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diff --git a/.gitattributes b/.gitattributes new file mode 100644 index 0000000..6833f05 --- /dev/null +++ b/.gitattributes @@ -0,0 +1,3 @@ +* text=auto +*.txt text +*.md text diff --git a/16384-8.txt b/16384-8.txt new file mode 100644 index 0000000..9d8a861 --- /dev/null +++ b/16384-8.txt @@ -0,0 +1,2860 @@ +The Project Gutenberg EBook of O Mandarim, by Eça Queirós + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: O Mandarim + +Author: Eça Queirós + +Release Date: October 27, 2007 [EBook #16384] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O MANDARIM *** + + + + +Produced by Rita Farinha and the Online Distributed +Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was +produced from images generously made available by National +Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) + + + + + + + + + +EÇA DE QUEIROZ + + +O MANDARIM + + + +LIVRARIA INTERNACIONAL + +DE + +ERNESTO CHARDRON, EDITOR. + +Porto e Braga + +1880 + + + + +O MANDARIM + + + + +PROLOGO + + +1.^o AMIGO (_bebendo Cognac e soda, debaixo d'arvores, n'um terraço, á +beira d'agua_) + +Camarada, por estes calores do estio que embotam a ponta da sagacidade, +repousemos do aspero estudo da Realidade humana... Partamos para os +campos do Sonho, vaguear por essas azuladas collinas romanticas onde se +ergue a torre abandonada do Sobrenatural, e musgos frescos recobrem as +ruinas do Idealismo... Façamos phantasia!... + + +2.^o AMIGO + +Mas sobriamente, camarada, parcamente!... E como nas sabias e amaveis +Allegorias da Renascença, misturando-lhe sempre uma Moralidade +discreta... + +(COMEDIA INEDITA). + + + + +I + + +Eu chamo-me Theodoro--e fui amanuense do Ministerio do Reino. + +N'esse tempo vivia eu á travessa da Conceição n.^o 106, na casa +d'hospedes da D. Augusta, a esplendida D. Augusta, viuva do major +Marques. Tinha dois companheiros: o Cabrita, empregado na Administração +do bairro central, esguio e amarello como uma tocha d'enterro; e o +possante, o exuberante tenente Couceiro, grande tocador de viola +franceza. + +A minha existencia era bem equilibrada e suave. Toda a semana, de mangas +de lustrina á carteira da minha repartição, ia lançando, n'uma formosa +letra cursiva, sobre o papel Tojal do Estado, estas phrases faceis: +«_Ill.^{mo} e Exc.^{mo} Snr._--_Tenho a honra de communicar a V. Exc.^a... +Tenho a honra de passar ás mãos de V. Exc.^a, Ill.^{mo} e Exc.^{mo} Snr..._» + +Aos domingos repousava: installava-me então no canapé da sala de jantar, +de cachimbo nos dentes, e admirava a D. Augusta, que, em dias de missa, +costumava limpar com clara d'ovo a caspa do tenente Couceiro. Esta hora, +sobretudo no verão, era deliciosa: pelas janellas meio cerradas +penetrava o bafo da soalheira, algum repique distante dos sinos da +Conceição Nova, e o arrulhar das rolas na varanda; a monotona susurração +das moscas balançava-se sobre a velha cambraia, antigo véo nupcial da +Madame Marques, que cobria agora no aparador os pratos de cerejas +bicaes; pouco a pouco o tenente, envolvido n'um lençol como um idolo no +seu manto, ia adormecendo, sob a fricção molle das carinhosas mãos da D. +Augusta; e ella, arrebitando o dedo minimo branquinho e papudo, +sulcava-lhe as rêpas lustrosas com o pentesinho dos bichos... Eu então, +enternecido, dizia á deleitosa senhora: + +--Ai D. Augusta, que anjo que é! + +Ella ria; chamava-me _enguiço_! Eu sorria, sem me escandalisar. +_Enguiço_ era com effeito o nome que me davam na casa--por eu ser magro, +entrar sempre as portas com o pé direito, tremer de ratos, ter á +cabeceira da cama uma lithographia de Nossa Senhora das Dôres que +pertencera á mamã, e corcovar. Infelizmente corcóvo--do muito que +verguei o espinhaço, na Universidade, recuando como uma pêga assustada +diante dos senhores Lentes; na repartição, dobrando a fronte ao pó +perante os meus Directores Geraes. Esta attitude de resto convém ao +bacharel; ella mantem a disciplina n'um Estado bem organisado; e a mim +garantia-me a tranquillidade dos domingos, o uso d'alguma roupa branca, +e vinte mil reis mensaes. + +Não posso negar, porém, que n'esse tempo eu era ambicioso--como o +reconheciam sagazmente a Madame Marques e o lepido Couceiro. Não que me +revolvesse o peito o appetite heroico de dirigir, do alto d'um throno, +vastos rebanhos humanos; não que a minha louca alma jámais aspirasse a +rodar pela Baixa em trem da Companhia, seguida d'um correio +choitando;--mas pungia-me o desejo de poder jantar no Hotel Central com +Champagne, apertar a mão mimosa de viscondessas, e, pelo menos duas +vezes por semana, adormecer, n'um extasi mudo, sobre o seio fresco de +Venus. Oh! moços que vos dirigieis vivamente a S. Carlos, atabafados em +paletots caros onde alvejava a gravata de _soirée_! Oh! tipoias, +apinhadas de andaluzas, batendo galhardamente para os touros--quantas +vezes me fizestes suspirar! Porque a certeza de que os meus vinte mil +reis por mez e o meu geito encolhido de enguiço me excluiam para sempre +d'essas alegrias sociaes vinha-me então ferir o peito--como uma frecha +que se crava n'um tronco, e fica muito tempo vibrando! + +Ainda assim, eu não me considerava sombriamente um «pária». A vida +humilde tem doçuras: é grato, n'uma manhã de sol alegre, com o +guardanapo ao pescoço, diante do bife de grelha, desdobrar o Diario de +Noticias; pelas tardes de verão, nos bancos gratuitos do Passeio, +gozam-se suavidades de idyllio; é saboroso á noite no Martinho, sorvendo +aos goles um café, ouvir os verbosos injuriar a patria... Depois, nunca +fui excessivamente infeliz--porque não tenho imaginação: não me +consumia, rondando e almejando em torno de paraisos ficticios, nascidos +da minha propria alma desejosa como nuvens da evaporação d'um lago; não +suspirava, olhando as lucidas estrellas, por um amor á Romeo, ou por uma +gloria social á Camors. Sou um positivo. Só aspirava ao racional, ao +tangivel, ao que já fôra alcançado por outros no meu bairro, ao que é +accessivel ao bacharel. E ia-me resignando, como quem a uma _table +d'hôte_ mastiga a bucha de pão secco á espera que lhe chegue o prato +rico da _Charlotte russe_. As felicidades haviam de vir: e para as +apressar eu fazia tudo o que devia como portuguez e como +constitucional:--pedia-as todas as noites a Nossa Senhora das Dôres, e +comprava decimos da loteria. + +No entanto procurava distrahir-me. E como as circumvoluções do meu +cerebro me não habilitavam a compôr odes, á maneira de tantos outros ao +meu lado que se desforravam assim do tedio da profissão; como o meu +ordenado, paga a casa e o tabaco, me não permittia um vicio--tinha +tomado o habito discreto de comprar na feira da Ladra antigos volumes +desirmanados, e á noite, no meu quarto, repastava-me d'essas leituras +curiosas. Eram sempre obras de titulos ponderosos: Galera da Innocencia, +Espelho Milagroso, Tristeza dos Mal Desherdados... O typo venerando, o +papel amarellado com picadas de traça, a grave encadernação freiratica, +a fitinha verde marcando a pagina--encantavam-me! Depois, aquelles +dizeres ingenuos em letra gorda davam uma pacificação a todo o meu sêr, +sensação comparavel á paz penetrante d'uma velha cêrca de mosteiro, na +quebrada d'um valle, por um fim suave de tarde, ouvindo o correr d'agua +triste... + +Uma noite, ha annos, eu começára a lêr, n'um d'esses in-folios vetustos, +um capitulo intitulado _Brecha das Almas_; e ia cahindo n'uma +somnolencia grata, quando este periodo singular se me destacou do tom +neutro e apagado da pagina, com o relevo d'uma medalha d'ouro nova +brilhando sobre um tapete escuro: copío textualmente: + + «No fundo da China existe um Mandarim mais rico que todos os reis + de que a Fabula ou a Historia contam. D'elle nada conheces, nem o + nome, nem o semblante, nem a sêda de que se veste. Para que tu + herdes os seus cabedaes infindaveis, basta que toques essa + campainha, posta a teu lado, sobre um livro. Elle soltará apenas um + suspiro, n'esses confins da Mongolia. Será então um cadaver: e tu + verás a teus pés mais ouro do que póde sonhar a ambição d'um avaro. + Tu, que me lês e és um homem mortal, tocarás tu a campainha?» + +Estaquei, assombrado, diante da pagina aberta: aquella interrogação +«homem mortal, tocarás tu a campainha?» parecia-me facêta, picaresca, e +todavia perturbava-me prodigiosamente. Quiz lêr mais; mas as linhas +fugiam, ondeando como cobras assustadas, e no vazio que deixavam, d'uma +lividez de pergaminho, lá ficava, rebrilhando em negro, a interpellação +estranha--«tocarás tu a compainha?» + +Se o volume fosse d'uma honesta edição Michel-Levy, de capa amarella, +eu, que por fim não me achava perdido n'uma floresta de ballada allemã, +e podia da minha sacada vêr branquejar á luz do gaz o correame da +patrulha--teria simplesmente fechado o livro, e estava dissipada a +allucinação nervosa. Mas aquelle sombrio in-folio parecia estalar magia; +cada letra affectava a inquietadora configuração d'esses signaes da +velha cabala, que encerram um attributo fatidico; as virgulas tinham o +retorcido petulante de rabos de diabinhos, entrevistos n'uma alvura de +luar; no _ponto d'interrogação_ final eu via o pavoroso gancho com que o +Tentador vai fisgando as almas que adormeceram sem se refugiar na +inviolavel cidadella da Oração!... Uma influencia sobrenatural +apoderando-se de mim, arrebatava-me devagar para fóra da realidade, do +raciocinio: e no meu espirito foram-se formando duas visões--d'um lado +um Mandarim, decrepito, morrendo sem dôr, longe, n'um kiosque chinez, a +um _ti-li-tin_ de campainha; do outro toda uma montanha de ouro +scintillando aos meus pés! Isto era tão nitido, que eu via os olhos +obliquos do velho personagem embaciarem-se, como cobertos d'uma tenue +camada de pó; e sentia o fino tinir de libras rolando juntas. E immovel, +arripiado, cravava os olhos ardentes na campainha, pousada pacatamente +diante de mim sobre um diccionario francez--a campainha prevista, citada +no mirifico in-folio... + +Foi então que, do outro lado da mesa, uma voz insinuante e metallica me +disse, no silencio: + +--Vamos, Theodoro, meu amigo, estenda a mão, toque a campainha, seja um +forte! + +O _abat-jour_ verde da vela punha uma penumbra em redor. Ergui-o, a +tremer. E vi, muito pacificamente sentado, um individuo corpulento, todo +vestido de preto, de chapéo alto, com as duas mãos calçadas de luvas +negras gravemente apoiadas ao cabo d'um guarda-chuva. Não tinha nada de +phantastico. Parecia tão contemporaneo, tão regular, tão classe-média +como se viesse da minha repartição... + +Toda a sua originalidade estava no rosto, sem barba, de linhas fortes e +duras; o nariz brusco, d'um aquilino formidavel, apresentava a expressão +rapace e atacante d'um bico d'aguia; o córte dos labios, muito firme, +fazia-lhe como uma bocca de bronze; os olhos, ao fixar-se, assemelhavam +dois clarões de tiro, partindo subitamente d'entre as sarças tenebrosas +das sobrancelhas unidas; era livido--mas, aqui e além na pelle, +corriam-lhe raiações sanguineas como n'um velho marmore phenicio. + +Veio-me á idéa de repente que tinha diante de mim o Diabo: mas logo todo +o meu raciocinio se insurgiu resolutamente contra esta imaginação. Eu +nunca acreditei no Diabo--como nunca acreditei em Deus. Jámais o disse +alto, ou o escrevi nas gazetas, para não descontentar os poderes +publicos, encarregados de manter o respeito por taes entidades: mas que +existam estes dois personagens, velhos como a Substancia, rivaes +bonacheirões, fazendo-se mutuamente pirraças amaveis,--um de barbas +nevadas e tunica azul, na toilette do antigo Jove, habitando os altos +luminosos, entre uma côrte mais complicada que a de Luiz XIV; e o outro +enfarruscado e manhoso, ornado de cornos, vivendo nas chammas +inferiores, n'uma imitação burgueza do pitoresco Plutão--não acredito. +Não, não acredito! Céo e Inferno são concepções sociaes para uso da +plebe--e eu pertenço á classe-média. Rezo, é verdade, a Nossa Senhora +das Dôres: porque, assim como pedi o favor do senhor doutor para passar +no meu acto; assim como, para obter os meus vinte mil reis, implorei a +benevolencia do senhor deputado; igualmente para me subtrahir á tisica, +á angina, á navalha de ponta, á febre que vem da sargeta, á casca de +laranja escorregadia onde se quebra a perna, a outros males publicos, +necessito ter uma protecção extra-humana. Ou pelo rapa-pé ou pelo +incensador o homem prudente deve ir fazendo assim uma serie de sabias +adulações desde a Arcada até ao Paraiso. Com um compadre no bairro, e +uma comadre mystica nas Alturas--o destino do bacharel está seguro. + +Por isso, livre de torpes superstições, disse familiarmente ao individuo +vestido de negro: + +--Então, realmente, aconselha-me que toque a campainha? + +Elle ergueu um pouco o chapéo, descobrindo a fronte estreita, enfeitada +d'uma gaforinha crespa e negrejante como a do fabuloso Alcides, e +respondeu, palavra a palavra: + +--Aqui está o seu caso, estimavel Theodoro. Vinte mil reis mensaes são +uma vergonha social! Por outro lado, ha sobre este globo coisas +prodigiosas: ha vinhos de Borgonha, como por exemplo o _Romanée-Conti_ +de 58 e o _Chambertin_ de 61, que custam, cada garrafa, de dez a onze +mil reis; e quem bebe o primeiro calix, não hesitará, para beber o +segundo, em assassinar seu pai... Fabricam-se em Paris e em Londres +carruagens de tão suaves molas, de tão mimosos estofos, que é preferivel +percorrer n'ellas o Campo Grande, a viajar, como os antigos deuses, +pelos céos, sobre os fôfos coxins das nuvens... Não farei á sua +instrucção a offensa de o informar que se mobilam hoje casas, d'um +estylo e d'um conforto, que são ellas que realisam superiormente esse +regalo ficticio, chamado outr'ora a «Bemaventurança». Não lhe fallarei, +Theodoro, d'outros gozos terrestres: como, por exemplo, o Theatro do +_Palais Royal_, o _baile Laborde_, o _Café Anglais_... Só chamarei a sua +attenção para este facto: existem sêres que se chamam +Mulheres--differentes d'aquelles que conhece, e que se denominam Femeas. +Estes sêres, Theodoro, no meu tempo, a paginas 3 da Biblia, apenas +usavam exteriormente uma _folha de vinha_. Hoje, Theodoro, é toda uma +symphonia, todo um engenhoso e delicado poema de rendas, _baptistes_, +setins, flôres, joias, cachemiras, gazes e velludos... Comprehende a +satísfação inenarravel que haverá, para os cinco dedos de um christão, +em percorrer, palpar estas maravilhas macias;--mas tambem percebe que +não é com o troco d'uma placa honesta de cinco tostões que se pagam as +contas d'estes cherubins... Mas ellas possuem melhor, Theodoro: são os +cabellos côr do ouro ou côr da treva, tendo assim nas suas tranças a +apparencia emblematica das duas grandes tentações humanas--a fome do +metal precioso e o conhecimento do absoluto transcendente. E ainda teem +mais: são os braços côr de marmore, d'uma frescura de lirio orvalhado; +são os seios, sobre os quaes o grande Praxiteles modelou a sua Taça, que +é a linha mais pura e mais ídeal da Antiguidade.... Os seios, outr'ora +(na idéa d'esse ingenuo Ancião que os formou, que fabricou o mundo, e de +quem uma inimizade secular me veda de pronunciar o nome), eram +destinados á nutrição augusta da humanidade; socegue porém, Theodoro; +hoje nenhuma maman racional os expõe a essa funcção deterioradora e +severa; servem só para resplandecer, aninhados em rendas, ao gaz das +_soirées_,--e para outros usos secretos. As conveniencias impedem-me de +proseguir n'esta exposição radiosa das bellezas, que constituem o _Fatal +Feminino_... De resto as suas pupillas já rebrilham.... Ora todas estas +coisas, Theodoro, estão para além, infinitamente para além dos seus +vinte mil reís por mez... Confesse, ao menos, que estas palavras teem o +veneravel sello da verdade!... + +Eu murmurei com as faces abrasadas: + +--Teem. + +E a sua voz proseguiu, paciente e suave: + +--Que me diz a cento e cinco, ou cento e seis mil contos? Bem sei, é uma +bagatella... Mas emfim, constituem um começo; são uma ligeira +habilitação para conquistar a felicidade. Agora pondere estes factos: o +Mandarim, esse Mandarim do fundo da China, está decrepito e está +gottoso: como homem, como funccionario do celeste imperio, é mais inutil +em Pekin e na humanidade, que um seixo na bocca d'um cão esfomeado. Mas +a transformação da substancia existe: garanto-lh'a eu, que sei o segredo +das coisas... Porque a terra é assim: recolhe aqui um homem apodrecido, +e restitue-o além ao conjuncto das fórmas como vegetal viçoso. Bem póde +ser que elle, inutil como Mandarim no Imperio do Meio, vá ser util +n'outra terra como rosa perfumada ou saboroso repôlho. Matar, meu filho, +é quasi sempre equilibrar as necessidades universaes. É eliminar aqui a +excrescencia para ir além supprir a falta. Penetre-se d'estas solidas +philosophias. Uma pobre costureira de Londres anceia por vêr florir, na +sua trapeira, um vaso cheio de terra negra: uma flôr consolaria aquella +desherdada; mas na disposição dos sêres, infelizmente, n'esse momento, a +substancia que lá devia ser rosa é aqui na Baixa homem d'Estado... Vem +então o fadista de navalha aberta, e fende o estadista; o enxurro +leva-lhe os intestinos; enterram-no, com tipoias atraz; a materia começa +a desorganisar-se, mistura-se á vasta evolução dos atomos--e o superfluo +homem de governo vai alegrar, sob a fórma de amor perfeito, a agua +furtada da loura costureira. O assassino é um philanthropo! Deixe-me +resumir, Theodoro: a morte d'esse velho Mandarim idiota traz-lhe á +algibeira alguns milhares de contos. Póde desde esse momento dar +pontapés nos poderes publicos: medite na intensidade d'este gozo! É +desde logo citado nos jornaes: reveja-se n'esse maximo da gloria humana! +E agora note: é só agarrar a campainha, e fazer _ti-li-tin._ Eu não sou +um barbaro: comprehendo a repugnancia d'um _gentleman_ em assassinar um +contemporaneo: o espirrar do sangue suja vergonhosamente os punhos, e é +repulsivo o agonisar d'um corpo humano. Mas aqui, nenhum d'esses +espectaculos torpes... É como quem chama um criado... E são cento e +cinco ou cento e seis mil contos; não me lembro, mas tenho-o nos meus +apontamentos... O Theodoro não duvída de mim. Sou um +cavalheiro:--provei-o, quando, fazendo a guerra a um tyranno na primeira +insurreição da justiça, me vi precipitado d'alturas que nem Vossa +Senhoria concebe... Um trambulhão consideravel, meu caro senhor! Grandes +desgostos! O que me consola é que o OUTRO está tambem muito abalado: +porque, meu amigo, quando um Jehovah tem apenas contra si um Satanaz, +tira-se bem de difficuldades mandando carregar mais uma legião +d'archanjos; mas quando o inimigo é o homem, armado d'uma penna de pato +e d'um caderno de papel branco--está perdido... Emfim são seis mil +contos. Vamos, Theodoro, ahi tem a campainha, seja um homem. + +Eu sei o que deve a si mesmo um christão. Se este personagem me tivesse +levado ao cume d'uma montanha na Palestina, por uma noite de lua cheia, +e ahi, mostrando-me cidades, raças e imperios adormecidos, sombriamente +me dissesse:--«Mata o Mandarim, e tudo o que vês em valle e collina será +teu»,--eu saberia replicar-lhe, seguindo um exemplo illustre, e erguendo +o dedo ás profundidades constelladas:--«O meu reino não é d'este mundo!» +Eu conheço os meus authores. Mas eram cento e tantos mil contos, +offerecidos á luz d'uma vela de stearina, na travessa da Conceição, por +um sujeito de chapéo alto, apoiado a um guarda-chuva... + +Então não hesitei. E, de mão firme, repeniquei a campainha. Foi talvez +uma illusão; mas pareceu-me que um sino, de bocca tão vasta como o mesmo +céo, badalava na escuridão, através do Universo, n'um tom temeroso que +decerto foi acordar sóes que faziam né-né e planetas pançudos resonando +sobre os seus eixos... + +O individuo levou um dedo á palpebra, e limpando a lagrima que ennevoára +um instante o seu olho rutilante: + +--Pobre Ti-Chin-Fú!... + +--Morreu? + +--Estava no seu jardim, socegado, armando, para o lançar ao ar, um +papagaio de papel, no passatempo honesto d'um Mandarim retirado,--quando +o surprehendeu este _ti-li-tin_ da campainha. Agora jaz á beira d'um +arroio cantante, todo vestido de sêda amarella, morto, de pança ao ar, +sobre a relva verde: e nos braços frios tem o seu papagaio de papel, que +parece tão morto como elle. Ámanhã são os funeraes. Que a sabedoria de +Confucio, penetrando-o, ajude a bem emigrar a sua alma! + +E o sujeito, erguendo-se, tirou respeitosamente o chapéo, sahiu, com o +seu guarda-chuva debaixo do braço. + +Então, ao sentir bater a porta, afigurou-se-me que emergia d'um +pesadêlo. Saltei ao corredor. Uma voz jovial fallava com a Madame +Marques; e a cancella da escada cerrou-se subtilmente. + +--Quem é que sahiu agora, ó D. Augusta?--perguntei, n'um suor. + +--Foi o Cabritinha que vai um bocadinho á batota... + +Voltei ao quarto: tudo lá repousava tranquillo, identico, real. O +in-folio ainda estava aberto na pagina temerosa. Reli-a: agora +parecia-me apenas a prosa antiquada d'um moralista caturra; cada palavra +se tornára como um carvão apagado... + +Deitei-me:--e sonhei que estava longe, para além de Pekin, nas +fronteiras da Tartaria, no kìosque d'um convento de Lamas, ouvindo +maximas prudentes e suaves que escorriam, com um aroma fino de chá, dos +labios de um Buddha vivo. + + + + +II + + +Decorreu um mez. + +Eu, no entanto, rotineiro e triste, lá ia pondo o meu cursivo ao serviço +dos poderes publicos, e admirando aos domingos a pericia tocante com que +a D. Augusta lavava a caspa do Couceiro. Era agora evidente para mim +que, n'essa noite, eu adormecera sobre o in-folio, e sonhára com uma +«Tentação da Montanha» sob fórmas familiares. Instinctivamente, porém, +comecei a preoccupar-me com a China. Ia lêr os telegrammas á Havaneza; e +o que o meu interesse lá buscava, eram sempre as noticias do Imperio do +Meio; parece porém que, a esse tempo, nada se passava na região das +raças amarellas... A _Agencia Havas_ só tagarellava sobre a Herzegovina, +a Bosnia, a Bulgaria e outras curiosidades barbaras.... + +Pouco a pouco fui esquecendo o meu episodio phantasmagorico: e ao mesmo +tempo, como gradualmente o meu espirito reserenava, voltaram de novo a +mover-se as antigas ambições que lá habitavam,--um ordenado de Director +Geral, um seio amoroso de Lola, bifes mais tenros que os da D. Augusta. +Mas taes regalos pareciam-me tão inaccessiveis, tão nascidos do +sonho--como os proprios milhões do Mandarim. E pelo monotono deserto da +vida,--lá foi seguindo, lá foi marchando, a lenta caravana das minhas +melancolias... + +Um domingo de agosto, de manhã, estirado na cama em mangas de camisa, eu +dormitava, com o cigarro apagado no labio--quando a porta rangeu +devagarinho, e entreabrindo a palpebra dormente, vi curvar-se ao meu +lado uma calva respeitosa. E logo uma voz perturbada murmurou: + +--O snr. Theodoro?... O snr. Theodoro do Ministerio do Reino?... + +Ergui-me lentamente sobre o cotovêlo e respondi, n'um bocejo: + +--Sou eu, cavalheiro. + +O individuo recurvou o espinhaço: assim na presença augusta d'el-rei +Bobeche se arquêa o cortezão... Era pequenino e obeso: a ponta das +suiças brancas roçava-lhe as lapellas do fraque d'alpaca: veneraveis +oculos d'oiro reluziam na sua face bochechuda, que parecia uma prospera +personificação da Ordem: e todo elle tremia desde a calva, lustrosa até +aos botíns de bezerro. Pigarreou, cuspilhou, balbuciou: + +--São noticias para vossa senhoria! Consideráveis noticias! O meu nome é +Silvestre... Silvestre, Juliano & C.^a... Um serviçal criado de vossa +excellencia... Chegaram justamente pelo paquete de Southampton... Nós +somos correspondentes de Brito, Alves & C.^a de Macau... Correspondentes +de Craig and Co d'Hong-Kong... As letras vem d'Hong-Kong... + +O sujeito engasgava-se; e a sua mão gordinha agitava em tremuras um +_enveloppe_ repleto, com um sello de lacre negro. + +--Vossa excellencia--proseguiu--estava decerto prevenido... Nós é que o +não estavamos... A atrapalhação é natural... O que esperamos é que vossa +excellencia nos conserve a sua benevolencia... Nós sempre respeitámos +muito o caracter de vossa excellencia... Vossa excellencia é n'esta +terra uma flôr de virtude, e espelho de bons! Aqui estão os primeiros +saques sobre Bhering and Brothers de Londres... Letras a trinta dias +sobre Rothschild... + +A este nome, resoante como o mesmo oiro, saltei vorazmente do leito. + +--O que é isso, senhor?--gritei. + +E elle, gritando mais, brandindo o _enveloppe_, todo alçado no bico dos +botins: + +--São cento e seis mil contos, senhor! Cento e seis mil contos sobre +Londres, Paris, Hamburgo e Amsterdam, sacados a seu favor, +excellentissimo senhor!... A seu favor, excellentissimo senhor! Pelas +casas de Hong-Kong, de Chang-Hai e de Cantão, da herança depositada do +Mandarim Ti-Chin-Fú!! + +Senti tremer o Globo sob os meus pés--e cerrei um momento os olhos. Mas +comprehendi, n'um relance, que eu era, desde essa hora, como uma +incarnação do Sobrenatural, recebendo d'elle a minha força e possuindo +os seus attributos. Não podia comportar-me como um homem, nem +desconsiderar-me em expansões humanas. Até, para não quebrar a linha +hieratica--abstive-me de ir soluçar, como m'o pedia a alma, sobre o +vasto seio da Madame Marques... + +D'ora em diante cabia-me a impassibilidade d'um Deus--ou d'um Demonio: +dei, com naturalidade, um puxão ás calças, e disse a Silvestre, Juliano +& C.^a estas palavras: + +--Está bem! O Mandarim... Esse Mandarim que disse portou-se com +cavalheirismo. Eu sei de que se trata. É uma questão de familia. Deixe +ahi os papeis... Bons dias. + +Silvestre, Juliano & C.^a retirou-se, ás arrecuas, de dorso vergado e +fronte voltada ao chão. + +Eu então fui abrir, toda larga, a janella: e, dobrando para traz a +cabeça, respirei o ar calido, consoladamente, como uma corça cançada... + +Depois olhei para baixo, para a rua, onde toda uma burguezia se escoava, +n'uma pacata sahida de missa, entre duas filas de trens. Fixei, aqui e +além, inconscientemente, algumas cuias de senhoras, alguns metaes +brilhantes d'arreios. E de repente, veio-me esta idéa, esta triumphante +certeza--que todas aquellas tipoias as podia eu tomar á hora ou ao anno! +Que nenhuma das mulheres que via, deixaria de me offerecer o seu seio +nú, a um aceno do meu desejo! Que todos esses homens, de sobrecasaca de +domingo, se prostrariam diante de mim como diante de um Christo, de um +Mahomet ou de um Buddha, se eu lhes sacudisse junto á face cento e seis +mil contos sobre as praças da Europa!... + +Apoiei-me á varanda: e ri, com tedio, vendo a agitação ephemera +d'aquella humanidade subalterna--que se considerava livre e forte, em +quanto por cima, n'uma sacada de quarto andar, eu tinha na mão, n'um +_enveloppe_ lacrado de negro, o principio mesmo da sua fraqueza e da sua +escravidão!... Então, satisfações do Luxo, regalos do Amor, orgulhos do +Poder, tudo gozei, pela imaginação, n'um instante, e d'um só sôrvo. Mas +logo, uma grande saciedade me foi invadindo a alma: e sentindo o mundo +aos meus pés--bocejei como um leão farto. + +De que me serviam por fim tantos milhões, senão para me trazerem, dia a +dia, a affirmação desoladora da villeza humana?... E assim, ao choque de +tanto oiro, ia desapparecer aos meus olhos como um fumo a belleza moral +do Universo! Tomou-me uma tristeza mystica. Abati-me sobre uma cadeira; +e, com a face entre as mãos, chorei abundantemente. + +D'ahi a pouco a Madame Marques abria a porta, toda vistosa nas suas +sêdas pretas. + +--Está-se á sua espera para jantar, enguiço!... + +Emergi da minha amargura para lhe responder seccamente: + +--Não janto. + +--Mais fica! + +N'esse momento estalavam foguetes ao longe. Lembrei-me que era domingo, +dia de touros: de repente uma visão rebrilhou, flammejou, attrahindo-me +deliciosamente:--era a tourada vista d'um camarote; depois um jantar com +_Champagne_; á noite a orgia, como uma iniciação! Corri á mesa. Atulhei +as algibeiras de letras sobre Londres. Desci á rua com um furor d'abutre +fendendo o ar contra a presa. Uma caleche passava, vazia. Detive-a, +berrei: + +--Aos touros! + +--São dez tostões, meu amo! + +Encarei com repulsão aquelle reles pedaço de materia organisada--que +fallava em placas de prata a um colosso d'oiro! Enterrei a mão na +algibeira ajoujada de milhões, e tirei o meu metal: tinha setecentos e +vinte! + +O cocheiro bateu a anca da egoa e seguiu, resmungando. Eu balbuciei: + +--Mas tenho letras!... Aqui estão! Sobre Londres! Sobre Hamburgo!... + +--Não péga. + +Setecentos e vinte!... E touros, jantar de lord, andaluzas nuas, todo +esse sonho expirou como uma bola de sabão que bate a ponta de um prego. + +Odiei a Humanidade, abominei o Numerario. Outra tipoia, lançada a trote, +apinhada de gente festiva, quasi me atropellou n'aquella abstracção em +que eu ficára com os meus setecentos e vinte na palma da mão suada. + +Cabisbaixo, enchumaçado de milhões sobre Rothschild, voltei ao meu +quarto andar; humilhei-me á Madame Marques, aceitei-lhe o bife corneo; e +passei essa primeira noite de riqueza, bocejando sobre o leito +solitario,--em quanto fóra o alegre Couceiro, o mesquinho tenente de +quinze mil reis de soldo, ria com a D. Augusta, repenicando á viola o +_Fado da Cotovia_. + + * * * * * + +Foi só na manhã seguinte, ao fazer a barba, que reflecti sobre a origem +dos meus milhões. Ella era evidentemente sobrenatural e suspeita. + +Mas como o meu Racionalismo me impedia d'attribuir estes thesouros +imprevistos á generosidade caprichosa de Deus ou do Diabo, ficções +puramente escolasticas; como os fragmentos de Positivismo, que +constituem o fundo da minha Philosophia, não me permittiam a indagação +_das causas primarias, das origens essenciaes_--bem depressa me decidi a +aceitar seccamente este Phenomeno; e a utilisal-o com largueza. Portanto +corri de quinzena ao vento para o _London Brazìlian Bank_... + +Ahi, arremessei para cima do balcão um papel sobre o _Banco +d'Inglaterra_, de mil libras; e soltei esta deliciosa palavra: + +--Oiro! + +Um caixeiro suggeriu-me com doçura: + +--Talvez lho fosse mais commodo em notas... + +Repeti seccamente: + +--Oiro! + +Atulhei as algibeiras, devagar, aos punhados: e na rua, ajoujado, +icei-me para uma caleche. Sentía-me gordo, sentia-me obeso; tinha na +bocca um sabor d'oiro, uma seccura de pó d'oiro na pelle das mãos: as +paredes das casas pareciam-me faiscar como longas laminas d'oiro: e +dentro do cerebro ia-me um rumor surdo onde retilintavam metaes--como o +movimento d'um oceano que nas vagas rolasse barras d'oiro. + +Abandonando-me á oscillação das molas, rebolante como um odre mal firme, +deixava cahir sobre a rua, sobre a gente, o olhar turvo e tedioso do sêr +repleto. Emfim, atirando o chapéo para a nuca, estirando a perna, +empinando o ventre, arrotei formidavelmente de flatulencia ricaça... + +Muito tempo rolei assim pela cidade, bestialisado n'um gozo de Nababo. + +Subitamente um brusco appetite de gastar, de dissipar oiro, veio-me +enfunar o peito como uma rajada que incha uma véla. + +--Pára, animal!--berrei, ao cocheiro. + +A parelha estacou. Procurei em redor com a palpebra meio cerrada alguma +coisa cara a comprar--joia de rainha ou consciencia de estadista: nada +vi; precipitei-me então para um estanco. + +--Charutos! de tostão! de cruzado! Mais caros! de dez tostões! + +--Quantos?--perguntou servilmente o homem. + +--Todos!