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João Baptista. Depois da missa regimental, o padre +capellão de caçadores 10 recebeu os noivos, com prévia dispensa do +prelado da diocese, na grande capella da fortaleza. Era numerosa a +assembléa, formada especialmente pelos curiosos. + +Officiaes e soldados, logo que o batalhão destroçou, correram para o +templo, onde já encontraram muitas mulheres, algumas de _manto_, +aguardando anciosas a chegada do cortejo nupcial, e fazendo em voz +baixa e com enorme dispendio de gestos, abundantes commentarios, +qual d’elles mais frisante, á resolução tomada pelo cabo de +veteranos.--Escolher para mulher uma raparigota, que podia á vontade +ser sua neta!-- + +--Eu cá por mim, exclamava a Luiza Braga, escancarando a boccaça meio +desdentada, ía jurar que lhe deram _coisa para querer bem_. Aqui +onde me vêm, _destrinço_ o Jorge desde rapaz pequeno, e nunca lhe +descobri tenções de casar. Não era então aos cincoenta e oito annos, +que estando com o juizo todo, havia de... Nada! Nada! Elle bem sabe que +«albarda nova em burro velho é matadura certa». + +--E a quem o Jorge foi buscar?... Á Rosa!... acudiu a Josepha Julia, +cunhada do sargento Migueis, piscando muito o olho esquerdo, unico de +que era possuidora. + +--Eu não digo que a rapariga seja _somenas_, mas sempre é filha da +Isabel, e ninguem desmente o seu sangue. D’arredio, d’arredio, é que eu +gosto de vel-as a ambas! + +--Deixe a tia Luiza estar que a Rosa tambem não é nenhuma santinha, +replicou a Josepha. Não lhe quero pôr _pitafe_, mas se foi verdade +aquella historia com o sargento Luiz... + +--Não seria, menina. Olhe que a Isabel é rata sabia e não a deixava ir +á noite, sósinha, para o baluarte de S. Pedro. O 33 da artilheria é que +disse, que tinha lá visto os dois, mas como todos lhe conhecem a má +lingua... Pois não foi elle que andou por ahi a espalhar que a menina +Josepha olhava para o alferes da segunda, um homem casado e pae de +filhos?! + +A Josepha, ao ouvir estas palavras, que lhe foram quasi segredadas, +poz-se vermelha que nem malagueta, e redarguiu promptamente: + +--Tão damnada é a lingua d’elle, como as que repetem o que o marau +vomita. _Ubei!_ + +--Ó menina, olhe que eu não tenho falas com o 33! + +--Nem deve ter, que a tia Luiza, por ter essa edade, não escapa a +similhante navalha. Sempre que o tio Braga passa ao pé d’elle, apanha a +sua risadinha e é apontado com o dedo... + +A velha despediu-lhe um olhar terrivel, enguliu em secco, e atalhou: + +--Bem, bem, não se fala agora nas patifarias do 33. Em todo o caso o +Jorge devia saber que a Rosa não era para a sua bocca. + +--E que pode empanzinar com o petisco, accrescentou a outra, já de +perfeito accordo. + +N’esta occasião sentiu-se o ruido dos passos de muita gente que vinha +atravessando a parada, e os noivos d’ahi a instantes entravam na +capella, acompanhados pelos padrinhos, pelos convidados e pelas pessoas +que, impellidas pela curiosidade, tinham ido esperal-os á porta da +casa terrea, onde a viuva do sargento José de Medeiros vivia desde ha +muito, por mercê dos governadores do castello. O Jorge, aprumado dentro +da sua farda de gola alta, botões muito lusidios e divisas alvas de +neve, mal deitava os olhos para a gente que o rodeava, e, com a cara a +escaldar, seguiu machinalmente pela capella adeante, ao lado da noiva, +que vestida de cassa branca semeada de raminhos vermelhos, e toucada de +grinalda e veo, dava mostras de vergonha, mal deixando ver os grandes +olhos pretos por baixo das longas pestanas assetinadas e bastas. No +rosto oval, branco e pequenino, esbatia-se um rubor intenso. + +Nunca tinha imaginado poder tornar-se o alvo da attenção de tanta +gente, e, se não fosse uma vergonha, fugiria d’alli, a bom correr. + +Agora é que deveras se arrependia de ter acceitado a grinalda e o veo á +menina Elvira, filha do capitão da segunda companhia de caçadores 10, +que estava casada, desde o mez anterior, com o tenente Aurelio Joaquim, +ajudante da praça. Se tivesse trazido como tencionava, o seu lenço +de seda de barras azues, não daria tanto nas vistas. Era tambem esta +a vontade do Jorge, porém a Isabel insistira pelo veo, proclamando-o +«coisa muito mais fina». + +O cortejo rompeu atravez da multidão, direito ao altar, onde havia de +effectuar-se a ceremonia. + +Notaram alguns dos presentes, e antes de todos a Luiza Braga, que a +Rosa tinha córado mais ainda, e estremecido levemente, ao dar com os +olhos no sargento Luiz, que, muito apertado na fardeta côr de pinhão, +se bamboleava, com ar de escarneo, na primeira fila dos curiosos. + +--Nem aqui mesmo a deixa! Já é pouca vergonha! murmurou a Luiza ao +ouvido da Josepha Julia. + +--Elles lá se entendem, regougou esta ultima, e concluiu, suspirando: +«Tal desgraça!» + +Entretanto o padre capellão ia tartamudeando as palavras sacramentaes, +e o sargento Luiz muito satisfeito de si cofiava o farto bigode louro. + +--Olhem! Lá está o sr. governador! murmurou a Luiza Braga para as +mulheres que a rodeavam. + +O coronel Jeronymo Cardoso acabava effectivamente de surgir a uma +porta lateral da capella e deitava olhares perscrutadores para os +noivos, sem comtudo esquecer as dores cruciantes, que lhe impunham os +terriveis joanetes. + +A Isabel tinha querido que o Jorge o convidasse para padrinho, e +chegara até a sondar _sua incellencia_ com exito razoavel, mas o +veterano puzéra os pés á parede, e a despeito de uma formal reprimenda +da futura sogra, insistiu em escolher o José Maria, seu camarada desde +o cerco do Porto, que lá estava na egreja á ilharga do amigo, tentando +aprumar quanto possivel o corpo já muito derreado pelos janeiros. + +O jantar do casamento foi em casa do Jorge. + +Tudo correu bem e só houve de notavel o pregar a Isabel, já um tanto +avinhada, uma furiosa descompostura na Luiza Braga, porque a viu á +porta da rua, espreitando. + +Os convivas apaziguaram a questão e d’alli a pouco despediram-se, indo +o José Maria, um quasi nada alegrote, acompanhar a Isabel, até casa. + +--Parecemos tambem dois noivos, disse o velho, batendo-lhe, com a +mão aberta, no meio das costas, e foi-se embora a trocar as pernas, +em quanto a viuva lhe gritava do limiar da porta que «para um marido +_tanto_ fino só a rainha que estava em Lisboa!» + +N’aquella noite, mercê das copiosas libações, dormiram mais +profundamente alguns dos habitantes do burgo militar, que pousado +no isthmo que liga a peninsula do Monte Brazil ao resto da ilha +Terceira, olha sobranceiramente para Angra atravez das suas numerosas +canhoneiras. + + + II + + +O Jorge tinha perto de cincoenta e oito annos. + +Alto, espadaudo, bem conservado, era, sob o ponto de vista militar, +um exemplo vivo do que tinha sido o exercito portuguez, em quanto +o governou a disciplina implantada pelo marquez de Campo Maior, e +conservada pelos officiaes que tinham servido com o famoso organisador +inglez. Era um gosto vel-o perfilar-se deante de um superior e +fazer-lhe a continencia com todos os tempos e prescripções da ordenança! + +Aos domingos, para ir á missa regimental, punha ao peito o habito da +Torre Espada, que tinha ganho no cerco do Porto, por estar umas poucas +de horas a disparar sósinho um obuz, contra umas alturas, cujo accesso +convinha a todo o custo impedir ás tropas de D. Miguel. As demais +praças que primeiro guarneciam a bocca de fogo e outras que vieram +substituil-as, tinham ido cahindo, a pouco e pouco, ás balas de um +regimento transmontano, espalhado em atiradores na frente da bateria. + +--Maior Africa tu fizeste, dizia-lhe n’essa tarde o primeiro tenente +José Victorino Damasio, em ficares com ambos os braços, do que em +escapar ás ameixas d’aquella sucia! Tu és doido! Servir sósinho um +obuz!... + +--Ó meu tenente, redarguiu o artilheiro ilheu com cara muito seria, +pois elle _havera_ de estar calado, tendo uma bocca tanto grande e +sempre escancarada?! Até parecia mal! + +--Em todo o caso foi doidice, continuou o tenente a rir. + +--Saiba V. S.^a que muitos senhores officiaes tambem dão cá á gente +d’esses maus exemplos. V. S.^a desculpe, mas parecia mesmo doidinho, +quando n’aquelle dia em que lhe atravessaram o corpo com uma bala, +queria á fina força, mal lhe fizeram o primeiro curativo, continuar a +commandar a sua peça. Eu bem me lembro! Só á má cara é que o arrancámos +de lá. Por isso, accrescentou o Jorge, indicando a insignia da Torre +Espada que ornava o peito de José Victorino, fez muito bem o nosso +Imperador dando a V. S.^a essa fitinha azul ferrete. + +--Pois tambem tu a mereces e has de tel-a, affirmou o official. + +E teve effectivamente uma das quatro destinadas a artilheiros, na ordem +do dia relativa ao combate. + +Todas as testemunhas lhe foram favoraveis no inquerito, em que se +baseou a concessão. + +Ainda assim o Jorge, embora no seu intimo estivesse a babar-se de +gosto, não se fartou de desculpar-se para com os camaradas, dizendo +que tudo aquillo era obra do tenente José Victorino, e que, verdade, +verdade! o que elle tinha feito, fazia-o qualquer galucho. + +Depois da convenção de Evora Monte, mandaram-o para a sua terra, para a +ilha Terceira, e d’alli a annos arranjaram-lhe passagem a veteranos e o +emprego de fiel do material de guerra. + +Tinha á sua conta o armazem fronteiro á porta dos carros do castello de +S. João Baptista. + +Alli, ou n’uma courella do Monte Brazil, que os governadores lhe davam +para cultivar, gastou elle durante muitos annos as longas horas do dia, +que sempre lhe pareciam curtas. + +Era um gosto visitar o armazem, n’aquelle tempo. + +Pelo pateo, rodeado de um muro baixo, espalhavam-se com symetria as +pilhas de balas cuidadosamente pintadas de preto, e descançavam, em +dormentes de madeira, os antigos canhões de ferro e de bronze, tão bem +conservados, como se na vespera tivessem vindo da fabrica. Alegrando o +quadro, floresciam em volta do recinto hortensias e gyrasoes. + +Lá dentro, no casarão apenas allumiado pela claridade coada atravez das +frestas envergadas e pela que vinha da porta, alongavam-se em cabides, +dos dois lados, soquetes de massa negra e cabo vermelho, emparelhados +com as lanadas e os sacatrapos. Os espeques, encostados ás paredes, +nos cantos, continuavam a uniformidade do tom vermelho, quebrado tão +sómente pela côr de chumbo das pernas da cabrilha, postas ao centro, em +cabide mais forte, que sustentava tambem, inferiormente, o molinete, o +cadernal e o moitão d’aquelle apparelho destinado ás manobras de força +da artilheria. + +Toda esta ordem e aceio eram devidos ao Jorge. Raro pedia fachinas +para o coadjuvarem. Só quando havia que remover algum peso de muitas +arrobas, e assim mesmo!... + +Descançava emquanto engulia o boccado. + +O jantar fazia-lh’o a Isabel, por um ajuste, que havia entre ambos. +Farto de rancho andava elle até aos olhos, e por isso queria «comida +feita por mão de mulher». Demais, a viuva bem precisava que a +ajudassem, coitada! e não lhe exigia nenhum disparate. + +Ás vezes, em logar d’ella, ia a filha levar-lhe o comer. Quando o +contracto principiou, a Rosa já era crescidota, mas ainda assim, uns +dias por outros entornava-lhe o jantar, porque ia de corrida, para +se despachar mais depressa. Apesar d’isto o veterano nunca chegou a +zangar-se, porque ao encaral-a, perdia o animo, vendo-lhe aquelles +olhos tão pretos e tão bonitos!... E nunca disse nada á Isabel... + +Quando o caso succedeu a primeira vez, a Rosa ficou muito contente, e, +voltando no dia seguinte, poz a cestinha no chão mal viu o Jorge, e +deu-lhe, em agradecimento, um abraço e um beijo. + +Ao sentir a carne fresca e macia da rapariguinha tocar-lhe no rosto, o +velho ficou exquisito, e d’alli em deante não estava bem ao pé da Rosa. +O beijo voltava-lhe á memoria, e com elle a noção vaga de alguma coisa +que tinha perdido, e que todos os mais gosavam... + +--Nada! Nada! pensava por fim. Eu com isto dou em maluco. O melhor é +dizer á Isabel que fica roto o nosso ajuste, que não me arranje mais a +comida. + +Mas que motivo lhe havia de dar? E custava-lhe tanto vel-a menos vezes, +a Rosinha! + +Passou-se tempo, a pequena tornou-se mulher, e um dia o Jorge tomou a +Isabel de parte e falou-lhe em casar com a filha, de quem era «muito, +muito amigo!» + +A viuva do sargento Medeiros ficou banzada. + +Podia lá entrar-lhe na cabeça que o veterano quizesse aquella gaiata, +que não tinha onde cahir morta e que, de mais a mais, no respeitante +a juizo... Quantos amargos de bocca já tinha tido em razão d’este +particular!... Se havia de ter outros peiores ou de vel-a perdida, +mais valia aproveitar aquelle amparo, que lhe cahia do ceu aos +trambulhões... É verdade que o noivo podia ser avô da Rosa, mas era +homem decidido, e saberia conserval-a no bom caminho. + +Ainda assim, por descargo de consciencia, mostrou á filha as coisas +como eram: que o Jorge tinha muita edade e que não seria portanto o +marido que mais lhe conviesse. Lembrou-lhe, porém, que elle avezava bem +bons vintens, que só querendo-lhe deveras é que se teria resolvido a +pedil-a em casamento, e que não se parecia em nada com os bandalhos, +que andam por esse mundo a desinquietar as raparigas. + +--E a final que proveito é o d’ellas, as mais das vezes? perguntava com +acrimonia a viuva, fincando as mãos nos quadris, bem especada ao meio +da casa. Arranjarem filhos, sem ter apanhado marido! + +A Rosa não se decidiu logo. Custava-lhe a tomar o pedido a serio.--Seu +marido, o tio Jorge!... + +Bem sabia que o Luiz tinha olhado para ella por brincadeira, sem tenção +de casar; mas quiz fallar-lhe, para ver que effeito lhe produziria +a noticia. O sargento ouviu a participação, achou que o pedido do +veterano se justificava com a belleza da Rosa. Elle proprio desejaria +fazer o mesmo ... mas não podia, porque o pae o tinha obrigado a +prometter casamento a uma prima, em Lisboa, e seria matal-o de desgosto +o escolher outra. O que faria com certeza, era ficar solteiro. + +A Rosa não o acreditou, mas ficou-lhe agradecida por aquella +explicação. Esperava até que o sargento a tratasse mal, quando soubesse +dos projectos de casamento. Ainda assim jurou comsigo mesma, que havia +de se vingar acceitando o primeiro que a quizesse para mulher, uma vez +que podesse gostar d’elle. Mas o Jorge, não! Era tão velho! + +Um dia a Isabel entrou fula, pela porta dentro. + +A Luiza Braga, a quem ella contara o pedido do Jorge, tinha-lhe dado +uma gargalhada nas bochechas, dizendo-lhe que o veterano estava de +certo a caçoar com ellas, e que tirassem d’alli a sua ideia. + +--Elle é isso? bradou a Rosa, tambem furiosa. Pois negra seja eu, se +não estiver casada antes de um mez! + +Tinha cumprido a promessa. + + + III + + +Tres semanas depois do casamento houve tourada de corda em S. João de +Deus. + +O Jorge, logo que a Isabel falou em irem todos ao divertimento, +condescendeu, dizendo que não queria a rapariga para freira nem para +bicho do buraco, e d’alli a boccado saíam do castello pela porta dos +carros, os noivos na frente, a Isabel e o José Maria um pouco mais +atraz. + +Os caçadores da guarda piscaram os olhos uns para os outros +cubiçosamente ao verem a Rosa, e um de S. Miguel, mais descarado, +commentou, a meia voz, que nenhum d’elles apezar de moços, se benzeria +com um «peixão de estoiro» como aquelle que o velho tinha apanhado. + +O José Maria, que ainda ouviu a graçola, cuspiu-lhes a phrase: +«Galuchada atrevida!» mirando de soslaio o chocarreiro. + +Depois de descerem até Angra e de atravessarem parte da cidade, +cujas ruas, de ordinario pouco concorridas aos dias santos, mais se +despovoavam n’aquelle domingo por causa da tourada, os quatro subiram +até ao arrabalde de S. João de Deus, onde já enxameava uma grande +multidão. + +Dos mirantes, pouco mais altos que uma pessoa, debruçavam-se muitas +damas, a quem os donos das casas sempre reservam os melhores logares, +e por traz d’ellas ou dos lados apinhavam-se as mulheres do povo, +merecendo geralmente umas e outras os olhares de quem buscasse apenas +caras bonitas, sendo porém as segundas mais dignas da attenção do +pintor de costumes, em razão da variedade dos trajos, que ostentavam +quasi sempre com extremada garridice. + +Algumas, as mais estimadas, tinham vindo com o _manto_ caracteristico, +muito encaloradas dentro d’aquelle envolucro de alpaca preta, egual +á da saia, que, franzido em volta da cintura, lhes cobria o tronco, +os braços e a cabeça, formando por cima um tecto á laia de telha, +duro graças ao forro de papellão que o reveste pelo interior. Quantos +rostos não parecem mais encantadores no fundo d’aquelle nicho, quando +entrevistos na semi-obscuridade do _manto_, que mão pequenina, ás vezes +bem calçada, sorrateiramente descerra á altura do pescoço, para logo +o fechar unindo-lhe as bordas deanteiras, de modo a ficar apenas um +orificio, atravez do qual os olhos dardejam curiosos!... E o effeito +não falha, porque o pomo vedado é o mais appetecido. + +A par do _manto_, que em muitas se via descahido para traz por +causa do calor, figuravam os capotes de longo cabeção e pesado capello +terminado posteriormente em forma de travesseiro. Este abrigo, que +constitue abobada por cima da cabeça e resguarda as faces com as abas +verticaes, acabadas em bico á altura dos hombros, tinham-o tambem +deitado para as costas algumas das donas, não menos encaloradas que +as dos _mantos_, ao passo que outras, mais cautelosas, os haviam +guardado dobradinhos a preceito, dentro da casa e em sitio escolhido. +Nada! Que o capote para muitas é a bem dizer um dote. + +Do matiz formado pelos chales e lenços de seda ou de chita, que +adornavam as restantes mulheres do povo, destacava-se um ou outro +capote e lenço, para ser ainda maior a diversidade dos trajos. + +Quando o Jorge e os companheiros chegaram ao logar da festa, já +remoinhavam pelas ruas, aos bandos, os rapazes do povo, trajando bellas +roupas de _panno fino_, chapeus de feltro e alvas camisas, com os +collarinhos unidos por dois grandes botões de ouro, lavrados em relevo +imitante a filigrana e encadeados pelo pé. Só os velhos e a maioria dos +_senhores da cidade_ buscavam refugio nos mirantes e janellas. + +Por entre os passeiantes esgueiravam-se, a espaços, as retardatarias. +Estas--duas lindas moçoilas do campo--faziam resoar na calçada as solas +de pau das _galochas_ pregadas, em volta, de tachinhas amarellas, +e enfeitadas no peito do pé com bordados escarlates a sobresahirem +do fundo azul da carneira. E como ambas corriam ligeiras com aquelle +calçado tão difficil de suster nos pés! Ora! Se até iriam dançar, a +menos que o tirassem, para bailar em palmilhas de meias! + +Quem primeiro veiu fallar ao Jorge foi o João Matheus, um leiteiro +que tinha a freguezia de muitos moradores do Castello. O veterano +quasi não o conheceu, tão differente o achou, de quando elle ia por +lá ao seu negocio, de manhãsinha, mettido n’uma grande camisa de +linho e coberto com o classico barretinho de malha, parente muito +proximo do solideo ecclesiastico. O leite, levava-o em duas grandes +cabaças escuras, amarradas aos extremos de um bordão ligeiramente +curvo, que lhe assentava pelo meio no hombro esquerdo. Agora estava +outro inteiramente, salvo no varapau, e no _pé fresco_, moda tão +predilecta do povo açoriano: o fato cifrava-se no dos outros populares, +e a cobertura da cabeça, ou, mais rigorosamente, do cocoruto era +a famosa carapuça de panno azul, orlada na peripheria com um vivo +encarnado e rematada dos lados por duas orelhinhas da mesma côr, +reviradas para cima. Para seguir ainda mais á risca a moda popular +terceirense, tinha pendente ao meio da testa, saindo por baixo da +carapuça, um caracol de cabello feito a primor. + +O veterano levou os companheiros para casa do José de Mello, que já +o tinha convidado muitas vezes, e que mal accommodou em bom logar do +mirante a Isabel e a Rosa, carregou com os dois velhos para dentro +de casa, ancioso por dar-lhes a provar uma pinga de vinho novo da +Graciosa, que as duas mulheres não acceitaram, mas que os tres homens +foram escorropichando por tigelas de barro não vidrado, acompanhando-o +de milho cosido com funcho, tremoços, favas e milho torrado, e outros +_hors d’œuvres_, patentes na meza e destinados ás visitas. + +A mulher do José de Mello, sentada a par da Isabel, disse-lhe que +tomasse cuidado á passagem do bicho, porque eram já seis os touros que +lhe tinham saltado para o mirante. + +Mas o conselho não foi ouvido, porque o estalar de um foguete provocou +immediatamente um enorme borborinho. Do touril, estabelecido n’um +quintal proximo, acabava de sair o boi. Correram-lhe ao encontro os +_aficionados_, pulando e gritando com desespero. + +Appareceu finalmente um touro de pequeno corpo e de côr escura, preso, +pelas hastes emboladas, a um comprido cabo, que quatro homens seguravam +pela extremidade opposta, e largavam ou colhiam para dar fuga ao animal +ou obrigal-o a parar. + +Traziam os quatro, á laia de uniforme, calças brancas, alvas camisas +avivadas de encarnado, e bonnets de copa baixa, apenas differentes dos +que usam vulgarmente os cosinheiros por terem tambem vivos d’aquella +côr. + +A _viseira_ que lhes occultava a metade superior do rosto, é que +originou a denominação de _mascarados de corda_, com que o povo da +ilha então os designava. + +Todos quatro coxeavam mais ou menos, visto que em obediencia ao seu +tradicional plano de uniformes, traziam os pés, tão deshabituados +de constrangimento, n’aquelle dia apertados em sapatos de bezerro, +legitimos representantes, para o caso, dos celebrados borzeguins da +tortura inquisitorial. + +O touro passou de corrida pela frente do mirante do José de Mello. Um +enxame de homens e rapazes seguiu-o de tropel. Tanta diligencia faziam +por uma ou duas marradas, que ás vezes viam coroadas as suas aspirações. + +N’isto, um d’elles, mais atrevido, tropeçou e cahiu, e d’aqui resultou +que outros dois tambem se estatelassem na calçada. + +O touro estava perto, e, ou porque os mascarados não podessem a tempo +segural-o ou porque desejassem «animar o divertimento», conseguiu +chegar aos tres, e depois de uma focinhada prévia dispunha-se já para +mimoseal-os com festa mais valente, quando o cabo, esticado com força, +lhe deu a _pancada_, obrigando-o a retroceder e arrancando-lhe um +mugido doloroso. + +Decididamente a tourada promettia ser boa. + +Os tres levantaram-se no meio de risadas estrepitosas, e um d’elles, +com a cabeça partida, foi curar-se á botica proxima, sem que mais +ninguem désse importancia a similhante bagatella. + +Apezar de ser fanatica pelo divertimento, a Rosa tornou-se pallida mal +viu o sangue, e descórou mais ainda, porque ao afastar os olhos deparou +no mirante contiguo o sargento Luiz, a fital-a persistentemente, com um +ar muito triste, como de quem sentisse grande pena de estar a vel-a, +mas que não podesse desviar d’alli a vista, nem o pensamento. Afinal +cobrou animo e, com simulada indiferença, mostrou concentrar a attenção +no touro, que já ia a distancia, rodeado por uma caterva menos densa. +Alguns dos perseguidores, vendo as barbas do visinho a arder, tinham-se +refugiado nos vãos das portas, ou dependurado das grades de algumas +janellas mais baixas. + +--Não havia de olhar para elle!... Se até lhe tinha raiva!... Quando +o Luiz a namorava, jurava-lhe um amor por ahi além, e afinal deixou-a +casar com outro... Bem fraco amor!... Nem já se lembrava de que ella +existia. Tinha-a encarado, por um simples acaso. Iria apostar que +olhava já para outro sitio... Nem já alli estaria talvez... + +E, para certificar-se, olhou novamente e viu outra vez o Luiz, sempre a +miral-a com a mesma persistencia. + +Revoltou-se e sentiu uma grande vergonha, por adivinhar que n’aquella +teimosia estava a prova de que elle não a julgava mulher de bem, e a +suppunha capaz, depois de casada, de olhar para outro homem, que não +fosse o marido. + +Ia dizer-lhe pela expressão do semblante a indignação que o atrevimento +lhe causava, mas não poude, porque ao encarar com o Luiz conheceu que +o seu olhar não era petulante, mas de supplica, e ainda mais terno do +que no dia em que elle lhe tinha dicto que a _Rosinha era a flôr do +Castello_, e que _morria de amores_ por ella. + +O que estava certamente era ralado de pena, porque, em obediencia ao +pae, a tinha perdido!... Podia lá querer tornal-a má mulher, embora +fosse unicamente nas boccas do mundo!... Até merecia dó o infeliz... +Pois não o havia desprezado, para casar com o Jorge?... Coitado!... + +No emtanto proseguia o divertimento na sua monotonia habitual. +Percorridas as ruas do transito, o boi já vinha quasi a passar pela +segunda vez em frente da casa do Mello, continuamente excitado pelos +bordões, guardasoes, lenços, e até pelos casacos despidos pelos +capinhas improvisados, que assim toureavam em mangas de camisa. + +Perplexo, estonteado, o boi estacou ao meio da rua, olhando em derredor +e escarvando o chão com as patas deanteiras. Afinal, escolhido o ponto +de ataque, partiu como seta em direcção a uns cinco homens, mais +impertinentes em atiçal-o, mas que desappareceram por encanto, mal +suspeitaram a arremettida. Sumido o alvo, o touro não parou na corrida +e foi galgar de um salto o mirante do João de Mello, antes que os +_mascarados_ lhe dessem a pancada. + +Um reboliço, uma gritaria infernal. + +Estes refugiavam-se esbaforidos no interior da casa, aquelles saltavam +para a rua, e dois ou tres, paralysados pelo medo, deixavam-se ficar +no mesmo sitio, de olhos fechados, mãos nos ouvidos, entregues ao seu +destino. + +Mas subiu da rua uma gargalhada estrondosa, seguida de palmas e apupos. +Era a Isabel, que ao pular do mirante não tinha podido evitar que as +saias se levantassem, e dava com isto um espectaculo, se não agradavel, +pelo menos original. + +A Rosa, colhida improvisamente no meio da sua abstracção, viu o touro +cahir-lhe ao pé e desmaiou de susto: mas o sargento Luiz, n’um abrir e +fechar de olhos, saltou do mirante onde estava, tomou-a nos braços e +afastou-a do animal, a que os _mascarados de corda_ esticavam no +entretanto o cabo e obrigavam a descer para a rua. + +Quando acordou do seu passageiro desmaio, a mulher do Jorge sentiu que +a beijavam e ao abrir os olhos viu-se nos braços do Luiz. + +Os dois veteranos conseguiram afinal romper atravez dos que tinham +fugido para dentro da casa, e assomavam á porta, sem que nenhum d’elles +soubesse ainda ao certo o que era passado. O José Maria como que viu o +beijo, mas não teve bem a certeza, pois que todas as vezes que bebia +uma gota a mais, ficava tonto e via coisas perfeitamente imaginarias. +Convenceu-se de que fôra uma historia armada pelo vinho, quando lhe +explicaram o succedido. + +Para fugir aos agradecimentos, que o Jorge lhe dava sem a minima +desconfiança, retirou-se logo o sargento, envolvido pela Rosa n’um +olhar de reconhecimento e admiração. + +A Isabel veiu furiosa da rua e quiz por força que se retirassem logo. +Temia que o rapazio continuasse a dirigir-lhe chufas. + +Não disse palavra a Rosa na volta para o Castello. Se por acaso +dava com os olhos no marido, voltava a cara para outro lado, com um +movimento brusco. Ao meio da rampa que vae dar á ponte levadiça, parou +para descançar, e olhou para traz, sem saber porque. + +O Luiz tinha-a seguido, de longe. + +Não deram por isto os dois velhos, nem a Isabel. Notou-o comtudo a +Luiza Braga, que vinha logo após o sargento, em companhia da Josepha +Julia. + +--Com cedo principiam! cochichou ella ao ouvido da amiga. + +--Principiam? acudiu a outra ennojada. Continuam! + + + IV + + +Nos dias seguintes a Rosa pensou, pensou muito, medindo o alcance da +loucura que tinha feito em casar com o Jorge. + +Só depois do beijo, que lhe escaldava ainda a bocca, percebeu que havia +alguma coisa na ligação do homem com a mulher, que o marido com toda a +sua amizade não lhe tinha feito conhecer. + +Por aquelle beijo o sargento apossara se d’ella com um predominio, +que o Jorge nunca lhe tinha imposto, em tantos dias de intimidade. +Sentia-se fraca, indefesa perante um ascendente ineluctavel, e pela +primeira vez sabia como o homem chega a avassallar a mulher, a fazel-a +coisa sua. + +Tudo isto passava tumultuariamente no espirito da rapariga, como +vaga percepção, sem que ella, intelligente mas ignorante, tivesse +bem a consciencia do mundo novo de sensações e ideias que acabava de +revelar-se-lhe. + +O que de mais comprehendia, era que apenas o Luiz quizesse, não +poderia resistir-lhe, e que sabendo aliás que se tornaria uma creatura +desprezivel, seria d’elle, d’elle inteiramente. + +--Ai! E podiamos estar casados um com o outro! scismou. + +Uma semana depois o sargento, certo de que o veterano estava longe, +passou-lhe pela porta. A Isabel, tinha-a elle avistado da muralha do +castello, a descer a ladeira contigua ao Relvão. + +Quando o viu prestes a entrar, a Rosa ficou toda a tremer, e quiz +refugiar-se no interior da casa, porém o Luiz disse-lhe que só desejava +dar-lhe duas palavras, e que depois a deixaria em paz para todo o +sempre; mas que se ella o não escutasse, tinha deixado no quarto a +espingarda já carregada, para acabar de vez com o seu tormento. + +A Rosa ainda balbuciou que elle queria desgraçal-a; que se sumisse +d’alli, ou que se veria obrigada a chamar por alguem. Podiam tel-o +visto. Supplicou-lhe de mãos postas que a deixasse, que se fosse embora. + +Certo de que não o tinham visto, o Luiz fechou a porta rapidamente, +tomou nos braços a linda rapariga e tapou-lhe com beijos a bocca, para +que ella não gritasse. + + * * * * * + +Só quando o sargento lhe disse adeus, e lhe pediu muito que para +o futuro fosse vel-o ao quarto d’elle, pois alli seria perigoso +continuarem a encontrar-se, é que a Rosa viu bem o que tinha feito. + +Jurou que nunca mais tornaria, mas sentiu logo que havia de tornar, +indefesa contra a seducção, que ainda lhe fazia vibrar todo o corpo em +frémitos de goso. + +A segunda entrevista foi no quarto do amante. + +Ninguem a reconheceria, vendo-a passar na rua. Ia de manto, e para +maior segurança, pedira á mãe emprestadas as botas, sob o pretexto de +que as suas lhe _pisavam_ e que precisava ir á cidade. Estando +quasi a chegar ao quarto do Luiz, apanhou um susto enorme: encontrou-se +com o marido, que devia passar a manhã no monte Brazil. + +O Jorge não andava a espial-a. Cumpria simplesmente uma ordem do +inspector do material de guerra, que o tinha mandado chamar ao +Castello, para lhe dar certas explicações relativas ao embarque de umas +peças velhas de bronze, que deviam recolher á Fundição de Canhões. + +Os dois amantes, muito conchegados um ao outro, estiveram tempos sem +fim de ouvido á escuta por traz da porta, que ella tinha fechado +subtilmente. Não sentiram nada. Apenas as pulsações desordenadas do +coração de Rosa. + +--És uma tola, disse-lhe por fim o sargento, dando-lhe um beijo. Podia +lá conhecer-te, com esse disfarce! De mais a mais como é velho, deve +ter a vista cançada. + +--Elle, a vista cançada? Estás a ler. Vê perfeitamente. E para longe, +ainda melhor do que eu. + +Quando tornou para casa, ainda ia receiosa. + +O marido appareceu d’alli a uma hora. Não fazia differença. + +As entrevistas continuaram. + +N’uma d’ellas a Rosa, ao sair do quarto do Luiz, topou a Josepha Julia, +que a mirou dos pés á cabeça e fez um gesto de escarneo. + +--Se me conheceu!... pensou a mulher do veterano, abalada pelo medo. +Era o mesmo que sabel-o toda a gente! + +Mas logo encolheu os hombros, e disse comsigo resolutamente: + +--Ora adeus! O que está feito, está feito! + + * * * * * + +D’alli a poucas horas já effectivamente andavam de bocca em bocca as +infelicidades conjugaes do cabo de veteranos. Para não levantar falsos +testemunhos, a Josepha, muito encolhida debaixo do lenço, cosida +com as paredes e a passinhos ligeiros, tinha seguido a _mulher do +manto_. Mal teve a certeza de quem ella era, correu a casa da Luiza +Braga. A velha prometteu guardar segredo, mas, tendo ficado só e vendo +entrar-lhe pela porta dentro o 33 da artilheria, a pedir-lhe linha +preta para coser um botão do casaco do uniforme, não teve mão em si e +poz tudo em pratos limpos, sem dizer, já se vê, quem lh’o tinha contado. + +A Josepha já estava em casa, costurando ao pé da janella do rez do +chão. Tinha feito solemne protesto de não trocar falas com o maldizente +do artilheiro, mas ouviu-lhe a «grande novidade», condimentada com +varios pormenores inventados pelo narrador. + +Benzeu-se, exclamou que podia ser tudo uma refinada mentira, que a Rosa +era levantadinha de cabeça, mas que chegasse a tanto, lá isso não lhe +parecia. + +--Pois diga-_le_ que não. Quem viu, é pessoa incapaz de mentir. + +--E quem é que viu? perguntou a torta em sobresalto. + +--Nun xe xabe! como dizia o gallego. + +--Então pode não ser verdade. Bem sei que o marido é velho... + +--Vê?... Já acreditou! + +--Não acreditei nada. Vá-se d’aqui, _seu_ grande má lingua! + +Fechou a janella, com um accrescimo de indignação. No fundo estava +radiante. Para o libello famoso, já tinha editor responsavel. + + * * * * * + +A Isabel foi aos ares no dia seguinte, quando soube pelo tio Braga o +que a voz publica attribuia á Rosa, e até pregou uma valente bofetada +no alviçareiro. Se lhe fez doer, não lhe causou o minimo espanto, de +habituado que elle andava a tomar o peso ás mãos da cara metade. + +Podia lá entrar-lhe na cabeça que a filha, casada tanto de fresco, já +enganasse o marido!... Ainda se estivessem recebidos ha mais tempo!... +Ella tinha-se prendido por sua livre vontade, e nem sequer podia dar +como desculpa o Jorge ser velho e pouco proprio para encantar uma +rapariga. Tudo isto a mãe lhe fizera ver um cento de vezes, antes do +casamento. + +Não levou um credo para chegar a casa da filha e como a apanhou +sósinha, disparou-lhe tudo á queima roupa. Uma de duas: ou conseguia +atrapalhal-a e apanhar-lhe a confissão da culpa, ou, se fosse tudo +mentira, a indignação havia de patentear bem clara a innocencia. + +A mulher do veterano encarou com a mãe, e disse pausadamente estas +palavras, cujo effeito foi observando: + +--Sim, senhora, é verdade o que lhe disseram. Fiz isso, porque não +posso aturar meu marido, e porque só do Luiz é que eu gosto e hei de +gostar sempre. + +A Isabel cahiu sentada para cima de uma arca, e rompeu n’um grande +choro, arrepellando-se, dizendo mal á sua vida. + +--Cuidado, minha mãe! Olhe que se meu marido entrasse agora por ahi +dentro, a desgraça ainda havia de ser maior. + +--Lá isso era, porque descobria toda a verdade, e ... Deus te +livrasse!... + +--É o que pode fazer com esses alaridos. + +--_Ubei!