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diff --git a/16384-h/16384-h.htm b/16384-h/16384-h.htm new file mode 100644 index 0000000..663e6d6 --- /dev/null +++ b/16384-h/16384-h.htm @@ -0,0 +1,5142 @@ +<!DOCTYPE html PUBLIC "-//W3C//DTD XHTML 1.0 Strict//EN" "http://www.w3.org/TR/xhtml1/DTD/xhtml1-strict.dtd"> +<html xmlns="http://www.w3.org/1999/xhtml"> +<head> + <title>O Mandarim</title> + + + <meta name="AUTHOR" content="Eça de Queirós" /> + + <meta http-equiv="Content-Type" content="text/html; charset=ISO-8859-1" /> + + <style type="text/css"> +body {width: 50%; margin-left:10%; text-align: justify;} +h1, h2, h3, h4 { text-align: center;} +h1 {margin: 2em; text-align: center;} +h2, h4 {margin-top: 2em;} +.bbox {border: solid black 1px; margin-left: 5%; margin-right: 5%;} +.signature { +margin-right: 5%; +text-align: right;} +.smallcaps {font-variant: small-caps;} +.quote { +margin-left: 5%; +margin-right: 5%;} +.break { +width: 40%; +margin-left:30%;} +.dots {color: #fff; background-color: inherit; border: 3px dotted #555; border-style: none none dotted;} +.poetry {margin-left:20%;} +.poetry1 {margin-left:25%;} +.pagenum { position: absolute; right: 35%; +font-size: 75%; +text-align: right; +text-indent: 0em; +font-style: normal; +font-weight: normal; +color: silver; background-color: inherit; +font-variant: normal;} + </style> +</head> + + + + + + + +<body> + + +<pre> + +The Project Gutenberg EBook of O Mandarim, by Eça Queirós + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: O Mandarim + +Author: Eça Queirós + +Release Date: October 27, 2007 [EBook #16384] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O MANDARIM *** + + + + +Produced by Rita Farinha and the Online Distributed +Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was +produced from images generously made available by National +Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) + + + + + + +</pre> + + +<div> +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="bbox"><span style="font-weight: bold;"> +</span> +<h2><span style="font-weight: bold;"></span>EÇA +DE QUEIROZ </h2> + +<h1> +O MANDARIM</h1> + +<div style="text-align: center;"><br /> + +<br /> + +<br /> + +</div> + +<div style="text-align: center;"><img style="width: 200px; height: 95px;" alt="" src="images/fig1.png" /> +</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"> +<h4>LIVRARIA INTERNACIONAL<br /> + +DE<br /> + +ERNESTO CHARDRON, EDITOR.<br /> + +Porto e Braga<br /> + +<br /> + +1880</h4> + +</div> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h1>O MANDARIM </h1> + +<h2>PROLOGO</h2> + +<div style="text-align: center;"><br /> + +<br /> + +1.º <span class="smallcaps">Amigo</span> +(<em>bebendo Cognac e soda, debaixo d'arvores, n'um +terraço, á beira d'agua</em>)<br /> + +<br /> + +<br /> + +</div> + +Camarada, por estes calores do estio que embotam a ponta da sagacidade, +repousemos do aspero estudo da Realidade humana... Partamos para os +campos do Sonho, vaguear por essas azuladas collinas romanticas <span class="pagenum">[2]</span>onde se +ergue a torre abandonada do Sobrenatural, e musgos frescos recobrem as +ruinas do Idealismo... Façamos phantasia!...<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"> +2.º <span class="smallcaps">Amigo<br /> + +<br /> + +<br /> + +</span></div> + +Mas sobriamente, camarada, parcamente!... E como nas sabias e amaveis +Allegorias da Renascença, misturando-lhe sempre uma +Moralidade discreta...<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="signature">(<span class="smallcaps">Comedia +Inedita</span>).<br /> + +<br /> + +</div> + +<div style="text-align: center;"><img style="width: 200px; height: 95px;" alt="" src="images/fig1.png" /> +</div> + +<h2>I </h2> + +<br /> + +<span class="smallcaps">Eu</span> chamo-me +Theodoro―e fui amanuense do Ministerio do Reino.<br /> + +<br /> + +N'esse tempo vivia eu á travessa da +Conceição n.º 106, na casa d'hospedes da +D. Augusta, a esplendida D. Augusta, viuva do major Marques. Tinha dois +companheiros: o Cabrita, empregado na +Administração do bairro central, esguio <span class="pagenum">[4]</span> +e +amarello como uma tocha d'enterro; e o possante, o exuberante tenente +Couceiro, grande tocador de viola franceza.<br /> + +<br /> + +A minha existencia era bem equilibrada e suave. Toda a semana, de +mangas de lustrina á carteira da minha +repartição, ia lançando, n'uma formosa +letra cursiva, sobre o papel Tojal do Estado, estas phrases faceis: +«<em>Ill.<sup>mo</sup> e Exc.<sup>mo</sup> +Snr.</em>―<em>Tenho +a honra de communicar a V. +Exc.ª... Tenho a honra de passar ás mãos +de V. +Exc.ª, Ill.<sup>mo</sup> e Exc.<sup>mo</sup> +Snr...</em>»<br /> + +<br /> + +Aos domingos repousava: installava-me então no +canapé da sala de jantar, de cachimbo nos dentes, e admirava +a D. Augusta, que, em dias de missa, +costumava limpar com clara d'ovo a caspa do tenente Couceiro. Esta +hora, sobretudo no verão, era deliciosa: pelas <span class="pagenum">[5]</span> +janellas meio +cerradas penetrava o bafo da soalheira, algum repique distante dos +sinos da Conceição Nova, e o arrulhar das rolas +na +varanda; a monotona susurração das moscas +balançava-se sobre a velha cambraia, antigo +véo nupcial da Madame Marques, que cobria agora no aparador +os pratos de cerejas bicaes; pouco a pouco o tenente, envolvido n'um +lençol como +um idolo no seu manto, ia adormecendo, sob a +fricção molle +das carinhosas mãos da D. Augusta; e ella, arrebitando o +dedo minimo branquinho e papudo, sulcava-lhe as rêpas +lustrosas com o pentesinho dos bichos... +Eu então, enternecido, dizia á deleitosa senhora: +<br /> + +<br /> + +―Ai D. Augusta, que anjo que é!<br /> + +<br /> + +Ella ria; chamava-me <em>enguiço</em>! Eu +sorria, sem me +escandalisar. <em>Enguiço</em> era com effeito +o +nome que me davam <span class="pagenum">[6]</span> +na casa―por +eu ser magro, entrar sempre as portas com o pé direito, +tremer de ratos, +ter á cabeceira da cama uma lithographia de Nossa Senhora +das Dôres +que pertencera á mamã, e corcovar. Infelizmente +corcóvo―do muito que verguei o espinhaço, na +Universidade, recuando como uma +pêga assustada diante dos senhores Lentes; na +repartição, +dobrando a fronte ao pó perante os meus Directores Geraes. +Esta attitude de resto +convém ao bacharel; ella mantem a disciplina n'um Estado bem +organisado; e a mim garantia-me a tranquillidade dos domingos, o uso +d'alguma roupa branca, +e vinte mil reis mensaes.<br /> + +<br /> + +Não posso negar, porém, que n'esse tempo eu era +ambicioso―como o reconheciam sagazmente a Madame Marques e o lepido +Couceiro. +Não que me <span class="pagenum">[7]</span> +revolvesse o peito o appetite heroico de dirigir, +do alto d'um throno, vastos rebanhos humanos; não que a +minha louca alma +jámais aspirasse a rodar pela Baixa em trem da Companhia, +seguida d'um correio choitando;―mas pungia-me o desejo de poder jantar +no Hotel Central com +Champagne, apertar a mão mimosa de viscondessas, e, pelo +menos duas vezes por semana, adormecer, n'um extasi mudo, sobre o seio +fresco de Venus. Oh! moços que vos dirigieis vivamente a S. +Carlos, +atabafados em paletots caros onde alvejava a gravata de +<em>soirée</em>! Oh! +tipoias, apinhadas de andaluzas, batendo galhardamente para os +touros―quantas vezes me fizestes suspirar! Porque a certeza de que os +meus vinte mil reis por mez e o meu geito encolhido de +enguiço me excluiam +para sempre d'essas alegrias sociaes vinha-me <span class="pagenum">[8]</span>então +ferir o +peito―como +uma frecha que se crava n'um tronco, e fica muito tempo vibrando!<br /> + +<br /> + +Ainda assim, eu não me considerava sombriamente um +«pária». A vida humilde tem +doçuras: é grato, n'uma +manhã de sol alegre, com o guardanapo ao pescoço, +diante do bife de grelha, desdobrar o +<span class="smallcaps">Diario de Noticias</span>; +pelas tardes de verão, nos bancos +gratuitos do +Passeio, gozam-se suavidades de idyllio; é saboroso +á +noite no Martinho, sorvendo aos goles um café, ouvir os +verbosos injuriar a patria... +Depois, nunca fui excessivamente infeliz―porque não tenho +imaginação: não me consumia, rondando +e almejando em torno de paraisos ficticios, nascidos +da minha propria alma desejosa como nuvens da +evaporação d'um lago; não suspirava, +olhando as lucidas estrellas, por um amor á +Romeo, <span class="pagenum">[9]</span>ou por uma +gloria social á Camors. Sou um positivo. +Só +aspirava ao racional, ao tangivel, ao que já fôra +alcançado por +outros no meu bairro, ao que é accessivel ao bacharel. E +ia-me resignando, como quem a uma <em>table d'hôte</em> +mastiga a +bucha de pão secco á +espera que lhe chegue o prato rico da <em>Charlotte russe</em>. +As felicidades +haviam de vir: e para as apressar eu fazia tudo o que devia como +portuguez e como constitucional:―pedia-as todas as noites a Nossa +Senhora das +Dôres, e comprava decimos da loteria.<br /> + +<br /> + +No entanto procurava distrahir-me. E como as +circumvoluções do meu cerebro me não +habilitavam a compôr odes, +á maneira de tantos outros ao meu lado que se desforravam +assim do tedio da profissão; +como o meu ordenado, paga a casa e o tabaco, me não +permittia <span class="pagenum">[10]</span>um +vicio―tinha tomado o habito discreto de comprar na feira da Ladra +antigos volumes desirmanados, e á noite, no meu quarto, +repastava-me d'essas +leituras curiosas. Eram sempre obras de titulos ponderosos: <span class="smallcaps">Galera da +Innocencia</span>, <span class="smallcaps">Espelho +Milagroso</span>, <span class="smallcaps">Tristeza +dos Mal Desherdados</span>... O typo +venerando, o papel amarellado com picadas de traça, a grave +encadernação freiratica, a fitinha verde marcando +a pagina―encantavam-me! Depois, aquelles dizeres ingenuos em letra +gorda davam uma +pacificação a todo o meu sêr, +sensação comparavel á paz penetrante +d'uma velha cêrca de mosteiro, na quebrada d'um valle, por um +fim suave de tarde, ouvindo o correr d'agua +triste...<br /> + +<br /> + +Uma noite, ha annos, eu começára a lêr, +n'um d'esses in-folios vetustos, um <span class="pagenum">[11]</span>capitulo +intitulado <em>Brecha +das +Almas</em>; e ia cahindo n'uma somnolencia grata, quando este +periodo +singular se me destacou do tom neutro e apagado da pagina, com o relevo +d'uma medalha d'ouro nova brilhando sobre um tapete escuro: +copío textualmente:<br /> + +<br /> + +«No fundo da China +existe um Mandarim mais rico que todos os reis +de que a Fabula ou a Historia +contam. D'elle nada conheces, nem o +nome, nem o semblante, nem a +sêda de que se veste. Para que tu +herdes os seus cabedaes +infindaveis, basta que toques essa +campainha, posta a teu lado, +sobre um livro. Elle soltará apenas um +suspiro, n'esses confins da +Mongolia. Será então um cadaver: e tu +verás a teus +pés mais ouro do que póde sonhar a +ambição d'um avaro. +Tu, que me <span class="pagenum">[12]</span>lês +e +és um homem mortal, tocarás tu a +campainha?»<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Estaquei, assombrado, diante da pagina aberta: aquella +interrogação «homem mortal, +tocarás tu a campainha?» +parecia-me facêta, picaresca, e todavia perturbava-me +prodigiosamente. Quiz lêr mais; mas as +linhas fugiam, ondeando como cobras assustadas, e no vazio que +deixavam, d'uma +lividez de pergaminho, lá ficava, rebrilhando em negro, a +interpellação +estranha―«tocarás tu a compainha?»<br /> + +<br /> + +Se o volume fosse d'uma honesta edição +Michel-Levy, de capa amarella, eu, que por fim não me achava +perdido n'uma floresta de +ballada allemã, e podia da minha sacada vêr +branquejar á luz do +gaz o correame da patrulha―teria simplesmente fechado o livro, e +<span class="pagenum">[13]</span>estava dissipada a +allucinação nervosa. Mas +aquelle sombrio in-folio +parecia estalar magia; cada letra affectava a inquietadora +configuração +d'esses signaes da velha cabala, que encerram um attributo fatidico; as +virgulas tinham o retorcido petulante de rabos de diabinhos, +entrevistos n'uma alvura de luar; no <em>ponto +d'interrogação</em> final eu via o +pavoroso gancho com que o Tentador vai fisgando as almas que +adormeceram sem se refugiar na inviolavel cidadella da +Oração!... Uma influencia +sobrenatural apoderando-se de mim, arrebatava-me devagar para +fóra da +realidade, do raciocinio: e no meu espirito foram-se formando duas +visões―d'um lado um Mandarim, decrepito, morrendo sem +dôr, longe, n'um kiosque +chinez, a um <em>ti-li-tin</em> de campainha; do outro +toda +uma montanha de +ouro scintillando aos meus <span class="pagenum">[14]</span>pés! +Isto era tão +nitido, +que eu via os olhos obliquos do velho personagem embaciarem-se, como +cobertos d'uma tenue camada de pó; e sentia o fino tinir de +libras rolando +juntas. E immovel, arripiado, cravava os olhos ardentes na campainha, +pousada pacatamente diante de mim sobre um diccionario francez―a +campainha prevista, +citada no mirifico in-folio...<br /> + +<br /> + +Foi então que, do outro lado da mesa, uma voz insinuante e +metallica me disse, no silencio:<br /> + +<br /> + +―Vamos, Theodoro, meu amigo, estenda a mão, toque a +campainha, seja um forte!<br /> + +<br /> + +O <em>abat-jour</em> verde da vela punha uma penumbra em +redor. Ergui-o, a +tremer. E vi, muito pacificamente sentado, um individuo corpulento, +todo vestido de preto, de chapéo alto, com as <span class="pagenum">[15]</span>duas +mãos calçadas de luvas negras gravemente apoiadas +ao cabo d'um guarda-chuva. Não +tinha nada de phantastico. Parecia tão contemporaneo, +tão +regular, tão classe-média como se viesse da minha +repartição...<br /> + +<br /> + +Toda a sua originalidade estava no rosto, sem barba, de linhas fortes e +duras; o nariz brusco, d'um aquilino formidavel, apresentava a +expressão rapace e atacante d'um bico d'aguia; o +córte dos labios, +muito firme, fazia-lhe como uma bocca de bronze; os olhos, ao fixar-se, +assemelhavam +dois clarões de tiro, partindo subitamente d'entre as +sarças tenebrosas das sobrancelhas unidas; era livido―mas, +aqui e além na +pelle, corriam-lhe raiações sanguineas como n'um +velho +marmore phenicio.<br /> + +<br /> + +Veio-me á idéa de repente que tinha diante de mim +o Diabo: mas logo <span class="pagenum">[16]</span>todo +o meu raciocinio se insurgiu resolutamente +contra esta +imaginação. Eu nunca acreditei no Diabo―como +nunca acreditei em Deus. +Jámais o disse alto, ou o escrevi nas gazetas, para +não descontentar os +poderes publicos, encarregados de manter o respeito por taes entidades: +mas que +existam estes dois personagens, velhos como a Substancia, rivaes +bonacheirões, fazendo-se mutuamente pirraças +amaveis,―um de barbas nevadas e tunica azul, na toilette do antigo +Jove, habitando os altos luminosos, entre uma côrte mais +complicada que a de Luiz XIV; +e o outro enfarruscado e manhoso, ornado de cornos, vivendo nas chammas +inferiores, n'uma imitação burgueza do pitoresco +Plutão―não acredito. Não, +não acredito! Céo e Inferno +são concepções sociaes para uso da +plebe―e eu pertenço á classe-média. +<span class="pagenum">[17]</span>Rezo, é +verdade, a Nossa Senhora das Dôres: +porque, assim como pedi o favor do senhor doutor +para passar no meu acto; assim como, para obter os meus vinte mil reis, +implorei a benevolencia do senhor deputado; igualmente para me +subtrahir +á tisica, á angina, á navalha de +ponta, á febre +que vem da sargeta, á casca de laranja escorregadia onde se +quebra a perna, a outros males publicos, necessito ter uma +protecção extra-humana. Ou pelo +rapa-pé ou pelo incensador o homem prudente deve ir fazendo +assim uma serie de sabias adulações desde a +Arcada até ao +Paraiso. Com um compadre no bairro, e uma comadre mystica nas +Alturas―o destino do bacharel está +seguro.<br /> + +<br /> + +Por isso, livre de torpes superstições, disse +familiarmente ao individuo vestido de negro:<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[18]</span> ―Então, +realmente, aconselha-me que toque a campainha?<br /> + +<br /> + +Elle ergueu um pouco o chapéo, descobrindo a fronte +estreita, enfeitada d'uma gaforinha crespa e negrejante como a do +fabuloso Alcides, e respondeu, palavra a palavra:<br /> + +<br /> + +―Aqui está o seu caso, estimavel Theodoro. Vinte mil reis +mensaes são uma vergonha social! Por outro lado, ha sobre +este globo coisas prodigiosas: ha vinhos de Borgonha, como por exemplo +o +<em>Romanée-Conti</em> de 58 e o <em>Chambertin</em> +de 61, que custam, +cada garrafa, de dez a onze mil reis; e quem bebe o primeiro calix, +não +hesitará, para beber o segundo, em assassinar seu pai... +Fabricam-se em Paris e em Londres carruagens de tão suaves +molas, de tão mimosos +estofos, que é preferivel percorrer n'ellas o Campo Grande, +a viajar, <span class="pagenum">[19]</span>como os +antigos deuses, pelos céos, sobre os +fôfos coxins das nuvens... +Não farei á sua instrucção +a offensa de o informar que se mobilam +hoje casas, d'um estylo e d'um conforto, que são ellas que +realisam +superiormente esse regalo ficticio, chamado outr'ora a +«Bemaventurança». Não lhe +fallarei, Theodoro, d'outros gozos terrestres: como, por exemplo, o +Theatro do <em>Palais Royal</em>, o <em>baile +Laborde</em>, o <em>Café +Anglais</em>... +Só chamarei a sua attenção para este +facto: existem sêres +que se chamam Mulheres―differentes d'aquelles que conhece, e que se +denominam +Femeas. Estes sêres, Theodoro, no meu tempo, a paginas 3 da +Biblia, +apenas usavam exteriormente uma <em>folha de vinha</em>. +Hoje, Theodoro, +é +toda uma symphonia, todo um engenhoso e delicado poema de rendas, +<em>baptistes</em>, setins, flôres, joias, +<span class="pagenum">[20]</span>cachemiras, gazes e +velludos... +Comprehende a satísfação inenarravel +que +haverá, para os cinco dedos de um christão, em +percorrer, palpar estas maravilhas macias;―mas tambem percebe que +não é com o troco d'uma placa honesta de cinco +tostões que se pagam as contas d'estes cherubins... Mas +ellas possuem melhor, Theodoro: +são os cabellos côr do ouro ou côr da +treva, tendo assim +nas suas tranças a apparencia emblematica das duas grandes +tentações +humanas―a fome do metal precioso e o conhecimento do absoluto +transcendente. E ainda teem +mais: são os braços côr de marmore, +d'uma frescura de lirio orvalhado; são os seios, sobre os +quaes o grande Praxiteles modelou a +sua Taça, que é a linha mais pura e mais +ídeal da +Antiguidade.... Os seios, outr'ora (na idéa d'esse ingenuo +<span class="pagenum">[21]</span>Ancião +que os formou, que +fabricou o mundo, e de quem uma inimizade secular me veda de pronunciar +o nome), eram destinados á nutrição +augusta da +humanidade; socegue porém, Theodoro; hoje nenhuma maman +racional os expõe a essa +funcção deterioradora e severa; servem +só para resplandecer, aninhados em rendas, ao +gaz das <em>soirées</em>,―e para outros usos +secretos. As +conveniencias +impedem-me de proseguir n'esta exposição radiosa +das bellezas, +que constituem o <em>Fatal Feminino</em>... De resto as +suas pupillas +já rebrilham.... Ora +todas estas coisas, Theodoro, estão para além, +infinitamente +para além dos seus vinte mil reís por mez... +Confesse, ao menos, que estas +palavras teem o veneravel sello da verdade!...