--respondi, com brutalidade. + +Á porta, uma pobre toda de luto, com o filho encolhido ao seio, +estendeu-me a mão transparente. Incommodava-me procurar os trocos de +cobre por entre os meus punhados d'oiro. Repelli-a, impaciente: e, de +chapéo sobre o olho, encarei friamente a turba. + +Foi então que avistei, adiantando-se, o vulto ponderoso do meu Director +Geral: immediatamente, achei-me com o dorso curvado em arco e o chapéo +comprimentador roçando as lages. Era o habito da dependencia: os meus +milhões não me tinham dado ainda a verticalidade á espinha... + +Em casa despejei o oiro sobre o leito, e rolei-me por cima d'elle, muito +tempo, grunhindo n'um gozo surdo. A torre, ao lado, bateu tres horas; e +o sol apressado já descia, levando comsigo o meu primeiro dia de +opulencia... Então, couraçado de libras, corri a saciar-me! + +Ah, que dia! Jantei n'um gabinete do Hotel Central, solitario e egoista, +com a mesa alastrada de Bordeus, Borgonha, Champagne, Rheno, licôres de +todas as communidades religiosas--como para matar uma sêde de trinta +annos! Mas só me fartei de Collares. Depois, cambaleando, arrastei-me +para o Lupanar! Que noite! A alvorada clareou por traz das persianas; e +achei-me estatelado no tapete, exhausto e semi-nú, sentindo o corpo e a +alma como esvaírem-se, dissolverem-se n'aquelle ambiente abafado onde +errava um cheiro de pó de arroz, de fêmea e de punch... + +Quando voltei á travessa da Conceição, as janellas do meu quarto estavam +fechadas, e a véla expirava, com fogachos lividos, no castiçal de latão. +Então ao chegar junto á cama, vi isto: estirada de través, sobre a +coberta, jazia uma figura bojuda, de Mandarim fulminado, vestida de sêda +amarella, com um grande rabicho solto; e entre os braços como morto +tambem, tinha um papagaio de papel! + +Abri desesperadamente a janella: tudo desappareceu;--o que estava agora +sobre o leito era um velho paletot alvadio. + + + + +III + + +Então começou a minha vida de milionario. Deixei bem depressa a casa da +Madame Marques--que, desde que me sabía rico, me tratava todos os dias a +arroz dôce, e ella mesma me servia, com o seu vestido de sêda dos +domingos. Comprei, habitei o palacete amarello, ao Loreto: as +magnificencias da minha installação são bem conhecidas pelas gravuras +indiscretas da Illustração Franceza. Tornou-se famoso na Europa o meu +leito, d'um gosto exuberante e barbaro, com a barra recoberta de laminas +d'ouro lavrado, e cortinados d'um raro brocado negro onde ondeam, +bordados a perolas, versos eroticos de Catullo; uma lampada, suspensa no +interior, derrama alli a claridade lactea e amorosa d'um luar de verão. + +Os meus primeiros mezes ricos, não o occulto, passei-os a amar--a amar +com o sincero bater de coração d'um pagem inexperiente. Tinha-a visto, +como n'uma pagina de novella, regando os seus craveiros á varanda: +chamava-se Candida; era pequenina, era loira; morava a Buenos-Ayres, +n'uma casinha casta recoberta de trepadeiras; e lembrava-me pela graça e +pelo airoso da cinta, tudo o que a Arte tem creado de mais fino e +fragil--Mimi, Virginia, a Joanninha do Valle de Santarem. + +Todas as noites eu cahia, em extasis de mystico, aos seus pés côr de +jaspe. Todas as manhãs lhe alastrava o regaço de notas de vinte mil +reis: ella repellia-as primeiro com um rubor,--depois, ao guardal-as na +gaveta, chamava-me o seu _anjo Tótó_. + +Um dia que eu me introduzira, a passos subtis, por sobre o espesso +tapete syrio, até ao seu _boudoir_--ella estava escrevendo, muito +enlevada, de dedinho no ar: ao vêr-me, toda tremula, toda pallida, +escondeu o papel que tinha o seu monogramma. Eu arranquei-lh'o, n'um +ciume insensato. Era a carta, a carta costumada, a carta necessaria, a +carta que desde a velha antiguidade a mulher sempre escreve; começava +por _meu idolatrado_--e era para um alferes da visinhança... + +Desarraiguei logo esse sentimento do meu peito como uma planta venenosa. +Descri para sempre dos Anjos loiros, que conservam no olhar azul o +reflexo dos céos atravessados: de cima do meu oiro, deixei cahir sobre a +Innocencia, o Pudor, e outras idealisações funestas acida gargalhada de +Mephistopheles: e organisei friamente uma existencia animal, grandiosa e +cynica. + + * * * * * + +Ao bater do meio dia, entrava na minha tina de marmore côr de rosa, onde +os perfumes derramados davam á agua um tom opaco de leite: depoîs pagens +tenros, de mão macia, fríccionavam-me com o ceremonial de quem celebra +um culto: e embrulhado n'um _robe-de-chambre_ de sêda da India, através +da galeria, dando aqui e além um olhar aos meus Fortunys e aos meus +Corots, entre alas silenciosas de lacaios, dirigia-me ao bife á ingleza, +servido em Sèvres, azul e oiro. + +O resto da manhã, se havia calor, passava-o sobre coxins de setim côr de +perola, n'um _boudoir_ em que a mobilia era de porcelana fina de Dresde +e as flôres faziam um jardim d'Armida; ahi, saboreava o Diario de +Noticiais, em quanto lindas raparigas vestidas á japoneza refrescavam o +ar, agitando leques de plumas. + +De tarde ia dar uma volta a pé, até ao Pote das Almas: era a hora mais +pesada do dia: encostado á bengala, arrastando as pernas molles, abria +bocejos de fera saciada,---e a turba abjecta parava a contemplar, em +extasis, o Nababo enfastiado! + +Ás vezes vinha-me como uma saudade dos meus tempos occupados da +Repartição. Entrava em casa; e encerrado na livraria, onde o Pensamento +da Humanidade repousava esquecido e encadernado em marroquim, aparava +uma penna de pato, e ficava horas lançando sobre folhas do meu querido +Tojal d'outr'ora: «_Ill.^{mo} e Exc.^{mo} Snr.--Tenho a honra de participar +a V. Exc.^a... Tenho a honra de passar ás mãos de V. Exc.^a!..._». + +Ao começo da noite um criado, para annunciar o jantar, fazia soar pelos +corredores na sua tuba de prata, á moda gothica, uma harmonia solemne. +Eu erguia-me e ia comer, magestoso e solitario. Uma populaça de lacaios, +de librés de sêda negra, servia, n'um silencio de sombras que resvalam, +as vitualhas raras, vinhos do preço de joias: toda a mesa era um +esplendor de flôres, luzes, crystaes, scintillações d'oiro:--e +enrolando-se pelas pyramides de fructos, misturando-se ao vapor dos +pratos, errava, como uma nevoa subtil, um tedio inenarravel... + +Depois, apopletico, atirava-me para o fundo do coupé--e lá ia ás +Janellas Verdes onde nutria, n'um jardim de serralho, entre requintes +musulmanos, um viveiro de fêmeas: revestiam-me d'uma tunica de sêda +fresca e perfumada,--e eu abandonava-me a delirios abominaveis... +Traziam-me semi-morto para casa, ao primeiro alvor da manhã: fazia +machinalmente o meu signal da cruz, e d'ahi a pouco roncava de ventre ao +ar, livido e com um suor frio, como um Tiberio exhausto. + + * * * * * + +Entretanto Lisboa rojava-se aos meus pés. O pateo do palacete estava +constantemente invadido por uma turba: olhando-a enfastiado das janellas +da galeria, eu via lá branquejar os peitilhos da Aristocracia, negrejar +a sotaina do Clero, e luzîr o suor da Plebe: todos vinham supplicar, de +labio abjecto, a honra do meu sorriso e uma participação no meu oiro. Ás +vezes, consentia em receber algum velho de titulo historico:--elle +adiantava-se pela sala, quasi roçando o tapete com os cabellos brancos, +tartamudeando adulações; e immediatamente, espalmando sobre o peito a +mão de fortes vêas onde corria um sangue de tres seculos, offerecia-me +uma filha bem-amada para esposa ou para concubina. + +Todos os cidadãos me traziam presentes como a um Idolo sobre o +altar--uns Odes votivas, outros o meu monogramma bordado a cabello, +alguns chinelas ou boquilhas, cada um a sua consciencia. Se o meu olhar +amortecido fixava, por acaso, na rua, uma mulher--era logo ao outro dia +uma carta em que a creatura, esposa ou prostituta, me offertava a sua +nudez, o seu amor, e todas as complacencias da lascivia. + +Os jornalistas esporeavam a imaginação para achar adjectivos dignos da +minha grandeza; fui o _sublime snr. Theodoro_, cheguei a ser o _celeste +snr. Theodoro_; então, desvairada, a Gazeta das Locaes chamou-me o +_extra-celeste snr. Theodoro_! Diante de mim nenhuma cabeça ficou jámais +coberta--ou usasse a corôa ou o côco. Todos os dias me era offerecida +uma Presidencia de Ministerio ou uma Direcção de Confraria. Recusei +sempre, com nojo. + +Pouco a pouco o rumor das minhas riquezas foi passando os confins da +Monarchia. O Figaro, cortezão, em cada numero fallou de mim, +preferindo-me a Henrique V; o grotesco immortal, que assigna +_Saint-Genest_, dirigiu-me apostrophes convulsivas, pedindo-me para +salvar a França; e foi então que as Illustrações estrangeiras +publicaram, a côres, as scenas do meu viver. Recebi de todas as +princezas da Europa enveloppes, com sêllos heraldicos, expondo-me, por +photographias, por documentos, a fórma dos seus corpos e a antiguidade +das suas genealogias. Duas pilherias que soltei durante esse anno foram +telegraphadas ao Universo pelos fios da Agencia Havas; e fui considerado +mais espirituoso que Voltaire, que Rochefort, e que esse fino +entendimento que se chama _Todo-o-Mundo_. Quando o meu intestino se +alliviava com estampido--a Humanidade sabia-o pelas gazetas. Fiz +emprestimos aos Reis, subsidiei guerras civis--e fui caloteado por todas +as Republicas latinas que orlaram o golfo do Mexico. + +E eu, no entanto, vivia triste... + + * * * * * + +Todas as vezes que entrava em casa estacava, arripiado, diante da mesma +visão: ou estirada no limiar da porta, ou atravessada sobre o leito +d'oiro--lá jazia a figura bojuda, de rabicho negro e tunica amarella, +com o seu papagaio nos braços... Era o Mandarim Ti-Chin-Fú! Eu +precipitava-me, de punho erguido: e tudo se dissipava. + +Então cahia aniquilado, todo em suor, sobre uma poltrona, e murmurava no +silencio do quarto, onde as vélas dos candelabros davam tons +ensaguentados aos damascos vermelhos: + +--_Preciso matar este morto_! + +E todavia, não era esta impertinencia d'um velho phantasma pançudo, +accommodando-se nos meus moveis, sobre as minhas colchas, que me fazia +saber mal a vida. + +O horror supremo consistia na idéa, que se me cravára então no espirito +como um ferro inarrancavel--_que eu tinha assassinado um velho_! + +Não fôra com uma corda em torno da garganta á moda musulmana; nem com +veneno n'um calix de vinho de Syracusa, á maneira italiana da +Renascença; nem com algum dos methodos classicos, que na historia das +Monarchias teem recebido consagrações augustas--a punhal como D. João +II, á clavina como Carlos IX... + +Tinha eliminado a creatura, de longe, com uma campainha. Era absurdo, +phantastico, faceto. Mas não diminuia a tragica negrura do facto: _eu +assassinára um velho_! + +Pouco a pouco esta certeza ergueu-se, petrificou-se na minha alma, e +como uma columna n'um descampado dominou toda a minha vida interior: de +sorte que, por mais desviado caminho que tomassem os meus pensamentos +viam sempre negrejar no horisonte aquella Memoria accusadora; por mais +alto que se levantasse o vôo das minhas imaginações, ellas terminavam +por ir fatalmente ferir as azas n'esse Monumento de miseria moral. + +Ah! por mais que se considere Vida e Morte como banaes transformações da +Substancia, é pavoroso o pensamento--que se fez regelar um sangue +quente, que se immobilisou um musculo vivo! Quando depois de jantar, +sentindo ao lado o aroma do café, eu me estirava no sophá, enlanguecido, +n'uma sensação de plenitude, elevava-se logo dentro em mim, melancolico +como o côro que vem d'um ergastulo, todo um susurro de accusações: + +--E todavia tu fizeste que esse bem-estar em que te regalas, nunca mais +fosse gozado pelo veneravel Ti-Chin-Fú!... + +Debalde eu replicava á Consciencia, lembrando-lhe a decrepitude do +Mandarim, a sua gôta incuravel... Facunda em argumentos, gulosa de +controversia, ella retorquia logo com furor: + +--Mas, ainda na sua actividade mais resumida, a vida é um bem supremo: +porque o encanto d'ella reside no seu principio mesmo, e não na +abundancia das suas manifestações! + +Eu revoltava-me contra este pedantismo rhetorico de pedagogo rigido: +erguia alto a fronte, gritava-lhe n'uma arrogancia desesperada: + +--Pois bem! Matei-o! Melhor! Que queres tu? o teu grande nome de +Consciencia não me assusta! És apenas uma perversão da sensibilidade +nervosa. Posso eliminar-te com _flôr de laranja_! + +E immediatamente sentia passar-me n'alma, com uma lentidão de briza, um +rumor humilde de murmurações ironicas: + +--Bem, então come, dorme, banha-te e ama... + +Eu assim fazia. Mas logo, os proprios lençoes de Bretanha do meu leito +tomavam aos meus olhos apavorados os tons lividos d'uma mortalha; a agua +perfumada em que me mergulhava arrefecia-me sobre a pelle, com a +sensação espessa d'um sangue que coalha: e os peitos nús das minhas +amantes entristeciam-me, como lapides de marmore que encerram um corpo +morto. + +Depois assaltou-me uma amargura maior: comecei a pensar que Ti-Chin-Fú +tinha de certo uma vasta familia, netos, bisnetos tenros, que, +despojados da herança que eu comia á farta em pratos de Sèvres, n'uma +pompa de sultão perdulario, iam atravessando na China todos os infernos +tradicionaes da miseria humana--os dias sem arroz, o corpo sem agasalho, +a esmola recusada, a rua lamacenta por morada... + +Comprehendi então porque me perseguia a figura obesa do velho letrado; e +dos seus labios recobertos pelos longos pellos brancos do seu bigode de +sombra, parecia-me sahir agora esta accusação desolada:--«Eu não me +lamento a mim, fórma meio morta que era; chóro os tristes que +arruinaste, e que a estas horas, quando tu vens do seio fresco das tuas +amorosas, gemem de fome, regelam na frialdade, apinhados n'um grupo +expirante, entre leprosos e ladrões, na _Ponte dos Mendigos_, ao pé dos +terraços do Templo do Céo!» + +Oh tortura engenhosa! Tortura realmente chineza! Não podia levar á bocca +um pedaço de pão sem imaginar immediatamente o bando faminto de +criancinhas, a descendencia de Ti-Chin-Fú, penando, como passarinhos +implumes que abrem debalde o bico e piam em ninho abandonado; se me +abafava no meu paletot era logo a visão de desgraçadas senhoras, mimosas +outr'ora de tepido conforto chinez, hoje rôxas de frio, sob andrajos de +velhas sêdas, por uma manhã de neve; o tecto d'ébano do meu palacete +lembrava-me a familia do Mandarim, dormindo á beira dos canaes, farejada +pelos cães; e o meu coupé bem forrado fazia-me arripiar á idéa das +longas caminhadas errantes, por estradas encharcadas, sob um duro +inverno asiatico. + +O que eu soffria!--E era o tempo em que a populaça invejosa vinha pasmar +para o meu palacete, commentando as felicidades inaccessiveis que lá +deviam habitar! + +Emfim, reconhecendo que a Consciencia era dentro em mim como uma +serpente irritada--decidi implorar o auxilio d'Aquelle que dizem ser +superior á Consciencia porque dispõe da Graça. + +Infelizmente eu não acreditava n'Elle... Recorri pois á minha antiga +divindade particular, ao meu dilecto idolo, padroeira da minha familia, +Nossa Senhora das Dôres. E, regiamente pago, um povo de curas e conegos, +pelas cathedraes de cidade e pelas capellas d'aldêa, foi pedindo a Nossa +Senhora das Dôres que voltasse os seus olhos piedosos para o meu mal +interior... Mas nenhum allivio desceu d'esses céos inclementes, para +onde ha milhares d'annos debalde sobe o clamor da miseria humana. + +Então eu proprio me abysmei em praticas piedosas--e Lisboa assistiu a +este espectaculo extraordinario: um ricaço, um Nababo, prostrando-se +humildemente ao pé dos altares, balbuciando de mãos postas phrases de +_Salvè-Rainha_, como se visse na Oração e no Reino do Céo que ella +conquista, outra cousa mais que uma consolação ficticia que os que +possuem tudo inventaram para contentar os que não possuem nada... Eu +pertenço á Burguezia; e sei que se ella mostra á Plebe desprovída um +paraiso distante, gozos ineffaveis a alcançar--é para lhe afastar a +attenção dos seus cofres repletos e da abundancia das suas searas. + +Depois, mais inquieto, fiz dizer milhares de missas, simples e cantadas, +para satisfazer a alma errante de Ti-Chin-Fú. Pueril desvario d'um +cerebro peninsular! O velho Mandarim na sua classe de letrado, de membro +da Academia dos Han-Lin, collaborador provavel do grande tratado +Khou-Tsuane-Chou que já tem setenta e oito mil e setecentos e trinta +volumes, era certamente um sectario da Doutrina, da Moral positiva de +Confucio... Nunca elle, sequer, queimára mechas perfumadas em honra de +Buddha: e os ceremoniaes do Sacrificio mystico deviam parecer á sua +abominavel alma de grammatico e de sceptico como as pantomimas dos +palhaços, no theatro de Hong-Tung! + +Então prelados astutos, com experiencia catholica, deram-me um conselho +subtil--captar a benevolencia de Nossa Senhora das Dores com presentes, +flôres, brocados e joias, como se quizesse alcançar os favores +d'Aspasia: e á maneira d'um banqueiro obeso, que obtem as complacencias +d'uma dançarina dando-lhe um _Cottage_ entre arvores--eu, por uma +suggestão sacerdotal, tentei peitar a dôce Mãi dos Homens, erguendo-lhe +uma cathedral toda de marmore branco. A abundancia das flôres punha +entre os pilares lavrados perspectivas de paraisos: a multiplicidade dos +lumes lembrava uma magnificencia sideral... Despezas vãs! O fino e +erudito cardeal Nani veio de Roma consagrar a Igreja; mas, quando eu +n'esse dia entrei a visitar a minha hospeda divina, o que vi, para além +das calvas dos celebrantes, entre a mystica nevoa dos incensos, não foi +a Rainha da Graça, loira, na sua tunica azul,--foi o velho malandro com +o seu olho obliquo e o seu papagaio nos braços! Era a _elle_, ao seu +branco bigode tartaro, á sua pança côr d'oca, que todo um sacerdocio +recamado d'oiro estava offerecendo, ao roncar do orgão, a Eternidade dos +Louvores!... + + * * * * * + +Então, pensando que Lisboa, o meio dormente em que me movia, era +favoravel ao desenvolvimento d'estas imaginações--parti, viajei +sobriamente, sem pompa, com um bahú e um lacaio. + +Visitei, na sua ordem, classica, Paris, a banal Suissa, Londres, os +lagos taciturnos da Escocia; ergui a minha tenda diante das muralhas +evangelicas de Jerusalém; e d'Alexandria a Thebas, fui ao comprido +d'esse longo Egypto monumental e triste como o corredor d'um mausoléo. +Conheci o enjôo dos paquetes, a monotonia das ruinas, a melancolia das +multidões desconhecidas, as desillusões do _boulevard_: e o meu mal +interior ia crescendo. + +Agora já não era só a amargura de ter despojado uma familia veneravel: +assaltava-me o remorso mais vasto de ter privado toda uma sociedade d'um +Personagem fundamental, um letrado experiente, columna da Ordem, esteio +d'Instituições. Não se póde arrancar assim a um Estado uma personalidade +do valor de cento e seis mil contos, sem lhe perturbar o equilibrio... +Esta idéa pungia-me, acerbamente. Anciei por saber se na verdade a +desapparição de Ti-Chin-Fú fôra funesta á decrepita China: li todos os +jornaes de Hong-Kong e de Chang-Hai, velei a noite sobre Historias de +viagens, consultei sabios missionarios:--e artigos, homens, livros, tudo +me falla da decadencia do Imperio do Meio, provincias arruinadas, +cidades moribundas, plebes esfomeadas, pestes e rebelliões, templos +aluindo-se, leis perdendo a authoridade, a decomposição d'um mundo, como +uma nau encalhada que a vaga desfaz tábua a tábua!... + +E eu attribuia-me estas desgraças da Sociedade chineza! No meu espirito +doente Ti-Chin-Fú! tomára então o valor desproporcionado d'um Cesar, um +Moysés, um d'esses sêres providenciaes que são a força d'uma raça. Eu +matára-o; e com elle desapparecera a vitalidade da sua patria! O seu +vasto cerebro poderia talvez ter salvado, a rasgos geniaes, aquella +velha monarchia asiatica--e eu immobilisára-lhe a acção creadora! A sua +fortuna concorreria a refazer a grandeza do Erario--e eu estava-a +dissipando a offerecer pecegos em janeiro ás messalinas do +Helder!...--Amigos, conheci o remorso colossal de ter arruinado um +imperio! + +Para esquecer este tormento complicado, entreguei-me á orgia. +Installei-me n'um palacete da avenida dos Campos-Elysios--e fui medonho. +Dava festas á Trimalcião: e, nas horas mais asperas de furia libertina, +quando das charangas, na estridencia brutal dos cobres, rompiam os +_can-cans_; quando prostitutas, de seio desbragado, ganiam coplas +canalhas; quando os meus convidados bohemios, atheus de cervejaria, +injuriavam Deus, com a taça de _Champagne_ erguida--eu, tomado +subitamente como Heliogabalo d'um furor de bestialidade, d'um ódio +contra o Pensante e o Consciente, atirava-me ao chão a quatro patas e +zurrava formidavelmente de burro... + +Depois quiz ir mais baixo, ao deboche da plebe, ás torpezas alcoólicas +do _Assomoir_: e quantas vezes, vestido de blusa, com o casquete para a +nuca, de braço dado com _Mes-Bottes_ ou _Bibi-la-Gaillarde_, n'um tropel +avinhado, fui cambaleando pelos _boulevards_ exteriores, a uivar, entre +arrotos: + + _Allons, enfants de la patrie-e-e!... + Le jour de gloire est arrivé..._ + +Foi uma manhã, depois d'um d'estes excessos, á hora em que nas trevas da +alma do debochado se ergue uma vaga aurora espiritual--que me nasceu, de +repente, a idéa de partir para a China! E, como soldados em acampamento +adormecido, que ao som do clarim se erguem, e um a um se vão juntando e +formando columna--outras idéas se foram reunindo no meu espirito, +alinhando-se, completando um plano formidavel... Partiria para Pekin; +descobriria a familia de Ti-Chin-Fú; esposando uma das senhoras, +legitimaría a posse dos meus milhões; daria áquella casa letrada a +antiga prosperidade; celebraria funeraes pomposos ao Mandarim, para lhe +acalmar o espirito irritado; iria pelas provincias miseraveis fazendo +colossaes distribuições d'arroz; e, obtendo do Imperador o botão de +crystal de Mandarim, accesso facil a um bacharel, substituir-me-hia á +personalidade desapparecida de Ti-Chin-Fú--e poderia assim restituir +legalmente á sua patria, senão a authoridade do seu saber, ao menos a +força do seu oiro. + +Tudo isto, por vezes, me apparecia como um programma indefinido, +nevoento, pueril e idealista. Mas já o desejo d'esta aventura original e +epica me envolvera; e eu ia, arrebatado por elle, como uma folha secca +n'uma rajada. + +Anhelei, suspirei por pisar a terra da China!--Depois d'altos +preparativos, apressados a punhados d'oiro, uma noite parti emfim para +Marselha. Tinha alugado todo um paquete, o _Ceylão_. E na manhã +seguinte, por um mar azul-ferrete, sob o vôo branco das gaivotas, quando +os primeiros raios do sol ruborisavam as torres de Nossa Senhora da +Guarda, sobre o seu rochedo escuro--puz a prôa ao Oriente. + + + + +IV + + +O Ceylão teve uma viagem calma e monotona até Chang-Hai. + +D'ahi subimos pelo rio Azul a Tien-Tsin n'um pequeno _steamer_ da +Companhia Russel. Eu não vinha visitar a China n'uma curiosidade ociosa +de _touriste_: toda a paizagem d'essa provincia, que se assemelha á dos +vasos de porcelana, d'um tom azulado e vaporoso, com collinasinhas +calvas e de longe a longe um arbusto bracejante, me deixou sombriamente +indifferente. + +Quando o capitão do _steamer_, um _yankee_ impudente de focinho de +chibo, ao passarmos á altura de Nankin, me propoz parar, ir percorrer as +ruinas monumentaes da velha cidade de porcelana,--eu recusei, com um +movimento secco de cabeça, sem mesmo desviar os olhos tristes da +corrente barrenta do rio. + +Que pesados e soturnos me pareceram os dias de navegação de Tien-Tsin a +Tung-Chou, em barcos chatos que o cheiro dos remadores chinezes +empestava; ora através de terras baixas inundadas pelo Pei-hó, ora ao +longo de pallidos e infindaveis arrozaes; passando aqui uma lugubre +aldêa de lama negra, além um campo coberto de esquifes amarellos; +topando a cada momento com cadaveres de mendigos, inchados e +esverdeados, que desciam ao fio d'agua, sob um céo fusco e baixo! + +Em Tung-Chou fiquei surprehendido, ao dar com uma escolta de cossacos +que mandava ao meu encontro o velho general Camilloff, heroico official +das campanhas da Asia Central, e então embaixador da Russia em Pekin. Eu +vinha-lhe recommendado como um sêr precioso e raro: e o verboso +interprete Sá-Tó, que elle punha ao meu serviço, explicou-me que as +cartas de sêllo imperial, avisando-o da minha chegada, recebera-as elle, +havia semanas, pelos correios da Chancellaria que atravessam a Siberia +em trenó, descem a dorso de camêlo até á Grande Muralha tartara, e +entregam ahi a mala a esses corredores mongolicos, vestidos de coiro +escarlate, que dia e noite galopam sobre Pekin. + +Camilloff enviava-me um poney da Manchouria, ajaezado de sêda, e um +cartão de visita, com estas palavras traçadas a lapis sob o seu nome: +«_Saúde! o animal é dôce de bocca_!» + +Montei o poney: e a um _hurrah_! dos cossacos, n'um agitar heroico de +lanças, partimos á desfilada pela poeirenta planicie--porque já a tarde +declinava, e as portas de Pekin fecham-se mal o ultimo raio de sol deixa +as torres do Templo do Céo. Ao principio seguimos uma estrada, caminho +batido do transito das caravanas, atravancado de enormes lages de +marmore dessoldadas da antiga Via Imperial. Depois passámos a ponte de +Pa-li-kao, toda de marmore branco, flanqueada de dragões arrogantes. +Vamos correndo então á beira de canaes d'agua negra: começam a apparecer +pomares, aqui e além uma aldêa de côr azulada, aninhada ao pé de um +Pagode:--de repente, a um cotovêlo do caminho, paro assombrado... + +Pekin está diante de mim! É uma vasta muralha, monumental e barbara, +d'um negro baço, estendendo-se a perder de vista, e, destacando, com as +architecturas babylonicas das suas portas de tectos recurvos, sobre um +fundo de poente de purpura ensanguentada... + +Ao longe, para o Norte, n'um vago de vapor roxo, esbatem-se, como +suspensas no ar, as montanhas da Mongolia... + +Uma rica liteira esperava-me á porta de Tung-Tsen-Men, para eu +atravessar Pekin até á Residencia militar de Camilloff. A muralha agora, +ao perto, parecia erguer-se até aos céos com o horror d'uma construcção +biblica: á sua base apinhava-se uma confusão de barracas, feira exotica, +onde rumorejava uma multidão, e a luz de lanternas oscillantes cortava +já o crepúsculo de vagas manchas côr de sangue; os toldos brancos faziam +ao pé do negro muro como um bando de borboletas pousadas. + +Senti-me triste; subi á liteira, cerrei as cortinas de sêda escarlate +todas bordadas a oiro; e cercado dos cossacos, eis-me entrando a velha +Pekin, por essa porta babelica, na turba tumultuosa, entre carretas, +cadeirinhas de xarão, cavalleiros mongolicos armados de flechas, bonzos +de tunica alvejante marchando um a um, e longas filas de lentos +dromedarios balançando a sua carga em cadencia... + +D'ahi a pouco a liteira parou. O respeitoso Sá-Tó correu as cortinas, e +vi-me n'um jardim, escurecido e calado, onde, por entre sycomoros +seculares, kiosques alumiados brilhavam com uma luz dôce, como colossaes +lanternas pousadas sobre a relva: e toda a sorte de aguas correntes +murmuravam na sombra. Sob um peristilo feito de madeiros pintados a +vermelhão, aclarado por fios de lampadas de papel transparente, +esperava-me um membrudo figurão, de bigodes brancos, apoiado a um grosso +espadão. Era o general Camilloff. Ao adiantar-me para elle, eu sentia o +passo inquieto das gazellas fugindo de leve sob as arvores... + +O velho heroe apertou-me um momento ao peito, e conduziu-me logo, +segundo os usos chinezes, ao banho da hospitalidade, uma vasta tina de +porcelana, onde entre rodelas finas de limão sobrenadavam esponjas +brancas, n'um perfume forte de lilaz... + +Pouco depois a lua banhava deliciosamente os jardins: e eu, muito +fresco, de gravata branca, entrava pelo braço de Camilloff no _boudoir_ +da generala. Era alta e loira; tinha os olhos verdes das sereias de +Homero; no decote baixo do seu vestido de sêda branca pousava uma rosa +escarlate; e nos dedos, que lhe beijei, errava um aroma fino de sandalo +e de chá. + +Conversámos muito da Europa, do Nihilismo, de Zola, de Leão XIII, e da +magreza de Sarah Bernardth... + +Pela galeria aberta penetrava um ar calido que rescendia a heliotropio. +Depois ella sentou-se ao piano--e a sua voz de contralto quebrou até +tarde os silencios melancolicos da cidade tartara, com as picantes arias +de _Madame Favart_ e com as melodias afagantes do _Rei de Lahore_. + + * * * * * + +Ao outro dia cedo, encerrado com o general n'um dos kiosques do jardim, +contei-lhe a minha lamentavel historia e os motivos fabulosos que me +traziam a Pekin. O heroe escutava, cofiando sombriamente o seu espesso +bigode cossaco... + +--O meu prezado hospede sabe o chinez?--perguntou-me de repente, fixando +em mim a pupilla sagaz. + +--Sei duas palavras importantes, general: _Mandarim_ e _chá_. + +Bile passou a sua mão de fortes cordovêas sobre a medonha cicatriz que +lhe sulcava a calva: + +--_Mandarim_, meu amigo, não é uma palavra chineza, e ninguem a entende +na China. É o nome que no seculo XVI os navegadores do seu paiz, do seu +bello paiz... + +--Quando nós tinhamos navegadores...--murmurei, suspirando. + +Elle suspirou tambem, por polidez, e continuou: + +--...Que os seus navegadores deram aos funccionarios chinezes. Vem do +seu verbo, do seu lindo verbo... + +--Quando tinhamos verbos...--rosnei, no habito instinctivo de deprimir a +patria. + +Elle esgazeou um momento o seu olho redondo de velho mocho--e proseguiu +paciente e grave: + +--Do seu lindo verbo _mandar_ ... Resta-lhe por tanto _chá_. É um +vocabulo que tem um vasto papel na vida chineza, mas julgo-o +insufficiente para servir a todas as relações sociaes. O meu estimavel +hospede pretende esposar uma senhora da famillia Ti-Chin-Fú, continuar a +grossa influencia que exercia o Mandarim, substituir, domestica e +socialmente, esse chorado defunto... Para tudo isto dispõe da palavra +_chá_. É pouco. + +Não pude negar--que era pouco. O venerando russo, franzindo o seu nariz +adunco de milhafre, pôz-me ainda outras objecções que eu via erguerem-se +diante do meu desejo--como as muralhas mesmas de Pekin: nenhuma senhora +da familia Ti-Chin-Fú consentiria jámais em casar com um barbaro; e +seria impossivel, terrivelmente impossivel que o Imperador, o Filho do +Sol, concedesse a um estrangeiro as honras privilegiadas d'um +Mandarim... + +--Mas porque m'as recusaria?--exclamei.--Eu pertenço a uma boa familia +da provincia do Minho. Sou bacharel formado: portanto na China, como em +Coimbra, sou um letrado! Já fiz parte d'uma repartição publica... Possuo +milhões... Tenho a experiencia do estylo administrativo... + +O general ia-se curvando com respeito a esta abundancia dos meus +attributos. + +--Não é--disse elle emfim--que o Imperador realmente o recusasse: é que +o individuo que lh'o propozesse seria immediatamente decapitado. A lei +chineza, n'este ponto, é explicita e secca. + +Baixei a cabeça, acabrunhado. + +--Mas, general--murmurei--eu quero livrar-me da presença odiosa do velho +Ti-Chin-Fú e do seu papagaio!... Se eu entregasse metade dos meus +milhões ao thesouro chinez, já que não me é dado pessoalmente +applical-os, como Mandarim, á prosperidade do Estado...? Talvez +Ti-Chin-Fú se calmasse... + +O general pousou-me paternalmente a vasta mão sobre o hombro: + +--Êrro, consideravel êrro, mancebo! Esses milhões nunca chegariam ao +thesouro imperial. Ficariam nas algibeiras insondaveis das classes +dirigintes: seriam dissipados em plantar jardins, colleccionar +porcelanas, tapetar de pelles os soalhos, fornecer sêdas ás concubinas: +não alliviariam a fome d'um só chinez, nem reparariam uma só pedra das +estradas publicas... Iriam enriquecer a orgia asiatica. A alma de +Ti-Chin-Fú deve conhecer bem o Imperio: e isso não a satisfaria. + +--E se eu empregasse parte da fortuna do velho malandro em fazer +particularmente, como philanthropo, largas distribuições d'arroz á +populaça faminta? É uma idéa... + +--Funesta--disse o general, franzindo medonhamente o sobr'olho.--A côrte +imperial veria ahi immediatamente uma ambição politica, o tortuoso plano +de ganhar os favores da plebe, um perigo para a Dynastia... O meu bom +amigo seria decapitado... É grave... + +--Maldição!--berrei.---Então para que vim eu á China? + +O diplomata encolheu vagarosamente os hombros; mas logo, mostrando n'um +sorriso astuto os seus dentes amarellos de cossaco: + +--Faça uma coisa. Procure a familia de Ti-Chin-Fú... Eu indagarei do +primeiro ministro, sua excellencia o principe Tong, onde pára essa prole +interessante... Reuna-os, atire-lhes uma ou duas duzias de milhões... +Depois prepare ao defunto funeraes regios. Funeraes d'alto ceremonial, +com um prestito d'uma legua, filas de bonzos, todo um mundo de +estandartes, palanquins, lanças, plumas, andores escarlates, legiões de +carpideiras ululando sinistramente, etc. etc... Se depois de tudo isto a +sua consciencia não adormecer e o phantasma insistir... + +--Então? + +--Córte as guelas. + +--Obrigado, general. + + * * * * * + +Uma coisa porém era evidente, e n'ella concordaram Camilloff, o +respeitoso Sá-Tó e a generala:--que, para frequentar a familia +Ti-Chin-Fú, seguir os funeraes, misturar-me á vida de Pekin, eu devia +desde já vestir-me como um chinez opulento, da classe letrada, para me +ir habituando ao traje, ás maneiras, ao ceremonial mandarim... + +A minha face amarellada, o meu longo bigode pendente favoreciam a +caracterisação:--e quando na manhã seguinte, depois d'arranjado pelos +costureiros engenhosos da rua Chá-Coua, entrei na sala forrada de sêda +escarlate, onde já rebrilhavam as porcelanas do almoço sobre a mesa de +charão negro,--a generala recuou como á appariçâo do proprio Tong-Tché, +Filho do Céo! + +Eu trazia uma tunica de brocado azul escuro abotoada ao lado, com o +peitilho ricamente bordado de dragões e flôres d'oiro: por cima um +casabeque de sêda de um tom azul mais claro, curto, amplo e fôfo: as +calças de setim côr de avellã descobriam ricas babouches amarellas +pespontadas a perolas, e um pouco da meia picada d'estrellinhas negras: +e á cinta, n'uma linda facha franjada de prata, tinha mettido um leque +de bambú, dos que teem o retrato do philosopho Lá-o-Tsé e são fabricados +em Swaton. + +E, pelas mysteriosas correlações com que o vestuario influenceia o +caracter, eu sentia já em mim idéas, instinctos chinezes:--o amor dos +ceremoniaes meticulosos, o respeito bureocratico das fórmulas, uma ponta +de scepticismo letrado; e tambem um abjecto terror do Imperador, o odio +ao estrangeiro, o culto dos antepassados, o fanatismo da tradição, o +gosto das coisas assucaradas... + +Alma e ventre, era já totalmente um Mandarim. Não disse á +generala:--_Bon jour, Madame_. Dobrado ao meio, fazendo girar os punhos +fechados sobre a fronte abaixada, fiz gravemente o _chin-chin_! + +--É adorável, é precioso!