_ Permitta Deus que elle nunca desconfie!... Ora a minha +desgraça!... Mas o que eu não quero,--fica sabendo!--é que me tornes a +olhar para aquelle _bonecro_ de engonços! Ha de ser isto assim, ou +sou eu mesma que prego a ambos uma boa lição, com estas mãos que Deus +Nosso Senhor me deu! + +--Mau! Já vejo que não temos nada feito, disse a Rosa, afastando-se da +mãe. Se as suas tenções são essas, o melhor é ir já, já ter com o Jorge +e declarar-lhe tudo. Ande! Vá! Assim ao menos deixo de penar por uma +vez! + +--O’ rapariga, o que estás tu a dizer? + +--Que hei de gostar sempre do Luiz, ou eu não me chame Rosa. Sim, +senhora! Resolvi-me a tudo. Dizem mal de mim? E eu que me ralo! Ellas +falam, porque se mordem de inveja! + +--Ai que está variada! exclamou a Isabel, levantando-se e erguendo os +braços para o ceo. Deram-lhe volta ao miolo, olá se deram. Oh! Mas isto +não pode ser, e tendo-se voltado para a filha, continuou, voz em grita: +Se me não tomas juizo, eu racho-te ... racho-te de meio a meio! Cuidas +que por estares assim espigada, me não provas os cinco mandamentos? + +--A minha mãe não me entendeu. Olhe! Se fizer isso, se quizer +apartar-me do Luiz, queimada seja eu pelo fogo do inferno, se na +primeira occasião em que me pilhar a sós com meu marido, não lhe conto +a coisa toda como ella é, tim-tim por tim-tim. E reforçou o juramento +levantando tambem para o ceo o braço direito, com a mão bem espalmada. + +A Isabel, que se tinha benzido ao ouvir fallar no inferno, descahiu +outra vez para cima da arca, aos soluços. + +--Está doida! Doida varrida! + +A rapariga aproveitou este ensejo e approximou-se da mãe, pé ante pé: +fallou-lhe ao ouvido, carinhosamente; demonstrou-lhe que só havia uma +coisa que fazer--evitar que o Jorge descobrisse, O mal já estava feito, +e nem Deus teria poder para destruil-o. Mas se a Isabel quizesse, as +coisas continuariam assim, e nunca o velho saberia o que diziam, pois +ninguem se atreveria a ir contar-lh’o. Mais dia menos dia, como já era +bastante edoso, podia apanhar uma macacôa que o levasse para a terra +da verdade, e já ella ficaria livre para casar com o escolhido do seu +coração. + +--O sargento casar comtigo?... Espera por essa! Tanto como da primeira +vez, murmurou a Isabel em tom lamentoso. O que elle quiz foi ... o que +se está vendo; mas se julgar novamente o caso mal parado, fica certa +de que nunca mais lhe pões a vista em cima. Os homens são assim! E +concluiu, ainda mais lamuriante: Ai! A minha triste vida! Para o que eu +estava guardada! + +--Isso era bom, se o Luiz não gostasse tambem de mim; mas gosta muito, +acredite, gosta muito, affirmou a Rosa, fallando ao mesmo tempo que a +mãe. E está tão arrependido de me ter deixado casar, tão arrependido!... + +--Historias da vida! Mas, ó mulher, foram esses os exemplos que eu te +dei? Pois não tens vergonha!... Emquanto fui casada, respeitei sempre +as barbas de teu pae, e depois de viuva... + +Ia proseguir mas calou-se a um olhar meio serio, meio de escarneo, que +a Rosa lhe dardejou sem levantar a cabeça ligeiramente inclinada para +o chão, mas arregaçando de subito as palpebras, a fim de trazer bem a +lume os olhos negros e expressivos. + +Por fim recuperou ousadia e perguntou com voz ainda titubeante: + +--Porque olhas para mim d’essa maneira? Porque dás ouvidos ao que dizem +certas linguas?... Ainda que tivesse sido verdade, não me podiam dizer +nada, porque uma viuva não deve a cabeça a ninguem. + +--Nem me dava com isso maus exemplos? interrogou a filha, com apparente +serenidade. + +--Está visto que não... Quero dizer ... não dava, se não houvesse +escandalo, se não soubesses ... de nada. + +--E se eu soubesse de tudo? perguntou Rosa, certa já de conquistar +o auxilio da mãe. Olhe! Sempre lhe quero contar... Eu teria talvez +uns seis annos ... ou nem tanto... Uma tarde, a mãe tinha ido para +dentro de casa, e estava a conversar com aquelle cabo de artilheria +muito alto e louro--um rapaz bem bonito, por signal--a quem gommava a +roupa... Lembra-se? Eu andava a brincar na rua. Passou a Luiza Braga e +perguntou-me quem estava lá dentro com a minha mãe. Respondi-lhe que +era a sua irmã de Agualva ... a tia Marianna. A velha acreditou-me, +e foi-se embora. Se não fizesse o que fiz, ella tinha ido por esse +Castello infamar a minha mãe, e ficavam todos certos do que alguns +diziam e muito poucos acreditavam. Mas sabe o que valeu?... Foi não +passar pela cabeça á Luiza que, n’aquella edade, eu já soubesse mentir. +Sabia, porque a mãe, de outra vez, me tinha ensinado a mesma resposta, +para quando alguem me perguntasse o que ella me perguntou. + +--Eu não me lembro de nada d’isso, murmurou a Isabel, com a voz a +tremer. + +--Lembro-me eu, e ainda bem que menti! Deus não me castigará, por eu +ter livrado a minha mãe de tantas afflicções. + +Em voz baixa, n’uma supplica repassada de ternura, accrescentou: + +--E tambem não a castiga, se a minha rica mãe quizer ajudar-me a sair +d’esta consumição. + +--Foi praga que me rogaram! Foi praga!... + +A Isabel não poude levar por deante o epiphonema, porque a filha, +cingindo-lhe as costas com o braço direito e achegando-a a si +brandamente, segredou: + +--Bom! Bom! Deixe estar que não se arrepende... e ha de me dar razão +algum dia, vendo-me feliz. + +--Deus te ouvisse, filha, Deus te ouvisse! Mas o que tu me obrigas a +fazer!... Olha! O melhor era deixares aquelle ... não sei que diga! + +--Outra vez!... Escolha: ou a mãe consente em ajudar-me, ou eu digo +hoje mesmo tudo a meu marido! + +--Não, mulher, não lhe digas nada! + +E com os olhos em alvo, as mãos erguidas, os dedos enclavinhados, a +viuva exclamou: + +--Seja tudo pelo amor de Deus! + + + IV + + +O José Maria andou uns poucos de dias a parafusar, antes que se +resolvesse a dizer ao Jorge umas coisas, que lhe tinham contado muito +em segredo a respeito da Rosa, e que elle acreditou, porque eram o +complemento e a confirmação da scena entrevista em S. João de Deus. + +Esteve quasi decidido a calar-se, porque dava razão ao dictado «Entre +marido e mulher não mettas a colher», e tambem porque lhe custava muito +ir destruir para sempre a alegria ao seu antigo camarada. + +Quando andava n’estas indecisões, e já principiava a desculpar a +Rosa, pensando que talvez a coisa não tivesse ido a mais, e que ella +sempre havia de ter algum respeito pelos cabellos brancos do marido, +adregou-lhe passar á porta da Luiza Braga. + +--Pst! Pst! fez-lhe esta, lá de dentro. + +--Isso é commigo? + +--Entra, ó José Maria, que te quero perguntar uma coisa. + +--Tu! Ha de ser fresca!... + +Entrou e foi sentar-se n’um moxo. + +--O que eu te quero perguntar, disse a velha, que estava a engommar +um collarinho, é se o teu amigo já sabe o que rosna por ahi a canalha +brava. + +--Qual meu amigo? + +--O Jorge! Mas tambem elle só deve queixar-se de si mesmo. Não se +mettesse com a Isabel, nem com gente da sua geração. + +--Cala-te, mulher, que já não te vejo bem! replicou o veterano, +levantando-se n’um impeto. + +--Eh senhor! Tu endoideceste! Por eu não querer que o Jorge ande +enxovalhado por essas boccas ruins, é que tu!... Ainda em cima?... +Sempre sou bem tola! + +O velho conheceu que se tinha excedido, e ancioso por saber o que mais +propalavam os maldizentes, moderou-se e murmurou: + +--Dize lá o que querias dizer. + +--Queria mas já não quero... Julgas talvez que não sou tambem amiga +do Jorge? Pois ainda ha migalha estive quasi _garreando_ com a +... cala-te bocca!... com uma certa pessoa, por não lhe poder ouvir +que se elle não vae ás do cabo com a Rosa, é porque uma casa sempre se +governa melhor, quando são dois, em logar de um só, a carregarem com as +despezas. + +--Dois? + +--_Bei_, Senhor! Pelos modos o sargento Luiz recebeu, pelo ultimo +paquete, uma _mancheia_ de patacas, que lhe deixou um tio lá de +Lisboa... + +--Fecha-me essa bocca suja, grande excommungada! + +Juntando á palavra o gesto, o José Maria bateu-lhe com a palma da mão +em cheio nos beiços, e, antes que a Luiza se recobrasse do susto, sahiu +pela porta fóra, de escantilhão. + +--Hei de contar tudo ao Jorge! resmungava elle, pela rua adeante. Não +quero que ande vendido. Hei de contar-lhe tudo, e vae ser hoje mesmo! +Que grande pouca vergonha!... + +Com mais temor que resentimento, a Luiza foi á porta, para seguil-o com +a vista. Não poude furtar-se a dizer com os seus botões que, tirante o +Braga, todos os soldados do cerco do Porto eram homens de uma canna só. + + + V + + +Foi na courella cultivada pelo Jorge no monte Brazil, que o José Maria +encontrou d’alli a pouco o seu antigo companheiro de armas. + +Primeiro que entrasse no assumpto, falou de mil ninharias: das lagostas +que na vespera tinha pescado na bahia do Fundão; na queda que o +corneteiro-mór reformado ia dando na Quebrada, quando andava a apanhar +cracas.--Ainda que se não esmigalhasse na rocha empinada e de temerosa +altura, e fosse cahir no mar, não escaparia de certo ao mergulho, pois +elle a nadar era mesmo um prego! + +Foi tagarelando, tagarelando, mas sem alludir á Rosa. Todas as vezes +que a rapariga lhe acudia á lembrança, parecia que se lhe punha um nó +na garganta. + +Afinal o Jorge deu por isto, e foi o proprio que perguntou: + +--O’ José Maria, tu estás, a modos, exquisito? Parece que tens uma +coisa para me dizer e que não te _astreves_... + +O outro ainda lhe retorquiu com um «Olha lá!...» e quiz fingir ar de +riso. Mas não poude levar por deante a dissimulação e disse por fim, +deixando-se cahir sentado n’uma pedra: + +--Pois tenho, tenho muito que te dizer. + +--Se é da Rosa, não me digas nada! respondeu-lhe o amigo com +arrebatamento. Sei que ella não vae á tua bola, e pódes ter ouvido +por ahi qualquer coisa contra a rapariga, e vir então buzinar-me os +ouvidos... Se adivinhei, não tenhas esse trabalho! + +--Ó Jorge, pois tu fazes de mim similhante ideia?! perguntou o José +Maria todo sentido e levantando-se de esfuziote. Metteu-se-te na cabeça +que eu fosse capaz de dizer coisas, de que não tivesse a certeza? Bem! +Bem! Como te deram volta ao juizo, já aqui não está quem falou ... isto +é, quem ia falar! + +--Sim, cala-te, que é o melhor! Só faltava que tambem tu me viesses +ralar o interior, que já anda bem consumido. Só Deos é que sabe!... + +E tendo lançado para longe o sacho com que andava cavando, levou ambos +os punhos aos olhos, e desatou a soluçar. Coisa que não fazia desde +creança, chorou--chorou lagrimas abundantes, que lhe escorriam pelo +rosto e pelas mãos. + +Certificou-se o José Maria de que mais ninguem podia ver o amigo, +chegou-se a elle e passou-lhe um braço em volta do pescoço. + +--Então! Que diabo! Isso não vale a pena! disse-lhe com meiguice. Pois +ha mulher que mereça a vida de um homem? Não te lembras da minha serva +de Deus? Bem amigo d’ella que eu era: vi-a morrer e ainda por cá estou. +Com essas coisas dás cabo de ti. + +--Tu, tu é que dás. Para que vieste bulir commigo? Deixasses-me quieto! +E dizendo-lhe isto de mau modo, o Jorge arredou-se do camarada e ficou +de costas para elle, sem comprehender que fosse dictada pela amizade +aquella confidencia. + +Pois não lhe trazia a certeza de que elle já receiava? Receiava, sim, +mas não queria acreditar, desejoso de que o tempo viesse a embotar +aquella duvida, e esperançado em que por fim se conhecesse que a +rapariga estava innocente, como lh’o dizia o seu espirito cheio de +rectidão. E ainda no peior dos casos, se em verdade a Rosa fosse má +mulher, para que haviam de lh’o dizer, se mais dia menos dia elle mesmo +descobriria tudo, com certeza? + +Por isso nem queria encarar com o seu antigo camarada. Qualquer outro +já teria pago bem caro o atrevimento! + +O José Maria entendeu que se devia ir embora, o que era aliás seu +desejo desde que alli estava. + +--Haja saude, Jorge, e não me fiques querendo mal. + +O outro encolheu os hombros desabridamente, sem mudar de posição. + +--Não te ponhas com maus modos, homem! Aprender até morrer, bem diz o +dictado. + +E chegando-se mais, concluiu: + +--Por me dares esse _pago_, não cuides que ouvindo algum marau +dizer poucas vergonhas de ti, deixe de saltar-lhe para cima com vento +fresco, apesar de velho e estropiado. Haja saude! + +Ia a afastar-se, quando foi agarrado violentamente por um braço. + +--Poucas vergonhas! Que poucas vergonhas dizem de mim? perguntava o +Jorge, meio suffocado. Anda, põe já tudo em pratos limpos, se não +queres fazer-me acreditar que te saiste com essa, para te vingares da +minha resposta. Não! Não!... + +E emendou, supplicante: + +--Se não queres ver-me estalar de paixão, conta-me o que sabes, José +Maria, conta-me o que sabes! Pelo amor de Deus! + +Foi então que o outro lhe referiu por miudo não só o que tinha visto, +mas o que andava nas boccas do mundo. Quando o ouviu falar na suspeita +de que fosse connivente na sua infamia, o Jorge teve um ataque de raiva +e quiz saber por força quem tinha contado aquillo, para lhe apertar as +goelas, até lhe fazer deitar cá para fora toda a lingua malvada. + +Apesar do que a revelação lhe fazia soffrer, reaccendendo lhe +desconfianças, que a pouco e pouco se tinham ido aplacando, o seu +primeiro impulso foi justificar a mulher, mostrar ao amigo que o tinham +enganado, que a Rosa continuava pura como a neve. Se em S. João de +Deus ella estava ao pé do sargento Luiz, era porque o medo do touro +lhe fizera perder a cabeça. Pois o José Maria não a tinha tambem visto +amarella como cera, quando os dois a foram encontrar? Demais, a Isabel, +que tambem não podia ver o tal _bonecro_, explicou depois que não +havia nada que se lhe dizer, e que até devia agradecer-se ao pobre +rapaz o ter acudido á Rosa, quando todos fugiam assustados. + +--Cantigas da viuva! objectou o José Maria. O que ella quiz foi +desculpar a filha. Olha! Pergunta-lhe se tambem deves agradecer ao +bandalho, o beijo que elle pregou em tua mulher! + +--Um beijo? Quando? + +--N’essa mesma occasião. Como se julgava a sós com a rapariga, visto +os mais terem debandado, tomou esse atrevimento ... mas eu que vinha +adiante de ti pude ainda vel-o. + +--Viste-o? Tens a certeza?... + +--Pareceu-me que sim. Bem sabes que eu, bebendo uma pinga a mais... + +--Pareceu-te! Eu pergunto se tens a certeza!... + +--Antes de passar a porta que dá para o quintal onde elles estavam, +ouvi a modos a bulha de um beijo, e como fui dar com o sargento ainda a +amparal-a, acredito que elle a beijasse, como dizem por ahi. + +--Se não viste, para que repetes o que pode ser mentira? E olha que +nos dias que se seguiram, lembro-me muito bem, ella não fez differença +nenhuma. Nunca se tirava de ao pé de mim. E sempre alegre!... Se +tivesse feito o que dizem, não sabia sustentar aquelle disfarce. + +--Isso é o que tu julgas. As mulheres, quando pendem para a banda do +arrocho... + +--Ainda que quizesse pôr pé em ramo verde, não podia, respondeu o Jorge +com impaciencia. Em quanto eu estou fóra de casa, a Isabel não perde +a filha de vista. Já te disse! Não ha uma hora do dia em que a Rosa +esteja desacompanhada. + +--E de noite?... perguntou o José Maria, que inconscientemente tomava +calor perante as objecções do camarada, e, excitado pela controversia, +dizia coisas, que não lhe sairiam da bocca n’outra occasião. + +--De noite está ella deitada commigo! + +Mas calou-se de repente, não se atrevendo a continuar na defeza, por se +lembrar de que tinha o somno pesado, e que, vinte vezes que a mulher se +levantasse, elle de certo não acordaria. + +--Pois a Rosa seria capaz?... + +A afflicção de novo o estrangulou. Descria de todos, de tudo. +Arrepanhou-se-lhe o interior do peito, ao de cima do estomago, e todo +esfriou lá por dentro, como se lhe tivessem amputado subitamente essa +parte do corpo, substituindo-a por uma grande pedra de gelo. + +É que lhe tornava o ciume ainda com maior furia, perdida a esperança +que pouco antes o animava, quando elle, na ancia de desculpar a mulher, +em vez de persuadir o amigo, a si proprio se convencia. + +Mas o outro comprehendia, afinal, a grande asneira que tinha feito. + +Fosse a Rosa effectivamente má mulher, e nem mesmo assim elle devia dar +aquelle passo. + +Obedecendo a um momento de zanga, acabava de perder um amigo, para +quem se tornara mensageiro do maior de quantos desgostos se lhe podiam +annunciar, e fazia-o para sempre desgraçado. + +Quiz ainda emendar a mão, desmanchar ou pelo menos attenuar o mal que +acabava de causar, mas o Jorge percebeu-lhe as intenções, e atalhou, +despedindo-o com um gesto a que o José Maria obedeceu: + +--Pois sim, será o que tu dizes... Mas certas coisas, mais vale um +homem cosel-as comsigo mesmo. Adeus! + + + VI + + +Quando julgou o camarada já bastante longe, de modo que lhe podesse +furtar as voltas para não ser visto por elle no regresso a casa, o +Jorge saiu da courela de terra e tomou o caminho do Castello, quasi a +correr, ancioso por se encontrar com a Rosa. + +Mas foi abrandando o passo. + +O que ia dizer-lhe? + +Podia lá contar-lhe o que os maraus!... Se o fizesse, é porque a +julgava capaz d’isso, e então escusava de perder palavras, quando o que +devia fazer unicamente era... + +Teve uma hallucinação. Pareceu-lhe que via diante dos olhos a cara +d’aquelle soldado miguelista, a quem matara no cerco do Porto, +enterrando-lhe no peito a espada de um alferes de caçadores 5, que o +outro acabava de tornar cadaver, abrindo-lhe a cabeça com a coronha +da espingarda. Viu outra vez n’aquelle rosto a expressão medonha da +anciedade, da afflicção e desespero do infeliz, que assim perdia a +vida em plena mocidade. Os olhos, os olhos muito abertos, a saltarem +das orbitas, o iris completamente emmoldurado pela alva, diziam tão +energicamente o immenso odio contra o matador, que o Jorge recuou +apavorado... No fim do combate passou, por acaso, ao pé do morto. Os +olhos já estavam embaciados, mas ainda lhe expressavam o mesmo odio. + +Entrou-lhe pela primeira vez bem clara no espirito a noção de quanto +é horrivel dar a morte a um nosso similhante, e pediu a Deus que nunca +mais o puzesse n’aquella dura extremidade. Assim lhe aconteceu. Até ao +fim da guerra não tornou a matar ninguem, pelo menos que visse, que +soubesse, pois que as balas, granadas e bombas lançadas pelas boccas de +fogo que elle apontava não errariam de certo o alvo... Mas como não via +essas mortes, era como se as não fizesse. + +--Havia então de matar a Rosa!... A Rosa de quem, apesar de tudo, +gostava tanto!... + +Mas se ella effectivamente o tivesse enganado? + +Subiu-lhe outra vez á garganta uma onda. Viu tudo côr de sangue... +N’esse caso, esmigalhava-a, estraçoava-a, para que nenhum outro homem +lhe gosasse o que era seu, muito seu! + +Chegou ao pé de casa. + +Lá dentro tudo em socego. + +A Rosa, embainhando uma saia de chita, cantarolava a meia voz e em tom +sentimental a modinha da _Saudade_, em quanto a Isabel, que havia +tempos estava quasi sempre em casa d’elles, o que era muito do gosto +do Jorge, espertava o lume para se coser a ceia. A sopa de couves com +feijão fervia n’um suave romrom dentro da panella de ferro e espalhava +por toda a casa um aroma capaz de fazer crescer agua na bocca ao menos +famelico. + +Sentiu-se menos resoluto, perante aquella tranquilidade. + +--Porque todos a accusavam, havia ella de ser culpada?... E se +estivesse innocente? + +Enterneceu-se, invadido por uma grande commiseração. + +Em consciencia, quasi lhe achava desculpa, mesmo no caso de ser verdade +o que diziam. Para que a tinha escolhido assim tão nova? Deus é que +não lhe devia ter posto no coração, aquelle immenso amor! Bem sabia +que estava adiantado em annos, que tinha o rosto cavado de rugas e +o cabello quasi todo branco, mas desde que se apaixonára pela Rosa, +sentia dentro de si o viço, o frescor, a alegria dos mais formosos dias +da mocidade; respirava desafogadamente e com delicia, achando o mundo +mais bello do que nunca, e antevendo um futuro longo, feliz. Ás duas +por tres, nas vesperas do casamento, dava por si a rir, a cantar. Era +moço outra vez. + +A Rosa, certamente, é que não o via do mesmo modo. + +Tudo isto lhe passou de tropel no pensamento, ao entrar em casa. + +Mas tinha que desabafar por força, se não rebentava. + +Deu as boas tardes ás duas mulheres, lavou as mãos, sacudiu a terra do +fato e foi sentar-se n’um canto, sem saber como havia de começar. + +A sogra forneceu o pretexto, perguntando-lhe se queria que tirasse a +ceia do lume. + +--É que eu mesmo tenho vontade! resmungou o veterano. + +--Hein? inquiriu a Rosa, sem largar a costura, mas fitando os olhos no +marido. + +--Quem anda com o interior ralado, não tem vontade de comer! + +A rapariga encolheu os hombros, e continuando a coser disse por entre +dentes: + +--Nunca tive geito para adivinhações. + +--Ah! Tu não adivinhas o que eu tenho?... Pergunta-o por esse Castello, +e verás como toda a gente sabe dar-te a explicação. Ah! Que se fosse +verdade!... + +E o velho levantou-se, fazendo um gesto de ameaça. + +A rapariga empallideceu levemente, mas recobrou animo, por ver o marido +ainda duvidoso. Levantou-se tambem, arrumou a costura rapidamente, e +perguntou com grande ousadia, fingindo-se embespinhada: + +--Se fosse verdade o que? Não tenho geito para adivinhações, já disse! + +A Isabel, que, pelo sim pelo não, tinha tirado a panella do lume, veiu +postar-se ao lado da filha, para lhe accudir em caso de necessidade. + +O Jorge falou, falou, a principio com desabrimento e violencia, depois +com menos força, como se o desabafo a pouco e pouco lhe minorasse a +acuidade do tormento. Disse tudo o que o amigo lhe tinha contado, sem +nomear, já se vê, o José Maria. + +Ouviu-o a Rosa com um sorriso desdenhoso, como se désse pouca +importancia a tudo aquillo. Depois, cruzou os braços, deixou cahir +o corpo sobre a perna esquerda, e ficou a miral-o atravez dos olhos +semi-cerrados, meneando a cabeça e batendo febrilmente no chão com a +ponta do pé direito. Dir-se-hia que mal continha a impaciencia. Tinha +tido muito medo ao perigo quando o sentia longe, mas agora que o via +diante de si, affrontava-o ousadamente, chegava quasi a pensar que o +havia exagerado. + +Pela sua parte a Isabel acompanhou a objurgatoria com uma gesticulação +larga, em que a indignação e o espanto se traduziam alternadamente, e +tanto que o genro se remetteu ao silencio, bradou com toda a energia: + +--E ha quem metta a sua alma no inferno com esses falsos testemunhos! + +--Ha, sim, minha mãe! acudiu a Rosa, com voz aspera e vibrante. E +tambem ha quem não se envergonhe de os acreditar e repetir! + +--Credo, credo! Tal desgraça! murmurou a Isabel não atinando com outra +phrase. + +--Eu não digo que seja tudo verdade, acudiu o velho entibiado pela +ousadia da mulher, mas alguma coisa ha de haver! O dictado não mente: +voz do povo, voz de Deus. + +--Voz do diabo! atalhou a Rosa de prompto, e com o pescoço estendido e +a cara bem defrontada com a d’elle perguntou: Mas se acredita o que lhe +disseram, para que veiu ter commigo? Se fiz tudo isso, se não presto, +devia arredar-se de mim por uma vez! + +--Não! Lá isso não! Se tivesses feito aquellas poucas vergonhas... + +A voz estrangulou-se-lhe na garganta, que apenas emittiu um som cavo. +Ao mesmo tempo o Jorge, como se tivesse um lampejo momentaneo da +verdade, cresceu para a rapariga, os braços hirtos, crispadas as mãos, +em acção de agarral-a pelas guelas. + +--O’ Jorge! gritou a Isabel, abraçada ao genro. Olha que está +innocente! Juro-te por tudo o que quizeres! + +--Pela alma do José de Medeiros?... + +--De meu marido? titubeou a viuva. Oh! Homem, não se deve bulir em quem +está descançado ha tantos annos. + +--Pela alma de José de Medeiros?... insistiu o veterano, em voz surda. + +--Sim, sim, juro! Assim elle esteja em gloria! Juro! + +--Jurou! disse elle quasi comsigo mesmo, e accrescentou em voz ainda +mais fraca: Mas então para que anda a corja a vomitar aquellas +patifarias? + +--Porque tem inveja da gente! retorquiu a Isabel com energia mas em +tom lamentoso. Pois não sabes o que é a costumada pouca vergonha +n’este maldito Castello? Está uma alma christã muito socegada da sua +vida, trabalhando dentro da sua casa e nem por isso escapa áquellas +navalhas!... Se nem o proprio _sôr_ governador se livra!... É +ouvir o que dizem d’elle... Que anda vestido como um pelintrão ... que +não faz bem á pobreza ... que é bruto ... que é malcreado... Vale-lhe +ser solteiro, quando não... + +Nem o Jorge nem a Rosa lhe escutavam a tagarellice. Alheiada de tudo, +a rapariga tinha ido sentar-se, muito carrancuda, ao pé da janella +e olhava para o exterior. O velho, alçado no meio da casa, a cabeça +apertada entre as mãos, não sabia o que havia de crer, com a duvida, +a envolvel-o, a cingil-o, a devoral-o, como serpente, que se lhe +houvesse enroscado no corpo e lhe estivesse esmagando o peito e +fincando os dentes fundo, muito fundo, no coração. + +Por fim, ainda impressionado pelas revelações do José Maria: + +--Mas o que elle me contou?... Coisas tão bem explicadas ... parecendo +tão certas!... Quem podia inventar tudo aquillo? + +--O proprio marau que t’o foi metter no bico! + +--Cale-se! Não é capaz d’isso! + +A viuva ía responder, mas a Rosa, que adivinhou quem a tinha +denunciado, gritou-lhe do seu logar, batendo nos joelhos com as mãos +abertas. + +--Não se cance, minha mãe. Por mais que diga, creia que perde o seu +tempo. Fia-se menos na gente, do que nos seus amigos velhos. Não admira! + +--Tens razão! Sim! Foi o José Maria! exclamou a viuva. Não podia ser +outro. Ah! Que a primeira vez que o apanhar!... + +--Não foi elle! Cale a bocca! intimou o Jorge. Deus a livre de lhe ir +dizer uma palavra de tudo isto! + +--Mas ó homem!... + +--Nem palavra! Entendeu?... + +--Bem! Bem! Haja saude! Não lhe digo nada. Mas não admira que o José +Maria... Se nunca poude levar á paciencia o teu casamento!... E tinha +razão. Se eu não tivesse consentido, estavamos livres d’esta freima. +Valha-me Nossa Senhora! + +E afogou o resto da phrase n’um grande choro de carpideira, +entrecortado de soluços e arrancos. + +--Cale-se, senhora, cale-se para ahi! ordenou-lhe o velho, aturdido e +impacientado. + +--Não, senhor, não me calo! Até os proprios animaes defendem os seus +filhos. + +N’uma explosão de ternura, correu para Rosa, beijou-a e murmurou, +chegando-a a si: + +--Ainda que todos te criminem, eu sempre direi que estás innocente! + +E como a rapariga, desafeita ainda a hypocrisias, a afastasse um pouco, +sentindo apesar de tudo instinctiva repugnancia pelo que a mãe estava +fazendo, continuou queixosamente: + +--Elle é isso? Já me não queres ao pé de ti?... Tomas raiva a toda a +gente, vendo-te accusada por quem só te devia defender?... Coitadinha! + +Enxugou uma lagrima hypothetica, e com a mão no hombro do genro +exprobrou-lhe que elle fizesse côro com a malta dos invejosos. Sim! O +que os Cains não podiam levar á paciencia é que elle fosse feliz com +a Rosa, não obstante aquella differença das idades, havendo tantos +maridos tão novos como as mulheres, e até mais novos, que andavam +apontados a dedo, pelo castello e pela cidade. + +--Anda! Faze a vontade a essa corja! continuou a viuva. Sabes que mais? +Antes de vocês casarem, vieram dizer-me que o que tu querias era uma +enfermeira para te tratar, porque d’aqui a pouco havias de tornar-te, a +bem dizer, um poço de doenças, e que eu não devia, por ser uma dôr de +alma, condemnar a pobre pequena a uma vida de negra! Eu sei lá o que me +vieram buzinar aos ouvidos! Pois eu deixei-os falar, e, como ella era +muito tua amiga consenti no casamento... É que eu não sou como tu, não +faço a vontade aos maraus! + +--Já a mandaram calar, minha mãe! É o melhor que pode fazer! disse-lhe +a filha, com os nervos irritados pela discussão. + +--Bonito! Agora és tu!... Pois não me calo, em quanto não vir as coisas +no seu logar!--E com a mão posta outra vez no hombro do veterano: O’ +Jorge, deveras não estás ainda arrependido? Vê aquelle botãosinho de +rosa! Anda! Pede-lhe perdão!... + +Como elle resistisse, chegou-se á filha e tentou impellil-a para o +marido. + +A rapariga então é que não quiz e foi para o lado opposto do quarto, a +chorar de raiva. + +--Vês! Vês como a fazes penar! murmurou a Isabel ao ouvido do Jorge. + +Approximou-se da filha, aconselhando-lhe, em voz alta, que não se +apoquentasse, que não chorasse d’aquella maneira, e comminando-lhe em +voz baixa, lavar d’ali as suas mãos, se ella continuasse a fazer-se +fina. + +Ao cabo lá conseguiu que os dois se abraçassem, e exclamou satisfeita: + +--Ora até que tiveram juizinho! Bom! Vamos a isto, que a ceia já não +deve estar muito quente. + +E foi deitando o feijão com hervas para a terrina, onde já tinha migado +o pão de milho. + +Sentaram-se á meza. + +O Jorge bebeu uns goles de agua, para ver se tragava as lagrimas, +que ainda lhe entumesciam as palpebras e quasi lhe espirravam dos +olhos.--Apezar do seu desejo furioso de acreditar na innocencia da +mulher, conhecia que a felicidade lhe tinha fugido para sempre. + +A Rosa sentia no fundo do coração um certo dó por aquelle pobre velho, +que lhe queria tanto; mas não lhe perdoava os sobresaltos por que +acabava de passar, e, ainda menos, o ser obrigada, por causa d’elle, +a não ver o homem que a tinha enlouquecido. E quando horas depois o +Jorge, vencido por tanta lucta, dormia profundamente, ella, muito +arredada para o outro lado da cama, as lagrimas a escorrerem-lhe a +quatro e quatro para o travesseiro, perguntava a Deus se vida assim não +seria mil vezes peior do que a morte. + + + VII + + +Passou-se um mez. + +O Luiz, sabedor do que tinha havido em casa do Jorge, andava retrahido, +pois «não queria levar as coisas para o tragico» dizia elle, e «embora +a rapariga fosse tentadora a valer, não merecia que por sua causa +se fizessem asneiras de marca maior». Esta restricção, diga-se de +passagem, estabelecia-a tambem a respeito de todas as outras mulheres. + +Demais a Genoveva acabava de voltar da Graciosa. Era uma matronaça +ainda bem disposta, com quem o sargento, segundo rezava a chronica +escandalosa da cidade, já tinha tido os seus dares e tomares. +Encontraram-se por acaso no caminho de S. Pedro e reataram relações. +Aquella, sim, que não podia accarretar-lhe semsaborias. Se já era +livre durante a vida do seu antigo patrão, mais o estava agora, que +tinha ficado remediada com a herança deixada pelo conego Ricardo á sua +ama e enfermeira de tantos annos. E sabia fazer-se estimar. Como tinha +ainda fresco o dinheiro produzido pela venda de um predio na Graciosa, +dava amiudados presentes ao amante, que recusou a principio, cheio de +nobre desinteresse, mas que depois, não querendo fazer desfeita, os +acceitou cheio tambem de gratidão. + +A Isabel soube d’isto e para acabar de todo com os «malditos amores», +origem para ella de tantos phrenesis, foi dizer tudo á filha. + +Pareceu-lhe bom o resultado. + +Se até alli a Rosa andava exquisita, tomou-se desde então ainda mais +taciturna. Nunca saía de casa, e levava sentada o dia inteiro, sem +dizer palavra, com a vista parada, como se estivesse a olhar para +dentro de si mesma, interrogando-se. + +--Já está arrependida, julgava a Isabel. + +A Rosa não acreditou que tudo aquillo fosse verdade, se bem que o +retrahimento do amante lhe tivesse causado uma desillusão profunda. O +Luiz não a atraiçoava com a Genoveva, lá isso não!--Achava até ridicula +semelhante rivalidade; não a tomava a serio.