas ignorancias convencionaes. Conta-se que Jesus perdora a uma
+adultera, por que entre os seus proprios discipulos e o mulherigo que a
+seguia escandalisado na piugada dos esbirros, no havia creatura limpa
+do mesmo peccado que lhe atirasse a primeira pedrada. Bem boa corja,
+_cela va sans dire!_ Pois, quer seja facto, quer seja parabola, temos
+muito que deslindar entre a philosophia messianica de Christo e a
+religio dos christos. O ideal humanissimamente caridoso de Jesus,
+quanto fragilidade da mulher, no tem que vr com o _Matrimonio do
+jesuita_ Sanches e o _Livro V das Ordenaes_. Logo que Jesus, immolado
+inutilmente arraia-miuda da Galila, fechou os olhos, as adulteras
+judias e as conversas ao christianismo deturpado de Paulo, continuaram a
+ser apedrejadas; e, rodados 1849 annos de civilisao desde a tragedia
+do Golgotha at comedia da Carta-Gaioso, certo artigo do Codigo Penal,
+que nos rege, permitte que o esposo trahido estrangule a adultera, sem
+lhe dar tempo a invocar o misericordioso perdo exemplificado por
+Christo. Pobres mulheres! que rica emancipao![2]
+
+Este trecho de discurso no era incontestavelmente um modlo de
+eloquencia do pulpito catholico; mas o caso que eu no sabia ento
+destecer-lhe os fios do sophisma. Havia de ser hoje!... E este
+homem--que tinha um talento anecdotico, relampejante de remoques de
+Swift e de Voltaire, ironias feitas de potassa caustica, indultando com
+risos sarcasticos os vicios sociaes que afogam em lagrimas as suas
+victimas--Camara Sinval padecia no cerebro uma doena irrisoria, a
+monomania de prgar sermes bombasticos crca do S. Sacramento, que por
+ahi andam em um grosso volume posthumo, com um prefacio meu, ha mais de
+vinte annos. A prosa de Sinval tinha a sonoridade rythmica do verso
+heroico. Possui impressa uma das suas oraes proferidas na abertura das
+aulas medico-cirurgicas. Comeava assim: _Tem o sanhudo leo falcadas
+garras, tem a timida lebre agudo ouvido, vista perspicaz a aguia
+generosa ..._ So trez hendecassyllabos arcadicos bem feitos, pomposos.
+
+ * * * * *
+
+Voltando minha enfermidade mortal, no dia seguinte restringi-me ao
+bacalho assado muito saturado do alho estomacal. O bacalho conquistou
+na moderna therapeutica das gastrodyneas, nas dyspepsias e gastrites
+chronicas uma reputao tonica, restaurante; quanto ao alho, esse gosa
+creditos de antidoto da raiva; porm, n'aquelle tempo, o reles pescado
+da Terra Nova era considerado comestivel apenas assimilavel a estomagos
+de patages, com a potencia digestiva de ogres; e, a respeito do alho,
+pessoa que cheirasse a elle tinha as inquiries tiradas desde malandro
+at scelerado.
+
+Como quer que seja, eu, alternando o bacalho com as tripas de boi--as
+tripas, o heroico brazo do Porto--um complexo aphrodysiaco de chispe,
+de paio, aves, hervanos e coloro, recuperei, ao cabo de duas semanas,
+foras extraordinarias e tamanhas que, n'um transporte de gratido,
+levantei Gertruria e passei-a triumphalmente nos meus braos. Quando as
+chloroses e as anemias esto grassando nos grandes centros como doena
+endemica da gerao nova depauperada, eu faltaria ao sagrado dever
+altruista, se no offerecesse este boletim sanitario aos que padecem.
+Que elles principiem pela mo de vacca e concluam a sua cura com tripas
+sortidas.
+
+Entretanto, o doutor Joo Ferreira propalava a minha cura da perigosa
+opilao como a mais rara e inesperada da sua clinica, mediante o ferro
+e o vinho quinado. Tinha-me arrancado das przas da morte, dizia-se; e a
+minha engomadeira, uma devota velhinha, asseverava que fra o martyr S.
+Torquato de Guimares que a obsequira mais uma vez, curando-me.
+
+ * * * * *
+
+Depois, no resvalar de doze annos, as vagas aparcelladas da minha
+derrota em demanda do Prestes-Joo do Ideal, sendo piloto o marido asss
+conhecido de Psyche, baldearam-me a regies inhospitas onde no podia
+encontrar Gertrudes. Nunca mais a vi; mas, como a saudade me estava
+sempre negaceando para aquelle tempo, a imagem d'ella acompanhava as
+minhas recordaes de perdas irreparaveis, desde uns aureos sonhos de
+trovador que eu sonhra, at outros sonhos de farinha e manteiga que a
+Gertrudes fazia com o auxilio dos ovos. Eu sentia, a um tempo, o perfume
+dos anhelitos de Marilia bella e o das murcellas incomparaveis de
+Gertruria. A vergonhosa dualidade do corao do homem! Se no fossem as
+falacias metrificadas, e o lyrico, depondo o alaude, se confessasse
+ingenuamente em prosa, no haveria arrbo de alma que no sahisse
+apelintrado pela concumitancia ignobil das caoulas.
+
+ * * * * *
+
+Quando li a noticia da morte de Gertrudes, e no pude duvidar que a
+naufragada era a minha restauradora, meditei solver a minha divida de
+gratido com um artigo necrologico, por no ter sufficiente confiana na
+utilidade de uma missa _de requiem_, a doze vintens, vinho por conta do
+padre.
+
+Eu tinha pertencido por algum tempo a uma sociedade de homens de
+lettras, quasi exclusivamente dedicados especialidade necrologias de
+defunctos illustres. Eramos os gatos-pingados do Baluarte. Choravamos
+enormes artigos bem phraseados e estrangulados de interjeies
+afflictas, com epigraphes em latim, sobre defunctos analphabetos que,
+mingua de instruco primaria, no poderiam na celeste manso tomar
+conhecimento da nossa prosa. Andavamos to assanhados n'esse fariscar de
+chacaes o cvo litterario de carne morta que seriamos capazes de
+assassinar pessoas distinctas, se as indigestes, as tuberculoses, a
+cachexia mercurial, o escrofulismo, os figados engorgitados e a
+pharmacia nos no dispensassem de alimentar com sangue humano o
+cannibalismo da Arte elegiaca. O presidente da sociedade era Jos
+Barbosa e Silva, um moo de grande talento, diplomata em Berlim,
+deputado por Vianna do Castello, sua patria. As necrologias que este
+adoravel rapaz estampou so as de todos os mortos seus contemporaneos,
+seus amigos, seus conhecidos, ou apenas amigos ou conhecidos de uns
+sujeitos que elle podia vir a conhecer. No torvelinho dos prazeres, que
+todos experimentou, Jos Barbosa parava de repente a olhar para o golpho
+que lhe sorvia um companheiro; e, como presagiava morrer aos vinte e
+oito annos, quando carpia os outros, ponderando a tristeza da morte,
+parecia chorar sobre si mesmo.
+
+Fallecido Barbosa e Silva, o maior numero de seus amigos escriptores
+tomou a srio a desgraa da morte, e experimentou a impossibilidade de
+escrever necrologias quando a dr sincera e inconsolavel. Os socios da
+instituio carpideira j quasi todos naufragaram por essas restingas
+dos cemiterios. Os raros que ainda restam, sentados ourella do rio
+negro, encolhidos, a tiritar na algidez de decrepitos, e de mos
+inclavinhadas nos joelhos, ainda ouvem as commemoraes funebres da
+actualidade, e por vezes rejubilam na sua jactancia senil quando se vem
+plagiados n'estas frmas da necrologia moderna:
+
+ Mais uma saudade para a terra, mais um anjo para o co, etc.
+
+ Mais uma vida ceifada em boto pela fouce, etc.
+
+ A aza negra da impavida morte acaba de roar as faces do nosso
+ amigo, etc.
+
+ A sangrenta Parca acaba de cortar, etc.
+
+ A cega Atropos que tanto bate porta do palacio como da choupana,
+ etc.
+
+E estes dizeres que j fram formulas srias, sacramentaes, e estimulo a
+torrentes de lagrimas, so hoje em dia uns humorismos inconscientes que
+despojam a morte de toda a sua respeitabilidade e circumspeco.
+
+ * * * * *
+
+Pois, Thomaz Ribeiro, no pude redigir a necrologia de Gertrudes!
+
+Tu que s sensivel e conheces os arcanos da arte,--que possues illesas
+do golpe dos desenganos as cellulas funccionaes das illuses queridas,
+(isto --a alma incolume, com as suas 3 potencias, numerao antiga); e
+conservas a candura juvenil do corao, (_corao!_ o musculo nutriente
+com auriculas e ventricolos!--releva o archaismo provenalsco que me
+faz coevo de Macias, o Enamorado), do musculo, digo, que no encaneceu
+em breves annos de infortunio sem treguas; e, na idade da prosa de
+ministro da cora, ainda te commoves sob o impressionismo affectivo do
+inolvidavel poeta do D. JAYME, imaginas, porventura, que eu no pude
+escrever por que as dres immensas so mudas, e os repelles da paixo
+turbulenta impedem que a phrase se acepilhe e pula e arredonde. Agradeo
+o teu conceito que ao mesmo tempo me lisongeia e adultra; mas a razo
+outra-- deploravel. Queres saber por que no escrevi a necrologia da
+humilde mulher que me salvou?--foi por que ella me salvou como
+cozinheira. Por mais combinaes que fiz com as grosas de allegorias de
+que dispunha, por mais embrechados de figuras que os canones de
+Quintiliano me liberalisassem, no atinei com uma evasiva consentanea
+com a minha cathegoria de philaucioso casquilho em _redingotes_ do
+Catarro e lettras amenas. Eu tinha escripto bastantes artigos funebres,
+catadupas de pranto sobre os esquifes de matronas vrias que haviam
+nascido _gertrudes_, e do tamborte da cozinha avoenga se esvoaaram nas
+azas da bebada fortuna para os divans bysantinos e d'ahi para os jazigos
+marmoreos. A penna corria-me de vontade, no fremito da inspirao, e as
+perolas, crystalisaes do muco lacrimal, saltavam-lhe dos bicos quando
+a defunta levava atraz da sua podrido muitas carruagens, e era
+suffragada na egreja refulgente de tochas, em uma neblina de incenso,
+por uma berrata fanhosa e barbarsca de levitas, com barrigas
+basilicaes, que decerto, se os transportassem s misses africanas,
+ririam s escancaras da algazarra que fazem os cafres volta de um
+morto.
+
+Figurou-se-me, alm d'isso, que a imprensa, moderadamente democratica e
+cheia de conveniencias melindrosas, se constrangeria tolerando nas suas
+columnas, por comprazer minha ridicula magua, a necrologia da
+cozinheira Gertrudes. De mais a mais, eu no sabia como alar o estylo
+prismatico, de adjectivos rutilos, de modo a deslumbrar a critica soez,
+e a no desafiar o sorriso gaiato dos dandys pela importancia que eu
+dava minha sanidade physiologica restaurada pela mo de vacca.
+Ser-me-hia talvez possivel equilibrar na gymnastica de locues
+explosivas, victorhuguescas, onomatopaicas o interesse da morta,
+descrevendo o naufragio do barco rabllo com os horrores do brigue
+_Mondego_ ou da fragata _Medusa_. Eu conhecia umas esfusiadas
+pyrothechnicas de metaphoras que punham enthusiasmos furiosos na
+dramatologia epileptica do Theatro-Normal, volcanisando as familias
+incendiarias da rua dos Bacalhoeiros; e ainda agora no passam de todo
+despercebidas minha pasmaceira de minhto palerma.
+
+Ainda cheguei a ensaiar o genero ... _Os relampagos afuzilavam ... O co
+phosphoreava as suas lampadas sinistras para vr a lucta do abysmo. Eram
+os albatrozes, n'um arquejar estridente, a pairarem na treva superior
+com as suas azas de fogo. As aguias do Maro, acossadas pelos bulces
+das cumiadas, acolhiam-se s concavidades da serra, e passavam grasnando
+o threno da desolao por sobre o paroxismo dos naufragos. Zuniam
+furaces assobiando pelas espaldas angulosas dos penhascaes ... A
+tripulao, n'um clamor de agonias, a bradar misericordia! ... O baixel
+arfava no dorso do vagalho, ou, cuspido s nuvens, resvalava na voragem
+onde as pranchas descosidas ringiam asperrrrrrimamente._
+(Onomatopeia) ... _Castellos de nuvens atras desabavam_ _n'um estrallejar
+de ribombos; o escarceu verde-bronze, topetando com o ether zebrado de
+coriscos, baqueava-se depois n'um marulhar de espumas rugidoras ... O
+cahos de cima a descer, a descer com a mortalha de treva sobre o abysmo
+que subia, subia n'uma ressonancia de maldies ao FIAT, creador das
+sevas angustias ineluctaveis do homem. E o naufrago cravava olhos
+piedosos no co; e via listrarem-se as centelhas dos raios, como se os
+Titans revolucionados arrojassem cara de Jupiter as escumalhas igneas
+das suas forjas. E o baro de Forrester, ao portal, hirto, impavido
+como Nelson no Trafalgar.., etc._ Tudo isto e o resto me sahiu ao
+pintar, e exacto como uma photographia, na descripo de um desastre de
+barco de pipas ido a pique entre dois calhos do Douro; mas, a final, o
+que eu no sabia era diluir em synonimias e paraphrases coherentes com a
+tremenda catastrophe o qualificativo cozinheira. Ainda se Gertrudes,
+filha de um desembargador miguelista ou d'um brigadeiro capitulado em
+Evora-Monte, com alguns appellidos historicos, houvesse descido as
+escaleiras da necessidade, sem deslise da honra, at baixeza do seu
+officio, talvez que eu ousasse arcar com a necrologia, apostrophando o
+flagello da guerra civil que acorrentou grilheta do fogo e da bateria
+de panellas aquella mulher nascida para rastolhar, sobre tapetes,
+_moires_ crepitosas, laminadas de brilhos metalicos ondulantes, e para
+saltar com tregeitos desenvoltos, n'um derrengue arregaado e
+esquadrilhado de _cuyre_, da estribeira do _landeau_, armorejado de
+paquifes arrogantes e escudos e timbres com passaros prehistoricos e
+hydras assanhadas, porta das modistas;--para reinar, emfim, nos
+theatros, no turbilho dos bailes, nos balces dos bazares
+philantropicos, na Caridade-_Flirtation_, e talvez no _sport_ e no
+_turf_. Mas Gertrudes no tinha appellidos: era miseravelmente
+_Gertrudes Engracia_, d'um plebeismo razo, filha da Engracia, j celebre
+cozinheira dos fidalgos Mellos, casada com o Bento, cozinheiro famoso
+dos fidalgos Cyrnes, o qual cazra com uma cozinheira no menos
+distincta dos fidalgos Pamplonas. Esta genealogia, entre duas receitas
+de pudins de batata, encontrei-a escripta pelo pae de Gertrudes nas
+costas do frontispicio de um velho livro que ella me deu chamado _Alivio
+de tristes e consolao de queixosos_. E da mesma arvore de gerao
+constava que seu terceiro av materno fra abbade de Miragaya e sua
+quinta av paterna era filha de um frade loio. Estes dois clerigos
+propagadores, como elementos genealogicos, no me pareceram
+imperiosamente exuberantes de moralidade e justia para que eu,
+apostrophando a execravel guerra civil, a responsabilisasse pela
+decahida posio servil da neta do frade e do abbade.
+
+ * * * * *
+
+Aqui tens, Thomaz Ribeiro, um corao aberto pelo remorso que se
+offerece disseco do teu bistur. Santo Agostinho, imbecilitado pela
+piedade, e J. J. Rousseau, desbragado pela sua dissimulada philosophia
+cynica, deram-me o exemplo de vir praa com a confisso tardia de uma
+pusillanimidade que d a medida da miseria humana, e particularmente dos
+artistas de necrologias. N'este escripto, vim justiar duas
+bestialidades protervas: a minha ingratido e o clyster inglez. Agora,
+sinto-me bem, muito desabafado. Talvez lhe deva a elle, _jeropiga_
+desobstruente do Forrester, este desempacho da consciencia. Ha exemplos
+confirmados por aforismos de Hippocrates.
+
+Se chegaste aqui sem fastio, s um anjo de paciencia e de problematico
+bom-gosto. Decerto uzurpei patria uma hora das tuas contemplaes
+sanitarias sobre a reviso da CARTA, que anda agora mui frequente na
+revista--o que me parece rasoavel, se ella, no obstante a _bigoterie_
+do Artigo 6., se tornou suspeita de virginismo insufficiente para reger
+um paiz pudibundo.
