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You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes + Janeiro a Fevereiro de 1877 + +Author: Ramalho Ortigão and Eça de Queiroz + +Release Date: July 6, 2005 [EBook #16218] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK AS FARPAS: CHRONICA MENSAL *** + + + + +Produced by Biblioteca Nacional de Lisboa, Portugal, Cláudia +Ribeiro, Larry Bergey and the Online Distributed +Proofreading Team + + + + + +[Illustration: EÇA DE QUEIROZ--RAMALHO ORTIGÃO--AS FARPAS] + +RAMALHO ORTIGÃO--EÇA DE QUEIROZ + +AS FARPAS + +CHRONICA MENSAL DA POLITICA, DAS LETRAS E DOS COSTUMES + +NOVA SERIE TOMO VIII + +Janeiro a Fevereiro 1877 + + + + + +Ironia, verdadeira liberdade! És tu que me livras da ambição do poder, +da escravidão dos partidos, da veneração da rotina, do pedantismo das +sciencias, da admiração das grandes personagens, das mystificações da +politica, do fanatismo dos reformadores, da superstição d'este grande +Universo, e da adoração de mim mesmo. + +P.J. PROUDHON + + + + +SUMMARIO + +A actual situação politica. Conceituosa parabola das moscas e das +maselas. O partido revolucionario e o partido conservador. A funcção de +um e outro d'estes partidos. Anarchia ou retrocesso. Extincção do +partido revolucionario por falta de idéas. Mancommunação conservadora. +Philosophica historia de uns almocreves e de um pipo de vinho. A +profunda synthese do pipo do Estado.--As inundações. Crise +meteorologica. Theoria da chuva. Os irrigamentos e as cheias. As +civilisações e os rios. As previsões industriaes e economicas. O +regimen das torrentes. A arborisação. Os diques provisorios. As fontes +de Palissy. Crise economica. O Estado e o Inundado. Troca de +correspondencias. Lisboa durante a crise: os salões, os espectaculos, a +imprensa, o parlamento. Intervenção de sua magestade a rainha. A +caridade como elemento de administração. Autopsia do anjo. De como este +não baixou do ceu. Demonstra-se que saiu da arcada do Terreiro do Paço. +A intervenção dos Prelados. As preces para mudar o tempo e os +observatorios para o estudar. Os moinhos do Tibet e as cabaças dos +Kalmuks. A intervenção da colonia portugueza no Brazil. O brazileiro +que parte, e o brazileiro que chega. O patriotismo dos nostalgicos. A +commissão de soccorros.--Um banquete militar. O que se passa dentro dos +craneos sob a pressão das barretinas.--O centenario da Academia das +Sciencias. A tradição academica. A Academia, berço da revolução e da +liberdade. Ferreira Gordo, o abbade Correia da Serra, o padre Antonio +Pereira, o duque de Lafões, academicos e jacobinos.--_O crime do Padre +Amaro_ romance d'Eça de Queiroz. + +A situação politica... + +Mas, perdão--antes de encetarmos este assumpto, uma pequena historia: + +Era uma vez um velho burro. Fora madraço e manhoso. Não conquistára +amigos porque os não merecia. Tinham-o lançado á margem no fim da vida. +Principiou a viver ao acaso, pelos montes. Um dia achava-se defronte de +um vallado, estacado ao sol sobre as suas quatro patas, inerte, immovel, +olhando para um cardo secco com os seus grandes olhos redondos e +encovados em orbitas esqueleticas, pensando nas vicissitudes da vida e +procurando arrancar do seu cerebro, para se consolar, algumas idéas +philosophicas. + +Passou por elle e deteve-se a contemplal-o um joven asno, no viço das +illusões, cheio de amor e de zurros, de alegria e de coices. A vetusta +ossada angulosa do ancião parecia furar-lhe a pelle resequída e aspera. +Um espesso enxame de moscas cobria-lhe as mataduras do lombo e dava-lhe +o aspecto de ter um albardão feito de zumbidos e d'asas sobre um fundo +de missangas pretas e palpitantes,--coisa rabujosa á vista. + +--Sacode esse mosqueiro, disse-lhe o burro novo. Dar-se-ha o caso de +que, á similhança do homem, deixasses tambem tu atrophiar o precioso +musculo que ahi tens na face para por meio d'elle abanares a orelha e +moveres a pelle?... Sacode-te, bestiaga! + +Ao que o lazarento, pausado, retorquiu: + +--Não sabes o que zurras, joven temerario! O destino de quem tem maselas +é que o mosqueiro o cubra. As moscas que tu vês, e de que o meu cerro é +a estalagem com mesa redonda, são moscas fartas, teem a mansidão +abundante dos estomagos cheios. Se eu as sacudisse, viriam outras,--as +famintas, de ferrões gulosos, que zinem como frechas, pousam como +causticos, mordem como furunculos. As que tu vês prestam-me um serviço +impagavel:--livram-me das que podem vir; são o meu xairel benigno e +suave, o meu arnez, a minha couraça. Quando te chegar a idade de seres +pasto de moscas (e breve te soará essa hora porque a mocidade é, como a +herva, uma ephemera transição entre o alfobre da meninice e a palha da +edade madura); quando te chegar o teu dia, lembra-te, asninho +imprudente, d'este conselho amigo de um burro velho, que não aprende +linguas, mas que tem a experiencia que vale tanto como o ouro: Nunca +sacudas mosca desde que creares masela! Teme-te dos papos vasios das +revoadas novas. Papos cheios não só não mordem mas até empacham! +Comprehendeste, burrinho, a philosophia da minha inercia? + +Revertamos agora, como vinhamos dizendo, á situação politica. + +Em toda a sociedade em movimento ha dois unicos partidos: o partido +conservador e o partido revolucionario. + +A funcção do partido revolucionario, qualquer que seja o seu +nome--republicano, socialista, federalista, fourrierista, proudhonista, +positivista, etc.--é transformar a ordem estabelecida, modificando as +condições da civilisação no sentido de um mais rapido progresso. + +Para este fim o partido revolucionario agita constantemente por meio de +idéas novas as opiniões preconcebidas. + +Como, porém, não está ainda definido o programma geral e harmonico da +revolução, como a tendencia progressiva das multidões indisciplinadas se +basea no sentimentalismo esteril ou no phantastico ideal methaphysico +dos phraseadores eloquentes, succede que todo o esforço revolucionario +representa para a sociedade um perigo de desordem, de incoherencia e de +anarchia. + +A funcção do partido conservador é a manutenção da ordem contra todas as +invasões que directa ou indirectamente ameacem a integridade da +organisação existente. Em todas as velhas sociedades os governos são por +essa rasão, os inimigos natos do progresso. A evolução progressiva da +humanidade realisa-se, a despeito d'elles, pela elaboração irresistivel +das idéas fora da esphera official, sob a acção das descobertas da +sciencia ou das suggestões da arte. O mais que fazem os governos é +submetterem-se ás transformações sociaes que a solução de cada novo +problema resolvido pela sciencia impõe á existencia dos povos. Os +governos, portanto, sempre que uma forte effervescencia intellectual não +agita a sociedade e os não abala constantemente na eminencia do seu +posto forçando-os a concessões successivas, tendem ao retrocesso. + +A civilisação não é na orbita politica senão o justo equilibrio das +forças resultantes d'essas duas tendencias: a tendencia retrograda na +ordem, a tendencia anarchica na revolução. + +Em Portugal o que succede? + +A vida intellectual é extremamente debil. A sciencia não tem cultores +desinteressados e ardentes, a acção da arte sobre a aspiração dos +espiritos é nulla. + +O resultado é que os partidos de opposição, não encontrando nos +phenomenos da vida nacional a profunda expressão implacavel de novas +necessidades a que os governos tenham de amoldar-se, acham-se +naturalmente desarmados das grandes rasões que reptam os governos a +progredir ou a abdicar. + +Em taes condições o partido revolucionario dentro da milicia politica, +partido fabricado pelos proprios governos com a corrupção do +suffragio,--sendo uma pura convenção, uma fixão constitucional, uma +expressão rhetorica, sem raizes na consciencia e na vontade +popular,--acabou por desapparecer inteiramente do nosso systema +representativo. Ha muitos annos que a revolução não tem quem a +represente no parlamento portuguez. + +Ha, todavia, uma maioria parlamentar e uma opposição composta de varios +grupos dissidentes. Estes grupos são fragmentos dispersos do unico +partido existente--o partido conservador--fragmentos cuja gravitação +constitue o organismo do poder legislativo. + +Estes partidos, todos conservadores, não tendo principios proprios nem +idéas fundamentaes que os distingam uns dos outros, sendo absolutamente +indifferente para a ordem e para o progresso que governe um d'elles ou +que governe qualquer dos outros, conchavaram-se todos e resolveram de +commum accordo revesarem-se no podler e governarem alternadamente +segundo o lado para que as despesas da rhetorica nos debates ou a força +da corrupção na urna fizesse pesar a balança da regia escolha. Tal é o +espectaculo recreativo que ha vinte annos nos esta dando a representação +nacional. + +Imaginem meia duzia de almocreves sequiosos que acham na estrada um +pipo de vinho. Como nenhum d'elles tem mais direito que os outros a +beber do pipo, combina-se que cada um d'elles ponha a bocca ao espicho e +beba em quanto os pontapés dos outros o não contundirem até o ponto de o +obrigar a largar as mãos da vasilha para as apertar na parte ferida +pelos pontapés applicados pela companhia que espera. É exactamente o que +ha muito tempo tem sido feito pelos partidos portuguezes com relação ao +usofructo do poder que elles acharam na estrada, perdido. + +Chegou finalmente a vez de pôr o pipo á bocca um partido +excepcionalmente valoroso de sede e inconfundivel de fibra. Este partido +não desemboca o pipo por mais que lhe façam. Protestações +escandalisadas, de almocreves, retroam. + +--Este partido abusa! + +--Isto não vale! + +--Isto não é do jogo! + +--Elle esvasia o pipo! + +--Larga o pipo, pipa! + +--Larga o pipo, pimpão! + +--Larga o pipo, ladrão! + +E incitam-se uns aos outros até á ferocidade: + +--Chega-lhe rijo! + +--Mais! que lhe dôa bem! + +--Rebenta-me esse ôdre! + +--Racha-me esse tunel! + +--Ah! cão! + +O partido, porém, continua sempre a beber, e é insensivel a tudo: á dor, +ao insulto, ao chasco, ao improperio, á graça pesada, á insinuação +perfida e á alusão venenosa! + +Em vista de uma tal pertinacia, que nós mesmos somos forçados a taxar de +irregular, os partidos em expectativa do pipo, confederam-se, ferem o +pacto da Granja, constituem-se n'um só partido novo,--n'uma só bocca +para o pipo. Fazem um programma, redigem um manifesto, vão de terra em +terra pedindo ao paiz que intervenha. Precisamente lhes occorreu n'esse +momento que o pipo tem dono! que é do paiz o pipo! + +Instado a intervir pelos pactuantes da Granja, pelos signatarios do +manifesto, pelos auctores do novo programma, pelos oradores dos +_meetings_ revolucionarios, pelos jornaes opposicionistas, o paiz +responde-lhes: + +Lestes a historia do sabio burro lazarento contada pelas _Farpas_? Eu +sou esse burro. Vós sois a revoada das novas moscas pretendendo +expulsar a revoada velha. Ora, moscas por moscas--sendo meu destino que +ellas sempre me cubram e me comam--prefiro as antigas moscas saciadas ás +novas moscas famintas. + +Deixae-me em paz. E notae que eu nem sequer vos abano as orelhas,--que é +para não bolir comigo! + + + * * * * * + + +Nuvens escuras, espessas, parecendo feitas da conjugação erea de +Hymalaias de cinza e de Caucasos de cebo, toldam o céu, descem no espaço +sobre as nossas cabeças, rolam pelos telhados com os idyllios felinos do +mez de janeiro, cáem sobre os candieiros das ruas, espraiam-se pelo +asphalto dos passeios, valsam nas ruas, envolvem os transeuntes em +abraços aquosos que lhes atravessam o paletot, o collete de flanella e +as articulações dos ossos; penetram em rodopio no interior das casas +pelos resquicios das portas e das janellas, e na sua dança macraba as +pardas e humidas filhas do ar cobrem de sofregos beijos molhados e +bolorosos as lombadas dos livros, o liso marfim dos teclados, o marmore +polido das chaminés, os cabellos que se desfrisam e as idéas que se +dissolvem. Ao cabo de pouco tempo chove de toda a parte: chove do céu, +chove das paredes e dos tectos das casas, das portas, da mobilia, dos +castões das bengalas, dos _abat-jours_ dos candieiros, e dos barretes de +dormir. Ha dois violentos temporaes com poucos dias de espaço entre um e +outro. Trasbordam os rios. Inundam-se os campos. Desenraizam-se arvores. +Desmoronam-se casas. Os rebanhos, os instrumentos agricolas, os generos +em deposito nos celleiros, os viaductos e os rails das linhas fereas são +arrebatados pela corrente das aguas. O curso ordinario dos negocios, o +movimento das mercadorias e dos viajantes suspende-se. Alguns dos +habitantes das regiões inundadas ficam na miseria e têem fome. + + * * * * * + +Ha por tanto duas crises: uma crise meteorologica e uma crise economica. + + * * * * * + +Sendo a crise economica um effeito da crise meteorologica, a questão +fundamental no estudo d'essas duas crises é a questão da chuva. + +Esta questão acha-se definida e tem a sua theoria na sciencia. + +Assim como a agua sujeita a uma dada elevação de temperatura se evapora +e se converte em ar, assim o ar sujeito a uma proporcional depressão +athmospherica se transforma e se converte em agua. Os conhecimentos que +já hoje se possuem da physica do globo permittem determinar os +differentes tramites do processo seguido pela natureza para obter os +resultados achados pela observação humana. + +Todo o vento (effeito da rotação da terra) humedecido pela impregnação +aquatica do mar, encontrando na sua passagem um estorvo que o dilate na +atmosphera, transforma-se em chuva, ou transforma-se em neve, segundo o +gráu de arrefecimento, maior ou menor, resultante da altura a que o +eleva no espaço o volume do estorvo interposto na sua corrente. + +Assim se explica o phenomeno da chuva, a existencia da neve nos +pincaros de todas as altas montanhas, e o nascimento dos rios. D'estes, +uns, como o Rhodano, o Rheno, o Danubio, são formados pela opposição das +cordilheiras á corrente regular de certos ventos; outros, como o +Mississipi e o Missouri, nascem do encontro das duas correntes +atmosphericas oppostas, uma que sáe do golpho do Mexico, outra que parte +dos Estados Unidos na direcção da Europa. + +Achando-se determinado que 200 metros de elevação acima do nível do mar +dão 3 gráus de frio, é facil calcular, o frio que deve actuar no ar +elevado ás alturas dos Alpes, dos Pyreneus, do Caucaso, e de descobrir +assim as causas das geleiras, do mesmo modo se descobriu a origem das +chuvas e a do nascimento dos rios. + +Possuida esta simples e clara noção, o homem adquiriu o poder de +intervir no meteoro. Em 14 de novembro de 1854 uma tempestade medonha +caíu sobre as esquadras franceza e ingleza, estacionadas no Mar Negro. +Todos os navios das duas marinhas tiveram avarias desastrosas. Muitas +embarcações de transporte naufragaram. O sr. Leverrier, director do +observatorio de Paris, procedeu então a um inquerito sobre as +perturbações atmosphericas d'esse dia, dirigindo circulares a todos os +meteorographos do mundo. Duzentas e cincoenta respostas de differentes +observatorios provaram que a onda atmospherica qua determinara a +tempestade fôra presentida pelos observadores, e que a catastrophe teria +sido evitada se o telegrapho, que caminha mais depressa do que a +corrente do ar, houvesse feito passar de observatorio em observatorio a +noticia do phenomeno. + +Antigamente faziam-se preces e penitencias para pedir chuva; hoje em dia +a chuva não se pede, manda-se-lhe simplesmente que caia, e ella cáe +precisamente no ponto que se lhe designa. + +Ha poucos annos ainda, no Baixo Egypto, não chovia nunca. Os celleiros +eram construidos ao ar livre, a descoberto, sobre os telhados. Desde +tempos immemoriaes que o vento secco do norte mantinha esse estado de +coisas na referida região. Um dia, porém, a corrente septentrional chega +á Alexandria e encontra uma certa difficuldade em passar com a rapidez +do costume; detem-se um momento, retarda-se um instante: basta isso para +que ella se dilate, para que se eleve no espaço, para que arrefeça na +razão da altura a que subiu e para que, por-consequencia, se converta +em chuva. D'onde viera esta poderosa resistencia á invasão do vento +esteril? De uma revolução geologica na configuração do solo? Do encontro +de um vento opposto? Da influencia calorifica da radiação solar? Não. A +voz de preso dada ao vento norte, o encarceramento d'elle n'uma certa +porção do espaço, a sua condemnação inilludivel a condensar-se e a ser +chuva, fôra simplesmente a obra do homem, que vencera o vento plantando +a arvore. + +As florestas que têem o poder de occasionar as chuvas por meio da sua +interferencia na corrente dos ventos, possuem ainda a propriedade de +lhes regular os effeitos impedindo os excessivos irrigamentos, e as +inundações. + +Além de certos processos de cultura e de arborisação nos cabeços dos +montes e nas encostas das colinas, ha outros meios de impedir os +estragos das cheias,--dando aos rios um regimen torrencial, operando +largos cortes transversaes nos declives do solo para regular a descida +das aguas, construindo tubos de drenagem, etc. + +Quando um dique, como o de Vallada, se rompe por effeito de um +repentino augmento no volume da agua no leito de um rio, ha meios +praticos, prontos, expeditos, de construir diques provisorios. O sr. +Babinet, nos seus estudos ácerca da chuva e do irrigamento da França, +lembra para os casos analogos ao de Vallada a construcção de barreiras +feitas com grandes caixas de ferro fundido similhantes ás que +transportam a agua potavel nas navegações de longo curso. Estas caixas +enchem-se com a mesma agua do rio e sobrepõem-se ou enfileiram-se de +encontro á corrente até formarem um obstaculo de dimensões adquadas ao +volume da agua que se tem por fim represar. + +O mesmo sr. Babinet suggere para o meio preventivo da arborisação o +sabio alvitre, tão moralisador, de organisar regimentos de plantadores +formados de corpos de veteranos, cujas praças encontrariam n'esse +trabalho um suave emprego da sua actividade, que o Estado poderia +utilisar remunerando-a com liberalidade superior á importancia mesquinha +do soldo e proporcional ao serviço prestado por esses cidadãos, até hoje +inuteis, á salubridade e á riqueza publica. + +Por occasião das ultimas inundações em França, das recentes inundações +na Inglaterra, os meios apontados e muitos outros, descobertos pela +sciencia no momento do perigo, em frente da catastrophe, têem sido +objecto dos mais graves estudos por parte do governo, por parte da +imprensa, por parte principalmente das corporações especiaes, dos +meteorologistas, dos engenheiros hydrographos, dos de florestas, dos de +pontes e calçadas, etc. + +Em Portugal deante do facto da inundação espraiada sobre as povoações do +Ribatejo, e das margens do Guadiana, a questão principal, a questão +summa, a questão technica, é posta completamente de parte, ou nem sequer +chega a ser afastada: não concorre no problema, é como se não existisse! + + * * * * * + +Em face do desastre, dos nossos periodicos, do nosso parlamento, dos +nossos proprios estabelecimentos de instrucção, irrompe um só grito +enorme, consternado, lacrimoso, impotente, imbecil:--_Caridade! +Caridade! Caridade!_ + +Parece não se ter unicamente em vista achar um remedio, mas cumprir uma +expiação que minore os castigos do Ceu! + +Um antigo proloquio egypcio dizia: _Chuva em Tebas, desgraça no Egypto_. +A população portugueza não mostra ter da chuva uma comprehensão menos +supersticiosa que a da tradição tebana. Estamos na metaphysica dos +cataclismos incommensuraveis. + +Debalde a meteorologia--com quanto em estado rudimentar, não constituida +ainda em sciencia sobre bases experimentaes e com processos +deductivos,--nos annuncia, ainda assim, que não ha nos phenomenos do ar +aberrações extraordinarias, inaccessiveis á previsão, mas sim +uniformidades periodicas de successão, as quaes o estudo das ondas +atmosphericas e da acção magnetica do globo, estudo dirigido +harmonicamente em uma cinta de observatorios que cinja +ininterrompidamente o globo, chegará por certo a poder um dia +regulamentar systematicamente. Definir-se-ha o sentido scientifico do +sonho symbolico das vaccas magras e das vaccas gordas, demonstrando-se +como aos annos de estiagem e de fome succedem annos compensadores de +irrigação e de abundancia. + +Debalde a historia nos mostra que foi das inundações dos grandes rios +que saiu a iniciação dos grandes progressos humanos; que foi das +inundações do Nilo que procedeu a civilisação do Egypto; das inundações +do Hoang-Ho que procedeu a civilisação da China; das inundações do +Euphrates, que procedeu a civilisação da Caldea, da Babilonia e da +Syria. Povos na infancia, desprovidos das lições da experiencia, +desarmados dos instrumentos da analyse moderna, souberam fundar a sua +vida historica na previsão industrial e na previsão economica das cheias +dos seus rios. + +Nós, portuguezes, em pleno seculo XIX, na posse dos mais importantes +segredos da mechanica, da astronomia, da physica, da chimica, nós, +filhos de Kepler, de Galileu, de Newton e de Francklin, nós, +contemporaneos de Mayer, de Helmboltz, de Virchow, de Haeckel, de +Humboldt, e de Wourtz, de Ampere, de Leverrier, nós, não sabemos tirar +das inundações successivas de um rio que vem de annos a annos, +periodicamente, contra nossa vontade, fertilisar os nossos campos, +nenhuma das lições que a experiencia devia suggerir-nos para regularmos +e utilisarmos em nosso proveito a acção violenta d'esse phenomeno! + +Ha perto de trezentos annos que um velho naturalista, um modesto +oleiro, um simples, um santo, Bernardo Palissy, ensinou a construir as +fontes artificiaes, fazendo passar as aguas da chuva atravez de um +pequeno trato de terreno arborisado sobre um declive de cimento +argiloso, terminando n'um muro de supporte que se corta no ponto em que +se colloca a fonte e onde se deseja que a chuva, armazenada no inverno +entre as raizes do pomar plantado na encosta de subsolo sedimentado, +venha a correr no verão em bica de agua mineralisada e limpida. Ha +trezentos annos que isto se ensinou. Em Portugal, onde a chuva +torrencial é um facto de quasi todos os invernos, onde a falta de agua +potavel é um facto de quasi todos os verões, ainda ninguem aprendeu a +construir a fonte de Palissy! + +Em Lisboa cairam alguns muros e desabaram algumas casas. Se um ligeiro +abalo de terra se tivesse seguido ás grandes chuvas é natural que muitos +outros predios aluissem, porque a grave questão das edificações em +Lisboa está absolutamente despresada e abandonada á rotina do velho +systema adoptado pelo marquez de Pombal. Ora esse systema, aliás +excellente no tempo da reedificação subsequente ao terremoto, é hoje +imperfeito e perigoso. A canalisação da agua e as chaminés dos fogões de +sala vieram modernamente alterar os dados do problema resolvido pela +sabia administração pombalina. Os andaimes de madeira geralmente +adoptados para sustentar os soalhos e os tectos ou apodrecem rapidamente +ao contacto dos canos da agua que envolvem os predios ou se carbonisam +por effeito do calor que lhes communicam os tubos das chaminés. A +elasticidade que se tem em vista obter para evitar os desabamentos +procedentes dos terremotos, substituindo os madeiramentos pela pedra, só +poderia conseguir-se, sem perigo do apodrecimento ou da carbonisação, +empregando nas construcções modernas o ferro em vez do pau. Esta +modificação tão facil, tão economica, tão urgentemente exigida nos novos +systemas de edificar, o nosso desleixo nacional não nol-a tem deixado +ensaiar. De modo que a mesma previsão do perigo discorrida pelo unico +homem que acordou em Portugal por occasião do grande tremor de terra com +que á natureza benigna approuve tentar acordar-nos, essa mesma a nossa +indolencia e a nossa incuria conseguiu converter dentro de poucos annos +em mais uma causa de destruição e de aniquilamento! + +Do regimen torrencial dos rios, da arborisação das montanhas, dos côrtes +transversaes das vertentes, da construcção dos tubos de drenagem, das +applicações da draga, dos diques moveis organisados por meio das grandes +caixas de ferro fundido, caixas que boiam na agua em quanto vasias e que +um pequeno vapor munido do um cabo de reboque poderia conduzir aos +centos sobre o Tejo para os pontos da margem que conviesse resguardar +pelo pequeno espaço de tempo necessario para evitar o perigo, quasi +momentaneo, das inundações, do emprego finalmente de qualquer dos muitos +meios conhecidos para dominar as cheias ou para utilizar as chuvas, +ninguem se occupa--nem o governo que assiste ao espectaculo commodamente +sentado nos seus _fauteuils de orchestre_ e applica á marcha dos +successos o seu binoculo de dilettanti correcto, imperturbavel, nem o +parlamento, nem a imprensa, nem finalmente o paiz! + + * * * * * + +A crise economica não nos parece ter sido objecto de cuidados mais +serios do que aquelles que cercaram a questão hydraulica. Ou é certo ou +não é que a inundação do Tejo e os temporaes que concorreram com ella +destruíram as casas, devastaram os campos, reduziram povoações inteiras +á miseria e á fome. Se isto é uma pura invenção dos _reporters_ +sentimentaes, o diligente esforço humanitario empregado para arrancar da +caridade o remedio supremo do grande mal é uma simples ostentação +insensata e ridicula. Se são verdadeiras as informações que os jornaes +vagamente nos transmittem das desgraças provenientes da inundação do +Tejo e do Guadiana, n'esse caso a questão não se resolve pela caridade +particular mas sim pela assistencia publica. + +Porque--reflictamos um momento--ou existe esse conjuncto harmonico de +instituições solidarias e responsaveis chamado o Estado, ou não existe. + +Se não existe, em nome de que principio nos estão aqui a impôr o serviço +militar, o exercito, as barreiras, as alfandegas, o funccionalismo e a +lista civil? + +Se o Estado existe, o que é para elle o _lnundado?_ O _Inundado_ é o +productor e é o contribuinte. Agricultando o seu campo, creando o +cavallo, engordando o boi, creando o porco, tosquiando a ovelha, +pisando a azeitona, podando a cepa, descaseando o sobreiro, o Inundado +desde tempos immemoraveis que não faz mais do que estas duas coisas: +produz e paga. + +Nós outros, habitantes do Chiado, assignantes de S. Carlos, socios do +Gremio e do Club, frequentadores do Martinho e do Passeio Publico, nós, +republicanos, regeneradores ou granjolas, commendadores de Christo e +mesarios da confraria das Chagas, nós outros não produzimos e por +conseguinte, em rigor, tambem não pagamos. + +Funcionnerios publicos, capitalistas, banqueiros, ministros, oradores, +poetas lyricos, jogadores na bolsa, proprietarios de predios, vendedores +de bilhetes de loteria, consumidores insaciaveis de charutos, de copos +de cerveja, de dobrada com hervilhas e de bolos de especie,--nós, +francamente, não produzimos coisa nenhuma qae signifique dinheiro, isto +é, trabalho crystalisado, obra, ou, por outra, valor. Somos apenas--mais +ou menos legitimamente--os usufrutuarios, os administradores officiosos +ou officiaes do dinheiro dos outros. + +Portanto, como acima dissemos, nóa outros, como não produzimos, em +rigor tambem não pagamos. Aquillo que alguns suppomos pagar é apenas uma +parte que se nos deduz n'aquillo que recebemos. Quem em ultima analyse +vem a pagar é unica e simplesmente o Inundado, queremos dizer o +productor, o que planta o trigo, o bacelo, a oliveira e o sobro, o que +cega a cevada e apanha a bolota, o que carda a ovelha, cria o boi, o +cavallo, o porco e o carneiro, o que dá a cortiça, o mel, a cebola, o +pão, o vinho, o azeite, o sal, o figo, a amendoa e as laranjas. + +É elle, o Inundado, quem até hoje tem pago o subsidio de S. Carlos, as +carruagens dos ministros, os cavallos dos correios de secretaria, as +purpuras dos nossos reis, as _toilettes_ das nossas dançarinas, os +penachos do nosso exercito, a campainha e o copo d'agua dos nossos +parlamentos, finalmente toda a despeza de administração, de pompa, de +luxo e de força, cujo conjuncto constitue a coisa chamada o Estado. + +Como foi que o Estado resolveu o Inundado a pagar-lhe as suas contas? O +Estado resolveu-o fazendo-lhe o seguinte discurso: + +Inundado! Você trabalha como um boi de nora, o que o não impede de ser +um infeliz e um estupido. Eu sou o Estado. Proponho-me dar-lhe a +felicidade material, intellectual e moral, cujos elementos lhe faltam, e +que v. não sabe nem póde constituir sem mim. Você não sabe lêr nem +escrever, você não sabe trabalhar, não sabe prevêr, não sabe economisar. +Você não nem a escola rural, nem a biblioteca rural, nem a policia +rural, nem o banco rural. Você não tem a granja modelo que lhe ensine os +novos processos agricolas e lhe empreste as grandes machinas de +trabalho. Você não tem arborisação nos seus montes nem canalisação nos +seus rios. Para o dotar com todos esses instrumentos de aperfeiçoamento +e de prosperidade, arranjei-lhe eu um systema, que se chama o systema +monarchico-representativo, com uma carta, um rei, e doze homens, sendo +seis ministros e seis correios a cavallo, um parlamento, composto de +duas camaras, uma electiva e outra hereditaria. Quer você ou não quer a +civilisação? Se a quer, aceite o meu systema e eleja um deputado que vá +á minha camara electiva pedir por boca em seu nome tudo o que você +appeteça. Em troca d'este enorme serviço que eu lhe presto ha de você +resignar-se a pagar-me um imposto annual, que eu cá mandarei cobrar pelo +escrivão de fazenda, e cuja importancia applicarei a regalal-o e a +divertil-o summamente com um exercito, uma côrte, um sceptro, varias +duzias de repartições publicas, um theatro, um _Diario das Camaras_, um +arsenal, uma cordoaria, uma imprensa, etc., etc. + +O Inundado começou desde então a pagar e o estado começou a dispender. +Ha perto de cincoenta annos que dura esta troca de serviços. O Inundado, +porém, ainda até hoje não pôde obter nem a escola pratica, nem a +bibliotheca, nem a granja, nem os novos instrumentos agricolas, nem as +grandes machinas para a lavoura a vapor, nem a arborisação, nem os +trabalhos hydraulicos no rio. + +Um bello dia, um temporal rebenta, as aguas das chuvas, sem florestas +que as espongem, sem valas que sangrem a torrente, desabam de chofre no +rio, este trasborda por cima de velhos diques em ruina, alaga as +povoações, invade as casas, e deixa o Inundado entregue á nudez, á +desolação e á fome. + +O Inundado pede então a alguem que em seu nome exponha ao Estado a +situação em que elle se acha: + + * * * * * + +Excellentissimo Estado e meu amigo.