--dizia ella, com o seu lindo riso, batendo as +maosinhas pallidas. + +N'essa manhã, em honra da minha nova incarnação, havia um almoço chinez. +Que gentis guardanapos de papel de sêda escarlate, com monstros +fabulosos desenhados a negro! O serviço começou por ostras de Ning-Pó. +Eximias! Absorvi duas duzias com um intenso regalo chinez. Depois vieram +deliciosas febras de barbatana de tubarão, olhos de carneiro com picado +d'alho, um prato de nenufares em calda d'assucar, laranjas de Cantão, e +emfim o arroz sacramental, o arroz dos avós... + +Delicado repasto, regado largamente de excellente vinho de Chão-Chigne! +E por fim, com que gôzo recebi a minha taça d'agua a ferver, onde deitei +uma pitada de folhas de chá imperial, da primeira colheita de março, +colheita unica, que é celebrada como um rito santo pelas mãos puras de +virgens!... + +Duas cantadeiras entraram, em quanto nós fumavamos; e muito tempo, n'uma +modulação guttural, disseram velhas cantigas dos tempos da dynastia +Ming, ao som de guitarras recobertas de pelles de serpente, que dous +tartaros agachados repenicavam, n'uma cadencia melancolica e barbara. A +China tem encantos d'um raro gosto... + +Depois a loira generala cantou-nos, com chiste, a _Femme à barbe_: e +quando o general sahiu com a sua escolta cossaca para o Yamen do +principe Tong, a informar-se da residencia da familia Ti-Chin-Fú--eu, +repleto e bem disposto, sahi com Sá-Tó a vêr Pekin. + + * * * * * + +A habitação de Camilloff ficava na cidade tartara, nos bairros militares +e nobres. Ha aqui uma tranquillidade austera. As ruas assemelham-se a +largos caminhos d'aldêa sulcados pelas rodas dos carros; e quasi sempre +se caminha ao comprido de um muro, d'onde sahem ramos horisontaes de +sycomoros. + +Por vezes uma carreta passa rapidamente, ao trote de um poney mongol, +com altas rodas cravejadas de pregos dourados; tudo n'ella oscilla, o +toldo, as cortinas pendentes de sêda, os ramos de plumas aos angulos; e +dentro entrevê-se alguma linda dama chineza, coberta de brocados claros, +a cabeça toda cheia de flôres, fazendo girar nos pulsos dois aros de +prata, com um ar de tedio ceremonioso. Depois é alguma aristocratica +cadeirinha de Mandarim, que koulis vestidos d'azul, de rabicho solto, +vão levando a um trote arquejante para os Yamens do Estado; precede-os +uma criadagem maltrapilha que ergue ao alto rolos de seda com +inscripções bordadas, insignias d'authoridade; e dentro o personagem +bojudo, com enormes oculos redondos, folheia a sua papelada ou dormita +de beiço cahido... + +A cada momento paravamos a olhar as lojas ricas, com as suas taboletas +verticaes de letras douradas sobre fundo escarlate: os freguezes, n'um +silencio d'igreja, subtis como sombras, vão examinando as +preciosidades--porcelanas da dynastia Ming, bronzes, esmaltes, marfins, +sêdas, armas marchetadas, os leques maravilhosos de Swaton: por vezes, +uma fresca rapariga d'olho obliquo, tunica azul, e papoilas de papel nas +tranças, desdobra algum raro brocado diante d'um grosso chinez que o +contempla beatamente, com os dedos cruzados na pança: ao fundo o +mercador apparatoso e immovel, escreve com um pincel sobre longas +taboinhas de sandalo: e um perfume adocicado que sahe das coisas +perturba e entristece... + +Eis-aqui a muralha que cérca a Cidade interdictca, morada santa do +Imperador! Moços nobres vem descendo do terraço d'um templo onde se +estiveram adestrando á frecha. Sá-Tó disse-me os seus nomes: eram da +guarda selecta, que nas ceremonias escolta o guarda-sol de sêda +amarella, com o Dragão bordado, que é o emblema sagrado do Imperador. +Todos elles comprimentaram profundadamente um velho que ia passando, de +barbas venerandas, com o casabeque amarello que é o privilegio do +ancião; vinha fallando só, e trazia na mão uma vara sobre que pousavam +cotovias domesticadas... Era um principe do Imperio. + +Estranhos bairros! Mas nada me divertia como vêr a cada instante, a uma +porta de jardim, dois Mandarins pançudos que para entrar se trocavam +indefinidamente salamalés, cortezias, recusas, risinhos agudos +d'etiqueta, todo um ceremonial dogmatico--que lhes fazia oscillar d'um +modo picaresco, sobre as costas, as longas pennas de pavão. Depois se +erguia os olhos para o ar, lá via sempre pairar enormes papagaios de +papel, ora em fórma de dragões, ora de cetaceos, ora d'aves +fabulosas--enchendo o espaço d'uma inverosimil legião de monstros +transparentes e ondeantes... + + * * * * * + +--Sá-Tó, basta de cidade tartara! Vamos vêr os bairros chinezes... + +E lá fomos penetrando na cidade chineza, pela porta monstruosa de +Tchin-Men. Aqui habita a burguezia, o mercador, a populaça. As ruas +alinham-se como uma pauta; e no sólo vetusto e lamacento, feito da +immundicie de gerações recalcada desde seculos, ainda aqui e além jaz +alguma das lages de marmore côr de rosa que outr'ora o calçavam, no +tempo da grandeza dos Ming. + +Dos dois lados são--ora terrenos vagos onde uivam manadas de cães +famintos, ora filas de casebres fuscos, ora pobres lojas com as suas +taboletas esguias e sarapintadas, balouçando-se d'uma haste de ferro. A +distancia erguem-se os arcos triumphaes feitos de barrotes côr de +purpura, ligados no alto por um telhado oblongo de telhas azues +envernizadas, que rebrilham como esmaltes. Uma multidão rumorosa e +espessa, onde domina o tom pardo e azulado dos trajes, circula sem +cessar; a poeira envolve tudo d'uma nevoa amarellada; um fedor acre +exhala-se dos enxurros negros; e a cada momento uma longa caravana de +camêlos fende lentamente a turba, conduzida por mongoes sombrios +vestidos de pelle de carneiro... + +Fomos até ás entradas das pontes sobre os canaes, onde saltimbancos +semi-nús, com mascaras simulando demonios pavorosos, fazem destrezas +d'um picaresco barbaro e subtil; e muito tempo estive a admirar os +astrologos de longas tunicas, com dragões de papel collados ás cóstas, +vendendo ruidosamente horoscopos e consultas d'astros. Oh cidade +fabulosa e singular! + +De repente ergue-se uma gritaria! Corremos: era um bando de presos, que +um soldado, de grandes oculos, ia impellindo com o guarda-sol, amarrados +uns aos outros pelo rabicho! Foi ahi n'essa avenida, que eu vi o +estrepitoso cortejo de um funeral de Mandarim, todo ornado de +auriflammas e de bandeirolas; grupos de sujeitos funebres vinham +queimando papeis em fogareiros portateis; mulheres esfarrapadas uivavam +de dôr espojando-se sobre tapetes; depois erguiam-se, galhofavam, e um +kouli vestido de luto branco servia-lhes logo chá, d'um grande bule em +fórma d'ave. + +Ao passar junto ao Templo do Céo, vejo apinhada n'um largo uma legiao de +mendigos; tinham por vestuario um tijolo preso á cinta n'um cordel; as +mulheres, com os cabellos entremeados de velhas flôres de papel, roiam +ossos tranquillamente; e cadaveres de crianças apodreciam ao lado, sob o +vôo dos moscardos. Adiante topamos com uma jaula de traves, onde um +condemnado estendia, através das grades, as mãos descarnadas, á +esmola... Depois Sá-Tó mostrou-me respeitosamente uma praça estreita: +ahi, sobre pilares de pedra, poupavam pequenas gaiolas contendo cabeças +de decapitados: e gotta a gotta ia pingando d'ellas um sangue espesso e +negro... + + * * * * * + +--Ouf!--exclamei, fatigado e aturdido.--Sá-Tó, agora quero o repouso, o +silencio, e um charuto caro... + +Elle curvou-se: e, por uma escadaria de granito, levou-me ás altas +muralhas da cidade, formando uma esplanada que quatro carros de guerra a +par podem percorrer durante leguas. + +E emquanto Sá-Tó, sentado n'um vão d'ameia, bocejava n'um desafôgo de +_cicerone_ enfastiado, eu fumando contemplei muito tempo aos meus pés a +vasta Pekin... + +É como uma formidavel cidade da Biblia, Babel, ou Ninive que o propheta +Jonas levou tres dias a atravessar. O grandioso muro quadrado limita os +quatro pontos do horisonte, com as suas portas de torres monumentaes, +que o ar azulado, áquella distancia, faz parecer transparentes. E na +immensidão do seu recinto agglomeram-se confusamente verduras de +bosques, lagos artificiaes, canaes scintillantes como aço, pontes de +marmore, terrenos alastrados de ruinas, telhados envernizados reluzindo +ao sol; por toda a parte são pagodes heraldicos, brancos terraços de +templos, arcos triumphaes, milhares de kiosques sahindo d'entre as +folhagens dos jardins; depois espaços que parecem um montão de +porcelanas, outros que se assemelham a monturos de lama; e sempre a +intervallos regulares o olhar encontra algum dos bastiões, d'um aspecto +heroico e fabuloso... + +A multidão, junto a essas edificações grandiosas, é apenas como grãos +d'arêa negra que um vento brando vai trazendo e levando... + +Aqui está o vasto palacio imperial, entre arvoredos mysteriosos, com os +seus telhados d'um amarello d'oiro vivo! Como eu desejaria penetrar-lhe +os segredos, e ver desenrolar-se, pelas galerias sobrepostas, a +magnificencia barbara d'essas Dynastias seculares! + +Além ergue-se a torre do Templo do Céo semelhando três guarda-soes +sobrepostos: depois a grande columna dos Principios, hieratica e sêcca +como o Genio mesmo da Raça: e adiante branquejam n'uma meia tinta +sobrenatural os terraços de jaspe do Santuario da Purificação... + +Então interrogo Sá-Tó: e o seu dedo respeitoso vai-me mostrando o Templo +dos Antepassados, o Palacio da Soberana Concordia, o Pavilhão das Flôres +das Letras, o Kiosque dos Historiadores, fazendo brilhar, entre os +bosques sagrados que os cercam, os seus telhados lustrosos de faianças +azues, verdes, escarlates e côr de limão. Eu devorava, d'olho avido, +esses monumentos da Antiguidade asiatica, n'uma curiosidade de conhecer +as impenetraveis classes que os habitam, o principio das Instituições, a +significação dos Cultos, o espirito das suas letras, a grammatica, o +dogma, a estranha vida interior d'um cerebro de letrado chinez... Mas +esse mundo é inviolavel como um Santuario... + +Sentei-me na muralha, e os meus olhos perderam-se pela planicie arenosa +que se estira para além das portas até aos contrafortes dos montes +mongolicos; ahi incessantemente redemoinham ondas infindaveis de poeira; +a toda a hora negrejam filas vagarosas de caravanas... Então invadiu-me +a alma uma melancolia, que o silencio d'quellas alturas, envolvendo +Pekin, tornava d'um vago mais desolado: era como uma saudade de mim +mesmo, um longo pezar de me sentir alli isolado, absorvido n'aquelle +mundo duro e barbaro: lembrei-me, com os olhos humedecidos, da minha +aldêa do Minho, do seu adro assombreado de carvalheiras, a venda com um +ramo de louro á porta, o alpendre do ferrador, e os ribeiros tão frescos +quando verdejam os linhos... + +Aquella era a época em que as pombas emigram de Pekin para o sul. Eu +via-as reunirem-se em bandos por cima de mim, partindo dos bosques dos +templos e dos pavilhões imperiaes; cada uma traz, para a livrar dos +milhafres, um leve tubo de bambu que o ar faz silvar; e aquellas nuvens +brancas passavam como impellidas d'uma aragem molle, deixando no +silencio um lento e melancolico suspiro, uma ondulação eolia, que se +perdia nos ares pallidos... + +Voltei para casa, pesado e pensativo. + +Ao jantar, Camilloff, desdobrando o seu guardanapo, pediu-me com +bonhomia as minhas impressões de Pekin. + +--Pekin faz-me sentir bem, general, os versos d'um poeta nosso: + + Sôbolos rios que vão + Por Babylonia me achei... + +--Pekin é um monstro!--disse Camilloff oscillando reflectidamente a +calva.--E agora considere, que a esta capital, á classe tartara e +conquistadora que a possue, obedecem trezentos milhões d'homens, uma +raça subtil, laboriosa, soffredora, prolifica, invasora... Estudam as +nossas sciencias... Um calice de Medoc, Theodoro?... Teem uma marinha +formidavel! O exercito, que outr'ora julgava destroçar o estrangeiro com +dragões de papelão d'onde sahiam bichas de fogo, tem agora tactica +prussiana e espingarda d'agulha! Grave! + +--E todavia, general, no meu paiz, quando, a proposito de Macau, se +falla do Imperio Celeste, os patriotas passam os dedos pela grenha, e +dizem negligentemente: _Mandamos lá cincoenta homens, e varremos a +China_... + +A esta sandice--fez-se um silencio. E o general, depois de tossir +formidavelmente, murmurou, com condescendencia: + +--Portugal é um bello paiz... + +Eu exclamei com seccura e firmeza: + +--É uma choldra, general. + +A generala, collocando delicadamente á borda do prato uma aza de frango, +e limpando o dedinho, disse: + +--É o paiz da canção de Mignon. É lá que floresce a laranjeira... + +O gordo Meriskoff, doutor allemão pela Universidade de Bonn, chanceller +da legação, homem de poesia e de commentario, observou com respeito: + +--Generala, o dôce paiz de Mignon é a Italia: _Conheces tu a terra +privilegiada onde a laranjeira dá flor_? O divino Goethe referia-se á +Italia, _Italia mater_... A Italia será o eterno amor da humanidade +sensivel! + +--Eu prefiro a França!--suspirou a esposa do primeiro secretario, uma +bonecasinha sardenta, de cabello arruivascado. + +--Ah! a França!...--murmurou um addido, revirando um bugalho d'olho +ternissimo. + +O gordo Meriskoff ageitou os oculos d'oiro: + +--A França tem um mal, que é a Questão social... + +--Oh! a Questão social!--rosnou sombriamente Camilloff. + +--Ah! a Questão social!...--considerou ponderosamente o addido. + +E discreteando com tanta sapiencia, chegámos por fim ao café. + +Ao descer ao jardim, a generala, apoiando-se sentimentalmente ao meu +braço, murmurou-me, junto á face: + +--Ai, quem me dera viver n'esses paizes apaixonados, onde verdejam os +laranjaes!... + +--É lá que se ama, generala--segredei-lhe eu, levando-a dôcemente para a +escuridão dos sycomoros... + + + + +V + + +Foi necessario todo um longo verão para descobrir a provincia onde +residira o defunto Ti-Chin-Fú! + +Que episodio administrativo tão pittoresco, tão chinez! O serviçal +Camillof, que passava o dia inteiro a percorrer os Yamens do Estado, +teve de provar primeiro que o desejo de conhecer a morada d'um velho +Mandarim não encobria uma conspiração contra a segurança do Imperio; e +depois foi-lhe ainda preciso jurar que não havia n'esta curiosidade um +attentado contra os Ritos sagrados! Então, satisfeito, o principe Tong +permittiu que se fizesse o inquerito imperial: centenares d'escribas +empallideceram noite e dia, de pincel na mão, desenhando relatorios +sobre papel d'arroz; mysteriosas conferencias sussurraram +incessantemente por todas as repartições da Cidade Imperial, desde o +Tribunal astronomico até ao Palacio da Bondade Preferida; e uma +população de koulis transportava da legação russa para os kiosques da +Cidade Interdicta, e d'ahi para o Pateo dos Archivos padiolas estalando +ao peso de maços de documentos vetustos... + +Quando Camilloff perguntava _pelo resultado_, vinha-lhe a resposta, +satisfactoria que se estavam consultando os Livros Santos de Lá-o-Tsé, +ou que se iam explorar velhos textos do tempo de Nor-ha-chú. E para +calmar a impaciencia bellica do russo, o principe Tong remettia, com +estes recados subtis, algum substancial presente de confeitos recheados, +ou de gomos de bambú em calda d'assucar... + + * * * * * + +Ora em quanto o general trabalhava com fervor para encontrar a familia +Ti-Chin-Fú,--eu ia tecendo horas de sêda e oiro (assim diz um poeta +japonez) aos pés pequeninos da generala... + +Havia um kiosque no jardim sob os sycomoros, que se denominava, á +maneira chineza, do _Repouso discreto_:--ao lado um arroio fresco ia +cantando dôcemente sob uma pontesinha rustica pintada de côr de rosa. As +paredes eram apenas um gradeado de bambú fino forrado de sêda côr de +ganga: o sol, passando através d'ellas, fazia uma luz sobrenatural de +opala desmaiada. Ao centro afofava-se um divan de sêda branca, d'uma +poesia de nuvem matutina, attrahente como um leito nupcial. Aos cantos, +em ricas jarras transparentes da época de Yeng, erguiam-se, na sua +gentileza aristocratica, lirios escarlates do Japão. Todo o soalho +estava recoberto d'esteiras finas de Nankin; e junto á janella +rendilhada, sobre um airoso pedestal de sandalo, pousava aberto ao alto +um leque formado de laminas de crystal separadas, que a aragem entrando +fazia vibrar, n'uma modulação melancolica e terna. + +As manhãs do fim d'agosto em Pekin são muito suaves; já erra no ar um +enternecimento outonal. A essa hora o conselheiro Meriskoff, os +officiaes da legação, estavam sempre na chancellaria _fazendo a mala_ +para S. Petersburgo. + +Eu então, de leque na mão, pisando subtilmente na ponta das babouches de +setim as ruasinhas areadas do jardim, ia entreabrir a porta do _Repouso +discreto_: + +--Mimi? + +E a voz da generala respondia, suave como um beijo: + +--_All right_... + +Como ella era linda vestida de dama chineza! Nos seus cabellos +levantados alvejavam flôres de pecegueiro; e as sobrancelhas pareciam +mais puras e negras avivadas a tinta de Nankin. A camisinha de gaze, +bordada a soutache de filigrana d'oiro, collava-se aos seus seios +pequeninos e direitos: vastas, fôfas calças de foulard côr de _côxa de +Nympha_, que lhe davam uma graça de serralho, recahiam sobre o tornozêlo +fino, coberto de meia de seda amarella:--e apenas tres dedos da minha +mão cabiam na sua chinelinha... + +Chamava-se Vladimira; nascera ao pé de Nidji-Novogorod; e fôra educada +por uma tia velha que admirava Rousseau, lia Faublas, usava o cabello +empoado, e parecia a grossa lithographia cossaca d'uma dama galante de +Versalhes... + +O sonho de Vladimira era habitar Paris; e fazendo ferver delicadamente +as folhas de chá, pedia-me historias ladinas de _Cocottes_, e dizia-me o +seu culto por Dumas filho... + +Eu arregaçava-lhe a larga manga do casabeque de sêda côr de folha morta, +e ia fazendo viajar os meus labios devotos pela pelle fresca dos seus +bellos braços;--e depois sobre o divan, enlaçados, peito contra peito, +n'um extasi mudo, sentiamos as laminas de crystal resoar eoliamente, as +pêgas azues esvoaçarem pelos platanos, o fugitivo rhythmo do arroio +corrente... + +Os nossos olhos humedecidos encontravam ás vezes um quadro de setim +preto, por cima do divan, onde em caracteres chinezes se desenrolavam +sentenças do Livro Sagrado de Li-Num «sobre os deveres das esposas». Mas +nenhum de nós percebia o chinez... E no silencio os nossos beijos +recomeçavam, espaçados, soando dôcemente, e comparaveis (na lingua +florida d'aquelles paizes) a perolas que cahem uma a uma sobre uma bacia +de prata...--Oh suaves séstas dos jardins de Pekin, onde estaes vós? +Onde estaes, folhas mortas dos lirios escarlates do Japão?... + + * * * * * + +Uma manhã Camilloff entrando na chancellaria, onde eu fumava o cachimbo +d'amizade de companhia com Meriskoff, atirou o seu enorme sabre para um +canapé, e contou-nos radiante as noticias que lhe dera o penetrante +principe Tong.--Descobrira-se emfim que um opulento Mandarim, de nome +Ti-Chin-Fú, vivera outr'ora nos confins da Mongolia, na villa de +Tien-Hó! Tinha morrido subitamente: e a sua larga descendencia residia +lá, em miseria, n'um casebre vil... + +Esta descoberta, é certo, não fôra devida á sagacidade da burocracia +imperial--mas fizera-a um astrologo do templo de Faqua, que durante +vinte noites folheára no céo o luminoso archivo dos astros... + +--Theodoro, ha-de ser o seu homem!--exclamou Camilloff. + +E Meriskoff repetiu, sacudindo a cinza do cachimbo: + +--Ha-de ser o seu homem, Theodoro! + +--O meu homem...--murmurei sombriamente. + +Era talvez o _meu homem_, sim! Mas não me seduzia ir procurar o _meu +homem_ ou a sua familia, na monotonia d'uma caravana, por essas +desoladas extremidades da China!... Depois, desde que chegára a Pekin, +eu não tornára a avistar a fórma odiosa de Ti-Chin-Fú e do seu papagaio. +A Consciencia era dentro em mim como uma pomba adormecida. Certamente, o +alto esforço de me ter arrancado ás doçuras do _boulevard_ e do Loreto, +de ter sulcado os mares até ao Império do Meio, parecera á Eterna +Equidade uma expiação sufficiente e uma peregrinação reparadora. +Certamente Ti-Chin-Fú, acalmado, recolhera-se com o seu papagaio á +sempiterna Immobilidade... Para que iria eu, pois, a Tien-Hó? Porque não +ficaria alli, n'aquelle amavel Pekin, comendo nenufares em calda +d'assucar, abandonando-me ás somnolencias amorosas do _Repouso +discreto_, e pelas tardes azuladas, dando o meu passeio pelo braço do +bom Meriskoff, nos terraços de jaspe da Purificação ou sob os cedros do +Templo do Céo?... + +Mas já o zeloso Camilloff, de lapis na mão, ia marcando no mappa o meu +itinerário para Tien-Hó! E mostrando-me, n'um desagradavel +entrelaçamento, sombras de montes, linhas tortuosas de rios, esfumados +de lagôas: + +--Aqui está! O meu hospede sobe até Ni-ku-hé, na margem do Pei-Hó... +D'ahi, em barcos chatos vai a My-yun. Boa cidade, ha lá um Buddha +vivo... D'ahi, a cavallo, segue até á fortaleza de Ché-hia. Passa a +grande muralha, famoso espectáculo!... Descança no forte de Ku-pi-hó. +Póde lá caçar a gazella. Soberbas gazellas... E com dois dias de +caminhada está em Tien-Hó... Brilhante, hein?... Quando quer partir? +Ámanhã?... + +--Ámanhã--rosnei, tristonho. + +Pobre generala! N'essa noite, em quanto Meriskoff, ao fundo da sala, +fazia com tres officiaes da embaixada o seu _whist_ sacramental; e +Camilloff, ao canto do sophá, de braços cruzados, solemne como n'uma +poltrona do Congresso de Vienna, dormia de bocca aberta;--ella sentou-se +ao piano. Eu ao lado, na attitude d'um Lara, devastado pela fatalidade, +retorcia lugubremente o bigode. E a dôce creatura, entre dois gemidos do +teclado, d'uma saudade penetrante, cantou revirando para mim os seus +olhos rebrilhantes e humidos: + + L'oiseau s'envole, + Lá bas, lá bas!... + L'oiseau s'envole... + Ne revient pas... + +--A ave ha-de voltar ao ninho,--murmurei eu enternecido. + +E, afastando-me a esconder uma lagrima, ia resmungando furioso: + +--Canalha de Ti-Chin-Fú! Por tua causa! Velho malandro! Velho garoto!... + + * * * * * + +Ao outro dia lá vou para Tien-Hó--com o respeitoso interprete Sá-tó, uma +longa fila de carretas, dois cossacos, toda uma populaça de koulis. + +Ao deixar a muralha da cidade tartara, seguimos muito tempo ao comprido +dos jardins sagrados que orlam o templo de Confucio. + +Era no fim do outono; já as folhas tinham amarellecido; uma doçura +tocante errava no ar... + +Dos kiosques santos sahia uma susurração de canticos, de nota monotona e +triste. Pelos terraços, enormes serpentes, veneradas como deuses, iam-se +arrastando, já entorpecidas da friagem. E aqui e além, ao passar, +avistavamos buddhistas decrepitos, sêccos como pergaminhos e nodosos +como raizes, encruzados no chão sob os sycomoros, n'uma immobilidade de +idolos, contemplando incessantemente o umbigo, á espera da perfeição do +Nirvana... + +E eu ia pensando, com uma tristeza tão pallida como aquelle mesmo céo +d'outubro asiatico, nas duas lagrimas redondinhas que vira brilhar, á +despedida, nos olhos verdes da generala!... + + + + +VI + + +Já a tarde declinava, e o sol descia vermelho como um escudo de metal +candente, quando chegámos a Tien-Hó. + +As muralhas negras da villa erguem-se, do lado do sul, ao pé d'uma +torrente que ruge entre rochas: para o nascente, a planicie livida e +poeirenta estende-se até a um grupo escuro de collinas onde branqueja um +vasto edificio--que é uma Missão Catholica. E para além, para o extremo +norte são as eternas montanhas rôxas da Mongolia, suspensas sempre no ar +como nuvens. + +Alojámo-nos n'um barracão fetido, intitulado _Estalagem da Consolação +terrestre_. Foi-me reservado o quarto nobre, que abria sobre uma galeria +fixada em estacas; era ornado estranhamente de dragões de papel +recortado, suspensos por cordeis do travejamento do tecto; á menor +aragem aquella legião de monstros fabulosos oscillava em cadencia, com +um rumor secco de folhagem, como tomada de vida sobrenatural e grotesca. + +Antes que escurecesse fui vêr com Sá-tó a villa: mas bem depressa fugi +ao fedor abominavel das viellas: tudo se me afigurou ser negro--os +casebres, o chão barrento, os enxurros, os cães famintos, a populaça +abjecta... Recolhi ao albergue--onde arreeiros mongoes e crianças +piolhosas me miravam com assombro. + +--Toda esta gente me parece suspeita, Sá-tó--disse eu, franzindo a +testa. + +---Tem Vossa Honra razão. É uma ralé! Mas não ha perigo: eu matei, antes +de partirmos, um gallo negro, e a deusa Kaonine deve estar contente. +Póde Vossa Honra dormir ao abrigo dos maus espiritos... Quer Vossa Honra +o chá?... + +--Traze, Sá-tó. + +Bebido o chá, conversámos do _grande plano_: na manhã seguinte eu a +levar a alegria á triste choupana da viuva de Ti-Chin-Fú, +annunciando-lhe os milhões que lhe dava, depositados já em Pekin: +depois, de accordo com o Mandarim governador, fariamos uma copiosa +distribuição de arroz pela populaça: e á noite illuminações, danças como +n'uma gala publica... + +--Que te parece, Sá-tó? + +--Nos labios de Vossa Honra habita a sabedoria de Confucio... Vai ser +grande! Vai ser grande! + +Como vinha cançado, bem cêdo comecei a bocejar, e estirei-me sobre o +estrado de tijolo aquecido que serve de leito nas estalagens da China; +enrolado na minha pelliça, fiz o signal da cruz, e adormeci pensando nos +braços brancos da generala, nos seus olhos verdes de sereia... + +Era talvez já meia noite quando despertei a um rumor lento e surdo que +envolvia o barracão--como de forte vento n'um arvoredo, ou uma maresia +grossa batendo um paredão. Pela galeria aberta, o luar entrava no +quarto, um luar triste d'outono asiatico, dando aos dragões suspensos do +tecto fórmas, semelhanças chimericas... + +Ergui-me, já nervoso--quando um vulto, alto e inquieto, appareceu na +facha luminosa do luar... + +--Sou eu, Vossa Honra!--murmurou a voz apavorada de Sá-tó. + +E logo, agachando-se ao pé de mim, contou-me n'um fluxo de palavras +roucas a sua afflicção:--emquanto eu dormia, espalhára-se pela villa que +um estrangeiro, o _Diabo estrangeiro_, chegára com bagagens carregadas +de thesouros... Já desde o começo da noite elle tinha entrevisto faces +agudas, d'olho voraz, rondando o barracão, como chacaes impacientes... E +ordenára logo aos koulis que entrincheirassem a porta com os carros das +bagagens, formados em semi-circulo á velha maneira tartara... Mas pouco +a pouco a malta crescera... Agora vinha d'espreitar por um postigo: e +era em roda da estalagem toda a populaça de Tien-Hó, rosnando +sinistramente... A deusa Kaonine não se satisfizera com o sangue do +gallo preto!... Além d'isso elle vira á porta d'um Pagode uma cabra +negra recuar!... A noite sería de terrores!... E sua mulher, o osso do +seu osso, que estava tão longe, em Pekin!... + +--E agora, Sá-tó?--perguntei eu. + +--Agora... Vossa Honra! Agora... + +Calou-se: e a sua magra figura tremia, acaçapada como um cão que se roja +sob o açoite. + +Eu afastei o cobarde, e adiantei-me para a galeria. Em baixo, o muro +fronteiro, coberto d'um alpendre, projectava uma funda sombra. Ahi com +effeito estava uma turba negra apinhada. Ás vezes uma figura, +rastejando, adiantava-se no espaço alumiado, espreitava, farejava as +carretas, e sentindo a lua sobre a face, recuava vivamente, fundindo-se +na escuridão: e como o tecto do alpendre era baixo, faiscava um momento +á luz algum ferro de lança inclinada... + +--Que querem vossês, canalha?--bradei eu em portuguez. + +A esta voz estrangeira um grunhido sahiu da treva; immediatamente uma +pedra veio ao meu lado furar o papel encerado da gelosia; depois uma +flecha silvou, cravou-se por cima da minha cabeça, n'um barrote... + +Desci rapidamente á cozinha da estalagem. Os meus koulis, acocorados +sobre os calcanhares, batiam o queixo n'um terror; e os dois cossacos +que me acompanhavam, impassiveis á lareira, cachimbavam, com o sabre nú +nos joelhos. + +O velho estalajadeiro d'oculos, uma avó andrajosa que eu vira no pateo +deitando ao ar um papagaio de papel, os arreeiros mongoes, as crianças +piolhosas, esses tinham desapparecido; só ficára um velho, bebedo +d'opio, cahido a um canto como um fardo. Fóra ouvia-se já a multidão +vociferar. + +Interpellei então Sá-tó, que quasi desmaiava, arrimado a uma viga: nós +estavamos sem armas; os dois cossacos, sós, não podiam repellir o +assalto: era necessario pois ir acordar o Mandarim governador, +revelar-lhe que eu era um amigo de Camilloff, um conviva do principe +Tong, intimal-o a que viesse dispersar a turba, manter a lei santa da +hospitalidade!... + +Mas Sá-tó confessou-me, n'uma voz debil como um sôpro, que o Governador +de certo é quem estava dirigindo o assalto! Desde as authoridades até +aos mendigos, a fama da minha riqueza, a legenda das carretas carregadas +d'oiro inflammára todos os appetites!... A prudencia ordenava, como um +mandamento santo, que abandonassemos parte dos thesouros, mulas, caixas +de comestiveis... + +--E ficar aqui, n'esta aldêa maldita, sem camisas, sem dinheiro e sem +mantimentos?... + +--Mas com a rica vida, Vossa Honra! + +Cedi. E ordenei a Sá-tó que fosse propôr á turba uma copiosa +distribuição de sapeques,--se ella consentisse em recolher aos seus +casebres, e respeitar em nós os hospedes enviados por Buddha... + +Sá-tó subiu á sacada da galeria, a tremer; e rompeu logo a arengar á +malta, bracejando, atirando as palavras com a violencia d'um cão que +ladra. Eu abrira já uma maleta, e ia-lhe passando cartuchos, saccos de +sapeques--que elle arremessava aos punhados com um gesto de semeador... +Em baixo havia por momentos um tumulto furioso ao chover dos metaes; +depois um lento suspiro de gula satisfeita; e logo um silencio, n'uma +suspensão _de quem espera mais_... + +--Mais!--murmurava Sá-tó, voltando-se para mim ancioso. + +Eu, indignado, lá lhe dava outros cartuchos, mais rôlos, mólhos de +moedas de meio real enfiadas em cordeis... Já a maleta estava vazia. A +turba rugia, insaciada. + +--Mais, Vossa Honra!--supplicou Sá-tó. + +--Não tenho mais, creatura! O resto está em Pekin! + +--Oh Buddha Santo! Perdidos! Perdidos!--chamou Sá-tó, abatendo-se sobre +os joelhos. + +A populaça, calada, esperava ainda. De repente, uma ululação selvagem +rasgou o ar. E eu senti aquella massa avida arremessar-se sobre as +carretas que defendiam a porta em semi-circulo: ao choque todo o +madeiramento da _Estalagem da Consolação terrestre_ rangeu e oscillou... + +Corri á varanda. Em baixo era um tropel desesperado em torno dos carros +derrubados: os machados reluziam cahindo sobre a tampa dos caixotes: o +coiro das malas abria-se fendido á faca por mãos innumeraveis: no +alpendre, os cossacos debatiam-se, aos urros, sob o cutelo. Apesar da +lua, eu via em roda do barracão errarem tochas, n'uma dispersão de +fagulhas: um alarido rouco elevava-se, fazendo ao longe uivar os cães; e +de todas as viellas desembocava, corria populaça, sombras ligeiras, +agitando chuços e foices recurvas... + +Subitamente, na loja terrea, ouvi o tumulto da turba que a invadia pelas +portas despedaçadas: de certo me procuravam, suppondo que eu teria +commigo o melhor do thesouro, pedras preciosas ou oiros... O terror +desvairou-me. Corri a uma grade de bambús para o lado do pateo. +Demoli-a, saltei sobre uma camada de matto grosso, n'um cheiro acre de +immundicies. O meu poney, preso a uma trave, relinchava, puxando +furiosamente o cabresto: arremessei-me sobre elle, empolguei-lhe as +crinas... + +N'esse momento, do portão da cozinha arrombada rompia uma horda com +lanternas, lanças, n'um clamor de delirio. O poney, espantado, salta um +regueiro; uma flecha silva a meu lado; depois um tijolo bate-me no +hombro, outro nos rins, outro na anca do poney, outro mais grosso +rasga-me a orelha! Agarrado desesperadamente ás crinas, archejando, com +a lingua de fóra, o sangue a gottejar da orelha, vou despedido n'uma +desfilada furiosa ao longo d'uma lua negra... De repente vejo diante de +mim a muralha, um bastião, a porta da villa fechada! + +Então, allucinado, sentindo atraz rugir a turba, abandonado de todo o +soccorro humano--_precisei de Deus_! Acreditei n'elle, gritei-lhe que me +salvasse; e o meu espirito ia tumultuosamente arrebatando, para lhe +offerecer, fragmentos de orações, de _Salvè-Rainhas_, que ainda me +jaziam no fundo da memoria... Voltei-me sobre a anca do potro: d'uma +esquina ao longe surgiu um fogacho de tochas: era a corja!... Larguei de +golpe ao comprido da alta muralha que corria ao meu lado como uma vasta +fita negra furiosamente desenrolada: de subito avisto uma brecha, um +boqueirão erriçado d'esgalhos de sarças, e fóra a planicie que sob a lua +parecia como uma vasta agua dormente! Lancei-me para lá, +desesperadamente, sacudido aos galões do potro... E muito tempo galopei +no descampado. + +De repente o poney, eu, rolámos com um baque surdo. Era uma lagôa. +Entrou-me pela bocca agua putrida, e os pés enlaçaram-se-me nas raizes +molles dos nenufares... Quando me ergui, me firmei no sólo,--vi o poney, +correndo, muito longe, como uma sombra, com os estribos ao vento... + +Então comecei a caminhar por aquella solidão, enterrando-me nas terras +lodosas, cortando através do matto espinhoso. O sangue da orelha ia-me +pingando sobre o hombro: á frialdade agreste, o fato encharcado +regelava-se-me sobre a pelle: e por vezes, na sombra, parecia-me vêr +luzir olhos de feras. + +Emfim, encontrei um recinto de pedras soltas onde jazia, sob um arbusto +negro, um d'aquelles montões d'esquifes amarellos que os chinezes +abandonam nos campos, e onde apodrecem corpos. Abati-me sobre um caixão, +prostrado: mas um cheiro abominavel pesava no ar: e ao apoiar-me sentia +o viscoso d'um liquido que escorria pelas fendas das tábuas... Quiz +fugir. Mas os joelhos negavam-se, tremiam-me: e arvores, rochas, hervas +altas, todo o horisonte começou a girar em torno de mim como um disco +muito rapido. Faiscas sanguineas vibravam-me diante dos olhos: e +senti-me como cahindo de muito alto, devagar, á maneira d'uma penna que +desce... + +Quando recuperei a consciencia estava estirado n'um banco de pedra, no +pateo d'um vasto edificio semelhante a um convento, que um alto silencio +envolvia. Dois padres lazaristas lavavam-me devagar a orelha. Um ar +fresco circulava; a roldana d'um poço rangia lentamente; um sino tocava +a matinas. Ergui os olhos, avistei uma fachada branca com janellinhas +gradeadas e uma cruz no topo: então, vendo n'aquella paz de claustro +catholico como um recanto da patria recuperada, o abrigo e a consolação, +rolaram-me das palpebras duas lagrimas mudas. + + + + +VII + + +De madrugada, dois padres lazaristas, dirigindo-se a Tien-Hó, tinham-me +encontrado desmaiado no caminho. E, como disse o alegre padre Loriot, +«era já tempo»; porque em redor do meu corpo immovel um negro +semi-circulo d'esses grossos e soturnos corvos da Tartaria já me estava +contemplando com gula... + +Trouxeram-me sem demora para o convento n'uma padiola,--e grande foi o +regosijo da communidade quando soube que eu era um latino, um christão e +um subdito dos Reis Fidelissimos. O convento fórma alli o centro d'um +pequeno burgo catholico, apinhado em torno da maciça residencia como uma +casaria de servos á base d'um castello feudal. Existe desde os primeiros +missionarios que percorreram a Manchouria. Porque nós estamos aqui nos +confins da China: para além já é a Mongolia, a Terra das Hervas, immenso +prado verde-escuro, leziria sem fim, colorida aqui e além do vivo das +flôres silvestres... + +Ahi jaz a vasta planicie dos Nomadas. Da minha janella eu via negrejar +os circulos de tendas cobertas de feltro, ou de pelles de carneiro; e +por vezes assistia á partida d'uma tribu, em filas de longas caravanas, +levando os seus rebanhos para o oeste... + +O superior lazarista era o excellente padre Giulio. A longa permanencia +entre as raças amarellas tornára-o quasi um chinez: quando eu o +encontrava no claustro com a sua tunica rôxa, o rabicho longo, a barba +veneravel, agitando devagar um enorme leque--parecia-me algum sábio +letrado mandarim commentando mentalmente, na paz de um templo, o Livro +sacro de Chú. Era um santo: mas o cheiro d'alho que exhalava--afastaria +as almas mais doloridas e precisadas de consolação. + +Conservo suave a memoria dos dias alli passados! O meu