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+ <meta http-equiv="Content-Type" content="text/html; charset=ISO-8859-1" />
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+ <title>The Project Gutenberg eBook of As Farpas, Janeiro a Fevereiro 1877
+by Ramalho Ortigão and Eça De Queiroz.</title>
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+<body>
+
+
+<pre>
+
+The Project Gutenberg EBook of As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das
+Letras e dos Costumes, by Ramalho Ortigão and Eça de Queiroz
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
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+Title: As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes
+ Janeiro a Fevereiro de 1877
+
+Author: Ramalho Ortigão and Eça de Queiroz
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+Release Date: July 6, 2005 [EBook #16218]
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+Language: Portuguese
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+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK AS FARPAS: CHRONICA MENSAL ***
+
+
+
+
+Produced by Biblioteca Nacional de Lisboa, Portugal, Cláudia
+Ribeiro, Larry Bergey and the Online Distributed
+Proofreading Team
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+<div class="centered">
+ <img src="images/devil.png" width="570" height="755"
+ alt="Eça de Queiroz&mdash;Ramalho Ortigão&mdash;As Farpas" />
+ <!--IMAGE END-->
+</div>
+<hr class="major" />
+<h1>
+ AS FARPAS
+</h1>
+<div class="centered">
+ <p>RAMALHO ORTIGÃO&mdash;EÇA DE QUEIROZ</p>
+ <p>CRONICA MENSAL DA POLITICA DAS LETRAS E DOS COSTUMES</p>
+ <p>NOVA SERIE TOMO VIII</p>
+ <p>Janeiro a Fevereiro 1877</p>
+</div>
+<hr class="major" /><!--===================-->
+<blockquote>
+<p>
+Ironia, verdadeira liberdade! És tu que me livras da ambição do poder,
+da escravidão dos partidos, da veneração da rotina, do pedantismo das
+sciencias, da admiração das grandes personagens, das mystificações da
+politica, do fanatismo dos reformadores, da superstição d'este grande
+Universo, e da adoração de mim mesmo.
+</p>
+</blockquote>
+<p class="centered">
+ P.J. PROUDHON
+</p>
+<hr class="major" /><!--===================-->
+
+<p class="centered">
+ <b>SUMMARIO</b>
+</p>
+<p>
+ A actual <a href="#situacao">situação politica</a>.
+ Conceituosa parabola das moscas e das maselas.
+ O <a href="#partido">partido revolucionario e o partido conservador</a>.
+ A funcção de
+ um e outro d'estes partidos. Anarchia ou retrocesso. Extincção do
+ partido revolucionario por falta de idéas. Mancommunação conservadora.
+ Philosophica historia de uns almocreves e de um pipo de vinho. A
+ profunda synthese do pipo do Estado.&mdash;As inundações.
+ <a href="#meteorologica">Crise meteorologica</a>.
+ Theoria da chuva. Os irrigamentos e as cheias. As
+ civilisações e os rios. As previsões industriaes e economicas. O regimen
+ das torrentes. A arborisação. Os diques provisorios. As fontes de
+ Palissy. <a href="#economica">Crise economica</a>.
+ O Estado e o Inundado. Troca de
+ correspondencias. Lisboa durante a crise: os salões, os espectaculos, a
+ imprensa, o parlamento. Intervenção de sua magestade a rainha. A
+ caridade como elemento de administração. Autopsia do anjo. De como este
+ não baixou do ceu. Demonstra-se que saiu da arcada do Terreiro do Paço.
+ A intervenção dos Prelados. As preces para mudar o tempo e os
+ observatorios para o estudar. Os moinhos do <a href="#Tibet">Tibet</a>
+ e as cabaças dos
+ Kalmuks. A intervenção da colonia portugueza no Brazil. O brazileiro que
+ parte, e o brazileiro que chega. O patriotismo dos nostalgicos. A
+ commissão de soccorros.&mdash;Um <a href="#banquete">banquete militar</a>.
+ O que se passa dentro dos
+ craneos sob a pressão das barretinas.&mdash;O centenario da
+ <a href="#Academia">Academia das Sciencias</a>.
+ A tradição academica. A Academia, berço da revolução e da
+ liberdade. Ferreira Gordo, o abbade Correia da Serra, o padre Antonio
+ Pereira, o duque de Lafões, academicos e
+ jacobinos.&mdash;<a href="#Amaro"><i>O crime do Padre Amaro</i></a>
+ romance d'Eça de Queiroz.
+</p>
+<p>
+ A <a id="situacao" name="situacao" >situação politica</a>...
+</p>
+<p>
+ Mas, perdão&mdash;antes de encetarmos este assumpto, uma pequena historia:
+</p>
+<p>
+ Era uma vez um velho burro. Fora madraço e manhoso. Não conquistára
+ amigos porque os não merecia. Tinham-o lançado á margem no fim da vida.
+ Principiou a viver ao acaso, pelos montes. Um dia achava-se defronte de
+ um vallado, estacado ao sol sobre as suas quatro patas, inerte, immovel,
+ olhando para um cardo secco com os seus grandes olhos redondos e
+ encovados em orbitas esqueleticas, pensando nas vicissitudes da vida e
+ procurando arrancar do seu cerebro, para se consolar, algumas idéas
+ philosophicas.
+</p>
+<p>
+ Passou por elle e deteve-se a contemplal-o um joven asno, no viço das
+ illusões, cheio de amor e de zurros, de alegria e de coices. A vetusta
+ ossada angulosa do ancião parecia furar-lhe a pelle resequída e aspera.
+ Um espesso enxame de moscas cobria-lhe as mataduras do lombo e dava-lhe
+ o aspecto de ter um albardão feito de zumbidos e d'asas sobre um fundo
+ de missangas pretas e palpitantes,&mdash;coisa rabujosa á vista.
+</p>
+<p>
+ &mdash;Sacode esse mosqueiro, disse-lhe o burro novo. Dar-se-ha o caso de
+ que, á similhança do homem, deixasses tambem tu atrophiar o precioso
+ musculo que ahi tens na face para por meio d'elle abanares a orelha e
+ moveres a pelle?... Sacode-te, bestiaga!
+</p>
+<p>
+ Ao que o lazarento, pausado, retorquiu:
+</p>
+<p>
+ &mdash;Não sabes o que zurras, joven temerario! O destino de quem tem maselas
+ é que o mosqueiro o cubra. As moscas que tu vês, e de que o meu cerro é
+ a estalagem com mesa redonda, são moscas fartas, teem a mansidão
+ abundante dos estomagos cheios. Se eu as sacudisse, viriam outras,&mdash;as
+ famintas, de ferrões gulosos, que zinem como frechas, pousam como
+ causticos, mordem como furunculos. As que tu vês prestam-me um serviço
+ impagavel:&mdash;livram-me das que podem vir; são o meu xairel benigno e
+ suave, o meu arnez, a minha couraça. Quando te chegar a idade de seres
+ pasto de moscas (e breve te soará essa hora porque a mocidade é, como a
+ herva, uma ephemera transição entre o alfobre da meninice e a palha da
+ edade madura); quando te chegar o teu dia, lembra-te, asninho
+ imprudente, d'este conselho amigo de um burro velho, que não aprende
+ linguas, mas que tem a experiencia que vale tanto como o ouro: Nunca
+ sacudas mosca desde que creares masela! Teme-te dos papos vasios das
+ revoadas novas. Papos cheios não só não mordem mas até empacham!
+ Comprehendeste, burrinho, a philosophia da minha inercia?
+</p>
+<p>
+ Revertamos agora, como vinhamos dizendo, á situação politica.
+</p>
+<p>
+ Em toda a sociedade em movimento ha dois unicos partidos:
+ o <a id="partido" name="partido" >partido conservador e
+ o partido revolucionario</a>.
+</p>
+<p>
+ A funcção do partido revolucionario, qualquer que seja o seu
+ nome&mdash;republicano, socialista, federalista, fourrierista, proudhonista,
+ positivista, etc.&mdash;é transformar a ordem estabelecida, modificando as
+ condições da civilisação no sentido de um mais rapido progresso.
+</p>
+<p>
+ Para este fim o partido revolucionario agita constantemente por meio de
+ idéas novas as opiniões preconcebidas.
+</p>
+<p>
+ Como, porém, não está ainda definido o programma geral e harmonico da
+ revolução, como a tendencia progressiva das multidões indisciplinadas se
+ basea no sentimentalismo esteril ou no phantastico ideal methaphysico
+ dos phraseadores eloquentes, succede que todo o esforço revolucionario
+ representa para a sociedade um perigo de desordem, de incoherencia e de
+ anarchia.
+</p>
+<p>
+ A funcção do partido conservador é a manutenção da ordem contra todas as
+ invasões que directa ou indirectamente ameacem a integridade da
+ organisação existente. Em todas as velhas sociedades os governos são por
+ essa rasão, os inimigos natos do progresso. A evolução progressiva da
+ humanidade realisa-se, a despeito d'elles, pela elaboração irresistivel
+ das idéas fora da esphera official, sob a acção das descobertas da
+ sciencia ou das suggestões da arte. O mais que fazem os governos é
+ submetterem-se ás transformações sociaes que a solução de cada novo
+ problema resolvido pela sciencia impõe á existencia dos povos. Os
+ governos, portanto, sempre que uma forte effervescencia intellectual não
+ agita a sociedade e os não abala constantemente na eminencia do seu
+ posto forçando-os a concessões successivas, tendem ao retrocesso.
+</p>
+<p>
+ A civilisação não é na orbita politica senão o justo equilibrio das
+ forças resultantes d'essas duas tendencias: a tendencia retrograda na
+ ordem, a tendencia anarchica na revolução.
+</p>
+<p>
+ Em Portugal o que succede?
+</p>
+<p>
+ A vida intellectual é extremamente debil. A sciencia não tem cultores
+ desinteressados e ardentes, a acção da arte sobre a aspiração dos
+ espiritos é nulla.
+</p>
+<p>
+ O resultado é que os partidos de opposição, não encontrando nos
+ phenomenos da vida nacional a profunda expressão implacavel de novas
+ necessidades a que os governos tenham de amoldar-se, acham-se
+ naturalmente desarmados das grandes rasões que reptam os governos a
+ progredir ou a abdicar.
+</p>
+<p>
+ Em taes condições o partido revolucionario dentro da milicia politica,
+ partido fabricado pelos proprios governos com a corrupção do
+ suffragio,&mdash;sendo uma pura convenção, uma fixão constitucional, uma
+ expressão rhetorica, sem raizes na consciencia e na vontade
+ popular,&mdash;acabou por desapparecer inteiramente do nosso systema
+ representativo. Ha muitos annos que a revolução não tem quem a
+ represente no parlamento portuguez.
+</p>
+<p>
+ Ha, todavia, uma maioria parlamentar e uma opposição composta de varios
+ grupos dissidentes. Estes grupos são fragmentos dispersos do unico
+ partido existente&mdash;o partido conservador&mdash;fragmentos cuja gravitação
+ constitue o organismo do poder legislativo.
+</p>
+<p>
+ Estes partidos, todos conservadores, não tendo principios proprios nem
+ idéas fundamentaes que os distingam uns dos outros, sendo absolutamente
+ indifferente para a ordem e para o progresso que governe um d'elles ou
+ que governe qualquer dos outros, conchavaram-se todos e resolveram de
+ commum accordo revesarem-se no podler e governarem alternadamente
+ segundo o lado para que as despesas da rhetorica nos debates ou a força
+ da corrupção na urna fizesse pesar a balança da regia escolha. Tal é o
+ espectaculo recreativo que ha vinte annos nos esta dando a representação
+ nacional.
+</p>
+<p>
+ Imaginem meia duzia de almocreves sequiosos que acham na estrada um
+ pipo de vinho. Como nenhum d'elles tem mais direito que os outros a
+ beber do pipo, combina-se que cada um d'elles ponha a bocca ao espicho e
+ beba em quanto os pontapés dos outros o não contundirem até o ponto de o
+ obrigar a largar as mãos da vasilha para as apertar na parte ferida
+ pelos pontapés applicados pela companhia que espera. É exactamente o que
+ ha muito tempo tem sido feito pelos partidos portuguezes com relação ao
+ usofructo do poder que elles acharam na estrada, perdido.
+</p>
+<p>
+ Chegou finalmente a vez de pôr o pipo á bocca um partido
+ excepcionalmente valoroso de sede e inconfundivel de fibra. Este partido
+ não desemboca o pipo por mais que lhe façam. Protestações
+ escandalisadas, de almocreves, retroam.
+</p>
+<p>
+ &mdash;Este partido abusa!
+</p>
+<p>
+ &mdash;Isto não vale!
+</p>
+<p>
+ &mdash;Isto não é do jogo!
+</p>
+<p>
+ &mdash;Elle esvasia o pipo!
+</p>
+<p>
+ &mdash;Larga o pipo, pipa!
+</p>
+<p>
+ &mdash;Larga o pipo, pimpão!
+</p>
+<p>
+ &mdash;Larga o pipo, ladrão!
+</p>
+<p>
+ E incitam-se uns aos outros até á ferocidade:
+</p>
+<p>
+ &mdash;Chega-lhe rijo!
+</p>
+<p>
+ &mdash;Mais! que lhe dôa bem!
+</p>
+<p>
+ &mdash;Rebenta-me esse ôdre!
+</p>
+<p>
+ &mdash;Racha-me esse tunel!
+</p>
+<p>
+ &mdash;Ah! cão!
+</p>
+<p>
+ O partido, porém, continua sempre a beber, e é insensivel a tudo: á dor,
+ ao insulto, ao chasco, ao improperio, á graça pesada, á insinuação
+ perfida e á alusão venenosa!
+</p>
+<p>
+ Em vista de uma tal pertinacia, que nós mesmos somos forçados a taxar de
+ irregular, os partidos em expectativa do pipo, confederam-se, ferem o
+ pacto da Granja, constituem-se n'um só partido novo,&mdash;n'uma só bocca
+ para o pipo. Fazem um programma, redigem um manifesto, vão de terra em
+ terra pedindo ao paiz que intervenha. Precisamente lhes occorreu n'esse
+ momento que o pipo tem dono! que é do paiz o pipo!
+</p>
+<p>
+ Instado a intervir pelos pactuantes da Granja, pelos signatarios do
+ manifesto, pelos auctores do novo programma, pelos oradores dos
+ <i>meetings</i> revolucionarios, pelos jornaes opposicionistas, o paiz
+ responde-lhes:
+</p>
+<p>
+ Lestes a historia do sabio burro lazarento contada pelas <i>Farpas</i>? Eu
+ sou esse burro. Vós sois a revoada das novas moscas pretendendo
+ expulsar a revoada velha. Ora, moscas por moscas&mdash;sendo meu destino que
+ ellas sempre me cubram e me comam&mdash;prefiro as antigas moscas saciadas ás
+ novas moscas famintas.
+</p>
+<p>
+ Deixae-me em paz. E notae que eu nem sequer vos abano as orelhas,&mdash;que é
+ para não bolir comigo!
+</p>
+<hr class="major" /><!--===================-->
+<p>
+ Nuvens escuras, espessas, parecendo feitas da conjugação erea de
+ Hymalaias de cinza e de Caucasos de cebo, toldam o céu, descem no espaço
+ sobre as nossas cabeças, rolam pelos telhados com os idyllios felinos do
+ mez de janeiro, cáem sobre os candieiros das ruas, espraiam-se pelo
+ asphalto dos passeios, valsam nas ruas, envolvem os transeuntes em
+ abraços aquosos que lhes atravessam o paletot, o collete de flanella e
+ as articulações dos ossos; penetram em rodopio no interior das casas
+ pelos resquicios das portas e das janellas, e na sua dança macraba as
+ pardas e humidas filhas do ar cobrem de sofregos beijos molhados e
+ bolorosos as lombadas dos livros, o liso marfim dos teclados, o marmore
+ polido das chaminés, os cabellos que se desfrisam e as idéas que se
+ dissolvem. Ao cabo de pouco tempo chove de toda a parte: chove do céu,
+ chove das paredes e dos tectos das casas, das portas, da mobilia, dos
+ castões das bengalas, dos <i>abat-jours</i> dos candieiros, e dos barretes de
+ dormir. Ha dois violentos temporaes com poucos dias de espaço entre um e
+ outro. Trasbordam os rios. Inundam-se os campos. Desenraizam-se arvores.