--Mas em todo o caso, não +era homem para arrojos, nem sacrificios. Cego pelo amor, atrevera-se a +muito; agora, estava com medo das consequencias, incapaz de imital-a, +a ella, que se tinha arriscado a tudo, e que não hesitaria, se elle a +quizesse levar comsigo, em deixar o marido, receiosa tão somente por +acabar de perder-se na opinião de todos, e d’este modo não ser digna de +gosar, algum dia, a felicidade para que se julgava destinada. Pois o +Luiz não conheceria que só o amor a tinha arrastado áquellas loucuras, +e que se estivesse casada com elle, mulher nenhuma seria mais honrada? +Sim, o amante ainda havia de recompensal-a de tudo o que lhe fazia +padecer. + +Era a sua esperança, a sua crença. + +Mas o procedimento do Luiz desorientava-a, quasi lhe fazia perder a +coragem. Chegava a querer-lhe mal, mas iria padecendo até esse dia +feliz. + +Ao marido já tinha raiva. + +--Pois não era elle a causa de todas aquellas desgraças? O unico +obstaculo, que não a deixava ser feliz? + +O Jorge, pela sua parte, andava como atordoado. Parecia viver n’um +sonho. Ainda o assaltavam desesperos subitaneos, quando julgava a +denuncia verdadeira, e então sentia impetos de matal-a e matar-se; mas +em breve acalmava, porque lhe acudiam á memoria as explicações dadas +pelas duas mulheres.--A mãe não podia estar combinada com a filha! + +Via a Rosa melancholica e taciturna, mas via-a! Tinha-a sempre alli, +como coisa legitimamente sua. Possuia-a sem medo de ninguem. Não +trocava a sua sorte pela de outro, ainda que fosse verdade o que... +Não! Era uma falsidade, uma perfeita mentira! + +--Não me perdoou ainda eu julgal-a tão mal e tem razão, pensava o +Jorge, por vel-a n’aquella attitude. E até se arrependia de não ter +forçado o amigo a declarar-lhe o nome do mentiroso, para se vingar, e +vingar a sua pobre mulher, que estava innocente. + +Lembrava-se de pedir-lhe perdão, de propor-lhe sairem da Terceira +para S. Miguel ou para outro logar ainda mais distante, onde ninguem +os conhecesse, onde não chegasse a calumnia. Mas ao encontral-a tão +reservada, calava se, perdia o animo, e a duvida logo recomeçava no seu +trabalho surdo e implacavel. + +--Pois senhores, dizia comsigo a Isabel fiada n’este apparente socego, +pelos modos não chega a haver trabuzana. Tenho de levar um cyrio á +Senhora do Livramento. + +--Muito cuidadinho, recommendava ella, quando alguma vez ficava a sós +com a filha. O Jorge está aqui, está certo de que tudo foi mentira. +Mas ai de ti, se lhe fizesses voltar as desconfianças. Era capaz de +matar-te! + +--Entre mortos e feridos sempre ha de escapar alguem, objectava a +rapariga. E espero em Deus mandal-o adeante. + + + VIII + + +No dia de S. Pedro á tarde a Isabel aconselhou á filha e ao genro que +fossem dar um passeio, e como suppunha que não lhes agradassem os +sitios mais concorridos, lembrou o monte Brazil. Mettidos entre quatro +paredes, sem nunca se distrahirem, pensava ella, estariam sempre de mau +humor, e difficilmente acabariam de congraçar-se. + +Não os acompanhou, porque a sós poderiam entender-se melhor. De mais a +mais, já tinha feito bem o seu dever. + +Os dois acceitaram o conselho, e foram pelo caminho, que a meia encosta +ladeia o monte, passando á ilharga das ruinas da antiga casa de +recreio dos governadores da praça, e vae ter a uma plataforma de rocha +sobranceira ao mar. + +Pelas aguas tranquillas da angra, que deu o nome á cidade, deslisavam +alguns barcos, onde familias da burguezia e do povo andavam a +recrear-se em honra do santo pescador. + +Chegados ao extremo do caminho, o velho sentou-se n’um comorosinho +coberto de relva já amarellecida pela soalheira, e a Rosa, para estar +bem longe d’elle, foi para a beira da plataforma, e descahiu os olhos +para o mar. Avistou-o em baixo, ao deante da rampa, que desce em +vertiginoso declive e termina em empinada muralha banhada na base pelas +aguas, alli escuras e profundas. + +Um barco ia rodeando o monte, de volta para a cidade. A Rosa conheceu +logo os passageiros. Eram o dr. Brum, um rapaz moreno e cheio de vida, +e a mulher, uma loura de afamada belleza. Tinham casado por grande +paixão, uns quatro mezes antes. Ella reclinava a cabeça no hombro do +marido. Pareciam ainda na lua de mel. + +--Como eram felizes! + +N’esta occasião o veterano, ainda no mesmo logar, suspirou, entregue +aos seus tristes pensamentos. + +--Que suspirasse! Que padecesse! Que tinha ella com isso? O que lhe +importava, era o impecilho do velho tel-a ido buscar, para reduzil-a +áquella desgraça. Maldito! + +Desejosa de ver mais tempo o barco, já quasi a occultar-se por traz +da bateria de Santo Antonio dos artilheiros, desceu dois passos pelo +ingreme talude. + +Em direcção contraria, e como o primeiro a curta distancia da costa, +vogava outro bote. Á ré tambem um homem e uma mulher. + +Provavelmente mais um casal feliz. + +Elle era um militar, um sargento. Já se lhe distinguiam as tres divisas +verdes. + +Tão alegres aquelles dois, que vinham tocando e cantando. A voz +abarytonada, que entoava o fado, conhecia-a ella. + +--Não! Não era possivel! + +Debruçou-se mais, correndo quasi o risco de precipitar-se. + +--Sim! Eram o Luiz e a Genoveva. + +Com os olhos a saltarem das orbitas e os punhos fechados para o barco, +trovejou phrenéticamente: + +--Ah! Grandes maraus! Grandes maraus! + +O Jorge pareceu acordar de um sonho, levantou-se, olhou para o bote e +apesar da distancia reconheceu o sargento. + +--Até que te apanhei! gritou elle, travando rudemente do pulso da +rapariga. + +--Hein! O que é?... Largue-me! Largue-me! + +E voltou os olhos para o barco. + +--Não olhes para lá, olha para mim, para mim, que sou teu marido! Anda! +Nega ainda historia com o sargento... Nega! + +--Não nego, e arrependida estou eu de ter negado a primeira vez. Mas +largue-me! Arre!... + +Com um esforço violento escapou-se-lhe da mão e como sentisse o pulso a +doer, bradou fula de raiva: + +--_Pisar-me_ assim! Pedaço de bruto! + +--Olha que eu desfaço-te, grande diabo! E não te cae a cara de +vergonha, por veres que sei tudo! Sempre era muito estupido!... Foi +preciso que me mettesses a verdade pelos olhos dentro, ao avistares o +sargento com outra mulher! Eu bem o reconheci, accrescentou o velho e +apontou para o rival, que mal suspeitava o que alli estava acontecendo +por sua causa. Ah! Padeces o mesmo que me tens feito padecer? Ainda +bem! Ainda bem! + +Ella ia responder com uma insolencia, mas calou-se, porque a vóz do +sargento, subindo pela encosta, trouxe-lhe ao ouvido fragmentos de uma +quadra do fado, de envolta com os arpejos da guitarra. + +Sabia-a de cór, de a ter ouvido ao amante. + +--Perdes o tempo a escutar, que não é para ti que elle está cantando! +disse-lhe o Jorge, com sarcasmo. + +Voltou-se enraivecida para o marido, mas, querendo feril-o mais +cruelmente, descambou para a troça. + +--Então não querem ver o _fedôr_ do velho! ejaculou, com o dedo +apontado para elle e atravez de uma gargalhada. Julga talvez que se o +Luiz me não quizesse mais, ganhava com isso alguma coisa? Nicles, meu +menino! Não é o mel para a bocca do asno. + +E cuspiu-lhe outra risada. + +O Jorge ouvia-a estupefacto, sem acreditar. + +Para se vingar em alguem, a Rosa continuava nos improperios, como se +a desesperação, que dias e dias tinha represado dentro em si, achando +finalmente sahida, golfasse n’um vomito asqueroso. + +--Julgou o mostrengo que era só appetecer uma raparigota, que ainda +mal chegava a mulher, e chamar-lhe sua! Tal desgraça! Juntar a morte á +vida!... Que peccado! O avô casado com a neta! Ah! Ah! Ah! + +Meio suffocado pelo desespero e pelo asco, mas curioso de saber até +onde chegaria aquella abjecção, o velho quiz ouvil-a. Não poude +esquivar-se todavia a dizer-lhe com desprezo: + +--Grande porca! + +--Porco é você! Um porco, que me sujou casando commigo! Porcos os +seus beijos! Desde o dia em que me levou á egreja, tenho nojo de mim! +Veja-se n’um espelho, seu velho tinhoso, e diga-me depois se eu era +para a sua bocca! + +O veterano cresceu para ella, chamando-lhe: + +--_Valhaca!_ Surrão! + +Quiz agarral-a, porém a rapariga furtou-lhe as voltas, e continuou a +provocal-o: + +--Muito lhe tenho eu aturado! Nenhuma outra soffria tanto. O que eu lhe +fiz, não é nem a metade do que você merece! + +--Eu mato-te, diabo, eu mato-te! Nem já sequer te vejo! + +--Nunca me tivesse visto! Oxalá! Fique sabendo que não gosto de você, +nem gostei nunca, nunca! D’elle! D’elle, unicamente!... + +E apontou na direcção do bote, que os dois, afastados um pouco da +rampa, não podiam agora ver. + +Ouvia-a e cuidava já não ser d’este mundo, ou que tudo se anniquilara +em volta de si. Ainda os espreitava o sol por traz do monte, e elle +julgava-se envolto nas trevas da noite. + +--Pois aquella creança, que havia pouco se lhe afigurava tão +innocente e pura, como nas tardes em que ella ia levar-lhe o jantar, +muito rosada, de vestidinhos curtos, saltitante e alegre que nem um +passarinho--aquella creança podia ser a malvada que para alli estava a +falar?! Mais nojenta e descarada do que essas mulheres, que á noite, +quando lhe succedia voltar para o castello mais tarde, o perseguiam +pelas ruas da cidade, com as galochas de pau soando estridulamente nas +pedras da calçada, e que se lhe offereciam desbragadas, em tróca de +pouco dinheiro! Pois aquillo era a sua mulher, a sua querida mulher?! + +No emtanto a Rosa tinha-se abeirado outra vez da escarpa, e com os +olhos a brilharem seguia o barco, que se ia afastando de terra. + +--Era aquillo, era! Peior ainda que as mulheres de má vida, podia dar +lições a todas ellas! + +E para que não existisse um monstro assim, o Jorge correu para a +mulher, agarrou-a pela cintura e atirou-a com força pela rocha abaixo, +dizendo: + +--Anda! Vae ter com elle! + +O corpo cahiu aos resaltos pela vertente e foi pondo salpicos de sangue +nas arestas que o esfarrapavam, em quanto a voz do sargento Luiz +garganteava ao longe, toda cheia de requebros: + + Mal os meus olhos te viram + O meu coração te adorou, + Na cadeia dos teus braços + Minha alma presa ficou. + + + IX + + +O Jorge não poude seguir a mulher no caminho da morte. + +Quando ia para despenhar-se, deitaram-lhe a mão o corneteiro-mór +reformado e outro homem. + +Preso para conselho de guerra, foi julgado tres mezes depois e +confessou o crime, sem todavia declarar, por mais instancias que lhe +fizessem, os motivos a que tinha obedecido. Os insultos e provocações +com que a Rosa o allucinara, contaram-os ao conselho aquellas duas +testemunhas. Estavam perto, mas não tinham sabido intervir a tempo de +evitar a catastrophe. + +Em quanto duraram estes depoimentos, o Jorge, envergonhado não por si +mas por ella, tapava o rosto e cravava na testa os dedos contrahidos. + +Impressionou vivamente ao auditorio o discurso do defensor. Quem +apresentava aquella honrosa biographia militar, allegou o moço +official, não era de certo um assassino. Tinha feito uma morte, +praticando aliás um acto de verdadeira justiça social, mas não +commettera um crime, pois estava inteiramente privado da intelligencia +do mal que fazia, o que era previsto pelo codigo. + +No fim, o presidente perguntou ao accusado se tinha mais alguma coisa +que allegar em sua defeza. + +--A minha pena toda é que V. S.^{as} não possam mandar-me varar por +quatro balas, respondeu o velho, e não pronunciou mais palavra. + +Foi absolvido por unanimidade. + +O José Maria acompanhou-o a casa, e no intuito de consolal-o disse-lhe +que a Rosa só tinha tido o que merecia. + +--Cala-te, homem, cala-te! vociferou o Jorge, e atirou-se para cima da +cama, onde ficou deitado, com a cara voltada para a parede, os olhos +abertos e inexpressivos. + +N’isto chegou-lhe á porta a Isabel e não se fartou de injurial-o. + +--Peiores que o matador de sua filha, só os malvados do conselho de +guerra, que o tinham absolvido! Tudo uma cafila! + +O José Maria dispunha-se a correr com ella, quando a Josepha Julia e a +Luiza Braga, que vinham á descoberta, a levaram d’alli. + +--Deixa-o lá, dizia-lhe a Luiza, com o braço mettido no da viuva. Bem +castigado ficou elle, perdendo a sua Rosa. Tens razão para lhe querer +mal, mas, diga-se a verdade, o que a tua filha fez ao Jorge... + +--E tu e as mais o que fazem? berrou a Isabel. Mas logo, cahindo no tom +lastimoso, ajuntou: O corpo da pobresinha lá está no fundo do mar ... +ou talvez fosse comido por algum peixe! + +Seguiram caladas pela rua adeante. + +--Se todos os maridos, que teem razão de queixa das mulheres, +seguissem a receita do Jorge--meditava a Josepha Julia, com azedume de +solteirona--os peixes, de gordos, chegariam a não poder nadar! + +Depois, lembrou-se de uma novidade capaz de alegrar a Isabel: + +--Não sabeis o que se conta da mulher do sargento Luiz? + +--Da antiga ama do conego Ricardo? perguntou, immediatamente a Luiza. + +--Isso! Que já a prega na menina do olho ao marido, com um estudante do +seminario! + +--E elle que se ha de affligir! acudiu a Isabel com rancor. Não lhe +tirem os moios de renda deixados pelo conego, pois quanto ao mais... + + * * * * * + +Sempre cabisbaixo, andando á pressa e murmurando uma vez por outra +palavras que ninguem percebia, o Jorge só era visto d’alli em deante +nas ruas do castello, quando ia de manhã para o armazem do material de +guerra ou para a terra do monte Brazil, e á tardinha, quando recolhia. + +Quem de noite lhe passasse á porta, mesmo fóra de horas, via pelas +frinchas a claridade da candeia, e sentia lá dentro, com frequencia, os +passos do velho, medindo em todos os sentidos a casa terrea, e ouvia de +quando em quando um suspiro mal reprimido. Quando lhe perguntavam se +queria alguma cousa não respondia e ficava á escuta, para continuar na +mesma, apenas ia longe o importuno. + +Uma noite o José Maria, embora soubesse que o Jorge, como sempre, o +receberia mal, entrou-lhe á força em casa e fez-lhe ver que elle estava +dando cabo de si, o que era um grande peccado. + +--A vida, é Nosso Senhor quem a dá, só elle a póde tirar, retorquiu +o Jorge. Cuidas que se não acreditasse n’isto, já não tinha ha que +seculos?... + +E sem rematar a phrase, continuou a passeiar pela casa, alheio a quanto +o rodeava. + + * * * * * + +Em algumas tardes ia sentar-se na rocha, no mesmo sitio d’onde tinha +despenhado a mulher, e deixava-se alli ficar horas esquecidas, olhando +para o mar, talvez a pedir-lhe que lhe restituisse a sua Rosa, de quem +elle, apezar de tudo, ainda gostava tanto! + + +[Ilustração] + + + + +[Ilustração] + + + + + Os Filhos Do Frade + + +FREI Antonio entrou na cella do guardião, tremulo, sem forças. O +religioso que o chamou, dissera-lhe apenas: + +--Cuido que é para ires a casa do morgado da Fajã. + +O guardião, gordo, pausado, pachorrento, disse a uma e uma estas +palavras, que iam fazendo estalar de angustia o coração do franciscano: + +--Frei Antonio, o morgado da Fajã manda-me pedir um irmão, que vá +acompanhar esta noite, junto do caixão, a menina Beatriz, que morreu +ainda agora, de repente. Escolhi a Vossa Reverendissima. Vá buscar o +seu breviario e ponha-se a caminho, que d’aqui até lá acima ao monte, +ainda é boa a distancia. + +O frade saiu d’alli cambaleando, estonteado. Por milagre chegou á sua +cella, sem cahir ao comprido, sobre as lages do corredor. + +Mal fechou a porta, atirou-se de bruços para cima do catre, e mordeu a +coberta de lã grosseira, n’um paroxismo louco, abafando os gritos que +lhe irrompiam do peito em catadupa. + +Depois, foi a pouco e pouco serenando, as lagrimas correram-lhe dos +olhos em fio, e o franciscano esteve tempo infinito, de joelhos no +chão, com os olhos erguidos para o alto, mal fitando atravez do caudal +do choro a imagem de um Christo, que estendia lamentoso os braços sobre +o madeiro da Cruz, n’uma attitude de immensa angustia resignada. + +E assaltou-lhe a memoria a recordação de uma dôr egual, a da perda da +sua mãe, que morrera assim, de repente, estando a falar com elle. Dôr +egual, não! que maior que todas é a de perder-se a mulher amada. + +E elle idolatrava-a com tão immaculado culto, que nem a vista da +donzella profanára aquelle amor. Só agora, declarada a medonha +catastrophe, só depois que o guardião dissera que Beatriz tinha +morrido, frei Antonio percebeu o que eram aquelles extasis, aquelles +arroubamentos ineffaveis, de quando via, ao longo dos caminhos ou na +egreja, a figura gentil e fascinante da morgadinha. Ás vezes, quando +surprehendia no peito o intenso tumultuar da paixão, illudia-se, +rebuscava na memoria passagens dos livros santos e acreditava que +ascetas teriam tido como elle, e mais do que elle ainda, o indizivel +goso de antever em vida apparições como essa, mensageiros de Deus +destinados a fazer-nos crêr nos archanjos e seraphins. + +Mas este mysticismo acabava perante a nova fatal. Não! O anjo era-o, +mas da terra! Morto, desfolhado aquelle lyrio de fragrancia extrema: +impossivel, impossivel!... + +Saiu da portaria do convento quasi a correr, e como lá fóra, pelo campo +matisado de flores, o sol esparzia ondas de luz, e nas carvalheiras os +melros trinavam alegremente, soltou-se-lhe do peito um longo suspiro +de satisfação e o rosto coloriu-se-lhe de prazer. Se Beatriz houvesse +morrido, o sol ter-se-hia apagado e os passaros nunca mais soltariam os +seus gorgeios. + + * * * * * + +Quando chegou a casa do morgado, as trevas encheram-lhe de novo a +alma. Ao fundo do pateo, n’um quarto baixo, avistou, apenas acabava de +empurrar a porta da rua, que estava entreaberta, um grupo de mulheres +erguendo as mãos ao ceo, e soluçando muito. + +Subiu a escada de pedra, passou o alpendre, e logo na grande sala da +habitação fidalga encontrou o pobre pae e viu no rosto afogueado do +velho a verdade inteira. + +Tinha morrido Beatriz. + +Lá dentro, no seu quarto virginal, transformado em capella mortuaria, +estava a donzella estendida sobre a cama, em quanto não chegava o +caixão, que devia contel-a para sempre, e onde se passaria o drama +horrivel da podridão, quando aquelles labios, ha pouco avermelhados +pelo sangue dos quinze annos, e aquella carne, mais branca e macia do +que as petalas das açucenas, fossem devorados lentamente, cruelmente, +pelos vermes repugnantes. + +O frade olhou-a e descreu outra vez da morte. Bem a viu immovel, côr +de cera, esmaecidas as rosas das faces; não acreditou. E quanto mais a +via, mais a duvida o animava, mais o espirito se lhe erguia para Deus, +interrogando, mas não pedindo. Seria excusado implorar-lhe um milagre +para resuscitar Beatriz, porque Beatriz não podia estar morta! + +Ainda assim os labios de frei Antonio murmuravam rezas, e quando a +noite já ia adeantada, e todos em casa se tinham recolhido, ainda no +quarto funebre se ouviam as orações do religioso, quebrando aquelle +silencio de coisas mortas, e echoando flebilmente até aos pannos +negros, que forravam as paredes, e de que se destacavam, a um lado, as +chammas compridas, pallidas e immoveis dos quatro cyrios do altar. + +Sempre com a mesma crença, quando ficou só e sentiu o ultimo alento +de vida extinguir-se no resto da casa, levantou-se do logar aonde +ajoelhara e chegou-se para o caixão. + +Abertas para os lados as duas meias tampas forradas de setim branco, +mostravam atravez de um véu de tule a donzella. O frade viu-a e recuou +inconsciente, como se houvera profanado uma alcova virginal. Coisa +alguma d’aquelle espectaculo lhe trazia ao pensamento a ideia da morte. + +Todos, sem duvida, se enganavam. Era horrivel deixar que a levassem +para debaixo das lages da egreja, para o frio jazigo da familia, quando +ella não estava morta, quando a mocidade nunca se expandira tão +exuberante no rosto de Beatriz! + +Chegou-se mais. Ergueu o veu, quiz encostar o ouvido ao peito da +donzella, e perscrutar-lhe as palpitações do coração. Não poude. As +tampas do caixão não lh’o permittiam. Pousou a mão tremula regelada na +testa da morgadinha, e pareceu-lhe receber uma impressão de calor. + +[Ilustração] + +--Então estava viva! + +Quiz chamar alguem, correu para a porta, mas lembrou-se dos tristes +sorrisos de desconsolo, que tinham respondido ás suas duvidas, algumas +horas mais cedo. + +Tornou para junto d’ella. + +--Ah! Se podesse sentir-lhe pulsar o coração!... Porque havia de +hesitar? + +Levantou o corpo um quasi nada, e em seguida um pouco mais, +introduzindo as mãos tremulas por baixo dos hombros da donzella. Sem +saber como tirou-a para fóra do caixão, e amparando-a nos braços, e +achegando-a a si, qual mãe que aperta ao seio um filho estremecido, +dirigiu-se cambaleando, quasi louco, para a cadeira de espalda onde +estivera velando o morgado. + +Fitou-a, e julgou vel-a sorrir. Chegou-lhe ao coração o ouvido e sentiu +palpitações. + +Então na sua alma operou-se uma transformação sobrehumana. Aquella +quadra já não foi para elle camara mortuaria, mas alcova nupcial, e o +frade, perdida a razão, esqueceu tudo, e julgou realidade o que mais de +uma vez se atrevera a phantasiar, e viu-se esposo de Beatriz, sentindo +nos seus braços o corpo da donzella, rendido, indefeso, e gosou toda a +suprema volupia de um primeiro beijo de amor. + + * * * * * + +De repente ouviu-se um gemido doloroso, quasi um grito! + +O frade ergueu-se do chão, de golpe. + +Beatriz, prostrada por terra, tinha effectivamente voltado á vida, e +acabava de sair do estado cataleptico, que todos tinham julgado morte. + +Aterrado, espavorido, fugiu do palacio, soltando brados. + +A familia do morgado acudiu e poude adivinhar, horrorisada, o que se +tinha passado. + + * * * * * + +Sessenta annos mais tarde, ha pouco tempo ainda, contava-se esta +historia em Santa Cruz, na Madeira, para explicar o motivo por que dois +velhinhos, muito parecidos e da mesma altura, e que andavam sempre +juntos, eram chamados os _filhos do frade_. + +Havia quem dissesse que eram gemeos, mas a opinião encontrava alguns +incredulos. + +Consta-me até que um investigador consciencioso estabeleceu, com +documentos irrefragaveis, que um dos irmãos era onze mezes mais velho +do que o outro, porque Beatriz e Frei Antonio... + +Silencio! Não é bom revolver o pó das sepulturas. + + +[Ilustração] + + + + +[Ilustração] + + + O Primeiro Desengano + + +Vestiu pela primeira vez fatos de senhora, no dia em que fez quatorze +annos. + +Ainda estou a vel-a entrar pela sala dentro muito envergonhada, +tropeçando na fimbria do vestido comprido, não sabendo se devia rir ou +zangar-se com os gracejos que lhe choviam de todos os lados. + +Afinal foi sentar-se ao pé de uma meza, e tirou da floreira uma +rosa, que tratou de desfolhar e de triturar, persuadida talvez de +que escapava assim á attenção geral. Tivesse mais dois ou tres annos +e desejaria prolongar o sentimento de admiração excitado pela sua +formosura juvenil, em que transparecia a candura e singeleza da +creança, da _baby_ da vespera, alliadas á fascinação da mulher +que despontava. + +Do meu canto, observava aquella esplendida adolescencia, que assim +desabrochava de subito, e quasi não podia acreditar que os poucos +mezes, que a Georgina tinha estado longe da Madeira, assim houvessem +transformado a minha antiga companheira de brinquedos. + +E ao vel-a tão differente, sentia em mim o que quer que fosse novo +e estranho, e, desejando aliás approximar-me d’ella e contemplal-a +muito tempo, tinha a dubia percepção de que alguma coisa nos separava +agora, tornando completo impossivel o falarmo-nos como d’antes, quando, +n’aquellas manhãs de julho tépidas e luminosas, iamos com um rancho +enorme para o banho do mar, e a Georgina, alegre e buliçosa como um +passarinho, pulava na frente do bando, com as suas perninhas brancas e +rosadas, que appareciam abaixo do vestido de cambraya. + +Em quanto ella e as senhoras entravam para as barracas enfileiradas a +curta distancia da babugem da maré, nós, os homens--eu já me incluia +no rol--enfiavamos cá fóra os horriveis fatos de banho, quasi sempre á +direita das barracas, para nos livrarmos do sol, que surgia por traz do +cabo Garajao e começava a faiscar nas vidraças do Funchal. + +Que bons aquelles banhos! + +Era um alvoroço enorme, uma exuberante alegria, quando entravamos +de corrida pelo mar dentro, e, passada a primeira sensação de frio, +gosavamos a deliciosa frescura, fluctuando ao impulso da onda, de mãos +dadas, divisando atravez da limpidez da agua, as pedrinhas brancas +semeadas entre os calhaus do fundo ... e as formas tremulas, fugitivas +das banhistas. Sobre o mar, levemente encrespado pela brisa, formava-se +para o lado do nascente uma esteira luminosa, coruscante. De quando em +quando um de nós fazia repuxar a agua em myriades de gotas, que cahiam +como chuva de fogo, até irem perder-se na espuma branca de neve. + +Uma vez a Georgina apanhou um grande susto. Presumindo excessivamente +das suas aptidões de nadadora principiante, quiz afastar-se da +terra, mas lembrou-se de repente de que já não teria pé, de que ia +afogar-se, imaginou-se até levada por uma resaca, e poz-se a bracejar +desordenadamente, gritando, bebendo agua, como se lhe tivessem dado +uma _enterra_. Soffreria provavelmente a morte da Virginia de +Bernardin de Saint-Piérre, sem o acompanhamento grandioso e bulhento +do temporal, se eu não a tivesse agarrado a tempo e conduzido á praia, +Deus sabe com que difficuldade. + +Imagine-se a ufania que me causava a recordação da façanha, no momento +em que a Georgina me apparecia sob aquelle aspecto novissimo! + +--Ah! Se podesse tornar a salval-a, trazendo-a apertada nos braços!... +Formulava mentalmente este desejo, que parecia de certo uma enormidade +ao meu pudor dos quinze annos, quando notei que a Georgina olhava +fixamente para o meu lado. + +Desviou a vista, quando a encarei, mas d’alli a pouco estava a olhar +outra vez. + +Senti então um dos maiores prazeres da minha vida. Comprehendi o +motivo por que a julgava outra, adivinhei o que era o sentimento novo +que me dominava. + +Valeu-me para a descoberta o andar a ler o _Visconde de Bragelonne_, no +ponto em que se descreve a seducção de La Vallière. Lembrei-me até de +que o maroto do Alexandre Dumas torna quasi cumplices na queda da pobre +Luiza uns passarinhos, que havia na sala e que no momento em que Luiz +XIV cae aos pés da namorada, chilream dentro das douradas gaiolas uma +toada de indizivel concupiscencia, o que ainda mais entontece a futura +carmelita. Ora emquanto eu olhava para a Georgina, tambem cantava um +passaro, um melro, empoleirado n’uma magnolia do jardim. Achei de bom +agouro a coincidencia. + +É claro que não emparelhava a Georgina com a La Vallière--via-a como +aquella a quem havia de ser unido para sempre, visto que o amor assim +nos destinara um para o outro. + +Com uns restos de duvida, olhei em roda de mim. + +No lado da sala onde eu estava, não havia mais nenhum homem, a não ser +o escrivão de fazenda, sujeito de grande bigodeira e voz soturna, que +recitava pelas salas o _Noivado do sepulchro_ e a _Doida de +Albano_. + +Era solteiro, mas tinha mais de tres vezes a edade de Georgina. Fiquei +radiante. Era para mim com certeza, que estava olhando. D’alli a pouco +fomos jantar. + +Não comi nada, porque ella, apesar de ter ficado ao pé de mim, não me +deu a minima attenção. + +Como já tambem conhecia a existencia das _coquettes_, perguntei a +mim mesmo se a Georgina seria uma d’ellas, e resolvi provocar o mais +cedo possivel uma explicação decisiva. + +Deparou-se-me o ensejo n’aquella mesma tarde. + +Achavamo-nos os dois no extremo do mirante sobre o Caminho do Monte, +vendo os romeiros que voltavam de festejar a Senhora de agosto. + +Os mais não podiam ouvir-nos, entretidos como estavam por um dos +espectaculos mais pittorescos dos costumes populares madeirenses. O +som dos machetinhos de Braga, machetes de rajão e violas francezas, +e o sussurro dos descantes e falatorio dos romeiros abafariam alguma +palavra que me escapasse em voz mais alta. + +Depois de lhe disparar uma declaração, fiz-lhe não sei quantas +recriminações, pelo que me tinha feito soffrer durante o jantar. + +A Georgina escutou-me cheia de pasmo, desviou-se um pouco, e medindo-me +dos bicos dos pés até á cabeça, disse-me com um supremo desdem: + +--O menino endoideceu! Não sabe que é ainda um fedelho e que eu já sou +uma senhora! Isso ha de ser somno, por força. O que o Luizinho deve +fazer, é pedir á sua mamã que o metta mais cedo na cama! + +Fulo de raiva, ia dizer-lhe uma insolencia, quando se approximaram de +nós a mãe d’ella e a minha. + + * * * * * + +D’alli a dois mezes casava a Georgina com o escrivão de fazenda, e +d’alli a dois annos ... estava eu vingado. + + +[Ilustração] + + + + + A Alegria do Mar + + +O Manuel João abalou dos Cedros aos primeiros arreboes da madrugada, e, +apezar de já ter os seus sessenta bem puxados, não afrouxou na extensa +caminhada até á Horta, a _villa_, como o povo do Fayal teima em +chamar á sua pequena cidade. + +Quando chegou ao alto da Lomba, deu um suspiro de satisfação. _A +Alegria do Mar_ ainda não estava no ancoradouro. Só viu fundeado um +patacho e um hiate, e, navegando do Pico para S. Jorge, o paquete da +carreira, que tinha chegado, na vespera, das Flores, com a noticia de +já lá estar a barca, onde o filho voltava dos Estados Unidos. + +Ha que annos o rapaz estava ausente, e quasi sempre sem escrever! Mas +o pae não estranhava a falta de noticias. Quando o José se despediu +d’elle e da mãe, a Andreza, pediu-lhe que escrevesse muitas vezes, o +que o Manuel João contrariou, dizendo bruscamente: + +--Deixa falar tua mãe, e só gastes o tempo a trabalhar! Cartas são +papeis, não servem de nada. Se poderes mandar alguma coisa, manda +dinheiro. É com elle que a gente se governa! + +O rapaz quasi nada lhes mandou, porque não obstante a grande lida em +que andava constantemente, poucas economias conseguiu coalhar. Só nos +ultimos tempos havia tido uma aragem de sorte, de maneira que voltava +remediado. O Francisco Madruga, um visinho chegado dois mezes antes, +contou aos dois velhos que o José tinha um collete de pelles todo +acolchoado de bellas aguias--aquellas moedas de ouro tamanhas e tão +luzidias, que, mal comparadas, fazem lembrar o sol abençoado, e que são +como elle fonte de vida e de alegria! + +Tendo descido a ladeira da Conceição, o velho atravessou a disforme +e corcovada ponte, e entrou na cidade, indo parar no caes proximo do +castello de Santa Cruz. + +Estava a informar-se, quando o facho do monte da Guia começou a fazer +signaes. + +--Talvez aquellas bandeirinhas lhe estejam a responder, lembrou um +barqueiro, apontando para o alto da collina. + +Effectivamente era o annuncio de que já se avistava a barca. + +--Com este vento, a _Alegria do Mar_ não dá fundo antes d’essas +quatro horas, opinou o mesmo barqueiro. + +--Ou das cinco, resmungou outro. + +Como lhe sobrava tempo, o Manuel João foi comer alguma coisa a casa de +um primo, que tinha _botequim_ defronte do mercado. + + * * * * * + +A barca deitou ferro á tardinha. + +Acossadas pelo vento sueste, pelo _carpinteiro_, as vagas batiam +com força recrescente na muralha da cidade e espadanavam com violencia, +ou formavam grandes rolos na areia. Saltando a cada instante para +o caes, a agua varria-o, de lado a lado, para logo se despenhar em +abundante cascata. Ás vezes, do meio do tapete espumoso apenas emergia, +como ilha exotica, o guindaste de ferro, muito luzidio com os banhos +consecutivos. + +Á cautela, os barcos varados no caes tinham sido puxados para a rampa +superior. + +Tanto que a _Alegria do mar_ fundeou, appareceu, do lado do +castello, o capitão do porto, seguido do patrão-mór, ambos embrulhados +em gabões impermeaveis. Só ao chegarem á porta da barraca da alfandega, +é que viram ser impossivel a execução do serviço. + +--A minha pena, disse o official de marinha, é não ter mandado vir para +terra as tripulações dos navios, que já cá estavam. O barometro desceu +tanto!... + +--É que a brincadeira vae ser um boccado seria, alvitrou o patrão-mór, +designando o céo com um gesto circular. + +O Manuel João, que tinha acabado de voltar e que os ouviu, perdeu o +acanhamento e perguntou afflicto: + +--Ha perigo, sr. capitão? Valha-me Nossa Senhora! Ha perigo de a barca +vir a terra?! Ai! O meu filho, o meu rico filho!... + +Compadeceu-se o official de marinha e para socegal-o disse-lhe que +o navio tinha boas amarras, que o temporal havia de amainar, e que +ficasse elle certo de que na manhã seguinte veria o filho ao pé de si, +são e escorreito. + +--Deus Nosso Senhor o ouça! Mas que noite eu vou passar!... + +E como do alto do caes não via a barca, foi em busca de um sitio d’onde +ao menos podesse enxergar o navio, em que estava o José. Ah! Em casa +do primo havia uma _falsa_ fronteira ao ancoradouro!... D’alli +a pedaço lá estava o Manuel João, olhando para o mar por um oculo +americano que o primo lhe emprestou, e que em tempo claro punha a +Magdalena mesmo ao pé da gente, apezar das cinco milhas que ella dista +do Fayal. + +Ainda bruxuleavam os ultimos clarões da tarde. Depois de muitas +tentativas, o velho lá conseguiu descobrir o tombadilho da barca +... e tres homens... Se algum d’elles seria o filho?... Pareceu-lhe +que sim!... O mais alto!... Bastava-lhe poder vel-o bem um instante +sequer... Em vão!... Quanto primeiro lobrigara, desvaneceu-se de todo +com as trevas que augmentavam. + +Os olhos, a arderem como se os picassem alfinetes, deixaram de ver. +Não! Viram logo depois uma luzinha, a do pharol de bordo, passar e +repassar no vidro immovel do oculo, a compasso com os balanços do +navio, n’um movimento de vaevem, como a dizer-lhe que não! que não! +que elle não veria o filho! Atordoado, fechou a janella, a que já era +difficil estar, pela violencia da ventania. + +Em baixo, no botequim, o primo deu-lhe animo, e, repetindo a prophecia +do capitão do porto, affirmou-lhe que o José, d’alli a meia duzia de +horas, lhe metteria os tampos dentro com um abraço. + +--Sabes que mais? Vae dormir, que é a maneira de não sentires passar o +tempo. + +Como achou boa a lembrança, o velho deitou-se para cima de um monte de +saccos de milho, e adormeceu pouco depois, a rezar um padre nosso pelo +José e por todos os que andavam sobre as aguas do mar. + + * * * * * + +Por volta da meia noite, acordou estremunhado. + +--Está aqui, está na areia! dizia uma voz, que elle não conheceu. Ande, +ó tiosinho, dê-me um copo de aguardente da terra, para me consolar o +interior! Bem vê que estou como um pinto. + +Assomou á porta e perguntou ao barqueiro, que assim falava: + +--A _Alegria do Mar_ é que está em perigo? + +--Bem visto que sim! Aquella já fez a sua ultima viagem. Está aqui, +está feita em estilhas. + +O Manuel João desatou a correr pela porta fóra, como um doido, e pela +primeira travessa que topou á mão direita, arremetteu para o lado do +mar. + +No sitio aonde foi ter, as vagas não batiam na muralha, porque lhes +quebrava a furia um cómoro de areia. + +Ninguem! Nenhum som de voz humana, atravez dos bramidos do temporal! +Não viriam accudir áquelles desgraçados?... Sim! Ao pé da alfandega, +lampejou um clarão avermelhado. Archotes, que marcavam ao navio em +perigo o sitio melhor para encalhar. + +--Mas a _Alegria do Mar_ obedeceria ainda ao governo?... + +N’isto surgiram ao pé do velho uns vultos, que nem deram por elle, tão +entretidos estavam em observar o ancoradouro. + +--Aqui é que ella vem dar! + +--_Eh, home!