--Ha cincoenta annos que para aqui me +acho, tendo pago sempre a v. ex.'a quantia que combinámos quando v. +ex.'a fez comigo o contracto de eu lhe mandar o imposto para Lisboa e de +v. ex.'a me mandar para aqui a civilisação. Até á data d'esta nada +recebi. + +Os deputados que para ahi tenho expedido á custa de muita intriga, de +muito dinheiro, de muito copo de vinho e de bastantes bordoadas +distribuidas com as listas á bocca da urna, nada remetteram para cá +senão discursos cheios de exclamações e de erros de grammatica. Graças +aos effeitos de quarenta annos de eloquencia sobre os trabalhos da terra +e sobre as obras do rio, este cresceu repentinamente com as ultimas +chuvas, invadiu-me a casa e levou-me tudo: moveis, roupas, generos, +ferramentas. + +Acho-me na derradeira miseria. + +Antigamente, antes do contrato que v. ex.'a fez comigo e a que já +alludi, o dinheiro que eu ganhava, em vez de o mandar para Lisboa, +entregava-o aqui assim ao morgado, ao capitão-mór, e ao convento. Mas o +morgado e o capitão-mór, se por um lado me arrancavam a pelle como v. +ex.'a hoje faz, por outro lado eram meus amigos. Eram meus compadres, +padrinhos dos meus filhos; davam-lhes as brôas e as amendoas pelas +festas do anno, esperavam pelas rendas, punham os varapaus argolados dos +seus moços e os d'elles proprios ao serviço da nossa causa, quebravam +todos os ossos do corpo aos corregedores, aos alcaides, aos portageiros +e aos almotacés, quando estes se faziam finos, matavam-nos de quando em +quando a creação ou davam-nos chicotadas quando estavam bebados, mas em +seu juizo eram bons homens e tinham sempre as portas e os braços abertos +para nos acudirem, para nos protegerem e para nos ajudarem. Os frades +resavam,--o que, se não nos fazia bem, tambem nos não fazia mal; e esta +é a differença que distingue os frades dos seus successores, os +deputados: o frade resava, os deputados intrigam. Além d'isso, os +frades, se diziam asneiras, diziam as pelo menos em latim, o que sempre +acho que lhes custaria mais do que dizel-as em portuguez rasteiro e +agallegado como me dizem que os deputados fazem. Finalmente os frades, +se de ordinario viviam á nossa custa, tambem nas occasiões de crise nos +permittiam viver á custa d'elles, e o caldo da portaria era uma +restituição. + +Quem até hoje não tem restituido a importancia de um vintem nem em +dinheiro, nem em caldo, nem em presentes, nem em favores de nenhuma +especie é v. ex.'a, meu nobre e illustre senhor. + +Tudo quanto tenho pago a v. ex.'a a titulo de imposto, v. ex.'a o tem +gasto na verba recreios: exercito com as suas revistas e as suas +paradas; corpo diplomatico; côrte; gratificações aos doze homens que +representam o governo trotando sobre as pilecas de uns atraz das tipoias +dos outros; governadores civis e secretarios geraes; desembargadores +para Gôa e juizes para os Açores; repartições publicas; arsenaes; +imprensa nacional; fabrica das cordas; etc. + +Portanto, achando-me eu hoje sem real em consequencia de uma desgraça de +que v. ex.'a tem a principal culpa, quer-me parecer que não serei +desarrazoado pedindo-lhe o favor de me abonar para as minhas +necessidades mais urgentes uma pequenissima parte das sommas com que eu +ha cincoenta annos tenho estado a custear uma galhofa para a qual nem +sequer ao menos me teem convidado, + +D'este que é + +De v. ex.'a + +Humilde subdito e servo + +_O Inundado._ + +A resposta do Estado a estas argumentações e a estas instancias é de tal +modo recreativa, que pareceria inventada, se a sua authenticidade não +fosse reconhecida, como é, de todo o mundo. + +O Estado respondeu: + +Meu caro Inundado.--A tua estimada carta veiu encontrar-me em uma +situação bem critica para te poder servir, como desejava. + +Acho-me a braços com a resposta ao discurso da corôa, com a apparição +dos granjolas e com a segarrega do Barros e Cunha. Falta-me tempo para +me occupar de ti. + +Pedi a sua magestade a Rainha para te abrir uma subscripção. A rainha +acceitou gostosa esta incumbencia. Vieram a Palacio todos os banqueiros +e todos os capitalistas da cidade. Nomearam-se commissões de homens e +commissões de senhoras para promover bazares de prendas, concertos de +amadores e recitas de curiosos em teu beneficio. + +Dizes-me que não tens nada de comer. É pouco. Todavia espero que, com +alguma economia, possas d'isso mesmo tirar alguns jantares, ainda que +simples, com que te alimentes durante este mez e parte do que vem. Sê +sobrio. Um bom caldo, um peixe, um assado, um prato de legumes e meia +garrafa de vinho é quanto te deve bastar. Como não tens nada, resigna-te +um pouco e abstem-te de champagne e de faisões dourados. Perdeste a +casa, a mobilia e o fato. Vae para o hotel, enrola-te na tua robe de +chambre e não saias por estes dias. Conserva-te no teu quarto, ao fogão, +toma grogs e lê romances. Reveste-te de paciencia, já que não podes +revestir-te de pano piloto, e espera. + +Tudo está preparado e em via de execução para te acudir. Eduardo Coelho +e Rio de Carvalho escrevem o hymno e estão no segundo moteto. O nosso +Luiz de Campos prepara versos. Prepararam egualmente versos o nosso +Thomaz Ribeiro, o nosso Pinheiro Chagas, o nosso Fernando Caldeira, o +nosso Forte Gato, e outros. + +É tal o movimento poetico e o consumo de rimas que escaceam já os +consoantes para _rainha_; manda-me pelo telegrapho os que ahi tiveres +disponiveis e mais proprios do alto estylo do que _tainha, morrinha, +doninha, carapinha, picoinha, espinha, ventoinha, gallinha e mezinha_. +Manda tambem para _Pia_ os que poderes obter, menos os que pareça +conterem allusões irreverentes como _enguia, folia, tosquia, letria, +azia, mania_ e _bacia_. + +Cada um ajusta ao pé o patim da caridade e guina para seu lado em +arabescos cheios de phantasia e de elegancia: está-se n'um _skating +rink_ de beneficencia para te accudir, meu grande maganão. + +Além dos que fazem versos e dos que fazem hymnos, ha sujeitos a quem os +teus revezes--tão lastimados elles são!--têem feito espigar mazurkas e +rebentar polkas... de pura dôr. + +Entre as modistas tem havido largas discussões para se decidir se a +caridade se deve fazer com decote ou com vestido afogado. Para os actos +de beneficencia diurna têem-se adoptado geralmente os vestidos de meia +caridade, de veludo ou casimira, abotoados. Para os rasgos de +beneficencia nocturna as _toilettes_ são sempre de grande-caridade, isto +é: decotes quadrados guarnecidos de renda de Bruxellas, toda a cauda, +luvas de dez botões, e diamantes. + +É indiscriptivel a animação ferverosa que reina em todos os salões para +se tratar de ti. Triplicaram as _soirées_ n'este inverno e dança-se +todas as noites com o expresso fim de te favorecer. Tocam-se os +lanceiros e fazem-se discursos para te obsequiar. + +--Elle geme nas vascas da mais horrorosa agonia!... Chaine anglaise, +minha senhora! + +--Mas nós havemos de arrancal-o das fauces da miseria... Sirva-me um +gelado! + +--Arrancal-o-hemos, ainda que seja a ferros!... De fructa ou de leite, +minha senhora? + +--Salvemol-o vivo ou morto!... De leite! + +Ás duas horas ceia, volante ou de bufete, serviço quente e frio, menu de +Baltresquí. + +Um telegramma que chega:--O Inundado está com agua pela cinta. + +Um sujeito fugindo com um perú assado:--Vou levar-lhe uma boia! + +Uma menina gritando: + +--Não! Não! não o devo consentir! não consentirei jámais que o coração +generoso d'aquelle que me deu o ser se sacrifique assim, principalmente +por um inundado que só está em perigo--da cinta para baixo! Accudam ao +papá! Subtraiam-lhe essa boia! Subtraiam-lh'a, que lhe vae fazer mal: +elle já comeu uma! + +De rasgos d'estes poderia citar-te centenas. + +Restos de velhas edições de livros, de polkas, de almanacks, que o +consumo do publico se recusou a tragar e que jaziam desde tempos remotos +nos archivos de familia dos respectivos autores, acabam de te ser +coasagrados e cáem sobre as subscripções abertas para te proteger como +bençãos dos genios incomprehendidos e olvidados. + +A mesma infancia estudiosa abre nas aulas de instrucção primaria +subscripções para te acudir, e meninos, que ainda não conseguiram +penetrar no _quadro de honra_ como sufficientemente fortes em leitura, +figuram nas resenhas dos jornaes como bemfeitores dos homens. + +Não sei realmente, querido Inundado, como poderás agradecer-nos tão +reiterados e tão grandes beneficios! Como não sabes fazer mais nada, +espero ao menos quo rezes por nós. Compenetra-te bem de quanto nos +deves, e não te esqueças nunca, em primeiro logar de nos pagar as +decimas, e em segumdo de nos encommendares a Deus em todas as tuas +orações de manhã e de tarde para que o Altissimo vele constantemente +pelos nossos preciosos e divertidos dias e nos dilate a vida pelos mais +longos annos, como desejas e has mister. + +Não te assustes, por quem és, com esse passageiro incidente da agua pela +cinta. Mantem-te em uma attitude serena e firme. As cheias bolindo-se +com ellas ainda enchem mais. Ao passo que, abandonadas a si mesmas, as +cheias aborrecem-se e esvasiam. Por tanto deixa obrar a natureza. Logo +que o tempo enxugue e os terrenos sequem, socega que irei ver-te. Podes +desde já preparar a foguetada, o vivorio, e o publico regosijo, para +receberes quem é devéras, + +Teu amo e protector + +_O Estado_. + +_P. S._ O bom amigo Luiz de Campos recommenda-se-te muito e manda +perguntar-te como gostas mais da caridade, se escripta á latina com _c +a_, ou á grega com _c h a_. + + * * * * * + +Diz-se geralmente--e parece-nos util fixar este boato como um symptoma da +epoca--que sua magestade a rainha fôra aconselhada e guiada em todos os +tramites da sua intervenção a favor do Inundado por um personagem já +hoje eminentemente poderoso, mas ao qual os recentes conselhos a sua +magestade vão dar um novo grau de importancia culminante e unica na +governação publica. Será perfeitamente legitima essa importancia. Se +effectivamente houve um homem sufficientemente sagaz para se conservar +na sombra e para suggerir a sua magestade a rainha a idéa profunda de +apparecer ella, unica e exclusivamente, a debellar unma catastrophe +publica, esse homem fez aos partidos conservadores em Portugal um +servigo incomparavel e deu uma prova de pericia e de habilidade que +nunca se egualou e que se não póde exceder. + +Como se sabe, os partidos conservadores não têem idéas, não podem e não +devem tel-as; os que por excepção as produzem commettem um erro fatal e +são victimas do seu proprio acto. Em todo o _statu quo_ toda a idéa nova +é um rombo. Quem no poder tem idéas, afunde-o. Nos regimens +conservadores, como o que vigora em Portugal desde muitos annos, as +idéas são erupções revolucionarias extranhas á acção governativa. A +missão dos que governam não é lançar na circulação essas idéas, mas sim +e unicamente vigiar o systema, como se vigia a couraça de um monitor em +batalha naval, e sempre que uma idéa penetre, rolhar o furo e +disciplinar em seguida o elemento novo introduzido a bordo pelo +projectil inimigo. + +Aos governos conservadores não se pedem por conseguinte idéas: pedem-se +expedientes. Expedientes para quê? Para conservar. Como? Por todos os +meios que produzam este resultado:--a consolidação do que está. + +É de dentro d'esta theoria, que encerra toda a sciencia de governar, que +nós dizemos: os conselhos a sua magestade a rainha, se alguem +effectivamente lh'os deu (cremos que sim e diremos já porque) são o acto +mais sabio, porque esse acto faz recair no assumpto o expediente mais +adequado e mais proficuo. + +Se o governo procurasse directamente estudar e resolver o problema da +inundação, que succederia? A opposição contraditava-o. Na imprensa e na +camara os partidos dissidentes discutiriam as medidas ministeriaes, +controvertel-as-hiam, impugnal-as-hiam com argumentos, com sarcasmos, +com insultos. Quem sabe se o governo assim batido tenazmente de bombordo +e estibordo não acabaria por metter agua, iniciando um simulacro de +alguma coisa parecida ainda que remotamente, com uma idéa?! + +Que aconteceu, porém, em vez d'isso? + +Sua magestade a rainha, disse-se, toma a iniciativa de todos os +soccorros ás victimas da inundação. E sobre esta noticia publicada em +grandes letras nos jornaes da manhã, o governo foi para a camara, cruzou +os braços e esperou corajosamente que a representação nacional se +manifestasse. Então a opposição em peso, composta dos srs. Barros e +Cunha, Osorio de Vasconcellos e Pinheiro Chagas, pediu a palavra pela +bocca dos seus oradores. + +O sr. Osorio de Vasconcellos disse:--«Partiu de alto a iniciativa; +partiu de uma illustre senhora, de sua magestade a rainha. Pois +congratulemo-nos com o paiz inteiro; congratulemo-nos com este +sentimento homogeneo de caridade manifestado por todos os cidadãos sem +distincção de classe e que veio em allivio e amparo da miseria, que é +geral _(apoiados)_ do soffrimento que é grande; das amarguras que são +immensas... O nosso paiz foi sempre reconhecido pelos impulsos da +caridade... Se porventura do alto do Golgotha o Divino Mestre, etc., +etc.» + +O sr. Barros e Cunha:--«Mando para a mesa a seguinte proposta que espero +seja desde já votada por acclamação: A camara prestando a caridosa +iniciativa de que sua magestade a rainha houve por bem usar em beneficio +das victimas das inundações a homenagem que lhe deve em nome do povo que +representa, resolve que este voto seja lançado na acta das suas sessões, +e que uma grande deputação deponha aos pés da augusta princeza o tributo +do seu reconhecimento.» + +O sr. Pinheiro Chagas, (fallando comsigo mesmo)--«Trago tambem aqui uma +proposta da mensagem a sua magestade, feita com tanto patriotismo como a +de Barros e Cunha e com mais grammatica. Visto, porém, que a camara +approvou a d'elle, vou pôr a minha em verso e levo-a para o Gymnasio. +Tenho concluido.» + +E na camara dos srs. deputados, onde o governo poderia ter sido +violentamente e perigosamente accusado pela sua cumplicidade nos +effeitos da inundação, os unicos tres deputados da opposição que n'este +dia se achavam na sala não tiveram voz senão para louvar a caridade, +para citar o Golgotha e para convidar uma grande commissão a ir depôr +nos degraus do solio os testemunhos mais humildes do reconhecimento +popular! + +A imprensa toda, unanimemente, confessou que sua magestade a rainha era +indubitavelmente um anjo, ao qual todos os noticiaristas deviam +permittir-se a liberdade de mexer um pouco nas azas em signal de +gratidão. + +Depois da imprensa e da camara dos deputados vieram as corporações todas +com o seu obulo e o seu communicado aos jornaes. Os soldados, os +empregados das repartições publicas, os carpinteiros, os serralheiros, +os cocheiros, etc. collocaram a sua prosa apologetica sobre os voadouros +angelicaes da santa princeza: versos, hymnos, valsas brilhantes, +_speechs_, mensagens, missivas particulares, desenhos á penna, vivas, +bordados a cabello e a missanga, hurrahs explosivos, tropheus +emblematicos e pratos montados com figuras allegoricas, tudo concorreu +n'esta immensa apotheose. + +E, se, depois de tudo isto, o dique de Vallada ficou no estado em que +anteriormente estava, o throno dos nossos reis, pelo menos, acha-se mais +firme que nunca no amor dos novos. + +Confessamos, pois, em vista de todos os factos, que o expediente de +resolver a crise aconselhando sua magestade a rainha a intervir pela +caridada revela o politico mais habil, o homem de estado mais profundo +que o paiz podia desejar na sua situação presente. + + * * * * * + +O que nos leva a admittir que sua magestade foi aconselhada por um +promotor das conveniencias politicas e não guiada por impulsos +expontaneos é o exame das pequenas circumstancias que acompanharam a +intervenção da Corôa e nas quaes se revela a mão burocratica do +conselheiro de estado, mais habituado a manejar algarismos e a redigir +programmas do que a imitar a graça engenhosa, a poetica delicadeza, o +fino primor, o tacto subtil, exclusivamente feminino, que assignala os +actos nativos de um coração de mulher. N'esses actos, quando legitimos e +authenticos, ha uma especie de vinco mimoso, de perfume ideal, que os +laboratorios officiaes não imitam senão por meio de falsificações +baratas e reles. + +Por este lado, que já não é o lado politico mas sim o lado esthetico, o +lado artistico, por este lado o vosso anjo da caridade, o anjo que vós, +meus senhores, puzestes no vosso andor e passeastes em procissão de +popularidade pelo paiz inteiro, tem os defeitos das ingenuas nas +companhias de amadores dramaticos em que só representam homens: tem os +pés chatos, a cinta grossa, e uma rouca voz de falsete, fingida e +miseravel. + +Por baixo das candidas vestes do vosso anjo percebem-se os contornos +grossos e rijos do um forte modelo masculino. Reparando-se um pouco na +alva pennugem immaculada das brancas azas em que o sr. Luiz de Campos +collocou os seus inspirados versos, reconhece-se com evidencia que essas +azas prendem por articulações de couro a espaduas de porta-machado. + +Sua magestade a rainha, uma mulher, uma senhora, uma princeza, se vós a +não bouvesseis violentado com os vossos conselhos, ella de per si só, +teria representado a caridade por modo muito diverso. Guiada +simplesmente pelo seu delicado instincto de mulher e pela sua perfeita +educação de senhora, ella saberia ser util sem ser espectaculosa; +far-se-hia amar sem se deixar applaudir; chegaria á dedicação absoluta +de toda a sua alma pelos desgraçados e pelos humildes, sem passar por +cima da arêa encarnada dos triumpos de rua, sem transpôr os arcos de +murta das glorias de phylarmonica, sem se vulgarisar, finalmente, até o +ponto de animar os poetas e os jornalistas a fazerem-lhe as mesmas +_réclames_ com que se lisongeam as actrizes, tirando imagens +sentimentaes e sonoras do _perfume dos seus cabellos_, das _pregas dos +seus vestidos_, da _flexibilidade da sua estatura_, etc. Houve um +folhetinista que chegou pelo desenfreamento do lyrismo a comparar sua +magestade--a Magdalena! + +Nós protestamos contra similhantes invasões do enthusiasmo nos dominios +da dignidade pessoal, e negamos á rhetorica monarchica o direito de +lançar ás faces de uma digna mulher que passa levando o seu sceptro pela +mão, as mesmas finesas que as bailarinas bonitas mandaram na vespera +deitar fora com as camelias murchas. + +Este abuso iniquo e grosseiro fostes vós, conselheiros habeis nos +manejos politicos mas imperitos nas questões do gosto,--que os +promovestes e auctorisastes. + +Vós começastes por abusar da vossa influencia no espirito da soberana +prefixando a quantia de um conto de reis como verba de subscripção. +Quando a miseria é geral, quando as amarguras são immensas, como disse o +proprio sr. Osorio de Vasconcellos, quando dos poderes publicos não +baixa uma só medida para acudir a tanto infortunio, quando todo o +remedio para tamanhos males se confia da liberalidade de uma rainha, +como quereis vós que se acredite que essa rainha, em uma tal +conjunctura, se tenha posto a contar pelos seus dedos magnanimos até +achar o numero de libras que compense a miseria geral e a amargura +immensa? Por que vibrações de piedade, por que processo de sentimento, +por que logica de consternação, por que inducção de pezares, quereis vós +que o alanceado coração de sua magestade tenha chegado de dor em dor, de +lagrima em lagrima, á conta, que só vós podieis ter feito, de duzentas e +vinte e duas libras em oiro e dez tostões em prata? Esta conta +deploravel é de um estalajadeiro ou de um cambista. Uma princeza, não +tendo aprendido pelas necessidades proprias qual é o valor do dinheiro, +não sabe contal-o para as necessidades dos outros. Se vós lhe tivesseis +dito simplesmente que para acudir a uma catastrophe nacional não havia +nem uma só disposição da sciencia ou da lei e que todo o remedio para +essa desgraça publica se esperava da influencia regia, a rainha, +entregue ao impulso instinctivo do seu coração, não deixaria de +contribuir para esse fim de um modo illimitado, sacrificando-se +inteiramente e incondicionalmente á fatalidade da fome como teria de se +sacrificar á fatalidade da guerra. + +Depois não vos occorreu que tudo quanto se dispendesse em pompas se +cerceava em soccorros no producto dos espectaculos em beneficio das +victimas da inundação. Sendo esses espectaculos dirigidos por uma +senhora esqueceu-vos um ponto essencial que a toda a mulher occorreria: +a prescripção da _toilette_. Como sois homens publicos e viveis +permanentemente na ostentação e no apparato vós não podeis conceber +quanto ha de inopportuno, de indelicado, de offensivo do bom gosto no +aspecto de senhoras que se reunem para um fim de caridade cobertas de +joias como para um certame de luxo. Se fosse effectivamente uma senhora +quem tivesse a direcção d'esses actos de phylantropia, as joias teriam +sido abolidas, o preço das luvas de baile teria sido applicado á +subscripção para os pobres, e nas mãos nuas um annel de ferro mandado +fazer pela commissão ornaria toda a pessoa que quizesse acceital-o em +troca de um annel de oiro offerecido aos inundados. Em vez dos +ramilhetes, de 15 ou 20 libras, offertados aos actores, aos musicos e +aos poetas, uma mulher economisaria em favor dos pobres essa luxuosa +despesa e manifestaria o seu agradecimento por um modo extremamente mais +economico e mais expressivo como seria por exemplo, o offerecimento de +uma pequena photographia de sua magestade com uma simples dedicatoria +autographa. + + * * * * * + +Além da commissão de soccorros presidida nominalmente por sua magestade +a rainha a unica corporação que em Portugal se occupou do problema das +inundações foi a de suas excellencias os srs. bispos. + +Apenas constou que alguns dos nossos rios tinham trasbordado, em todos +os bispados do reino se fizeram preces implorando da divina misericordia +que os rios voltassem aos seus leitos. + +Este recurso piedoso lembra-nos que seria vantajoso para o fim de pôr em +harmonia a meteorologia e a religião, crear barometros especiaes +dedicados ás nossas circumscripções ecclesiasticas. + +Estes barometros, que os srs. parochos collocariam nas sacristias ao +lado das folhinhas em que se prescreve a côr das vestimentas, teriam as +indicações precisas para constituirem um formulario perpetuo sem o +incommodo da intervenção dos srs. bispos por via das suas pastoraes. +Bastaria que os aneroides _ad usum ecclesiae_ fossem um pouco mais +desenvolvidos na indicação dos resultados da pressão atmospherica sobre +os aspectos do tempo. Por exemplo:--78, _bom tempo fixo, faça preces a +pedir chuva_;--74 _grande chuva, faça preces a pedir sol_;--73 +_tempestade, saia procissão e faça preces a pedir bom tempo_. + +N'este caso os observatorios astronomicos e meteorologicos poderão ser +substituidos com vantagem pelas cabaças rotatorias dos Kalmuks ou pelos +moinhos do Tibet. As cabaças, cheias de orações e agitadas polo vento, +produzem a adoração perenne. Os moinhos são uma fabrica mecanica de +preces continuas, de moagens devotas. + +É preciso que n'este ponto nos decidamos por uma das duas:--pela +meteorologia ou pela prece. Se os estados atmosphericos se determinam +nos templos é absolutamente inutil estudal-os nos observatorios. As duas +coisas juntas refutam-se e destroem-se. Ou bem cabeças que pensem ou bem +cabaças que rodem. Decidam! + + * * * * * + +O que escreve estas linhas, tendo sahido do Porto no dia 8 de janeiro, +foi surprehendido pela tempestade e embargado pelas cheias, não podendo +chegar a Lisboa senão oito dias depois d'aquelle em que partira do +Porto. Foram seus companheiros de viagem alguns mancebos--quinze ou +vinte--que emigravam para o Brasil e vinham do Minho tomar em Lisboa um +dos paquetes da Mala Ingleza. Nas primeiras estações proximas de Gaya +esses rapazes, descorados, surprehendidos, vestidos de cotim, tendo +pendente do pescoço por um cordel a chave da caixa, apeavam e abraçavam +nas gares os seus parentes que ahi tinham ido abençoal-os, dar-lhes os +ultimos conselhos e as ultimas lagrimas. Havia um grande alarido de +mulheres que choravam. Vozes soluçadas diziam: «Adeus! adeus talvez para +sempre!» Abraços tenazes parecia não poderem deslaçar-se dos derradeiros +abraços. Tangia a sineta para largar a locomotiva. Passageiros alegres, +indifferentes, debruçados das portinholas, intervinham nos excessos da +ternura, nas crises da saudade, com palavras recreativas, com +commentarios facetos, com exclamações punidoras. Um aldeão já velho, +magro, alto, beijava um pequeno emigrante, talvez seu neto, que se lhe +abraçára ao pescoço; um jocoso soldado, trazendo a fardeta desabotoada e +uma borracha ao tiracollo, gritou-lhe da carroagem:--«Ó labrego, larga o +rapaz!» e accrescentou sentenciosamente este conceito:--«Beijos de +homens são coices de burro!» O velho teve a coragem de sorrir com uma +visagem dolorosa, de quem fingia resignar-se, e mettendo o rapaz na +carroagem, á pressa, em voz baixa, envergonhada: «Deus Nosso Senhor te +abençôe! Deus Nosso Senhor te abençôe e te dê boa sorte!» + +O comboyo batido pelas rajadas do vento e pelas torrentes da chuva não +pôde, em consequencia dos rombos da estrada, passar de Pombal, onde +chegou ás duas horas da noite. Os pequenos aldeões, trespassados de +frio e talvez de fome, com as golas das jaquetas levantadas, os pés +molhados nas suas chinelas de coiro cru, as mãos nas algibeiras das +calças, adormeceram nas carroagens da terceira classe ou nas bancadas da +estação. O comboyo demorou-se ahi tres ou quatro dias. Os emigrados, +perdidos no meio da indifferença, desappareceram. Quando nós, no +primeiro dia em que a estrada se tornou praticavel, proseguimos de +Coimbra, onde ficaramos, até Santarem, não encontramos nenhum dos nossos +pequenos companheiros. É provavel que tivessem continuado a pé, sob a +tempestade, até chegarem a Lisboa, ao encontro da Mala Real Ingleza. +Esses pequenos, obscuros, miseraveis passageiros, troçados, escarnecidos +na sua dôr, cobertos de lagrimas e de lama nas suas esperanças de +fortuna, eram os embriões da riqueza portugueza, eram o brasileiro ao +deixar a patria. + +Outro companheiro d'esta nossa viagem atravez das inundações era um +velho de sessenta e cinco a setenta annos. Traz apertado ao queixo, por +baixo do chapeu, um lenço de seda e ás costas uma manta _couvre-pieds_, +que elle abrocha no peito com uns fechos de prata e que lhe cae por +traz até os calcanhares. Esta manta, de pano baetão, tem estampada a +figura de um tigre, o que dá ao nosso companheiro, visto pelas costas, +com o seu lenço na cabeça, os seus sócos, o seu chapeu de chuva, o +aspecto de um Attila domesticado e doente. Viaja em companhia de uma sua +prima, mais velha que elle, e de um pão de ló mais volumoso do que os +dois primos juntos. + +Este sujeito conferiu-nos a honra de nos dar a provar o seu pão de ló e +de nos contar a sua