<br /> + +<br /> + +Eu murmurei com as faces abrasadas:<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[22]</span> ―Teem.<br /> + +<br /> + +E a sua voz proseguiu, paciente e suave:<br /> + +<br /> + +―Que me diz a cento e cinco, ou cento e seis mil contos? Bem sei, +é uma bagatella... Mas emfim, constituem um +começo; são +uma ligeira habilitação para conquistar a +felicidade. Agora +pondere estes factos: o Mandarim, esse Mandarim do fundo da China, +está decrepito e +está gottoso: como homem, como funccionario do celeste +imperio, é +mais inutil em Pekin e na humanidade, que um seixo na bocca d'um +cão +esfomeado. Mas a transformação da substancia +existe: +garanto-lh'a eu, que sei o segredo das coisas... Porque a terra +é assim: recolhe aqui um homem +apodrecido, e restitue-o além ao conjuncto das +fórmas como +vegetal viçoso. Bem póde ser que elle, inutil +como <span class="pagenum">[23]</span>Mandarim no +Imperio do Meio, vá +ser util n'outra terra como rosa perfumada ou saboroso +repôlho. Matar, +meu filho, é quasi sempre equilibrar as necessidades +universaes. +É eliminar aqui a excrescencia para ir além +supprir a falta. Penetre-se +d'estas solidas philosophias. Uma pobre costureira de Londres anceia +por vêr +florir, na sua trapeira, um vaso cheio de terra negra: uma +flôr +consolaria aquella desherdada; mas na disposição +dos +sêres, infelizmente, n'esse momento, a substancia que +lá devia ser rosa é aqui na Baixa +homem d'Estado... Vem então o fadista de navalha aberta, e +fende o estadista; o +enxurro leva-lhe os intestinos; enterram-no, com tipoias atraz; a +materia +começa a desorganisar-se, mistura-se á vasta +evolução dos atomos―e o superfluo homem de +governo vai alegrar, sob a fórma de <span class="pagenum">[24]</span>amor +perfeito, +a agua furtada da loura costureira. O assassino é um +philanthropo! +Deixe-me resumir, Theodoro: a morte d'esse velho Mandarim idiota +traz-lhe +á algibeira alguns milhares de contos. Póde desde +esse momento +dar pontapés nos poderes publicos: medite na intensidade +d'este +gozo! É desde logo citado nos jornaes: reveja-se n'esse +maximo da gloria +humana! E agora note: é só agarrar a campainha, e +fazer +<em>ti-li-tin</em>. Eu não sou um barbaro: +comprehendo a +repugnancia d'um <em>gentleman</em> em assassinar um +contemporaneo: o espirrar do sangue suja vergonhosamente os punhos, e +é repulsivo o agonisar d'um corpo humano. Mas aqui, nenhum +d'esses espectaculos torpes... É como quem chama um +criado... E +são cento e cinco ou cento e seis mil contos; não +me lembro, mas tenho-o +nos meus apontamentos... <span class="pagenum">[25]</span>O +Theodoro não duvída de +mim. Sou +um cavalheiro:―provei-o, quando, fazendo a guerra a um tyranno na +primeira insurreição da justiça, me vi +precipitado d'alturas que nem Vossa Senhoria concebe... Um +trambulhão consideravel, meu caro +senhor! Grandes desgostos! O que me consola é que o OUTRO +está +tambem muito abalado: porque, meu amigo, quando um Jehovah tem apenas +contra si um Satanaz, tira-se bem de difficuldades mandando carregar +mais uma +legião d'archanjos; mas quando o inimigo é o +homem, armado d'uma +penna de pato e d'um caderno de papel branco―está +perdido... Emfim +são seis mil contos. Vamos, Theodoro, ahi tem a campainha, +seja um homem.<br /> + +<br /> + +Eu sei o que deve a si mesmo um christão. Se este personagem +me tivesse <span class="pagenum">[26]</span>levado +ao cume d'uma montanha na Palestina, por uma noite de +lua cheia, +e ahi, mostrando-me cidades, raças e imperios adormecidos, +sombriamente me dissesse:―«Mata o Mandarim, e tudo o que +vês em +valle e collina será teu»,―eu saberia +replicar-lhe, seguindo um exemplo illustre, +e erguendo o dedo ás profundidades +constelladas:―«O meu +reino não é d'este mundo!» Eu +conheço os meus authores. Mas eram cento e tantos mil +contos, offerecidos á luz d'uma vela de stearina, na +travessa da +Conceição, por um sujeito de chapéo +alto, apoiado a um guarda-chuva...<br /> + +<br /> + +Então não hesitei. E, de mão firme, +repeniquei a campainha. Foi talvez uma illusão; mas +pareceu-me que um sino, de bocca +tão vasta como o mesmo céo, badalava na +escuridão, através do +Universo, n'um tom temeroso que decerto <span class="pagenum">[27]</span>foi +acordar sóes que +faziam +né-né e planetas pançudos resonando +sobre os seus eixos...<br /> + +<br /> + +O individuo levou um dedo á palpebra, e limpando a lagrima +que ennevoára um instante o seu olho rutilante:<br /> + +<br /> + +―Pobre Ti-Chin-Fú!...<br /> + +<br /> + +―Morreu?<br /> + +<br /> + +―Estava no seu jardim, socegado, armando, para o lançar ao +ar, um papagaio de papel, no passatempo honesto d'um Mandarim +retirado,―quando o surprehendeu este <em>ti-li-tin</em> +da +campainha. Agora +jaz á +beira d'um arroio cantante, todo vestido de sêda amarella, +morto, de +pança ao ar, sobre a relva verde: e nos braços +frios tem o seu papagaio +de papel, que parece tão morto como elle. +Ámanhã +são os funeraes. Que a sabedoria de Confucio, penetrando-o, +ajude a bem emigrar a sua alma!<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[28]</span> +E o sujeito, erguendo-se, tirou respeitosamente o chapéo, +sahiu, com o seu guarda-chuva debaixo do braço.<br /> + +<br /> + +Então, ao sentir bater a porta, afigurou-se-me que emergia +d'um pesadêlo. Saltei ao corredor. Uma voz jovial fallava com +a +Madame Marques; e a cancella da escada cerrou-se subtilmente.<br /> + +<br /> + +―Quem é que sahiu agora, ó D. +Augusta?―perguntei, n'um suor.<br /> + +<br /> + +―Foi o Cabritinha que vai um bocadinho á batota...<br /> + +<br /> + +Voltei ao quarto: tudo lá repousava tranquillo, identico, +real. O in-folio ainda estava aberto na pagina temerosa. Reli-a: agora +parecia-me apenas a prosa antiquada d'um moralista caturra; cada +palavra se tornára como um carvão apagado...<br /> + +<br /> + +Deitei-me:―e sonhei que estava longe, para além de Pekin, +nas fronteiras <span class="pagenum">[29]</span>da +Tartaria, no kìosque d'um convento de +Lamas, +ouvindo maximas prudentes e suaves que escorriam, com um aroma fino de +chá, dos labios de um Buddha vivo.<br /> + +<br /> + +<h2>II</h2> + +<br /> + +<span class="smallcaps">Decorreu</span> um mez.<br /> + +<br /> + +Eu, no entanto, rotineiro e triste, lá ia pondo o meu +cursivo ao serviço dos poderes publicos, e admirando aos +domingos a pericia tocante com +que a D. Augusta lavava a caspa do Couceiro. Era <span class="pagenum">[32]</span>agora evidente para +mim que, n'essa noite, eu adormecera sobre o in-folio, e +sonhára +com uma «Tentação da +Montanha» sob +fórmas familiares. Instinctivamente, porém, +comecei a preoccupar-me com a China. Ia lêr os telegrammas +á Havaneza; e o que o meu interesse lá buscava, +eram sempre as noticias do +Imperio do Meio; parece porém que, a esse tempo, nada se +passava na +região das raças amarellas... A <em>Agencia +Havas</em> +só +tagarellava sobre a Herzegovina, a Bosnia, a Bulgaria e outras +curiosidades barbaras....<br /> + +<br /> + +Pouco a pouco fui esquecendo o meu episodio phantasmagorico: e ao mesmo +tempo, como gradualmente o meu espirito reserenava, voltaram de novo a +mover-se as antigas ambições que lá +habitavam,―um ordenado de Director Geral, um seio amoroso de Lola, +bifes <span class="pagenum">[33]</span>mais tenros +que os da D. Augusta. +Mas taes regalos pareciam-me tão inaccessiveis, +tão nascidos do sonho―como os proprios milhões +do Mandarim. E pelo monotono +deserto da vida,―lá foi seguindo, lá foi +marchando, a lenta +caravana das minhas melancolias...<br /> + +<br /> + +Um domingo de agosto, de manhã, estirado na cama em mangas +de camisa, eu dormitava, com o cigarro apagado no labio―quando a porta +rangeu devagarinho, e entreabrindo a palpebra dormente, vi curvar-se ao +meu lado uma calva respeitosa. E logo uma voz perturbada murmurou:<br /> + +<br /> + +―O snr. Theodoro?... O snr. Theodoro do Ministerio do Reino?...<br /> + +<br /> + +Ergui-me lentamente sobre o cotovêlo e respondi, n'um bocejo: +<br /> + +<br /> + +―Sou eu, cavalheiro.<br /> + +<br /> + +O individuo recurvou o espinhaço: <span class="pagenum">[34]</span>assim +na +presença augusta d'el-rei Bobeche se arquêa o +cortezão... Era pequenino e +obeso: a ponta das suiças brancas roçava-lhe as +lapellas do fraque +d'alpaca: veneraveis oculos d'oiro reluziam na sua face bochechuda, que +parecia uma prospera +personificação da Ordem: e todo elle tremia desde +a calva, lustrosa até aos botíns de bezerro. +Pigarreou, cuspilhou, balbuciou:<br /> + +<br /> + +―São noticias para vossa senhoria! Consideráveis +noticias! O meu nome é Silvestre... Silvestre, Juliano +& C.<sup>a</sup>... Um +serviçal criado de vossa excellencia... Chegaram justamente +pelo paquete de Southampton... +Nós somos correspondentes de Brito, Alves & C.<sup>a</sup> +de +Macau... +Correspondentes de Craig and Co d'Hong-Kong... As letras vem +d'Hong-Kong...<br /> + +<br /> + +O sujeito engasgava-se; e a sua <span class="pagenum">[35]</span>mão +gordinha agitava em +tremuras um <em>enveloppe</em> repleto, com um sello de +lacre negro.<br /> + +<br /> + +―Vossa excellencia―proseguiu―estava decerto prevenido... +Nós é que o não estavamos... A +atrapalhação +é natural... O que esperamos é que vossa +excellencia nos conserve a sua benevolencia... Nós sempre +respeitámos muito o caracter de vossa excellencia... Vossa +excellencia é +n'esta terra uma flôr de virtude, e espelho de bons! Aqui +estão os primeiros saques sobre Bhering and Brothers de +Londres... Letras a trinta dias sobre Rothschild...<br /> + +<br /> + +A este nome, resoante como o mesmo oiro, saltei vorazmente do leito.<br /> + +<br /> + +―O que é isso, senhor?―gritei.<br /> + +<br /> + +E elle, gritando mais, brandindo o <span class="pagenum">[36]</span><em>enveloppe</em>, +todo alçado +no bico dos botins:<br /> + +<br /> + +―São cento e seis mil contos, senhor! Cento e seis mil +contos sobre Londres, Paris, Hamburgo e Amsterdam, sacados a seu favor, +excellentissimo senhor!... A seu favor, excellentissimo senhor! Pelas +casas de Hong-Kong, de Chang-Hai e de Cantão, da +herança depositada do Mandarim Ti-Chin-Fú!!<br /> + +<br /> + +Senti tremer o Globo sob os meus pés―e cerrei um momento os +olhos. Mas comprehendi, n'um relance, que eu era, desde essa hora, como +uma incarnação do Sobrenatural, recebendo d'elle +a +minha força e possuindo os seus attributos. Não +podia comportar-me como um homem, +nem desconsiderar-me em expansões humanas. Até, +para +não quebrar a linha hieratica―abstive-me de <span class="pagenum">[37]</span>ir +soluçar, como m'o pedia a alma, +sobre o vasto seio da Madame Marques...<br /> + +<br /> + +D'ora em diante cabia-me a impassibilidade d'um Deus―ou d'um Demonio: +dei, com naturalidade, um puxão ás +calças, e disse a Silvestre, Juliano & C.<sup>a</sup> +estas +palavras:<br /> + +<br /> + +―Está bem! O Mandarim... Esse Mandarim que disse portou-se +com cavalheirismo. Eu sei de que se trata. É uma +questão de familia. Deixe ahi os papeis... Bons dias.<br /> + +<br /> + +Silvestre, Juliano & C.<sup>a</sup> retirou-se, +ás arrecuas, +de dorso vergado e fronte voltada ao chão.<br /> + +<br /> + +Eu então fui abrir, toda larga, a janella: e, dobrando para +traz a cabeça, respirei o ar calido, consoladamente, como +uma +corça cançada...<br /> + +<br /> + +Depois olhei para baixo, para a rua, onde toda uma burguezia se +escoava, <span class="pagenum">[38]</span>n'uma +pacata sahida de missa, entre duas filas de trens. +Fixei, aqui e além, inconscientemente, algumas cuias de +senhoras, alguns +metaes brilhantes d'arreios. E de repente, veio-me esta +idéa, esta +triumphante certeza―que todas aquellas tipoias as podia eu tomar +á hora +ou ao anno! Que nenhuma das mulheres que via, deixaria de me offerecer +o seu seio nú, a um aceno do meu desejo! Que todos esses +homens, de +sobrecasaca de domingo, se prostrariam diante de mim como diante de um +Christo, de um Mahomet ou de um Buddha, se eu lhes sacudisse junto +á face +cento e seis mil contos sobre as praças da Europa!...<br /> + +<br /> + +Apoiei-me á varanda: e ri, com tedio, vendo a +agitação ephemera d'aquella humanidade +subalterna―que se considerava livre e forte, em quanto por cima, <span class="pagenum">[39]</span>n'uma +sacada de quarto andar, eu tinha na +mão, n'um <em>enveloppe</em> lacrado de negro, +o principio mesmo da +sua fraqueza e da +sua escravidão!... Então, +satisfações do Luxo, regalos do Amor, orgulhos do +Poder, tudo gozei, pela imaginação, n'um +instante, e d'um só sôrvo. Mas logo, uma grande +saciedade me foi invadindo a alma: e sentindo o mundo aos meus +pés―bocejei como um leão farto.<br /> + +<br /> + +De que me serviam por fim tantos milhões, senão +para me trazerem, dia a dia, a affirmação +desoladora da villeza +humana?... E assim, ao choque de tanto oiro, ia desapparecer aos meus +olhos como um fumo a belleza moral +do Universo! Tomou-me uma tristeza mystica. Abati-me sobre uma cadeira; +e, com a face entre as mãos, chorei abundantemente.<br /> + +<br /> + +D'ahi a pouco a Madame Marques <span class="pagenum">[40]</span>abria +a porta, toda vistosa nas suas +sêdas pretas.<br /> + +<br /> + +―Está-se á sua espera para jantar, +enguiço!...<br /> + +<br /> + +Emergi da minha amargura para lhe responder seccamente:<br /> + +<br /> + +―Não janto.<br /> + +<br /> + +―Mais fica!<br /> + +<br /> + +N'esse momento estalavam foguetes ao longe. Lembrei-me que era domingo, +dia de touros: de repente uma visão rebrilhou, flammejou, +attrahindo-me deliciosamente:―era a tourada vista d'um camarote; +depois um jantar +com <em>Champagne</em>; á noite a orgia, como +uma +iniciação! Corri á mesa. Atulhei as +algibeiras de letras sobre Londres. Desci á rua com um +furor d'abutre fendendo o ar contra a presa. Uma caleche passava, +vazia. Detive-a, berrei:<br /> + +<br /> + +―Aos touros!<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[41]</span> ―São +dez tostões, meu amo!<br /> + +<br /> + +Encarei com repulsão aquelle reles pedaço de +materia organisada―que fallava em placas de prata a um colosso d'oiro! +Enterrei a +mão na algibeira ajoujada de milhões, e tirei o +meu metal: tinha +setecentos e vinte!<br /> + +<br /> + +O cocheiro bateu a anca da egoa e seguiu, resmungando. Eu balbuciei:<br /> + +<br /> + +―Mas tenho letras!... Aqui estão! Sobre Londres! Sobre +Hamburgo!...<br /> + +<br /> + +―Não péga.<br /> + +<br /> + +Setecentos e vinte!... E touros, jantar de lord, andaluzas nuas, todo +esse sonho expirou como uma bola de sabão que bate a ponta +de um prego.<br /> + +<br /> + +Odiei a Humanidade, abominei o Numerario. Outra tipoia, +lançada a trote, apinhada de gente festiva, quasi me +atropellou n'aquella +abstracção em que <span class="pagenum">[42]</span>eu +ficára com os +meus setecentos e vinte na palma da +mão suada.<br /> + +<br /> + +Cabisbaixo, enchumaçado de milhões sobre +Rothschild, voltei ao meu quarto andar; humilhei-me á Madame +Marques, aceitei-lhe o +bife corneo; e passei essa primeira noite de riqueza, bocejando sobre o +leito solitario,―em quanto fóra o alegre Couceiro, o +mesquinho +tenente de quinze mil reis de soldo, ria com a D. Augusta, repenicando +á viola o <em>Fado da Cotovia</em>.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Foi só na manhã seguinte, ao fazer a barba, que +reflecti sobre a origem dos meus milhões. Ella era +evidentemente sobrenatural e +suspeita.<br /> + +<br /> + +Mas como o meu Racionalismo me <span class="pagenum">[43]</span>impedia +d'attribuir estes thesouros +imprevistos á generosidade caprichosa de Deus ou do Diabo, +ficções puramente escolasticas; como os +fragmentos de Positivismo, que constituem o fundo da minha Philosophia, +não me permittiam a +indagação <em>das causas primarias, das +origens +essenciaes</em>―bem depressa me decidi +a aceitar seccamente este Phenomeno; e a utilisal-o com largueza. +Portanto corri de quinzena ao vento para o <em>London +Brazìlian +Bank</em>... +<br /> + +<br /> + +Ahi, arremessei para cima do balcão um papel sobre o <em>Banco +d'Inglaterra</em>, de mil libras; e soltei esta deliciosa +palavra:<br /> + +<br /> + +―Oiro!<br /> + +<br /> + +Um caixeiro suggeriu-me com doçura:<br /> + +<br /> + +―Talvez lho fosse mais commodo em notas...<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[44]</span> +Repeti seccamente:<br /> + +<br /> + +―Oiro!<br /> + +<br /> + +Atulhei as algibeiras, devagar, aos punhados: e na rua, ajoujado, +icei-me para uma caleche. Sentía-me gordo, sentia-me obeso; +tinha na bocca um sabor d'oiro, uma seccura de pó d'oiro na +pelle das +mãos: as paredes das casas pareciam-me faiscar como longas +laminas d'oiro: e dentro do cerebro ia-me um rumor surdo onde +retilintavam metaes―como o +movimento d'um oceano que nas vagas rolasse barras d'oiro.<br /> + +<br /> + +Abandonando-me á oscillação das molas, +rebolante como um odre mal firme, deixava cahir sobre a rua, sobre a +gente, o olhar turvo e tedioso do +sêr repleto. Emfim, atirando o chapéo para a nuca, +estirando a +perna, empinando o ventre, arrotei formidavelmente de flatulencia +ricaça...<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[45]</span> +Muito tempo rolei assim pela cidade, bestialisado n'um gozo de Nababo.