_ Como o sabes? + +--Verás! Mas queira Deus que d’esta vez não seja, como quando se perdeu +a baleeira americana. Afogou-se teu irmão e não apanhámos quasi nada. + +--Nanja agora. Vem muita familia com dinheiro. + +--Ah, _seus_ maraus! _Seus_ grandes ladrões! bradou furioso o Manuel +João crescendo para os _tarraços_, que fugiram desconcertados e foram +ajustar para outra parte os seus planos de rapinagem, infalliveis em +occasião de naufragio. + +A sombra escura do navio estava já a curta distancia, pelo garrar +constante da amarração. Sobre o céu acinzentado, que o luar velado de +nuvens allumiava debilmente, os mastros desenhavam linhas negras mal +definidas, e no de traquete brilhava ainda o pharol, fazendo lembrar +pupilla de moribundo a espreitar o golpe de misericordia. + +Mas nem se podia olhar para o navio, que a areia levantada da praia +pela ventania, chicoteava como ponta de azorrague, e cegava a quantos +assistiam á catastrophe. + +[Ilustração] + +Entretanto a barca vinha caminhando lugubremente para a costa, onde +havia de espedaçar-se. Por entre os lamentos da tempestade, mais +horriveis que os uivos de uma alcateia de lobos famintos, já se ouvia +o gemer da mastreação. Despidos das vergas pelo vendaval, os mastros +ainda se conservavam em toda a sua altura, inteiriçados, erectos como +braços chamando por soccorro afflictivamente. + +O velho, agachado por traz do parapeito da rua do Mar, foi caminhando +para o Castello Novo, ao perceber que o navio derivava para o nascente. + +N’isto sentiu-se uma pancada surda, outra e outra: a _Alegria do +Mar_ tinha dado no fundo. Em volta do velho já remoinhavam muitos +homens, attonitos, anhelantes, por verem que não podiam valer áquelles +desgraçados, que estavam alli tão perto, ao alcance da voz, e que +dentro em pouco seriam victimas da morte cruel, que havia umas pouca de +horas os estava chamando, attrahindo, hypnotisando. + +--Só Deus lhes póde acudir! disse alguem ao pé d’elle. + +--Quem ha de valer-lhe é o Senhor Santo Christo da Praia! pensou +o Manoel João, cheio de esperança. Pois se aquelle Senhor é tão +milagroso, que, levado em procissão ha cem annos, quando a terra tremeu +uma semana a fio, logo que chegou ao pé da costa fez parar a corrente +de fogo, que rebentara no Pico e vinha atravessando o canal, melhor +podia agora com certeza... Até lhe custava menos! + +E, de joelhos, prometteu-lhe uma festa luzida, como aquella que lhe faz +todos os annos a camara da _villa_. Elle por si não aguentava com +os gastos, mas lá estava o collete do seu rapaz... Umas quatro ou cinco +aguias chegariam para a funcção. + + * * * * * + +O temporal estava no seu auge. A bahia, coberta litteralmente de +espuma, tinha o aspecto de um immenso lençol--livida e sinistra +mortalha. + +Tombado sobre estibordo, o navio debruçava a mastreação para o lado da +terra, e, ainda mal cravado na areia, estremecia convulsivamente ás +furiosas investidas do oceano. + +As ondas, batendo em cheio no costado, repuxavam a enorme altura, e +despenhavam-se em catadupa sobre o convez. Bastaram poucas arremettidas +para quebrar os mastros, sem todavia os separar completamente do casco. + +N’este comenos viram-se distinctamente, sobre o fundo cinzento do +céu, tres vultos humanos agarrados á amurada do lado da pôpa. Ainda +escabujavam na lucta suprema da morte. + +--Fiquem a bordo! gritou-lhes de terra um homem, alongando as syllabas +e fazendo porta-voz com ambas as mãos. + +--A bordo! Podem lá resistir áquelles mares! objectou o patrão-mór, +embora calculasse que seria irremessivelmente envolvido e tragado pela +resaca, o temerario que pretendesse ganhar a costa, nadando. + +--Ahi veem elles! Ahi veem elles! bradou subitamente uma voz e +repetiram logo muitas outras. + +--Aproveitaram-se dos mastros! Salvam-se com certeza! + +Então os espectadores da tragedia olvidaram o perigo e, atravez de +uma aberta da muralha, correram para o areal. Tres ou quatro mais +affoutos entraram pela agua dentro a buscar os naufragos, que vinham +engatinhando ao longo dos mastros, arriscados, uns e outros, a que os +esmagassem aquelles madeiros, já meio partidos e desconjuntados, mas +que ainda se erguiam e baixavam pesadamente ao embate dos vagalhões. + +Afinal conseguiram salvar-se tres naufragos, e foram levados em braços +para uma loja perto d’alli. + +O velho furou por entre os curiosos, que se apinhavam á porta, e +achou-se no interior da casa. + +Mas era difficil ver qualquer coisa, á luz dubia espalhada lá dentro +por uma candeia. Por fim conheceu que dois d’elles eram já de bastante +edade e que sómente o terceiro... Estava deitado sobre uma enxerga, com +os olhos fechados, o parecer quasi cadaverico, os cabellos collados +á testa. Mas a estatura era a mesma do José... E as feições, a côr, +tudo!... Era elle, por força!... Só se Deus Nosso Senhor não fosse de +bondade e misericordia, deixaria que o pobre rapaz... + +Examinou melhor o infeliz, que já ia recuperando os sentidos. + +--Ah! Se elle abrisse os olhos!... + +Faltavam poucos instantes. + +Mas quasi teve medo de que a certeza viesse já tão proxima. + +--Quem sabia lá se?... + +N’esta occasião o naufrago disse umas palavras, que elle não entendeu. + +--É americano, notou alguem, ouvindo a phrase dita em inglez, mas com a +pronuncia nasal caracteristica dos cidadãos dos Estados-Unidos. + +O Manoel João ficou perplexo. + +Sim, o seu José tambem devia saber falar americano... Mas em tal +occasião falaria outra lingua, que não fosse aquella em que a mãe o +tinha ensinado a rezar? Só se não estava bom da cabeça! + +N’isto abriu os olhos o naufrago. + +--Não era o José! + +O velho sahiu d’ali para fóra cambaleando, e parou no sitio onde devia +ter estado sempre, onde podia salvar o filho. Outros certamente o +haviam salvo, em logar d’elle. + +--Não! Ninguem mais tinha escapado. + +A barca, durante aquelle tempo, acabara de esmigalhar-se. No +principio tinha abalos convulsivos, erguia-se para tornar a cahir +desamparadamente, luctava, estrebuchava, como se o instincto de +conservação lhe déra forças contra o gigante. E o mar tambem parecia +exasperado por aquella resistencia. Sacudia a pobre _Alegria do +Mar_ com os impetuosos estremeções da féra, que abócca a presa e a +abana e estracinha, para reduzil-a por uma vez á immobilidade da morte. + +Ao cabo a tempestade foi amainando, e na praia ficavam dois ilhotes +cravados na areia, a curta distancia um do outro--a proa e a pôpa do +navio, com o tombadilho empinado, quasi a prumo. No da proa ainda +existia um pedaço da borda, a que tinham estado aferrados os ultimos +naufragos, e d’onde os levara a um e um o pavoroso remoinhar das vagas. + +Aquelles dois fragmentos informes eram quanto restava da _Alegria +do Mar_, que poucas horas mais cedo, as vélas cheias de vento, +cortava ligeira as aguas do Atlantico; os tres naufragos, os unicos +sobreviventes dos quarenta que alli vinham, todos valentes campeões da +lucta pela vida, alguns a procurarem, com a vista no horisonte, a terra +da patria e antegosando as sonhadas alegrias do regresso. + + * * * * * + +O Manuel João, perdida a ultima esperança, voltou para os Cedros no +outro dia á tarde, mais arrastando-se do que andando por aquella +estrada, que lhe pareceu dez vezes mais comprida. + +Logo que a Andreza o avistou, saiu-lhe ao encontro. Já sabia do +naufragio, mas cuidava que o filho tivesse escapado. + +Dissera-lh’o por dó um visinho, que acabava de voltar da cidade. + +--Onde está o nosso filho, Manoel João? Onde está o nosso filho? + +--Ai, mulher, a gente já não tem filho! redarguiu o marido, cahindo +sentado no poial da porta. + +--Tu estás doido, homem! gritou a Andreza, aos soluços. + +--Quem o deu tambem o podia tirar, obtemperou elle, apontando para o +ceo. + +--Dizes isso porque não és mãe! bradou a velha, e fez um gesto de +ameaça para o ente sobrehumano, que o marido acabava de invocar. + +--Então, mulher não mettas a alma no inferno! aconselhou o Manoel João, +levantando-se e cingindo-a com os braços. Depois lembrou-se de coisa +muito importante, relanceou a vista em redor, para certificar-se de que +ninguem mais ficaria sabendo aquella nova desgraça, e disse a meia voz: + +--Sabes? Como não se encontrou o corpo do nosso José, lá se foi tambem +o collete das aguias! + +--O collete das aguias! Seja tudo pelo amor de Deus! + +E choraram outra vez, com mais força ainda. + + +[Ilustração] + + + + +[Ilustração] + + + A Lampreia + + +O jardim, que cingia a casa de Lili, era dividido em grandes +quadrilateros, por alamedas de camelias arborescentes. Na primavera, +as plantas dos canteiros cobriam-se d’um luxuoso manto diversamente +matisado, e nas comas das roseiras do Japão os canarios e toutinegras +davam, desde a madrugada até ao entardecer, concertos infernaes. + +Foi n’uma das alamedas que vi a pequenina pela primeira vez. Sentada +n’um banco, parecia indifferente aos esplendores que a cercavam, e +só tratava de segurar de encontro ao peito um grande gato branco, +enlançando-o com os braços por baixo das pernas deanteiras. O animal +supportava pachorrentamente aquella posição, incommoda na apparencia, +e tinha o resto do corpo no collo da creança, com o grande ventre, +forrado de pello macio, pendente n’uma dobra flacida, e os olhos +piscos, ante o brilho intenso de um raio de sol, que, perfurando a +folhagem, vinha pôr uma nodoa clara no peito de Lili. + +Esta, quando o pae, o meu amigo Fernando lhe disse quem eu era, apenas +me concedeu um breve olhar obliquo, e estendeu com pouca vontade a face +ao beijo que lhe dei. De improviso o gato, ou porque sentisse mais +forte o abraço, ou porque se assustasse com a presença de um estranho, +escapou-se-lhe das mãos por um movimento rapido, e, depois de longo +espreguiçamento, foi enroscar-se voluptuosamente sobre um monte de +folhas seccas, em que o sol batia de chapa. + +A pequenina rompeu n’um grande choro, e mostrou ao pae um dedinho +rosado, onde começavam a gotejar alguns rubis de sangue. + +--Um ache, papá; o Moleque fez-me um ache! + +Fernando ia applicar ao gato um severo correctivo com uma varinha +que tinha na mão, porém Lili, adivinhando-lhe as intenções, chupou +rapidamente o sangue, e disse muito alegre: + +--Olhe, papá, não foi nada. Já passou! + +Assim é que ella gostava do gato branco. + +N’um domingo, Fernando convidou-me para jantar. Festejava-se a chegada, +a S. Miguel, de um nosso amigo commum. Andavamos os tres a passeiar +pelo jardim e praticando uma soffrivel devastação nas camelias, eis que +ao passarmos em frente da sala de jantar, situada no rez do chão, fomos +detidos pelo dono da casa, que nos fez signal para que olhassemos lá +para dentro, atravez da porta de vidraça. + +Ainda pude ver a Lili, descendo sorrateiramente de uma cadeira +encostada ao aparador. Talvez nos presentisse. + +--Tem dois defeitos aquella pequena, disse-nos o pae. É gulosa e ... +nem sempre fala verdade. + +Continuámos no passeio, tomando eu a defesa da accusada, com o calor +que as causas más inspiram quasi sempre aos advogados. + +D’alli a pouco a campainha tocava para o jantar. + +Fiquei defronte da Lili. Reparei-lhe na physionomia e notei uma certa +inquietação: os olhos seguiam, a curtos intervallos, a direcção do +aparador, onde luzia a baixella de prata. + +--O que tanto lhe attrae a attenção, pensava eu, o que a fascina, são +de certo as gulodices, que resguardadas sob aquelles guardanapos de +linho finissimo, encherão os pratos collocados sobre a pedra do movel. + +Chega-se ao _dessert_. + +--Sabem que vou ter o gosto de apresentar-lhes um antigo conhecimento? +disse o Fernando. + +--Nosso? perguntei. + +--Sim, meu Luiz. Já estás nos Açores ha dois annos; ha dois annos, +portanto, que não vês um dos maiores attractivos da capital, isto é, +das montras dos confeiteiros lisboetas--uma lampreia de ovos! Fel-a +a minha cosinheira, que é alfacinha. Francisco, descobre esse prato e +traze-o para a mesa. + +O criado fez o que lhe mandaram, e ainda mais, pois que, ao ver o +prato, abriu muito os olhos e a bocca. Não era preciso ter lido a +_Expressão das emoções_ de Darwin, para se conhecer que o homem +estava no auge do espanto. + +E não era para menos. + +A lampreia lá se achava, muito enroscada, mas faltava-lhe, vimol-o +todos, faltava-lhe a cabeça! Quem lh’a decepára, tinha deixado +vestigios do attentado á borda do prato, n’uns fios de ovos e tiras +de geleia de fructa, que tomavam, ante a gravidade da situação, a +apparencia de um rasto de sangue. Horrivel permenor: um dos olhos da +victima--uma ginja em doce--jazia a um lado, viuvo da orbita! + +Lili empallideceu, e deixou cahir da mão a colher que empunhava, +prompta para a lucta da sobremeza, mas ia pegar-lhe outra vez, quando o +pae, deveras zangado, lhe perguntou quem tinha feito aquillo á lampreia. + +--Eu não sei, papae. + +--Sabes, sim, foste tu mesma! + +Lili voltou os olhos para a mãe, e não achou piedade. + +--A menina não foi, não senhor, murmurou quasi choramigando. Olhe, +papae, quando eu vim ás tres horas á casa de jantar, andava em cima do +aparador o gato... o Moleque... Foi elle! + +O pae reprimiu um sorriso. + +--Ah! Foi o Moleque? Pois o Moleque pagará as custas, quando nos +levantarmos da mesa. + +A Lili nem sequer provou dos doces e pudins. + +Como não estaria aquelle pequenino coração! + +Depois do café, servido na sala contigua, Fernando mandou ao creado que +fosse buscar o Moleque, e disse-lhe por fim algumas palavras em voz +baixa. + +Decididamente a situação tomava uma gravidade excepcional. Lili +chegou-se á mãe com receio, e ficou a olhar para todos, cheia de +desconfiança. + +--Meus senhores, disse-nos o dono da casa, fitando muito a filha. Vamos +ser juizes n’um processo importante. Luiza accusa o Moleque de um +roubo, que é ao mesmo tempo um abuso de confiança... Ah...! Ahi chega o +criminoso. + +O gato acabava effectivamente de apparecer ao collo do creado. Se a +Lili se mostrava desconfiada, o Moleque apparentava a maior placidez. +Após o creado, vinha a cosinheira, uma rapariga alta, robusta e mal +encarada; trazia a mão direita escondida atraz das costas. + +--Temos, portanto, continuou Fernando, que o Moleque não só praticou um +roubo com abuso de confiança, mas, o que é peior, decepou a cabeça da +lampreia. Vamos julgal-o. Queiram sentar-se. + +Emquanto iamos tomando logares, disse-nos elle algumas palavras em +francez. Puzemo-nos ainda mais carrancudos. + +A creança via tudo isto com olhares attonitos. + +--Dize-me outra vez, ordenou-lhe o pae, que não foste tu que roubaste +a lampreia! Não?... Então foi o Moleque? + +--Foi ... balbuciou a pequenina. + +--A cara é de reu, continuou Fernando, apontando para o gato, que +Francisco segurava pelas quatro patas. Os dignos jurados entendem que o +Moleque deve soffrer a pena de talião? + +--Sim, respondemos com voz soturna. + +--Condemno, pois, o Moleque a perder a vida por degolação, sentenceou +Fernando. + +--O quê, papae? perguntou a Lili afflicta e sem perceber bem. + +--Ó Maria, traz o que o Francisco lhe recommendou? + +--Está aqui, disse a cosinheira, passando para a frente a mão direita e +apresentando uma grande faca de cosinha, afiada e luzidia. + +--Pois então, corte o pescoço ao gato! + +Ainda não esqueci o grito da creança. N’um choro fortissimo correu para +o creado, e arrancou-lhe das mãos o gato, que fugiu espavorido. Depois, +approximando-se do pae, disse-lhe: + +--Fui eu, papae, fui eu que comi a lampreia. Mande cortar a cabeça da +menina! + +Nós, que já estavamos a rir, sentimos os olhos marejados de lagrimas.» + + * * * * * + +Isto foi ha tres annos. + +Lili, que está hoje uma senhorinha, chegou com os paes, no mez passado, +a Lisboa. + +O amigo de Fernando, que me contou a historia, foi logo visital-os. + +Fernando, ao apresentar a filha, perguntou-lhe sorrindo: + +--Lembras-te do caso da lampreia? Desde então, a Lili só mentiu uma vez +... para salvar o Moleque de um castigo merecido. + + +[Ilustração] + + + + +[Ilustração] + + + Mau Homem + + +Quando o Casimiro passava nas ruas, bamboleando-se nas pernas compridas +e em fórma de parenthesis, as mulheres da villa lançavam-lhe das +portas olhadelas de soslaio, e mais de uma, tendo cuspido para o lado, +resmungava phrases indignadas. + +E apenas elle se afastava o bastante para não poder ouvil-as, as +senhoras visinhas, tomando o para seu thema, davam largas á loquacidade. + +--Então! Já se viu um marau egual? + +--Tal desgraça! Parece mesmo que tem coisa ruim comsigo. Mau homem, por +força! + +Era até impossivel que não tivesse alguma morte ás costas. Quem sabia +lá?... Talvez tivesse. A Rosa Moniz chegou uma vez a lembrar que +podia muito bem ser elle, e não o Antonio Garcia, quem tinha morto +o velho, que appareceu com a cabeça partida ao pé do forte de Santa +Catharina. Ninguem vira o Antonio fazer mal ao velho, e lá por se +lhe encontrar em casa uma camisa suja de sangue, não se devia jurar +que fosse elle o criminoso. Coitado! Se estaria a pagar as culpas de +outro?... Chamassem o Casimiro á justiça e veriam quantas testemunhas +appareceriam a accusal-o. Mas apezar d’isto--ou talvez por isto mesmo, +diziam alguns--a fortuna favorecia-o constantemente. É que nunca se +tinha visto ninguem mais feliz em negocio. Não obstante a má fama do +dono, não era só a casa de comida posta pelo Casimiro ao pé da praça, +que estava sempre cheia de freguezes; acontecia o mesmo á lojinha de +fazendas, da ilharga. Admirava que houvesse na villa tanto dinheiro +para se gastar. Verdade é que gente de fóra, de Agualva e da villa de +S. Sebastião, antes queria alli comprar, do que ir á cidade, ás lojas, +da rua da Sé, porque o Casimiro vendia tão barato como o Evangelista ou +o Bento Fartura. E tinha então um geito para aviar os freguezes! Quem +lhe entrasse na loja, sempre havia de comprar alguma coisa, o ponto era +ter dinheiro na algibeira. Ninguem melhor do que elle sabia entender-se +com qualquer comprador. Ora, por uma coincidencia que excitava pasmo +geral, aquella prosperidade tinha começado exactamente desde que a +Luiza viera de S. Miguel juntar-se com o marido e levar aquella vida de +negra. + +--Vejam lá o que é a justiça de Deus, em que fala tanto a padralhada! +commentava um dia o escrivão Salles, socialista e livre pensador. + + * * * * * + +A opinião das mulheres, valha a verdade, não encontrava echo na maioria +dos homens. Só um tinha tal raiva ao Casimiro, que se o visse a +afogar-se e lhe bastasse extender a mão para o salvar, ficaria quedo. +Podera! Se depois de o Casimiro pôr a loja, o José Antonio já não +vendia quasi nada, apezar de ter baixado os preços de tudo! Uma noite, +por volta das dez horas, passando elle pela porta do seu inimigo, ouviu +a Luiza a chorar. Pôz-se á escuta. A mulher começou a accusar o marido +de não se importar com ella, de estar com a Margarida, tanto que muitas +vezes depois de fecharem o estabelecimento, elle saía de casa e só +voltava tarde, á noite, a horas mortas. + +O Casimiro não respondia nada. + +O José Antonio espreitou por uma fisga da porta e viu-o a arrumar as +fazendas n’uma prateleira. + +A Luiza continuou: + +--Ah! Tu não respondes! É que não tens que responder! Pois eu um dia +pego em mim, e vou a casa d’aquella ganhoa... + +O Casimiro atirou ao chão com força uma peça de chita, que tinha na +mão, e voltando-se para a mulher, gritou-lhe: + +--Isso é que é falar! Olha que eu!... + +--Tu o quê! Não me mettes medo com essa cara de calhau. Talvez queiras +mandar nas minhas falas? + +A ranger os dentes, deu dois passos para a mulher. + +--Tu estás suffocando commigo, mas eu... + +--Embatucaste outra vez, porque és um albardeiro, um corsario! + +--Ah! Mulher, não me botes a longe, que eu perco-me por via de ti. + +--Não me deites esses olhos, que eu não me faço amarella. Amarella ha +de ficar a Margarida, quando eu... + +O Casimiro não se conteve mais tempo e agarrou a mulher por um braço. + +--Anda, anda lá! Olha que eu pego a gritar aqui d’el-rei! ameaçou ella. + +Ainda não tinha acabado estas palavras, quando a mão do marido, +batendo-lhe no alto das costas, a atirou de bruços, para o chão. + +--Aqui d’el-rei! Aqui d’el-rei! Quem m’acode! + +O José Antonio não quiz ouvir mais nada e foi de corrida buscar o +administrador do concelho, que estava alli perto, na Assembléa, a jogar +a sua costumada partida de voltarete. + +Apenas conheceu a voz da auctoridade, o Casimiro abriu a porta e deu-se +á prisão sem resistir. + + * * * * * + +No dia seguinte, ás dez horas, foi a perguntas, á casa da audiencia. + +O juiz, velho de cabello completamente branco e falar pausado, depois +de ouvil-o, censurou-lhe, com azedume mas sem desabrimento, a baixeza +por elle praticada, em abusar da força para bater n’uma mulher, que se +lhe entregara esperando generosidade e protecção, e não violencia e +tyrannia. + +O preso escutou silenciosamente as palavras do juiz. A principio +conservou as sobrancelhas cerradas, e o olhar fixo n’um ponto do +sobrado, como se nenhuma attenção prestasse ao que lhe estavam dizendo. +Afinal, porém, as feições distenderam-se-lhe, um tremor convulsivo +começou de agital-o, e ao mesmo tempo que do peito lhe irrompiam os +soluços, foram-lhe as lagrimas rolando pela cara. + +--Bem! Bem! disse o juiz. Não se afflija. Pelo que vejo está +arrependido do que fez... + +Interrompendo-o com um gesto, e suffocando dentro em si o ultimo +soluço, o Casimiro começou a falar, com voz pouco perceptivel emquanto +o não arrastou o calor da narração. Se o juiz o tratasse mal, não lhe +diria nada, ou seria até capaz de uma violencia. Todavia a maneira +por que o magistrado se lhe dirigira, os conselhos que lhe dera mais +pezaroso que severo, tudo o fôra vencendo gradualmente. Pareceu-lhe que +se o tio João Furtado--o pae do Casimiro, em vez de estar enterrado no +cemiterio de Villa Franca ha muitos annos, lhe apparecesse n’aquella +occasião, usaria das mesmas falas, mas não tão bem feitas como as do +sr. juiz. Para este não queria portanto o marido da Luiza parecer um +mau homem. + + * * * * * + +Contou-lhe a sua vida toda, e o juiz quando elle acabou de falar, +apertou-lhe a mão commovido, e mandou-o embora, recommendando-lhe +prudencia. + +As mulheres da villa quando souberam que o Casimiro estava solto e que +não passaria trabalhos, vociferaram que tão bom era o juiz como elle. +Talvez dissessem isto, porque não ouviram o Casimiro. + + * * * * * + +Contou ao magistrado a sua vida: como tinha casado com a Luiza, que +n’esse tempo era a bem dizer uma pequenota, mas que, talvez sem saber, +o puzera como doido. Nem obra de feitiçaria! Estava ainda a vêl-a, no +dia em que o tio João a foi pedir em companhia do filho, responder +muito envergonhada e como se tivesse medo: + +--Pois elle vae, senhor! Se a minha mãe leva isto em gosto, eu tambem +levo. Não digo menos de isso. + +Os primeiros tempos de casados, viveram-os como se não fossem d’este +mundo. A bem dizer, aquillo era até felicidade de mais. Elle trabalhava +sem descanço o dia inteiro, fazia o seu negocio e á tarde, quando +chegava a casa, lá o estava esperando a Luiza com a ceia prompta, e +extendia ao marido os braços com tanto carinho! + +A desgraça foi elle ter de ir ás Furnas por causa de um negocio, que +por signal não lhe rendeu nada. + +Como é que a Luiza se perdeu? Como se deixou ir pelas falas do menino +Diogo, filho d’aquelle sujeito que tem uma quinta muito bonita, mesmo á +entrada da villa de Lagoa, á mão direita de quem vae do lado da cidade? + +O marido só muito depois veiu a saber tudo. + +Uma visinha, a Maria do Jacintho, é que a tinha desinquietado, e uma +noite em que a Luiza foi ceiar com ella, deram-lhe uma gota de vinho a +mais... + +--Ah! Que se eu tivesse sabido, matava logo aquella corsaria. Se queria +perder alguem, perdesse as filhas... Mas lá essas não precisaram de que +a mãe as ajudasse! + +E o Casimiro, depois d’esta phrase, começou a falar outra vez +vagarosamente, quasi a custo. + +Nem sabia dizer ao certo como chegou a descobrir tudo. + +Ah! Tinham-lh’o dito. Quando entrou em casa, perguntou-o de repente á +mulher. A Luiza, colhida improvisamente, poz-se a gaguejar, mais branca +do que a cal da parede. + +O marido deitou-lhe as mãos ao pescoço e matava-a, matava-a com +certeza, se as visinhas, que acudiram á bulha, não lh’a arrancassem das +mãos. + +A pobrinha parecia morta. Chegou-se a pensar que elle a tinha afogado. +Depois foi voltando a si, olhou para todos com os olhos muito abertos e +começou a rir, a rir de tal modo, que uma das visinhas fugiu espavorida +pela porta fóra e as mais sentiram arrepios de frio por todo o corpo. + +A Luiza não estava boa de cabeça e poz-se a dizer que tinha morrido, +que o seu anjo da guarda a levava pelo ceo dentro, mas que os outros +anjos fugiam d’ella e não queriam vel-a sequer, porque ... porque... E +desatava a rir e a chorar ao mesmo tempo, rasgando-se, atirando-se ao +chão, quando a não seguravam com força, com muita força. + +Esteve assim tres dias. O Casimiro não comeu nem dormiu durante +esse tempo. Ao quarto dia mandou-a para o hospital. Na vespera, de +madrugada, quando a Luiza socegava, elle esteve, vae não vae, a +matal-a, sem força para resistir á tentação. Se a tivesse mais tempo ao +pé de si, era capaz de fazer essa loucura. + +Desmanchou a casa e no primeiro vapor foi para a Terceira. + +Em Angra não fez nada. Quiz tentar fortuna na Villa da Praia e não se +arrependeu da lembrança. O juiz bem sabia como elle tinha começado o +seu negocio. + + * * * * * + +Quando um dia o Casimiro estava só na loja, entrou-lhe pela porta +dentro uma mulher embrulhada n’uma capa e atirou-se-lhe aos pés, +chorando muito e dizendo: + +--Perdoa-me, meu rico marido, perdoa-me! + +O primeiro impeto do Casimiro foi agarrar n’ella e atiral-a para a rua, +como um animal ruim. Mas quando, ao crescer para a Luiza, a encarou, +pareceu-lhe que estava a sonhar. + +Não era a mesma. Quer dizer, era a mesma, mas tão differente!... O +cabello tinham-lh’o cortado no hospital, para lhe pôrem neve na cabeça. +Os olhos sumiam-se no fundo d’umas covas negras como carvão. As faces, +d’antes tão córadas, e o corpo tão cheio antigamente, estavam só com a +pelle e o osso. + +Como aquella desgraçada não tinha padecido! + +Sem se levantar do chão, agarrada ás pernas do Casimiro, dizia-lhe no +meio de gritos entrecortados: + +--Meu rico marido, não me deites d’aqui para fóra. Por alma de teu pae! + +Elle fitou-a muito tempo, poz-lhe a mão sobre a cabeça e disse-lhe: + +--A benção de Deus te cubra. Bem! Fica p’ra ahi. + +No começo a Luiza servia o marido como uma escrava. Nem a Mimosa, a +perdigueira, era mais humilde. Mas ao fim de tempo, quiz recuperar o +seu antigo logar, e desconfiada de que o Casimiro fazia pouco d’ella +por ter alguma outra mulher, queixava-se, accusava-o. + +Muitas vezes elle não lhe dava resposta, mas outras desesperava-se, e +como tinha genio, levantava a mão e... + +--Que quer V. S.^a, sr. juiz? concluiu o desgraçado. Eu bem lh’o tenho +dito, mas a Luiza ainda não me entendeu: o vidro que se partiu uma vez, +por muita massa que lhe ponham, nunca mais torna a ser o que era. + + +[Ilustração] + + + + +[Ilustração] + + + + + A Licença Do Domingo + + +HAVIA já tres quartos de hora que se distribuira o rancho da tarde, no +quartel de S. João em Ponta Delgada. + +Os piquetes, que tinham ído levar a comida ás guardas exteriores, +vinham já de volta e encontravam-se de vez em quando com os soldados +que desciam a rua, aos grupos de dois e tres, alguns de mãos dadas +pelos dedos minimos, lançando para as raparigas, que estavam pelas +portas e janellas, uns olhares provocadores. Se estes galanteios +destoavam grandemente da apparencia pouco seductora dos D. Juans de +fardeta, nem sempre se perdiam. + +Dentro do quartel, nas casernas pequenas e abafadiças, tinham ficado +apenas as praças de serviço. + +Na da segunda companhia, em redor de uma cama onde está sentado o cabo +José, ha ainda assim grande ajuntamento, e estrugem a espaços enormes +gargalhadas, que interrompem momentaneamente a cantiga, origem da +hilaridade, e chegam até a cobrir os sons da viola que o cabo, um heroe +dos _charambas_, dedilha com uma pericia incomparavel. + +Mas que terá o Roque, o 72, que, sem attender aos descantes, anda a +passeiar de um para outro lado, muito pensativo? + +É por força cousa séria. + +Oh! Mas o rapaz tomou certamente uma resolução, porque abriu a +caixa da roupa, tirou para fóra a fardeta, e vestiu-a, abotoando-se +cuidadosamente. Depois ageitou o bonnet na cabeça e caminhou para a +porta. + +--Vaes passeiar, ó Roque? perguntou-lhe o plantão? + +--Tu sabes se o _nosso primeiro_ está no seu quarto? + +--Saiu ha migalhinha. Foi com o nosso sargento José Luiz passeiar á +doca. + +O 72 ficou de má catadura, e pareceu hesitar, mas, resolvendo-se, saiu +da caserna. + +--Eh! _Home_, levas uma _cara de calhau_, disse-lhe ainda o +plantão. + +No corredor que rodeia o claustro do antigo convento, o 72 encontrou o +impedido do capitão da segunda companhia. + +--Ó Francisco, o teu patrão onde está? + +--Alli.--E mostrou com o gesto o quarto da extremidade do +corredor.--Acabou ha um instantinho de jantar... Vão aqui dentro os +pratos vazios, disse o rapaz, enfiando o braço na aza de uma cesta que +trazia na mão.--Haja saude, ó Roque! + +O outro foi caminhando para o logar que o impedido lhe indicara, mas +insensivelmente diminuiu o passo, e poz-se a coçar a cabeça, n’uma +grande irresolução. + +A porta do quarto estava fechada. O 72 pegou com medo na aldrava e +deixou-a cair. + +Passaram-se alguns segundos. + +--Talvez já cá não esteja, ia o soldado dizer comsigo mesmo, visto não +obter resposta, quando ouviu tossir da parte de dentro. + +Pegou outra vez na aldrava e bateu muito de leve. + +--Que temos? perguntou uma voz encatarroada. + +--V. S.^a dá licença, meu capitão? + +--Entre quem é. + +--Sou eu, meu capitão ... disse o 72, entrando e tirando o +_bonnet_ com um movimento rapido e desgeitoso, mal viu o official +de cabeça descoberta. + +No quarto de inspecção, pequeno e acanhado, havia um forte cheiro a +comida e a fumo de tabaco. + +O capitão, sentado n’uma cadeira de palhinha, tosca e despolida, tinha +os cotovellos encostados á mesa e lia um jornal de Ponta Delgada, +o _Echo Michaelense_, tomando a espaços longas fumaças de um +cachimbo de escuma, muito queimado. + +Com os calcanhares unidos, os olhos um pouco esgazeados, os beiços n’um +ligeiro tremor, o soldado não se atrevia a falar. + +--Que demonio queres tu? perguntou-lhe o capitão Saraiva, ao cabo de +algum tempo e sem interromper a leitura. + +--Eu, meu capitão? Saiba V. S.^a que me custa muito vir incommodar a V. +S.^a... + +--Mau! Despacha-te! Nunca vocês sabem dizer as cousas por claro. Que +diabo de gente, estes ilheus! E batendo com a mão sobre o jornal, +voltou a cabeça para o soldado, medindo-o com o olhar. + +--Elle é verdade meu capitão, mas é que ás vezes _assuccede_ a um +_home_ cada uma... + +--Ou te explicas, ou marchas n’um prompto para a caserna! disse o +capitão, com voz irritada. Levantou-se, poz o bonnet na cabeça, puxou o +collete para a cintura, mettendo para baixo do cóz das calças a dobra +da camisa que estava saliente, e abotoou o raglan, inferiormente ao +qual appareciam as borlas da banda, distinctivo usado no batalhão pelos +officiaes de serviço. + +--Saiba V. S.^a, meu capitão--começou o 72, dando com as mãos muitas +voltas ao bonnet,--que esta tarde, antes do rancho, eu tinha ido alli +abaixo, ao largo da Matriz... + +--Que tenho eu com isso? + +--E vae d’ahi, topei com a Rosa, uma rapariga da minha freguezia, e ... +o que me ha de ella dizer? Que hontem á noitinha, quando meu pae ia +recolhendo ás Féteiras... + +--Tu és das Féteiras? Aquelle logar que fica no caminho para as Sete +Cidades? + +--Saiba V. S.