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+ <title>O Mandarim</title>
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+ <meta name="AUTHOR" content="E&ccedil;a de Queir&oacute;s" />
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+The Project Gutenberg EBook of O Mandarim, by Eça Queirós
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: O Mandarim
+
+Author: Eça Queirós
+
+Release Date: October 27, 2007 [EBook #16384]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O MANDARIM ***
+
+
+
+
+Produced by Rita Farinha and the Online Distributed
+Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was
+produced from images generously made available by National
+Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)
+
+
+
+
+
+
+</pre>
+
+
+<div>
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="bbox"><span style="font-weight: bold;">
+</span>
+<h2><span style="font-weight: bold;"></span>E&Ccedil;A
+DE QUEIROZ </h2>
+
+<h1>
+O MANDARIM</h1>
+
+<div style="text-align: center;"><br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+</div>
+
+<div style="text-align: center;"><img style="width: 200px; height: 95px;" alt="" src="images/fig1.png" />
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">
+<h4>LIVRARIA INTERNACIONAL<br />
+
+DE<br />
+
+ERNESTO CHARDRON, EDITOR.<br />
+
+Porto e Braga<br />
+
+<br />
+
+1880</h4>
+
+</div>
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h1>O MANDARIM </h1>
+
+<h2>PROLOGO</h2>
+
+<div style="text-align: center;"><br />
+
+<br />
+
+1.&ordm; <span class="smallcaps">Amigo</span>
+(<em>bebendo Cognac e soda, debaixo d'arvores, n'um
+terra&ccedil;o, &aacute; beira d'agua</em>)<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+</div>
+
+Camarada, por estes calores do estio que embotam a ponta da sagacidade,
+repousemos do aspero estudo da Realidade humana... Partamos para os
+campos do Sonho, vaguear por essas azuladas collinas romanticas <span class="pagenum">[2]</span>onde se
+ergue a torre abandonada do Sobrenatural, e musgos frescos recobrem as
+ruinas do Idealismo... Fa&ccedil;amos phantasia!...<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">
+2.&ordm; <span class="smallcaps">Amigo<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+</span></div>
+
+Mas sobriamente, camarada, parcamente!... E como nas sabias e amaveis
+Allegorias da Renascen&ccedil;a, misturando-lhe sempre uma
+Moralidade discreta...<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="signature">(<span class="smallcaps">Comedia
+Inedita</span>).<br />
+
+<br />
+
+</div>
+
+<div style="text-align: center;"><img style="width: 200px; height: 95px;" alt="" src="images/fig1.png" />
+</div>
+
+<h2>I </h2>
+
+<br />
+
+<span class="smallcaps">Eu</span> chamo-me
+Theodoro&#8213;e fui amanuense do Ministerio do Reino.<br />
+
+<br />
+
+N'esse tempo vivia eu &aacute; travessa da
+Concei&ccedil;&atilde;o n.&ordm; 106, na casa d'hospedes da
+D. Augusta, a esplendida D. Augusta, viuva do major Marques. Tinha dois
+companheiros: o Cabrita, empregado na
+Administra&ccedil;&atilde;o do bairro central, esguio <span class="pagenum">[4]</span>
+e
+amarello como uma tocha d'enterro; e o possante, o exuberante tenente
+Couceiro, grande tocador de viola franceza.<br />
+
+<br />
+
+A minha existencia era bem equilibrada e suave. Toda a semana, de
+mangas de lustrina &aacute; carteira da minha
+reparti&ccedil;&atilde;o, ia lan&ccedil;ando, n'uma formosa
+letra cursiva, sobre o papel Tojal do Estado, estas phrases faceis:
+&laquo;<em>Ill.<sup>mo</sup> e Exc.<sup>mo</sup>
+Snr.</em>&#8213;<em>Tenho
+a honra de communicar a V.
+Exc.&ordf;... Tenho a honra de passar &aacute;s m&atilde;os
+de V.
+Exc.&ordf;, Ill.<sup>mo</sup> e Exc.<sup>mo</sup>
+Snr...</em>&raquo;<br />
+
+<br />
+
+Aos domingos repousava: installava-me ent&atilde;o no
+canap&eacute; da sala de jantar, de cachimbo nos dentes, e admirava
+a D. Augusta, que, em dias de missa,
+costumava limpar com clara d'ovo a caspa do tenente Couceiro. Esta
+hora, sobretudo no ver&atilde;o, era deliciosa: pelas <span class="pagenum">[5]</span>
+janellas meio
+cerradas penetrava o bafo da soalheira, algum repique distante dos
+sinos da Concei&ccedil;&atilde;o Nova, e o arrulhar das rolas
+na
+varanda; a monotona susurra&ccedil;&atilde;o das moscas
+balan&ccedil;ava-se sobre a velha cambraia, antigo
+v&eacute;o nupcial da Madame Marques, que cobria agora no aparador
+os pratos de cerejas bicaes; pouco a pouco o tenente, envolvido n'um
+len&ccedil;ol como
+um idolo no seu manto, ia adormecendo, sob a
+fric&ccedil;&atilde;o molle
+das carinhosas m&atilde;os da D. Augusta; e ella, arrebitando o
+dedo minimo branquinho e papudo, sulcava-lhe as r&ecirc;pas
+lustrosas com o pentesinho dos bichos...
+Eu ent&atilde;o, enternecido, dizia &aacute; deleitosa senhora:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ai D. Augusta, que anjo que &eacute;!<br />
+
+<br />
+
+Ella ria; chamava-me <em>engui&ccedil;o</em>! Eu
+sorria, sem me
+escandalisar. <em>Engui&ccedil;o</em> era com effeito
+o
+nome que me davam <span class="pagenum">[6]</span>
+na casa&#8213;por
+eu ser magro, entrar sempre as portas com o p&eacute; direito,
+tremer de ratos,
+ter &aacute; cabeceira da cama uma lithographia de Nossa Senhora
+das D&ocirc;res
+que pertencera &aacute; mam&atilde;, e corcovar. Infelizmente
+corc&oacute;vo&#8213;do muito que verguei o espinha&ccedil;o, na
+Universidade, recuando como uma
+p&ecirc;ga assustada diante dos senhores Lentes; na
+reparti&ccedil;&atilde;o,
+dobrando a fronte ao p&oacute; perante os meus Directores Geraes.
+Esta attitude de resto
+conv&eacute;m ao bacharel; ella mantem a disciplina n'um Estado bem
+organisado; e a mim garantia-me a tranquillidade dos domingos, o uso
+d'alguma roupa branca,
+e vinte mil reis mensaes.<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o posso negar, por&eacute;m, que n'esse tempo eu era
+ambicioso&#8213;como o reconheciam sagazmente a Madame Marques e o lepido
+Couceiro.
+N&atilde;o que me <span class="pagenum">[7]</span>
+revolvesse o peito o appetite heroico de dirigir,
+do alto d'um throno, vastos rebanhos humanos; n&atilde;o que a
+minha louca alma
+j&aacute;mais aspirasse a rodar pela Baixa em trem da Companhia,
+seguida d'um correio choitando;&#8213;mas pungia-me o desejo de poder jantar
+no Hotel Central com
+Champagne, apertar a m&atilde;o mimosa de viscondessas, e, pelo
+menos duas vezes por semana, adormecer, n'um extasi mudo, sobre o seio
+fresco de Venus. Oh! mo&ccedil;os que vos dirigieis vivamente a S.
+Carlos,
+atabafados em paletots caros onde alvejava a gravata de
+<em>soir&eacute;e</em>! Oh!
+tipoias, apinhadas de andaluzas, batendo galhardamente para os
+touros&#8213;quantas vezes me fizestes suspirar! Porque a certeza de que os
+meus vinte mil reis por mez e o meu geito encolhido de
+engui&ccedil;o me excluiam
+para sempre d'essas alegrias sociaes vinha-me <span class="pagenum">[8]</span>ent&atilde;o
+ferir o
+peito&#8213;como
+uma frecha que se crava n'um tronco, e fica muito tempo vibrando!<br />
+
+<br />
+
+Ainda assim, eu n&atilde;o me considerava sombriamente um
+&laquo;p&aacute;ria&raquo;. A vida humilde tem
+do&ccedil;uras: &eacute; grato, n'uma
+manh&atilde; de sol alegre, com o guardanapo ao pesco&ccedil;o,
+diante do bife de grelha, desdobrar o
+<span class="smallcaps">Diario de Noticias</span>;
+pelas tardes de ver&atilde;o, nos bancos
+gratuitos do
+Passeio, gozam-se suavidades de idyllio; &eacute; saboroso
+&aacute;
+noite no Martinho, sorvendo aos goles um caf&eacute;, ouvir os
+verbosos injuriar a patria...
+Depois, nunca fui excessivamente infeliz&#8213;porque n&atilde;o tenho
+imagina&ccedil;&atilde;o: n&atilde;o me consumia, rondando
+e almejando em torno de paraisos ficticios, nascidos
+da minha propria alma desejosa como nuvens da
+evapora&ccedil;&atilde;o d'um lago; n&atilde;o suspirava,
+olhando as lucidas estrellas, por um amor &aacute;
+Romeo, <span class="pagenum">[9]</span>ou por uma
+gloria social &aacute; Camors. Sou um positivo.
+S&oacute;
+aspirava ao racional, ao tangivel, ao que j&aacute; f&ocirc;ra
+alcan&ccedil;ado por
+outros no meu bairro, ao que &eacute; accessivel ao bacharel. E
+ia-me resignando, como quem a uma <em>table d'h&ocirc;te</em>
+mastiga a
+bucha de p&atilde;o secco &aacute;
+espera que lhe chegue o prato rico da <em>Charlotte russe</em>.
+As felicidades
+haviam de vir: e para as apressar eu fazia tudo o que devia como
+portuguez e como constitucional:&#8213;pedia-as todas as noites a Nossa
+Senhora das
+D&ocirc;res, e comprava decimos da loteria.<br />
+
+<br />
+
+No entanto procurava distrahir-me. E como as
+circumvolu&ccedil;&otilde;es do meu cerebro me n&atilde;o
+habilitavam a comp&ocirc;r odes,
+&aacute; maneira de tantos outros ao meu lado que se desforravam
+assim do tedio da profiss&atilde;o;
+como o meu ordenado, paga a casa e o tabaco, me n&atilde;o
+permittia <span class="pagenum">[10]</span>um
+vicio&#8213;tinha tomado o habito discreto de comprar na feira da Ladra
+antigos volumes desirmanados, e &aacute; noite, no meu quarto,
+repastava-me d'essas
+leituras curiosas. Eram sempre obras de titulos ponderosos: <span class="smallcaps">Galera da
+Innocencia</span>, <span class="smallcaps">Espelho
+Milagroso</span>, <span class="smallcaps">Tristeza
+dos Mal Desherdados</span>... O typo
+venerando, o papel amarellado com picadas de tra&ccedil;a, a grave
+encaderna&ccedil;&atilde;o freiratica, a fitinha verde marcando
+a pagina&#8213;encantavam-me! Depois, aquelles dizeres ingenuos em letra
+gorda davam uma
+pacifica&ccedil;&atilde;o a todo o meu s&ecirc;r,
+sensa&ccedil;&atilde;o comparavel &aacute; paz penetrante
+d'uma velha c&ecirc;rca de mosteiro, na quebrada d'um valle, por um
+fim suave de tarde, ouvindo o correr d'agua
+triste...<br />
+
+<br />
+
+Uma noite, ha annos, eu come&ccedil;&aacute;ra a l&ecirc;r,
+n'um d'esses in-folios vetustos, um <span class="pagenum">[11]</span>capitulo
+intitulado <em>Brecha
+das
+Almas</em>; e ia cahindo n'uma somnolencia grata, quando este
+periodo
+singular se me destacou do tom neutro e apagado da pagina, com o relevo
+d'uma medalha d'ouro nova brilhando sobre um tapete escuro:
+cop&iacute;o textualmente:<br />
+
+<br />
+
+&laquo;No fundo da China
+existe um Mandarim mais rico que todos os reis
+de que a Fabula ou a Historia
+contam. D'elle nada conheces, nem o
+nome, nem o semblante, nem a
+s&ecirc;da de que se veste. Para que tu
+herdes os seus cabedaes
+infindaveis, basta que toques essa
+campainha, posta a teu lado,
+sobre um livro. Elle soltar&aacute; apenas um
+suspiro, n'esses confins da
+Mongolia. Ser&aacute; ent&atilde;o um cadaver: e tu
+ver&aacute;s a teus
+p&eacute;s mais ouro do que p&oacute;de sonhar a
+ambi&ccedil;&atilde;o d'um avaro.
+Tu, que me <span class="pagenum">[12]</span>l&ecirc;s
+e
+&eacute;s um homem mortal, tocar&aacute;s tu a
+campainha?&raquo;<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="break">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Estaquei, assombrado, diante da pagina aberta: aquella
+interroga&ccedil;&atilde;o &laquo;homem mortal,
+tocar&aacute;s tu a campainha?&raquo;
+parecia-me fac&ecirc;ta, picaresca, e todavia perturbava-me
+prodigiosamente. Quiz l&ecirc;r mais; mas as
+linhas fugiam, ondeando como cobras assustadas, e no vazio que
+deixavam, d'uma
+lividez de pergaminho, l&aacute; ficava, rebrilhando em negro, a
+interpella&ccedil;&atilde;o
+estranha&#8213;&laquo;tocar&aacute;s tu a compainha?&raquo;<br />
+
+<br />
+
+Se o volume fosse d'uma honesta edi&ccedil;&atilde;o
+Michel-Levy, de capa amarella, eu, que por fim n&atilde;o me achava
+perdido n'uma floresta de
+ballada allem&atilde;, e podia da minha sacada v&ecirc;r
+branquejar &aacute; luz do
+gaz o correame da patrulha&#8213;teria simplesmente fechado o livro, e
+<span class="pagenum">[13]</span>estava dissipada a
+allucina&ccedil;&atilde;o nervosa. Mas
+aquelle sombrio in-folio
+parecia estalar magia; cada letra affectava a inquietadora
+configura&ccedil;&atilde;o
+d'esses signaes da velha cabala, que encerram um attributo fatidico; as
+virgulas tinham o retorcido petulante de rabos de diabinhos,
+entrevistos n'uma alvura de luar; no <em>ponto
+d'interroga&ccedil;&atilde;o</em> final eu via o
+pavoroso gancho com que o Tentador vai fisgando as almas que
+adormeceram sem se refugiar na inviolavel cidadella da
+Ora&ccedil;&atilde;o!... Uma influencia
+sobrenatural apoderando-se de mim, arrebatava-me devagar para
+f&oacute;ra da
+realidade, do raciocinio: e no meu espirito foram-se formando duas
+vis&otilde;es&#8213;d'um lado um Mandarim, decrepito, morrendo sem
+d&ocirc;r, longe, n'um kiosque
+chinez, a um <em>ti-li-tin</em> de campainha; do outro
+toda
+uma montanha de
+ouro scintillando aos meus <span class="pagenum">[14]</span>p&eacute;s!
+Isto era t&atilde;o
+nitido,
+que eu via os olhos obliquos do velho personagem embaciarem-se, como
+cobertos d'uma tenue camada de p&oacute;; e sentia o fino tinir de
+libras rolando
+juntas. E immovel, arripiado, cravava os olhos ardentes na campainha,
+pousada pacatamente diante de mim sobre um diccionario francez&#8213;a
+campainha prevista,
+citada no mirifico in-folio...<br />
+
+<br />
+
+Foi ent&atilde;o que, do outro lado da mesa, uma voz insinuante e
+metallica me disse, no silencio:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Vamos, Theodoro, meu amigo, estenda a m&atilde;o, toque a
+campainha, seja um forte!<br />
+
+<br />
+
+O <em>abat-jour</em> verde da vela punha uma penumbra em
+redor. Ergui-o, a
+tremer. E vi, muito pacificamente sentado, um individuo corpulento,
+todo vestido de preto, de chap&eacute;o alto, com as <span class="pagenum">[15]</span>duas
+m&atilde;os cal&ccedil;adas de luvas negras gravemente apoiadas
+ao cabo d'um guarda-chuva. N&atilde;o
+tinha nada de phantastico. Parecia t&atilde;o contemporaneo,
+t&atilde;o
+regular, t&atilde;o classe-m&eacute;dia como se viesse da minha
+reparti&ccedil;&atilde;o...<br />
+
+<br />
+
+Toda a sua originalidade estava no rosto, sem barba, de linhas fortes e
+duras; o nariz brusco, d'um aquilino formidavel, apresentava a
+express&atilde;o rapace e atacante d'um bico d'aguia; o
+c&oacute;rte dos labios,
+muito firme, fazia-lhe como uma bocca de bronze; os olhos, ao fixar-se,
+assemelhavam
+dois clar&otilde;es de tiro, partindo subitamente d'entre as
+sar&ccedil;as tenebrosas das sobrancelhas unidas; era livido&#8213;mas,
+aqui e al&eacute;m na
+pelle, corriam-lhe raia&ccedil;&otilde;es sanguineas como n'um
+velho
+marmore phenicio.<br />
+
+<br />
+
+Veio-me &aacute; id&eacute;a de repente que tinha diante de mim
+o Diabo: mas logo <span class="pagenum">[16]</span>todo
+o meu raciocinio se insurgiu resolutamente
+contra esta
+imagina&ccedil;&atilde;o. Eu nunca acreditei no Diabo&#8213;como
+nunca acreditei em Deus.
+J&aacute;mais o disse alto, ou o escrevi nas gazetas, para
+n&atilde;o descontentar os
+poderes publicos, encarregados de manter o respeito por taes entidades:
+mas que
+existam estes dois personagens, velhos como a Substancia, rivaes
+bonacheir&otilde;es, fazendo-se mutuamente pirra&ccedil;as
+amaveis,&#8213;um de barbas nevadas e tunica azul, na toilette do antigo
+Jove, habitando os altos luminosos, entre uma c&ocirc;rte mais
+complicada que a de Luiz XIV;
+e o outro enfarruscado e manhoso, ornado de cornos, vivendo nas chammas
+inferiores, n'uma imita&ccedil;&atilde;o burgueza do pitoresco
+Plut&atilde;o&#8213;n&atilde;o acredito. N&atilde;o,
+n&atilde;o acredito! C&eacute;o e Inferno
+s&atilde;o concep&ccedil;&otilde;es sociaes para uso da
+plebe&#8213;e eu perten&ccedil;o &aacute; classe-m&eacute;dia.
+<span class="pagenum">[17]</span>Rezo, &eacute;
+verdade, a Nossa Senhora das D&ocirc;res:
+porque, assim como pedi o favor do senhor doutor
+para passar no meu acto; assim como, para obter os meus vinte mil reis,
+implorei a benevolencia do senhor deputado; igualmente para me
+subtrahir
+&aacute; tisica, &aacute; angina, &aacute; navalha de
+ponta, &aacute; febre
+que vem da sargeta, &aacute; casca de laranja escorregadia onde se
+quebra a perna, a outros males publicos, necessito ter uma
+protec&ccedil;&atilde;o extra-humana. Ou pelo
+rapa-p&eacute; ou pelo incensador o homem prudente deve ir fazendo
+assim uma serie de sabias adula&ccedil;&otilde;es desde a
+Arcada at&eacute; ao
+Paraiso. Com um compadre no bairro, e uma comadre mystica nas
+Alturas&#8213;o destino do bacharel est&aacute;
+seguro.<br />
+
+<br />
+
+Por isso, livre de torpes supersti&ccedil;&otilde;es, disse
+familiarmente ao individuo vestido de negro:<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[18]</span> &#8213;Ent&atilde;o,
+realmente, aconselha-me que toque a campainha?<br />
+
+<br />
+
+Elle ergueu um pouco o chap&eacute;o, descobrindo a fronte
+estreita, enfeitada d'uma gaforinha crespa e negrejante como a do
+fabuloso Alcides, e respondeu, palavra a palavra:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Aqui est&aacute; o seu caso, estimavel Theodoro. Vinte mil reis
+mensaes s&atilde;o uma vergonha social! Por outro lado, ha sobre
+este globo coisas prodigiosas: ha vinhos de Borgonha, como por exemplo
+o
+<em>Roman&eacute;e-Conti</em> de 58 e o <em>Chambertin</em>
+de 61, que custam,
+cada garrafa, de dez a onze mil reis; e quem bebe o primeiro calix,
+n&atilde;o
+hesitar&aacute;, para beber o segundo, em assassinar seu pai...
+Fabricam-se em Paris e em Londres carruagens de t&atilde;o suaves
+molas, de t&atilde;o mimosos
+estofos, que &eacute; preferivel percorrer n'ellas o Campo Grande,
+a viajar, <span class="pagenum">[19]</span>como os
+antigos deuses, pelos c&eacute;os, sobre os
+f&ocirc;fos coxins das nuvens...
+N&atilde;o farei &aacute; sua instruc&ccedil;&atilde;o
+a offensa de o informar que se mobilam
+hoje casas, d'um estylo e d'um conforto, que s&atilde;o ellas que
+realisam
+superiormente esse regalo ficticio, chamado outr'ora a
+&laquo;Bemaventuran&ccedil;a&raquo;. N&atilde;o lhe
+fallarei, Theodoro, d'outros gozos terrestres: como, por exemplo, o
+Theatro do <em>Palais Royal</em>, o <em>baile
+Laborde</em>, o <em>Caf&eacute;
+Anglais</em>...
+S&oacute; chamarei a sua atten&ccedil;&atilde;o para este
+facto: existem s&ecirc;res
+que se chamam Mulheres&#8213;differentes d'aquelles que conhece, e que se
+denominam
+Femeas. Estes s&ecirc;res, Theodoro, no meu tempo, a paginas 3 da
+Biblia,
+apenas usavam exteriormente uma <em>folha de vinha</em>.
+Hoje, Theodoro,
+&eacute;
+toda uma symphonia, todo um engenhoso e delicado poema de rendas,
+<em>baptistes</em>, setins, fl&ocirc;res, joias,
+<span class="pagenum">[20]</span>cachemiras, gazes e
+velludos...
+Comprehende a sat&iacute;sfa&ccedil;&atilde;o inenarravel
+que
+haver&aacute;, para os cinco dedos de um christ&atilde;o, em
+percorrer, palpar estas maravilhas macias;&#8213;mas tambem percebe que
+n&atilde;o &eacute; com o troco d'uma placa honesta de cinco
+tost&otilde;es que se pagam as contas d'estes cherubins... Mas
+ellas possuem melhor, Theodoro:
+s&atilde;o os cabellos c&ocirc;r do ouro ou c&ocirc;r da
+treva, tendo assim
+nas suas tran&ccedil;as a apparencia emblematica das duas grandes
+tenta&ccedil;&otilde;es
+humanas&#8213;a fome do metal precioso e o conhecimento do absoluto
+transcendente. E ainda teem
+mais: s&atilde;o os bra&ccedil;os c&ocirc;r de marmore,
+d'uma frescura de lirio orvalhado; s&atilde;o os seios, sobre os
+quaes o grande Praxiteles modelou a
+sua Ta&ccedil;a, que &eacute; a linha mais pura e mais
+&iacute;deal da
+Antiguidade.... Os seios, outr'ora (na id&eacute;a d'esse ingenuo
+<span class="pagenum">[21]</span>Anci&atilde;o
+que os formou, que
+fabricou o mundo, e de quem uma inimizade secular me veda de pronunciar
+o nome), eram destinados &aacute; nutri&ccedil;&atilde;o
+augusta da
+humanidade; socegue por&eacute;m, Theodoro; hoje nenhuma maman
+racional os exp&otilde;e a essa
+func&ccedil;&atilde;o deterioradora e severa; servem
+s&oacute; para resplandecer, aninhados em rendas, ao
+gaz das <em>soir&eacute;es</em>,&#8213;e para outros usos
+secretos. As
+conveniencias
+impedem-me de proseguir n'esta exposi&ccedil;&atilde;o radiosa
+das bellezas,
+que constituem o <em>Fatal Feminino</em>... De resto as
+suas pupillas
+j&aacute; rebrilham.... Ora
+todas estas coisas, Theodoro, est&atilde;o para al&eacute;m,
+infinitamente
+para al&eacute;m dos seus vinte mil re&iacute;s por mez...