+ Desmoronam-se casas. Os rebanhos, os instrumentos agricolas, os generos
+ em deposito nos celleiros, os viaductos e os rails das linhas fereas são
+ arrebatados pela corrente das aguas. O curso ordinario dos negocios, o
+ movimento das mercadorias e dos viajantes suspende-se. Alguns dos
+ habitantes das regiões inundadas ficam na miseria e têem fome.
+</p>
+<hr class="minor" /><!--===================-->
+<p>
+ Ha por tanto duas crises: uma
+ <a id="meteorologica" name="meteorologica" >crise meteorologica</a>
+ e uma crise economica.
+</p>
+<hr class="minor" /><!--===================-->
+<p>
+ Sendo a crise economica um effeito da crise meteorologica,a questão
+ fundamental no estudo d'essas duas crises é a questão da chuva.
+</p>
+<p>
+ Esta questão acha-se definida e tem a sua theoria na sciencia.
+</p>
+<p>
+ Assim como a agua sujeita a uma dada elevação de temperatura se evapora
+ e se converte em ar, assim o ar sujeito a uma proporcional depressão
+ athmospherica se transforma e se converte em agua. Os conhecimentos que
+ já hoje se possuem da physica do globo permittem determinar os
+ differentes tramites do processo seguido pela natureza para obter os
+ resultados achados pela observação humana.
+</p>
+<p>
+ Todo o vento (effeito da rotação da terra) humedecido pela impregnação
+ aquatica do mar, encontrando na sua passagem um estorvo que o dilate na
+ atmosphera, transforma-se em chuva, ou transforma-se em neve, segundo o
+ gráu de arrefecimento, maior ou menor, resultante da altura a que o
+ eleva no espaço o volume do estorvo interposto na sua corrente.
+</p>
+<p>
+ Assim se explica o phenomeno da chuva, a existencia da neve nos
+ pincaros de todas as altas montanhas, e o nascimento dos rios. D'estes,
+ uns, como o Rhodano, o Rheno, o Danubio, são formados pela opposição das
+ cordilheiras á corrente regular de certos ventos; outros, como o
+ Mississipi e o Missouri, nascem do encontro das duas correntes
+ atmosphericas oppostas, uma que sáe do golpho do Mexico, outra que parte
+ dos Estados Unidos na direcção da Europa.
+</p>
+<p>
+ Achando-se determinado que 200 metros de elevação acima do nível do mar
+ dão 3 gráus de frio, é facil calcular, o frio que deve actuar no ar
+ elevado ás alturas dos Alpes, dos Pyreneus, do Caucaso, e de descobrir
+ assim as causas das geleiras, do mesmo modo se descobriu a origem das
+ chuvas e a do nascimento dos rios.
+</p>
+<p>
+ Possuida esta simples e clara noção, o homem adquiriu o poder de
+ intervir no meteoro. Em 14 de novembro de 1854 uma tempestade medonha
+ caíu sobre as esquadras franceza e ingleza, estacionadas no Mar Negro.
+ Todos os navios das duas marinhas tiveram avarias desastrosas. Muitas
+ embarcações de transporte naufragaram. O sr. Leverrier, director do
+ observatorio de Paris, procedeu então a um inquerito sobre as
+ perturbações atmosphericas d'esse dia, dirigindo circulares a todos os
+ meteorographos do mundo. Duzentas e cincoenta respostas de differentes
+ observatorios provaram que a onda atmospherica qua determinara a
+ tempestade fôra presentida pelos observadores, e que a catastrophe teria
+ sido evitada se o telegrapho, que caminha mais depressa do que a
+ corrente do ar, houvesse feito passar de observatorio em observatorio a
+ noticia do phenomeno.
+</p>
+<p>
+ Antigamente faziam-se preces e penitencias para pedir chuva; hoje em dia
+ a chuva não se pede, manda-se-lhe simplesmente que caia, e ella cáe
+ precisamente no ponto que se lhe designa.
+</p>
+<p>
+ Ha poucos annos ainda, no Baixo Egypto, não chovia nunca. Os celleiros
+ eram construidos ao ar livre, a descoberto, sobre os telhados. Desde
+ tempos immemoriaes que o vento secco do norte mantinha esse estado de
+ coisas na referida região. Um dia, porém, a corrente septentrional chega
+ á Alexandria e encontra uma certa difficuldade em passar com a rapidez
+ do costume; detem-se um momento, retarda-se um instante: basta isso para
+ que ella se dilate, para que se eleve no espaço, para que arrefeça na
+ razão da altura a que subiu e para que, por-consequencia, se converta
+ em chuva. D'onde viera esta poderosa resistencia á invasão do vento
+ esteril? De uma revolução geologica na configuração do solo? Do encontro
+ de um vento opposto? Da influencia calorifica da radiação solar? Não. A
+ voz de preso dada ao vento norte, o encarceramento d'elle n'uma certa
+ porção do espaço, a sua condemnação inilludivel a condensar-se e a ser
+ chuva, fôra simplesmente a obra do homem, que vencera o vento plantando
+ a arvore.
+</p>
+<p>
+ As florestas que têem o poder de occasionar as chuvas por meio da sua
+ interferencia na corrente dos ventos, possuem ainda a propriedade de
+ lhes regular os effeitos impedindo os excessivos irrigamentos, e as
+ inundações.
+</p>
+<p>
+ Além de certos processos de cultura e de arborisação nos cabeços dos
+ montes e nas encostas das colinas, ha outros meios de impedir os
+ estragos das cheias,&mdash;dando aos rios um regimen torrencial, operando
+ largos cortes transversaes nos declives do solo para regular a descida
+ das aguas, construindo tubos de drenagem, etc.
+</p>
+<p>
+ Quando um dique, como o de Vallada, se rompe por effeito de um
+ repentino augmento no volume da agua no leito de um rio, ha meios
+ praticos, prontos, expeditos, de construir diques provisorios. O sr.
+ Babinet, nos seus estudos ácerca da chuva e do irrigamento da França,
+ lembra para os casos analogos ao de Vallada a construcção de barreiras
+ feitas com grandes caixas de ferro fundido similhantes ás que
+ transportam a agua potavel nas navegações de longo curso. Estas caixas
+ enchem-se com a mesma agua do rio e sobrepõem-se ou enfileiram-se de
+ encontro á corrente até formarem um obstaculo de dimensões adquadas ao
+ volume da agua que se tem por fim represar.
+</p>
+<p>
+ O mesmo sr. Babinet suggere para o meio preventivo da arborisação o
+ sabio alvitre, tão moralisador, de organisar regimentos de plantadores
+ formados de corpos de veteranos, cujas praças encontrariam n'esse
+ trabalho um suave emprego da sua actividade, que o Estado poderia
+ utilisar remunerando-a com liberalidade superior á importancia mesquinha
+ do soldo e proporcional ao serviço prestado por esses cidadãos, até hoje
+ inuteis, á salubridade e á riqueza publica.
+</p>
+<p>
+ Por occasião das ultimas inundações em França, das recentes inundações
+ na Inglaterra, os meios apontados e muitos outros, descobertos pela
+ sciencia no momento do perigo, em frente da catastrophe, têem sido
+ objecto dos mais graves estudos por parte do governo, por parte da
+ imprensa, por parte principalmente das corporações especiaes, dos
+ meteorologistas, dos engenheiros hydrographos, dos de florestas, dos de
+ pontes e calçadas, etc.
+</p>
+<p>
+ Em Portugal deante do facto da inundação espraiada sobre as povoações do
+ Ribatejo, e das margens do Guadiana, a questão principal, a questão
+ summa, a questão technica, é posta completamente de parte, ou nem sequer
+ chega a ser afastada: não concorre no problema, é como se não existisse!
+</p>
+<hr class="minor" /><!--===================-->
+<p>
+ Em face do desastre, dos nossos periodicos, do nosso parlamento, dos
+ nossos proprios estabelecimentos de instrucção, irrompe um só grito
+ enorme, consternado, lacrimoso, impotente, imbecil:&mdash;<i>Caridade!
+ Caridade! Caridade!</i>
+</p>
+<p>
+ Parece não se ter unicamente em vista achar um remedio, mas cumprir uma
+ expiação que minore os castigos do Ceu!
+</p>
+<p>
+ Um antigo proloquio egypcio dizia: <i>Chuva em Tebas, desgraça no Egypto</i>.
+ A população portugueza não mostra ter da chuva uma comprehensão menos
+ supersticiosa que a da tradição tebana. Estamos na metaphysica dos
+ cataclismos incommensuraveis.
+</p>
+<p>
+ Debalde a meteorologia&mdash;com quanto em estado rudimentar, não constituida
+ ainda em sciencia sobre bases experimentaes e com processos
+ deductivos,&mdash;nos annuncia, ainda assim, que não ha nos phenomenos do ar
+ aberrações extraordinarias, inaccessiveis á previsão, mas sim
+ uniformidades periodicas de successão, as quaes o estudo das ondas
+ atmosphericas e da acção magnetica do globo, estudo dirigido
+ harmonicamente em uma cinta de observatorios que cinja
+ ininterrompidamente o globo, chegará por certo a poder um dia
+ regulamentar systematicamente. Definir-se-ha o sentido scientifico do
+ sonho symbolico das vaccas magras e das vaccas gordas, demonstrando-se
+ como aos annos de estiagem e de fome succedem annos compensadores de
+ irrigação e de abundancia.
+</p>
+<p>
+ Debalde a historia nos mostra que foi das inundações dos grandes rios
+ que saiu a iniciação dos grandes progressos humanos; que foi das
+ inundações do Nilo que procedeu a civilisação do Egypto; das inundações
+ do Hoang-Ho que procedeu a civilisação da China; das inundações do
+ Euphrates, que procedeu a civilisação da Caldea, da Babilonia e da
+ Syria. Povos na infancia, desprovidos das lições da experiencia,
+ desarmados dos instrumentos da analyse moderna, souberam fundar a sua
+ vida historica na previsão industrial e na previsão economica das cheias
+ dos seus rios.
+</p>
+<p>
+ Nós, portuguezes, em pleno seculo XIX, na posse dos mais importantes
+ segredos da mechanica, da astronomia, da physica, da chimica, nós,
+ filhos de Kepler, de Galileu, de Newton e de Francklin, nós,
+ contemporaneos de Mayer, de Helmboltz, de Virchow, de Haeckel, de
+ Humboldt, e de Wourtz, de Ampere, de Leverrier, nós, não sabemos tirar
+ das inundações successivas de um rio que vem de annos a annos,
+ periodicamente, contra nossa vontade, fertilisar os nossos campos,
+ nenhuma das lições que a experiencia devia suggerir-nos para regularmos
+ e utilisarmos em nosso proveito a acção violenta d'esse phenomeno!
+</p>
+<p>
+ Ha perto de trezentos annos que um velho naturalista, um modesto
+ oleiro, um simples, um santo, Bernardo Palissy, ensinou a construir as
+ fontes artificiaes, fazendo passar as aguas da chuva atravez de um
+ pequeno trato de terreno arborisado sobre um declive de cimento
+ argiloso, terminando n'um muro de supporte que se corta no ponto em que
+ se colloca a fonte e onde se deseja que a chuva, armazenada no inverno
+ entre as raizes do pomar plantado na encosta de subsolo sedimentado,
+ venha a correr no verão em bica de agua mineralisada e limpida. Ha
+ trezentos annos que isto se ensinou. Em Portugal, onde a chuva
+ torrencial é um facto de quasi todos os invernos, onde a falta de agua
+ potavel é um facto de quasi todos os verões, ainda ninguem aprendeu a
+ construir a fonte de Palissy!
+</p>
+<p>
+ Em Lisboa cairam alguns muros e desabaram algumas casas. Se um ligeiro
+ abalo de terra se tivesse seguido ás grandes chuvas é natural que muitos
+ outros predios aluissem, porque a grave questão das edificações em
+ Lisboa está absolutamente despresada e abandonada á rotina do velho
+ systema adoptado pelo marquez de Pombal. Ora esse systema, aliás
+ excellente no tempo da reedificação subsequente ao terremoto, é hoje
+ imperfeito e perigoso. A canalisação da agua e as chaminés dos fogões de
+ sala vieram modernamente alterar os dados do problema resolvido pela
+ sabia administração pombalina. Os andaimes de madeira geralmente
+ adoptados para sustentar os soalhos e os tectos ou apodrecem rapidamente
+ ao contacto dos canos da agua que envolvem os predios ou se carbonisam
+ por effeito do calor que lhes communicam os tubos das chaminés. A
+ elasticidade que se tem em vista obter para evitar os desabamentos
+ procedentes dos terremotos, substituindo os madeiramentos pela pedra, só
+ poderia conseguir-se, sem perigo do apodrecimento ou da carbonisação,
+ empregando nas construcções modernas o ferro em vez do pau. Esta
+ modificação tão facil, tão economica, tão urgentemente exigida nos novos
+ systemas de edificar, o nosso desleixo nacional não nol-a tem deixado
+ ensaiar. De modo que a mesma previsão do perigo discorrida pelo unico
+ homem que acordou em Portugal por occasião do grande tremor de terra com
+ que á natureza benigna approuve tentar acordar-nos, essa mesma a nossa
+ indolencia e a nossa incuria conseguiu converter dentro de poucos annos
+ em mais uma causa de destruição e de aniquilamento!
+</p>
+<p>
+ Do regimen torrencial dos rios, da arborisação das montanhas, dos côrtes
+ transversaes das vertentes, da construcção dos tubos de drenagem, das
+ applicações da draga, dos diques moveis organisados por meio das grandes
+ caixas de ferro fundido, caixas que boiam na agua em quanto vasias e que
+ um pequeno vapor munido do um cabo de reboque poderia conduzir aos
+ centos sobre o Tejo para os pontos da margem que conviesse resguardar
+ pelo pequeno espaço de tempo necessario para evitar o perigo, quasi
+ momentaneo, das inundações, do emprego finalmente de qualquer dos muitos
+ meios conhecidos para dominar as cheias ou para utilizar as chuvas,
+ ninguem se occupa&mdash;nem o governo que assiste ao espectaculo commodamente
+ sentado nos seus <i>fauteuils de orchestre</i> e applica á marcha dos
+ successos o seu binoculo de dilettanti correcto, imperturbavel, nem o
+ parlamento, nem a imprensa, nem finalmente o paiz!
+</p>
+<hr class="minor" /><!--===================-->
+<p>
+ A <a id="economica" name="economica" >crise economica</a> não nos parece ter sido objecto de cuidados mais
+ serios do que aquelles que cercaram a questão hydraulica. Ou é certo ou
+ não é que a inundação do Tejo e os temporaes que concorreram com ella
+ destruíram as casas, devastaram os campos, reduziram povoações inteiras
+ á miseria e á fome. Se isto é uma pura invenção dos <i>reporters</i>
+ sentimentaes, o diligente esforço humanitario empregado para arrancar da
+ caridade o remedio supremo do grande mal é uma simples ostentação
+ insensata e ridicula. Se são verdadeiras as informações que os jornaes
+ vagamente nos transmittem das desgraças provenientes da inundação do
+ Tejo e do Guadiana, n'esse caso a questão não se resolve pela caridade
+ particular mas sim pela assistencia publica.
+</p>
+<p>
+ Porque&mdash;reflictamos um momento&mdash;ou existe esse conjuncto harmonico de
+ instituições solidarias e responsaveis chamado o Estado, ou não existe.
+</p>
+<p>
+ Se não existe, em nome de que principio nos estão aqui a impôr o serviço
+ militar, o exercito, as barreiras, as alfandegas, o funccionalismo e a
+ lista civil?
+</p>
+<p>
+ Se o Estado existe, o que é para elle o <i>lnundado?</i> O <i>Inundado</i> é o
+ productor e é o contribuinte. Agricultando o seu campo, creando o
+ cavallo, engordando o boi, creando o porco, tosquiando a ovelha,
+ pisando a azeitona, podando a cepa, descaseando o sobreiro, o Inundado
+ desde tempos immemoraveis que não faz mais do que estas duas coisas:
+ produz e paga.
+</p>
+<p>
+ Nós outros, habitantes do Chiado, assignantes de S. Carlos, socios do
+ Gremio e do Club, frequentadores do Martinho e do Passeio Publico, nós,
+ republicanos, regeneradores ou granjolas, commendadores de Christo e
+ mesarios da confraria das Chagas, nós outros não produzimos e por
+ conseguinte, em rigor, tambem não pagamos.