historia. Vinha de Felgueiras, terra da sua +naturalidade, e trazia o pão de ló, que as chuvas avariaram, para um seu +amigo, o sr. Azevedo, pharmaceutico na rua larga de S. Roque. Fôra em +creança para o Brasil, reunira á força de trabalho e de economia uma +modesta fortuna. Já na velhice liquidara todo o seu capital, voltara +para Felgueiras, reedificara a pequena casa em que tinham morrido seus +paes, adquirira algumas terras, empregara o seu capital na fundação de +uma lavoura; comprara juntas de bois, assoldadara moços, mettera +operarios e jornaleiros, plantara milhares de carvalhos e de +castanheiros. As potencias eleitoraes de Felgueiras convidaram-o em nome +de dois ou tres partidos do sitio a intervir com a sua influencia na +politica local. Elle recusara-se. Queria acabar em paz os seus dias, +contentando-se com a modesta gloria de restituir á terra em que nascera +toda a sua fortuna convertida na verdadeira e unica riqueza nacional--a +fertilisação do solo e o desenvolvimento do trabalho. Desde esse dia os +partidos confederados de Felgueiras começaram a hostilisal-o como o +inimigo commum de todos os partidos, o qual inimigo é em toda a parte--a +imparcialidade. Enredaram-o em pequenas intrigas, empeceram-o, +desgostaram-o em todos os seus projectos, em todas as suas aspirações. +Elle, como velho trabalhador macerado, resistira. Um golpe inesperado +acabara, porém, de o ferir no coração: dias antes da nossa viagem, na +vespera do Natal, uma chusma de gatunos, arregimentados para esse fim, +invadira a sua nascente propriedade e destruira inteiramente todas as +suas arvores. Elle querelára, e vinha para Lisboa esperar que se lhe +fizesse justiça. «Exijo--dizia elle--que me paguem indemnisação na +medida da perda que esta offensa representa para um velho como eu, a +quem pouco tempo já resta para esperar que as arvores cresçam. Venho +para Lisboa até que os tribunaes decidam a minha sorte. Se não me +fizerem justiça, irei fallar com o rei, e dir-lhe-hei: Meu senhor! Não +tendo achado na patria meios de enriquecer, fui procural-os n'um paiz +extranho. De regresso a Portugal no ultimo quartel da vida, +repatriando-me com todo o dinheiro que pude adquirir e que vinha +dispender entre os meus compatriotas, acho-me aqui vilipendiado, roubado +e escarnecido. Lavrador por vocação e por velho geito adquirido, parto +hoje pelo caminho de ferro para França, e plantarei a minha horta n'essa +terra estimavel, onde os homens não teem rei nem os campos teem muros +mas onde a nação da justiça baixou já dos dominios da intelligencia até +penetrar nos costumes e ter a sua encarnação nas leis. Sirva-se portanto +vossa magestade abater o meu nome no seu rol e contar com um subdito de +menos[1].» + +[Nota 1: Textual.] + +Este homem representava a ultima faze da vida em que iam entrar os +pequenos emigrados que perdemos de vista em Pombal. Aquelles eram o +brasileiro ao partir; este era o brasileiro ao chegar. + +Entre aquella infancia despresada e esta velhice desprotegida, está o +portuguez residindo e trabalhando no Brasil. Lá, esquecido do que +passou na infancia, despreoccupado do que o espera na velhice, o +portuguez desenvolve, como uma enfermidade nostalgica, o mais ardente +patriotismo. Nas suas allucinações de exilado a patria apparece-lhe +deslumbrante de todos os prestigios com que a saudade e o amor aureolam +os seus idolos. Assim como elle proprio se aperfeiçôa em cada dia pelo +trabalho, imagina que a patria se desenvolve proporcionalmente pelo +progresso, e mede pelo esforço d'elle, muitas vezes sublime e heroico, o +empenho com que estão concorrendo para a civilisação no paiz os seus +homens de estado, os seus politicos, os seus industriaes, os seus +escriptores e os seus artistas. Á similhança da colonia de que elle faz +parte, suppõe a patria um grande todo confederado e harmonico com +interesses solidarios, com intuitos communs, com fins determinados, +tendo ideias, tendo principios, tendo sentimentos, sendo capaz de +paixões profundas, de dedicações fortes, de sacrificios illimitados. E +tem pela patria os mesmos affectos e as mesmas dedicações de que a +suppõe susceptivel. + +Assim é que, chegando ao Rio de Janeiro a noticia das nossas inundações +a colonia portugueza principia a mandar para a metropole milhares de +libras por cada paquete. + +Os rios cahiram nos respectivos alveos, as terras enxugaram, as +sementeiras começam a crescer, a lembrança da catastrophe principia a +dissipar-se, e o dinheiro das subscripções do Brasil continua a chegar. +Dentro de pouco tempo a commissão portugueza de soccorros aos inundados +não saberá o destino que ha de dar ao dinheiro que amontôa. + +As crises do trabalho subsequentes ás inundações são transitorias e tão +rapidas como as proprias inundações. Desde que a inundação cessa, o +trabalho restabelece-se nas suas condições normaes. Os estragos causados +pelas cheias não affectam os trabalhadores e os pobres, affectam +unicamente os proprietarios. Ora estes poderiam acceitar um emprestimo +proposto pelo governo, mas não podem receber um donativo feito pela +caridade. Portanto, desde que o governo não acudiu aos pobres em tempo +opportuno nem auxiliou os proprietarios pelo meio conveniente, todo o +dinheiro accumulado pela caridade é inutil a todos: aos pobres porque +não tem a opportunidade do tempo em quê, e aos ricos porque não tem a +opportunidade do modo como. + +É por estas rasões que suppomos fazer um serviço á commissão de +soccorros suggerindo-lhe um meio de applicar uma parte das sommas com +que se acha a braços. Este meio é: dar em nome do paiz uma satisfação de +honra aos portuguezes residentes no Brasil--1.° indemnisando os +emigrantes minhotos sahidos do Porto nos comboyos dos dias 7 e 8 de +janeiro pelos prejuizos provenientes de não haverem chegado a Lisboa a +tempo de embarcarem nos paquetes de 8 e 10 do mesmo mez; 2.° fundando em +Felgueiras uma policia rural que empeça a população indigena de destruir +as propriedades fundadas pelos emigrados que chegam, por isso que na +provincia do Minho, de que principalmente procedem os portuguezes +residentes no Brasil, os unicos estragos recentes de que temos noticia e +que acima referimos, procedem, não das inundações dos rios, mas da +indisciplina dos homens. + + * * * * * + +Para servir de complemento á historia das inundações portuguezas, eis o +que succedeu no Minho, junto de Villa Nova de Famalicão, com um pequeno +riacho obscuro que ali passa. + +Havia-se ultimamente deliberado dotar a alludida corrente com o +adminiculo de uma ponte. Como esta ponte, além de uma obra fluvial, era +tambem um viaducto entre duas collinas e um atalho entre dois caminhos, +todos os grandes proprietarios da região em que passava o ribeiro +pretenderam ter a ponte á sua respectiva porta. N'este sentido ferveram +os pedidos, os empenhos, as intrigas, as ameaças, as pressões dos votos, +todos os meios finalmente que em Portugal movem e removem a tendencia +das idéas, a direcção dos principios, os planos das estradas e os +projectos das pontes. + +A obra fez-se finalmente sob a acção d'essas influencias e, como é +costume, em satisfação do empenho mais preponderante. Era no verão, e +tinha seccado o ribeiro. Vieram n'este inverno os grandes temporaes e as +copiosas chuvas, o ribeiro encheu, trasbordou, correu pelos campos e +pelos caminhos, passou por toda a parte, sómente não passou--por baixo +da ponte! + +Enviamos os nossos parabens aos habitantes de Famalicão. A sua ponte é +verdade que não representa completamente uma ponte, mas representa um +symbolo monumental, que os habitantes não procurarão para atravessar o +ribeiro, mas que todos os extrangeiros, todos os historiadores e todos +os philosophos irão ver com admiração e respeito para se compenetrarem +do legitimo espirito da politica e da administração na presente phase da +civilisação portugueza. + + * * * * * + +Contam os periodicos que no dia de Natal sua magestade el-rei se dignára +de brindar magnanimamente os soldados da sua real guarda, +offerecendo-lhes em Palacio um banquete composto das iguarias mais finas +e mais preciosas, taes como sopa de massa, boi cosido com chouriço, +carne guisada com batatas e laranjas. + +No momento em que os briosos filhos de Marte, coroados com os louros da +guerra e com as rosas da paz, libavam as taças da victoria, nas quaes, a +um gesto da regia munificencia o _doutor roxo_ se repartira e +prodigalisára na razão de dois decilitros por praça, o sr. capitão da +companhia, penetrando na sala do festim e impondo silencio aos +dithyrambos, ás canções bachicas e aos hymnos bellicos que o aspecto tão +anachreontico quanto marcial da carne guisada com batatas jámais deixa +de influir em mentes inflammadas e em animos generosos, proclamou d'esta +arte: + +«Soldados! O principe, cujo pennacho branco vós tendes visto +constantemente á vossa frente, conduzindo-nos ao fogo e guiando-vos ás +victorias, o principe cuja espada invencivel vós tendes visto sempre no +meio de vós, já relampagueando intemerata ao sol das batalhas, já +embebendo-se sedenta no sangue inimigo, o principe, generoso e +magnanimo, n'este dia consagrado ao ephemero repouso dos acampamentos, +convoca a este festim guerreiro os seus amados companheiros d'armas. Uma +coisa de que sua real magestade jámais se póde esquecer é a maneira como +vos tem visto pelejar! Porque é mister dizer-vol-o: no maior ardor dos +combates, no proprio momento em que mais absorto elle parece no afan de +retalhar em postas os exercitos inimigos, nunca o principe vos perdeu de +seu real olho! + +«Tudo elle viu, e nada do que obrastes lhe é occulto. + +«Viu-vos caminhar ávante para as hostes contrarias! Viu-vos quando, no +meio do estrondo e do fumo das descargas, tomastes as bandeiras e os +estandartes do outro campo! Viu-vos quando á chegada fatal da maldita +cavallaria inimiga, formastes quadrado e a esperastes impavidamente e a +pé firme, no posto da honra! Viu-vos depois cair a um por um feridos +pelo peito como heroes! Viu-vos morder o pó! Viu-vos finalmente exhalar +o ultimo suspiro, a vós todos, desde o primeiro ao ultimo, até nada mais +se ver no logar onde estaveis senão um monte de cadaveres abraçados a um +monte de bandeiras! Foi ainda o principe, piedoso e grande, quem, +percorrendo o campo no dia seguinte á batalha, recolheu e enfrascou as +vossas cinzas, restituindo-as elle proprio ás vossas viuvas, e +dizendo-lhes entre suspiros e lagrimas: «Em cada um d'esses frascos, +marcados com o numero da praça e da companhia, encontrareis uma pitada +de tudo quanto vos resta d'esse punhado de bravos!» + +«Foi depois de todas essas provações--tão arduas!--que sua magestade +deliberou reunir-vos n'este banquete sumptuoso. + +«Soldados! em testemunho de agradecimento a uma tão manifesta prova de +consideração e de amor, peço-vos que ergaes as vossas taças, de dois +decilitros cada, e que, antes de haurirdes o phalerno de Torres que +ellas encerram, me acompanheis nos vivas que passo a entoar e com os +quaes dou por finda esta allocução marcial. Viva sua magestade el-rei! +Viva a real familia! Viva a carta constitucional da monarchia!» + +Nenhum soldado respondeu em discurso, como pede a etiqueta dos _toasts_, +porque nenhum dispunha da fortaleza cerebral necessaria para criticar os +seus proprios sentimentos, para os discernir e para os coordenar em +palavras. De modo que se contentaram em dar vivas e beber, coçando nas +cabeças essa especie de comichão produzida por todo o rude encontro de +idéas contradictorias e confusas. + +Expressos sob a fórma litteraria, os sentimentos que o soldado revelou +sob a fórma de coceira dariam o seguinte discurso: + +«Capitão! Ha alguns annos que eu fui agarrado á força na minha terra +para vir para a tropa. A minha primeira idéa foi livrar-me comendo um +dedo. Affiançaram-me, porém, que poderia egualmente livrar-me dizendo +que tinha queixa de peito. Assim o disse, mas não me acreditaram, e cá +fiquei ás ordens. + +«Desde que jurei bandeiras é raro o dia em que o capitão, o major, o +tenente-coronel ou o proprio commandante me não fallam do meu ardor +mavorcio, da minha firme e tremenda attitude diante do inimigo e dos +meus louros cegados com a espada nos campos da batalha. + +«Eu devo dizer ao capitão, com toda a franqueza, que desde que estou na +militança nunca tive _ardôr mavorcio_ nem d'outra qualquer especie, a +não ser que o capitão se refira ao que senti nas orelhas quando na +recruta me puchava por ellas o sargento instructor. Se é d'este ardôr +que se trata, tive-o, e se o sargento o não teve ainda, ha de tel-o +tambem se, quando eu largar a farda, elle continuar a conservar as +orelhas, que eu, como livre paisano, lhe hei de então estender +conscienciosamente desde a porta do quartel até á entrada da minha minha +freguezia. + +«Emquanto ao inimigo declaro que o não conheço, e muito obrigado ficaria +ao capitão se tivesse a bondade de m'o mostrar para que eu podesse +desenferrujar estas inuteis pernas applicando-lhe sem perigo de offender +a disciplina alguns dos pontapés que em observancia da mesma disciplina +não tenho até hoje feito senão receber. + +«Quem é o inimigo? Não farão favor de me responder:--quem é o inimigo? + +«Julguei algum tempo que fosse um sujeito de casaco côr de pinhão, de +gola levantada para cima, que ás vezes se mettia commigo nas guardas. +Tinha resolvido atacal-o, quando vim a saber que era um simples curioso +das artes da guerra. + +«Vejo todavia que não fazemos mais do que preparar-nos constantemente +para resistir ao inimigo, o qual parece não implicar com mais ninguem +senão connosco. Pelo menos ninguem o teme senão a tropa. + +«Ha familias, compostas unicamente de mulheres, que dormem sósinhas nas +suas casas sem medo a ninguem; no quartel, cheio de homens, cada um dos +quaes tem uma espingarda e uma bayoneta, é preciso pôr sentinellas a +todas as portas, velam uns emquanto os outros dormem, e ha sempre gente +armada até aos dentes, com os olhos arregalados nas trevas da noite, +para que não nos surprehenda o inimigo!--Que é sempre com o que lhe +dão:--com o inimigo! + +«Emquanto aos loiros segados nos campos das batalhas cumpre-me +egualmente fazer sentir ao capitão que desde que estou no exercito ainda +não seguei. + +«A minha vida tem consistido unica e exclusivamente em deitar todas as +manhãs umas correias ás costas e em pôr uma tocha ao hombro para marchar +ao som da musica ou para passear de sentinella á porta dos edificios +publicos. + +«Pelo que diz respeito ao banquete opiparo para que sua real magestade +me convidou, agradeço-o muito, confesso-me profundamente sensivel aos +attractivos da real carne guizada e das fulgidas batatas da corôa. +Todavia não posso esconder que o que principalmente me lisongeava seria +que me fizessem a especial mercê de me mandar embora. + +«Apezar da excellencia das iguarias preciosas de que consta este +banquete olympico, sou forçado a dizer que por mais de uma vez a esta +meza o bocado se me tem enfardelado na bocca sem querer ir para baixo. +Porque? Porque me sobe do coração e me aperta a guela a lembrança da +minha aldeia, da alegre festa do Natal, n'este dia, ao pé do lar, no +casal da minha velha... Chamo-lhe eu a minha velha! O capitão faz +idéa... Fallo-lhe da minha mãe. + +«Hontem matava ella o porco, ou antes era eu que lh'o matava. Hoje +tinhamos lombo assado á fogueira do lar, n'um espeto de loureiro. Que +lombo aquelle, capitão! Com que vontade que eu principiava a jantar +outra vez se fosse d'esse lombo que me déssem! E depois não era o rei +que me convidava a mim,--o capitão ha de comprehender o effeito moral +d'esta differença--era eu que poderia convidar o rei a comer no meu +casal, d'aquillo que era meu, que eu proprio ganhara ou ajudara a ganhar +com o meu trabalho, com a minha força, com o meu prestimo! Na minha +aldeia eu era, mais ou menos, um dono de casa, um trabalhador, um +cidadão, um homem. E dentro do meu quinteiro, como o meu pequeno rebanho +e com o meu cajado, o rei era eu! + +«Aqui, que diabo! Aqui, francamente, capitão, que raio de diabo! + +«Aqui, que sou eu? Um monte de cisco, um molho de palha, um estafermo, +um espantalho de botões de ouro fingido, de espingarda descarregada e de +patrona vasia, para metter medo a outro estafermo, a outro espantalho, a +outra abantesma de espingarda egualmente descarregada e de patrona +egualmente vasia, o qual outro se chama o inimigo! + +«Dizem qae tambem sirvo para--manter a ordem. A ordem que eu mantenho é +outra historia da carocha como a do inimigo que eu combato. + +«Na minha aldeia, onde nunca de memoria de homem appareceu o bico de uma +bayoneta, todos vivem em harmonia e em paz. Aqui, onde a ordem é mantida +por dez ou doze regimentos, ha desordens todos os dias e todos os annos +ha revoltas. Revoltas de quem, meu capitão?--Dos sargentos! + +«Ora, se eu não sirvo para nada, se o inimigo, sendo outro que tal como +eu, não serve tambem para coisa nenhuma, não acha o capitão, que o mais +justo seria mandar-nos para nossas casas a ambos--ao inimigo e a mim? + +«Se como o capitão affirma, el-rei é meu amigo e pretende obsequiar-me, +que sua real magestade cesse de esbanjar-se nos acepipes com que me +cumula! Que me permitta estar na minha casa, como sua magestade está na +d'elle com sua excellentissima esposa e com os seus interessantes +filhos! Eu lhe protesto que não só dispensarei todos os seus favores, +mas que poderei ainda fazer-lhe alguns, e me tornarei um cidadão +independente, serviçal e util, em vez de me desfallecer para aqui, +dentro d'este uniforme, coberto por esta barretina, inundado de +ociosidade, comido de tedio[2], de nojo de mim mesmo, de todas as más +molestias da alma e do corpo, perdido para o bem dos outros e não +prognosticando grande coisa senão para o mal de mim mesmo. Nada mais +accrescento porque está a cair o quarto e tenho de me ir deitar ao +inimigo,--passeiando de sentinella á porta de palacio.» + +[Nota 2: No dia em que estas linhas foram escriptas suicidavam-se dois +soldados, um de infanteria n.° 1, em Belem, outro de caçadores n.° 10, +em Setubal.] + +Depois de coçado este discurso na cabeça dos soldados, terminou o +banquete, retirando-se todos os convivas profundamente penhorados pela +excellencia do serviço e pelas delicadas maneiras do sr. capitão. + + * * * * * + +Referem os jornaes que a Academia Real das Sciencias celebrará no mez de +março do futuro anno de 1879 a festa do primeiro centenario da sua +fundação. + +A primeira das rasões porque folgamos com esta noticia e que se inicia +em Portugal uma tendencia nova no espirito das sociedades modernas:--a +tendencia a reformar o calendario, substituindo as ephemerides +ecclesiasticas pelas taboas historicas. + +Essa tendencia revela um progresso. + +A igreja tem, certamente, datas memoraveis que a civilisação ha de +manter entre as grandes epocas da humanidade. Mas essas datas, por mais +gloriosas que sejam, não bastam para prehencher os fastos da humanidade +e para pautar o culto devido á lembrança dos grandes factos e á memoria +dos grandes homens. + +Se a igreja tem os seus santos, os seus martyres, os seus doutores, a +liberdade, a sciencia, o trabalho, a arte, teem tambem os seus, e a +gratidão humana não deve menos aos segundos do que aos primeiros. O dia +de S. Bernardino, a 20 de maio, é tambem o dia de Christovão Colombo. O +dia de S. Luciano, a 8 de janeiro, é egualmente o dia Galileu. O dia 5 +de abril é o de Santo Adriano e é o de Danton e de Camille Desmoulins. O +dia 23 do mesmo mez é o aniversario do nascimento de S. Jorge e é +tambem o da morte de Shakespeare e de Cervantes. + +Nem toda a gente sabe, de pronto, sem consultar a collecção dos +bolandistas ou o _Flos Sanctorum_ o que foram precisamente para o mundo +e para Deus, Bernardino, Adriano ou Luciano. Ninguem todavia ignora o +que a humanidade deve a Colombo, a Galileu, a Danton e a Shakespeare. + +Depois a circumstancia de ir para o ceu por uma decisão dos concilios +nem sempre equivale a haver deixado na terra um exemplo que fortifique +as almas para servirem ao mundo ou para servirem a Deus. + +Temos por exemplo que, segundo S. Lucas, capitulo XXII, versiculo 61, S. +Pedro, convicto da divindade de Jesus, o renega por tres vezes no +tribunal de Caiphaz. No tribunal da Inquisição, deante da fogueira que o +vae devorar se não renegar o seu livro, Giordano Bruno prefere morrer a +trahir a verdade. S. Pedro fundou a igreja christã; Giordano Bruno +fundou uma nova teoria do Universo. Um é adorado como santo; o outro é +condemnado como hereje. E todavia é com Bruno e não é com Pedro que +todos nós, filhos do seculo ou filhos da religião, temos que aprender +como se sustenta uma convicção ou como se defende uma crença. + +A iniciativa da Academia contribuirá poderosamente, de certo, para fazer +entrar nos costumes a fecunda lição alliada ao culto dos grandes homens +e á commemoração dos grandes feitos, ceremonias destinadas a tornarem-se +as festas nacionaes de todos os povos civilisados. + +Ao centenario da Academia succeder-se-ha sem duvida o do apostolo da +nacionalidade portugueza Camões, e o do martyr da liberdade de +pensamento Damião de Goes. + + * * * * * + +A segunda rasão porque nos regosija a noticia que registamos é que a +celebração do jubileu academico, pedindo a publicação de uma historia +d'aquelle instituto, virá por meio d'esse documento recordar o papel +brilhantissimo que teve na historia das idéas em Portugal essa +corporação scientifica, e chamar talvez alguns dos actuaes academicos a +reatarem a tradição gloriosa d'aquelles que os precederam na direcção +intellectual do paiz. + +A Academia Real das Sciencias foi o foco da revolução e o berço da +moderna liberdade em Portugal. + +Em um excellente livro do sr. Theophilo Braga, recentemente +publicado--_Bocage, sua vida e epoca litteraria_--encontram-se os mais +preciosos documentos para a nossa moderna historia litteraria, +documentos até hoje ineditos e pacientemente colligidos por aquelle +eminente escriptor, em cujas obras, as mais eruditas que em Portugal se +teem feito, o publico não aprendeu ainda senão a calumniar o auctor. +Entre esses documentos tirados a lume pelo sr. Theophilo Braga, acham-se +as mais curiosas revelações para a historia dos nossos primeiros +academicos. + +O duque de Lafões, o abbade José Correia da Serra, Joaquim José Ferreira +Gordo, Antonio Pereira de Figueiredo, insignes na philosophia e nas +sciencias naturaes, conhecidos e respeitados na Europa, estavam +denunciados ao governo como jacobinos e eram espionados e perseguidos +pela policia sob a direcção do intendente Pina Manique, o qual nas suas +_contas para as secretarias_, manuscriptos conservados na Torre do +Tombo, por differentes vezes se refere aos alludidos academicos, +accusando-os como sectarios das idéas da Revolução franceza, +relacionados com os homens da Convenção, iniciadores do movimento +liberal em Portugal. A policia envolve-os na mesma suspeição com os +livreiros francezes residentes em Lisboa, com os addidos á legação de +França, com os frequentadores de botequins que se atrevem a ostentar nas +tampas das suas caixas de rapé a figura da liberdade, com os populares +finalmente que em certa noite vão debaixo das proprias janellas do paço +entoar a canção do _Ça-ira_. + +Os cabeças d'este movimento de revolta contra o despotismo +monarchico-catholico são designados pelo intendente Manique com o nome +generico, ainda hoje em voga, de _philosophos modernos_. Os livros +dirigidos de França á Academia sob o nome do duque de Lafões são +sequestrados na alfandega. + +A publicação de qualquer escripto revolucionario por parte da Academia é +impossivel sob a espionagem de Manique, mas a adhesão d'esta companhia +ás idéas francezas é manifesta em muitas passagens dos registros +policiaes. + +«Acha-se n'esta corte--diz o intendente Manique--nas casas da _Academia +das sciencias_, ao Poço dos Negros, hospedado, segundo me dizem pelo +_abbade Correia_, Broussonet, que foi medico de profissão em Paris, e +depois secretario de Necar (É assim que Manique escreve o nome de +Necker) e aquelle que se fez marcar quando na sessão da convenção +Nacional, de que era tambem deputado, continuou o discurso que o +sobredito Necar não acabou de recitar por lhe dar no meio d'este acto um +deliquo; e ainda mais conhecido por ser um d'aquelles sanguinarios do +partido de Robespierre na Convenção. Pela morte que este assassino +soffreu, fugiu aquelle e aqui foi acolhido e introduzido ao _duque de +Lafões_ na qualidade de agricultor, e hospedado nas casas da Academia +das Sciencias, d'onde frequenta as casas do sobredito duque e do _abbade +Correia_ que é amigo mui particular do ministro e consul da America do +Norte e dos mais jacobinos que aqui se acham e de que tenha dado parte a +v. ex.ª, e reputado por pedreiro livre.» + +Eguaes accusações pesam sobre Ferreira Gordo e sobre o auctor da +_Recreação Philosophica_ o Padre Theodoro de Almeida, «com o qual, +accrescenta Manique, o já alludido Broussonet fica algumas vezes na casa +do Espirito Santo de Lisboa.» + +A Academia encerrava pois no seu gremio o fermento da revolução, +levedada mais tarde em 1820, e da qual procedeu a reforma das nossas +instituições em 1834 e a liberdade subsequente. + +A missão da Academia em Portugal não pode ainda hoje ser senão a mesma +que era no fim do seculo passado. + +Não é no estado de indifferença, de egoismo e de ignorancia em que ainda +hoje se acha o espirito portuguez que as Academias podem assumir, como +queria Proudhon, a funcção moderadora dos trabalhos do pensamento e das +creações da arte. + +A intervenção das academias como elemento official e conservador pode +ser util e salutar em França ou em Hispanha, onde a temeridade +impaciente e indisciplinada dos escriptores revolucionarios, actuando +constantemente na opinião, pode perturbar a lei da continuidade +historica e lançar a sociedade na anarchia. Ahi compete ás academias +salvaguardar a ordem pelo ascendente moral. + +Em Portugal, porém, onde a revolução de modo algum ameaça partir da +circumferencia para o centro movida pelas tendencias progressivas e +invasoras dos espiritos, é absolutamente preciso, para que nos possamos +considerar uma nação, que a revolução parta do centro para a periferia, +que seja a Academia quem a enuncie e quem a propague, acolhendo no seu +gremio as intelligencias mais avançadas, discutindo os problemas mais +vivos da philosophia, aclarando todas as questões relativas aos maximos +interesses do espirito, á religião, á politica, á esthetica, implantando +finalmente a revolução na esphera intellectual para que d'ahi ella +penetre nos costumes e se infunda nas instituições. + +Se o desempenho d'este papel, que lhe está marcado pela sua tradição, é +incompativel com as ligações existentes entre a Academia, presidida pelo +chefe do Estado, e o mesmo Estado, o que á Academia compete fazer é +libertar-se d'essa dependencia e constituir-se em corporação livre. O +poder espiritual, de que ella é a encarnação litteraria, não lhe procede +de ser a hngida do Estado mas sim a da sciencia. + +Subsidiada pelos governos ou não subsidiada por elles, estabelecida em +um palacio ou refugiada em um sotão, recrutando os seus membros entre os +invalidos da popularidade ou entre os dispersos batalhadores vigorosos +da controversia moderna, separando-se da sua tradição gloriosa, ou +sendo-lhe fiel, a Academia acha-se destinada a ser d'estas duas coisas +uma:--ou a força dirigente do futuro social, a cabeça do paiz, ou uma +excrecencia apparatosa, um orgão atrophiado e inutil á civilisação. + + * * * * * + +Sendo os homens que escrevem ordinariamente superiores aos homens que +lêem, a funcção da publicidade é predominar nos espiritos--ou seja +lisonjeando-os, ou seja combatendo-os. Toda a obra litteraria dá um +d'esses resultados; ou se adapta ás opiniões existentes e as consolida e +reforça ou reage sobre ellas e as decompõe. Toda a litteratura ou é +_conservadora_ ou é _revolucionaria_. Queremos dizer: ou transige +passivamente com as condições do meio social ou se debate contra o +obstaculo que a influencia d'esse meio lhe impõe. + +Sempre que a litteratura toma o caracter conservador tende a immobilisar +a sociedade e a atrophiar o progresso. Foi o que succedeu nos seculos em +que a litteratura não fez mais do que fortalecer as superstições que +achou consagradas no seu caminho, prostrando a humanidade n'um marasmo +de quinhentos annos embalados com o esteril rumor monotono das homilias +e das legendas dos santos. Felizmente, desaprendendo quasi completamente +de ler, a humanidade voltou a si. A litteratura havia sido para ella uma +catacumba em que jazera sepultada pela credulidade, amortalhada pelo +mysticismo. Guizot calcula em vinte e cinco mil as vidas de santos de +que se compõe a bibliotheca bollandista, e são esses _acta sanctorum +quotquot tote orbe coluntur_ que encerram a historia inteira da +humanidade sob o regimen clerical em toda a Europa e em quasi todo o +Oriente, desde o seculo VI até o seculo XII! Com razão conclue Buckle--o +grande historiador da civilisação--que o maior dos estorvos do progresso +tem sido a manutenção do erro pelo poder litterario. + +Nos tempos modernos, sob os dominios despoticos, em quanto a obra do +pensamento foi disciplinada pela policia clerical e monarchica como +succedeu em Portugal durante o imperio do Santo Officio, a litteratura +deixou egualmente de ser o livre producto artistico e converteu-se n'um +poder do Estado, o mais enervante para a imaginação, o mais dissolvente +da intelligencia e da dignidade humana. + +Portanto: a primeira condição social para a existencia de uma +litteratura compativel com o progresso é a liberdade. + +Todo o escriptor portuguez actual nasceu n'esse meio propicio. Todavia, +por uma fatalidade physiologica, por um effeito da heriditariedade, +falta-nos a orientação cerebral da independencia. O nosso espirito +conserva o stygma servil, o signal da marca que, em muitas gerações que +nos precederam, foi deixando a grilheta da oppressão mental. A nossa +tendencia de escriptores é ainda hoje, geralmente, para lisonjear a +rotina, para comprazer com o vulgo, para seguir as correntes da +credulidade geral. + +A maior parte dos individuos que fazem um livro teem, nas precauções da +forma, no rebuço das opiniões, na doblez do stylo, o ar miseravel de +pedintes que solicitam venia para divertir inoffensivamente o +respeitavel publico. + +Entre as aberrações eminentes d'essa tendencia geral, como por exemplo +os srs. Anthero de Quental e Guerra Junqueiro na poesia, o sr. Theophilo +Braga na historia e na critica, o sr. Oliveira Martins na economia +politica, a Sr.