<br /> + +<br /> + +Subitamente um brusco appetite de gastar, de dissipar oiro, veio-me +enfunar o peito como uma rajada que incha uma véla.<br /> + +<br /> + +―Pára, animal!―berrei, ao cocheiro.<br /> + +<br /> + +A parelha estacou. Procurei em redor com a palpebra meio cerrada alguma +coisa cara a comprar―joia de rainha ou consciencia de estadista: nada +vi; precipitei-me então para um estanco.<br /> + +<br /> + +―Charutos! de tostão! de cruzado! Mais caros! de dez +tostões!<br /> + +<br /> + +―Quantos?―perguntou servilmente o homem.<br /> + +<br /> + +―Todos!―respondi, com brutalidade.<br /> + +<br /> + +Á porta, uma pobre toda de luto, com o filho encolhido ao +seio, estendeu-me <span class="pagenum">[46]</span>a +mão transparente. Incommodava-me +procurar os +trocos de cobre por entre os meus punhados d'oiro. Repelli-a, +impaciente: e, de chapéo sobre o olho, encarei friamente a +turba.<br /> + +<br /> + +Foi então que avistei, adiantando-se, o vulto ponderoso do +meu Director Geral: immediatamente, achei-me com o dorso curvado em +arco e o +chapéo comprimentador roçando as lages. Era o +habito da +dependencia: os meus milhões não me tinham dado +ainda a verticalidade +á espinha...<br /> + +<br /> + +Em casa despejei o oiro sobre o leito, e rolei-me por cima d'elle, +muito tempo, grunhindo n'um gozo surdo. A torre, ao lado, bateu tres +horas; e +o sol apressado já descia, levando comsigo o meu primeiro +dia de opulencia... Então, couraçado de libras, +corri a +saciar-me!<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[47]</span> +Ah, que dia! Jantei n'um gabinete do Hotel Central, solitario e +egoista, com a mesa alastrada de Bordeus, Borgonha, Champagne, Rheno, +licôres de todas as communidades religiosas―como para matar +uma sêde de +trinta annos! Mas só me fartei de Collares. Depois, +cambaleando, +arrastei-me para o Lupanar! Que noite! A alvorada clareou por traz das +persianas; e +achei-me estatelado no tapete, exhausto e semi-nú, sentindo +o corpo e a alma como esvaírem-se, dissolverem-se n'aquelle +ambiente +abafado onde errava um cheiro de pó de arroz, de +fêmea e de +punch...<br /> + +<br /> + +Quando voltei á travessa da Conceição, +as janellas do meu quarto estavam fechadas, e a véla +expirava, com fogachos lividos, no +castiçal de latão. Então ao chegar +junto á cama, vi isto: estirada +de través, sobre a coberta, jazia uma figura <span class="pagenum">[48]</span>bojuda, de +Mandarim fulminado, vestida de +sêda amarella, com um grande rabicho solto; e entre os +braços +como morto tambem, tinha um papagaio de papel!<br /> + +<br /> + +Abri desesperadamente a janella: tudo desappareceu;―o que estava agora +sobre o leito era um velho paletot alvadio.<br /> + +<br /> + +<h2> +III</h2> + +<br /> + +<br /> + +<span class="smallcaps">Então</span> +começou a minha vida de milionario. Deixei +bem depressa a casa da Madame Marques―que, desde que me +sabía rico, me tratava +todos os dias a arroz dôce, e ella mesma me servia, com o seu +vestido de +sêda dos domingos. <span class="pagenum">[50]</span>Comprei, +habitei o palacete amarello, ao +Loreto: as magnificencias da minha installação +são bem conhecidas pelas gravuras indiscretas da +Illustração Franceza. Tornou-se +famoso na Europa o meu leito, d'um gosto exuberante e barbaro, com a +barra recoberta de +laminas d'ouro lavrado, e cortinados d'um raro brocado negro onde +ondeam, bordados a perolas, versos eroticos de Catullo; uma lampada, +suspensa +no interior, derrama alli a claridade lactea e amorosa d'um luar de +verão.<br /> + +<br /> + +Os meus primeiros mezes ricos, não o occulto, passei-os a +amar―a amar com o sincero bater de coração d'um +pagem +inexperiente. Tinha-a visto, como n'uma pagina de novella, regando os +seus craveiros á +varanda: chamava-se Candida; era pequenina, era loira; morava a +Buenos-Ayres, n'uma casinha <span class="pagenum">[51]</span>casta +recoberta de trepadeiras; e +lembrava-me pela +graça e pelo airoso da cinta, tudo o que a Arte tem creado +de mais fino e fragil―Mimi, Virginia, a Joanninha do Valle de +Santarem.<br /> + +<br /> + +Todas as noites eu cahia, em extasis de mystico, aos seus +pés côr de jaspe. Todas as manhãs lhe +alastrava o regaço de +notas de vinte mil reis: ella repellia-as primeiro com um +rubor,―depois, ao guardal-as na +gaveta, chamava-me o seu <em>anjo Tótó</em>. +<br /> + +<br /> + +Um dia que eu me introduzira, a passos subtis, por sobre o espesso +tapete syrio, até ao seu <em>boudoir</em>―ella +estava escrevendo, +muito enlevada, de dedinho no ar: ao vêr-me, toda tremula, +toda +pallida, escondeu o papel que tinha o seu monogramma. Eu +arranquei-lh'o, n'um ciume insensato. Era a carta, a carta costumada, a +carta necessaria, a <span class="pagenum">[52]</span>carta +que desde a velha antiguidade a mulher sempre +escreve; +começava por <em>meu idolatrado</em>―e era +para um alferes da +visinhança... +<br /> + +<br /> + +Desarraiguei logo esse sentimento do meu peito como uma planta +venenosa. Descri para sempre dos Anjos loiros, que conservam no olhar +azul o reflexo dos céos atravessados: de cima do meu oiro, +deixei +cahir sobre a Innocencia, o Pudor, e outras +idealisações +funestas acida gargalhada de Mephistopheles: e organisei friamente uma +existencia animal, grandiosa +e cynica.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Ao bater do meio dia, entrava na minha tina de marmore côr de +rosa, onde os perfumes derramados davam á <span class="pagenum">[53]</span>agua um tom opaco +de leite: +depoîs pagens tenros, de mão macia, +fríccionavam-me com o +ceremonial de quem celebra um culto: e embrulhado n'um +<em>robe-de-chambre</em> de sêda da +India, através da galeria, dando aqui e além um +olhar aos meus Fortunys e +aos meus Corots, entre alas silenciosas de lacaios, dirigia-me ao bife +á ingleza, servido em Sèvres, azul e oiro.<br /> + +<br /> + +O resto da manhã, se havia calor, passava-o sobre coxins de +setim côr de perola, n'um <em>boudoir</em> em +que a mobilia era de +porcelana fina de Dresde +e as flôres faziam um jardim d'Armida; ahi, saboreava o +<span class="smallcaps">Diario de Noticiais</span>, +em quanto lindas raparigas vestidas á +japoneza +refrescavam o ar, agitando leques de plumas.<br /> + +<br /> + +De tarde ia dar uma volta a pé, até ao Pote das +Almas: era a hora mais pesada <span class="pagenum">[54]</span>do +dia: encostado á bengala, +arrastando as pernas +molles, abria bocejos de fera saciada,―-e a turba abjecta parava a +contemplar, em extasis, o Nababo enfastiado!<br /> + +<br /> + +Ás vezes vinha-me como uma saudade dos meus tempos occupados +da Repartição. Entrava em casa; e encerrado na +livraria, onde o Pensamento da Humanidade repousava esquecido e +encadernado em marroquim, aparava uma penna de pato, e ficava horas +lançando sobre folhas do +meu querido Tojal d'outr'ora: «<em>Ill.<sup>mo</sup> +e Exc.<sup>mo</sup> +Snr.―Tenho +a honra de +participar a V. Exc.<sup>a</sup>... Tenho a honra de passar +ás +mãos de +V. Exc.<sup>a</sup>!...</em>».<br /> + +<br /> + +Ao começo da noite um criado, para annunciar o jantar, fazia +soar pelos corredores na sua tuba de prata, á moda gothica, +uma +harmonia solemne. Eu erguia-me <span class="pagenum">[55]</span>e +ia comer, magestoso e solitario. Uma +populaça +de lacaios, de librés de sêda negra, servia, n'um +silencio de +sombras que resvalam, as vitualhas raras, vinhos do preço de +joias: toda a mesa +era um esplendor de flôres, luzes, crystaes, +scintillações d'oiro:―e enrolando-se pelas +pyramides de fructos, misturando-se ao vapor dos pratos, errava, como +uma nevoa subtil, um tedio inenarravel...<br /> + +<br /> + +Depois, apopletico, atirava-me para o fundo do coupé―e +lá ia ás Janellas Verdes onde nutria, n'um jardim +de serralho, entre requintes musulmanos, um viveiro de +fêmeas: revestiam-me d'uma tunica +de sêda fresca e perfumada,―e eu abandonava-me a delirios +abominaveis... Traziam-me semi-morto para casa, ao primeiro alvor da +manhã: +fazia machinalmente o meu signal da cruz, e <span class="pagenum">[56]</span>d'ahi +a pouco roncava de +ventre +ao ar, livido e com um suor frio, como um Tiberio exhausto.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Entretanto Lisboa rojava-se aos meus pés. O pateo do +palacete estava constantemente invadido por uma turba: olhando-a +enfastiado das +janellas da galeria, eu via lá branquejar os peitilhos da +Aristocracia, negrejar a sotaina do Clero, e luzîr o suor da +Plebe: todos vinham +supplicar, de labio abjecto, a honra do meu sorriso e uma +participação no meu oiro. Ás vezes, +consentia em receber algum velho de titulo historico:―elle +adiantava-se pela sala, quasi roçando o tapete com os +cabellos brancos, tartamudeando adulações; e +immediatamente, +<span class="pagenum">[57]</span>espalmando sobre o +peito a mão de fortes vêas onde +corria um sangue de tres +seculos, offerecia-me uma filha bem-amada para esposa ou para +concubina.<br /> + +<br /> + +Todos os cidadãos me traziam presentes como a um Idolo sobre +o altar―uns Odes votivas, outros o meu monogramma bordado a cabello, +alguns chinelas ou boquilhas, cada um a sua consciencia. Se o meu olhar +amortecido fixava, por acaso, na rua, uma mulher―era logo ao outro dia +uma carta em que a creatura, esposa ou prostituta, me offertava a sua +nudez, o seu amor, e todas as complacencias da lascivia.<br /> + +<br /> + +Os jornalistas esporeavam a imaginação para achar +adjectivos dignos da minha grandeza; fui o <em>sublime snr. +Theodoro</em>, +cheguei a ser o <em>celeste +snr. Theodoro</em>; então, desvairada, a <span class="smallcaps">Gazeta <span class="pagenum">[58]</span>das +Locaes</span> +chamou-me o <em>extra-celeste snr. Theodoro</em>! Diante +de mim nenhuma +cabeça +ficou jámais coberta―ou usasse a corôa ou o +côco. Todos os dias +me era offerecida uma Presidencia de Ministerio ou uma +Direcção de +Confraria. Recusei sempre, com nojo.<br /> + +<br /> + +Pouco a pouco o rumor das minhas riquezas foi passando os confins da +Monarchia. O Figaro, cortezão, em cada numero fallou de mim, +preferindo-me a Henrique V; o grotesco immortal, que assigna +<em>Saint-Genest</em>, dirigiu-me apostrophes convulsivas, +pedindo-me para +salvar a França; e foi então que as +Illustrações estrangeiras publicaram, a +côres, as scenas do meu viver. Recebi de todas +as princezas da Europa enveloppes, com sêllos heraldicos, +expondo-me, por photographias, por documentos, a fórma dos +seus corpos e a +antiguidade <span class="pagenum">[59]</span>das +suas genealogias. Duas pilherias que soltei durante +esse anno foram +telegraphadas ao Universo pelos fios da Agencia Havas; e fui +considerado mais espirituoso que Voltaire, que Rochefort, e que esse +fino entendimento que se chama <em>Todo-o-Mundo</em>. +Quando o meu intestino +se alliviava com estampido―a Humanidade sabia-o pelas gazetas. Fiz +emprestimos aos Reis, subsidiei guerras civis―e fui caloteado por +todas as Republicas latinas que orlaram o golfo do Mexico.<br /> + +<br /> + +E eu, no entanto, vivia triste...<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Todas as vezes que entrava em casa estacava, arripiado, diante da mesma +visão: ou estirada no limiar da porta, <span class="pagenum">[60]</span>ou atravessada sobre +o leito d'oiro―lá jazia a figura bojuda, de rabicho negro e +tunica +amarella, com o seu papagaio nos braços... Era o Mandarim +Ti-Chin-Fú! Eu precipitava-me, de punho erguido: e tudo se +dissipava.<br /> + +<br /> + +Então cahia aniquilado, todo em suor, sobre uma poltrona, e +murmurava no silencio do quarto, onde as vélas dos +candelabros davam tons +ensaguentados aos damascos vermelhos:<br /> + +<br /> + +―<em>Preciso matar este morto</em>!<br /> + +<br /> + +E todavia, não era esta impertinencia d'um velho phantasma +pançudo, accommodando-se nos meus moveis, sobre as minhas +colchas, que me fazia saber mal a vida.<br /> + +<br /> + +O horror supremo consistia na idéa, que se me +cravára então no espirito como um ferro +inarrancavel―<em>que eu tinha assassinado um velho</em>!<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[61]</span> +Não fôra com uma corda em torno da garganta +á moda musulmana; nem com veneno n'um calix de vinho de +Syracusa, á maneira italiana +da Renascença; nem com algum dos methodos classicos, que na +historia das Monarchias teem recebido +consagrações augustas―a +punhal como D. João <span class="smallcaps">ii</span>, +á clavina como Carlos +<span class="smallcaps">ix</span>...<br /> + +<br /> + +Tinha eliminado a creatura, de longe, com uma campainha. Era absurdo, +phantastico, faceto. Mas não diminuia a tragica negrura do +facto: <em>eu assassinára um velho</em>!<br /> + +<br /> + +Pouco a pouco esta certeza ergueu-se, petrificou-se na minha alma, e +como uma columna n'um descampado dominou toda a minha vida interior: de +sorte que, por mais desviado caminho que tomassem os meus pensamentos +viam sempre negrejar no horisonte <span class="pagenum">[62]</span>aquella +Memoria accusadora; por mais +alto que se levantasse o vôo das minhas +imaginações, ellas terminavam por ir fatalmente +ferir as azas n'esse Monumento de miseria moral.<br /> + +<br /> + +Ah! por mais que se considere Vida e Morte como banaes +transformações da Substancia, é +pavoroso o pensamento―que se fez regelar um +sangue quente, que se immobilisou um musculo vivo! Quando depois de +jantar, sentindo ao lado o aroma do café, eu me estirava no +sophá, enlanguecido, n'uma sensação de +plenitude, elevava-se logo +dentro em mim, melancolico como o côro que vem d'um +ergastulo, todo um susurro de +accusações:<br /> + +<br /> + +―E todavia tu fizeste que esse bem-estar em que te regalas, nunca mais +fosse gozado pelo veneravel Ti-Chin-Fú!...<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[63]</span> +Debalde eu replicava á Consciencia, lembrando-lhe a +decrepitude do Mandarim, a sua gôta incuravel... Facunda em +argumentos, +gulosa de controversia, ella retorquia logo com furor:<br /> + +<br /> + +―Mas, ainda na sua actividade mais resumida, a vida é um +bem supremo: porque o encanto d'ella reside no seu principio mesmo, e +não +na abundancia das suas manifestações!<br /> + +<br /> + +Eu revoltava-me contra este pedantismo rhetorico de pedagogo rigido: +erguia alto a fronte, gritava-lhe n'uma arrogancia desesperada:<br /> + +<br /> + +―Pois bem! Matei-o! Melhor! Que queres tu? o teu grande nome de +Consciencia não me assusta! És apenas uma +perversão da sensibilidade nervosa. Posso eliminar-te com +<em>flôr de laranja</em>!<br /> + +<br /> + +E immediatamente sentia passar-me n'alma, com uma lentidão +de briza, um <span class="pagenum">[64]</span>rumor +humilde de murmurações +ironicas:<br /> + +<br /> + +―Bem, então come, dorme, banha-te e ama...<br /> + +<br /> + +Eu assim fazia. Mas logo, os proprios lençoes de Bretanha do +meu leito tomavam aos meus olhos apavorados os tons lividos d'uma +mortalha; a +agua perfumada em que me mergulhava arrefecia-me sobre a pelle, com a +sensação espessa d'um sangue que coalha: e os +peitos nús das minhas amantes entristeciam-me, como lapides +de marmore que encerram um corpo morto.<br /> + +<br /> + +Depois assaltou-me uma amargura maior: comecei a pensar que +Ti-Chin-Fú tinha de certo uma vasta familia, netos, bisnetos +tenros, que, despojados da herança que eu comia á +farta em +pratos de Sèvres, n'uma pompa de sultão +perdulario, iam atravessando na China todos +<span class="pagenum">[65]</span>os infernos +tradicionaes da miseria humana―os dias sem arroz, o corpo +sem +agasalho, a esmola recusada, a rua lamacenta por morada...<br /> + +<br /> + +Comprehendi então porque me perseguia a figura obesa do +velho letrado; e dos seus labios recobertos pelos longos pellos brancos +do seu bigode de +sombra, parecia-me sahir agora esta accusação +desolada:―«Eu não me lamento a mim, +fórma meio morta que era; chóro os +tristes que arruinaste, e que a estas horas, quando tu vens do seio +fresco das tuas +amorosas, gemem de fome, regelam na frialdade, apinhados n'um grupo +expirante, entre leprosos e ladrões, na <em>Ponte dos +Mendigos</em>, ao pé dos terraços do Templo +do +Céo!»<br /> + +<br /> + +Oh tortura engenhosa! Tortura realmente chineza! Não podia +levar á bocca <span class="pagenum">[66]</span>um +pedaço de pão sem +imaginar immediatamente o +bando faminto de criancinhas, a descendencia de Ti-Chin-Fú, +penando, como +passarinhos implumes que abrem debalde o bico e piam em ninho +abandonado; se me abafava no meu paletot era logo a visão de +desgraçadas senhoras, mimosas outr'ora de tepido conforto +chinez, hoje rôxas de frio, sob +andrajos de velhas sêdas, por uma manhã de neve; o +tecto +d'ébano do meu palacete lembrava-me a familia do Mandarim, +dormindo á beira dos +canaes, farejada pelos cães; e o meu coupé bem +forrado fazia-me +arripiar á idéa das longas caminhadas errantes, +por estradas encharcadas, sob um duro inverno asiatico.<br /> + +<br /> + +O que eu soffria!―E era o tempo em que a populaça invejosa +vinha pasmar <span class="pagenum">[67]</span>para +o meu palacete, commentando as felicidades +inaccessiveis que +lá deviam habitar!<br /> + +<br /> + +Emfim, reconhecendo que a Consciencia era dentro em mim como uma +serpente irritada―decidi implorar o auxilio d'Aquelle que dizem ser +superior á Consciencia porque dispõe da +Graça.<br /> + +<br /> + +Infelizmente eu não acreditava n'Elle... Recorri pois +á minha antiga divindade particular, ao meu dilecto idolo, +padroeira da minha familia, +Nossa Senhora das Dôres. E, regiamente pago, um povo de curas +e conegos, pelas cathedraes de cidade e pelas capellas +d'aldêa, foi +pedindo a Nossa Senhora das Dôres que voltasse os seus olhos +piedosos para o +meu mal interior... Mas nenhum allivio desceu d'esses céos +inclementes, para onde ha milhares d'annos <span class="pagenum">[68]</span>debalde +sobe o clamor da +miseria humana.