+
+Seja como fr, n'este opusculo esfervilham episodios desvairados que
+desatremam do assumpto e do titulo. So exuberancias que extravasam de
+uma grande medida cogulada de annos e de reminiscencias. O criticismo
+unhar o abuso do subjectivismo indisciplinado, a desorientao do
+abjectivo impessoal, da Arte Pura com maiusculas, finalmente--o
+romansco. Affoito-me, todavia, a esperar que os criticos prticos,
+tendo em vista os episodios extravagantes, afra os gallicismos de que
+capaz o seu aristocrata Tokay, usaro com o meu modesto vinho do Porto
+a sua costumada indulgencia generosa. E permitta a minha benigna
+estrella que os almotacs d'este folheto, quando hajam de aquecer o seu
+criterio no calorifico de alguma beberagem nervosa e suggestiva,
+prefiram o Johannisberg palaciano ao garoto Cartaxo do _Jos dos
+Caracoes_; por que, a final de contas, nem todos os criticos espiritados
+por vinhos canalhas tem o _humour_ faiscante de Poe, de Hoffmann, de
+Marlowe, de Zacharias Werner e de Bocage--uma constellao de bebados
+immortalmente classicos.
+
+ * * * * *
+
+Ainda se no disse tudo.
+
+N'este pedao de litteratura da decadencia, ou decahida de todo, observe
+a critica escorreita que ha dois projectos: um patente, o outro
+clandestino. O primeiro --arrazar Inglaterra; e, com effeito,
+arraza-se. O projecto clandestino, um tanto arteiro, obter pelo
+sophisma tortuoso da lettra redonda, typo-Elzevir, o que o mercieiro
+alcana com o correcto syllogismo dos azeites e dos farinhaceos. O
+Espiritual ousa correr o prio com o Comestivel: a meta o habito de
+Christo. Que o mercieiro, melindrado na sua prosapia de anthropoide, no
+se agaste, se eu o lano n'estas correrias de hippodromo. No lhe
+conheo outros dons que o habilitem a entrar no _sport_.
+
+Emfim, quando voltares a ministrar os negocios do reino, Thomaz Ribeiro,
+no me percas d'lho o meu habito de Christo, merecido pela faanha
+heroica e pouco trivial de arrazar Inglaterra. Bem vs que estas
+ambies alis temerarias, confesso, no ultrapassam desmedidamente as
+balisas do meu merecimento. A almejada venera a infima, penso eu, a
+mais piranga caracteristica ethnica da raa que domina esta nesga
+rasgada da Espanha, (que m'o releve D. JAYME)--umas noventa leguas,
+metade incultas; e, assim mesmo, na povoao d'essa metade, inam e
+pompeiam, segundo conta o _Almanach Commercial para 1884_, cento e vinte
+dois condes, trezentos e quatro viscondes, e cento e noventa bares.
+Quanto a commendadores, quem contou as gotas do mediterraneo, as areias
+do Saharah e as estrellas da Via-Lactea? Ora, a respeito do habito de
+Christo, isso j agora, bem sabes, uma coisa que se exporta para o
+estrangeiro como amostra da nossa unica industria; mas envia-se
+gratuitamente como os _Grands Magasins du Printemps_ nos remettem de
+graa, francos de porte, os retalhinhos das suas fazendas.
+
+Ah! que eu no morra n d'esse habito! Concedam-me, na morte ao menos,
+essa insignia de christo em terra de moiros.
+
+ _S. Miguel de Seide, abril, 20, 1884._
+
+ [1] Quando o baro de Forrester pereceu por desastre, um dos mais
+ authorisados jornaes do paiz, escreveu sentimentalmente o seguinte:
+ ... A morte desgraada do snr. baro de Forrester a todos
+ penalisava, pois o muito que aquelle illustrado cavalheiro se
+ interessra sempre pela sorte do Douro, os bons servios que lhe
+ prestou com os seus escriptos ... o tornaram geralmente estimado ...
+ Mostrou-se sempre muito dedicado a este paiz, e por muitas vezes
+ associou o seu nome aos dos que mais trabalharam para os seus
+ melhoramentos e progresso.--_O Commercio do Porto_, de 14 de maio
+ de 1861.
+
+ Um correspondente da Regoa para o mesmo jornal e no numero seguinte,
+ escreveu: sincero o sentimento geral que produziu a noticia da
+ morte do snr. Forrester, e so bem justas as lagrimas que se
+ derramam por to desastroso acontecimento. uma divida sagrada que
+ se paga memoria do distincto cavalheiro que tanto se sacrificou
+ por este paiz. Portugal e especialmente o Douro muito lhe devem ...
+ Apesar de estrangeiro era portuguez do corao por que poucos filhos
+ d'esta patria mais fizeram por ella nem mais a amaram ...
+
+ Parece, pois, que os exemplares da diffamao do vinho do Porto eram
+ desconhecidos em Portugal. Que f nos hade merecer a historia e a
+ biographia escripta por contemporaneos, quando o facto social
+ erradamente julgado, ou a vida de um individuo favorecida pela
+ adulao, ou deturpada pelo odio, no tiverem contradictores, tambem
+ coevos, a contrastal-a!
+
+ [2] _Nota illustrativa._--Joseph Gregorio Lopes da Camara Sinval era
+ esturrado patula da Junta rebelde do Porto, e commandra com honras
+ de coronel o batalho academico. Alm d'este predicado faccioso,
+ Sinval tinha o exemplo do austero historiador A. Herculano, que
+ escrevra: _A historia do liberalismo uma comedia de mo gosto._
+ E, resalvando as duas nobres personagens, D. Pedro IV e Mousinho da
+ Silveira, accrescentra: _O resto no vale a penna da meno. So
+ financeiros e bares, viscondes, condes e marquezes de fresca data e
+ mesmo de velha data, commendadores, gro-cruzes e conselheiros: uma
+ turba que grunhe, borborinha, fura, atropellando-se e
+ acotovellando-se, na obra de roer um magro osso, chamado oramento,
+ e que grita aqui-d'el-rey! quando no pde tomar parte no regabofe._
+ Quanto Carta-Gaioso a gente velha ainda conheceu no Porto a
+ corista d'aquelle appellido que cantou o hymno da Carta Restaurada
+ no theatro de S. Joo, e desde ahi ficou identificada, a Gaioso, com
+ o codigo das liberdades ptrias.
+
+
+
+
+
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+bestialidade ingleza, by Camilo Castelo Branco
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O VINHO DO PORTO ***
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+Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
+and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
+works. See paragraph 1.E below.
+
+1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
+or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
+Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the
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+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
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+The Project Gutenberg EBook of O vinho do Porto: processo de uma
+bestialidade ingleza, by Camilo Castelo Branco
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+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
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+with this eBook or online at www.gutenberg.org
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+Title: O vinho do Porto: processo de uma bestialidade ingleza
+ exposio a Thomaz Ribeiro
+
+Author: Camilo Castelo Branco
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+Release Date: February 26, 2008 [EBook #24691]
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+Language: Portuguese
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+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O VINHO DO PORTO ***
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+Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images
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+<h6>Porto&mdash;Imprensa Moderna</h6>
+<span class="pagenum">[3]</span>
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+<div class="capa">
+<h3>CAMILLO CASTELLO BRANCO</h3>
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+<h1>O vinho do Porto</h1>
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+<h4>PROCESSO D'UMA BESTIALIDADE INGLEZA</h4>
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+<h4>THOMAZ RIBEIRO</h4>
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+<h5>2. EDI&Ccedil;&Atilde;O</h5>
+<br>
+<br>
+<br>
+<br>
+<h6>PORTO
+<br>
+LIVRARIA CHARDRON
+<br>
+De Lello &amp; Irm&atilde;o, Editores
+<br>
+1903</h6>
+</div>
+<span class="pagenum">[4]</span>
+
+<h6>Propriedade absoluta dos editores</h6>
+
+<h6>Reproduc&ccedil;&atilde;o Interdicta</h6>
+<span class="pagenum">[5]</span>
+
+<h2><span class="small-caps">a Thomaz Ribeiro</span></h2>
+
+<div class="citacao" style="font-size: 0.8em;">
+<p>Como sei que o teu amor &aacute;s perfidas tr&ecirc;tas e manhas da
+Inglaterra n&atilde;o &eacute;
+dos mais acrizolados, venho offerecer ao teu sorriso um <span
+class="small-caps">specimen</span> de bestialidade ingleza.</p>
+</div>
+<span class="pagenum">[6]</span> <br>
+<span class="pagenum">[7]</span>
+<br>
+<br>
+<br>
+<br>
+<p>Ha trinta e cinco annos que um bret&atilde;o anonymo lavrou na
+<i>Westminster
+Review</i> a condemna&ccedil;&atilde;o do vinho do Porto como deleterio e
+empe&ccedil;onhado por
+acetato de chumbo e outros toxicos anglicidas. O homem, pelas
+r&aacute;bidas
+violencias do estylo, parece ter redigido a calumnia depois de jantar,
+n'uma
+exalta&ccedil;&atilde;o capitosa do tannino do alvarilh&atilde;o que elle
+confundiu com as
+afflic&ccedil;&otilde;es dos venenos metallicos. Relembra lamentosamente,
+com a lagrima das
+<span class="pagenum">[8]</span> bebedeiras ternas, o seculo dezoito, em
+que
+o genuino licor do Porto era um repuxo de vida que irrig&aacute;ra a
+preciosa
+existencia de grandes personagens da Gran-Bretanha. Recorda Pitt e Dundas,
+Sheridan e Fox, famigerados absorventes do nosso vinho. Diz que Lord Eldon
+e
+Lord Stowel, gra&ccedil;as infinitas ao Porto, reverdejaram e floriram em
+velhos; e
+Sir William Grant, j&aacute; decrepito, bebia duas garrafas de <i>Porto</i>
+a cada
+repasto, para conservar crystallinamente a limpidez das suas faculdades
+mentaes e a rija musculatura de todos os seus membros j&aacute;
+locomotores, j&aacute;
+apprehensores, e o resto. Lamenta que Pitt, debil de
+complei&ccedil;&atilde;o, com o uso
+immoderado d'este tonico, e em resultado de plethoras frequentes combatidas
+com ammoniaco e sulfato de magnezia, vivesse dez annos menos do que
+viveria,
+se possuisse o incombustivel <span class="pagenum">[9]</span> estomago
+curtido do veneravel Lord Dundas.</p>
+
+<p>Succedeu, por&eacute;m, ao collaborador da <i>Westminster Review</i>
+achar-se
+dyspeptico, com az&iacute;as, relaxes intestinaes, eructa&ccedil;&otilde;es
+cloacinas, e o craneo
+sempre flammejante como suja poncheira, com o encephalo em combust&atilde;o
+de
+cognac e casquinha de lim&atilde;o&mdash;isto depois de
+satura&ccedil;&otilde;es copiosas dos vinhos
+adulterados do Porto&mdash;<i>uma mixordia negra</i>, diz elle afflicto;
+mas n&atilde;o
+sabe decidir de prompto se a degenera&ccedil;&atilde;o est&aacute; na
+ra&ccedil;a saxonia, se no
+vinho
+portuguez. Pelo menos e provisoriamente considera-se envenenado, o
+bruto.</p>
+
+<p>Pois o veneno que lograr infiltrar-se nas mucosas inglezas deve ter a
+potencia esphacelante da Agua Tufana dos Borgias. Em Inglaterra os porcos
+engordam na ceva do arsenico. Que fibras de ra&ccedil;a <span
+class="pagenum">[10]</span> aquella! &Eacute; que a carne d'um
+bret&atilde;o diverge muito
+da carnadura da restante Europa. O anthropologo Topinard observou que a
+mortandade nos hospitaes inglezes, em seguimento &aacute;s
+opera&ccedil;&otilde;es cirurgicas,
+era
+muito menor que a dos hospitaes francezes. O sabio Velpeau, consultado pela
+Academia de Medicina, respondeu que <i>la chair anglaise et la chair
+fran&ccedil;aise n'etaient la m&ecirc;me</i>. E n&atilde;o d&aacute; a
+raz&atilde;o da differen&ccedil;a, por que a
+n&atilde;o sabia o grande biologo. Eu, na observancia do dictame do
+Espirito Santo,
+pela bocca do <i>Ecclesiastico</i>&mdash;n&atilde;o escondas a tua
+sabedoria
+illucidarei o snr. Velpeau. A raz&atilde;o, a scientifica &eacute; esta:
+emborca&ccedil;&otilde;es de
+bebidas acidas, e m&oacute;rmente de cerveja, combatem, como coadjuvantes
+do acido
+phenico, a gangrena; ora, o inglez, abeberado de cerveja, &eacute;
+refractario &aacute;
+podrid&atilde;o dos hospitaes. Como <span class="pagenum">[11]</span> se
+v&ecirc;, d'esta
+causal t&atilde;o obvia um anthropologo &eacute; capaz de espremer assumpto
+para volumes
+recheados de coisas abstrusas sobre ethnographia, climatologia,
+morphologia,
+mezologia, o diabo.</p>
+
+<p>Al&eacute;m da cerveja, a fibrina do porco, saturado de arsenico,
+entretecida na
+fibrina do inglez seu compatriota, faz d'elle um Mithridates para os saes
+de
+chumbo diluidos no vinho do Porto. O inglez n&atilde;o p&oacute;de morrer
+por ingest&atilde;o
+alcoolica. Se quer suicidar-se com instrumento liquido, tem de asfixiar-se,
+afogar-se no tunel como o lendario Lord. Elle &eacute; immortal,
+absorvendo; e s&oacute;
+p&oacute;de morrer&mdash;absorvido. Estranho animal! E &eacute; senhor das
+aguas e das melhores
+garrafeiras! O destino, pela tuba sonorosa de Cam&otilde;es, disse ao
+inglez:</p>
+
+<div class="poesia">
+<i>Entre no reino d'agua o rei do vinho.</i><br>
+
+
+<p>(LUS. c. VI.)</p>
+</div>
+<span class="pagenum">[12]</span>
+
+<p>Que litros de <i>Porto</i> envenenado se calculam efficazes para
+degenerar
+um bret&atilde;o at&eacute; &aacute; dyspepsia e &aacute;s agonias da
+morte?</p>
+
+<p class="centrado">*</p>
+
+<p>N'esta conjunctura, um possuidor de legitimo <i>Douro</i> convidou o
+intoxicado a beber o elixir fornecido por um commerciante britannico
+estabelecido no Porto. O negociante fornecedor era o Forrester que
+desappareceu d'este alf&ocirc;bre de charlat&atilde;es forasteiros, de um
+modo tragico, ha
+vinte e trez annos. Logo te contarei essa catastrophe, meu amigo.</p>
+
+<p>A sensa&ccedil;&atilde;o intima que o hospede recebeu nas suas entranhas
+foi uma
+novidade, uma deleita&ccedil;&atilde;o de refrigerio em todas as membranas
+desde o c&eacute;o da
+bocca <span class="pagenum">[13]</span> at&eacute; ao cego e
+visinhan&ccedil;a onde elle
+sentia os ardores da zona torrida. Emborrachou-se como era de esperar, e
+seria iniquidade censurar-lh'o; mas o seu cerebro de illuminado espelhava
+agora as visualidades ethereas, irisadas, do americano Po. Nem j&aacute; o
+ventre
+lhe rugia como se l&aacute; tivesse uma besta-fera embetesgada n'uma
+latrina, nem
+elle nauseado recorria &aacute;s titila&ccedil;&otilde;es na glote para
+golphar o acetato de
+chumbo. O possuidor da garrafeira, para o convencer de que o salv&aacute;ra
+da
+morte
+propinada pelo vinho homicida do Porto, mostrou-lhe dois opusculos inglezes
+recentemente publicados. Um era de J. James Forrester, e intitulava-se <i>A
+Word of truth Port wine</i>. O outro, por Whittaker, em refor&ccedil;o ao
+de
+Forrester, chamava-se <i>Strictures on a Word of truth on Port wine</i>.