ª D. Maria Amalia Vaz de Carvalho no +folhetim,--apparece-nos o sr. Eça de Queiroz no romance. Na pequena +litteratura portugueza destinada a ser um agente na evolução das ideias +e dos costumes, um elo no grande encadeamento das causas e dos effeitos +sociaes, _O crime do padre Amaro_, representa a obra mais profundamente +caracteristica. + +Este livro foi recebido pela imprensa periodica com um silencio que pode +parecer o resultado de um _mot d'ordre_. Cremos, para honra do +jornalismo, que a razão do apparente despreso de que foi objecto este +romance está no simples facto de que a critica se considerou +incompetente para o julgar. A unica coisa de que temos de accusar a +critica é de nos não haver dito isso mesmo. Em circumstancias analogas +as _Farpas_ deram um exemplo de sinceridade que ficou esteril. Um dia +escreviamos um artigo ácerca do adulterio; a logica arrastava-nos a +deducções que nos não atreviamos a imprimir; publicámos o nosso artigo +até o ponto em que o julgavamos compativel com os costumes e +concluimol-o com a confissão franca de que nos achavamos coactos pelo +publico. Quando tivemos medo confessamol-o. É verdade que omittimos uma +opinião, mas, estudando os costumes, revelamos pelo menos um estado de +espirito que elles determinavam e que seria um symptoma a ponderar pelos +analysadores que se nos seguissem. + +_O crime do padre Amaro_ é effectivamente difficil de sentenciar porque +constitue um caso novo, não previsto nas ordenações porque se regulam as +audiencias geraes do folhetim e do noticiario. + +Essencialmente moderno este romance não é a narrativa de uma aventura ou +de uma serie de aventuras á Lessage, á Dumas ou á Gaboriot, não é um +estudo de sentimento á Rousseau, á Alfred de Musset ou á George Sand. É +uma pintura de caracteres, mas não uma pintura á Balzac ou á Flaubert, +porque este livro não é exclusivamente de nenhuma escola senão da escola +de si mesmo, e é esse cunho profundamente pessoal qne lhe dá o caracter +que o distingue como verdadeira obra d'arte. + +Ora uma exposição de caracteres se pertence á sphera da arte pelos +processos da pintura, é um ramo da historia e está subordinado á +sciencia pelas operações de critica e de relacionação. O officio do +historiador é discernir no estudo das epocas e no estudo dos +acontecimentos o seu caracter social. O officio do romancista é +discernir no mesmo estudo das epocas e no mesmo estudo dos factos o seu +caracter artistico. O methodo do historiador é o methodo do romancista. +Não pode ser romancista um simples _observador_. Cada sciencia tem, como +diz Littré, o seu methodo particular e caracteristico. A _observação_ é +um methodo exclusivo da astronomia, para cujos phenomenos irreductiveis +o astronomo não pode fazer mais que olhar. O chimico procede pela +_experiencia_ e pela _analyse_. O biologo tem por methodo especial a +_comparação_. O historiador, e por tanto o romancista, teem como +instrumento particular a _filiação_, isto é, a producção dos estados +sociaes uns pelos outros. Pintar um caracter é expor no personagem a +figura moldada dentro do contorno delineado n'uma dada porção do espaço +e do tempo por um certo estado social. + +Um caracter é um phenomeno historico, que se não comprehende senão +emoldurado na convergencia de todos os factores que o produziram. + +É por isso que o romance de caracteres tem de ser uma exposição +concentrica de todas as influencias que determinam um pensamento ou um +acto;--influencias naturaes, o solo, o clima, os aspectos da paizagem, o +sexo, a idade, o temperamento, a idiosyncrasia, a heriditariedade; +influencias sociaes, as instituições, os costumes, a familia, a +educação, a profissão. + +Comprehende-se a commoção de surpreza que produziu este livro, ao +notar-se que a proposito da biographia de um padre em uma parochia da +provincia elle suscitava as mais graves e melindrosas questões +physiologicas e sociaes que podem envolver a igreja, o celibato, a +sentimentalidade e o mysticismo, isto é, todos os pontos de controversia +philosophica que o jornalismo exclue da discussão para se não pôr em +conflicto com o assignante. Confessamos que n'este caso o melhor que +tinha que fazer a critica jornalistica era effectivamente calar-se. + +Pela nossa parte, como é precisamente o conflicto que constitue o nosso +programma, não temos rasão plausivel para abster-nos da apreciação +d'este livro. + +A rasão da condemnação silenciosa, do escandalo branco, que envolveu a +apparição do _Crime do padre Amaro_ está no simples facto de que elle é +um _romance de caracter_. Esta simples designação explica tudo. O genero +é novo e sem precedentes. Os livros do sr. Camillo Castello Branco são +romances de sentimento. A obra de Julio Diniz pertence á litteratura de +_tricot_ cultivada com ardor na Inglaterra pelas velhas _miss_. Apesar +das suas qualidades de paizagista, do seu mimo descriptivo, da sua +feminilidade ingenua e pittoresca, as novellas de Julio Diniz não teem +alcance social, são meras narrativas de salão. + +O livro do sr. Eça de Queiroz offerece-nos o primeiro exemplo de uma +obra d'arte suggerida pela consideração de um problema social. + +E todavia _O crime do padre Amaro_ não é de nenhum modo um livro de +critica, é um livro de pura arte na mais alta accepção d'esta palavra. +Nem na bocca do auctor nem na de nenhum dos seus personagens ha uma +palavra declamativa ou didactica. + +Em uma pequena cidade de provincia, na Extremadura portugueza, o velho +parocho morre, o novo parocho chega com o seu capote ecclesiastico e o +seu bahu, apeia-se da diligencia de Chão de Maçãs, sobe aos quartos que +lhe estão preparados, calça uns chinellos de ourelo, veste o casaco +velho, e o drama principia, desdobra-se e termina de um folego, +caminhando para o seu desfecho, recto, implacavel, como um traço riscado +pela fatalidade atravez d'aquella estreita vida de provincia, com a sua +intriga local, os seus personagens mesquinhos, os seus padres, as suas +beatas, os seus tristes aspectos de coisas, sujos, tortuosos, +compungidos, pretenciosos, miseraveis. + +D'este fundo sombrio, espesso, pesado como o tedio, a acção destaca-se +luminosamente, e penetra-nos com a nitidez poderosa dos espectaculos +vivos. É a vida mesma com toda a sua trivialidade real que n'essas +paginas perpassa aos nossos olhos como aquellas florestas que andam no +sonho de Machet. + +Nunca artista portuguez desenvolveu na sua obra maior poder de execução. + +O dialogo, trasbordante de verdade, é de um rigor psychologico, de um +colorido flagrante e de uma energia de naturalidade que os primeiros +stylistas francezes não conseguiram ainda egualar. A lingua portugueza, +pela incomparavel variedade das suas construcções grammaticaes, pela +inexgotavel abundancia dos seus idiotismos, pela bravura inculta do seu +arranco plebeu, presta-se admiravelmente a estes prodigios de execução +sempre que a não deturpa esse maneirismo requintado, esse culto da +farragem e do euphemismo, que tem sido em Portugal a sarna epidemica do +estylo erudito. + +O dialogo do sr. Eça de Queiroz, não porque o trabalhasse a +preoccupação do purismo, mas em resultado do escrupulo com que foi +arrancado da indole e da natureza dos personagens, é de tal modo genuino +e tão accentuadamente portuguez, que o temos por intraduzivel. + +Ao lado do dialogo mais vivamente travado e das situações dramaticas +mais profundamente sentidas, mais commoventemente narradas, o auctor +compraz-se habitualmente em pintar, com frio cynismo, as ridentes +paizagens em que scintillam as frescuras da manhã, os suaves occasos do +outomno impregnados do rumor das aguas e do perfume dos prados, os +tepidos interiores aconchegados e pacificos, todos os aspectos da +natureza vegetativa, da natureza animal, da natureza morta. E nada mais +profundamente real do que a impressão deduzida d'esse contraste entre a +inclemente immobilidade das coisas e a devastação tempestuosa das +supremas paixões no fundo da alma humana! + +O desenho dos caracteres e principalmente o das duas personagens +principaes sobre que versa o drama, o padre Amaro e Amelia, é deduzido +com o mais scientifico rigor da diagnose n'um caso de pathologia +psychica. + +A infancia de Amaro em uma casa nobre, onde a mãe d'elle era criada de +quarto. Os pequenos pormenores d'esse interior de familia, onde o +catholicismo era um requinte heraldico, onde as meninas, acreditando em +Deus como na omnipotente elegancia, tinham como culto dos destinos da +alma a preoccupação da _toilette com que haviam de entrar no paraizo_. A +creação de Amaro até aos doze annos n'essa convivencia mulheril, +ajudando ás missas na capella, espanando os santos, aparando as hostias, +dormindo entre as criadas, que lhe faziam cocegas, lhe chamavam +_Padreca, Frei Lombrigas_, e o utilisavam nas suas intrigas para «fazer +as queixas.» A sua mocidade no seminario, «abafando na estreitesa dos +corredores, invejando todos os destinos ainda os mais humildes, o +almocreve que via passar na estrada tocando os seus machos, o carreiro +que ia cantarolando ao aspero chiar das rodas, e até os mendigos +errantes, apoiados ao seu cajado, com o seu alforge escuro!» Os seus +primeiros alvoroços de adolescente ao pensar na mulher sobre os livros +dogmaticos: «Que ser era esse que atravez de toda a theologia ora era +collocado sobre o altar como a Rainha da Graça ora amaldiçoado com +apostrophes barbaras? Que poder era o seu que a tragica legião dos +santos, ora se arremessa ao seu encontro, n'uma paixão extactica, +dando-lhe n'uma acclamação o profundo reino dos céus, ora vae fugindo +diante d'ella como do universal inimigo com soluços de terror e com +gritos de odio, e, escondendo-se, para a não vêr, nas thebaidas, nos +claustros e nos sepulchros, vae alli morrendo do mal de a ter amado? +Amaro sentia, sem as definir, estas perturbações, e julgava-se +desgraçado e maldito.» + +Vemos, a dia por dia, crescer, constituir-se, formar-se esse homem, +branco, lymphatico, molle, creado entre chumaços de mulheres ordinarias, +e sobrepelizes de padres boçaes, no fartum das alcovas sujas e na sombra +humida dos claustros musgosos. E prevê-se a quéda fatal d'essa natureza +stagnada e paludosa, atravez da qual os desejos insaciados luzem como os +olhos de um tigre. + +É egualmente bem assignalado o caracter de Amelia. A sua educação +sentimental e devota é descripta a golpes de bisturi. Cada traço é uma +incisão. Aos oito annos tinha ido para a escola. A mestra era uma +velhita roliça e branca que fôra tacho das freiras de Santa Joanna em +Aveiro; com os seus oculos redondos, junto da janella, empurrando a +agulha, morria-se por descrever o convento, os seus terrores, as suas +legendas, as suas peripecias; as perrices da escrivã sempre a escabichar +os dentes furados; a madre rodeira preguiçosa e pacata, com uma +pronuncia minhota; a mestra de canto-chão, admiradora de Bocage e que se +dizia descendente dos Tavoras; a historia de uma freira que morrera de +amor e cuja alma ainda em certas noites percorria os corredores, +soltando gemidos dolorosos e chamando:--Augusto! Augusto!... Tinham-lhe +ensinado o cathecismo e a doutrina: fallavam-lhe sempre dos castigos do +céu; de tal sorte que Deus apparecia-lhe como um Ser que dá o +soffrimento e a morte, e que é necessario abrandar resando e jejuando, +ouvindo novenas e amando os padres. Era por isso toda cuidadosa e se ás +vezes ao deitar lhe esquecia uma Salve-Rainha, fazia penitencia no outro +dia porque temia que Deus lhe mandasse sessões ou a fizesse cair na +escada.» Além da doutrina aprendera a tocar piano com um velho +romanesco. Lêra livros de versos, fôra namorada durante uma estação de +banhos por um estudante de Coimbra, que lhe fizera umas quadras. Estava +pedida por um escrevente de tabellião, que se perturbava sob o seu olhar +voluptuoso mas que ella não amava, sentindo em si «como um grande somno +do coração.» Não tinha pae. Era sanguinea e forte, de grossos beiços +levemente sombreados de pennugem negra. Ouvia missa todos os dias e +confessava-se todas as semanas.--A mãe era protegida por um conego. Ella +padecia tedios nevralgicos e inquietações hystericas. + +Todos os demais personagens, alguns d'elles apenas indicados por quatro +palavras, que têem o poder de uma evocação, o conego Dias, o padre +Natario, o padre Brito, o chantre, o coadjutor, o Libaninho, o tio +Esguelha, o escrevente, o redactor da _Voz do Districto_, as senhoras +Gançosos, a sr.ª D. Maria da Assumpção, a Joanneira,--vivem, têem uma +physionomia, uma personalidade. + +O desenlace do drama, a morte de Amelia, a fuga do padre da quinta da +Cortegaça, de noite, levando o filho escondido na capa; o seu terror ao +sentir-se seguido, ao ouvir atraz de si no macadam as passadas surdas do +escrevente, passadas commedidas pelas d'elle, acompanhando-o como o +remorso, como o presentimento da catastrophe que se aproxima; o +infanticidio perpetrado no escuro, com os pés no lodo, á beira do rio, +escondido nos juncos como um animal ferido cercado pelos latidos +raivosos da matilha; a sua retirada de Leiria ao outro dia, por uma +serena tarde de outomno, de uma poetica serenidade ineffavel, partindo a +cavallo no momento em que os sinos da sé começavam a soluçar o dobre de +defuntos, emquanto um realejo toca na rua um trecho da _Norma_, e, de +uma casa defronte, um pequerrucho seguro ao peitoril da janella pelo pae +e pela mãe que riem, lhe diz adeus com a sua pequena mãosita +papuda;--constituem paginas de uma concepção e de uma tonalidade +tragica, profundamente elegiaca e solemne, que fica vibrando por muito +tempo na memoria como o ecco funebre de um _dies irae_. + +Este livro misanthropicamente concebido, e executado com uma ironia +mordente e com um humorismo repassado de lagrimas, deixa todavia no +espirito uma forte impressão consoladora; é a obra de um grande artista, +de um poderoso revelador de ideal; e como toda a idealisação perfeita, +repousa-nos das nossas preoccupações pessoaes e egoistas, +engrandece-nos, eleva-nos aos nossos proprios olhos, infunde-nos a fé, +obriga-nos a crêr no sagrado desinteresse da arte, na divina +immortalidade do bello. + + * * * * * + +Se depois da idéa que procurei dar-te d'este livro, tu, leitor me +perguntares se o deves dar a ler á menina tua filha, eu respondo-te +terminantemente que não. As meninas nunca lêem romances, quaesquer que +elles sejam. + +Se o podem lêr as mulheres--é uma outra questão, á qual respondo que +podem, ainda que com esta reserva--ás escondidas. + +Não que este livro seja immoral. A arte é absolutamente independente da +moral, e não póde nunca nem servil-a nem prejudical-a. + +Quando para minha consolação e refrigerio eu me desvio da estrada em que +succumbo de fadiga mordido pelo sol, e vou descançar um momento á sombra +de uma arvore, não pergunto se essa arvore dá peras ou se dá pilritos, +se da sua resina se póde extrair um balsamo ou um veneno, se dos seus +filamentos se póde entrançar uma corda para o sino ou um baraço para a +fôrca, se no seu tronco se podem serrar as pranchas para construir a +arca ou para armar o patibulo. A unica coisa que lhe pergunto é se ella +tem, para m'a dar, uma boa sombra fresca, macia, aromatica; e se a tem, +eu, que n'esse momento não sou um negociante de productos alimenticios, +nem um madareiro nem um chimico nem um engenheiro constructor, mas sim +um caminheiro prostrado, eu declaro, não só em meu nome, mas em nome da +sciencia, em nome da moral, em nome da religião, em nome do homem e em +nome de Deus, que essa arvore é boa, é util, é necessaria--não pelos +materiaes que ministra, não pelos fructos que produz, nem pelas +substancias que segrega, mas unica e simplesmente por uma condição +imponderavel e etherea, da qual em dada crise pode depender o meu +destino inteiro e toda a minha vida; e essa condição é a de se interpôr +no espaço entre mim e o ceu, e projectar sombra. + +Na esphera das multiplas vegetações do nosso espirito a sciencia e a +philosophia fornecem as substancias alimenticias e ministram os +materiaes das construcções; a arte é a arvore santa, a arvore da sombra +para os peregrinos do pensamento. + +Schiller em uma das suas cartas, cujo texto não tenho presente, expôe +uma theoria que pode resumir-se n'estes termos: «Se um critico em nome +da moral processa o meu livro não pelo que eu n'elle escrevi mas pelas +conclusões que elle critico lhe extrae, eu despreso esse julgamento. Se, +porém, a critica me convencer de que, dado o assumpto qual eu o concebi, +eu poderia executal-o por outro modo, eu n'esse caso submetto-me, não +porque tenha errado contra a moral, mas porque errei contra a arte. + +Ora na execução do livro do sr. Eça de Queiroz ha na parte descriptiva +dois ou tres pormenores que não quereriamos eliminados--com quanto isso +fosse possivel sem quebra da verdade--mas que nos parece poderem ser +referidos de um modo--não dizemos mais pudico--dizemos mais artistico. + +Ha em todos os grandes romancistas modernos, desde Balzac até o sr. +Queiroz, uma tendencia de que o vulgo tem feito o attributo de uma +escola, tendencia febril a demorarem sensualmente as analyses da torpeza +e da podridão. + +O grande Eschylo dizia, censurando Euripides: «Elle deprimiu tudo +aquillo em que pegou, eu enobreci tudo aquillo em que toquei; os homens +saidos das minhas mãos respiram gladios e lanças, capacetes de +pennachos brancos e escudos reforçados com sete couros.» Os artistas +modernos não podem infelizmente inscrever nos seus brazões a nobre +divisa do velho tragico. A sociedade actual não fornece á arte os +grandes crimes que alimentaram o interesse da tragedia grega, porque as +depravações contemporaneas não gravitam em torno do crime heroico mas +sim em torno do vicio mesquinho e vergonhoso. Quem descreve os +caracteres modernos tem fatalmente de operar na gangrena; o que nos não +parece egualmente inevitavel é que o puz do tumor salpique a mão que o +opera. Ora o que julgamos notar, por duas ou tres vezes como acima +dissemos, na obra tão profundamente casta do sr. Eça de Queiroz é que os +seus instrumentos anatomicos, tão bem acerados e tão finos, teem os +cabos demasiadamente curtos. + +A dissecção--permitta o nosso amigo que lh'o observemos--tem tambem as +suas leis de conveniencia e de elegancia. Além de que, para estudar um +orgão é ocioso expôr aos olhos do amphitheatro toda a nudez do cadaver. +Mesmo em anatomia o completo conjuncto é obsceno, porque é inutil. + +As damas da côrte tão _pointilleuse_ de Luiz XIV--ellas que +representavam tudo quanto possamos conceber mais escrupuloso e mais +exigente no decoro e no gosto--frequentavam, sem offensa do seu fragil +melindre de estufa, os theatros anatomicos. + +«Á medida, diz Fontenelle, que Verney se tornava um homem á moda punha +em moda a anathomia, a qual, encerrada até ahi nas escolas de medicina +ou em Saint-Côme, ousou produzir-se na alta sociedade apresentada pela +mão d'elle.» O tacto especial de Verney contém um exemplo que pode não +ser inutil ao sr. Eça de Queiroz. + +As senhoras portuguezas não cursam os estudos scientificos. Não teem os +menores principios de biologia, de anathomia e de physiologia, +principios indispensaveis para entrar nos estudos mais complexos do +homem como são na sciencia a historia e na arte o romance de caracter e +a esculptura do nú. + +Por isso a falsa noção que ellas teem do pudor as torna incompativeis +com muitas das mais preciosas convivencias intellectuaes. + +Uma noção social não pode, porém, ser modificada pelos escriptores ou +pelas academias. Essa reforma é a obra collectiva e impessoal do +progresso nos costumes e nas instituições. + +N'estas condições, deploraveis mas inamoviveis, maior deve ser a atenção +do artista em limar--tanto quanto isto seja possivel sem detrimento da +obra--os pequenos angulos subalternos que difficultem a adaptação d'ella +aos costumes. + +Sob este ponto de vista _O crime do Padre Amaro_ está adeante do seu +tempo. Como obra de arte é este um destino feliz, porque n'este caso ter +de esperar é adquirir a certeza de sobreviver. Como obra de hygiene +social lamentamos que elle não possa desde já actuar pela sua +influencia no espirito d'este paiz onde o primeiro livro da educação +moderna _La femme, le prêtre et la famille_ é ainda tido por um +sacrilegio de Michelet, o impio! + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of As Farpas: Chronica Mensal da +Politica, das Letras e dos Costumes, by Ramalho Ortigão and Eça de Queiroz + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK AS FARPAS: CHRONICA MENSAL *** + +***** This file should be named 16218-8.txt or 16218-8.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/1/6/2/1/16218/ + +Produced by Biblioteca Nacional de Lisboa, Portugal, Cláudia +Ribeiro, Larry Bergey and the Online Distributed +Proofreading Team + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact +information can be found at the Foundation's web site and official +page at https://pglaf.org + +For additional contact information: + Dr. Gregory B. Newby + Chief Executive and Director + gbnewby@pglaf.org + +Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation + +Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide +spread public support and donations to carry out its mission of +increasing the number of public domain and licensed works that can be +freely distributed in machine readable form accessible by the widest +array of equipment including outdated equipment. Many small donations +($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt +status with the IRS. + +The Foundation is committed to complying with the laws regulating +charities and charitable donations in all 50 states of the United +States. 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Donations are accepted in a number of other +ways including including checks, online payments and credit card +donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate + + +Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic +works. + +Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm +concept of a library of electronic works that could be freely shared +with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project +Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. + +Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed +editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. +unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. + +*** END: FULL LICENSE *** + diff --git a/16218-8.zip b/16218-8.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..ac039a4 --- /dev/null +++ b/16218-8.zip diff --git a/16218-h.zip b/16218-h.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..5e34d63 --- /dev/null +++ b/16218-h.zip diff --git a/16218-h/16218-h.htm b/16218-h/16218-h.htm new file mode 100644 index 0000000..1c57521 --- /dev/null +++ b/16218-h/16218-h.htm @@ -0,0 +1,2711 @@ +<!DOCTYPE html PUBLIC "-//W3C//DTD XHTML 1.0 Strict//EN" + "http://www.w3.org/TR/xhtml1/DTD/xhtml1-strict.dtd"> +<html xmlns="http://www.w3.org/1999/xhtml"> +<head> + <meta http-equiv="Content-Type" content="text/html; charset=ISO-8859-1" /> + <meta content="pg2html (binary v0.16)" name="generator" /> + <meta name="author" content="Ramalho Ortigão and José Maria Eça de Queiroz" /> + <title>The Project Gutenberg eBook of As Farpas, Janeiro a Fevereiro 1877 +by Ramalho Ortigão and Eça De Queiroz.</title> + <style type="text/css"> + /*<![CDATA[*/ + <!-- + body { margin-left: 10%; margin-right: 10%; } + h1,h2,h3,h4,h5,h6 { text-align: center; } + hr.major { width: 30%;} + hr.minor { width: 10%;} + sup.small {font-size: 75%} + .centered {text-align: center} + .foot { margin-left: 10%; margin-right: 10%; text-align: justify; text-indent: -3em; font-size: 85%; } + .poem { margin-left: 10%; margin-right: 10%; margin-bottom: 1em; text-align: left; } + .poem .stanza { margin: 1em 0em 1em 0em; } + .poem p { margin: 0; padding-left: 3em; text-indent: -3em; } + .poem p.i2 { margin-left: 1em; } + .poem p.i4 { margin-left: 2em; } + .poem p.i6 { margin-left: 3em; } + .poem p.i8 { margin-left: 4em; } + .poem p.i10 { margin-left: 5em; } + /*]]>*/ + // --> + </style> +</head> +<!--====================================================--> +<body> + + +<pre> + +The Project Gutenberg EBook of As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das +Letras e dos Costumes, by Ramalho Ortigão and Eça de Queiroz + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes + Janeiro a Fevereiro de 1877 + +Author: Ramalho Ortigão and Eça de Queiroz + +Release Date: July 6, 2005 [EBook #16218] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK AS FARPAS: CHRONICA MENSAL *** + + + + +Produced by Biblioteca Nacional de Lisboa, Portugal, Cláudia +Ribeiro, Larry Bergey and the Online Distributed +Proofreading Team + + + + + + +</pre> + +<div class="centered"> + <img src="images/devil.png" width="570" height="755" + alt="Eça de Queiroz—Ramalho Ortigão—As Farpas" /> + <!--IMAGE END--> +</div> +<hr class="major" /> +<h1> + AS FARPAS +</h1> +<div class="centered"> + <p>RAMALHO ORTIGÃO—EÇA DE QUEIROZ</p> + <p>CRONICA MENSAL DA POLITICA DAS LETRAS E DOS COSTUMES</p> + <p>NOVA SERIE TOMO VIII</p> + <p>Janeiro a Fevereiro 1877</p> +</div> +<hr class="major" /><!--===================--> +<blockquote> +<p> +Ironia, verdadeira liberdade! És tu que me livras da ambição do poder, +da escravidão dos partidos, da veneração da rotina, do pedantismo das +sciencias, da admiração das grandes personagens, das mystificações da +politica, do fanatismo dos reformadores, da superstição d'este grande +Universo, e da adoração de mim mesmo. +</p> +</blockquote> +<p class="centered"> + P.J. PROUDHON +</p> +<hr class="major" /><!--===================--> + +<p class="centered"> + <b>SUMMARIO</b> +</p> +<p> + A actual <a href="#situacao">situação politica</a>. + Conceituosa parabola das moscas e das maselas. + O <a href="#partido">partido revolucionario e o partido conservador</a>. + A funcção de + um e outro d'estes partidos. Anarchia ou retrocesso. Extincção do + partido revolucionario por falta de idéas. Mancommunação conservadora. + Philosophica historia de uns almocreves e de um pipo de vinho. A + profunda synthese do pipo do Estado.—As inundações. + <a href="#meteorologica">Crise meteorologica</a>. + Theoria da chuva. Os irrigamentos e as cheias. As + civilisações e os rios. As previsões industriaes e economicas. O regimen + das torrentes. A arborisação. Os diques provisorios. As fontes de + Palissy. <a href="#economica">Crise economica</a>. + O Estado e o Inundado. Troca de + correspondencias. Lisboa durante a crise: os salões, os espectaculos, a + imprensa, o parlamento. Intervenção de sua magestade a rainha. A + caridade como elemento de administração. Autopsia do anjo. De como este + não baixou do ceu. Demonstra-se que saiu da arcada do Terreiro do Paço. + A intervenção dos Prelados. As preces para mudar o tempo e os + observatorios para o estudar. Os moinhos do <a href="#Tibet">Tibet</a> + e as cabaças dos + Kalmuks. A intervenção da colonia portugueza no Brazil. O brazileiro que + parte, e o brazileiro que chega. O patriotismo dos nostalgicos. A + commissão de soccorros.