+Confesse, ao menos, que estas
+palavras teem o veneravel sello da verdade!...<br />
+
+<br />
+
+Eu murmurei com as faces abrasadas:<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[22]</span> &#8213;Teem.<br />
+
+<br />
+
+E a sua voz proseguiu, paciente e suave:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Que me diz a cento e cinco, ou cento e seis mil contos? Bem sei,
+&eacute; uma bagatella... Mas emfim, constituem um
+come&ccedil;o; s&atilde;o
+uma ligeira habilita&ccedil;&atilde;o para conquistar a
+felicidade. Agora
+pondere estes factos: o Mandarim, esse Mandarim do fundo da China,
+est&aacute; decrepito e
+est&aacute; gottoso: como homem, como funccionario do celeste
+imperio, &eacute;
+mais inutil em Pekin e na humanidade, que um seixo na bocca d'um
+c&atilde;o
+esfomeado. Mas a transforma&ccedil;&atilde;o da substancia
+existe:
+garanto-lh'a eu, que sei o segredo das coisas... Porque a terra
+&eacute; assim: recolhe aqui um homem
+apodrecido, e restitue-o al&eacute;m ao conjuncto das
+f&oacute;rmas como
+vegetal vi&ccedil;oso. Bem p&oacute;de ser que elle, inutil
+como <span class="pagenum">[23]</span>Mandarim no
+Imperio do Meio, v&aacute;
+ser util n'outra terra como rosa perfumada ou saboroso
+rep&ocirc;lho. Matar,
+meu filho, &eacute; quasi sempre equilibrar as necessidades
+universaes.
+&Eacute; eliminar aqui a excrescencia para ir al&eacute;m
+supprir a falta. Penetre-se
+d'estas solidas philosophias. Uma pobre costureira de Londres anceia
+por v&ecirc;r
+florir, na sua trapeira, um vaso cheio de terra negra: uma
+fl&ocirc;r
+consolaria aquella desherdada; mas na disposi&ccedil;&atilde;o
+dos
+s&ecirc;res, infelizmente, n'esse momento, a substancia que
+l&aacute; devia ser rosa &eacute; aqui na Baixa
+homem d'Estado... Vem ent&atilde;o o fadista de navalha aberta, e
+fende o estadista; o
+enxurro leva-lhe os intestinos; enterram-no, com tipoias atraz; a
+materia
+come&ccedil;a a desorganisar-se, mistura-se &aacute; vasta
+evolu&ccedil;&atilde;o dos atomos&#8213;e o superfluo homem de
+governo vai alegrar, sob a f&oacute;rma de <span class="pagenum">[24]</span>amor
+perfeito,
+a agua furtada da loura costureira. O assassino &eacute; um
+philanthropo!
+Deixe-me resumir, Theodoro: a morte d'esse velho Mandarim idiota
+traz-lhe
+&aacute; algibeira alguns milhares de contos. P&oacute;de desde
+esse momento
+dar pontap&eacute;s nos poderes publicos: medite na intensidade
+d'este
+gozo! &Eacute; desde logo citado nos jornaes: reveja-se n'esse
+maximo da gloria
+humana! E agora note: &eacute; s&oacute; agarrar a campainha, e
+fazer
+<em>ti-li-tin</em>. Eu n&atilde;o sou um barbaro:
+comprehendo a
+repugnancia d'um <em>gentleman</em> em assassinar um
+contemporaneo: o espirrar do sangue suja vergonhosamente os punhos, e
+&eacute; repulsivo o agonisar d'um corpo humano. Mas aqui, nenhum
+d'esses espectaculos torpes... &Eacute; como quem chama um
+criado... E
+s&atilde;o cento e cinco ou cento e seis mil contos; n&atilde;o
+me lembro, mas tenho-o
+nos meus apontamentos... <span class="pagenum">[25]</span>O
+Theodoro n&atilde;o duv&iacute;da de
+mim. Sou
+um cavalheiro:&#8213;provei-o, quando, fazendo a guerra a um tyranno na
+primeira insurrei&ccedil;&atilde;o da justi&ccedil;a, me vi
+precipitado d'alturas que nem Vossa Senhoria concebe... Um
+trambulh&atilde;o consideravel, meu caro
+senhor! Grandes desgostos! O que me consola &eacute; que o OUTRO
+est&aacute;
+tambem muito abalado: porque, meu amigo, quando um Jehovah tem apenas
+contra si um Satanaz, tira-se bem de difficuldades mandando carregar
+mais uma
+legi&atilde;o d'archanjos; mas quando o inimigo &eacute; o
+homem, armado d'uma
+penna de pato e d'um caderno de papel branco&#8213;est&aacute;
+perdido... Emfim
+s&atilde;o seis mil contos. Vamos, Theodoro, ahi tem a campainha,
+seja um homem.<br />
+
+<br />
+
+Eu sei o que deve a si mesmo um christ&atilde;o. Se este personagem
+me tivesse <span class="pagenum">[26]</span>levado
+ao cume d'uma montanha na Palestina, por uma noite de
+lua cheia,
+e ahi, mostrando-me cidades, ra&ccedil;as e imperios adormecidos,
+sombriamente me dissesse:&#8213;&laquo;Mata o Mandarim, e tudo o que
+v&ecirc;s em
+valle e collina ser&aacute; teu&raquo;,&#8213;eu saberia
+replicar-lhe, seguindo um exemplo illustre,
+e erguendo o dedo &aacute;s profundidades
+constelladas:&#8213;&laquo;O meu
+reino n&atilde;o &eacute; d'este mundo!&raquo; Eu
+conhe&ccedil;o os meus authores. Mas eram cento e tantos mil
+contos, offerecidos &aacute; luz d'uma vela de stearina, na
+travessa da
+Concei&ccedil;&atilde;o, por um sujeito de chap&eacute;o
+alto, apoiado a um guarda-chuva...<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o n&atilde;o hesitei. E, de m&atilde;o firme,
+repeniquei a campainha. Foi talvez uma illus&atilde;o; mas
+pareceu-me que um sino, de bocca
+t&atilde;o vasta como o mesmo c&eacute;o, badalava na
+escurid&atilde;o, atrav&eacute;s do
+Universo, n'um tom temeroso que decerto <span class="pagenum">[27]</span>foi
+acordar s&oacute;es que
+faziam
+n&eacute;-n&eacute; e planetas pan&ccedil;udos resonando
+sobre os seus eixos...<br />
+
+<br />
+
+O individuo levou um dedo &aacute; palpebra, e limpando a lagrima
+que ennevo&aacute;ra um instante o seu olho rutilante:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Pobre Ti-Chin-F&uacute;!...<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Morreu?<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Estava no seu jardim, socegado, armando, para o lan&ccedil;ar ao
+ar, um papagaio de papel, no passatempo honesto d'um Mandarim
+retirado,&#8213;quando o surprehendeu este <em>ti-li-tin</em>
+da
+campainha. Agora
+jaz &aacute;
+beira d'um arroio cantante, todo vestido de s&ecirc;da amarella,
+morto, de
+pan&ccedil;a ao ar, sobre a relva verde: e nos bra&ccedil;os
+frios tem o seu papagaio
+de papel, que parece t&atilde;o morto como elle.
+&Aacute;manh&atilde;
+s&atilde;o os funeraes. Que a sabedoria de Confucio, penetrando-o,
+ajude a bem emigrar a sua alma!<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[28]</span>
+E o sujeito, erguendo-se, tirou respeitosamente o chap&eacute;o,
+sahiu, com o seu guarda-chuva debaixo do bra&ccedil;o.<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o, ao sentir bater a porta, afigurou-se-me que emergia
+d'um pesad&ecirc;lo. Saltei ao corredor. Uma voz jovial fallava com
+a
+Madame Marques; e a cancella da escada cerrou-se subtilmente.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Quem &eacute; que sahiu agora, &oacute; D.
+Augusta?&#8213;perguntei, n'um suor.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Foi o Cabritinha que vai um bocadinho &aacute; batota...<br />
+
+<br />
+
+Voltei ao quarto: tudo l&aacute; repousava tranquillo, identico,
+real. O in-folio ainda estava aberto na pagina temerosa. Reli-a: agora
+parecia-me apenas a prosa antiquada d'um moralista caturra; cada
+palavra se torn&aacute;ra como um carv&atilde;o apagado...<br />
+
+<br />
+
+Deitei-me:&#8213;e sonhei que estava longe, para al&eacute;m de Pekin,
+nas fronteiras <span class="pagenum">[29]</span>da
+Tartaria, no k&igrave;osque d'um convento de
+Lamas,
+ouvindo maximas prudentes e suaves que escorriam, com um aroma fino de
+ch&aacute;, dos labios de um Buddha vivo.<br />
+
+<br />
+
+<h2>II</h2>
+
+<br />
+
+<span class="smallcaps">Decorreu</span> um mez.<br />
+
+<br />
+
+Eu, no entanto, rotineiro e triste, l&aacute; ia pondo o meu
+cursivo ao servi&ccedil;o dos poderes publicos, e admirando aos
+domingos a pericia tocante com
+que a D. Augusta lavava a caspa do Couceiro. Era <span class="pagenum">[32]</span>agora evidente para
+mim que, n'essa noite, eu adormecera sobre o in-folio, e
+sonh&aacute;ra
+com uma &laquo;Tenta&ccedil;&atilde;o da
+Montanha&raquo; sob
+f&oacute;rmas familiares. Instinctivamente, por&eacute;m,
+comecei a preoccupar-me com a China. Ia l&ecirc;r os telegrammas
+&aacute; Havaneza; e o que o meu interesse l&aacute; buscava,
+eram sempre as noticias do
+Imperio do Meio; parece por&eacute;m que, a esse tempo, nada se
+passava na
+regi&atilde;o das ra&ccedil;as amarellas... A <em>Agencia
+Havas</em>
+s&oacute;
+tagarellava sobre a Herzegovina, a Bosnia, a Bulgaria e outras
+curiosidades barbaras....<br />
+
+<br />
+
+Pouco a pouco fui esquecendo o meu episodio phantasmagorico: e ao mesmo
+tempo, como gradualmente o meu espirito reserenava, voltaram de novo a
+mover-se as antigas ambi&ccedil;&otilde;es que l&aacute;
+habitavam,&#8213;um ordenado de Director Geral, um seio amoroso de Lola,
+bifes <span class="pagenum">[33]</span>mais tenros
+que os da D. Augusta.
+Mas taes regalos pareciam-me t&atilde;o inaccessiveis,
+t&atilde;o nascidos do sonho&#8213;como os proprios milh&otilde;es
+do Mandarim. E pelo monotono
+deserto da vida,&#8213;l&aacute; foi seguindo, l&aacute; foi
+marchando, a lenta
+caravana das minhas melancolias...<br />
+
+<br />
+
+Um domingo de agosto, de manh&atilde;, estirado na cama em mangas
+de camisa, eu dormitava, com o cigarro apagado no labio&#8213;quando a porta
+rangeu devagarinho, e entreabrindo a palpebra dormente, vi curvar-se ao
+meu lado uma calva respeitosa. E logo uma voz perturbada murmurou:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O snr. Theodoro?... O snr. Theodoro do Ministerio do Reino?...<br />
+
+<br />
+
+Ergui-me lentamente sobre o cotov&ecirc;lo e respondi, n'um bocejo:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Sou eu, cavalheiro.<br />
+
+<br />
+
+O individuo recurvou o espinha&ccedil;o: <span class="pagenum">[34]</span>assim
+na
+presen&ccedil;a augusta d'el-rei Bobeche se arqu&ecirc;a o
+cortez&atilde;o... Era pequenino e
+obeso: a ponta das sui&ccedil;as brancas ro&ccedil;ava-lhe as
+lapellas do fraque
+d'alpaca: veneraveis oculos d'oiro reluziam na sua face bochechuda, que
+parecia uma prospera
+personifica&ccedil;&atilde;o da Ordem: e todo elle tremia desde
+a calva, lustrosa at&eacute; aos bot&iacute;ns de bezerro.
+Pigarreou, cuspilhou, balbuciou:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;S&atilde;o noticias para vossa senhoria! Consider&aacute;veis
+noticias! O meu nome &eacute; Silvestre... Silvestre, Juliano
+&amp; C.<sup>a</sup>... Um
+servi&ccedil;al criado de vossa excellencia... Chegaram justamente
+pelo paquete de Southampton...
+N&oacute;s somos correspondentes de Brito, Alves &amp; C.<sup>a</sup>
+de
+Macau...
+Correspondentes de Craig and Co d'Hong-Kong... As letras vem
+d'Hong-Kong...<br />
+
+<br />
+
+O sujeito engasgava-se; e a sua <span class="pagenum">[35]</span>m&atilde;o
+gordinha agitava em
+tremuras um <em>enveloppe</em> repleto, com um sello de
+lacre negro.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Vossa excellencia&#8213;proseguiu&#8213;estava decerto prevenido...
+N&oacute;s &eacute; que o n&atilde;o estavamos... A
+atrapalha&ccedil;&atilde;o
+&eacute; natural... O que esperamos &eacute; que vossa
+excellencia nos conserve a sua benevolencia... N&oacute;s sempre
+respeit&aacute;mos muito o caracter de vossa excellencia... Vossa
+excellencia &eacute;
+n'esta terra uma fl&ocirc;r de virtude, e espelho de bons! Aqui
+est&atilde;o os primeiros saques sobre Bhering and Brothers de
+Londres... Letras a trinta dias sobre Rothschild...<br />
+
+<br />
+
+A este nome, resoante como o mesmo oiro, saltei vorazmente do leito.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O que &eacute; isso, senhor?&#8213;gritei.<br />
+
+<br />
+
+E elle, gritando mais, brandindo o <span class="pagenum">[36]</span><em>enveloppe</em>,
+todo al&ccedil;ado
+no bico dos botins:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;S&atilde;o cento e seis mil contos, senhor! Cento e seis mil
+contos sobre Londres, Paris, Hamburgo e Amsterdam, sacados a seu favor,
+excellentissimo senhor!... A seu favor, excellentissimo senhor! Pelas
+casas de Hong-Kong, de Chang-Hai e de Cant&atilde;o, da
+heran&ccedil;a depositada do Mandarim Ti-Chin-F&uacute;!!<br />
+
+<br />
+
+Senti tremer o Globo sob os meus p&eacute;s&#8213;e cerrei um momento os
+olhos. Mas comprehendi, n'um relance, que eu era, desde essa hora, como
+uma incarna&ccedil;&atilde;o do Sobrenatural, recebendo d'elle
+a
+minha for&ccedil;a e possuindo os seus attributos. N&atilde;o
+podia comportar-me como um homem,
+nem desconsiderar-me em expans&otilde;es humanas. At&eacute;,
+para
+n&atilde;o quebrar a linha hieratica&#8213;abstive-me de <span class="pagenum">[37]</span>ir
+solu&ccedil;ar, como m'o pedia a alma,
+sobre o vasto seio da Madame Marques...<br />
+
+<br />
+
+D'ora em diante cabia-me a impassibilidade d'um Deus&#8213;ou d'um Demonio:
+dei, com naturalidade, um pux&atilde;o &aacute;s
+cal&ccedil;as, e disse a Silvestre, Juliano &amp; C.<sup>a</sup>
+estas
+palavras:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Est&aacute; bem! O Mandarim... Esse Mandarim que disse portou-se
+com cavalheirismo. Eu sei de que se trata. &Eacute; uma
+quest&atilde;o de familia. Deixe ahi os papeis... Bons dias.<br />
+
+<br />
+
+Silvestre, Juliano &amp; C.<sup>a</sup> retirou-se,
+&aacute;s arrecuas,
+de dorso vergado e fronte voltada ao ch&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+Eu ent&atilde;o fui abrir, toda larga, a janella: e, dobrando para
+traz a cabe&ccedil;a, respirei o ar calido, consoladamente, como
+uma
+cor&ccedil;a can&ccedil;ada...<br />
+
+<br />
+
+Depois olhei para baixo, para a rua, onde toda uma burguezia se
+escoava, <span class="pagenum">[38]</span>n'uma
+pacata sahida de missa, entre duas filas de trens.
+Fixei, aqui e al&eacute;m, inconscientemente, algumas cuias de
+senhoras, alguns
+metaes brilhantes d'arreios. E de repente, veio-me esta
+id&eacute;a, esta
+triumphante certeza&#8213;que todas aquellas tipoias as podia eu tomar
+&aacute; hora
+ou ao anno! Que nenhuma das mulheres que via, deixaria de me offerecer
+o seu seio n&uacute;, a um aceno do meu desejo! Que todos esses
+homens, de
+sobrecasaca de domingo, se prostrariam diante de mim como diante de um
+Christo, de um Mahomet ou de um Buddha, se eu lhes sacudisse junto
+&aacute; face
+cento e seis mil contos sobre as pra&ccedil;as da Europa!...<br />
+
+<br />
+
+Apoiei-me &aacute; varanda: e ri, com tedio, vendo a
+agita&ccedil;&atilde;o ephemera d'aquella humanidade
+subalterna&#8213;que se considerava livre e forte, em quanto por cima, <span class="pagenum">[39]</span>n'uma
+sacada de quarto andar, eu tinha na
+m&atilde;o, n'um <em>enveloppe</em> lacrado de negro,
+o principio mesmo da
+sua fraqueza e da
+sua escravid&atilde;o!... Ent&atilde;o,
+satisfa&ccedil;&otilde;es do Luxo, regalos do Amor, orgulhos do
+Poder, tudo gozei, pela imagina&ccedil;&atilde;o, n'um
+instante, e d'um s&oacute; s&ocirc;rvo. Mas logo, uma grande
+saciedade me foi invadindo a alma: e sentindo o mundo aos meus
+p&eacute;s&#8213;bocejei como um le&atilde;o farto.<br />
+
+<br />
+
+De que me serviam por fim tantos milh&otilde;es, sen&atilde;o
+para me trazerem, dia a dia, a affirma&ccedil;&atilde;o
+desoladora da villeza
+humana?... E assim, ao choque de tanto oiro, ia desapparecer aos meus
+olhos como um fumo a belleza moral
+do Universo! Tomou-me uma tristeza mystica. Abati-me sobre uma cadeira;
+e, com a face entre as m&atilde;os, chorei abundantemente.<br />
+
+<br />
+
+D'ahi a pouco a Madame Marques <span class="pagenum">[40]</span>abria
+a porta, toda vistosa nas suas
+s&ecirc;das pretas.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Est&aacute;-se &aacute; sua espera para jantar,
+engui&ccedil;o!...<br />
+
+<br />
+
+Emergi da minha amargura para lhe responder seccamente:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o janto.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mais fica!<br />
+
+<br />
+
+N'esse momento estalavam foguetes ao longe. Lembrei-me que era domingo,
+dia de touros: de repente uma vis&atilde;o rebrilhou, flammejou,
+attrahindo-me deliciosamente:&#8213;era a tourada vista d'um camarote;
+depois um jantar
+com <em>Champagne</em>; &aacute; noite a orgia, como
+uma
+inicia&ccedil;&atilde;o! Corri &aacute; mesa. Atulhei as
+algibeiras de letras sobre Londres. Desci &aacute; rua com um
+furor d'abutre fendendo o ar contra a presa. Uma caleche passava,
+vazia. Detive-a, berrei:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Aos touros!<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[41]</span> &#8213;S&atilde;o
+dez tost&otilde;es, meu amo!<br />
+
+<br />
+
+Encarei com repuls&atilde;o aquelle reles peda&ccedil;o de
+materia organisada&#8213;que fallava em placas de prata a um colosso d'oiro!
+Enterrei a
+m&atilde;o na algibeira ajoujada de milh&otilde;es, e tirei o
+meu metal: tinha
+setecentos e vinte!<br />
+
+<br />
+
+O cocheiro bateu a anca da egoa e seguiu, resmungando. Eu balbuciei:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mas tenho letras!... Aqui est&atilde;o! Sobre Londres! Sobre
+Hamburgo!...<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o p&eacute;ga.<br />
+
+<br />
+
+Setecentos e vinte!... E touros, jantar de lord, andaluzas nuas, todo
+esse sonho expirou como uma bola de sab&atilde;o que bate a ponta
+de um prego.<br />
+
+<br />
+
+Odiei a Humanidade, abominei o Numerario. Outra tipoia,
+lan&ccedil;ada a trote, apinhada de gente festiva, quasi me
+atropellou n'aquella
+abstrac&ccedil;&atilde;o em que <span class="pagenum">[42]</span>eu
+fic&aacute;ra com os
+meus setecentos e vinte na palma da
+m&atilde;o suada.<br />
+
+<br />
+
+Cabisbaixo, enchuma&ccedil;ado de milh&otilde;es sobre
+Rothschild, voltei ao meu quarto andar; humilhei-me &aacute; Madame
+Marques, aceitei-lhe o
+bife corneo; e passei essa primeira noite de riqueza, bocejando sobre o
+leito solitario,&#8213;em quanto f&oacute;ra o alegre Couceiro, o
+mesquinho
+tenente de quinze mil reis de soldo, ria com a D. Augusta, repenicando
+&aacute; viola o <em>Fado da Cotovia</em>.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="break">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Foi s&oacute; na manh&atilde; seguinte, ao fazer a barba, que
+reflecti sobre a origem dos meus milh&otilde;es. Ella era
+evidentemente sobrenatural e
+suspeita.<br />
+
+<br />
+
+Mas como o meu Racionalismo me <span class="pagenum">[43]</span>impedia
+d'attribuir estes thesouros
+imprevistos &aacute; generosidade caprichosa de Deus ou do Diabo,
+fic&ccedil;&otilde;es puramente escolasticas; como os
+fragmentos de Positivismo, que constituem o fundo da minha Philosophia,
+n&atilde;o me permittiam a
+indaga&ccedil;&atilde;o <em>das causas primarias, das
+origens
+essenciaes</em>&#8213;bem depressa me decidi
+a aceitar seccamente este Phenomeno; e a utilisal-o com largueza.
+Portanto corri de quinzena ao vento para o <em>London
+Braz&igrave;lian
+Bank</em>...