+<i>London</i>, 1848.</p>
+<span class="pagenum">[14]</span>
+
+<p>Forrester, no seu folheto, desbaratava o valor do vinho do Porto,
+increpando os lavradores de n&atilde;o differen&ccedil;arem, no fabrico, as
+temperaturas
+humida, fria, secca e quente; que empregavam promiscuamente toda a casta de
+uva, adulterando-a com ingredientes adequados ao paladar inglez, mas
+corrosivos. Na opera&ccedil;&atilde;o do lagar, accusa o lavrador de
+retardar a
+fermenta&ccedil;&atilde;o, vasando em cada pipa de m&ocirc;sto entre dose e
+vinte e quatro
+gall&otilde;es de agua-ardente. Que, passados dois mezes, a mixordia era
+c&oacute;rada com
+baga, mediante uns saccos de linhagem que espremiam sobre o vinho, e depois
+atiravam o residuo ao tunel. Em seguida, novo despejo de agua-ardente, e
+dois
+mezes de descan&ccedil;o. Esta beberagem enviada para o Porto era novamente
+beneficiada com o veneno alcoolico; e, nove mezes depois, ao sahir para
+Inglaterra, <span class="pagenum">[15]</span> como golpe de misericordia,
+nova infus&atilde;o. De modo que o vinho entrava no estomago inconsciente
+do
+Reino-Unido &aacute; raz&atilde;o de vinte e seis gall&otilde;es de
+agua-ardente por
+pipa. Depois,
+descreve o que seja geropiga, e como ella entra n'estes horrendos mysterios
+da Brinvilliers. Esta geropiga, como logo direi, fermentou a bestialidade
+ingleza que passou victoriosamente na Europa em 1849.</p>
+
+<p>Rematada a lista das falsifica&ccedil;&otilde;es, fraudes e ladroeiras
+dos lavradores e
+negociantes portuguezes, Forrester exclama: Quem assim deteriora o vinho
+&eacute;,
+a meu v&ecirc;r, mais criminoso que um ladr&atilde;o vulgar; e conclue o
+seu opusculo
+n'estes termos: Os consummidores inglezes devem dar a Portugal uma
+li&ccedil;&atilde;o
+pr&aacute;tica, demonstrando que, se a esse paiz conv&eacute;m desfazer-se
+da sua
+agua-ardente, que n&atilde;o &eacute; nos vinhos do Porto que nos deve
+impingil-a; <span
+class="pagenum">[16]</span> por que n&oacute;s, em Inglaterra, podemos
+comprar baga
+e mela&ccedil;o por pre&ccedil;os muito mais em conta do que Portugal nos
+incampa o seu
+licor de que esses ingredientes formam o principal.</p>
+
+<p class="centrado">*</p>
+
+<p>Parecia natural e patriota coisa que os negociantes e agricultores de
+vinho accusassem este detrahidor &aacute; animadvers&atilde;o publica, e
+que a
+imprensa do
+baluarte da liberdade o cobrisse de injurias, e algum viticultor mal
+humorado
+de bengaladas. N&atilde;o, meu querido Thomaz Ribeiro. A sua casa luxuosa
+na
+Ramada-Alta era o confluente dos pr&oacute;ceres portuenses e da provincia
+vinicola.
+Titulares, desembargadores-conselheiros, ministros <span
+class="pagenum">[17]</span> de estado honorarios, os maiores proprietarios
+do
+Douro, e poetas arcadicos de pacotilha, que faziam dithyrambos ao
+jantar:</p>
+
+<div class="centrado">
+<p><i>Evoh&eacute;.</i></p>
+
+<p><i>Padre Ly&ecirc;o!</i></p>
+
+<p><i>Saboh&eacute;,</i></p>
+
+<p><i>Gr&atilde;o Bassar&ecirc;o!</i></p>
+</div>
+
+<p>Ainda se usavam, na bonacheira dos velhos, estas rancidas semsaborias
+remo&ccedil;adas por uma copiosa tintura de bastardo.</p>
+
+<p>Ali concorria o desembargador Fortunato Leite cheirando os vinhos que
+j&aacute;
+n&atilde;o podia deglutir e arrotando pelo nariz sobre os calices. Ao
+p&eacute; d'elle
+estava o visconde de Veiros, o Mello das Aguas-ferreas, expondo a dois
+morgados de Riba-Douro a sua erudi&ccedil;&atilde;o em genealogia, uma
+sciencia em que se
+distinguem muitos <span class="pagenum">[18]</span> parvos, se tem memoria.
+O
+ministro de estado honorario, Jo&atilde;o Elias, alambasava-se em pudding
+que comia
+com a faca. O Affonso Botelho, de Passos, d'uma <i>gentilhommerie</i>
+transmontana, paparr&ecirc;ta, rorejando as phrases e os circumstantes com
+uma
+saliva&ccedil;&atilde;o caudal expedida d'entre os dentes illegitimos, como
+do crivo de um
+borrifador. Elle cham&aacute;ra patife a Forrester em 1845, no <i>Periodico
+dos
+Pobres</i>, e acclamava-o ent&atilde;o nos brindes o anjo tutelar do Douro
+que lhe
+comprava as colheitas a elle Affonso. Avultava o velho Manoel Browne,
+dominando a vozeria com as suas gargalhadas estridentes e honradas. O
+typico
+Gon&ccedil;alo de Barros, a correc&ccedil;&atilde;o no despejo, negociante
+de vinho, de casamentos
+proprios e alheios, de tudo que &eacute; negociavel, com mais far&ccedil;as
+e melodramas e
+tragedias na sua vida que o Archivo <span class="pagenum">[19]</span> do
+extincto theatro do Salitre; insinuando-se com incomparaveis nega&ccedil;as
+de
+artista nos cora&ccedil;&otilde;es dos amigos e sahindo pelas algibeiras
+quando achava
+estas avenidas a&eacute;reas de mais e metalisadas de menos. Elle foi,
+n&atilde;o obstante,
+um tracista infausto, por haver nascido em um meio estreito de mais para o
+largo bracejar das suas faculdades mercantis. Seria o mais sagaz negociante
+encyclopedico da monarchia, se os seus parceiros em veniagas n&atilde;o
+fossem
+tambem os negociantes mais sagazes da mesma monarchia, todos conjurados em
+desabarem do seu legendario ponto d'alta honra a Pra&ccedil;a do Porto. E a
+Pra&ccedil;a
+sempre impavida em meio do fracassar das ruinas, como o homem justo de
+Horacio, metaphoricamente fallando&mdash;<i>Impavidum</i>, etc. Via-se o
+Eduardo
+Moser, ent&atilde;o visconde embrionario, a esperteza do alho e a finura
+<span
+class="pagenum">[20]</span> do coral feita homem; manancial de salvaterios
+commerciaes, agricolas, industriaes, esterilisados pela inveja e pela
+ignorancia dos seus auditorios; raro dom prelucido de profecia, mas
+condemnado, como Cassandra, a n&atilde;o ser acreditado. Seria capaz de
+inventar a
+Methaphysica commercial, levando &aacute; transcendencia o phenomeno do
+Cambio.
+Usa
+do telescopio de Herschell para v&ecirc;r o Porto nas dimens&otilde;es da
+Philadelfia. &Aacute;s
+vezes, cuida que vai scismando em emprezas arrojadas ao longo de <i>Regent
+Street</i>, e encontra-se na rua dos Caldeireiros entre uma loja de funis e
+uma tenda de tamancos. Vive miraculosamente no meio dos seus collegas da
+rua
+dos Inglezes e Cima do Muro como Daniel no f&ocirc;jo dos le&otilde;es. De
+resto, com uma
+estatura franzina, e menos de mediana, tem um temperamento de dynamite.
+Quando lhe &eacute; for&ccedil;oso cascar <span class="pagenum">[21]</span>
+um s&ocirc;co em um
+homem alto (e eu j&aacute; vi) cresce um covado pela medida velha. Tem a
+elasticidade do Relatorio e do <i>boxing</i>. Produz uns Relatorios
+colossaes
+que, se lhe puxassem tanto pelo corpo como pelo espirito, s. exc. seria o
+visconde mais corpulento da sua freguezia. N&atilde;o obstante, e fallando
+por
+figura, elle hade ser sempre o gigante do Relatorio correcto, que
+far&aacute;
+alguma
+vez impacientar o ouvinte futilmente leviano, mas nunca far&aacute; gemer a
+Raz&atilde;o
+filha de Deus, nem a Grammatica filha do Lobato.</p>
+
+<p>Confluia a todos os jantares assignalados o arcediago Cunha Reis, um
+velho
+palaciano de Braga, adiposo, apesar de ressicado interiormente por diversas
+ingratas materialistas que elle idolatrava com psycologismo
+incomprehendido,
+mas consentaneo &aacute; sua idade s&eacute;ria. Sentindo-se fatigado e
+algido da viagem
+por <span class="pagenum">[22]</span> sobre o dezerto glacial da velhice,
+foi
+ao convento da Falperra, onde morava um egresso, fez confiss&atilde;o geral
+e deixou
+o cora&ccedil;&atilde;o penitente aos p&eacute;s da Virgem. Depois,
+renunciando o cora&ccedil;&atilde;o, nenhum
+esteio amparador do g&ocirc;sto de viver lhe ficou. Fechou-se no seu
+quarto, e,
+s&oacute;sinho, morreu de uma congest&atilde;o de saudade da sua juventude
+que f&ocirc;ra um
+manso idyllio de Gessner com ligeiras intermittencias febr&iacute;s de
+Saint-Preux.
+Este adoravel cavalleiro-professo chamava-me filho; e, se ouvia fallar de
+amores, chorava, dissimulando as lagrimas com um sorriso ironico da sua
+fragilidade ser&ocirc;dia.</p>
+
+<p>Era certo o Jo&atilde;o Nogueira Gandra que recitava sonetos de
+improviso com
+quinze dias de lima e de contagem pelos dedos, sob a torrente da
+inspira&ccedil;&atilde;o.
+O visconde d'Azevedo lia poemas de sua lavra engenhosa em f&oacute;rma
+graphica de
+<span class="pagenum">[23]</span> copos e garrafas, cheias de versos de
+varios metros e de larachas honestas. O Lopes de Vasconcellos, um gordo,
+governador civil, ouvindo os poemas bacchicos, dava na barriga palmadas
+sonoras, intelligentes, rindo muito, e&mdash;que a poesia era aquillo, uma
+coisa
+com pilheria, porque versos de choradeira n&atilde;o os podia
+tragar,&mdash;affirmava,
+alludindo ao episodio da Ignez de Castro, do Cam&otilde;es, recitado por
+Jo&atilde;o Thomaz
+Quillinan com uma sentimentalidade plangente e languida, toda feita de
+moscatel de 1830. Em cavaqueira s&aacute;bia e transcendente, o abbade de
+Macieira,
+pregador r&eacute;gio, um Massillon &aacute; altura do paiz, concordando
+com o theologista
+visconde de Azevedo, asseverava que Virgilio prophetis&aacute;ra o advento
+do
+divino
+Messias; e os dois, com as pitadas engatilhadas aos narizes rubros,
+recitavam
+alternadamente, com emphase:</p>
+<span class="pagenum">[24]</span>
+
+<div class="poesia">
+<p class="centrado">VISCONDE</p>
+
+<p><i>Ultima Cumm&oelig;i venit jam carminis setas</i><br>
+<i>Magnus ab integro s&aelig;clorum nascitur ordo.</i></p>
+
+<p class="centrado">ABBADE</p>
+
+<p><i>Jam nova progenies c&oelig;lo dimititur alto</i><br>
+<i>Tu modo nascenti puero...</i></p>
+</div>
+
+<p>O Quillinan, um atheu esclarecido, escutava-os; e, sublinhando o sorriso
+heretico, perguntava se o <i>nascenti puero</i> virgiliano n&atilde;o seria
+o filho
+de Asinio Polli&atilde;o, herdeiro de Augusto, protector do poeta da
+Eneida. Os
+theologos affirmavam que n&atilde;o, sibilando o seu meio-grosso, reserva
+do mestre
+da fabrica.</p>
+
+<p>Concorriam tambem os irm&atilde;os do D. Jeronymo bispo do Porto, dois
+velhos
+<span class="pagenum">[25]</span> casquilhos, vegetalisados em dois
+piment&otilde;es
+ao <i>toast</i>, sempre &aacute; cata d'umas Suzanas pouco ariscas, Suzanas
+da
+barca&ccedil;a do Jo&atilde;o Coelho a 8 vint&eacute;ns por banho&mdash;e
+mordiscavam com as suas
+dentaduras de gutta-percha varios pomos sorvados e nada prohibidos.
+Fallavam
+de amores sardanapalescos com o medico Assis, um frascario de muita
+experiencia que lhes recommendava bifes na grelha e parcimonia, sopas de
+vinho com canella e alguma pudicicia. Eram a justifica&ccedil;&atilde;o de
+Lafontaine:</p>
+
+<div class="poesia">
+<p><i>...dans les mouvements de leurs tendres ardeurs,</i><br>
+<i>Les b&ecirc;tes ne sont pas si b&ecirc;tes que l'on pense.</i></p>
+</div>
+
+<p>Era tambem infallivel nos lautos banquetes do Forrester o Custodio
+Pinheiro, visconde de Villa Verde, a contar ao <span
+class="pagenum">[26]</span> Jo&atilde;o Elias que a sua esposa, cosinhava
+uns ricos
+<i>f&oacute;sferinhos</i> (fofinhos) para o ch&aacute;; mas que elle
+j&aacute; n&atilde;o podia
+cear
+sen&atilde;o ch&aacute; preto com <i>fateias</i>. Defronte, o visconde de
+Alpendurada,
+presidente da camara, promettia a um jornalista, se os eleitores o
+conservassem &aacute; testa do municipio, dotar o Porto com o
+embellesamento das
+latrinas <i>theodoras</i> (inodoras). Um folhetinista d'aquelle tempo, o
+creador do espirito nas gazetas portuenses, Evaristo Basto, dizia-lhe que
+seria melhor, em vez de dotar o Porto com latrinas theodoras, o
+embellesasse
+antes com algumas donzellas do mesmo nome. Estes dois viscondes,
+ali&aacute;s bons
+homens e creadores de linhagens de boa medran&ccedil;a, v&atilde;o
+j&aacute; t&atilde;o
+longe que, quando
+me lembram, chego a confundil-os com os primordios das castas nobres, tal
+qual como se elles, senhores <span class="pagenum">[27]</span> feudaes,
+tivessem ido &aacute; conquista do santo sepulchro com os Godofredos e os
+Tancredos.</p>
+
+<p>Elles, emfim, riam-se uns dos outros, e o Jos&eacute; Borges, hoje
+visconde do
+seu Castello, ria-se de todos com um sorriso solertemente
+cortez&atilde;o.</p>
+
+<p>O Forrester, muito f&ocirc;fo e empantufado, com as suas fanfarronias
+<i>poseuses</i>, marrafa frizada e gravata branca ass&aacute;s conhecida, e
+mais
+os
+bofes anilados da camisa, nas illustra&ccedil;&otilde;es da burguezia dos
+romances de
+Dickens, batia no peito enchumassado e na testa com as pontas dos dedos; e,
+com a cara a&ccedil;afroada em arreboes do Paraizo e das adegas do
+Pinh&atilde;o, apontava,
+solu&ccedil;ante, para uma primorosa tela de Roquemont&mdash;o retrato de
+sua defunta
+esposa que o contemplava do c&eacute;o em moldura de talha dourada; e elle
+amava
+tanto aquella vera effigie, testemunha <span class="pagenum">[28]</span> de
+suas lagrimas, que a trocou, e mais outros bonecos de barro por vinhos de
+Antonio Bernardo Ferreira. Bem bom negocio para o inglez&mdash;est&aacute;
+claro.</p>
+
+<p>Ora estes commensaes de Forrester, quasi todos vinhateiros, ignoravam,
+excepto dous ou trez, a lingua ingleza e desconheciam portanto o descredito
+com que o amphitri&atilde;o mare&aacute;ra os seus vinhos no mercado de
+Londres;
+mas o
+governo, que possuia idiomas como um Calepino, pegou de uma cor&ocirc;a de
+bar&atilde;o e
+p&ocirc;l-a na cabe&ccedil;a de J. James&mdash;<i>bar&atilde;o de
+Forrester</i>. E, se n&atilde;o morre t&atilde;o
+cedo, e faz nova edi&ccedil;&atilde;o das calumnias contra a mais rica e
+amea&ccedil;ada industria
+portugueza&mdash;uma segunda edi&ccedil;&atilde;o peorada e mais
+incorrecta&mdash;o governo luso
+fazia-o visconde, n&atilde;o &eacute; verdade? A pergunta n&atilde;o
+&eacute; feita ao ministro do reino
+de 1883: &eacute; ao Thomaz <span class="pagenum">[29]</span> Ribeiro que
+em 1849
+entrava na adolescencia.<sup><a href="#nota1" name="mr1">1</a></sup></p>
+<span class="pagenum">[30]</span>
+
+<p class="centrado">*</p>
+
+<p>Para corroborar o Forrester e a&ccedil;ular as iras contra o vinho do
+Porto, o
+outro pamphletista, Whittaker, invoca a opini&atilde;o unanime dos medicos
+inglezes
+que reputam o vinho procedente de Portugal uma peste para o estomago e para
+o
+figado; por quanto o summo da uva &eacute; quasi uma idea abstracta na
+moxinifada de
+aguardente, baga, mela&ccedil;o e <i>jeropiga</i>. Elle n&atilde;o escreve
+sem desculpavel
+horror a palavra <span class="small-caps">jeropiga</span>.</p>
+<span class="pagenum">[31]</span>
+
+<p>Porqu&ecirc;? Vaes agora entrar no segredo da bestialidade ingleza, meu
+amigo.</p>
+
+<p>Foi assim.</p>
+
+<p>James Forrester, t&atilde;o respeitador dos vinhos portuguezes como da
+nossa
+orthographia, tinha escripto Jeropiga com J. Parece que d'esta bagatella
+n&atilde;o devia surdir grande equivoco na percep&ccedil;&atilde;o do
+pensamento; por&eacute;m, succede
+que a palavra com <i>G</i> ou com J d&aacute; duas
+significa&ccedil;&otilde;es de coisas e
+serventias, e entradas e sahidas muito diversas. Whittaker, para saber
+radicalmente o que era <i>Jeropiga</i>, abriu o <i>Diccionario
+portuguez</i>
+de Constancio, e encontrou: <span class="small-caps">jeropiga</span>,
+<i>Ajuda</i>, <i>clyster</i>, <i>bebida medicinal</i>.</p>
+
+<p>Tremulo de indigna&ccedil;&atilde;o e livido de n&ocirc;jo, brada o
+inglez: Esta ultima
+express&atilde;o (<i>bebida medicinal</i>) &eacute; o mesmo que
+<i>m&eacute;zinha</i>; quanto &aacute;s
+duas primeiras (<i>ajuda</i>, <i>clyster</i>) s&atilde;o a mesma coisa, tem
+<span
+class="pagenum">[32]</span> o mesmo sentido, e dispenso-me de as traduzir.