^a que sim... Ao descer uma canadinha, escorregou dos +pés e foi-se abaixo, batendo com o corpo nos calhaus. O pobre do +_hóme_ é velho e d’ahi a quéda deu-lhe uma volta ao interior. +Parece que está mesmo a decidir. + +Estas ultimas palavras foram acompanhadas por um choro meio suffocado. + +--Bem! E que queres tu então? perguntou o official, com menos rispidez. + +--Se V. S.^a me desse licença, eu pegava em mim e ia vêl-o. + +--Ás Féteiras? Tira o cavallo da chuva! Porque não pediste a licença +antes do toque da ordem? Não sabes que o batalhão tem pouca força, e +que é preciso fazer escolha nas praças que pedem para ir no domingo á +terra? + +--Saiba V. S.^a que sei, mas áquella hora ainda não me _haveram_ +dito nada, e como faz hoje oito dias que eu tive licença... + +--Sabias que não a apanhávas. + +--Mas agora, se V. S.^a me fizesse essa esmola... O pobre do velho +está, vae não vae, a ir para Nosso Senhor, e eu sem lhe poder valer!... +A voz do soldado, entrecortada novamente pelos soluços, pronunciou mais +algumas palavras inintelligiveis. + +O capitão, meio zangado, meio condoido, passeiava pelo quarto, com o +cachimbo a um canto da bocca, e as mãos mettidas nos amplos bolsos das +calças de cutim. O 72, cabisbaixo, seguia-lhe os movimentos com um +olhar obliquo e prescrutador. + +--Dar-se-ha o caso de que tu estejas a embaçar-me, grande maroto? +perguntou de subito o official, fitando muito o soldado. + +--Eu! disse este, cheio de susto. Se minto, mais negro seja que o +carvão! + +--Eu sei lá! Vocês todos são frescos. Quem me déra para cá os meus +trinta e cinco annos de serviço, para me livrar da maldita massada de +atural-os! Mentiste ou não mentiste? + +--Isto é que se chama! Pergunte o meu capitão á Rosa. + +--Teu pae, então, está a morrer? + +--A modos que sim, senhor. A dôr de dentro não o larga. Se não foi isto +o que a Rosa me disse, abram-me a cabeça com um calhau! + +O soldado continuava a praguejar, em quanto o capitão, sem interromper +o passeio, se recordava do que lhe tinha acontecido, havia já um bom +par de annos, estando elle no Porto, em sargento do 18. Chegou-lhe de +Braga uma carta, participando-lhe que a mãe se achava em perigo de +vida. Pediu licença immediatamente, mas como a ordem tardasse em vir do +quartel general, quando chegou a casa, já a sua _velhinha_ estava +enterrada. + +--Pode acontecer o mesmo a este pobre diabo, pensava o capitão. Por +fim, decidindo-se, parou, tirou o cachimbo da bocca e disse com muita +intimativa ao soldado: + +--Pois muito bem! Vocemecê vae hoje para a sua terra... É verdade! Não +entras de serviço amanhã? + +--Entro de fachina, mas o 12, que é meu camarada e _está de nada_, +fica por mim, se V. S.^a der licença. + +--N’esse caso vae e volta ámanhã á noite, antes do toque. + +A cara do 72 alegrou-se, sem comtudo se desannuviar completamente. + +--Se V. S.^a me deixasse, eu voltava na segunda feira. + +--É isto! Querem logo tudo! Bom! Voltas depois de amanhã, antes do +rancho. Serve-te? + +[Ilustração] + +--Seja pela sua saude, meu capitão! Nosso Senhor é que lhe ha de pagar +uma coisa d’estas. + +--Vocês ainda me compromettem com o nosso commandante. Anda, põe-te ao +fresco! + +O soldado rodou sobre os calcanhares, depois de fazer a continencia e +dirigiu-se para a porta. Ia já a sair, quando o capitão o chamou. + +--Olha lá! + +--Prompto, meu capitão! + +--Tu... O official hesitou no que ia dizer, depois, lembrando-se de +outra cousa: Pediste licença ao primeiro sargento para vir falar-me! + +--Saiba V. S.^a que elle saiu a passeio. + +--Mau!... É verdade! Tu sabes se os ovos na tua terra estão baratos? + +--Tiram-se a seis por um pataco. + +--Pois traze-me umas tres duzias; cá na cidade só pesados a ouro... +Depois te dou o dinheiro. + +--Não faz _moléste_, meu capitão. + +--Bom, vae-te embora e dize ao sargento que tens licença. + +--Sim, senhor, meu capitão. + +E saiu. + +O rosto brilhava-lhe de alegria. N’um abrir e fechar de olhos, foi +á caserna, despiu a fardeta, vestiu um casaco á paizana, que já +tinha antes de sentar praça e descalçou-se. D’ahi a pouco estava +fóra do quartel, e descia apressadamente a rua de S. João, receioso +de que ainda lhe tirassem a licença. Acompanhava-o a competente +_vardasquinha_, isto é, um valente bordão capaz de matar um homem. +Dez minutos mais tarde saía de Ponta Delgada, pelo lado occidental. + +Quando deixou de encontrar gente, e viu diante de si a estrada quasi +deserta, bordejada por paredes caiadas de branco, algumas encimadas +pelas comas do arvoredo, parou por instantes, e poz-se a rir +maliciosamente: + +--Tinha embaçado o capitão! + +O pae estava tão doente, como elle. Pelo menos, ainda no ultimo domingo +o tinha deixado na freguezia, são e escorreito. + +--Fiou-se no que eu lhe disse! pensou. Queira Deus não venha a +descobrir! O que me vale é não haver lá na companhia mais rapazes das +Féteiras. + +Foi andando. + +--Por fim de contas não era _coisa ruim_ o que tinha feito. No dia +seguinte festejava-se o Espirito Santo, na freguezia. Havia imperio e +bôdo. Faltar, era até um peccado! Se falasse verdade, não lhe davam +licença. Por ter dito que o pae adoecera, não o fazia ir para a cama. O +velho estava ainda esperto e rijo. Podia caír á vontade, que não morria +ás primeiras. Tinha hombros largos, pescoço curto, e a cara, embora um +pouco enrugada, estava sempre vermelha, que se podia ver. Mettia no +canto a muitos rapazes, o _ti Jaquim_. + +O Roque avançava que era uma maravilha! + +A estrada ia mudando de aspecto. Á direita extendiam-se largas campinas +escuras, subindo gradualmente até acabarem nas collinas, que limitam o +horisonte; á esquerda começa a ribanceira, cujo sopé vae terminar na +costa meridional de S. Miguel em declives abruptos. De cá de cima, em +alguns pontos, avistam-se grandes extensões da praia, que offerece ao +mar uma larga concavidade, onde se desenrola um vasto lençol de espuma. + +Para o lado da cidade vinha um cantoneiro. + +--Haja saude, tio João de _Mideiros_. + +--Haja saude, Roque. Vaes a casa? + +--Vou. Esteve lá em baixo hoje? + +--Não. Quem para lá voltou agora, foi o sr. dr. Luiz, que já vinha a +caminho da cidade. + +--Voltou? Para quê? + +--Para acudir a um homem, que teve _uma coisa_ esta tarde. Veiu um +rapaz, o José, chamal-o de _galão_ ... montado, por signal, n’um +burro. + +--E a quem deu o mal? + +--Não sei. Não tive tempo de perguntar ao José, porque elle voltou +logo, mais o sr. doutor. Aquillo é que é a bondade em pessoa, o sr. +doutor! Fosse outro, que bem se importava!... + +--Talvez o doente seja homem rico... + +--Pode que seja. O que te sei dizer é que o sr. dr. Luiz pegou em si e +voltou para traz. Eu, como não era ouvido nem chamado no caso... + +--Quem será? + +--Haja saude, Roque. + +--Haja saude, tio João de _Mideiros_. + +Estugou o passo. + +--Quem seria o individuo? Talvez algum velho. Certamente o sr. padre +Francisco!... Já no verão passado tinha tido um ar de _poplexia_. +Antes seja outro--pensava o Roque--senão como se ha de fazer amanhã a +festa do Senhor Espirito Santo?... + +Ao lusco fusco chegava ás primeiras casas do logar, situadas no alto da +encosta, que vae descendo até á egreja. Olhou lá para baixo e sentiu a +mesma impressão, que tivera ao voltar á freguezia, depois de passar no +batalhão os primeiros quinze dias. + +Durante aquellas duas semanas andou no quartel a chorar pelos cantos, +ralado de saudades. Saía para espairecer as magoas, corria as ruas da +cidade, parava espantado em frente das lojas, como de antes fazia, +quando vinha da freguezia comprar algum fato, ou por amor da festa do +senhor Santo Christo. Mas voltava para o quartel, ia para a caserna, e +amarrava-se a um canto, sem ao menos ouvir as cantigas tão engraçadas +do cabo José. A sua consolação, uma vez por outra, era tirar do bahu a +_charamela_, que tocava nas Féteiras, e repetir as modinhas que +lhe tinham ensinado por lá. Parecia-lhe então que a caserna, os cabides +de que pendiam os uniformes e as mochilas, os armeiros, e tudo o mais +ia desapparecendo, desapparecendo, e que via na sua frente a egreja da +freguezia, com a casa do _imperio_ do outro lado da estrada; quasi +que até ouvia o sino a tocar para a missa!... Uma vez, esteve quasi a +dar um grito, porque se lhe afigurou que a Maria do tio Thomaz passava +ao pé d’elle, por signal com um vestido de chita clara e um lenço de +seda muito bonito!... + +Os outros soldados diziam que o rapaz dava em maluco. + +Mas o que o fez pasmar, foi que na primeira vez em que esteve de +licença na terra, não sentiu a alegria que esperava. + +De longe, tudo lhe parecia melhor. + +Até a casa, tão pequena e pobresinha, que elle julgava preferivel á +caserna, afinal de contas era muito peior. + +Um completo desengano. + +Mas agora não se demorou a pensar n’isto, e foi descendo a passos +largos em direcção á casa do pae, que ficava mesmo á ilharga da egreja. + +Quando passou pela venda, teve tentações de perguntar quem tinha +adoecido, mas não quiz demorar-se e foi andando para diante. + +--Se estava _deserto_ por chegar! + +A curta distancia de casa passou por elle o carro do doutor, produzindo +estalidos seccos no macadam da estrada. + +Vinha do lado da egreja, do sitio onde morava o padre Francisco. + +--Não é outro o doente, pensou o 72. + +N’isto achou-se ao pé de casa. + +Uma coisa lhe fez admiração. + +--Que claridade era aquella que saía atravez da porta mal fechada? Não +podia ser da candeia, que a mãe accendia todas as noites. + +E pareceu-lhe ouvir chorar!... + +--Enganava-se por força. + +Empurrou a porta, e logo estacou, boquiaberto, com um arrepio por todo +o corpo, os cabellos em pé. + +No fundo, deitado sobre a cama e um pouco voltado para a porta, estava +um homem, já velho, o olhar envidraçado, a cara amarellenta e a bocca +repuxada para uma banda. Era o corpo de um defuncto! + +Sentadas sobre uma caixa, tres mulheres soltavam ais, assoando-se a +miude, e dizendo por entre soluços: + +--Louvado seja Nosso Senhor!... + +Uma d’ellas, a mais velha, quando deu com os olhos no 72, levantou-se e +foi para elle a gritar: + +--Ai! Meu rico filho, que já não tens pae! + +O Roque bem tinha reconhecido o cadaver, mas attonito, estupido, não +queria acreditar nos seus olhos. + +Quando ouviu a mãe, desenganou-se; começou n’um berrar destemperado, e +atirou-se para o chão, onde estrebuchou muito tempo, arrepellando-se e +gemendo sempre: + +--Matei o meu pae! Matei o meu pae! + +A mãe voltou para junto das companheiras. Uma d’estas segredou á outra: + +--O rapaz está variado! + +Levantou-se, e com o queixo a bater e todo o corpo n’um tremor +convulsivo, foi sentar-se para um canto. + +Só á terceira vez é que poude encarar com o defuncto. + +Mettia pavor, á luz amarella dos cyrios. + +Sem fazer bulha, o Roque fugiu de casa e foi sentar-se á porta da +egreja. Lá esteve toda a noite a soluçar: + +--Matei o meu pae! É castigo de Nosso Senhor! + + +[Ilustração] + + +[Ilustração] + + + + + O Contrabando + + +TARDE de inverno. + +As vagas frisam-se de espuma, e correm umas após outras de encontro +á costa. Da banda do oceano, grandes massas de nuvens pardacentas +orladas de branco, sobrepujam o horisonte,--quaes legiões que alli +estivessem de reserva, promptas para arremetter á voz da tempestade. +As aves aquaticas, aos pios e grasnidos, approximam-se de terra, e +emquanto umas traçam na atmosphera largas curvas, outras, embaladas +pela onda, descançam na agua, d’onde ás vezes se levantam desprendendo +as azas, em que parece librarem-se a custo, para irem saltitar pelas +cristas espumosas, de pescoço estendido á cata de peixe. O vento humido +e carregado de emanações salinas, investe com a riba alcantilada, +percorre-a velozmente, curvando os enfézados arbustos e erguendo +nuvens de poeira, que remoinham até se dispersarem na campina superior. + +Em frente da casa dos guardas de alfandega, alçada no sopé dos +rochedos, um homem trigueiro, alto, de apparencia militar, alonga a +vista ao de cima das aguas, e olha com persistencia para o perfil +escuro de um morro, que ao longe, muito para a direita, fecha o +horisonte terrestre, com grande crueza de tons. A ventania sacode-lhe +incessantemente o capote e obriga-o a fechar os olhos de instante a +instante. + +No mar divisa-se muito ao largo uma vela, uma só: mas o guarda antevê +perigo imminente, e mal comprehende que o deixassem alli com um unico +companheiro, armados ambos de espingardas detestaveis, quando os +contrabandistas pódem ser muitos, e hão de trazer por certo bellas +carabinas, que nunca erram fogo e que dão tres ou quatro tiros, em +quanto as armas antigas a custo disparam um só. + + * * * * * + +A lancha, mal a noite acabou de fechar, largou de bordo carregada de +tabaco, e navegou para terra cautelosamente. Os remos cahiam na agua +ao mesmo tempo e rasgavam sem bulha o flanco das ondas. Dois outros +maritimos, de sueste enterrado na cabeça, acompanhavam os remadores e +tinham perto de si, á cautela, duas carabinas americanas. Partira da +barca uma segunda lancha, que devia correr perigos eguaes, até se haver +passado todo o contrabando--umas duzentas caixas de tabaco. + + * * * * * + +O João Luiz, o guarda, hesitava em recolher-se na casa de abrigo, +apezar do frio. A denuncia tinha sido clara. Perto d’alli, na pequena +enseada onde o mar é quasi sempre socegado, deviam desembarcar as +caixas de tabaco. Lá estavam doze guardas. Como, porém, junto da casa +tambem se saltava sem difficuldade, o chefe fiscal tinha mandado +guardar o posto pelo João Luiz e pelo Vicente. Não havia ninguem fóra +de serviço. + +De repente o João Luiz pensou no Estacio e estremeceu. + +Elle bem tinha dito muita vez ao irmão que se desgraçava continuando a +ser contrabandista, e que um homem casado e pae de dois filhos não deve +arriscar a sua vida por um boccado de dinheiro. Palavras perdidas. + +O Estacio era teimoso e não largava já o modo de vida, a que se +dedicara. Parecia, a bem dizer, uma tentação. Que lhe importava o ser +mal visto pela gente da alfandega, se em poucas horas ganhava o que +muitos outros não faziam com mezes e mezes de trabalho ao sol e á +chuva? E o caso é que o Estacio andava bem vestido, trazia a mulher e +os filhos que se podiam ver, e ainda ultimamente tinha comprado uma +mobilia americana, e um relogio de parede com uma caixa mais luzidia +que a prata. + +O proprio perigo offerecia-lhe attractivos singulares. Ás vezes, +durante as noites de trabalho, elle bem pensava que podia levar, quando +mal se precatasse, com uma bala e não tornar a ver a mulher nem os +filhos, principalmente o mais mocinho, o Manuel, de quatro annos, tão +louro e tão rosado, que parecia tal qual um menino Jesus. Mas as ideias +sombrias passavam rapidas, e o Estacio scismava logo depois que poderia +vir a ter um predio, muitos predios, como alguns senhores enriquecidos +d’aquelle modo, que nem por isso eram menos estimados por toda a gente. +Pelo contrabando ganhava o pão da sua familia e ganhava-o com risco de +vida, o que já não era tão pouco! + +Um dia esteve quasi a brigar com o João Luiz, por este lhe dizer que +o contrabandista é um ladrão como qualquer outro, visto que rouba +o Estado e vae contra as leis; mas por fim soltou uma gargalhada e +respondeu-lhe que lá a roubar o Estado ninguem levava as lampas aos +empregados publicos, uns mandriões que passam vida regalada e que +recebem no fim de cada mez uma mão-cheia de dinheiro. Ladrões esses! + + * * * * * + +Noite fechada, principiou a soprar um vento mais frio. O João Luiz +ageitou-se melhor no capote e encolheu-se a um canto da rocha, de onde +se avistava bem o mar, até á costa. Passara-se uma hora ou mais talvez, +quando elle, que á força de estar attento via já tudo indistincto e +como que a apagar-se, julgou sentir bulha do lado da agua. Ia para +erguer-se, mas logo mudou de tenção; foi de rojo até á porta da casa +e chamou em voz baixa o Vicente. Tornado ao mesmo sitio, conheceu +claramente que andava perto um bote. + +--Serão contrabandistas ou pescadores? murmurou ao ouvido do outro +guarda, que tinha vindo postar-se ao lado d’elle, tambem com a +espingarda engatilhada, para o que desse e viesse. + +Mas não podiam fazer assim fogo, á falsa fé, detraz de um rochedo, como +o ladrão que espera um homem e o mata para roubar. Teve este pensamento +e sem importar-se com as ordens recebidas bradou: + +--Quem anda ahi? + +Não teve resposta. Repetiu a pergunta. O mesmo resultado. Ainda +duvidoso, e para certificar-se ou intimidar os tripulantes do bote, +disse com voz mais forte: + +--Vocês são mudos?! Talvez uma bala os obrigue a falar. + +Do bote partiram dois clarões repentinos. + +Uma das balas tirou uma lasca de pedra, ao pé do Vicente. + +--Ah! Grandes ladrões, esperem lá! gritou o João Luiz e ambos os +guardas, com as armas descançadas na rocha, desfecharam ao mesmo tempo, +quasi instinctivamente. + +Do lado do mar pareceu-lhes que viera um gemido, mas, passada a +obcecação momentanea produzida pelos clarões, já não enxergaram a +embarcação. + +O silencio da noite era quebrado tão sómente pelo arfar do oceano junto +á rocha. + +O estampido fez com que chegassem, em acto continuo, o chefe fiscal e +os doze guardas. + +A denuncia tinham-a dado provavelmente os mesmos contrabandistas, +marcando para outro sitio o desembarque, a fim de desnortearem a gente +da alfandega. + +O chefe zangou-se muito, por deixar de se fazer a tomadia, mas a +final cahiu em si e absolveu o guarda, pela consideração de que +contrabandistas de tanta audacia não se venceriam ás primeiras. Demais, +o perigo tinha-lhe merecido sempre um especial desagrado.--Duas horas +depois dormia em casa a somno solto. + +O João Luiz esteve de serviço toda a noite. + + * * * * * + +Rompeu formosa a manhã immediata. + +Quando o guarda se recolhia a casa, o sol já ia alto e lançava myriades +de setas de oiro atravez da atmosphera, lavada pela chuva dos dias +anteriores. O mar, á direita, encrespava-se em ondas curtas, e alongava +na praia linguas de espuma. + +Quasi ao entrar na Horta o João Luiz avistou no areal, á borda da +agua, um grupo de homens a rodear curiosamente o que quer que fosse. +Chegaram-lhe simultaneamente aos ouvidos, uns gritos de mulher. + +Approximou-se e viu um cadaver extendido na areia. + +Reconheceu o Estacio. + +No peito, que a camisa aberta e ainda molhada deixava a nu, havia um +buraco pequeno, redondo, negro, de onde gotejava um tenue filete de +sangue. + +A mulher do contrabandista, de joelhos ao pé do marido, soltava +gritos penetrantes, arrepellava o cabello e cahia de vez em quando +desamparada sobre o cadaver, em cujo rosto se desenhava constantemente, +persistentemente, a grande ancia que precedera a morte e que a morte +não pudera apagar. + +A infeliz cahiu finalmente n’uma atonia profunda, e sentou-se na areia, +sem despegar os olhos de cima do morto, e murmurando no meio de um +tremor: + +--Ai! O meu rico marido! O meu rico marido! + +Ao pé da mãe o _Manilinho_ chorou em quanto a viu chorar. Depois, +quando ella socegou, approximou-se do pae, poz-lhe as mãosinhas na +cara, e disse a medo, muito admirado: + +--Como o pae está frio! E sempre a dormir! + +O guarda, horrorisado de si mesmo, pois fôra talvez a bala da sua +espingarda que tinha morto o irmão, olhava para o pequenino, e ao vel-o +tão innocente e tão divinal, levantou os olhos para o ceo, e perguntou +porque seria que Deus, mandando á terra anjos como aquelle, os não +deixava fazer milagres. + + +[Ilustração] + + + + +[Ilustração] + + + Piloto + + +JÁ vinha anoitecendo, quando o Sergio, de pé descalço e com a trouxa da +roupa enfiada n’um cajado e pendente do hombro, saltou da estrada para +a rocha. + +Sobre o horisonte occidental as nuvens, em longas fitas franjadas, +perderam a claridade vivissima de um quarto de hora mais cedo, e tomam +uma côr plumbea esbranquiçada: pelo resto do ceo alastra-se um azul +uniforme, que a diminuição de luz vae tomando mais opaco. + +Convencido de que ninguem o vigiava, foi descendo a escarpa de rocha +em direitura ao mar, onde se avistava, muito ao longe, um navio, com as +velas pandas de vento. + +--Se alguem me viu é que está o diabo, pensou o rapaz, e novamente +lançou a vista pela ribanceira acima, e pela enfiada dos pincaros, +que recortavam lá muito no alto, sobre o azul, o seu perfil dentado e +sombrio. + +Áquella hora, a estrada é pouco frequentada. Só de vez em quando lá +passam tres ou quatro trabalhadores, que foram dar o dia á Horta, e que +voltam para casa, a bom andar, antegostando a ceia, só de avistarem uma +ou outra chaminé lançando pachorrentamente, para a limpidez do ar, uma +espiral de fumo. + +O Sergio, depois de olhar por muito tempo, a ponto de os objectos +fixados se lhe tornarem quasi indistinctos, poisou no chão a trouxa, +onde vinha toda a sua roupa e um bôlo torrado rescendendo a milhã +cheirosa, e sentou-se com os pés muito perto da agua, que chapinhava +brandamente no interior da pequena angra formada, n’aquelle sitio, +pelos rochedos da costa sueste do Fayal. + +E tempos sem fim, com os olhos fitos em o navio, que bordejava a boa +distancia de terra, ficou absorto no meio d’aquelle grande silencio, +esperando pela canoa, que havia de leval-o a occultas para bordo da +baleeira, conforme tinha tratado com um _senhor da villa_. + +Sem saber como, foi perdendo a grande resolução que trazia de +embarcar, para fugir ao recrutamento e não ir para a Terceira, para o +_Castello_. + +Obedecia tambem a outra razão: na baleeira ia ter á America, á +_Calafóna_, onde tinha enriquecido o Luiz Garcia, e aquelle senhor +já velho, dono de uma casa de sete janellas ao pé da egreja da Féteira, +e tantos outros! + +Nada! O Sergio estava bem decidido, tanto que viera para alli, depois +de dar um abraço na mãe e outro no irmão, mais novo do que elle dois +annos. + +Por isso mesmo não era capaz de saber o motivo por que sentia uma ancia +no peito, um aperto na garganta, e tanta vontade de chorar. + +Talvez fosse porque a mãe o não tinha acompanhado até ali, para +despedir-se. + +--Ora! Se foi justamente para a coisa não dar tanto nas vistas! Um +visinho não lhe queria bem e podia ir participar á _villa_. Ha +gente tão má!... + +Mas, fosse o que fosse, o rapaz sentia-se a modos exquisito, e estava +já a pedir que apparecesse quanto antes a canôa. + +O que havia de lembrar-lhe agora!... + +Todas as historias que lhe tinham contado das baleeiras: a de um +capitão que moía a tripulação a pontapés e chicotadas. Um dia o +cosinheiro respondeu-lhe com uma bofetada, que o estirou no convez. +Foi logo mandado pôr a ferros, e nunca mais ninguem o viu. Contavam +depois os de bordo, que tinha sido cosido a facadas pelo commandante, e +atirado pela borda fóra. + +--Mentiras, disse por entre dentes o Sergio, e poz-se a olhar para o +mar, a ver se lobrigava a canôa. + +Não viu nada. + +--Dando se mal na baleeira, desembarcava em _Béteféte_[1], e havia +de ir parar á _Calafóna_, onde o ouro é tanto, que até se cava com +o sacho! + +Mas n’esta occasião lembrou-se de uma coisa, que o Luiz Garcia lhe +dizia ás vezes--que por cada um que voltava vivo, ficavam por lá +muitos, mortos sem se saber de que, se de fome, se de cansaço... + +--Pois sim! Apesar d’isso vão de todas essas ilhas navios carregadinhos +de gente para a America. Mal feito fôra não ir eu tambem, concluiu o +Sergio. + +Ouviu-se a curta distancia um latido, e logo depois um cão pequeno, de +pello curto, corria para junto do Sergio, muito festeiro, muito alegre. + +--Olha o Piloto! Vae-te d’aqui, diabo! + +E deu-lhe um pontapé, que o animal evitou fugindo-lhe com o corpo. Mas +d’alli a um instante já voltava, caracolando-se. + +--Txeta, _Caim_! exclamou o Sergio mais zangado ainda, e atirou +uma pedra ao cão, acertando-lhe n’um vasio. + +O Piloto, ganindo e de cabeça baixa, subiu a rocha, deitou-se no cimo +e poz-se a espreitar o dono, com o focinho extendido sobre as patas, e +os olhos fulvos brilhando na meia obscuridade, como dois carvões mal +apagados. + +--Admira que viesse dar commigo! pensava o Sergio, sentando-se de novo. +Se o tinha fechado no palheiro!... + +Insensivelmente foi voltando ás idéas de momentos antes. + +Mas com essas vinham outras... + +Sim! Quando o cão fosse d’alli para casa, havia de empurrar a porta com +o focinho, e se não a podesse abrir, ficaria a raspar com as unhas até +que apparecesse alguem, como tinha feito ainda na vespera, ao tornar +com o dono da _folga_ do José Pedro. + +--Mas esta noite volta sósinho! + +E a este pensamento o Sergio sentiu a garganta apertar-se-lhe ainda +mais, porque se lembrava de que a pobre mãe teria a mesma idéa e havia +de chorar pelo filho, que já andaria a essa hora sobre as aguas do mar. + +Para esquecer-se, começou a recordar-se da _folga_, onde tinha +bailado com a Anna cinco _chamaritas_ a fio, a ponto de o José +Pedro, já de mau modo, dizer o costumado «Caras novas ao terreiro!» + +Era boa rapariga a Anna. Quando o vigario da Féteira os via juntos a +conversarem, dizia-lhes por graça: «A modo que vocês ainda me hão de +dar que fazer lá na egreja.» + +Um e outro ficavam encarnados como uns pimentões, mas não queriam mal +ao sr. padre por _entícar_ com elles. Se andava sempre com o +_canîcînho_ na agua!... + +Lembrou-se depois de que a Anna, apesar do que lhe tinha promettido, +podia cansar-se de esperal-o e casar com outro, por julgar que elle, +colhendo-se á solta, faria como os passaros, e não voltaria ao laço. A +mesma peça tinha pregado a Aurelia ao João Furtado. + +Só com esta desconfiança, o rapaz sentiu uma afflicção enorme, que lhe +subia ao peito e o afogava: fincou os cotovellos nos joelhos, apertou a +cabeça entre as mãos e poz-se a chorar desapoderadamente. + +Só tinha chorado assim no dia da morte do pae. Uns homens mal encarados +vieram metter o defuncto na tumba. A creança poz-se nos bicos dos pés e +deitou a cabeça por cima de um dos lados d’aquella caixa preta: quando +viu o pae lá dentro, muito amarello, imaginou que aquelles homens é que +lhe haviam feito mal, que o tinham _pisado_ muito e desatou n’uns +taes gritos, que ninguem o pôde calar. + +D’ahi por deante nunca mais chorara. Por isso os olhos lhe tinham +tantas lagrimas e o peito tantos soluços. + +O Piloto veiu no entretanto chegando-se para o dono, manso e manso; +pousou-lhe as patas deanteiras sobre a perna e começou a lamber-lhe +as mãos e a cara com uma grande meiguice, como se quizesse consolal-o +n’aquella dôr. + +O rapaz não teve alma de enxotal-o. Afigurou-se-lhe que não era o cão, +mas a familia, a casa, todos os sitios por onde o Piloto o seguia, que +estavam a chamal-o carinhosamente; que a mãe e a Anna lhe diziam ao +ouvido, baixinho: «Não te vás. Podes ser feliz na tua terra, com a tua +mãe, com a tua mulher!» + +Levantou-se de chofre, poz a trouxa ao hombro, e galgou a rocha. +Chegado ao cimo, estacou duvidoso: + +--Mas então ia parar ao _Castello_!... + +Um senhor da villa promettera-lhe uma vez, que se fosse com elle no +tempo dos votos, o livraria de ir para soldado. + +--Não lhe custava a deitar um papel na egreja, affirmava o rapaz. + +Na pequena angra entrava n’este momento a canôa. Uma voz dizia +asperamente: + +--Onde estará metido aquelle diabo? + +O Sergio, já de longe, ouviu isto, e agachou-se um pouco, receioso de +que o vissem apesar do escuro que fazia. + +O Piloto, diante d’elle, com as orelhas fitas, olhava ameaçador para o +lado do mar. + +--Ó sior, não está ninguem, dizia uma voz com accento africano. O moço +arependeu-se. + +--Marau! Tinha jurado!... + +E chamou outra vez: + +--Eh! rapaz do diabo!... Nada! + +Os remos bateram na agua. + + * * * * * + +Quando um quarto de hora depois o Piloto entrou no quintal da casa, +estava tão fóra de si, que até ladrou ao gato. Este não fugiu, mas, +resentido pela singularidade do ataque, levantou a mão severamente para +esbofetear o companheiro. E assoprou. + +O Piloto tinha desculpa: não voltava sósinho. + + +[Ilustração] + + + + +[Ilustração] + + + Na Vindima + + +ESTÁ prestes a findar a rude labutação. + +Os cachos túmidos, e alourados pelo sol estivo, já quasi desappareceram +das videiras, e o môsto, o sangue da vinha, corre a flux, denso e +espumante, pela bica do lagar, espremidas as uvas sob os pés dos +homens, que aturam tempos sem fim n’aquelle trabalho, como se os +vapores saídos do engaço lhes augmentassem as forças com a excitação da +meia embriaguez. + +A mesma animação nos demais trabalhadores, que, ajoujados ao peso dos +cestos vindimos, levam os cachos para o lagar escuro e fresco. Qual +d’elles, para expandir a alegria ou sentir menos a faina, entôa a +meia voz um dos cantos populares da ilha do Pico, dando á melodia mais +triste uma expressão festival. + +Alguns, para mourejar na freguezia de S. Roque, vieram de longe, de +muito longe, e estão alli ha perto de um mez, separados das familias, +anciosos por lhes ganharem um pedaço de pão. + +Um d’estes era o João Ignacio. + +Tinha abalado da outra banda da ilha, dos cabeços perdidos nos matos +sobranceiros á villa das Lages, deixando a mulher, as filhas--duas +moçoilas frescas e desempenadas, e o filho, um rapazote que dentro em +pouco já poderia ajudal-o. + +A mulher, coitadinha! estava muito acabada, não pela idade, mas pela +doença. + +Pois o João Ignacio ia ter uma grande satisfação. + +Mandado pela mãe, o pequeno tinha feito a enorme caminhada e já andava +alli perto, deitando inculcas, para saber onde encontral-o. Trazia-lhe +noticias frescas de todos os de casa: da doente, das irmãs, e até do +Calçado, muito rosnador com a velhice, e da porca, que estava gorda, +gorda--uma perfeição de animal! + +O João Ignacio topou o filho á porta do lagar, onde tinha despejado +mais um cesto. + +Deitou-lhe a benção, arredou-o de si um quasi nada para miral-o de +alto a baixo, e tendo-o visto são e escorreito, deu-lhe uma palmada no +hombro. + +--Basta que sim! Estaes rijo como... + +E sem enunciar o termo da comparação, perguntou pressuroso: + +--Como vae a porca? + +--_Álhora!_... O pae então pergunta-me pela porca, e não quer +saber da minha mãe? + +--Eh! rapaz! A porca custou dinheiro e vossa mãe não me custou nada! + + +[Ilustração] + + + + +[Ilustração] + + + + + O Jantar Do General + + +NÃO sei com certeza se o general tinha desembarcado nas praias do +Mindello. + +O Garcez, coronel de caçadores 12 e cultor eximio da _arte de dizer +mal dos seus superiores_, affirmava que não; o Dionysio, soldado +de veteranos, dizia que sim, e jurava o até, se alguem se mostrava +duvidoso. + +Ora o veterano tinha razão para estar bem informado, porque fôra +impedido do general, durante trinta e oito dos quarenta annos de +serviço attestados pelas quatro divisas brancas, que se lhe estiravam +pela manga da fardeta. Verdade é que ás vezes o Dionysio tinha +singulares confusões--patetices de seiscentos diabos, qualificava o +patrão. + +Uma, principalmente foi originalissima. Uma?... Uma serie d’ellas. + +O general commandava n’aquelle tempo a nôna divisão militar, hoje +defuncta. + +Na Madeira a vida corria-lhe em maré de rosas. + +Tendo-se recordado do inglez aprendido em Bragança com o major do +seu regimento,--um official britannico que acompanhára D. Pedro IV a +Portugal e fizera toda a campanha,--o general tornou-se frequentador +assiduo das sociedades funchalenses onde predominava o elemento +estrangeiro. + +Pelo seu espirito de velho solteirão impenitente, chegaram até a +perpassar planos casamenteiros, confusos e indeterminados no principio, +claros e definidos logo que appareceu no Funchal miss Lorely, a filha +de um lord, viva e _espiègle_ como uma parisiense, e exuberante da +formosura peculiar das inglezas. + +Então o antigo cadete de cavallaria 10, ou não sei quantos, formou +planos estrategicos com uma pericia, que talvez o não acompanhasse +até ao campo de batalha. Pôz ao serviço d’aquelle tardio amor todos +os recursos do seu espirito, que eram poucos, e todas as vantagens da +sua posição official, que eram muitas. Passeios militares, exercicios, +tudo foi largamente aproveitado. E de tarde, no atrio do palacete das +Angustias, onde morava a seductora _miss_, tocava sempre a banda +regimental, cujos effeitos maravilhosos Eduardo Pailleron preconisou, +muito depois e com infinito espirito, no segundo acto da _Edade +ingrata_. + +Mas tambem o que elle soffria!... + +A prima dos Norfolk e dos Buckingam tinha sabido ou adivinhado que o +senil Lovelace professava, com o maior fervor, o culto do dinheiro. +Jurou logo aos seus deuses, fazer do seu apaixonado um perdulario; e +tão bem se saiu da empresa, que o general offereceu d’alli a pouco um +_lunch_, a ella e á officialidade do batalhão, n’um dia de passeio +militar a Camara de Lobos--o general que, de tanto jantar fóra de casa, +«tinha avenca na chaminé», segundo a phrase malevola do Garcez. + +Ora foi justamente por esta occasião, que o Dionysio cahiu na tal +serie de enganos. O patrão--Dionysio depois de reformado continuava a +servil-o--estava a arranjar-se para ir jantar a casa de _miss_ +Lorely. A agua circassiana terminara o seu papel, e entrava em scena +o espartilho, quando surgiu um tormento, que fez perder á victima o +desejo de ir ver a beldade. O general acabava de sentir no joelho +esquerdo as presas aguçadas da gotta, a morderem-o cruelmente. A dor +foi tal que lhe arrancou um grito. Ataque para durar tres dias pelo +menos. + +--Mas então era preciso mandar uma desculpa. + +Pegou numa penna e dispoz-se a escrever no bilhete de visita algumas +palavras em inglez. + +Por fatalidade o major só lhe tinha ensinado a falar a lingua de Pope; +quanto a escrevel-a, não se lembrou d’isso. Nem tudo póde lembrar. + +--Ó Dionysio? + +--Prompto, meu general! + +--Tu sabes onde mora aquella senhora ingleza, a quem eu costumo +visitar!... + +--E a quem faz o seu pé d’alferes? + +--Mau, Dionysio! Sabes onde ella mora? + +--Não saberei eu outra coisa! + +--Pois então leva-lhe este bilhete de visita, e dize á creada que mando +muitos cumprimentos á senhora, e que lhe peço desculpa de não ir hoje +lá jantar, mas que estou doente. + +--Isso não é nada. Ande, vá, olhe que em casa não se lhe arranjou +comida. + +--Cala a bocca, pateta! Dize-lhe tambem que estou de cama e que por +isso não posso escrever-lhe. + +--Éna que patranha!... + +--Meia volta á direita, maroto, e não te esqueças de nada! Estás cada +vez mais urso. + +--Somos dois, meu general! respondeu o velho, rodando sobre os +calcanhares e caminhando para a porta, em quanto o patrão lhe atirava, +por entre dentes, os epithetos de «burro, camello e animal». Ao mesmo +tempo agarrava o joelho esquerdo com ambas as mãos, e soltava uns +gemidos surdos, que tinham o que quer que fosse de grunhidos. + +De repente gritou: + +--Olha lá! + +O soldado appareceu á porta, e olhou desconfiado para o general. + +--Traze-me jantar da hospedaria do costume. Não te esqueças! + +--Sim senhor, fique descançado. + +E saíu. + + * * * * * + +Á porta da casa das Angustias, situada no meio de um esplendido jardim, +o Dionysio foi recebido pela Luiza, creadinha madeirense, que á força +de lidar com inglezes se fazia entender por elles, e assim arranjava, +em todos os invernos, excellentes casas para servir. + +O veterano, depois de lhe deitar uma olhadela brejeira, apresentou o +bilhete. + +--O meu general manda isto á senhora, porque não póde vir cá hoje. Está +com o seu rheumatico. + +--_Saim?