<br /> + +<br /> + +Então eu proprio me abysmei em praticas piedosas―e Lisboa +assistiu a este espectaculo extraordinario: um ricaço, um +Nababo, +prostrando-se humildemente ao pé dos altares, balbuciando de +mãos postas phrases de <em>Salvè-Rainha</em>, +como se +visse na +Oração e no Reino do Céo que ella +conquista, outra cousa mais que uma consolação +ficticia que os que possuem tudo inventaram para contentar os que +não possuem +nada... Eu pertenço á Burguezia; e sei que se +ella mostra +á Plebe desprovída um paraiso distante, gozos +ineffaveis a alcançar―é +para lhe afastar a attenção dos seus cofres +repletos e da abundancia +das suas searas.<br /> + +<br /> + +Depois, mais inquieto, fiz dizer milhares de missas, simples e +cantadas, <span class="pagenum">[69]</span>para +satisfazer a alma errante de Ti-Chin-Fú. +Pueril +desvario d'um cerebro peninsular! O velho Mandarim na sua classe de +letrado, de +membro da Academia dos Han-Lin, collaborador provavel do grande tratado +<span class="smallcaps">Khou-Tsuane-Chou</span> que +já tem setenta e oito mil e setecentos +e trinta volumes, era certamente um sectario da Doutrina, da Moral +positiva de Confucio... Nunca elle, sequer, queimára mechas +perfumadas +em honra de Buddha: e os ceremoniaes do Sacrificio mystico deviam +parecer +á sua abominavel alma de grammatico e de sceptico como as +pantomimas dos palhaços, no theatro de Hong-Tung!<br /> + +<br /> + +Então prelados astutos, com experiencia catholica, deram-me +um conselho subtil―captar a benevolencia de Nossa Senhora das Dores +com presentes, +flôres, brocados e joias, como se quizesse +<span class="pagenum">[70]</span>alcançar +os favores d'Aspasia: e á maneira d'um +banqueiro obeso, que obtem as +complacencias d'uma dançarina dando-lhe um <em>Cottage</em> +entre +arvores―eu, +por uma suggestão sacerdotal, tentei peitar a dôce +Mãi dos Homens, erguendo-lhe uma cathedral toda de marmore +branco. A abundancia das flôres +punha entre os pilares lavrados perspectivas de paraisos: a +multiplicidade +dos lumes lembrava uma magnificencia sideral... Despezas +vãs! O +fino e erudito cardeal Nani veio de Roma consagrar a Igreja; mas, +quando eu n'esse dia entrei a visitar a minha hospeda divina, o que vi, +para +além das calvas dos celebrantes, entre a mystica nevoa dos +incensos, +não foi a Rainha da Graça, loira, na sua tunica +azul,―foi o velho +malandro com o seu olho obliquo e o seu papagaio nos braços! +Era a +<em>elle</em>, ao seu branco bigode <span class="pagenum">[71]</span>tartaro, á +sua pança +côr +d'oca, que todo um sacerdocio recamado d'oiro estava offerecendo, ao +roncar do orgão, a +Eternidade dos Louvores!...<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Então, pensando que Lisboa, o meio dormente em que me movia, +era favoravel ao desenvolvimento d'estas +imaginações―parti, viajei sobriamente, sem +pompa, com um bahú e um lacaio.<br /> + +<br /> + +Visitei, na sua ordem, classica, Paris, a banal Suissa, Londres, os +lagos taciturnos da Escocia; ergui a minha tenda diante das muralhas +evangelicas de Jerusalém; e d'Alexandria a Thebas, fui ao +comprido d'esse longo Egypto monumental e triste como o corredor d'um +mausoléo. Conheci o enjôo dos paquetes, <span class="pagenum">[72]</span>a +monotonia das ruinas, a +melancolia das multidões desconhecidas, as +desillusões do +<em>boulevard</em>: e o meu mal interior ia crescendo.<br /> + +<br /> + +Agora já não era só a amargura de ter +despojado uma familia veneravel: assaltava-me o remorso mais vasto de +ter privado toda uma sociedade +d'um Personagem fundamental, um letrado experiente, columna da Ordem, +esteio +d'Instituições. Não se póde +arrancar assim a um Estado uma personalidade do valor de cento e seis +mil contos, sem lhe perturbar o equilibrio... Esta idéa +pungia-me, acerbamente. Anciei por saber se na +verdade a desapparição de Ti-Chin-Fú +fôra funesta á decrepita China: li todos os +jornaes de Hong-Kong e de Chang-Hai, velei a noite sobre Historias de +viagens, consultei sabios missionarios:―e artigos, homens, <span class="pagenum">[73]</span>livros, +tudo me falla da decadencia do Imperio do Meio, provincias arruinadas, +cidades moribundas, plebes esfomeadas, pestes e rebelliões, +templos aluindo-se, leis perdendo a authoridade, a +decomposição d'um mundo, como uma nau encalhada +que a vaga desfaz tábua a +tábua!...<br /> + +<br /> + +E eu attribuia-me estas desgraças da Sociedade chineza! No +meu espirito doente Ti-Chin-Fú! tomára +então o +valor desproporcionado d'um Cesar, um Moysés, um d'esses +sêres providenciaes que +são a força d'uma raça. Eu +matára-o; e com elle desapparecera a vitalidade da sua +patria! O seu vasto cerebro poderia talvez ter salvado, a rasgos +geniaes, aquella velha monarchia asiatica―e eu +immobilisára-lhe a +acção creadora! A sua fortuna concorreria a +refazer a grandeza <span class="pagenum">[74]</span>do +Erario―e eu estava-a dissipando a offerecer +pecegos em janeiro ás messalinas do Helder!...―Amigos, +conheci o remorso colossal de ter arruinado um imperio!<br /> + +<br /> + +Para esquecer este tormento complicado, entreguei-me á +orgia. Installei-me n'um palacete da avenida dos Campos-Elysios―e fui +medonho. Dava festas á Trimalcião: e, nas horas +mais +asperas de furia libertina, quando das charangas, na estridencia brutal +dos cobres, rompiam os <em>can-cans</em>; quando +prostitutas, de seio +desbragado, ganiam coplas canalhas; quando os meus convidados bohemios, +atheus de cervejaria, injuriavam Deus, com a taça de +<em>Champagne</em> erguida―eu, +tomado subitamente como Heliogabalo d'um furor de bestialidade, d'um +ódio contra o Pensante <span class="pagenum">[75]</span>e +o Consciente, atirava-me ao +chão a +quatro patas e zurrava formidavelmente de burro...<br /> + +<br /> + +Depois quiz ir mais baixo, ao deboche da plebe, ás torpezas +alcoólicas do <em>Assomoir</em>: e quantas +vezes, vestido de blusa, +com o casquete para a +nuca, de braço dado com <em>Mes-Bottes</em> ou <em>Bibi-la-Gaillarde</em>, +n'um tropel avinhado, fui cambaleando pelos <em>boulevards</em> +exteriores, a +uivar, entre +arrotos:<br /> + +<br /> + +<div class="poetry"><em>Allons, enfants de la +patrie-e-e!...<br /> + +Le jour de +gloire est arrivé...</em></div> + +<br /> + +Foi uma manhã, depois d'um d'estes excessos, á +hora em que nas trevas da alma do debochado se ergue uma vaga aurora +espiritual―que me nasceu, +de repente, a idéa de partir para a China! E, como soldados +em +acampamento <span class="pagenum">[76]</span>adormecido, +que ao som do clarim se erguem, e um a um se +vão +juntando e formando columna―outras idéas se foram reunindo +no meu +espirito, alinhando-se, completando um plano formidavel... Partiria +para Pekin; descobriria a familia de Ti-Chin-Fú; esposando +uma das +senhoras, legitimaría a posse dos meus milhões; +daria +áquella casa letrada a antiga prosperidade; celebraria +funeraes pomposos ao Mandarim, para lhe +acalmar o espirito irritado; iria pelas provincias miseraveis fazendo +colossaes distribuições d'arroz; e, obtendo do +Imperador o botão de crystal de Mandarim, accesso facil a um +bacharel, substituir-me-hia +á personalidade desapparecida de Ti-Chin-Fú―e +poderia assim +restituir legalmente á sua patria, senão a +authoridade do +seu saber, ao menos a força do seu oiro.<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[77]</span> +Tudo isto, por vezes, me apparecia como um programma indefinido, +nevoento, pueril e idealista. Mas já o desejo d'esta +aventura original e epica me envolvera; e eu ia, arrebatado por elle, +como uma folha secca n'uma rajada.<br /> + +<br /> + +Anhelei, suspirei por pisar a terra da China!―Depois d'altos +preparativos, apressados a punhados d'oiro, uma noite parti emfim para +Marselha. Tinha alugado todo um paquete, o <em>Ceylão</em>. +E na +manhã seguinte, por um mar azul-ferrete, sob o vôo +branco das +gaivotas, quando os primeiros raios do sol ruborisavam as torres de +Nossa Senhora da Guarda, sobre o seu rochedo escuro―puz a +prôa ao Oriente.<br /> + +<br /> + +<h2>IV</h2> + +<br /> + +<span class="smallcaps">O Ceylão</span> +teve uma viagem calma e monotona até +Chang-Hai.<br /> + +<br /> + +D'ahi subimos pelo rio Azul a Tien-Tsin n'um pequeno <em>steamer</em> +da +Companhia Russel. Eu não vinha visitar a China n'uma +curiosidade ociosa de <em>touriste</em>: toda a paizagem +d'essa <span class="pagenum">[80]</span>provincia, +que +se assemelha +á dos vasos de porcelana, d'um tom azulado e vaporoso, com +collinasinhas calvas e de longe a longe um arbusto bracejante, me +deixou sombriamente +indifferente.<br /> + +<br /> + +Quando o capitão do <em>steamer</em>, um <em>yankee</em> +impudente de +focinho de chibo, ao passarmos á altura de Nankin, me propoz +parar, ir +percorrer as ruinas monumentaes da velha cidade de porcelana,―eu +recusei, com um movimento secco de cabeça, sem mesmo desviar +os olhos +tristes da corrente barrenta do rio.<br /> + +<br /> + +Que pesados e soturnos me pareceram os dias de +navegação de Tien-Tsin a Tung-Chou, em barcos +chatos que o cheiro dos remadores chinezes empestava; ora +através de terras baixas inundadas pelo +Pei-hó, ora ao longo de pallidos e infindaveis arrozaes; +passando aqui <span class="pagenum">[81]</span>uma +lugubre aldêa de lama negra, +além um campo coberto de +esquifes amarellos; topando a cada momento com cadaveres de mendigos, +inchados e esverdeados, que desciam ao fio d'agua, sob um +céo fusco e +baixo!<br /> + +<br /> + +Em Tung-Chou fiquei surprehendido, ao dar com uma escolta de cossacos +que mandava ao meu encontro o velho general Camilloff, heroico official +das campanhas da Asia Central, e então embaixador da Russia +em Pekin. Eu vinha-lhe recommendado como um sêr precioso e +raro: e o +verboso interprete Sá-Tó, que elle punha ao meu +serviço, explicou-me que as cartas de sêllo +imperial, avisando-o da minha chegada, +recebera-as elle, havia semanas, pelos correios da Chancellaria que +atravessam a Siberia em trenó, descem a dorso de +camêlo até +á Grande Muralha tartara, e <span class="pagenum">[82]</span>entregam +ahi a mala a esses +corredores mongolicos, vestidos de coiro escarlate, que dia e noite +galopam sobre Pekin.<br /> + +<br /> + +Camilloff enviava-me um poney da Manchouria, ajaezado de +sêda, e um cartão de visita, com estas palavras +traçadas a +lapis sob o seu nome: «<em>Saúde! o animal +é dôce de +bocca</em>!»<br /> + +<br /> + +Montei o poney: e a um <em>hurrah</em>! dos cossacos, n'um +agitar heroico de +lanças, partimos á desfilada pela poeirenta +planicie―porque já a tarde declinava, e as portas de Pekin +fecham-se mal o ultimo raio de sol +deixa as torres do Templo do Céo. Ao principio seguimos uma +estrada, caminho batido do transito das caravanas, atravancado de +enormes lages de marmore dessoldadas da antiga Via Imperial. Depois +passámos +a ponte de Pa-li-kao, toda de marmore branco, flanqueada de +dragões +arrogantes. <span class="pagenum">[83]</span>Vamos +correndo então á beira de +canaes d'agua +negra: começam a apparecer pomares, aqui e além +uma aldêa de côr +azulada, aninhada ao pé de um Pagode:―de repente, a um +cotovêlo do caminho, paro +assombrado...<br /> + +<br /> + +Pekin está diante de mim! É uma vasta muralha, +monumental e barbara, d'um negro baço, estendendo-se a +perder de vista, e, +destacando, com as architecturas babylonicas das suas portas de tectos +recurvos, sobre um fundo de poente de purpura ensanguentada...<br /> + +<br /> + +Ao longe, para o Norte, n'um vago de vapor roxo, esbatem-se, como +suspensas no ar, as montanhas da Mongolia...<br /> + +<br /> + +Uma rica liteira esperava-me á porta de Tung-Tsen-Men, para +eu atravessar Pekin até á Residencia militar de +Camilloff. A muralha agora, ao perto, parecia <span class="pagenum">[84]</span>erguer-se +até +aos céos com o +horror d'uma construcção biblica: á +sua base apinhava-se uma confusão de +barracas, feira exotica, onde rumorejava uma multidão, e a +luz de lanternas +oscillantes cortava já o crepúsculo de vagas +manchas côr de +sangue; os toldos brancos faziam ao pé do negro muro como um +bando de borboletas pousadas.<br /> + +<br /> + +Senti-me triste; subi á liteira, cerrei as cortinas de +sêda escarlate todas bordadas a oiro; e cercado dos cossacos, +eis-me entrando a velha Pekin, por essa porta babelica, na turba +tumultuosa, entre carretas, cadeirinhas de xarão, +cavalleiros mongolicos armados de +flechas, bonzos de tunica alvejante marchando um a um, e longas filas +de lentos dromedarios balançando a sua carga em cadencia...<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[85]</span> +D'ahi a pouco a liteira parou. O respeitoso Sá-Tó +correu as cortinas, e vi-me n'um jardim, escurecido e calado, onde, por +entre sycomoros seculares, kiosques alumiados brilhavam com uma luz +dôce, +como colossaes lanternas pousadas sobre a relva: e toda a sorte de +aguas correntes murmuravam na sombra. Sob um peristilo feito de +madeiros pintados a vermelhão, aclarado por fios de lampadas +de papel +transparente, esperava-me um membrudo figurão, de bigodes +brancos, apoiado +a um grosso espadão. Era o general Camilloff. Ao adiantar-me +para elle, +eu sentia o passo inquieto das gazellas fugindo de leve sob as +arvores...<br /> + +<br /> + +O velho heroe apertou-me um momento ao peito, e conduziu-me logo, +segundo os usos chinezes, ao banho da hospitalidade, uma vasta tina de +porcelana, <span class="pagenum">[86]</span>onde +entre rodelas finas de limão sobrenadavam +esponjas brancas, n'um perfume forte de lilaz...<br /> + +<br /> + +Pouco depois a lua banhava deliciosamente os jardins: e eu, muito +fresco, de gravata branca, entrava pelo braço de Camilloff +no <em>boudoir</em> da generala. Era alta e loira; tinha +os olhos verdes das +sereias de Homero; no decote baixo do seu vestido de sêda +branca pousava +uma rosa escarlate; e nos dedos, que lhe beijei, errava um aroma fino +de sandalo +e de chá.<br /> + +<br /> + +Conversámos muito da Europa, do Nihilismo, de Zola, de +Leão XIII, e da magreza de Sarah Bernardth...<br /> + +<br /> + +Pela galeria aberta penetrava um ar calido que rescendia a heliotropio. +Depois ella sentou-se ao piano―e a sua voz de contralto quebrou +até tarde os silencios melancolicos da cidade <span class="pagenum">[87]</span>tartara, com +as picantes +arias de <em>Madame Favart</em> e com as melodias +afagantes do <em>Rei de +Lahore</em>.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Ao outro dia cedo, encerrado com o general n'um dos kiosques do jardim, +contei-lhe a minha lamentavel historia e os motivos fabulosos que me +traziam a Pekin. O heroe escutava, cofiando sombriamente o seu espesso +bigode cossaco...<br /> + +<br /> + +―O meu prezado hospede sabe o chinez?―perguntou-me de repente, +fixando em mim a pupilla sagaz.<br /> + +<br /> + +―Sei duas palavras importantes, general: <em>Mandarim</em> +e +<em>chá</em>.<br /> + +<br /> + +Bile passou a sua mão de fortes cordovêas sobre a +medonha cicatriz que lhe sulcava a calva:<br /> + +<br /> + +―<em>Mandarim</em>, meu amigo, não é +<span class="pagenum">[88]</span>uma palavra +chineza, e ninguem a entende na China. É o nome que no +seculo XVI os navegadores do seu +paiz, do seu bello paiz...<br /> + +<br /> + +―Quando nós tinhamos navegadores...―murmurei, suspirando.<br /> + +<br /> + +Elle suspirou tambem, por polidez, e continuou:<br /> + +<br /> + +―...Que os seus navegadores deram aos funccionarios chinezes. Vem do +seu verbo, do seu lindo verbo...<br /> + +<br /> + +―Quando tinhamos verbos...―rosnei, no habito instinctivo de deprimir +a patria.<br /> + +<br /> + +Elle esgazeou um momento o seu olho redondo de velho mocho―e proseguiu +paciente e grave:<br /> + +<br /> + +―Do seu lindo verbo <em>mandar</em> ... Resta-lhe por +tanto <em>chá</em>. +É um vocabulo que tem um vasto papel na vida chineza, mas +julgo-o insufficiente <span class="pagenum">[89]</span>para +servir a todas as +relações +sociaes. O meu estimavel hospede pretende esposar uma senhora da +famillia Ti-Chin-Fú, +continuar a grossa influencia que exercia o Mandarim, substituir, +domestica e socialmente, esse chorado defunto... Para tudo isto +dispõe +da palavra <em>chá</em>. É pouco.<br /> + +<br /> + +Não pude negar―que era pouco. O venerando russo, franzindo +o seu nariz adunco de milhafre, pôz-me ainda outras +objecções que eu via erguerem-se diante do meu +desejo―como as muralhas mesmas de Pekin: nenhuma senhora +da familia Ti-Chin-Fú consentiria jámais em casar +com um barbaro; e seria impossivel, terrivelmente impossivel que o +Imperador, o Filho do Sol, concedesse a um estrangeiro as honras +privilegiadas d'um Mandarim...<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[90]</span> ―Mas porque m'as +recusaria?―exclamei.―Eu pertenço a uma +boa familia da provincia do Minho. Sou bacharel formado: portanto na +China, como em +Coimbra, sou um letrado! Já fiz parte d'uma +repartição publica... Possuo +milhões... Tenho a experiencia do estylo administrativo...<br /> + +<br /> + +O general ia-se curvando com respeito a esta abundancia dos meus +attributos.<br /> + +<br /> + +―Não é―disse elle emfim―que o Imperador +realmente o recusasse: é que o individuo que lh'o propozesse +seria immediatamente decapitado. A lei chineza, n'este ponto, +é explicita e secca.<br /> + +<br /> + +Baixei a cabeça, acabrunhado.<br /> + +<br /> + +―Mas, general―murmurei―eu quero livrar-me da presença +odiosa do velho Ti-Chin-Fú e do seu papagaio!... <span class="pagenum">[91]</span>Se eu +entregasse metade dos +meus milhões ao thesouro chinez, já que +não +me é dado pessoalmente applical-os, como Mandarim, +á prosperidade do Estado...? +Talvez Ti-Chin-Fú se calmasse...<br /> + +<br /> + +O general pousou-me paternalmente a vasta mão sobre o +hombro:<br /> + +<br /> + +―Êrro, consideravel êrro, mancebo! Esses +milhões nunca chegariam ao thesouro imperial. Ficariam nas +algibeiras insondaveis das classes dirigintes: seriam dissipados em +plantar jardins, colleccionar porcelanas, tapetar de pelles os soalhos, +fornecer sêdas +ás concubinas: não alliviariam a fome d'um +só chinez, nem +reparariam uma só pedra das estradas publicas... Iriam +enriquecer a orgia asiatica. A alma de Ti-Chin-Fú deve +conhecer bem o Imperio: e isso +não a satisfaria.<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[92]</span> ―E se eu +empregasse parte da fortuna do velho malandro em fazer +particularmente, como philanthropo, largas +distribuições d'arroz á +populaça faminta? É uma idéa...