+</p>
+<p>
+ Funcionnerios publicos, capitalistas, banqueiros, ministros, oradores,
+ poetas lyricos, jogadores na bolsa, proprietarios de predios, vendedores
+ de bilhetes de loteria, consumidores insaciaveis de charutos, de copos
+ de cerveja, de dobrada com hervilhas e de bolos de especie,&mdash;nós,
+ francamente, não produzimos coisa nenhuma qae signifique dinheiro, isto
+ é, trabalho crystalisado, obra, ou, por outra, valor. Somos apenas&mdash;mais
+ ou menos legitimamente&mdash;os usufrutuarios, os administradores officiosos
+ ou officiaes do dinheiro dos outros.
+</p>
+<p>
+ Portanto, como acima dissemos, nóa outros, como não produzimos, em
+ rigor tambem não pagamos. Aquillo que alguns suppomos pagar é apenas uma
+ parte que se nos deduz n'aquillo que recebemos. Quem em ultima analyse
+ vem a pagar é unica e simplesmente o Inundado, queremos dizer o
+ productor, o que planta o trigo, o bacelo, a oliveira e o sobro, o que
+ cega a cevada e apanha a bolota, o que carda a ovelha, cria o boi, o
+ cavallo, o porco e o carneiro, o que dá a cortiça, o mel, a cebola, o
+ pão, o vinho, o azeite, o sal, o figo, a amendoa e as laranjas.
+</p>
+<p>
+ É elle, o Inundado, quem até hoje tem pago o subsidio de S. Carlos, as
+ carruagens dos ministros, os cavallos dos correios de secretaria, as
+ purpuras dos nossos reis, as <i>toilettes</i> das nossas dançarinas, os
+ penachos do nosso exercito, a campainha e o copo d'agua dos nossos
+ parlamentos, finalmente toda a despeza de administração, de pompa, de
+ luxo e de força, cujo conjuncto constitue a coisa chamada o Estado.
+</p>
+<p>
+ Como foi que o Estado resolveu o Inundado a pagar-lhe as suas contas? O
+ Estado resolveu-o fazendo-lhe o seguinte discurso:
+</p>
+<p>
+ Inundado! Você trabalha como um boi de nora, o que o não impede de ser
+ um infeliz e um estupido. Eu sou o Estado. Proponho-me dar-lhe a
+ felicidade material, intellectual e moral, cujos elementos lhe faltam, e
+ que v. não sabe nem póde constituir sem mim. Você não sabe lêr nem
+ escrever, você não sabe trabalhar, não sabe prevêr, não sabe economisar.
+ Você não nem a escola rural, nem a biblioteca rural, nem a policia
+ rural, nem o banco rural. Você não tem a granja modelo que lhe ensine os
+ novos processos agricolas e lhe empreste as grandes machinas de
+ trabalho. Você não tem arborisação nos seus montes nem canalisação nos
+ seus rios. Para o dotar com todos esses instrumentos de aperfeiçoamento
+ e de prosperidade, arranjei-lhe eu um systema, que se chama o systema
+ monarchico-representativo, com uma carta, um rei, e doze homens, sendo
+ seis ministros e seis correios a cavallo, um parlamento, composto de
+ duas camaras, uma electiva e outra hereditaria. Quer você ou não quer a
+ civilisação? Se a quer, aceite o meu systema e eleja um deputado que vá
+ á minha camara electiva pedir por boca em seu nome tudo o que você
+ appeteça. Em troca d'este enorme serviço que eu lhe presto ha de você
+ resignar-se a pagar-me um imposto annual, que eu cá mandarei cobrar pelo
+ escrivão de fazenda, e cuja importancia applicarei a regalal-o e a
+ divertil-o summamente com um exercito, uma côrte, um sceptro, varias
+ duzias de repartições publicas, um theatro, um <i>Diario das Camaras</i>, um
+ arsenal, uma cordoaria, uma imprensa, etc., etc.
+</p>
+<p>
+ O Inundado começou desde então a pagar e o estado começou a dispender.
+ Ha perto de cincoenta annos que dura esta troca de serviços. O Inundado,
+ porém, ainda até hoje não pôde obter nem a escola pratica, nem a
+ bibliotheca, nem a granja, nem os novos instrumentos agricolas, nem as
+ grandes machinas para a lavoura a vapor, nem a arborisação, nem os
+ trabalhos hydraulicos no rio.
+</p>
+<p>
+ Um bello dia, um temporal rebenta, as aguas das chuvas, sem florestas
+ que as espongem, sem valas que sangrem a torrente, desabam de chofre no
+ rio, este trasborda por cima de velhos diques em ruina, alaga as
+ povoações, invade as casas, e deixa o Inundado entregue á nudez, á
+ desolação e á fome.
+</p>
+<p>
+ O Inundado pede então a alguem que em seu nome exponha ao Estado a
+ situação em que elle se acha:
+</p>
+<hr class="minor" /><!--===================-->
+<p>
+ Excellentissimo Estado e meu amigo.&mdash;Ha cincoenta annos que para aqui me
+ acho, tendo pago sempre a v. ex.'a quantia que combinámos quando v.
+ ex.'a fez comigo o contracto de eu lhe mandar o imposto para Lisboa e de
+ v. ex.'a me mandar para aqui a civilisação. Até á data d'esta nada
+ recebi.
+</p>
+<p>
+ Os deputados que para ahi tenho expedido á custa de muita intriga, de
+ muito dinheiro, de muito copo de vinho e de bastantes bordoadas
+ distribuidas com as listas á bocca da urna, nada remetteram para cá
+ senão discursos cheios de exclamações e de erros de grammatica. Graças
+ aos effeitos de quarenta annos de eloquencia sobre os trabalhos da terra
+ e sobre as obras do rio, este cresceu repentinamente com as ultimas
+ chuvas, invadiu-me a casa e levou-me tudo: moveis, roupas, generos,
+ ferramentas.
+</p>
+<p>
+ Acho-me na derradeira miseria.
+</p>
+<p>
+ Antigamente, antes do contrato que v. ex.'a fez comigo e a que já
+ alludi, o dinheiro que eu ganhava, em vez de o mandar para Lisboa,
+ entregava-o aqui assim ao morgado, ao capitão-mór, e ao convento. Mas o
+ morgado e o capitão-mór, se por um lado me arrancavam a pelle como v.
+ ex.'a hoje faz, por outro lado eram meus amigos. Eram meus compadres,
+ padrinhos dos meus filhos; davam-lhes as brôas e as amendoas pelas
+ festas do anno, esperavam pelas rendas, punham os varapaus argolados dos
+ seus moços e os d'elles proprios ao serviço da nossa causa, quebravam
+ todos os ossos do corpo aos corregedores, aos alcaides, aos portageiros
+ e aos almotacés, quando estes se faziam finos, matavam-nos de quando em
+ quando a creação ou davam-nos chicotadas quando estavam bebados, mas em
+ seu juizo eram bons homens e tinham sempre as portas e os braços abertos
+ para nos acudirem, para nos protegerem e para nos ajudarem. Os frades
+ resavam,&mdash;o que, se não nos fazia bem, tambem nos não fazia mal; e esta
+ é a differença que distingue os frades dos seus successores, os
+ deputados: o frade resava, os deputados intrigam. Além d'isso, os
+ frades, se diziam asneiras, diziam as pelo menos em latim, o que sempre
+ acho que lhes custaria mais do que dizel-as em portuguez rasteiro e
+ agallegado como me dizem que os deputados fazem. Finalmente os frades,
+ se de ordinario viviam á nossa custa, tambem nas occasiões de crise nos
+ permittiam viver á custa d'elles, e o caldo da portaria era uma
+ restituição.
+</p>
+<p>
+ Quem até hoje não tem restituido a importancia de um vintem nem em
+ dinheiro, nem em caldo, nem em presentes, nem em favores de nenhuma
+ especie é v. ex.'a, meu nobre e illustre senhor.
+</p>
+<p>
+ Tudo quanto tenho pago a v. ex.'a a titulo de imposto, v. ex.'a o tem
+ gasto na verba recreios: exercito com as suas revistas e as suas
+ paradas; corpo diplomatico; côrte; gratificações aos doze homens que
+ representam o governo trotando sobre as pilecas de uns atraz das tipoias
+ dos outros; governadores civis e secretarios geraes; desembargadores
+ para Gôa e juizes para os Açores; repartições publicas; arsenaes;
+ imprensa nacional; fabrica das cordas; etc.
+</p>
+<p>
+ Portanto, achando-me eu hoje sem real em consequencia de uma desgraça de
+ que v. ex.'a tem a principal culpa, quer-me parecer que não serei
+ desarrazoado pedindo-lhe o favor de me abonar para as minhas
+ necessidades mais urgentes uma pequenissima parte das sommas com que eu
+ ha cincoenta annos tenho estado a custear uma galhofa para a qual nem
+ sequer ao menos me teem convidado
+</p>
+<p>
+ D'este que é
+</p>
+<p>
+ De v. ex.'a
+</p>
+<p>
+ Humilde subdito e servo
+</p>
+<p>
+ <i>O Inundado.</i>
+</p>
+<p>
+ A resposta do Estado a estas argumentações e a estas instancias é de tal
+ modo recreativa, que pareceria inventada, se a sua authenticidade não
+ fosse reconhecida, como é, de todo o mundo.
+</p>
+<p>
+ O Estado respondeu:
+</p>
+<p>
+ Meu caro Inundado.&mdash;A tua estimada carta veiu encontrar-me em uma
+ situação bem critica para te poder servir, como desejava.
+</p>
+<p>
+ Acho-me a braços com a resposta ao discurso da corôa, com a apparição
+ dos granjolas e com a segarrega do Barros e Cunha. Falta-me tempo para
+ me occupar de ti.
+</p>
+<p>
+ Pedi a sua magestade a Rainha para te abrir uma subscripção. A rainha
+ acceitou gostosa esta incumbencia. Vieram a Palacio todos os banqueiros
+ e todos os capitalistas da cidade. Nomearam-se commissões de homens e
+ commissões de senhoras para promover bazares de prendas, concertos de
+ amadores e recitas de curiosos em teu beneficio.
+</p>
+<p>
+ Dizes-me que não tens nada de comer. É pouco. Todavia espero que, com
+ alguma economia, possas d'isso mesmo tirar alguns jantares, ainda que
+ simples, com que te alimentes durante este mez e parte do que vem. Sê
+ sobrio. Um bom caldo, um peixe, um assado, um prato de legumes e meia
+ garrafa de vinho é quanto te deve bastar. Como não tens nada, resigna-te
+ um pouco e abstem-te de champagne e de faisões dourados. Perdeste a
+ casa, a mobilia e o fato. Vae para o hotel, enrola-te na tua robe de
+ chambre e não saias por estes dias. Conserva-te no teu quarto, ao fogão,
+ toma grogs e lê romances. Reveste-te de paciencia, já que não podes
+ revestir-te de pano piloto, e espera.
+</p>
+<p>
+ Tudo está preparado e em via de execução para te acudir. Eduardo Coelho
+ e Rio de Carvalho escrevem o hymno e estão no segundo moteto. O nosso
+ Luiz de Campos prepara versos. Prepararam egualmente versos o nosso
+ Thomaz Ribeiro, o nosso Pinheiro Chagas, o nosso Fernando Caldeira, o
+ nosso Forte Gato, e outros.
+</p>
+<p>
+ É tal o movimento poetico e o consumo de rimas que escaceam já os
+ consoantes para <i>rainha</i>; manda-me pelo telegrapho os que ahi tiveres
+ disponiveis e mais proprios do alto estylo do que <i>tainha, morrinha,
+ doninha, carapinha, picoinha, espinha, ventoinha, gallinha e mezinha</i>.
+ Manda tambem para <i>Pia</i> os que poderes obter, menos os que pareça
+ conterem allusões irreverentes como <i>enguia, folia, tosquia, letria,
+ azia, mania</i> e <i>bacia</i>.
+</p>
+<p>
+ Cada um ajusta ao pé o patim da caridade e guina para seu lado em
+ arabescos cheios de phantasia e de elegancia: está-se n'um <i>skating
+ rink</i> de beneficencia para te accudir, meu grande maganão.
+</p>
+<p>
+ Além dos que fazem versos e dos que fazem hymnos, ha sujeitos a quem os
+ teus revezes&mdash;tão lastimados elles são!&mdash;têem feito espigar mazurkas e
+ rebentar polkas ... de pura dôr.
+</p>
+<p>
+ Entre as modistas tem havido largas discussões para se decidir se a
+ caridade se deve fazer com decote ou com vestido afogado. Para os actos
+ de beneficencia diurna têem-se adoptado geralmente os vestidos de meia
+ caridade, de veludo ou casimira, abotoados. Para os rasgos de
+ beneficencia nocturna as <i>toilettes</i> são sempre de grande-caridade, isto
+ é: decotes quadrados guarnecidos de renda de Bruxellas, toda a cauda,
+ luvas de dez botões, e diamantes.
+</p>
+<p>
+ É indiscriptivel a animação ferverosa que reina em todos os salões para
+ se tratar de ti. Triplicaram as <i>soirées</i> n'este inverno e dança-se
+ todas as noites com o expresso fim de te favorecer. Tocam-se os
+ lanceiros e fazem-se discursos para te obsequiar.
+</p>
+<p>
+ &mdash;Elle geme nas vascas da mais horrorosa agonia!... Chaine anglaise,
+ minha senhora!
+</p>
+<p>
+ &mdash;Mas nós havemos de arrancal-o das fauces da miseria ... Sirva-me um
+ gelado!
+</p>
+<p>
+ &mdash;Arrancal-o-hemos, ainda que seja a ferros!... De fructa ou de leite,
+ minha senhora?
+</p>
+<p>
+ &mdash;Salvemol-o vivo ou morto!... De leite!
+</p>
+<p>
+ Ás duas horas ceia, volante ou de bufete, serviço quente e frio, menu de
+ Baltresquí.
+</p>
+<p>
+ Um telegramma que chega:&mdash;O Inundado está com agua pela cinta.
+</p>
+<p>
+ Um sujeito fugindo com um perú assado:&mdash;Vou levar-lhe uma boia!
+</p>
+<p>
+ Uma menina gritando:
+</p>
+<p>
+ &mdash;Não! Não! não o devo consentir! não consentirei jámais que o coração
+ generoso d'aquelle que me deu o ser se sacrifique assim, principalmente
+ por um inundado que só está em perigo&mdash;da cinta para baixo! Accudam ao
+ papá! Subtraiam-lhe essa boia! Subtraiam-lh'a, que lhe vae fazer mal:
+ elle já comeu uma!
+</p>
+<p>
+ De rasgos d'estes poderia citar-te centenas.
+</p>
+<p>
+ Restos de velhas edições de livros, de polkas, de almanacks, que o
+ consumo do publico se recusou a tragar e que jaziam desde tempos remotos
+ nos archivos de familia dos respectivos autores, acabam de te ser
+ coasagrados e cáem sobre as subscripções abertas para te proteger como
+ bençãos dos genios incomprehendidos e olvidados.
+</p>
+<p>
+ A mesma infancia estudiosa abre nas aulas de instrucção primaria
+ subscripções para te acudir, e meninos, que ainda não conseguiram
+ penetrar no <i>quadro de honra</i> como sufficientemente fortes em leitura,
+ figuram nas resenhas dos jornaes como bemfeitores dos homens.
+</p>
+<p>
+ Não sei realmente, querido Inundado, como poderás agradecer-nos tão
+ reiterados e tão grandes beneficios! Como não sabes fazer mais nada,
+ espero ao menos quo rezes por nós. Compenetra-te bem de quanto nos
+ deves, e não te esqueças nunca, em primeiro logar de nos pagar as
+ decimas, e em segumdo de nos encommendares a Deus em todas as tuas
+ orações de manhã e de tarde para que o Altissimo vele constantemente
+ pelos nossos preciosos e divertidos dias e nos dilate a vida pelos mais
+ longos annos, como desejas e has mister.
+</p>
+<p>
+ Não te assustes, por quem és, com esse passageiro incidente da agua pela
+ cinta. Mantem-te em uma attitude serena e firme. As cheias bolindo-se
+ com ellas ainda enchem mais. Ao passo que, abandonadas a si mesmas, as
+ cheias aborrecem-se e esvasiam. Por tanto deixa obrar a natureza. Logo
+ que o tempo enxugue e os terrenos sequem, socega que irei ver-te. Podes
+ desde já preparar a foguetada, o vivorio, e o publico regosijo, para
+ receberes quem é devéras
+</p>
+<p>
+ Teu amo e protector
+</p>
+<p>
+ <i>O Estado</i>.