quarto, caiado de +branco, com uma cruz negra, tinha um recolhimento de cella. Acordava +sempre ao toque de matinas. Em respeito aos velhos missionarios, vinha +ouvir a missa á capella: e enternecia-me, alli, tão longe da patria +catholica, n'aquellas terras mongolicas, vêr á clara luz da manhã a +casula do padre, com a sua cruz bordada, curvando-se diante do altar, e +sentir ciciar no fresco silencio--os _Dominus vobiscum_, e os _Cum +spiritu tuo_... + +De tarde ia á escóla, admirar os pequenos chinezes declinando _Hora, +Horoe_... E depois do refeitorio, passeando no claustro, escutava +historias de longiquas missões, de viagens apostolicas ao _Paiz das +Hervagens_, as prisões supportadas, as marchas, os perigos, as Chronicas +heroicas da Fé... + +Eu por mim não contei no convento as minhas aventuras phantasticas: +dei-me como um _touriste_ curioso, tomando apontamentos pelo Universo. E +esperando que a minha orelha cicatrizasse, abandonava-me, n'uma lassidão +d'alma, áquella paz de mosteiro... + +Mas estava decidido a deixar bem depressa a China, esse Imperio barbaro, +que eu odiava agora, prodigiosamente! + +Quando me punha a pensar que viera desde os confins do Occidente, para +trazer a uma provincia chineza a abundancia dos meus milhões, e que +apenas lá chegára fôra logo saqueado, apedrejado, fréchado--enchia-me um +rancor surdo, gastava horas agitando-me pelo quarto, a revolver coisas +feras que tentaria para me vingar do Imperio do Meio! + +Retirar-me com os meus milhões era a desforra mais pratica, mais facil! +Demais, a minha idéa de resuscitar artificialmente, para bem da China, a +personalidade de Ti-Chin-Fú, parecia-me agora absurda, d'uma insensatez +de sonho. Eu não comprehendia a lingua, nem os costumes, nem os ritos, +nem as leis, nem os sabios d'aquella raça: que vinha pois fazer alli, +senão expôr-me, pelo apparato da minha riqueza, aos assaltos d'um povo, +que, ha quarenta e quatro seculos, é pirata nos mares e traz as terras +varridas de rapina!... + +Além d'isso, Ti-Chin-Fú e o seu papagaio continuavam invisiveis, +remontados de certo ao Céo chinez dos Avós: e já o aplacamento do +remorso visivel diminuira em mim singularmente o desejo da expiação... + +Sem duvida o velho letrado estava fatigado de deixar essas regiões +ineffaveis para se vir estirar pelos meus moveis. Vira os meus esforços, +o meu desejo de ser util á sua prole, á sua provincia, á sua raça--e, +satisfeito, accommodára-se regaladamente para a sua sésta eterna. Eu +nunca mais avistaria a sua pança amarella!... + +E então mordia-me o appetite de me achar já tranquillo e livre, no +pacifico gozo do meu oiro, ao Loreto ou no _boulevard_, sorvendo o mel +ás flôres da Civilisação... + +Mas a viuva de Ti-Chin-Fú, as mimosas senhoras da sua descendencia, os +netos pequeninos?... Iria eu deixal-os barbaramente, na fome e no frio, +pelas viellas negras de Tien-Hó? Não. Esses não eram culpados das +pedradas que me atirára a populaça. E eu christão, asylado n'um convento +christão, tendo á cabeceira da cama o Evangelho, cercado d'existencias +que eram incarnações de Caridade--não podia partir do Imperio sem +restituir áquelles que despojára, a abundancia, esse conforto honesto +que recommenda o Classico da Piedade Filial... + +Então escrevi a Camilloff. Contava-lhe a minha abjecta fuga, sob as +pedras da turba chineza; o abrigo christão que me dera a Missão; o vivaz +desejo de partir do Imperio do Meio. Pedia-lhe que remettesse elle á +viuva de Ti-Chin-Fú os milhões depositados por mim em casa do mercador +Tsing-Fó, na avenida de Cha-Coua, ao lado do arco triumphal de Tong, +junto ao templo da deusa Kaonine. + +O alegre padre Loriot, que ia a Pekin em missão, levou esta carta, que +eu lacrára com o sêllo do convento--uma cruz sahindo d'um coração em +chammas... + +Os dias passaram. As primeiras neves alvejaram nas montanhas +septentrionaes da Manchouria: e eu occupava-me a caçar a gazella pela +Terra das Hervas... Horas energicas e fortemente vívidas, as d'essas +manhãs, quando eu largava á desfilada, no grande ar agreste da planicie, +entre os monteadores mongolicos que, com um grito ululado e vibrante, +batiam o matagal á lançada! Por vezes, uma gazella saltava: e, d'orelha +baixa, estirada e fina, partia no fio do vento... Soltavamos o falcão +que voava sobre ella, d'aza serena, dando-lhe a espaços regulares, com +toda a força do bico recurvo, uma picada viva no craneo. E iamo'l-a +abater, por fim, á beira d'alguma agua morta, coberta de nenufares... +Então os cães negros da Tartaria amontoavam-se-lhe sobre o ventre, e, +com as patas no sangue, iam-lhe a ponta de dente, desfiando devagar as +entranhas... + +Uma manhã o leigo da portaria avistou emfim o alegre padre Loriot, +galgando á lufa-lufa pelo caminho ingreme do burgo, de volta de Pekin, +com a sua mochila ao hombro, e uma criancinha nos braços: tinha-a +encontrado abandonada, nuasinha, morrendo á beira d'um caminho: +baptisára-a logo n'um regato com o nome de _Bem-Achado_: e alli a +trazia, todo enternecido, arquejando de tanto que estugára o passo, para +dar depressa á creaturinha esfomeada o bom leite da cabra do convento... + +Depois d'abraçar os religiosos, d'enxugar as grossas bagas de suor, +tirou da algibeira dos calções um enveloppe com o sello da aguia russa: + +--É isto que manda o papá Camilloff, amigo Theodoro. Ficou optimo. E a +senhora tambem... Tudo rijo. + +Corri a um recanto do claustro a lêr as duas folhas de prosa. Meu bom +Camilloff, de calva severa e olho de mocho! Como elle alliava tão +originalmente ao senso fino d'um habil de Chancellaria as caturrices +picarescas de diplomata bufo! A carta dizia assim: + + «Amigo, hospede, e carissimo Theodoro, + + «Ás primeiras linhas da sua carta ficámos consternados! Mas logo as + seguintes nos deram um grato allivio, por nos certificar que estava + com esses santos padres da Missão christã... Eu parti para o Yamen + imperial a fazer uma severa reclamação ao principe Tong, sobre o + escandalo de Tien-Hó. Sua excellencia mostrou um jubilo + desordenado! Porque, se lamenta como particular a offensa, o roubo + e as pedradas que o meu hospede soffreu, como ministro do Imperio + vê ahi a dôce opportunidade d'extorquir á villa de Tien-Hó, em + multa, em castigo da injuria feita a um estrangeiro, a vantajosa + somma de _trezentos mil francos_, ou, segundo os calculos do nosso + sagaz Meriskoff, _cincoenta e quatro contos de reis_ na moeda do + seu bello paiz! É, como disse Meriskoff, um excellente resultado + para o Erario imperial, e fica assim a sua orelha copiosamente + vingada... Aqui, começam a picar os primeiros frios, e já estamos + usando pelles. O bom Meriskoff lá vai soffrendo do figado, mas a + dôr não lhe altera o criterio philosophico nem a sábia + verbosidade... Tivemos um grande desgosto: o lindo cãosinho da boa + Madame Tagarieff, a esposa do nosso amado secretario, o adoravel + _Tu-tu_ desappareceu na manhã de 15... Fiz, na policia, instancias + urgentes, mas o _Tu-tu_ não nos foi restituido,--e o sentimento é + tanto maior, quanto é sabido que a populaça de Pekin aprecia + extremamente estes cãesinhos, guisados em calda de assucar... + Deu-se aqui um facto abominavel e de consequencias funestas: a + ministra de França, essa petulante Madame Grijon, esse _galho + sêcco_ (como diz o nosso Meriskoff), no ultimo jantar da legação, + deu, em desprezo de todas as regras internacionaes, o braço, o seu + descarnado braço, e a sua direita á mesa a um simples addido + inglez, lord Gordon! Que me diz a isto? É crivel? É racional? É + destruir a ordem social! O braço, a direita, a um addido, um + escossez côr de tijolo, de vidro entalado no olho, quando havia + presentes todos os embaixadores, os ministros, e eu! Isto tem + causado, no corpo diplomatico, uma sensação inenarravel... + Esperamos instrucções dos nossos governos. Como diz Meriskoff, + oscillando tristemente a cabeça--_é grave... é muito grave_!--O que + prova (e ninguem o duvidava) que lord Gordon é o Benjamim do _galho + sêcco_. Que podridão! Que lodo!... A generala não tem passado bem, + desde a sua partida para essa malfadada Tien-Hó; o doutor Pagloff + não lhe percebe o mal; é uma languidez, um murchar, uma saudosa + indolencia que a conserva horas e horas immovel sobre o sophá, no + _Pavilhão do Repouso discreto_, com o olhar vago e o labio cheio de + suspiros... Eu não me illudo: sei perfeitamente o que a mina: é a + desgraçada doença de bexiga, que lhe veio das más aguas, quando + estivemos na legação de Madrid... Seja feita a vontade do + Senhor!... Ella pede-me para lhe mandar _un petit bonjour_, e + deseja que o meu hospede apenas chegue a Paris, se fôr a Paris, lhe + remetta pela mala da Embaixada para S. Petersburgo (d'ahi virá a + Pekin) duas duzias de luvas de doze botões, numero _cinco e tres + quartos_, da marca _Sol_, dos armazens do Louvre; assim como os + ultimos romances de Zola, Mademoiselle de Maupin de Gautier, e uma + caixa de frascos de _Opoponax_... Esquecia-me dizer-lhe que mudámos + de padeiro: fornecemo-nos agora na padaria da Embaixada ingleza: + deixámos a da Embaixada franceza para não ter communicações com o + _galho sêcco_... Ahi estão os inconvenientes de não termos aqui na + Embaixada russa uma padaria--apesar de tantos relatorios, tantas + reclamações que, sobre esse ponto, tenho feito para a chancellaria + de S. Petersburgo! Elles sabem bem que em Pekin não ha padarias, + que cada legação tem a sua propria, como um elemento d'installação + e d'influencia. Mas quê! Na côrte imperial desattendem-se os mais + serios interesses da civilisação russa!... Creio que é tudo o que + ha de novo em Pekin e nas legações. Meriskoff recommenda-se, e + todos d'esta Embaixada; e tambem o condesinho Arthur, o Zizi da + legação hespanhola, o _Focinho cahido_, e o Lulú; emfim todos; eu + mais que ninguem, que me assigno com saudade e affeição + + «_General Camilloff_». + + «P.S. Em quanto á viuva e familia de Ti-Chin-Fú, houve um engano: o + astrologo do templo de Faqua equivocou-se na interpretação sideral: + não é realmente em Tien-Hó que reside essa familia... É ao sul da + China, na provincia de Cantão. Mas também ha uma familia Ti-Chin-Fú + para além da Grande Muralha, quasi na fronteira russa, no districto + de Ka-ó-li. A ambas morreu o chefe, a ambas assaltou a pobreza... + Portanto, esperando novas ordens, não levantei os dinheiros da casa + de Tsing-Fó. Esta recente informação mandou-m'a hoje sua + excellencia o principe Tong, com uma deliciosa compota de + calombro... Devo annunciar-lhe que o nosso bom Sá-Tó aqui + appareceu, de volta de Tien-Hó, com um beiço rachado e leves + contusões no hombro, tendo apenas salvado da bagagem saqueada uma + lithographia de Nossa Senhora das Dôres, que, pela inscripção a + tinta, vejo que pertencera a sua respeitavel mamã... Os meus + valentes cossacos, esses, lá ficaram n'uma poça de sangue. Sua + excellencia o principe Tong condescende em m'os pagar a dez mil + francos cada um, das sommas extorquidas á villa de Tien-Hó... Sá-Tó + diz-me que se o meu hospede, como é natural, recomeçar as suas + viagens através do imperio em busca dos Ti-Chin-Fú,--elle + considerar-se-hia honrado e venturoso em o acompanhar, com uma + fidelidade canina e uma docilidade cossaca... + + «_Camilloff_». + +--Não! nunca!--rugi com furor, amarrotando a carta, monologando a largas +passadas pelo melancolico claustro.--Não, por Deus ou pelo Demonio! Ir +de novo bater as estradas da China? Jámais! Oh sorte grotesca e +desastrosa! Deixo os meus regalos ao Loreto, o meu ninho amoroso de +Paris, venho rolado pela vaga enjoadôra de Marselha a Chang-Hai, soffro +as pulgas das bateiras chinezas, o fedor das viellas, a poeirada dos +caminhos aridos--e para quê? Tinha um plano, que se erguia até aos céos, +grandioso e ornamentado como um trophéo: por sobre elle scintillavam, +d'alto a baixo, toda a sorte d'acções boas: e eis que o vejo tombar ao +chão, peça a peça, n'uma ruina! Queria dar o meu nome, os meus milhões, +e metade do meu leito d'oiro a uma senhora Ti-Chin-Fú--e não m'o +permittem os prejuizos sociaes d'uma raça barbara! Pretendo, com o botão +de crystal de Mandarim, remodelar os destinos da China, trazer-lhe a +prosperidade civil,--e veda-m'o a lei imperial! Aspiro a derramar uma +esmola sem fim por esta populaça faminta--e corro o perigo ingrato de +ser decapitado como instigador de rebelliões! Venho enriquecer uma +villa--e a turba tumultuosa apedreja-me! Ia emfim dar a abundancia, o +conforto que louva Confucio, á família Ti-Chin-Fú,--e essa familia +some-se, evapora-se como um fumo, e outras familias Ti-Chin-Fú surgem, +aqui e além, vagamente, ao sul, a oeste, como clarões enganadores... E +havia d'ir a Cantão, a Ka-ó-li, expôr a outra orelha a tijolos brutaes, +fugir ainda pelos descampados, agarrado ás crinas d'um potro? Jámais! + +Parei: e de braços erguidos, fallando ás arcadas do claustro, ás +arvores, ao ar silencioso e fino que me envolvia: + +--Ti-Chin-Fú!--bradei--Ti-Chin-Fú, para te aplacar, fiz o que era +racional, generoso e logico! Estás emfim satisfeito, letrado veneravel, +tu, o teu gentil papagaio, a tua pança official? Falla-me! Falla-me!... + +Escutei, olhei: a roldana do poço, áquella hora do meio dia, rangia +devagar, no pateo: sob as amoreiras, ao longo da arcaria do claustro, +seccavam em papel sêda as folhas de chá da colheita d'outubro: da porta +meio cerrada da aula vinha um susurro lento de declinações latinas: era +uma paz severa, feita da simplicidade das occupações, da honestidade dos +estudos, do ar pastoril d'aquella collina, onde dormia, sob um sol +branco d'inverno, o burgo religioso... E com aquella serenidade +ambiente, pareceu-me receber na alma, de repente, uma pacificação +absoluta! + +Accendi com os dedos ainda tremulos um charuto, e disse, limpando na +testa uma baga de suor, esta palavra, resumo d'um destino: + +--Bem, Ti-Chin-Fú está contente. Fui logo á cella do excellente padre +Giulio. Elle lia o seu Breviario á janella, debicando confeitos +d'assucar, com o gato do convento no collo. + +--Reverendissimo, volto á Europa... Algum dos nossos bons padres vai por +acaso em missão, para os lados de Chang-Hai?... + +O veneravel superior pôz os seus oculos redondos: e folheando com uncção +um vasto registro em letra chineza, ia assim murmurando: + +--Quinto dia da decima lua... Sim, ha o padre Anacleto para Tien-Tzin, +para a novena dos Irmãos da Santa Creche. Duodecima lua, o padre Sanchez +para Tien-Tzin tambem, para a obra do Catecismo aos Orphãos... Sim, caro +hospede, tem companheiros para Léste... + +--Ámanhã? + +--Ámanhã. É dolorosa a separação n'estes confins do mundo, quando as +almas se comprehendem bem em Jesus... O nosso padre Gutierrez que lhe +faça um bom farnel... Nós já o amavamos como irmão, Theodoro... Coma um +confeito, são deliciosos... As coisas estão em feliz repouso quando se +acham no seu lugar e elemento natural: o lugar do coração do homem é o +coração de Deus: e o seu está n'esse asylo seguro... Coma um confeito... +Que é isso, meu filho, que é isso? + +Eu estava collocando sobre o seu Breviario aberto, n'uma pagina do +Evangelho de pobreza, um rôlo de notas do _Banco d'Inglaterra;_ e +balbuciei: + +--Meu reverendissimo, para os seus pobres... + +--Excellente, excellente... O nosso bom Gutierrez que lhe faça um farnel +copioso... _Amen_, meu filho ... _In Deo omnia spes_!... + +Ao outro dia, entre o padre Anacleto e o padre Sanchez, montado na mula +branca do convento, desci o burgo, ao repique dos sinos. E ahi vamos +para Hiang-Hiam, villa negra e murada, onde atracam os barcos que descem +a Tien-Tzin. Já as terras ao longo do Pei-Hó estavam todas brancas de +neve: nas enseadas baixas já a agua ia gelando: e embrulhados em pelles +de carneiro, em roda do fogareiro, á pôpa do barco, os bons padres e eu +iamos conversando de trabalhos de Missionarios, de coisas da China, por +vezes dos interesses do Céo--passando em redor sem cessar o grosso +frasco da genebra... + +Era Tien-Tzin separei-me d'aquelles santos camaradas. E d'ahi a duas +semanas, por um meio dia de sol tepido, passeava, fumando o meu charuto +e olhando a azafama dos caes d'Hong-Kong, no tombadilho do _Java_ que ia +levantar ferro para a Europa. + + * * * * * + +Foi um momento commovente para mim, aquelle em que vi, ás primeiras +voltas do helice, afastar-se a terra da China. + +Desde que acordára, n'essa manhã, uma inquietação surda recomeçava a +pesar-me na alma. Agora, punha-me a pensar que viera áquelle vasto +imperio para acalmar pela expiação um protesto temeroso da Consciencia: +e por fim, impellido por uma impaciencia nervosa, ahi partia, sem ter +feito mais que deshonrar os bigodes brancos d'um general heroico, e ter +recebido pedradas pela orelha n'uma villa dos confins da Mongolia. + +Estranho destino, o meu!... + + * * * * * + +Até ao anoitecer estive encostado sombriamente á borda do paquete, vendo +o mar liso, como uma vasta peça de sêda azul, dobrar-se aos lados em +duas pregas molles: pouco a pouco grandes estrellas palpitaram na +concavidade negra; e o helice na sombra ia trabalhando em rhythmo. +Então, tomado d'uma fadiga molle, fui errando pelo paquete, olhando, +aqui e além, a bussola alumiada; os montões de cabrestantes; as peças da +machina, n'uma claridade ardente, batendo em cadencia; as fagulhas que +fugiam do cano, n'um rôlo de fumaraça negra; os marinheiros de barba +ruiva, immoveis á roda do leme; e as fórmas dos pilotos, sobre o pontal, +altas e vagas na noite. Na _cabine_ do capitão, um inglez de capacete de +cortiça, cercado de damas que bebiam Cognac, ia tocando melancolicamente +na flauta a aria de _Bonnie Dundee_... + +Eram onze horas quando desci ao meu beliche. As luzes já estavam +apagadas: mas a lua que se erguia ao nivel da agua, redonda e branca, +batia o vidro da _cabine_ com um raio de claridade: e então, a essa meia +tinta pallida, lá vi estirada sobre a maca a figura pançuda, vestida de +sêda amarella, com o seu papagaio nos braços! + +Era _elle_, outra vez! + +E foi _elle_, perpetuamente! Foi elle em Singapura e em Ceylão. Foi elle +erguendo-se dos areaes do deserto ao passarmos no canal de Suez; +adiantando-se á prôa d'um barco de provisões quando parámos em Malta; +resvalando sobre as rosadas montanhas da Sicilia; emergindo dos +nevoeiros que cercam o morro de Gibraltar! Quando desembarquei em +Lisboa, no caes das Columnas, a sua figura bojuda enchia todo o arco da +rua Augusta; o seu olho obliquo fixava-me--e os dois olhos pintados do +seu papagaio pareciam fixar-me tambem... + + + + +VIII + +Então, certo que não poderia jámais aplacar Ti-Chin-Fú, toda essa noite +no meu quarto ao Loreto, onde como outr'ora as velas innumeraveis das +serpentinas davam aos damascos tons de sangue fresco, meditei sacudir de +mim, como um adorno de peccado, esses milhões sobrenaturaes. E assim me +libertaria talvez d'aquella pança e d'aquelle papagaio abominavel! + +Abandonei o palacete ao Loreto, a existencia de Nababo. Fui, com uma +quinzena coçada, realugar o meu quarto na casa da Madame Marques: e +voltei á Repartição, d'espinhaço curvo, a implorar os meus vinte mil +reis mensaes, e a minha dôce penna de amanuense!... + +Mas um soffrimento maior veio amargurar os meus dias. Julgando-me +arruinado,--todos aquelles, que a minha opulencia humilhára, cobriram-me +de offensas, como se alastra de lixo uma estatua derrubada de principe +decahido. Os jornaes, n'um triumpho de ironia, achincalharam a minha +miseria. A aristocracia, que balbuciára adulações aos pés do Nababo, +ordenava agora aos seus cocheiros que atropellassem nas ruas o corpo +encolhido do plumitivo de Secretaría. O clero, que eu enriquecera, +accusava-me de _feiticeiro_; o povo atirou-me pedras; e a Madame +Marques, quando eu me queixava humildemente da dureza granitica dos +bifes,--plantava as duas mãos á cinta, e gritava: + +--Ora o enguiço! Então que quer vossê mais? Aguente! Olha o pelintra!... + +E, apesar d'esta expiação, o velho Ti-Chin-Fú lá estava sempre á minha +ilharga, obeso e côr d'óca,--porque os seus milhões, que jaziam agora +estereis e intactos nos Bancos, ainda de facto eram meus! +Desgraçadamente meus! + +Então, indignado, um dia subitamente reentrei com estrondo no meu +palacete e no meu luxo. N'essa noite, de novo o resplendor das minhas +janellas alumiou o Loreto: e pelo portão aberto viram-se como outr'ora +negrejar, nas suas fardas de sêda negra, as longas filas de lacaios +decorativos. + +Logo, Lisboa, sem hesitar, se rojou aos meus pés. A Madame Marques +chamou-me, chorando, _filho do seu coração_. Os jornaes deram-me os +qualificativos que, de antiga tradição, pertencem á Divindade: fui o +_Omnipotente_, fui o _Omnisciente_! A aristocracia beijou-me os dedos +como a um Tyranno: e o clero incensou-me como a um idolo. E o meu +desprezo pela Humanidade foi tão largo,--que se estendeu ao Deus que a +creou. + +Desde então uma saciedade enervante mantem-me semanas inteiras n'um +sophá, mudo e soturno, pensando na felicidade do _não-ser_... + +Uma noite, recolhendo só por uma rua deserta, vi diante de mim o +Personagem vestido de preto com o guarda-chuva debaixo do braço, o mesmo +que no meu quarto feliz da travessa da Conceição me fizera, a um +_ti-li-tin_ de campainha, herdar tantos milhões detestaveis. Corri para +elle, agarrei-me ás abas da sua sobrecasaca burgueza, bradei: + +--Livra-me das minhas riquezas! Resuscita o Mandarim! Restitue-me a paz +da miseria! + +Elle passou gravemente o seu guarda-chuva para debaixo do outro braço, e +respondeu com bondade: + +--Não póde ser, meu prezado senhor, não póde ser... + +Eu atirei-me aos seus pés n'uma supplicação abjecta: mas só vi diante de +mim, sob uma luz mortiça de gaz, a fórma magra de um cão farejando o +lixo. + +Nunca mais encontrei este individuo.--E agora o mundo parece-me um +immenso montão de ruinas onde a minha alma solitaria, como um exilado +que erra por entre columnas tombadas, geme, sem descontinuar... + +As flôres dos meus aposentos murcham e ninguem as renova: toda a luz me +parece uma tocha: e quando as minhas amantes véem, na brancura dos seus +penteadores, encostar-se ao meu leito, eu chóro--como se avistasse a +legião amortalhada das minhas alegrias defuntas... + + * * * * * + +Sinto-me morrer. Tenho o meu testamento feito. N'elle lego os meus +milhões ao Demonio; pertencem-lhe; elle que os reclame e que os +reparta... + +E a vós, homens, lego-vos apenas, sem commentarios, estas palavras: «_Só +sabe bem o pão que dia a dia ganham as nossas mãos: nunca mates o +Mandarim_!» + +E todavia, ao expirar, consola-me prodigiosamente esta idéa: que do +Norte ao Sul e do Oeste a Léste, desde a Grande Muralha da Tartaria até +ás ondas do Mar Amarello, em todo o vasto Imperio da China, nenhum +Mandarim ficaria vivo, se tu, tão facilmente como eu, o pudesses +supprimir e herdar-lhe os milhões, oh leitor, creatura improvisada por +Deus, obra má de má argilla, meu semelhante e meu irmão! + + +Angers, junho, 1880. + + + + +PORTO--TYP. DE A. J. DA SILVA TEIXEIRA + +62, Cancella Velha, 62 + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of O Mandarim, by Eça Queirós + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O MANDARIM *** + +***** This file should be named 16384-8.txt or 16384-8.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + http://www.gutenberg.org/1/6/3/8/16384/ + +Produced by Rita Farinha and the Online Distributed +Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was +produced from images generously made available by National +Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at http://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact +information can be found at the Foundation's web site and official +page at http://pglaf.org + +For additional contact information: + Dr. Gregory B. Newby + Chief Executive and Director + gbnewby@pglaf.org + + +Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation + +Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide +spread public support and donations to carry out its mission of +increasing the number of public domain and licensed works that can be +freely distributed in machine readable form accessible by the widest +array of equipment including outdated equipment. Many small donations +($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt +status with the IRS. + +The Foundation is committed to complying with the laws regulating +charities and charitable donations in all 50 states of the United +States. 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Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + http://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. diff --git a/16384-8.zip b/16384-8.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..3f1a6e4 --- /dev/null +++ b/16384-8.zip diff --git a/16384-h.zip b/16384-h.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..1f8bac7 --- /dev/null +++ b/16384-h.zip diff --git a/16384-h/16384-h.htm b/16384-h/16384-h.htm new file mode 100644 index 0000000..663e6d6 --- /dev/null +++ b/16384-h/16384-h.htm @@ -0,0 +1,5142 @@ +<!DOCTYPE html PUBLIC "-//W3C//DTD XHTML 1.0 Strict//EN" "http://www.w3.org/TR/xhtml1/DTD/xhtml1-strict.dtd"> +<html xmlns="http://www.w3.org/1999/xhtml"> +<head> + <title>O Mandarim</title> + + + <meta name="AUTHOR" content="Eça de Queirós" /> + + <meta http-equiv="Content-Type" content="text/html; charset=ISO-8859-1" /> + + <style type="text/css"> +body {width: 50%; margin-left:10%; text-align: justify;} +h1, h2, h3, h4 { text-align: center;} +h1 {margin: 2em; text-align: center;} +h2, h4 {margin-top: 2em;} +.bbox {border: solid black 1px; margin-left: 5%; margin-right: 5%;} +.signature { +margin-right: 5%; +text-align: right;} +.smallcaps {font-variant: small-caps;} +.quote { +margin-left: 5%; +margin-right: 5%;} +.break { +width: 40%; +margin-left:30%;} +.dots {color: #fff; background-color: inherit; border: 3px dotted #555; border-style: none none dotted;} +.poetry {margin-left:20%;} +.poetry1 {margin-left:25%;} +.pagenum { position: absolute; right: 35%; +font-size: 75%; +text-align: right; +text-indent: 0em; +font-style: normal; +font-weight: normal; +color: silver; background-color: inherit; +font-variant: normal;} + </style> +</head> + + + + + + + +<body> + + +<pre> + +The Project Gutenberg EBook of O Mandarim, by Eça Queirós + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: O Mandarim + +Author: Eça Queirós + +Release Date: October 27, 2007 [EBook #16384] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O MANDARIM *** + + + + +Produced by Rita Farinha and the Online Distributed +Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was +produced from images generously made available by National +Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) + + + + + + +</pre> + + +<div> +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="bbox"><span style="font-weight: bold;"> +</span> +<h2><span style="font-weight: bold;"></span>EÇA +DE QUEIROZ </h2> + +<h1> +O MANDARIM</h1> + +<div style="text-align: center;"><br /> + +<br /> + +<br /> + +</div> + +<div style="text-align: center;"><img style="width: 200px; height: 95px;" alt="" src="images/fig1.png" /> +</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"> +<h4>LIVRARIA INTERNACIONAL<br /> + +DE<br /> + +ERNESTO CHARDRON, EDITOR.<br /> + +Porto e Braga<br /> + +<br /> + +1880</h4> + +</div> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h1>O MANDARIM </h1> + +<h2>PROLOGO</h2> + +<div style="text-align: center;"><br /> + +<br /> + +1.º <span class="smallcaps">Amigo</span> +(<em>bebendo Cognac e soda, debaixo d'arvores, n'um +terraço, á beira d'agua</em>)<br /> + +<br /> + +<br /> + +</div> + +Camarada, por estes calores do estio que embotam a ponta da sagacidade, +repousemos do aspero estudo da Realidade humana... Partamos para os +campos do Sonho, vaguear por essas azuladas collinas romanticas <span class="pagenum">[2]</span>onde se +ergue a torre abandonada do Sobrenatural, e musgos frescos recobrem as +ruinas do Idealismo... Façamos phantasia!...<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"> +2.º <span class="smallcaps">Amigo<br /> + +<br /> + +<br /> + +</span></div> + +Mas sobriamente, camarada, parcamente!... E como nas sabias e amaveis +Allegorias da Renascença, misturando-lhe sempre uma +Moralidade discreta...<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="signature">(<span class="smallcaps">Comedia +Inedita</span>).<br /> + +<br /> + +</div> + +<div style="text-align: center;"><img style="width: 200px; height: 95px;" alt="" src="images/fig1.png" /> +</div> + +<h2>I </h2> + +<br /> + +<span class="smallcaps">Eu</span> chamo-me +Theodoro―e fui amanuense do Ministerio do Reino.<br /> + +<br /> + +N'esse tempo vivia eu á travessa da +Conceição n.º 106, na casa d'hospedes da +D. Augusta, a esplendida D. Augusta, viuva do major Marques. Tinha dois +companheiros: o Cabrita, empregado na +Administração do bairro central, esguio <span class="pagenum">[4]</span> +e +amarello como uma tocha d'enterro; e o possante, o exuberante tenente +Couceiro, grande tocador de viola franceza.<br /> + +<br /> + +A minha existencia era bem equilibrada e suave. Toda a semana, de +mangas de lustrina á carteira da minha +repartição, ia lançando, n'uma formosa +letra cursiva, sobre o papel Tojal do Estado, estas phrases faceis: +«<em>Ill.<sup>mo</sup> e Exc.<sup>mo</sup> +Snr.</em>―<em>Tenho +a honra de communicar a V. +Exc.ª... Tenho a honra de passar ás mãos +de V. +Exc.ª, Ill.<sup>mo</sup> e Exc.<sup>mo</sup> +Snr...</em>»<br /> + +<br /> + +Aos domingos repousava: installava-me então no +canapé da sala de jantar, de cachimbo nos dentes, e admirava +a D. Augusta, que, em dias de missa, +costumava limpar com clara d'ovo a caspa do tenente Couceiro. Esta +hora, sobretudo no verão, era deliciosa: pelas <span class="pagenum">[5]</span> +janellas meio +cerradas penetrava o bafo da soalheira, algum repique distante dos +sinos da Conceição Nova, e o arrulhar das rolas +na +varanda; a monotona susurração das moscas +balançava-se sobre a velha cambraia, antigo +véo nupcial da Madame Marques, que cobria agora no aparador +os pratos de cerejas bicaes; pouco a pouco o tenente, envolvido n'um +lençol como +um idolo no seu manto, ia adormecendo, sob a +fricção molle +das carinhosas mãos da D. Augusta; e ella, arrebitando o +dedo minimo branquinho e papudo, sulcava-lhe as rêpas +lustrosas com o pentesinho dos bichos... +Eu então, enternecido, dizia á deleitosa senhora: +<br /> + +<br /> + +―Ai D. Augusta, que anjo que é!<br /> + +<br /> + +Ella ria; chamava-me <em>enguiço</em>! Eu +sorria, sem me +escandalisar. <em>Enguiço</em> era com effeito +o +nome que me davam <span class="pagenum">[6]</span> +na casa―por +eu ser magro, entrar sempre as portas com o pé direito, +tremer de ratos, +ter á cabeceira da cama uma lithographia de Nossa Senhora +das Dôres +que pertencera á mamã, e corcovar. Infelizmente +corcóvo―do muito que verguei o espinhaço, na +Universidade, recuando como uma +pêga assustada diante dos senhores Lentes; na +repartição, +dobrando a fronte ao pó perante os meus Directores Geraes. +Esta attitude de resto +convém ao bacharel; ella mantem a disciplina n'um Estado bem +organisado; e a mim garantia-me a tranquillidade dos domingos, o uso +d'alguma roupa branca, +e vinte mil reis mensaes.<br /> + +<br /> + +Não posso negar, porém, que n'esse tempo eu era +ambicioso―como o reconheciam sagazmente a Madame Marques e o lepido +Couceiro. +Não que me <span class="pagenum">[7]</span> +revolvesse o peito o appetite heroico de dirigir, +do alto d'um throno, vastos rebanhos humanos; não que a +minha louca alma +jámais aspirasse a rodar pela Baixa em trem da Companhia, +seguida d'um correio choitando;―mas pungia-me o desejo de poder jantar +no Hotel Central com +Champagne, apertar a mão mimosa de viscondessas, e, pelo +menos duas vezes por semana, adormecer, n'um extasi mudo, sobre o seio +fresco de Venus. Oh! moços que vos dirigieis vivamente a S. +Carlos, +atabafados em paletots caros onde alvejava a gravata de +<em>soirée</em>! Oh! +tipoias, apinhadas de andaluzas, batendo galhardamente para os +touros―quantas vezes me fizestes suspirar! Porque a certeza de que os +meus vinte mil reis por mez e o meu geito encolhido de +enguiço me excluiam +para sempre d'essas alegrias sociaes vinha-me <span class="pagenum">[8]</span>então +ferir o +peito―como +uma frecha que se crava n'um tronco, e fica muito tempo vibrando!<br /> + +<br /> + +Ainda assim, eu não me considerava sombriamente um +«pária». A vida humilde tem +doçuras: é grato, n'uma +manhã de sol alegre, com o guardanapo ao pescoço, +diante do bife de grelha, desdobrar o +<span class="smallcaps">Diario de Noticias</span>; +pelas tardes de verão, nos bancos +gratuitos do +Passeio, gozam-se suavidades de idyllio; é saboroso +á +noite no Martinho, sorvendo aos goles um café, ouvir os +verbosos injuriar a patria... +Depois, nunca fui excessivamente infeliz―porque não tenho +imaginação: não me consumia, rondando +e almejando em torno de paraisos ficticios, nascidos +da minha propria alma desejosa como nuvens da +evaporação d'um lago; não suspirava, +olhando as lucidas estrellas, por um amor á +Romeo, <span class="pagenum">[9]</span>ou por uma +gloria social á Camors. Sou um positivo. +Só +aspirava ao racional, ao tangivel, ao que já fôra +alcançado por +outros no meu bairro, ao que é accessivel ao bacharel. E +ia-me resignando, como quem a uma <em>table d'hôte</em> +mastiga a +bucha de pão secco á +espera que lhe chegue o prato rico da <em>Charlotte russe</em>. +As felicidades +haviam de vir: e para as apressar eu fazia tudo o que devia como +portuguez e como constitucional:―pedia-as todas as noites a Nossa +Senhora das +Dôres, e comprava decimos da loteria.