<br /> + +<br /> + +―Funesta―disse o general, franzindo medonhamente o sobr'olho.―A +côrte imperial veria ahi immediatamente uma +ambição +politica, o tortuoso plano de ganhar os favores da plebe, um perigo +para a Dynastia... O meu bom amigo seria decapitado... É +grave...<br /> + +<br /> + +―Maldição!―berrei.―-Então para que +vim eu á China?<br /> + +<br /> + +O diplomata encolheu vagarosamente os hombros; mas logo, mostrando n'um +sorriso astuto os seus dentes amarellos de cossaco:<br /> + +<br /> + +―Faça uma coisa. Procure a familia de +Ti-Chin-Fú... Eu indagarei do <span class="pagenum">[93]</span>primeiro +ministro, sua +excellencia o principe Tong, onde +pára essa prole interessante... Reuna-os, atire-lhes uma ou +duas duzias de +milhões... Depois prepare ao defunto funeraes regios. +Funeraes d'alto ceremonial, com um prestito d'uma legua, filas de +bonzos, todo um mundo de estandartes, palanquins, lanças, +plumas, andores escarlates, +legiões de carpideiras ululando sinistramente, etc. etc... +Se depois de tudo isto +a sua consciencia não adormecer e o phantasma insistir...<br /> + +<br /> + +―Então?<br /> + +<br /> + +―Córte as guelas.<br /> + +<br /> + +―Obrigado, general.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Uma coisa porém era evidente, e n'ella concordaram +Camilloff, o respeitoso Sá-Tó e a generala:―que, +para +frequentar <span class="pagenum">[94]</span>a +familia Ti-Chin-Fú, seguir os funeraes, +misturar-me á +vida de Pekin, eu devia desde já vestir-me como um chinez +opulento, da classe +letrada, para me ir habituando ao traje, ás maneiras, ao +ceremonial +mandarim...<br /> + +<br /> + +A minha face amarellada, o meu longo bigode pendente favoreciam a +caracterisação:―e quando na manhã +seguinte, depois d'arranjado pelos costureiros engenhosos da rua +Chá-Coua, entrei na sala +forrada de sêda escarlate, onde já rebrilhavam as +porcelanas do +almoço sobre a mesa de charão negro,―a generala +recuou como á +appariçâo do proprio Tong-Tché, Filho +do Céo!<br /> + +<br /> + +Eu trazia uma tunica de brocado azul escuro abotoada ao lado, com o +peitilho ricamente bordado de dragões e flôres +d'oiro: por cima um casabeque de sêda de um tom azul mais +claro, curto, <span class="pagenum">[95]</span>amplo +e +fôfo: as calças de setim côr de +avellã +descobriam ricas babouches amarellas pespontadas a perolas, e um pouco +da meia picada d'estrellinhas negras: +e á cinta, n'uma linda facha franjada de prata, tinha +mettido um leque de bambú, dos que teem o retrato do +philosopho +Lá-o-Tsé e são fabricados em Swaton.<br /> + +<br /> + +E, pelas mysteriosas correlações com que o +vestuario influenceia o caracter, eu sentia já em mim +idéas, instinctos +chinezes:―o amor dos ceremoniaes meticulosos, o respeito bureocratico +das +fórmulas, uma ponta de scepticismo letrado; e tambem um +abjecto terror do Imperador, o odio +ao estrangeiro, o culto dos antepassados, o fanatismo da +tradição, o gosto das coisas assucaradas...<br /> + +<br /> + +Alma e ventre, era já totalmente um <span class="pagenum">[96]</span>Mandarim. +Não +disse á generala:―<em>Bon jour, Madame</em>. +Dobrado ao meio, +fazendo girar os punhos +fechados sobre a fronte abaixada, fiz gravemente o <em>chin-chin</em>! +<br /> + +<br /> + +―É adorável, é precioso!―dizia ella, +com o seu lindo riso, batendo as maosinhas pallidas.<br /> + +<br /> + +N'essa manhã, em honra da minha nova +incarnação, havia um almoço chinez. +Que gentis guardanapos de papel de sêda escarlate, com +monstros fabulosos desenhados a negro! O serviço +começou +por ostras de Ning-Pó. Eximias! Absorvi duas duzias com um +intenso regalo chinez. Depois +vieram deliciosas febras de barbatana de tubarão, olhos de +carneiro +com picado d'alho, um prato de nenufares em calda d'assucar, laranjas +de +Cantão, e emfim o arroz sacramental, o arroz dos +avós...<br /> + +<br /> + +Delicado repasto, regado largamente <span class="pagenum">[97]</span>de +excellente vinho de +Chão-Chigne! E por fim, com que gôzo recebi a +minha taça d'agua +a ferver, onde deitei uma pitada de folhas de chá imperial, +da primeira colheita +de março, colheita unica, que é celebrada como um +rito santo pelas +mãos puras de virgens!...<br /> + +<br /> + +Duas cantadeiras entraram, em quanto nós fumavamos; e muito +tempo, n'uma modulação guttural, disseram velhas +cantigas dos +tempos da dynastia Ming, ao som de guitarras recobertas de pelles de +serpente, que dous tartaros agachados repenicavam, n'uma cadencia +melancolica e barbara. A +China tem encantos d'um raro gosto...<br /> + +<br /> + +Depois a loira generala cantou-nos, com chiste, a <em>Femme +à +barbe</em>: e quando o general sahiu com a sua escolta cossaca +para o Yamen +do principe Tong, a informar-se da residencia da familia +<span class="pagenum">[98]</span>Ti-Chin-Fú―eu, +repleto e bem disposto, sahi com +Sá-Tó a +vêr Pekin.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +A habitação de Camilloff ficava na cidade +tartara, nos bairros militares e nobres. Ha aqui uma tranquillidade +austera. As ruas assemelham-se a largos caminhos d'aldêa +sulcados pelas rodas dos carros; e +quasi sempre se caminha ao comprido de um muro, d'onde sahem ramos +horisontaes de sycomoros.<br /> + +<br /> + +Por vezes uma carreta passa rapidamente, ao trote de um poney mongol, +com altas rodas cravejadas de pregos dourados; tudo n'ella oscilla, o +toldo, as cortinas pendentes de sêda, os ramos de plumas aos +angulos; e dentro entrevê-se alguma linda dama chineza, +coberta de +brocados claros, a cabeça toda cheia <span class="pagenum">[99]</span>de flôres, +fazendo girar nos +pulsos dois aros de prata, com um ar de tedio ceremonioso. Depois +é alguma +aristocratica cadeirinha de Mandarim, que koulis vestidos d'azul, de +rabicho solto, vão levando a um trote arquejante para os +Yamens do Estado; +precede-os uma criadagem maltrapilha que ergue ao alto rolos de seda +com inscripções bordadas, insignias +d'authoridade; e +dentro o personagem bojudo, com enormes oculos redondos, folheia a sua +papelada ou dormita de beiço cahido...<br /> + +<br /> + +A cada momento paravamos a olhar as lojas ricas, com as suas taboletas +verticaes de letras douradas sobre fundo escarlate: os freguezes, n'um +silencio d'igreja, subtis como sombras, vão examinando as +preciosidades―porcelanas da dynastia Ming, bronzes, esmaltes, marfins, +sêdas, armas marchetadas, os <span class="pagenum">[100]</span>leques +maravilhosos de Swaton: +por vezes, uma fresca rapariga d'olho obliquo, tunica azul, e papoilas +de papel +nas tranças, desdobra algum raro brocado diante d'um grosso +chinez que o contempla beatamente, com os dedos cruzados na +pança: ao +fundo o mercador apparatoso e immovel, escreve com um pincel sobre +longas taboinhas de sandalo: e um perfume adocicado que sahe das coisas +perturba e entristece...<br /> + +<br /> + +Eis-aqui a muralha que cérca a Cidade interdictca, morada +santa do Imperador! Moços nobres vem descendo do +terraço +d'um templo onde se estiveram adestrando á frecha. +Sá-Tó +disse-me os seus nomes: eram da guarda selecta, que nas ceremonias +escolta o guarda-sol de +sêda amarella, com o Dragão bordado, que +é o emblema +sagrado do Imperador. Todos elles comprimentaram profundadamente <span class="pagenum">[101]</span>um +velho que ia passando, de +barbas venerandas, com o casabeque amarello que é o +privilegio do ancião; vinha fallando só, e trazia +na +mão uma vara sobre que pousavam cotovias domesticadas... Era +um principe do Imperio.<br /> + +<br /> + +Estranhos bairros! Mas nada me divertia como vêr a cada +instante, a uma porta de jardim, dois Mandarins pançudos que +para entrar se +trocavam indefinidamente salamalés, cortezias, recusas, +risinhos +agudos d'etiqueta, todo um ceremonial dogmatico―que lhes fazia +oscillar d'um modo picaresco, sobre as costas, as longas pennas de +pavão. +Depois se erguia os olhos para o ar, lá via sempre pairar +enormes +papagaios de papel, ora em fórma de dragões, ora +de cetaceos, +ora d'aves fabulosas―enchendo o espaço d'uma inverosimil +legião <span class="pagenum">[102]</span>de +monstros transparentes e ondeantes...<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +―Sá-Tó, basta de cidade tartara! Vamos +vêr os bairros chinezes...<br /> + +<br /> + +E lá fomos penetrando na cidade chineza, pela porta +monstruosa de Tchin-Men. Aqui habita a burguezia, o mercador, a +populaça. +As ruas alinham-se como uma pauta; e no sólo vetusto e +lamacento, +feito da immundicie de gerações recalcada desde +seculos, +ainda aqui e além jaz alguma das lages de marmore +côr de rosa que outr'ora o +calçavam, no tempo da grandeza dos Ming.<br /> + +<br /> + +Dos dois lados são―ora terrenos vagos onde uivam manadas de +cães famintos, ora filas de casebres fuscos, ora pobres +lojas com as suas taboletas esguias <span class="pagenum">[103]</span>e +sarapintadas, +balouçando-se d'uma haste +de ferro. A distancia erguem-se os arcos triumphaes feitos de barrotes +côr de purpura, ligados no alto por um telhado oblongo de +telhas azues envernizadas, que rebrilham como esmaltes. Uma +multidão +rumorosa e espessa, onde domina o tom pardo e azulado dos trajes, +circula sem cessar; a poeira envolve tudo d'uma nevoa amarellada; um +fedor acre exhala-se dos enxurros negros; e a cada momento uma longa +caravana de camêlos fende lentamente a turba, conduzida por +mongoes +sombrios vestidos de pelle de carneiro...<br /> + +<br /> + +Fomos até ás entradas das pontes sobre os canaes, +onde saltimbancos semi-nús, com mascaras simulando demonios +pavorosos, fazem +destrezas d'um picaresco barbaro e subtil; e muito tempo estive a +admirar os astrologos de <span class="pagenum">[104]</span>longas +tunicas, com dragões de +papel collados +ás cóstas, vendendo ruidosamente horoscopos e +consultas d'astros. Oh cidade fabulosa e singular!<br /> + +<br /> + +De repente ergue-se uma gritaria! Corremos: era um bando de presos, que +um soldado, de grandes oculos, ia impellindo com o guarda-sol, +amarrados uns aos outros pelo rabicho! Foi ahi n'essa avenida, que eu +vi o estrepitoso cortejo de um funeral de Mandarim, todo ornado de +auriflammas e de bandeirolas; grupos de sujeitos funebres vinham +queimando papeis em fogareiros portateis; mulheres esfarrapadas uivavam +de dôr espojando-se sobre tapetes; depois erguiam-se, +galhofavam, e um kouli vestido de luto branco servia-lhes logo +chá, d'um +grande bule em fórma d'ave.<br /> + +<br /> + +Ao passar junto ao Templo do Céo, vejo apinhada n'um largo +uma legiao <span class="pagenum">[105]</span>de +mendigos; tinham por vestuario um tijolo preso +á cinta n'um +cordel; as mulheres, com os cabellos entremeados de velhas +flôres de +papel, roiam ossos tranquillamente; e cadaveres de crianças +apodreciam ao +lado, sob o vôo dos moscardos. Adiante topamos com uma jaula +de traves, +onde um condemnado estendia, através das grades, as +mãos +descarnadas, á esmola... Depois Sá-Tó +mostrou-me respeitosamente +uma praça estreita: ahi, sobre pilares de pedra, poupavam +pequenas gaiolas contendo +cabeças de decapitados: e gotta a gotta ia pingando d'ellas +um sangue espesso e +negro...<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +―Ouf!―exclamei, fatigado e aturdido.―Sá-Tó, +agora quero o repouso, o silencio, e um charuto caro...<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[106]</span> +Elle curvou-se: e, por uma escadaria de granito, levou-me ás +altas muralhas da cidade, formando uma esplanada que quatro carros de +guerra +a par podem percorrer durante leguas.<br /> + +<br /> + +E emquanto Sá-Tó, sentado n'um vão +d'ameia, bocejava n'um desafôgo de <em>cicerone</em> +enfastiado, eu +fumando contemplei muito tempo aos meus +pés a vasta Pekin...<br /> + +<br /> + +É como uma formidavel cidade da Biblia, Babel, ou Ninive que +o propheta Jonas levou tres dias a atravessar. O grandioso muro +quadrado limita os +quatro pontos do horisonte, com as suas portas de torres monumentaes, +que o ar azulado, áquella distancia, faz parecer +transparentes. E na immensidão do seu recinto agglomeram-se +confusamente +verduras de bosques, lagos artificiaes, canaes scintillantes como +aço, +pontes de <span class="pagenum">[107]</span>marmore, +terrenos alastrados de ruinas, telhados envernizados +reluzindo +ao sol; por toda a parte são pagodes heraldicos, brancos +terraços de templos, arcos triumphaes, milhares de kiosques +sahindo d'entre as folhagens dos jardins; depois espaços que +parecem um +montão de porcelanas, outros que se assemelham a monturos de +lama; e sempre a intervallos regulares o olhar encontra algum dos +bastiões, +d'um aspecto heroico e fabuloso...<br /> + +<br /> + +A multidão, junto a essas edificações +grandiosas, é apenas como grãos d'arêa +negra que um vento brando vai trazendo e levando...<br /> + +<br /> + +Aqui está o vasto palacio imperial, entre arvoredos +mysteriosos, com os seus telhados d'um amarello d'oiro vivo! Como eu +desejaria penetrar-lhe +os segredos, e ver desenrolar-se, pelas galerias <span class="pagenum">[108]</span>sobrepostas, a +magnificencia barbara d'essas Dynastias seculares!<br /> + +<br /> + +Além ergue-se a torre do Templo do Céo semelhando +três guarda-soes sobrepostos: depois a grande columna dos +Principios, hieratica e +sêcca como o Genio mesmo da Raça: e adiante +branquejam n'uma meia +tinta sobrenatural os terraços de jaspe do Santuario da +Purificação...<br /> + +<br /> + +Então interrogo Sá-Tó: e o seu dedo +respeitoso vai-me mostrando o Templo dos Antepassados, o Palacio da +Soberana Concordia, o +Pavilhão das Flôres das Letras, o Kiosque dos +Historiadores, fazendo brilhar, entre os bosques sagrados que os +cercam, os seus telhados lustrosos de +faianças azues, verdes, escarlates e côr de +limão. Eu +devorava, d'olho avido, esses monumentos da Antiguidade asiatica, n'uma +curiosidade de <span class="pagenum">[109]</span>conhecer +as impenetraveis classes que os habitam, o principio das +Instituições, a +significação dos Cultos, o espirito das suas +letras, a grammatica, o dogma, a estranha vida interior d'um cerebro de +letrado chinez... Mas esse mundo é inviolavel como um +Santuario...<br /> + +<br /> + +Sentei-me na muralha, e os meus olhos perderam-se pela planicie arenosa +que se estira para além das portas até aos +contrafortes dos montes mongolicos; ahi incessantemente redemoinham +ondas infindaveis de +poeira; a toda a hora negrejam filas vagarosas de caravanas... +Então +invadiu-me a alma uma melancolia, que o silencio d'quellas alturas, +envolvendo Pekin, tornava d'um vago mais desolado: era como uma saudade +de mim mesmo, um longo pezar de me sentir alli isolado, absorvido +n'aquelle mundo duro e barbaro: <span class="pagenum">[110]</span>lembrei-me, +com os olhos humedecidos, +da minha aldêa do Minho, do seu adro assombreado de +carvalheiras, a +venda com um ramo de louro á porta, o alpendre do ferrador, +e os ribeiros +tão frescos quando verdejam os linhos...<br /> + +<br /> + +Aquella era a época em que as pombas emigram de Pekin para o +sul. Eu via-as reunirem-se em bandos por cima de mim, partindo dos +bosques dos templos e dos pavilhões imperiaes; cada uma +traz, para a +livrar dos milhafres, um leve tubo de bambu que o ar faz silvar; e +aquellas nuvens +brancas passavam como impellidas d'uma aragem molle, deixando no +silencio um lento e melancolico suspiro, uma +ondulação eolia, que se perdia nos ares +pallidos...<br /> + +<br /> + +Voltei para casa, pesado e pensativo.<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[111]</span> +Ao jantar, Camilloff, desdobrando o seu guardanapo, pediu-me com +bonhomia as minhas impressões de Pekin.<br /> + +<br /> + +―Pekin faz-me sentir bem, general, os versos d'um poeta nosso:<br /> + +<br /> + +<div class="poetry">Sôbolos rios que +vão<br /> + +Por +Babylonia me achei...</div> + +<br /> + +―Pekin é um monstro!―disse Camilloff oscillando +reflectidamente a calva.―E agora considere, que a esta capital, +á classe +tartara e conquistadora que a possue, obedecem trezentos +milhões +d'homens, uma raça subtil, laboriosa, soffredora, prolifica, +invasora... +Estudam as nossas sciencias... Um calice de Medoc, Theodoro?... Teem +uma marinha formidavel! O exercito, que <span class="pagenum">[112]</span>outr'ora +julgava +destroçar o +estrangeiro com dragões de papelão d'onde sahiam +bichas de fogo, +tem agora tactica prussiana e espingarda d'agulha! Grave!<br /> + +<br /> + +―E todavia, general, no meu paiz, quando, a proposito de Macau, se +falla do Imperio Celeste, os patriotas passam os dedos pela grenha, e +dizem negligentemente: <em>Mandamos lá cincoenta +homens, e +varremos a China</em>...<br /> + +<br /> + +A esta sandice―fez-se um silencio. E o general, depois de tossir +formidavelmente, murmurou, com condescendencia:<br /> + +<br /> + +―Portugal é um bello paiz...<br /> + +<br /> + +Eu exclamei com seccura e firmeza:<br /> + +<br /> + +―É uma choldra, general.<br /> + +<br /> + +A generala, collocando delicadamente á borda do prato uma +aza de frango, e limpando o dedinho, disse:<br /> + +<br /> + +―É o paiz da canção de Mignon. +É lá que floresce a laranjeira...<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[113]</span> +O gordo Meriskoff, doutor allemão pela Universidade de Bonn, +chanceller da legação, homem de poesia e de +commentario, +observou com respeito:<br /> + +<br /> + +―Generala, o dôce paiz de Mignon é a Italia: +<em>Conheces tu a terra privilegiada onde a laranjeira +dá +flor</em>? O divino Goethe +referia-se á Italia, <em>Italia mater</em>... A +Italia +será o eterno amor da +humanidade sensivel!<br /> + +<br /> + +―Eu prefiro a França!―suspirou a esposa do primeiro +secretario, uma bonecasinha sardenta, de cabello arruivascado.<br /> + +<br /> + +―Ah! a França!...―murmurou um addido, revirando um bugalho +d'olho ternissimo.<br /> + +<br /> + +O gordo Meriskoff ageitou os oculos d'oiro:<br /> + +<br /> + +―A França tem um mal, que é a Questão +social...<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[114]</span> ―Oh! a +Questão social!―rosnou sombriamente Camilloff.<br /> + +<br /> + +―Ah! a Questão social!...―considerou ponderosamente o +addido.