+</p>
+<p>
+ <i>P. S.</i> O bom amigo Luiz de Campos recommenda-se-te muito e manda
+ perguntar-te como gostas mais da caridade, se escripta á latina com <i>c
+ a</i>, ou á grega com <i>c h a</i>.
+</p>
+<hr class="minor" /><!--===================-->
+<p>
+ Diz-se geralmente&mdash;e parece-nos util fixar este boato como um symptoma da
+ epoca&mdash;que sua magestade a rainha fôra aconselhada e guiada em todos os
+ tramites da sua intervenção a favor do Inundado por um personagem já
+ hoje eminentemente poderoso, mas ao qual os recentes conselhos a sua
+ magestade vão dar um novo grau de importancia culminante e unica na
+ governação publica. Será perfeitamente legitima essa importancia. Se
+ effectivamente houve um homem sufficientemente sagaz para se conservar
+ na sombra e para suggerir a sua magestade a rainha a idéa profunda de
+ apparecer ella, unica e exclusivamente, a debellar unma catastrophe
+ publica, esse homem fez aos partidos conservadores em Portugal um
+ servigo incomparavel e deu uma prova de pericia e de habilidade que
+ nunca se egualou e que se não póde exceder.
+</p>
+<p>
+ Como se sabe, os partidos conservadores não têem idéas, não podem e não
+ devem tel-as; os que por excepção as produzem commettem um erro fatal e
+ são victimas do seu proprio acto. Em todo o <i>statu quo</i> toda a idéa nova
+ é um rombo. Quem no poder tem idéas, afunde-o. Nos regimens
+ conservadores, como o que vigora em Portugal desde muitos annos, as
+ idéas são erupções revolucionarias extranhas á acção governativa. A
+ missão dos que governam não é lançar na circulação essas idéas, mas sim
+ e unicamente vigiar o systema, como se vigia a couraça de um monitor em
+ batalha naval, e sempre que uma idéa penetre, rolhar o furo e
+ disciplinar em seguida o elemento novo introduzido a bordo pelo
+ projectil inimigo.
+</p>
+<p>
+ Aos governos conservadores não se pedem por conseguinte idéas: pedem-se
+ expedientes. Expedientes para quê? Para conservar. Como? Por todos os
+ meios que produzam este resultado:&mdash;a consolidação do que está.
+</p>
+<p>
+ É de dentro d'esta theoria, que encerra toda a sciencia de governar, que
+ nós dizemos: os conselhos a sua magestade a rainha, se alguem
+ effectivamente lh'os deu (cremos que sim e diremos já porque) são o acto
+ mais sabio, porque esse acto faz recair no assumpto o expediente mais
+ adequado e mais proficuo.
+</p>
+<p>
+ Se o governo procurasse directamente estudar e resolver o problema da
+ inundação, que succederia? A opposição contraditava-o. Na imprensa e na
+ camara os partidos dissidentes discutiriam as medidas ministeriaes,
+ controvertel-as-hiam, impugnal-as-hiam com argumentos, com sarcasmos,
+ com insultos. Quem sabe se o governo assim batido tenazmente de bombordo
+ e estibordo não acabaria por metter agua, iniciando um simulacro de
+ alguma coisa parecida ainda que remotamente, com uma idéa?!
+</p>
+<p>
+ Que aconteceu, porém, em vez d'isso?
+</p>
+<p>
+ Sua magestade a rainha, disse-se, toma a iniciativa de todos os
+ soccorros ás victimas da inundação. E sobre esta noticia publicada em
+ grandes letras nos jornaes da manhã, o governo foi para a camara, cruzou
+ os braços e esperou corajosamente que a representação nacional se
+ manifestasse. Então a opposição em peso, composta dos srs. Barros e
+ Cunha, Osorio de Vasconcellos e Pinheiro Chagas, pediu a palavra pela
+ bocca dos seus oradores.
+</p>
+<p>
+ O sr. Osorio de Vasconcellos disse:&mdash;«Partiu de alto a iniciativa;
+ partiu de uma illustre senhora, de sua magestade a rainha. Pois
+ congratulemo-nos com o paiz inteiro; congratulemo-nos com este
+ sentimento homogeneo de caridade manifestado por todos os cidadãos sem
+ distincção de classe e que veio em allivio e amparo da miseria, que é
+ geral <i>(apoiados)</i> do soffrimento que é grande; das amarguras que são
+ immensas ... O nosso paiz foi sempre reconhecido pelos impulsos da
+ caridade ... Se porventura do alto do Golgotha o Divino Mestre, etc.,
+ etc.»
+</p>
+<p>
+ O sr. Barros e Cunha:&mdash;«Mando para a mesa a seguinte proposta que espero
+ seja desde já votada por acclamação: A camara prestando a caridosa
+ iniciativa de que sua magestade a rainha houve por bem usar em beneficio
+ das victimas das inundações a homenagem que lhe deve em nome do povo que
+ representa, resolve que este voto seja lançado na acta das suas sessões,
+ e que uma grande deputação deponha aos pés da augusta princeza o tributo
+ do seu reconhecimento.»
+</p>
+<p>
+ O sr. Pinheiro Chagas, (fallando comsigo mesmo)&mdash;«Trago tambem aqui uma
+ proposta da mensagem a sua magestade, feita com tanto patriotismo como a
+ de Barros e Cunha e com mais grammatica. Visto, porém, que a camara
+ approvou a d'elle, vou pôr a minha em verso e levo-a para o Gymnasio.
+ Tenho concluido.»
+</p>
+<p>
+ E na camara dos srs. deputados, onde o governo poderia ter sido
+ violentamente e perigosamente accusado pela sua cumplicidade nos
+ effeitos da inundação, os unicos tres deputados da opposição que n'este
+ dia se achavam na sala não tiveram voz senão para louvar a caridade,
+ para citar o Golgotha e para convidar uma grande commissão a ir depôr
+ nos degraus do solio os testemunhos mais humildes do reconhecimento
+ popular!
+</p>
+<p>
+ A imprensa toda, unanimemente, confessou que sua magestade a rainha era
+ indubitavelmente um anjo, ao qual todos os noticiaristas deviam
+ permittir-se a liberdade de mexer um pouco nas azas em signal de
+ gratidão.
+</p>
+<p>
+ Depois da imprensa e da camara dos deputados vieram as corporações todas
+ com o seu obulo e o seu communicado aos jornaes. Os soldados, os
+ empregados das repartições publicas, os carpinteiros, os serralheiros,
+ os cocheiros, etc. collocaram a sua prosa apologetica sobre os voadouros
+ angelicaes da santa princeza: versos, hymnos, valsas brilhantes,
+ <i>speechs</i>, mensagens, missivas particulares, desenhos á penna, vivas,
+ bordados a cabello e a missanga, hurrahs explosivos, tropheus
+ emblematicos e pratos montados com figuras allegoricas, tudo concorreu
+ n'esta immensa apotheose.
+</p>
+<p>
+ E, se, depois de tudo isto, o dique de Vallada ficou no estado em que
+ anteriormente estava, o throno dos nossos reis, pelo menos, acha-se mais
+ firme que nunca no amor dos novos.
+</p>
+<p>
+ Confessamos, pois, em vista de todos os factos, que o expediente de
+ resolver a crise aconselhando sua magestade a rainha a intervir pela
+ caridada revela o politico mais habil, o homem de estado mais profundo
+ que o paiz podia desejar na sua situação presente.
+</p>
+<hr class="minor" /><!--===================-->
+<p>
+ O que nos leva a admittir que sua magestade foi aconselhada por um
+ promotor das conveniencias politicas e não guiada por impulsos
+ expontaneos é o exame das pequenas circumstancias que acompanharam a
+ intervenção da Corôa e nas quaes se revela a mão burocratica do
+ conselheiro de estado, mais habituado a manejar algarismos e a redigir
+ programmas do que a imitar a graça engenhosa, a poetica delicadeza, o
+ fino primor, o tacto subtil, exclusivamente feminino, que assignala os
+ actos nativos de um coração de mulher. N'esses actos, quando legitimos e
+ authenticos, ha uma especie de vinco mimoso, de perfume ideal, que os
+ laboratorios officiaes não imitam senão por meio de falsificações
+ baratas e reles.
+</p>
+<p>
+ Por este lado, que já não é o lado politico mas sim o lado esthetico, o
+ lado artistico, por este lado o vosso anjo da caridade, o anjo que vós,
+ meus senhores, puzestes no vosso andor e passeastes em procissão de
+ popularidade pelo paiz inteiro, tem os defeitos das ingenuas nas
+ companhias de amadores dramaticos em que só representam homens: tem os
+ pés chatos, a cinta grossa, e uma rouca voz de falsete, fingida e
+ miseravel.
+</p>
+<p>
+ Por baixo das candidas vestes do vosso anjo percebem-se os contornos
+ grossos e rijos do um forte modelo masculino. Reparando-se um pouco na
+ alva pennugem immaculada das brancas azas em que o sr. Luiz de Campos
+ collocou os seus inspirados versos, reconhece-se com evidencia que essas
+ azas prendem por articulações de couro a espaduas de porta-machado.
+</p>
+<p>
+ Sua magestade a rainha, uma mulher, uma senhora, uma princeza, se vós a
+ não bouvesseis violentado com os vossos conselhos, ella de per si só,
+ teria representado a caridade por modo muito diverso. Guiada
+ simplesmente pelo seu delicado instincto de mulher e pela sua perfeita
+ educação de senhora, ella saberia ser util sem ser espectaculosa;
+ far-se-hia amar sem se deixar applaudir; chegaria á dedicação absoluta
+ de toda a sua alma pelos desgraçados e pelos humildes, sem passar por
+ cima da arêa encarnada dos triumpos de rua, sem transpôr os arcos de
+ murta das glorias de phylarmonica, sem se vulgarisar, finalmente, até o
+ ponto de animar os poetas e os jornalistas a fazerem-lhe as mesmas
+ <i>réclames</i> com que se lisongeam as actrizes, tirando imagens
+ sentimentaes e sonoras do <i>perfume dos seus cabellos</i>, das <i>pregas dos
+ seus vestidos</i>, da <i>flexibilidade da sua estatura</i>, etc. Houve um
+ folhetinista que chegou pelo desenfreamento do lyrismo a comparar sua
+ magestade&mdash;a Magdalena!
+</p>
+<p>
+ Nós protestamos contra similhantes invasões do enthusiasmo nos dominios
+ da dignidade pessoal, e negamos á rhetorica monarchica o direito de
+ lançar ás faces de uma digna mulher que passa levando o seu sceptro pela
+ mão, as mesmas finesas que as bailarinas bonitas mandaram na vespera
+ deitar fora com as camelias murchas.
+</p>
+<p>
+ Este abuso iniquo e grosseiro fostes vós, conselheiros habeis nos
+ manejos politicos mas imperitos nas questões do gosto,&mdash;que os
+ promovestes e auctorisastes.
+</p>
+<p>
+ Vós começastes por abusar da vossa influencia no espirito da soberana
+ prefixando a quantia de um conto de reis como verba de subscripção.
+ Quando a miseria é geral, quando as amarguras são immensas, como disse o
+ proprio sr. Osorio de Vasconcellos, quando dos poderes publicos não
+ baixa uma só medida para acudir a tanto infortunio, quando todo o
+ remedio para tamanhos males se confia da liberalidade de uma rainha,
+ como quereis vós que se acredite que essa rainha, em uma tal
+ conjunctura, se tenha posto a contar pelos seus dedos magnanimos até
+ achar o numero de libras que compense a miseria geral e a amargura
+ immensa? Por que vibrações de piedade, por que processo de sentimento,
+ por que logica de consternação, por que inducção de pezares, quereis vós
+ que o alanceado coração de sua magestade tenha chegado de dor em dor, de
+ lagrima em lagrima, á conta, que só vós podieis ter feito, de duzentas e
+ vinte e duas libras em oiro e dez tostões em prata? Esta conta
+ deploravel é de um estalajadeiro ou de um cambista. Uma princeza, não
+ tendo aprendido pelas necessidades proprias qual é o valor do dinheiro,
+ não sabe contal-o para as necessidades dos outros. Se vós lhe tivesseis
+ dito simplesmente que para acudir a uma catastrophe nacional não havia
+ nem uma só disposição da sciencia ou da lei e que todo o remedio para
+ essa desgraça publica se esperava da influencia regia, a rainha,
+ entregue ao impulso instinctivo do seu coração, não deixaria de
+ contribuir para esse fim de um modo illimitado, sacrificando-se
+ inteiramente e incondicionalmente á fatalidade da fome como teria de se
+ sacrificar á fatalidade da guerra.
+</p>
+<p>
+ Depois não vos occorreu que tudo quanto se dispendesse em pompas se
+ cerceava em soccorros no producto dos espectaculos em beneficio das
+ victimas da inundação. Sendo esses espectaculos dirigidos por uma
+ senhora esqueceu-vos um ponto essencial que a toda a mulher occorreria:
+ a prescripção da <i>toilette</i>. Como sois homens publicos e viveis
+ permanentemente na ostentação e no apparato vós não podeis conceber
+ quanto ha de inopportuno, de indelicado, de offensivo do bom gosto no
+ aspecto de senhoras que se reunem para um fim de caridade cobertas de
+ joias como para um certame de luxo. Se fosse effectivamente uma senhora
+ quem tivesse a direcção d'esses actos de phylantropia, as joias teriam
+ sido abolidas, o preço das luvas de baile teria sido applicado á
+ subscripção para os pobres, e nas mãos nuas um annel de ferro mandado
+ fazer pela commissão ornaria toda a pessoa que quizesse acceital-o em
+ troca de um annel de oiro offerecido aos inundados. Em vez dos
+ ramilhetes, de 15 ou 20 libras, offertados aos actores, aos musicos e
+ aos poetas, uma mulher economisaria em favor dos pobres essa luxuosa
+ despesa e manifestaria o seu agradecimento por um modo extremamente mais
+ economico e mais expressivo como seria por exemplo, o offerecimento de
+ uma pequena photographia de sua magestade com uma simples dedicatoria
+ autographa.
+</p>
+<hr class="minor" /><!--===================-->
+<p>
+ Além da commissão de soccorros presidida nominalmente por sua magestade
+ a rainha a unica corporação que em Portugal se occupou do problema das
+ inundações foi a de suas excellencias os srs. bispos.
+</p>
+<p>
+ Apenas constou que alguns dos nossos rios tinham trasbordado, em todos
+ os bispados do reino se fizeram preces implorando da divina misericordia
+ que os rios voltassem aos seus leitos.
+</p>
+<p>
+ Este recurso piedoso lembra-nos que seria vantajoso para o fim de pôr em
+ harmonia a meteorologia e a religião, crear barometros especiaes
+ dedicados ás nossas circumscripções ecclesiasticas.
+</p>
+<p>
+ Estes barometros, que os srs. parochos collocariam nas sacristias ao
+ lado das folhinhas em que se prescreve a côr das vestimentas, teriam as
+ indicações precisas para constituirem um formulario perpetuo sem o
+ incommodo da intervenção dos srs. bispos por via das suas pastoraes.
+ Bastaria que os aneroides <i>ad usum ecclesiae</i> fossem um pouco mais
+ desenvolvidos na indicação dos resultados da pressão atmospherica sobre
+ os aspectos do tempo. Por exemplo:&mdash;78, <i>bom tempo fixo, faça preces a
+ pedir chuva</i>;&mdash;74 <i>grande chuva, faça preces a pedir sol</i>;&mdash;73
+ <i>tempestade, saia procissão e faça preces a pedir bom tempo</i>.
+</p>
+<p>
+ N'este caso os observatorios astronomicos e meteorologicos poderão ser
+ substituidos com vantagem pelas cabaças rotatorias dos Kalmuks ou pelos
+ moinhos do <a id="Tibet" name="Tibet" >Tibet</a>.
+ As cabaças, cheias de orações e agitadas polo vento,
+ produzem a adoração perenne. Os moinhos são uma fabrica mecanica de
+ preces continuas, de moagens devotas.