+<br />
+
+<br />
+
+Ahi, arremessei para cima do balc&atilde;o um papel sobre o <em>Banco
+d'Inglaterra</em>, de mil libras; e soltei esta deliciosa
+palavra:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Oiro!<br />
+
+<br />
+
+Um caixeiro suggeriu-me com do&ccedil;ura:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Talvez lho fosse mais commodo em notas...<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[44]</span>
+Repeti seccamente:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Oiro!<br />
+
+<br />
+
+Atulhei as algibeiras, devagar, aos punhados: e na rua, ajoujado,
+icei-me para uma caleche. Sent&iacute;a-me gordo, sentia-me obeso;
+tinha na bocca um sabor d'oiro, uma seccura de p&oacute; d'oiro na
+pelle das
+m&atilde;os: as paredes das casas pareciam-me faiscar como longas
+laminas d'oiro: e dentro do cerebro ia-me um rumor surdo onde
+retilintavam metaes&#8213;como o
+movimento d'um oceano que nas vagas rolasse barras d'oiro.<br />
+
+<br />
+
+Abandonando-me &aacute; oscilla&ccedil;&atilde;o das molas,
+rebolante como um odre mal firme, deixava cahir sobre a rua, sobre a
+gente, o olhar turvo e tedioso do
+s&ecirc;r repleto. Emfim, atirando o chap&eacute;o para a nuca,
+estirando a
+perna, empinando o ventre, arrotei formidavelmente de flatulencia
+rica&ccedil;a...<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[45]</span>
+Muito tempo rolei assim pela cidade, bestialisado n'um gozo de Nababo.<br />
+
+<br />
+
+Subitamente um brusco appetite de gastar, de dissipar oiro, veio-me
+enfunar o peito como uma rajada que incha uma v&eacute;la.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;P&aacute;ra, animal!&#8213;berrei, ao cocheiro.<br />
+
+<br />
+
+A parelha estacou. Procurei em redor com a palpebra meio cerrada alguma
+coisa cara a comprar&#8213;joia de rainha ou consciencia de estadista: nada
+vi; precipitei-me ent&atilde;o para um estanco.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Charutos! de tost&atilde;o! de cruzado! Mais caros! de dez
+tost&otilde;es!<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Quantos?&#8213;perguntou servilmente o homem.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Todos!&#8213;respondi, com brutalidade.<br />
+
+<br />
+
+&Aacute; porta, uma pobre toda de luto, com o filho encolhido ao
+seio, estendeu-me <span class="pagenum">[46]</span>a
+m&atilde;o transparente. Incommodava-me
+procurar os
+trocos de cobre por entre os meus punhados d'oiro. Repelli-a,
+impaciente: e, de chap&eacute;o sobre o olho, encarei friamente a
+turba.<br />
+
+<br />
+
+Foi ent&atilde;o que avistei, adiantando-se, o vulto ponderoso do
+meu Director Geral: immediatamente, achei-me com o dorso curvado em
+arco e o
+chap&eacute;o comprimentador ro&ccedil;ando as lages. Era o
+habito da
+dependencia: os meus milh&otilde;es n&atilde;o me tinham dado
+ainda a verticalidade
+&aacute; espinha...<br />
+
+<br />
+
+Em casa despejei o oiro sobre o leito, e rolei-me por cima d'elle,
+muito tempo, grunhindo n'um gozo surdo. A torre, ao lado, bateu tres
+horas; e
+o sol apressado j&aacute; descia, levando comsigo o meu primeiro
+dia de opulencia... Ent&atilde;o, coura&ccedil;ado de libras,
+corri a
+saciar-me!<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[47]</span>
+Ah, que dia! Jantei n'um gabinete do Hotel Central, solitario e
+egoista, com a mesa alastrada de Bordeus, Borgonha, Champagne, Rheno,
+lic&ocirc;res de todas as communidades religiosas&#8213;como para matar
+uma s&ecirc;de de
+trinta annos! Mas s&oacute; me fartei de Collares. Depois,
+cambaleando,
+arrastei-me para o Lupanar! Que noite! A alvorada clareou por traz das
+persianas; e
+achei-me estatelado no tapete, exhausto e semi-n&uacute;, sentindo
+o corpo e a alma como esva&iacute;rem-se, dissolverem-se n'aquelle
+ambiente
+abafado onde errava um cheiro de p&oacute; de arroz, de
+f&ecirc;mea e de
+punch...<br />
+
+<br />
+
+Quando voltei &aacute; travessa da Concei&ccedil;&atilde;o,
+as janellas do meu quarto estavam fechadas, e a v&eacute;la
+expirava, com fogachos lividos, no
+casti&ccedil;al de lat&atilde;o. Ent&atilde;o ao chegar
+junto &aacute; cama, vi isto: estirada
+de trav&eacute;s, sobre a coberta, jazia uma figura <span class="pagenum">[48]</span>bojuda, de
+Mandarim fulminado, vestida de
+s&ecirc;da amarella, com um grande rabicho solto; e entre os
+bra&ccedil;os
+como morto tambem, tinha um papagaio de papel!<br />
+
+<br />
+
+Abri desesperadamente a janella: tudo desappareceu;&#8213;o que estava agora
+sobre o leito era um velho paletot alvadio.<br />
+
+<br />
+
+<h2>
+III</h2>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="smallcaps">Ent&atilde;o</span>
+come&ccedil;ou a minha vida de milionario. Deixei
+bem depressa a casa da Madame Marques&#8213;que, desde que me
+sab&iacute;a rico, me tratava
+todos os dias a arroz d&ocirc;ce, e ella mesma me servia, com o seu
+vestido de
+s&ecirc;da dos domingos. <span class="pagenum">[50]</span>Comprei,
+habitei o palacete amarello, ao
+Loreto: as magnificencias da minha installa&ccedil;&atilde;o
+s&atilde;o bem conhecidas pelas gravuras indiscretas da
+Illustra&ccedil;&atilde;o Franceza. Tornou-se
+famoso na Europa o meu leito, d'um gosto exuberante e barbaro, com a
+barra recoberta de
+laminas d'ouro lavrado, e cortinados d'um raro brocado negro onde
+ondeam, bordados a perolas, versos eroticos de Catullo; uma lampada,
+suspensa
+no interior, derrama alli a claridade lactea e amorosa d'um luar de
+ver&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+Os meus primeiros mezes ricos, n&atilde;o o occulto, passei-os a
+amar&#8213;a amar com o sincero bater de cora&ccedil;&atilde;o d'um
+pagem
+inexperiente. Tinha-a visto, como n'uma pagina de novella, regando os
+seus craveiros &aacute;
+varanda: chamava-se Candida; era pequenina, era loira; morava a
+Buenos-Ayres, n'uma casinha <span class="pagenum">[51]</span>casta
+recoberta de trepadeiras; e
+lembrava-me pela
+gra&ccedil;a e pelo airoso da cinta, tudo o que a Arte tem creado
+de mais fino e fragil&#8213;Mimi, Virginia, a Joanninha do Valle de
+Santarem.<br />
+
+<br />
+
+Todas as noites eu cahia, em extasis de mystico, aos seus
+p&eacute;s c&ocirc;r de jaspe. Todas as manh&atilde;s lhe
+alastrava o rega&ccedil;o de
+notas de vinte mil reis: ella repellia-as primeiro com um
+rubor,&#8213;depois, ao guardal-as na
+gaveta, chamava-me o seu <em>anjo T&oacute;t&oacute;</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Um dia que eu me introduzira, a passos subtis, por sobre o espesso
+tapete syrio, at&eacute; ao seu <em>boudoir</em>&#8213;ella
+estava escrevendo,
+muito enlevada, de dedinho no ar: ao v&ecirc;r-me, toda tremula,
+toda
+pallida, escondeu o papel que tinha o seu monogramma. Eu
+arranquei-lh'o, n'um ciume insensato. Era a carta, a carta costumada, a
+carta necessaria, a <span class="pagenum">[52]</span>carta
+que desde a velha antiguidade a mulher sempre
+escreve;
+come&ccedil;ava por <em>meu idolatrado</em>&#8213;e era
+para um alferes da
+visinhan&ccedil;a...
+<br />
+
+<br />
+
+Desarraiguei logo esse sentimento do meu peito como uma planta
+venenosa. Descri para sempre dos Anjos loiros, que conservam no olhar
+azul o reflexo dos c&eacute;os atravessados: de cima do meu oiro,
+deixei
+cahir sobre a Innocencia, o Pudor, e outras
+idealisa&ccedil;&otilde;es
+funestas acida gargalhada de Mephistopheles: e organisei friamente uma
+existencia animal, grandiosa
+e cynica.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="break">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Ao bater do meio dia, entrava na minha tina de marmore c&ocirc;r de
+rosa, onde os perfumes derramados davam &aacute; <span class="pagenum">[53]</span>agua um tom opaco
+de leite:
+depo&icirc;s pagens tenros, de m&atilde;o macia,
+fr&iacute;ccionavam-me com o
+ceremonial de quem celebra um culto: e embrulhado n'um
+<em>robe-de-chambre</em> de s&ecirc;da da
+India, atrav&eacute;s da galeria, dando aqui e al&eacute;m um
+olhar aos meus Fortunys e
+aos meus Corots, entre alas silenciosas de lacaios, dirigia-me ao bife
+&aacute; ingleza, servido em S&egrave;vres, azul e oiro.<br />
+
+<br />
+
+O resto da manh&atilde;, se havia calor, passava-o sobre coxins de
+setim c&ocirc;r de perola, n'um <em>boudoir</em> em
+que a mobilia era de
+porcelana fina de Dresde
+e as fl&ocirc;res faziam um jardim d'Armida; ahi, saboreava o
+<span class="smallcaps">Diario de Noticiais</span>,
+em quanto lindas raparigas vestidas &aacute;
+japoneza
+refrescavam o ar, agitando leques de plumas.<br />
+
+<br />
+
+De tarde ia dar uma volta a p&eacute;, at&eacute; ao Pote das
+Almas: era a hora mais pesada <span class="pagenum">[54]</span>do
+dia: encostado &aacute; bengala,
+arrastando as pernas
+molles, abria bocejos de fera saciada,&#8213;-e a turba abjecta parava a
+contemplar, em extasis, o Nababo enfastiado!<br />
+
+<br />
+
+&Aacute;s vezes vinha-me como uma saudade dos meus tempos occupados
+da Reparti&ccedil;&atilde;o. Entrava em casa; e encerrado na
+livraria, onde o Pensamento da Humanidade repousava esquecido e
+encadernado em marroquim, aparava uma penna de pato, e ficava horas
+lan&ccedil;ando sobre folhas do
+meu querido Tojal d'outr'ora: &laquo;<em>Ill.<sup>mo</sup>
+e Exc.<sup>mo</sup>
+Snr.&#8213;Tenho
+a honra de
+participar a V. Exc.<sup>a</sup>... Tenho a honra de passar
+&aacute;s
+m&atilde;os de
+V. Exc.<sup>a</sup>!...</em>&raquo;.<br />
+
+<br />
+
+Ao come&ccedil;o da noite um criado, para annunciar o jantar, fazia
+soar pelos corredores na sua tuba de prata, &aacute; moda gothica,
+uma
+harmonia solemne. Eu erguia-me <span class="pagenum">[55]</span>e
+ia comer, magestoso e solitario. Uma
+popula&ccedil;a
+de lacaios, de libr&eacute;s de s&ecirc;da negra, servia, n'um
+silencio de
+sombras que resvalam, as vitualhas raras, vinhos do pre&ccedil;o de
+joias: toda a mesa
+era um esplendor de fl&ocirc;res, luzes, crystaes,
+scintilla&ccedil;&otilde;es d'oiro:&#8213;e enrolando-se pelas
+pyramides de fructos, misturando-se ao vapor dos pratos, errava, como
+uma nevoa subtil, um tedio inenarravel...<br />
+
+<br />
+
+Depois, apopletico, atirava-me para o fundo do coup&eacute;&#8213;e
+l&aacute; ia &aacute;s Janellas Verdes onde nutria, n'um jardim
+de serralho, entre requintes musulmanos, um viveiro de
+f&ecirc;meas: revestiam-me d'uma tunica
+de s&ecirc;da fresca e perfumada,&#8213;e eu abandonava-me a delirios
+abominaveis... Traziam-me semi-morto para casa, ao primeiro alvor da
+manh&atilde;:
+fazia machinalmente o meu signal da cruz, e <span class="pagenum">[56]</span>d'ahi
+a pouco roncava de
+ventre
+ao ar, livido e com um suor frio, como um Tiberio exhausto.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="break">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Entretanto Lisboa rojava-se aos meus p&eacute;s. O pateo do
+palacete estava constantemente invadido por uma turba: olhando-a
+enfastiado das
+janellas da galeria, eu via l&aacute; branquejar os peitilhos da
+Aristocracia, negrejar a sotaina do Clero, e luz&icirc;r o suor da
+Plebe: todos vinham
+supplicar, de labio abjecto, a honra do meu sorriso e uma
+participa&ccedil;&atilde;o no meu oiro. &Aacute;s vezes,
+consentia em receber algum velho de titulo historico:&#8213;elle
+adiantava-se pela sala, quasi ro&ccedil;ando o tapete com os
+cabellos brancos, tartamudeando adula&ccedil;&otilde;es; e
+immediatamente,
+<span class="pagenum">[57]</span>espalmando sobre o
+peito a m&atilde;o de fortes v&ecirc;as onde
+corria um sangue de tres
+seculos, offerecia-me uma filha bem-amada para esposa ou para
+concubina.<br />
+
+<br />
+
+Todos os cidad&atilde;os me traziam presentes como a um Idolo sobre
+o altar&#8213;uns Odes votivas, outros o meu monogramma bordado a cabello,
+alguns chinelas ou boquilhas, cada um a sua consciencia. Se o meu olhar
+amortecido fixava, por acaso, na rua, uma mulher&#8213;era logo ao outro dia
+uma carta em que a creatura, esposa ou prostituta, me offertava a sua
+nudez, o seu amor, e todas as complacencias da lascivia.<br />
+
+<br />
+
+Os jornalistas esporeavam a imagina&ccedil;&atilde;o para achar
+adjectivos dignos da minha grandeza; fui o <em>sublime snr.
+Theodoro</em>,
+cheguei a ser o <em>celeste
+snr. Theodoro</em>; ent&atilde;o, desvairada, a <span class="smallcaps">Gazeta <span class="pagenum">[58]</span>das
+Locaes</span>
+chamou-me o <em>extra-celeste snr. Theodoro</em>! Diante
+de mim nenhuma
+cabe&ccedil;a
+ficou j&aacute;mais coberta&#8213;ou usasse a cor&ocirc;a ou o
+c&ocirc;co. Todos os dias
+me era offerecida uma Presidencia de Ministerio ou uma
+Direc&ccedil;&atilde;o de
+Confraria. Recusei sempre, com nojo.<br />
+
+<br />
+
+Pouco a pouco o rumor das minhas riquezas foi passando os confins da
+Monarchia. O Figaro, cortez&atilde;o, em cada numero fallou de mim,
+preferindo-me a Henrique V; o grotesco immortal, que assigna
+<em>Saint-Genest</em>, dirigiu-me apostrophes convulsivas,
+pedindo-me para
+salvar a Fran&ccedil;a; e foi ent&atilde;o que as
+Illustra&ccedil;&otilde;es estrangeiras publicaram, a
+c&ocirc;res, as scenas do meu viver. Recebi de todas
+as princezas da Europa enveloppes, com s&ecirc;llos heraldicos,
+expondo-me, por photographias, por documentos, a f&oacute;rma dos
+seus corpos e a
+antiguidade <span class="pagenum">[59]</span>das
+suas genealogias. Duas pilherias que soltei durante
+esse anno foram
+telegraphadas ao Universo pelos fios da Agencia Havas; e fui
+considerado mais espirituoso que Voltaire, que Rochefort, e que esse
+fino entendimento que se chama <em>Todo-o-Mundo</em>.
+Quando o meu intestino
+se alliviava com estampido&#8213;a Humanidade sabia-o pelas gazetas. Fiz
+emprestimos aos Reis, subsidiei guerras civis&#8213;e fui caloteado por
+todas as Republicas latinas que orlaram o golfo do Mexico.<br />
+
+<br />
+
+E eu, no entanto, vivia triste...<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="break">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Todas as vezes que entrava em casa estacava, arripiado, diante da mesma
+vis&atilde;o: ou estirada no limiar da porta, <span class="pagenum">[60]</span>ou atravessada sobre
+o leito d'oiro&#8213;l&aacute; jazia a figura bojuda, de rabicho negro e
+tunica
+amarella, com o seu papagaio nos bra&ccedil;os... Era o Mandarim
+Ti-Chin-F&uacute;! Eu precipitava-me, de punho erguido: e tudo se
+dissipava.<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o cahia aniquilado, todo em suor, sobre uma poltrona, e
+murmurava no silencio do quarto, onde as v&eacute;las dos
+candelabros davam tons
+ensaguentados aos damascos vermelhos:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;<em>Preciso matar este morto</em>!<br />
+
+<br />
+
+E todavia, n&atilde;o era esta impertinencia d'um velho phantasma
+pan&ccedil;udo, accommodando-se nos meus moveis, sobre as minhas
+colchas, que me fazia saber mal a vida.<br />
+
+<br />
+
+O horror supremo consistia na id&eacute;a, que se me
+crav&aacute;ra ent&atilde;o no espirito como um ferro
+inarrancavel&#8213;<em>que eu tinha assassinado um velho</em>!<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[61]</span>
+N&atilde;o f&ocirc;ra com uma corda em torno da garganta
+&aacute; moda musulmana; nem com veneno n'um calix de vinho de
+Syracusa, &aacute; maneira italiana
+da Renascen&ccedil;a; nem com algum dos methodos classicos, que na
+historia das Monarchias teem recebido
+consagra&ccedil;&otilde;es augustas&#8213;a
+punhal como D. Jo&atilde;o <span class="smallcaps">ii</span>,
+&aacute; clavina como Carlos
+<span class="smallcaps">ix</span>...<br />
+
+<br />
+
+Tinha eliminado a creatura, de longe, com uma campainha. Era absurdo,
+phantastico, faceto. Mas n&atilde;o diminuia a tragica negrura do
+facto: <em>eu assassin&aacute;ra um velho</em>!<br />
+
+<br />
+
+Pouco a pouco esta certeza ergueu-se, petrificou-se na minha alma, e
+como uma columna n'um descampado dominou toda a minha vida interior: de
+sorte que, por mais desviado caminho que tomassem os meus pensamentos
+viam sempre negrejar no horisonte <span class="pagenum">[62]</span>aquella
+Memoria accusadora; por mais
+alto que se levantasse o v&ocirc;o das minhas
+imagina&ccedil;&otilde;es, ellas terminavam por ir fatalmente
+ferir as azas n'esse Monumento de miseria moral.<br />
+
+<br />
+
+Ah! por mais que se considere Vida e Morte como banaes
+transforma&ccedil;&otilde;es da Substancia, &eacute;
+pavoroso o pensamento&#8213;que se fez regelar um
+sangue quente, que se immobilisou um musculo vivo! Quando depois de
+jantar, sentindo ao lado o aroma do caf&eacute;, eu me estirava no
+soph&aacute;, enlanguecido, n'uma sensa&ccedil;&atilde;o de
+plenitude, elevava-se logo
+dentro em mim, melancolico como o c&ocirc;ro que vem d'um
+ergastulo, todo um susurro de
+accusa&ccedil;&otilde;es:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E todavia tu fizeste que esse bem-estar em que te regalas, nunca mais
+fosse gozado pelo veneravel Ti-Chin-F&uacute;!...<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[63]</span>
+Debalde eu replicava &aacute; Consciencia, lembrando-lhe a
+decrepitude do Mandarim, a sua g&ocirc;ta incuravel... Facunda em
+argumentos,
+gulosa de controversia, ella retorquia logo com furor:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mas, ainda na sua actividade mais resumida, a vida &eacute; um
+bem supremo: porque o encanto d'ella reside no seu principio mesmo, e
+n&atilde;o
+na abundancia das suas manifesta&ccedil;&otilde;es!<br />
+
+<br />
+
+Eu revoltava-me contra este pedantismo rhetorico de pedagogo rigido:
+erguia alto a fronte, gritava-lhe n'uma arrogancia desesperada:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Pois bem! Matei-o! Melhor! Que queres tu? o teu grande nome de
+Consciencia n&atilde;o me assusta! &Eacute;s apenas uma
+pervers&atilde;o da sensibilidade nervosa. Posso eliminar-te com
+<em>fl&ocirc;r de laranja</em>!<br />
+
+<br />
+
+E immediatamente sentia passar-me n'alma, com uma lentid&atilde;o
+de briza, um <span class="pagenum">[64]</span>rumor
+humilde de murmura&ccedil;&otilde;es
+ironicas:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Bem, ent&atilde;o come, dorme, banha-te e ama...<br />
+
+<br />
+
+Eu assim fazia. Mas logo, os proprios len&ccedil;oes de Bretanha do
+meu leito tomavam aos meus olhos apavorados os tons lividos d'uma
+mortalha; a
+agua perfumada em que me mergulhava arrefecia-me sobre a pelle, com a
+sensa&ccedil;&atilde;o espessa d'um sangue que coalha: e os
+peitos n&uacute;s das minhas amantes entristeciam-me, como lapides
+de marmore que encerram um corpo morto.<br />
+
+<br />
+
+Depois assaltou-me uma amargura maior: comecei a pensar que
+Ti-Chin-F&uacute; tinha de certo uma vasta familia, netos, bisnetos
+tenros, que, despojados da heran&ccedil;a que eu comia &aacute;
+farta em
+pratos de S&egrave;vres, n'uma pompa de sult&atilde;o
+perdulario, iam atravessando na China todos
+<span class="pagenum">[65]</span>os infernos
+tradicionaes da miseria humana&#8213;os dias sem arroz, o corpo
+sem
+agasalho, a esmola recusada, a rua lamacenta por morada...<br />
+
+<br />
+
+Comprehendi ent&atilde;o porque me perseguia a figura obesa do
+velho letrado; e dos seus labios recobertos pelos longos pellos brancos
+do seu bigode de
+sombra, parecia-me sahir agora esta accusa&ccedil;&atilde;o
+desolada:&#8213;&laquo;Eu n&atilde;o me lamento a mim,
+f&oacute;rma meio morta que era; ch&oacute;ro os
+tristes que arruinaste, e que a estas horas, quando tu vens do seio
+fresco das tuas
+amorosas, gemem de fome, regelam na frialdade, apinhados n'um grupo
+expirante, entre leprosos e ladr&otilde;es, na <em>Ponte dos
+Mendigos</em>, ao p&eacute; dos terra&ccedil;os do Templo
+do
+C&eacute;o!&raquo;<br />
+
+<br />
+
+Oh tortura engenhosa! Tortura realmente chineza! N&atilde;o podia
+levar &aacute; bocca <span class="pagenum">[66]</span>um
+peda&ccedil;o de p&atilde;o sem
+imaginar immediatamente o
+bando faminto de criancinhas, a descendencia de Ti-Chin-F&uacute;,
+penando, como
+passarinhos implumes que abrem debalde o bico e piam em ninho
+abandonado; se me abafava no meu paletot era logo a vis&atilde;o de
+desgra&ccedil;adas senhoras, mimosas outr'ora de tepido conforto
+chinez, hoje r&ocirc;xas de frio, sob
+andrajos de velhas s&ecirc;das, por uma manh&atilde; de neve; o
+tecto
+d'&eacute;bano do meu palacete lembrava-me a familia do Mandarim,
+dormindo &aacute; beira dos
+canaes, farejada pelos c&atilde;es; e o meu coup&eacute; bem
+forrado fazia-me
+arripiar &aacute; id&eacute;a das longas caminhadas errantes,
+por estradas encharcadas, sob um duro inverno asiatico.<br />
+
+<br />
+
+O que eu soffria!&#8213;E era o tempo em que a popula&ccedil;a invejosa
+vinha pasmar <span class="pagenum">[67]</span>para
+o meu palacete, commentando as felicidades
+inaccessiveis que
+l&aacute; deviam habitar!<br />
+
+<br />
+
+Emfim, reconhecendo que a Consciencia era dentro em mim como uma
+serpente irritada&#8213;decidi implorar o auxilio d'Aquelle que dizem ser
+superior &aacute; Consciencia porque disp&otilde;e da
+Gra&ccedil;a.<br />
+
+<br />
+
+Infelizmente eu n&atilde;o acreditava n'Elle... Recorri pois
+&aacute; minha antiga divindade particular, ao meu dilecto idolo,
+padroeira da minha familia,
+Nossa Senhora das D&ocirc;res. E, regiamente pago, um povo de curas
+e conegos, pelas cathedraes de cidade e pelas capellas
+d'ald&ecirc;a, foi
+pedindo a Nossa Senhora das D&ocirc;res que voltasse os seus olhos
+piedosos para o
+meu mal interior... Mas nenhum allivio desceu d'esses c&eacute;os
+inclementes, para onde ha milhares d'annos <span class="pagenum">[68]</span>debalde
+sobe o clamor da
+miseria humana.<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o eu proprio me abysmei em praticas piedosas&#8213;e Lisboa
+assistiu a este espectaculo extraordinario: um rica&ccedil;o, um
+Nababo,
+prostrando-se humildemente ao p&eacute; dos altares, balbuciando de
+m&atilde;os postas phrases de <em>Salv&egrave;-Rainha</em>,
+como se
+visse na
+Ora&ccedil;&atilde;o e no Reino do C&eacute;o que ella
+conquista, outra cousa mais que uma consola&ccedil;&atilde;o
+ficticia que os que possuem tudo inventaram para contentar os que
+n&atilde;o possuem
+nada... Eu perten&ccedil;o &aacute; Burguezia; e sei que se
+ella mostra
+&aacute; Plebe desprov&iacute;da um paraiso distante, gozos
+ineffaveis a alcan&ccedil;ar&#8213;&eacute;
+para lhe afastar a atten&ccedil;&atilde;o dos seus cofres
+repletos e da abundancia
+das suas searas.<br />
+
+<br />
+
+Depois, mais inquieto, fiz dizer milhares de missas, simples e
+cantadas, <span class="pagenum">[69]</span>para
+satisfazer a alma errante de Ti-Chin-F&uacute;.