<br /> + +<br /> + +No entanto procurava distrahir-me. E como as +circumvoluções do meu cerebro me não +habilitavam a compôr odes, +á maneira de tantos outros ao meu lado que se desforravam +assim do tedio da profissão; +como o meu ordenado, paga a casa e o tabaco, me não +permittia <span class="pagenum">[10]</span>um +vicio―tinha tomado o habito discreto de comprar na feira da Ladra +antigos volumes desirmanados, e á noite, no meu quarto, +repastava-me d'essas +leituras curiosas. Eram sempre obras de titulos ponderosos: <span class="smallcaps">Galera da +Innocencia</span>, <span class="smallcaps">Espelho +Milagroso</span>, <span class="smallcaps">Tristeza +dos Mal Desherdados</span>... O typo +venerando, o papel amarellado com picadas de traça, a grave +encadernação freiratica, a fitinha verde marcando +a pagina―encantavam-me! Depois, aquelles dizeres ingenuos em letra +gorda davam uma +pacificação a todo o meu sêr, +sensação comparavel á paz penetrante +d'uma velha cêrca de mosteiro, na quebrada d'um valle, por um +fim suave de tarde, ouvindo o correr d'agua +triste...<br /> + +<br /> + +Uma noite, ha annos, eu começára a lêr, +n'um d'esses in-folios vetustos, um <span class="pagenum">[11]</span>capitulo +intitulado <em>Brecha +das +Almas</em>; e ia cahindo n'uma somnolencia grata, quando este +periodo +singular se me destacou do tom neutro e apagado da pagina, com o relevo +d'uma medalha d'ouro nova brilhando sobre um tapete escuro: +copío textualmente:<br /> + +<br /> + +«No fundo da China +existe um Mandarim mais rico que todos os reis +de que a Fabula ou a Historia +contam. D'elle nada conheces, nem o +nome, nem o semblante, nem a +sêda de que se veste. Para que tu +herdes os seus cabedaes +infindaveis, basta que toques essa +campainha, posta a teu lado, +sobre um livro. Elle soltará apenas um +suspiro, n'esses confins da +Mongolia. Será então um cadaver: e tu +verás a teus +pés mais ouro do que póde sonhar a +ambição d'um avaro. +Tu, que me <span class="pagenum">[12]</span>lês +e +és um homem mortal, tocarás tu a +campainha?»<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Estaquei, assombrado, diante da pagina aberta: aquella +interrogação «homem mortal, +tocarás tu a campainha?» +parecia-me facêta, picaresca, e todavia perturbava-me +prodigiosamente. Quiz lêr mais; mas as +linhas fugiam, ondeando como cobras assustadas, e no vazio que +deixavam, d'uma +lividez de pergaminho, lá ficava, rebrilhando em negro, a +interpellação +estranha―«tocarás tu a compainha?»<br /> + +<br /> + +Se o volume fosse d'uma honesta edição +Michel-Levy, de capa amarella, eu, que por fim não me achava +perdido n'uma floresta de +ballada allemã, e podia da minha sacada vêr +branquejar á luz do +gaz o correame da patrulha―teria simplesmente fechado o livro, e +<span class="pagenum">[13]</span>estava dissipada a +allucinação nervosa. Mas +aquelle sombrio in-folio +parecia estalar magia; cada letra affectava a inquietadora +configuração +d'esses signaes da velha cabala, que encerram um attributo fatidico; as +virgulas tinham o retorcido petulante de rabos de diabinhos, +entrevistos n'uma alvura de luar; no <em>ponto +d'interrogação</em> final eu via o +pavoroso gancho com que o Tentador vai fisgando as almas que +adormeceram sem se refugiar na inviolavel cidadella da +Oração!... Uma influencia +sobrenatural apoderando-se de mim, arrebatava-me devagar para +fóra da +realidade, do raciocinio: e no meu espirito foram-se formando duas +visões―d'um lado um Mandarim, decrepito, morrendo sem +dôr, longe, n'um kiosque +chinez, a um <em>ti-li-tin</em> de campainha; do outro +toda +uma montanha de +ouro scintillando aos meus <span class="pagenum">[14]</span>pés! +Isto era tão +nitido, +que eu via os olhos obliquos do velho personagem embaciarem-se, como +cobertos d'uma tenue camada de pó; e sentia o fino tinir de +libras rolando +juntas. E immovel, arripiado, cravava os olhos ardentes na campainha, +pousada pacatamente diante de mim sobre um diccionario francez―a +campainha prevista, +citada no mirifico in-folio...<br /> + +<br /> + +Foi então que, do outro lado da mesa, uma voz insinuante e +metallica me disse, no silencio:<br /> + +<br /> + +―Vamos, Theodoro, meu amigo, estenda a mão, toque a +campainha, seja um forte!<br /> + +<br /> + +O <em>abat-jour</em> verde da vela punha uma penumbra em +redor. Ergui-o, a +tremer. E vi, muito pacificamente sentado, um individuo corpulento, +todo vestido de preto, de chapéo alto, com as <span class="pagenum">[15]</span>duas +mãos calçadas de luvas negras gravemente apoiadas +ao cabo d'um guarda-chuva. Não +tinha nada de phantastico. Parecia tão contemporaneo, +tão +regular, tão classe-média como se viesse da minha +repartição...<br /> + +<br /> + +Toda a sua originalidade estava no rosto, sem barba, de linhas fortes e +duras; o nariz brusco, d'um aquilino formidavel, apresentava a +expressão rapace e atacante d'um bico d'aguia; o +córte dos labios, +muito firme, fazia-lhe como uma bocca de bronze; os olhos, ao fixar-se, +assemelhavam +dois clarões de tiro, partindo subitamente d'entre as +sarças tenebrosas das sobrancelhas unidas; era livido―mas, +aqui e além na +pelle, corriam-lhe raiações sanguineas como n'um +velho +marmore phenicio.<br /> + +<br /> + +Veio-me á idéa de repente que tinha diante de mim +o Diabo: mas logo <span class="pagenum">[16]</span>todo +o meu raciocinio se insurgiu resolutamente +contra esta +imaginação. Eu nunca acreditei no Diabo―como +nunca acreditei em Deus. +Jámais o disse alto, ou o escrevi nas gazetas, para +não descontentar os +poderes publicos, encarregados de manter o respeito por taes entidades: +mas que +existam estes dois personagens, velhos como a Substancia, rivaes +bonacheirões, fazendo-se mutuamente pirraças +amaveis,―um de barbas nevadas e tunica azul, na toilette do antigo +Jove, habitando os altos luminosos, entre uma côrte mais +complicada que a de Luiz XIV; +e o outro enfarruscado e manhoso, ornado de cornos, vivendo nas chammas +inferiores, n'uma imitação burgueza do pitoresco +Plutão―não acredito. Não, +não acredito! Céo e Inferno +são concepções sociaes para uso da +plebe―e eu pertenço á classe-média. +<span class="pagenum">[17]</span>Rezo, é +verdade, a Nossa Senhora das Dôres: +porque, assim como pedi o favor do senhor doutor +para passar no meu acto; assim como, para obter os meus vinte mil reis, +implorei a benevolencia do senhor deputado; igualmente para me +subtrahir +á tisica, á angina, á navalha de +ponta, á febre +que vem da sargeta, á casca de laranja escorregadia onde se +quebra a perna, a outros males publicos, necessito ter uma +protecção extra-humana. Ou pelo +rapa-pé ou pelo incensador o homem prudente deve ir fazendo +assim uma serie de sabias adulações desde a +Arcada até ao +Paraiso. Com um compadre no bairro, e uma comadre mystica nas +Alturas―o destino do bacharel está +seguro.<br /> + +<br /> + +Por isso, livre de torpes superstições, disse +familiarmente ao individuo vestido de negro:<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[18]</span> ―Então, +realmente, aconselha-me que toque a campainha?<br /> + +<br /> + +Elle ergueu um pouco o chapéo, descobrindo a fronte +estreita, enfeitada d'uma gaforinha crespa e negrejante como a do +fabuloso Alcides, e respondeu, palavra a palavra:<br /> + +<br /> + +―Aqui está o seu caso, estimavel Theodoro. Vinte mil reis +mensaes são uma vergonha social! Por outro lado, ha sobre +este globo coisas prodigiosas: ha vinhos de Borgonha, como por exemplo +o +<em>Romanée-Conti</em> de 58 e o <em>Chambertin</em> +de 61, que custam, +cada garrafa, de dez a onze mil reis; e quem bebe o primeiro calix, +não +hesitará, para beber o segundo, em assassinar seu pai... +Fabricam-se em Paris e em Londres carruagens de tão suaves +molas, de tão mimosos +estofos, que é preferivel percorrer n'ellas o Campo Grande, +a viajar, <span class="pagenum">[19]</span>como os +antigos deuses, pelos céos, sobre os +fôfos coxins das nuvens... +Não farei á sua instrucção +a offensa de o informar que se mobilam +hoje casas, d'um estylo e d'um conforto, que são ellas que +realisam +superiormente esse regalo ficticio, chamado outr'ora a +«Bemaventurança». Não lhe +fallarei, Theodoro, d'outros gozos terrestres: como, por exemplo, o +Theatro do <em>Palais Royal</em>, o <em>baile +Laborde</em>, o <em>Café +Anglais</em>... +Só chamarei a sua attenção para este +facto: existem sêres +que se chamam Mulheres―differentes d'aquelles que conhece, e que se +denominam +Femeas. Estes sêres, Theodoro, no meu tempo, a paginas 3 da +Biblia, +apenas usavam exteriormente uma <em>folha de vinha</em>. +Hoje, Theodoro, +é +toda uma symphonia, todo um engenhoso e delicado poema de rendas, +<em>baptistes</em>, setins, flôres, joias, +<span class="pagenum">[20]</span>cachemiras, gazes e +velludos... +Comprehende a satísfação inenarravel +que +haverá, para os cinco dedos de um christão, em +percorrer, palpar estas maravilhas macias;―mas tambem percebe que +não é com o troco d'uma placa honesta de cinco +tostões que se pagam as contas d'estes cherubins... Mas +ellas possuem melhor, Theodoro: +são os cabellos côr do ouro ou côr da +treva, tendo assim +nas suas tranças a apparencia emblematica das duas grandes +tentações +humanas―a fome do metal precioso e o conhecimento do absoluto +transcendente. E ainda teem +mais: são os braços côr de marmore, +d'uma frescura de lirio orvalhado; são os seios, sobre os +quaes o grande Praxiteles modelou a +sua Taça, que é a linha mais pura e mais +ídeal da +Antiguidade.... Os seios, outr'ora (na idéa d'esse ingenuo +<span class="pagenum">[21]</span>Ancião +que os formou, que +fabricou o mundo, e de quem uma inimizade secular me veda de pronunciar +o nome), eram destinados á nutrição +augusta da +humanidade; socegue porém, Theodoro; hoje nenhuma maman +racional os expõe a essa +funcção deterioradora e severa; servem +só para resplandecer, aninhados em rendas, ao +gaz das <em>soirées</em>,―e para outros usos +secretos. As +conveniencias +impedem-me de proseguir n'esta exposição radiosa +das bellezas, +que constituem o <em>Fatal Feminino</em>... De resto as +suas pupillas +já rebrilham.... Ora +todas estas coisas, Theodoro, estão para além, +infinitamente +para além dos seus vinte mil reís por mez... +Confesse, ao menos, que estas +palavras teem o veneravel sello da verdade!...<br /> + +<br /> + +Eu murmurei com as faces abrasadas:<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[22]</span> ―Teem.<br /> + +<br /> + +E a sua voz proseguiu, paciente e suave:<br /> + +<br /> + +―Que me diz a cento e cinco, ou cento e seis mil contos? Bem sei, +é uma bagatella... Mas emfim, constituem um +começo; são +uma ligeira habilitação para conquistar a +felicidade. Agora +pondere estes factos: o Mandarim, esse Mandarim do fundo da China, +está decrepito e +está gottoso: como homem, como funccionario do celeste +imperio, é +mais inutil em Pekin e na humanidade, que um seixo na bocca d'um +cão +esfomeado. Mas a transformação da substancia +existe: +garanto-lh'a eu, que sei o segredo das coisas... Porque a terra +é assim: recolhe aqui um homem +apodrecido, e restitue-o além ao conjuncto das +fórmas como +vegetal viçoso. Bem póde ser que elle, inutil +como <span class="pagenum">[23]</span>Mandarim no +Imperio do Meio, vá +ser util n'outra terra como rosa perfumada ou saboroso +repôlho. Matar, +meu filho, é quasi sempre equilibrar as necessidades +universaes. +É eliminar aqui a excrescencia para ir além +supprir a falta. Penetre-se +d'estas solidas philosophias. Uma pobre costureira de Londres anceia +por vêr +florir, na sua trapeira, um vaso cheio de terra negra: uma +flôr +consolaria aquella desherdada; mas na disposição +dos +sêres, infelizmente, n'esse momento, a substancia que +lá devia ser rosa é aqui na Baixa +homem d'Estado... Vem então o fadista de navalha aberta, e +fende o estadista; o +enxurro leva-lhe os intestinos; enterram-no, com tipoias atraz; a +materia +começa a desorganisar-se, mistura-se á vasta +evolução dos atomos―e o superfluo homem de +governo vai alegrar, sob a fórma de <span class="pagenum">[24]</span>amor +perfeito, +a agua furtada da loura costureira. O assassino é um +philanthropo! +Deixe-me resumir, Theodoro: a morte d'esse velho Mandarim idiota +traz-lhe +á algibeira alguns milhares de contos. Póde desde +esse momento +dar pontapés nos poderes publicos: medite na intensidade +d'este +gozo! É desde logo citado nos jornaes: reveja-se n'esse +maximo da gloria +humana! E agora note: é só agarrar a campainha, e +fazer +<em>ti-li-tin</em>. Eu não sou um barbaro: +comprehendo a +repugnancia d'um <em>gentleman</em> em assassinar um +contemporaneo: o espirrar do sangue suja vergonhosamente os punhos, e +é repulsivo o agonisar d'um corpo humano. Mas aqui, nenhum +d'esses espectaculos torpes... É como quem chama um +criado... E +são cento e cinco ou cento e seis mil contos; não +me lembro, mas tenho-o +nos meus apontamentos... <span class="pagenum">[25]</span>O +Theodoro não duvída de +mim. Sou +um cavalheiro:―provei-o, quando, fazendo a guerra a um tyranno na +primeira insurreição da justiça, me vi +precipitado d'alturas que nem Vossa Senhoria concebe... Um +trambulhão consideravel, meu caro +senhor! Grandes desgostos! O que me consola é que o OUTRO +está +tambem muito abalado: porque, meu amigo, quando um Jehovah tem apenas +contra si um Satanaz, tira-se bem de difficuldades mandando carregar +mais uma +legião d'archanjos; mas quando o inimigo é o +homem, armado d'uma +penna de pato e d'um caderno de papel branco―está +perdido... Emfim +são seis mil contos. Vamos, Theodoro, ahi tem a campainha, +seja um homem.<br /> + +<br /> + +Eu sei o que deve a si mesmo um christão. Se este personagem +me tivesse <span class="pagenum">[26]</span>levado +ao cume d'uma montanha na Palestina, por uma noite de +lua cheia, +e ahi, mostrando-me cidades, raças e imperios adormecidos, +sombriamente me dissesse:―«Mata o Mandarim, e tudo o que +vês em +valle e collina será teu»,―eu saberia +replicar-lhe, seguindo um exemplo illustre, +e erguendo o dedo ás profundidades +constelladas:―«O meu +reino não é d'este mundo!» Eu +conheço os meus authores. Mas eram cento e tantos mil +contos, offerecidos á luz d'uma vela de stearina, na +travessa da +Conceição, por um sujeito de chapéo +alto, apoiado a um guarda-chuva...<br /> + +<br /> + +Então não hesitei. E, de mão firme, +repeniquei a campainha. Foi talvez uma illusão; mas +pareceu-me que um sino, de bocca +tão vasta como o mesmo céo, badalava na +escuridão, através do +Universo, n'um tom temeroso que decerto <span class="pagenum">[27]</span>foi +acordar sóes que +faziam +né-né e planetas pançudos resonando +sobre os seus eixos...<br /> + +<br /> + +O individuo levou um dedo á palpebra, e limpando a lagrima +que ennevoára um instante o seu olho rutilante:<br /> + +<br /> + +―Pobre Ti-Chin-Fú!...<br /> + +<br /> + +―Morreu?<br /> + +<br /> + +―Estava no seu jardim, socegado, armando, para o lançar ao +ar, um papagaio de papel, no passatempo honesto d'um Mandarim +retirado,―quando o surprehendeu este <em>ti-li-tin</em> +da +campainha. Agora +jaz á +beira d'um arroio cantante, todo vestido de sêda amarella, +morto, de +pança ao ar, sobre a relva verde: e nos braços +frios tem o seu papagaio +de papel, que parece tão morto como elle. +Ámanhã +são os funeraes. Que a sabedoria de Confucio, penetrando-o, +ajude a bem emigrar a sua alma!<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[28]</span> +E o sujeito, erguendo-se, tirou respeitosamente o chapéo, +sahiu, com o seu guarda-chuva debaixo do braço.<br /> + +<br /> + +Então, ao sentir bater a porta, afigurou-se-me que emergia +d'um pesadêlo. Saltei ao corredor. Uma voz jovial fallava com +a +Madame Marques; e a cancella da escada cerrou-se subtilmente.<br /> + +<br /> + +―Quem é que sahiu agora, ó D. +Augusta?―perguntei, n'um suor.<br /> + +<br /> + +―Foi o Cabritinha que vai um bocadinho á batota...<br /> + +<br /> + +Voltei ao quarto: tudo lá repousava tranquillo, identico, +real. O in-folio ainda estava aberto na pagina temerosa. Reli-a: agora +parecia-me apenas a prosa antiquada d'um moralista caturra; cada +palavra se tornára como um carvão apagado...<br /> + +<br /> + +Deitei-me:―e sonhei que estava longe, para além de Pekin, +nas fronteiras <span class="pagenum">[29]</span>da +Tartaria, no kìosque d'um convento de +Lamas, +ouvindo maximas prudentes e suaves que escorriam, com um aroma fino de +chá, dos labios de um Buddha vivo.<br /> + +<br /> + +<h2>II</h2> + +<br /> + +<span class="smallcaps">Decorreu</span> um mez.<br /> + +<br /> + +Eu, no entanto, rotineiro e triste, lá ia pondo o meu +cursivo ao serviço dos poderes publicos, e admirando aos +domingos a pericia tocante com +que a D. Augusta lavava a caspa do Couceiro. Era <span class="pagenum">[32]</span>agora evidente para +mim que, n'essa noite, eu adormecera sobre o in-folio, e +sonhára +com uma «Tentação da +Montanha» sob +fórmas familiares. Instinctivamente, porém, +comecei a preoccupar-me com a China. Ia lêr os telegrammas +á Havaneza; e o que o meu interesse lá buscava, +eram sempre as noticias do +Imperio do Meio; parece porém que, a esse tempo, nada se +passava na +região das raças amarellas... A <em>Agencia +Havas</em> +só +tagarellava sobre a Herzegovina, a Bosnia, a Bulgaria e outras +curiosidades barbaras....<br /> + +<br /> + +Pouco a pouco fui esquecendo o meu episodio phantasmagorico: e ao mesmo +tempo, como gradualmente o meu espirito reserenava, voltaram de novo a +mover-se as antigas ambições que lá +habitavam,―um ordenado de Director Geral, um seio amoroso de Lola, +bifes <span class="pagenum">[33]</span>mais tenros +que os da D. Augusta. +Mas taes regalos pareciam-me tão inaccessiveis, +tão nascidos do sonho―como os proprios milhões +do Mandarim. E pelo monotono +deserto da vida,―lá foi seguindo, lá foi +marchando, a lenta +caravana das minhas melancolias...<br /> + +<br /> + +Um domingo de agosto, de manhã, estirado na cama em mangas +de camisa, eu dormitava, com o cigarro apagado no labio―quando a porta +rangeu devagarinho, e entreabrindo a palpebra dormente, vi curvar-se ao +meu lado uma calva respeitosa. E logo uma voz perturbada murmurou:<br /> + +<br /> + +―O snr. Theodoro?... O snr. Theodoro do Ministerio do Reino?...<br /> + +<br /> + +Ergui-me lentamente sobre o cotovêlo e respondi, n'um bocejo: +<br /> + +<br /> + +―Sou eu, cavalheiro.<br /> + +<br /> + +O individuo recurvou o espinhaço: <span class="pagenum">[34]</span>assim +na +presença augusta d'el-rei Bobeche se arquêa o +cortezão... Era pequenino e +obeso: a ponta das suiças brancas roçava-lhe as +lapellas do fraque +d'alpaca: veneraveis oculos d'oiro reluziam na sua face bochechuda, que +parecia uma prospera +personificação da Ordem: e todo elle tremia desde +a calva, lustrosa até aos botíns de bezerro. +Pigarreou, cuspilhou, balbuciou:<br /> + +<br /> + +―São noticias para vossa senhoria! Consideráveis +noticias! O meu nome é Silvestre... Silvestre, Juliano +& C.<sup>a</sup>... Um +serviçal criado de vossa excellencia... Chegaram justamente +pelo paquete de Southampton... +Nós somos correspondentes de Brito, Alves & C.<sup>a</sup> +de +Macau... +Correspondentes de Craig and Co d'Hong-Kong... As letras vem +d'Hong-Kong...<br /> + +<br /> + +O sujeito engasgava-se; e a sua <span class="pagenum">[35]</span>mão +gordinha agitava em +tremuras um <em>enveloppe</em> repleto, com um sello de +lacre negro.<br /> + +<br /> + +―Vossa excellencia―proseguiu―estava decerto prevenido... +Nós é que o não estavamos... A +atrapalhação +é natural... O que esperamos é que vossa +excellencia nos conserve a sua benevolencia... Nós sempre +respeitámos muito o caracter de vossa excellencia... Vossa +excellencia é +n'esta terra uma flôr de virtude, e espelho de bons! Aqui +estão os primeiros saques sobre Bhering and Brothers de +Londres... Letras a trinta dias sobre Rothschild...<br /> + +<br /> + +A este nome, resoante como o mesmo oiro, saltei vorazmente do leito.<br /> + +<br /> + +―O que é isso, senhor?―gritei.<br /> + +<br /> + +E elle, gritando mais, brandindo o <span class="pagenum">[36]</span><em>enveloppe</em>, +todo alçado +no bico dos botins:<br /> + +<br /> + +―São cento e seis mil contos, senhor! Cento e seis mil +contos sobre Londres, Paris, Hamburgo e Amsterdam, sacados a seu favor, +excellentissimo senhor!... A seu favor, excellentissimo senhor! Pelas +casas de Hong-Kong, de Chang-Hai e de Cantão, da +herança depositada do Mandarim Ti-Chin-Fú!!<br /> + +<br /> + +Senti tremer o Globo sob os meus pés―e cerrei um momento os +olhos. Mas comprehendi, n'um relance, que eu era, desde essa hora, como +uma incarnação do Sobrenatural, recebendo d'elle +a +minha força e possuindo os seus attributos. Não +podia comportar-me como um homem, +nem desconsiderar-me em expansões humanas. Até, +para +não quebrar a linha hieratica―abstive-me de <span class="pagenum">[37]</span>ir +soluçar, como m'o pedia a alma, +sobre o vasto seio da Madame Marques...<br /> + +<br /> + +D'ora em diante cabia-me a impassibilidade d'um Deus―ou d'um Demonio: +dei, com naturalidade, um puxão ás +calças, e disse a Silvestre, Juliano & C.<sup>a</sup> +estas +palavras:<br /> + +<br /> + +―Está bem! O Mandarim... Esse Mandarim que disse portou-se +com cavalheirismo. Eu sei de que se trata. É uma +questão de familia. Deixe ahi os papeis... Bons dias.<br /> + +<br /> + +Silvestre, Juliano & C.<sup>a</sup> retirou-se, +ás arrecuas, +de dorso vergado e fronte voltada ao chão.<br /> + +<br /> + +Eu então fui abrir, toda larga, a janella: e, dobrando para +traz a cabeça, respirei o ar calido, consoladamente, como +uma +corça cançada...<br /> + +<br /> + +Depois olhei para baixo, para a rua, onde toda uma burguezia se +escoava, <span class="pagenum">[38]</span>n'uma +pacata sahida de missa, entre duas filas de trens. +Fixei, aqui e além, inconscientemente, algumas cuias de +senhoras, alguns +metaes brilhantes d'arreios. E de repente, veio-me esta +idéa, esta +triumphante certeza―que todas aquellas tipoias as podia eu tomar +á hora +ou ao anno! Que nenhuma das mulheres que via, deixaria de me offerecer +o seu seio nú, a um aceno do meu desejo! Que todos esses +homens, de +sobrecasaca de domingo, se prostrariam diante de mim como diante de um +Christo, de um Mahomet ou de um Buddha, se eu lhes sacudisse junto +á face +cento e seis mil contos sobre as praças da Europa!...<br /> + +<br /> + +Apoiei-me á varanda: e ri, com tedio, vendo a +agitação ephemera d'aquella humanidade +subalterna―que se considerava livre e forte, em quanto por cima, <span class="pagenum">[39]</span>n'uma +sacada de quarto andar, eu tinha na +mão, n'um <em>enveloppe</em> lacrado de negro, +o principio mesmo da +sua fraqueza e da +sua escravidão!... Então, +satisfações do Luxo, regalos do Amor, orgulhos do +Poder, tudo gozei, pela imaginação, n'um +instante, e d'um só sôrvo. Mas logo, uma grande +saciedade me foi invadindo a alma: e sentindo o mundo aos meus +pés―bocejei como um leão farto.<br /> + +<br /> + +De que me serviam por fim tantos milhões, senão +para me trazerem, dia a dia, a affirmação +desoladora da villeza +humana?... E assim, ao choque de tanto oiro, ia desapparecer aos meus +olhos como um fumo a belleza moral +do Universo! Tomou-me uma tristeza mystica. Abati-me sobre uma cadeira; +e, com a face entre as mãos, chorei abundantemente.<br /> + +<br /> + +D'ahi a pouco a Madame Marques <span class="pagenum">[40]</span>abria +a porta, toda vistosa nas suas +sêdas pretas.<br /> + +<br /> + +―Está-se á sua espera para jantar, +enguiço!...<br /> + +<br /> + +Emergi da minha amargura para lhe responder seccamente:<br /> + +<br /> + +―Não janto.<br /> + +<br /> + +―Mais fica!<br /> + +<br /> + +N'esse momento estalavam foguetes ao longe. Lembrei-me que era domingo, +dia de touros: de repente uma visão rebrilhou, flammejou, +attrahindo-me deliciosamente:―era a tourada vista d'um camarote; +depois um jantar +com <em>Champagne</em>; á noite a orgia, como +uma +iniciação! Corri á mesa. Atulhei as +algibeiras de letras sobre Londres. Desci á rua com um +furor d'abutre fendendo o ar contra a presa. Uma caleche passava, +vazia. Detive-a, berrei:<br /> + +<br /> + +―Aos touros!<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[41]</span> ―São +dez tostões, meu amo!<br /> + +<br /> + +Encarei com repulsão aquelle reles pedaço de +materia organisada―que fallava em placas de prata a um colosso d'oiro! +Enterrei a +mão na algibeira ajoujada de milhões, e tirei o +meu metal: tinha +setecentos e vinte!<br /> + +<br /> + +O cocheiro bateu a anca da egoa e seguiu, resmungando. Eu balbuciei:<br /> + +<br /> + +―Mas tenho letras!... Aqui estão! Sobre Londres! Sobre +Hamburgo!...<br /> + +<br /> + +―Não péga.<br /> + +<br /> + +Setecentos e vinte!... E touros, jantar de lord, andaluzas nuas, todo +esse sonho expirou como uma bola de sabão que bate a ponta +de um prego.<br /> + +<br /> + +Odiei a Humanidade, abominei o Numerario. Outra tipoia, +lançada a trote, apinhada de gente festiva, quasi me +atropellou n'aquella +abstracção em que <span class="pagenum">[42]</span>eu +ficára com os +meus setecentos e vinte na palma da +mão suada.<br /> + +<br /> + +Cabisbaixo, enchumaçado de milhões sobre +Rothschild, voltei ao meu quarto andar; humilhei-me á Madame +Marques, aceitei-lhe o +bife corneo; e passei essa primeira noite de riqueza, bocejando sobre o +leito solitario,―em quanto fóra o alegre Couceiro, o +mesquinho +tenente de quinze mil reis de soldo, ria com a D. Augusta, repenicando +á viola o <em>Fado da Cotovia</em>.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Foi só na manhã seguinte, ao fazer a barba, que +reflecti sobre a origem dos meus milhões. Ella era +evidentemente sobrenatural e +suspeita.<br /> + +<br /> + +Mas como o meu Racionalismo me <span class="pagenum">[43]</span>impedia +d'attribuir estes thesouros +imprevistos á generosidade caprichosa de Deus ou do Diabo, +ficções puramente escolasticas; como os +fragmentos de Positivismo, que constituem o fundo da minha Philosophia, +não me permittiam a +indagação <em>das causas primarias, das +origens +essenciaes</em>―bem depressa me decidi +a aceitar seccamente este Phenomeno; e a utilisal-o com largueza. +Portanto corri de quinzena ao vento para o <em>London +Brazìlian +Bank</em>... +<br /> + +<br /> + +Ahi, arremessei para cima do balcão um papel sobre o <em>Banco +d'Inglaterra</em>, de mil libras; e soltei esta deliciosa +palavra:<br /> + +<br /> + +―Oiro!<br /> + +<br /> + +Um caixeiro suggeriu-me com doçura:<br /> + +<br /> + +―Talvez lho fosse mais commodo em notas...<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[44]</span> +Repeti seccamente:<br /> + +<br /> + +―Oiro!<br /> + +<br /> + +Atulhei as algibeiras, devagar, aos punhados: e na rua, ajoujado, +icei-me para uma caleche. Sentía-me gordo, sentia-me obeso; +tinha na bocca um sabor d'oiro, uma seccura de pó d'oiro na +pelle das +mãos: as paredes das casas pareciam-me faiscar como longas +laminas d'oiro: e dentro do cerebro ia-me um rumor surdo onde +retilintavam metaes―como o +movimento d'um oceano que nas vagas rolasse barras d'oiro.<br /> + +<br /> + +Abandonando-me á oscillação das molas, +rebolante como um odre mal firme, deixava cahir sobre a rua, sobre a +gente, o olhar turvo e tedioso do +sêr repleto. Emfim, atirando o chapéo para a nuca, +estirando a +perna, empinando o ventre, arrotei formidavelmente de flatulencia +ricaça...<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[45]</span> +Muito tempo rolei assim pela cidade, bestialisado n'um gozo de Nababo.<br /> + +<br /> + +Subitamente um brusco appetite de gastar, de dissipar oiro, veio-me +enfunar o peito como uma rajada que incha uma véla.<br /> + +<br /> + +―Pára, animal!―berrei, ao cocheiro.<br /> + +<br /> + +A parelha estacou. Procurei em redor com a palpebra meio cerrada alguma +coisa cara a comprar―joia de rainha ou consciencia de estadista: nada +vi; precipitei-me então para um estanco.<br /> + +<br /> + +―Charutos! de tostão! de cruzado! Mais caros! de dez +tostões!<br /> + +<br /> + +―Quantos?―perguntou servilmente o homem.<br /> + +<br /> + +―Todos!―respondi, com brutalidade.<br /> + +<br /> + +Á porta, uma pobre toda de luto, com o filho encolhido ao +seio, estendeu-me <span class="pagenum">[46]</span>a +mão transparente. Incommodava-me +procurar os +trocos de cobre por entre os meus punhados d'oiro. Repelli-a, +impaciente: e, de chapéo sobre o olho, encarei friamente a +turba.<br /> + +<br /> + +Foi então que avistei, adiantando-se, o vulto ponderoso do +meu Director Geral: immediatamente, achei-me com o dorso curvado em +arco e o +chapéo comprimentador roçando as lages. Era o +habito da +dependencia: os meus milhões não me tinham dado +ainda a verticalidade +á espinha...<br /> + +<br /> + +Em casa despejei o oiro sobre o leito, e rolei-me por cima d'elle, +muito tempo, grunhindo n'um gozo surdo. A torre, ao lado, bateu tres +horas; e +o sol apressado já descia, levando comsigo o meu primeiro +dia de opulencia... Então, couraçado de libras, +corri a +saciar-me!<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[47]</span> +Ah, que dia! Jantei n'um gabinete do Hotel Central, solitario e +egoista, com a mesa alastrada de Bordeus, Borgonha, Champagne, Rheno, +licôres de todas as communidades religiosas―como para matar +uma sêde de +trinta annos! Mas só me fartei de Collares. Depois, +cambaleando, +arrastei-me para o Lupanar! Que noite! A alvorada clareou por traz das +persianas; e +achei-me estatelado no tapete, exhausto e semi-nú, sentindo +o corpo e a alma como esvaírem-se, dissolverem-se n'aquelle +ambiente +abafado onde errava um cheiro de pó de arroz, de +fêmea e de +punch...<br /> + +<br /> + +Quando voltei á travessa da Conceição, +as janellas do meu quarto estavam fechadas, e a véla +expirava, com fogachos lividos, no +castiçal de latão. Então ao chegar +junto á cama, vi isto: estirada +de través, sobre a coberta, jazia uma figura <span class="pagenum">[48]</span>bojuda, de +Mandarim fulminado, vestida de +sêda amarella, com um grande rabicho solto; e entre os +braços +como morto tambem, tinha um papagaio de papel!<br /> + +<br /> + +Abri desesperadamente a janella: tudo desappareceu;―o que estava agora +sobre o leito era um velho paletot alvadio.<br /> + +<br /> + +<h2> +III</h2> + +<br /> + +<br /> + +<span class="smallcaps">Então</span> +começou a minha vida de milionario. Deixei +bem depressa a casa da Madame Marques―que, desde que me +sabía rico, me tratava +todos os dias a arroz dôce, e ella mesma me servia, com o seu +vestido de +sêda dos domingos. <span class="pagenum">[50]</span>Comprei, +habitei o palacete amarello, ao +Loreto: as magnificencias da minha installação +são bem conhecidas pelas gravuras indiscretas da +Illustração Franceza. Tornou-se +famoso na Europa o meu leito, d'um gosto exuberante e barbaro, com a +barra recoberta de +laminas d'ouro lavrado, e cortinados d'um raro brocado negro onde +ondeam, bordados a perolas, versos eroticos de Catullo; uma lampada, +suspensa +no interior, derrama alli a claridade lactea e amorosa d'um luar de +verão.<br /> + +<br /> + +Os meus primeiros mezes ricos, não o occulto, passei-os a +amar―a amar com o sincero bater de coração d'um +pagem +inexperiente. Tinha-a visto, como n'uma pagina de novella, regando os +seus craveiros á +varanda: chamava-se Candida; era pequenina, era loira; morava a +Buenos-Ayres, n'uma casinha <span class="pagenum">[51]</span>casta +recoberta de trepadeiras; e +lembrava-me pela +graça e pelo airoso da cinta, tudo o que a Arte tem creado +de mais fino e fragil―Mimi, Virginia, a Joanninha do Valle de +Santarem.<br /> + +<br /> + +Todas as noites eu cahia, em extasis de mystico, aos seus +pés côr de jaspe. Todas as manhãs lhe +alastrava o regaço de +notas de vinte mil reis: ella repellia-as primeiro com um +rubor,―depois, ao guardal-as na +gaveta, chamava-me o seu <em>anjo Tótó</em>. +<br /> + +<br /> + +Um dia que eu me introduzira, a passos subtis, por sobre o espesso +tapete syrio, até ao seu <em>boudoir</em>―ella +estava escrevendo, +muito enlevada, de dedinho no ar: ao vêr-me, toda tremula, +toda +pallida, escondeu o papel que tinha o seu monogramma. Eu +arranquei-lh'o, n'um ciume insensato. Era a carta, a carta costumada, a +carta necessaria, a <span class="pagenum">[52]</span>carta +que desde a velha antiguidade a mulher sempre +escreve; +começava por <em>meu idolatrado</em>―e era +para um alferes da +visinhança... +<br /> + +<br /> + +Desarraiguei logo esse sentimento do meu peito como uma planta +venenosa. Descri para sempre dos Anjos loiros, que conservam no olhar +azul o reflexo dos céos atravessados: de cima do meu oiro, +deixei +cahir sobre a Innocencia, o Pudor, e outras +idealisações +funestas acida gargalhada de Mephistopheles: e organisei friamente uma +existencia animal, grandiosa +e cynica.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Ao bater do meio dia, entrava na minha tina de marmore côr de +rosa, onde os perfumes derramados davam á <span class="pagenum">[53]</span>agua um tom opaco +de leite: +depoîs pagens tenros, de mão macia, +fríccionavam-me com o +ceremonial de quem celebra um culto: e embrulhado n'um +<em>robe-de-chambre</em> de sêda da +India, através da galeria, dando aqui e além um +olhar aos meus Fortunys e +aos meus Corots, entre alas silenciosas de lacaios, dirigia-me ao bife +á ingleza, servido em Sèvres, azul e oiro.<br /> + +<br /> + +O resto da manhã, se havia calor, passava-o sobre coxins de +setim côr de perola, n'um <em>boudoir</em> em +que a mobilia era de +porcelana fina de Dresde +e as flôres faziam um jardim d'Armida; ahi, saboreava o +<span class="smallcaps">Diario de Noticiais</span>, +em quanto lindas raparigas vestidas á +japoneza +refrescavam o ar, agitando leques de plumas.<br /> + +<br /> + +De tarde ia dar uma volta a pé, até ao Pote das +Almas: era a hora mais pesada <span class="pagenum">[54]</span>do +dia: encostado á bengala, +arrastando as pernas +molles, abria bocejos de fera saciada,―-e a turba abjecta parava a +contemplar, em extasis, o Nababo enfastiado!<br /> + +<br /> + +Ás vezes vinha-me como uma saudade dos meus tempos occupados +da Repartição. Entrava em casa; e encerrado na +livraria, onde o Pensamento da Humanidade repousava esquecido e +encadernado em marroquim, aparava uma penna de pato, e ficava horas +lançando sobre folhas do +meu querido Tojal d'outr'ora: «<em>Ill.