+</p>
+<p>
+ É preciso que n'este ponto nos decidamos por uma das duas:&mdash;pela
+ meteorologia ou pela prece. Se os estados atmosphericos se determinam
+ nos templos é absolutamente inutil estudal-os nos observatorios. As duas
+ coisas juntas refutam-se e destroem-se. Ou bem cabeças que pensem ou bem
+ cabaças que rodem. Decidam!
+</p>
+<hr class="minor" /><!--===================-->
+<p>
+ O que escreve estas linhas, tendo sahido do Porto no dia 8 de janeiro,
+ foi surprehendido pela tempestade e embargado pelas cheias, não podendo
+ chegar a Lisboa senão oito dias depois d'aquelle em que partira do
+ Porto. Foram seus companheiros de viagem alguns mancebos&mdash;quinze ou
+ vinte&mdash;que emigravam para o Brasil e vinham do Minho tomar em Lisboa um
+ dos paquetes da Mala Ingleza. Nas primeiras estações proximas de Gaya
+ esses rapazes, descorados, surprehendidos, vestidos de cotim, tendo
+ pendente do pescoço por um cordel a chave da caixa, apeavam e abraçavam
+ nas gares os seus parentes que ahi tinham ido abençoal-os, dar-lhes os
+ ultimos conselhos e as ultimas lagrimas. Havia um grande alarido de
+ mulheres que choravam. Vozes soluçadas diziam: «Adeus! adeus talvez para
+ sempre!» Abraços tenazes parecia não poderem deslaçar-se dos derradeiros
+ abraços. Tangia a sineta para largar a locomotiva. Passageiros alegres,
+ indifferentes, debruçados das portinholas, intervinham nos excessos da
+ ternura, nas crises da saudade, com palavras recreativas, com
+ commentarios facetos, com exclamações punidoras. Um aldeão já velho,
+ magro, alto, beijava um pequeno emigrante, talvez seu neto, que se lhe
+ abraçára ao pescoço; um jocoso soldado, trazendo a fardeta desabotoada e
+ uma borracha ao tiracollo, gritou-lhe da carroagem:&mdash;«Ó labrego, larga o
+ rapaz!» e accrescentou sentenciosamente este conceito:&mdash;«Beijos de
+ homens são coices de burro!» O velho teve a coragem de sorrir com uma
+ visagem dolorosa, de quem fingia resignar-se, e mettendo o rapaz na
+ carroagem, á pressa, em voz baixa, envergonhada: «Deus Nosso Senhor te
+ abençôe! Deus Nosso Senhor te abençôe e te dê boa sorte!»
+</p>
+<p>
+ O comboyo batido pelas rajadas do vento e pelas torrentes da chuva não
+ pôde, em consequencia dos rombos da estrada, passar de Pombal, onde
+ chegou ás duas horas da noite. Os pequenos aldeões, trespassados de
+ frio e talvez de fome, com as golas das jaquetas levantadas, os pés
+ molhados nas suas chinelas de coiro cru, as mãos nas algibeiras das
+ calças, adormeceram nas carroagens da terceira classe ou nas bancadas da
+ estação. O comboyo demorou-se ahi tres ou quatro dias. Os emigrados,
+ perdidos no meio da indifferença, desappareceram. Quando nós, no
+ primeiro dia em que a estrada se tornou praticavel, proseguimos de
+ Coimbra, onde ficaramos, até Santarem, não encontramos nenhum dos nossos
+ pequenos companheiros. É provavel que tivessem continuado a pé, sob a
+ tempestade, até chegarem a Lisboa, ao encontro da Mala Real Ingleza.
+ Esses pequenos, obscuros, miseraveis passageiros, troçados, escarnecidos
+ na sua dôr, cobertos de lagrimas e de lama nas suas esperanças de
+ fortuna, eram os embriões da riqueza portugueza, eram o brasileiro ao
+ deixar a patria.
+</p>
+<p>
+ Outro companheiro d'esta nossa viagem atravez das inundações era um
+ velho de sessenta e cinco a setenta annos. Traz apertado ao queixo, por
+ baixo do chapeu, um lenço de seda e ás costas uma manta <i>couvre-pieds</i>,
+ que elle abrocha no peito com uns fechos de prata e que lhe cae por
+ traz até os calcanhares. Esta manta, de pano baetão, tem estampada a
+ figura de um tigre, o que dá ao nosso companheiro, visto pelas costas,
+ com o seu lenço na cabeça, os seus sócos, o seu chapeu de chuva, o
+ aspecto de um Attila domesticado e doente. Viaja em companhia de uma sua
+ prima, mais velha que elle, e de um pão de ló mais volumoso do que os
+ dois primos juntos.
+</p>
+<p>
+ Este sujeito conferiu-nos a honra de nos dar a provar o seu pão de ló e
+ de nos contar a sua historia. Vinha de Felgueiras, terra da sua
+ naturalidade, e trazia o pão de ló, que as chuvas avariaram, para um seu
+ amigo, o sr. Azevedo, pharmaceutico na rua larga de S. Roque. Fôra em
+ creança para o Brasil, reunira á força de trabalho e de economia uma
+ modesta fortuna. Já na velhice liquidara todo o seu capital, voltara
+ para Felgueiras, reedificara a pequena casa em que tinham morrido seus
+ paes, adquirira algumas terras, empregara o seu capital na fundação de
+ uma lavoura; comprara juntas de bois, assoldadara moços, mettera
+ operarios e jornaleiros, plantara milhares de carvalhos e de
+ castanheiros. As potencias eleitoraes de Felgueiras convidaram-o em nome
+ de dois ou tres partidos do sitio a intervir com a sua influencia na
+ politica local. Elle recusara-se. Queria acabar em paz os seus dias,
+ contentando-se com a modesta gloria de restituir á terra em que nascera
+ toda a sua fortuna convertida na verdadeira e unica riqueza nacional&mdash;a
+ fertilisação do solo e o desenvolvimento do trabalho. Desde esse dia os
+ partidos confederados de Felgueiras começaram a hostilisal-o como o
+ inimigo commum de todos os partidos, o qual inimigo é em toda a parte&mdash;a
+ imparcialidade. Enredaram-o em pequenas intrigas, empeceram-o,
+ desgostaram-o em todos os seus projectos, em todas as suas aspirações.
+ Elle, como velho trabalhador macerado, resistira. Um golpe inesperado
+ acabara, porém, de o ferir no coração: dias antes da nossa viagem, na
+ vespera do Natal, uma chusma de gatunos, arregimentados para esse fim,
+ invadira a sua nascente propriedade e destruira inteiramente todas as
+ suas arvores. Elle querelára, e vinha para Lisboa esperar que se lhe
+ fizesse justiça. «Exijo&mdash;dizia elle&mdash;que me paguem indemnisação na
+ medida da perda que esta offensa representa para um velho como eu, a
+ quem pouco tempo já resta para esperar que as arvores cresçam. Venho
+ para Lisboa até que os tribunaes decidam a minha sorte. Se não me
+ fizerem justiça, irei fallar com o rei, e dir-lhe-hei: Meu senhor! Não
+ tendo achado na patria meios de enriquecer, fui procural-os n'um paiz
+ extranho. De regresso a Portugal no ultimo quartel da vida,
+ repatriando-me com todo o dinheiro que pude adquirir e que vinha
+ dispender entre os meus compatriotas, acho-me aqui vilipendiado, roubado
+ e escarnecido. Lavrador por vocação e por velho geito adquirido, parto
+ hoje pelo caminho de ferro para França, e plantarei a minha horta n'essa
+ terra estimavel, onde os homens não teem rei nem os campos teem muros
+ mas onde a nação da justiça baixou já dos dominios da intelligencia até
+ penetrar nos costumes e ter a sua encarnação nas leis. Sirva-se portanto
+ vossa magestade abater o meu nome no seu rol e contar com um subdito de
+ menos.
+<a href="#note-1">
+<sup class="small" id="note_return_1">1</sup></a>
+</p>
+<p class="foot">
+<a href="#note_return_1"><sup id="note-1">1</sup></a>
+ Textual.
+</p>
+<p>
+ Este homem representava a ultima faze da vida em que iam entrar os
+ pequenos emigrados que perdemos de vista em Pombal. Aquelles eram o
+ brasileiro ao partir; este era o brasileiro ao chegar.
+</p>
+<p>
+ Entre aquella infancia despresada e esta velhice desprotegida, está o
+ portuguez residindo e trabalhando no Brasil. Lá, esquecido do que
+ passou na infancia, despreoccupado do que o espera na velhice, o
+ portuguez desenvolve, como uma enfermidade nostalgica, o mais ardente
+ patriotismo. Nas suas allucinações de exilado a patria apparece-lhe
+ deslumbrante de todos os prestigios com que a saudade e o amor aureolam
+ os seus idolos. Assim como elle proprio se aperfeiçôa em cada dia pelo
+ trabalho, imagina que a patria se desenvolve proporcionalmente pelo
+ progresso, e mede pelo esforço d'elle, muitas vezes sublime e heroico, o
+ empenho com que estão concorrendo para a civilisação no paiz os seus
+ homens de estado, os seus politicos, os seus industriaes, os seus
+ escriptores e os seus artistas. Á similhança da colonia de que elle faz
+ parte, suppõe a patria um grande todo confederado e harmonico com
+ interesses solidarios, com intuitos communs, com fins determinados,
+ tendo ideias, tendo principios, tendo sentimentos, sendo capaz de
+ paixões profundas, de dedicações fortes, de sacrificios illimitados. E
+ tem pela patria os mesmos affectos e as mesmas dedicações de que a
+ suppõe susceptivel.
+</p>
+<p>
+ Assim é que, chegando ao Rio de Janeiro a noticia das nossas inundações
+ a colonia portugueza principia a mandar para a metropole milhares de
+ libras por cada paquete.
+</p>
+<p>
+ Os rios cahiram nos respectivos alveos, as terras enxugaram, as
+ sementeiras começam a crescer, a lembrança da catastrophe principia a
+ dissipar-se, e o dinheiro das subscripções do Brasil continua a chegar.
+ Dentro de pouco tempo a commissão portugueza de soccorros aos inundados
+ não saberá o destino que ha de dar ao dinheiro que amontôa.
+</p>
+<p>
+ As crises do trabalho subsequentes ás inundações são transitorias e tão
+ rapidas como as proprias inundações. Desde que a inundação cessa, o
+ trabalho restabelece-se nas suas condições normaes. Os estragos causados
+ pelas cheias não affectam os trabalhadores e os pobres, affectam
+ unicamente os proprietarios. Ora estes poderiam acceitar um emprestimo
+ proposto pelo governo, mas não podem receber um donativo feito pela
+ caridade. Portanto, desde que o governo não acudiu aos pobres em tempo
+ opportuno nem auxiliou os proprietarios pelo meio conveniente, todo o
+ dinheiro accumulado pela caridade é inutil a todos: aos pobres porque
+ não tem a opportunidade do tempo em quê, e aos ricos porque não tem a
+ opportunidade do modo como.
+</p>
+<p>
+ É por estas rasões que suppomos fazer um serviço á commissão de
+ soccorros suggerindo-lhe um meio de applicar uma parte das sommas com
+ que se acha a braços. Este meio é: dar em nome do paiz uma satisfação de
+ honra aos portuguezes residentes no Brasil&mdash;1.° indemnisando os
+ emigrantes minhotos sahidos do Porto nos comboyos dos dias 7 e 8 de
+ janeiro pelos prejuizos provenientes de não haverem chegado a Lisboa a
+ tempo de embarcarem nos paquetes de 8 e 10 do mesmo mez; 2.° fundando em
+ Felgueiras uma policia rural que empeça a população indigena de destruir
+ as propriedades fundadas pelos emigrados que chegam, por isso que na
+ provincia do Minho, de que principalmente procedem os portuguezes
+ residentes no Brasil, os unicos estragos recentes de que temos noticia e
+ que acima referimos, procedem, não das inundações dos rios, mas da
+ indisciplina dos homens.
+</p>
+<hr class="minor" /><!--===================-->
+<p>
+ Para servir de complemento á historia das inundações portuguezas, eis o
+ que succedeu no Minho, junto de Villa Nova de Famalicão, com um pequeno
+ riacho obscuro que ali passa.
+</p>
+<p>
+ Havia-se ultimamente deliberado dotar a alludida corrente com o
+ adminiculo de uma ponte. Como esta ponte, além de uma obra fluvial, era
+ tambem um viaducto entre duas collinas e um atalho entre dois caminhos,
+ todos os grandes proprietarios da região em que passava o ribeiro
+ pretenderam ter a ponte á sua respectiva porta. N'este sentido ferveram
+ os pedidos, os empenhos, as intrigas, as ameaças, as pressões dos votos,
+ todos os meios finalmente que em Portugal movem e removem a tendencia
+ das idéas, a direcção dos principios, os planos das estradas e os
+ projectos das pontes.
+</p>
+<p>
+ A obra fez-se finalmente sob a acção d'essas influencias e, como é
+ costume, em satisfação do empenho mais preponderante. Era no verão, e
+ tinha seccado o ribeiro. Vieram n'este inverno os grandes temporaes e as
+ copiosas chuvas, o ribeiro encheu, trasbordou, correu pelos campos e
+ pelos caminhos, passou por toda a parte, sómente não passou&mdash;por baixo
+ da ponte!
+</p>
+<p>
+ Enviamos os nossos parabens aos habitantes de Famalicão. A sua ponte é
+ verdade que não representa completamente uma ponte, mas representa um
+ symbolo monumental, que os habitantes não procurarão para atravessar o
+ ribeiro, mas que todos os extrangeiros, todos os historiadores e todos
+ os philosophos irão ver com admiração e respeito para se compenetrarem
+ do legitimo espirito da politica e da administração na presente phase da
+ civilisação portugueza.
+</p>
+<hr class="major" /><!--===================-->
+<p>
+ Contam os periodicos que no dia de Natal sua magestade el-rei se dignára
+ de brindar magnanimamente os soldados da sua real guarda,
+ offerecendo-lhes em Palacio um <a id="banquete" name="banquete" >banquete</a>
+ composto das iguarias mais finas
+ e mais preciosas, taes como sopa de massa, boi cosido com chouriço,
+ carne guisada com batatas e laranjas.
+</p>
+<p>
+ No momento em que os briosos filhos de Marte, coroados com os louros da
+ guerra e com as rosas da paz, libavam as taças da victoria, nas quaes, a
+ um gesto da regia munificencia o <i>doutor roxo</i> se repartira e
+ prodigalisára na razão de dois decilitros por praça, o sr. capitão da
+ companhia, penetrando na sala do festim e impondo silencio aos
+ dithyrambos, ás canções bachicas e aos hymnos bellicos que o aspecto tão
+ anachreontico quanto marcial da carne guisada com batatas jámais deixa
+ de influir em mentes inflammadas e em animos generosos, proclamou d'esta
+ arte:
+</p>
+<p>
+ «Soldados! O principe, cujo pennacho branco vós tendes visto
+ constantemente á vossa frente, conduzindo-nos ao fogo e guiando-vos ás
+ victorias, o principe cuja espada invencivel vós tendes visto sempre no
+ meio de vós, já relampagueando intemerata ao sol das batalhas, já
+ embebendo-se sedenta no sangue inimigo, o principe, generoso e
+ magnanimo, n'este dia consagrado ao ephemero repouso dos acampamentos,
+ convoca a este festim guerreiro os seus amados companheiros d'armas. Uma
+ coisa de que sua real magestade jámais se póde esquecer é a maneira como
+ vos tem visto pelejar! Porque é mister dizer-vol-o: no maior ardor dos
+ combates, no proprio momento em que mais absorto elle parece no afan de
+ retalhar em postas os exercitos inimigos, nunca o principe vos perdeu de
+ seu real olho!
+</p>
+<p>
+ «Tudo elle viu, e nada do que obrastes lhe é occulto.
+</p>
+<p>
+ «Viu-vos caminhar ávante para as hostes contrarias! Viu-vos quando, no
+ meio do estrondo e do fumo das descargas, tomastes as bandeiras e os
+ estandartes do outro campo! Viu-vos quando á chegada fatal da maldita
+ cavallaria inimiga, formastes quadrado e a esperastes impavidamente e a
+ pé firme, no posto da honra! Viu-vos depois cair a um por um feridos
+ pelo peito como heroes! Viu-vos morder o pó! Viu-vos finalmente exhalar
+ o ultimo suspiro, a vós todos, desde o primeiro ao ultimo, até nada mais
+ se ver no logar onde estaveis senão um monte de cadaveres abraçados a um
+ monte de bandeiras! Foi ainda o principe, piedoso e grande, quem,
+ percorrendo o campo no dia seguinte á batalha, recolheu e enfrascou as
+ vossas cinzas, restituindo-as elle proprio ás vossas viuvas, e
+ dizendo-lhes entre suspiros e lagrimas: «Em cada um d'esses frascos,
+ marcados com o numero da praça e da companhia, encontrareis uma pitada
+ de tudo quanto vos resta d'esse punhado de bravos!»