+Que <i>bellas</i> coisas a gente bebe!</p>
+
+<p>&Oacute; Thomaz Ribeiro, quem n&atilde;o sentiria vontade de mandar o
+inglez beber
+outras?</p>
+
+<p>Mas o peor da passagem foi que a droga do clyster diluida no vinho do
+Porto fez abalo intestinal no mercado de Londres. Raro seria o consummidor
+de
+vinhos portuguezes que n&atilde;o levasse as m&atilde;os convulsas &aacute;
+regi&atilde;o hypogastrica,
+com ptyalismo e vomitos. O artigo foi logo trasladado a francez, em
+Bruxellas, na <i>Revue Britannique ou choix d'articles traduits des
+meilleurs
+&eacute;crits p&eacute;riodiques de la Grande-Bretagne</i> (1849). Em Paris
+foi commentada
+desabridamente, com chala&ccedil;as, a porca e pelintra fraude lusitana em
+um artigo
+da <i>Revue &OElig;nologique</i>. Portugal, &aacute; conta do execravel
+<i>jota</i> de
+Sir James Forrester, foi considerado um paiz de immunda <span
+class="pagenum">[33]</span> selvageria que, ministrando clysteres pela
+bocca,
+tornava communs de duas entradas as suas m&eacute;zinhas. Triste!</p>
+
+<p>A honra e a limpeza de Portugal seriam desaffrontadas, se Forrester,
+Whittaker e os seus traductores ignaros procurassem <i>Geropiga</i>, com
+<i>G</i>, no Constancio ou no Moraes, <span
+class="small-caps">jeropiga</span> (esclarece o segundo), <i>liquor feito
+de
+mosto de vinho, sobrecarregado de aguardente, que se usa no Douro para
+tempero de vinhos</i>. E accrescenta: <span
+class="small-caps">jeropiga</span>, <i>differe</i>.</p>
+
+<p class="centrado">*</p>
+
+<p>O aleivoso clyster que, provavelmente, ainda hoje traz impressionados e
+receosos os espiritos e os baixos ventres dos nossos fieis alliados,
+conspurca bastante a <span class="pagenum">[34]</span> memoria do
+bar&atilde;o de
+Forrester. Foi este inglez quem, empunhando a seringa da calumnia
+involuntaria por insufficiencia de orthographia, deu essa antecipada ajuda
+ao
+sinistro destino que j&aacute; ent&atilde;o vaticinava a catastrophe do
+paiz
+vinicola.
+Avoluma-se, por&eacute;m, o delicto do bar&atilde;o quando &eacute; notorio
+que elle deixou correr
+o aleive bestial do seu patricio, e n&atilde;o acudiu a corrigir o erro e
+as sujas
+consequencias e deriva&ccedil;&otilde;es que Sir Whittaker tirou do
+drastico <i>jota</i>.
+Se elle f&ocirc;sse um ignorante honesto, sahiria a protestar que a
+geropiga, n&atilde;o
+sendo clyster alimentario, nem medicamentoso, nem narcotico, nem laxante,
+nunca tentou usurpar as virtudes emolientes e diluentes das malvas, nem do
+laudano de Sydenham, e muito menos da jalapa e da mamona. Quanto ao
+mechanismo de ingerir a geropiga no corpo humano, deveria ter explicado que
+<span class="pagenum">[35]</span> funcciona por meio de ta&ccedil;a,
+calice, copo,
+garrafa, pichel, caba&ccedil;a, cangir&atilde;o, caneca, e tambem borracha,
+mas sem canudo
+recto ou curvo; e, para destruir pela raiz a calumnia, deveria jurar pela
+sua
+honra que nenhum portuguez, quando absorve geropiga, faz uso do Clyso-bomba
+de Darbo, ou do irrigador Eguisier; sendo certo que, na ingest&atilde;o de
+tal
+liquido, se d&aacute; sempre a completa ausencia de canudos, bombas,
+torneiras,
+embolos e engrenagens que desandam e esguicham. A geropiga bebe-se,
+engole-se, escorrupicha-se; mas n&atilde;o se seringa j&aacute;mais. Que o
+saiba a
+Inglaterra. A n&atilde;o ser na perfida Albion, em parte alguma do velho e
+novo
+mundo o vinho do Porto incutiu suspeitas de penetrar nas entranhas humanas
+por um impulso ascensional, com inten&ccedil;&otilde;es dissolventes ou
+refrigerantes. Os
+nossos irm&atilde;os transatlanticos, afei&ccedil;oados <span
+class="pagenum">[36]</span>
+patrioticamente ao vinho do Porto, j&aacute;mais o infiltraram na sua
+economia
+intima sob a hypothese pharmaceutica de que elle contenha anda-a&ccedil;u,
+cayap&oacute;,
+tayuy&aacute; ou a purga de Jo&atilde;o Paes.</p>
+
+<p>Nicolau Tolentino, no soneto realista dedicado &aacute; conjugicida
+Isabel
+Clesse,&mdash;soneto pouco digno de entrar no seio das familias, e quasi
+indecente
+como obra de mestre de Rhetorica&mdash;deixou, em dois versos, bem definido
+o
+methodo de matar clystermente:</p>
+
+<div class="poesia">
+<p><i>Que novo invento &eacute; este de impiedade</i><br>
+<i>Que extirpar gente vem pela trazeira!</i></p>
+</div>
+
+<p>Elle, como se v&ecirc;, designa com rigor topographicamente anatomico a
+parte
+vulneravel. Essa invers&atilde;o do processo homicida, isto &eacute;, o
+clyster bebido,
+apenas seria explicavel e at&eacute; plausivel, se os catholicos <span
+class="pagenum">[37]</span> lavradores do Douro, quando punham no vinho a
+substancia irritante da ajuda, tivessem d'&ocirc;lho acabar com os hereges
+inglezes, seguindo o conselho do poeta no mesmo soneto:</p>
+
+<div class="poesia">
+<p><i>Se tens desejos d'estas obras pias,</i><br>
+<i>Vae fazer aos hereges esta esmola,</i><br>
+<i>Ser&aacute;s a extirpa&ccedil;&atilde;o das heresias!</i></p>
+</div>
+
+<p>Se Forrester, consultando este expositor, e mais o <i>Diccionario</i>
+sobre <i>Geropiga</i>, e as praticas desobstruentes dos esponjosos
+desembargadores avinhados seus comensaes, houvesse atirado aos quatro
+ventos
+da Europa estas leaes explica&ccedil;&otilde;es, teria lubricado o ventre
+da sua alma
+perante a justi&ccedil;a divina com esse mesmo clyster que lhe peorou as
+condi&ccedil;&otilde;es
+excrementiciaes.</p>
+<span class="pagenum">[38]</span>
+
+<p class="centrado">*</p>
+
+<p>A morte desastrosa do bar&atilde;o de Forrester, em 12 de maio de 1861,
+&eacute; uma das
+mais notaveis vingan&ccedil;as que o rio Douro tem exercido sobre os
+detractores dos
+seus vinhos. A familia Ferreirinha da Regoa, composta de D. Antonia
+Adelaide,
+de seu marido Silva Torres, o millionario, digno de o ser pela bizarria das
+suas generosidades, de sua filha e genro, condes da Azambuja, tinham ido,
+rio
+acima, &aacute; sua celebrada quinta do Vesuvio, e convidaram o
+bar&atilde;o de
+Forrester a
+passar uma semana em sua companhia. No dia 12, um alegre domingo, sahiram
+todos do Vesuvio, na inten&ccedil;&atilde;o de jantarem na Regoa. O Douro
+tinha engrossado
+com a chuva de dois dias, e a rapidez da corrente era caudalosa. Aproando
+ao
+ponto <span class="pagenum">[39]</span> do <i>Cach&atilde;o</i>, formidavel
+sorvedouro em que a onda referve e redemoinha vertiginosamente, o barco fez
+um corcovo, estalou, abriu de golpe e mergulhou no declive da catadupa. O
+bar&atilde;o soffr&ecirc;ra a pancada do mastro quando se lan&ccedil;ava
+&aacute; corrente,
+nadando.
+Ainda fez algum esfor&ccedil;o por ap&eacute;gar &aacute; margem; mas,
+fatigado de bracejar no
+t&ecirc;zo da corrente ou aturdido pelo golpe, estrebuchou alguns segundos
+de
+agonia e desappareceu. Salvaram-se os outros, n&atilde;o todos, com a
+protec&ccedil;&atilde;o de
+uns barcos que ahi estavam para recolher o despojo de outro naufragio de um
+transporte de cereaes. Livrou-se Torres, o futuro par do reino, agarrado a
+um
+barril de azeite, at&eacute; que o recolheram a um dos barcos. D. Antonia e
+o conde
+de Azambuja aferraram-se &aacute;s dragas do barco. A condessa foi salva
+por um
+marinheiro. Um juiz de direito, Arag&atilde;o <span
+class="pagenum">[40]</span>
+Mascarenhas, agarrou-se &aacute; v&aacute;ra do barco rijamente, qual o
+temos sempre
+visto
+filado &aacute; vara da Justi&ccedil;a, em naufragio de trapa&ccedil;as.
+Mas nem todos sahiram
+com
+vida. Um creado de Torres foi logo tragado pela cachoeira; e,
+abra&ccedil;ada com a
+vella, j&aacute; quando se lhe estendia um bra&ccedil;o redemptor,
+afogou-se uma creatura
+a
+quem os noticiaristas n&atilde;o deram a minima importancia.</p>
+
+<p>Pois foi uma p&ecirc;rda insubstituivel. Era a Gertrudes, um thesouro de
+joias
+culinarias que a voragem enguliu. Foi esta mulher uma alma transmigrada das
+refinadas civilisa&ccedil;&otilde;es pagans, a metempsycose de algum genio
+do lar que
+presidira &aacute;s ucharias da Roma dos Cezares. Foi a cozinheira
+primacial do
+Porto, onde residia. Tinha sido chamada por D. Antonia Ferreira para
+dirigir
+os jantares dados ao bar&atilde;o de Forrester, no Vesuvio.</p>
+<span class="pagenum">[41]</span>
+
+<p>Ali acabou. O r&ocirc;lo de uma onda regeitou-a morta contra um
+lap&ecirc;do carcomido
+de cavernas sonoras a gottejar o lodo da babugem.</p>
+
+<p class="centrado">*</p>
+
+<p>Devo a esta creatura o gaudio ineffavel de me sentir viver nas
+palpita&ccedil;&otilde;es
+de uma felicidade edenica desde os vinte e tres annos de idade at&eacute;
+esta
+decrepitude verdejante de bucolicos musgos. Mal me lembra que pequeno
+servi&ccedil;o
+eu fizera ao marido d'ella, um bravo e envelhecido alferes de veteranos que
+se reform&aacute;ra em 1835 por impedido de servir, crivado de ferimentos
+graves
+em
+algumas batalhas do c&ecirc;rco. Agora me recordo: o alferes estava
+servindo em um
+dos antigos telegrafos de paineis, no pincaro de qualquer <span
+class="pagenum">[42]</span> serra muito agreste, e gemia o seu rheumatismo
+seis mezes e saudades da mulher o resto do anno. Consegui que o deixassem
+viver com a sua Gertrudes, que o n&atilde;o acompanh&aacute;ra &aacute;s
+solid&otilde;es dos
+telegrafos
+de taboinhas por n&atilde;o prescindir do grande estipendio como directora
+de
+cozinha nas lautas Lupercaes politicas, por esse tempo, frequentes no
+Porto.</p>
+
+<p>Comia-se ent&atilde;o muitissimo no Baluarte por excellencia. Ministro
+ou general
+que chegasse a fazer ou desfazer revoltas, cabecilha eleitoral que viesse
+arregimentar as suas hostes, enchendo-lhes a consciencia de liberalismo e
+carneiro guisado com batatas, era contar com opiparas comezanas em que os
+cabralistas levavam enorme vantagem na profus&atilde;o. Os homens de
+Setembro, os
+<i>patul&ecirc;as</i>, em 1849, distinguiam-se na frugalidade. Os
+irm&atilde;os Passos
+alimentavam rusticamente <span class="pagenum">[43]</span> os seus
+organismos
+plebeus, de Cincinnatos, endurecidos na educa&ccedil;&atilde;o do toicinho
+e das feculas de
+Bou&ccedil;as. Os seus correligionarios andavam ainda na aprendisagem de
+comer, e
+amea&ccedil;avam a magra meza do or&ccedil;amento para praticarem. Ainda
+n&atilde;o tinha surgido
+de vez o Apicio de todos os paladares, o Rodrigo da Fonseca
+Magalh&atilde;es, com as
+suas rapos&iacute;as, o qual, entendendo com Aristoteles que o homem
+&eacute; um animal
+essencialmente politico, inaugurou o elasterio membranoso de todos os
+es&ocirc;phagos, sob o especioso lemma de homogeneidade de principios, pela
+fus&atilde;o
+de todos em uma s&oacute; consciencia que vinha a ser nenhuma propriamente
+dita, ou
+o relaxamento de todas as consciencias n'um estomago commum de duas ou trez
+politicas. E assim conseguiu que todos os candidatos &aacute; panella do
+Estado
+esmoessem o corneo b&ocirc;lo indigesto <span class="pagenum">[44]</span>
+das suas
+<i>Bernardas</i> no largo e fundo estomago da alma, <i>mentis nostrae
+stomachum</i>, como disse S. Pedro Dami&atilde;o, profetisando a
+physiologia do
+espirito politico do seculo XIX (<span class="small-caps">opusc.</span> 12.