<sup>mo</sup> +e Exc.<sup>mo</sup> +Snr.―Tenho +a honra de +participar a V. Exc.<sup>a</sup>... Tenho a honra de passar +ás +mãos de +V. Exc.<sup>a</sup>!...</em>».<br /> + +<br /> + +Ao começo da noite um criado, para annunciar o jantar, fazia +soar pelos corredores na sua tuba de prata, á moda gothica, +uma +harmonia solemne. Eu erguia-me <span class="pagenum">[55]</span>e +ia comer, magestoso e solitario. Uma +populaça +de lacaios, de librés de sêda negra, servia, n'um +silencio de +sombras que resvalam, as vitualhas raras, vinhos do preço de +joias: toda a mesa +era um esplendor de flôres, luzes, crystaes, +scintillações d'oiro:―e enrolando-se pelas +pyramides de fructos, misturando-se ao vapor dos pratos, errava, como +uma nevoa subtil, um tedio inenarravel...<br /> + +<br /> + +Depois, apopletico, atirava-me para o fundo do coupé―e +lá ia ás Janellas Verdes onde nutria, n'um jardim +de serralho, entre requintes musulmanos, um viveiro de +fêmeas: revestiam-me d'uma tunica +de sêda fresca e perfumada,―e eu abandonava-me a delirios +abominaveis... Traziam-me semi-morto para casa, ao primeiro alvor da +manhã: +fazia machinalmente o meu signal da cruz, e <span class="pagenum">[56]</span>d'ahi +a pouco roncava de +ventre +ao ar, livido e com um suor frio, como um Tiberio exhausto.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Entretanto Lisboa rojava-se aos meus pés. O pateo do +palacete estava constantemente invadido por uma turba: olhando-a +enfastiado das +janellas da galeria, eu via lá branquejar os peitilhos da +Aristocracia, negrejar a sotaina do Clero, e luzîr o suor da +Plebe: todos vinham +supplicar, de labio abjecto, a honra do meu sorriso e uma +participação no meu oiro. Ás vezes, +consentia em receber algum velho de titulo historico:―elle +adiantava-se pela sala, quasi roçando o tapete com os +cabellos brancos, tartamudeando adulações; e +immediatamente, +<span class="pagenum">[57]</span>espalmando sobre o +peito a mão de fortes vêas onde +corria um sangue de tres +seculos, offerecia-me uma filha bem-amada para esposa ou para +concubina.<br /> + +<br /> + +Todos os cidadãos me traziam presentes como a um Idolo sobre +o altar―uns Odes votivas, outros o meu monogramma bordado a cabello, +alguns chinelas ou boquilhas, cada um a sua consciencia. Se o meu olhar +amortecido fixava, por acaso, na rua, uma mulher―era logo ao outro dia +uma carta em que a creatura, esposa ou prostituta, me offertava a sua +nudez, o seu amor, e todas as complacencias da lascivia.<br /> + +<br /> + +Os jornalistas esporeavam a imaginação para achar +adjectivos dignos da minha grandeza; fui o <em>sublime snr. +Theodoro</em>, +cheguei a ser o <em>celeste +snr. Theodoro</em>; então, desvairada, a <span class="smallcaps">Gazeta <span class="pagenum">[58]</span>das +Locaes</span> +chamou-me o <em>extra-celeste snr. Theodoro</em>! Diante +de mim nenhuma +cabeça +ficou jámais coberta―ou usasse a corôa ou o +côco. Todos os dias +me era offerecida uma Presidencia de Ministerio ou uma +Direcção de +Confraria. Recusei sempre, com nojo.<br /> + +<br /> + +Pouco a pouco o rumor das minhas riquezas foi passando os confins da +Monarchia. O Figaro, cortezão, em cada numero fallou de mim, +preferindo-me a Henrique V; o grotesco immortal, que assigna +<em>Saint-Genest</em>, dirigiu-me apostrophes convulsivas, +pedindo-me para +salvar a França; e foi então que as +Illustrações estrangeiras publicaram, a +côres, as scenas do meu viver. Recebi de todas +as princezas da Europa enveloppes, com sêllos heraldicos, +expondo-me, por photographias, por documentos, a fórma dos +seus corpos e a +antiguidade <span class="pagenum">[59]</span>das +suas genealogias. Duas pilherias que soltei durante +esse anno foram +telegraphadas ao Universo pelos fios da Agencia Havas; e fui +considerado mais espirituoso que Voltaire, que Rochefort, e que esse +fino entendimento que se chama <em>Todo-o-Mundo</em>. +Quando o meu intestino +se alliviava com estampido―a Humanidade sabia-o pelas gazetas. Fiz +emprestimos aos Reis, subsidiei guerras civis―e fui caloteado por +todas as Republicas latinas que orlaram o golfo do Mexico.<br /> + +<br /> + +E eu, no entanto, vivia triste...<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Todas as vezes que entrava em casa estacava, arripiado, diante da mesma +visão: ou estirada no limiar da porta, <span class="pagenum">[60]</span>ou atravessada sobre +o leito d'oiro―lá jazia a figura bojuda, de rabicho negro e +tunica +amarella, com o seu papagaio nos braços... Era o Mandarim +Ti-Chin-Fú! Eu precipitava-me, de punho erguido: e tudo se +dissipava.<br /> + +<br /> + +Então cahia aniquilado, todo em suor, sobre uma poltrona, e +murmurava no silencio do quarto, onde as vélas dos +candelabros davam tons +ensaguentados aos damascos vermelhos:<br /> + +<br /> + +―<em>Preciso matar este morto</em>!<br /> + +<br /> + +E todavia, não era esta impertinencia d'um velho phantasma +pançudo, accommodando-se nos meus moveis, sobre as minhas +colchas, que me fazia saber mal a vida.<br /> + +<br /> + +O horror supremo consistia na idéa, que se me +cravára então no espirito como um ferro +inarrancavel―<em>que eu tinha assassinado um velho</em>!<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[61]</span> +Não fôra com uma corda em torno da garganta +á moda musulmana; nem com veneno n'um calix de vinho de +Syracusa, á maneira italiana +da Renascença; nem com algum dos methodos classicos, que na +historia das Monarchias teem recebido +consagrações augustas―a +punhal como D. João <span class="smallcaps">ii</span>, +á clavina como Carlos +<span class="smallcaps">ix</span>...<br /> + +<br /> + +Tinha eliminado a creatura, de longe, com uma campainha. Era absurdo, +phantastico, faceto. Mas não diminuia a tragica negrura do +facto: <em>eu assassinára um velho</em>!<br /> + +<br /> + +Pouco a pouco esta certeza ergueu-se, petrificou-se na minha alma, e +como uma columna n'um descampado dominou toda a minha vida interior: de +sorte que, por mais desviado caminho que tomassem os meus pensamentos +viam sempre negrejar no horisonte <span class="pagenum">[62]</span>aquella +Memoria accusadora; por mais +alto que se levantasse o vôo das minhas +imaginações, ellas terminavam por ir fatalmente +ferir as azas n'esse Monumento de miseria moral.<br /> + +<br /> + +Ah! por mais que se considere Vida e Morte como banaes +transformações da Substancia, é +pavoroso o pensamento―que se fez regelar um +sangue quente, que se immobilisou um musculo vivo! Quando depois de +jantar, sentindo ao lado o aroma do café, eu me estirava no +sophá, enlanguecido, n'uma sensação de +plenitude, elevava-se logo +dentro em mim, melancolico como o côro que vem d'um +ergastulo, todo um susurro de +accusações:<br /> + +<br /> + +―E todavia tu fizeste que esse bem-estar em que te regalas, nunca mais +fosse gozado pelo veneravel Ti-Chin-Fú!...<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[63]</span> +Debalde eu replicava á Consciencia, lembrando-lhe a +decrepitude do Mandarim, a sua gôta incuravel... Facunda em +argumentos, +gulosa de controversia, ella retorquia logo com furor:<br /> + +<br /> + +―Mas, ainda na sua actividade mais resumida, a vida é um +bem supremo: porque o encanto d'ella reside no seu principio mesmo, e +não +na abundancia das suas manifestações!<br /> + +<br /> + +Eu revoltava-me contra este pedantismo rhetorico de pedagogo rigido: +erguia alto a fronte, gritava-lhe n'uma arrogancia desesperada:<br /> + +<br /> + +―Pois bem! Matei-o! Melhor! Que queres tu? o teu grande nome de +Consciencia não me assusta! És apenas uma +perversão da sensibilidade nervosa. Posso eliminar-te com +<em>flôr de laranja</em>!<br /> + +<br /> + +E immediatamente sentia passar-me n'alma, com uma lentidão +de briza, um <span class="pagenum">[64]</span>rumor +humilde de murmurações +ironicas:<br /> + +<br /> + +―Bem, então come, dorme, banha-te e ama...<br /> + +<br /> + +Eu assim fazia. Mas logo, os proprios lençoes de Bretanha do +meu leito tomavam aos meus olhos apavorados os tons lividos d'uma +mortalha; a +agua perfumada em que me mergulhava arrefecia-me sobre a pelle, com a +sensação espessa d'um sangue que coalha: e os +peitos nús das minhas amantes entristeciam-me, como lapides +de marmore que encerram um corpo morto.<br /> + +<br /> + +Depois assaltou-me uma amargura maior: comecei a pensar que +Ti-Chin-Fú tinha de certo uma vasta familia, netos, bisnetos +tenros, que, despojados da herança que eu comia á +farta em +pratos de Sèvres, n'uma pompa de sultão +perdulario, iam atravessando na China todos +<span class="pagenum">[65]</span>os infernos +tradicionaes da miseria humana―os dias sem arroz, o corpo +sem +agasalho, a esmola recusada, a rua lamacenta por morada...<br /> + +<br /> + +Comprehendi então porque me perseguia a figura obesa do +velho letrado; e dos seus labios recobertos pelos longos pellos brancos +do seu bigode de +sombra, parecia-me sahir agora esta accusação +desolada:―«Eu não me lamento a mim, +fórma meio morta que era; chóro os +tristes que arruinaste, e que a estas horas, quando tu vens do seio +fresco das tuas +amorosas, gemem de fome, regelam na frialdade, apinhados n'um grupo +expirante, entre leprosos e ladrões, na <em>Ponte dos +Mendigos</em>, ao pé dos terraços do Templo +do +Céo!»<br /> + +<br /> + +Oh tortura engenhosa! Tortura realmente chineza! Não podia +levar á bocca <span class="pagenum">[66]</span>um +pedaço de pão sem +imaginar immediatamente o +bando faminto de criancinhas, a descendencia de Ti-Chin-Fú, +penando, como +passarinhos implumes que abrem debalde o bico e piam em ninho +abandonado; se me abafava no meu paletot era logo a visão de +desgraçadas senhoras, mimosas outr'ora de tepido conforto +chinez, hoje rôxas de frio, sob +andrajos de velhas sêdas, por uma manhã de neve; o +tecto +d'ébano do meu palacete lembrava-me a familia do Mandarim, +dormindo á beira dos +canaes, farejada pelos cães; e o meu coupé bem +forrado fazia-me +arripiar á idéa das longas caminhadas errantes, +por estradas encharcadas, sob um duro inverno asiatico.<br /> + +<br /> + +O que eu soffria!―E era o tempo em que a populaça invejosa +vinha pasmar <span class="pagenum">[67]</span>para +o meu palacete, commentando as felicidades +inaccessiveis que +lá deviam habitar!<br /> + +<br /> + +Emfim, reconhecendo que a Consciencia era dentro em mim como uma +serpente irritada―decidi implorar o auxilio d'Aquelle que dizem ser +superior á Consciencia porque dispõe da +Graça.<br /> + +<br /> + +Infelizmente eu não acreditava n'Elle... Recorri pois +á minha antiga divindade particular, ao meu dilecto idolo, +padroeira da minha familia, +Nossa Senhora das Dôres. E, regiamente pago, um povo de curas +e conegos, pelas cathedraes de cidade e pelas capellas +d'aldêa, foi +pedindo a Nossa Senhora das Dôres que voltasse os seus olhos +piedosos para o +meu mal interior... Mas nenhum allivio desceu d'esses céos +inclementes, para onde ha milhares d'annos <span class="pagenum">[68]</span>debalde +sobe o clamor da +miseria humana.<br /> + +<br /> + +Então eu proprio me abysmei em praticas piedosas―e Lisboa +assistiu a este espectaculo extraordinario: um ricaço, um +Nababo, +prostrando-se humildemente ao pé dos altares, balbuciando de +mãos postas phrases de <em>Salvè-Rainha</em>, +como se +visse na +Oração e no Reino do Céo que ella +conquista, outra cousa mais que uma consolação +ficticia que os que possuem tudo inventaram para contentar os que +não possuem +nada... Eu pertenço á Burguezia; e sei que se +ella mostra +á Plebe desprovída um paraiso distante, gozos +ineffaveis a alcançar―é +para lhe afastar a attenção dos seus cofres +repletos e da abundancia +das suas searas.<br /> + +<br /> + +Depois, mais inquieto, fiz dizer milhares de missas, simples e +cantadas, <span class="pagenum">[69]</span>para +satisfazer a alma errante de Ti-Chin-Fú. +Pueril +desvario d'um cerebro peninsular! O velho Mandarim na sua classe de +letrado, de +membro da Academia dos Han-Lin, collaborador provavel do grande tratado +<span class="smallcaps">Khou-Tsuane-Chou</span> que +já tem setenta e oito mil e setecentos +e trinta volumes, era certamente um sectario da Doutrina, da Moral +positiva de Confucio... Nunca elle, sequer, queimára mechas +perfumadas +em honra de Buddha: e os ceremoniaes do Sacrificio mystico deviam +parecer +á sua abominavel alma de grammatico e de sceptico como as +pantomimas dos palhaços, no theatro de Hong-Tung!<br /> + +<br /> + +Então prelados astutos, com experiencia catholica, deram-me +um conselho subtil―captar a benevolencia de Nossa Senhora das Dores +com presentes, +flôres, brocados e joias, como se quizesse +<span class="pagenum">[70]</span>alcançar +os favores d'Aspasia: e á maneira d'um +banqueiro obeso, que obtem as +complacencias d'uma dançarina dando-lhe um <em>Cottage</em> +entre +arvores―eu, +por uma suggestão sacerdotal, tentei peitar a dôce +Mãi dos Homens, erguendo-lhe uma cathedral toda de marmore +branco. A abundancia das flôres +punha entre os pilares lavrados perspectivas de paraisos: a +multiplicidade +dos lumes lembrava uma magnificencia sideral... Despezas +vãs! O +fino e erudito cardeal Nani veio de Roma consagrar a Igreja; mas, +quando eu n'esse dia entrei a visitar a minha hospeda divina, o que vi, +para +além das calvas dos celebrantes, entre a mystica nevoa dos +incensos, +não foi a Rainha da Graça, loira, na sua tunica +azul,―foi o velho +malandro com o seu olho obliquo e o seu papagaio nos braços! +Era a +<em>elle</em>, ao seu branco bigode <span class="pagenum">[71]</span>tartaro, á +sua pança +côr +d'oca, que todo um sacerdocio recamado d'oiro estava offerecendo, ao +roncar do orgão, a +Eternidade dos Louvores!...<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Então, pensando que Lisboa, o meio dormente em que me movia, +era favoravel ao desenvolvimento d'estas +imaginações―parti, viajei sobriamente, sem +pompa, com um bahú e um lacaio.<br /> + +<br /> + +Visitei, na sua ordem, classica, Paris, a banal Suissa, Londres, os +lagos taciturnos da Escocia; ergui a minha tenda diante das muralhas +evangelicas de Jerusalém; e d'Alexandria a Thebas, fui ao +comprido d'esse longo Egypto monumental e triste como o corredor d'um +mausoléo. Conheci o enjôo dos paquetes, <span class="pagenum">[72]</span>a +monotonia das ruinas, a +melancolia das multidões desconhecidas, as +desillusões do +<em>boulevard</em>: e o meu mal interior ia crescendo.<br /> + +<br /> + +Agora já não era só a amargura de ter +despojado uma familia veneravel: assaltava-me o remorso mais vasto de +ter privado toda uma sociedade +d'um Personagem fundamental, um letrado experiente, columna da Ordem, +esteio +d'Instituições. Não se póde +arrancar assim a um Estado uma personalidade do valor de cento e seis +mil contos, sem lhe perturbar o equilibrio... Esta idéa +pungia-me, acerbamente. Anciei por saber se na +verdade a desapparição de Ti-Chin-Fú +fôra funesta á decrepita China: li todos os +jornaes de Hong-Kong e de Chang-Hai, velei a noite sobre Historias de +viagens, consultei sabios missionarios:―e artigos, homens, <span class="pagenum">[73]</span>livros, +tudo me falla da decadencia do Imperio do Meio, provincias arruinadas, +cidades moribundas, plebes esfomeadas, pestes e rebelliões, +templos aluindo-se, leis perdendo a authoridade, a +decomposição d'um mundo, como uma nau encalhada +que a vaga desfaz tábua a +tábua!...<br /> + +<br /> + +E eu attribuia-me estas desgraças da Sociedade chineza! No +meu espirito doente Ti-Chin-Fú! tomára +então o +valor desproporcionado d'um Cesar, um Moysés, um d'esses +sêres providenciaes que +são a força d'uma raça. Eu +matára-o; e com elle desapparecera a vitalidade da sua +patria! O seu vasto cerebro poderia talvez ter salvado, a rasgos +geniaes, aquella velha monarchia asiatica―e eu +immobilisára-lhe a +acção creadora! A sua fortuna concorreria a +refazer a grandeza <span class="pagenum">[74]</span>do +Erario―e eu estava-a dissipando a offerecer +pecegos em janeiro ás messalinas do Helder!...―Amigos, +conheci o remorso colossal de ter arruinado um imperio!<br /> + +<br /> + +Para esquecer este tormento complicado, entreguei-me á +orgia. Installei-me n'um palacete da avenida dos Campos-Elysios―e fui +medonho. Dava festas á Trimalcião: e, nas horas +mais +asperas de furia libertina, quando das charangas, na estridencia brutal +dos cobres, rompiam os <em>can-cans</em>; quando +prostitutas, de seio +desbragado, ganiam coplas canalhas; quando os meus convidados bohemios, +atheus de cervejaria, injuriavam Deus, com a taça de +<em>Champagne</em> erguida―eu, +tomado subitamente como Heliogabalo d'um furor de bestialidade, d'um +ódio contra o Pensante <span class="pagenum">[75]</span>e +o Consciente, atirava-me ao +chão a +quatro patas e zurrava formidavelmente de burro...<br /> + +<br /> + +Depois quiz ir mais baixo, ao deboche da plebe, ás torpezas +alcoólicas do <em>Assomoir</em>: e quantas +vezes, vestido de blusa, +com o casquete para a +nuca, de braço dado com <em>Mes-Bottes</em> ou <em>Bibi-la-Gaillarde</em>, +n'um tropel avinhado, fui cambaleando pelos <em>boulevards</em> +exteriores, a +uivar, entre +arrotos:<br /> + +<br /> + +<div class="poetry"><em>Allons, enfants de la +patrie-e-e!...<br /> + +Le jour de +gloire est arrivé...</em></div> + +<br /> + +Foi uma manhã, depois d'um d'estes excessos, á +hora em que nas trevas da alma do debochado se ergue uma vaga aurora +espiritual―que me nasceu, +de repente, a idéa de partir para a China! E, como soldados +em +acampamento <span class="pagenum">[76]</span>adormecido, +que ao som do clarim se erguem, e um a um se +vão +juntando e formando columna―outras idéas se foram reunindo +no meu +espirito, alinhando-se, completando um plano formidavel... Partiria +para Pekin; descobriria a familia de Ti-Chin-Fú; esposando +uma das +senhoras, legitimaría a posse dos meus milhões; +daria +áquella casa letrada a antiga prosperidade; celebraria +funeraes pomposos ao Mandarim, para lhe +acalmar o espirito irritado; iria pelas provincias miseraveis fazendo +colossaes distribuições d'arroz; e, obtendo do +Imperador o botão de crystal de Mandarim, accesso facil a um +bacharel, substituir-me-hia +á personalidade desapparecida de Ti-Chin-Fú―e +poderia assim +restituir legalmente á sua patria, senão a +authoridade do +seu saber, ao menos a força do seu oiro.<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[77]</span> +Tudo isto, por vezes, me apparecia como um programma indefinido, +nevoento, pueril e idealista. Mas já o desejo d'esta +aventura original e epica me envolvera; e eu ia, arrebatado por elle, +como uma folha secca n'uma rajada.<br /> + +<br /> + +Anhelei, suspirei por pisar a terra da China!―Depois d'altos +preparativos, apressados a punhados d'oiro, uma noite parti emfim para +Marselha. Tinha alugado todo um paquete, o <em>Ceylão</em>. +E na +manhã seguinte, por um mar azul-ferrete, sob o vôo +branco das +gaivotas, quando os primeiros raios do sol ruborisavam as torres de +Nossa Senhora da Guarda, sobre o seu rochedo escuro―puz a +prôa ao Oriente.<br /> + +<br /> + +<h2>IV</h2> + +<br /> + +<span class="smallcaps">O Ceylão</span> +teve uma viagem calma e monotona até +Chang-Hai.<br /> + +<br /> + +D'ahi subimos pelo rio Azul a Tien-Tsin n'um pequeno <em>steamer</em> +da +Companhia Russel. Eu não vinha visitar a China n'uma +curiosidade ociosa de <em>touriste</em>: toda a paizagem +d'essa <span class="pagenum">[80]</span>provincia, +que +se assemelha +á dos vasos de porcelana, d'um tom azulado e vaporoso, com +collinasinhas calvas e de longe a longe um arbusto bracejante, me +deixou sombriamente +indifferente.<br /> + +<br /> + +Quando o capitão do <em>steamer</em>, um <em>yankee</em> +impudente de +focinho de chibo, ao passarmos á altura de Nankin, me propoz +parar, ir +percorrer as ruinas monumentaes da velha cidade de porcelana,―eu +recusei, com um movimento secco de cabeça, sem mesmo desviar +os olhos +tristes da corrente barrenta do rio.<br /> + +<br /> + +Que pesados e soturnos me pareceram os dias de +navegação de Tien-Tsin a Tung-Chou, em barcos +chatos que o cheiro dos remadores chinezes empestava; ora +através de terras baixas inundadas pelo +Pei-hó, ora ao longo de pallidos e infindaveis arrozaes; +passando aqui <span class="pagenum">[81]</span>uma +lugubre aldêa de lama negra, +além um campo coberto de +esquifes amarellos; topando a cada momento com cadaveres de mendigos, +inchados e esverdeados, que desciam ao fio d'agua, sob um +céo fusco e +baixo!<br /> + +<br /> + +Em Tung-Chou fiquei surprehendido, ao dar com uma escolta de cossacos +que mandava ao meu encontro o velho general Camilloff, heroico official +das campanhas da Asia Central, e então embaixador da Russia +em Pekin. Eu vinha-lhe recommendado como um sêr precioso e +raro: e o +verboso interprete Sá-Tó, que elle punha ao meu +serviço, explicou-me que as cartas de sêllo +imperial, avisando-o da minha chegada, +recebera-as elle, havia semanas, pelos correios da Chancellaria que +atravessam a Siberia em trenó, descem a dorso de +camêlo até +á Grande Muralha tartara, e <span class="pagenum">[82]</span>entregam +ahi a mala a esses +corredores mongolicos, vestidos de coiro escarlate, que dia e noite +galopam sobre Pekin.<br /> + +<br /> + +Camilloff enviava-me um poney da Manchouria, ajaezado de +sêda, e um cartão de visita, com estas palavras +traçadas a +lapis sob o seu nome: «<em>Saúde! o animal +é dôce de +bocca</em>!»<br /> + +<br /> + +Montei o poney: e a um <em>hurrah</em>! dos cossacos, n'um +agitar heroico de +lanças, partimos á desfilada pela poeirenta +planicie―porque já a tarde declinava, e as portas de Pekin +fecham-se mal o ultimo raio de sol +deixa as torres do Templo do Céo. Ao principio seguimos uma +estrada, caminho batido do transito das caravanas, atravancado de +enormes lages de marmore dessoldadas da antiga Via Imperial. Depois +passámos +a ponte de Pa-li-kao, toda de marmore branco, flanqueada de +dragões +arrogantes. <span class="pagenum">[83]</span>Vamos +correndo então á beira de +canaes d'agua +negra: começam a apparecer pomares, aqui e além +uma aldêa de côr +azulada, aninhada ao pé de um Pagode:―de repente, a um +cotovêlo do caminho, paro +assombrado...<br /> + +<br /> + +Pekin está diante de mim! É uma vasta muralha, +monumental e barbara, d'um negro baço, estendendo-se a +perder de vista, e, +destacando, com as architecturas babylonicas das suas portas de tectos +recurvos, sobre um fundo de poente de purpura ensanguentada...<br /> + +<br /> + +Ao longe, para o Norte, n'um vago de vapor roxo, esbatem-se, como +suspensas no ar, as montanhas da Mongolia...<br /> + +<br /> + +Uma rica liteira esperava-me á porta de Tung-Tsen-Men, para +eu atravessar Pekin até á Residencia militar de +Camilloff. A muralha agora, ao perto, parecia <span class="pagenum">[84]</span>erguer-se +até +aos céos com o +horror d'uma construcção biblica: á +sua base apinhava-se uma confusão de +barracas, feira exotica, onde rumorejava uma multidão, e a +luz de lanternas +oscillantes cortava já o crepúsculo de vagas +manchas côr de +sangue; os toldos brancos faziam ao pé do negro muro como um +bando de borboletas pousadas.<br /> + +<br /> + +Senti-me triste; subi á liteira, cerrei as cortinas de +sêda escarlate todas bordadas a oiro; e cercado dos cossacos, +eis-me entrando a velha Pekin, por essa porta babelica, na turba +tumultuosa, entre carretas, cadeirinhas de xarão, +cavalleiros mongolicos armados de +flechas, bonzos de tunica alvejante marchando um a um, e longas filas +de lentos dromedarios balançando a sua carga em cadencia...<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[85]</span> +D'ahi a pouco a liteira parou. O respeitoso Sá-Tó +correu as cortinas, e vi-me n'um jardim, escurecido e calado, onde, por +entre sycomoros seculares, kiosques alumiados brilhavam com uma luz +dôce, +como colossaes lanternas pousadas sobre a relva: e toda a sorte de +aguas correntes murmuravam na sombra. Sob um peristilo feito de +madeiros pintados a vermelhão, aclarado por fios de lampadas +de papel +transparente, esperava-me um membrudo figurão, de bigodes +brancos, apoiado +a um grosso espadão. Era o general Camilloff. Ao adiantar-me +para elle, +eu sentia o passo inquieto das gazellas fugindo de leve sob as +arvores...<br /> + +<br /> + +O velho heroe apertou-me um momento ao peito, e conduziu-me logo, +segundo os usos chinezes, ao banho da hospitalidade, uma vasta tina de +porcelana, <span class="pagenum">[86]</span>onde +entre rodelas finas de limão sobrenadavam +esponjas brancas, n'um perfume forte de lilaz...<br /> + +<br /> + +Pouco depois a lua banhava deliciosamente os jardins: e eu, muito +fresco, de gravata branca, entrava pelo braço de Camilloff +no <em>boudoir</em> da generala. Era alta e loira; tinha +os olhos verdes das +sereias de Homero; no decote baixo do seu vestido de sêda +branca pousava +uma rosa escarlate; e nos dedos, que lhe beijei, errava um aroma fino +de sandalo +e de chá.<br /> + +<br /> + +Conversámos muito da Europa, do Nihilismo, de Zola, de +Leão XIII, e da magreza de Sarah Bernardth...<br /> + +<br /> + +Pela galeria aberta penetrava um ar calido que rescendia a heliotropio. +Depois ella sentou-se ao piano―e a sua voz de contralto quebrou +até tarde os silencios melancolicos da cidade <span class="pagenum">[87]</span>tartara, com +as picantes +arias de <em>Madame Favart</em> e com as melodias +afagantes do <em>Rei de +Lahore</em>.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Ao outro dia cedo, encerrado com o general n'um dos kiosques do jardim, +contei-lhe a minha lamentavel historia e os motivos fabulosos que me +traziam a Pekin. O heroe escutava, cofiando sombriamente o seu espesso +bigode cossaco...<br /> + +<br /> + +―O meu prezado hospede sabe o chinez?―perguntou-me de repente, +fixando em mim a pupilla sagaz.<br /> + +<br /> + +―Sei duas palavras importantes, general: <em>Mandarim</em> +e +<em>chá</em>.<br /> + +<br /> + +Bile passou a sua mão de fortes cordovêas sobre a +medonha cicatriz que lhe sulcava a calva:<br /> + +<br /> + +―<em>Mandarim</em>, meu amigo, não é +<span class="pagenum">[88]</span>uma palavra +chineza, e ninguem a entende na China. É o nome que no +seculo XVI os navegadores do seu +paiz, do seu bello paiz...<br /> + +<br /> + +―Quando nós tinhamos navegadores...―murmurei, suspirando.<br /> + +<br /> + +Elle suspirou tambem, por polidez, e continuou:<br /> + +<br /> + +―...Que os seus navegadores deram aos funccionarios chinezes. Vem do +seu verbo, do seu lindo verbo...<br /> + +<br /> + +―Quando tinhamos verbos...―rosnei, no habito instinctivo de deprimir +a patria.<br /> + +<br /> + +Elle esgazeou um momento o seu olho redondo de velho mocho―e proseguiu +paciente e grave:<br /> + +<br /> + +―Do seu lindo verbo <em>mandar</em> ... Resta-lhe por +tanto <em>chá</em>. +É um vocabulo que tem um vasto papel na vida chineza, mas +julgo-o insufficiente <span class="pagenum">[89]</span>para +servir a todas as +relações +sociaes. O meu estimavel hospede pretende esposar uma senhora da +famillia Ti-Chin-Fú, +continuar a grossa influencia que exercia o Mandarim, substituir, +domestica e socialmente, esse chorado defunto... Para tudo isto +dispõe +da palavra <em>chá</em>. É pouco.<br /> + +<br /> + +Não pude negar―que era pouco. O venerando russo, franzindo +o seu nariz adunco de milhafre, pôz-me ainda outras +objecções que eu via erguerem-se diante do meu +desejo―como as muralhas mesmas de Pekin: nenhuma senhora +da familia Ti-Chin-Fú consentiria jámais em casar +com um barbaro; e seria impossivel, terrivelmente impossivel que o +Imperador, o Filho do Sol, concedesse a um estrangeiro as honras +privilegiadas d'um Mandarim...<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[90]</span> ―Mas porque m'as +recusaria?―exclamei.―Eu pertenço a uma +boa familia da provincia do Minho. Sou bacharel formado: portanto na +China, como em +Coimbra, sou um letrado! Já fiz parte d'uma +repartição publica... Possuo +milhões... Tenho a experiencia do estylo administrativo...<br /> + +<br /> + +O general ia-se curvando com respeito a esta abundancia dos meus +attributos.<br /> + +<br /> + +―Não é―disse elle emfim―que o Imperador +realmente o recusasse: é que o individuo que lh'o propozesse +seria immediatamente decapitado. A lei chineza, n'este ponto, +é explicita e secca.<br /> + +<br /> + +Baixei a cabeça, acabrunhado.<br /> + +<br /> + +―Mas, general―murmurei―eu quero livrar-me da presença +odiosa do velho Ti-Chin-Fú e do seu papagaio!... <span class="pagenum">[91]</span>Se eu +entregasse metade dos +meus milhões ao thesouro chinez, já que +não +me é dado pessoalmente applical-os, como Mandarim, +á prosperidade do Estado...? +Talvez Ti-Chin-Fú se calmasse...<br /> + +<br /> + +O general pousou-me paternalmente a vasta mão sobre o +hombro:<br /> + +<br /> + +―Êrro, consideravel êrro, mancebo! Esses +milhões nunca chegariam ao thesouro imperial. Ficariam nas +algibeiras insondaveis das classes dirigintes: seriam dissipados em +plantar jardins, colleccionar porcelanas, tapetar de pelles os soalhos, +fornecer sêdas +ás concubinas: não alliviariam a fome d'um +só chinez, nem +reparariam uma só pedra das estradas publicas... Iriam +enriquecer a orgia asiatica. A alma de Ti-Chin-Fú deve +conhecer bem o Imperio: e isso +não a satisfaria.<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[92]</span> ―E se eu +empregasse parte da fortuna do velho malandro em fazer +particularmente, como philanthropo, largas +distribuições d'arroz á +populaça faminta? É uma idéa...<br /> + +<br /> + +―Funesta―disse o general, franzindo medonhamente o sobr'olho.―A +côrte imperial veria ahi immediatamente uma +ambição +politica, o tortuoso plano de ganhar os favores da plebe, um perigo +para a Dynastia... O meu bom amigo seria decapitado... É +grave...<br /> + +<br /> + +―Maldição!―berrei.―-Então para que +vim eu á China?<br /> + +<br /> + +O diplomata encolheu vagarosamente os hombros; mas logo, mostrando n'um +sorriso astuto os seus dentes amarellos de cossaco:<br /> + +<br /> + +―Faça uma coisa. Procure a familia de +Ti-Chin-Fú... Eu indagarei do <span class="pagenum">[93]</span>primeiro +ministro, sua +excellencia o principe Tong, onde +pára essa prole interessante... Reuna-os, atire-lhes uma ou +duas duzias de +milhões... Depois prepare ao defunto funeraes regios. +Funeraes d'alto ceremonial, com um prestito d'uma legua, filas de +bonzos, todo um mundo de estandartes, palanquins, lanças, +plumas, andores escarlates, +legiões de carpideiras ululando sinistramente, etc. etc... +Se depois de tudo isto +a sua consciencia não adormecer e o phantasma insistir...<br /> + +<br /> + +―Então?<br /> + +<br /> + +―Córte as guelas.<br /> + +<br /> + +―Obrigado, general.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Uma coisa porém era evidente, e n'ella concordaram +Camilloff, o respeitoso Sá-Tó e a generala:―que, +para +frequentar <span class="pagenum">[94]</span>a +familia Ti-Chin-Fú, seguir os funeraes, +misturar-me á +vida de Pekin, eu devia desde já vestir-me como um chinez +opulento, da classe +letrada, para me ir habituando ao traje, ás maneiras, ao +ceremonial +mandarim...<br /> + +<br /> + +A minha face amarellada, o meu longo bigode pendente favoreciam a +caracterisação:―e quando na manhã +seguinte, depois d'arranjado pelos costureiros engenhosos da rua +Chá-Coua, entrei na sala +forrada de sêda escarlate, onde já rebrilhavam as +porcelanas do +almoço sobre a mesa de charão negro,―a generala +recuou como á +appariçâo do proprio Tong-Tché, Filho +do Céo!<br /> + +<br /> + +Eu trazia uma tunica de brocado azul escuro abotoada ao lado, com o +peitilho ricamente bordado de dragões e flôres +d'oiro: por cima um casabeque de sêda de um tom azul mais +claro, curto, <span class="pagenum">[95]</span>amplo +e +fôfo: as calças de setim côr de +avellã +descobriam ricas babouches amarellas pespontadas a perolas, e um pouco +da meia picada d'estrellinhas negras: +e á cinta, n'uma linda facha franjada de prata, tinha +mettido um leque de bambú, dos que teem o retrato do +philosopho +Lá-o-Tsé e são fabricados em Swaton.<br /> + +<br /> + +E, pelas mysteriosas correlações com que o +vestuario influenceia o caracter, eu sentia já em mim +idéas, instinctos +chinezes:―o amor dos ceremoniaes meticulosos, o respeito bureocratico +das +fórmulas, uma ponta de scepticismo letrado; e tambem um +abjecto terror do Imperador, o odio +ao estrangeiro, o culto dos antepassados, o fanatismo da +tradição, o gosto das coisas assucaradas...<br /> + +<br /> + +Alma e ventre, era já totalmente um <span class="pagenum">[96]</span>Mandarim. +Não +disse á generala:―<em>Bon jour, Madame</em>. +Dobrado ao meio, +fazendo girar os punhos +fechados sobre a fronte abaixada, fiz gravemente o <em>chin-chin</em>! +<br /> + +<br /> + +―É adorável, é precioso!―dizia ella, +com o seu lindo riso, batendo as maosinhas pallidas.<br /> + +<br /> + +N'essa manhã, em honra da minha nova +incarnação, havia um almoço chinez. +Que gentis guardanapos de papel de sêda escarlate, com +monstros fabulosos desenhados a negro! O serviço +começou +por ostras de Ning-Pó. Eximias! Absorvi duas duzias com um +intenso regalo chinez. Depois +vieram deliciosas febras de barbatana de tubarão, olhos de +carneiro +com picado d'alho, um prato de nenufares em calda d'assucar, laranjas +de +Cantão, e emfim o arroz sacramental, o arroz dos +avós...<br /> + +<br /> + +Delicado repasto, regado largamente <span class="pagenum">[97]</span>de +excellente vinho de +Chão-Chigne! E por fim, com que gôzo recebi a +minha taça d'agua +a ferver, onde deitei uma pitada de folhas de chá imperial, +da primeira colheita +de março, colheita unica, que é celebrada como um +rito santo pelas +mãos puras de virgens!...<br /> + +<br /> + +Duas cantadeiras entraram, em quanto nós fumavamos; e muito +tempo, n'uma modulação guttural, disseram velhas +cantigas dos +tempos da dynastia Ming, ao som de guitarras recobertas de pelles de +serpente, que dous tartaros agachados repenicavam, n'uma cadencia +melancolica e barbara. A +China tem encantos d'um raro gosto...