_ perguntou a creada. + +--_Saim, menaina_, disse o Dionysio, que nunca perdia occasião de +imitar a pronuncia madeirense. + +--A _mecê_ a modo que está _tirando precipicio_ commigo! +replicou, meio formalisada, a creadita. + +--_Precepeicio!_... A minha _mecê_ não quer tirar-lhe nada. +Agora se eu fosse mais novo uns trinta ou quarenta annos... + +--Se fosse mais novo? perguntou a rapariguinha já a sorrir. + +--Mau! Mau! Basta de conversas, que o patrão mandou-me levar-lhe o +jantar. + +--De cá? + +--Pois se fôr de cá, melhor ainda, por certos motivos... Cá é que elle +vinha comer o jantarinho, e por conseguinte tambem de cá lh’o pódem +mandar. Pois não acha? + +A Luiza transmittiu fielmente o recado a sua ama. O pedido final +produziu o effeito hylariante de uma boa caricatura do _Punch_. + +Morta de riso, mas duvidosa ainda, não obstante a fama de Harpagão +do seu apaixonado sexagenario, miss Lorely mandou a Luiza interrogar +novamente o veterano. + +--Ó mulher de ... não sei que diga, já lhe expliquei que elle queria o +jantar. + +D’alli a pouco um creado, de casaca e gravata branca, entregava ao +soldado um grande açafate, donde se exhalava um perfume capaz de fazer +crescer agua na bocca ao menos glotão. + + * * * * * + +O general quando viu o Dionysio ir tirando do açafate, que lhe derreara +os braços, uns após outros, muitos pratos de porcelana finissima com +excellentes iguarias, ia tendo uma syncope. + +--Quanto lhe não custaria aquelle jantar? pensou, e gritou logo para o +veterano: + +--Ó patife, não me dirás onde foste buscar tudo isso? Talvez a +essa hospedaria da Entrada da Cidade onde pagam uma libra por dia +os hospedes permanentes! Um jantar assim ... que sei eu?... é um +dinheirão!... + +--Cale-se para ahi, resmungou o Dionysio. É um jantar de principe e não +lhe custa um vintém! + +--Não custa! + +Dionysio explicou tudo. + +O general caíu prostrado n’uma cadeira, com a perna ainda mais +espicaçada pela gotta. Depois, tomando uma resolução heroica, tirou +tres libras da bolsa. + +--As ordenanças ainda ahi estão? + +--Não foi o meu general o proprio que as mandou para o quartel? + +--Bem! Pois então irás tu novamente, mas vê lá não me faças outra +asneira!... + +--Outra! Qual foi a primeira, diga! + +[Ilustração] + +--Toma lá este dinheiro, vae á loja de bebidas da Carreira, onde eu +te mandei no outro dia, e pede ao caixeiro que te dê seis garrafas de +vinho da Madeira do melhor. + +--Gasta-se tudo isto? + +--Pois de certo.--E o general apertou de novo o joelho.--Elle que te +empreste um cesto, e vae levar o vinho, n’um rufo, a casa da ingleza, +com mais este bilhete de visita... Dize á senhora que te enganaste e +que eu amanhã lhe explicarei tudo. + + * * * * * + +Em quanto o general, pelo sim pelo não, ia comendo o jantar, Dionysio +desempenhava conscienciosamente a commissão, até chegar á porta de +_miss_ Lorely, e tambem depois de entregar o vinho á creada. + +D’alli a pouco voltou a Luiza com meia libra em oiro, e deu-a ao velho. + +--A senhora manda muitos cumprimentos... + +Dionysio interrompeu-a: + +--Isto é para pagar o vinho?... + +A creada desatou a rir. + +--Ah! Você ri-se? Pois se a senhora quer pagar o vinho, então ha de pôr +para aqui mais alguma coisa. Diga-lhe que não é uma, que são seis meias +librinhas--tres libras! + +A Luiza, rindo a bandeiras despregadas, foi levar o recado á ama, que +riu muito mais ainda. + +D’alli a pouco recebia o Dionysio tres libras. + +--Aqui levo dinheiro de sobra, disse elle, e ia entregar honradamente a +meia libra do principio. + +--Essa é para a _mecê_, fez-lhe notar a creada. + +--Acceito para não fazer desfeita. Adeusinho, minha flor, e obrigado! + + * * * * * + +Quando o general acabava de jantar, chegou o Dionysio com as tres +libras. + +A explicação foi longa e calorosa. + +Tanto gritou o amo como o creado. + +--Ora ainda em cima! Por eu lhe zelar o que é seu! respondia o +Dionysio, indignado. Se vocemecê gastasse as tres libras, dava-lhe p’ra +ahi alguma coisa, e nunca mais prestava para nada. + +O caso é que o general parecia ter-se restabelecido instantaneamente +da gotta. Vestiu-se á pressa, e foi ás Angustias, pedir desculpa a +_miss_ Lorely. + +A ingleza perdoou tudo, e confessou ao seu apaixonado que nunca se +tinha divertido tanto. Partícipou-lhe ao mesmo tempo que, em voltando +a Inglaterra, casaria com um primo, de quem era noiva desde os quinze +annos. + +Nem por isso o general deixou d’alli em diante de jantar nas Angustias, +nem a musica de tocar no atrio do palacete. + +Se perdia a noiva, não queria perder tambem os jantares. + +Quanto ao Dionysio... + +Continuou trapalhão como sempre. + +E por isso eu, não me fiando no que elle dizia e sem paciencia para +tirar a limpo este ponto historico, termino como principiei: + +Não sei com certeza se o general tinha desembarcado nas praias do +Mindello. + + +[Ilustração] + + +[Ilustração] + + + + + O Aprendiz De Barbeiro + + +A Maria José saiu da Candelária de noite escura, e por isso quando +chegou á Magdalena não estava ainda um unico freguez a fazer a barba na +loja de João Cardoso. + +O pequeno d’ella, o Antonio, apenas a viu, largou uma navalha que +estava afiando no assentador e correu para a porta. + +A mãe puxou-o para fóra, porque não queria que o mestre ouvisse o que +ella tinha que dizer ao filho. + +Vergonhas não se querem assoalhadas. + +Olhou para o rapaz, e a voz prendeu-se-lhe na garganta. Tinha pejo, mas +por fim decidiu-se. Ella bem queria lidar como as outras mulheres, que +a bem dizer fazem por toda a ilha o dobro do trabalho dos homens, mas +não podia, por causa d’aquella mão aleijada. + +Já não sabia com que cara apparecesse ás visinhas. Tinham todas muita +pena d’ella, é verdade, ajudavam-a a viver, mas ás vezes, por muita +vontade que tivessem, tambem não podiam. Só Deus sabe das faltas, que +cada um padece! + +Pedir aos ricos, nem pensar n’isso... Quem nunca soube o que é não ter, +menos acode aos que precisam. + +E vae d’ahi lembrou-se, custando-lhe muito, de vir pedir alguma +coisinha ao filho. + +O Antonio bem queria fazer-lhe a vontade, mas como? A féria d’aquella +semana já estava gasta n’um fato, que tinha ajustado dias antes, e por +signal bem barato. O mestre João não queria ver em casa maltrapilhos, +não tanto por si, mas por ’môr dos freguezes. Á sua loja iam os +senhores mais ricos da villa. + +--Não pódes então dar-me nada? perguntou a Maria José, com os olhos +rasos de lagrimas. + +--Posso, sim senhora, mas é tão pouco... A minha mãe bem sabe que se +muito tivesse... Porque estou eu aqui? Para mais a míudo lhe poder +fazer bem, e para ir vel-a de vez em quando. Mas um dia pego em mim e +abalo n’uma d’essas baleeiras! + +--Lá isso não, filho, só se queres matar-me! Bom de lei és tu. Excusas +de m’o dizer! Saes todo a teu pae. Ah! Que se aquelle Caim do Gaspar +Dutra não m’o tivesse matado!... Coitadinho! Ainda estou a vel-o a +arquejar, com a cara toda suja de sangue--parecia um bicho!--os olhos +já envidraçados a fincarem-se em mim ... como a querer falar, mas sem +poder! Era para me dizer quem o tinha atirado do alto da rocha. + +Mas a esse respeito não restavam duvidas á Maria José. + +É verdade que na audiencia em que o Gaspar Dutra foi responder ao Caes +do Pico, porque o suspeitaram do crime, visto andar ha muito de rixa +com o Manoel Luiz, o absolveram por falta de provas, e não appareceu +uma só testemunha de vista. + +Mas d’ahi a dias, depois de o malvado embarcar para a America, por ter +ficado muito arrastado com os gastos da justiça, appareceu em casa da +viuva, já perto da noite, a tia Quiteria que tinha uma fazendinha na +rocha, mesmo ao pé da outra por que o Gaspar Dutra e o Manoel Luiz +andavam desavindos. + +A velha tomou de parte a Maria José e depois de obrigal-a a jurar que +não diria nada a ninguem, em quanto ella fosse viva, contou-lhe toda a +historia do crime. Estava perto do sitio, mas nem um nem outro a tinham +visto. + +--O Gaspar Dutra é que começou a _abregoir_. O Manoel Luiz +desesperou-se e disse-lhe uma má palavra.--Os santos estão no altar!--O +outro poz-se fulo, correu para o Manoel e colhendo-o á falsa fé, +tal geito lhe deu que o _prantou_ pela rocha abaixo. O corpo a +principio não levava muita força, mas depois caíu tão depressa, que +nem uma bala de espingarda. Quando deu no chão da rocha, onde ficou +estatelado e de braços abertos, vinha já de uma altura de tres ou +quatro casas de sobrado. Rebentou-lhe de certo alguma coisa lá por +dentro, tanto que o pobre do homem não disse mais palavra na meia hora +que ainda viveu. + +A Quiteria desculpou-se de se ter calado áquelle respeito, dizendo que +o Gaspar Dutra e o irmão não eram _boas folhas_. Se o matador, por +causa d’ella, fosse parar á costa d’Africa, o outro era muito capaz +de lhe fazer alguma, que désse que falar. Era o Gaspar tão ruim, que +andando embarcado tinha querido matar o cosinheiro de bordo, e levara +n’essa occasião duas navalhadas, de que lhe resultou o signal em cruz, +que tinha na barba, do lado esquerdo. + +O Antonio ouvira dezenas de vezes a mãe contar a historia, mas nunca +tinha sentido tamanha amargura, um desejo tão furioso de vingança. + +Estivesse o pae ainda vivo e a mãe não precisaria de pedir esmola, e já +elle teria ido para a America enriquecer, e não estaria alli a ganhar +tão pouco. + +E lembrou-se do pae--das festas que elle lhe fazia quando vinha á noite +para casa, seguido pela _Boníta_, a cadella de gado. Ceiavam, e o +pequenito para adormecer queria sempre que o pae o deitasse no collo. +O Manoel Luiz fazia-lhe a vontade, e mal o Antonio estava pegado no +somno, despia-o todo, deitava-o na cama, com um cuidado, um carinho, de +que nem a propria mãe seria capaz. + +Quando o pae morreu, o pequeno tinha oito annos. Mostrou pena, como se +já fosse uma pessoa grande. + +N’aquella manhã renascia a dôr. + +A mãe com tanta precisão de dinheiro para matar a fome, e o filho tendo +só um pataco que lhe dar! + +O mestre João era muito agarrado ao dinheiro e não lhe emprestaria +nada. + +Metteu a mão na algibeira, levou-a muito fechada até á mão direita da +Maria José, e deixou-lhe a moeda entre os dedos, escondida. Beijou a +mão da mãe e poz-se a chorar. + +N’isto a voz de João Cardoso, chamou de dentro imperiosamente: + +--Antonio! Ó Antonio! + +O rapaz entrou na loja, de corrida. + +Já lá estavam dois freguezes. + + * * * * * + +A concorrencia foi grande n’aquelle domingo. + +Todos queriam apresentar-se na missa conventual com a cara bem +escanhoada, para que nada deslustrasse o fato de ver a Deus. + +João Cardoso, sem perder a presença de espirito, ia desbravando os +matagaes incipientes que, por ausencia da navalha, tinham brotado +n’aquella semana. + +Animou-se gradualmente a conversa. De um assumpto politico--a escolha +do futuro regedor--saltou para o phylloxera, que tinha apparecido pouco +antes n’uma vinha do Fayal. + +--Aquillo--opinava o Estacio Manuel--é pelos modos um bicho que come a +raiz da cepa, como o caruncho roe a madeira, e o gusano o costado dos +navios. + +--Bicho me pareces tu--atalhou o Amaro, do seu canto.--Se fosse bicho +podia-se lá dizer que tinha apparecido uma nódoa d’elle!... + +--Nódoa? + +--É o que ainda agora li no _Fayalense_. Nódoa de bicho, não +entendo. + +O Estacio não se deu por vencido: + +--É que as terras aonde elle chega ficam pretas como esses +_mysterios_, que ahi temos por toda a ilha. + +O mestre barbeiro ensaboava, n’esta occasião, a cara do terceiro +freguez; suspendeu a operação e voltando-se para o auditorio, exclamou +sentenciosamente: + +--Sabem o que lhes digo? que se essa praga de nome tão arrevezado salta +do Fayal para cá, adeus vinhas do Pico! É cada qual entrouxar a roupa e +ala para _Bastão_![2] + +Não tinham acabado ainda os applausos provocados pelo dito, quando +entrou na loja um homem trigueiro, muito alto, largo de hombros e um +tanto desmanchado no andar. Na orelha direita d’este colosso luzia +uma arrecada lisa e pequena, e nos pulsos e nas costas das mãos +alastravam-se, em prodiga tatuagem, ancoras e estrellas. + +O sino da egreja proxima tocou passados instantes, chamando para a +missa. Era a terceira vez. + +Ficaram só dois freguezes na loja. Um, que o mestre começou a barbear, +tinha ouvido a missa das almas. O outro, o da arrecada, coube ao +Antonio, e não mostrou dar grande attenção ao chamar pressuroso do sino. + +No entretanto pelo largo batido de sol passavam azafamadas e alegres +as raparigas do povo, com os lenços de chita, de pontas desamarradas, +presos á cabeça somente pelos chapeus de palha de abas largas e copa +baixa, cingida por um cordão de lã encarnada. Para ellas a missa +não é só uma devoção, é o repouso, o esquecimento momentaneo de uma +existencia monotona e trabalhosa. + +O Antonio não podia mais. Ainda bem que era aquelle o ultimo freguez! +Depois da missa não viria mais nenhum. Não sabia como se tinha +aguentado tanto tempo. O seu desejo era fugir d’alli, e, quando ninguem +o visse, desatar a chorar desconsoladamente, para ver se lhe passava +aquella ancia, que o affligia. Só por grande milagre não enchera de +lanhos as caras dos freguezes. Felizmente aquella barba depressa se +fazia. Não tinha menos de quinze dias, pouco resistia á navalha. + +O rapaz teve de repente um deslumbramento. Na face esquerda do homem +que estava alli, nas mãos d’elle, havia um signal, que a principio se +não podera ver, porque a barba o escondia, e que era exactamente egual +ao do Gaspar Dutra: duas cicatrizes em cruz! + +Perguntou, com a voz algum tanto suffocada: + +--O senhor é cá do Pico? + +--Eu? Sou. E porque?... + +--É da Candelária? + +--Quem t’o disse? + +--Quiz-me parecer. E chama-se?... + +--Gaspar Dutra. Tens alguma herança para me entregar? Ha-de ter morrido +muita gente minha, n’estes oito annos que estive na America. + +Não havia duvida. + +O rapaz sentiu nos ouvidos um zumbido ensurdecedor, faltou-lhe a vista, +passou-lhe um calafrio por todo o corpo. Devia ser assim a approximação +da morte! + +Tornou a encarar toda a sua desgraça. Exerceu, porém, um esforço +violento sobre si mesmo, e serenou apparentemente. + +O Gaspar não suspeitou de nada. Via-o de costas, afiando a navalha. Por +fim disse-lhe de repellão: + +--Anda! Acaba com isto! + +--Sim, senhor... + +--Tu estás parvo! bradou-lhe o mestre, do outro lado da loja, sem +largar a cara, que já tinha meio rapada. + +O aprendiz poz machinalmente mais sabão na barba do freguez. + +--És da Candelária? continuou este. Conheces lá muita gente? + +--Conheço... Conheço a Maria José, viuva do Manoel Luiz... O senhor +conhece-a? + +E os olhos, que se fitavam no fio da navalha virado para a garganta do +Gaspar, levantaram-se n’uma interrogação anciosa. + +--Olá se conheço! E tambem conheci o marido... Um grande marau! + +O Antonio teve um espasmo. Os nervos contrahiram-se-lhe medonhamente, +e o gume do aço cortou bem fundo no pescoço bronzeado do assassino, +abrindo uma ferida alongada, de onde o sangue espadanou com violencia. + +O Gaspar ainda ergueu os braços, soltou um arranco, estrebuxou e caíu +de lado, no chão. Na toalha, presa por baixo da barba, o sangue formava +uma larga mancha vermelha, que se foi extendendo a mais e mais. + +João Cardoso e o outro homem, extaticos, boquiabertos, transidos de +pavor, não ousavam approximar-se. Por fim, em quanto o freguez corria +para a porta a gritar «Aqui d’el-rei!», o mestre, vendo a navalha caída +no chão, chegou-se ao pequeno, que estava de parte, todo a tremer, e a +olhar com espanto para aquella massa enorme agitada pelas convulsões da +agonia. + +Agarrou-o por um braço e perguntou-lhe: + +--Que foi isto, _grandessissimo_ diabo? + +E o Antonio, a gaguejar, como um bebedo: + +--Foi ... foi elle ... que matou meu pae! + + +[Ilustração] + + +[Ilustração] + + + + + A Allemã + + +FOI ha bastantes annos que a vi pela primeira vez. + +Loução e garrido, balouçava-se brandamente na enseada do Funchal o +_Maria Pia_, vapor da carreira de Lisboa, e rodeado ainda por um +enxame de botes, que tinham levado para bordo passageiros e bagagens, +apromptava-se para deixar, depois de uma visita de tres dias, a +denominada _Flôr do Oceano_. + +Eu, debruçado na amurada, e já amargurado pela saudade, seguia +tristemente com a vista um barco que, aproado á terra, ia tornando cada +vez maior a distancia que começava a separar-me dos unicos entes a quem +prezava no mundo. + +Estava, havia não sei quanto tempo, n’esta contemplação, quando +attentei n’outro bote, que, fazendo força de remos, demandava +rapidamente o vapor, apesar de o tiro da partida ter já de ha muito +resoado pelas fragas que bordam a Madeira. + +[Ilustração] + +Não tardou que atracasse ao navio, e momentos depois entrava para o +convez uma senhora com o rosto tapado por um veu cinzento, e amparada +por dois sadios filhos da ilha, em quem reconheci dois _homens +de rede_, os quaes tamanho serviço alli prestam aos tisicos, +transportando-os n’aquelle commodo descanso, tão predilecto dos +creoulos e de todos os que habitam as regiões tropicaes. + +Conduziram-a para uma cadeira de vimes, que já estava disposta com +segurança no meio da tolda, do lado da camara de primeira classe, e ahi +a depuzeram com delicadeza á primeira vista pouco consentanea com o +exterior um tanto rude d’aquella pobre gente. + +Feitos os ultimos preparativos para a partida, poz-se o vapor em +movimento, aproado a leste, e cortando veloz as mansas aguas da enseada. + +Tres horas, talvez, estive a fitar, primeiro as encostas accidentadas +e verdejantes da ilha, que fugiam rapidas para o lado do occidente, e +depois os pincaros abruptos, que coroam aquella enorme massa vulcanica, +e que cada vez se iam tornando menos distinctos, já assumindo uma côr +entre parda e azulada, já assimilhando-se a nuvem que mal sobrepujava a +superficie do oceano, até que finalmente se occultaram de todo. + +E eu, ancioso de rasgar com a vista o horisonte para ver uma vez ainda +os que deixára, e enviando-lhes um ultimo adeus na vaga que passava +fugaz ao lado do navio, voltei-me para dentro, triste e desanimado, +como quem de repente se encontra só na vida. + +Foi então que a pude ver. + +Imagine-se, por um momento, uma d’aquellas divindades esquivas e +vaporosas, de que a phantasia dos bardos do norte povoa os lagos e as +florestas: a mulher que eu tinha deante de mim era mais ligeira, mais +diaphana do que essas creações imaginarias. Á ultima claridade da tarde +observei-a detidamente. + +O rosto era de um esplendor lacteo, de uma transparencia de +alabastro; se bem que emmagrecido pela doença, ainda ostentava o typo +septentrional, em toda a sua formosura e pureza. + +Contrastando com a pallidez morbida, desenhavam-se-lhe nas faces as +rosas purpurinas e terriveis da tisica. + +Nos olhos, do azul mais puro, tristes e resignados, havia uma vaga +aspiração para as espheras brilhantes e luminosas, uns reflexos de além +do tumulo. + +Recostada languidamente nas almofadas que estofavam a cadeira, e com a +cabeça, aureolada de finissimos cabellos louros, descahida para traz, +olhava para o mar, com a indifferença e melancholia de quem perdeu de +todo a esperança. + +De quando em quando, uma tosse pertinaz fazia arfar-lhe o peito, e por +momentos, se bem que rapidos, transmudava-lhe a expressão do semblante, +de serena em dolorosa. + +N’outra qualquer occasião ter-me-hia despertado interesse, mas então +impressionou-me mais vivamente do que nunca, aquella mulher, moça, +bella, e, na apparencia, tão gravemente enferma, que não tinha a seu +lado um parente, um amigo, um enfermeiro sequer. + +Os passageiros, que o enjôo não obrigára a recolher aos beliches, +passavam perto d’ella com indifferença, e sómente o capitão se lhe +acercou uma vez, a perguntar-lhe se não julgava melhor descer para a +camara. + +--Melhor! respondeu ella em francez e com sorriso entre amargo e +benevolente. Aqui ao menos tenho este ar tão puro. Prefiro ficar. +Obrigada! + +E deixando caír novamente a cabeça na almofada, voltou á primitiva +immobilidade. + +Quando desci á camara, á hora da ceia, não pude esquivar-me a perguntar +ao capitão informações a respeito da desconhecida. + +Eis o que elle sabia: + +Viera no anno antecedente da Allemanha, sua patria, em companhia +de um irmão, buscar ao clima benefico da Madeira allivio para os +soffrimentos, que os medicos do seu paiz não tinham sabido debellar e a +que prophetisavam até um proximo e fatal desenlace. + +As sinistras previsões scientíficas realisaram-se, porém com uma +differença: a victima não foi ella, mas o irmão, que ferido de +morte subita, a deixou só n’uma terra de estranhos, e apavorada +com o pensamento de ver-se, na derradeira hora, cercada apenas de +indifferentes e mercenarios. + +Estar alli nem mais um momento! + +Partia pois, esperançada em ter ainda vida bastante, mercê de Deus, +para voltar ao que por tanto tempo aprendera a amar: ia morrer nos +braços da mãe. + +Ás dez horas voltei para o convez. + +Era uma noite de agosto, limpida e sem lua; mal soprava uma leve +aragem, que ia a pouco e pouco dispersando os rolos do fumo que o vapor +deixava após si. + +As estrellas reverberando nas ondas inquietas, afiguravam-se, á vista +illudida, de outros tantos luzeiros fluctuantes na massa fluida. + +O silencio imponente da solidão era perturbado apenas pelas pancadas +cadenciadas do helice, e pelo rumorejar surdo da agua em torno do navio. + +E em redor tudo immenso: a amplidão etherea e a vastidão dos mares, +o infinito e o seu espelho, como disse madame de Staël. E devassando +os arcanos da natureza, e affrontando-lhe a soberania, o homem, só e +illuminado pelo seu genio, deixando escripta na esteira do navio a +divisa do progresso. + +Logo que os olhos se me habituaram á meia obscuridade que reinava no +convez, descobri-a de novo no logar onde a tinha deixado. + +Nem eu sei dizer a tristeza que se apossou de mim. + +Tornava para os seus, porém elles, em vez da alegria que traz sempre a +volta d’um parente querido, teriam a expectação fatal d’uma desgraça +eminente. + +A mãe, ao apertar ao seio a filha, ao cobrir-lhe o rosto de beijos, +sentiria na ardencia da febre que lhe devorava a vida da sua vida, os +amplexos antecipados da mortalha. + +E aos vinte annos!... Era bem cedo para morrer, como, da meiga virgem +de Procida, diz o poeta das _Meditações_. + +Ao menos, triste consolação! uma vez arrebatada á vida, mão amiga e +carinhosa iria depôr-lhe sobre a campa as coroas votivas da saudade, e +a mesma brisa, que lhe brincara com os cabellos de creança, perpassando +por entre os cyprestes, levar-lhe-hia, nas azas perfumadas, os suspiros +dos que a choravam. + +Dois dias depois chegámos a Lisboa. + +Perdi-a de vista ao desembarcar, mas nem por isso a esqueci; e mais +tarde, nas horas de melancholia, não poucas vezes aquella mulher, antes +visão que realidade, vinha, circumdada de uma aureola de triste poesia, +pousar-me docemente na imaginação. + + * * * * * + +São passados sete annos e com elles quantas illusões!... + +Entremos por momentos na alfandega de Lisboa. + +Na casa das bagagens vae um borborinho indescriptivel: os passageiros, +chegados ha pouco da Madeira, no _Maria Pia_, e do Brazil, não +sei em que paquete, reclamam com instancia a propriedade; os fiscaes +impacientam-se; as malas e os bahus fecham-se ruidosamente, depois de +examinados pelas vistas prescrutadoras dos aduaneiros; os carros de mão +giram velozes sobre o asphalto; os sinetes, molhados em tinta azul, +percutem sem cessar os disticos de cada lote... + +Eu, á busca d’um amigo a quem esperava, ia correndo os grupos, já meio +desorientado pela confusão, quando sons ainda mais discordantes me +vieram ferir os ouvidos. + +Junto de mim, discursava-se com animação, n’aquella lingua que, segundo +já alguem disse, qualquer póde falar mettendo um fio de retroz na +garganta, e que o auctor do _Fausto_, com o melhor fundamento, +poz na bocca do diabo. + +Volto-me, para ver quem vinha juntar o seu allemão áquelle motim +destemperado, e vejo... + +Quem ha ahi que não conheça as milagrosas propriedades nutritivas +attribuidas ao medicamento, que tem o nome de uma famigerada cortezã +franceza, e que tão apregoado foi pelos jornaes das cinco partes do +mundo? + +Pois era _ella_, a allemã ... depois de ter tomado a revalescière +Dubarry. + +A principio descri dos sentidos. + +Admittia-se porventura que o ente ideal e vaporoso qual ondina do +nevoeiro, que eu entrevira n’outro tempo, se houvesse transformado no +que eu tinha deante de mim! + +Mas não havia que duvidar. + +O rosto era o mesmo, embora á transparencia alabastrina e ás rosas +da tisica tivesse succedido ... como hei de dizel-o?... o adipe +abundante e as côres sádias da robustez. A cabeça, em vez de +reclinada morbidamente, conservava-se levantada e vivaz. A fraqueza +de valetudinaria transformara-se em fortaleza, que faria inveja ás +nossas matronas de Diu, de que fala Jacintho Freire, ou a um soldado do +imperador Guilherme. + +Eu estava indignado! + +Scismara sete annos n’aquella mulher, enterrara-a, recitara-lhe nénias +sobre a sepultura, para um dia,--oh! prosa da vida!--ousar apparecer-me +sã, robusta, a vender saude. + +Era quasi uma abominação, um crime de leso-ideal; quanto melhor não +fôra que tivesse morrido! + +Mas ainda eu não disse tudo. + +Dava o braço a um allemão (era-o, com certeza!) de barba loura, e +seguiam-a duas creanças louras, uma ao collo, outra pela mão d’uma +creada tambem loura. + +Tudo louro! + +Não quiz ver mais nada, e saí precipitadamente da alfandega, +amaldiçoando o sentimentalismo, as allemãs e o cabello louro. + + +[Ilustração] + + + + +[Ilustração] + + + _O Marraxo_ + + +Um calor de rachar pedras, quanto os quatro rapazes descansaram do +trabalho. Já na vespera á tarde se tinha annunciado a léstia pelos tons +vermelhos do horisonte para as bandas do nascente. + +Os ricos e remediados podiam fugir-lhe, mettendo-se em casa, com as +portas e as janellas bem fechadas; mas elles, coitados!... + +Cá fóra chegavam a toda a parte as breves lufadas do vento abrasado +do Sahara, que parecia não ter perdido um atomo da sua ardencia com o +atravessar centenas de leguas do Atlantico, desde a costa de Africa até +á pequena ilha do Porto Santo. N’aquelle ambiente de forno, as plantas +mirravam-se de tal sorte, que se alguem apertasse entre os dedos as +folhas mais tenues, facilmente as reduziria a pó. + +Mas o mar ficava a dois passos do logar do trabalho. + +--Que rico banho, graças a Deus! pensavam os quatro. + +Atravessaram de corrida o areal a escaldar, e foram-se despir á sombra +de uma saliencia de rocha, junto ao Penedo do Somno. + +Na extensa praia que borda o sul da ilha, o ar, como ao de cima de uma +fogueira, trepidava rarefeito. Augmentava-se ainda mais a impressão +do calor, com os offuscantes clarões d’aquella areia amarella e +fina. Ninguem podia respirar, nem que fosse até lá acima, ao pico do +Castello, que muito no alto, ao noroeste, desenhava no ceo baço e +pardacento o perfil regular da sua pyramide. + +O mar estava alli ao pé. Todo frescura, espreguiçava-se na praia, +encrespado pelo sopro da léstia: ao largo, porém, com o sol +dardejando-lhe a pino, lembrava um extenso e irrequieto lençol de metal +fundente. + +--Sabem vocês uma coisa? disse um dos quatro. A modos que o mar tambem +está encalmado! + +E a rir do proprio dicto, o José desceu até ao mar, molhou a mão +direita e benzeu-se devotamente. + +Os outros fizeram o mesmo, e investiram para a agua todos a um tempo, +no meio de cachões de espuma, e soltando guinchos com a repentina +impressão do frio. + +O Francisco seguido por mais dois nadou para fóra, mas o José, que no +mar nunca tinha sido afoito, deixou-se ficar no sitio onde quebravam as +ondas. A agua nem lhe dava pela cintura. + +--Larga-te d’ahi, calaceiro! berrou o Antonio, ao vel-o na occasião em +que virava rapidamente a cabeça, para sacudir da testa os cabellos +gotejando agua. + +--Vá quem quizer, que eu cá tenho pouco folego. + +--Ah! Tu não vens? Eu já te vou escarmentar. + +Mergulhou, e reappareceu ao cabo de poucos segundos: trazia na mão uma +pedra de cal e atirou-a para o José. + +--Ah! Vocês querem fazer-me _reinar_? disse este ultimo, deveras +amuado, e correu para o logar onde estava a roupa. Tirou a agua da +cabeça passando-lhe a mão com força, enfiou a camisa e veiu enxugar á +torreira do sol, empoleirado no rochedo que avançava pelo mar dentro. + +A umas cem braças de terra, os outros voltaram para traz. Não eram +da mesma força a nadar e por isso vinha mais fóra o Francisco, logo +adiante o Antonio e na frente de todos o Luiz. + +Com a mão direita estendida sobre os olhos, á guisa de pala, e +segurando com a outra a fralda da camisa, que o leste sacudia, o José +seguia os movimentos dos amigos com olhares invejosos. + +Mas o que viu elle subitamente?... + +Atraz do Francisco, a umas quatro ou cinco braças a agua mexia-se, e +divisava-se como que uma sombra escura seguindo os banhistas. + +--O que seria aquillo? + +Mal tinha formulado mentalmente a pergunta, deu um grito fortissimo. + +Ao de cima da agua avistava-se distinctamente uma galha escura e +delgada. + +--É um marraxo! + +Tremulo de medo, bracejando muito, desatou a chamar os outros, com +gritos entrecortados. + +O Luiz, que se tinha deitado de costas para descansar, ouviu-o e olhou +na direcção que os gestos indicavam. Como descobriu a galha do tubarão, +bradou logo: + +--Nada com ancia, Francisco, nada com ancia, e não pares!... E tu +tambem, Antonio!... Olhem o que vem lá atraz! + +O Francisco voltou a cabeça e passou-lhe pelo corpo um arrepio, como se +a agua tivesse gelado de repente. + +Em quanto elle nadasse--estava farto de o saber--o marraxo não atacava, +porque não pode morder sem parar primeiro e virar-se, a fim de voltar +para cima a bocca immensa, armada com sete ordens de dentes cortantes +como aço! + +E acudiu-lhe á memoria o triste fim d’aquelle rapaz, que um marraxo +rolara pelo meio, ao pé do ilheo da Cal. + +Mais rapidos que as ideias que lhe estuavam no cerebro, só os +movimentos que fazia nadando, e que, desordenados, o iam extenuando a +mais a mais. + +Um dos companheiros havia no entretanto chegado a terra. + +Como é que o terrivel animal o não tinha já alcançado?... Devia estar +quasi a tocar-lhe nos pés!... Não tardava a rilhar-lhe os ossos!... + +Perguntassem-lhe se preferia que um raio o fulminasse, a continuar +n’aquella agonia tremenda, e pediria que no ceo limpido, testemunha +impassivel da tragedia, se formasse de prompto uma nuvem de +tempestade, para lançar-lhe a fita de fogo, que o matasse +instantaneamente. + +Já não podia mais. O coração batia-lhe no peito, como se quizesse +arrombar-lh’o. + +Tambem já tinha chegado á praia o João. + +--Só para elle estava guardada aquella morte horrenda!... + +O José lembrou-se de que no sitio onde se despiram tinham visto um +madeiro roliço, que parecia resto de um mastro. Correu a buscal-o. +Despiu a camisa e amarrou-lh’a bem, pelas mangas. Sobre o penedo e com +o corpo inclinado para o mar, não perdia de vista o perseguido nem o +perseguidor. + +O Francisco já podia tomar pé, mas fazia bem continuando a nadar, +pois o maior perigo estava exactamente no instante em que parasse, e +assentasse os pés no fundo, para desatar a fugir. + +Ia o Luiz atirar uma pedra ao tubarão, mas o José prohibiu-lh’o com um +gesto imperioso, e bradou: + +--Nada sempre, ó Francisco, e não tenhas medo! + +Um pouco debruçado do penedo, acompanhava com os olhos esgazeados os +movimentos do peixe, tal qual o trancador de baleias no momento de +arpoar. Mas o banhista chegou á babugem da maré e logo o madeiro caíu +entre elle e o marraxo. + +--Foge, Francisco! bradaram-lhe os tres, como se fosse preciso o +conselho. + +Vendo caír-lhe diante e estacionar ao lume da agua aquella massa +branca, o marraxo voltou-se e fincou-lhe os dentes com ancia. + +--Ahi podes tu morder, cachorro! gritou-lhe o João. Surriada! + +E contentissimos, os tres atiravam-lhe pedras, em quanto o Francisco se +deixou caír na praia, extenuado e offegante. + +Sem dar pela aggressão, o enorme esqualo queria desforrar-se do logro +estracinhando a madeira, mas como a areia já lhe penetrava nas guelras, +mudou de rumo e dirigiu-se para o largo, a galha escura surgindo sempre +ao lume de agua. + +Desde aquelle dia o Francisco, por mais calor que fizesse, nunca mais +se metteu no mar. + + +[Ilustração] + + + + +[Ilustração] + + + O Pae Do Jacintho + + +EU estava debruçado no mainel da ponte, por onde se entra na quinta do +Jardim da Serra. + +Pelo ambiente volitavam effluvios perfumados, vivificantes. O sol, em +jorros de luz, animava todo o valle, onde se repercutia sem cessar +o chilro atroador dos passaros empoleirados pelos castanheiros e +carvalhos, e o murmurio do ribeiro, que formava cascata junto á quinta, +para continuar depois serpeando mansamente por entre a penedia musgosa. + +O tilintar dos chocalhos do gado, que pastava na encosta visinha, ou as +vozes das lenhadoras cantando pelo caminho do Curral, misturavam por +vezes áquelles sons, uma nota melancholica e destacada. + +De fitar a agua fugitiva ia-me penetrando da suave frescura, que +emanava das profundezas do leito escuro da corrente, e ao mesmo tempo +alentava-me a perenne vida, que palpitava em toda a natureza aos beijos +do sol deslumbrante. + +Senti uns passos ligeiros, como que medrosos, perto de mim, na ponte. + +Era o Jacintho. Vinha com elle um velho--o pae. + +Na vespera, quando saí do Funchal tinha visto o cabo surgir ao meu +lado, vestido á paisana e disposto a acompanhar a pé o cavallo que eu +montava. + +--Vaes de licença? + +--Saberá V. S.