+c, 38. <i>mihi.</i>)</p>
+
+<p>Gertrudes n&atilde;o tinha m&atilde;os a medir, se vinha ao Porto um
+ministro de obras
+publicas que deitasse passeio at&eacute; &aacute; Foz e outro passeio
+at&eacute; Leix&otilde;es,
+tracejando barras com a badine nos p&aacute;ramos do Azul. Ent&atilde;o, a
+classe
+argentea,
+uma casta que se investira no patriciado pelo j&uacute;s da moeda falsa, da
+escravatura, do contrabando, e talvez do clyster no vinho do Porto, se esse
+escandalo coubesse no possivel&mdash;os philistinos, uma fidalguia com a
+raiz da
+arvore de gera&ccedil;&atilde;o na Noruega, &aacute; americana&mdash;<i>the
+codfich's
+aristocracy</i>&mdash;senhores de navios e balc&otilde;es unctuosos de
+substancias
+alimenticias adulteradas, andavam &aacute; comp&iacute;ta, a v&ecirc;r qual
+havia <span
+class="pagenum">[45]</span> de espiritualisar mais os ventriculos
+encephalicos do ministro, ingerindo-lhe altas d&oacute;zes de phosphoro por
+intermedio dos rodovalhos celebrados nos triclinios dos Cressus e Lucullos
+das Congostas, Rebolleira e alfurjas circumjacentes. As barras da Foz e
+Leix&otilde;es ahi se ostentam uns primores d'arte hydrographica attestando
+que os
+ministros segregaram perfeitamente o phosphoro, o rodovalho&mdash;comeram o
+peixe
+e mais a isca. Os amphitri&otilde;es, esses representam o anzol do anexim;
+mas,
+norteando a outras regi&otilde;es, revelaram uma phantazia oriental,
+malabar, nos
+jogos de Bancos.</p>
+
+
+<h5>PARENTHESIS</h5>
+
+<h6>O AUCTOR (<i>&aacute; parte</i>)</h6>
+
+<p>No Porto ha um grupo invulneravel de negociantes que preservam
+incontaminadas <span class="pagenum">[46]</span> as tradi&ccedil;&otilde;es
+da probidade
+antiga. S&atilde;o esses os mais expostos ao azar de partirem os
+bra&ccedil;os, se tentarem
+encravar as engrenagens dissolventes. N&atilde;o ha fortuna grangeada com
+honra que
+ouse atravessar sem m&ecirc;do as maltas dos salteadores que sahem
+&aacute;s encruzilhadas
+da politica, se n&atilde;o topam viandantes incautos nas incruzilhadas do
+negocio.</p>
+
+<p>Se a estocada dos melindres resvalou no arnez d'esta
+satisfa&ccedil;&atilde;o dada aos
+homens de bem, fecha-se o parenthesis.</p>
+
+<p class="centrado">*</p>
+
+<p>&mdash;Que ha de novo, madame Brillat-Savarin?</p>
+
+<p>Esqueceu-me prevenir-te, Thomaz Ribeiro, de que eu chamava <i>madame
+Brillat-Savarin</i> <span class="pagenum">[47]</span> &aacute; Gertrudes.
+Custava
+muito aos melindres estheticos do meu espirito caprichoso em onomastica
+chamar-lhe <i>Gertrudes</i>, um nome de que resa o Agiologio, &eacute;
+certo, mas
+n&atilde;o s&ocirc;a lyricamente a orelhas classicas nem romanticas.
+Auctorisado com as
+minhas faculdades poeticamente episcopaes de chrismar, cham&aacute;ra-lhe
+<i>Gertruria</i>. Ella, por&eacute;m, n&atilde;o comprehendendo a
+delicadeza do imperfeito
+anagramma, tomava-o como galhofa. Depois, fiz-lhe entender, que os seus
+talentos a nivellavam com um auctor de fama universal nas delicias do
+paladar, e por isso me deixasse dar-lhe a ella, feminisando-o, esse nome
+glorioso e novo no mais descurado ramo das artes uteis entre os
+portuguezes,
+incultos hottentotes quanto &aacute; culinaria, nutrindo-se com um <i>menu
+fort
+chiche</i>, pouco avantajado &aacute; cosinha dos epicos Affonsos que
+n&atilde;o
+conheceram
+<span class="pagenum">[48]</span> os alimentos nervosos, e devoravam, para
+acerar o musculo, javalis inteiros na braza como os esquim&oacute;s comem
+os ursos e
+os kangurus. E Gertrudes consentiu que eu, maridando-a espiritualmente com
+o
+immortal regal&atilde;o da Fran&ccedil;a, lhe chamasse <i>madame
+Brillat-Savarin</i>.</p>
+
+<p>Contava-me ella ent&atilde;o os jantares que dirigira, a pedido de quem
+e para
+quem, com interessantes pormenores, miudezas, bisbilhotices, ridicularias
+da
+vida intima. Dest'arte, estava eu em dia com o evolucionismo politico, com
+a
+sociologia, com a ethnographia, com as crizes catemeniaes da <span
+class="small-caps">carta</span> constitucional, com o fomento das obras
+publicas, especialmente barras de Leix&otilde;es e Foz. Emfim, eu sabia
+tudo, sem
+resalva das abomina&ccedil;&otilde;es procedentes do fog&atilde;o; e os
+deuses me s&atilde;o testemunhas
+de que eu em cento e tantos <span class="pagenum">[49]</span> volumes de
+analyse de ruins costumes nunca fiz m&aacute;o uso dos segredos de
+Gertruria,
+quanto
+a uns pasteis de lagostins e mexilh&otilde;es que ella cosinhava, a pedido
+de varias
+familias, para entreterem sempre acc&ecirc;so o fogo da amisade&mdash;o
+fogo sagrado das
+vestaes, segundo a lei P&aacute;pia.</p>
+
+<p class="centrado">*</p>
+
+<p>Agora te vou contar como ella me salvou aos vinte e tres annos.</p>
+
+<p>Em 1849, a invas&atilde;o subita de uma anemia vampirisou-me o pouco
+sangue
+desoxigenado, desfibrinado, e me poz os ossos em decomposi&ccedil;&atilde;o
+gelatinosa, a
+ponto de me deixar em uma ressica&ccedil;&atilde;o &oacute;ssea; e, se eu
+ia durando, &eacute; porque j&aacute;
+me n&atilde;o <span class="pagenum">[50]</span> restava carne em que se
+aferrasse a
+garra adunca da dura Parca de ent&atilde;o, ou da sinistra rameira como
+ultimamente lhe chamam os vates.</p>
+
+<p>Gertruria, desde que eu fui &aacute; cama, visitava-me a miudo no
+Hotel-Francez,
+na rua da Fabrica, um velho palacio que tinha ao r&eacute;s da rua a
+officina e
+escriptorio do <i>Nacional</i>, redigido pelo professor egresso Antonio
+Alves
+Martins, Almeida e Brito, Damazio, Parada Leit&atilde;o, Nogueira Soares,
+Evaristo
+Basto, Lobo Gavi&atilde;o, Eu tinha a meu cargo a sec&ccedil;&atilde;o das
+frioleiras. O meu
+chorado amigo bispo de Vizeu extermin&aacute;ra-me do districto
+s&eacute;rio do jornal,
+quando descobriu que os meus <i>artigos-de-fundo</i> eram commentarios
+perpetuos e paraphrases miguelistas ao <i>Rei-chegou</i>, escriptas <i>un
+peu
+&agrave; la diable</i>. E, na verdade, Thomaz Ribeiro, eu, &aacute;quelle
+tempo, sentia
+pelos monarchas <span class="pagenum">[51]</span> absolutos tamanho affecto
+quanto &eacute; o odio que hoje professo &aacute; canalha absoluta. Um dos
+meus collegas
+do
+andar-nobre d'aquelle edificio de papel ordinario da Abelheira,
+Sebasti&atilde;o
+d'Almeida e Brito, dous annos antes, sendo ministro da Junta Suprema do
+Porto, quando viu a rel&eacute; armada, urrando morras aos cabralistas
+proprietarios, enfardelou a sua bagagem para emigrar para Tuy. Alguns dos
+outros meus collegas nada enfardelaram, porque pouco mais tinham que
+estylo,
+um glossario de phrases redondas e polidas como bolas de strychnina contra
+o
+conde de Thomar; alguns cabe&ccedil;alhos de proclama&ccedil;&otilde;es ao
+Povo chamando-lhe rei
+coroado de espinhos; a tragedia de Jesus, o calvario, a esponja, etc., a
+proposito de um patriota eximio a quem os caceteiros cham&ocirc;rros
+amolgaram duas
+costellas; varios threnos gemebundos sobre a patria <span
+class="pagenum">[52]</span> agonisante de Viriato, da Brites d'Aljubarrota,
+de Jo&atilde;o Pinto Ribeiro e Fernandes Thomaz; e, af&oacute;ra isto que
+&eacute; de facil
+transporte para quem emigra, todos tinham palpitantes anhelos na carta de
+conselho, nas dragonas de general, na escrivaninha de direito, no baculo
+prelaticio, etc. Pois todos aproaram e abicaram &aacute; terra da
+promiss&atilde;o: s&oacute; eu
+fiquei um perpetuo cultor da sec&ccedil;&atilde;o das frioleiras. Nem
+sequer j&aacute;
+possuo uma
+e unica distinc&ccedil;&atilde;o que tinha, por que ha muitos annos se
+dissolveu, sem ser
+dissoluta, a <i>Philarmonica</i> da Rua das Hortas de que fui socio; de
+maneira que hade ser muito difficil provar-se perante a posteridadade
+perplexa, a minha identidade de portuguez do seculo decimo nono por falta
+de
+um habito de Christo. Nem um habito de Christo at&eacute; &aacute; data
+d'esta! Que este
+suspiro te n&atilde;o chegue &aacute; alma como um remorso, <span
+class="pagenum">[53]</span> &oacute; Thomaz Ribeiro, ex-ministro do reino,
+ex-claviculario do cofre das Gra&ccedil;as r&eacute;gias! Ah! n&atilde;o.
+Eu sei que me consideras
+sobejamente afidalgado com as caricias das outras Gra&ccedil;as
+parnasianas, filhas
+de Jupiter e de Venus, tres tarascas incorti&ccedil;adas, flatulentas, com
+hysterismos senis, fistulas e d&ocirc;res oste&oacute;copas,
+repercuss&otilde;es de antigas
+lubricidades, em saturnaes de batuques compassados por cithara e arrabil
+com
+os lascivos Aonios e Melybeus nos outeiros monasticos, nas academias, e nos
+natalicios das Marcias e Francelias. Sim: n&oacute;s c&aacute; vamos
+vivendo, ellas e eu,
+n'um soccorro mutuo de cataplasmas de linha&ccedil;a, de rap&eacute; e
+ch&aacute;s de tilia.</p>
+
+<p>Tudo mais acabou. O palacio ardeu; os meus mestres e camaradas do
+<i>Nacional</i> morreram todos; e este arcaboi&ccedil;o, que resta e
+conserva o nome
+que eu tinha <span class="pagenum">[54]</span> ent&atilde;o, devem-o
+&aacute;
+Gertrudes a
+litteratura nacional e as dezenas de boticas que eu tenho consummido, como
+um
+suicida recatado que n&atilde;o quer escandalos.</p>
+
+<p class="centrado">*</p>
+
+<p>Foi assim que ella me salvou... Mas receio enfastiar-te, meu amigo, sem
+chegar a sensibilisar-te. O exterminio da Rhetorica foi uma calamidade para
+os que pretendem commover. A gente, dantes, conhecia umas figuras de
+eloquencia que puxavam arithmeticamente um certo numero de lagrimas das
+coisas, <i>lacrimae rerum</i>, aos olhos das pessoas. Se a glandula do
+liquido sentimento n&atilde;o se abria ao toque da metaphora, era seguro
+fender-se
+<span class="pagenum">[55]</span> golpeada pela penetrante hyperbole. Hoje
+em
+dia j&aacute; se n&atilde;o chora sen&atilde;o com uma ophtalmia. De mais a
+mais,
+os artistas
+superiores no officio de escrever, alveneis do templo da Memoria, Vitruvios
+e
+Possidonios do eterno Pantheon, com pouca argamassa de phrases, ageitavam
+uns
+rendilhados nichos de immortalidade para os seus amigos, em quanto eu,
+cabouqueiro de obra grossa, terei de ser enfadonhamente palavroso para
+esquadriar uma lousa, brunil-a, gravar-lhe um <i>vale</i> de saudade
+agradecida, e assentai-a sobre uma campa... Uma campa! N&atilde;o a teve a
+pobre
+Gertrudes. L&aacute; se desfez na leiva barrenta de qualquer adro
+desconhecido
+d'aquellas desoladas charnecas do Douro.</p>
+<span class="pagenum">[56]</span>
+
+<p class="centrado">*</p>
+
+<p>Assistira, um dia, Gertrudes ao meu jantar e viu que eu me confrangia
+enjoado pelo espectaculo repulsivo de meia franga recozida e um caldo
+branco
+em que boiavam uns olhos amarellos da enxundia do oveiro da ave. Ella
+cheirou
+de longe o caldo fumegante, e disse com engulho:</p>
+
+<p>&mdash;Captiva! isto nem com fome de c&atilde;o se podia tragar!</p>
+
+<p>Que o medico me n&atilde;o deixava comer outra coisa,&mdash;balbuciei
+t&atilde;o extenuado e
+offegante que me parecia despegar-se o ultimo colchete da existencia n'um
+esvahir de desmaio.</p>
+
+<p>&mdash;Sinto-me morrer...&mdash;murmurei flebilmente.</p>
+<span class="pagenum">[57]</span>
+
+<p>&mdash;E morre decerto!&mdash;confirmou ella com sinistra
+solemnidade&mdash;morre, se n&atilde;o
+mudar de comida. Quer que eu o ponha rijo? Diga &aacute; dona da hospedaria
+que a
+sua enfermeira e cozinheira sou eu.</p>
+
+<p>N&atilde;o esperou resposta e sahiu. Pouco depois, voltou muito
+afreimada, tirou
+a mantilha de sarja, mudou de cal&ccedil;ado para n&atilde;o fazer bulha
+com os tac&otilde;es das
+botinhas, cingiu um len&ccedil;o na fronte recolhendo os band&oacute;s,
+atou um avental de
+riscadinho na cintura e foi para a cozinha. Quando entrou com uma
+ca&ccedil;oula
+coberta, o perfume vaporado do rebordo da tampa abriu subitamente no meu
+olfacto uma fonte de vida, uma sensa&ccedil;&atilde;o entre espiritual e
+nazal, um quasi
+extasis, como a evidencia da immortalidade do <i>eu</i>. Arranjou a meza de
+leito com o talher, afofou-me as travesseirinhas nas costas angulosas,
+escadeadas como um <span class="pagenum">[58]</span> peda&ccedil;o de velho
+canc&ecirc;llo
+desengon&ccedil;ado, a cahir das dobradi&ccedil;as despregadas,&mdash;e
+passou para uma travessa
+o acepipe fumegante. Eram duas m&atilde;os de boi guizadas, loiras, de uma
+unctuosidade oleosa que punha caricias ferozes nos dentes, e agu&ccedil;ava
+na
+abobada palatina as cobi&ccedil;as dantescas do faminto Ugolino e de um
+professor
+portuguez de instruc&ccedil;&atilde;o primaria. Devorei uma das
+m&atilde;os, sopeteando no molho
+peda&ccedil;os de p&atilde;o que engulia inteiros, soffregamente, n'uma
+intalla&ccedil;&atilde;o.</p>
+
+<p>&mdash;Poderei comer a outra m&atilde;o, snr. Gertrudinhas? perguntei
+esperando em
+anciosa incerteza a resposta duvidosa.</p>
+
+<p>&mdash;Se tem vontade, coma. Que sente l&aacute; por dentro?</p>
+
+<p>&mdash;Fome, snr. Gertrudes, fome!</p>
+
+<p>&mdash;Ent&atilde;o coma; a natureza que lh'o pede, &eacute; por que
+n&atilde;o lhe faz mal.</p>
+
+<p>E n&atilde;o fez. Fumei um charuto que at&eacute; <span
+class="pagenum">[59]</span>
+&aacute;quelle momento me nauze&aacute;ra. Pedi caf&eacute; e cana de
+Paraty. Estive quasi a
+pedir
+as cal&ccedil;as para me levantar.</p>
+
+<p>&mdash;Nada de boticadas! intimou ella; e, pegando em dous frascos de
+pilulas
+de ferro de Blaud e de Vallet, e de meia garrafa de vinho quinado despejou
+tudo na primeira vasilha concava que se offereceu &aacute; sua
+indigna&ccedil;&atilde;o.&mdash;F&oacute;ra com
+a porcaria!&mdash;bradava gesticulando, com a c&oacute;lera scientifica e a
+justi&ccedil;a
+indefectivel de um medico homeopata.</p>
+
+<p>No dia seguinte deu-me de jantar troixas de recheio, bifes de presunto
+de
+Melga&ccedil;o e meio mel&atilde;o. O medico assistente, o Jo&atilde;o
+Ferreira, grande clinico,
+veio &aacute; tarde, e poz-se a farejar.&mdash;Que lhe cheirava a
+mel&atilde;o! se eu
+pratic&aacute;ra
+a loucura de comer mel&atilde;o?!&mdash;A Gertrudes acudiu &aacute; minha
+perplexidade:&mdash;que
+f&ocirc;ra ella quem o com&ecirc;ra; que eu, coitadinho, <span
+class="pagenum">[60]</span> estava a caldos e aza de franga, uma
+desgra&ccedil;a!</p>
+
+<p>O doutor tomou-me o pulso, e fez um gesto de satisfa&ccedil;&atilde;o
+tranquillisadora:&mdash;que eu estava melhor quanto ao pulso, um pouco
+rapido, mas
+regular; auscultou-me a regi&atilde;o precordial; j&aacute; mal percebeu o
+<i>ruido de
+folle</i>; por&eacute;m, continuava a fariscar o mel&atilde;o, desconfiado,
+chegando o seu
+descompassado nariz absorvente ao meu perfido halito, quando me auscultava
+as
+arterias carotidas.</p>
+
+<p>&Aacute; noite, visitou-me outro medico, interessado na minha cura
+duvidosa,
+como
+amigo. Era Camara Sinval, lente da Esc&oacute;la Medico-Cirurgica, um que
+pr&eacute;gava,
+n&atilde;o por hypocrisia, mas por paix&atilde;o desvairada da Arte dos
+Vieira e
+Bourdaloue, serm&otilde;es ultramontanos empavezados de sapiencias
+academicas com
+grandes empolas de latim pag&atilde;o. Nunca me receitava. <span
+class="pagenum">[61]</span> Para as insomnias mandava-me l&ecirc;r
+philosophos e
+poetas epicos. Disse-me que, na sua clinica, empregava primeiro as epopeas
+desde a <i>Iliada</i> at&eacute; &aacute; <i>Henriqueida</i>; e, em ultimo
+recurso, os
+systemas philosophicos desde Plat&atilde;o at&eacute; Victor Cousin. Que
+tivera&mdash;contava&mdash;um doente de insomnia rebelde que resistira
+singularmente ao
+1. e parte do 2. Canto dos <i>Luziadas</i>; mas, perdidas as
+esperan&ccedil;as de
+anesthesia, lhe l&ecirc;ra duas paginas de Kant, e o enfermo fic&aacute;ra
+sopitado n'um
+lethargo de Epimenides. Aconselhou-me a Homeopathia, medicina inoffensiva e
+de vantagem para fantasistas supersticiosos. Apenas lhe achava o defeito de
+ter entre os seus medicamentos uma <i>Eufrazia</i> e uma <i>Ignacia</i>;
+por
+que, se tivesse tambem uma <i>Athanasia</i>, seriam as trez Parcas com
+pseudonymos lethaes. Entretanto, achou-me espantosamente <span
+class="pagenum">[62]</span> melhor. N&atilde;o acreditava. Queria saber o
+que eu
+tinha tomado. Referi-lhe a verdade&mdash;as m&atilde;os de boi, os bifes de
+presunto, as
+troixas, o mel&atilde;o, a Providencia, sobre tudo a Providencia na pessoa
+de
+Gertrudes.</p>
+
+<p>&mdash;&Eacute; uma grande clinica a Gertrudes, disse elle; mas, se ella
+&aacute;manh&atilde; lhe
+der lampreia, congro de caldeirada, timbal de camar&otilde;es ou sallada de
+pepino,
+aconselho-lhe que se abstenha. A morte pela fome e a morte pelo
+enfartamento
+andam sempre de bra&ccedil;o dado.</p>
+
+<p>&mdash;Mas, se a natureza pede...&mdash;atalhei plagiando Gertrudes.</p>
+
+<p>&mdash;Nada de pantheismo. A natureza comp&otilde;e-se de dois elementos
+em propor&ccedil;&otilde;es
+desiguaes: Deus como um, e Diabo como trez. Sou manicheu. Apenas concedo ao
+Bem a quarta parte de ac&ccedil;&atilde;o na regedoria do universo. O Diabo
+&eacute; quem <span
+class="pagenum">[63]</span> faz os venenos dos vegetaes e dos mineraes, o
+frio que gela o sangue e o calor que abraza o cerebro, e a hydrophobia, e o
+raio e os terramotos, e a cholera asiatica, os miasmas homicidas dos
+pantanos
+e cavernas, e, sobre todos os flagellos, o homem que, fornecendo uma
+pequena
+parte de si, uma costella, produziu essa pessima coisa&mdash;a mulher.