<br /> + +<br /> + +Depois a loira generala cantou-nos, com chiste, a <em>Femme +à +barbe</em>: e quando o general sahiu com a sua escolta cossaca +para o Yamen +do principe Tong, a informar-se da residencia da familia +<span class="pagenum">[98]</span>Ti-Chin-Fú―eu, +repleto e bem disposto, sahi com +Sá-Tó a +vêr Pekin.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +A habitação de Camilloff ficava na cidade +tartara, nos bairros militares e nobres. Ha aqui uma tranquillidade +austera. As ruas assemelham-se a largos caminhos d'aldêa +sulcados pelas rodas dos carros; e +quasi sempre se caminha ao comprido de um muro, d'onde sahem ramos +horisontaes de sycomoros.<br /> + +<br /> + +Por vezes uma carreta passa rapidamente, ao trote de um poney mongol, +com altas rodas cravejadas de pregos dourados; tudo n'ella oscilla, o +toldo, as cortinas pendentes de sêda, os ramos de plumas aos +angulos; e dentro entrevê-se alguma linda dama chineza, +coberta de +brocados claros, a cabeça toda cheia <span class="pagenum">[99]</span>de flôres, +fazendo girar nos +pulsos dois aros de prata, com um ar de tedio ceremonioso. Depois +é alguma +aristocratica cadeirinha de Mandarim, que koulis vestidos d'azul, de +rabicho solto, vão levando a um trote arquejante para os +Yamens do Estado; +precede-os uma criadagem maltrapilha que ergue ao alto rolos de seda +com inscripções bordadas, insignias +d'authoridade; e +dentro o personagem bojudo, com enormes oculos redondos, folheia a sua +papelada ou dormita de beiço cahido...<br /> + +<br /> + +A cada momento paravamos a olhar as lojas ricas, com as suas taboletas +verticaes de letras douradas sobre fundo escarlate: os freguezes, n'um +silencio d'igreja, subtis como sombras, vão examinando as +preciosidades―porcelanas da dynastia Ming, bronzes, esmaltes, marfins, +sêdas, armas marchetadas, os <span class="pagenum">[100]</span>leques +maravilhosos de Swaton: +por vezes, uma fresca rapariga d'olho obliquo, tunica azul, e papoilas +de papel +nas tranças, desdobra algum raro brocado diante d'um grosso +chinez que o contempla beatamente, com os dedos cruzados na +pança: ao +fundo o mercador apparatoso e immovel, escreve com um pincel sobre +longas taboinhas de sandalo: e um perfume adocicado que sahe das coisas +perturba e entristece...<br /> + +<br /> + +Eis-aqui a muralha que cérca a Cidade interdictca, morada +santa do Imperador! Moços nobres vem descendo do +terraço +d'um templo onde se estiveram adestrando á frecha. +Sá-Tó +disse-me os seus nomes: eram da guarda selecta, que nas ceremonias +escolta o guarda-sol de +sêda amarella, com o Dragão bordado, que +é o emblema +sagrado do Imperador. Todos elles comprimentaram profundadamente <span class="pagenum">[101]</span>um +velho que ia passando, de +barbas venerandas, com o casabeque amarello que é o +privilegio do ancião; vinha fallando só, e trazia +na +mão uma vara sobre que pousavam cotovias domesticadas... Era +um principe do Imperio.<br /> + +<br /> + +Estranhos bairros! Mas nada me divertia como vêr a cada +instante, a uma porta de jardim, dois Mandarins pançudos que +para entrar se +trocavam indefinidamente salamalés, cortezias, recusas, +risinhos +agudos d'etiqueta, todo um ceremonial dogmatico―que lhes fazia +oscillar d'um modo picaresco, sobre as costas, as longas pennas de +pavão. +Depois se erguia os olhos para o ar, lá via sempre pairar +enormes +papagaios de papel, ora em fórma de dragões, ora +de cetaceos, +ora d'aves fabulosas―enchendo o espaço d'uma inverosimil +legião <span class="pagenum">[102]</span>de +monstros transparentes e ondeantes...<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +―Sá-Tó, basta de cidade tartara! Vamos +vêr os bairros chinezes...<br /> + +<br /> + +E lá fomos penetrando na cidade chineza, pela porta +monstruosa de Tchin-Men. Aqui habita a burguezia, o mercador, a +populaça. +As ruas alinham-se como uma pauta; e no sólo vetusto e +lamacento, +feito da immundicie de gerações recalcada desde +seculos, +ainda aqui e além jaz alguma das lages de marmore +côr de rosa que outr'ora o +calçavam, no tempo da grandeza dos Ming.<br /> + +<br /> + +Dos dois lados são―ora terrenos vagos onde uivam manadas de +cães famintos, ora filas de casebres fuscos, ora pobres +lojas com as suas taboletas esguias <span class="pagenum">[103]</span>e +sarapintadas, +balouçando-se d'uma haste +de ferro. A distancia erguem-se os arcos triumphaes feitos de barrotes +côr de purpura, ligados no alto por um telhado oblongo de +telhas azues envernizadas, que rebrilham como esmaltes. Uma +multidão +rumorosa e espessa, onde domina o tom pardo e azulado dos trajes, +circula sem cessar; a poeira envolve tudo d'uma nevoa amarellada; um +fedor acre exhala-se dos enxurros negros; e a cada momento uma longa +caravana de camêlos fende lentamente a turba, conduzida por +mongoes +sombrios vestidos de pelle de carneiro...<br /> + +<br /> + +Fomos até ás entradas das pontes sobre os canaes, +onde saltimbancos semi-nús, com mascaras simulando demonios +pavorosos, fazem +destrezas d'um picaresco barbaro e subtil; e muito tempo estive a +admirar os astrologos de <span class="pagenum">[104]</span>longas +tunicas, com dragões de +papel collados +ás cóstas, vendendo ruidosamente horoscopos e +consultas d'astros. Oh cidade fabulosa e singular!<br /> + +<br /> + +De repente ergue-se uma gritaria! Corremos: era um bando de presos, que +um soldado, de grandes oculos, ia impellindo com o guarda-sol, +amarrados uns aos outros pelo rabicho! Foi ahi n'essa avenida, que eu +vi o estrepitoso cortejo de um funeral de Mandarim, todo ornado de +auriflammas e de bandeirolas; grupos de sujeitos funebres vinham +queimando papeis em fogareiros portateis; mulheres esfarrapadas uivavam +de dôr espojando-se sobre tapetes; depois erguiam-se, +galhofavam, e um kouli vestido de luto branco servia-lhes logo +chá, d'um +grande bule em fórma d'ave.<br /> + +<br /> + +Ao passar junto ao Templo do Céo, vejo apinhada n'um largo +uma legiao <span class="pagenum">[105]</span>de +mendigos; tinham por vestuario um tijolo preso +á cinta n'um +cordel; as mulheres, com os cabellos entremeados de velhas +flôres de +papel, roiam ossos tranquillamente; e cadaveres de crianças +apodreciam ao +lado, sob o vôo dos moscardos. Adiante topamos com uma jaula +de traves, +onde um condemnado estendia, através das grades, as +mãos +descarnadas, á esmola... Depois Sá-Tó +mostrou-me respeitosamente +uma praça estreita: ahi, sobre pilares de pedra, poupavam +pequenas gaiolas contendo +cabeças de decapitados: e gotta a gotta ia pingando d'ellas +um sangue espesso e +negro...<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +―Ouf!―exclamei, fatigado e aturdido.―Sá-Tó, +agora quero o repouso, o silencio, e um charuto caro...<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[106]</span> +Elle curvou-se: e, por uma escadaria de granito, levou-me ás +altas muralhas da cidade, formando uma esplanada que quatro carros de +guerra +a par podem percorrer durante leguas.<br /> + +<br /> + +E emquanto Sá-Tó, sentado n'um vão +d'ameia, bocejava n'um desafôgo de <em>cicerone</em> +enfastiado, eu +fumando contemplei muito tempo aos meus +pés a vasta Pekin...<br /> + +<br /> + +É como uma formidavel cidade da Biblia, Babel, ou Ninive que +o propheta Jonas levou tres dias a atravessar. O grandioso muro +quadrado limita os +quatro pontos do horisonte, com as suas portas de torres monumentaes, +que o ar azulado, áquella distancia, faz parecer +transparentes. E na immensidão do seu recinto agglomeram-se +confusamente +verduras de bosques, lagos artificiaes, canaes scintillantes como +aço, +pontes de <span class="pagenum">[107]</span>marmore, +terrenos alastrados de ruinas, telhados envernizados +reluzindo +ao sol; por toda a parte são pagodes heraldicos, brancos +terraços de templos, arcos triumphaes, milhares de kiosques +sahindo d'entre as folhagens dos jardins; depois espaços que +parecem um +montão de porcelanas, outros que se assemelham a monturos de +lama; e sempre a intervallos regulares o olhar encontra algum dos +bastiões, +d'um aspecto heroico e fabuloso...<br /> + +<br /> + +A multidão, junto a essas edificações +grandiosas, é apenas como grãos d'arêa +negra que um vento brando vai trazendo e levando...<br /> + +<br /> + +Aqui está o vasto palacio imperial, entre arvoredos +mysteriosos, com os seus telhados d'um amarello d'oiro vivo! Como eu +desejaria penetrar-lhe +os segredos, e ver desenrolar-se, pelas galerias <span class="pagenum">[108]</span>sobrepostas, a +magnificencia barbara d'essas Dynastias seculares!<br /> + +<br /> + +Além ergue-se a torre do Templo do Céo semelhando +três guarda-soes sobrepostos: depois a grande columna dos +Principios, hieratica e +sêcca como o Genio mesmo da Raça: e adiante +branquejam n'uma meia +tinta sobrenatural os terraços de jaspe do Santuario da +Purificação...<br /> + +<br /> + +Então interrogo Sá-Tó: e o seu dedo +respeitoso vai-me mostrando o Templo dos Antepassados, o Palacio da +Soberana Concordia, o +Pavilhão das Flôres das Letras, o Kiosque dos +Historiadores, fazendo brilhar, entre os bosques sagrados que os +cercam, os seus telhados lustrosos de +faianças azues, verdes, escarlates e côr de +limão. Eu +devorava, d'olho avido, esses monumentos da Antiguidade asiatica, n'uma +curiosidade de <span class="pagenum">[109]</span>conhecer +as impenetraveis classes que os habitam, o principio das +Instituições, a +significação dos Cultos, o espirito das suas +letras, a grammatica, o dogma, a estranha vida interior d'um cerebro de +letrado chinez... Mas esse mundo é inviolavel como um +Santuario...<br /> + +<br /> + +Sentei-me na muralha, e os meus olhos perderam-se pela planicie arenosa +que se estira para além das portas até aos +contrafortes dos montes mongolicos; ahi incessantemente redemoinham +ondas infindaveis de +poeira; a toda a hora negrejam filas vagarosas de caravanas... +Então +invadiu-me a alma uma melancolia, que o silencio d'quellas alturas, +envolvendo Pekin, tornava d'um vago mais desolado: era como uma saudade +de mim mesmo, um longo pezar de me sentir alli isolado, absorvido +n'aquelle mundo duro e barbaro: <span class="pagenum">[110]</span>lembrei-me, +com os olhos humedecidos, +da minha aldêa do Minho, do seu adro assombreado de +carvalheiras, a +venda com um ramo de louro á porta, o alpendre do ferrador, +e os ribeiros +tão frescos quando verdejam os linhos...<br /> + +<br /> + +Aquella era a época em que as pombas emigram de Pekin para o +sul. Eu via-as reunirem-se em bandos por cima de mim, partindo dos +bosques dos templos e dos pavilhões imperiaes; cada uma +traz, para a +livrar dos milhafres, um leve tubo de bambu que o ar faz silvar; e +aquellas nuvens +brancas passavam como impellidas d'uma aragem molle, deixando no +silencio um lento e melancolico suspiro, uma +ondulação eolia, que se perdia nos ares +pallidos...<br /> + +<br /> + +Voltei para casa, pesado e pensativo.<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[111]</span> +Ao jantar, Camilloff, desdobrando o seu guardanapo, pediu-me com +bonhomia as minhas impressões de Pekin.<br /> + +<br /> + +―Pekin faz-me sentir bem, general, os versos d'um poeta nosso:<br /> + +<br /> + +<div class="poetry">Sôbolos rios que +vão<br /> + +Por +Babylonia me achei...</div> + +<br /> + +―Pekin é um monstro!―disse Camilloff oscillando +reflectidamente a calva.―E agora considere, que a esta capital, +á classe +tartara e conquistadora que a possue, obedecem trezentos +milhões +d'homens, uma raça subtil, laboriosa, soffredora, prolifica, +invasora... +Estudam as nossas sciencias... Um calice de Medoc, Theodoro?... Teem +uma marinha formidavel! O exercito, que <span class="pagenum">[112]</span>outr'ora +julgava +destroçar o +estrangeiro com dragões de papelão d'onde sahiam +bichas de fogo, +tem agora tactica prussiana e espingarda d'agulha! Grave!<br /> + +<br /> + +―E todavia, general, no meu paiz, quando, a proposito de Macau, se +falla do Imperio Celeste, os patriotas passam os dedos pela grenha, e +dizem negligentemente: <em>Mandamos lá cincoenta +homens, e +varremos a China</em>...<br /> + +<br /> + +A esta sandice―fez-se um silencio. E o general, depois de tossir +formidavelmente, murmurou, com condescendencia:<br /> + +<br /> + +―Portugal é um bello paiz...<br /> + +<br /> + +Eu exclamei com seccura e firmeza:<br /> + +<br /> + +―É uma choldra, general.<br /> + +<br /> + +A generala, collocando delicadamente á borda do prato uma +aza de frango, e limpando o dedinho, disse:<br /> + +<br /> + +―É o paiz da canção de Mignon. +É lá que floresce a laranjeira...<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[113]</span> +O gordo Meriskoff, doutor allemão pela Universidade de Bonn, +chanceller da legação, homem de poesia e de +commentario, +observou com respeito:<br /> + +<br /> + +―Generala, o dôce paiz de Mignon é a Italia: +<em>Conheces tu a terra privilegiada onde a laranjeira +dá +flor</em>? O divino Goethe +referia-se á Italia, <em>Italia mater</em>... A +Italia +será o eterno amor da +humanidade sensivel!<br /> + +<br /> + +―Eu prefiro a França!―suspirou a esposa do primeiro +secretario, uma bonecasinha sardenta, de cabello arruivascado.<br /> + +<br /> + +―Ah! a França!...―murmurou um addido, revirando um bugalho +d'olho ternissimo.<br /> + +<br /> + +O gordo Meriskoff ageitou os oculos d'oiro:<br /> + +<br /> + +―A França tem um mal, que é a Questão +social...<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[114]</span> ―Oh! a +Questão social!―rosnou sombriamente Camilloff.<br /> + +<br /> + +―Ah! a Questão social!...―considerou ponderosamente o +addido.<br /> + +<br /> + +E discreteando com tanta sapiencia, chegámos por fim ao +café.<br /> + +<br /> + +Ao descer ao jardim, a generala, apoiando-se sentimentalmente ao meu +braço, murmurou-me, junto á face:<br /> + +<br /> + +―Ai, quem me dera viver n'esses paizes apaixonados, onde verdejam os +laranjaes!...<br /> + +<br /> + +―É lá que se ama, generala―segredei-lhe eu, +levando-a dôcemente para a escuridão dos +sycomoros...<br /> + +<br /> + +<h2>V</h2> + +<br /> + +<span class="smallcaps">Foi</span> necessario todo +um longo verão para descobrir a +provincia onde residira o defunto Ti-Chin-Fú!<br /> + +<br /> + +Que episodio administrativo tão pittoresco, tão +chinez! O serviçal Camillof, que passava o dia inteiro a +percorrer os Yamens do Estado, teve de provar primeiro que o desejo de +conhecer a morada d'um velho Mandarim não encobria <span class="pagenum">[116]</span>uma +conspiração +contra a segurança do Imperio; e depois foi-lhe ainda +preciso jurar que não havia n'esta +curiosidade um attentado contra os Ritos sagrados! Então, +satisfeito, o +principe Tong permittiu que se fizesse o inquerito imperial: centenares +d'escribas empallideceram noite e dia, de pincel na mão, +desenhando +relatorios sobre papel d'arroz; mysteriosas conferencias sussurraram +incessantemente por todas as repartições da +Cidade Imperial, desde o Tribunal astronomico até ao Palacio +da Bondade Preferida; e +uma população de koulis transportava da +legação russa para os kiosques da Cidade +Interdicta, e d'ahi para o Pateo dos Archivos padiolas estalando +ao peso de maços de documentos vetustos...<br /> + +<br /> + +Quando Camilloff perguntava <em>pelo resultado</em>, +vinha-lhe a resposta, +satisfactoria <span class="pagenum">[117]</span>que +se estavam consultando os Livros Santos de +Lá-o-Tsé, ou que se iam explorar velhos textos do +tempo de Nor-ha-chú. +E para calmar a impaciencia bellica do russo, o principe Tong remettia, +com estes recados subtis, algum substancial presente de confeitos +recheados, ou de gomos de bambú em calda d'assucar...<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Ora em quanto o general trabalhava com fervor para encontrar a familia +Ti-Chin-Fú,―eu ia tecendo horas de sêda e oiro +(assim diz um poeta japonez) aos pés pequeninos da +generala...<br /> + +<br /> + +Havia um kiosque no jardim sob os sycomoros, que se denominava, +á maneira chineza, do <em>Repouso discreto</em>:―ao +lado um arroio +fresco ia cantando <span class="pagenum">[118]</span>dôcemente +sob uma pontesinha rustica +pintada de +côr de rosa. As paredes eram apenas um gradeado de +bambú fino forrado de +sêda côr de ganga: o sol, passando +através d'ellas, fazia uma luz +sobrenatural de opala desmaiada. Ao centro afofava-se um divan de +sêda +branca, d'uma poesia de nuvem matutina, attrahente como um leito +nupcial. Aos cantos, +em ricas jarras transparentes da época de Yeng, erguiam-se, +na sua gentileza aristocratica, lirios escarlates do Japão. +Todo o +soalho estava recoberto d'esteiras finas de Nankin; e junto +á +janella rendilhada, sobre um airoso pedestal de sandalo, pousava aberto +ao alto +um leque formado de laminas de crystal separadas, que a aragem entrando +fazia vibrar, n'uma modulação melancolica e +terna.<br /> + +<br /> + +As manhãs do fim d'agosto em <span class="pagenum">[119]</span>Pekin +são muito +suaves; já erra no ar um enternecimento outonal. A essa hora +o conselheiro Meriskoff, os officiaes da legação, +estavam sempre na +chancellaria <em>fazendo a mala</em> para S. Petersburgo.<br /> + +<br /> + +Eu então, de leque na mão, pisando subtilmente na +ponta das babouches de setim as ruasinhas areadas do jardim, ia +entreabrir a porta do <em>Repouso +discreto</em>:<br /> + +<br /> + +―Mimi?<br /> + +<br /> + +E a voz da generala respondia, suave como um beijo:<br /> + +<br /> + +―<em>All right</em>...<br /> + +<br /> + +Como ella era linda vestida de dama chineza! Nos seus cabellos +levantados alvejavam flôres de pecegueiro; e as sobrancelhas +pareciam mais puras e negras avivadas a tinta de Nankin. A camisinha de +gaze, bordada <span class="pagenum">[120]</span>a +soutache de filigrana d'oiro, collava-se aos seus seios +pequeninos e direitos: vastas, fôfas calças de +foulard côr de <em>côxa de Nympha</em>, +que lhe davam uma +graça de serralho, recahiam sobre +o tornozêlo fino, coberto de meia de seda amarella:―e apenas +tres dedos da minha mão cabiam na sua chinelinha...<br /> + +<br /> + +Chamava-se Vladimira; nascera ao pé de Nidji-Novogorod; e +fôra educada por uma tia velha que admirava Rousseau, lia +Faublas, usava o cabello empoado, e parecia a grossa lithographia +cossaca d'uma dama galante de Versalhes...<br /> + +<br /> + +O sonho de Vladimira era habitar Paris; e fazendo ferver delicadamente +as folhas de chá, pedia-me historias ladinas de <em>Cocottes</em>, +e dizia-me o seu culto por Dumas filho...<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[121]</span> +Eu arregaçava-lhe a larga manga do casabeque de +sêda côr de folha morta, e ia fazendo viajar os +meus labios devotos pela pelle fresca dos seus bellos +braços;―e depois sobre o divan, +enlaçados, peito contra peito, n'um extasi mudo, sentiamos +as laminas de crystal resoar eoliamente, as +pêgas azues esvoaçarem pelos platanos, o fugitivo +rhythmo do arroio corrente...<br /> + +<br /> + +Os nossos olhos humedecidos encontravam ás vezes um quadro +de setim preto, por cima do divan, onde em caracteres chinezes se +desenrolavam sentenças do Livro Sagrado de Li-Num +«sobre os +deveres das esposas». Mas nenhum de nós percebia o +chinez... E no silencio os nossos +beijos recomeçavam, espaçados, soando +dôcemente, e comparaveis (na lingua florida <span class="pagenum">[122]</span>d'aquelles +paizes) a perolas que cahem uma a uma sobre uma +bacia de prata...―Oh suaves séstas dos jardins de Pekin, +onde +estaes vós? Onde estaes, folhas mortas dos lirios escarlates +do +Japão?...<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Uma manhã Camilloff entrando na chancellaria, onde eu fumava +o cachimbo d'amizade de companhia com Meriskoff, atirou o seu enorme +sabre para um +canapé, e contou-nos radiante as noticias que lhe dera o +penetrante principe Tong.―Descobrira-se emfim que um opulento +Mandarim, de nome Ti-Chin-Fú, vivera outr'ora nos confins da +Mongolia, na +villa de Tien-Hó! Tinha morrido subitamente: e a sua larga +descendencia residia lá, em miseria, n'um casebre vil...<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[123]</span> +Esta descoberta, é certo, não fôra +devida á sagacidade da burocracia imperial―mas fizera-a um +astrologo do templo de Faqua, que durante vinte noites +folheára no céo o luminoso archivo +dos astros...<br /> + +<br /> + +―Theodoro, ha-de ser o seu homem!―exclamou Camilloff.<br /> + +<br /> + +E Meriskoff repetiu, sacudindo a cinza do cachimbo:<br /> + +<br /> + +―Ha-de ser o seu homem, Theodoro!<br /> + +<br /> + +―O meu homem...―murmurei sombriamente.<br /> + +<br /> + +Era talvez o <em>meu homem</em>, sim! Mas não +me seduzia ir +procurar o <em>meu homem</em> ou a sua familia, na +monotonia d'uma caravana, +por essas desoladas extremidades da China!... Depois, desde que +chegára a Pekin, eu não tornára a +avistar a fórma +<span class="pagenum">[124]</span>odiosa de +Ti-Chin-Fú e do seu papagaio. A Consciencia era +dentro em mim como uma pomba adormecida. Certamente, +o alto esforço de me ter arrancado ás +doçuras do <em>boulevard</em> e do Loreto, de +ter sulcado os mares +até ao Império do Meio, +parecera á Eterna Equidade uma +expiação sufficiente e uma +peregrinação reparadora. Certamente +Ti-Chin-Fú, acalmado, recolhera-se com o seu +papagaio á sempiterna Immobilidade... Para que iria eu, +pois, a +Tien-Hó? Porque não ficaria alli, n'aquelle +amavel Pekin, comendo nenufares em calda d'assucar, abandonando-me +ás somnolencias amorosas do +<em>Repouso discreto</em>, e pelas tardes azuladas, dando o +meu passeio pelo +braço do bom Meriskoff, nos terraços de jaspe da +Purificação ou sob os cedros do Templo do +Céo?...<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[125]</span> +Mas já o zeloso Camilloff, de lapis na mão, ia +marcando no mappa o meu itinerário para Tien-Hó! +E mostrando-me, n'um +desagradavel entrelaçamento, sombras de montes, linhas +tortuosas de rios, +esfumados de lagôas:<br /> + +<br /> + +―Aqui está! O meu hospede sobe até +Ni-ku-hé, na margem do Pei-Hó... D'ahi, em barcos +chatos vai a My-yun. Boa cidade, ha lá um +Buddha vivo... D'ahi, a cavallo, segue até á +fortaleza +de Ché-hia. Passa a grande muralha, famoso +espectáculo!... Descança +no forte de Ku-pi-hó. Póde lá +caçar a gazella. Soberbas +gazellas... E com dois dias de caminhada está em +Tien-Hó... Brilhante, hein?... +Quando quer partir? Ámanhã?...<br /> + +<br /> + +―Ámanhã―rosnei, tristonho.<br /> + +<br /> + +Pobre generala! N'essa noite, em <span class="pagenum">[125]</span>quanto +Meriskoff, ao fundo da sala, +fazia com tres officiaes da embaixada o seu <em>whist</em> +sacramental; e +Camilloff, ao canto do sophá, de braços cruzados, +solemne como n'uma poltrona do Congresso de Vienna, dormia de bocca +aberta;―ella +sentou-se ao piano. Eu ao lado, na attitude d'um Lara, devastado pela +fatalidade, +retorcia lugubremente o bigode. E a dôce creatura, entre dois +gemidos do teclado, d'uma saudade penetrante, cantou revirando para mim +os seus olhos rebrilhantes e humidos:<br /> + +<br /> + +<div class="poetry">L'oiseau s'envole,<br /> + +Lá bas, +lá bas!...<br /> + +L'oiseau s'envole...<br /> + +Ne +revient pas...</div> + +<br /> + +<br /> + +―A ave ha-de voltar ao ninho,―murmurei eu enternecido.<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[127]</span> +E, afastando-me a esconder uma lagrima, ia resmungando furioso:<br /> + +<br /> + +―Canalha de Ti-Chin-Fú! Por tua causa! Velho malandro! +Velho garoto!...<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Ao outro dia lá vou para Tien-Hó―com o +respeitoso interprete Sá-tó, uma longa fila de +carretas, dois cossacos, toda uma populaça de +koulis.<br /> + +<br /> + +Ao deixar a muralha da cidade tartara, seguimos muito tempo ao comprido +dos jardins sagrados que orlam o templo de Confucio.<br /> + +<br /> + +Era no fim do outono; já as folhas tinham amarellecido; uma +doçura tocante errava no ar...<br /> + +<br /> + +Dos kiosques santos sahia uma susurração de +canticos, de nota monotona <span class="pagenum">[128]</span>e +triste. Pelos terraços, enormes +serpentes, veneradas como +deuses, iam-se arrastando, já entorpecidas da friagem. E +aqui e +além, ao passar, avistavamos buddhistas decrepitos, +sêccos como pergaminhos e +nodosos como raizes, encruzados no chão sob os sycomoros, +n'uma +immobilidade de idolos, contemplando incessantemente o umbigo, +á espera da +perfeição do Nirvana...<br /> + +<br /> + +E eu ia pensando, com uma tristeza tão pallida como aquelle +mesmo céo d'outubro asiatico, nas duas lagrimas redondinhas +que vira brilhar, +á despedida, nos olhos verdes da generala!...<br /> + +<br /> + +<h2>VI</h2> + +<br /> + +<span class="smallcaps">Já</span> a tarde +declinava, e o sol descia vermelho como um escudo +de metal candente, quando chegámos a Tien-Hó.<br /> + +<br /> + +As muralhas negras da villa erguem-se, do lado do sul, ao pé +d'uma torrente que ruge entre rochas: para o nascente, a planicie +livida e poeirenta <span class="pagenum">[130]</span>estende-se +até a um grupo escuro de +collinas onde +branqueja um vasto edificio―que é uma Missão +Catholica. E +para além, para o extremo norte são as eternas +montanhas rôxas da Mongolia, +suspensas sempre no ar como nuvens.<br /> + +<br /> + +Alojámo-nos n'um barracão fetido, intitulado +<em>Estalagem da Consolação terrestre</em>. +Foi-me +reservado o quarto nobre, que abria sobre uma +galeria fixada em estacas; era ornado estranhamente de +dragões de +papel recortado, suspensos por cordeis do travejamento do tecto; +á +menor aragem aquella legião de monstros fabulosos oscillava +em +cadencia, com um rumor secco de folhagem, como tomada de vida +sobrenatural e +grotesca.<br /> + +<br /> + +Antes que escurecesse fui vêr com Sá-tó +a villa: mas bem depressa <span class="pagenum">[131]</span>fugi +ao fedor abominavel das viellas: tudo se +me afigurou ser negro―os casebres, o chão barrento, os +enxurros, os cães +famintos, a populaça abjecta... Recolhi ao albergue―onde +arreeiros mongoes e +crianças piolhosas me miravam com assombro.<br /> + +<br /> + +―Toda esta gente me parece suspeita, +Sá-tó―disse eu, franzindo a testa.<br /> + +<br /> + +―-Tem Vossa Honra razão. É uma ralé! +Mas não ha perigo: eu matei, antes de partirmos, um gallo +negro, e a deusa Kaonine deve estar contente. Póde Vossa +Honra dormir ao abrigo dos maus espiritos... Quer +Vossa Honra o chá?...<br /> + +<br /> + +―Traze, Sá-tó.<br /> + +<br /> + +Bebido o chá, conversámos do <em>grande +plano</em>: na +manhã seguinte eu a levar a alegria á triste +choupana <span class="pagenum">[132]</span>da viuva +de +Ti-Chin-Fú, annunciando-lhe os milhões que lhe +dava, depositados +já em Pekin: depois, de accordo com o Mandarim governador, +fariamos uma copiosa distribuição de arroz pela +populaça: e +á noite illuminações, +danças como n'uma gala publica...<br /> + +<br /> + +―Que te parece, Sá-tó?<br /> + +<br /> + +―Nos labios de Vossa Honra habita a sabedoria de Confucio... Vai ser +grande! Vai ser grande!<br /> + +<br /> + +Como vinha cançado, bem cêdo comecei a bocejar, e +estirei-me sobre o estrado de tijolo aquecido que serve de leito nas +estalagens da China; enrolado na minha pelliça, fiz o signal +da cruz, e adormeci +pensando nos braços brancos da generala, nos seus olhos +verdes de +sereia...<br /> + +<br /> + +Era talvez já meia noite quando <span class="pagenum">[133]</span>despertei +a um rumor lento e +surdo que envolvia o barracão―como de forte vento n'um +arvoredo, ou +uma maresia grossa batendo um paredão. Pela galeria aberta, +o luar +entrava no quarto, um luar triste d'outono asiatico, dando aos +dragões +suspensos do tecto fórmas, semelhanças +chimericas...<br /> + +<br /> + +Ergui-me, já nervoso―quando um vulto, alto e inquieto, +appareceu na facha luminosa do luar...<br /> + +<br /> + +―Sou eu, Vossa Honra!―murmurou a voz apavorada de +Sá-tó.<br /> + +<br /> + +E logo, agachando-se ao pé de mim, contou-me n'um fluxo de +palavras roucas a sua afflicção:―emquanto eu +dormia, +espalhára-se pela villa que um estrangeiro, o <em>Diabo +estrangeiro</em>, chegára com bagagens +carregadas de thesouros... Já desde o começo da +noite elle +tinha entrevisto <span class="pagenum">[134]</span>faces +agudas, d'olho voraz, rondando o +barracão, como chacaes +impacientes... E ordenára logo aos koulis que +entrincheirassem a porta com os +carros das bagagens, formados em semi-circulo á velha +maneira +tartara... Mas pouco a pouco a malta crescera... Agora vinha +d'espreitar por um postigo: e era em roda da estalagem toda a +populaça de +Tien-Hó, rosnando sinistramente... A deusa Kaonine +não se satisfizera com o +sangue do gallo preto!... Além d'isso elle vira á +porta +d'um Pagode uma cabra negra recuar!... A noite sería de +terrores!... E sua mulher, +o osso do seu osso, que estava tão longe, em Pekin!...<br /> + +<br /> + +―E agora, Sá-tó?―perguntei eu.<br /> + +<br /> + +―Agora... Vossa Honra! Agora...<br /> + +<br /> + +Calou-se: e a sua magra figura <span class="pagenum">[135]</span>tremia, +acaçapada como um +cão que se roja sob o açoite.<br /> + +<br /> + +Eu afastei o cobarde, e adiantei-me para a galeria. Em baixo, o muro +fronteiro, coberto d'um alpendre, projectava uma funda sombra. Ahi com +effeito estava uma turba negra apinhada. Ás vezes uma +figura, rastejando, adiantava-se no espaço alumiado, +espreitava, +farejava as carretas, e sentindo a lua sobre a face, recuava vivamente, +fundindo-se +na escuridão: e como o tecto do alpendre era baixo, faiscava +um momento á luz algum ferro de lança +inclinada...<br /> + +<br /> + +―Que querem vossês, canalha?―bradei eu em portuguez.<br /> + +<br /> + +A esta voz estrangeira um grunhido sahiu da treva; immediatamente uma +pedra veio ao meu lado <span class="pagenum">[136]</span>furar +o papel encerado da gelosia; depois uma +flecha silvou, cravou-se por cima da minha cabeça, n'um +barrote...<br /> + +<br /> + +Desci rapidamente á cozinha da estalagem. Os meus koulis, +acocorados sobre os calcanhares, batiam o queixo n'um terror; e os dois +cossacos que me acompanhavam, impassiveis á lareira, +cachimbavam, com +o sabre nú nos joelhos.<br /> + +<br /> + +O velho estalajadeiro d'oculos, uma avó andrajosa que eu +vira no pateo deitando ao ar um papagaio de papel, os arreeiros +mongoes, as +crianças piolhosas, esses tinham desapparecido; +só ficára +um velho, bebedo d'opio, cahido a um canto como um fardo. +Fóra ouvia-se +já a multidão vociferar.<br /> + +<br /> + +Interpellei então Sá-tó, que quasi +<span class="pagenum">[137]</span>desmaiava, +arrimado a uma viga: nós estavamos sem armas; os +dois cossacos, sós, não +podiam repellir o assalto: era necessario pois ir acordar o Mandarim +governador, revelar-lhe que eu era um amigo de Camilloff, um conviva do +principe Tong, intimal-o a que viesse dispersar a turba, manter a lei +santa da hospitalidade!...<br /> + +<br /> + +Mas Sá-tó confessou-me, n'uma voz debil como um +sôpro, que o Governador de certo é quem estava +dirigindo o assalto! Desde as +authoridades até aos mendigos, a fama da minha riqueza, a +legenda das carretas +carregadas d'oiro inflammára todos os appetites!... A +prudencia +ordenava, como um mandamento santo, que abandonassemos parte dos +thesouros, mulas, caixas +de comestiveis...<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[138]</span> ―E ficar aqui, +n'esta aldêa maldita, sem camisas, sem +dinheiro e sem mantimentos?...<br /> + +<br /> + +―Mas com a rica vida, Vossa Honra!<br /> + +<br /> + +Cedi. E ordenei a Sá-tó que fosse +propôr á turba uma copiosa +distribuição de sapeques,―se ella consentisse em +recolher aos seus casebres, e respeitar em nós os hospedes +enviados por +Buddha...<br /> + +<br /> + +Sá-tó subiu á sacada da galeria, a +tremer; e rompeu logo a arengar á malta, bracejando, +atirando as palavras com a violencia d'um +cão que ladra. Eu abrira já uma maleta, e ia-lhe +passando cartuchos, +saccos de sapeques―que elle arremessava aos punhados com um gesto de +semeador... +Em baixo havia por momentos um tumulto furioso ao chover dos metaes; +<span class="pagenum">[139]</span>depois um lento +suspiro de gula satisfeita; e logo um silencio, n'uma +suspensão <em>de quem espera mais</em>...<br /> + +<br /> + +―Mais!―murmurava Sá-tó, voltando-se para mim +ancioso.<br /> + +<br /> + +Eu, indignado, lá lhe dava outros cartuchos, mais +rôlos, mólhos de moedas de meio real enfiadas em +cordeis... Já a maleta +estava vazia. A turba rugia, insaciada.<br /> + +<br /> + +―Mais, Vossa Honra!―supplicou Sá-tó.<br /> + +<br /> + +―Não tenho mais, creatura! O resto está em +Pekin!<br /> + +<br /> + +―Oh Buddha Santo! Perdidos! Perdidos!―chamou +Sá-tó, abatendo-se sobre os joelhos.<br /> + +<br /> + +A populaça, calada, esperava ainda. De repente, uma +ululação selvagem rasgou o ar. E eu senti aquella +massa avida arremessar-se sobre as <span class="pagenum">[140]</span>carretas +que defendiam a porta em +semi-circulo: ao choque todo o madeiramento da <em>Estalagem da +Consolação +terrestre</em> rangeu e oscillou...<br /> + +<br /> + +Corri á varanda. Em baixo era um tropel desesperado em torno +dos carros derrubados: os machados reluziam cahindo sobre a tampa dos +caixotes: o coiro das malas abria-se fendido á faca por +mãos +innumeraveis: no alpendre, os cossacos debatiam-se, aos urros, sob o +cutelo. Apesar da lua, eu via em roda do barracão errarem +tochas, n'uma +dispersão de fagulhas: um alarido rouco elevava-se, fazendo +ao longe uivar os +cães; e de todas as viellas desembocava, corria +populaça, sombras +ligeiras, agitando chuços e foices recurvas...<br /> + +<br /> + +Subitamente, na loja terrea, ouvi o tumulto da turba que a invadia +<span class="pagenum">[141]</span>pelas portas +despedaçadas: de certo me procuravam, suppondo +que eu +teria commigo o melhor do thesouro, pedras preciosas ou oiros... O +terror desvairou-me. Corri a uma grade de bambús para o lado +do +pateo. Demoli-a, saltei sobre uma camada de matto grosso, n'um cheiro +acre de immundicies. O meu poney, preso a uma trave, relinchava, +puxando furiosamente o cabresto: arremessei-me sobre elle, +empolguei-lhe as crinas...