<br /> + +<br /> + +E discreteando com tanta sapiencia, chegámos por fim ao +café.<br /> + +<br /> + +Ao descer ao jardim, a generala, apoiando-se sentimentalmente ao meu +braço, murmurou-me, junto á face:<br /> + +<br /> + +―Ai, quem me dera viver n'esses paizes apaixonados, onde verdejam os +laranjaes!...<br /> + +<br /> + +―É lá que se ama, generala―segredei-lhe eu, +levando-a dôcemente para a escuridão dos +sycomoros...<br /> + +<br /> + +<h2>V</h2> + +<br /> + +<span class="smallcaps">Foi</span> necessario todo +um longo verão para descobrir a +provincia onde residira o defunto Ti-Chin-Fú!<br /> + +<br /> + +Que episodio administrativo tão pittoresco, tão +chinez! O serviçal Camillof, que passava o dia inteiro a +percorrer os Yamens do Estado, teve de provar primeiro que o desejo de +conhecer a morada d'um velho Mandarim não encobria <span class="pagenum">[116]</span>uma +conspiração +contra a segurança do Imperio; e depois foi-lhe ainda +preciso jurar que não havia n'esta +curiosidade um attentado contra os Ritos sagrados! Então, +satisfeito, o +principe Tong permittiu que se fizesse o inquerito imperial: centenares +d'escribas empallideceram noite e dia, de pincel na mão, +desenhando +relatorios sobre papel d'arroz; mysteriosas conferencias sussurraram +incessantemente por todas as repartições da +Cidade Imperial, desde o Tribunal astronomico até ao Palacio +da Bondade Preferida; e +uma população de koulis transportava da +legação russa para os kiosques da Cidade +Interdicta, e d'ahi para o Pateo dos Archivos padiolas estalando +ao peso de maços de documentos vetustos...<br /> + +<br /> + +Quando Camilloff perguntava <em>pelo resultado</em>, +vinha-lhe a resposta, +satisfactoria <span class="pagenum">[117]</span>que +se estavam consultando os Livros Santos de +Lá-o-Tsé, ou que se iam explorar velhos textos do +tempo de Nor-ha-chú. +E para calmar a impaciencia bellica do russo, o principe Tong remettia, +com estes recados subtis, algum substancial presente de confeitos +recheados, ou de gomos de bambú em calda d'assucar...<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Ora em quanto o general trabalhava com fervor para encontrar a familia +Ti-Chin-Fú,―eu ia tecendo horas de sêda e oiro +(assim diz um poeta japonez) aos pés pequeninos da +generala...<br /> + +<br /> + +Havia um kiosque no jardim sob os sycomoros, que se denominava, +á maneira chineza, do <em>Repouso discreto</em>:―ao +lado um arroio +fresco ia cantando <span class="pagenum">[118]</span>dôcemente +sob uma pontesinha rustica +pintada de +côr de rosa. As paredes eram apenas um gradeado de +bambú fino forrado de +sêda côr de ganga: o sol, passando +através d'ellas, fazia uma luz +sobrenatural de opala desmaiada. Ao centro afofava-se um divan de +sêda +branca, d'uma poesia de nuvem matutina, attrahente como um leito +nupcial. Aos cantos, +em ricas jarras transparentes da época de Yeng, erguiam-se, +na sua gentileza aristocratica, lirios escarlates do Japão. +Todo o +soalho estava recoberto d'esteiras finas de Nankin; e junto +á +janella rendilhada, sobre um airoso pedestal de sandalo, pousava aberto +ao alto +um leque formado de laminas de crystal separadas, que a aragem entrando +fazia vibrar, n'uma modulação melancolica e +terna.<br /> + +<br /> + +As manhãs do fim d'agosto em <span class="pagenum">[119]</span>Pekin +são muito +suaves; já erra no ar um enternecimento outonal. A essa hora +o conselheiro Meriskoff, os officiaes da legação, +estavam sempre na +chancellaria <em>fazendo a mala</em> para S. Petersburgo.<br /> + +<br /> + +Eu então, de leque na mão, pisando subtilmente na +ponta das babouches de setim as ruasinhas areadas do jardim, ia +entreabrir a porta do <em>Repouso +discreto</em>:<br /> + +<br /> + +―Mimi?<br /> + +<br /> + +E a voz da generala respondia, suave como um beijo:<br /> + +<br /> + +―<em>All right</em>...<br /> + +<br /> + +Como ella era linda vestida de dama chineza! Nos seus cabellos +levantados alvejavam flôres de pecegueiro; e as sobrancelhas +pareciam mais puras e negras avivadas a tinta de Nankin. A camisinha de +gaze, bordada <span class="pagenum">[120]</span>a +soutache de filigrana d'oiro, collava-se aos seus seios +pequeninos e direitos: vastas, fôfas calças de +foulard côr de <em>côxa de Nympha</em>, +que lhe davam uma +graça de serralho, recahiam sobre +o tornozêlo fino, coberto de meia de seda amarella:―e apenas +tres dedos da minha mão cabiam na sua chinelinha...<br /> + +<br /> + +Chamava-se Vladimira; nascera ao pé de Nidji-Novogorod; e +fôra educada por uma tia velha que admirava Rousseau, lia +Faublas, usava o cabello empoado, e parecia a grossa lithographia +cossaca d'uma dama galante de Versalhes...<br /> + +<br /> + +O sonho de Vladimira era habitar Paris; e fazendo ferver delicadamente +as folhas de chá, pedia-me historias ladinas de <em>Cocottes</em>, +e dizia-me o seu culto por Dumas filho...<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[121]</span> +Eu arregaçava-lhe a larga manga do casabeque de +sêda côr de folha morta, e ia fazendo viajar os +meus labios devotos pela pelle fresca dos seus bellos +braços;―e depois sobre o divan, +enlaçados, peito contra peito, n'um extasi mudo, sentiamos +as laminas de crystal resoar eoliamente, as +pêgas azues esvoaçarem pelos platanos, o fugitivo +rhythmo do arroio corrente...<br /> + +<br /> + +Os nossos olhos humedecidos encontravam ás vezes um quadro +de setim preto, por cima do divan, onde em caracteres chinezes se +desenrolavam sentenças do Livro Sagrado de Li-Num +«sobre os +deveres das esposas». Mas nenhum de nós percebia o +chinez... E no silencio os nossos +beijos recomeçavam, espaçados, soando +dôcemente, e comparaveis (na lingua florida <span class="pagenum">[122]</span>d'aquelles +paizes) a perolas que cahem uma a uma sobre uma +bacia de prata...―Oh suaves séstas dos jardins de Pekin, +onde +estaes vós? Onde estaes, folhas mortas dos lirios escarlates +do +Japão?...<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Uma manhã Camilloff entrando na chancellaria, onde eu fumava +o cachimbo d'amizade de companhia com Meriskoff, atirou o seu enorme +sabre para um +canapé, e contou-nos radiante as noticias que lhe dera o +penetrante principe Tong.―Descobrira-se emfim que um opulento +Mandarim, de nome Ti-Chin-Fú, vivera outr'ora nos confins da +Mongolia, na +villa de Tien-Hó! Tinha morrido subitamente: e a sua larga +descendencia residia lá, em miseria, n'um casebre vil...<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[123]</span> +Esta descoberta, é certo, não fôra +devida á sagacidade da burocracia imperial―mas fizera-a um +astrologo do templo de Faqua, que durante vinte noites +folheára no céo o luminoso archivo +dos astros...<br /> + +<br /> + +―Theodoro, ha-de ser o seu homem!―exclamou Camilloff.<br /> + +<br /> + +E Meriskoff repetiu, sacudindo a cinza do cachimbo:<br /> + +<br /> + +―Ha-de ser o seu homem, Theodoro!<br /> + +<br /> + +―O meu homem...―murmurei sombriamente.<br /> + +<br /> + +Era talvez o <em>meu homem</em>, sim! Mas não +me seduzia ir +procurar o <em>meu homem</em> ou a sua familia, na +monotonia d'uma caravana, +por essas desoladas extremidades da China!... Depois, desde que +chegára a Pekin, eu não tornára a +avistar a fórma +<span class="pagenum">[124]</span>odiosa de +Ti-Chin-Fú e do seu papagaio. A Consciencia era +dentro em mim como uma pomba adormecida. Certamente, +o alto esforço de me ter arrancado ás +doçuras do <em>boulevard</em> e do Loreto, de +ter sulcado os mares +até ao Império do Meio, +parecera á Eterna Equidade uma +expiação sufficiente e uma +peregrinação reparadora. Certamente +Ti-Chin-Fú, acalmado, recolhera-se com o seu +papagaio á sempiterna Immobilidade... Para que iria eu, +pois, a +Tien-Hó? Porque não ficaria alli, n'aquelle +amavel Pekin, comendo nenufares em calda d'assucar, abandonando-me +ás somnolencias amorosas do +<em>Repouso discreto</em>, e pelas tardes azuladas, dando o +meu passeio pelo +braço do bom Meriskoff, nos terraços de jaspe da +Purificação ou sob os cedros do Templo do +Céo?...<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[125]</span> +Mas já o zeloso Camilloff, de lapis na mão, ia +marcando no mappa o meu itinerário para Tien-Hó! +E mostrando-me, n'um +desagradavel entrelaçamento, sombras de montes, linhas +tortuosas de rios, +esfumados de lagôas:<br /> + +<br /> + +―Aqui está! O meu hospede sobe até +Ni-ku-hé, na margem do Pei-Hó... D'ahi, em barcos +chatos vai a My-yun. Boa cidade, ha lá um +Buddha vivo... D'ahi, a cavallo, segue até á +fortaleza +de Ché-hia. Passa a grande muralha, famoso +espectáculo!... Descança +no forte de Ku-pi-hó. Póde lá +caçar a gazella. Soberbas +gazellas... E com dois dias de caminhada está em +Tien-Hó... Brilhante, hein?... +Quando quer partir? Ámanhã?...<br /> + +<br /> + +―Ámanhã―rosnei, tristonho.<br /> + +<br /> + +Pobre generala! N'essa noite, em <span class="pagenum">[125]</span>quanto +Meriskoff, ao fundo da sala, +fazia com tres officiaes da embaixada o seu <em>whist</em> +sacramental; e +Camilloff, ao canto do sophá, de braços cruzados, +solemne como n'uma poltrona do Congresso de Vienna, dormia de bocca +aberta;―ella +sentou-se ao piano. Eu ao lado, na attitude d'um Lara, devastado pela +fatalidade, +retorcia lugubremente o bigode. E a dôce creatura, entre dois +gemidos do teclado, d'uma saudade penetrante, cantou revirando para mim +os seus olhos rebrilhantes e humidos:<br /> + +<br /> + +<div class="poetry">L'oiseau s'envole,<br /> + +Lá bas, +lá bas!...<br /> + +L'oiseau s'envole...<br /> + +Ne +revient pas...</div> + +<br /> + +<br /> + +―A ave ha-de voltar ao ninho,―murmurei eu enternecido.<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[127]</span> +E, afastando-me a esconder uma lagrima, ia resmungando furioso:<br /> + +<br /> + +―Canalha de Ti-Chin-Fú! Por tua causa! Velho malandro! +Velho garoto!...<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Ao outro dia lá vou para Tien-Hó―com o +respeitoso interprete Sá-tó, uma longa fila de +carretas, dois cossacos, toda uma populaça de +koulis.<br /> + +<br /> + +Ao deixar a muralha da cidade tartara, seguimos muito tempo ao comprido +dos jardins sagrados que orlam o templo de Confucio.<br /> + +<br /> + +Era no fim do outono; já as folhas tinham amarellecido; uma +doçura tocante errava no ar...<br /> + +<br /> + +Dos kiosques santos sahia uma susurração de +canticos, de nota monotona <span class="pagenum">[128]</span>e +triste. Pelos terraços, enormes +serpentes, veneradas como +deuses, iam-se arrastando, já entorpecidas da friagem. E +aqui e +além, ao passar, avistavamos buddhistas decrepitos, +sêccos como pergaminhos e +nodosos como raizes, encruzados no chão sob os sycomoros, +n'uma +immobilidade de idolos, contemplando incessantemente o umbigo, +á espera da +perfeição do Nirvana...<br /> + +<br /> + +E eu ia pensando, com uma tristeza tão pallida como aquelle +mesmo céo d'outubro asiatico, nas duas lagrimas redondinhas +que vira brilhar, +á despedida, nos olhos verdes da generala!...<br /> + +<br /> + +<h2>VI</h2> + +<br /> + +<span class="smallcaps">Já</span> a tarde +declinava, e o sol descia vermelho como um escudo +de metal candente, quando chegámos a Tien-Hó.<br /> + +<br /> + +As muralhas negras da villa erguem-se, do lado do sul, ao pé +d'uma torrente que ruge entre rochas: para o nascente, a planicie +livida e poeirenta <span class="pagenum">[130]</span>estende-se +até a um grupo escuro de +collinas onde +branqueja um vasto edificio―que é uma Missão +Catholica. E +para além, para o extremo norte são as eternas +montanhas rôxas da Mongolia, +suspensas sempre no ar como nuvens.<br /> + +<br /> + +Alojámo-nos n'um barracão fetido, intitulado +<em>Estalagem da Consolação terrestre</em>. +Foi-me +reservado o quarto nobre, que abria sobre uma +galeria fixada em estacas; era ornado estranhamente de +dragões de +papel recortado, suspensos por cordeis do travejamento do tecto; +á +menor aragem aquella legião de monstros fabulosos oscillava +em +cadencia, com um rumor secco de folhagem, como tomada de vida +sobrenatural e +grotesca.<br /> + +<br /> + +Antes que escurecesse fui vêr com Sá-tó +a villa: mas bem depressa <span class="pagenum">[131]</span>fugi +ao fedor abominavel das viellas: tudo se +me afigurou ser negro―os casebres, o chão barrento, os +enxurros, os cães +famintos, a populaça abjecta... Recolhi ao albergue―onde +arreeiros mongoes e +crianças piolhosas me miravam com assombro.<br /> + +<br /> + +―Toda esta gente me parece suspeita, +Sá-tó―disse eu, franzindo a testa.<br /> + +<br /> + +―-Tem Vossa Honra razão. É uma ralé! +Mas não ha perigo: eu matei, antes de partirmos, um gallo +negro, e a deusa Kaonine deve estar contente. Póde Vossa +Honra dormir ao abrigo dos maus espiritos... Quer +Vossa Honra o chá?...<br /> + +<br /> + +―Traze, Sá-tó.<br /> + +<br /> + +Bebido o chá, conversámos do <em>grande +plano</em>: na +manhã seguinte eu a levar a alegria á triste +choupana <span class="pagenum">[132]</span>da viuva +de +Ti-Chin-Fú, annunciando-lhe os milhões que lhe +dava, depositados +já em Pekin: depois, de accordo com o Mandarim governador, +fariamos uma copiosa distribuição de arroz pela +populaça: e +á noite illuminações, +danças como n'uma gala publica...<br /> + +<br /> + +―Que te parece, Sá-tó?<br /> + +<br /> + +―Nos labios de Vossa Honra habita a sabedoria de Confucio... Vai ser +grande! Vai ser grande!<br /> + +<br /> + +Como vinha cançado, bem cêdo comecei a bocejar, e +estirei-me sobre o estrado de tijolo aquecido que serve de leito nas +estalagens da China; enrolado na minha pelliça, fiz o signal +da cruz, e adormeci +pensando nos braços brancos da generala, nos seus olhos +verdes de +sereia...<br /> + +<br /> + +Era talvez já meia noite quando <span class="pagenum">[133]</span>despertei +a um rumor lento e +surdo que envolvia o barracão―como de forte vento n'um +arvoredo, ou +uma maresia grossa batendo um paredão. Pela galeria aberta, +o luar +entrava no quarto, um luar triste d'outono asiatico, dando aos +dragões +suspensos do tecto fórmas, semelhanças +chimericas...<br /> + +<br /> + +Ergui-me, já nervoso―quando um vulto, alto e inquieto, +appareceu na facha luminosa do luar...<br /> + +<br /> + +―Sou eu, Vossa Honra!―murmurou a voz apavorada de +Sá-tó.<br /> + +<br /> + +E logo, agachando-se ao pé de mim, contou-me n'um fluxo de +palavras roucas a sua afflicção:―emquanto eu +dormia, +espalhára-se pela villa que um estrangeiro, o <em>Diabo +estrangeiro</em>, chegára com bagagens +carregadas de thesouros... Já desde o começo da +noite elle +tinha entrevisto <span class="pagenum">[134]</span>faces +agudas, d'olho voraz, rondando o +barracão, como chacaes +impacientes... E ordenára logo aos koulis que +entrincheirassem a porta com os +carros das bagagens, formados em semi-circulo á velha +maneira +tartara... Mas pouco a pouco a malta crescera... Agora vinha +d'espreitar por um postigo: e era em roda da estalagem toda a +populaça de +Tien-Hó, rosnando sinistramente... A deusa Kaonine +não se satisfizera com o +sangue do gallo preto!... Além d'isso elle vira á +porta +d'um Pagode uma cabra negra recuar!... A noite sería de +terrores!... E sua mulher, +o osso do seu osso, que estava tão longe, em Pekin!...<br /> + +<br /> + +―E agora, Sá-tó?―perguntei eu.<br /> + +<br /> + +―Agora... Vossa Honra! Agora...<br /> + +<br /> + +Calou-se: e a sua magra figura <span class="pagenum">[135]</span>tremia, +acaçapada como um +cão que se roja sob o açoite.<br /> + +<br /> + +Eu afastei o cobarde, e adiantei-me para a galeria. Em baixo, o muro +fronteiro, coberto d'um alpendre, projectava uma funda sombra. Ahi com +effeito estava uma turba negra apinhada. Ás vezes uma +figura, rastejando, adiantava-se no espaço alumiado, +espreitava, +farejava as carretas, e sentindo a lua sobre a face, recuava vivamente, +fundindo-se +na escuridão: e como o tecto do alpendre era baixo, faiscava +um momento á luz algum ferro de lança +inclinada...<br /> + +<br /> + +―Que querem vossês, canalha?―bradei eu em portuguez.<br /> + +<br /> + +A esta voz estrangeira um grunhido sahiu da treva; immediatamente uma +pedra veio ao meu lado <span class="pagenum">[136]</span>furar +o papel encerado da gelosia; depois uma +flecha silvou, cravou-se por cima da minha cabeça, n'um +barrote...<br /> + +<br /> + +Desci rapidamente á cozinha da estalagem. Os meus koulis, +acocorados sobre os calcanhares, batiam o queixo n'um terror; e os dois +cossacos que me acompanhavam, impassiveis á lareira, +cachimbavam, com +o sabre nú nos joelhos.<br /> + +<br /> + +O velho estalajadeiro d'oculos, uma avó andrajosa que eu +vira no pateo deitando ao ar um papagaio de papel, os arreeiros +mongoes, as +crianças piolhosas, esses tinham desapparecido; +só ficára +um velho, bebedo d'opio, cahido a um canto como um fardo. +Fóra ouvia-se +já a multidão vociferar.<br /> + +<br /> + +Interpellei então Sá-tó, que quasi +<span class="pagenum">[137]</span>desmaiava, +arrimado a uma viga: nós estavamos sem armas; os +dois cossacos, sós, não +podiam repellir o assalto: era necessario pois ir acordar o Mandarim +governador, revelar-lhe que eu era um amigo de Camilloff, um conviva do +principe Tong, intimal-o a que viesse dispersar a turba, manter a lei +santa da hospitalidade!...<br /> + +<br /> + +Mas Sá-tó confessou-me, n'uma voz debil como um +sôpro, que o Governador de certo é quem estava +dirigindo o assalto! Desde as +authoridades até aos mendigos, a fama da minha riqueza, a +legenda das carretas +carregadas d'oiro inflammára todos os appetites!... A +prudencia +ordenava, como um mandamento santo, que abandonassemos parte dos +thesouros, mulas, caixas +de comestiveis...<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[138]</span> ―E ficar aqui, +n'esta aldêa maldita, sem camisas, sem +dinheiro e sem mantimentos?...<br /> + +<br /> + +―Mas com a rica vida, Vossa Honra!<br /> + +<br /> + +Cedi. E ordenei a Sá-tó que fosse +propôr á turba uma copiosa +distribuição de sapeques,―se ella consentisse em +recolher aos seus casebres, e respeitar em nós os hospedes +enviados por +Buddha...