+N&atilde;o se fie
+na natureza, e muito menos na humana, por que essa &eacute; a mais
+corruptivel, e a
+mais fetida quando apodrece de todo. Por emquanto v&aacute; comendo as
+m&atilde;os
+de
+vacca; mas fique por ahi que n&atilde;o v&aacute; metter os p&eacute;s
+pelas m&atilde;os.</p>
+
+<p>Isto, com embrechados de latim de Horacio e da Biblia, abalou-me quanto
+&aacute;
+dieta.</p>
+<span class="pagenum">[64]</span>
+
+<p class="centrado">*</p>
+
+<p>Conversemos um pouco a respeito d'este medico, meu querido Thomaz
+Ribeiro.
+Sinval era geometricamente materialista, uma raz&atilde;o emancipada das
+intercadencias pathologicas da F&eacute;. E fazia e pr&eacute;gava
+serm&otilde;es nas egrejas
+catholicas. Como n'esta far&ccedil;a da vida &eacute; ridiculo o papel dos
+homens mais
+intelligentes! Era atheu; por que se existisse Deus (dizia o
+prec&iacute;to) duas
+das suas muitissimas perfei&ccedil;&otilde;es seriam a Bondade e a
+Presciencia. Ora a
+<i>maldade</i> da creatura contradiz a <i>bondade</i> do creador; e a
+<i>liberdade</i> do homem, condemnado por causa d'ella, faz repugnancia
+&aacute;
+<i>presciencia</i> de Deus que teria creado o homem livre para o condemnar
+como insubordinado. Cacologia!&mdash;exclamava elle.</p>
+<span class="pagenum">[65]</span>
+
+<p>Mas que falta de logica! Se eu, n'um impeto de erudi&ccedil;&atilde;o
+entupidora, lhe
+citava o invicto argumento de Voltaire: Se n&atilde;o existisse Deus,
+seria preciso
+invental-o, Sinval respondia-me com Diderot: <i>C'est ce qu'on a fait</i>.
+E
+quem ficava entupido, a final, era eu, por que as minhas lettras
+theologicas
+eram uma lastima. Havia de ser hoje!... Quanto &aacute; immortalidade da
+alma,
+dizia
+elle que havia de esclarecer-se depois da morte. Eu n&atilde;o lhe
+replicava, por
+tambem me parecer esse expediente o mais acertado.</p>
+
+<p>&mdash;Mas desconfio que todas as minhas trez almas s&atilde;o
+mortaes&mdash;acrescentou
+elle.</p>
+
+<p>&mdash;Trez?!</p>
+
+<p>&mdash;S&atilde;o trez as almas que o divino Plat&atilde;o me concede no
+<i>Timeu</i>. D&aacute;-me
+uma alma immortal na cabe&ccedil;a, e duas almas mortaes, uma no peito, e
+outra na
+barriga, separadas pelo diaphragma.</p>
+<span class="pagenum">[66]</span>
+
+<p>E, com effeito, verifiquei depois que Plat&atilde;o, considerado por
+alguns SS.
+PP. o precursor do christianismo, dava trez almas a cada pessoa; e, nas
+minhas especula&ccedil;&otilde;es physiologicas, encontrei sugeitos com as
+trez almas,
+por&eacute;m todas na barriga.</p>
+
+<p>Lembram-me algumas defini&ccedil;&otilde;es d'este sensualista que sabia
+o seu Lucrecio
+de c&oacute;r. Definia elle a virtude <i>um producto artificial da politica
+e da
+vaidade</i>. Aqui ha bastante sensatez; mas esta defini&ccedil;&atilde;o
+estava dada por
+Mandeville e impugnada por Berkeley, seculo e meio antes de Sinval
+nascer.</p>
+
+<p>Defini&ccedil;&atilde;o do <i>homem</i>: O homem &eacute; um organismo
+servido por bons e m&aacute;os
+instinctos, alguns mais ferozes que os das alimarias, e nenhum t&atilde;o
+intelligente como os do castor, das formigas e das abelhas; al&eacute;m
+d'isso, tem
+o dom da palavra, <span class="pagenum">[67]</span> se lh'a ensinam, e vai
+muito al&eacute;m do papagaio em glotica. Ha uma s&oacute;
+distinc&ccedil;&atilde;o que extrema o homem
+de todos os outros animaes...</p>
+
+<p>&mdash;A alma&mdash;interrompi eu perspicazmente.</p>
+
+<p>&mdash;N&atilde;o. A mentira. O homem &eacute; o unico animal que
+mente.</p>
+
+<p>Defini&ccedil;&atilde;o da <i>vida</i>: uma alternativa de
+assimila&ccedil;&atilde;o e
+desassimila&ccedil;&atilde;o, de secre&ccedil;&atilde;o e
+excre&ccedil;&atilde;o. <i>Pensamento</i> &eacute; o resultado de
+combina&ccedil;&otilde;es chimicas.</p>
+
+<p>&mdash;Ent&atilde;o, vida organica e vida da consciencia &eacute; tudo
+chimica? E o Amor
+tambem?</p>
+
+<p>&mdash;&Eacute;, e da mais grosseira e trivial, por ser a unica
+exercitada na retorta
+do boticario da aldeia. O amor do homem primitivo e selvagem era uma
+paix&atilde;o
+genesica, typica, servida em todo o reino animal por org&atilde;os
+identicos,
+histiologicamente <span class="pagenum">[68]</span> e physiologicamente
+semelhantes, e a final de contas uma func&ccedil;&atilde;o exosmosica de um
+lado e
+endosmosica do outro, percebe voc&ecirc;? O amor do homem actual e culto
+&eacute; a mesma
+exuberancia bruta do organismo, modificado por alguns sonetos &aacute;
+f&ecirc;mea;
+por&eacute;m,
+no fundo da Natureza, est&aacute; o inalteravel <i>clich&eacute;</i>.</p>
+
+<p>E eu, melancolicamente, com gestos desolados:</p>
+
+<p>&mdash;Com que ent&atilde;o, <i>endosmose</i> o amor de Beatriz, de
+Laura e Leonor!...
+oh! oh!</p>
+
+<p>E elle sorridente:</p>
+
+<p>&mdash;<i>Sensiblerie</i> piegas, amigo meu, as suas
+interjei&ccedil;&otilde;es theatraes. Se
+Beatriz e as outras meninas, em vez de gerarem, por
+inspira&ccedil;&atilde;o, sonetos e
+poemas, tivessem occasi&atilde;o de gerar meninos robustos&mdash;com o
+qu&ecirc; a litteratura
+de cabotagem teria perdido bastante&mdash;voc&ecirc; mal poderia <span
+class="pagenum">[69]</span> explicar-me transcendentalmente o phenomeno
+psychico do amor do Dante e dos outros e de Beatriz e das outras. Nas
+regi&otilde;es
+selvaticas onde o sensualismo se retoi&ccedil;a desenfreadamente em
+promiscuidade de
+homens e mulheres, como classifica voc&ecirc; esse estimulo bruto da carne?
+&Eacute;
+talvez o classico Cupido que desembesta do arco flechas de amor aos coiros
+fuscos dos australezes, hein? V&aacute; perguntar a um cafre kuza se elle
+sabe o
+que
+&eacute; <i>amor</i>, e pergunte &aacute; cafrina se ella entende o que
+seja
+<i>pudor</i>...</p>
+
+<p>&mdash;Perd&atilde;o! o pudor &eacute; universal, particularmente nas
+mulheres sem excep&ccedil;&atilde;o
+das ra&ccedil;as mais atrazadas. Haja vista &aacute;s tangas...</p>
+
+<p>&mdash;Ora muito obrigado pelas suas tangas...&mdash;atalhou Sinval a
+impulsos de
+riso.&mdash;O celebre viajante Cook, na sua <i>Primeira viagem</i>, conta
+que em
+Taiti as <span class="pagenum">[70]</span> mulheres, por um refinamento de
+educa&ccedil;&atilde;o esmerada, quando cumprimentam alguem, exhibem
+aquella metade do
+corpo menos usual nas exposi&ccedil;&otilde;es ao ar livre.</p>
+
+<p>&mdash;Qu&atilde;o delicadas!</p>
+
+<p>&mdash;E qu&atilde;o pudibundas!... Ha tribus selvagens, ali&aacute;s
+muito casti&ccedil;as, em cuja
+linguagem falta a palavra <i>amor</i>, nem mesmo conhecem o beijo, essa
+mimosa delicia da epiderme que os homens aprenderam dos pombos e das rolas,
+por que a b&ecirc;sta humana era incapaz de inventar o beijo.</p>
+
+<p>D'uma vez, resentido com aquella <i>litteratura de cabotagem</i> em que
+elle mentalmente me classificava, e, de mais a mais, ferido nas minhas
+convic&ccedil;&otilde;es metaphisicas, sahi &aacute; li&ccedil;a
+impavidamente, e discorri por largo, e
+bem, com muita felicidade, provando a existencia de Deus pelo facto da
+minha
+existencia, e a divina forma&ccedil;&atilde;o do mundo pelo facto da
+materia <span
+class="pagenum">[71]</span> bruta n&atilde;o se poder espontaneamente
+formar a si,
+ali&aacute;s o homem, materia menos bruta, faria alguma coisa com elementos
+novos.
+Innegavelmente despenhei-o; mas elle, como o Lucifer de Milton e do Braz
+Martins no <i>Santo Antonio</i> ainda regougava l&aacute; do fundo do
+abysmo:</p>
+
+<p>&mdash;Voc&ecirc; conhece a philosophia de Xenophanes?</p>
+
+<p>Fiz um gesto de cabe&ccedil;a affirmativamente patarata, e elle
+proseguiu com um
+riso mordazmente suspeitoso de que eu n&atilde;o sabia nada de
+Xenophanes.</p>
+
+<p>&mdash;Xenophanes&mdash;disse Sinval solemnisando o aspeito&mdash;aos
+noventa e dois
+annos de idade lia os seus poemas didaticos de moral santa, e pedia esmola
+aos ouvintes para sepultar os filhos. Morreu mais de centenario estudando
+sempre; e, pouco antes de expirar, fez esta profecia: Ninguem soube, nem
+sabe, nem saber&aacute; <span class="pagenum">[72]</span> nada
+respectivamente a
+Deus e &aacute; forma&ccedil;&atilde;o do mundo; e aquelle que mais
+egregiamente fallar
+d'essas
+coisas, ser&aacute; t&atilde;o ignorante como os outros. Ora voc&ecirc;
+acaba de fallar
+egregiamente.</p>
+
+<p>E retirou-se, provavelmente, confundido.</p>
+
+<p>Nunca me esqueceu a opini&atilde;o scientifica d'este medico a respeito
+do
+adulterio. Dizia elle com aprumo cathedratico e um sorriso
+rabelaiseano:&mdash;Esposa perfida e esposo trahido s&atilde;o effeitos
+necessarios e
+fataes de influencias celestes&mdash;coisas do Zodiaco. Uns homens, os
+seductores,
+nascem no Signo de Le&atilde;o, e d'ahi vem chamarem-se
+<i>le&otilde;es</i>; outros homens,
+os minotaurisados, nascem no signo de Capricornio, e d'ahi vem chamarem-se
+o
+que voc&ecirc; sabe. &Eacute; como eu penetro n'esta escura e hedionda
+voragem do
+adulterio, com o facho mathematico da Astronomia.</p>
+<span class="pagenum">[73]</span>
+
+<p>&mdash;Em que Signo nasceria eu?&mdash;murmurei meditabundo,
+ingenuamente.</p>
+
+<p>E elle, com solemnidade comica:</p>
+
+<p>&mdash;No Signo de <i>Libra</i> n&atilde;o seria por que o vejo bastante
+falho d'essa
+especie. Persuado-me que seria no de <i>Caranguejo</i>, (<i>Cancer</i>)
+quando leio na gazeta as suas theorias sociologicas; mas, &aacute; vista do
+candor
+donzel da sua lyra amorosa, bem p&oacute;de ser que voc&ecirc; nascesse no
+Signo de
+<i>Virgem</i> (<i>Virgo</i>). F&ocirc;sse como f&ocirc;sse, fa&ccedil;o
+votos amigos e sinceros
+por que n&atilde;o nascesse no de <i>Capricornio</i>, nem no de
+<i>Touro</i>
+(<i>Taurus</i>), nem no de <i>Carneiro</i> (<i>Aries</i>), por que todos
+tres
+possuem excrecencias symbolicas por onde se explica a profus&atilde;o dos
+influenciados. Ha pontas de mais no Zodiaco, n&atilde;o acha?</p>
+
+<p>&mdash;Sim, acho bastante sortido o Zodiaco. Parece a capital de um
+reino
+civilisado.</p>
+<span class="pagenum">[74]</span>
+
+<p>&mdash;Pois os legisladores n&atilde;o percebem d'isso nada.
+Est&atilde;o ainda com o direito
+canonico da idade-m&eacute;dia, permittindo que o trahido mate a adultera,
+e
+mandando em paz o marido adultero colhido em flagrante delicto. E note
+voc&ecirc;&mdash;exclamava Sinval n'uma irrita&ccedil;&atilde;o de
+consciencia revoltada&mdash;note voc&ecirc;
+que a legisla&ccedil;&atilde;o christianisada da idade-m&eacute;dia, muito
+cruel para as mulheres
+e indulgentissima para os homens, era feita sob o influxo dos concilios!