<br /> + +<br /> + +N'esse momento, do portão da cozinha arrombada rompia uma +horda com lanternas, lanças, n'um clamor de delirio. O +poney, +espantado, salta um regueiro; uma flecha silva a meu lado; depois um +tijolo bate-me no hombro, outro nos rins, outro na anca do poney, outro +mais grosso rasga-me a orelha! Agarrado desesperadamente <span class="pagenum">[142]</span>ás +crinas, +archejando, com a lingua de fóra, o sangue a gottejar da +orelha, vou +despedido n'uma desfilada furiosa ao longo d'uma lua negra... De +repente vejo diante de +mim a muralha, um bastião, a porta da villa fechada!<br /> + +<br /> + +Então, allucinado, sentindo atraz rugir a turba, abandonado +de todo o soccorro humano―<em>precisei de Deus</em>! +Acreditei n'elle, +gritei-lhe que +me salvasse; e o meu espirito ia tumultuosamente arrebatando, para lhe +offerecer, fragmentos de orações, de +<em>Salvè-Rainhas</em>, que ainda me jaziam no +fundo da memoria... +Voltei-me sobre a anca do potro: d'uma esquina ao longe surgiu um +fogacho de tochas: era a corja!... Larguei +de golpe ao comprido da alta muralha que corria ao meu lado como uma +vasta +fita negra <span class="pagenum">[143]</span>furiosamente +desenrolada: de subito avisto uma brecha, um +boqueirão erriçado d'esgalhos de +sarças, e fóra a planicie que sob a lua parecia +como uma vasta agua dormente! Lancei-me para lá, +desesperadamente, sacudido aos galões do potro... E muito +tempo galopei no descampado.<br /> + +<br /> + +De repente o poney, eu, rolámos com um baque surdo. Era uma +lagôa. Entrou-me pela bocca agua putrida, e os pés +enlaçaram-se-me nas raizes molles dos nenufares... Quando me +ergui, me firmei no +sólo,―vi o poney, correndo, muito longe, como uma sombra, +com os estribos ao vento...<br /> + +<br /> + +Então comecei a caminhar por aquella solidão, +enterrando-me nas terras lodosas, cortando através do matto +espinhoso. O sangue da +orelha ia-me pingando sobre o hombro: á <span class="pagenum">[144]</span>frialdade agreste, o +fato +encharcado regelava-se-me sobre a pelle: e por vezes, na sombra, +parecia-me +vêr luzir olhos de feras.<br /> + +<br /> + +Emfim, encontrei um recinto de pedras soltas onde jazia, sob um arbusto +negro, um d'aquelles montões d'esquifes amarellos que os +chinezes abandonam nos campos, e onde apodrecem corpos. Abati-me sobre +um +caixão, prostrado: mas um cheiro abominavel pesava no ar: e +ao apoiar-me sentia +o viscoso d'um liquido que escorria pelas fendas das +tábuas... Quiz fugir. Mas os joelhos negavam-se, tremiam-me: +e arvores, rochas, hervas +altas, todo o horisonte começou a girar em torno de mim como +um disco muito rapido. Faiscas sanguineas vibravam-me diante dos olhos: +e senti-me como cahindo de muito alto, <span class="pagenum">[145]</span>devagar, +á maneira +d'uma penna que desce...<br /> + +<br /> + +Quando recuperei a consciencia estava estirado n'um banco de pedra, no +pateo d'um vasto edificio semelhante a um convento, que um alto +silencio envolvia. Dois padres lazaristas lavavam-me devagar a orelha. +Um ar fresco circulava; a roldana d'um poço rangia +lentamente; um +sino tocava a matinas. Ergui os olhos, avistei uma fachada branca com +janellinhas gradeadas e uma cruz no topo: então, vendo +n'aquella paz de +claustro catholico como um recanto da patria recuperada, o abrigo e a +consolação, rolaram-me das palpebras duas +lagrimas mudas.<br /> + +<br /> + +<h2>VII</h2> + +<br /> + +<span class="smallcaps">De</span> madrugada, dois +padres lazaristas, dirigindo-se a +Tien-Hó, tinham-me encontrado desmaiado no caminho. E, como +disse o alegre padre Loriot, «era já +tempo»; porque em redor do meu +corpo immovel um negro semi-circulo d'esses grossos <span class="pagenum">[148]</span>e soturnos corvos +da Tartaria +já me estava contemplando com gula...<br /> + +<br /> + +Trouxeram-me sem demora para o convento n'uma padiola,―e grande foi o +regosijo da communidade quando soube que eu era um latino, um +christão e um subdito dos Reis Fidelissimos. O convento +fórma alli o +centro d'um pequeno burgo catholico, apinhado em torno da +maciça +residencia como uma casaria de servos á base d'um castello +feudal. Existe desde +os primeiros missionarios que percorreram a Manchouria. Porque +nós +estamos aqui nos confins da China: para além já +é a +Mongolia, a Terra das Hervas, immenso prado verde-escuro, leziria sem +fim, colorida aqui e além do +vivo das flôres silvestres...<br /> + +<br /> + +Ahi jaz a vasta planicie dos Nomadas. Da minha janella eu via negrejar +<span class="pagenum">[149]</span>os circulos de +tendas cobertas de feltro, ou de pelles de carneiro; e +por vezes assistia á partida d'uma tribu, em filas de longas +caravanas, levando os seus rebanhos para o oeste...<br /> + +<br /> + +O superior lazarista era o excellente padre Giulio. A longa permanencia +entre as raças amarellas tornára-o quasi um +chinez: quando eu o encontrava no claustro com a sua tunica +rôxa, o rabicho +longo, a barba veneravel, agitando devagar um enorme leque―parecia-me +algum +sábio letrado mandarim commentando mentalmente, na paz de um +templo, o Livro sacro de Chú. Era um santo: mas o cheiro +d'alho que +exhalava―afastaria as almas mais doloridas e precisadas de +consolação.<br /> + +<br /> + +Conservo suave a memoria dos dias alli passados! O meu quarto, caiado +de branco, com uma cruz negra, tinha <span class="pagenum">[150]</span>um +recolhimento de cella. Acordava +sempre ao toque de matinas. Em respeito aos velhos missionarios, vinha +ouvir a missa á capella: e enternecia-me, alli, +tão longe da patria catholica, n'aquellas terras mongolicas, +vêr á +clara luz da manhã a casula do padre, com a sua cruz +bordada, curvando-se diante do altar, e +sentir ciciar no fresco silencio―os <em>Dominus vobiscum</em>, +e os <em>Cum +spiritu tuo</em>...<br /> + +<br /> + +De tarde ia á escóla, admirar os pequenos +chinezes declinando <em>Hora, Horoe</em>... E depois do +refeitorio, passeando +no claustro, escutava historias de longiquas missões, de +viagens apostolicas ao +<em>Paiz das Hervagens</em>, as prisões +supportadas, as marchas, os +perigos, +as Chronicas heroicas da Fé...<br /> + +<br /> + +Eu por mim não contei no convento as minhas aventuras +phantasticas: <span class="pagenum">[151]</span>dei-me +como um <em>touriste</em> curioso, +tomando apontamentos +pelo Universo. +E esperando que a minha orelha cicatrizasse, abandonava-me, n'uma +lassidão d'alma, áquella paz de mosteiro...<br /> + +<br /> + +Mas estava decidido a deixar bem depressa a China, esse Imperio +barbaro, que eu odiava agora, prodigiosamente!<br /> + +<br /> + +Quando me punha a pensar que viera desde os confins do Occidente, para +trazer a uma provincia chineza a abundancia dos meus +milhões, e que apenas lá chegára +fôra logo saqueado, +apedrejado, fréchado―enchia-me um rancor surdo, gastava +horas agitando-me pelo quarto, a revolver coisas feras que tentaria +para me vingar do Imperio do Meio!<br /> + +<br /> + +Retirar-me com os meus milhões era a desforra mais pratica, +mais facil! <span class="pagenum">[152]</span>Demais, +a minha idéa de resuscitar +artificialmente, para bem +da China, a personalidade de Ti-Chin-Fú, parecia-me agora +absurda, d'uma +insensatez de sonho. Eu não comprehendia a lingua, nem os +costumes, nem +os ritos, nem as leis, nem os sabios d'aquella raça: que +vinha pois +fazer alli, senão expôr-me, pelo apparato da minha +riqueza, +aos assaltos d'um povo, que, ha quarenta e quatro seculos, é +pirata nos mares e traz +as terras varridas de rapina!...<br /> + +<br /> + +Além d'isso, Ti-Chin-Fú e o seu papagaio +continuavam invisiveis, remontados de certo ao Céo chinez +dos Avós: e +já o aplacamento do remorso visivel diminuira em mim +singularmente o desejo da +expiação...<br /> + +<br /> + +Sem duvida o velho letrado estava fatigado de deixar essas +regiões ineffaveis para se vir estirar pelos meus <span class="pagenum">[153]</span>moveis. +Vira os meus +esforços, o meu desejo de ser util á sua prole, +á sua +provincia, á sua raça―e, satisfeito, +accommodára-se regaladamente para a sua +sésta eterna. Eu nunca mais avistaria a sua pança +amarella!...<br /> + +<br /> + +E então mordia-me o appetite de me achar já +tranquillo e livre, no pacifico gozo do meu oiro, ao Loreto ou no +<em>boulevard</em>, sorvendo o mel ás +flôres da +Civilisação...<br /> + +<br /> + +Mas a viuva de Ti-Chin-Fú, as mimosas senhoras da sua +descendencia, os netos pequeninos?... Iria eu deixal-os barbaramente, +na fome e no frio, +pelas viellas negras de Tien-Hó? Não. Esses +não eram culpados das pedradas que me atirára a +populaça. E eu +christão, asylado n'um convento christão, tendo +á cabeceira da cama o Evangelho, +cercado d'existencias que eram <span class="pagenum">[154]</span>incarnações +de +Caridade―não +podia partir do Imperio sem restituir áquelles que +despojára, a abundancia, +esse conforto honesto que recommenda o Classico da Piedade Filial...<br /> + +<br /> + +Então escrevi a Camilloff. Contava-lhe a minha abjecta fuga, +sob as pedras da turba chineza; o abrigo christão que me +dera a +Missão; o vivaz desejo de partir do Imperio do Meio. +Pedia-lhe que remettesse elle +á viuva de Ti-Chin-Fú os milhões +depositados por +mim em casa do mercador Tsing-Fó, na avenida de Cha-Coua, ao +lado do arco triumphal +de Tong, junto ao templo da deusa Kaonine.<br /> + +<br /> + +O alegre padre Loriot, que ia a Pekin em missão, levou esta +carta, que eu lacrára com o sêllo do convento―uma +cruz +sahindo d'um coração em chammas...<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[155]</span> +Os dias passaram. As primeiras neves alvejaram nas montanhas +septentrionaes da Manchouria: e eu occupava-me a caçar a +gazella pela Terra das Hervas... Horas energicas e fortemente +vívidas, as +d'essas manhãs, quando eu largava á desfilada, no +grande +ar agreste da planicie, entre os monteadores mongolicos que, com um +grito ululado e vibrante, batiam o matagal á +lançada! Por vezes, uma +gazella saltava: e, d'orelha baixa, estirada e fina, partia no fio do +vento... Soltavamos o +falcão que voava sobre ella, d'aza serena, dando-lhe a +espaços +regulares, com toda a força do bico recurvo, uma picada viva +no craneo. E +iamo'l-a abater, por fim, á beira d'alguma agua morta, +coberta de +nenufares... Então os cães negros da Tartaria +amontoavam-se-lhe sobre o ventre, e, com as patas no sangue, iam-lhe <span class="pagenum">[156]</span>a +ponta de dente, desfiando devagar as entranhas...<br /> + +<br /> + +Uma manhã o leigo da portaria avistou emfim o alegre padre +Loriot, galgando á lufa-lufa pelo caminho ingreme do burgo, +de volta +de Pekin, com a sua mochila ao hombro, e uma criancinha nos +braços: +tinha-a encontrado abandonada, nuasinha, morrendo á beira +d'um +caminho: baptisára-a logo n'um regato com o nome de +<em>Bem-Achado</em>: e +alli a trazia, todo enternecido, arquejando de tanto que +estugára o +passo, para dar depressa á creaturinha esfomeada o bom leite +da cabra do +convento...<br /> + +<br /> + +Depois d'abraçar os religiosos, d'enxugar as grossas bagas +de suor, tirou da algibeira dos calções um +enveloppe com o +sello da aguia russa:<br /> + +<br /> + +―É isto que manda o papá Camilloff, <span class="pagenum">[157]</span>amigo +Theodoro. Ficou optimo. E a senhora tambem... Tudo rijo.<br /> + +<br /> + +Corri a um recanto do claustro a lêr as duas folhas de prosa. +Meu bom Camilloff, de calva severa e olho de mocho! Como elle alliava +tão originalmente ao senso fino d'um habil de Chancellaria +as caturrices picarescas de diplomata bufo! A carta dizia assim:<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="signature">«Amigo, hospede, e +carissimo Theodoro,</div> + +<br /> + +<br /> + +«Ás primeiras linhas +da sua carta ficámos consternados! Mas logo as +seguintes nos deram um grato +allivio, por nos certificar que estava +com esses santos padres da +Missão christã... Eu parti para o Yamen +imperial a fazer uma severa +reclamação ao principe Tong, sobre o +escandalo de +Tien-Hó. Sua excellencia <span class="pagenum">[158]</span>mostrou +um jubilo +desordenado! Porque, se +lamenta como particular a offensa, o roubo +e as pedradas que o meu +hospede soffreu, como ministro do Imperio +vê ahi a +dôce opportunidade d'extorquir á villa de +Tien-Hó, em multa, +em castigo da injuria +feita a um estrangeiro, a vantajosa +somma de <em>trezentos +mil +francos</em>, ou, segundo os calculos do nosso +sagaz Meriskoff, <em>cincoenta +e +quatro contos de reis</em> na moeda do +seu bello paiz! É, +como disse Meriskoff, um excellente resultado +para o Erario imperial, e fica +assim a sua orelha copiosamente +vingada... Aqui, +começam a picar os primeiros frios, e já estamos +usando pelles. O bom Meriskoff +lá vai soffrendo do figado, mas a +dôr não +lhe altera o criterio philosophico nem a sábia +verbosidade... Tivemos um +grande desgosto: o lindo cãosinho da boa +Madame <span class="pagenum">[159]</span>Tagarieff, +a esposa do +nosso amado secretario, o adoravel +<em>Tu-tu</em> +desappareceu na +manhã de 15... Fiz, na policia, instancias +urgentes, mas o <em>Tu-tu</em> +não nos foi restituido,―e o sentimento é +tanto maior, quanto +é sabido que a populaça de Pekin aprecia +extremamente estes +cãesinhos, guisados em calda de assucar... +Deu-se aqui um facto +abominavel e de consequencias funestas: a +ministra de França, +essa petulante Madame Grijon, esse <em>galho +sêcco</em> +(como diz o +nosso Meriskoff), no ultimo jantar da legação, +deu, em desprezo de todas as +regras internacionaes, o braço, o seu +descarnado braço, e +a sua direita á mesa a um simples addido +inglez, lord Gordon! Que me +diz a isto? É crivel? É racional? É +destruir a ordem social! O +braço, a direita, a um addido, um +escossez côr de +tijolo, de vidro entalado <span class="pagenum">[160]</span>no +olho, quando havia +presentes todos os +embaixadores, os ministros, e eu! Isto tem +causado, no corpo diplomatico, +uma sensação inenarravel... +Esperamos +instrucções dos nossos governos. Como diz +Meriskoff, oscillando +tristemente a +cabeça―<em>é grave... é muito +grave</em>!―O +que prova (e ninguem o +duvidava) +que lord Gordon é o Benjamim do <em>galho +sêcco</em>. +Que +podridão! Que lodo!... A generala não tem passado +bem, desde a sua partida para +essa +malfadada Tien-Hó; o doutor Pagloff +não lhe percebe o +mal; é uma languidez, um murchar, uma saudosa +indolencia que a conserva +horas e horas immovel sobre o sophá, no +<em>Pavilhão +do +Repouso discreto</em>, com o olhar vago e o labio cheio de +suspiros... Eu não +me illudo: sei perfeitamente o que a mina: é a +desgraçada +doença de bexiga, que lhe veio das más <span class="pagenum">[161]</span>aguas, +quando estivemos na +legação de Madrid... Seja feita a vontade do +Senhor!... Ella pede-me para +lhe mandar <em>un petit bonjour</em>, e +deseja que o meu hospede +apenas chegue a Paris, se fôr a Paris, lhe +remetta pela mala da Embaixada +para S. Petersburgo (d'ahi virá a +Pekin) duas duzias de luvas de +doze botões, numero <em>cinco e tres +quartos</em>, da marca <em>Sol</em>, +dos +armazens do Louvre; assim como os +ultimos romances de Zola, +<span class="smallcaps">Mademoiselle de Maupin</span> +de Gautier, e uma +caixa de frascos de +<em>Opoponax</em>... Esquecia-me dizer-lhe que +mudámos +de padeiro: fornecemo-nos +agora na padaria da Embaixada ingleza: +deixámos a da +Embaixada franceza para não ter +communicações com o +<em>galho +sêcco</em>... Ahi +estão os inconvenientes de não termos aqui na +Embaixada russa uma +padaria―apesar de tantos relatorios, tantas +<span class="pagenum">[162]</span> +reclamações que, sobre esse ponto, tenho feito +para a chancellaria de S. +Petersburgo! Elles sabem +bem que em Pekin não ha padarias, +que cada +legação tem a sua propria, como um elemento +d'installação +e d'influencia. Mas +quê! Na côrte imperial desattendem-se os mais +serios interesses da +civilisação russa!... Creio que é tudo +o que ha de novo em Pekin e +nas +legações. Meriskoff recommenda-se, e +todos d'esta Embaixada; e +tambem o condesinho Arthur, o Zizi da +legação +hespanhola, o <em>Focinho cahido</em>, e o +Lulú; emfim todos; eu +mais que ninguem, que me +assigno com saudade e affeição<br /> + +<br /> + +<div class="signature"><em>«General +Camilloff»</em>.<br /> + +<br /> + +</div> + +<br /> + +«P.S. Em quanto á +viuva e familia de Ti-Chin-Fú, houve um engano: o +astrologo <span class="pagenum">[163]</span>do +templo de Faqua +equivocou-se na interpretação sideral: +não é +realmente em Tien-Hó que reside essa familia... É +ao sul da China, na provincia +de +Cantão. Mas também ha uma familia +Ti-Chin-Fú para +além da Grande +Muralha, quasi na fronteira russa, no districto +de Ka-ó-li. A ambas +morreu o chefe, a ambas assaltou a pobreza... +Portanto, esperando novas +ordens, não levantei os dinheiros da casa +de Tsing-Fó. Esta +recente informação mandou-m'a hoje sua +excellencia o principe Tong, +com uma deliciosa compota de +calombro... Devo annunciar-lhe +que o nosso bom Sá-Tó aqui +appareceu, de volta de +Tien-Hó, com um beiço rachado e leves +contusões no +hombro, tendo apenas salvado da bagagem saqueada uma +lithographia de Nossa Senhora +das Dôres, que, pela inscripção a +tinta, vejo que pertencera a +<span class="pagenum">[164]</span>sua respeitavel +mamã... Os meus +valentes cossacos, esses, +lá ficaram n'uma poça de sangue. Sua +excellencia o principe Tong +condescende em m'os pagar a dez mil +francos cada um, das sommas +extorquidas á villa de Tien-Hó... +Sá-Tó +diz-me que se o meu hospede, +como é natural, recomeçar as suas +viagens através do +imperio em busca dos Ti-Chin-Fú,―elle +considerar-se-hia honrado e +venturoso em o acompanhar, com uma +fidelidade canina e uma +docilidade cossaca...<br /> + +<br /> + +<div class="signature"><em>«Camilloff</em>».</div> + +<br /> + +<br /> + +―Não! nunca!―rugi com furor, amarrotando a carta, +monologando a largas passadas pelo melancolico +claustro.―Não, por Deus ou pelo +Demonio! Ir de novo bater as estradas da China? Jámais! <span class="pagenum">[165]</span>Oh +sorte +grotesca e desastrosa! Deixo os meus regalos ao Loreto, o meu ninho +amoroso de Paris, venho rolado pela vaga enjoadôra de +Marselha a +Chang-Hai, soffro as pulgas das bateiras chinezas, o fedor das viellas, +a poeirada dos caminhos aridos―e para quê? Tinha um plano, +que se erguia +até aos céos, grandioso e ornamentado como um +trophéo: por sobre elle +scintillavam, d'alto a baixo, toda a sorte +d'acções boas: e eis +que o vejo tombar ao chão, peça a +peça, n'uma ruina! Queria +dar o meu nome, os meus milhões, e metade do meu leito +d'oiro a uma senhora Ti-Chin-Fú―e +não m'o permittem os prejuizos sociaes d'uma raça +barbara! Pretendo, +com o botão de crystal de Mandarim, remodelar os destinos da +China, trazer-lhe a prosperidade civil,―e veda-m'o a lei imperial! +Aspiro a derramar <span class="pagenum">[166]</span>uma +esmola sem fim por esta populaça +faminta―e corro o perigo +ingrato de ser decapitado como instigador de rebelliões! +Venho +enriquecer uma villa―e a turba tumultuosa apedreja-me! Ia emfim dar a +abundancia, o conforto que louva Confucio, á +família +Ti-Chin-Fú,―e essa familia some-se, evapora-se como um +fumo, e outras familias +Ti-Chin-Fú surgem, aqui e além, vagamente, ao +sul, a oeste, como +clarões enganadores... E havia d'ir a Cantão, a +Ka-ó-li, expôr a +outra orelha a tijolos brutaes, fugir ainda pelos descampados, agarrado +ás crinas d'um +potro? Jámais!<br /> + +<br /> + +Parei: e de braços erguidos, fallando ás arcadas +do claustro, ás arvores, ao ar silencioso e fino que me +envolvia:<br /> + +<br /> + +―Ti-Chin-Fú!―bradei―Ti-Chin-Fú, para te +aplacar, fiz o que era racional, generoso e logico! Estás +emfim satisfeito, <span class="pagenum">[167]</span>letrado +veneravel, tu, o teu gentil papagaio, a tua pança official? +Falla-me! +Falla-me!...<br /> + +<br /> + +Escutei, olhei: a roldana do poço, áquella hora +do meio dia, rangia devagar, no pateo: sob as amoreiras, ao longo da +arcaria do claustro, seccavam em papel sêda as folhas de +chá da +colheita d'outubro: da porta meio cerrada da aula vinha um susurro +lento de +declinações latinas: era uma paz severa, feita da +simplicidade das +occupações, da honestidade dos estudos, do ar +pastoril d'aquella collina, onde dormia, sob um sol branco d'inverno, o +burgo religioso... E com aquella serenidade ambiente, pareceu-me +receber na alma, de repente, uma +pacificação absoluta!<br /> + +<br /> + +Accendi com os dedos ainda tremulos um charuto, e disse, limpando na +<span class="pagenum">[168]</span>testa uma baga de +suor, esta palavra, resumo d'um destino:<br /> + +<br /> + +―Bem, Ti-Chin-Fú está contente. Fui logo +á cella do excellente padre Giulio. Elle lia o seu Breviario +á janella, debicando +confeitos d'assucar, com o gato do convento no collo.<br /> + +<br /> + +―Reverendissimo, volto á Europa... Algum dos nossos bons +padres vai por acaso em missão, para os lados de +Chang-Hai?...<br /> + +<br /> + +O veneravel superior pôz os seus oculos redondos: e folheando +com uncção um vasto registro em letra chineza, ia +assim murmurando:<br /> + +<br /> + +―Quinto dia da decima lua... Sim, ha o padre Anacleto para Tien-Tzin, +para a novena dos Irmãos da Santa Creche. Duodecima lua, o +padre Sanchez para Tien-Tzin tambem, para a obra do <span class="pagenum">[169]</span>Catecismo aos +Orphãos... Sim, caro hospede, tem companheiros para +Léste...<br /> + +<br /> + +―Ámanhã?<br /> + +<br /> + +―Ámanhã. É dolorosa a +separação n'estes confins do mundo, quando as +almas se comprehendem bem em Jesus... O nosso padre Gutierrez que lhe +faça um bom farnel... Nós já o +amavamos como irmão, Theodoro... Coma um confeito, +são deliciosos... As coisas estão em +feliz repouso quando se acham no seu lugar e elemento natural: o lugar +do +coração do homem é o +coração de Deus: e o seu está n'esse +asylo seguro... Coma um confeito... Que é isso, meu filho, +que é isso?<br /> + +<br /> + +Eu estava collocando sobre o seu Breviario aberto, n'uma pagina do +Evangelho de pobreza, um rôlo de notas do <em>Banco +d'Inglaterra;</em> e balbuciei:<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[170]</span> ―Meu +reverendissimo, para os seus pobres...<br /> + +<br /> + +―Excellente, excellente... O nosso bom Gutierrez que lhe +faça um farnel copioso... <em>Amen</em>, meu +filho ... <em>In Deo +omnia spes</em>!...<br /> + +<br /> + +Ao outro dia, entre o padre Anacleto e o padre Sanchez, montado na mula +branca do convento, desci o burgo, ao repique dos sinos. E ahi vamos +para Hiang-Hiam, villa negra e murada, onde atracam os barcos que +descem a Tien-Tzin. Já as terras ao longo do +Pei-Hó +estavam todas brancas de neve: nas enseadas baixas já a agua +ia gelando: e +embrulhados em pelles de carneiro, em roda do fogareiro, á +pôpa do +barco, os bons padres e eu iamos conversando de trabalhos de +Missionarios, de coisas da China, por +vezes dos interesses do Céo―passando em redor <span class="pagenum">[171]</span>sem cessar o +grosso frasco da genebra...<br /> + +<br /> + +Era Tien-Tzin separei-me d'aquelles santos camaradas. E d'ahi a duas +semanas, por um meio dia de sol tepido, passeava, fumando o meu charuto +e olhando a azafama dos caes d'Hong-Kong, no tombadilho do <em>Java</em> +que +ia levantar ferro para a Europa.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Foi um momento commovente para mim, aquelle em que vi, ás +primeiras voltas do helice, afastar-se a terra da China.<br /> + +<br /> + +Desde que acordára, n'essa manhã, uma +inquietação surda recomeçava a +pesar-me na alma. Agora, punha-me a pensar que viera áquelle +vasto imperio para acalmar pela expiação um +protesto +<span class="pagenum">[172]</span>temeroso da +Consciencia: e por fim, impellido por uma impaciencia +nervosa, ahi partia, sem ter feito mais que deshonrar os bigodes +brancos d'um general heroico, e ter +recebido pedradas pela orelha n'uma villa dos confins da Mongolia.<br /> + +<br /> + +Estranho destino, o meu!...<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Até ao anoitecer estive encostado sombriamente á +borda do paquete, vendo o mar liso, como uma vasta peça de +sêda azul, +dobrar-se aos lados em duas pregas molles: pouco a pouco grandes +estrellas palpitaram na concavidade negra; e o helice na sombra ia +trabalhando em rhythmo. Então, tomado d'uma fadiga molle, +fui errando pelo paquete, +olhando, aqui e além, a bussola alumiada; <span class="pagenum">[173]</span>os +montões de +cabrestantes; as peças da machina, n'uma claridade ardente, +batendo em cadencia; as fagulhas que fugiam do cano, n'um +rôlo de fumaraça negra; os +marinheiros de barba ruiva, immoveis á roda do leme; e as +fórmas dos +pilotos, sobre o pontal, altas e vagas na noite. Na <em>cabine</em> +do +capitão, um inglez de +capacete de cortiça, cercado de damas que bebiam Cognac, ia +tocando +melancolicamente na flauta a aria de <em>Bonnie Dundee</em>... +<br /> + +<br /> + +Eram onze horas quando desci ao meu beliche. As luzes já +estavam apagadas: mas a lua que se erguia ao nivel da agua, redonda e +branca, batia o vidro da <em>cabine</em> com um raio de +claridade: e +então, +a essa meia tinta pallida, lá vi estirada sobre a maca a +figura +pançuda, vestida de sêda amarella, com o seu +papagaio nos braços!<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[174]</span> +Era <em>elle</em>, outra vez!<br /> + +<br /> + +E foi <em>elle</em>, perpetuamente! Foi elle em Singapura +e em +Ceylão. Foi elle erguendo-se dos areaes do deserto ao +passarmos no canal de Suez; adiantando-se á prôa +d'um barco de +provisões quando parámos em Malta; resvalando +sobre as rosadas montanhas da Sicilia; emergindo dos nevoeiros que +cercam o morro de Gibraltar! Quando desembarquei em Lisboa, no caes das +Columnas, a sua figura bojuda enchia todo o arco da +rua Augusta; o seu olho obliquo fixava-me―e os dois olhos pintados do +seu papagaio pareciam fixar-me tambem...<br /> + +<br /> + +<h2>VIII</h2> + +<br /> + +<span class="smallcaps">Então,</span> +certo que não poderia jámais +aplacar Ti-Chin-Fú, toda essa noite no meu quarto ao Loreto, +onde como outr'ora as velas innumeraveis das serpentinas davam aos +damascos tons de sangue fresco, meditei sacudir +de mim, como um adorno de peccado, esses milhões +sobrenaturaes. +<span class="pagenum">[176]</span>E assim me +libertaria talvez d'aquella pança e d'aquelle +papagaio +abominavel!<br /> + +<br /> + +Abandonei o palacete ao Loreto, a existencia de Nababo. Fui, com uma +quinzena coçada, realugar o meu quarto na casa da Madame +Marques: e voltei á Repartição, +d'espinhaço curvo, a implorar os meus vinte mil reis +mensaes, e a minha dôce penna de amanuense!...<br /> + +<br /> + +Mas um soffrimento maior veio amargurar os meus dias. Julgando-me +arruinado,―todos aquelles, que a minha opulencia humilhára, +cobriram-me de offensas, como se alastra de lixo uma estatua derrubada +de principe decahido. Os jornaes, n'um triumpho de ironia, +achincalharam a minha miseria. A aristocracia, que +balbuciára +adulações aos pés do Nababo, ordenava +agora aos seus cocheiros que atropellassem <span class="pagenum">[177]</span>nas +ruas o corpo encolhido +do plumitivo de Secretaría. O clero, que eu +enriquecera, accusava-me de <em>feiticeiro</em>; o povo +atirou-me pedras; e a +Madame Marques, quando eu me queixava humildemente da dureza granitica +dos bifes,―plantava as duas mãos á cinta, e +gritava: +<br /> + +<br /> + +―Ora o enguiço! Então que quer vossê +mais? Aguente! Olha o pelintra!...<br /> + +<br /> + +E, apesar d'esta expiação, o velho +Ti-Chin-Fú lá estava sempre á minha +ilharga, obeso e côr d'óca,―porque os seus +milhões, que jaziam agora estereis e intactos nos Bancos, +ainda de facto eram meus! Desgraçadamente meus!<br /> + +<br /> + +Então, indignado, um dia subitamente reentrei com estrondo +no meu palacete e no meu luxo. N'essa noite, de novo o resplendor das +minhas janellas <span class="pagenum">[178]</span>alumiou +o Loreto: e pelo portão aberto +viram-se +como outr'ora negrejar, nas suas fardas de sêda negra, as +longas filas de +lacaios decorativos.<br /> + +<br /> + +Logo, Lisboa, sem hesitar, se rojou aos meus pés. A Madame +Marques chamou-me, chorando, <em>filho do seu +coração</em>. Os +jornaes deram-me os qualificativos que, de antiga +tradição, pertencem +á Divindade: fui o <em>Omnipotente</em>, fui o <em>Omnisciente</em>! +A +aristocracia beijou-me os dedos como a um Tyranno: e o clero +incensou-me como a um idolo. E o meu desprezo pela Humanidade foi +tão largo,―que se estendeu ao +Deus que a creou.<br /> + +<br /> + +Desde então uma saciedade enervante mantem-me semanas +inteiras n'um sophá, mudo e soturno, pensando na felicidade +do +<em>não-ser</em>...<br /> + +<br /> + +Uma noite, recolhendo só por uma rua deserta, vi diante de +mim o Personagem <span class="pagenum">[179]</span>vestido +de preto com o guarda-chuva debaixo do +braço, o mesmo que no meu quarto feliz da travessa da +Conceição +me fizera, a um <em>ti-li-tin</em> de campainha, herdar +tantos +milhões detestaveis. +Corri para elle, agarrei-me ás abas da sua sobrecasaca +burgueza, +bradei:<br /> + +<br /> + +―Livra-me das minhas riquezas! Resuscita o Mandarim! Restitue-me a paz +da miseria!<br /> + +<br /> + +Elle passou gravemente o seu guarda-chuva para debaixo do outro +braço, e respondeu com bondade:<br /> + +<br /> + +―Não póde ser, meu prezado senhor, +não póde ser...<br /> + +<br /> + +Eu atirei-me aos seus pés n'uma +supplicação abjecta: mas só vi diante +de mim, sob uma luz mortiça de gaz, a fórma magra +de +um cão farejando o lixo.<br /> + +<br /> + +Nunca mais encontrei este individuo.―E agora o mundo parece-me um +<span class="pagenum">[180]</span>immenso +montão de ruinas onde a minha alma solitaria, como +um exilado que erra por entre columnas tombadas, geme, sem +descontinuar...<br /> + +<br /> + +As flôres dos meus aposentos murcham e ninguem as renova: +toda a luz me parece uma tocha: e quando as minhas amantes +véem, na +brancura dos seus penteadores, encostar-se ao meu leito, eu +chóro―como se +avistasse a legião amortalhada das minhas alegrias +defuntas...<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Sinto-me morrer. Tenho o meu testamento feito. N'elle lego os meus +milhões ao Demonio; pertencem-lhe; elle que os reclame e que +os reparta...<br /> + +<br /> + +E a vós, homens, lego-vos apenas, sem commentarios, estas +palavras: «<em>Só <span class="pagenum">[181]</span>sabe +bem o pão +que dia a +dia ganham as nossas +mãos: nunca mates o Mandarim</em>!»<br /> + +<br /> + +E todavia, ao expirar, consola-me prodigiosamente esta idéa: +que do Norte ao Sul e do Oeste a Léste, desde a Grande +Muralha da +Tartaria até ás ondas do Mar Amarello, em todo o +vasto Imperio da China, +nenhum Mandarim ficaria vivo, se tu, tão facilmente como eu, +o +pudesses supprimir e herdar-lhe os milhões, oh leitor, +creatura +improvisada por Deus, obra má de má argilla, meu +semelhante e meu +irmão!<br /> + +<br /> + +<br /> + +<span class="quote">Angers, junho, 1880.</span><br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<div style="text-align: center;"><br /> + +<span class="smallcaps">porto</span>―<span class="smallcaps">typ. de a. j. da silva teixeira</span><br /> + +62, Cancella Velha, 62<br /> + +<br /> + +</div> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +</div> + + + + + + + + +<pre> + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of O Mandarim, by Eça Queirós + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O MANDARIM *** + +***** This file should be named 16384-h.htm or 16384-h.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + http://www.gutenberg.org/1/6/3/8/16384/ + +Produced by Rita Farinha and the Online Distributed +Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was +produced from images generously made available by National +Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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Redistribution is +subject to the trademark license, especially commercial +redistribution. + + + +*** START: FULL LICENSE *** + +THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE +PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK + +To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free +distribution of electronic works, by using or distributing this work +(or any other work associated in any way with the phrase "Project +Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project +Gutenberg-tm License (available with this file or online at +http://gutenberg.org/license). + + +Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm +electronic works + +1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm +electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to +and accept all the terms of this license and intellectual property +(trademark/copyright) agreement. 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at http://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. 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Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + http://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. + + +</pre> + +</body> +</html> diff --git a/16384-h/images/fig1.png b/16384-h/images/fig1.png Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..185d0cd --- /dev/null +++ b/16384-h/images/fig1.png diff --git a/LICENSE.txt b/LICENSE.txt new file mode 100644 index 0000000..6312041 --- /dev/null +++ b/LICENSE.txt @@ -0,0 +1,11 @@ +This eBook, including all associated images, markup, improvements, +metadata, and any other content or labor, has been confirmed to be +in the PUBLIC DOMAIN IN THE UNITED STATES. + +Procedures for determining public domain status are described in +the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org. + +No investigation has been made concerning possible copyrights in +jurisdictions other than the United States. 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