+Pueril
+desvario d'um cerebro peninsular! O velho Mandarim na sua classe de
+letrado, de
+membro da Academia dos Han-Lin, collaborador provavel do grande tratado
+<span class="smallcaps">Khou-Tsuane-Chou</span> que
+j&aacute; tem setenta e oito mil e setecentos
+e trinta volumes, era certamente um sectario da Doutrina, da Moral
+positiva de Confucio... Nunca elle, sequer, queim&aacute;ra mechas
+perfumadas
+em honra de Buddha: e os ceremoniaes do Sacrificio mystico deviam
+parecer
+&aacute; sua abominavel alma de grammatico e de sceptico como as
+pantomimas dos palha&ccedil;os, no theatro de Hong-Tung!<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o prelados astutos, com experiencia catholica, deram-me
+um conselho subtil&#8213;captar a benevolencia de Nossa Senhora das Dores
+com presentes,
+fl&ocirc;res, brocados e joias, como se quizesse
+<span class="pagenum">[70]</span>alcan&ccedil;ar
+os favores d'Aspasia: e &aacute; maneira d'um
+banqueiro obeso, que obtem as
+complacencias d'uma dan&ccedil;arina dando-lhe um <em>Cottage</em>
+entre
+arvores&#8213;eu,
+por uma suggest&atilde;o sacerdotal, tentei peitar a d&ocirc;ce
+M&atilde;i dos Homens, erguendo-lhe uma cathedral toda de marmore
+branco. A abundancia das fl&ocirc;res
+punha entre os pilares lavrados perspectivas de paraisos: a
+multiplicidade
+dos lumes lembrava uma magnificencia sideral... Despezas
+v&atilde;s! O
+fino e erudito cardeal Nani veio de Roma consagrar a Igreja; mas,
+quando eu n'esse dia entrei a visitar a minha hospeda divina, o que vi,
+para
+al&eacute;m das calvas dos celebrantes, entre a mystica nevoa dos
+incensos,
+n&atilde;o foi a Rainha da Gra&ccedil;a, loira, na sua tunica
+azul,&#8213;foi o velho
+malandro com o seu olho obliquo e o seu papagaio nos bra&ccedil;os!
+Era a
+<em>elle</em>, ao seu branco bigode <span class="pagenum">[71]</span>tartaro, &aacute;
+sua pan&ccedil;a
+c&ocirc;r
+d'oca, que todo um sacerdocio recamado d'oiro estava offerecendo, ao
+roncar do org&atilde;o, a
+Eternidade dos Louvores!...<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="break">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o, pensando que Lisboa, o meio dormente em que me movia,
+era favoravel ao desenvolvimento d'estas
+imagina&ccedil;&otilde;es&#8213;parti, viajei sobriamente, sem
+pompa, com um bah&uacute; e um lacaio.<br />
+
+<br />
+
+Visitei, na sua ordem, classica, Paris, a banal Suissa, Londres, os
+lagos taciturnos da Escocia; ergui a minha tenda diante das muralhas
+evangelicas de Jerusal&eacute;m; e d'Alexandria a Thebas, fui ao
+comprido d'esse longo Egypto monumental e triste como o corredor d'um
+mausol&eacute;o. Conheci o enj&ocirc;o dos paquetes, <span class="pagenum">[72]</span>a
+monotonia das ruinas, a
+melancolia das multid&otilde;es desconhecidas, as
+desillus&otilde;es do
+<em>boulevard</em>: e o meu mal interior ia crescendo.<br />
+
+<br />
+
+Agora j&aacute; n&atilde;o era s&oacute; a amargura de ter
+despojado uma familia veneravel: assaltava-me o remorso mais vasto de
+ter privado toda uma sociedade
+d'um Personagem fundamental, um letrado experiente, columna da Ordem,
+esteio
+d'Institui&ccedil;&otilde;es. N&atilde;o se p&oacute;de
+arrancar assim a um Estado uma personalidade do valor de cento e seis
+mil contos, sem lhe perturbar o equilibrio... Esta id&eacute;a
+pungia-me, acerbamente. Anciei por saber se na
+verdade a desappari&ccedil;&atilde;o de Ti-Chin-F&uacute;
+f&ocirc;ra funesta &aacute; decrepita China: li todos os
+jornaes de Hong-Kong e de Chang-Hai, velei a noite sobre Historias de
+viagens, consultei sabios missionarios:&#8213;e artigos, homens, <span class="pagenum">[73]</span>livros,
+tudo me falla da decadencia do Imperio do Meio, provincias arruinadas,
+cidades moribundas, plebes esfomeadas, pestes e rebelli&otilde;es,
+templos aluindo-se, leis perdendo a authoridade, a
+decomposi&ccedil;&atilde;o d'um mundo, como uma nau encalhada
+que a vaga desfaz t&aacute;bua a
+t&aacute;bua!...<br />
+
+<br />
+
+E eu attribuia-me estas desgra&ccedil;as da Sociedade chineza! No
+meu espirito doente Ti-Chin-F&uacute;! tom&aacute;ra
+ent&atilde;o o
+valor desproporcionado d'um Cesar, um Moys&eacute;s, um d'esses
+s&ecirc;res providenciaes que
+s&atilde;o a for&ccedil;a d'uma ra&ccedil;a. Eu
+mat&aacute;ra-o; e com elle desapparecera a vitalidade da sua
+patria! O seu vasto cerebro poderia talvez ter salvado, a rasgos
+geniaes, aquella velha monarchia asiatica&#8213;e eu
+immobilis&aacute;ra-lhe a
+ac&ccedil;&atilde;o creadora! A sua fortuna concorreria a
+refazer a grandeza <span class="pagenum">[74]</span>do
+Erario&#8213;e eu estava-a dissipando a offerecer
+pecegos em janeiro &aacute;s messalinas do Helder!...&#8213;Amigos,
+conheci o remorso colossal de ter arruinado um imperio!<br />
+
+<br />
+
+Para esquecer este tormento complicado, entreguei-me &aacute;
+orgia. Installei-me n'um palacete da avenida dos Campos-Elysios&#8213;e fui
+medonho. Dava festas &aacute; Trimalci&atilde;o: e, nas horas
+mais
+asperas de furia libertina, quando das charangas, na estridencia brutal
+dos cobres, rompiam os <em>can-cans</em>; quando
+prostitutas, de seio
+desbragado, ganiam coplas canalhas; quando os meus convidados bohemios,
+atheus de cervejaria, injuriavam Deus, com a ta&ccedil;a de
+<em>Champagne</em> erguida&#8213;eu,
+tomado subitamente como Heliogabalo d'um furor de bestialidade, d'um
+&oacute;dio contra o Pensante <span class="pagenum">[75]</span>e
+o Consciente, atirava-me ao
+ch&atilde;o a
+quatro patas e zurrava formidavelmente de burro...<br />
+
+<br />
+
+Depois quiz ir mais baixo, ao deboche da plebe, &aacute;s torpezas
+alco&oacute;licas do <em>Assomoir</em>: e quantas
+vezes, vestido de blusa,
+com o casquete para a
+nuca, de bra&ccedil;o dado com <em>Mes-Bottes</em> ou <em>Bibi-la-Gaillarde</em>,
+n'um tropel avinhado, fui cambaleando pelos <em>boulevards</em>
+exteriores, a
+uivar, entre
+arrotos:<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry"><em>Allons, enfants de la
+patrie-e-e!...<br />
+
+Le jour de
+gloire est arriv&eacute;...</em></div>
+
+<br />
+
+Foi uma manh&atilde;, depois d'um d'estes excessos, &aacute;
+hora em que nas trevas da alma do debochado se ergue uma vaga aurora
+espiritual&#8213;que me nasceu,
+de repente, a id&eacute;a de partir para a China! E, como soldados
+em
+acampamento <span class="pagenum">[76]</span>adormecido,
+que ao som do clarim se erguem, e um a um se
+v&atilde;o
+juntando e formando columna&#8213;outras id&eacute;as se foram reunindo
+no meu
+espirito, alinhando-se, completando um plano formidavel... Partiria
+para Pekin; descobriria a familia de Ti-Chin-F&uacute;; esposando
+uma das
+senhoras, legitimar&iacute;a a posse dos meus milh&otilde;es;
+daria
+&aacute;quella casa letrada a antiga prosperidade; celebraria
+funeraes pomposos ao Mandarim, para lhe
+acalmar o espirito irritado; iria pelas provincias miseraveis fazendo
+colossaes distribui&ccedil;&otilde;es d'arroz; e, obtendo do
+Imperador o bot&atilde;o de crystal de Mandarim, accesso facil a um
+bacharel, substituir-me-hia
+&aacute; personalidade desapparecida de Ti-Chin-F&uacute;&#8213;e
+poderia assim
+restituir legalmente &aacute; sua patria, sen&atilde;o a
+authoridade do
+seu saber, ao menos a for&ccedil;a do seu oiro.<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[77]</span>
+Tudo isto, por vezes, me apparecia como um programma indefinido,
+nevoento, pueril e idealista. Mas j&aacute; o desejo d'esta
+aventura original e epica me envolvera; e eu ia, arrebatado por elle,
+como uma folha secca n'uma rajada.<br />
+
+<br />
+
+Anhelei, suspirei por pisar a terra da China!&#8213;Depois d'altos
+preparativos, apressados a punhados d'oiro, uma noite parti emfim para
+Marselha. Tinha alugado todo um paquete, o <em>Ceyl&atilde;o</em>.
+E na
+manh&atilde; seguinte, por um mar azul-ferrete, sob o v&ocirc;o
+branco das
+gaivotas, quando os primeiros raios do sol ruborisavam as torres de
+Nossa Senhora da Guarda, sobre o seu rochedo escuro&#8213;puz a
+pr&ocirc;a ao Oriente.<br />
+
+<br />
+
+<h2>IV</h2>
+
+<br />
+
+<span class="smallcaps">O Ceyl&atilde;o</span>
+teve uma viagem calma e monotona at&eacute;
+Chang-Hai.<br />
+
+<br />
+
+D'ahi subimos pelo rio Azul a Tien-Tsin n'um pequeno <em>steamer</em>
+da
+Companhia Russel. Eu n&atilde;o vinha visitar a China n'uma
+curiosidade ociosa de <em>touriste</em>: toda a paizagem
+d'essa <span class="pagenum">[80]</span>provincia,
+que
+se assemelha
+&aacute; dos vasos de porcelana, d'um tom azulado e vaporoso, com
+collinasinhas calvas e de longe a longe um arbusto bracejante, me
+deixou sombriamente
+indifferente.<br />
+
+<br />
+
+Quando o capit&atilde;o do <em>steamer</em>, um <em>yankee</em>
+impudente de
+focinho de chibo, ao passarmos &aacute; altura de Nankin, me propoz
+parar, ir
+percorrer as ruinas monumentaes da velha cidade de porcelana,&#8213;eu
+recusei, com um movimento secco de cabe&ccedil;a, sem mesmo desviar
+os olhos
+tristes da corrente barrenta do rio.<br />
+
+<br />
+
+Que pesados e soturnos me pareceram os dias de
+navega&ccedil;&atilde;o de Tien-Tsin a Tung-Chou, em barcos
+chatos que o cheiro dos remadores chinezes empestava; ora
+atrav&eacute;s de terras baixas inundadas pelo
+Pei-h&oacute;, ora ao longo de pallidos e infindaveis arrozaes;
+passando aqui <span class="pagenum">[81]</span>uma
+lugubre ald&ecirc;a de lama negra,
+al&eacute;m um campo coberto de
+esquifes amarellos; topando a cada momento com cadaveres de mendigos,
+inchados e esverdeados, que desciam ao fio d'agua, sob um
+c&eacute;o fusco e
+baixo!<br />
+
+<br />
+
+Em Tung-Chou fiquei surprehendido, ao dar com uma escolta de cossacos
+que mandava ao meu encontro o velho general Camilloff, heroico official
+das campanhas da Asia Central, e ent&atilde;o embaixador da Russia
+em Pekin. Eu vinha-lhe recommendado como um s&ecirc;r precioso e
+raro: e o
+verboso interprete S&aacute;-T&oacute;, que elle punha ao meu
+servi&ccedil;o, explicou-me que as cartas de s&ecirc;llo
+imperial, avisando-o da minha chegada,
+recebera-as elle, havia semanas, pelos correios da Chancellaria que
+atravessam a Siberia em tren&oacute;, descem a dorso de
+cam&ecirc;lo at&eacute;
+&aacute; Grande Muralha tartara, e <span class="pagenum">[82]</span>entregam
+ahi a mala a esses
+corredores mongolicos, vestidos de coiro escarlate, que dia e noite
+galopam sobre Pekin.<br />
+
+<br />
+
+Camilloff enviava-me um poney da Manchouria, ajaezado de
+s&ecirc;da, e um cart&atilde;o de visita, com estas palavras
+tra&ccedil;adas a
+lapis sob o seu nome: &laquo;<em>Sa&uacute;de! o animal
+&eacute; d&ocirc;ce de
+bocca</em>!&raquo;<br />
+
+<br />
+
+Montei o poney: e a um <em>hurrah</em>! dos cossacos, n'um
+agitar heroico de
+lan&ccedil;as, partimos &aacute; desfilada pela poeirenta
+planicie&#8213;porque j&aacute; a tarde declinava, e as portas de Pekin
+fecham-se mal o ultimo raio de sol
+deixa as torres do Templo do C&eacute;o. Ao principio seguimos uma
+estrada, caminho batido do transito das caravanas, atravancado de
+enormes lages de marmore dessoldadas da antiga Via Imperial. Depois
+pass&aacute;mos
+a ponte de Pa-li-kao, toda de marmore branco, flanqueada de
+drag&otilde;es
+arrogantes. <span class="pagenum">[83]</span>Vamos
+correndo ent&atilde;o &aacute; beira de
+canaes d'agua
+negra: come&ccedil;am a apparecer pomares, aqui e al&eacute;m
+uma ald&ecirc;a de c&ocirc;r
+azulada, aninhada ao p&eacute; de um Pagode:&#8213;de repente, a um
+cotov&ecirc;lo do caminho, paro
+assombrado...<br />
+
+<br />
+
+Pekin est&aacute; diante de mim! &Eacute; uma vasta muralha,
+monumental e barbara, d'um negro ba&ccedil;o, estendendo-se a
+perder de vista, e,
+destacando, com as architecturas babylonicas das suas portas de tectos
+recurvos, sobre um fundo de poente de purpura ensanguentada...<br />
+
+<br />
+
+Ao longe, para o Norte, n'um vago de vapor roxo, esbatem-se, como
+suspensas no ar, as montanhas da Mongolia...<br />
+
+<br />
+
+Uma rica liteira esperava-me &aacute; porta de Tung-Tsen-Men, para
+eu atravessar Pekin at&eacute; &aacute; Residencia militar de
+Camilloff. A muralha agora, ao perto, parecia <span class="pagenum">[84]</span>erguer-se
+at&eacute;
+aos c&eacute;os com o
+horror d'uma construc&ccedil;&atilde;o biblica: &aacute;
+sua base apinhava-se uma confus&atilde;o de
+barracas, feira exotica, onde rumorejava uma multid&atilde;o, e a
+luz de lanternas
+oscillantes cortava j&aacute; o crep&uacute;sculo de vagas
+manchas c&ocirc;r de
+sangue; os toldos brancos faziam ao p&eacute; do negro muro como um
+bando de borboletas pousadas.<br />
+
+<br />
+
+Senti-me triste; subi &aacute; liteira, cerrei as cortinas de
+s&ecirc;da escarlate todas bordadas a oiro; e cercado dos cossacos,
+eis-me entrando a velha Pekin, por essa porta babelica, na turba
+tumultuosa, entre carretas, cadeirinhas de xar&atilde;o,
+cavalleiros mongolicos armados de
+flechas, bonzos de tunica alvejante marchando um a um, e longas filas
+de lentos dromedarios balan&ccedil;ando a sua carga em cadencia...<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[85]</span>
+D'ahi a pouco a liteira parou. O respeitoso S&aacute;-T&oacute;
+correu as cortinas, e vi-me n'um jardim, escurecido e calado, onde, por
+entre sycomoros seculares, kiosques alumiados brilhavam com uma luz
+d&ocirc;ce,
+como colossaes lanternas pousadas sobre a relva: e toda a sorte de
+aguas correntes murmuravam na sombra. Sob um peristilo feito de
+madeiros pintados a vermelh&atilde;o, aclarado por fios de lampadas
+de papel
+transparente, esperava-me um membrudo figur&atilde;o, de bigodes
+brancos, apoiado
+a um grosso espad&atilde;o. Era o general Camilloff. Ao adiantar-me
+para elle,
+eu sentia o passo inquieto das gazellas fugindo de leve sob as
+arvores...<br />
+
+<br />
+
+O velho heroe apertou-me um momento ao peito, e conduziu-me logo,
+segundo os usos chinezes, ao banho da hospitalidade, uma vasta tina de
+porcelana, <span class="pagenum">[86]</span>onde
+entre rodelas finas de lim&atilde;o sobrenadavam
+esponjas brancas, n'um perfume forte de lilaz...<br />
+
+<br />
+
+Pouco depois a lua banhava deliciosamente os jardins: e eu, muito
+fresco, de gravata branca, entrava pelo bra&ccedil;o de Camilloff
+no <em>boudoir</em> da generala. Era alta e loira; tinha
+os olhos verdes das
+sereias de Homero; no decote baixo do seu vestido de s&ecirc;da
+branca pousava
+uma rosa escarlate; e nos dedos, que lhe beijei, errava um aroma fino
+de sandalo
+e de ch&aacute;.<br />
+
+<br />
+
+Convers&aacute;mos muito da Europa, do Nihilismo, de Zola, de
+Le&atilde;o XIII, e da magreza de Sarah Bernardth...<br />
+
+<br />
+
+Pela galeria aberta penetrava um ar calido que rescendia a heliotropio.
+Depois ella sentou-se ao piano&#8213;e a sua voz de contralto quebrou
+at&eacute; tarde os silencios melancolicos da cidade <span class="pagenum">[87]</span>tartara, com
+as picantes
+arias de <em>Madame Favart</em> e com as melodias
+afagantes do <em>Rei de
+Lahore</em>.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="break">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Ao outro dia cedo, encerrado com o general n'um dos kiosques do jardim,
+contei-lhe a minha lamentavel historia e os motivos fabulosos que me
+traziam a Pekin. O heroe escutava, cofiando sombriamente o seu espesso
+bigode cossaco...<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O meu prezado hospede sabe o chinez?&#8213;perguntou-me de repente,
+fixando em mim a pupilla sagaz.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Sei duas palavras importantes, general: <em>Mandarim</em>
+e
+<em>ch&aacute;</em>.<br />
+
+<br />
+
+Bile passou a sua m&atilde;o de fortes cordov&ecirc;as sobre a
+medonha cicatriz que lhe sulcava a calva:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;<em>Mandarim</em>, meu amigo, n&atilde;o &eacute;
+<span class="pagenum">[88]</span>uma palavra
+chineza, e ninguem a entende na China. &Eacute; o nome que no
+seculo XVI os navegadores do seu
+paiz, do seu bello paiz...<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Quando n&oacute;s tinhamos navegadores...&#8213;murmurei, suspirando.<br />
+
+<br />
+
+Elle suspirou tambem, por polidez, e continuou:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;...Que os seus navegadores deram aos funccionarios chinezes. Vem do
+seu verbo, do seu lindo verbo...<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Quando tinhamos verbos...&#8213;rosnei, no habito instinctivo de deprimir
+a patria.<br />
+
+<br />
+
+Elle esgazeou um momento o seu olho redondo de velho mocho&#8213;e proseguiu
+paciente e grave:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Do seu lindo verbo <em>mandar</em> ... Resta-lhe por
+tanto <em>ch&aacute;</em>.
+&Eacute; um vocabulo que tem um vasto papel na vida chineza, mas
+julgo-o insufficiente <span class="pagenum">[89]</span>para
+servir a todas as
+rela&ccedil;&otilde;es
+sociaes. O meu estimavel hospede pretende esposar uma senhora da
+famillia Ti-Chin-F&uacute;,
+continuar a grossa influencia que exercia o Mandarim, substituir,
+domestica e socialmente, esse chorado defunto... Para tudo isto
+disp&otilde;e
+da palavra <em>ch&aacute;</em>. &Eacute; pouco.<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o pude negar&#8213;que era pouco. O venerando russo, franzindo
+o seu nariz adunco de milhafre, p&ocirc;z-me ainda outras
+objec&ccedil;&otilde;es que eu via erguerem-se diante do meu
+desejo&#8213;como as muralhas mesmas de Pekin: nenhuma senhora
+da familia Ti-Chin-F&uacute; consentiria j&aacute;mais em casar
+com um barbaro; e seria impossivel, terrivelmente impossivel que o
+Imperador, o Filho do Sol, concedesse a um estrangeiro as honras
+privilegiadas d'um Mandarim...<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[90]</span> &#8213;Mas porque m'as
+recusaria?&#8213;exclamei.&#8213;Eu perten&ccedil;o a uma
+boa familia da provincia do Minho. Sou bacharel formado: portanto na
+China, como em
+Coimbra, sou um letrado! J&aacute; fiz parte d'uma
+reparti&ccedil;&atilde;o publica... Possuo
+milh&otilde;es... Tenho a experiencia do estylo administrativo...<br />
+
+<br />
+
+O general ia-se curvando com respeito a esta abundancia dos meus
+attributos.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o &eacute;&#8213;disse elle emfim&#8213;que o Imperador
+realmente o recusasse: &eacute; que o individuo que lh'o propozesse
+seria immediatamente decapitado. A lei chineza, n'este ponto,
+&eacute; explicita e secca.<br />
+
+<br />
+
+Baixei a cabe&ccedil;a, acabrunhado.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mas, general&#8213;murmurei&#8213;eu quero livrar-me da presen&ccedil;a
+odiosa do velho Ti-Chin-F&uacute; e do seu papagaio!... <span class="pagenum">[91]</span>Se eu
+entregasse metade dos
+meus milh&otilde;es ao thesouro chinez, j&aacute; que
+n&atilde;o
+me &eacute; dado pessoalmente applical-os, como Mandarim,
+&aacute; prosperidade do Estado...?
+Talvez Ti-Chin-F&uacute; se calmasse...<br />
+
+<br />
+
+O general pousou-me paternalmente a vasta m&atilde;o sobre o
+hombro:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Ecirc;rro, consideravel &ecirc;rro, mancebo! Esses
+milh&otilde;es nunca chegariam ao thesouro imperial. Ficariam nas
+algibeiras insondaveis das classes dirigintes: seriam dissipados em
+plantar jardins, colleccionar porcelanas, tapetar de pelles os soalhos,
+fornecer s&ecirc;das
+&aacute;s concubinas: n&atilde;o alliviariam a fome d'um
+s&oacute; chinez, nem
+reparariam uma s&oacute; pedra das estradas publicas... Iriam
+enriquecer a orgia asiatica. A alma de Ti-Chin-F&uacute; deve
+conhecer bem o Imperio: e isso
+n&atilde;o a satisfaria.<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[92]</span> &#8213;E se eu
+empregasse parte da fortuna do velho malandro em fazer
+particularmente, como philanthropo, largas
+distribui&ccedil;&otilde;es d'arroz &aacute;
+popula&ccedil;a faminta? &Eacute; uma id&eacute;a...<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Funesta&#8213;disse o general, franzindo medonhamente o sobr'olho.&#8213;A
+c&ocirc;rte imperial veria ahi immediatamente uma
+ambi&ccedil;&atilde;o
+politica, o tortuoso plano de ganhar os favores da plebe, um perigo
+para a Dynastia... O meu bom amigo seria decapitado... &Eacute;
+grave...<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Maldi&ccedil;&atilde;o!&#8213;berrei.&#8213;-Ent&atilde;o para que
+vim eu &aacute; China?<br />
+
+<br />
+
+O diplomata encolheu vagarosamente os hombros; mas logo, mostrando n'um
+sorriso astuto os seus dentes amarellos de cossaco:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Fa&ccedil;a uma coisa. Procure a familia de
+Ti-Chin-F&uacute;... Eu indagarei do <span class="pagenum">[93]</span>primeiro
+ministro, sua
+excellencia o principe Tong, onde
+p&aacute;ra essa prole interessante... Reuna-os, atire-lhes uma ou
+duas duzias de
+milh&otilde;es... Depois prepare ao defunto funeraes regios.