^a que sim, por um mez. Eu sou de ao pé da quinta para +onde V. S.^a vae passar estes dias, e já agora sigo aqui ao lado de V. +S.^a, se V. S.^a me dér licença. + +E o cabo, sem parar no dispendio das senhorias, não deu parte de fraco +durante o passeio de tres leguas, não ficando nem um instante para +traz do picarso, por mim alugado na rua da Queimada para a encantadora +digressão. + +Cicerone consciencioso, não omittiu o nome de nenhum dos +_demeraristas_, que tinham comprado terras á beira da estrada. +Via-se que a Guyana ingleza fôra para elles um verdadeiro Brazil, ao +contemplar as casas brancas, quasi todas com _venezianas_, de que +estavam povoados os terrenos adquiridos. + +Antes de me dizer adeus, pediu-me licença para, no dia seguinte, me +apresentar o pae. + +Coitado! Via em mim, pobre capitão de caçadores, um potentado, o que +quer que fosse de superior e intangivel, principalmente estando eu alli +perto da casa d’elle, e entendia honrar sobremodo o auctor dos seus +dias dando-lhe conhecimento commigo. + +Por isso me appareciam ambos n’aquella esplendida manhã de julho. + + * * * * * + +Ainda rijo, o velho. Encostado a um bordão, com a camisa alva de neve a +saír por baixo do collete, botas e calças brancas, a carapuça na mão, +fitava em mim uns olhinhos curiosos e sorria parvamente, á espera de +que o filho m’o apresentasse. + +--Saiba V. S.^a que aqui está o meu pae, disse o cabo. + +O velho então ganhou desembaraço e pouco tardou em contar-me toda a +sua vida. Em certos pontos interrompia a narração para mirar o filho, +extatico, embevecido, como se mal acreditasse que o pequenito doente e +franzino de quinze annos antes, se tivesse feito aquelle rapagão cheio +de robustez e capaz de vender saude. + +--O que me tem dado muitas _freimas_, sr. capitão, é elle estar +longe de mim. Nunca sei o que lhe terá acontecido ou póde vir a +acontecer. Demais, aqui, ao _meu pé_, sempre me ajudava... Se +por força tinha de saír da minha companhia, então que embarcasse para +Demerara. Lá ao menos podia enriquecer. + +--Ou já teria morrido, objectei. + +E tratei de fazer-lhe comprehender o que ha de nobre no serviço +militar, e quanto é culpado quem pretende fugir-lhe; mas o velho +abanou a cabeça, e teimou em não se deixar convencer, a despeito da +approvação, que os gestos do filho estiveram a dar-me constantemente. + +Lembrei-lhe que o Jacintho, que saíra cabo alguns dias atraz e já +mandava em praças mais antigas, era muito estimado pelos superiores, e +disse-lhe até que d’aquella massa é que se faziam os officiaes como eu. + +Não resistiu. Iam-se-lhe os olhos no seu rapaz. + +Por cima d’aquellas faces, que os frios e as soalheiras tinham crestado +e a velhice cortava de rugas, mas onde brilhavam ainda as rosas da +saude, correram duas lagrimas de satisfação. + +--O filho do Manoel de Jesus ainda está em soldado? perguntou elle ao +Jacintho. + +--Está e estará, respondeu este, com ufania. Se não sabe ler!... + +--Deveras! Então sempre serviu d’alguma coisa o que fiz por via de ti. +Lembras-te? + +A instancias minhas, referiu-me a commovente historia do seu amor de +pae--como tinha conseguido que o filho aprendesse a ler e a escrever. + +A escola era muito longe, e elle, receioso de que o pequenito, que +devia andar pelos seus seis annos, cansasse pelo caminho, acompanhava-o +sempre, antes de ir para o trabalho, pelas manhãs asperas e geladas, +quando o vento norte soprava rijamente, mais cortante do que navalhas. +O Jacintho, em muitas occasiões, desatava a choramigar, dizendo que não +sentia os pés e que já não podia dar passada. Então elle pegava-lhe ao +collo, descalçava-o, desabotoava o peitilho da camisa, e aconchegava +ao calor do corpo os pésinhos inteiriçados com o frio. Quantas vezes +sentiu cãibras no estomago, dôres muito finas, depois d’aquelle +contacto regelador!... Mas nem por isso arredava a creancinha, que ia +inclinando vagarosamente a cabeça para o hombro do pae, até que por fim +adormecia. Ao cabo de dois annos de escola, o Jacintho, «como tinha boa +_mimoira_», já sabia ler por cima. + +--E não _havera_ de ser enganado, como eu tenho sido e hei de +continuar a ser! rematou o velho, sentenciosamente. + +Encareci-lhe com enthusiasmo o seu admiravel procedimento, porém elle +recusou ingenuamente o elogio: + +--Não faz mingua o senhor dizer tantas coisas. Se isto é o meu +sangue!... + +E pronunciava estas palavras, envolvendo o filho n’um olhar de ternura +infinita, como as aves envolvem em macio frouxel os seus pequeninos +implumes, na meiga concavidade dos ninhos. + + * * * * * + +Foi isto pouco mais ou menos--áparte a fórma--o que me contou o +Silveira. Até aqui, tinha tido na voz uma suavidade, que sobremaneira +contrastava com o aspecto marcial e severo da sua physionomia. + +Remexeu-se na cadeira, saccudiu a cinza do charuto, puxou o bonnet +para a testa e acabou assim a narração do caso: + +Quatro annos depois, ainda eu pertencia a caçadores 12. O Jacintho, já +na reserva, tinha casado e morava á ilharga da praça do peixe, que como +sabes fica sobre o Calhau. + +Com um dinheiro ganho pela mulher nas casas onde tinha servido, +puzeram um botequim. A freguezia começou logo a acudir numerosa, pois +que o rosto alegre e bonito da dona do estabelecimento era magnifico +chamariz. De mais a mais a Rita arranhava o inglez, e d’este modo +conseguia que a loja fosse preferida pelos marinheiros britannicos, +excellentes consumidores de «bebidas de guerra». + +O velho assistiu ao casamento do filho e voltou para o Estreito de +Camara de Lobos. Com os seus sessenta e cinco annos bem puxados, ainda +mourejava de sol a sol. Um dia, em que andava trabalhando perto de uma +pedreira, ouviu o grito de: «Lá vae fogo!» annunciando a explosão da +_broca_. Como devia haver mais duas advertencias eguaes áquella, +não se apressou muito. Quando pousou o picão em terra, ouviu a segunda. +Correu para fugir a algum pedaço de rocha, que a polvora explodindo +arremessase a distancia, mas contou demasiado com a ligeireza das +pernas e caíu. A _broca_ rebentou, depois do terceiro aviso +do bota-fogo, e um grande penedo veiu apanhar o pae do Jacintho, e +partiu-lhe uma perna e um braço. + +Levado n’uma rêde para a cidade, o pobre entrou no hospital da +Misericordia e alli esteve tres mezes e meio. + +A principio o filho, umas vezes só, outras com a mulher, ia vel-o +quasi todos os dias, e carpir a desgraça do pae. Mas as visitas foram +rareando. + +--Se elle tem a vida tão apensionada! desculpava entre si o doente. + +Nos ultimos tempos nenhum dos dois appareceu por lá. + +Quando lhe deram alta, o velho estava aleijado. + +A uns enfermeiros que o lamentavam, de o verem sair do hospital +coxeando e arrimado ao bordão, respondeu cheio de confiança: + +--Isso era bom, se eu não tivesse o meu filho! + +Appareceu-lhe em casa inopinadamente. Não o receberam mal, e até lhe +mostraram agrado, em quanto elle não se explicou. + +Depois do jantar, abriu-se com o Jacintho e a nora. Assim aleijado, não +poderia fazer nenhum trabalho: por consequencia voltar para o Estreito +e morrer de fome, vinha tudo a dar na mesma. O Jacintho olhou a medo +para a mulher, que se tinha tornado muito vermelha, e fincava os olhos +no tecto. + +Por isto não deu o velho, mas notou que o filho, ao offerecer-lhe a +casa logo depois, gaguejava e parecia quasi não saber o que estava +dizendo. Assaltou-o uma suspeita: + +--Seria pesado ao Jacintho? + +A resposta indecisa dada por este e o silencio pertinaz da nora, +explicaram-lhe tudo. + +--Está bom rapaz! Que queres? Julguei que vivias mais desembaraçado. +Volto para a nossa freguezia. Sempre lá me hei-de arranjar. Fica-te com +Deus, filho, fica-te com Deus! + +Agarrou-se a elle, beijou-o muito e saiu pela porta fóra, arrastando +ainda mais da perna aleijada. + + * * * * * + +Tempos depois, vi-o no asylo de mendicidade. + +Como sabia isto, disse-lhe do filho tudo quanto merecia aquella infamia. + +O velho escutou-me sorrindo tristemente e respondeu por fim, a encolher +os hombros: + +--Será verdade o que o senhor me diz, mas que lhe hei-de eu fazer? Se +elle é do meu sangue!... + + +[Ilustração] + + +[Ilustração] + + + + + A Folga + + + (Notas de folklore fayalense) + + +Tudo prompto em casa do João Furtado, para se receber a coroa do +«Senhor Espirito Santo». + +E não é nada cedo. A procissão já saíu da casa do _imperador_, que +foi o ultimo a _coroar_ no anno antecedente, e vem a caminho. + +Os visinhos andam tão alvoroçados, que se não fosse o José, sobrinho do +João Furtado, teriam invadido a casa, para verem de mais perto o altar, +armado no quarto de fóra. + +Mas não se atrevem, que o rapaz, de sentinella á porta, prega um não +redondo na cara do mais pintado. Além d’isso, todos sabem que elle não +é para brincadeiras, e que poderia ir ás do cabo, temendo que lhe +escangalhassem o que lhe tinha custado tanta lida. + +Como elle se revia no altar! Sobre a meza coberta com uma toalha +de renda, nada menos de quatro jarras de flores e de outros tantos +castiçaes com os cyrios ainda por accender. Dão-lhe tanta graça o docel +de cassa branca e as cortinas de barra vermelha, que pendem de cada +lado! + +E como está bem clara toda a casa! Nem a egreja, na noite de Natal! +Contando-se bem, são dez os candeeiros de petroleo, uns em cima das +mezas, outros pendurados nas paredes. + +Entrassem os visinhos e tambem quereriam ver o quarto seguinte, onde +teem dormido os donos da casa desde o dia em que se casaram, por signal +n’aquella cama coberta com colcha de ramagem. O que porém lhes chamaria +a attenção n’este quarto, haviam de ser as duas mezas que lá estão +unidas pelas cabeceiras, á espera da ceia dos _foliões_. + +O João Furtado bem podia ficar satisfeito com o sobrinho, visto que +todas as suas ordens se cumpriram á risca. + +O rapaz é que não tinha sombras de satisfação, nem de alegria: triste +como a noite! + +Bastava-lhe estar longe da Maria, que vinha de _imperatriz_ no +acompanhamento da corôa. + +Verdade seja que triste andava elle sempre, desde que lhe tinha faltado +o pae, e que o tio, vendo-o em riscos de ir para soldado, resolvera +demorar, sem dizer até quando, o casamento ha muito ajustado entre os +dois primos. + +Primeiramente o José, por soberba, quiz tirar d’alli a sua ideia, +cuidando que o tio só desejava livrar-se d’elle e arranjar para a +filha um noivo mais rico; não poude! Cada vez gostava mais da Maria, +principalmente a partir da hora em que tinha julgado descobrir n’ella +um certo desapego. Talvez a prima tambem olhasse ao pouco que elle +agora tinha, depois de paga a divida do pae ao Joãosinho Terra, que na +_villa_ emprestava dinheiro a juro. Em quanto o velho não fechou o +olho, todos o faziam com mundos e fundos, e sabidas as contas... + +Porém o José curtia de si para si os amargos de bocca, e calava a +paixão, receioso de que, falando, o despedissem por uma vez. Só poderia +adivinhar-lhe o segredo, quem attentasse nos olhos, que elle ás vezes +deitava á Maria, e em que havia tanto amor, tanta cubiça!... Mas isto +mesmo, só o fazia quando tinha a certeza de não ser observado. + +Outra coisa, além da ausencia da prima, o estava agora consumindo: o +pensar que nas danças da _folga_ ella ia andar nos braços de um +e de outro. Que se livrasse de dançar com o menino Ricardo, filho do +Joãosinho Terra! + +--D’aquella familia, só lhe vinham desgraças! + +Um mez antes, na ribeira dos Flamengos, apanhára os dois conversando +muito á mão. É verdade que a prima tinha lá ido lavar uma trouxa de +roupa de freguezes seus, mas tanto não estava fazendo coisa boa, que +apenas o viu, ficou mais vermelha que uma romã. + +A corôa approxima-se, que bem se ouvia já a marcha tocada pela +philarmonica e o rufar monotono do tambor dos foliões, como que +marcando o rythmo da musica. Estalavam de instante a instante as +_respostas_, e serpeavam no ar os foguetes a dizerem o logar +exacto em que vinha o cortejo. + +Embora consumido, o José não se esqueceu do que lhe competia, e foi +accendendo os cyrios do altar, ao tempo que a tia, com algumas visinhas +e tres senhoras vindas da Horta mediante convite especial, entravam +azafamadas. Tinham estado no terreiro á espera, e foram a uma meza +buscar vellas de stearina, e tambem as accenderam, nos cyrios. Nenhuma +se esqueceu de resguardar-se de algum pingo, pondo o lenço de assoar +á laia de bobeche. Todas, de mão deante da chamma, correram para o +terreiro, a allumiar a corôa. + +Um ultimo relance de olhos tranquilisou o José: tudo estava em termos. +Podia entrar a suspirada visita.[3] + +Vencido pelo habito e pela geral suggestão o rapaz correu para +a porta, a admirar o acompanhamento, que avançava com a ordem e +solemnidade costumada, impondo respeito e chegando a encantar os menos +propensos á devoção. + +Tinha-se calado a musica, mas rufava sempre o tambor dos foliões, +estrugiam os pandeiros e estalavam as bombas. + +Mais longe, no couce da procissão, o _Magnificat_ entoado pelos +cantores da egreja matriz do Fayal, dava á solemnidade a nota da uncção +religiosa. + +Na frente do cortejo tres homens a par: o do meio deitava os foguetes, +o da esquerda transportava as munições, já muito diminuidas pelo +consumo, e o da direita mantinha accesa uma acha de lenha, soprando-lhe +muito, a fim de trocal-a pela que incendiava os foguetes, quando esta +fosse a apagar-se. + +Em seguida os quatro _foliões_. Sobre o fato usual, grandes opas +encarnadas de gola verde recortada aos bicos, e de mangas tambem +encarnadas e canhão verde. Nas cabeças, lenços de chita vermelha +amarrados sobre a nuca, as pontas caídas para as costas. + +Um traz a bandeira de panno encarnado com toscas applicações de panno +branco, representando as do centro uma corôa e uma pomba, symbolos do +Espirito Santo, e flores as dos quatro angulos. + +Dos restantes _foliões_ um toca tambor, e pandeiros os outros. + +Seguem-se dois renques de irmãos, todos com varas brancas e precedidos +pelo _estandarte_ de seda branca, em que ha adornos semelhantes +áquelles, porém executados com mais alguma arte. + +Dois artistas da mesma força deviam ser com certeza os esculptores das +pombas, que encimam tanto a haste da bandeira como a do estandarte. Eu +chamei pombas aos animaes alli figurados, mas creio que o mais notavel +dos zoologos se daria a perros, tendo de classifical-os. + +Agora a parte mais interessante do cortejo--para mim, pelo +menos--constituida pelo beijinho das raparigas bonitas do logar, umas +com vellas accesas, outras espargindo flores, e quatro formando com +varas brancas um quadrado, dentro do qual ia a imperatriz, com a corôa +nas mãos, e de cada lado sua moçoila, uma com o sceptro e a outra com a +salva de prata. + +Depois da imperatriz, o imperador. O João Terra _coroava_ pelo +João Furtado, e certo de que augmentava com isto o brilho á festa, +avançava a passos tão regrados e magestosos, como ... o seu collega +Carlos Magno entrando na cathedral de Aix-la-Chapelle. Para ser +completamente feliz só lhe faltava uma coisa: que a casaca lhe não +apertasse nos sovacos, e a bota de lustro no peito do pé. + +Fechavam o acompanhamento os cantores da matriz, a philarmonica e um +magote de povo. + +Em quanto o cortejo ia enchendo a casa do João Furtado, recrudescia a +foguetada e as bombas rebentavam continuamente. + +Chega a imperatriz em frente do altar, desfaz-se o quadrado, cujas +varas, juntamente com a dos irmãos, são guardadas n’uma comprida caixa +para isso destinada. + +Desde que entrou, a corôa servia de alvo a confeitos dourados e de +varias côres e a raminhos, cujas flores eram tambem confeitos montados +em arames. + +A Maria colloca-a no centro do altar, e logo os foliões, que estavam em +frente alinhados n’uma fileira, entoam a conhecida copla: + + Ó Senhor Esp’rito Santo + A vossa casa cheira, + Cheira a cravo, cheira a rosa, + Cheira a flôr de larangeira. + +Um dos que tocam pandeiro levanta mais a voz e prolonga a nota final; +segue-se o outro, descendo uma oitava e vae assim por diante a +cantoria, com trinados á mistura, acompanhada pelo tambor, em que o +folião respectivo dá, segundo o preceito, duas pancadas successivas com +a baqueta, depois outras duas e afinal tres. A estes sons juntam-se por +vezes o dos pandeiros, e estrepitosos vivas ao «Senhor Esp’rito Santo», +que já se tinham ouvido em toda a passagem do cortejo. + +Durante a cantilena dos foliões, as _senhoras da villa_ e +duas _mulheres do monte_ vão compôr o vestido e o penteado á +imperatriz, cuidado aliás inutil a bem dizer, pois se ha «moça bem +pregadinha» é a Maria do João Furtado. Como ella, nenhuma tão esmerada +na sua pessoa e no seu fato. + +O José, a quem não passaram despercebidas estas attenções, revia-se na +linda flôr do campo, esquecido de tudo, até do ciume. + +Andava n’este comenos o João Terra desempenhando um dos deveres do +imperador: tendo recebido de uma das companheiras da imperatriz o +sceptro, deitara-o nas mãos, sobre um lenço, e percorria toda a sala, +offerecendo aos beijos dos circumstantes a pombinha de prata, que o +adorna. + +O ultimo beijo, e de certo o mais fervoroso, foi dado pelo dono da +casa, quando o sceptro já estava no altar. E nem sequer lhe passou pela +ideia o que lhe custava a festa. Custasse o dobro, e elle quereria +assim mesmo gosar aquelle direito. + +Já todos tomaram logares. Nos melhores ficam as senhoras da Horta, e á +ilharga d’ellas, depois de lh’os ter amavelmente offerecido, senta-se +muito ancha a mulher do João Furtado. + +Lá entra o José, ajoujado com um pratalhaz de arroz doce, e precedido +pelo tio, que se pôz em mangas de camisa para mais á vontade servir +aos convidados a aguardente de pecego, que passará do frasco de +vidro escuro onde está agora, para a bocca dos que hão bebel-a, por +intermedio do mesmo calix. Os pechosos não terão que dizer, porque o +escanção, isto é, o João Furtado, depois de servir cada um dos seus +convidados, limpará a borda do copo á manga da camisa. + +Isto de mais a mais é costume tradicional, como tambem é costume +comerem todos o arroz doce pela mesma colher. Á entrada do José, lá +vinha uma espetada verticalmente ao centro do manjar, e com ella vão +todos mettendo para a bocca a competente colherada, e até repetindo a +dose, com grave despeito do dono da casa e não obstante o arroz ter +certo gostinho a fumo, que nem á força de canella desapparecera de +todo. + +O José não fugiu com o prato á abusiva repetição, porque estava com +o sentido n’outra coisa. Se não encontrava a prima, por mais que a +procurasse com os olhos!... + +Vae porem socegar: a Maria apparece no quarto immediato e ajudada por +outras raparigas põe na meza a ceia dos _foliões_. + +Os quatro abancam immediatamente e principiam a devorar com o seu +proverbial appetite. + +O rufador, para que o vinho lhe ajudasse a deglutição, disse a graça +costumada--que a pelle do tambor ia estalar de tanto se lhe ter batido, +e que o unico remedio era botar-se-lhe em cima uma pinga. E apenas +apanhou á mão o frasco, deitou uma gota no tambor e entornou para os +gorgomillos tanta vinhaça, que os companheiros romperam em murmurios, +julgando-se lesados. + +O segundo folião, antes de beber, faz o brinde habitual: + +--Lá vae á saude do imperador de hoje a oito dias! + +Ao passo que outro, com a bocca cheia, dispara um «Viva o Senhor do +Esp’rito Santo!» + +A ceia desapparecia rapidamente dos pratos. Tinha-a feito a Vicencia, +irmã do João Furtado, afamada em trabalhos culinarios. Áquella mesma +hora temperava ella na cosinha a sopa destinada aos presentes do dia +seguinte, muito saborosa com a grande quantidade de carne de vacca e +_linguiça_, e cada pão dividido em quatro partes apenas, para que +uma unica sopa chegasse para um presente. + +Na sala da folga entram muito galhofeiros, com a sobranceria de quem +se julga n’um meio que não o merece, o Ricardinho Terra, o Luiz de +Carvalho e mais dois rapazes da Horta, isto é quatro _estudantes_, +como os appellidam por despreso os moços do campo, que em troca recebem +o qualificativo de _diamantes_, não menos desdenhoso na intenção +do seu ignorado inventor. + +Se a presença dos recemchegados desagradou a todos os rapazes do sitio, +que se apinhavam á porta e no terreiro, e que nos bicos dos pés olhavam +a custo para o interior da casa, ao José encheu de verdadeira furia. + +D’aqui por diante não mais perdeu de vista o menino Ricardo. + +Mas ninguem pensava n’elle, que iam principiar as danças e já se ouvia +o _mestre da viola_, o Joaquim Machado, na cosinha, onde tinha +acabado de ceiar, afinando o instrumento demoradamente, a preceito, sem +dar importancia ás impaciencias dos que anceavam por bailar. + +No seculo tinha posição humilde--era sapateiro--mas n’uma _folga_ +hombreava em valimento com o proprio imperador. É que sem elle não se +_brincava_. + +Apesar d’isto, o João Furtado, fazendo-se interprete dos desejos +geraes, disse-lhe da porta da sala, em voz muito alta. + +--O’ Joaquim Machado, pega-me n’essa viola e salta cá para fóra! + +--Já se vae! Já se vae! retorquiu o outro, sem se apressar. É preciso +pol-a nos pontos! + +D’ahi a pouco appareceu á porta, e conscio da importancia inherente ao +seu cargo, foi sentar-se junto ao altar. + +Tiravam-se pares. + +O João Terra escolheu a Maria, ao tempo que um _diamante_ +perguntava a esta: «A menina quer brincar commigo?». Desvanecida porque +ia dançar com um _senhor da villa_, a quem de mais a mais lavava a +roupa, a filha do João Furtado nem sequer deu resposta ao pretendente +plebeu. + +Outros pares se iam formando, levadas as raparigas com espalhafato para +o meio da casa, mas ficando cada _cavalheiro_ a respeito da sua +_dama_ como se fossem vis-à-vis de contradança franceza, e assim +formando-se de cada lado uma fileira, em que os homens se alternavam +com as mulheres. Dois pares consecutivos constituem uma chama-rita e só +com elles se pode já executar a dança. + +O dono da casa excitava os renitentes, batendo as palmas e bradando: + +--Chega a pares! Chega a pares! Ao terreiro! + +Como não principiava a musica, o Ricardinho, que ia dançar com uma das +senhoras mas que não cessava de olhar para a Maria, disse com o entono +de quem quer ser promptamente obedecido: + +--Então essa viola não fica afinada por uma vez? + +O Joaquim Machado sem se desconcertar, mirou-o altivamente e mastigou +como por de mais: + +--Está-se tratando sobre esse mesmo objecto.[4] + +Quando o tocador muito bem quiz, rompeu a musica e com ella a +chama-rita. Os dançantes, ao mesmo tempo que acompanhavam a viola +dando estalos com os dedos, bamboleavam-se, saracoteavam-se para a +direita e para a esquerda, e faziam passinhos de dança n’um e n’outro +sentido, avançando e recuando um pouco, para tornarem sempre ao mesmo +sitio. + +Um camponio ou _homem do monte_, que era par da dona da casa, +cantou: + + Ao romper da bella _airola_[5] + Sae o pastor da _gaivana_[6] + Gritando em altas _vózeas_ + Muito padece quem ama. + + Chama Rita, chama Rosa, + Chama Rita tão formosa! + +Quando o cantador principiava a repetir estes dois ultimos versos +á laia de estribilho, cada homem, estalando sempre com os dedos e +bamboleando-se, recuou seguido pela sua dama, que voltada para elle e +com os mesmos ademanes, parecia attrahida pelo chamamento.--D’isto, +naturalmente, é que a dança tirou o nome.--Chegadas as duas mulheres +de uma mesma chama-rita a altura em que podiam, costas com costas, +trocar a posição, effectuaram a mudança, recuando seguidas agora pelos +seus pares, até que todos entraram no alinhamento primitivo, mas em +ordem inversa. N’esta occasião cada homem fez em relação á dama do +outro par da sua chama-rita, um movimento analogo ao que o sr. Justino +Soares--valha-me o abalisado choreographo!--chamaria «_balancé au +côté_», se desejasse indical-o aos seus discipulos da arte de +Terpsychore. + +Succederam-se os versos engendrados pela musa popular. O mestre da +viola, com um vozeirão de baixo profundo, garganteou: + + Coração acima, acima, + Se não podes correr anda. + Tudo é pouco, bem n’o sabes + Para ver a sua dama. + + Chama Rita, chama Rosa, + Ella que venha cá fora, + Venha ver o seu amor + Que lhe quer falar agora! + +Quando acabava esta ultima quadra, que pelo numero de versos equivale +ao estribilho com a sua repetição, e que por isto não foi bisada pelo +cantador, o Ricardinho Terra, para saír da monotonia da chama-rita, +valeu-se de uma das marcas dos bailes de roda, com que costuma +variar-se aquella dança, e disse em tom de marcador de quadrilha: + +--Roda cheia! + +E logo todos cruzaram os braços e deram as mãos trocadas, formando +roda, que depois desfizeram para cada um dos bailadores, enlaçado ao +respectivo par, fazer o que nas contradanças francezas se designa pela +phrase--valha-nos outra vez o nosso Vestris!--_galop au tour_, com +a differença de que o passo é o da chama-rita, ou muito semelhante ao +da polka. + +A _folga_ animava-se. + +Para excitar ainda mais o enthusiasmo, cruzavam-se os: + +--Pega fogo! + +--Anda! + +--Aquece, rapaz! + +O Ricardinho, fitando muito a Maria, cantou-lhe: + + Aqui tens meu coração, + Se o queres matar, bem podes, + Olha que estás dentro d’elle + E se o matas tambem morres. + +O José ia disparatando, mas conteve-se porque o Luiz Carvalho, depois +de repetir o ultimo verso da quadra, arreliou o amigo com est’outra, +sempre usada para taes casos, viciando-a como os cantadores populares: + + Assubi ao altar mór + P’ra accender vellas ao throno, + Bem tolo é quem se mata + Por coisas que já teem dono. + +O Ricardinho gritou: «Mãosinhas!», o que se executou dando os pares +as mãos, e virando-se cada um dos dançadores alternadamente para os +que lhe ficavam contiguos, ao mesmo tempo que iam todos caminhando +lateralmente como no _grand rond au tour_. + +A provocação do Luiz de Carvalho teve esta resposta, do Ricardinho: + + Não ha nada tão perfeito + Como o amor de um estudante: + Ainda que seja pobre, + Sempre tem o amar galante. + +Mas um rapaz do sitio corrigiu-lhe de prompto a coarctada, com outra +preparada egualmente para casos identicos: + + Não viera um vento norte + Que levara os estudantes, + Para livrar esta terra + Dos _homes_ extravagantes. + +A furia do José de novo acalmou. + +Ainda assim difficilmente deixaria de haver um dos barulhos inherentes +a estes passatempos, alguma _poeirada_, se não apparecesse á porta +o padre vigario, na occasião em que, indicada pelo Ricardinho, se +executava a marca «Salta e rema!», na qual cada homem deve, passando +por traz do seu par e tomando-lhe a direita, ir fazer _balancé_ +com a pessoa que lhe fica d’este lado, mas sem se darem as mãos, e +repetir o mesmo com a da esquerda. Continuam durante isto o _grand +rond au tour_, e a estalada com os dedos visto que as mãos se acham +livres. + +O João Furtado, mal viu o padre, disse em voz muito alta: + +--Triloré! + +A dança parou logo e todos foram cumprimentar o recemchegado, que vinha +honrar a festa com a sua presença. + +--A benção de Deus seja n’esta casa! disse o vigario e depois de fazer +uma venia á coroa, foi sentar-se na cadeira de balouço, que o João +Furtado fizera promptamente desoccupar em obsequio a sua reverendissima. + +Mas o desejo do bom do padre, era que as danças continuassem. + +Antes de ir para o seminario de Angra, e até quando vinha de lá passar +as ferias com a familia, elle não perdia uma unica folga. + +Estes divertimentos attrahiam-o ainda, como tudo o que nos traz para +diante dos olhos já queimados pelas lagrimas da desillusão, os dias +luminosos da mocidade. + +Ia recomeçar a chama-rita. + +Á pergunta do estylo, que os antigos pares lhes faziam sobre o nome +do escolhido para a nova dança, as raparigas em geral responderam, +tambem segundo o estylo vulgar «O senhor mesmo!», com grave escandalo +dos outros rapazes, que assim continuavam a ser na festa uns meros +espectadores, e que se desforraram com o conhecido protesto: + +--Caras novas ao terreiro! + +A Maria não imitou o maior numero. Como ouvisse o João Terra dizer que +já não tinha pernas para folias, e não desejando fazer-lhe desfeita, +escolheu o filho d’elle--o Ricardinho. O José ficou embaçado, sem poder +mexer-se, e calado como se lhe tivessem amarrado uma mordaça. + +Só o tio deu por isto, e para evitar alguma asneira, travou-lhe do +braço e disse-lhe em voz baixa, terminantemente: + +--Anda commigo, diabo!--E como sentisse alguma resistencia, +accrescentou com maior intimativa:--Se não vieres, dou-te na cara, aqui +mesmo, deante de todo este povo! + +Lá passar por similhante vergonha, isso é que nunca! E devia ao tio +tantos favores, apesar de tudo... + +Acompanhou-o, mas fez logo uma tenção bem firme. Nem Jesus Christo, que +viesse a este mundo, seria capaz de arrancar-lh’a. + +O ar da estrada refrescou-lhe a cabeça, sem lhe esfriar a resolução. + +Mas as danças continuavam e só a isto é que todos attendiam.