—Um <a href="#banquete">banquete militar</a>. + O que se passa dentro dos + craneos sob a pressão das barretinas.—O centenario da + <a href="#Academia">Academia das Sciencias</a>. + A tradição academica. A Academia, berço da revolução e da + liberdade. Ferreira Gordo, o abbade Correia da Serra, o padre Antonio + Pereira, o duque de Lafões, academicos e + jacobinos.—<a href="#Amaro"><i>O crime do Padre Amaro</i></a> + romance d'Eça de Queiroz. +</p> +<p> + A <a id="situacao" name="situacao" >situação politica</a>... +</p> +<p> + Mas, perdão—antes de encetarmos este assumpto, uma pequena historia: +</p> +<p> + Era uma vez um velho burro. Fora madraço e manhoso. Não conquistára + amigos porque os não merecia. Tinham-o lançado á margem no fim da vida. + Principiou a viver ao acaso, pelos montes. Um dia achava-se defronte de + um vallado, estacado ao sol sobre as suas quatro patas, inerte, immovel, + olhando para um cardo secco com os seus grandes olhos redondos e + encovados em orbitas esqueleticas, pensando nas vicissitudes da vida e + procurando arrancar do seu cerebro, para se consolar, algumas idéas + philosophicas. +</p> +<p> + Passou por elle e deteve-se a contemplal-o um joven asno, no viço das + illusões, cheio de amor e de zurros, de alegria e de coices. A vetusta + ossada angulosa do ancião parecia furar-lhe a pelle resequída e aspera. + Um espesso enxame de moscas cobria-lhe as mataduras do lombo e dava-lhe + o aspecto de ter um albardão feito de zumbidos e d'asas sobre um fundo + de missangas pretas e palpitantes,—coisa rabujosa á vista. +</p> +<p> + —Sacode esse mosqueiro, disse-lhe o burro novo. Dar-se-ha o caso de + que, á similhança do homem, deixasses tambem tu atrophiar o precioso + musculo que ahi tens na face para por meio d'elle abanares a orelha e + moveres a pelle?... Sacode-te, bestiaga! +</p> +<p> + Ao que o lazarento, pausado, retorquiu: +</p> +<p> + —Não sabes o que zurras, joven temerario! O destino de quem tem maselas + é que o mosqueiro o cubra. As moscas que tu vês, e de que o meu cerro é + a estalagem com mesa redonda, são moscas fartas, teem a mansidão + abundante dos estomagos cheios. Se eu as sacudisse, viriam outras,—as + famintas, de ferrões gulosos, que zinem como frechas, pousam como + causticos, mordem como furunculos. As que tu vês prestam-me um serviço + impagavel:—livram-me das que podem vir; são o meu xairel benigno e + suave, o meu arnez, a minha couraça. Quando te chegar a idade de seres + pasto de moscas (e breve te soará essa hora porque a mocidade é, como a + herva, uma ephemera transição entre o alfobre da meninice e a palha da + edade madura); quando te chegar o teu dia, lembra-te, asninho + imprudente, d'este conselho amigo de um burro velho, que não aprende + linguas, mas que tem a experiencia que vale tanto como o ouro: Nunca + sacudas mosca desde que creares masela! Teme-te dos papos vasios das + revoadas novas. Papos cheios não só não mordem mas até empacham! + Comprehendeste, burrinho, a philosophia da minha inercia? +</p> +<p> + Revertamos agora, como vinhamos dizendo, á situação politica. +</p> +<p> + Em toda a sociedade em movimento ha dois unicos partidos: + o <a id="partido" name="partido" >partido conservador e + o partido revolucionario</a>. +</p> +<p> + A funcção do partido revolucionario, qualquer que seja o seu + nome—republicano, socialista, federalista, fourrierista, proudhonista, + positivista, etc.—é transformar a ordem estabelecida, modificando as + condições da civilisação no sentido de um mais rapido progresso. +</p> +<p> + Para este fim o partido revolucionario agita constantemente por meio de + idéas novas as opiniões preconcebidas. +</p> +<p> + Como, porém, não está ainda definido o programma geral e harmonico da + revolução, como a tendencia progressiva das multidões indisciplinadas se + basea no sentimentalismo esteril ou no phantastico ideal methaphysico + dos phraseadores eloquentes, succede que todo o esforço revolucionario + representa para a sociedade um perigo de desordem, de incoherencia e de + anarchia. +</p> +<p> + A funcção do partido conservador é a manutenção da ordem contra todas as + invasões que directa ou indirectamente ameacem a integridade da + organisação existente. Em todas as velhas sociedades os governos são por + essa rasão, os inimigos natos do progresso. A evolução progressiva da + humanidade realisa-se, a despeito d'elles, pela elaboração irresistivel + das idéas fora da esphera official, sob a acção das descobertas da + sciencia ou das suggestões da arte. O mais que fazem os governos é + submetterem-se ás transformações sociaes que a solução de cada novo + problema resolvido pela sciencia impõe á existencia dos povos. Os + governos, portanto, sempre que uma forte effervescencia intellectual não + agita a sociedade e os não abala constantemente na eminencia do seu + posto forçando-os a concessões successivas, tendem ao retrocesso. +</p> +<p> + A civilisação não é na orbita politica senão o justo equilibrio das + forças resultantes d'essas duas tendencias: a tendencia retrograda na + ordem, a tendencia anarchica na revolução. +</p> +<p> + Em Portugal o que succede? +</p> +<p> + A vida intellectual é extremamente debil. A sciencia não tem cultores + desinteressados e ardentes, a acção da arte sobre a aspiração dos + espiritos é nulla. +</p> +<p> + O resultado é que os partidos de opposição, não encontrando nos + phenomenos da vida nacional a profunda expressão implacavel de novas + necessidades a que os governos tenham de amoldar-se, acham-se + naturalmente desarmados das grandes rasões que reptam os governos a + progredir ou a abdicar. +</p> +<p> + Em taes condições o partido revolucionario dentro da milicia politica, + partido fabricado pelos proprios governos com a corrupção do + suffragio,—sendo uma pura convenção, uma fixão constitucional, uma + expressão rhetorica, sem raizes na consciencia e na vontade + popular,—acabou por desapparecer inteiramente do nosso systema + representativo. Ha muitos annos que a revolução não tem quem a + represente no parlamento portuguez. +</p> +<p> + Ha, todavia, uma maioria parlamentar e uma opposição composta de varios + grupos dissidentes. Estes grupos são fragmentos dispersos do unico + partido existente—o partido conservador—fragmentos cuja gravitação + constitue o organismo do poder legislativo. +</p> +<p> + Estes partidos, todos conservadores, não tendo principios proprios nem + idéas fundamentaes que os distingam uns dos outros, sendo absolutamente + indifferente para a ordem e para o progresso que governe um d'elles ou + que governe qualquer dos outros, conchavaram-se todos e resolveram de + commum accordo revesarem-se no podler e governarem alternadamente + segundo o lado para que as despesas da rhetorica nos debates ou a força + da corrupção na urna fizesse pesar a balança da regia escolha. Tal é o + espectaculo recreativo que ha vinte annos nos esta dando a representação + nacional. +</p> +<p> + Imaginem meia duzia de almocreves sequiosos que acham na estrada um + pipo de vinho. Como nenhum d'elles tem mais direito que os outros a + beber do pipo, combina-se que cada um d'elles ponha a bocca ao espicho e + beba em quanto os pontapés dos outros o não contundirem até o ponto de o + obrigar a largar as mãos da vasilha para as apertar na parte ferida + pelos pontapés applicados pela companhia que espera. É exactamente o que + ha muito tempo tem sido feito pelos partidos portuguezes com relação ao + usofructo do poder que elles acharam na estrada, perdido. +</p> +<p> + Chegou finalmente a vez de pôr o pipo á bocca um partido + excepcionalmente valoroso de sede e inconfundivel de fibra. Este partido + não desemboca o pipo por mais que lhe façam. Protestações + escandalisadas, de almocreves, retroam. +</p> +<p> + —Este partido abusa! +</p> +<p> + —Isto não vale! +</p> +<p> + —Isto não é do jogo! +</p> +<p> + —Elle esvasia o pipo! +</p> +<p> + —Larga o pipo, pipa! +</p> +<p> + —Larga o pipo, pimpão! +</p> +<p> + —Larga o pipo, ladrão! +</p> +<p> + E incitam-se uns aos outros até á ferocidade: +</p> +<p> + —Chega-lhe rijo! +</p> +<p> + —Mais! que lhe dôa bem! +</p> +<p> + —Rebenta-me esse ôdre! +</p> +<p> + —Racha-me esse tunel! +</p> +<p> + —Ah! cão! +</p> +<p> + O partido, porém, continua sempre a beber, e é insensivel a tudo: á dor, + ao insulto, ao chasco, ao improperio, á graça pesada, á insinuação + perfida e á alusão venenosa! +</p> +<p> + Em vista de uma tal pertinacia, que nós mesmos somos forçados a taxar de + irregular, os partidos em expectativa do pipo, confederam-se, ferem o + pacto da Granja, constituem-se n'um só partido novo,—n'uma só bocca + para o pipo. Fazem um programma, redigem um manifesto, vão de terra em + terra pedindo ao paiz que intervenha. Precisamente lhes occorreu n'esse + momento que o pipo tem dono! que é do paiz o pipo! +</p> +<p> + Instado a intervir pelos pactuantes da Granja, pelos signatarios do + manifesto, pelos auctores do novo programma, pelos oradores dos + <i>meetings</i> revolucionarios, pelos jornaes opposicionistas, o paiz + responde-lhes: +</p> +<p> + Lestes a historia do sabio burro lazarento contada pelas <i>Farpas</i>? Eu + sou esse burro. Vós sois a revoada das novas moscas pretendendo + expulsar a revoada velha. Ora, moscas por moscas—sendo meu destino que + ellas sempre me cubram e me comam—prefiro as antigas moscas saciadas ás + novas moscas famintas. +</p> +<p> + Deixae-me em paz. E notae que eu nem sequer vos abano as orelhas,—que é + para não bolir comigo! +</p> +<hr class="major" /><!--===================--> +<p> + Nuvens escuras, espessas, parecendo feitas da conjugação erea de + Hymalaias de cinza e de Caucasos de cebo, toldam o céu, descem no espaço + sobre as nossas cabeças, rolam pelos telhados com os idyllios felinos do + mez de janeiro, cáem sobre os candieiros das ruas, espraiam-se pelo + asphalto dos passeios, valsam nas ruas, envolvem os transeuntes em + abraços aquosos que lhes atravessam o paletot, o collete de flanella e + as articulações dos ossos; penetram em rodopio no interior das casas + pelos resquicios das portas e das janellas, e na sua dança macraba as + pardas e humidas filhas do ar cobrem de sofregos beijos molhados e + bolorosos as lombadas dos livros, o liso marfim dos teclados, o marmore + polido das chaminés, os cabellos que se desfrisam e as idéas que se + dissolvem. Ao cabo de pouco tempo chove de toda a parte: chove do céu, + chove das paredes e dos tectos das casas, das portas, da mobilia, dos + castões das bengalas, dos <i>abat-jours</i> dos candieiros, e dos barretes de + dormir. Ha dois violentos temporaes com poucos dias de espaço entre um e + outro. Trasbordam os rios. Inundam-se os campos. Desenraizam-se arvores. + Desmoronam-se casas. Os rebanhos, os instrumentos agricolas, os generos + em deposito nos celleiros, os viaductos e os rails das linhas fereas são + arrebatados pela corrente das aguas. O curso ordinario dos negocios, o + movimento das mercadorias e dos viajantes suspende-se. Alguns dos + habitantes das regiões inundadas ficam na miseria e têem fome. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + Ha por tanto duas crises: uma + <a id="meteorologica" name="meteorologica" >crise meteorologica</a> + e uma crise economica. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + Sendo a crise economica um effeito da crise meteorologica,a questão + fundamental no estudo d'essas duas crises é a questão da chuva. +</p> +<p> + Esta questão acha-se definida e tem a sua theoria na sciencia. +</p> +<p> + Assim como a agua sujeita a uma dada elevação de temperatura se evapora + e se converte em ar, assim o ar sujeito a uma proporcional depressão + athmospherica se transforma e se converte em agua. Os conhecimentos que + já hoje se possuem da physica do globo permittem determinar os + differentes tramites do processo seguido pela natureza para obter os + resultados achados pela observação humana. +</p> +<p> + Todo o vento (effeito da rotação da terra) humedecido pela impregnação + aquatica do mar, encontrando na sua passagem um estorvo que o dilate na + atmosphera, transforma-se em chuva, ou transforma-se em neve, segundo o + gráu de arrefecimento, maior ou menor, resultante da altura a que o + eleva no espaço o volume do estorvo interposto na sua corrente. +</p> +<p> + Assim se explica o phenomeno da chuva, a existencia da neve nos + pincaros de todas as altas montanhas, e o nascimento dos rios. D'estes, + uns, como o Rhodano, o Rheno, o Danubio, são formados pela opposição das + cordilheiras á corrente regular de certos ventos; outros, como o + Mississipi e o Missouri, nascem do encontro das duas correntes + atmosphericas oppostas, uma que sáe do golpho do Mexico, outra que parte + dos Estados Unidos na direcção da Europa. +</p> +<p> + Achando-se determinado que 200 metros de elevação acima do nível do mar + dão 3 gráus de frio, é facil calcular, o frio que deve actuar no ar + elevado ás alturas dos Alpes, dos Pyreneus, do Caucaso, e de descobrir + assim as causas das geleiras, do mesmo modo se descobriu a origem das + chuvas e a do nascimento dos rios. +</p> +<p> + Possuida esta simples e clara noção, o homem adquiriu o poder de + intervir no meteoro. Em 14 de novembro de 1854 uma tempestade medonha + caíu sobre as esquadras franceza e ingleza, estacionadas no Mar Negro. + Todos os navios das duas marinhas tiveram avarias desastrosas. Muitas + embarcações de transporte naufragaram. O sr. Leverrier, director do + observatorio de Paris, procedeu então a um inquerito sobre as + perturbações atmosphericas d'esse dia, dirigindo circulares a todos os + meteorographos do mundo. Duzentas e cincoenta respostas de differentes + observatorios provaram que a onda atmospherica qua determinara a + tempestade fôra presentida pelos observadores, e que a catastrophe teria + sido evitada se o telegrapho, que caminha mais depressa do que a + corrente do ar, houvesse feito passar de observatorio em observatorio a + noticia do phenomeno. +</p> +<p> + Antigamente faziam-se preces e penitencias para pedir chuva; hoje em dia + a chuva não se pede, manda-se-lhe simplesmente que caia, e ella cáe + precisamente no ponto que se lhe designa. +</p> +<p> + Ha poucos annos ainda, no Baixo Egypto, não chovia nunca. Os celleiros + eram construidos ao ar livre, a descoberto, sobre os telhados. Desde + tempos immemoriaes que o vento secco do norte mantinha esse estado de + coisas na referida região. Um dia, porém, a corrente septentrional chega + á Alexandria e encontra uma certa difficuldade em passar com a rapidez + do costume; detem-se um momento, retarda-se um instante: basta isso para + que ella se dilate, para que se eleve no espaço, para que arrefeça na + razão da altura a que subiu e para que, por-consequencia, se converta + em chuva. D'onde viera esta poderosa resistencia á invasão do vento + esteril? De uma revolução geologica na configuração do solo? Do encontro + de um vento opposto? Da influencia calorifica da radiação solar? Não. A + voz de preso dada ao vento norte, o encarceramento d'elle n'uma certa + porção do espaço, a sua condemnação inilludivel a condensar-se e a ser + chuva, fôra simplesmente a obra do homem, que vencera o vento plantando + a arvore. +</p> +<p> + As florestas que têem o poder de occasionar as chuvas por meio da sua + interferencia na corrente dos ventos, possuem ainda a propriedade de + lhes regular os effeitos impedindo os excessivos irrigamentos, e as + inundações. +</p> +<p> + Além de certos processos de cultura e de arborisação nos cabeços dos + montes e nas encostas das colinas, ha outros meios de impedir os + estragos das cheias,—dando aos rios um regimen torrencial, operando + largos cortes transversaes nos declives do solo para regular a descida + das aguas, construindo tubos de drenagem, etc. +</p> +<p> + Quando um dique, como o de Vallada, se rompe por effeito de um + repentino augmento no volume da agua no leito de um rio, ha meios + praticos, prontos, expeditos, de construir diques provisorios. O sr. + Babinet, nos seus estudos ácerca da chuva e do irrigamento da França, + lembra para os casos analogos ao de Vallada a construcção de barreiras + feitas com grandes caixas de ferro fundido similhantes ás que + transportam a agua potavel nas navegações de longo curso. Estas caixas + enchem-se com a mesma agua do rio e sobrepõem-se ou enfileiram-se de + encontro á corrente até formarem um obstaculo de dimensões adquadas ao + volume da agua que se tem por fim represar. +</p> +<p> + O mesmo sr. Babinet suggere para o meio preventivo da arborisação o + sabio alvitre, tão moralisador, de organisar regimentos de plantadores + formados de corpos de veteranos, cujas praças encontrariam n'esse + trabalho um suave emprego da sua actividade, que o Estado poderia + utilisar remunerando-a com liberalidade superior á importancia mesquinha + do soldo e proporcional ao serviço prestado por esses cidadãos, até hoje + inuteis, á salubridade e á riqueza publica. +</p> +<p> + Por occasião das ultimas inundações em França, das recentes inundações + na Inglaterra, os meios apontados e muitos outros, descobertos pela + sciencia no momento do perigo, em frente da catastrophe, têem sido + objecto dos mais graves estudos por parte do governo, por parte da + imprensa, por parte principalmente das corporações especiaes, dos + meteorologistas, dos engenheiros hydrographos, dos de florestas, dos de + pontes e calçadas, etc. +</p> +<p> + Em Portugal deante do facto da inundação espraiada sobre as povoações do + Ribatejo, e das margens do Guadiana, a questão principal, a questão + summa, a questão technica, é posta completamente de parte, ou nem sequer + chega a ser afastada: não concorre no problema, é como se não existisse! +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + Em face do desastre, dos nossos periodicos, do nosso parlamento, dos + nossos proprios estabelecimentos de instrucção, irrompe um só grito + enorme, consternado, lacrimoso, impotente, imbecil:—<i>Caridade! + Caridade! Caridade!</i> +</p> +<p> + Parece não se ter unicamente em vista achar um remedio, mas cumprir uma + expiação que minore os castigos do Ceu! +</p> +<p> + Um antigo proloquio egypcio dizia: <i>Chuva em Tebas, desgraça no Egypto</i>. + A população portugueza não mostra ter da chuva uma comprehensão menos + supersticiosa que a da tradição tebana. Estamos na metaphysica dos + cataclismos incommensuraveis. +</p> +<p> + Debalde a meteorologia—com quanto em estado rudimentar, não constituida + ainda em sciencia sobre bases experimentaes e com processos + deductivos,—nos annuncia, ainda assim, que não ha nos phenomenos do ar + aberrações extraordinarias, inaccessiveis á previsão, mas sim + uniformidades periodicas de successão, as quaes o estudo das ondas + atmosphericas e da acção magnetica do globo, estudo dirigido + harmonicamente em uma cinta de observatorios que cinja + ininterrompidamente o globo, chegará por certo a poder um dia + regulamentar systematicamente. Definir-se-ha o sentido scientifico do + sonho symbolico das vaccas magras e das vaccas gordas, demonstrando-se + como aos annos de estiagem e de fome succedem annos compensadores de + irrigação e de abundancia. +</p> +<p> + Debalde a historia nos mostra que foi das inundações dos grandes rios + que saiu a iniciação dos grandes progressos humanos; que foi das + inundações do Nilo que procedeu a civilisação do Egypto; das inundações + do Hoang-Ho que procedeu a civilisação da China; das inundações do + Euphrates, que procedeu a civilisação da Caldea, da Babilonia e da + Syria. Povos na infancia, desprovidos das lições da experiencia, + desarmados dos instrumentos da analyse moderna, souberam fundar a sua + vida historica na previsão industrial e na previsão economica das cheias + dos seus rios. +</p> +<p> + Nós, portuguezes, em pleno seculo XIX, na posse dos mais importantes + segredos da mechanica, da astronomia, da physica, da chimica, nós, + filhos de Kepler, de Galileu, de Newton e de Francklin, nós, + contemporaneos de Mayer, de Helmboltz, de Virchow, de Haeckel, de + Humboldt, e de Wourtz, de Ampere, de Leverrier, nós, não sabemos tirar + das inundações successivas de um rio que vem de annos a annos, + periodicamente, contra nossa vontade, fertilisar os nossos campos, + nenhuma das lições que a experiencia devia suggerir-nos para regularmos + e utilisarmos em nosso proveito a acção violenta d'esse phenomeno! +</p> +<p> + Ha perto de trezentos annos que um velho naturalista, um modesto + oleiro, um simples, um santo, Bernardo Palissy, ensinou a construir as + fontes artificiaes, fazendo passar as aguas da chuva atravez de um + pequeno trato de terreno arborisado sobre um declive de cimento + argiloso, terminando n'um muro de supporte que se corta no ponto em que + se colloca a fonte e onde se deseja que a chuva, armazenada no inverno + entre as raizes do pomar plantado na encosta de subsolo sedimentado, + venha a correr no verão em bica de agua mineralisada e limpida. Ha + trezentos annos que isto se ensinou. Em Portugal, onde a chuva + torrencial é um facto de quasi todos os invernos, onde a falta de agua + potavel é um facto de quasi todos os verões, ainda ninguem aprendeu a + construir a fonte de Palissy! +</p> +<p> + Em Lisboa cairam alguns muros e desabaram algumas casas. Se um ligeiro + abalo de terra se tivesse seguido ás grandes chuvas é natural que muitos + outros predios aluissem, porque a grave questão das edificações em + Lisboa está absolutamente despresada e abandonada á rotina do velho + systema adoptado pelo marquez de Pombal. Ora esse systema, aliás + excellente no tempo da reedificação subsequente ao terremoto, é hoje + imperfeito e perigoso. A canalisação da agua e as chaminés dos fogões de + sala vieram modernamente alterar os dados do problema resolvido pela + sabia administração pombalina. Os andaimes de madeira geralmente + adoptados para sustentar os soalhos e os tectos ou apodrecem rapidamente + ao contacto dos canos da agua que envolvem os predios ou se carbonisam + por effeito do calor que lhes communicam os tubos das chaminés. A + elasticidade que se tem em vista obter para evitar os desabamentos + procedentes dos terremotos, substituindo os madeiramentos pela pedra, só + poderia conseguir-se, sem perigo do apodrecimento ou da carbonisação, + empregando nas construcções modernas o ferro em vez do pau. Esta + modificação tão facil, tão economica, tão urgentemente exigida nos novos + systemas de edificar, o nosso desleixo nacional não nol-a tem deixado + ensaiar. De modo que a mesma previsão do perigo discorrida pelo unico + homem que acordou em Portugal por occasião do grande tremor de terra com + que á natureza benigna approuve tentar acordar-nos, essa mesma a nossa + indolencia e a nossa incuria conseguiu converter dentro de poucos annos + em mais uma causa de destruição e de aniquilamento! +</p> +<p> + Do regimen torrencial dos rios, da arborisação das montanhas, dos côrtes + transversaes das vertentes, da construcção dos tubos de drenagem, das + applicações da draga, dos diques moveis organisados por meio das grandes + caixas de ferro fundido, caixas que boiam na agua em quanto vasias e que + um pequeno vapor munido do um cabo de reboque poderia conduzir aos + centos sobre o Tejo para os pontos da margem que conviesse resguardar + pelo pequeno espaço de tempo necessario para evitar o perigo, quasi + momentaneo, das inundações, do emprego finalmente de qualquer dos muitos + meios conhecidos para dominar as cheias ou para utilizar as chuvas, + ninguem se occupa—nem o governo que assiste ao espectaculo commodamente + sentado nos seus <i>fauteuils de orchestre</i> e applica á marcha dos + successos o seu binoculo de dilettanti correcto, imperturbavel, nem o + parlamento, nem a imprensa, nem finalmente o paiz! +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + A <a id="economica" name="economica" >crise economica</a> não nos parece ter sido objecto de cuidados mais + serios do que aquelles que cercaram a questão hydraulica. Ou é certo ou + não é que a inundação do Tejo e os temporaes que concorreram com ella + destruíram as casas, devastaram os campos, reduziram povoações inteiras + á miseria e á fome. Se isto é uma pura invenção dos <i>reporters</i> + sentimentaes, o diligente esforço humanitario empregado para arrancar da + caridade o remedio supremo do grande mal é uma simples ostentação + insensata e ridicula. Se são verdadeiras as informações que os jornaes + vagamente nos transmittem das desgraças provenientes da inundação do + Tejo e do Guadiana, n'esse caso a questão não se resolve pela caridade + particular mas sim pela assistencia publica. +</p> +<p> + Porque—reflictamos um momento—ou existe esse conjuncto harmonico de + instituições solidarias e responsaveis chamado o Estado, ou não existe. +</p> +<p> + Se não existe, em nome de que principio nos estão aqui a impôr o serviço + militar, o exercito, as barreiras, as alfandegas, o funccionalismo e a + lista civil? +</p> +<p> + Se o Estado existe, o que é para elle o <i>lnundado?</i> O <i>Inundado</i> é o + productor e é o contribuinte. Agricultando o seu campo, creando o + cavallo, engordando o boi, creando o porco, tosquiando a ovelha, + pisando a azeitona, podando a cepa, descaseando o sobreiro, o Inundado + desde tempos immemoraveis que não faz mais do que estas duas coisas: + produz e paga. +</p> +<p> + Nós outros, habitantes do Chiado, assignantes de S. Carlos, socios do + Gremio e do Club, frequentadores do Martinho e do Passeio Publico, nós, + republicanos, regeneradores ou granjolas, commendadores de Christo e + mesarios da confraria das Chagas, nós outros não produzimos e por + conseguinte, em rigor, tambem não pagamos. +</p> +<p> + Funcionnerios publicos, capitalistas, banqueiros, ministros, oradores, + poetas lyricos, jogadores na bolsa, proprietarios de predios, vendedores + de bilhetes de loteria, consumidores insaciaveis de charutos, de copos + de cerveja, de dobrada com hervilhas e de bolos de especie,—nós, + francamente, não produzimos coisa nenhuma qae signifique dinheiro, isto + é, trabalho crystalisado, obra, ou, por outra, valor. Somos apenas—mais + ou menos legitimamente—os usufrutuarios, os administradores officiosos + ou officiaes do dinheiro dos outros. +</p> +<p> + Portanto, como acima dissemos, nóa outros, como não produzimos, em + rigor tambem não pagamos. Aquillo que alguns suppomos pagar é apenas uma + parte que se nos deduz n'aquillo que recebemos. Quem em ultima analyse + vem a pagar é unica e simplesmente o Inundado, queremos dizer o + productor, o que planta o trigo, o bacelo, a oliveira e o sobro, o que + cega a cevada e apanha a bolota, o que carda a ovelha, cria o boi, o + cavallo, o porco e o carneiro, o que dá a cortiça, o mel, a cebola, o + pão, o vinho, o azeite, o sal, o figo, a amendoa e as laranjas. +</p> +<p> + É elle, o Inundado, quem até hoje tem pago o subsidio de S. Carlos, as + carruagens dos ministros, os cavallos dos correios de secretaria, as + purpuras dos nossos reis, as <i>toilettes</i> das nossas dançarinas, os + penachos do nosso exercito, a campainha e o copo d'agua dos nossos + parlamentos, finalmente toda a despeza de administração, de pompa, de + luxo e de força, cujo conjuncto constitue a coisa chamada o Estado. +</p> +<p> + Como foi que o Estado resolveu o Inundado a pagar-lhe as suas contas? O + Estado resolveu-o fazendo-lhe o seguinte discurso: +</p> +<p> + Inundado! Você trabalha como um boi de nora, o que o não impede de ser + um infeliz e um estupido. Eu sou o Estado. Proponho-me dar-lhe a + felicidade material, intellectual e moral, cujos elementos lhe faltam, e + que v. não sabe nem póde constituir sem mim. Você não sabe lêr nem + escrever, você não sabe trabalhar, não sabe prevêr, não sabe economisar. + Você não nem a escola rural, nem a biblioteca rural, nem a policia + rural, nem o banco rural. Você não tem a granja modelo que lhe ensine os + novos processos agricolas e lhe empreste as grandes machinas de + trabalho. Você não tem arborisação nos seus montes nem canalisação nos + seus rios. Para o dotar com todos esses instrumentos de aperfeiçoamento + e de prosperidade, arranjei-lhe eu um systema, que se chama o systema + monarchico-representativo, com uma carta, um rei, e doze homens, sendo + seis ministros e seis correios a cavallo, um parlamento, composto de + duas camaras, uma electiva e outra hereditaria. Quer você ou não quer a + civilisação? Se a quer, aceite o meu systema e eleja um deputado que vá + á minha camara electiva pedir por boca em seu nome tudo o que você + appeteça. Em troca d'este enorme serviço que eu lhe presto ha de você + resignar-se a pagar-me um imposto annual, que eu cá mandarei cobrar pelo + escrivão de fazenda, e cuja importancia applicarei a regalal-o e a + divertil-o summamente com um exercito, uma côrte, um sceptro, varias + duzias de repartições publicas, um theatro, um <i>Diario das Camaras</i>, um + arsenal, uma cordoaria, uma imprensa, etc., etc. +</p> +<p> + O Inundado começou desde então a pagar e o estado começou a dispender. + Ha perto de cincoenta annos que dura esta troca de serviços. O Inundado, + porém, ainda até hoje não pôde obter nem a escola pratica, nem a + bibliotheca, nem a granja, nem os novos instrumentos agricolas, nem as + grandes machinas para a lavoura a vapor, nem a arborisação, nem os + trabalhos hydraulicos no rio. +</p> +<p> + Um bello dia, um temporal rebenta, as aguas das chuvas, sem florestas + que as espongem, sem valas que sangrem a torrente, desabam de chofre no + rio, este trasborda por cima de velhos diques em ruina, alaga as + povoações, invade as casas, e deixa o Inundado entregue á nudez, á + desolação e á fome. +</p> +<p> + O Inundado pede então a alguem que em seu nome exponha ao Estado a + situação em que elle se acha: +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + Excellentissimo Estado e meu amigo.