+Funeraes d'alto ceremonial, com um prestito d'uma legua, filas de
+bonzos, todo um mundo de estandartes, palanquins, lan&ccedil;as,
+plumas, andores escarlates,
+legi&otilde;es de carpideiras ululando sinistramente, etc. etc...
+Se depois de tudo isto
+a sua consciencia n&atilde;o adormecer e o phantasma insistir...<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ent&atilde;o?<br />
+
+<br />
+
+&#8213;C&oacute;rte as guelas.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Obrigado, general.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="break">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Uma coisa por&eacute;m era evidente, e n'ella concordaram
+Camilloff, o respeitoso S&aacute;-T&oacute; e a generala:&#8213;que,
+para
+frequentar <span class="pagenum">[94]</span>a
+familia Ti-Chin-F&uacute;, seguir os funeraes,
+misturar-me &aacute;
+vida de Pekin, eu devia desde j&aacute; vestir-me como um chinez
+opulento, da classe
+letrada, para me ir habituando ao traje, &aacute;s maneiras, ao
+ceremonial
+mandarim...<br />
+
+<br />
+
+A minha face amarellada, o meu longo bigode pendente favoreciam a
+caracterisa&ccedil;&atilde;o:&#8213;e quando na manh&atilde;
+seguinte, depois d'arranjado pelos costureiros engenhosos da rua
+Ch&aacute;-Coua, entrei na sala
+forrada de s&ecirc;da escarlate, onde j&aacute; rebrilhavam as
+porcelanas do
+almo&ccedil;o sobre a mesa de char&atilde;o negro,&#8213;a generala
+recuou como &aacute;
+appari&ccedil;&acirc;o do proprio Tong-Tch&eacute;, Filho
+do C&eacute;o!<br />
+
+<br />
+
+Eu trazia uma tunica de brocado azul escuro abotoada ao lado, com o
+peitilho ricamente bordado de drag&otilde;es e fl&ocirc;res
+d'oiro: por cima um casabeque de s&ecirc;da de um tom azul mais
+claro, curto, <span class="pagenum">[95]</span>amplo
+e
+f&ocirc;fo: as cal&ccedil;as de setim c&ocirc;r de
+avell&atilde;
+descobriam ricas babouches amarellas pespontadas a perolas, e um pouco
+da meia picada d'estrellinhas negras:
+e &aacute; cinta, n'uma linda facha franjada de prata, tinha
+mettido um leque de bamb&uacute;, dos que teem o retrato do
+philosopho
+L&aacute;-o-Ts&eacute; e s&atilde;o fabricados em Swaton.<br />
+
+<br />
+
+E, pelas mysteriosas correla&ccedil;&otilde;es com que o
+vestuario influenceia o caracter, eu sentia j&aacute; em mim
+id&eacute;as, instinctos
+chinezes:&#8213;o amor dos ceremoniaes meticulosos, o respeito bureocratico
+das
+f&oacute;rmulas, uma ponta de scepticismo letrado; e tambem um
+abjecto terror do Imperador, o odio
+ao estrangeiro, o culto dos antepassados, o fanatismo da
+tradi&ccedil;&atilde;o, o gosto das coisas assucaradas...<br />
+
+<br />
+
+Alma e ventre, era j&aacute; totalmente um <span class="pagenum">[96]</span>Mandarim.
+N&atilde;o
+disse &aacute; generala:&#8213;<em>Bon jour, Madame</em>.
+Dobrado ao meio,
+fazendo girar os punhos
+fechados sobre a fronte abaixada, fiz gravemente o <em>chin-chin</em>!
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; ador&aacute;vel, &eacute; precioso!&#8213;dizia ella,
+com o seu lindo riso, batendo as maosinhas pallidas.<br />
+
+<br />
+
+N'essa manh&atilde;, em honra da minha nova
+incarna&ccedil;&atilde;o, havia um almo&ccedil;o chinez.
+Que gentis guardanapos de papel de s&ecirc;da escarlate, com
+monstros fabulosos desenhados a negro! O servi&ccedil;o
+come&ccedil;ou
+por ostras de Ning-P&oacute;. Eximias! Absorvi duas duzias com um
+intenso regalo chinez. Depois
+vieram deliciosas febras de barbatana de tubar&atilde;o, olhos de
+carneiro
+com picado d'alho, um prato de nenufares em calda d'assucar, laranjas
+de
+Cant&atilde;o, e emfim o arroz sacramental, o arroz dos
+av&oacute;s...<br />
+
+<br />
+
+Delicado repasto, regado largamente <span class="pagenum">[97]</span>de
+excellente vinho de
+Ch&atilde;o-Chigne! E por fim, com que g&ocirc;zo recebi a
+minha ta&ccedil;a d'agua
+a ferver, onde deitei uma pitada de folhas de ch&aacute; imperial,
+da primeira colheita
+de mar&ccedil;o, colheita unica, que &eacute; celebrada como um
+rito santo pelas
+m&atilde;os puras de virgens!...<br />
+
+<br />
+
+Duas cantadeiras entraram, em quanto n&oacute;s fumavamos; e muito
+tempo, n'uma modula&ccedil;&atilde;o guttural, disseram velhas
+cantigas dos
+tempos da dynastia Ming, ao som de guitarras recobertas de pelles de
+serpente, que dous tartaros agachados repenicavam, n'uma cadencia
+melancolica e barbara. A
+China tem encantos d'um raro gosto...<br />
+
+<br />
+
+Depois a loira generala cantou-nos, com chiste, a <em>Femme
+&agrave;
+barbe</em>: e quando o general sahiu com a sua escolta cossaca
+para o Yamen
+do principe Tong, a informar-se da residencia da familia
+<span class="pagenum">[98]</span>Ti-Chin-F&uacute;&#8213;eu,
+repleto e bem disposto, sahi com
+S&aacute;-T&oacute; a
+v&ecirc;r Pekin.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="break">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+A habita&ccedil;&atilde;o de Camilloff ficava na cidade
+tartara, nos bairros militares e nobres. Ha aqui uma tranquillidade
+austera. As ruas assemelham-se a largos caminhos d'ald&ecirc;a
+sulcados pelas rodas dos carros; e
+quasi sempre se caminha ao comprido de um muro, d'onde sahem ramos
+horisontaes de sycomoros.<br />
+
+<br />
+
+Por vezes uma carreta passa rapidamente, ao trote de um poney mongol,
+com altas rodas cravejadas de pregos dourados; tudo n'ella oscilla, o
+toldo, as cortinas pendentes de s&ecirc;da, os ramos de plumas aos
+angulos; e dentro entrev&ecirc;-se alguma linda dama chineza,
+coberta de
+brocados claros, a cabe&ccedil;a toda cheia <span class="pagenum">[99]</span>de fl&ocirc;res,
+fazendo girar nos
+pulsos dois aros de prata, com um ar de tedio ceremonioso. Depois
+&eacute; alguma
+aristocratica cadeirinha de Mandarim, que koulis vestidos d'azul, de
+rabicho solto, v&atilde;o levando a um trote arquejante para os
+Yamens do Estado;
+precede-os uma criadagem maltrapilha que ergue ao alto rolos de seda
+com inscrip&ccedil;&otilde;es bordadas, insignias
+d'authoridade; e
+dentro o personagem bojudo, com enormes oculos redondos, folheia a sua
+papelada ou dormita de bei&ccedil;o cahido...<br />
+
+<br />
+
+A cada momento paravamos a olhar as lojas ricas, com as suas taboletas
+verticaes de letras douradas sobre fundo escarlate: os freguezes, n'um
+silencio d'igreja, subtis como sombras, v&atilde;o examinando as
+preciosidades&#8213;porcelanas da dynastia Ming, bronzes, esmaltes, marfins,
+s&ecirc;das, armas marchetadas, os <span class="pagenum">[100]</span>leques
+maravilhosos de Swaton:
+por vezes, uma fresca rapariga d'olho obliquo, tunica azul, e papoilas
+de papel
+nas tran&ccedil;as, desdobra algum raro brocado diante d'um grosso
+chinez que o contempla beatamente, com os dedos cruzados na
+pan&ccedil;a: ao
+fundo o mercador apparatoso e immovel, escreve com um pincel sobre
+longas taboinhas de sandalo: e um perfume adocicado que sahe das coisas
+perturba e entristece...<br />
+
+<br />
+
+Eis-aqui a muralha que c&eacute;rca a Cidade interdictca, morada
+santa do Imperador! Mo&ccedil;os nobres vem descendo do
+terra&ccedil;o
+d'um templo onde se estiveram adestrando &aacute; frecha.
+S&aacute;-T&oacute;
+disse-me os seus nomes: eram da guarda selecta, que nas ceremonias
+escolta o guarda-sol de
+s&ecirc;da amarella, com o Drag&atilde;o bordado, que
+&eacute; o emblema
+sagrado do Imperador. Todos elles comprimentaram profundadamente <span class="pagenum">[101]</span>um
+velho que ia passando, de
+barbas venerandas, com o casabeque amarello que &eacute; o
+privilegio do anci&atilde;o; vinha fallando s&oacute;, e trazia
+na
+m&atilde;o uma vara sobre que pousavam cotovias domesticadas... Era
+um principe do Imperio.<br />
+
+<br />
+
+Estranhos bairros! Mas nada me divertia como v&ecirc;r a cada
+instante, a uma porta de jardim, dois Mandarins pan&ccedil;udos que
+para entrar se
+trocavam indefinidamente salamal&eacute;s, cortezias, recusas,
+risinhos
+agudos d'etiqueta, todo um ceremonial dogmatico&#8213;que lhes fazia
+oscillar d'um modo picaresco, sobre as costas, as longas pennas de
+pav&atilde;o.
+Depois se erguia os olhos para o ar, l&aacute; via sempre pairar
+enormes
+papagaios de papel, ora em f&oacute;rma de drag&otilde;es, ora
+de cetaceos,
+ora d'aves fabulosas&#8213;enchendo o espa&ccedil;o d'uma inverosimil
+legi&atilde;o <span class="pagenum">[102]</span>de
+monstros transparentes e ondeantes...<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="break">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;S&aacute;-T&oacute;, basta de cidade tartara! Vamos
+v&ecirc;r os bairros chinezes...<br />
+
+<br />
+
+E l&aacute; fomos penetrando na cidade chineza, pela porta
+monstruosa de Tchin-Men. Aqui habita a burguezia, o mercador, a
+popula&ccedil;a.
+As ruas alinham-se como uma pauta; e no s&oacute;lo vetusto e
+lamacento,
+feito da immundicie de gera&ccedil;&otilde;es recalcada desde
+seculos,
+ainda aqui e al&eacute;m jaz alguma das lages de marmore
+c&ocirc;r de rosa que outr'ora o
+cal&ccedil;avam, no tempo da grandeza dos Ming.<br />
+
+<br />
+
+Dos dois lados s&atilde;o&#8213;ora terrenos vagos onde uivam manadas de
+c&atilde;es famintos, ora filas de casebres fuscos, ora pobres
+lojas com as suas taboletas esguias <span class="pagenum">[103]</span>e
+sarapintadas,
+balou&ccedil;ando-se d'uma haste
+de ferro. A distancia erguem-se os arcos triumphaes feitos de barrotes
+c&ocirc;r de purpura, ligados no alto por um telhado oblongo de
+telhas azues envernizadas, que rebrilham como esmaltes. Uma
+multid&atilde;o
+rumorosa e espessa, onde domina o tom pardo e azulado dos trajes,
+circula sem cessar; a poeira envolve tudo d'uma nevoa amarellada; um
+fedor acre exhala-se dos enxurros negros; e a cada momento uma longa
+caravana de cam&ecirc;los fende lentamente a turba, conduzida por
+mongoes
+sombrios vestidos de pelle de carneiro...<br />
+
+<br />
+
+Fomos at&eacute; &aacute;s entradas das pontes sobre os canaes,
+onde saltimbancos semi-n&uacute;s, com mascaras simulando demonios
+pavorosos, fazem
+destrezas d'um picaresco barbaro e subtil; e muito tempo estive a
+admirar os astrologos de <span class="pagenum">[104]</span>longas
+tunicas, com drag&otilde;es de
+papel collados
+&aacute;s c&oacute;stas, vendendo ruidosamente horoscopos e
+consultas d'astros. Oh cidade fabulosa e singular!<br />
+
+<br />
+
+De repente ergue-se uma gritaria! Corremos: era um bando de presos, que
+um soldado, de grandes oculos, ia impellindo com o guarda-sol,
+amarrados uns aos outros pelo rabicho! Foi ahi n'essa avenida, que eu
+vi o estrepitoso cortejo de um funeral de Mandarim, todo ornado de
+auriflammas e de bandeirolas; grupos de sujeitos funebres vinham
+queimando papeis em fogareiros portateis; mulheres esfarrapadas uivavam
+de d&ocirc;r espojando-se sobre tapetes; depois erguiam-se,
+galhofavam, e um kouli vestido de luto branco servia-lhes logo
+ch&aacute;, d'um
+grande bule em f&oacute;rma d'ave.<br />
+
+<br />
+
+Ao passar junto ao Templo do C&eacute;o, vejo apinhada n'um largo
+uma legiao <span class="pagenum">[105]</span>de
+mendigos; tinham por vestuario um tijolo preso
+&aacute; cinta n'um
+cordel; as mulheres, com os cabellos entremeados de velhas
+fl&ocirc;res de
+papel, roiam ossos tranquillamente; e cadaveres de crian&ccedil;as
+apodreciam ao
+lado, sob o v&ocirc;o dos moscardos. Adiante topamos com uma jaula
+de traves,
+onde um condemnado estendia, atrav&eacute;s das grades, as
+m&atilde;os
+descarnadas, &aacute; esmola... Depois S&aacute;-T&oacute;
+mostrou-me respeitosamente
+uma pra&ccedil;a estreita: ahi, sobre pilares de pedra, poupavam
+pequenas gaiolas contendo
+cabe&ccedil;as de decapitados: e gotta a gotta ia pingando d'ellas
+um sangue espesso e
+negro...<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="break">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ouf!&#8213;exclamei, fatigado e aturdido.&#8213;S&aacute;-T&oacute;,
+agora quero o repouso, o silencio, e um charuto caro...<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[106]</span>
+Elle curvou-se: e, por uma escadaria de granito, levou-me &aacute;s
+altas muralhas da cidade, formando uma esplanada que quatro carros de
+guerra
+a par podem percorrer durante leguas.<br />
+
+<br />
+
+E emquanto S&aacute;-T&oacute;, sentado n'um v&atilde;o
+d'ameia, bocejava n'um desaf&ocirc;go de <em>cicerone</em>
+enfastiado, eu
+fumando contemplei muito tempo aos meus
+p&eacute;s a vasta Pekin...<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; como uma formidavel cidade da Biblia, Babel, ou Ninive que
+o propheta Jonas levou tres dias a atravessar. O grandioso muro
+quadrado limita os
+quatro pontos do horisonte, com as suas portas de torres monumentaes,
+que o ar azulado, &aacute;quella distancia, faz parecer
+transparentes. E na immensid&atilde;o do seu recinto agglomeram-se
+confusamente
+verduras de bosques, lagos artificiaes, canaes scintillantes como
+a&ccedil;o,
+pontes de <span class="pagenum">[107]</span>marmore,
+terrenos alastrados de ruinas, telhados envernizados
+reluzindo
+ao sol; por toda a parte s&atilde;o pagodes heraldicos, brancos
+terra&ccedil;os de templos, arcos triumphaes, milhares de kiosques
+sahindo d'entre as folhagens dos jardins; depois espa&ccedil;os que
+parecem um
+mont&atilde;o de porcelanas, outros que se assemelham a monturos de
+lama; e sempre a intervallos regulares o olhar encontra algum dos
+basti&otilde;es,
+d'um aspecto heroico e fabuloso...<br />
+
+<br />
+
+A multid&atilde;o, junto a essas edifica&ccedil;&otilde;es
+grandiosas, &eacute; apenas como gr&atilde;os d'ar&ecirc;a
+negra que um vento brando vai trazendo e levando...<br />
+
+<br />
+
+Aqui est&aacute; o vasto palacio imperial, entre arvoredos
+mysteriosos, com os seus telhados d'um amarello d'oiro vivo! Como eu
+desejaria penetrar-lhe
+os segredos, e ver desenrolar-se, pelas galerias <span class="pagenum">[108]</span>sobrepostas, a
+magnificencia barbara d'essas Dynastias seculares!<br />
+
+<br />
+
+Al&eacute;m ergue-se a torre do Templo do C&eacute;o semelhando
+tr&ecirc;s guarda-soes sobrepostos: depois a grande columna dos
+Principios, hieratica e
+s&ecirc;cca como o Genio mesmo da Ra&ccedil;a: e adiante
+branquejam n'uma meia
+tinta sobrenatural os terra&ccedil;os de jaspe do Santuario da
+Purifica&ccedil;&atilde;o...<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o interrogo S&aacute;-T&oacute;: e o seu dedo
+respeitoso vai-me mostrando o Templo dos Antepassados, o Palacio da
+Soberana Concordia, o
+Pavilh&atilde;o das Fl&ocirc;res das Letras, o Kiosque dos
+Historiadores, fazendo brilhar, entre os bosques sagrados que os
+cercam, os seus telhados lustrosos de
+faian&ccedil;as azues, verdes, escarlates e c&ocirc;r de
+lim&atilde;o. Eu
+devorava, d'olho avido, esses monumentos da Antiguidade asiatica, n'uma
+curiosidade de <span class="pagenum">[109]</span>conhecer
+as impenetraveis classes que os habitam, o principio das
+Institui&ccedil;&otilde;es, a
+significa&ccedil;&atilde;o dos Cultos, o espirito das suas
+letras, a grammatica, o dogma, a estranha vida interior d'um cerebro de
+letrado chinez... Mas esse mundo &eacute; inviolavel como um
+Santuario...<br />
+
+<br />
+
+Sentei-me na muralha, e os meus olhos perderam-se pela planicie arenosa
+que se estira para al&eacute;m das portas at&eacute; aos
+contrafortes dos montes mongolicos; ahi incessantemente redemoinham
+ondas infindaveis de
+poeira; a toda a hora negrejam filas vagarosas de caravanas...
+Ent&atilde;o
+invadiu-me a alma uma melancolia, que o silencio d'quellas alturas,
+envolvendo Pekin, tornava d'um vago mais desolado: era como uma saudade
+de mim mesmo, um longo pezar de me sentir alli isolado, absorvido
+n'aquelle mundo duro e barbaro: <span class="pagenum">[110]</span>lembrei-me,
+com os olhos humedecidos,
+da minha ald&ecirc;a do Minho, do seu adro assombreado de
+carvalheiras, a
+venda com um ramo de louro &aacute; porta, o alpendre do ferrador,
+e os ribeiros
+t&atilde;o frescos quando verdejam os linhos...<br />
+
+<br />
+
+Aquella era a &eacute;poca em que as pombas emigram de Pekin para o
+sul. Eu via-as reunirem-se em bandos por cima de mim, partindo dos
+bosques dos templos e dos pavilh&otilde;es imperiaes; cada uma
+traz, para a
+livrar dos milhafres, um leve tubo de bambu que o ar faz silvar; e
+aquellas nuvens
+brancas passavam como impellidas d'uma aragem molle, deixando no
+silencio um lento e melancolico suspiro, uma
+ondula&ccedil;&atilde;o eolia, que se perdia nos ares
+pallidos...<br />
+
+<br />
+
+Voltei para casa, pesado e pensativo.<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[111]</span>
+Ao jantar, Camilloff, desdobrando o seu guardanapo, pediu-me com
+bonhomia as minhas impress&otilde;es de Pekin.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Pekin faz-me sentir bem, general, os versos d'um poeta nosso:<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry">S&ocirc;bolos rios que
+v&atilde;o<br />
+
+Por
+Babylonia me achei...</div>
+
+<br />
+
+&#8213;Pekin &eacute; um monstro!&#8213;disse Camilloff oscillando
+reflectidamente a calva.&#8213;E agora considere, que a esta capital,
+&aacute; classe
+tartara e conquistadora que a possue, obedecem trezentos
+milh&otilde;es
+d'homens, uma ra&ccedil;a subtil, laboriosa, soffredora, prolifica,
+invasora...
+Estudam as nossas sciencias... Um calice de Medoc, Theodoro?... Teem
+uma marinha formidavel! O exercito, que <span class="pagenum">[112]</span>outr'ora
+julgava
+destro&ccedil;ar o
+estrangeiro com drag&otilde;es de papel&atilde;o d'onde sahiam
+bichas de fogo,
+tem agora tactica prussiana e espingarda d'agulha! Grave!<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E todavia, general, no meu paiz, quando, a proposito de Macau, se
+falla do Imperio Celeste, os patriotas passam os dedos pela grenha, e
+dizem negligentemente: <em>Mandamos l&aacute; cincoenta
+homens, e
+varremos a China</em>...<br />
+
+<br />
+
+A esta sandice&#8213;fez-se um silencio. E o general, depois de tossir
+formidavelmente, murmurou, com condescendencia:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Portugal &eacute; um bello paiz...<br />
+
+<br />
+
+Eu exclamei com seccura e firmeza:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; uma choldra, general.<br />
+
+<br />
+
+A generala, collocando delicadamente &aacute; borda do prato uma
+aza de frango, e limpando o dedinho, disse:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; o paiz da can&ccedil;&atilde;o de Mignon.