+</p>
+<p>
+ «Foi depois de todas essas provações&mdash;tão arduas!&mdash;que sua magestade
+ deliberou reunir-vos n'este banquete sumptuoso.
+</p>
+<p>
+ «Soldados! em testemunho de agradecimento a uma tão manifesta prova de
+ consideração e de amor, peço-vos que ergaes as vossas taças, de dois
+ decilitros cada, e que, antes de haurirdes o phalerno de Torres que
+ ellas encerram, me acompanheis nos vivas que passo a entoar e com os
+ quaes dou por finda esta allocução marcial. Viva sua magestade el-rei!
+ Viva a real familia! Viva a carta constitucional da monarchia!»
+</p>
+<p>
+ Nenhum soldado respondeu em discurso, como pede a etiqueta dos <i>toasts</i>,
+ porque nenhum dispunha da fortaleza cerebral necessaria para criticar os
+ seus proprios sentimentos, para os discernir e para os coordenar em
+ palavras. De modo que se contentaram em dar vivas e beber, coçando nas
+ cabeças essa especie de comichão produzida por todo o rude encontro de
+ idéas contradictorias e confusas.
+</p>
+<p>
+ Expressos sob a fórma litteraria, os sentimentos que o soldado revelou
+ sob a fórma de coceira dariam o seguinte discurso:
+</p>
+<p>
+ «Capitão! Ha alguns annos que eu fui agarrado á força na minha terra
+ para vir para a tropa. A minha primeira idéa foi livrar-me comendo um
+ dedo. Affiançaram-me, porém, que poderia egualmente livrar-me dizendo
+ que tinha queixa de peito. Assim o disse, mas não me acreditaram, e cá
+ fiquei ás ordens.
+</p>
+<p>
+ «Desde que jurei bandeiras é raro o dia em que o capitão, o major, o
+ tenente-coronel ou o proprio commandante me não fallam do meu ardor
+ mavorcio, da minha firme e tremenda attitude diante do inimigo e dos
+ meus louros cegados com a espada nos campos da batalha.
+</p>
+<p>
+ «Eu devo dizer ao capitão, com toda a franqueza, que desde que estou na
+ militança nunca tive <i>ardôr mavorcio</i> nem d'outra qualquer especie, a
+ não ser que o capitão se refira ao que senti nas orelhas quando na
+ recruta me puchava por ellas o sargento instructor. Se é d'este ardôr
+ que se trata, tive-o, e se o sargento o não teve ainda, ha de tel-o
+ tambem se, quando eu largar a farda, elle continuar a conservar as
+ orelhas, que eu, como livre paisano, lhe hei de então estender
+ conscienciosamente desde a porta do quartel até á entrada da minha minha
+ freguezia.
+</p>
+<p>
+ «Emquanto ao inimigo declaro que o não conheço, e muito obrigado ficaria
+ ao capitão se tivesse a bondade de m'o mostrar para que eu podesse
+ desenferrujar estas inuteis pernas applicando-lhe sem perigo de offender
+ a disciplina alguns dos pontapés que em observancia da mesma disciplina
+ não tenho até hoje feito senão receber.
+</p>
+<p>
+ «Quem é o inimigo? Não farão favor de me responder:&mdash;quem é o inimigo?
+</p>
+<p>
+ «Julguei algum tempo que fosse um sujeito de casaco côr de pinhão, de
+ gola levantada para cima, que ás vezes se mettia commigo nas guardas.
+ Tinha resolvido atacal-o, quando vim a saber que era um simples curioso
+ das artes da guerra.
+</p>
+<p>
+ «Vejo todavia que não fazemos mais do que preparar-nos constantemente
+ para resistir ao inimigo, o qual parece não implicar com mais ninguem
+ senão connosco. Pelo menos ninguem o teme senão a tropa.
+</p>
+<p>
+ «Ha familias, compostas unicamente de mulheres, que dormem sósinhas nas
+ suas casas sem medo a ninguem; no quartel, cheio de homens, cada um dos
+ quaes tem uma espingarda e uma bayoneta, é preciso pôr sentinellas a
+ todas as portas, velam uns emquanto os outros dormem, e ha sempre gente
+ armada até aos dentes, com os olhos arregalados nas trevas da noite,
+ para que não nos surprehenda o inimigo!&mdash;Que é sempre com o que lhe
+ dão:&mdash;com o inimigo!
+</p>
+<p>
+ «Emquanto aos loiros segados nos campos das batalhas cumpre-me
+ egualmente fazer sentir ao capitão que desde que estou no exercito ainda
+ não seguei.
+</p>
+<p>
+ «A minha vida tem consistido unica e exclusivamente em deitar todas as
+ manhãs umas correias ás costas e em pôr uma tocha ao hombro para marchar
+ ao som da musica ou para passear de sentinella á porta dos edificios
+ publicos.
+</p>
+<p>
+ «Pelo que diz respeito ao banquete opiparo para que sua real magestade
+ me convidou, agradeço-o muito, confesso-me profundamente sensivel aos
+ attractivos da real carne guizada e das fulgidas batatas da corôa.
+ Todavia não posso esconder que o que principalmente me lisongeava seria
+ que me fizessem a especial mercê de me mandar embora.
+</p>
+<p>
+ «Apezar da excellencia das iguarias preciosas de que consta este
+ banquete olympico, sou forçado a dizer que por mais de uma vez a esta
+ meza o bocado se me tem enfardelado na bocca sem querer ir para baixo.
+ Porque? Porque me sobe do coração e me aperta a guela a lembrança da
+ minha aldeia, da alegre festa do Natal, n'este dia, ao pé do lar, no
+ casal da minha velha ... Chamo-lhe eu a minha velha! O capitão faz
+ idéa ... Fallo-lhe da minha mãe.
+</p>
+<p>
+ «Hontem matava ella o porco, ou antes era eu que lh'o matava. Hoje
+ tinhamos lombo assado á fogueira do lar, n'um espeto de loureiro. Que
+ lombo aquelle, capitão! Com que vontade que eu principiava a jantar
+ outra vez se fosse d'esse lombo que me déssem! E depois não era o rei
+ que me convidava a mim,&mdash;o capitão ha de comprehender o effeito moral
+ d'esta differença&mdash;era eu que poderia convidar o rei a comer no meu
+ casal, d'aquillo que era meu, que eu proprio ganhara ou ajudara a ganhar
+ com o meu trabalho, com a minha força, com o meu prestimo! Na minha
+ aldeia eu era, mais ou menos, um dono de casa, um trabalhador, um
+ cidadão, um homem. E dentro do meu quinteiro, como o meu pequeno rebanho
+ e com o meu cajado, o rei era eu!
+</p>
+<p>
+ «Aqui, que diabo! Aqui, francamente, capitão, que raio de diabo!
+</p>
+<p>
+ «Aqui, que sou eu? Um monte de cisco, um molho de palha, um estafermo,
+ um espantalho de botões de ouro fingido, de espingarda descarregada e de
+ patrona vasia, para metter medo a outro estafermo, a outro espantalho, a
+ outra abantesma de espingarda egualmente descarregada e de patrona
+ egualmente vasia, o qual outro se chama o inimigo!
+</p>
+<p>
+ «Dizem qae tambem sirvo para&mdash;manter a ordem. A ordem que eu mantenho é
+ outra historia da carocha como a do inimigo que eu combato.
+</p>
+<p>
+ «Na minha aldeia, onde nunca de memoria de homem appareceu o bico de uma
+ bayoneta, todos vivem em harmonia e em paz. Aqui, onde a ordem é mantida
+ por dez ou doze regimentos, ha desordens todos os dias e todos os annos
+ ha revoltas. Revoltas de quem, meu capitão?&mdash;Dos sargentos!
+</p>
+<p>
+ «Ora, se eu não sirvo para nada, se o inimigo, sendo outro que tal como
+ eu, não serve tambem para coisa nenhuma, não acha o capitão, que o mais
+ justo seria mandar-nos para nossas casas a ambos&mdash;ao inimigo e a mim?
+</p>
+<p>
+ «Se como o capitão affirma, el-rei é meu amigo e pretende obsequiar-me,
+ que sua real magestade cesse de esbanjar-se nos acepipes com que me
+ cumula! Que me permitta estar na minha casa, como sua magestade está na
+ d'elle com sua excellentissima esposa e com os seus interessantes
+ filhos! Eu lhe protesto que não só dispensarei todos os seus favores,
+ mas que poderei ainda fazer-lhe alguns, e me tornarei um cidadão
+ independente, serviçal e util, em vez de me desfallecer para aqui,
+ dentro d'este uniforme, coberto por esta barretina, inundado de
+ ociosidade, comido de tedio,
+<a href="#note-2">
+<sup class="small" id="note_return_2">2</sup></a>
+ de nojo de mim mesmo, de todas as más
+ molestias da alma e do corpo, perdido para o bem dos outros e não
+ prognosticando grande coisa senão para o mal de mim mesmo. Nada mais
+ accrescento porque está a cair o quarto e tenho de me ir deitar ao
+ inimigo,&mdash;passeiando de sentinella á porta de palacio.»
+</p>
+<p class="foot">
+<a href="#note_return_2"><sup id="note-2">2</sup></a>
+ No dia em que estas linhas foram escriptas suicidavam-se dois
+ soldados, um de infanteria n.° 1, em Belem, outro de caçadores n.° 10,
+ em Setubal.
+</p>
+<p>
+ Depois de coçado este discurso na cabeça dos soldados, terminou o
+ banquete, retirando-se todos os convivas profundamente penhorados pela
+ excellencia do serviço e pelas delicadas maneiras do sr. capitão.
+</p>
+<hr class="major" /><!--===================-->
+<p>
+ Referem os jornaes que a
+ <a id="Academia" name="Academia" >Academia Real das Sciencias</a>
+ celebrará no mez de
+ março do futuro anno de 1879 a festa do primeiro centenario da sua
+ fundação.
+</p>
+<p>
+ A primeira das rasões porque folgamos com esta noticia e que se inicia
+ em Portugal uma tendencia nova no espirito das sociedades modernas:&mdash;a
+ tendencia a reformar o calendario, substituindo as ephemerides
+ ecclesiasticas pelas taboas historicas.
+</p>
+<p>
+ Essa tendencia revela um progresso.
+</p>
+<p>
+ A igreja tem, certamente, datas memoraveis que a civilisação ha de
+ manter entre as grandes epocas da humanidade. Mas essas datas, por mais
+ gloriosas que sejam, não bastam para prehencher os fastos da humanidade
+ e para pautar o culto devido á lembrança dos grandes factos e á memoria
+ dos grandes homens.
+</p>
+<p>
+ Se a igreja tem os seus santos, os seus martyres, os seus doutores, a
+ liberdade, a sciencia, o trabalho, a arte, teem tambem os seus, e a
+ gratidão humana não deve menos aos segundos do que aos primeiros. O dia
+ de S. Bernardino, a 20 de maio, é tambem o dia de Christovão Colombo. O
+ dia de S. Luciano, a 8 de janeiro, é egualmente o dia Galileu. O dia 5
+ de abril é o de Santo Adriano e é o de Danton e de Camille Desmoulins. O
+ dia 23 do mesmo mez é o aniversario do nascimento de S. Jorge e é
+ tambem o da morte de Shakespeare e de Cervantes.
+</p>
+<p>
+ Nem toda a gente sabe, de pronto, sem consultar a collecção dos
+ bolandistas ou o <i>Flos Sanctorum</i> o que foram precisamente para o mundo
+ e para Deus, Bernardino, Adriano ou Luciano. Ninguem todavia ignora o
+ que a humanidade deve a Colombo, a Galileu, a Danton e a Shakespeare.
+</p>
+<p>
+ Depois a circumstancia de ir para o ceu por uma decisão dos concilios
+ nem sempre equivale a haver deixado na terra um exemplo que fortifique
+ as almas para servirem ao mundo ou para servirem a Deus.
+</p>
+<p>
+ Temos por exemplo que, segundo S. Lucas, capitulo XXII, versiculo 61, S.
+ Pedro, convicto da divindade de Jesus, o renega por tres vezes no
+ tribunal de Caiphaz. No tribunal da Inquisição, deante da fogueira que o
+ vae devorar se não renegar o seu livro, Giordano Bruno prefere morrer a
+ trahir a verdade. S. Pedro fundou a igreja christã; Giordano Bruno
+ fundou uma nova teoria do Universo. Um é adorado como santo; o outro é
+ condemnado como hereje. E todavia é com Bruno e não é com Pedro que
+ todos nós, filhos do seculo ou filhos da religião, temos que aprender
+ como se sustenta uma convicção ou como se defende uma crença.
+</p>
+<p>
+ A iniciativa da Academia contribuirá poderosamente, de certo, para fazer
+ entrar nos costumes a fecunda lição alliada ao culto dos grandes homens
+ e á commemoração dos grandes feitos, ceremonias destinadas a tornarem-se
+ as festas nacionaes de todos os povos civilisados.
+</p>
+<p>
+ Ao centenario da Academia succeder-se-ha sem duvida o do apostolo da
+ nacionalidade portugueza Camões, e o do martyr da liberdade de
+ pensamento Damião de Goes.
+</p>
+<hr class="minor" /><!--===================-->
+<p>
+ A segunda rasão porque nos regosija a noticia que registamos é que a
+ celebração do jubileu academico, pedindo a publicação de uma historia
+ d'aquelle instituto, virá por meio d'esse documento recordar o papel
+ brilhantissimo que teve na historia das idéas em Portugal essa
+ corporação scientifica, e chamar talvez alguns dos actuaes academicos a
+ reatarem a tradição gloriosa d'aquelles que os precederam na direcção
+ intellectual do paiz.
+</p>
+<p>
+ A Academia Real das Sciencias foi o foco da revolução e o berço da
+ moderna liberdade em Portugal.
+</p>
+<p>
+ Em um excellente livro do sr. Theophilo Braga, recentemente
+ publicado&mdash;<i>Bocage, sua vida e epoca litteraria</i>&mdash;encontram-se os mais
+ preciosos documentos para a nossa moderna historia litteraria,
+ documentos até hoje ineditos e pacientemente colligidos por aquelle
+ eminente escriptor, em cujas obras, as mais eruditas que em Portugal se
+ teem feito, o publico não aprendeu ainda senão a calumniar o auctor.
+ Entre esses documentos tirados a lume pelo sr. Theophilo Braga, acham-se
+ as mais curiosas revelações para a historia dos nossos primeiros
+ academicos.
+</p>
+<p>
+ O duque de Lafões, o abbade José Correia da Serra, Joaquim José Ferreira
+ Gordo, Antonio Pereira de Figueiredo, insignes na philosophia e nas
+ sciencias naturaes, conhecidos e respeitados na Europa, estavam
+ denunciados ao governo como jacobinos e eram espionados e perseguidos
+ pela policia sob a direcção do intendente Pina Manique, o qual nas suas
+ <i>contas para as secretarias</i>, manuscriptos conservados na Torre do
+ Tombo, por differentes vezes se refere aos alludidos academicos,
+ accusando-os como sectarios das idéas da Revolução franceza,
+ relacionados com os homens da Convenção, iniciadores do movimento
+ liberal em Portugal. A policia envolve-os na mesma suspeição com os
+ livreiros francezes residentes em Lisboa, com os addidos á legação de
+ França, com os frequentadores de botequins que se atrevem a ostentar nas
+ tampas das suas caixas de rapé a figura da liberdade, com os populares
+ finalmente que em certa noite vão debaixo das proprias janellas do paço
+ entoar a canção do <i>Ça-ira</i>.
+</p>
+<p>
+ Os cabeças d'este movimento de revolta contra o despotismo
+ monarchico-catholico são designados pelo intendente Manique com o nome
+ generico, ainda hoje em voga, de <i>philosophos modernos</i>. Os livros
+ dirigidos de França á Academia sob o nome do duque de Lafões são
+ sequestrados na alfandega.