+Realmente as mulheres devem grandes obsequios ao christianismo, e
+p&oacute;dem
+fiar-se nos pr&eacute;gadores e nos moralistas <i>rococos</i> dos
+Semanarios
+religiosos que, uns por ignorancia e outros por obriga&ccedil;&atilde;o do
+officio, a
+bigodeam com a sua emancipa&ccedil;&atilde;o! A certos respeitos,
+n&atilde;o ha paiz como este
+nosso para ossifica&ccedil;&otilde;es de umas certas ignorancias
+convencionaes. Conta-se
+que Jesus perdo&aacute;ra <span class="pagenum">[75]</span> a uma adultera,
+por
+que
+entre os seus proprios discipulos e o mulherigo que a seguia escandalisado
+na
+piugada dos esbirros, n&atilde;o havia creatura limpa do mesmo peccado que
+lhe
+atirasse a primeira pedrada. Bem boa corja, <i>cela va sans dire!</i> Pois,
+quer seja facto, quer seja parabola, temos muito que deslindar entre a
+philosophia messianica de Christo e a religi&atilde;o dos christ&atilde;os.
+O ideal
+humanissimamente caridoso de Jesus, quanto &aacute; fragilidade da mulher,
+n&atilde;o tem
+que v&ecirc;r com o <i>Matrimonio do jesuita</i> Sanches e o <i>Livro V das
+Ordena&ccedil;&otilde;es</i>. Logo que Jesus, immolado inutilmente &aacute;
+arraia-miuda da
+Galil&ecirc;a, fechou os olhos, as adulteras judias e as conversas ao
+christianismo
+deturpado de Paulo, continuaram a ser apedrejadas; e, rodados 1849 annos de
+civilisa&ccedil;&atilde;o desde a tragedia do Golgotha at&eacute; &aacute;
+comedia da Carta-Gaioso, <span
+class="pagenum">[76]</span> certo artigo do Codigo Penal, que nos rege,
+permitte que o esposo trahido estrangule a adultera, sem lhe dar tempo a
+invocar o misericordioso perd&atilde;o exemplificado por Christo. Pobres
+mulheres!
+que rica emancipa&ccedil;&atilde;o!<sup><a href="#nota2"
+name="mr2">2</a></sup></p>
+
+<p>Este trecho de discurso n&atilde;o era incontestavelmente um
+mod&ecirc;lo de eloquencia
+do pulpito catholico; mas o caso &eacute; que eu n&atilde;o sabia
+ent&atilde;o destecer-lhe os
+fios do sophisma. Havia de ser hoje!... E este homem&mdash;que tinha um
+talento
+<span class="pagenum">[77]</span> anecdotico, relampejante de remoques de
+Swift e de Voltaire, ironias feitas de potassa caustica, indultando com
+risos
+sarcasticos os vicios sociaes que afogam em lagrimas as suas
+victimas&mdash;Camara
+Sinval padecia no cerebro uma doen&ccedil;a irrisoria, a monomania de
+pr&eacute;gar serm&otilde;es
+bombasticos &aacute;c&ecirc;rca do S. Sacramento, que por ahi andam em um
+grosso volume
+posthumo, com um prefacio meu, ha mais de vinte annos. A prosa de Sinval
+tinha a sonoridade rythmica do verso heroico. <span
+class="pagenum">[78]</span> Possui impressa uma das suas
+ora&ccedil;&otilde;es proferidas
+na abertura das aulas medico-cirurgicas. Come&ccedil;ava assim: <i>Tem o
+sanhudo
+le&atilde;o falcadas garras, tem a timida lebre agudo ouvido, vista
+perspicaz a
+aguia generosa...</i> S&atilde;o trez hendecassyllabos arcadicos bem
+feitos,
+pomposos.</p>
+
+<p class="centrado">*</p>
+
+<p>Voltando &aacute; minha enfermidade mortal, no dia seguinte restringi-me
+ao
+bacalh&aacute;o assado muito saturado do alho estomacal. O bacalh&aacute;o
+conquistou na
+moderna therapeutica das gastrodyneas, nas dyspepsias e gastrites chronicas
+uma reputa&ccedil;&atilde;o tonica, restaurante; quanto ao alho, esse gosa
+creditos de
+antidoto da <span class="pagenum">[79]</span> raiva; por&eacute;m,
+n'aquelle tempo,
+o reles pescado da Terra Nova era considerado comestivel apenas assimilavel
+a
+estomagos de patag&otilde;es, com a potencia digestiva de ogres; e, a
+respeito do
+alho, pessoa que cheirasse a elle tinha as inquiri&ccedil;&otilde;es
+tiradas desde malandro
+at&eacute; scelerado.</p>
+
+<p>Como quer que seja, eu, alternando o bacalh&aacute;o com as tripas de
+boi&mdash;as
+tripas, o heroico braz&atilde;o do Porto&mdash;um complexo aphrodysiaco de
+chispe, de
+paio, aves, hervan&ccedil;os e color&aacute;o, recuperei, ao cabo de duas
+semanas, for&ccedil;as
+extraordinarias e tamanhas que, n'um transporte de gratid&atilde;o,
+levantei
+Gertruria e passei-a triumphalmente nos meus bra&ccedil;os. Quando as
+chloroses e as
+anemias est&atilde;o grassando nos grandes centros como doen&ccedil;a
+endemica da gera&ccedil;&atilde;o
+nova depauperada, eu faltaria ao sagrado dever altruista, se n&atilde;o
+offerecesse
+este boletim sanitario aos que padecem. <span class="pagenum">[80]</span>
+Que
+elles principiem pela m&atilde;o de vacca e concluam a sua cura com tripas
+sortidas.</p>
+
+<p>Entretanto, o doutor Jo&atilde;o Ferreira propalava a minha cura da
+perigosa
+opila&ccedil;&atilde;o como a mais rara e inesperada da sua clinica,
+mediante o ferro e o
+vinho quinado. Tinha-me arrancado das pr&ecirc;zas da morte, dizia-se; e a
+minha
+engomadeira, uma devota velhinha, asseverava que f&ocirc;ra o martyr S.
+Torquato de
+Guimar&atilde;es que a obsequi&aacute;ra mais uma vez, curando-me.</p>
+
+<p class="centrado">*</p>
+
+<p>Depois, no resvalar de doze annos, as vagas aparcelladas da minha
+derrota
+em demanda do Prestes-Jo&atilde;o do Ideal, sendo <span
+class="pagenum">[81]</span>
+piloto o marido ass&aacute;s conhecido de Psyche, baldearam-me a
+regi&otilde;es inhospitas
+onde n&atilde;o podia encontrar Gertrudes. Nunca mais a vi; mas, como a
+saudade me
+estava sempre negaceando para aquelle tempo, a imagem d'ella acompanhava as
+minhas recorda&ccedil;&otilde;es de perdas irreparaveis, desde uns aureos
+sonhos de
+trovador que eu sonh&aacute;ra, at&eacute; outros sonhos de farinha e
+manteiga que a
+Gertrudes fazia com o auxilio dos ovos. Eu sentia, a um tempo, o perfume
+dos
+anhelitos de Marilia bella e o das murcellas incomparaveis de Gertruria. A
+vergonhosa dualidade do cora&ccedil;&atilde;o do homem! Se n&atilde;o
+fossem as falacias
+metrificadas, e o lyrico, depondo o alaude, se confessasse ingenuamente em
+prosa, n&atilde;o haveria arr&ocirc;bo de alma que n&atilde;o sahisse
+apelintrado pela
+concumitancia ignobil das ca&ccedil;oulas.</p>
+<span class="pagenum">[82]</span>
+
+<p class="centrado">*</p>
+
+<p>Quando li a noticia da morte de Gertrudes, e n&atilde;o pude duvidar que
+a
+naufragada era a minha restauradora, meditei solver a minha divida de
+gratid&atilde;o com um artigo necrologico, por n&atilde;o ter sufficiente
+confian&ccedil;a na
+utilidade de uma missa <i>de requiem</i>, a doze vintens, vinho por conta
+do
+padre.</p>
+
+<p>Eu tinha pertencido por algum tempo a uma sociedade de homens de
+lettras,
+quasi exclusivamente dedicados &aacute; especialidade necrologias de
+defunctos
+illustres. Eramos os gatos-pingados do Baluarte. Choravamos enormes
+artigos
+bem phraseados e estrangulados de interjei&ccedil;&otilde;es afflictas, com
+epigraphes em
+latim, sobre defunctos analphabetos que, &aacute; mingua <span
+class="pagenum">[83]</span> de instruc&ccedil;&atilde;o primaria,
+n&atilde;o poderiam na celeste
+mans&atilde;o tomar conhecimento da nossa prosa. Andavamos t&atilde;o
+assanhados n'esse
+fariscar de chacaes o c&ecirc;vo litterario de carne morta que seriamos
+capazes de
+assassinar pessoas distinctas, se as indigest&otilde;es, as tuberculoses, a
+cachexia
+mercurial, o escrofulismo, os figados engorgitados e a pharmacia nos
+n&atilde;o
+dispensassem de alimentar com sangue humano o cannibalismo da Arte
+elegiaca.
+O presidente da sociedade era Jos&eacute; Barbosa e Silva, um mo&ccedil;o
+de grande
+talento, diplomata em Berlim, deputado por Vianna do Castello, sua patria.
+As
+necrologias que este adoravel rapaz estampou s&atilde;o as de todos os
+mortos seus
+contemporaneos, seus amigos, seus conhecidos, ou apenas amigos ou
+conhecidos
+de uns sujeitos que elle podia vir a conhecer. No torvelinho dos prazeres,
+que <span class="pagenum">[84]</span> todos experimentou, Jos&eacute;
+Barbosa parava
+de repente a olhar para o golpho que lhe sorvia um companheiro; e, como
+presagiava morrer aos vinte e oito annos, quando carpia os outros,
+ponderando
+a tristeza da morte, parecia chorar sobre si mesmo.</p>
+
+<p>Fallecido Barbosa e Silva, o maior numero de seus amigos escriptores
+tomou
+a s&eacute;rio a desgra&ccedil;a da morte, e experimentou a impossibilidade
+de escrever
+necrologias quando a d&ocirc;r &eacute; sincera e inconsolavel. Os socios
+da institui&ccedil;&atilde;o
+carpideira j&aacute; quasi todos naufragaram por essas restingas dos
+cemiterios.
+Os
+raros que ainda restam, sentados &aacute; ourella do rio negro, encolhidos,
+a
+tiritar na algidez de decrepitos, e de m&atilde;os inclavinhadas nos
+joelhos, ainda
+ouvem as commemora&ccedil;&otilde;es funebres da actualidade, e por vezes
+rejubilam na sua
+jactancia senil quando se <span class="pagenum">[85]</span> v&ecirc;em
+plagiados
+n'estas f&oacute;rmas da necrologia moderna:</p>
+
+<blockquote>
+<p>Mais uma saudade para a terra, mais um anjo para o c&eacute;o, etc.</p>
+
+<p>Mais uma vida ceifada em bot&atilde;o pela fouce, etc.</p>
+
+<p>A aza negra da impavida morte acaba de ro&ccedil;ar as faces do nosso
+amigo,
+etc.</p>
+
+<p>A sangrenta Parca acaba de cortar, etc.</p>
+
+<p>A cega Atropos que tanto bate &aacute; porta do palacio como da
+choupana,
+etc.</p>
+</blockquote>
+
+<p>E estes dizeres que j&aacute; f&ocirc;ram formulas s&eacute;rias,
+sacramentaes, e estimulo a
+torrentes de lagrimas, s&atilde;o hoje em dia uns humorismos inconscientes
+que
+despojam a morte de toda a sua respeitabilidade e
+circumspec&ccedil;&atilde;o.</p>
+<span class="pagenum">[86]</span>
+
+<p class="centrado">*</p>
+
+<p>Pois, Thomaz Ribeiro, n&atilde;o pude redigir a necrologia de
+Gertrudes!</p>
+
+<p>Tu que &eacute;s sensivel e conheces os arcanos da arte,&mdash;que
+possues illesas do
+golpe dos desenganos as cellulas funccionaes das illus&otilde;es queridas,
+(isto
+&eacute;&mdash;a alma incolume, com as suas 3 potencias,
+numera&ccedil;&atilde;o antiga); e conservas a
+candura juvenil do cora&ccedil;&atilde;o, (<i>cora&ccedil;&atilde;o!</i> o
+musculo nutriente com
+auriculas e ventricolos!&mdash;releva o archaismo
+proven&ccedil;al&ecirc;sco que me faz coevo
+de Macias, o Enamorado), do musculo, digo, que n&atilde;o encaneceu em
+breves annos
+de infortunio sem treguas; e, na idade da prosa de ministro da cor&ocirc;a,
+ainda
+te commoves sob o impressionismo affectivo do inolvidavel poeta do <span
+class="small-caps">D. Jayme</span>, imaginas, porventura, <span
+class="pagenum">[87]</span> que eu n&atilde;o pude escrever por que as
+d&ocirc;res
+immensas s&atilde;o mudas, e os repell&otilde;es da paix&atilde;o
+turbulenta impedem que a phrase
+se acepilhe e pula e arredonde. Agrade&ccedil;o o teu conceito que ao mesmo
+tempo me
+lisongeia e adult&eacute;ra; mas a raz&atilde;o &eacute;
+outra&mdash;&eacute; deploravel. Queres saber por que
+n&atilde;o escrevi a necrologia da humilde mulher que me salvou?&mdash;foi
+por que ella
+me salvou como cozinheira. Por mais combina&ccedil;&otilde;es que fiz com
+as grosas de
+allegorias de que dispunha, por mais embrechados de figuras que os canones
+de
+Quintiliano me liberalisassem, n&atilde;o atinei com uma evasiva
+consentanea com a
+minha cathegoria de philaucioso casquilho em <i>redingotes</i> do Catarro e
+lettras amenas. Eu tinha escripto bastantes artigos funebres, catadupas de
+pranto sobre os esquifes de matronas v&aacute;rias que haviam nascido
+<i>gertrudes</i>, e do tambor&ecirc;te <span class="pagenum">[88]</span> da
+cozinha
+avoenga se esvoa&ccedil;aram nas azas da bebada fortuna para os divans
+bysantinos e
+d'ahi para os jazigos marmoreos. A penna corria-me de vontade, no fremito
+da
+inspira&ccedil;&atilde;o, e as perolas, crystalisa&ccedil;&otilde;es do
+muco lacrimal, saltavam-lhe dos
+bicos quando a defunta levava atraz da sua podrid&atilde;o muitas
+carruagens, e era
+suffragada na egreja refulgente de tochas, em uma neblina de incenso, por
+uma
+berrata fanhosa e barbar&ecirc;sca de levitas, com barrigas basilicaes, que
+decerto, se os transportassem &aacute;s miss&otilde;es africanas, ririam
+&aacute;s escancaras da
+algazarra que fazem os cafres &aacute; volta de um morto.</p>
+
+<p>Figurou-se-me, al&eacute;m d'isso, que a imprensa, moderadamente
+democratica e
+cheia de conveniencias melindrosas, se constrangeria tolerando nas suas
+columnas, por comprazer &aacute; minha ridicula <span
+class="pagenum">[89]</span>
+magua, a necrologia da cozinheira Gertrudes. De mais a mais, eu n&atilde;o
+sabia
+como al&ccedil;ar o estylo prismatico, de adjectivos rutilos, de modo a
+deslumbrar a
+critica soez, e a n&atilde;o desafiar o sorriso gaiato dos dandys pela
+importancia
+que eu dava &aacute; minha sanidade physiologica restaurada pela m&atilde;o
+de
+vacca.
+Ser-me-hia talvez possivel equilibrar na gymnastica de
+locu&ccedil;&otilde;es explosivas,
+victorhuguescas, onomatopaicas o interesse da morta, descrevendo o
+naufragio
+do barco rab&ecirc;llo com os horrores do brigue <i>Mondego</i> ou da
+fragata
+<i>Medusa</i>. Eu conhecia umas esfusiadas pyrothechnicas de metaphoras que
+punham enthusiasmos furiosos na dramatologia epileptica do Theatro-Normal,
+volcanisando as familias incendiarias da rua dos Bacalhoeiros; e ainda
+agora
+n&atilde;o passam de todo despercebidas &aacute; minha pasmaceira de
+minh&ocirc;to
+palerma.</p>
+<span class="pagenum">[90]</span>
+
+<p>Ainda cheguei a ensaiar o genero... <i>Os relampagos afuzilavam... O
+c&eacute;o
+phosphoreava as suas lampadas sinistras para v&ecirc;r a lucta do abysmo.