+&Eacute; l&aacute; que floresce a laranjeira...<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[113]</span>
+O gordo Meriskoff, doutor allem&atilde;o pela Universidade de Bonn,
+chanceller da lega&ccedil;&atilde;o, homem de poesia e de
+commentario,
+observou com respeito:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Generala, o d&ocirc;ce paiz de Mignon &eacute; a Italia:
+<em>Conheces tu a terra privilegiada onde a laranjeira
+d&aacute;
+flor</em>? O divino Goethe
+referia-se &aacute; Italia, <em>Italia mater</em>... A
+Italia
+ser&aacute; o eterno amor da
+humanidade sensivel!<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Eu prefiro a Fran&ccedil;a!&#8213;suspirou a esposa do primeiro
+secretario, uma bonecasinha sardenta, de cabello arruivascado.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ah! a Fran&ccedil;a!...&#8213;murmurou um addido, revirando um bugalho
+d'olho ternissimo.<br />
+
+<br />
+
+O gordo Meriskoff ageitou os oculos d'oiro:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A Fran&ccedil;a tem um mal, que &eacute; a Quest&atilde;o
+social...<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[114]</span> &#8213;Oh! a
+Quest&atilde;o social!&#8213;rosnou sombriamente Camilloff.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ah! a Quest&atilde;o social!...&#8213;considerou ponderosamente o
+addido.<br />
+
+<br />
+
+E discreteando com tanta sapiencia, cheg&aacute;mos por fim ao
+caf&eacute;.<br />
+
+<br />
+
+Ao descer ao jardim, a generala, apoiando-se sentimentalmente ao meu
+bra&ccedil;o, murmurou-me, junto &aacute; face:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ai, quem me dera viver n'esses paizes apaixonados, onde verdejam os
+laranjaes!...<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; l&aacute; que se ama, generala&#8213;segredei-lhe eu,
+levando-a d&ocirc;cemente para a escurid&atilde;o dos
+sycomoros...<br />
+
+<br />
+
+<h2>V</h2>
+
+<br />
+
+<span class="smallcaps">Foi</span> necessario todo
+um longo ver&atilde;o para descobrir a
+provincia onde residira o defunto Ti-Chin-F&uacute;!<br />
+
+<br />
+
+Que episodio administrativo t&atilde;o pittoresco, t&atilde;o
+chinez! O servi&ccedil;al Camillof, que passava o dia inteiro a
+percorrer os Yamens do Estado, teve de provar primeiro que o desejo de
+conhecer a morada d'um velho Mandarim n&atilde;o encobria <span class="pagenum">[116]</span>uma
+conspira&ccedil;&atilde;o
+contra a seguran&ccedil;a do Imperio; e depois foi-lhe ainda
+preciso jurar que n&atilde;o havia n'esta
+curiosidade um attentado contra os Ritos sagrados! Ent&atilde;o,
+satisfeito, o
+principe Tong permittiu que se fizesse o inquerito imperial: centenares
+d'escribas empallideceram noite e dia, de pincel na m&atilde;o,
+desenhando
+relatorios sobre papel d'arroz; mysteriosas conferencias sussurraram
+incessantemente por todas as reparti&ccedil;&otilde;es da
+Cidade Imperial, desde o Tribunal astronomico at&eacute; ao Palacio
+da Bondade Preferida; e
+uma popula&ccedil;&atilde;o de koulis transportava da
+lega&ccedil;&atilde;o russa para os kiosques da Cidade
+Interdicta, e d'ahi para o Pateo dos Archivos padiolas estalando
+ao peso de ma&ccedil;os de documentos vetustos...<br />
+
+<br />
+
+Quando Camilloff perguntava <em>pelo resultado</em>,
+vinha-lhe a resposta,
+satisfactoria <span class="pagenum">[117]</span>que
+se estavam consultando os Livros Santos de
+L&aacute;-o-Ts&eacute;, ou que se iam explorar velhos textos do
+tempo de Nor-ha-ch&uacute;.
+E para calmar a impaciencia bellica do russo, o principe Tong remettia,
+com estes recados subtis, algum substancial presente de confeitos
+recheados, ou de gomos de bamb&uacute; em calda d'assucar...<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="break">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Ora em quanto o general trabalhava com fervor para encontrar a familia
+Ti-Chin-F&uacute;,&#8213;eu ia tecendo horas de s&ecirc;da e oiro
+(assim diz um poeta japonez) aos p&eacute;s pequeninos da
+generala...<br />
+
+<br />
+
+Havia um kiosque no jardim sob os sycomoros, que se denominava,
+&aacute; maneira chineza, do <em>Repouso discreto</em>:&#8213;ao
+lado um arroio
+fresco ia cantando <span class="pagenum">[118]</span>d&ocirc;cemente
+sob uma pontesinha rustica
+pintada de
+c&ocirc;r de rosa. As paredes eram apenas um gradeado de
+bamb&uacute; fino forrado de
+s&ecirc;da c&ocirc;r de ganga: o sol, passando
+atrav&eacute;s d'ellas, fazia uma luz
+sobrenatural de opala desmaiada. Ao centro afofava-se um divan de
+s&ecirc;da
+branca, d'uma poesia de nuvem matutina, attrahente como um leito
+nupcial. Aos cantos,
+em ricas jarras transparentes da &eacute;poca de Yeng, erguiam-se,
+na sua gentileza aristocratica, lirios escarlates do Jap&atilde;o.
+Todo o
+soalho estava recoberto d'esteiras finas de Nankin; e junto
+&aacute;
+janella rendilhada, sobre um airoso pedestal de sandalo, pousava aberto
+ao alto
+um leque formado de laminas de crystal separadas, que a aragem entrando
+fazia vibrar, n'uma modula&ccedil;&atilde;o melancolica e
+terna.<br />
+
+<br />
+
+As manh&atilde;s do fim d'agosto em <span class="pagenum">[119]</span>Pekin
+s&atilde;o muito
+suaves; j&aacute; erra no ar um enternecimento outonal. A essa hora
+o conselheiro Meriskoff, os officiaes da lega&ccedil;&atilde;o,
+estavam sempre na
+chancellaria <em>fazendo a mala</em> para S. Petersburgo.<br />
+
+<br />
+
+Eu ent&atilde;o, de leque na m&atilde;o, pisando subtilmente na
+ponta das babouches de setim as ruasinhas areadas do jardim, ia
+entreabrir a porta do <em>Repouso
+discreto</em>:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mimi?<br />
+
+<br />
+
+E a voz da generala respondia, suave como um beijo:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;<em>All right</em>...<br />
+
+<br />
+
+Como ella era linda vestida de dama chineza! Nos seus cabellos
+levantados alvejavam fl&ocirc;res de pecegueiro; e as sobrancelhas
+pareciam mais puras e negras avivadas a tinta de Nankin. A camisinha de
+gaze, bordada <span class="pagenum">[120]</span>a
+soutache de filigrana d'oiro, collava-se aos seus seios
+pequeninos e direitos: vastas, f&ocirc;fas cal&ccedil;as de
+foulard c&ocirc;r de <em>c&ocirc;xa de Nympha</em>,
+que lhe davam uma
+gra&ccedil;a de serralho, recahiam sobre
+o tornoz&ecirc;lo fino, coberto de meia de seda amarella:&#8213;e apenas
+tres dedos da minha m&atilde;o cabiam na sua chinelinha...<br />
+
+<br />
+
+Chamava-se Vladimira; nascera ao p&eacute; de Nidji-Novogorod; e
+f&ocirc;ra educada por uma tia velha que admirava Rousseau, lia
+Faublas, usava o cabello empoado, e parecia a grossa lithographia
+cossaca d'uma dama galante de Versalhes...<br />
+
+<br />
+
+O sonho de Vladimira era habitar Paris; e fazendo ferver delicadamente
+as folhas de ch&aacute;, pedia-me historias ladinas de <em>Cocottes</em>,
+e dizia-me o seu culto por Dumas filho...<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[121]</span>
+Eu arrega&ccedil;ava-lhe a larga manga do casabeque de
+s&ecirc;da c&ocirc;r de folha morta, e ia fazendo viajar os
+meus labios devotos pela pelle fresca dos seus bellos
+bra&ccedil;os;&#8213;e depois sobre o divan,
+enla&ccedil;ados, peito contra peito, n'um extasi mudo, sentiamos
+as laminas de crystal resoar eoliamente, as
+p&ecirc;gas azues esvoa&ccedil;arem pelos platanos, o fugitivo
+rhythmo do arroio corrente...<br />
+
+<br />
+
+Os nossos olhos humedecidos encontravam &aacute;s vezes um quadro
+de setim preto, por cima do divan, onde em caracteres chinezes se
+desenrolavam senten&ccedil;as do Livro Sagrado de Li-Num
+&laquo;sobre os
+deveres das esposas&raquo;. Mas nenhum de n&oacute;s percebia o
+chinez... E no silencio os nossos
+beijos recome&ccedil;avam, espa&ccedil;ados, soando
+d&ocirc;cemente, e comparaveis (na lingua florida <span class="pagenum">[122]</span>d'aquelles
+paizes) a perolas que cahem uma a uma sobre uma
+bacia de prata...&#8213;Oh suaves s&eacute;stas dos jardins de Pekin,
+onde
+estaes v&oacute;s? Onde estaes, folhas mortas dos lirios escarlates
+do
+Jap&atilde;o?...<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="break">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Uma manh&atilde; Camilloff entrando na chancellaria, onde eu fumava
+o cachimbo d'amizade de companhia com Meriskoff, atirou o seu enorme
+sabre para um
+canap&eacute;, e contou-nos radiante as noticias que lhe dera o
+penetrante principe Tong.&#8213;Descobrira-se emfim que um opulento
+Mandarim, de nome Ti-Chin-F&uacute;, vivera outr'ora nos confins da
+Mongolia, na
+villa de Tien-H&oacute;! Tinha morrido subitamente: e a sua larga
+descendencia residia l&aacute;, em miseria, n'um casebre vil...<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[123]</span>
+Esta descoberta, &eacute; certo, n&atilde;o f&ocirc;ra
+devida &aacute; sagacidade da burocracia imperial&#8213;mas fizera-a um
+astrologo do templo de Faqua, que durante vinte noites
+folhe&aacute;ra no c&eacute;o o luminoso archivo
+dos astros...<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Theodoro, ha-de ser o seu homem!&#8213;exclamou Camilloff.<br />
+
+<br />
+
+E Meriskoff repetiu, sacudindo a cinza do cachimbo:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ha-de ser o seu homem, Theodoro!<br />
+
+<br />
+
+&#8213;O meu homem...&#8213;murmurei sombriamente.<br />
+
+<br />
+
+Era talvez o <em>meu homem</em>, sim! Mas n&atilde;o
+me seduzia ir
+procurar o <em>meu homem</em> ou a sua familia, na
+monotonia d'uma caravana,
+por essas desoladas extremidades da China!... Depois, desde que
+cheg&aacute;ra a Pekin, eu n&atilde;o torn&aacute;ra a
+avistar a f&oacute;rma
+<span class="pagenum">[124]</span>odiosa de
+Ti-Chin-F&uacute; e do seu papagaio. A Consciencia era
+dentro em mim como uma pomba adormecida. Certamente,
+o alto esfor&ccedil;o de me ter arrancado &aacute;s
+do&ccedil;uras do <em>boulevard</em> e do Loreto, de
+ter sulcado os mares
+at&eacute; ao Imp&eacute;rio do Meio,
+parecera &aacute; Eterna Equidade uma
+expia&ccedil;&atilde;o sufficiente e uma
+peregrina&ccedil;&atilde;o reparadora. Certamente
+Ti-Chin-F&uacute;, acalmado, recolhera-se com o seu
+papagaio &aacute; sempiterna Immobilidade... Para que iria eu,
+pois, a
+Tien-H&oacute;? Porque n&atilde;o ficaria alli, n'aquelle
+amavel Pekin, comendo nenufares em calda d'assucar, abandonando-me
+&aacute;s somnolencias amorosas do
+<em>Repouso discreto</em>, e pelas tardes azuladas, dando o
+meu passeio pelo
+bra&ccedil;o do bom Meriskoff, nos terra&ccedil;os de jaspe da
+Purifica&ccedil;&atilde;o ou sob os cedros do Templo do
+C&eacute;o?...<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[125]</span>
+Mas j&aacute; o zeloso Camilloff, de lapis na m&atilde;o, ia
+marcando no mappa o meu itiner&aacute;rio para Tien-H&oacute;!
+E mostrando-me, n'um
+desagradavel entrela&ccedil;amento, sombras de montes, linhas
+tortuosas de rios,
+esfumados de lag&ocirc;as:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Aqui est&aacute;! O meu hospede sobe at&eacute;
+Ni-ku-h&eacute;, na margem do Pei-H&oacute;... D'ahi, em barcos
+chatos vai a My-yun. Boa cidade, ha l&aacute; um
+Buddha vivo... D'ahi, a cavallo, segue at&eacute; &aacute;
+fortaleza
+de Ch&eacute;-hia. Passa a grande muralha, famoso
+espect&aacute;culo!... Descan&ccedil;a
+no forte de Ku-pi-h&oacute;. P&oacute;de l&aacute;
+ca&ccedil;ar a gazella. Soberbas
+gazellas... E com dois dias de caminhada est&aacute; em
+Tien-H&oacute;... Brilhante, hein?...
+Quando quer partir? &Aacute;manh&atilde;?...<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Aacute;manh&atilde;&#8213;rosnei, tristonho.<br />
+
+<br />
+
+Pobre generala! N'essa noite, em <span class="pagenum">[125]</span>quanto
+Meriskoff, ao fundo da sala,
+fazia com tres officiaes da embaixada o seu <em>whist</em>
+sacramental; e
+Camilloff, ao canto do soph&aacute;, de bra&ccedil;os cruzados,
+solemne como n'uma poltrona do Congresso de Vienna, dormia de bocca
+aberta;&#8213;ella
+sentou-se ao piano. Eu ao lado, na attitude d'um Lara, devastado pela
+fatalidade,
+retorcia lugubremente o bigode. E a d&ocirc;ce creatura, entre dois
+gemidos do teclado, d'uma saudade penetrante, cantou revirando para mim
+os seus olhos rebrilhantes e humidos:<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry">L'oiseau s'envole,<br />
+
+L&aacute; bas,
+l&aacute; bas!...<br />
+
+L'oiseau s'envole...<br />
+
+Ne
+revient pas...</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;A ave ha-de voltar ao ninho,&#8213;murmurei eu enternecido.<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[127]</span>
+E, afastando-me a esconder uma lagrima, ia resmungando furioso:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Canalha de Ti-Chin-F&uacute;! Por tua causa! Velho malandro!
+Velho garoto!...<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="break">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Ao outro dia l&aacute; vou para Tien-H&oacute;&#8213;com o
+respeitoso interprete S&aacute;-t&oacute;, uma longa fila de
+carretas, dois cossacos, toda uma popula&ccedil;a de
+koulis.<br />
+
+<br />
+
+Ao deixar a muralha da cidade tartara, seguimos muito tempo ao comprido
+dos jardins sagrados que orlam o templo de Confucio.<br />
+
+<br />
+
+Era no fim do outono; j&aacute; as folhas tinham amarellecido; uma
+do&ccedil;ura tocante errava no ar...<br />
+
+<br />
+
+Dos kiosques santos sahia uma susurra&ccedil;&atilde;o de
+canticos, de nota monotona <span class="pagenum">[128]</span>e
+triste. Pelos terra&ccedil;os, enormes
+serpentes, veneradas como
+deuses, iam-se arrastando, j&aacute; entorpecidas da friagem. E
+aqui e
+al&eacute;m, ao passar, avistavamos buddhistas decrepitos,
+s&ecirc;ccos como pergaminhos e
+nodosos como raizes, encruzados no ch&atilde;o sob os sycomoros,
+n'uma
+immobilidade de idolos, contemplando incessantemente o umbigo,
+&aacute; espera da
+perfei&ccedil;&atilde;o do Nirvana...<br />
+
+<br />
+
+E eu ia pensando, com uma tristeza t&atilde;o pallida como aquelle
+mesmo c&eacute;o d'outubro asiatico, nas duas lagrimas redondinhas
+que vira brilhar,
+&aacute; despedida, nos olhos verdes da generala!...<br />
+
+<br />
+
+<h2>VI</h2>
+
+<br />
+
+<span class="smallcaps">J&aacute;</span> a tarde
+declinava, e o sol descia vermelho como um escudo
+de metal candente, quando cheg&aacute;mos a Tien-H&oacute;.<br />
+
+<br />
+
+As muralhas negras da villa erguem-se, do lado do sul, ao p&eacute;
+d'uma torrente que ruge entre rochas: para o nascente, a planicie
+livida e poeirenta <span class="pagenum">[130]</span>estende-se
+at&eacute; a um grupo escuro de
+collinas onde
+branqueja um vasto edificio&#8213;que &eacute; uma Miss&atilde;o
+Catholica. E
+para al&eacute;m, para o extremo norte s&atilde;o as eternas
+montanhas r&ocirc;xas da Mongolia,
+suspensas sempre no ar como nuvens.<br />
+
+<br />
+
+Aloj&aacute;mo-nos n'um barrac&atilde;o fetido, intitulado
+<em>Estalagem da Consola&ccedil;&atilde;o terrestre</em>.
+Foi-me
+reservado o quarto nobre, que abria sobre uma
+galeria fixada em estacas; era ornado estranhamente de
+drag&otilde;es de
+papel recortado, suspensos por cordeis do travejamento do tecto;
+&aacute;
+menor aragem aquella legi&atilde;o de monstros fabulosos oscillava
+em
+cadencia, com um rumor secco de folhagem, como tomada de vida
+sobrenatural e
+grotesca.<br />
+
+<br />
+
+Antes que escurecesse fui v&ecirc;r com S&aacute;-t&oacute;
+a villa: mas bem depressa <span class="pagenum">[131]</span>fugi
+ao fedor abominavel das viellas: tudo se
+me afigurou ser negro&#8213;os casebres, o ch&atilde;o barrento, os
+enxurros, os c&atilde;es
+famintos, a popula&ccedil;a abjecta... Recolhi ao albergue&#8213;onde
+arreeiros mongoes e
+crian&ccedil;as piolhosas me miravam com assombro.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Toda esta gente me parece suspeita,
+S&aacute;-t&oacute;&#8213;disse eu, franzindo a testa.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;-Tem Vossa Honra raz&atilde;o. &Eacute; uma ral&eacute;!
+Mas n&atilde;o ha perigo: eu matei, antes de partirmos, um gallo
+negro, e a deusa Kaonine deve estar contente. P&oacute;de Vossa
+Honra dormir ao abrigo dos maus espiritos... Quer
+Vossa Honra o ch&aacute;?...<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Traze, S&aacute;-t&oacute;.<br />
+
+<br />
+
+Bebido o ch&aacute;, convers&aacute;mos do <em>grande
+plano</em>: na
+manh&atilde; seguinte eu a levar a alegria &aacute; triste
+choupana <span class="pagenum">[132]</span>da viuva
+de
+Ti-Chin-F&uacute;, annunciando-lhe os milh&otilde;es que lhe
+dava, depositados
+j&aacute; em Pekin: depois, de accordo com o Mandarim governador,
+fariamos uma copiosa distribui&ccedil;&atilde;o de arroz pela
+popula&ccedil;a: e
+&aacute; noite illumina&ccedil;&otilde;es,
+dan&ccedil;as como n'uma gala publica...<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Que te parece, S&aacute;-t&oacute;?<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Nos labios de Vossa Honra habita a sabedoria de Confucio... Vai ser
+grande! Vai ser grande!<br />
+
+<br />
+
+Como vinha can&ccedil;ado, bem c&ecirc;do comecei a bocejar, e
+estirei-me sobre o estrado de tijolo aquecido que serve de leito nas
+estalagens da China; enrolado na minha pelli&ccedil;a, fiz o signal
+da cruz, e adormeci
+pensando nos bra&ccedil;os brancos da generala, nos seus olhos
+verdes de
+sereia...<br />
+
+<br />
+
+Era talvez j&aacute; meia noite quando <span class="pagenum">[133]</span>despertei
+a um rumor lento e
+surdo que envolvia o barrac&atilde;o&#8213;como de forte vento n'um
+arvoredo, ou
+uma maresia grossa batendo um pared&atilde;o. Pela galeria aberta,
+o luar
+entrava no quarto, um luar triste d'outono asiatico, dando aos
+drag&otilde;es
+suspensos do tecto f&oacute;rmas, semelhan&ccedil;as
+chimericas...<br />
+
+<br />
+
+Ergui-me, j&aacute; nervoso&#8213;quando um vulto, alto e inquieto,
+appareceu na facha luminosa do luar...<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Sou eu, Vossa Honra!&#8213;murmurou a voz apavorada de
+S&aacute;-t&oacute;.<br />
+
+<br />
+
+E logo, agachando-se ao p&eacute; de mim, contou-me n'um fluxo de
+palavras roucas a sua afflic&ccedil;&atilde;o:&#8213;emquanto eu
+dormia,
+espalh&aacute;ra-se pela villa que um estrangeiro, o <em>Diabo
+estrangeiro</em>, cheg&aacute;ra com bagagens
+carregadas de thesouros... J&aacute; desde o come&ccedil;o da
+noite elle
+tinha entrevisto <span class="pagenum">[134]</span>faces
+agudas, d'olho voraz, rondando o
+barrac&atilde;o, como chacaes
+impacientes... E orden&aacute;ra logo aos koulis que
+entrincheirassem a porta com os
+carros das bagagens, formados em semi-circulo &aacute; velha
+maneira
+tartara... Mas pouco a pouco a malta crescera... Agora vinha
+d'espreitar por um postigo: e era em roda da estalagem toda a
+popula&ccedil;a de
+Tien-H&oacute;, rosnando sinistramente... A deusa Kaonine
+n&atilde;o se satisfizera com o
+sangue do gallo preto!... Al&eacute;m d'isso elle vira &aacute;
+porta
+d'um Pagode uma cabra negra recuar!... A noite ser&iacute;a de
+terrores!... E sua mulher,
+o osso do seu osso, que estava t&atilde;o longe, em Pekin!...<br />
+
+<br />
+
+&#8213;E agora, S&aacute;-t&oacute;?&#8213;perguntei eu.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Agora... Vossa Honra! Agora...<br />
+
+<br />
+
+Calou-se: e a sua magra figura <span class="pagenum">[135]</span>tremia,
+aca&ccedil;apada como um
+c&atilde;o que se roja sob o a&ccedil;oite.<br />
+
+<br />
+
+Eu afastei o cobarde, e adiantei-me para a galeria. Em baixo, o muro
+fronteiro, coberto d'um alpendre, projectava uma funda sombra. Ahi com
+effeito estava uma turba negra apinhada. &Aacute;s vezes uma
+figura, rastejando, adiantava-se no espa&ccedil;o alumiado,
+espreitava,
+farejava as carretas, e sentindo a lua sobre a face, recuava vivamente,
+fundindo-se
+na escurid&atilde;o: e como o tecto do alpendre era baixo, faiscava
+um momento &aacute; luz algum ferro de lan&ccedil;a
+inclinada...<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Que querem voss&ecirc;s, canalha?&#8213;bradei eu em portuguez.<br />
+
+<br />
+
+A esta voz estrangeira um grunhido sahiu da treva; immediatamente uma
+pedra veio ao meu lado <span class="pagenum">[136]</span>furar
+o papel encerado da gelosia; depois uma
+flecha silvou, cravou-se por cima da minha cabe&ccedil;a, n'um
+barrote...<br />
+
+<br />
+
+Desci rapidamente &aacute; cozinha da estalagem. Os meus koulis,
+acocorados sobre os calcanhares, batiam o queixo n'um terror; e os dois
+cossacos que me acompanhavam, impassiveis &aacute; lareira,
+cachimbavam, com
+o sabre n&uacute; nos joelhos.<br />
+
+<br />
+
+O velho estalajadeiro d'oculos, uma av&oacute; andrajosa que eu
+vira no pateo deitando ao ar um papagaio de papel, os arreeiros
+mongoes, as
+crian&ccedil;as piolhosas, esses tinham desapparecido;
+s&oacute; fic&aacute;ra
+um velho, bebedo d'opio, cahido a um canto como um fardo.
+F&oacute;ra ouvia-se
+j&aacute; a multid&atilde;o vociferar.<br />
+
+<br />
+
+Interpellei ent&atilde;o S&aacute;-t&oacute;, que quasi
+<span class="pagenum">[137]</span>desmaiava,
+arrimado a uma viga: n&oacute;s estavamos sem armas; os
+dois cossacos, s&oacute;s, n&atilde;o
+podiam repellir o assalto: era necessario pois ir acordar o Mandarim
+governador, revelar-lhe que eu era um amigo de Camilloff, um conviva do
+principe Tong, intimal-o a que viesse dispersar a turba, manter a lei
+santa da hospitalidade!...<br />
+
+<br />
+
+Mas S&aacute;-t&oacute; confessou-me, n'uma voz debil como um
+s&ocirc;pro, que o Governador de certo &eacute; quem estava
+dirigindo o assalto! Desde as
+authoridades at&eacute; aos mendigos, a fama da minha riqueza, a
+legenda das carretas
+carregadas d'oiro inflamm&aacute;ra todos os appetites!... A
+prudencia
+ordenava, como um mandamento santo, que abandonassemos parte dos
+thesouros, mulas, caixas
+de comestiveis...<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[138]</span> &#8213;E ficar aqui,
+n'esta ald&ecirc;a maldita, sem camisas, sem
+dinheiro e sem mantimentos?...<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mas com a rica vida, Vossa Honra!<br />
+
+<br />
+
+Cedi. E ordenei a S&aacute;-t&oacute; que fosse
+prop&ocirc;r &aacute; turba uma copiosa
+distribui&ccedil;&atilde;o de sapeques,&#8213;se ella consentisse em
+recolher aos seus casebres, e respeitar em n&oacute;s os hospedes
+enviados por
+Buddha...<br />
+
+<br />
+
+S&aacute;-t&oacute; subiu &aacute; sacada da galeria, a
+tremer; e rompeu logo a arengar &aacute; malta, bracejando,
+atirando as palavras com a violencia d'um
+c&atilde;o que ladra. Eu abrira j&aacute; uma maleta, e ia-lhe
+passando cartuchos,
+saccos de sapeques&#8213;que elle arremessava aos punhados com um gesto de
+semeador...