—Ha cincoenta annos que para aqui me + acho, tendo pago sempre a v. ex.'a quantia que combinámos quando v. + ex.'a fez comigo o contracto de eu lhe mandar o imposto para Lisboa e de + v. ex.'a me mandar para aqui a civilisação. Até á data d'esta nada + recebi. +</p> +<p> + Os deputados que para ahi tenho expedido á custa de muita intriga, de + muito dinheiro, de muito copo de vinho e de bastantes bordoadas + distribuidas com as listas á bocca da urna, nada remetteram para cá + senão discursos cheios de exclamações e de erros de grammatica. Graças + aos effeitos de quarenta annos de eloquencia sobre os trabalhos da terra + e sobre as obras do rio, este cresceu repentinamente com as ultimas + chuvas, invadiu-me a casa e levou-me tudo: moveis, roupas, generos, + ferramentas. +</p> +<p> + Acho-me na derradeira miseria. +</p> +<p> + Antigamente, antes do contrato que v. ex.'a fez comigo e a que já + alludi, o dinheiro que eu ganhava, em vez de o mandar para Lisboa, + entregava-o aqui assim ao morgado, ao capitão-mór, e ao convento. Mas o + morgado e o capitão-mór, se por um lado me arrancavam a pelle como v. + ex.'a hoje faz, por outro lado eram meus amigos. Eram meus compadres, + padrinhos dos meus filhos; davam-lhes as brôas e as amendoas pelas + festas do anno, esperavam pelas rendas, punham os varapaus argolados dos + seus moços e os d'elles proprios ao serviço da nossa causa, quebravam + todos os ossos do corpo aos corregedores, aos alcaides, aos portageiros + e aos almotacés, quando estes se faziam finos, matavam-nos de quando em + quando a creação ou davam-nos chicotadas quando estavam bebados, mas em + seu juizo eram bons homens e tinham sempre as portas e os braços abertos + para nos acudirem, para nos protegerem e para nos ajudarem. Os frades + resavam,—o que, se não nos fazia bem, tambem nos não fazia mal; e esta + é a differença que distingue os frades dos seus successores, os + deputados: o frade resava, os deputados intrigam. Além d'isso, os + frades, se diziam asneiras, diziam as pelo menos em latim, o que sempre + acho que lhes custaria mais do que dizel-as em portuguez rasteiro e + agallegado como me dizem que os deputados fazem. Finalmente os frades, + se de ordinario viviam á nossa custa, tambem nas occasiões de crise nos + permittiam viver á custa d'elles, e o caldo da portaria era uma + restituição. +</p> +<p> + Quem até hoje não tem restituido a importancia de um vintem nem em + dinheiro, nem em caldo, nem em presentes, nem em favores de nenhuma + especie é v. ex.'a, meu nobre e illustre senhor. +</p> +<p> + Tudo quanto tenho pago a v. ex.'a a titulo de imposto, v. ex.'a o tem + gasto na verba recreios: exercito com as suas revistas e as suas + paradas; corpo diplomatico; côrte; gratificações aos doze homens que + representam o governo trotando sobre as pilecas de uns atraz das tipoias + dos outros; governadores civis e secretarios geraes; desembargadores + para Gôa e juizes para os Açores; repartições publicas; arsenaes; + imprensa nacional; fabrica das cordas; etc. +</p> +<p> + Portanto, achando-me eu hoje sem real em consequencia de uma desgraça de + que v. ex.'a tem a principal culpa, quer-me parecer que não serei + desarrazoado pedindo-lhe o favor de me abonar para as minhas + necessidades mais urgentes uma pequenissima parte das sommas com que eu + ha cincoenta annos tenho estado a custear uma galhofa para a qual nem + sequer ao menos me teem convidado +</p> +<p> + D'este que é +</p> +<p> + De v. ex.'a +</p> +<p> + Humilde subdito e servo +</p> +<p> + <i>O Inundado.</i> +</p> +<p> + A resposta do Estado a estas argumentações e a estas instancias é de tal + modo recreativa, que pareceria inventada, se a sua authenticidade não + fosse reconhecida, como é, de todo o mundo. +</p> +<p> + O Estado respondeu: +</p> +<p> + Meu caro Inundado.—A tua estimada carta veiu encontrar-me em uma + situação bem critica para te poder servir, como desejava. +</p> +<p> + Acho-me a braços com a resposta ao discurso da corôa, com a apparição + dos granjolas e com a segarrega do Barros e Cunha. Falta-me tempo para + me occupar de ti. +</p> +<p> + Pedi a sua magestade a Rainha para te abrir uma subscripção. A rainha + acceitou gostosa esta incumbencia. Vieram a Palacio todos os banqueiros + e todos os capitalistas da cidade. Nomearam-se commissões de homens e + commissões de senhoras para promover bazares de prendas, concertos de + amadores e recitas de curiosos em teu beneficio. +</p> +<p> + Dizes-me que não tens nada de comer. É pouco. Todavia espero que, com + alguma economia, possas d'isso mesmo tirar alguns jantares, ainda que + simples, com que te alimentes durante este mez e parte do que vem. Sê + sobrio. Um bom caldo, um peixe, um assado, um prato de legumes e meia + garrafa de vinho é quanto te deve bastar. Como não tens nada, resigna-te + um pouco e abstem-te de champagne e de faisões dourados. Perdeste a + casa, a mobilia e o fato. Vae para o hotel, enrola-te na tua robe de + chambre e não saias por estes dias. Conserva-te no teu quarto, ao fogão, + toma grogs e lê romances. Reveste-te de paciencia, já que não podes + revestir-te de pano piloto, e espera. +</p> +<p> + Tudo está preparado e em via de execução para te acudir. Eduardo Coelho + e Rio de Carvalho escrevem o hymno e estão no segundo moteto. O nosso + Luiz de Campos prepara versos. Prepararam egualmente versos o nosso + Thomaz Ribeiro, o nosso Pinheiro Chagas, o nosso Fernando Caldeira, o + nosso Forte Gato, e outros. +</p> +<p> + É tal o movimento poetico e o consumo de rimas que escaceam já os + consoantes para <i>rainha</i>; manda-me pelo telegrapho os que ahi tiveres + disponiveis e mais proprios do alto estylo do que <i>tainha, morrinha, + doninha, carapinha, picoinha, espinha, ventoinha, gallinha e mezinha</i>. + Manda tambem para <i>Pia</i> os que poderes obter, menos os que pareça + conterem allusões irreverentes como <i>enguia, folia, tosquia, letria, + azia, mania</i> e <i>bacia</i>. +</p> +<p> + Cada um ajusta ao pé o patim da caridade e guina para seu lado em + arabescos cheios de phantasia e de elegancia: está-se n'um <i>skating + rink</i> de beneficencia para te accudir, meu grande maganão. +</p> +<p> + Além dos que fazem versos e dos que fazem hymnos, ha sujeitos a quem os + teus revezes—tão lastimados elles são!—têem feito espigar mazurkas e + rebentar polkas ... de pura dôr. +</p> +<p> + Entre as modistas tem havido largas discussões para se decidir se a + caridade se deve fazer com decote ou com vestido afogado. Para os actos + de beneficencia diurna têem-se adoptado geralmente os vestidos de meia + caridade, de veludo ou casimira, abotoados. Para os rasgos de + beneficencia nocturna as <i>toilettes</i> são sempre de grande-caridade, isto + é: decotes quadrados guarnecidos de renda de Bruxellas, toda a cauda, + luvas de dez botões, e diamantes. +</p> +<p> + É indiscriptivel a animação ferverosa que reina em todos os salões para + se tratar de ti. Triplicaram as <i>soirées</i> n'este inverno e dança-se + todas as noites com o expresso fim de te favorecer. Tocam-se os + lanceiros e fazem-se discursos para te obsequiar. +</p> +<p> + —Elle geme nas vascas da mais horrorosa agonia!... Chaine anglaise, + minha senhora! +</p> +<p> + —Mas nós havemos de arrancal-o das fauces da miseria ... Sirva-me um + gelado! +</p> +<p> + —Arrancal-o-hemos, ainda que seja a ferros!... De fructa ou de leite, + minha senhora? +</p> +<p> + —Salvemol-o vivo ou morto!... De leite! +</p> +<p> + Ás duas horas ceia, volante ou de bufete, serviço quente e frio, menu de + Baltresquí. +</p> +<p> + Um telegramma que chega:—O Inundado está com agua pela cinta. +</p> +<p> + Um sujeito fugindo com um perú assado:—Vou levar-lhe uma boia! +</p> +<p> + Uma menina gritando: +</p> +<p> + —Não! Não! não o devo consentir! não consentirei jámais que o coração + generoso d'aquelle que me deu o ser se sacrifique assim, principalmente + por um inundado que só está em perigo—da cinta para baixo! Accudam ao + papá! Subtraiam-lhe essa boia! Subtraiam-lh'a, que lhe vae fazer mal: + elle já comeu uma! +</p> +<p> + De rasgos d'estes poderia citar-te centenas. +</p> +<p> + Restos de velhas edições de livros, de polkas, de almanacks, que o + consumo do publico se recusou a tragar e que jaziam desde tempos remotos + nos archivos de familia dos respectivos autores, acabam de te ser + coasagrados e cáem sobre as subscripções abertas para te proteger como + bençãos dos genios incomprehendidos e olvidados. +</p> +<p> + A mesma infancia estudiosa abre nas aulas de instrucção primaria + subscripções para te acudir, e meninos, que ainda não conseguiram + penetrar no <i>quadro de honra</i> como sufficientemente fortes em leitura, + figuram nas resenhas dos jornaes como bemfeitores dos homens. +</p> +<p> + Não sei realmente, querido Inundado, como poderás agradecer-nos tão + reiterados e tão grandes beneficios! Como não sabes fazer mais nada, + espero ao menos quo rezes por nós. Compenetra-te bem de quanto nos + deves, e não te esqueças nunca, em primeiro logar de nos pagar as + decimas, e em segumdo de nos encommendares a Deus em todas as tuas + orações de manhã e de tarde para que o Altissimo vele constantemente + pelos nossos preciosos e divertidos dias e nos dilate a vida pelos mais + longos annos, como desejas e has mister. +</p> +<p> + Não te assustes, por quem és, com esse passageiro incidente da agua pela + cinta. Mantem-te em uma attitude serena e firme. As cheias bolindo-se + com ellas ainda enchem mais. Ao passo que, abandonadas a si mesmas, as + cheias aborrecem-se e esvasiam. Por tanto deixa obrar a natureza. Logo + que o tempo enxugue e os terrenos sequem, socega que irei ver-te. Podes + desde já preparar a foguetada, o vivorio, e o publico regosijo, para + receberes quem é devéras +</p> +<p> + Teu amo e protector +</p> +<p> + <i>O Estado</i>. +</p> +<p> + <i>P. S.</i> O bom amigo Luiz de Campos recommenda-se-te muito e manda + perguntar-te como gostas mais da caridade, se escripta á latina com <i>c + a</i>, ou á grega com <i>c h a</i>. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + Diz-se geralmente—e parece-nos util fixar este boato como um symptoma da + epoca—que sua magestade a rainha fôra aconselhada e guiada em todos os + tramites da sua intervenção a favor do Inundado por um personagem já + hoje eminentemente poderoso, mas ao qual os recentes conselhos a sua + magestade vão dar um novo grau de importancia culminante e unica na + governação publica. Será perfeitamente legitima essa importancia. Se + effectivamente houve um homem sufficientemente sagaz para se conservar + na sombra e para suggerir a sua magestade a rainha a idéa profunda de + apparecer ella, unica e exclusivamente, a debellar unma catastrophe + publica, esse homem fez aos partidos conservadores em Portugal um + servigo incomparavel e deu uma prova de pericia e de habilidade que + nunca se egualou e que se não póde exceder. +</p> +<p> + Como se sabe, os partidos conservadores não têem idéas, não podem e não + devem tel-as; os que por excepção as produzem commettem um erro fatal e + são victimas do seu proprio acto. Em todo o <i>statu quo</i> toda a idéa nova + é um rombo. Quem no poder tem idéas, afunde-o. Nos regimens + conservadores, como o que vigora em Portugal desde muitos annos, as + idéas são erupções revolucionarias extranhas á acção governativa. A + missão dos que governam não é lançar na circulação essas idéas, mas sim + e unicamente vigiar o systema, como se vigia a couraça de um monitor em + batalha naval, e sempre que uma idéa penetre, rolhar o furo e + disciplinar em seguida o elemento novo introduzido a bordo pelo + projectil inimigo. +</p> +<p> + Aos governos conservadores não se pedem por conseguinte idéas: pedem-se + expedientes. Expedientes para quê? Para conservar. Como? Por todos os + meios que produzam este resultado:—a consolidação do que está. +</p> +<p> + É de dentro d'esta theoria, que encerra toda a sciencia de governar, que + nós dizemos: os conselhos a sua magestade a rainha, se alguem + effectivamente lh'os deu (cremos que sim e diremos já porque) são o acto + mais sabio, porque esse acto faz recair no assumpto o expediente mais + adequado e mais proficuo. +</p> +<p> + Se o governo procurasse directamente estudar e resolver o problema da + inundação, que succederia? A opposição contraditava-o. Na imprensa e na + camara os partidos dissidentes discutiriam as medidas ministeriaes, + controvertel-as-hiam, impugnal-as-hiam com argumentos, com sarcasmos, + com insultos. Quem sabe se o governo assim batido tenazmente de bombordo + e estibordo não acabaria por metter agua, iniciando um simulacro de + alguma coisa parecida ainda que remotamente, com uma idéa?! +</p> +<p> + Que aconteceu, porém, em vez d'isso? +</p> +<p> + Sua magestade a rainha, disse-se, toma a iniciativa de todos os + soccorros ás victimas da inundação. E sobre esta noticia publicada em + grandes letras nos jornaes da manhã, o governo foi para a camara, cruzou + os braços e esperou corajosamente que a representação nacional se + manifestasse. Então a opposição em peso, composta dos srs. Barros e + Cunha, Osorio de Vasconcellos e Pinheiro Chagas, pediu a palavra pela + bocca dos seus oradores. +</p> +<p> + O sr. Osorio de Vasconcellos disse:—«Partiu de alto a iniciativa; + partiu de uma illustre senhora, de sua magestade a rainha. Pois + congratulemo-nos com o paiz inteiro; congratulemo-nos com este + sentimento homogeneo de caridade manifestado por todos os cidadãos sem + distincção de classe e que veio em allivio e amparo da miseria, que é + geral <i>(apoiados)</i> do soffrimento que é grande; das amarguras que são + immensas ... O nosso paiz foi sempre reconhecido pelos impulsos da + caridade ... Se porventura do alto do Golgotha o Divino Mestre, etc., + etc.» +</p> +<p> + O sr. Barros e Cunha:—«Mando para a mesa a seguinte proposta que espero + seja desde já votada por acclamação: A camara prestando a caridosa + iniciativa de que sua magestade a rainha houve por bem usar em beneficio + das victimas das inundações a homenagem que lhe deve em nome do povo que + representa, resolve que este voto seja lançado na acta das suas sessões, + e que uma grande deputação deponha aos pés da augusta princeza o tributo + do seu reconhecimento.» +</p> +<p> + O sr. Pinheiro Chagas, (fallando comsigo mesmo)—«Trago tambem aqui uma + proposta da mensagem a sua magestade, feita com tanto patriotismo como a + de Barros e Cunha e com mais grammatica. Visto, porém, que a camara + approvou a d'elle, vou pôr a minha em verso e levo-a para o Gymnasio. + Tenho concluido.» +</p> +<p> + E na camara dos srs. deputados, onde o governo poderia ter sido + violentamente e perigosamente accusado pela sua cumplicidade nos + effeitos da inundação, os unicos tres deputados da opposição que n'este + dia se achavam na sala não tiveram voz senão para louvar a caridade, + para citar o Golgotha e para convidar uma grande commissão a ir depôr + nos degraus do solio os testemunhos mais humildes do reconhecimento + popular! +</p> +<p> + A imprensa toda, unanimemente, confessou que sua magestade a rainha era + indubitavelmente um anjo, ao qual todos os noticiaristas deviam + permittir-se a liberdade de mexer um pouco nas azas em signal de + gratidão. +</p> +<p> + Depois da imprensa e da camara dos deputados vieram as corporações todas + com o seu obulo e o seu communicado aos jornaes. Os soldados, os + empregados das repartições publicas, os carpinteiros, os serralheiros, + os cocheiros, etc. collocaram a sua prosa apologetica sobre os voadouros + angelicaes da santa princeza: versos, hymnos, valsas brilhantes, + <i>speechs</i>, mensagens, missivas particulares, desenhos á penna, vivas, + bordados a cabello e a missanga, hurrahs explosivos, tropheus + emblematicos e pratos montados com figuras allegoricas, tudo concorreu + n'esta immensa apotheose. +</p> +<p> + E, se, depois de tudo isto, o dique de Vallada ficou no estado em que + anteriormente estava, o throno dos nossos reis, pelo menos, acha-se mais + firme que nunca no amor dos novos. +</p> +<p> + Confessamos, pois, em vista de todos os factos, que o expediente de + resolver a crise aconselhando sua magestade a rainha a intervir pela + caridada revela o politico mais habil, o homem de estado mais profundo + que o paiz podia desejar na sua situação presente. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + O que nos leva a admittir que sua magestade foi aconselhada por um + promotor das conveniencias politicas e não guiada por impulsos + expontaneos é o exame das pequenas circumstancias que acompanharam a + intervenção da Corôa e nas quaes se revela a mão burocratica do + conselheiro de estado, mais habituado a manejar algarismos e a redigir + programmas do que a imitar a graça engenhosa, a poetica delicadeza, o + fino primor, o tacto subtil, exclusivamente feminino, que assignala os + actos nativos de um coração de mulher. N'esses actos, quando legitimos e + authenticos, ha uma especie de vinco mimoso, de perfume ideal, que os + laboratorios officiaes não imitam senão por meio de falsificações + baratas e reles. +</p> +<p> + Por este lado, que já não é o lado politico mas sim o lado esthetico, o + lado artistico, por este lado o vosso anjo da caridade, o anjo que vós, + meus senhores, puzestes no vosso andor e passeastes em procissão de + popularidade pelo paiz inteiro, tem os defeitos das ingenuas nas + companhias de amadores dramaticos em que só representam homens: tem os + pés chatos, a cinta grossa, e uma rouca voz de falsete, fingida e + miseravel. +</p> +<p> + Por baixo das candidas vestes do vosso anjo percebem-se os contornos + grossos e rijos do um forte modelo masculino. Reparando-se um pouco na + alva pennugem immaculada das brancas azas em que o sr. Luiz de Campos + collocou os seus inspirados versos, reconhece-se com evidencia que essas + azas prendem por articulações de couro a espaduas de porta-machado. +</p> +<p> + Sua magestade a rainha, uma mulher, uma senhora, uma princeza, se vós a + não bouvesseis violentado com os vossos conselhos, ella de per si só, + teria representado a caridade por modo muito diverso. Guiada + simplesmente pelo seu delicado instincto de mulher e pela sua perfeita + educação de senhora, ella saberia ser util sem ser espectaculosa; + far-se-hia amar sem se deixar applaudir; chegaria á dedicação absoluta + de toda a sua alma pelos desgraçados e pelos humildes, sem passar por + cima da arêa encarnada dos triumpos de rua, sem transpôr os arcos de + murta das glorias de phylarmonica, sem se vulgarisar, finalmente, até o + ponto de animar os poetas e os jornalistas a fazerem-lhe as mesmas + <i>réclames</i> com que se lisongeam as actrizes, tirando imagens + sentimentaes e sonoras do <i>perfume dos seus cabellos</i>, das <i>pregas dos + seus vestidos</i>, da <i>flexibilidade da sua estatura</i>, etc. Houve um + folhetinista que chegou pelo desenfreamento do lyrismo a comparar sua + magestade—a Magdalena! +</p> +<p> + Nós protestamos contra similhantes invasões do enthusiasmo nos dominios + da dignidade pessoal, e negamos á rhetorica monarchica o direito de + lançar ás faces de uma digna mulher que passa levando o seu sceptro pela + mão, as mesmas finesas que as bailarinas bonitas mandaram na vespera + deitar fora com as camelias murchas. +</p> +<p> + Este abuso iniquo e grosseiro fostes vós, conselheiros habeis nos + manejos politicos mas imperitos nas questões do gosto,—que os + promovestes e auctorisastes. +</p> +<p> + Vós começastes por abusar da vossa influencia no espirito da soberana + prefixando a quantia de um conto de reis como verba de subscripção. + Quando a miseria é geral, quando as amarguras são immensas, como disse o + proprio sr. Osorio de Vasconcellos, quando dos poderes publicos não + baixa uma só medida para acudir a tanto infortunio, quando todo o + remedio para tamanhos males se confia da liberalidade de uma rainha, + como quereis vós que se acredite que essa rainha, em uma tal + conjunctura, se tenha posto a contar pelos seus dedos magnanimos até + achar o numero de libras que compense a miseria geral e a amargura + immensa? Por que vibrações de piedade, por que processo de sentimento, + por que logica de consternação, por que inducção de pezares, quereis vós + que o alanceado coração de sua magestade tenha chegado de dor em dor, de + lagrima em lagrima, á conta, que só vós podieis ter feito, de duzentas e + vinte e duas libras em oiro e dez tostões em prata? Esta conta + deploravel é de um estalajadeiro ou de um cambista. Uma princeza, não + tendo aprendido pelas necessidades proprias qual é o valor do dinheiro, + não sabe contal-o para as necessidades dos outros. Se vós lhe tivesseis + dito simplesmente que para acudir a uma catastrophe nacional não havia + nem uma só disposição da sciencia ou da lei e que todo o remedio para + essa desgraça publica se esperava da influencia regia, a rainha, + entregue ao impulso instinctivo do seu coração, não deixaria de + contribuir para esse fim de um modo illimitado, sacrificando-se + inteiramente e incondicionalmente á fatalidade da fome como teria de se + sacrificar á fatalidade da guerra. +</p> +<p> + Depois não vos occorreu que tudo quanto se dispendesse em pompas se + cerceava em soccorros no producto dos espectaculos em beneficio das + victimas da inundação. Sendo esses espectaculos dirigidos por uma + senhora esqueceu-vos um ponto essencial que a toda a mulher occorreria: + a prescripção da <i>toilette</i>. Como sois homens publicos e viveis + permanentemente na ostentação e no apparato vós não podeis conceber + quanto ha de inopportuno, de indelicado, de offensivo do bom gosto no + aspecto de senhoras que se reunem para um fim de caridade cobertas de + joias como para um certame de luxo. Se fosse effectivamente uma senhora + quem tivesse a direcção d'esses actos de phylantropia, as joias teriam + sido abolidas, o preço das luvas de baile teria sido applicado á + subscripção para os pobres, e nas mãos nuas um annel de ferro mandado + fazer pela commissão ornaria toda a pessoa que quizesse acceital-o em + troca de um annel de oiro offerecido aos inundados. Em vez dos + ramilhetes, de 15 ou 20 libras, offertados aos actores, aos musicos e + aos poetas, uma mulher economisaria em favor dos pobres essa luxuosa + despesa e manifestaria o seu agradecimento por um modo extremamente mais + economico e mais expressivo como seria por exemplo, o offerecimento de + uma pequena photographia de sua magestade com uma simples dedicatoria + autographa. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + Além da commissão de soccorros presidida nominalmente por sua magestade + a rainha a unica corporação que em Portugal se occupou do problema das + inundações foi a de suas excellencias os srs. bispos. +</p> +<p> + Apenas constou que alguns dos nossos rios tinham trasbordado, em todos + os bispados do reino se fizeram preces implorando da divina misericordia + que os rios voltassem aos seus leitos. +</p> +<p> + Este recurso piedoso lembra-nos que seria vantajoso para o fim de pôr em + harmonia a meteorologia e a religião, crear barometros especiaes + dedicados ás nossas circumscripções ecclesiasticas. +</p> +<p> + Estes barometros, que os srs. parochos collocariam nas sacristias ao + lado das folhinhas em que se prescreve a côr das vestimentas, teriam as + indicações precisas para constituirem um formulario perpetuo sem o + incommodo da intervenção dos srs. bispos por via das suas pastoraes. + Bastaria que os aneroides <i>ad usum ecclesiae</i> fossem um pouco mais + desenvolvidos na indicação dos resultados da pressão atmospherica sobre + os aspectos do tempo. Por exemplo:—78, <i>bom tempo fixo, faça preces a + pedir chuva</i>;—74 <i>grande chuva, faça preces a pedir sol</i>;—73 + <i>tempestade, saia procissão e faça preces a pedir bom tempo</i>. +</p> +<p> + N'este caso os observatorios astronomicos e meteorologicos poderão ser + substituidos com vantagem pelas cabaças rotatorias dos Kalmuks ou pelos + moinhos do <a id="Tibet" name="Tibet" >Tibet</a>. + As cabaças, cheias de orações e agitadas polo vento, + produzem a adoração perenne. Os moinhos são uma fabrica mecanica de + preces continuas, de moagens devotas. +</p> +<p> + É preciso que n'este ponto nos decidamos por uma das duas:—pela + meteorologia ou pela prece. Se os estados atmosphericos se determinam + nos templos é absolutamente inutil estudal-os nos observatorios. As duas + coisas juntas refutam-se e destroem-se. Ou bem cabeças que pensem ou bem + cabaças que rodem. Decidam! +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + O que escreve estas linhas, tendo sahido do Porto no dia 8 de janeiro, + foi surprehendido pela tempestade e embargado pelas cheias, não podendo + chegar a Lisboa senão oito dias depois d'aquelle em que partira do + Porto. Foram seus companheiros de viagem alguns mancebos—quinze ou + vinte—que emigravam para o Brasil e vinham do Minho tomar em Lisboa um + dos paquetes da Mala Ingleza. Nas primeiras estações proximas de Gaya + esses rapazes, descorados, surprehendidos, vestidos de cotim, tendo + pendente do pescoço por um cordel a chave da caixa, apeavam e abraçavam + nas gares os seus parentes que ahi tinham ido abençoal-os, dar-lhes os + ultimos conselhos e as ultimas lagrimas. Havia um grande alarido de + mulheres que choravam. Vozes soluçadas diziam: «Adeus! adeus talvez para + sempre!» Abraços tenazes parecia não poderem deslaçar-se dos derradeiros + abraços. Tangia a sineta para largar a locomotiva. Passageiros alegres, + indifferentes, debruçados das portinholas, intervinham nos excessos da + ternura, nas crises da saudade, com palavras recreativas, com + commentarios facetos, com exclamações punidoras. Um aldeão já velho, + magro, alto, beijava um pequeno emigrante, talvez seu neto, que se lhe + abraçára ao pescoço; um jocoso soldado, trazendo a fardeta desabotoada e + uma borracha ao tiracollo, gritou-lhe da carroagem:—«Ó labrego, larga o + rapaz!» e accrescentou sentenciosamente este conceito:—«Beijos de + homens são coices de burro!» O velho teve a coragem de sorrir com uma + visagem dolorosa, de quem fingia resignar-se, e mettendo o rapaz na + carroagem, á pressa, em voz baixa, envergonhada: «Deus Nosso Senhor te + abençôe! Deus Nosso Senhor te abençôe e te dê boa sorte!» +</p> +<p> + O comboyo batido pelas rajadas do vento e pelas torrentes da chuva não + pôde, em consequencia dos rombos da estrada, passar de Pombal, onde + chegou ás duas horas da noite. Os pequenos aldeões, trespassados de + frio e talvez de fome, com as golas das jaquetas levantadas, os pés + molhados nas suas chinelas de coiro cru, as mãos nas algibeiras das + calças, adormeceram nas carroagens da terceira classe ou nas bancadas da + estação. O comboyo demorou-se ahi tres ou quatro dias. Os emigrados, + perdidos no meio da indifferença, desappareceram. Quando nós, no + primeiro dia em que a estrada se tornou praticavel, proseguimos de + Coimbra, onde ficaramos, até Santarem, não encontramos nenhum dos nossos + pequenos companheiros. É provavel que tivessem continuado a pé, sob a + tempestade, até chegarem a Lisboa, ao encontro da Mala Real Ingleza. + Esses pequenos, obscuros, miseraveis