+</p>
+<p>
+ A publicação de qualquer escripto revolucionario por parte da Academia é
+ impossivel sob a espionagem de Manique, mas a adhesão d'esta companhia
+ ás idéas francezas é manifesta em muitas passagens dos registros
+ policiaes.
+</p>
+<p>
+ «Acha-se n'esta corte&mdash;diz o intendente Manique&mdash;nas casas da <i>Academia
+ das sciencias</i>, ao Poço dos Negros, hospedado, segundo me dizem pelo
+ <i>abbade Correia</i>, Broussonet, que foi medico de profissão em Paris, e
+ depois secretario de Necar (É assim que Manique escreve o nome de
+ Necker) e aquelle que se fez marcar quando na sessão da convenção
+ Nacional, de que era tambem deputado, continuou o discurso que o
+ sobredito Necar não acabou de recitar por lhe dar no meio d'este acto um
+ deliquo; e ainda mais conhecido por ser um d'aquelles sanguinarios do
+ partido de Robespierre na Convenção. Pela morte que este assassino
+ soffreu, fugiu aquelle e aqui foi acolhido e introduzido ao <i>duque de
+ Lafões</i> na qualidade de agricultor, e hospedado nas casas da Academia
+ das Sciencias, d'onde frequenta as casas do sobredito duque e do <i>abbade
+ Correia</i> que é amigo mui particular do ministro e consul da America do
+ Norte e dos mais jacobinos que aqui se acham e de que tenha dado parte a
+ v. ex.ª, e reputado por pedreiro livre.»
+</p>
+<p>
+ Eguaes accusações pesam sobre Ferreira Gordo e sobre o auctor da
+ <i>Recreação Philosophica</i> o Padre Theodoro de Almeida, «com o qual,
+ accrescenta Manique, o já alludido Broussonet fica algumas vezes na casa
+ do Espirito Santo de Lisboa.»
+</p>
+<p>
+ A Academia encerrava pois no seu gremio o fermento da revolução,
+ levedada mais tarde em 1820, e da qual procedeu a reforma das nossas
+ instituições em 1834 e a liberdade subsequente.
+</p>
+<p>
+ A missão da Academia em Portugal não pode ainda hoje ser senão a mesma
+ que era no fim do seculo passado.
+</p>
+<p>
+ Não é no estado de indifferença, de egoismo e de ignorancia em que ainda
+ hoje se acha o espirito portuguez que as Academias podem assumir, como
+ queria Proudhon, a funcção moderadora dos trabalhos do pensamento e das
+ creações da arte.
+</p>
+<p>
+ A intervenção das academias como elemento official e conservador pode
+ ser util e salutar em França ou em Hispanha, onde a temeridade
+ impaciente e indisciplinada dos escriptores revolucionarios, actuando
+ constantemente na opinião, pode perturbar a lei da continuidade
+ historica e lançar a sociedade na anarchia. Ahi compete ás academias
+ salvaguardar a ordem pelo ascendente moral.
+</p>
+<p>
+ Em Portugal, porém, onde a revolução de modo algum ameaça partir da
+ circumferencia para o centro movida pelas tendencias progressivas e
+ invasoras dos espiritos, é absolutamente preciso, para que nos possamos
+ considerar uma nação, que a revolução parta do centro para a periferia,
+ que seja a Academia quem a enuncie e quem a propague, acolhendo no seu
+ gremio as intelligencias mais avançadas, discutindo os problemas mais
+ vivos da philosophia, aclarando todas as questões relativas aos maximos
+ interesses do espirito, á religião, á politica, á esthetica, implantando
+ finalmente a revolução na esphera intellectual para que d'ahi ella
+ penetre nos costumes e se infunda nas instituições.
+</p>
+<p>
+ Se o desempenho d'este papel, que lhe está marcado pela sua tradição, é
+ incompativel com as ligações existentes entre a Academia, presidida pelo
+ chefe do Estado, e o mesmo Estado, o que á Academia compete fazer é
+ libertar-se d'essa dependencia e constituir-se em corporação livre. O
+ poder espiritual, de que ella é a encarnação litteraria, não lhe procede
+ de ser a hngida do Estado mas sim a da sciencia.
+</p>
+<p>
+ Subsidiada pelos governos ou não subsidiada por elles, estabelecida em
+ um palacio ou refugiada em um sotão, recrutando os seus membros entre os
+ invalidos da popularidade ou entre os dispersos batalhadores vigorosos
+ da controversia moderna, separando-se da sua tradição gloriosa, ou
+ sendo-lhe fiel, a Academia acha-se destinada a ser d'estas duas coisas
+ uma:&mdash;ou a força dirigente do futuro social, a cabeça do paiz, ou uma
+ excrecencia apparatosa, um orgão atrophiado e inutil á civilisação.
+</p>
+<hr class="major" /><!--===================-->
+<p>
+ Sendo os homens que escrevem ordinariamente superiores aos homens que
+ lêem, a funcção da publicidade é predominar nos espiritos&mdash;ou seja
+ lisonjeando-os, ou seja combatendo-os. Toda a obra litteraria dá um
+ d'esses resultados; ou se adapta ás opiniões existentes e as consolida e
+ reforça ou reage sobre ellas e as decompõe. Toda a litteratura ou é
+ <i>conservadora</i> ou é <i>revolucionaria</i>. Queremos dizer: ou transige
+ passivamente com as condições do meio social ou se debate contra o
+ obstaculo que a influencia d'esse meio lhe impõe.
+</p>
+<p>
+ Sempre que a litteratura toma o caracter conservador tende a immobilisar
+ a sociedade e a atrophiar o progresso. Foi o que succedeu nos seculos em
+ que a litteratura não fez mais do que fortalecer as superstições que
+ achou consagradas no seu caminho, prostrando a humanidade n'um marasmo
+ de quinhentos annos embalados com o esteril rumor monotono das homilias
+ e das legendas dos santos. Felizmente, desaprendendo quasi completamente
+ de ler, a humanidade voltou a si. A litteratura havia sido para ella uma
+ catacumba em que jazera sepultada pela credulidade, amortalhada pelo
+ mysticismo. Guizot calcula em vinte e cinco mil as vidas de santos de
+ que se compõe a bibliotheca bollandista, e são esses <i>acta sanctorum
+ quotquot tote orbe coluntur</i> que encerram a historia inteira da
+ humanidade sob o regimen clerical em toda a Europa e em quasi todo o
+ Oriente, desde o seculo VI até o seculo XII! Com razão conclue Buckle&mdash;o
+ grande historiador da civilisação&mdash;que o maior dos estorvos do progresso
+ tem sido a manutenção do erro pelo poder litterario.
+</p>
+<p>
+ Nos tempos modernos, sob os dominios despoticos, em quanto a obra do
+ pensamento foi disciplinada pela policia clerical e monarchica como
+ succedeu em Portugal durante o imperio do Santo Officio, a litteratura
+ deixou egualmente de ser o livre producto artistico e converteu-se n'um
+ poder do Estado, o mais enervante para a imaginação, o mais dissolvente
+ da intelligencia e da dignidade humana.
+</p>
+<p>
+ Portanto: a primeira condição social para a existencia de uma
+ litteratura compativel com o progresso é a liberdade.
+</p>
+<p>
+ Todo o escriptor portuguez actual nasceu n'esse meio propicio. Todavia,
+ por uma fatalidade physiologica, por um effeito da heriditariedade,
+ falta-nos a orientação cerebral da independencia. O nosso espirito
+ conserva o stygma servil, o signal da marca que, em muitas gerações que
+ nos precederam, foi deixando a grilheta da oppressão mental. A nossa
+ tendencia de escriptores é ainda hoje, geralmente, para lisonjear a
+ rotina, para comprazer com o vulgo, para seguir as correntes da
+ credulidade geral.
+</p>
+<p>
+ A maior parte dos individuos que fazem um livro teem, nas precauções da
+ forma, no rebuço das opiniões, na doblez do stylo, o ar miseravel de
+ pedintes que solicitam venia para divertir inoffensivamente o
+ respeitavel publico.
+</p>
+<p>
+ Entre as aberrações eminentes d'essa tendencia geral, como por exemplo
+ os srs. Anthero de Quental e Guerra Junqueiro na poesia, o sr. Theophilo
+ Braga na historia e na critica, o sr. Oliveira Martins na economia
+ politica, a Sr.ª D. Maria Amalia Vaz de Carvalho no
+ folhetim,&mdash;apparece-nos o sr. Eça de Queiroz no romance. Na pequena
+ litteratura portugueza destinada a ser um agente na evolução das ideias
+ e dos costumes, um elo no grande encadeamento das causas e dos effeitos
+ sociaes, <a id="Amaro" name="Amaro" ><i>O crime do padre Amaro</i></a>,
+ representa a obra mais profundamente caracteristica.
+</p>
+<p>
+ Este livro foi recebido pela imprensa periodica com um silencio que pode
+ parecer o resultado de um <i>mot d'ordre</i>. Cremos, para honra do
+ jornalismo, que a razão do apparente despreso de que foi objecto este
+ romance está no simples facto de que a critica se considerou
+ incompetente para o julgar. A unica coisa de que temos de accusar a
+ critica é de nos não haver dito isso mesmo. Em circumstancias analogas
+ as <i>Farpas</i> deram um exemplo de sinceridade que ficou esteril. Um dia
+ escreviamos um artigo ácerca do adulterio; a logica arrastava-nos a
+ deducções que nos não atreviamos a imprimir; publicámos o nosso artigo
+ até o ponto em que o julgavamos compativel com os costumes e
+ concluimol-o com a confissão franca de que nos achavamos coactos pelo
+ publico. Quando tivemos medo confessamol-o. É verdade que omittimos uma
+ opinião, mas, estudando os costumes, revelamos pelo menos um estado de
+ espirito que elles determinavam e que seria um symptoma a ponderar pelos
+ analysadores que se nos seguissem.
+</p>
+<p>
+ <i>O crime do padre Amaro</i> é effectivamente difficil de sentenciar porque
+ constitue um caso novo, não previsto nas ordenações porque se regulam as
+ audiencias geraes do folhetim e do noticiario.
+</p>
+<p>
+ Essencialmente moderno este romance não é a narrativa de uma aventura ou
+ de uma serie de aventuras á Lessage, á Dumas ou á Gaboriot, não é um
+ estudo de sentimento á Rousseau, á Alfred de Musset ou á George Sand. É
+ uma pintura de caracteres, mas não uma pintura á Balzac ou á Flaubert,
+ porque este livro não é exclusivamente de nenhuma escola senão da escola
+ de si mesmo, e é esse cunho profundamente pessoal qne lhe dá o caracter
+ que o distingue como verdadeira obra d'arte.
+</p>
+<p>
+ Ora uma exposição de caracteres se pertence á sphera da arte pelos
+ processos da pintura, é um ramo da historia e está subordinado á
+ sciencia pelas operações de critica e de relacionação. O officio do
+ historiador é discernir no estudo das epocas e no estudo dos
+ acontecimentos o seu caracter social. O officio do romancista é
+ discernir no mesmo estudo das epocas e no mesmo estudo dos factos o seu
+ caracter artistico. O methodo do historiador é o methodo do romancista.
+ Não pode ser romancista um simples <i>observador</i>. Cada sciencia tem, como
+ diz Littré, o seu methodo particular e caracteristico. A <i>observação</i> é
+ um methodo exclusivo da astronomia, para cujos phenomenos irreductiveis
+ o astronomo não pode fazer mais que olhar. O chimico procede pela
+ <i>experiencia</i> e pela <i>analyse</i>. O biologo tem por methodo especial a
+ <i>comparação</i>. O historiador, e por tanto o romancista, teem como
+ instrumento particular a <i>filiação</i>, isto é, a producção dos estados
+ sociaes uns pelos outros. Pintar um caracter é expor no personagem a
+ figura moldada dentro do contorno delineado n'uma dada porção do espaço
+ e do tempo por um certo estado social.
+</p>
+<p>
+ Um caracter é um phenomeno historico, que se não comprehende senão
+ emoldurado na convergencia de todos os factores que o produziram.
+</p>
+<p>
+ É por isso que o romance de caracteres tem de ser uma exposição
+ concentrica de todas as influencias que determinam um pensamento ou um
+ acto;&mdash;influencias naturaes, o solo, o clima, os aspectos da paizagem, o
+ sexo, a idade, o temperamento, a idiosyncrasia, a heriditariedade;
+ influencias sociaes, as instituições, os costumes, a familia, a
+ educação, a profissão.
+</p>
+<p>
+ Comprehende-se a commoção de surpreza que produziu este livro, ao
+ notar-se que a proposito da biographia de um padre em uma parochia da
+ provincia elle suscitava as mais graves e melindrosas questões
+ physiologicas e sociaes que podem envolver a igreja, o celibato, a
+ sentimentalidade e o mysticismo, isto é, todos os pontos de controversia
+ philosophica que o jornalismo exclue da discussão para se não pôr em
+ conflicto com o assignante. Confessamos que n'este caso o melhor que
+ tinha que fazer a critica jornalistica era effectivamente calar-se.
+</p>
+<p>
+ Pela nossa parte, como é precisamente o conflicto que constitue o nosso
+ programma, não temos rasão plausivel para abster-nos da apreciação
+ d'este livro.
+</p>
+<p>
+ A rasão da condemnação silenciosa, do escandalo branco, que envolveu a
+ apparição do <i>Crime do padre Amaro</i> está no simples facto de que elle é
+ um <i>romance de caracter</i>. Esta simples designação explica tudo. O genero
+ é novo e sem precedentes. Os livros do sr. Camillo Castello Branco são
+ romances de sentimento. A obra de Julio Diniz pertence á litteratura de
+ <i>tricot</i> cultivada com ardor na Inglaterra pelas velhas <i>miss</i>. Apesar
+ das suas qualidades de paizagista, do seu mimo descriptivo, da sua
+ feminilidade ingenua e pittoresca, as novellas de Julio Diniz não teem
+ alcance social, são meras narrativas de salão.
+</p>
+<p>
+ O livro do sr. Eça de Queiroz offerece-nos o primeiro exemplo de uma
+ obra d'arte suggerida pela consideração de um problema social.
+</p>
+<p>
+ E todavia <i>O crime do padre Amaro</i> não é de nenhum modo um livro de
+ critica, é um livro de pura arte na mais alta accepção d'esta palavra.
+ Nem na bocca do auctor nem na de nenhum dos seus personagens ha uma
+ palavra declamativa ou didactica.
+</p>
+<p>
+ Em uma pequena cidade de provincia, na Extremadura portugueza, o velho
+ parocho morre, o novo parocho chega com o seu capote ecclesiastico e o
+ seu bahu, apeia-se da diligencia de Chão de Maçãs, sobe aos quartos que
+ lhe estão preparados, calça uns chinellos de ourelo, veste o casaco
+ velho, e o drama principia, desdobra-se e termina de um folego,
+ caminhando para o seu desfecho, recto, implacavel, como um traço riscado
+ pela fatalidade atravez d'aquella estreita vida de provincia, com a sua
+ intriga local, os seus personagens mesquinhos, os seus padres, as suas
+ beatas, os seus tristes aspectos de coisas, sujos, tortuosos,
+ compungidos, pretenciosos, miseraveis.
+</p>
+<p>
+ D'este fundo sombrio, espesso, pesado como o tedio, a acção destaca-se
+ luminosamente, e penetra-nos com a nitidez poderosa dos espectaculos
+ vivos. É a vida mesma com toda a sua trivialidade real que n'essas
+ paginas perpassa aos nossos olhos como aquellas florestas que andam no
+ sonho de Machet.
+</p>
+<p>
+ Nunca artista portuguez desenvolveu na sua obra maior poder de execução.
+</p>
+<p>
+ O dialogo, trasbordante de verdade, é de um rigor psychologico, de um
+ colorido flagrante e de uma energia de naturalidade que os primeiros
+ stylistas francezes não conseguiram ainda egualar. A lingua portugueza,
+ pela incomparavel variedade das suas construcções grammaticaes, pela
+ inexgotavel abundancia dos seus idiotismos, pela bravura inculta do seu
+ arranco plebeu, presta-se admiravelmente a estes prodigios de execução
+ sempre que a não deturpa esse maneirismo requintado, esse culto da
+ farragem e do euphemismo, que tem sido em Portugal a sarna epidemica do
+ estylo erudito.