+Em baixo havia por momentos um tumulto furioso ao chover dos metaes;
+<span class="pagenum">[139]</span>depois um lento
+suspiro de gula satisfeita; e logo um silencio, n'uma
+suspens&atilde;o <em>de quem espera mais</em>...<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mais!&#8213;murmurava S&aacute;-t&oacute;, voltando-se para mim
+ancioso.<br />
+
+<br />
+
+Eu, indignado, l&aacute; lhe dava outros cartuchos, mais
+r&ocirc;los, m&oacute;lhos de moedas de meio real enfiadas em
+cordeis... J&aacute; a maleta
+estava vazia. A turba rugia, insaciada.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mais, Vossa Honra!&#8213;supplicou S&aacute;-t&oacute;.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o tenho mais, creatura! O resto est&aacute; em
+Pekin!<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Oh Buddha Santo! Perdidos! Perdidos!&#8213;chamou
+S&aacute;-t&oacute;, abatendo-se sobre os joelhos.<br />
+
+<br />
+
+A popula&ccedil;a, calada, esperava ainda. De repente, uma
+ulula&ccedil;&atilde;o selvagem rasgou o ar. E eu senti aquella
+massa avida arremessar-se sobre as <span class="pagenum">[140]</span>carretas
+que defendiam a porta em
+semi-circulo: ao choque todo o madeiramento da <em>Estalagem da
+Consola&ccedil;&atilde;o
+terrestre</em> rangeu e oscillou...<br />
+
+<br />
+
+Corri &aacute; varanda. Em baixo era um tropel desesperado em torno
+dos carros derrubados: os machados reluziam cahindo sobre a tampa dos
+caixotes: o coiro das malas abria-se fendido &aacute; faca por
+m&atilde;os
+innumeraveis: no alpendre, os cossacos debatiam-se, aos urros, sob o
+cutelo. Apesar da lua, eu via em roda do barrac&atilde;o errarem
+tochas, n'uma
+dispers&atilde;o de fagulhas: um alarido rouco elevava-se, fazendo
+ao longe uivar os
+c&atilde;es; e de todas as viellas desembocava, corria
+popula&ccedil;a, sombras
+ligeiras, agitando chu&ccedil;os e foices recurvas...<br />
+
+<br />
+
+Subitamente, na loja terrea, ouvi o tumulto da turba que a invadia
+<span class="pagenum">[141]</span>pelas portas
+despeda&ccedil;adas: de certo me procuravam, suppondo
+que eu
+teria commigo o melhor do thesouro, pedras preciosas ou oiros... O
+terror desvairou-me. Corri a uma grade de bamb&uacute;s para o lado
+do
+pateo. Demoli-a, saltei sobre uma camada de matto grosso, n'um cheiro
+acre de immundicies. O meu poney, preso a uma trave, relinchava,
+puxando furiosamente o cabresto: arremessei-me sobre elle,
+empolguei-lhe as crinas...<br />
+
+<br />
+
+N'esse momento, do port&atilde;o da cozinha arrombada rompia uma
+horda com lanternas, lan&ccedil;as, n'um clamor de delirio. O
+poney,
+espantado, salta um regueiro; uma flecha silva a meu lado; depois um
+tijolo bate-me no hombro, outro nos rins, outro na anca do poney, outro
+mais grosso rasga-me a orelha! Agarrado desesperadamente <span class="pagenum">[142]</span>&aacute;s
+crinas,
+archejando, com a lingua de f&oacute;ra, o sangue a gottejar da
+orelha, vou
+despedido n'uma desfilada furiosa ao longo d'uma lua negra... De
+repente vejo diante de
+mim a muralha, um basti&atilde;o, a porta da villa fechada!<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o, allucinado, sentindo atraz rugir a turba, abandonado
+de todo o soccorro humano&#8213;<em>precisei de Deus</em>!
+Acreditei n'elle,
+gritei-lhe que
+me salvasse; e o meu espirito ia tumultuosamente arrebatando, para lhe
+offerecer, fragmentos de ora&ccedil;&otilde;es, de
+<em>Salv&egrave;-Rainhas</em>, que ainda me jaziam no
+fundo da memoria...
+Voltei-me sobre a anca do potro: d'uma esquina ao longe surgiu um
+fogacho de tochas: era a corja!... Larguei
+de golpe ao comprido da alta muralha que corria ao meu lado como uma
+vasta
+fita negra <span class="pagenum">[143]</span>furiosamente
+desenrolada: de subito avisto uma brecha, um
+boqueir&atilde;o erri&ccedil;ado d'esgalhos de
+sar&ccedil;as, e f&oacute;ra a planicie que sob a lua parecia
+como uma vasta agua dormente! Lancei-me para l&aacute;,
+desesperadamente, sacudido aos gal&otilde;es do potro... E muito
+tempo galopei no descampado.<br />
+
+<br />
+
+De repente o poney, eu, rol&aacute;mos com um baque surdo. Era uma
+lag&ocirc;a. Entrou-me pela bocca agua putrida, e os p&eacute;s
+enla&ccedil;aram-se-me nas raizes molles dos nenufares... Quando me
+ergui, me firmei no
+s&oacute;lo,&#8213;vi o poney, correndo, muito longe, como uma sombra,
+com os estribos ao vento...<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o comecei a caminhar por aquella solid&atilde;o,
+enterrando-me nas terras lodosas, cortando atrav&eacute;s do matto
+espinhoso. O sangue da
+orelha ia-me pingando sobre o hombro: &aacute; <span class="pagenum">[144]</span>frialdade agreste, o
+fato
+encharcado regelava-se-me sobre a pelle: e por vezes, na sombra,
+parecia-me
+v&ecirc;r luzir olhos de feras.<br />
+
+<br />
+
+Emfim, encontrei um recinto de pedras soltas onde jazia, sob um arbusto
+negro, um d'aquelles mont&otilde;es d'esquifes amarellos que os
+chinezes abandonam nos campos, e onde apodrecem corpos. Abati-me sobre
+um
+caix&atilde;o, prostrado: mas um cheiro abominavel pesava no ar: e
+ao apoiar-me sentia
+o viscoso d'um liquido que escorria pelas fendas das
+t&aacute;buas... Quiz fugir. Mas os joelhos negavam-se, tremiam-me:
+e arvores, rochas, hervas
+altas, todo o horisonte come&ccedil;ou a girar em torno de mim como
+um disco muito rapido. Faiscas sanguineas vibravam-me diante dos olhos:
+e senti-me como cahindo de muito alto, <span class="pagenum">[145]</span>devagar,
+&aacute; maneira
+d'uma penna que desce...<br />
+
+<br />
+
+Quando recuperei a consciencia estava estirado n'um banco de pedra, no
+pateo d'um vasto edificio semelhante a um convento, que um alto
+silencio envolvia. Dois padres lazaristas lavavam-me devagar a orelha.
+Um ar fresco circulava; a roldana d'um po&ccedil;o rangia
+lentamente; um
+sino tocava a matinas. Ergui os olhos, avistei uma fachada branca com
+janellinhas gradeadas e uma cruz no topo: ent&atilde;o, vendo
+n'aquella paz de
+claustro catholico como um recanto da patria recuperada, o abrigo e a
+consola&ccedil;&atilde;o, rolaram-me das palpebras duas
+lagrimas mudas.<br />
+
+<br />
+
+<h2>VII</h2>
+
+<br />
+
+<span class="smallcaps">De</span> madrugada, dois
+padres lazaristas, dirigindo-se a
+Tien-H&oacute;, tinham-me encontrado desmaiado no caminho. E, como
+disse o alegre padre Loriot, &laquo;era j&aacute;
+tempo&raquo;; porque em redor do meu
+corpo immovel um negro semi-circulo d'esses grossos <span class="pagenum">[148]</span>e soturnos corvos
+da Tartaria
+j&aacute; me estava contemplando com gula...<br />
+
+<br />
+
+Trouxeram-me sem demora para o convento n'uma padiola,&#8213;e grande foi o
+regosijo da communidade quando soube que eu era um latino, um
+christ&atilde;o e um subdito dos Reis Fidelissimos. O convento
+f&oacute;rma alli o
+centro d'um pequeno burgo catholico, apinhado em torno da
+maci&ccedil;a
+residencia como uma casaria de servos &aacute; base d'um castello
+feudal. Existe desde
+os primeiros missionarios que percorreram a Manchouria. Porque
+n&oacute;s
+estamos aqui nos confins da China: para al&eacute;m j&aacute;
+&eacute; a
+Mongolia, a Terra das Hervas, immenso prado verde-escuro, leziria sem
+fim, colorida aqui e al&eacute;m do
+vivo das fl&ocirc;res silvestres...<br />
+
+<br />
+
+Ahi jaz a vasta planicie dos Nomadas. Da minha janella eu via negrejar
+<span class="pagenum">[149]</span>os circulos de
+tendas cobertas de feltro, ou de pelles de carneiro; e
+por vezes assistia &aacute; partida d'uma tribu, em filas de longas
+caravanas, levando os seus rebanhos para o oeste...<br />
+
+<br />
+
+O superior lazarista era o excellente padre Giulio. A longa permanencia
+entre as ra&ccedil;as amarellas torn&aacute;ra-o quasi um
+chinez: quando eu o encontrava no claustro com a sua tunica
+r&ocirc;xa, o rabicho
+longo, a barba veneravel, agitando devagar um enorme leque&#8213;parecia-me
+algum
+s&aacute;bio letrado mandarim commentando mentalmente, na paz de um
+templo, o Livro sacro de Ch&uacute;. Era um santo: mas o cheiro
+d'alho que
+exhalava&#8213;afastaria as almas mais doloridas e precisadas de
+consola&ccedil;&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+Conservo suave a memoria dos dias alli passados! O meu quarto, caiado
+de branco, com uma cruz negra, tinha <span class="pagenum">[150]</span>um
+recolhimento de cella. Acordava
+sempre ao toque de matinas. Em respeito aos velhos missionarios, vinha
+ouvir a missa &aacute; capella: e enternecia-me, alli,
+t&atilde;o longe da patria catholica, n'aquellas terras mongolicas,
+v&ecirc;r &aacute;
+clara luz da manh&atilde; a casula do padre, com a sua cruz
+bordada, curvando-se diante do altar, e
+sentir ciciar no fresco silencio&#8213;os <em>Dominus vobiscum</em>,
+e os <em>Cum
+spiritu tuo</em>...<br />
+
+<br />
+
+De tarde ia &aacute; esc&oacute;la, admirar os pequenos
+chinezes declinando <em>Hora, Horoe</em>... E depois do
+refeitorio, passeando
+no claustro, escutava historias de longiquas miss&otilde;es, de
+viagens apostolicas ao
+<em>Paiz das Hervagens</em>, as pris&otilde;es
+supportadas, as marchas, os
+perigos,
+as Chronicas heroicas da F&eacute;...<br />
+
+<br />
+
+Eu por mim n&atilde;o contei no convento as minhas aventuras
+phantasticas: <span class="pagenum">[151]</span>dei-me
+como um <em>touriste</em> curioso,
+tomando apontamentos
+pelo Universo.
+E esperando que a minha orelha cicatrizasse, abandonava-me, n'uma
+lassid&atilde;o d'alma, &aacute;quella paz de mosteiro...<br />
+
+<br />
+
+Mas estava decidido a deixar bem depressa a China, esse Imperio
+barbaro, que eu odiava agora, prodigiosamente!<br />
+
+<br />
+
+Quando me punha a pensar que viera desde os confins do Occidente, para
+trazer a uma provincia chineza a abundancia dos meus
+milh&otilde;es, e que apenas l&aacute; cheg&aacute;ra
+f&ocirc;ra logo saqueado,
+apedrejado, fr&eacute;chado&#8213;enchia-me um rancor surdo, gastava
+horas agitando-me pelo quarto, a revolver coisas feras que tentaria
+para me vingar do Imperio do Meio!<br />
+
+<br />
+
+Retirar-me com os meus milh&otilde;es era a desforra mais pratica,
+mais facil! <span class="pagenum">[152]</span>Demais,
+a minha id&eacute;a de resuscitar
+artificialmente, para bem
+da China, a personalidade de Ti-Chin-F&uacute;, parecia-me agora
+absurda, d'uma
+insensatez de sonho. Eu n&atilde;o comprehendia a lingua, nem os
+costumes, nem
+os ritos, nem as leis, nem os sabios d'aquella ra&ccedil;a: que
+vinha pois
+fazer alli, sen&atilde;o exp&ocirc;r-me, pelo apparato da minha
+riqueza,
+aos assaltos d'um povo, que, ha quarenta e quatro seculos, &eacute;
+pirata nos mares e traz
+as terras varridas de rapina!...<br />
+
+<br />
+
+Al&eacute;m d'isso, Ti-Chin-F&uacute; e o seu papagaio
+continuavam invisiveis, remontados de certo ao C&eacute;o chinez
+dos Av&oacute;s: e
+j&aacute; o aplacamento do remorso visivel diminuira em mim
+singularmente o desejo da
+expia&ccedil;&atilde;o...<br />
+
+<br />
+
+Sem duvida o velho letrado estava fatigado de deixar essas
+regi&otilde;es ineffaveis para se vir estirar pelos meus <span class="pagenum">[153]</span>moveis.
+Vira os meus
+esfor&ccedil;os, o meu desejo de ser util &aacute; sua prole,
+&aacute; sua
+provincia, &aacute; sua ra&ccedil;a&#8213;e, satisfeito,
+accommod&aacute;ra-se regaladamente para a sua
+s&eacute;sta eterna. Eu nunca mais avistaria a sua pan&ccedil;a
+amarella!...<br />
+
+<br />
+
+E ent&atilde;o mordia-me o appetite de me achar j&aacute;
+tranquillo e livre, no pacifico gozo do meu oiro, ao Loreto ou no
+<em>boulevard</em>, sorvendo o mel &aacute;s
+fl&ocirc;res da
+Civilisa&ccedil;&atilde;o...<br />
+
+<br />
+
+Mas a viuva de Ti-Chin-F&uacute;, as mimosas senhoras da sua
+descendencia, os netos pequeninos?... Iria eu deixal-os barbaramente,
+na fome e no frio,
+pelas viellas negras de Tien-H&oacute;? N&atilde;o. Esses
+n&atilde;o eram culpados das pedradas que me atir&aacute;ra a
+popula&ccedil;a. E eu
+christ&atilde;o, asylado n'um convento christ&atilde;o, tendo
+&aacute; cabeceira da cama o Evangelho,
+cercado d'existencias que eram <span class="pagenum">[154]</span>incarna&ccedil;&otilde;es
+de
+Caridade&#8213;n&atilde;o
+podia partir do Imperio sem restituir &aacute;quelles que
+despoj&aacute;ra, a abundancia,
+esse conforto honesto que recommenda o Classico da Piedade Filial...<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o escrevi a Camilloff. Contava-lhe a minha abjecta fuga,
+sob as pedras da turba chineza; o abrigo christ&atilde;o que me
+dera a
+Miss&atilde;o; o vivaz desejo de partir do Imperio do Meio.
+Pedia-lhe que remettesse elle
+&aacute; viuva de Ti-Chin-F&uacute; os milh&otilde;es
+depositados por
+mim em casa do mercador Tsing-F&oacute;, na avenida de Cha-Coua, ao
+lado do arco triumphal
+de Tong, junto ao templo da deusa Kaonine.<br />
+
+<br />
+
+O alegre padre Loriot, que ia a Pekin em miss&atilde;o, levou esta
+carta, que eu lacr&aacute;ra com o s&ecirc;llo do convento&#8213;uma
+cruz
+sahindo d'um cora&ccedil;&atilde;o em chammas...<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[155]</span>
+Os dias passaram. As primeiras neves alvejaram nas montanhas
+septentrionaes da Manchouria: e eu occupava-me a ca&ccedil;ar a
+gazella pela Terra das Hervas... Horas energicas e fortemente
+v&iacute;vidas, as
+d'essas manh&atilde;s, quando eu largava &aacute; desfilada, no
+grande
+ar agreste da planicie, entre os monteadores mongolicos que, com um
+grito ululado e vibrante, batiam o matagal &aacute;
+lan&ccedil;ada! Por vezes, uma
+gazella saltava: e, d'orelha baixa, estirada e fina, partia no fio do
+vento... Soltavamos o
+falc&atilde;o que voava sobre ella, d'aza serena, dando-lhe a
+espa&ccedil;os
+regulares, com toda a for&ccedil;a do bico recurvo, uma picada viva
+no craneo. E
+iamo'l-a abater, por fim, &aacute; beira d'alguma agua morta,
+coberta de
+nenufares... Ent&atilde;o os c&atilde;es negros da Tartaria
+amontoavam-se-lhe sobre o ventre, e, com as patas no sangue, iam-lhe <span class="pagenum">[156]</span>a
+ponta de dente, desfiando devagar as entranhas...<br />
+
+<br />
+
+Uma manh&atilde; o leigo da portaria avistou emfim o alegre padre
+Loriot, galgando &aacute; lufa-lufa pelo caminho ingreme do burgo,
+de volta
+de Pekin, com a sua mochila ao hombro, e uma criancinha nos
+bra&ccedil;os:
+tinha-a encontrado abandonada, nuasinha, morrendo &aacute; beira
+d'um
+caminho: baptis&aacute;ra-a logo n'um regato com o nome de
+<em>Bem-Achado</em>: e
+alli a trazia, todo enternecido, arquejando de tanto que
+estug&aacute;ra o
+passo, para dar depressa &aacute; creaturinha esfomeada o bom leite
+da cabra do
+convento...<br />
+
+<br />
+
+Depois d'abra&ccedil;ar os religiosos, d'enxugar as grossas bagas
+de suor, tirou da algibeira dos cal&ccedil;&otilde;es um
+enveloppe com o
+sello da aguia russa:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Eacute; isto que manda o pap&aacute; Camilloff, <span class="pagenum">[157]</span>amigo
+Theodoro. Ficou optimo. E a senhora tambem... Tudo rijo.<br />
+
+<br />
+
+Corri a um recanto do claustro a l&ecirc;r as duas folhas de prosa.
+Meu bom Camilloff, de calva severa e olho de mocho! Como elle alliava
+t&atilde;o originalmente ao senso fino d'um habil de Chancellaria
+as caturrices picarescas de diplomata bufo! A carta dizia assim:<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="signature">&laquo;Amigo, hospede, e
+carissimo Theodoro,</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;&Aacute;s primeiras linhas
+da sua carta fic&aacute;mos consternados! Mas logo as
+seguintes nos deram um grato
+allivio, por nos certificar que estava
+com esses santos padres da
+Miss&atilde;o christ&atilde;... Eu parti para o Yamen
+imperial a fazer uma severa
+reclama&ccedil;&atilde;o ao principe Tong, sobre o
+escandalo de
+Tien-H&oacute;. Sua excellencia <span class="pagenum">[158]</span>mostrou
+um jubilo
+desordenado! Porque, se
+lamenta como particular a offensa, o roubo
+e as pedradas que o meu
+hospede soffreu, como ministro do Imperio
+v&ecirc; ahi a
+d&ocirc;ce opportunidade d'extorquir &aacute; villa de
+Tien-H&oacute;, em multa,
+em castigo da injuria
+feita a um estrangeiro, a vantajosa
+somma de <em>trezentos
+mil
+francos</em>, ou, segundo os calculos do nosso
+sagaz Meriskoff, <em>cincoenta
+e
+quatro contos de reis</em> na moeda do
+seu bello paiz! &Eacute;,
+como disse Meriskoff, um excellente resultado
+para o Erario imperial, e fica
+assim a sua orelha copiosamente
+vingada... Aqui,
+come&ccedil;am a picar os primeiros frios, e j&aacute; estamos
+usando pelles. O bom Meriskoff
+l&aacute; vai soffrendo do figado, mas a
+d&ocirc;r n&atilde;o
+lhe altera o criterio philosophico nem a s&aacute;bia
+verbosidade... Tivemos um
+grande desgosto: o lindo c&atilde;osinho da boa
+Madame <span class="pagenum">[159]</span>Tagarieff,
+a esposa do
+nosso amado secretario, o adoravel
+<em>Tu-tu</em>
+desappareceu na
+manh&atilde; de 15... Fiz, na policia, instancias
+urgentes, mas o <em>Tu-tu</em>
+n&atilde;o nos foi restituido,&#8213;e o sentimento &eacute;
+tanto maior, quanto
+&eacute; sabido que a popula&ccedil;a de Pekin aprecia
+extremamente estes
+c&atilde;esinhos, guisados em calda de assucar...
+Deu-se aqui um facto
+abominavel e de consequencias funestas: a
+ministra de Fran&ccedil;a,
+essa petulante Madame Grijon, esse <em>galho
+s&ecirc;cco</em>
+(como diz o
+nosso Meriskoff), no ultimo jantar da lega&ccedil;&atilde;o,
+deu, em desprezo de todas as
+regras internacionaes, o bra&ccedil;o, o seu
+descarnado bra&ccedil;o, e
+a sua direita &aacute; mesa a um simples addido
+inglez, lord Gordon! Que me
+diz a isto? &Eacute; crivel? &Eacute; racional? &Eacute;
+destruir a ordem social! O
+bra&ccedil;o, a direita, a um addido, um
+escossez c&ocirc;r de
+tijolo, de vidro entalado <span class="pagenum">[160]</span>no
+olho, quando havia
+presentes todos os
+embaixadores, os ministros, e eu! Isto tem
+causado, no corpo diplomatico,
+uma sensa&ccedil;&atilde;o inenarravel...
+Esperamos
+instruc&ccedil;&otilde;es dos nossos governos. Como diz
+Meriskoff, oscillando
+tristemente a
+cabe&ccedil;a&#8213;<em>&eacute; grave... &eacute; muito
+grave</em>!&#8213;O
+que prova (e ninguem o
+duvidava)
+que lord Gordon &eacute; o Benjamim do <em>galho
+s&ecirc;cco</em>.
+Que
+podrid&atilde;o! Que lodo!... A generala n&atilde;o tem passado
+bem, desde a sua partida para
+essa
+malfadada Tien-H&oacute;; o doutor Pagloff
+n&atilde;o lhe percebe o
+mal; &eacute; uma languidez, um murchar, uma saudosa
+indolencia que a conserva
+horas e horas immovel sobre o soph&aacute;, no
+<em>Pavilh&atilde;o
+do
+Repouso discreto</em>, com o olhar vago e o labio cheio de
+suspiros... Eu n&atilde;o
+me illudo: sei perfeitamente o que a mina: &eacute; a
+desgra&ccedil;ada
+doen&ccedil;a de bexiga, que lhe veio das m&aacute;s <span class="pagenum">[161]</span>aguas,
+quando estivemos na
+lega&ccedil;&atilde;o de Madrid... Seja feita a vontade do
+Senhor!... Ella pede-me para
+lhe mandar <em>un petit bonjour</em>, e
+deseja que o meu hospede
+apenas chegue a Paris, se f&ocirc;r a Paris, lhe
+remetta pela mala da Embaixada
+para S. Petersburgo (d'ahi vir&aacute; a
+Pekin) duas duzias de luvas de
+doze bot&otilde;es, numero <em>cinco e tres
+quartos</em>, da marca <em>Sol</em>,
+dos
+armazens do Louvre; assim como os
+ultimos romances de Zola,
+<span class="smallcaps">Mademoiselle de Maupin</span>
+de Gautier, e uma
+caixa de frascos de
+<em>Opoponax</em>... Esquecia-me dizer-lhe que
+mud&aacute;mos
+de padeiro: fornecemo-nos
+agora na padaria da Embaixada ingleza:
+deix&aacute;mos a da
+Embaixada franceza para n&atilde;o ter
+communica&ccedil;&otilde;es com o
+<em>galho
+s&ecirc;cco</em>... Ahi
+est&atilde;o os inconvenientes de n&atilde;o termos aqui na
+Embaixada russa uma
+padaria&#8213;apesar de tantos relatorios, tantas
+<span class="pagenum">[162]</span>
+reclama&ccedil;&otilde;es que, sobre esse ponto, tenho feito
+para a chancellaria de S.