+Eram os
+albatrozes, n'um arquejar estridente, a pairarem na treva superior com as
+suas azas de fogo. As aguias do Mar&atilde;o, acossadas pelos
+bulc&otilde;es das cumiadas,
+acolhiam-se &aacute;s concavidades da serra, e passavam grasnando o threno
+da
+desola&ccedil;&atilde;o por sobre o paroxismo dos naufragos. Zuniam
+furac&otilde;es assobiando
+pelas espaldas angulosas dos penhascaes... A tripula&ccedil;&atilde;o, n'um
+clamor de
+agonias, a bradar misericordia!... O baixel arfava no dorso do
+vagalh&atilde;o,
+ou, cuspido &aacute;s nuvens, resvalava na voragem onde as pranchas
+descosidas
+ringiam asperrrrrrimamente.</i> (Onomatopeia)... <i>Castellos de nuvens
+atras
+desabavam</i> <span class="pagenum">[91]</span> <i>n'um estrallejar de
+ribombos; o escarceu verde-bronze, topetando com o ether zebrado de
+coriscos,
+baqueava-se depois n'um marulhar de espumas rugidoras... O cahos de cima a
+descer, a descer com a mortalha de treva sobre o abysmo que subia, subia
+n'uma ressonancia de maldi&ccedil;&otilde;es ao <span
+class="small-caps">fiat</span>,
+creador das sevas angustias ineluctaveis do homem. E o naufrago cravava
+olhos
+piedosos no c&eacute;o; e via listrarem-se as centelhas dos raios, como se
+os Titans
+revolucionados arrojassem &aacute; cara de Jupiter as escumalhas igneas das
+suas
+forjas. E o bar&atilde;o de Forrester, ao portal&oacute;, hirto, impavido
+como Nelson no
+Trafalgar.., etc.</i> Tudo isto e o resto me sahiu ao pintar, e exacto como
+uma photographia, na descrip&ccedil;&atilde;o de um desastre de barco de
+pipas ido a pique
+entre dois calh&aacute;os do Douro; mas, a <span
+class="pagenum">[92]</span>
+final,
+o que eu n&atilde;o sabia era diluir em synonimias e paraphrases coherentes
+com a
+tremenda catastrophe o qualificativo cozinheira. Ainda se Gertrudes,
+filha
+de um desembargador miguelista ou d'um brigadeiro capitulado em
+Evora-Monte,
+com alguns appellidos historicos, houvesse descido as escaleiras da
+necessidade, sem deslise da honra, at&eacute; &aacute; baixeza do seu
+officio, talvez que
+eu ousasse arcar com a necrologia, apostrophando o flagello da guerra civil
+que acorrentou &aacute; grilheta do fog&atilde;o e da bateria de panellas
+aquella
+mulher
+nascida para rastolhar, sobre tapetes, <i>moires</i> crepitosas, laminadas
+de
+brilhos metalicos ondulantes, e para saltar com tregeitos desenvoltos, n'um
+derrengue arrega&ccedil;ado e esquadrilhado de <i>&eacute;cuyre</i>, da
+estribeira do
+<i>landeau</i>, armorejado de paquifes arrogantes e escudos e timbres com
+passaros prehistoricos <span class="pagenum">[93]</span> e hydras
+assanhadas,
+&aacute; porta das modistas;&mdash;para reinar, emfim, nos theatros, no
+turbilh&atilde;o dos
+bailes, nos balc&otilde;es dos bazares philantropicos, na
+Caridade-<i>Flirtation</i>, e talvez no <i>sport</i> e no <i>turf</i>. Mas
+Gertrudes n&atilde;o tinha appellidos: era miseravelmente <i>Gertrudes
+Engracia</i>,
+d'um plebeismo razo, filha da Engracia, j&aacute; celebre cozinheira dos
+fidalgos
+Mellos, casada com o Bento, cozinheiro famoso dos fidalgos Cyrnes, o qual
+caz&aacute;ra com uma cozinheira n&atilde;o menos distincta dos fidalgos
+Pamplonas. Esta
+genealogia, entre duas receitas de pudins de batata, encontrei-a escripta
+pelo pae de Gertrudes nas costas do frontispicio de um velho livro que ella
+me deu chamado <i>Alivio de tristes e consola&ccedil;&atilde;o de
+queixosos</i>. E da mesma
+arvore de gera&ccedil;&atilde;o constava que seu terceiro av&ocirc; materno
+f&ocirc;ra abbade de
+Miragaya e sua quinta av&oacute; paterna era filha <span
+class="pagenum">[94]</span>
+de um frade loio. Estes dois clerigos propagadores, como elementos
+genealogicos, n&atilde;o me pareceram imperiosamente exuberantes de
+moralidade e
+justi&ccedil;a para que eu, apostrophando a execravel guerra civil, a
+responsabilisasse pela decahida posi&ccedil;&atilde;o servil da neta do
+frade e do
+abbade.</p>
+
+<p class="centrado">*</p>
+
+<p>Aqui tens, Thomaz Ribeiro, um cora&ccedil;&atilde;o aberto pelo remorso
+que se offerece
+&aacute; dissec&ccedil;&atilde;o do teu bistur&iacute;. Santo Agostinho,
+imbecilitado pela
+piedade, e J.
+J. Rousseau, desbragado pela sua dissimulada philosophia cynica, deram-me o
+exemplo de vir &aacute; pra&ccedil;a com a confiss&atilde;o tardia de uma
+pusillanimidade
+que d&aacute; a
+<span class="pagenum">[95]</span> medida da miseria humana, e
+particularmente
+dos artistas de necrologias. N'este escripto, vim justi&ccedil;ar duas
+bestialidades
+protervas: a minha ingratid&atilde;o e o clyster inglez. Agora, sinto-me
+bem, muito
+desabafado. Talvez lhe deva a elle, &aacute; <i>jeropiga</i> desobstruente
+do
+Forrester, este desempacho da consciencia. Ha exemplos confirmados por
+aforismos de Hippocrates.</p>
+
+<p>Se chegaste aqui sem fastio, &eacute;s um anjo de paciencia e de
+problematico
+bom-gosto. Decerto uzurpei &aacute; patria uma hora das tuas
+contempla&ccedil;&otilde;es
+sanitarias sobre a revis&atilde;o da <span class="small-caps">carta</span>,
+que anda
+agora mui frequente na revista&mdash;o que me parece rasoavel, se ella,
+n&atilde;o
+obstante a <i>bigoterie</i> do Artigo 6., se tornou suspeita de virginismo
+insufficiente para reger um paiz pudibundo.</p>
+
+<p>Seja como f&ocirc;r, n'este opusculo esfervilham <span
+class="pagenum">[96]</span> episodios desvairados que desatremam do
+assumpto
+e do titulo. S&atilde;o exuberancias que extravasam de uma grande medida
+cogulada de
+annos e de reminiscencias. O criticismo unhar&aacute; o abuso do
+subjectivismo
+indisciplinado, a desorienta&ccedil;&atilde;o do abjectivo impessoal, da
+Arte Pura com
+maiusculas, finalmente&mdash;o roman&ecirc;sco. Affoito-me, todavia, a
+esperar que os
+criticos pr&aacute;ticos, tendo em vista os episodios extravagantes,
+af&oacute;ra os
+gallicismos de que &eacute; capaz o seu aristocrata Tokay, usar&atilde;o
+com o meu modesto
+vinho do Porto a sua costumada indulgencia generosa. E permitta a minha
+benigna estrella que os almotac&eacute;s d'este folheto, quando hajam de
+aquecer o
+seu criterio no calorifico de alguma beberagem nervosa e suggestiva,
+prefiram
+o Johannisberg palaciano ao garoto Cartaxo do <i>Jos&eacute; dos
+Caracoes</i>; por
+que, a final <span class="pagenum">[97]</span> de contas, nem todos os
+criticos espiritados por vinhos canalhas tem o <i>humour</i> faiscante de
+Poe, de Hoffmann, de Marlowe, de Zacharias Werner e de Bocage&mdash;uma
+constella&ccedil;&atilde;o de bebados immortalmente classicos.</p>
+
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>Ainda se n&atilde;o disse tudo.</p>
+
+<p>N'este peda&ccedil;o de litteratura da decadencia, ou decahida de todo,
+observe a
+critica escorreita que ha dois projectos: um &eacute; patente, o outro
+&eacute;
+clandestino. O primeiro &eacute;&mdash;arrazar Inglaterra; e, com effeito,
+arraza-se. O
+projecto clandestino, um tanto arteiro, &eacute; obter pelo sophisma
+tortuoso da
+lettra redonda, typo-Elzevir, o que o mercieiro alcan&ccedil;a com o
+correcto
+syllogismo dos azeites e dos farinhaceos. O Espiritual ousa correr o
+p&aacute;rio
+com o <span class="pagenum">[98]</span> Comestivel: a meta &eacute; o
+habito de
+Christo. Que o mercieiro, melindrado na sua prosapia de anthropoide,
+n&atilde;o se
+agaste, se eu o lan&ccedil;o n'estas correrias de hippodromo. N&atilde;o
+lhe conhe&ccedil;o outros
+dons que o habilitem a entrar no <i>sport</i>.</p>
+
+<p>Emfim, quando voltares a ministrar os negocios do reino, Thomaz Ribeiro,
+n&atilde;o me percas d'&ocirc;lho o meu habito de Christo, merecido pela
+fa&ccedil;anha heroica e
+pouco trivial de arrazar Inglaterra. Bem v&ecirc;s que estas
+ambi&ccedil;&otilde;es ali&aacute;s
+temerarias, confesso, n&atilde;o ultrapassam desmedidamente as balisas do
+meu
+merecimento. A almejada venera &eacute; a infima, penso eu, a mais piranga
+caracteristica ethnica da ra&ccedil;a que domina esta nesga rasgada da
+Espanha, (que
+m'o releve <span class="small-caps">d. Jayme</span>)&mdash;umas noventa
+leguas,
+metade incultas; e, assim mesmo, na povoa&ccedil;&atilde;o d'essa metade,
+in&ccedil;am e pompeiam,
+segundo conta <span class="pagenum">[99]</span> o <i>Almanach Commercial
+para
+1884</i>, cento e vinte dois condes, trezentos e quatro viscondes, e cento
+e
+noventa bar&otilde;es. Quanto a commendadores, quem contou as gotas do
+mediterraneo,
+as areias do Saharah e as estrellas da Via-Lactea? Ora, a respeito do
+habito
+de Christo, isso j&aacute; agora, bem sabes, &eacute; uma coisa que se
+exporta para o
+estrangeiro como amostra da nossa unica industria; mas envia-se
+gratuitamente
+como os <i>Grands Magasins du Printemps</i> nos remettem de gra&ccedil;a,
+francos de
+porte, os retalhinhos das suas fazendas.</p>
+
+<p>Ah! que eu n&atilde;o morra n&uacute; d'esse habito! Concedam-me, na
+morte ao menos,
+essa insignia de christ&atilde;o em terra de moiros.</p>
+
+<p class="direita"><i>S. Miguel de Seide, abril, 20, 1884.</i></p>
+<span class="pagenum">[100]</span>
+
+<div class="rodape">
+<p><sup><a href="#mr1" name="nota1">1</a></sup> Quando o bar&atilde;o de
+Forrester
+pereceu por desastre, um dos mais authorisados jornaes do paiz, escreveu
+sentimentalmente o seguinte: ... A morte desgra&ccedil;ada do snr.
+bar&atilde;o de
+Forrester a todos penalisava, pois o muito que aquelle illustrado
+cavalheiro
+se interess&aacute;ra sempre pela sorte do Douro, os bons servi&ccedil;os
+que lhe prestou
+com os seus escriptos... o tornaram geralmente estimado... Mostrou-se
+sempre
+muito dedicado a este paiz, e por muitas vezes associou o seu nome aos dos
+que mais trabalharam para os seus melhoramentos e progresso.&mdash;<i>O
+Commercio
+do Porto</i>, de 14 de maio de 1861.</p>
+
+<p>Um correspondente da Regoa para o mesmo jornal e no numero seguinte,
+escreveu: &Eacute; sincero o sentimento geral que produziu a noticia da
+morte do
+snr. Forrester, e s&atilde;o bem justas as lagrimas que se derramam por
+t&atilde;o
+desastroso acontecimento. &Eacute; uma divida sagrada que se paga &aacute;
+memoria do
+distincto cavalheiro que tanto se sacrificou por este paiz. Portugal e
+especialmente o Douro muito lhe devem... Apesar de estrangeiro era
+portuguez
+do cora&ccedil;&atilde;o por que poucos filhos d'esta patria mais fizeram
+por ella nem mais
+a amaram...</p>
+
+<p>Parece, pois, que os exemplares da diffama&ccedil;&atilde;o do vinho do
+Porto eram
+desconhecidos em Portugal. Que f&eacute; nos hade merecer a historia e a
+biographia
+escripta por contemporaneos, quando o facto social erradamente julgado, ou
+a
+vida de um individuo favorecida pela adula&ccedil;&atilde;o, ou deturpada
+pelo odio, n&atilde;o
+tiverem contradictores, tambem coevos, a contrastal-a!</p>
+
+<p><sup><a href="#mr2" name="nota2">2</a></sup> <i>Nota
+illustrativa.</i>&mdash;Joseph Gregorio Lopes da Camara Sinval era
+esturrado
+patul&ecirc;a da Junta rebelde do Porto, e command&aacute;ra com honras de
+coronel o
+batalh&atilde;o academico. Al&eacute;m d'este predicado faccioso, Sinval
+tinha o exemplo do
+austero historiador A. Herculano, que escrev&ecirc;ra: <i>A historia do
+liberalismo
+&eacute; uma comedia de m&aacute;o gosto.</i> E, resalvando as duas nobres
+personagens,
+D.
+Pedro IV e Mousinho da Silveira, accrescent&aacute;ra: <i>O resto
+n&atilde;o vale
+a penna
+da men&ccedil;&atilde;o. S&atilde;o financeiros e bar&otilde;es, viscondes,
+condes e marquezes de fresca
+data e mesmo de velha data, commendadores, gr&atilde;o-cruzes e
+conselheiros: uma
+turba que grunhe, borborinha, fura, atropellando-se e acotovellando-se, na
+obra de roer um magro osso, chamado or&ccedil;amento, e que grita
+aqui-d'el-rey!
+quando n&atilde;o p&oacute;de tomar parte no regabofe.</i> Quanto &aacute;
+Carta-Gaioso
+a gente
+velha ainda conheceu no Porto a corista d'aquelle appellido que cantou o
+hymno da Carta Restaurada no theatro de S. Jo&atilde;o, e desde ahi ficou
+identificada, a Gaioso, com o codigo das liberdades p&aacute;trias.</p>
+</div>
+
+
+
+
+
+
+
+<pre>
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of O vinho do Porto: processo de uma
+bestialidade ingleza, by Camilo Castelo Branco
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O VINHO DO PORTO ***
+
+***** This file should be named 24691-h.htm or 24691-h.zip *****
+This and all associated files of various formats will be found in:
+ http://www.gutenberg.org/2/4/6/9/24691/
+
+Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images
+of public domain material from Google Book Search)
+
+
+Updated editions will replace the previous one--the old editions
+will be renamed.
+
+Creating the works from public domain print editions means that no
+one owns a United States copyright in these works, so the Foundation
+(and you!) can copy and distribute it in the United States without
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+Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you
+charge for the eBooks, unless you receive specific permission. If you
+do not charge anything for copies of this eBook, complying with the
+rules is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose
+such as creation of derivative works, reports, performances and
+research. They may be modified and printed and given away--you may do
+practically ANYTHING with public domain eBooks. Redistribution is
+subject to the trademark license, especially commercial
+redistribution.
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+things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
+even without complying with the full terms of this agreement. See
+paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project
+Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
+and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
+works. See paragraph 1.E below.
+
+1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
+or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
+Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the
+collection are in the public domain in the United States. If an
+individual work is in the public domain in the United States and you are
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+Foundation as set forth in Section 3 below.
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+receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy
+is also defective, you may demand a refund in writing without further
+opportunities to fix the problem.
+
+1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth
+in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
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+
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+or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
+work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
+Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.
+
+
+Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm
+
+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
+electronic works in formats readable by the widest variety of computers
+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
+people in all walks of life.
+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
+809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at http://pglaf.org
+
+For additional contact information:
+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
+
+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit http://pglaf.org
+
+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including checks, online payments and credit card donations.
+To donate, please visit: http://pglaf.org/donate
+
+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
+keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
+
+
+Most people start at our Web site which has the main PG search facility:
+
+ http://www.gutenberg.org
+
+This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
+including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
+Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
+subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
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+the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org.
+
+No investigation has been made concerning possible copyrights in
+jurisdictions other than the United States. Anyone seeking to utilize
+this eBook outside of the United States should confirm copyright
+status under the laws that apply to them.
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