<br /> + +<br /> + +Sá-tó subiu á sacada da galeria, a +tremer; e rompeu logo a arengar á malta, bracejando, +atirando as palavras com a violencia d'um +cão que ladra. Eu abrira já uma maleta, e ia-lhe +passando cartuchos, +saccos de sapeques―que elle arremessava aos punhados com um gesto de +semeador... +Em baixo havia por momentos um tumulto furioso ao chover dos metaes; +<span class="pagenum">[139]</span>depois um lento +suspiro de gula satisfeita; e logo um silencio, n'uma +suspensão <em>de quem espera mais</em>...<br /> + +<br /> + +―Mais!―murmurava Sá-tó, voltando-se para mim +ancioso.<br /> + +<br /> + +Eu, indignado, lá lhe dava outros cartuchos, mais +rôlos, mólhos de moedas de meio real enfiadas em +cordeis... Já a maleta +estava vazia. A turba rugia, insaciada.<br /> + +<br /> + +―Mais, Vossa Honra!―supplicou Sá-tó.<br /> + +<br /> + +―Não tenho mais, creatura! O resto está em +Pekin!<br /> + +<br /> + +―Oh Buddha Santo! Perdidos! Perdidos!―chamou +Sá-tó, abatendo-se sobre os joelhos.<br /> + +<br /> + +A populaça, calada, esperava ainda. De repente, uma +ululação selvagem rasgou o ar. E eu senti aquella +massa avida arremessar-se sobre as <span class="pagenum">[140]</span>carretas +que defendiam a porta em +semi-circulo: ao choque todo o madeiramento da <em>Estalagem da +Consolação +terrestre</em> rangeu e oscillou...<br /> + +<br /> + +Corri á varanda. Em baixo era um tropel desesperado em torno +dos carros derrubados: os machados reluziam cahindo sobre a tampa dos +caixotes: o coiro das malas abria-se fendido á faca por +mãos +innumeraveis: no alpendre, os cossacos debatiam-se, aos urros, sob o +cutelo. Apesar da lua, eu via em roda do barracão errarem +tochas, n'uma +dispersão de fagulhas: um alarido rouco elevava-se, fazendo +ao longe uivar os +cães; e de todas as viellas desembocava, corria +populaça, sombras +ligeiras, agitando chuços e foices recurvas...<br /> + +<br /> + +Subitamente, na loja terrea, ouvi o tumulto da turba que a invadia +<span class="pagenum">[141]</span>pelas portas +despedaçadas: de certo me procuravam, suppondo +que eu +teria commigo o melhor do thesouro, pedras preciosas ou oiros... O +terror desvairou-me. Corri a uma grade de bambús para o lado +do +pateo. Demoli-a, saltei sobre uma camada de matto grosso, n'um cheiro +acre de immundicies. O meu poney, preso a uma trave, relinchava, +puxando furiosamente o cabresto: arremessei-me sobre elle, +empolguei-lhe as crinas...<br /> + +<br /> + +N'esse momento, do portão da cozinha arrombada rompia uma +horda com lanternas, lanças, n'um clamor de delirio. O +poney, +espantado, salta um regueiro; uma flecha silva a meu lado; depois um +tijolo bate-me no hombro, outro nos rins, outro na anca do poney, outro +mais grosso rasga-me a orelha! Agarrado desesperadamente <span class="pagenum">[142]</span>ás +crinas, +archejando, com a lingua de fóra, o sangue a gottejar da +orelha, vou +despedido n'uma desfilada furiosa ao longo d'uma lua negra... De +repente vejo diante de +mim a muralha, um bastião, a porta da villa fechada!<br /> + +<br /> + +Então, allucinado, sentindo atraz rugir a turba, abandonado +de todo o soccorro humano―<em>precisei de Deus</em>! +Acreditei n'elle, +gritei-lhe que +me salvasse; e o meu espirito ia tumultuosamente arrebatando, para lhe +offerecer, fragmentos de orações, de +<em>Salvè-Rainhas</em>, que ainda me jaziam no +fundo da memoria... +Voltei-me sobre a anca do potro: d'uma esquina ao longe surgiu um +fogacho de tochas: era a corja!... Larguei +de golpe ao comprido da alta muralha que corria ao meu lado como uma +vasta +fita negra <span class="pagenum">[143]</span>furiosamente +desenrolada: de subito avisto uma brecha, um +boqueirão erriçado d'esgalhos de +sarças, e fóra a planicie que sob a lua parecia +como uma vasta agua dormente! Lancei-me para lá, +desesperadamente, sacudido aos galões do potro... E muito +tempo galopei no descampado.<br /> + +<br /> + +De repente o poney, eu, rolámos com um baque surdo. Era uma +lagôa. Entrou-me pela bocca agua putrida, e os pés +enlaçaram-se-me nas raizes molles dos nenufares... Quando me +ergui, me firmei no +sólo,―vi o poney, correndo, muito longe, como uma sombra, +com os estribos ao vento...<br /> + +<br /> + +Então comecei a caminhar por aquella solidão, +enterrando-me nas terras lodosas, cortando através do matto +espinhoso. O sangue da +orelha ia-me pingando sobre o hombro: á <span class="pagenum">[144]</span>frialdade agreste, o +fato +encharcado regelava-se-me sobre a pelle: e por vezes, na sombra, +parecia-me +vêr luzir olhos de feras.<br /> + +<br /> + +Emfim, encontrei um recinto de pedras soltas onde jazia, sob um arbusto +negro, um d'aquelles montões d'esquifes amarellos que os +chinezes abandonam nos campos, e onde apodrecem corpos. Abati-me sobre +um +caixão, prostrado: mas um cheiro abominavel pesava no ar: e +ao apoiar-me sentia +o viscoso d'um liquido que escorria pelas fendas das +tábuas... Quiz fugir. Mas os joelhos negavam-se, tremiam-me: +e arvores, rochas, hervas +altas, todo o horisonte começou a girar em torno de mim como +um disco muito rapido. Faiscas sanguineas vibravam-me diante dos olhos: +e senti-me como cahindo de muito alto, <span class="pagenum">[145]</span>devagar, +á maneira +d'uma penna que desce...<br /> + +<br /> + +Quando recuperei a consciencia estava estirado n'um banco de pedra, no +pateo d'um vasto edificio semelhante a um convento, que um alto +silencio envolvia. Dois padres lazaristas lavavam-me devagar a orelha. +Um ar fresco circulava; a roldana d'um poço rangia +lentamente; um +sino tocava a matinas. Ergui os olhos, avistei uma fachada branca com +janellinhas gradeadas e uma cruz no topo: então, vendo +n'aquella paz de +claustro catholico como um recanto da patria recuperada, o abrigo e a +consolação, rolaram-me das palpebras duas +lagrimas mudas.<br /> + +<br /> + +<h2>VII</h2> + +<br /> + +<span class="smallcaps">De</span> madrugada, dois +padres lazaristas, dirigindo-se a +Tien-Hó, tinham-me encontrado desmaiado no caminho. E, como +disse o alegre padre Loriot, «era já +tempo»; porque em redor do meu +corpo immovel um negro semi-circulo d'esses grossos <span class="pagenum">[148]</span>e soturnos corvos +da Tartaria +já me estava contemplando com gula...<br /> + +<br /> + +Trouxeram-me sem demora para o convento n'uma padiola,―e grande foi o +regosijo da communidade quando soube que eu era um latino, um +christão e um subdito dos Reis Fidelissimos. O convento +fórma alli o +centro d'um pequeno burgo catholico, apinhado em torno da +maciça +residencia como uma casaria de servos á base d'um castello +feudal. Existe desde +os primeiros missionarios que percorreram a Manchouria. Porque +nós +estamos aqui nos confins da China: para além já +é a +Mongolia, a Terra das Hervas, immenso prado verde-escuro, leziria sem +fim, colorida aqui e além do +vivo das flôres silvestres...<br /> + +<br /> + +Ahi jaz a vasta planicie dos Nomadas. Da minha janella eu via negrejar +<span class="pagenum">[149]</span>os circulos de +tendas cobertas de feltro, ou de pelles de carneiro; e +por vezes assistia á partida d'uma tribu, em filas de longas +caravanas, levando os seus rebanhos para o oeste...<br /> + +<br /> + +O superior lazarista era o excellente padre Giulio. A longa permanencia +entre as raças amarellas tornára-o quasi um +chinez: quando eu o encontrava no claustro com a sua tunica +rôxa, o rabicho +longo, a barba veneravel, agitando devagar um enorme leque―parecia-me +algum +sábio letrado mandarim commentando mentalmente, na paz de um +templo, o Livro sacro de Chú. Era um santo: mas o cheiro +d'alho que +exhalava―afastaria as almas mais doloridas e precisadas de +consolação.<br /> + +<br /> + +Conservo suave a memoria dos dias alli passados! O meu quarto, caiado +de branco, com uma cruz negra, tinha <span class="pagenum">[150]</span>um +recolhimento de cella. Acordava +sempre ao toque de matinas. Em respeito aos velhos missionarios, vinha +ouvir a missa á capella: e enternecia-me, alli, +tão longe da patria catholica, n'aquellas terras mongolicas, +vêr á +clara luz da manhã a casula do padre, com a sua cruz +bordada, curvando-se diante do altar, e +sentir ciciar no fresco silencio―os <em>Dominus vobiscum</em>, +e os <em>Cum +spiritu tuo</em>...<br /> + +<br /> + +De tarde ia á escóla, admirar os pequenos +chinezes declinando <em>Hora, Horoe</em>... E depois do +refeitorio, passeando +no claustro, escutava historias de longiquas missões, de +viagens apostolicas ao +<em>Paiz das Hervagens</em>, as prisões +supportadas, as marchas, os +perigos, +as Chronicas heroicas da Fé...<br /> + +<br /> + +Eu por mim não contei no convento as minhas aventuras +phantasticas: <span class="pagenum">[151]</span>dei-me +como um <em>touriste</em> curioso, +tomando apontamentos +pelo Universo. +E esperando que a minha orelha cicatrizasse, abandonava-me, n'uma +lassidão d'alma, áquella paz de mosteiro...<br /> + +<br /> + +Mas estava decidido a deixar bem depressa a China, esse Imperio +barbaro, que eu odiava agora, prodigiosamente!<br /> + +<br /> + +Quando me punha a pensar que viera desde os confins do Occidente, para +trazer a uma provincia chineza a abundancia dos meus +milhões, e que apenas lá chegára +fôra logo saqueado, +apedrejado, fréchado―enchia-me um rancor surdo, gastava +horas agitando-me pelo quarto, a revolver coisas feras que tentaria +para me vingar do Imperio do Meio!<br /> + +<br /> + +Retirar-me com os meus milhões era a desforra mais pratica, +mais facil! <span class="pagenum">[152]</span>Demais, +a minha idéa de resuscitar +artificialmente, para bem +da China, a personalidade de Ti-Chin-Fú, parecia-me agora +absurda, d'uma +insensatez de sonho. Eu não comprehendia a lingua, nem os +costumes, nem +os ritos, nem as leis, nem os sabios d'aquella raça: que +vinha pois +fazer alli, senão expôr-me, pelo apparato da minha +riqueza, +aos assaltos d'um povo, que, ha quarenta e quatro seculos, é +pirata nos mares e traz +as terras varridas de rapina!...<br /> + +<br /> + +Além d'isso, Ti-Chin-Fú e o seu papagaio +continuavam invisiveis, remontados de certo ao Céo chinez +dos Avós: e +já o aplacamento do remorso visivel diminuira em mim +singularmente o desejo da +expiação...<br /> + +<br /> + +Sem duvida o velho letrado estava fatigado de deixar essas +regiões ineffaveis para se vir estirar pelos meus <span class="pagenum">[153]</span>moveis. +Vira os meus +esforços, o meu desejo de ser util á sua prole, +á sua +provincia, á sua raça―e, satisfeito, +accommodára-se regaladamente para a sua +sésta eterna. Eu nunca mais avistaria a sua pança +amarella!...<br /> + +<br /> + +E então mordia-me o appetite de me achar já +tranquillo e livre, no pacifico gozo do meu oiro, ao Loreto ou no +<em>boulevard</em>, sorvendo o mel ás +flôres da +Civilisação...<br /> + +<br /> + +Mas a viuva de Ti-Chin-Fú, as mimosas senhoras da sua +descendencia, os netos pequeninos?... Iria eu deixal-os barbaramente, +na fome e no frio, +pelas viellas negras de Tien-Hó? Não. Esses +não eram culpados das pedradas que me atirára a +populaça. E eu +christão, asylado n'um convento christão, tendo +á cabeceira da cama o Evangelho, +cercado d'existencias que eram <span class="pagenum">[154]</span>incarnações +de +Caridade―não +podia partir do Imperio sem restituir áquelles que +despojára, a abundancia, +esse conforto honesto que recommenda o Classico da Piedade Filial...<br /> + +<br /> + +Então escrevi a Camilloff. Contava-lhe a minha abjecta fuga, +sob as pedras da turba chineza; o abrigo christão que me +dera a +Missão; o vivaz desejo de partir do Imperio do Meio. +Pedia-lhe que remettesse elle +á viuva de Ti-Chin-Fú os milhões +depositados por +mim em casa do mercador Tsing-Fó, na avenida de Cha-Coua, ao +lado do arco triumphal +de Tong, junto ao templo da deusa Kaonine.<br /> + +<br /> + +O alegre padre Loriot, que ia a Pekin em missão, levou esta +carta, que eu lacrára com o sêllo do convento―uma +cruz +sahindo d'um coração em chammas...<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[155]</span> +Os dias passaram. As primeiras neves alvejaram nas montanhas +septentrionaes da Manchouria: e eu occupava-me a caçar a +gazella pela Terra das Hervas... Horas energicas e fortemente +vívidas, as +d'essas manhãs, quando eu largava á desfilada, no +grande +ar agreste da planicie, entre os monteadores mongolicos que, com um +grito ululado e vibrante, batiam o matagal á +lançada! Por vezes, uma +gazella saltava: e, d'orelha baixa, estirada e fina, partia no fio do +vento... Soltavamos o +falcão que voava sobre ella, d'aza serena, dando-lhe a +espaços +regulares, com toda a força do bico recurvo, uma picada viva +no craneo. E +iamo'l-a abater, por fim, á beira d'alguma agua morta, +coberta de +nenufares... Então os cães negros da Tartaria +amontoavam-se-lhe sobre o ventre, e, com as patas no sangue, iam-lhe <span class="pagenum">[156]</span>a +ponta de dente, desfiando devagar as entranhas...<br /> + +<br /> + +Uma manhã o leigo da portaria avistou emfim o alegre padre +Loriot, galgando á lufa-lufa pelo caminho ingreme do burgo, +de volta +de Pekin, com a sua mochila ao hombro, e uma criancinha nos +braços: +tinha-a encontrado abandonada, nuasinha, morrendo á beira +d'um +caminho: baptisára-a logo n'um regato com o nome de +<em>Bem-Achado</em>: e +alli a trazia, todo enternecido, arquejando de tanto que +estugára o +passo, para dar depressa á creaturinha esfomeada o bom leite +da cabra do +convento...<br /> + +<br /> + +Depois d'abraçar os religiosos, d'enxugar as grossas bagas +de suor, tirou da algibeira dos calções um +enveloppe com o +sello da aguia russa:<br /> + +<br /> + +―É isto que manda o papá Camilloff, <span class="pagenum">[157]</span>amigo +Theodoro. Ficou optimo. E a senhora tambem... Tudo rijo.<br /> + +<br /> + +Corri a um recanto do claustro a lêr as duas folhas de prosa. +Meu bom Camilloff, de calva severa e olho de mocho! Como elle alliava +tão originalmente ao senso fino d'um habil de Chancellaria +as caturrices picarescas de diplomata bufo! A carta dizia assim:<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="signature">«Amigo, hospede, e +carissimo Theodoro,</div> + +<br /> + +<br /> + +«Ás primeiras linhas +da sua carta ficámos consternados! Mas logo as +seguintes nos deram um grato +allivio, por nos certificar que estava +com esses santos padres da +Missão christã... Eu parti para o Yamen +imperial a fazer uma severa +reclamação ao principe Tong, sobre o +escandalo de +Tien-Hó. Sua excellencia <span class="pagenum">[158]</span>mostrou +um jubilo +desordenado! Porque, se +lamenta como particular a offensa, o roubo +e as pedradas que o meu +hospede soffreu, como ministro do Imperio +vê ahi a +dôce opportunidade d'extorquir á villa de +Tien-Hó, em multa, +em castigo da injuria +feita a um estrangeiro, a vantajosa +somma de <em>trezentos +mil +francos</em>, ou, segundo os calculos do nosso +sagaz Meriskoff, <em>cincoenta +e +quatro contos de reis</em> na moeda do +seu bello paiz! É, +como disse Meriskoff, um excellente resultado +para o Erario imperial, e fica +assim a sua orelha copiosamente +vingada... Aqui, +começam a picar os primeiros frios, e já estamos +usando pelles. O bom Meriskoff +lá vai soffrendo do figado, mas a +dôr não +lhe altera o criterio philosophico nem a sábia +verbosidade... Tivemos um +grande desgosto: o lindo cãosinho da boa +Madame <span class="pagenum">[159]</span>Tagarieff, +a esposa do +nosso amado secretario, o adoravel +<em>Tu-tu</em> +desappareceu na +manhã de 15... Fiz, na policia, instancias +urgentes, mas o <em>Tu-tu</em> +não nos foi restituido,―e o sentimento é +tanto maior, quanto +é sabido que a populaça de Pekin aprecia +extremamente estes +cãesinhos, guisados em calda de assucar... +Deu-se aqui um facto +abominavel e de consequencias funestas: a +ministra de França, +essa petulante Madame Grijon, esse <em>galho +sêcco</em> +(como diz o +nosso Meriskoff), no ultimo jantar da legação, +deu, em desprezo de todas as +regras internacionaes, o braço, o seu +descarnado braço, e +a sua direita á mesa a um simples addido +inglez, lord Gordon! Que me +diz a isto? É crivel? É racional? É +destruir a ordem social! O +braço, a direita, a um addido, um +escossez côr de +tijolo, de vidro entalado <span class="pagenum">[160]</span>no +olho, quando havia +presentes todos os +embaixadores, os ministros, e eu! Isto tem +causado, no corpo diplomatico, +uma sensação inenarravel... +Esperamos +instrucções dos nossos governos. Como diz +Meriskoff, oscillando +tristemente a +cabeça―<em>é grave... é muito +grave</em>!―O +que prova (e ninguem o +duvidava) +que lord Gordon é o Benjamim do <em>galho +sêcco</em>. +Que +podridão! Que lodo!... A generala não tem passado +bem, desde a sua partida para +essa +malfadada Tien-Hó; o doutor Pagloff +não lhe percebe o +mal; é uma languidez, um murchar, uma saudosa +indolencia que a conserva +horas e horas immovel sobre o sophá, no +<em>Pavilhão +do +Repouso discreto</em>, com o olhar vago e o labio cheio de +suspiros... Eu não +me illudo: sei perfeitamente o que a mina: é a +desgraçada +doença de bexiga, que lhe veio das más <span class="pagenum">[161]</span>aguas, +quando estivemos na +legação de Madrid... Seja feita a vontade do +Senhor!... Ella pede-me para +lhe mandar <em>un petit bonjour</em>, e +deseja que o meu hospede +apenas chegue a Paris, se fôr a Paris, lhe +remetta pela mala da Embaixada +para S. Petersburgo (d'ahi virá a +Pekin) duas duzias de luvas de +doze botões, numero <em>cinco e tres +quartos</em>, da marca <em>Sol</em>, +dos +armazens do Louvre; assim como os +ultimos romances de Zola, +<span class="smallcaps">Mademoiselle de Maupin</span> +de Gautier, e uma +caixa de frascos de +<em>Opoponax</em>... Esquecia-me dizer-lhe que +mudámos +de padeiro: fornecemo-nos +agora na padaria da Embaixada ingleza: +deixámos a da +Embaixada franceza para não ter +communicações com o +<em>galho +sêcco</em>... Ahi +estão os inconvenientes de não termos aqui na +Embaixada russa uma +padaria―apesar de tantos relatorios, tantas +<span class="pagenum">[162]</span> +reclamações que, sobre esse ponto, tenho feito +para a chancellaria de S. +Petersburgo! Elles sabem +bem que em Pekin não ha padarias, +que cada +legação tem a sua propria, como um elemento +d'installação +e d'influencia. Mas +quê! Na côrte imperial desattendem-se os mais +serios interesses da +civilisação russa!... Creio que é tudo +o que ha de novo em Pekin e +nas +legações. Meriskoff recommenda-se, e +todos d'esta Embaixada; e +tambem o condesinho Arthur, o Zizi da +legação +hespanhola, o <em>Focinho cahido</em>, e o +Lulú; emfim todos; eu +mais que ninguem, que me +assigno com saudade e affeição<br /> + +<br /> + +<div class="signature"><em>«General +Camilloff»</em>.