passageiros, troçados, escarnecidos + na sua dôr, cobertos de lagrimas e de lama nas suas esperanças de + fortuna, eram os embriões da riqueza portugueza, eram o brasileiro ao + deixar a patria. +</p> +<p> + Outro companheiro d'esta nossa viagem atravez das inundações era um + velho de sessenta e cinco a setenta annos. Traz apertado ao queixo, por + baixo do chapeu, um lenço de seda e ás costas uma manta <i>couvre-pieds</i>, + que elle abrocha no peito com uns fechos de prata e que lhe cae por + traz até os calcanhares. Esta manta, de pano baetão, tem estampada a + figura de um tigre, o que dá ao nosso companheiro, visto pelas costas, + com o seu lenço na cabeça, os seus sócos, o seu chapeu de chuva, o + aspecto de um Attila domesticado e doente. Viaja em companhia de uma sua + prima, mais velha que elle, e de um pão de ló mais volumoso do que os + dois primos juntos. +</p> +<p> + Este sujeito conferiu-nos a honra de nos dar a provar o seu pão de ló e + de nos contar a sua historia. Vinha de Felgueiras, terra da sua + naturalidade, e trazia o pão de ló, que as chuvas avariaram, para um seu + amigo, o sr. Azevedo, pharmaceutico na rua larga de S. Roque. Fôra em + creança para o Brasil, reunira á força de trabalho e de economia uma + modesta fortuna. Já na velhice liquidara todo o seu capital, voltara + para Felgueiras, reedificara a pequena casa em que tinham morrido seus + paes, adquirira algumas terras, empregara o seu capital na fundação de + uma lavoura; comprara juntas de bois, assoldadara moços, mettera + operarios e jornaleiros, plantara milhares de carvalhos e de + castanheiros. As potencias eleitoraes de Felgueiras convidaram-o em nome + de dois ou tres partidos do sitio a intervir com a sua influencia na + politica local. Elle recusara-se. Queria acabar em paz os seus dias, + contentando-se com a modesta gloria de restituir á terra em que nascera + toda a sua fortuna convertida na verdadeira e unica riqueza nacional—a + fertilisação do solo e o desenvolvimento do trabalho. Desde esse dia os + partidos confederados de Felgueiras começaram a hostilisal-o como o + inimigo commum de todos os partidos, o qual inimigo é em toda a parte—a + imparcialidade. Enredaram-o em pequenas intrigas, empeceram-o, + desgostaram-o em todos os seus projectos, em todas as suas aspirações. + Elle, como velho trabalhador macerado, resistira. Um golpe inesperado + acabara, porém, de o ferir no coração: dias antes da nossa viagem, na + vespera do Natal, uma chusma de gatunos, arregimentados para esse fim, + invadira a sua nascente propriedade e destruira inteiramente todas as + suas arvores. Elle querelára, e vinha para Lisboa esperar que se lhe + fizesse justiça. «Exijo—dizia elle—que me paguem indemnisação na + medida da perda que esta offensa representa para um velho como eu, a + quem pouco tempo já resta para esperar que as arvores cresçam. Venho + para Lisboa até que os tribunaes decidam a minha sorte. Se não me + fizerem justiça, irei fallar com o rei, e dir-lhe-hei: Meu senhor! Não + tendo achado na patria meios de enriquecer, fui procural-os n'um paiz + extranho. De regresso a Portugal no ultimo quartel da vida, + repatriando-me com todo o dinheiro que pude adquirir e que vinha + dispender entre os meus compatriotas, acho-me aqui vilipendiado, roubado + e escarnecido. Lavrador por vocação e por velho geito adquirido, parto + hoje pelo caminho de ferro para França, e plantarei a minha horta n'essa + terra estimavel, onde os homens não teem rei nem os campos teem muros + mas onde a nação da justiça baixou já dos dominios da intelligencia até + penetrar nos costumes e ter a sua encarnação nas leis. Sirva-se portanto + vossa magestade abater o meu nome no seu rol e contar com um subdito de + menos. +<a href="#note-1"> +<sup class="small" id="note_return_1">1</sup></a> +</p> +<p class="foot"> +<a href="#note_return_1"><sup id="note-1">1</sup></a> + Textual. +</p> +<p> + Este homem representava a ultima faze da vida em que iam entrar os + pequenos emigrados que perdemos de vista em Pombal. Aquelles eram o + brasileiro ao partir; este era o brasileiro ao chegar. +</p> +<p> + Entre aquella infancia despresada e esta velhice desprotegida, está o + portuguez residindo e trabalhando no Brasil. Lá, esquecido do que + passou na infancia, despreoccupado do que o espera na velhice, o + portuguez desenvolve, como uma enfermidade nostalgica, o mais ardente + patriotismo. Nas suas allucinações de exilado a patria apparece-lhe + deslumbrante de todos os prestigios com que a saudade e o amor aureolam + os seus idolos. Assim como elle proprio se aperfeiçôa em cada dia pelo + trabalho, imagina que a patria se desenvolve proporcionalmente pelo + progresso, e mede pelo esforço d'elle, muitas vezes sublime e heroico, o + empenho com que estão concorrendo para a civilisação no paiz os seus + homens de estado, os seus politicos, os seus industriaes, os seus + escriptores e os seus artistas. Á similhança da colonia de que elle faz + parte, suppõe a patria um grande todo confederado e harmonico com + interesses solidarios, com intuitos communs, com fins determinados, + tendo ideias, tendo principios, tendo sentimentos, sendo capaz de + paixões profundas, de dedicações fortes, de sacrificios illimitados. E + tem pela patria os mesmos affectos e as mesmas dedicações de que a + suppõe susceptivel. +</p> +<p> + Assim é que, chegando ao Rio de Janeiro a noticia das nossas inundações + a colonia portugueza principia a mandar para a metropole milhares de + libras por cada paquete. +</p> +<p> + Os rios cahiram nos respectivos alveos, as terras enxugaram, as + sementeiras começam a crescer, a lembrança da catastrophe principia a + dissipar-se, e o dinheiro das subscripções do Brasil continua a chegar. + Dentro de pouco tempo a commissão portugueza de soccorros aos inundados + não saberá o destino que ha de dar ao dinheiro que amontôa. +</p> +<p> + As crises do trabalho subsequentes ás inundações são transitorias e tão + rapidas como as proprias inundações. Desde que a inundação cessa, o + trabalho restabelece-se nas suas condições normaes. Os estragos causados + pelas cheias não affectam os trabalhadores e os pobres, affectam + unicamente os proprietarios. Ora estes poderiam acceitar um emprestimo + proposto pelo governo, mas não podem receber um donativo feito pela + caridade. Portanto, desde que o governo não acudiu aos pobres em tempo + opportuno nem auxiliou os proprietarios pelo meio conveniente, todo o + dinheiro accumulado pela caridade é inutil a todos: aos pobres porque + não tem a opportunidade do tempo em quê, e aos ricos porque não tem a + opportunidade do modo como. +</p> +<p> + É por estas rasões que suppomos fazer um serviço á commissão de + soccorros suggerindo-lhe um meio de applicar uma parte das sommas com + que se acha a braços. Este meio é: dar em nome do paiz uma satisfação de + honra aos portuguezes residentes no Brasil—1.° indemnisando os + emigrantes minhotos sahidos do Porto nos comboyos dos dias 7 e 8 de + janeiro pelos prejuizos provenientes de não haverem chegado a Lisboa a + tempo de embarcarem nos paquetes de 8 e 10 do mesmo mez; 2.° fundando em + Felgueiras uma policia rural que empeça a população indigena de destruir + as propriedades fundadas pelos emigrados que chegam, por isso que na + provincia do Minho, de que principalmente procedem os portuguezes + residentes no Brasil, os unicos estragos recentes de que temos noticia e + que acima referimos, procedem, não das inundações dos rios, mas da + indisciplina dos homens. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + Para servir de complemento á historia das inundações portuguezas, eis o + que succedeu no Minho, junto de Villa Nova de Famalicão, com um pequeno + riacho obscuro que ali passa. +</p> +<p> + Havia-se ultimamente deliberado dotar a alludida corrente com o + adminiculo de uma ponte. Como esta ponte, além de uma obra fluvial, era + tambem um viaducto entre duas collinas e um atalho entre dois caminhos, + todos os grandes proprietarios da região em que passava o ribeiro + pretenderam ter a ponte á sua respectiva porta. N'este sentido ferveram + os pedidos, os empenhos, as intrigas, as ameaças, as pressões dos votos, + todos os meios finalmente que em Portugal movem e removem a tendencia + das idéas, a direcção dos principios, os planos das estradas e os + projectos das pontes. +</p> +<p> + A obra fez-se finalmente sob a acção d'essas influencias e, como é + costume, em satisfação do empenho mais preponderante. Era no verão, e + tinha seccado o ribeiro. Vieram n'este inverno os grandes temporaes e as + copiosas chuvas, o ribeiro encheu, trasbordou, correu pelos campos e + pelos caminhos, passou por toda a parte, sómente não passou—por baixo + da ponte! +</p> +<p> + Enviamos os nossos parabens aos habitantes de Famalicão. A sua ponte é + verdade que não representa completamente uma ponte, mas representa um + symbolo monumental, que os habitantes não procurarão para atravessar o + ribeiro, mas que todos os extrangeiros, todos os historiadores e todos + os philosophos irão ver com admiração e respeito para se compenetrarem + do legitimo espirito da politica e da administração na presente phase da + civilisação portugueza. +</p> +<hr class="major" /><!--===================--> +<p> + Contam os periodicos que no dia de Natal sua magestade el-rei se dignára + de brindar magnanimamente os soldados da sua real guarda, + offerecendo-lhes em Palacio um <a id="banquete" name="banquete" >banquete</a> + composto das iguarias mais finas + e mais preciosas, taes como sopa de massa, boi cosido com chouriço, + carne guisada com batatas e laranjas. +</p> +<p> + No momento em que os briosos filhos de Marte, coroados com os louros da + guerra e com as rosas da paz, libavam as taças da victoria, nas quaes, a + um gesto da regia munificencia o <i>doutor roxo</i> se repartira e + prodigalisára na razão de dois decilitros por praça, o sr. capitão da + companhia, penetrando na sala do festim e impondo silencio aos + dithyrambos, ás canções bachicas e aos hymnos bellicos que o aspecto tão + anachreontico quanto marcial da carne guisada com batatas jámais deixa + de influir em mentes inflammadas e em animos generosos, proclamou d'esta + arte: +</p> +<p> + «Soldados! O principe, cujo pennacho branco vós tendes visto + constantemente á vossa frente, conduzindo-nos ao fogo e guiando-vos ás + victorias, o principe cuja espada invencivel vós tendes visto sempre no + meio de vós, já relampagueando intemerata ao sol das batalhas, já + embebendo-se sedenta no sangue inimigo, o principe, generoso e + magnanimo, n'este dia consagrado ao ephemero repouso dos acampamentos, + convoca a este festim guerreiro os seus amados companheiros d'armas. Uma + coisa de que sua real magestade jámais se póde esquecer é a maneira como + vos tem visto pelejar! Porque é mister dizer-vol-o: no maior ardor dos + combates, no proprio momento em que mais absorto elle parece no afan de + retalhar em postas os exercitos inimigos, nunca o principe vos perdeu de + seu real olho! +</p> +<p> + «Tudo elle viu, e nada do que obrastes lhe é occulto. +</p> +<p> + «Viu-vos caminhar ávante para as hostes contrarias! Viu-vos quando, no + meio do estrondo e do fumo das descargas, tomastes as bandeiras e os + estandartes do outro campo! Viu-vos quando á chegada fatal da maldita + cavallaria inimiga, formastes quadrado e a esperastes impavidamente e a + pé firme, no posto da honra! Viu-vos depois cair a um por um feridos + pelo peito como heroes! Viu-vos morder o pó! Viu-vos finalmente exhalar + o ultimo suspiro, a vós todos, desde o primeiro ao ultimo, até nada mais + se ver no logar onde estaveis senão um monte de cadaveres abraçados a um + monte de bandeiras! Foi ainda o principe, piedoso e grande, quem, + percorrendo o campo no dia seguinte á batalha, recolheu e enfrascou as + vossas cinzas, restituindo-as elle proprio ás vossas viuvas, e + dizendo-lhes entre suspiros e lagrimas: «Em cada um d'esses frascos, + marcados com o numero da praça e da companhia, encontrareis uma pitada + de tudo quanto vos resta d'esse punhado de bravos!» +</p> +<p> + «Foi depois de todas essas provações—tão arduas!—que sua magestade + deliberou reunir-vos n'este banquete sumptuoso. +</p> +<p> + «Soldados! em testemunho de agradecimento a uma tão manifesta prova de + consideração e de amor, peço-vos que ergaes as vossas taças, de dois + decilitros cada, e que, antes de haurirdes o phalerno de Torres que + ellas encerram, me acompanheis nos vivas que passo a entoar e com os + quaes dou por finda esta allocução marcial. Viva sua magestade el-rei! + Viva a real familia! Viva a carta constitucional da monarchia!» +</p> +<p> + Nenhum soldado respondeu em discurso, como pede a etiqueta dos <i>toasts</i>, + porque nenhum dispunha da fortaleza cerebral necessaria para criticar os + seus proprios sentimentos, para os discernir e para os coordenar em + palavras. De modo que se contentaram em dar vivas e beber, coçando nas + cabeças essa especie de comichão produzida por todo o rude encontro de + idéas contradictorias e confusas. +</p> +<p> + Expressos sob a fórma litteraria, os sentimentos que o soldado revelou + sob a fórma de coceira dariam o seguinte discurso: +</p> +<p> + «Capitão! Ha alguns annos que eu fui agarrado á força na minha terra + para vir para a tropa. A minha primeira idéa foi livrar-me comendo um + dedo. Affiançaram-me, porém, que poderia egualmente livrar-me dizendo + que tinha queixa de peito. Assim o disse, mas não me acreditaram, e cá + fiquei ás ordens. +</p> +<p> + «Desde que jurei bandeiras é raro o dia em que o capitão, o major, o + tenente-coronel ou o proprio commandante me não fallam do meu ardor + mavorcio, da minha firme e tremenda attitude diante do inimigo e dos + meus louros cegados com a espada nos campos da batalha. +</p> +<p> + «Eu devo dizer ao capitão, com toda a franqueza, que desde que estou na + militança nunca tive <i>ardôr mavorcio</i> nem d'outra qualquer especie, a + não ser que o capitão se refira ao que senti nas orelhas quando na + recruta me puchava por ellas o sargento instructor. Se é d'este ardôr + que se trata, tive-o, e se o sargento o não teve ainda, ha de tel-o + tambem se, quando eu largar a farda, elle continuar a conservar as + orelhas, que eu, como livre paisano, lhe hei de então estender + conscienciosamente desde a porta do quartel até á entrada da minha minha + freguezia. +</p> +<p> + «Emquanto ao inimigo declaro que o não conheço, e muito obrigado ficaria + ao capitão se tivesse a bondade de m'o mostrar para que eu podesse + desenferrujar estas inuteis pernas applicando-lhe sem perigo de offender + a disciplina alguns dos pontapés que em observancia da mesma disciplina + não tenho até hoje feito senão receber. +</p> +<p> + «Quem é o inimigo? Não farão favor de me responder:—quem é o inimigo? +</p> +<p> + «Julguei algum tempo que fosse um sujeito de casaco côr de pinhão, de + gola levantada para cima, que ás vezes se mettia commigo nas guardas. + Tinha resolvido atacal-o, quando vim a saber que era um simples curioso + das artes da guerra. +</p> +<p> + «Vejo todavia que não fazemos mais do que preparar-nos constantemente + para resistir ao inimigo, o qual parece não implicar com mais ninguem + senão connosco. Pelo menos ninguem o teme senão a tropa. +</p> +<p> + «Ha familias, compostas unicamente de mulheres, que dormem sósinhas nas + suas casas sem medo a ninguem; no quartel, cheio de homens, cada um dos + quaes tem uma espingarda e uma bayoneta, é preciso pôr sentinellas a + todas as portas, velam uns emquanto os outros dormem, e ha sempre gente + armada até aos dentes, com os olhos arregalados nas trevas da noite, + para que não nos surprehenda o inimigo!—Que é sempre com o que lhe + dão:—com o inimigo! +</p> +<p> + «Emquanto aos loiros segados nos campos das batalhas cumpre-me + egualmente fazer sentir ao capitão que desde que estou no exercito ainda + não seguei. +</p> +<p> + «A minha vida tem consistido unica e exclusivamente em deitar todas as + manhãs umas correias ás costas e em pôr uma tocha ao hombro para marchar + ao som da musica ou para passear de sentinella á porta dos edificios + publicos. +</p> +<p> + «Pelo que diz respeito ao banquete opiparo para que sua real magestade + me convidou, agradeço-o muito, confesso-me profundamente sensivel aos + attractivos da real carne guizada e das fulgidas batatas da corôa. + Todavia não posso esconder que o que principalmente me lisongeava seria + que me fizessem a especial mercê de me mandar embora. +</p> +<p> + «Apezar da excellencia das iguarias preciosas de que consta este + banquete olympico, sou forçado a dizer que por mais de uma vez a esta + meza o bocado se me tem enfardelado na bocca sem querer ir para baixo. + Porque? Porque me sobe do coração e me aperta a guela a lembrança da + minha aldeia, da alegre festa do Natal, n'este dia, ao pé do lar, no + casal da minha velha ... Chamo-lhe eu a minha velha! O capitão faz + idéa ... Fallo-lhe da minha mãe. +</p> +<p> + «Hontem matava ella o porco, ou antes era eu que lh'o matava. Hoje + tinhamos lombo assado á fogueira do lar, n'um espeto de loureiro. Que + lombo aquelle, capitão! Com que vontade que eu principiava a jantar + outra vez se fosse d'esse lombo que me déssem! E depois não era o rei + que me convidava a mim,—o capitão ha de comprehender o effeito moral + d'esta differença—era eu que poderia convidar o rei a comer no meu + casal, d'aquillo que era meu, que eu proprio ganhara ou ajudara a ganhar + com o meu trabalho, com a minha força, com o meu prestimo! Na minha + aldeia eu era, mais ou menos, um dono de casa, um trabalhador, um + cidadão, um homem. E dentro do meu quinteiro, como o meu pequeno rebanho + e com o meu cajado, o rei era eu! +</p> +<p> + «Aqui, que diabo! Aqui, francamente, capitão, que raio de diabo! +</p> +<p> + «Aqui, que sou eu? Um monte de cisco, um molho de palha, um estafermo, + um espantalho de botões de ouro fingido, de espingarda descarregada e de + patrona vasia, para metter medo a outro estafermo, a outro espantalho, a + outra abantesma de espingarda egualmente descarregada e de patrona + egualmente vasia, o qual outro se chama o inimigo! +</p> +<p> + «Dizem qae tambem sirvo para—manter a ordem. A ordem que eu mantenho é + outra historia da carocha como a do inimigo que eu combato. +</p> +<p> + «Na minha aldeia, onde nunca de memoria de homem appareceu o bico de uma + bayoneta, todos vivem em harmonia e em paz. Aqui, onde a ordem é mantida + por dez ou doze regimentos, ha desordens todos os dias e todos os annos + ha revoltas. Revoltas de quem, meu capitão?—Dos sargentos! +</p> +<p> + «Ora, se eu não sirvo para nada, se o inimigo, sendo outro que tal como + eu, não serve tambem para coisa nenhuma, não acha o capitão, que o mais + justo seria mandar-nos para nossas casas a ambos—ao inimigo e a mim? +</p> +<p> + «Se como o capitão affirma, el-rei é meu amigo e pretende obsequiar-me, + que sua real magestade cesse de esbanjar-se nos acepipes com que me + cumula! Que me permitta estar na minha casa, como sua magestade está na + d'elle com sua excellentissima esposa e com os seus interessantes + filhos! Eu lhe protesto que não só dispensarei todos os seus favores, + mas que poderei ainda fazer-lhe alguns, e me tornarei um cidadão + independente, serviçal e util, em vez de me desfallecer para aqui, + dentro d'este uniforme, coberto por esta barretina, inundado de + ociosidade, comido de tedio, +<a href="#note-2"> +<sup class="small" id="note_return_2">2</sup></a> + de nojo de mim mesmo, de todas as más + molestias da alma e do corpo, perdido para o bem dos outros e não + prognosticando grande coisa senão para o mal de mim mesmo. Nada mais + accrescento porque está a cair o quarto e tenho de me ir deitar ao + inimigo,—passeiando de sentinella á porta de palacio.» +</p> +<p class="foot"> +<a href="#note_return_2"><sup id="note-2">2</sup></a> + No dia em que estas linhas foram escriptas suicidavam-se dois + soldados, um de infanteria n.° 1, em Belem, outro de caçadores n.° 10, + em Setubal. +</p> +<p> + Depois de coçado este discurso na cabeça dos soldados, terminou o + banquete, retirando-se todos os convivas profundamente penhorados pela + excellencia do serviço e pelas delicadas maneiras do sr. capitão. +</p> +<hr class="major" /><!--===================--> +<p> + Referem os jornaes que a + <a id="Academia" name="Academia" >Academia Real das Sciencias</a> + celebrará no mez de + março do futuro anno de 1879 a festa do primeiro centenario da sua + fundação. +</p> +<p> + A primeira das rasões porque folgamos com esta noticia e que se inicia + em Portugal uma tendencia nova no espirito das sociedades modernas:—a + tendencia a reformar o calendario, substituindo as ephemerides + ecclesiasticas pelas taboas historicas. +</p> +<p> + Essa tendencia revela um progresso. +</p> +<p> + A igreja tem, certamente, datas memoraveis que a civilisação ha de + manter entre as grandes epocas da humanidade. Mas essas datas, por mais + gloriosas que sejam, não bastam para prehencher os fastos da humanidade + e para pautar o culto devido á lembrança dos grandes factos e á memoria + dos grandes homens. +</p> +<p> + Se a igreja tem os seus santos, os seus martyres, os seus doutores, a + liberdade, a sciencia, o trabalho, a arte, teem tambem os seus, e a + gratidão humana não deve menos aos segundos do que aos primeiros. O dia + de S. Bernardino, a 20 de maio, é tambem o dia de Christovão Colombo. O + dia de S. Luciano, a 8 de janeiro, é egualmente o dia Galileu. O dia 5 + de abril é o de Santo Adriano e é o de Danton e de Camille Desmoulins. O + dia 23 do mesmo mez é o aniversario do nascimento de S. Jorge e é + tambem o da morte de Shakespeare e de Cervantes. +</p> +<p> + Nem toda a gente sabe, de pronto, sem consultar a collecção dos + bolandistas ou o <i>Flos Sanctorum</i> o que foram precisamente para o mundo + e para Deus, Bernardino, Adriano ou Luciano. Ninguem todavia ignora o + que a humanidade deve a Colombo, a Galileu, a Danton e a Shakespeare. +</p> +<p> + Depois a circumstancia de ir para o ceu por uma decisão dos concilios + nem sempre equivale a haver deixado na terra um exemplo que fortifique + as almas para servirem ao mundo ou para servirem a Deus. +</p> +<p> + Temos por exemplo que, segundo S. Lucas, capitulo XXII, versiculo 61, S. + Pedro, convicto da divindade de Jesus, o renega por tres vezes no + tribunal de Caiphaz. No tribunal da Inquisição, deante da fogueira que o + vae devorar se não renegar o seu livro, Giordano Bruno prefere morrer a + trahir a verdade. S. Pedro fundou a igreja christã; Giordano Bruno + fundou uma nova teoria do Universo. Um é adorado como santo; o outro é + condemnado como hereje. E todavia é com Bruno e não é com Pedro que + todos nós, filhos do seculo ou filhos da religião, temos que aprender + como se sustenta uma convicção ou como se defende uma crença. +</p> +<p> + A iniciativa da Academia contribuirá poderosamente, de certo, para fazer + entrar nos costumes a fecunda lição alliada ao culto dos grandes homens + e á commemoração dos grandes feitos, ceremonias destinadas a tornarem-se + as festas nacionaes de todos os povos civilisados. +</p> +<p> + Ao centenario da Academia succeder-se-ha sem duvida o do apostolo da + nacionalidade portugueza Camões, e o do martyr da liberdade de + pensamento Damião de Goes. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + A segunda rasão porque nos regosija a noticia que registamos é que a + celebração do jubileu academico, pedindo a publicação de uma historia + d'aquelle instituto, virá por meio d'esse documento recordar o papel + brilhantissimo que teve na historia das idéas em Portugal essa + corporação scientifica, e chamar talvez alguns dos actuaes academicos a + reatarem a tradição gloriosa d'aquelles que os precederam na direcção + intellectual do paiz. +</p> +<p> + A Academia Real das Sciencias foi o foco da revolução e o berço da + moderna liberdade em Portugal. +</p> +<p> + Em um excellente livro do sr. Theophilo Braga, recentemente + publicado—<i>Bocage, sua vida e epoca litteraria</i>—encontram-se os mais + preciosos documentos para a nossa moderna historia litteraria, + documentos até hoje ineditos e pacientemente colligidos por aquelle + eminente escriptor, em cujas obras, as mais eruditas que em Portugal se + teem feito, o publico não aprendeu ainda senão a calumniar o auctor. + Entre esses documentos tirados a lume pelo sr. Theophilo Braga, acham-se + as mais curiosas revelações para a historia dos nossos primeiros + academicos. +</p> +<p> + O duque de Lafões, o abbade José Correia da Serra, Joaquim José Ferreira + Gordo, Antonio Pereira de Figueiredo, insignes na philosophia e nas + sciencias naturaes, conhecidos e respeitados na Europa, estavam + denunciados ao governo como jacobinos e eram espionados e perseguidos + pela policia sob a direcção do intendente Pina Manique, o qual nas suas + <i>contas para as secretarias</i>, manuscriptos conservados na Torre do + Tombo, por differentes vezes se refere aos alludidos academicos, + accusando-os como sectarios das idéas da Revolução franceza, + relacionados com os homens da Convenção, iniciadores do movimento + liberal em Portugal. A policia envolve-os na mesma suspeição com os + livreiros francezes residentes em Lisboa, com os addidos á legação de + França, com os frequentadores de botequins que se atrevem a ostentar nas + tampas das suas caixas de rapé a figura da liberdade, com os populares + finalmente que em certa noite vão debaixo das proprias janellas do paço + entoar a canção do <i>Ça-ira</i>. +</p> +<p> + Os cabeças d'este movimento de revolta contra o despotismo + monarchico-catholico são designados pelo intendente Manique com o nome + generico, ainda hoje em voga, de <i>philosophos modernos</i>. Os livros + dirigidos de França á Academia sob o nome do duque de Lafões são + sequestrados na alfandega. +</p> +<p> + A publicação de qualquer escripto revolucionario por parte da Academia é + impossivel sob a espionagem de Manique, mas a adhesão d'esta companhia + ás idéas francezas é manifesta em muitas passagens dos registros + policiaes. +</p> +<p> + «Acha-se n'esta corte—diz o intendente Manique—nas casas da <i>Academia + das sciencias</i>, ao Poço dos Negros, hospedado, segundo me dizem pelo + <i>abbade Correia</i>, Broussonet, que foi medico de profissão em Paris, e + depois secretario de Necar (É assim que Manique escreve o nome de + Necker) e aquelle que se fez marcar quando na sessão da convenção + Nacional, de que era tambem deputado, continuou o discurso que o + sobredito Necar não acabou de recitar por lhe dar no meio d'este acto um + deliquo; e ainda mais conhecido por ser um d'aquelles sanguinarios do + partido de Robespierre na Convenção. Pela morte que este assassino + soffreu, fugiu aquelle e aqui foi acolhido e introduzido ao <i>duque de + Lafões</i> na qualidade de agricultor, e hospedado nas casas da Academia + das Sciencias, d'onde frequenta as casas do sobredito duque e do <i>abbade + Correia</i> que é amigo mui particular do ministro e consul da America do + Norte e dos mais jacobinos que aqui se acham e de que tenha dado parte a + v. ex.ª, e reputado por pedreiro livre.» +</p> +<p> + Eguaes accusações pesam sobre Ferreira Gordo e sobre o auctor da + <i>Recreação Philosophica</i> o Padre Theodoro de Almeida, «com o qual, + accrescenta Manique, o já alludido Broussonet fica algumas vezes na casa + do Espirito Santo de Lisboa.» +</p> +<p> + A Academia encerrava pois no seu gremio o fermento da revolução, + levedada mais tarde em 1820, e da qual procedeu a reforma das nossas + instituições em 1834 e a liberdade subsequente. +</p> +<p> + A missão da Academia em Portugal não pode ainda hoje ser senão a mesma + que era no fim do seculo passado. +</p> +<p> + Não é no estado de indifferença, de egoismo e de ignorancia em que ainda + hoje se acha o espirito portuguez que as Academias podem assumir, como + queria Proudhon, a funcção moderadora dos trabalhos do pensamento e das + creações da arte. +</p> +<p> + A intervenção das academias como elemento official e conservador pode + ser util e salutar em França ou em Hispanha, onde a temeridade + impaciente e indisciplinada dos escriptores revolucionarios, actuando + constantemente na opinião, pode perturbar a lei da continuidade + historica e lançar a sociedade na anarchia. Ahi compete ás academias + salvaguardar a ordem pelo ascendente moral. +</p> +<p> + Em Portugal, porém, onde a revolução de modo algum ameaça partir da + circumferencia para o centro movida pelas tendencias progressivas e + invasoras dos espiritos, é absolutamente preciso, para que nos possamos + considerar uma nação, que a revolução parta do centro para a periferia, + que seja a Academia quem a enuncie e quem a propague, acolhendo no seu + gremio as intelligencias mais avançadas, discutindo os problemas mais + vivos da philosophia, aclarando todas as questões relativas aos maximos + interesses do espirito, á religião, á politica, á esthetica, implantando + finalmente a revolução na esphera intellectual para que d'ahi ella + penetre nos costumes e se infunda nas instituições. +</p> +<p> + Se o desempenho d'este papel, que lhe está marcado pela sua tradição, é + incompativel com as ligações existentes entre a Academia, presidida pelo + chefe do Estado, e o mesmo Estado, o que á Academia compete fazer é + libertar-se d'essa dependencia e constituir-se em corporação livre. O + poder espiritual, de que ella é a encarnação litteraria, não lhe procede + de ser a hngida do Estado mas sim a da sciencia. +</p> +<p> + Subsidiada pelos governos ou não subsidiada por elles, estabelecida em + um palacio ou refugiada em um sotão, recrutando os seus membros entre os + invalidos da popularidade ou entre os dispersos batalhadores vigorosos + da controversia moderna, separando-se da sua tradição gloriosa, ou + sendo-lhe fiel, a Academia acha-se destinada a ser d'estas duas coisas + uma:—ou a força dirigente do futuro social, a cabeça do paiz, ou uma + excrecencia apparatosa, um orgão atrophiado e inutil á civilisação. +</p> +<hr class="major" /><!