+Petersburgo! Elles sabem
+bem que em Pekin n&atilde;o ha padarias,
+que cada
+lega&ccedil;&atilde;o tem a sua propria, como um elemento
+d'installa&ccedil;&atilde;o
+e d'influencia. Mas
+qu&ecirc;! Na c&ocirc;rte imperial desattendem-se os mais
+serios interesses da
+civilisa&ccedil;&atilde;o russa!... Creio que &eacute; tudo
+o que ha de novo em Pekin e
+nas
+lega&ccedil;&otilde;es. Meriskoff recommenda-se, e
+todos d'esta Embaixada; e
+tambem o condesinho Arthur, o Zizi da
+lega&ccedil;&atilde;o
+hespanhola, o <em>Focinho cahido</em>, e o
+Lul&uacute;; emfim todos; eu
+mais que ninguem, que me
+assigno com saudade e affei&ccedil;&atilde;o<br />
+
+<br />
+
+<div class="signature"><em>&laquo;General
+Camilloff&raquo;</em>.<br />
+
+<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+&laquo;P.S. Em quanto &aacute;
+viuva e familia de Ti-Chin-F&uacute;, houve um engano: o
+astrologo <span class="pagenum">[163]</span>do
+templo de Faqua
+equivocou-se na interpreta&ccedil;&atilde;o sideral:
+n&atilde;o &eacute;
+realmente em Tien-H&oacute; que reside essa familia... &Eacute;
+ao sul da China, na provincia
+de
+Cant&atilde;o. Mas tamb&eacute;m ha uma familia
+Ti-Chin-F&uacute; para
+al&eacute;m da Grande
+Muralha, quasi na fronteira russa, no districto
+de Ka-&oacute;-li. A ambas
+morreu o chefe, a ambas assaltou a pobreza...
+Portanto, esperando novas
+ordens, n&atilde;o levantei os dinheiros da casa
+de Tsing-F&oacute;. Esta
+recente informa&ccedil;&atilde;o mandou-m'a hoje sua
+excellencia o principe Tong,
+com uma deliciosa compota de
+calombro... Devo annunciar-lhe
+que o nosso bom S&aacute;-T&oacute; aqui
+appareceu, de volta de
+Tien-H&oacute;, com um bei&ccedil;o rachado e leves
+contus&otilde;es no
+hombro, tendo apenas salvado da bagagem saqueada uma
+lithographia de Nossa Senhora
+das D&ocirc;res, que, pela inscrip&ccedil;&atilde;o a
+tinta, vejo que pertencera a
+<span class="pagenum">[164]</span>sua respeitavel
+mam&atilde;... Os meus
+valentes cossacos, esses,
+l&aacute; ficaram n'uma po&ccedil;a de sangue. Sua
+excellencia o principe Tong
+condescende em m'os pagar a dez mil
+francos cada um, das sommas
+extorquidas &aacute; villa de Tien-H&oacute;...
+S&aacute;-T&oacute;
+diz-me que se o meu hospede,
+como &eacute; natural, recome&ccedil;ar as suas
+viagens atrav&eacute;s do
+imperio em busca dos Ti-Chin-F&uacute;,&#8213;elle
+considerar-se-hia honrado e
+venturoso em o acompanhar, com uma
+fidelidade canina e uma
+docilidade cossaca...<br />
+
+<br />
+
+<div class="signature"><em>&laquo;Camilloff</em>&raquo;.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o! nunca!&#8213;rugi com furor, amarrotando a carta,
+monologando a largas passadas pelo melancolico
+claustro.&#8213;N&atilde;o, por Deus ou pelo
+Demonio! Ir de novo bater as estradas da China? J&aacute;mais! <span class="pagenum">[165]</span>Oh
+sorte
+grotesca e desastrosa! Deixo os meus regalos ao Loreto, o meu ninho
+amoroso de Paris, venho rolado pela vaga enjoad&ocirc;ra de
+Marselha a
+Chang-Hai, soffro as pulgas das bateiras chinezas, o fedor das viellas,
+a poeirada dos caminhos aridos&#8213;e para qu&ecirc;? Tinha um plano,
+que se erguia
+at&eacute; aos c&eacute;os, grandioso e ornamentado como um
+troph&eacute;o: por sobre elle
+scintillavam, d'alto a baixo, toda a sorte
+d'ac&ccedil;&otilde;es boas: e eis
+que o vejo tombar ao ch&atilde;o, pe&ccedil;a a
+pe&ccedil;a, n'uma ruina! Queria
+dar o meu nome, os meus milh&otilde;es, e metade do meu leito
+d'oiro a uma senhora Ti-Chin-F&uacute;&#8213;e
+n&atilde;o m'o permittem os prejuizos sociaes d'uma ra&ccedil;a
+barbara! Pretendo,
+com o bot&atilde;o de crystal de Mandarim, remodelar os destinos da
+China, trazer-lhe a prosperidade civil,&#8213;e veda-m'o a lei imperial!
+Aspiro a derramar <span class="pagenum">[166]</span>uma
+esmola sem fim por esta popula&ccedil;a
+faminta&#8213;e corro o perigo
+ingrato de ser decapitado como instigador de rebelli&otilde;es!
+Venho
+enriquecer uma villa&#8213;e a turba tumultuosa apedreja-me! Ia emfim dar a
+abundancia, o conforto que louva Confucio, &aacute;
+fam&iacute;lia
+Ti-Chin-F&uacute;,&#8213;e essa familia some-se, evapora-se como um
+fumo, e outras familias
+Ti-Chin-F&uacute; surgem, aqui e al&eacute;m, vagamente, ao
+sul, a oeste, como
+clar&otilde;es enganadores... E havia d'ir a Cant&atilde;o, a
+Ka-&oacute;-li, exp&ocirc;r a
+outra orelha a tijolos brutaes, fugir ainda pelos descampados, agarrado
+&aacute;s crinas d'um
+potro? J&aacute;mais!<br />
+
+<br />
+
+Parei: e de bra&ccedil;os erguidos, fallando &aacute;s arcadas
+do claustro, &aacute;s arvores, ao ar silencioso e fino que me
+envolvia:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ti-Chin-F&uacute;!&#8213;bradei&#8213;Ti-Chin-F&uacute;, para te
+aplacar, fiz o que era racional, generoso e logico! Est&aacute;s
+emfim satisfeito, <span class="pagenum">[167]</span>letrado
+veneravel, tu, o teu gentil papagaio, a tua pan&ccedil;a official?
+Falla-me!
+Falla-me!...<br />
+
+<br />
+
+Escutei, olhei: a roldana do po&ccedil;o, &aacute;quella hora
+do meio dia, rangia devagar, no pateo: sob as amoreiras, ao longo da
+arcaria do claustro, seccavam em papel s&ecirc;da as folhas de
+ch&aacute; da
+colheita d'outubro: da porta meio cerrada da aula vinha um susurro
+lento de
+declina&ccedil;&otilde;es latinas: era uma paz severa, feita da
+simplicidade das
+occupa&ccedil;&otilde;es, da honestidade dos estudos, do ar
+pastoril d'aquella collina, onde dormia, sob um sol branco d'inverno, o
+burgo religioso... E com aquella serenidade ambiente, pareceu-me
+receber na alma, de repente, uma
+pacifica&ccedil;&atilde;o absoluta!<br />
+
+<br />
+
+Accendi com os dedos ainda tremulos um charuto, e disse, limpando na
+<span class="pagenum">[168]</span>testa uma baga de
+suor, esta palavra, resumo d'um destino:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Bem, Ti-Chin-F&uacute; est&aacute; contente. Fui logo
+&aacute; cella do excellente padre Giulio. Elle lia o seu Breviario
+&aacute; janella, debicando
+confeitos d'assucar, com o gato do convento no collo.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Reverendissimo, volto &aacute; Europa... Algum dos nossos bons
+padres vai por acaso em miss&atilde;o, para os lados de
+Chang-Hai?...<br />
+
+<br />
+
+O veneravel superior p&ocirc;z os seus oculos redondos: e folheando
+com unc&ccedil;&atilde;o um vasto registro em letra chineza, ia
+assim murmurando:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Quinto dia da decima lua... Sim, ha o padre Anacleto para Tien-Tzin,
+para a novena dos Irm&atilde;os da Santa Creche. Duodecima lua, o
+padre Sanchez para Tien-Tzin tambem, para a obra do <span class="pagenum">[169]</span>Catecismo aos
+Orph&atilde;os... Sim, caro hospede, tem companheiros para
+L&eacute;ste...<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Aacute;manh&atilde;?<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&Aacute;manh&atilde;. &Eacute; dolorosa a
+separa&ccedil;&atilde;o n'estes confins do mundo, quando as
+almas se comprehendem bem em Jesus... O nosso padre Gutierrez que lhe
+fa&ccedil;a um bom farnel... N&oacute;s j&aacute; o
+amavamos como irm&atilde;o, Theodoro... Coma um confeito,
+s&atilde;o deliciosos... As coisas est&atilde;o em
+feliz repouso quando se acham no seu lugar e elemento natural: o lugar
+do
+cora&ccedil;&atilde;o do homem &eacute; o
+cora&ccedil;&atilde;o de Deus: e o seu est&aacute; n'esse
+asylo seguro... Coma um confeito... Que &eacute; isso, meu filho,
+que &eacute; isso?<br />
+
+<br />
+
+Eu estava collocando sobre o seu Breviario aberto, n'uma pagina do
+Evangelho de pobreza, um r&ocirc;lo de notas do <em>Banco
+d'Inglaterra;</em> e balbuciei:<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[170]</span> &#8213;Meu
+reverendissimo, para os seus pobres...<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Excellente, excellente... O nosso bom Gutierrez que lhe
+fa&ccedil;a um farnel copioso... <em>Amen</em>, meu
+filho ... <em>In Deo
+omnia spes</em>!...<br />
+
+<br />
+
+Ao outro dia, entre o padre Anacleto e o padre Sanchez, montado na mula
+branca do convento, desci o burgo, ao repique dos sinos. E ahi vamos
+para Hiang-Hiam, villa negra e murada, onde atracam os barcos que
+descem a Tien-Tzin. J&aacute; as terras ao longo do
+Pei-H&oacute;
+estavam todas brancas de neve: nas enseadas baixas j&aacute; a agua
+ia gelando: e
+embrulhados em pelles de carneiro, em roda do fogareiro, &aacute;
+p&ocirc;pa do
+barco, os bons padres e eu iamos conversando de trabalhos de
+Missionarios, de coisas da China, por
+vezes dos interesses do C&eacute;o&#8213;passando em redor <span class="pagenum">[171]</span>sem cessar o
+grosso frasco da genebra...<br />
+
+<br />
+
+Era Tien-Tzin separei-me d'aquelles santos camaradas. E d'ahi a duas
+semanas, por um meio dia de sol tepido, passeava, fumando o meu charuto
+e olhando a azafama dos caes d'Hong-Kong, no tombadilho do <em>Java</em>
+que
+ia levantar ferro para a Europa.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="break">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Foi um momento commovente para mim, aquelle em que vi, &aacute;s
+primeiras voltas do helice, afastar-se a terra da China.<br />
+
+<br />
+
+Desde que acord&aacute;ra, n'essa manh&atilde;, uma
+inquieta&ccedil;&atilde;o surda recome&ccedil;ava a
+pesar-me na alma. Agora, punha-me a pensar que viera &aacute;quelle
+vasto imperio para acalmar pela expia&ccedil;&atilde;o um
+protesto
+<span class="pagenum">[172]</span>temeroso da
+Consciencia: e por fim, impellido por uma impaciencia
+nervosa, ahi partia, sem ter feito mais que deshonrar os bigodes
+brancos d'um general heroico, e ter
+recebido pedradas pela orelha n'uma villa dos confins da Mongolia.<br />
+
+<br />
+
+Estranho destino, o meu!...<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="break">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+At&eacute; ao anoitecer estive encostado sombriamente &aacute;
+borda do paquete, vendo o mar liso, como uma vasta pe&ccedil;a de
+s&ecirc;da azul,
+dobrar-se aos lados em duas pregas molles: pouco a pouco grandes
+estrellas palpitaram na concavidade negra; e o helice na sombra ia
+trabalhando em rhythmo. Ent&atilde;o, tomado d'uma fadiga molle,
+fui errando pelo paquete,
+olhando, aqui e al&eacute;m, a bussola alumiada; <span class="pagenum">[173]</span>os
+mont&otilde;es de
+cabrestantes; as pe&ccedil;as da machina, n'uma claridade ardente,
+batendo em cadencia; as fagulhas que fugiam do cano, n'um
+r&ocirc;lo de fumara&ccedil;a negra; os
+marinheiros de barba ruiva, immoveis &aacute; roda do leme; e as
+f&oacute;rmas dos
+pilotos, sobre o pontal, altas e vagas na noite. Na <em>cabine</em>
+do
+capit&atilde;o, um inglez de
+capacete de corti&ccedil;a, cercado de damas que bebiam Cognac, ia
+tocando
+melancolicamente na flauta a aria de <em>Bonnie Dundee</em>...
+<br />
+
+<br />
+
+Eram onze horas quando desci ao meu beliche. As luzes j&aacute;
+estavam apagadas: mas a lua que se erguia ao nivel da agua, redonda e
+branca, batia o vidro da <em>cabine</em> com um raio de
+claridade: e
+ent&atilde;o,
+a essa meia tinta pallida, l&aacute; vi estirada sobre a maca a
+figura
+pan&ccedil;uda, vestida de s&ecirc;da amarella, com o seu
+papagaio nos bra&ccedil;os!<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[174]</span>
+Era <em>elle</em>, outra vez!<br />
+
+<br />
+
+E foi <em>elle</em>, perpetuamente! Foi elle em Singapura
+e em
+Ceyl&atilde;o. Foi elle erguendo-se dos areaes do deserto ao
+passarmos no canal de Suez; adiantando-se &aacute; pr&ocirc;a
+d'um barco de
+provis&otilde;es quando par&aacute;mos em Malta; resvalando
+sobre as rosadas montanhas da Sicilia; emergindo dos nevoeiros que
+cercam o morro de Gibraltar! Quando desembarquei em Lisboa, no caes das
+Columnas, a sua figura bojuda enchia todo o arco da
+rua Augusta; o seu olho obliquo fixava-me&#8213;e os dois olhos pintados do
+seu papagaio pareciam fixar-me tambem...<br />
+
+<br />
+
+<h2>VIII</h2>
+
+<br />
+
+<span class="smallcaps">Ent&atilde;o,</span>
+certo que n&atilde;o poderia j&aacute;mais
+aplacar Ti-Chin-F&uacute;, toda essa noite no meu quarto ao Loreto,
+onde como outr'ora as velas innumeraveis das serpentinas davam aos
+damascos tons de sangue fresco, meditei sacudir
+de mim, como um adorno de peccado, esses milh&otilde;es
+sobrenaturaes.
+<span class="pagenum">[176]</span>E assim me
+libertaria talvez d'aquella pan&ccedil;a e d'aquelle
+papagaio
+abominavel!<br />
+
+<br />
+
+Abandonei o palacete ao Loreto, a existencia de Nababo. Fui, com uma
+quinzena co&ccedil;ada, realugar o meu quarto na casa da Madame
+Marques: e voltei &aacute; Reparti&ccedil;&atilde;o,
+d'espinha&ccedil;o curvo, a implorar os meus vinte mil reis
+mensaes, e a minha d&ocirc;ce penna de amanuense!...<br />
+
+<br />
+
+Mas um soffrimento maior veio amargurar os meus dias. Julgando-me
+arruinado,&#8213;todos aquelles, que a minha opulencia humilh&aacute;ra,
+cobriram-me de offensas, como se alastra de lixo uma estatua derrubada
+de principe decahido. Os jornaes, n'um triumpho de ironia,
+achincalharam a minha miseria. A aristocracia, que
+balbuci&aacute;ra
+adula&ccedil;&otilde;es aos p&eacute;s do Nababo, ordenava
+agora aos seus cocheiros que atropellassem <span class="pagenum">[177]</span>nas
+ruas o corpo encolhido
+do plumitivo de Secretar&iacute;a. O clero, que eu
+enriquecera, accusava-me de <em>feiticeiro</em>; o povo
+atirou-me pedras; e a
+Madame Marques, quando eu me queixava humildemente da dureza granitica
+dos bifes,&#8213;plantava as duas m&atilde;os &aacute; cinta, e
+gritava:
+<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Ora o engui&ccedil;o! Ent&atilde;o que quer voss&ecirc;
+mais? Aguente! Olha o pelintra!...<br />
+
+<br />
+
+E, apesar d'esta expia&ccedil;&atilde;o, o velho
+Ti-Chin-F&uacute; l&aacute; estava sempre &aacute; minha
+ilharga, obeso e c&ocirc;r d'&oacute;ca,&#8213;porque os seus
+milh&otilde;es, que jaziam agora estereis e intactos nos Bancos,
+ainda de facto eram meus! Desgra&ccedil;adamente meus!<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o, indignado, um dia subitamente reentrei com estrondo
+no meu palacete e no meu luxo. N'essa noite, de novo o resplendor das
+minhas janellas <span class="pagenum">[178]</span>alumiou
+o Loreto: e pelo port&atilde;o aberto
+viram-se
+como outr'ora negrejar, nas suas fardas de s&ecirc;da negra, as
+longas filas de
+lacaios decorativos.<br />
+
+<br />
+
+Logo, Lisboa, sem hesitar, se rojou aos meus p&eacute;s. A Madame
+Marques chamou-me, chorando, <em>filho do seu
+cora&ccedil;&atilde;o</em>. Os
+jornaes deram-me os qualificativos que, de antiga
+tradi&ccedil;&atilde;o, pertencem
+&aacute; Divindade: fui o <em>Omnipotente</em>, fui o <em>Omnisciente</em>!
+A
+aristocracia beijou-me os dedos como a um Tyranno: e o clero
+incensou-me como a um idolo. E o meu desprezo pela Humanidade foi
+t&atilde;o largo,&#8213;que se estendeu ao
+Deus que a creou.<br />
+
+<br />
+
+Desde ent&atilde;o uma saciedade enervante mantem-me semanas
+inteiras n'um soph&aacute;, mudo e soturno, pensando na felicidade
+do
+<em>n&atilde;o-ser</em>...<br />
+
+<br />
+
+Uma noite, recolhendo s&oacute; por uma rua deserta, vi diante de
+mim o Personagem <span class="pagenum">[179]</span>vestido
+de preto com o guarda-chuva debaixo do
+bra&ccedil;o, o mesmo que no meu quarto feliz da travessa da
+Concei&ccedil;&atilde;o
+me fizera, a um <em>ti-li-tin</em> de campainha, herdar
+tantos
+milh&otilde;es detestaveis.
+Corri para elle, agarrei-me &aacute;s abas da sua sobrecasaca
+burgueza,
+bradei:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Livra-me das minhas riquezas! Resuscita o Mandarim! Restitue-me a paz
+da miseria!<br />
+
+<br />
+
+Elle passou gravemente o seu guarda-chuva para debaixo do outro
+bra&ccedil;o, e respondeu com bondade:<br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o p&oacute;de ser, meu prezado senhor,
+n&atilde;o p&oacute;de ser...<br />
+
+<br />
+
+Eu atirei-me aos seus p&eacute;s n'uma
+supplica&ccedil;&atilde;o abjecta: mas s&oacute; vi diante
+de mim, sob uma luz morti&ccedil;a de gaz, a f&oacute;rma magra
+de
+um c&atilde;o farejando o lixo.<br />
+
+<br />
+
+Nunca mais encontrei este individuo.&#8213;E agora o mundo parece-me um
+<span class="pagenum">[180]</span>immenso
+mont&atilde;o de ruinas onde a minha alma solitaria, como
+um exilado que erra por entre columnas tombadas, geme, sem
+descontinuar...<br />
+
+<br />
+
+As fl&ocirc;res dos meus aposentos murcham e ninguem as renova:
+toda a luz me parece uma tocha: e quando as minhas amantes
+v&eacute;em, na
+brancura dos seus penteadores, encostar-se ao meu leito, eu
+ch&oacute;ro&#8213;como se
+avistasse a legi&atilde;o amortalhada das minhas alegrias
+defuntas...<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="break">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Sinto-me morrer. Tenho o meu testamento feito. N'elle lego os meus
+milh&otilde;es ao Demonio; pertencem-lhe; elle que os reclame e que
+os reparta...<br />
+
+<br />
+
+E a v&oacute;s, homens, lego-vos apenas, sem commentarios, estas
+palavras: &laquo;<em>S&oacute; <span class="pagenum">[181]</span>sabe
+bem o p&atilde;o
+que dia a
+dia ganham as nossas
+m&atilde;os: nunca mates o Mandarim</em>!&raquo;<br />
+
+<br />
+
+E todavia, ao expirar, consola-me prodigiosamente esta id&eacute;a:
+que do Norte ao Sul e do Oeste a L&eacute;ste, desde a Grande
+Muralha da
+Tartaria at&eacute; &aacute;s ondas do Mar Amarello, em todo o
+vasto Imperio da China,
+nenhum Mandarim ficaria vivo, se tu, t&atilde;o facilmente como eu,
+o
+pudesses supprimir e herdar-lhe os milh&otilde;es, oh leitor,
+creatura
+improvisada por Deus, obra m&aacute; de m&aacute; argilla, meu
+semelhante e meu
+irm&atilde;o!<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="quote">Angers, junho, 1880.</span><br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="break">
+<hr /></div>
+
+<div style="text-align: center;"><br />
+
+<span class="smallcaps">porto</span>&#8213;<span class="smallcaps">typ. de a. j. da silva teixeira</span><br />
+
+62, Cancella Velha, 62<br />
+
+<br />
+
+</div>
+
+<div class="break">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+</div>
+
+
+
+
+
+
+
+
+<pre>
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of O Mandarim, by Eça Queirós
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O MANDARIM ***
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+1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing
+access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided
+that
+
+- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
+ the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
+ you already use to calculate your applicable taxes. The fee is
+ owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
+ has agreed to donate royalties under this paragraph to the
+ Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments
+ must be paid within 60 days following each date on which you
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+ returns. Royalty payments should be clearly marked as such and
+ sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
+ address specified in Section 4, "Information about donations to
+ the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."
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+ you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
+ does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
+ License. You must require such a user to return or
+ destroy all copies of the works possessed in a physical medium
+ and discontinue all use of and all access to other copies of
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+
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+ money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
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+- You comply with all other terms of this agreement for free
+ distribution of Project Gutenberg-tm works.
+
+1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
+electronic work or group of works on different terms than are set
+forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
+both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
+Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the
+Foundation as set forth in Section 3 below.
+
+1.F.
+
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+harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
+that arise directly or indirectly from any of the following which you do
+or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
+work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
+Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.
+
+
+Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm
+
+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
+electronic works in formats readable by the widest variety of computers
+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
+people in all walks of life.
+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
+809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at http://pglaf.org
+
+For additional contact information:
+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
+
+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit http://pglaf.org
+
+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including checks, online payments and credit card donations.
+To donate, please visit: http://pglaf.org/donate
+
+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
+keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
+
+
+Most people start at our Web site which has the main PG search facility:
+
+ http://www.gutenberg.org
+
+This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
+including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
+Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
+subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
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