<br /> + +<br /> + +</div> + +<br /> + +«P.S. Em quanto á +viuva e familia de Ti-Chin-Fú, houve um engano: o +astrologo <span class="pagenum">[163]</span>do +templo de Faqua +equivocou-se na interpretação sideral: +não é +realmente em Tien-Hó que reside essa familia... É +ao sul da China, na provincia +de +Cantão. Mas também ha uma familia +Ti-Chin-Fú para +além da Grande +Muralha, quasi na fronteira russa, no districto +de Ka-ó-li. A ambas +morreu o chefe, a ambas assaltou a pobreza... +Portanto, esperando novas +ordens, não levantei os dinheiros da casa +de Tsing-Fó. Esta +recente informação mandou-m'a hoje sua +excellencia o principe Tong, +com uma deliciosa compota de +calombro... Devo annunciar-lhe +que o nosso bom Sá-Tó aqui +appareceu, de volta de +Tien-Hó, com um beiço rachado e leves +contusões no +hombro, tendo apenas salvado da bagagem saqueada uma +lithographia de Nossa Senhora +das Dôres, que, pela inscripção a +tinta, vejo que pertencera a +<span class="pagenum">[164]</span>sua respeitavel +mamã... Os meus +valentes cossacos, esses, +lá ficaram n'uma poça de sangue. Sua +excellencia o principe Tong +condescende em m'os pagar a dez mil +francos cada um, das sommas +extorquidas á villa de Tien-Hó... +Sá-Tó +diz-me que se o meu hospede, +como é natural, recomeçar as suas +viagens através do +imperio em busca dos Ti-Chin-Fú,―elle +considerar-se-hia honrado e +venturoso em o acompanhar, com uma +fidelidade canina e uma +docilidade cossaca...<br /> + +<br /> + +<div class="signature"><em>«Camilloff</em>».</div> + +<br /> + +<br /> + +―Não! nunca!―rugi com furor, amarrotando a carta, +monologando a largas passadas pelo melancolico +claustro.―Não, por Deus ou pelo +Demonio! Ir de novo bater as estradas da China? Jámais! <span class="pagenum">[165]</span>Oh +sorte +grotesca e desastrosa! Deixo os meus regalos ao Loreto, o meu ninho +amoroso de Paris, venho rolado pela vaga enjoadôra de +Marselha a +Chang-Hai, soffro as pulgas das bateiras chinezas, o fedor das viellas, +a poeirada dos caminhos aridos―e para quê? Tinha um plano, +que se erguia +até aos céos, grandioso e ornamentado como um +trophéo: por sobre elle +scintillavam, d'alto a baixo, toda a sorte +d'acções boas: e eis +que o vejo tombar ao chão, peça a +peça, n'uma ruina! Queria +dar o meu nome, os meus milhões, e metade do meu leito +d'oiro a uma senhora Ti-Chin-Fú―e +não m'o permittem os prejuizos sociaes d'uma raça +barbara! Pretendo, +com o botão de crystal de Mandarim, remodelar os destinos da +China, trazer-lhe a prosperidade civil,―e veda-m'o a lei imperial! +Aspiro a derramar <span class="pagenum">[166]</span>uma +esmola sem fim por esta populaça +faminta―e corro o perigo +ingrato de ser decapitado como instigador de rebelliões! +Venho +enriquecer uma villa―e a turba tumultuosa apedreja-me! Ia emfim dar a +abundancia, o conforto que louva Confucio, á +família +Ti-Chin-Fú,―e essa familia some-se, evapora-se como um +fumo, e outras familias +Ti-Chin-Fú surgem, aqui e além, vagamente, ao +sul, a oeste, como +clarões enganadores... E havia d'ir a Cantão, a +Ka-ó-li, expôr a +outra orelha a tijolos brutaes, fugir ainda pelos descampados, agarrado +ás crinas d'um +potro? Jámais!<br /> + +<br /> + +Parei: e de braços erguidos, fallando ás arcadas +do claustro, ás arvores, ao ar silencioso e fino que me +envolvia:<br /> + +<br /> + +―Ti-Chin-Fú!―bradei―Ti-Chin-Fú, para te +aplacar, fiz o que era racional, generoso e logico! Estás +emfim satisfeito, <span class="pagenum">[167]</span>letrado +veneravel, tu, o teu gentil papagaio, a tua pança official? +Falla-me! +Falla-me!...<br /> + +<br /> + +Escutei, olhei: a roldana do poço, áquella hora +do meio dia, rangia devagar, no pateo: sob as amoreiras, ao longo da +arcaria do claustro, seccavam em papel sêda as folhas de +chá da +colheita d'outubro: da porta meio cerrada da aula vinha um susurro +lento de +declinações latinas: era uma paz severa, feita da +simplicidade das +occupações, da honestidade dos estudos, do ar +pastoril d'aquella collina, onde dormia, sob um sol branco d'inverno, o +burgo religioso... E com aquella serenidade ambiente, pareceu-me +receber na alma, de repente, uma +pacificação absoluta!<br /> + +<br /> + +Accendi com os dedos ainda tremulos um charuto, e disse, limpando na +<span class="pagenum">[168]</span>testa uma baga de +suor, esta palavra, resumo d'um destino:<br /> + +<br /> + +―Bem, Ti-Chin-Fú está contente. Fui logo +á cella do excellente padre Giulio. Elle lia o seu Breviario +á janella, debicando +confeitos d'assucar, com o gato do convento no collo.<br /> + +<br /> + +―Reverendissimo, volto á Europa... Algum dos nossos bons +padres vai por acaso em missão, para os lados de +Chang-Hai?...<br /> + +<br /> + +O veneravel superior pôz os seus oculos redondos: e folheando +com uncção um vasto registro em letra chineza, ia +assim murmurando:<br /> + +<br /> + +―Quinto dia da decima lua... Sim, ha o padre Anacleto para Tien-Tzin, +para a novena dos Irmãos da Santa Creche. Duodecima lua, o +padre Sanchez para Tien-Tzin tambem, para a obra do <span class="pagenum">[169]</span>Catecismo aos +Orphãos... Sim, caro hospede, tem companheiros para +Léste...<br /> + +<br /> + +―Ámanhã?<br /> + +<br /> + +―Ámanhã. É dolorosa a +separação n'estes confins do mundo, quando as +almas se comprehendem bem em Jesus... O nosso padre Gutierrez que lhe +faça um bom farnel... Nós já o +amavamos como irmão, Theodoro... Coma um confeito, +são deliciosos... As coisas estão em +feliz repouso quando se acham no seu lugar e elemento natural: o lugar +do +coração do homem é o +coração de Deus: e o seu está n'esse +asylo seguro... Coma um confeito... Que é isso, meu filho, +que é isso?<br /> + +<br /> + +Eu estava collocando sobre o seu Breviario aberto, n'uma pagina do +Evangelho de pobreza, um rôlo de notas do <em>Banco +d'Inglaterra;</em> e balbuciei:<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[170]</span> ―Meu +reverendissimo, para os seus pobres...<br /> + +<br /> + +―Excellente, excellente... O nosso bom Gutierrez que lhe +faça um farnel copioso... <em>Amen</em>, meu +filho ... <em>In Deo +omnia spes</em>!...<br /> + +<br /> + +Ao outro dia, entre o padre Anacleto e o padre Sanchez, montado na mula +branca do convento, desci o burgo, ao repique dos sinos. E ahi vamos +para Hiang-Hiam, villa negra e murada, onde atracam os barcos que +descem a Tien-Tzin. Já as terras ao longo do +Pei-Hó +estavam todas brancas de neve: nas enseadas baixas já a agua +ia gelando: e +embrulhados em pelles de carneiro, em roda do fogareiro, á +pôpa do +barco, os bons padres e eu iamos conversando de trabalhos de +Missionarios, de coisas da China, por +vezes dos interesses do Céo―passando em redor <span class="pagenum">[171]</span>sem cessar o +grosso frasco da genebra...<br /> + +<br /> + +Era Tien-Tzin separei-me d'aquelles santos camaradas. E d'ahi a duas +semanas, por um meio dia de sol tepido, passeava, fumando o meu charuto +e olhando a azafama dos caes d'Hong-Kong, no tombadilho do <em>Java</em> +que +ia levantar ferro para a Europa.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Foi um momento commovente para mim, aquelle em que vi, ás +primeiras voltas do helice, afastar-se a terra da China.<br /> + +<br /> + +Desde que acordára, n'essa manhã, uma +inquietação surda recomeçava a +pesar-me na alma. Agora, punha-me a pensar que viera áquelle +vasto imperio para acalmar pela expiação um +protesto +<span class="pagenum">[172]</span>temeroso da +Consciencia: e por fim, impellido por uma impaciencia +nervosa, ahi partia, sem ter feito mais que deshonrar os bigodes +brancos d'um general heroico, e ter +recebido pedradas pela orelha n'uma villa dos confins da Mongolia.<br /> + +<br /> + +Estranho destino, o meu!...<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Até ao anoitecer estive encostado sombriamente á +borda do paquete, vendo o mar liso, como uma vasta peça de +sêda azul, +dobrar-se aos lados em duas pregas molles: pouco a pouco grandes +estrellas palpitaram na concavidade negra; e o helice na sombra ia +trabalhando em rhythmo. Então, tomado d'uma fadiga molle, +fui errando pelo paquete, +olhando, aqui e além, a bussola alumiada; <span class="pagenum">[173]</span>os +montões de +cabrestantes; as peças da machina, n'uma claridade ardente, +batendo em cadencia; as fagulhas que fugiam do cano, n'um +rôlo de fumaraça negra; os +marinheiros de barba ruiva, immoveis á roda do leme; e as +fórmas dos +pilotos, sobre o pontal, altas e vagas na noite. Na <em>cabine</em> +do +capitão, um inglez de +capacete de cortiça, cercado de damas que bebiam Cognac, ia +tocando +melancolicamente na flauta a aria de <em>Bonnie Dundee</em>... +<br /> + +<br /> + +Eram onze horas quando desci ao meu beliche. As luzes já +estavam apagadas: mas a lua que se erguia ao nivel da agua, redonda e +branca, batia o vidro da <em>cabine</em> com um raio de +claridade: e +então, +a essa meia tinta pallida, lá vi estirada sobre a maca a +figura +pançuda, vestida de sêda amarella, com o seu +papagaio nos braços!<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[174]</span> +Era <em>elle</em>, outra vez!<br /> + +<br /> + +E foi <em>elle</em>, perpetuamente! Foi elle em Singapura +e em +Ceylão. Foi elle erguendo-se dos areaes do deserto ao +passarmos no canal de Suez; adiantando-se á prôa +d'um barco de +provisões quando parámos em Malta; resvalando +sobre as rosadas montanhas da Sicilia; emergindo dos nevoeiros que +cercam o morro de Gibraltar! Quando desembarquei em Lisboa, no caes das +Columnas, a sua figura bojuda enchia todo o arco da +rua Augusta; o seu olho obliquo fixava-me―e os dois olhos pintados do +seu papagaio pareciam fixar-me tambem...<br /> + +<br /> + +<h2>VIII</h2> + +<br /> + +<span class="smallcaps">Então,</span> +certo que não poderia jámais +aplacar Ti-Chin-Fú, toda essa noite no meu quarto ao Loreto, +onde como outr'ora as velas innumeraveis das serpentinas davam aos +damascos tons de sangue fresco, meditei sacudir +de mim, como um adorno de peccado, esses milhões +sobrenaturaes. +<span class="pagenum">[176]</span>E assim me +libertaria talvez d'aquella pança e d'aquelle +papagaio +abominavel!<br /> + +<br /> + +Abandonei o palacete ao Loreto, a existencia de Nababo. Fui, com uma +quinzena coçada, realugar o meu quarto na casa da Madame +Marques: e voltei á Repartição, +d'espinhaço curvo, a implorar os meus vinte mil reis +mensaes, e a minha dôce penna de amanuense!...<br /> + +<br /> + +Mas um soffrimento maior veio amargurar os meus dias. Julgando-me +arruinado,―todos aquelles, que a minha opulencia humilhára, +cobriram-me de offensas, como se alastra de lixo uma estatua derrubada +de principe decahido. Os jornaes, n'um triumpho de ironia, +achincalharam a minha miseria. A aristocracia, que +balbuciára +adulações aos pés do Nababo, ordenava +agora aos seus cocheiros que atropellassem <span class="pagenum">[177]</span>nas +ruas o corpo encolhido +do plumitivo de Secretaría. O clero, que eu +enriquecera, accusava-me de <em>feiticeiro</em>; o povo +atirou-me pedras; e a +Madame Marques, quando eu me queixava humildemente da dureza granitica +dos bifes,―plantava as duas mãos á cinta, e +gritava: +<br /> + +<br /> + +―Ora o enguiço! Então que quer vossê +mais? Aguente! Olha o pelintra!...<br /> + +<br /> + +E, apesar d'esta expiação, o velho +Ti-Chin-Fú lá estava sempre á minha +ilharga, obeso e côr d'óca,―porque os seus +milhões, que jaziam agora estereis e intactos nos Bancos, +ainda de facto eram meus! Desgraçadamente meus!<br /> + +<br /> + +Então, indignado, um dia subitamente reentrei com estrondo +no meu palacete e no meu luxo. N'essa noite, de novo o resplendor das +minhas janellas <span class="pagenum">[178]</span>alumiou +o Loreto: e pelo portão aberto +viram-se +como outr'ora negrejar, nas suas fardas de sêda negra, as +longas filas de +lacaios decorativos.<br /> + +<br /> + +Logo, Lisboa, sem hesitar, se rojou aos meus pés. A Madame +Marques chamou-me, chorando, <em>filho do seu +coração</em>. Os +jornaes deram-me os qualificativos que, de antiga +tradição, pertencem +á Divindade: fui o <em>Omnipotente</em>, fui o <em>Omnisciente</em>! +A +aristocracia beijou-me os dedos como a um Tyranno: e o clero +incensou-me como a um idolo. E o meu desprezo pela Humanidade foi +tão largo,―que se estendeu ao +Deus que a creou.<br /> + +<br /> + +Desde então uma saciedade enervante mantem-me semanas +inteiras n'um sophá, mudo e soturno, pensando na felicidade +do +<em>não-ser</em>...<br /> + +<br /> + +Uma noite, recolhendo só por uma rua deserta, vi diante de +mim o Personagem <span class="pagenum">[179]</span>vestido +de preto com o guarda-chuva debaixo do +braço, o mesmo que no meu quarto feliz da travessa da +Conceição +me fizera, a um <em>ti-li-tin</em> de campainha, herdar +tantos +milhões detestaveis. +Corri para elle, agarrei-me ás abas da sua sobrecasaca +burgueza, +bradei:<br /> + +<br /> + +―Livra-me das minhas riquezas! Resuscita o Mandarim! Restitue-me a paz +da miseria!<br /> + +<br /> + +Elle passou gravemente o seu guarda-chuva para debaixo do outro +braço, e respondeu com bondade:<br /> + +<br /> + +―Não póde ser, meu prezado senhor, +não póde ser...<br /> + +<br /> + +Eu atirei-me aos seus pés n'uma +supplicação abjecta: mas só vi diante +de mim, sob uma luz mortiça de gaz, a fórma magra +de +um cão farejando o lixo.<br /> + +<br /> + +Nunca mais encontrei este individuo.―E agora o mundo parece-me um +<span class="pagenum">[180]</span>immenso +montão de ruinas onde a minha alma solitaria, como +um exilado que erra por entre columnas tombadas, geme, sem +descontinuar...<br /> + +<br /> + +As flôres dos meus aposentos murcham e ninguem as renova: +toda a luz me parece uma tocha: e quando as minhas amantes +véem, na +brancura dos seus penteadores, encostar-se ao meu leito, eu +chóro―como se +avistasse a legião amortalhada das minhas alegrias +defuntas...<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Sinto-me morrer. Tenho o meu testamento feito. N'elle lego os meus +milhões ao Demonio; pertencem-lhe; elle que os reclame e que +os reparta...<br /> + +<br /> + +E a vós, homens, lego-vos apenas, sem commentarios, estas +palavras: «<em>Só <span class="pagenum">[181]</span>sabe +bem o pão +que dia a +dia ganham as nossas +mãos: nunca mates o Mandarim</em>!»<br /> + +<br /> + +E todavia, ao expirar, consola-me prodigiosamente esta idéa: +que do Norte ao Sul e do Oeste a Léste, desde a Grande +Muralha da +Tartaria até ás ondas do Mar Amarello, em todo o +vasto Imperio da China, +nenhum Mandarim ficaria vivo, se tu, tão facilmente como eu, +o +pudesses supprimir e herdar-lhe os milhões, oh leitor, +creatura +improvisada por Deus, obra má de má argilla, meu +semelhante e meu +irmão!<br /> + +<br /> + +<br /> + +<span class="quote">Angers, junho, 1880.</span><br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<div style="text-align: center;"><br /> + +<span class="smallcaps">porto</span>―<span class="smallcaps">typ. de a. j. da silva teixeira</span><br /> + +62, Cancella Velha, 62<br /> + +<br /> + +</div> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +</div> + + + + + + + + +<pre> + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of O Mandarim, by Eça Queirós + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O MANDARIM *** + +***** This file should be named 16384-h.htm or 16384-h.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + http://www.gutenberg.org/1/6/3/8/16384/ + +Produced by Rita Farinha and the Online Distributed +Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was +produced from images generously made available by National +Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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If you do not agree to abide by all +the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy +all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession. +If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project +Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the +terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or +entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. + +1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be +used on or associated in any way with an electronic work by people who +agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few +things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works +even without complying with the full terms of this agreement. See +paragraph 1.C below. 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at http://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact +information can be found at the Foundation's web site and official +page at http://pglaf.org + +For additional contact information: + Dr. Gregory B. Newby + Chief Executive and Director + gbnewby@pglaf.org + + +Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation + +Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide +spread public support and donations to carry out its mission of +increasing the number of public domain and licensed works that can be +freely distributed in machine readable form accessible by the widest +array of equipment including outdated equipment. Many small donations +($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt +status with the IRS. + +The Foundation is committed to complying with the laws regulating +charities and charitable donations in all 50 states of the United +States. 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Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + http://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. + + +</pre> + +</body> +</html> diff --git a/16384-h/images/fig1.png b/16384-h/images/fig1.png Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..185d0cd --- /dev/null +++ b/16384-h/images/fig1.png |