--===================--> +<p> + Sendo os homens que escrevem ordinariamente superiores aos homens que + lêem, a funcção da publicidade é predominar nos espiritos—ou seja + lisonjeando-os, ou seja combatendo-os. Toda a obra litteraria dá um + d'esses resultados; ou se adapta ás opiniões existentes e as consolida e + reforça ou reage sobre ellas e as decompõe. Toda a litteratura ou é + <i>conservadora</i> ou é <i>revolucionaria</i>. Queremos dizer: ou transige + passivamente com as condições do meio social ou se debate contra o + obstaculo que a influencia d'esse meio lhe impõe. +</p> +<p> + Sempre que a litteratura toma o caracter conservador tende a immobilisar + a sociedade e a atrophiar o progresso. Foi o que succedeu nos seculos em + que a litteratura não fez mais do que fortalecer as superstições que + achou consagradas no seu caminho, prostrando a humanidade n'um marasmo + de quinhentos annos embalados com o esteril rumor monotono das homilias + e das legendas dos santos. Felizmente, desaprendendo quasi completamente + de ler, a humanidade voltou a si. A litteratura havia sido para ella uma + catacumba em que jazera sepultada pela credulidade, amortalhada pelo + mysticismo. Guizot calcula em vinte e cinco mil as vidas de santos de + que se compõe a bibliotheca bollandista, e são esses <i>acta sanctorum + quotquot tote orbe coluntur</i> que encerram a historia inteira da + humanidade sob o regimen clerical em toda a Europa e em quasi todo o + Oriente, desde o seculo VI até o seculo XII! Com razão conclue Buckle—o + grande historiador da civilisação—que o maior dos estorvos do progresso + tem sido a manutenção do erro pelo poder litterario. +</p> +<p> + Nos tempos modernos, sob os dominios despoticos, em quanto a obra do + pensamento foi disciplinada pela policia clerical e monarchica como + succedeu em Portugal durante o imperio do Santo Officio, a litteratura + deixou egualmente de ser o livre producto artistico e converteu-se n'um + poder do Estado, o mais enervante para a imaginação, o mais dissolvente + da intelligencia e da dignidade humana. +</p> +<p> + Portanto: a primeira condição social para a existencia de uma + litteratura compativel com o progresso é a liberdade. +</p> +<p> + Todo o escriptor portuguez actual nasceu n'esse meio propicio. Todavia, + por uma fatalidade physiologica, por um effeito da heriditariedade, + falta-nos a orientação cerebral da independencia. O nosso espirito + conserva o stygma servil, o signal da marca que, em muitas gerações que + nos precederam, foi deixando a grilheta da oppressão mental. A nossa + tendencia de escriptores é ainda hoje, geralmente, para lisonjear a + rotina, para comprazer com o vulgo, para seguir as correntes da + credulidade geral. +</p> +<p> + A maior parte dos individuos que fazem um livro teem, nas precauções da + forma, no rebuço das opiniões, na doblez do stylo, o ar miseravel de + pedintes que solicitam venia para divertir inoffensivamente o + respeitavel publico. +</p> +<p> + Entre as aberrações eminentes d'essa tendencia geral, como por exemplo + os srs. Anthero de Quental e Guerra Junqueiro na poesia, o sr. Theophilo + Braga na historia e na critica, o sr. Oliveira Martins na economia + politica, a Sr.ª D. Maria Amalia Vaz de Carvalho no + folhetim,—apparece-nos o sr. Eça de Queiroz no romance. Na pequena + litteratura portugueza destinada a ser um agente na evolução das ideias + e dos costumes, um elo no grande encadeamento das causas e dos effeitos + sociaes, <a id="Amaro" name="Amaro" ><i>O crime do padre Amaro</i></a>, + representa a obra mais profundamente caracteristica. +</p> +<p> + Este livro foi recebido pela imprensa periodica com um silencio que pode + parecer o resultado de um <i>mot d'ordre</i>. Cremos, para honra do + jornalismo, que a razão do apparente despreso de que foi objecto este + romance está no simples facto de que a critica se considerou + incompetente para o julgar. A unica coisa de que temos de accusar a + critica é de nos não haver dito isso mesmo. Em circumstancias analogas + as <i>Farpas</i> deram um exemplo de sinceridade que ficou esteril. Um dia + escreviamos um artigo ácerca do adulterio; a logica arrastava-nos a + deducções que nos não atreviamos a imprimir; publicámos o nosso artigo + até o ponto em que o julgavamos compativel com os costumes e + concluimol-o com a confissão franca de que nos achavamos coactos pelo + publico. Quando tivemos medo confessamol-o. É verdade que omittimos uma + opinião, mas, estudando os costumes, revelamos pelo menos um estado de + espirito que elles determinavam e que seria um symptoma a ponderar pelos + analysadores que se nos seguissem. +</p> +<p> + <i>O crime do padre Amaro</i> é effectivamente difficil de sentenciar porque + constitue um caso novo, não previsto nas ordenações porque se regulam as + audiencias geraes do folhetim e do noticiario. +</p> +<p> + Essencialmente moderno este romance não é a narrativa de uma aventura ou + de uma serie de aventuras á Lessage, á Dumas ou á Gaboriot, não é um + estudo de sentimento á Rousseau, á Alfred de Musset ou á George Sand. É + uma pintura de caracteres, mas não uma pintura á Balzac ou á Flaubert, + porque este livro não é exclusivamente de nenhuma escola senão da escola + de si mesmo, e é esse cunho profundamente pessoal qne lhe dá o caracter + que o distingue como verdadeira obra d'arte. +</p> +<p> + Ora uma exposição de caracteres se pertence á sphera da arte pelos + processos da pintura, é um ramo da historia e está subordinado á + sciencia pelas operações de critica e de relacionação. O officio do + historiador é discernir no estudo das epocas e no estudo dos + acontecimentos o seu caracter social. O officio do romancista é + discernir no mesmo estudo das epocas e no mesmo estudo dos factos o seu + caracter artistico. O methodo do historiador é o methodo do romancista. + Não pode ser romancista um simples <i>observador</i>. Cada sciencia tem, como + diz Littré, o seu methodo particular e caracteristico. A <i>observação</i> é + um methodo exclusivo da astronomia, para cujos phenomenos irreductiveis + o astronomo não pode fazer mais que olhar. O chimico procede pela + <i>experiencia</i> e pela <i>analyse</i>. O biologo tem por methodo especial a + <i>comparação</i>. O historiador, e por tanto o romancista, teem como + instrumento particular a <i>filiação</i>, isto é, a producção dos estados + sociaes uns pelos outros. Pintar um caracter é expor no personagem a + figura moldada dentro do contorno delineado n'uma dada porção do espaço + e do tempo por um certo estado social. +</p> +<p> + Um caracter é um phenomeno historico, que se não comprehende senão + emoldurado na convergencia de todos os factores que o produziram. +</p> +<p> + É por isso que o romance de caracteres tem de ser uma exposição + concentrica de todas as influencias que determinam um pensamento ou um + acto;—influencias naturaes, o solo, o clima, os aspectos da paizagem, o + sexo, a idade, o temperamento, a idiosyncrasia, a heriditariedade; + influencias sociaes, as instituições, os costumes, a familia, a + educação, a profissão. +</p> +<p> + Comprehende-se a commoção de surpreza que produziu este livro, ao + notar-se que a proposito da biographia de um padre em uma parochia da + provincia elle suscitava as mais graves e melindrosas questões + physiologicas e sociaes que podem envolver a igreja, o celibato, a + sentimentalidade e o mysticismo, isto é, todos os pontos de controversia + philosophica que o jornalismo exclue da discussão para se não pôr em + conflicto com o assignante. Confessamos que n'este caso o melhor que + tinha que fazer a critica jornalistica era effectivamente calar-se. +</p> +<p> + Pela nossa parte, como é precisamente o conflicto que constitue o nosso + programma, não temos rasão plausivel para abster-nos da apreciação + d'este livro. +</p> +<p> + A rasão da condemnação silenciosa, do escandalo branco, que envolveu a + apparição do <i>Crime do padre Amaro</i> está no simples facto de que elle é + um <i>romance de caracter</i>. Esta simples designação explica tudo. O genero + é novo e sem precedentes. Os livros do sr. Camillo Castello Branco são + romances de sentimento. A obra de Julio Diniz pertence á litteratura de + <i>tricot</i> cultivada com ardor na Inglaterra pelas velhas <i>miss</i>. Apesar + das suas qualidades de paizagista, do seu mimo descriptivo, da sua + feminilidade ingenua e pittoresca, as novellas de Julio Diniz não teem + alcance social, são meras narrativas de salão. +</p> +<p> + O livro do sr. Eça de Queiroz offerece-nos o primeiro exemplo de uma + obra d'arte suggerida pela consideração de um problema social. +</p> +<p> + E todavia <i>O crime do padre Amaro</i> não é de nenhum modo um livro de + critica, é um livro de pura arte na mais alta accepção d'esta palavra. + Nem na bocca do auctor nem na de nenhum dos seus personagens ha uma + palavra declamativa ou didactica. +</p> +<p> + Em uma pequena cidade de provincia, na Extremadura portugueza, o velho + parocho morre, o novo parocho chega com o seu capote ecclesiastico e o + seu bahu, apeia-se da diligencia de Chão de Maçãs, sobe aos quartos que + lhe estão preparados, calça uns chinellos de ourelo, veste o casaco + velho, e o drama principia, desdobra-se e termina de um folego, + caminhando para o seu desfecho, recto, implacavel, como um traço riscado + pela fatalidade atravez d'aquella estreita vida de provincia, com a sua + intriga local, os seus personagens mesquinhos, os seus padres, as suas + beatas, os seus tristes aspectos de coisas, sujos, tortuosos, + compungidos, pretenciosos, miseraveis. +</p> +<p> + D'este fundo sombrio, espesso, pesado como o tedio, a acção destaca-se + luminosamente, e penetra-nos com a nitidez poderosa dos espectaculos + vivos. É a vida mesma com toda a sua trivialidade real que n'essas + paginas perpassa aos nossos olhos como aquellas florestas que andam no + sonho de Machet. +</p> +<p> + Nunca artista portuguez desenvolveu na sua obra maior poder de execução. +</p> +<p> + O dialogo, trasbordante de verdade, é de um rigor psychologico, de um + colorido flagrante e de uma energia de naturalidade que os primeiros + stylistas francezes não conseguiram ainda egualar. A lingua portugueza, + pela incomparavel variedade das suas construcções grammaticaes, pela + inexgotavel abundancia dos seus idiotismos, pela bravura inculta do seu + arranco plebeu, presta-se admiravelmente a estes prodigios de execução + sempre que a não deturpa esse maneirismo requintado, esse culto da + farragem e do euphemismo, que tem sido em Portugal a sarna epidemica do + estylo erudito. +</p> +<p> + O dialogo do sr. Eça de Queiroz, não porque o trabalhasse a + preoccupação do purismo, mas em resultado do escrupulo com que foi + arrancado da indole e da natureza dos personagens, é de tal modo genuino + e tão accentuadamente portuguez, que o temos por intraduzivel. +</p> +<p> + Ao lado do dialogo mais vivamente travado e das situações dramaticas + mais profundamente sentidas, mais commoventemente narradas, o auctor + compraz-se habitualmente em pintar, com frio cynismo, as ridentes + paizagens em que scintillam as frescuras da manhã, os suaves occasos do + outomno impregnados do rumor das aguas e do perfume dos prados, os + tepidos interiores aconchegados e pacificos, todos os aspectos da + natureza vegetativa, da natureza animal, da natureza morta. E nada mais + profundamente real do que a impressão deduzida d'esse contraste entre a + inclemente immobilidade das coisas e a devastação tempestuosa das + supremas paixões no fundo da alma humana! +</p> +<p> + O desenho dos caracteres e principalmente o das duas personagens + principaes sobre que versa o drama, o padre Amaro e Amelia, é deduzido + com o mais scientifico rigor da diagnose n'um caso de pathologia + psychica. +</p> +<p> + A infancia de Amaro em uma casa nobre, onde a mãe d'elle era criada de + quarto. Os pequenos pormenores d'esse interior de familia, onde o + catholicismo era um requinte heraldico, onde as meninas, acreditando em + Deus como na omnipotente elegancia, tinham como culto dos destinos da + alma a preoccupação da <i>toilette com que haviam de entrar no paraizo</i>. A + creação de Amaro até aos doze annos n'essa convivencia mulheril, + ajudando ás missas na capella, espanando os santos, aparando as hostias, + dormindo entre as criadas, que lhe faziam cocegas, lhe chamavam + <i>Padreca, Frei Lombrigas</i>, e o utilisavam nas suas intrigas para «fazer + as queixas.» A sua mocidade no seminario, «abafando na estreitesa dos + corredores, invejando todos os destinos ainda os mais humildes, o + almocreve que via passar na estrada tocando os seus machos, o carreiro + que ia cantarolando ao aspero chiar das rodas, e até os mendigos + errantes, apoiados ao seu cajado, com o seu alforge escuro!» Os seus + primeiros alvoroços de adolescente ao pensar na mulher sobre os livros + dogmaticos: «Que ser era esse que atravez de toda a theologia ora era + collocado sobre o altar como a Rainha da Graça ora amaldiçoado com + apostrophes barbaras? Que poder era o seu que a tragica legião dos + santos, ora se arremessa ao seu encontro, n'uma paixão extactica, + dando-lhe n'uma acclamação o profundo reino dos céus, ora vae fugindo + diante d'ella como do universal inimigo com soluços de terror e com + gritos de odio, e, escondendo-se, para a não vêr, nas thebaidas, nos + claustros e nos sepulchros, vae alli morrendo do mal de a ter amado? + Amaro sentia, sem as definir, estas perturbações, e julgava-se + desgraçado e maldito.» +</p> +<p> + Vemos, a dia por dia, crescer, constituir-se, formar-se esse homem, + branco, lymphatico, molle, creado entre chumaços de mulheres ordinarias, + e sobrepelizes de padres boçaes, no fartum das alcovas sujas e na sombra + humida dos claustros musgosos. E prevê-se a quéda fatal d'essa natureza + stagnada e paludosa, atravez da qual os desejos insaciados luzem como os + olhos de um tigre. +</p> +<p> + É egualmente bem assignalado o caracter de Amelia. A sua educação + sentimental e devota é descripta a golpes de bisturi. Cada traço é uma + incisão. Aos oito annos tinha ido para a escola. A mestra era uma + velhita roliça e branca que fôra tacho das freiras de Santa Joanna em + Aveiro; com os seus oculos redondos, junto da janella, empurrando a + agulha, morria-se por descrever o convento, os seus terrores, as suas + legendas, as suas peripecias; as perrices da escrivã sempre a escabichar + os dentes furados; a madre rodeira preguiçosa e pacata, com uma + pronuncia minhota; a mestra de canto-chão, admiradora de Bocage e que se + dizia descendente dos Tavoras; a historia de uma freira que morrera de + amor e cuja alma ainda em certas noites percorria os corredores, + soltando gemidos dolorosos e chamando:—Augusto! Augusto!... Tinham-lhe + ensinado o cathecismo e a doutrina: fallavam-lhe sempre dos castigos do + céu; de tal sorte que Deus apparecia-lhe como um Ser que dá o + soffrimento e a morte, e que é necessario abrandar resando e jejuando, + ouvindo novenas e amando os padres. Era por isso toda cuidadosa e se ás + vezes ao deitar lhe esquecia uma Salve-Rainha, fazia penitencia no outro + dia porque temia que Deus lhe mandasse sessões ou a fizesse cair na + escada.» Além da doutrina aprendera a tocar piano com um velho + romanesco. Lêra livros de versos, fôra namorada durante uma estação de + banhos por um estudante de Coimbra, que lhe fizera umas quadras. Estava + pedida por um escrevente de tabellião, que se perturbava sob o seu olhar + voluptuoso mas que ella não amava, sentindo em si «como um grande somno + do coração.» Não tinha pae. Era sanguinea e forte, de grossos beiços + levemente sombreados de pennugem negra. Ouvia missa todos os dias e + confessava-se todas as semanas.—A mãe era protegida por um conego. Ella + padecia tedios nevralgicos e inquietações hystericas. +</p> +<p> + Todos os demais personagens, alguns d'elles apenas indicados por quatro + palavras, que têem o poder de uma evocação, o conego Dias, o padre + Natario, o padre Brito, o chantre, o coadjutor, o Libaninho, o tio + Esguelha, o escrevente, o redactor da <i>Voz do Districto</i>, as senhoras + Gançosos, a sr.ª D. Maria da Assumpção, a Joanneira,—vivem, têem uma + physionomia, uma personalidade. +</p> +<p> + O desenlace do drama, a morte de Amelia, a fuga do padre da quinta da + Cortegaça, de noite, levando o filho escondido na capa; o seu terror ao + sentir-se seguido, ao ouvir atraz de si no macadam as passadas surdas do + escrevente, passadas commedidas pelas d'elle, acompanhando-o como o + remorso, como o presentimento da catastrophe que se aproxima; o + infanticidio perpetrado no escuro, com os pés no lodo, á beira do rio, + escondido nos juncos como um animal ferido cercado pelos latidos + raivosos da matilha; a sua retirada de Leiria ao outro dia, por uma + serena tarde de outomno, de uma poetica serenidade ineffavel, partindo a + cavallo no momento em que os sinos da sé começavam a soluçar o dobre de + defuntos, emquanto um realejo toca na rua um trecho da <i>Norma</i>, e, de + uma casa defronte, um pequerrucho seguro ao peitoril da janella pelo pae + e pela mãe que riem, lhe diz adeus com a sua pequena mãosita + papuda;—constituem paginas de uma concepção e de uma tonalidade + tragica, profundamente elegiaca e solemne, que fica vibrando por muito + tempo na memoria como o ecco funebre de um <i>dies irae</i>. +</p> +<p> + Este livro misanthropicamente concebido, e executado com uma ironia + mordente e com um humorismo repassado de lagrimas, deixa todavia no + espirito uma forte impressão consoladora; é a obra de um grande artista, + de um poderoso revelador de ideal; e como toda a idealisação perfeita, + repousa-nos das nossas preoccupações pessoaes e egoistas, + engrandece-nos, eleva-nos aos nossos proprios olhos, infunde-nos a fé, + obriga-nos a crêr no sagrado desinteresse da arte, na divina + immortalidade do bello. +</p> +<hr class="minor" /><!--===================--> +<p> + Se depois da idéa que procurei dar-te d'este livro, tu, leitor me + perguntares se o deves dar a ler á menina tua filha, eu respondo-te + terminantemente que não. As meninas nunca lêem romances, quaesquer que + elles sejam. +</p> +<p> + Se o podem lêr as mulheres—é uma outra questão, á qual respondo que + podem, ainda que com esta reserva—ás escondidas. +</p> +<p> + Não que este livro seja immoral. A arte é absolutamente independente da + moral, e não póde nunca nem servil-a nem prejudical-a. +</p> +<p> + Quando para minha consolação e refrigerio eu me desvio da estrada em que + succumbo de fadiga mordido pelo sol, e vou descançar um momento á sombra + de uma arvore, não pergunto se essa arvore dá peras ou se dá pilritos, + se da sua resina se póde extrair um balsamo ou um veneno, se dos seus + filamentos se póde entrançar uma corda para o sino ou um baraço para a + fôrca, se no seu tronco se podem serrar as pranchas para construir a + arca ou para armar o patibulo. A unica coisa que lhe pergunto é se ella + tem, para m'a dar, uma boa sombra fresca, macia, aromatica; e se a tem, + eu, que n'esse momento não sou um negociante de productos alimenticios, + nem um madareiro nem um chimico nem um engenheiro constructor, mas sim + um caminheiro prostrado, eu declaro, não só em meu nome, mas em nome da + sciencia, em nome da moral, em nome da religião, em nome do homem e em + nome de Deus, que essa arvore é boa, é util, é necessaria—não pelos + materiaes que ministra, não pelos fructos que produz, nem pelas + substancias que segrega, mas unica e simplesmente por uma condição + imponderavel e etherea, da qual em dada crise pode depender o meu + destino inteiro e toda a minha vida; e essa condição é a de se interpôr + no espaço entre mim e o ceu, e projectar sombra. +</p> +<p> + Na esphera das multiplas vegetações do nosso espirito a sciencia e a + philosophia fornecem as substancias alimenticias e ministram os + materiaes das construcções; a arte é a arvore santa, a arvore da sombra + para os peregrinos do pensamento. +</p> +<p> + Schiller em uma das suas cartas, cujo texto não tenho presente, expôe + uma theoria que pode resumir-se n'estes termos: «Se um critico em nome + da moral processa o meu livro não pelo que eu n'elle escrevi mas pelas + conclusões que elle critico lhe extrae, eu despreso esse julgamento. Se, + porém, a critica me convencer de que, dado o assumpto qual eu o concebi, + eu poderia executal-o por outro modo, eu n'esse caso submetto-me, não + porque tenha errado contra a moral, mas porque errei contra a arte. +</p> +<p> + Ora na execução do livro do sr. Eça de Queiroz ha na parte descriptiva + dois ou tres pormenores que não quereriamos eliminados—com quanto isso + fosse possivel sem quebra da verdade—mas que nos parece poderem ser + referidos de um modo—não dizemos mais pudico—dizemos mais artistico. +</p> +<p> + Ha em todos os grandes romancistas modernos, desde Balzac até o sr. + Queiroz, uma tendencia de que o vulgo tem feito o attributo de uma + escola, tendencia febril a demorarem sensualmente as analyses da torpeza + e da podridão. +</p> +<p> + O grande Eschylo dizia, censurando Euripides: «Elle deprimiu tudo + aquillo em que pegou, eu enobreci tudo aquillo em que toquei; os homens + saidos das minhas mãos respiram gladios e lanças, capacetes de + pennachos brancos e escudos reforçados com sete couros.» Os artistas + modernos não podem infelizmente inscrever nos seus brazões a nobre + divisa do velho tragico. A sociedade actual não fornece á arte os + grandes crimes que alimentaram o interesse da tragedia grega, porque as + depravações contemporaneas não gravitam em torno do crime heroico mas + sim em torno do vicio mesquinho e vergonhoso. Quem descreve os + caracteres modernos tem fatalmente de operar na gangrena; o que nos não + parece egualmente inevitavel é que o puz do tumor salpique a mão que o + opera. Ora o que julgamos notar, por duas ou tres vezes como acima + dissemos, na obra tão profundamente casta do sr. Eça de Queiroz é que os + seus instrumentos anatomicos, tão bem acerados e tão finos, teem os + cabos demasiadamente curtos. +</p> +<p> + A dissecção—permitta o nosso amigo que lh'o observemos—tem tambem as + suas leis de conveniencia e de elegancia. Além de que, para estudar um + orgão é ocioso expôr aos olhos do amphitheatro toda a nudez do cadaver. + Mesmo em anatomia o completo conjuncto é obsceno, porque é inutil. +</p> +<p> + As damas da côrte tão <i>pointilleuse</i> de Luiz XIV—ellas que + representavam tudo quanto possamos conceber mais escrupuloso e mais + exigente no decoro e no gosto—frequentavam, sem offensa do seu fragil + melindre de estufa, os theatros anatomicos. +</p> +<p> + «Á medida, diz Fontenelle, que Verney se tornava um homem á moda punha + em moda a anathomia, a qual, encerrada até ahi nas escolas de medicina + ou em Saint-Côme, ousou produzir-se na alta sociedade apresentada pela + mão d'elle.» O tacto especial de Verney contém um exemplo que pode não + ser inutil ao sr. Eça de Queiroz. +</p> +<p> + As senhoras portuguezas não cursam os estudos scientificos. Não teem os + menores principios de biologia, de anathomia e de physiologia, + principios indispensaveis para entrar nos estudos mais complexos do + homem como são na sciencia a historia e na arte o romance de caracter e + a esculptura do nú. +</p> +<p> + Por isso a falsa noção que ellas teem do pudor as torna incompativeis + com muitas das mais preciosas convivencias intellectuaes. +</p> +<p> + Uma noção social não pode, porém, ser modificada pelos escriptores ou + pelas academias. Essa reforma é a obra collectiva e impessoal do + progresso nos costumes e nas instituições. +</p> +<p> + N'estas condições, deploraveis mas inamoviveis, maior deve ser a atenção + do artista em limar—tanto quanto isto seja possivel sem detrimento da + obra—os pequenos angulos subalternos que difficultem a adaptação d'ella + aos costumes. +</p> +<p> + Sob este ponto de vista <i>O crime do Padre Amaro</i> está adeante do seu + tempo. Como obra de arte é este um destino feliz, porque n'este caso ter + de esperar é adquirir a certeza de sobreviver. Como obra de hygiene + social lamentamos que elle não possa desde já actuar pela sua + influencia no espirito d'este paiz onde o primeiro livro da educação + moderna <i>La femme, le prêtre et la famille</i> é ainda tido por um + sacrilegio de Michelet, o impio! +</p> + + + + + + + + +<pre> + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of As Farpas: Chronica Mensal da +Politica, das Letras e dos Costumes, by Ramalho Ortigão and Eça de Queiroz + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK AS FARPAS: CHRONICA MENSAL *** + +***** This file should be named 16218-h.htm or 16218-h.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/1/6/2/1/16218/ + +Produced by Biblioteca Nacional de Lisboa, Portugal, Cláudia +Ribeiro, Larry Bergey and the Online Distributed +Proofreading Team + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact +information can be found at the Foundation's web site and official +page at https://pglaf.org + +For additional contact information: + Dr. Gregory B. Newby + Chief Executive and Director + gbnewby@pglaf.org + +Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation + +Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide +spread public support and donations to carry out its mission of +increasing the number of public domain and licensed works that can be +freely distributed in machine readable form accessible by the widest +array of equipment including outdated equipment. Many small donations +($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt +status with the IRS. + +The Foundation is committed to complying with the laws regulating +charities and charitable donations in all 50 states of the United +States. 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Donations are accepted in a number of other +ways including including checks, online payments and credit card +donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate + + +Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic +works. + +Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm +concept of a library of electronic works that could be freely shared +with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project +Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. + +Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed +editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. +unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. + +*** END: FULL LICENSE *** + + + +</pre> + +</body> +</html> diff --git a/16218-h/images/devil.png b/16218-h/images/devil.png Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..13a77a6 --- /dev/null +++ b/16218-h/images/devil.png diff --git a/LICENSE.txt b/LICENSE.txt new file mode 100644 index 0000000..6312041 --- /dev/null +++ b/LICENSE.txt @@ -0,0 +1,11 @@ +This eBook, including all associated images, markup, improvements, +metadata, and any other content or labor, has been confirmed to be +in the PUBLIC DOMAIN IN THE UNITED STATES. + +Procedures for determining public domain status are described in +the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org. + +No investigation has been made concerning possible copyrights in +jurisdictions other than the United States. 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