+</p>
+<p>
+ O dialogo do sr. Eça de Queiroz, não porque o trabalhasse a
+ preoccupação do purismo, mas em resultado do escrupulo com que foi
+ arrancado da indole e da natureza dos personagens, é de tal modo genuino
+ e tão accentuadamente portuguez, que o temos por intraduzivel.
+</p>
+<p>
+ Ao lado do dialogo mais vivamente travado e das situações dramaticas
+ mais profundamente sentidas, mais commoventemente narradas, o auctor
+ compraz-se habitualmente em pintar, com frio cynismo, as ridentes
+ paizagens em que scintillam as frescuras da manhã, os suaves occasos do
+ outomno impregnados do rumor das aguas e do perfume dos prados, os
+ tepidos interiores aconchegados e pacificos, todos os aspectos da
+ natureza vegetativa, da natureza animal, da natureza morta. E nada mais
+ profundamente real do que a impressão deduzida d'esse contraste entre a
+ inclemente immobilidade das coisas e a devastação tempestuosa das
+ supremas paixões no fundo da alma humana!
+</p>
+<p>
+ O desenho dos caracteres e principalmente o das duas personagens
+ principaes sobre que versa o drama, o padre Amaro e Amelia, é deduzido
+ com o mais scientifico rigor da diagnose n'um caso de pathologia
+ psychica.
+</p>
+<p>
+ A infancia de Amaro em uma casa nobre, onde a mãe d'elle era criada de
+ quarto. Os pequenos pormenores d'esse interior de familia, onde o
+ catholicismo era um requinte heraldico, onde as meninas, acreditando em
+ Deus como na omnipotente elegancia, tinham como culto dos destinos da
+ alma a preoccupação da <i>toilette com que haviam de entrar no paraizo</i>. A
+ creação de Amaro até aos doze annos n'essa convivencia mulheril,
+ ajudando ás missas na capella, espanando os santos, aparando as hostias,
+ dormindo entre as criadas, que lhe faziam cocegas, lhe chamavam
+ <i>Padreca, Frei Lombrigas</i>, e o utilisavam nas suas intrigas para «fazer
+ as queixas.» A sua mocidade no seminario, «abafando na estreitesa dos
+ corredores, invejando todos os destinos ainda os mais humildes, o
+ almocreve que via passar na estrada tocando os seus machos, o carreiro
+ que ia cantarolando ao aspero chiar das rodas, e até os mendigos
+ errantes, apoiados ao seu cajado, com o seu alforge escuro!» Os seus
+ primeiros alvoroços de adolescente ao pensar na mulher sobre os livros
+ dogmaticos: «Que ser era esse que atravez de toda a theologia ora era
+ collocado sobre o altar como a Rainha da Graça ora amaldiçoado com
+ apostrophes barbaras? Que poder era o seu que a tragica legião dos
+ santos, ora se arremessa ao seu encontro, n'uma paixão extactica,
+ dando-lhe n'uma acclamação o profundo reino dos céus, ora vae fugindo
+ diante d'ella como do universal inimigo com soluços de terror e com
+ gritos de odio, e, escondendo-se, para a não vêr, nas thebaidas, nos
+ claustros e nos sepulchros, vae alli morrendo do mal de a ter amado?
+ Amaro sentia, sem as definir, estas perturbações, e julgava-se
+ desgraçado e maldito.»
+</p>
+<p>
+ Vemos, a dia por dia, crescer, constituir-se, formar-se esse homem,
+ branco, lymphatico, molle, creado entre chumaços de mulheres ordinarias,
+ e sobrepelizes de padres boçaes, no fartum das alcovas sujas e na sombra
+ humida dos claustros musgosos. E prevê-se a quéda fatal d'essa natureza
+ stagnada e paludosa, atravez da qual os desejos insaciados luzem como os
+ olhos de um tigre.
+</p>
+<p>
+ É egualmente bem assignalado o caracter de Amelia. A sua educação
+ sentimental e devota é descripta a golpes de bisturi. Cada traço é uma
+ incisão. Aos oito annos tinha ido para a escola. A mestra era uma
+ velhita roliça e branca que fôra tacho das freiras de Santa Joanna em
+ Aveiro; com os seus oculos redondos, junto da janella, empurrando a
+ agulha, morria-se por descrever o convento, os seus terrores, as suas
+ legendas, as suas peripecias; as perrices da escrivã sempre a escabichar
+ os dentes furados; a madre rodeira preguiçosa e pacata, com uma
+ pronuncia minhota; a mestra de canto-chão, admiradora de Bocage e que se
+ dizia descendente dos Tavoras; a historia de uma freira que morrera de
+ amor e cuja alma ainda em certas noites percorria os corredores,
+ soltando gemidos dolorosos e chamando:&mdash;Augusto! Augusto!... Tinham-lhe
+ ensinado o cathecismo e a doutrina: fallavam-lhe sempre dos castigos do
+ céu; de tal sorte que Deus apparecia-lhe como um Ser que dá o
+ soffrimento e a morte, e que é necessario abrandar resando e jejuando,
+ ouvindo novenas e amando os padres. Era por isso toda cuidadosa e se ás
+ vezes ao deitar lhe esquecia uma Salve-Rainha, fazia penitencia no outro
+ dia porque temia que Deus lhe mandasse sessões ou a fizesse cair na
+ escada.» Além da doutrina aprendera a tocar piano com um velho
+ romanesco. Lêra livros de versos, fôra namorada durante uma estação de
+ banhos por um estudante de Coimbra, que lhe fizera umas quadras. Estava
+ pedida por um escrevente de tabellião, que se perturbava sob o seu olhar
+ voluptuoso mas que ella não amava, sentindo em si «como um grande somno
+ do coração.» Não tinha pae. Era sanguinea e forte, de grossos beiços
+ levemente sombreados de pennugem negra. Ouvia missa todos os dias e
+ confessava-se todas as semanas.&mdash;A mãe era protegida por um conego. Ella
+ padecia tedios nevralgicos e inquietações hystericas.
+</p>
+<p>
+ Todos os demais personagens, alguns d'elles apenas indicados por quatro
+ palavras, que têem o poder de uma evocação, o conego Dias, o padre
+ Natario, o padre Brito, o chantre, o coadjutor, o Libaninho, o tio
+ Esguelha, o escrevente, o redactor da <i>Voz do Districto</i>, as senhoras
+ Gançosos, a sr.ª D. Maria da Assumpção, a Joanneira,&mdash;vivem, têem uma
+ physionomia, uma personalidade.
+</p>
+<p>
+ O desenlace do drama, a morte de Amelia, a fuga do padre da quinta da
+ Cortegaça, de noite, levando o filho escondido na capa; o seu terror ao
+ sentir-se seguido, ao ouvir atraz de si no macadam as passadas surdas do
+ escrevente, passadas commedidas pelas d'elle, acompanhando-o como o
+ remorso, como o presentimento da catastrophe que se aproxima; o
+ infanticidio perpetrado no escuro, com os pés no lodo, á beira do rio,
+ escondido nos juncos como um animal ferido cercado pelos latidos
+ raivosos da matilha; a sua retirada de Leiria ao outro dia, por uma
+ serena tarde de outomno, de uma poetica serenidade ineffavel, partindo a
+ cavallo no momento em que os sinos da sé começavam a soluçar o dobre de
+ defuntos, emquanto um realejo toca na rua um trecho da <i>Norma</i>, e, de
+ uma casa defronte, um pequerrucho seguro ao peitoril da janella pelo pae
+ e pela mãe que riem, lhe diz adeus com a sua pequena mãosita
+ papuda;&mdash;constituem paginas de uma concepção e de uma tonalidade
+ tragica, profundamente elegiaca e solemne, que fica vibrando por muito
+ tempo na memoria como o ecco funebre de um <i>dies irae</i>.
+</p>
+<p>
+ Este livro misanthropicamente concebido, e executado com uma ironia
+ mordente e com um humorismo repassado de lagrimas, deixa todavia no
+ espirito uma forte impressão consoladora; é a obra de um grande artista,
+ de um poderoso revelador de ideal; e como toda a idealisação perfeita,
+ repousa-nos das nossas preoccupações pessoaes e egoistas,
+ engrandece-nos, eleva-nos aos nossos proprios olhos, infunde-nos a fé,
+ obriga-nos a crêr no sagrado desinteresse da arte, na divina
+ immortalidade do bello.
+</p>
+<hr class="minor" /><!--===================-->
+<p>
+ Se depois da idéa que procurei dar-te d'este livro, tu, leitor me
+ perguntares se o deves dar a ler á menina tua filha, eu respondo-te
+ terminantemente que não. As meninas nunca lêem romances, quaesquer que
+ elles sejam.
+</p>
+<p>
+ Se o podem lêr as mulheres&mdash;é uma outra questão, á qual respondo que
+ podem, ainda que com esta reserva&mdash;ás escondidas.
+</p>
+<p>
+ Não que este livro seja immoral. A arte é absolutamente independente da
+ moral, e não póde nunca nem servil-a nem prejudical-a.
+</p>
+<p>
+ Quando para minha consolação e refrigerio eu me desvio da estrada em que
+ succumbo de fadiga mordido pelo sol, e vou descançar um momento á sombra
+ de uma arvore, não pergunto se essa arvore dá peras ou se dá pilritos,
+ se da sua resina se póde extrair um balsamo ou um veneno, se dos seus
+ filamentos se póde entrançar uma corda para o sino ou um baraço para a
+ fôrca, se no seu tronco se podem serrar as pranchas para construir a
+ arca ou para armar o patibulo. A unica coisa que lhe pergunto é se ella
+ tem, para m'a dar, uma boa sombra fresca, macia, aromatica; e se a tem,
+ eu, que n'esse momento não sou um negociante de productos alimenticios,
+ nem um madareiro nem um chimico nem um engenheiro constructor, mas sim
+ um caminheiro prostrado, eu declaro, não só em meu nome, mas em nome da
+ sciencia, em nome da moral, em nome da religião, em nome do homem e em
+ nome de Deus, que essa arvore é boa, é util, é necessaria&mdash;não pelos
+ materiaes que ministra, não pelos fructos que produz, nem pelas
+ substancias que segrega, mas unica e simplesmente por uma condição
+ imponderavel e etherea, da qual em dada crise pode depender o meu
+ destino inteiro e toda a minha vida; e essa condição é a de se interpôr
+ no espaço entre mim e o ceu, e projectar sombra.
+</p>
+<p>
+ Na esphera das multiplas vegetações do nosso espirito a sciencia e a
+ philosophia fornecem as substancias alimenticias e ministram os
+ materiaes das construcções; a arte é a arvore santa, a arvore da sombra
+ para os peregrinos do pensamento.
+</p>
+<p>
+ Schiller em uma das suas cartas, cujo texto não tenho presente, expôe
+ uma theoria que pode resumir-se n'estes termos: «Se um critico em nome
+ da moral processa o meu livro não pelo que eu n'elle escrevi mas pelas
+ conclusões que elle critico lhe extrae, eu despreso esse julgamento. Se,
+ porém, a critica me convencer de que, dado o assumpto qual eu o concebi,
+ eu poderia executal-o por outro modo, eu n'esse caso submetto-me, não
+ porque tenha errado contra a moral, mas porque errei contra a arte.
+</p>
+<p>
+ Ora na execução do livro do sr. Eça de Queiroz ha na parte descriptiva
+ dois ou tres pormenores que não quereriamos eliminados&mdash;com quanto isso
+ fosse possivel sem quebra da verdade&mdash;mas que nos parece poderem ser
+ referidos de um modo&mdash;não dizemos mais pudico&mdash;dizemos mais artistico.
+</p>
+<p>
+ Ha em todos os grandes romancistas modernos, desde Balzac até o sr.
+ Queiroz, uma tendencia de que o vulgo tem feito o attributo de uma
+ escola, tendencia febril a demorarem sensualmente as analyses da torpeza
+ e da podridão.
+</p>
+<p>
+ O grande Eschylo dizia, censurando Euripides: «Elle deprimiu tudo
+ aquillo em que pegou, eu enobreci tudo aquillo em que toquei; os homens
+ saidos das minhas mãos respiram gladios e lanças, capacetes de
+ pennachos brancos e escudos reforçados com sete couros.» Os artistas
+ modernos não podem infelizmente inscrever nos seus brazões a nobre
+ divisa do velho tragico. A sociedade actual não fornece á arte os
+ grandes crimes que alimentaram o interesse da tragedia grega, porque as
+ depravações contemporaneas não gravitam em torno do crime heroico mas
+ sim em torno do vicio mesquinho e vergonhoso. Quem descreve os
+ caracteres modernos tem fatalmente de operar na gangrena; o que nos não
+ parece egualmente inevitavel é que o puz do tumor salpique a mão que o
+ opera. Ora o que julgamos notar, por duas ou tres vezes como acima
+ dissemos, na obra tão profundamente casta do sr. Eça de Queiroz é que os
+ seus instrumentos anatomicos, tão bem acerados e tão finos, teem os
+ cabos demasiadamente curtos.
+</p>
+<p>
+ A dissecção&mdash;permitta o nosso amigo que lh'o observemos&mdash;tem tambem as
+ suas leis de conveniencia e de elegancia. Além de que, para estudar um
+ orgão é ocioso expôr aos olhos do amphitheatro toda a nudez do cadaver.
+ Mesmo em anatomia o completo conjuncto é obsceno, porque é inutil.
+</p>
+<p>
+ As damas da côrte tão <i>pointilleuse</i> de Luiz XIV&mdash;ellas que
+ representavam tudo quanto possamos conceber mais escrupuloso e mais
+ exigente no decoro e no gosto&mdash;frequentavam, sem offensa do seu fragil
+ melindre de estufa, os theatros anatomicos.
+</p>
+<p>
+ «Á medida, diz Fontenelle, que Verney se tornava um homem á moda punha
+ em moda a anathomia, a qual, encerrada até ahi nas escolas de medicina
+ ou em Saint-Côme, ousou produzir-se na alta sociedade apresentada pela
+ mão d'elle.» O tacto especial de Verney contém um exemplo que pode não
+ ser inutil ao sr. Eça de Queiroz.
+</p>
+<p>
+ As senhoras portuguezas não cursam os estudos scientificos. Não teem os
+ menores principios de biologia, de anathomia e de physiologia,
+ principios indispensaveis para entrar nos estudos mais complexos do
+ homem como são na sciencia a historia e na arte o romance de caracter e
+ a esculptura do nú.
+</p>
+<p>
+ Por isso a falsa noção que ellas teem do pudor as torna incompativeis
+ com muitas das mais preciosas convivencias intellectuaes.
+</p>
+<p>
+ Uma noção social não pode, porém, ser modificada pelos escriptores ou
+ pelas academias. Essa reforma é a obra collectiva e impessoal do
+ progresso nos costumes e nas instituições.
+</p>
+<p>
+ N'estas condições, deploraveis mas inamoviveis, maior deve ser a atenção
+ do artista em limar&mdash;tanto quanto isto seja possivel sem detrimento da
+ obra&mdash;os pequenos angulos subalternos que difficultem a adaptação d'ella
+ aos costumes.
+</p>
+<p>
+ Sob este ponto de vista <i>O crime do Padre Amaro</i> está adeante do seu
+ tempo. Como obra de arte é este um destino feliz, porque n'este caso ter
+ de esperar é adquirir a certeza de sobreviver. Como obra de hygiene
+ social lamentamos que elle não possa desde já actuar pela sua
+ influencia no espirito d'este paiz onde o primeiro livro da educação
+ moderna <i>La femme, le prêtre et la famille</i> é ainda tido por um
+ sacrilegio de Michelet, o impio!
+</p>
+
+
+
+
+
+
+
+
+<pre>
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of As Farpas: Chronica Mensal da
+Politica, das Letras e dos Costumes, by Ramalho Ortigão and Eça de Queiroz
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK AS FARPAS: CHRONICA MENSAL ***
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+providing it to you may choose to give you a second opportunity to
+receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy
+is also defective, you may demand a refund in writing without further
+opportunities to fix the problem.
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+1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth
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+Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.
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+Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm
+
+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
+electronic works in formats readable by the widest variety of computers
+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
+people in all walks of life.
+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
+809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at https://pglaf.org
+
+For additional contact information:
+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit https://pglaf.org
+
+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including including checks, online payments and credit card
+donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate
+
+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
+keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
+
+Most people start at our Web site which has the main PG search facility:
+
+ https://www.gutenberg.org
+
+This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
+including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
+Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
+subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
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+*** END: FULL LICENSE ***
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