--Todos, +menos elle. + +A Maria cantava com a sua voz estridula e argentina, bem afamada na +ribeira dos Flamengos: + + Ó Pico, rocha tão alta, + Retiro dos passarinhos! + Mais retirada que eu ando, + Meu amôr, dos teus carinhos! + +O José que a ouviu lá fora, resmungou entre si: + +--Isso! Isso mesmo! Como se a fogueira inda precisasse de mais lenha!... + +E chegou-se para a porta da casa, apparentando indifferença. + +A dança animou-se mais, com o crescente enthusiasmo em que estava o +Ricardinho. Mal este gritou: «Cadeia!», as mulheres levaram o braço +esquerdo atraz das costas, á altura da cintura, e os homens deram-lhes +as mãos, indo as direitas de cada par enlaçadas na frente, como no +galope, e as esquerdas n’aquella posição. Será bom dizer que mais de +uma rapariga se tinha prevenido para o caso, resguardando as costas do +vestido no sitio provavel do contacto, por meio de um lenço pregado com +alfinetes. Os pares, assim unidos, avançaram para o centro e recuaram, +passando cada homem á dama que lhe ficava logo á direita, para com ella +executar isto mesmo, e assim successivamente, até encontrar-se de novo +com a que lhe pertencia. + +Umas das senhoras da cidade, a Annina Mesquita, bem conhecida pelo seu +romantismo piegas, cantou com uma voz, que, em homenagem á verdade, +deveria chamar-se de canna rachada: + + Encostei-me ao pecegueiro, + Cobri-me toda de flôr, + Ai de mim tão pequenina + Tão perseguida de amôr! + +Mas por um pouco não deixava a quadra incompleta, porque estrondearam +perto, contendendo-lhe com os nervos, duas bombas, deitadas da +janella pelo João Furtado, para solemnisar o acabamento da ceia dos +_foliões_. Estes saíram á formiga, deixando a bandeira, o tambor e +os pandeiros, e levando comsigo, embrulhadas n’um lenço, as opas e os +sapatos. Dois tinham de ir para longe, e com similhantes trambolhos nos +pés, arriscavam-se a ficar pelo caminho. + +Á «cadeia» seguiu-se a marca «Foge!» equivalente á _grande-chaine_, +mas principiada com a mão direita, e fazendo os homens um movimento +analogo ao _balancé_. + +--Quer n’uma, quer n’outra--disse o José comsigo mesmo--o Ricardinho +apertou a mão de Maria! + +Não tinha duvida. + +Da chama-rita, passou-se aos bailes-de-roda, e a outras danças. + +No _sapateia de cadeia_ bailou tambem o Joaquim Machado, tomando +logar no extremo d’uma das fileiras, viola ao peito, os restantes pares +dispostos como na chama-rita. + +O José ia estourando de raiva, ao ver a Maria dançar mais uma vez com +o Ricardinho, mas conteve-se e foi tirar a Luiza, filha do regedor da +freguezia. Andou tão alegre, que até cantou esta quadra popular, com +que o João Furtado se escangalhava sempre com riso: + + Uma jaqueta de abob’ra, + Forrada de melancia, + As casas de vento norte, + Os botões de calmaria. + +Durante ella, as duas linhas de dançadores avançaram uma para a outra e +recuaram até ao ponto de partida. + +E logo o Joaquim Machado atacou, muito emphatico: + + Foge, anda tu, ó meu bem, + Foge, amor, que eu tambem fujo, + Fujamos ambos p’ra o matto, + Para á sombra do tamujo! + +O primeiro d’estes versos foi o signal para se executar o «Foge» da +chama-rita, ao qual succedeu a «Cadeia» do mesmo baile. Chegados todos +aos seus logares, o Ricardinho cantou: + + Oh! Sapateia, meu bem. + Sapateia de cadeia, + Deixa-me ir banhar no mar, + No mar que dorme na areia! + +O mestre da viola, tocando sempre, retorquiu, com guelas de estentor: + + Oh! Sapateia, meu bem! + Oh! Sapateia, faz arco! + Diga o mundo o que disser, + Já d’aqui me não aparto! + +Ao primeiro verso, a fileira do lado do Joaquim Machado voltou-se para +a direita e a opposta para a esquerda, e cada dançante, com excepção +d’aquelle, deu a mão ao seu par e levantou o braço, formando-se assim +uma especie de abobada. O tocador e a dama respectiva passaram então +sob o arco formado pelo par mais proximo, contornaram o par seguinte, +mas pelo lado exterior, e foram passar por baixo do arco do terceiro +par, e assim successivamente. O segundo par executou eguaes movimentos, +logo que deu passagem ao mestre da viola, e todos os mais foram fazendo +o mesmo, com uma regularidade tamanha, que o proprio vigario applaudiu +enthusiasmado. + +As danças succederam ás danças, e os pares succederam aos pares, não +porque alguem desse parte de fraco, mas porque era preciso contentar a +todos os que tambem queriam _brincar_ o seu boccadinho. + + * * * * * + +Era noite velha e ainda a folga não tinha acabado. + +As tres senhoras voltaram para a cidade n’uma carruagem, alugada para +as levar e trazer; João Terra veiu no seu burrinho, e os quatro rapazes +a pé, visto não ser grande a distancia dos Flamengos á Horta, e a noite +estar fresca. + +Não havia luar, mas as estrellas palpitavam com vivo clarão no fundo +negro do ceo, tão limpo de humidade que nem lembrava ceo dos Açores. + +O Ricardinho na frente com o Luiz Carvalho, aturava-lhe os remoques, +visto que o outro, não tendo podido n’aquella noite justificar a sua +fama de conquistador, se desforrava com o amigo. + +Mettido no vão de uma porta, para onde correra logo que os viu partir, +o José ouviu-lhes a conversa, sem que nenhum dos quatro o presentisse: + +--Grande brejeiro, dizia o Carvalho. Quizeste ser imperador sem ter +coroado! + +--Fala claro, que não te entendo, voltou-lhe o Ricardinho. + +--Talvez não arrastasses a aza á imperatriz? Parabens, que a pequena é +de estalo! Mas o mais certo é não fazeres vaza. A Maria é muito capaz +de judiar comtigo uns poucos de mezes, e deixar-te no fim a chuchar no +dedo. + +--O futuro a Deus pertence. + +--Pois ella é que nunca te ha de pertencer! + +O Ricardo Terra estacou, mesmo á ilharga da porta onde estava o José, e +disse com a prosapia inconsciente dos seus vinte annos: + +--Queres tu apostar em como antes de um mez a tenho no meu rol? + +O sobrinho do João Furtado sentiu uma vertigem, um desejo phrenetico de +partir, de espedaçar alguma coisa, mas não fez o menor movimento. + +Atravez das candeias amarellas que lhe bailavam deante dos olhos, +distinguiu que o fato do Ricardo era claro, e escuros os dos mais. + +Quando os viu longe, correu para o mesmo lado e entrou n’uma terra, que +acompanha a estrada durante uma grande extensão, e que é resguardada +por um muro baixo. + +Tendo-lhes ganho consideravel deanteira, agarrou n’um pedregulho e +acocorou-se por traz do muro. + +Pouco teve que esperar. Deitou a cabeça de fóra cautelosamente. + +O Ricardinho vinha á direita. Era o mais proximo. + +Apenas o teve a dois passos, ergueu-se de chofre, levantou a pedra com +ambas as mãos, bem acima da cabeça, e atirou-lh’a com quanta força +tinha. + +Um grito e o baque de um corpo. + +Afastou-se do muro rastejando, e desatou a correr como um coelho em +campo aberto. Ainda foi dançar quatro chama-ritas á _folga_ do +tio, que só acabou quando já era sol nado. + + * * * * * + +Nunca se descobriu quem fôra o assassino do Ricardinho Terra. + +Como o pae e o filho se tinham envolvido n’uma tramoia eleitoral, +falaram os jornaes da opposição em vinganças politicas. + +O João Furtado é que de alguma coisa desconfiou, e por causa das +duvidas arranjou d’alli a mezes e muito ás occultas, passagem para o +José a bordo de uma baleeira. + +O rapaz foi ter aos Estados-Unidos. Um anno depois mandou pedir a prima +em casamento, aconselhando ao tio que fosse mais ella para S. Francisco +da California, pois se haviam de arranjar muito bem. + +O João Furtado, como averiguou que o sobrinho estava a caminho da +riqueza, seguiu-lhe o conselho. + +A Maria é hoje muito feliz com o marido; mas o sogro, á cautela, não +vive em casa do genro. + + +[Ilustração] + + +[Ilustração] + + + + + O Paiol + + +ERA temivel o sargento Bernardo quando principiava a contar historias, +mas como rastejava pelos setenta annos e tinha sido um valente, +todos o escutavam com pachorra. Um dia na Malaca, pequena bateria do +castello de S. João Baptista, na Terceira, ouviram-lhe o seguinte caso. +Affiançaram-me depois que a narrativa não era destituida de fundamento. + +Demos a palavra ao sargento Bernardo: + +«Não sei bem quando isto foi. Lembro-me de que tinha vindo de Lisboa +para S. Miguel em cabo, e que estava lá destacado havia bastante tempo. +O commandante do material era um capitãosinho de má cara, d’aquelles +com quem a gente não engraça, nem á quinta facada. + +Por isso o meu commandante, o nosso tenente, nunca era com elle visto, +nem achado. + +Um dia começou a fallazar-se do homem. Sabem que mais? Pelos modos +fazia o mesmo que o mestre do cazão de caçadores, que foi n’outro dia +responder a conselho ... cortava-se, mas não era com tiras de panno! +O que elle bifava, era muita e muita arroba da polvora do paiol. Mas +lá na que dava para as salvas não roubava nada, essa lhes juro eu! As +peças davam sempre o mesmo berro. + +A coisa tinha-se divulgado, e já se dizia pela cidade que o paiol +estava cheio d’areia, porque a polvora tinha-a queimado o capitão ... +puxando o rabo á sota. + +Que jogava era tambem certo. Excommungado!... Deus me perdôe! Não havia +noite nenhuma em que eu estivesse de guarda ao quartel, no castello +de S. Braz, que não me tivesse de levantar por causa do melro. E +quasi sempre duas e tres vezes! Vinha buscar dinheiro, para voltar +para a jogatina. E com que cara de peccado mortal elle andava! Se o +visse á meia noite, em logar escuso, era capaz de pôr-me a crer nas +feitiçarias, em que toda a galuchada de S. Miguel acredita como no +Divino Espirito Santo. + +Andavam os taes dictos, quando chegou navio de Lisboa. D’alli a pedaço +disparam esta novidade no castello; o capitão do material vae ser +rendido e já desembarcou o tenente, que vem para o logar d’elle. Fiquei +banzado! + +No dia seguinte vi o official novo. Era um perfeito moço, lá isso era! +Alto como uma torre, grosso que nem isto...--O Bernardo abriu muito +os braços, formando circulo.--E então a falar?... Tinha o diabo em si! +Devia ser do Algarve. + +Segundo parece, contou logo que no commando geral da artilheria já +se sabia da marosca do capitão, e que elle, tenente, recebera ordem +para ver tudo, coisa por coisa. Se até disse que trazia uma balança de +botica, para pesar as onças e meias onças de polvora!... Era chalaça, +está visto.» + +--E o outro, ó tio Bernardo? perguntou um dos que ouviam o veterano. + +«O capitão? Se julgam que mudou de cara, enganam-se redondamente. Qual +historia! Até o achei de melhor parecer, quasi a sorrir! + +Passados tres dias, começou a entrega. Foram primeiro ás peças, +palamenta, lanternetas...» + +--Sim, tudo o que atulhava os armazens do material de guerra, +interrompeu um dos ouvintes. E depois? + +--Ah! Vocemecês teem pressa? atalhou o Bernardo. Pois então haja saude! +E ia retirar-se. + +Só depois de muito instado, se resolveu a continuar a historia, mas +d’esta vez com certo mau humor. + +«No dia em que se devia entregar a polvora fui nomeado para ir com +as fachinas ao paiol, acompanhar os dois senhores officiaes. Eu não +acredito em bruxedos, já lhes disse, mas não sei o que me passou pela +cabeça, quando me deram parte da nomeação. Parece-me que tremi de medo, +o que me não tinha acontecido, podem crer, nas Antas nem no convento da +Serra do Pilar. Ao menos nas linhas do Porto, sabia eu haver-me com os +demos dos Corcundas, mas alli... O coração adivinhava-me alguma coisa. +Á tarde fomos todos para o paiol. Sabem onde elle fica! Saíndo a gente +da cidade para os Arrifes e andando menos de um quarto de hora, topa-o +á sua mão esquerda. + +Iamos eu, as quatro fachinas, o capitão da jogatina e o tenente novo. +Os dois senhores officiaes, por signal, tinham jantado bem, muito bem +até! Logo se conhecia... + +Chegou-se ao paiol, abriu-se a porta do guarda-fogo e a do +armazem,--tudo sem novidade. Quando eu estava a olhar para os barris +e cunhetes, que já começava a lobrigar alinhados em duas fileiras, o +capitão voltou-se para mim e disse-me: + +--O’ cabo Bernardo, você já esteve em minha casa, lá no castello de S. +Braz? + +--Saberá V. S.^a que sim, senhor. + +--Pois então vá buscar o mappa da carga, que deixei lá por +esquecimento. Peça-o ao fiel, ao 36. + +Fiz meia volta e já ia para marchar, quando ouvi: + +--Olhe! + +Volvi logo á rectaguarda. + +--Onde está a balança que lhe deu o fiel? + +--Saberá V. S.^a que o fiel não me deu balança nenhuma. + +--Cabeça de burro! Pois então volte você ao castello, e peça-lh’a! Como +quereria o 36 que pesassemos a polvora? Tolice fiz eu em dispensal-o. +Estava doente... É verdade! Leve as fachinas para trazerem a balança. + +--Bastam duas para a balança e uma para os pesos. + +O capitão olhou para mim d’um modo exquisito e disse afinal, como se +lhe custasse: + +--Pois sim, deixe ficar um homem. + +Quando ia atravessando o guarda-fogo, deitei os olhos para o tenente, +que, sem se importar com o caso, estava alegre a não poder mais. Eu já +disse que elles tinham jantado bem.» + +--Ó tio Bernardo, você está dizendo mal dos seus superiores! notou um +dos ouvintes, a rir. + +--Leva rumor! acudiu outro. Queremos o resto da historia. + +«Elle ahi vae, disse o velho, que estando para acabar um conto, não +era capaz de parar nem á mão de Deus Padre. Quando eu ia pela estrada +abaixo, para o lado da cidade, mais os tres galuchos... tres não, +dois!... tambem lá estava um soldado velho, o 27, que tinha andado +commigo nas sarrafuscas da Patuléa... Ah! mas quando eu ia na estrada, +sentia-me alliviado de um peso de seiscentas arrobas... Não ficava mais +satisfeito deitando ao chão a mochila, depois de uma marcha de oito +leguas. Teria a gente dado uns duzentos passos, e eu ia conversando a +este respeito com o 27, eis senão quando a terra nos treme debaixo dos +pés, e por um pouco não vamos todos de ventas ao chão. Ao mesmo tempo +sentiu-se um estrondo, como se tivessem disparado alli ao pé uma duzia +de peças de quarenta e oito! Que demonio seria aquillo?» + +--O que era, tio Bernardo? perguntaram todos com interesse. + +«Tremor de terra não seria, trovoada menos ainda.--O paiol! foi o +grito que me saíu da bocca. Voltei para traz, a correr como um doido. + +[Ilustração] + +D’alli a um instante vi que não me tinha enganado. A parede do +guarda-fogo, do lado da estrada, estava tão esborralhada que não ficara +pedra sobre pedra. O paiol tinha ido pelos ares. Só restavam umas +ruinas fumegantes. + +Quando andavamos a revolver o enthulho, para ver se encontravamos o +corpo d’algum d’aquelles pobres de Christo, appareceu-nos o cabo da +guarda, que tinha escapado por estar longe do seu posto... a falar com +uma rapariga. Maroto! Livrou-se da morte, mas precisava meia duzia de +guardas de castigo.» + +--E mais ninguem escapou? + +--Escapou tambem a sentinella. Apanhou com pedras no corpo e perdeu +dois dedos de uma das mãos, sendo por isso passado a veteranos. Veiu cá +morrer ao castello d’Angra. + +--E o que tinha succedido no paiol? + +«Ao certo só Deus o pode dizer. O que se averiguou, foi que o maldito +do capitão veiu fora do guarda-fogo, accender um charuto. A sentinella +ainda lhe fez reparo. Estivesse eu lá que sabendo as coisas como +corriam, atirava-me a elle e já não o largava. Boas ganas sentiria o +capitão ao tenente chegado de Lisboa! De mais a mais, queria esconder +a ladroeira. Pouco depois a sentinella apanhou com as pedras e não deu +tino de mais nada.» + +--Não se acharam os corpos? + +«Achou-se o do tenente, á distancia de uns quinhentos passos. +Reconheceram-o bem. Pelos modos o pobresinho ainda quiz fugir, porque o +_cadavre_ estava menos queimado que os restos dos outros corpos. + +Gente que viu de longe aquella desgraça, contava que tinha subido para +o ar um grande esguicho de fogo, tal qual, julgo eu, quando os montes +da ilha vomitavam lume, em tempos que já lá vão muito longe.» + +--Sabe o que me parece exquisito, tio Bernardo? notou alguem. O tenente +não desconfiar da marosca do capitão! + +--Essa cá me fica! Não disse eu que elle estava transtornado com a +bebida? Coitado! Tive pena d’elle. Era um rapagão como as casas! + +--Do capitão é que o tio Bernardo não pode dizer mal. Se elle o não +mandasse embora... + +--Tinha eu dado um salto de mil diabos, olá se tinha! Apesar d’isso, +não lhe perdôo. Porque não morreu elle sósinho? Se queria acabar com +estrondo, se não lhe bastavam os tiros da escolta á porta do cemiterio, +que demonio! mettesse-se n’um bote mais um cunhete de polvora, remasse +para o largo, e mecha no caso!... D’aquella maneira pagaram justos por +peccadores. Não lhe perdôo!» + + +[Ilustração] + + + + +[Ilustração] + + + + + As feiticeiras + + +OLÁ se elle acreditava em bruxarias! + +Com essas historias o tinham embalado.--A avó, mulher _de remate_, +fartara-se de contar-lhe o caso do homem, que estando no Brazil foi uma +noite visitado pela mulher, que vivia em S. Miguel, n’aquella mesma +villa da Lagôa. Havia bem quatro mezes que a triste não recebia cartas +do ausente, e como pelas que um visinho mandava á familia soubesse que +elle estava de saude, desconfiou de que outra lh’o tivesse roubado. +Para se tirar das duvidas, foi ter com uma bruxa, levando comsigo um +collete velho, que o marido antes de saír da ilha tinha suado muita vez +no trabalho, e que por conseguinte poderia servir para o bruxedo. «Ai! +Quem me déra ver meu marido!» disse ella á feiticeira, quando acabou de +explicar-lhe o que padecia. «E eras capaz de ir commigo?» perguntou-lhe +a velha.--«Pois não!»--«Sem te admirares do que visses?»--«De +nada!»--«Pois então vamos vel-o esta mesma noite. Quando me ouvires +dizer: Vamos com os diabos!, repetes isto mesmo, e verás como te faço +a vontade.» Ao bater das doze badaladas, estava á porta da bruxa. +Perto cantou um gallo, de tal maneira que mettia medo. A feiticeira +appareceu: trazia um lençol, para com elle fazer um barco, segundo o +costume d’essas malditas, quando teem de ir para o mar; mudou, porém, +de tenção e voltou a casa. Tinha-se lembrado de coisa melhor. Passados +instantes, partiram. O pau de vassoura em que iam as duas, corria por +ares e ventos mais do que essas estrellas, que passam no ceo deixando +atraz de si um risco de lume. Muito em baixo, avistava-se como que um +lençol escuro, azulado e muito grande, sem fim--devia ser o mar.--A +porta do quarto do marido abriu-se de pancada, mas sem bulha... Se era +por artes magicas!--O traidor lá estava deitado com outra mulher.--Se a +bruxa consentisse, ella matava-os a ambos; mas só lhe deixou arrancar +uma das mangas ao vestido, que a outra, quando se metteu na cama, tinha +deitado para cima de uma cadeira. Assim, levava uma prova contra o +marido, e podia certificar-se em qualquer tempo de que tudo aquillo não +fôra obra de sonho nem de loucura.--Voltaram como tinham ido--o dicto +cabe aqui perfeitamente--em quanto o diabo esfrega um olho, e fizeram +um novo bruxedo, para que o marido tornasse quanto antes.--Ao cabo de +mez e mez e meio, chegava a S. Miguel.--«Estás como um cravo! disse +elle á mulher, quando entrou em casa, e quiz abraçal-a. Repelliu-o e +perguntou-lhe o que tinha feito n’aquella noite, de que marcou a data +precisamente. «Isto é que se chama! Quem se póde lembrar, depois de +tanto tempo?...»--«Lembro-me eu!» E atirou-lhe á cara com a traição, +que o homem negou a pés juntos. Ella então correu á commoda, tirou para +fora a manga, e pondo-a bem á vista do marido, gritou-lhe: «Nega ainda, +se és capaz, nega! Fui lá, vi-te deitado com a brazileira, e arranquei +esta manga ao vestido da _ganhôa_!»--«Mas tu tens estado sempre +na ilha...» redarguiu elle, branco, enfiado. «Sempre, menos n’aquella +noite!»--«Ai! Que esta mulher é feiticeira!» exclamou o homem, fugindo +espavorido. No primeiro navio embarcou para o Rio de Janeiro, e lá +morreu pouco depois: da febre, disseram os cirurgiões; dos novos +feitiços que a mulher e a bruxa lhe fizeram, para que mais nenhuma o +lograsse, affirmava muito convencida a boa da velhinha. + +Mas ainda que a avó não lhe tivesse contado esta e outras historias +similhantes, o Francisco Raposo não deixaria de crer em feiticeiras, á +vista de dois casos succedidos com elle. + +O primeiro ainda poderia deixar-lhe duvidas. Era pequeno e vinha para +casa, com um molho de lenha miuda. Já era noite fechada. Estava com +somno. De repente, zumba, lenha ao chão! Levantou-a sem mais reparos, +e foi andando. Logo adeante, repetiu-se o mesmo. Sentiu a pelle a +arripiar-se, mas tornou a apanhar o molho. Deu mais cincoenta passos, +e a lenha caiu-lhe pela terceira vez. Sem querer saber dos gravetos, +desatou a correr como um perdigueiro atraz da caça, e só parou em +casa, esbaforido, suando em bica. O pae riu-se e disse-lhe que não +deitasse as culpas ás feiticeiras mas ao João Pestana. «Da primeira +queda, sim senhor, respondeu elle, mas lá das outras...» + +O segundo caso é que não admittia a menor duvida. Já era um homem. Pela +noite velha ia subindo aquelle caminho, que passa por cima da Ribeira +Quente e d’onde se avista um grande pedaço da costa. Levava ao hombro, +por tal signal, uns pés de batata doce, que o tio Joaquim lhe tinha +encommendado. Por acaso virou-se para traz, e o que viu?... O mar todo +em fogo ... um fogo muito branco, como se a lua se tivesse delido na +agua. E ainda mais transido ficou, avistando uns vultos esbranquiçados +a caírem da rocha para o mar, deixando faiscas por onde passavam, em +quanto alli perto n’um chão imitante uma eira, dançavam outros de mãos +dadas, aos pinchos, soltando umas gargalhadas e uns gritos muito finos, +eguaes aos que dão certamente no inferno os condemnados, sempre que +vêem chegar mais uma alma, para soffrer as penas eternas. + +Tendo-lhe ouvido a historia, um senhor de Villa Franca disse-lhe que a +claridade do mar era do phosphoro de certos mariscos, e que o mais fôra +inventado pelo medo. + +A primeira explicação, não a entendeu o Francisco; e em quanto ao +medo, não fôra elle tamanho que lhe fizesse perder os pés de batata +doce. E tanto eram bruxas, que o caso lhe tinha acontecido no dia +d’ellas--n’uma terça feira. + + * * * * * + +Não admira, pois, que tendo-lhe começado os negocios a correr mal e a +fortuna a desandar, elle attribuisse tudo isto a obra de feitiçaria. +Duas vezes seguidas se lhe estragou a sementeira do milho, em quanto as +dos visinhos estavam que se podiam ver. Apodreceu-lhe tambem o batatal, +não escapando sequer a batata já colhida, que toda _azougou_. +Seria natural tudo isto? + +Para mais desgraça, tinha-lhe adoecido a melhor das duas vaccas, e o +ferrador, não se entendendo com a doença, disse-lhe afinal, porque +era homem de bem, e não quiz ganhar-lhe mais dinheiro: «Haja saude, +Francisco e não voltes cá. Fica-te com esta: o que a vacca tem é mau +olhado, e com esse não me sei haver. Vê se falas ao curandeiro das +Furnas, mas antes de lá ir, trata de saber quem daria quebranto á pobre +da alimaria. + +Foi isto o que de todo o convenceu.--Mas quem poderia desejar-lhe tanto +mal, quem?--Tinha vivido sempre bem com toda a gente; a nenhum visinho +dera nunca razão de queixa... + +Zangas sérias só as tinha tido com o primo João da Arruda, por causa +da herança da tia Gertrudes, mas esse já não era capaz de fazer-lhe +damno, que estava ha mais de seis mezes na terra da verdade. Morrera +talvez pelo desgosto de ficar mal na demanda, em que um e outro tinham +gasto rios de dinheiro. Tivera-lhe muita raiva, mas sem nunca poder +satisfazel-a, graças a Deus!... Mostrava-lh’a bem n’aquelles olhares +atravessados, que lhe deitava todas as vezes que passavam um pelo outro. + +Sim! D’esse estava livre! + +Da familia do primo só restavam duas irmãs, ou para melhor dizer uma +só, visto que a mais velha já não se levantava da cama e era como se +não existisse. E mesmo a outra, a Marianna, estava quasi sempre em +casa, parece que a tratar da doente. + +Lembrou se de que ia atraz da vacca, da ultima vez em que a encontrara. +E sem querer estremeceu. + +--Seria a corsaria que lhe andava a dar quebranto?... + +A avó sempre lhe dizia: Deus nos livre do poder da má mulher. + +Recordou-se melhor d’aquelle encontro. + +A prima passou por elle sem trocarem, está bem de vêr, o Deus te +salve, e já deviam ir longe um do outro, quando o Francisco, sem saber +porque, se voltou para traz. Pareceu-lhe que o tinham obrigado áquelle +movimento. E viu os olhos da irmã do João da Arruda pregados n’elle, +como os do irmão, e talvez a mostrarem-lhe ainda maior zanga. Teve +ganas de moel-a com pancadas, mas deixou-a ir em paz, visto que ella +seguiu o seu caminho apenas o encarou. + +Dois dias depois--agora é que ligava estas coisas--adoecia-lhe a vacca. + +Tratou de saber se mais alguma pessoa lhe poderia querer mal, e não +descobriu nenhuma, nenhuma. + +Tirou inculcas e veiu ao conhecimento de que a Marianna já pouco ia á +missa. Da ultima vez que lá foi, chegou quando o sr. padre já estava no +altar e saíu antes de se ter dicto a ultima palavra do santo sacrificio. + +--Não quer deixar por muito tempo a irmã sósinha em casa, explicou +alguem. + +--Não será por outra razão? perguntou o Francisco, muito assomado. Não +pode estar bem na egreja, quem anda mettido com o demonio! + +--Ui! Isso é que é falar! respondeu o outro, mal convencido. + +Quem lhe dava todos os amens, era uma irmã do pae, a tia Lauriana, +que morava sósinha e que para algumas pessoas tinha fama de bruxa e +de saber _lêr a dita_. As coisas que ella contou ao sobrinho, +deixaram-o estupefacto, sem pinga de sangue. Entre outras, disse-lhe +que ha gente que para atormentar um inimigo compra um coração de +boi preto--boi de outra côr não serve--, pendura-o na chaminé, e +todos os dias o vae espicaçando--quanto mais funda a picada, maior o +tormento--com uma tesoura aberta em cruz, e dizendo ao mesmo tempo +uma oração de resultados tão certos como os da reza da peneira, +que serve para adivinhar o futuro. Á medida que o coração se torna +escuro e mirrado, tambem o inimigo emmagrece, e perde saude, alegria, +felicidade. Egualmente proclamou os effeitos da terra de cemiterio, +colhida n’uma sexta feira á meia noite. + +--Ui, homem, não te lembras da minha prima Luiza?... Não! Não te podes +lembrar, disse-lhe a tia Lauriana. Pois a Luiza casou com um rapaz, +que tinha tido amores com uma bruxa. E vae esta pegou em si e botou-lhe +feitiços. E o pobre de Christo andava depois a gritar pela casa, a +_oviar_ como um cão e a esconder-se debaixo das mezas e cadeiras. +Ás duas por tres a Luiza estava na mesma. Só muito depois melhoraram... +Arranjei-lhe eu ... quero dizer, arranjou-lhe alguem o remedi o... e +poz-se a benzer a cabeça de ambos ... e elles então lançaram de si uma +coisa com alfinetes ... mas viveram pouco mais tempo. + +O Francisco perguntou á tia o que pensava da Marianna e da irmã. + +--Tu gostas d’ellas? Assim eu gosto, respondeu a velha. Ainda bem que +fizeste o irmão gastar com a justiça quasi tudo o que tinha. Nem elle +nem as irmãs se lembraram nunca de me dar nada. + +--E serão feiticeiras as duas? Serão ellas que me fazem mal, mesmo +encafuadas na toca? + +--Não digo menos d’isso, redarguiu a tia Lauriana, e aconselhou-o a +vigial-as, a ir ás escondidas ao pé da casa das primas. Se sentisse +cheiro a hervas queimadas ou algum parecido com esse, podia ficar na +certeza de que todo o seu mal vinha d’alli. + +--As feiticeiras defumam sempre as casas, fingindo louvar o Santissimo +Sacramento, quando por fim de contas dizia a velha com entono, o que +ellas teem é pacto com o diabo, a quem rezam como a gente reza a Deus +Nosso Senhor. + +O Francisco não queria ainda lançar todas as culpas á Marianna. + +Quem sabe se o bruxedo seria feito por algum inimigo, de que elle não +desconfiasse? + + * * * * * + +Em todo o caso tratou de precaver-se contra a influencia malefica, e +tambem para isto lhe foi a Lauriana uma abalisada conselheira. + +Por traz da porta pendurou uma faca, de gume voltado para a rua e +um chavelho de boi, a que todas as manhãs queimava a ponta, o que +tambem fazia a um chifre de carneiro, que lhe era companhia constante. +Ao mesmo tempo defumava a casa, _rezando os quartos em cruz_ +e deixando o fumo atraz de si. D’esta maneira, se as bruxas lhe +entrassem, como costumam, pelo buraco da fechadura, tornariam logo a +sair. + +Ainda receioso de que estes meios não fossem bastantes, preparou-se +para dar uma lição á feiticeira que conseguisse invadir-lhe o +domicilio. Comprou uma navalha com cabo de ponta de veado, amarrou-lhe +um rosario bento e pôl-a aberta, junto á cabeceira da cama. Mal visse +uma bruxa, atiraria a navalha, de modo que se espetasse no chão. E +tanto aquella como as outras que viessem tental-o, ficariam alli +presas, remoinhando estonteadas em volta do rosario, como em torno de +uma luz esvoaçam os mosquitos. Elle então levantar-se-hia da cama, +armado com a competente verdasca, e moeria á bordoada as infernaes +visitantes. Mas esperou-as debalde noites e noites, ás escuras, de +olhos muito abertos, ouvido á escuta. + +--Alguem de certo as avisou, explicou-lhe a tia. + +O triste foi emmagrecendo; tornou-se amarello, escaveirado. + +Os visinhos já lhe sabiam das crendices. Dois d’elles, uns doidivanas +que ás proprias familias se não cansavam de pregar peças, tomaram o +Francisco á sua conta. Moravam á ilharga, e uma noite, emquanto um lhe +distraia as attenções, o outro conseguiu entrar-lhe em casa e amarrar a +uma das pontas da colcha um cordel, que extendeu pelo chão até á rua. +Meia hora depois o Francisco estava deitado, e já ia pegando no somno, +tão estremunhado elle andava pelas continuas vigilias, quando sentiu a +roupa a fugir.--D’esta vez é que eram ellas!-- E atirou-lhes a navalha, +mas, pela precipitação, a ponta não se cravou no solho.--Ainda lhe +escapavam as malditas!--Só por vergonha não gritou por soccorro. + +Ainda que lhe revelassem a verdade, não acreditaria. Da brincadeira +tinha desapparecido qualquer vestigio, porque um puxão mais forte +fizera o cordel escapulir da colcha. + +Como não vissem o resultado da primeira facecia, os esturdios, tarde +da noite, espalharam á porta do visinho uma porção de sal e de cinza. +Quando o Francisco saía de manhã, para ir tratar das vaccas, sentiu +uma coisa a estalar-lhe debaixo dos pés e ia tendo uma vertigem. Uma +_salgadeira_ á porta!... E de mais a mais tinha-a pisado! + +Correu a chamar a tia. + +A velha observou de longe e a medo, benzeu-se e murmurou: + +--Eh! Senhor! Muito mal te querem, filho. E o que as bruxas te deitaram +á porta!... Sal, azeite, _incensio_, terra de cemiterio ... pois +aquella terra é de cemiterio com certeza! Credo! E tambem pennas, não +vês? accrescentou ella, indicando duas pennas de ave, que alli estavam +por acaso. Manda já varrer tudo isto ... para o lado de fóra, toma +sentido!... E vae queimar as botas com que pisaste o sal. Cruzes! +Cruzes! + +Assim se fez. As botas eram novas da vespera. + +Por traz das persianas, os dois sustinham o riso a muito custo, e +apenas viram o visinho entrar em casa e a velha ir-se embora, fecharam +a vidraça, e começaram aos pulos, ás gargalhadas, planeando nova +brincadeira. + +Arrepender-se-hiam talvez, se podessem ver o Francisco de joelhos +deante do oratorio, erguendo uma supplica ardente para os santos, que +conservava de ha muito constantemente allumiados. + +Antes de entrar, tinha hesitado e estivera quasi a obedecer á +tentação... + +Sentia ainda uma esperança. É que a vacca parecia melhorar. + +Aquelles santinhos, especialmente o representado n’um retrato egual aos +que se tiram hoje em dia ás pessoas[7], quantos milagres não tinham +feito em vida e depois da morte? Porque não haviam de fazer mais um, +a favor de quem lhe rezava com devoção tamanha, o coração opprimido, o +rosto banhado de lagrimas? + +E por largo tempo invocou o auxilio milagroso de Santo Antonio. + + * * * * * + +No dia de Natal a vacca amanheceu muito peior. Soltava a cada instante +um mugido tão triste e doloroso, que nem uma alma christã metteria mais +compaixão, dizia depois, na cadeia, o Francisco Raposo. + +--Só a Marianna não terá dó do pobre do bicho, pensou elle, quasi a +chorar. + +A vacca fitou o dono com uns olhos muito afflictos, como a pedir que +lhe acudisse, que não a deixasse morrer. + +Depois teve um tremor por todo o corpo, descaíu a cabeça para o chão, +extendeu muito as pernas, deitou pela bocca uma baba muito grossa, e os +olhos embaciaram-se-lhe.--Estava morta. + +--Quarenta patacas perdidas! gemeu o Francisco, e arrimou-se á +humbreira da porta, arrancando os cabellos, praguejando, e batendo +alli tão fortemente com a cabeça, que era um pasmo não a partir. + +Ouviu tocar á missa. + +Encaminhou-se para a egreja. Escutar a voz do sr. padre vigario, que +sabia dar tão bons conselhos, vêr a hostia consagrada, tudo havia de +socegal-o, e afastar-lhe os pensamentos ruins. + +A missa ainda não tinha começado. + +--Se a Marianna lá estaria?--Alli é que ella havia de ir, por ser a +egreja mais proxima. + +Não estava. + +--Hereje! Nem sequer no dia do Natal!... + +Mas o sr. vigario dissera já outras duas missas n’essa manhã, e talvez +a prima tivesse ouvido alguma d’ellas. + +Viu a tia logo adeante, e foi falar-lhe. D’ahi a momentos, já sabia que +a Marianna não tinha estado na egreja. + +--Vi-a hoje, mas não foi na casa de Deus Nosso Senhor. Foi no foral, +que vae dar ao sitio onde ella _véve_. Levava até, pendurada na +mão, uma fressura de boi. + +--Eh, senhora! Porque levava ella isso? + +--Eu sei lá, Chico! Talvez por ser o que se tira mais barato no +açougue, quasi de graça... Ou quem sabe se?... + +A velha calou-se. + +--Levava tambem o coração? perguntou-lhe o Francisco anciosamente. + +--Pois não, filho! Mas cala-te, que o sr. padre vigario não tarda. + +O que mais lhe importava era a missa, depois do que acabava de +saber!--A Marianna ainda não estava satisfeita com o mal que lhe +causara! Sem se valer da bruxaria do coração espicaçado com a tesoura, +já o tinha posto de rastos; o que faria agora, que ia usar d’este meio? +Bem podia elle preparar-se para ficar sem nada: sem a outra vacca, sem +as terras, sem a casa... Se o fogo não lh’a queimasse, deitava-lh’a +abaixo algum tremor de terra. Na ilha ha tantos!... E o demonio +arranjaria de certo mais um, se as bruxas lh’o pedissem. + +Ia tão fóra de si, que ainda estava de cabeça descoberta. + +Chegou em frente da casa térrea onde moravam as primas. + +Da chaminé saía fumo--um fumo negro, signal certo de maldade. + +Entrou no quintal, e rodeou a casa, para ir ver o que estavam a fazer +na cosinha. + +Tudo parecia abandonado, como se tivesse passado por alli a morte. Uns +pés de couve meio seccos ... uma parreira comida pela doença... + +Deante da porta, junto ao cepo de partir a lenha, amarellejava um +machado coberto de ferrugem. + +Escutou. + + * * * * * + +Bem triste aquella manhã em casa da Marianna. + +Com as faltas de ar que lhe causava a lesão cardiaca, tinha a doente +passado a noite em afflicções, e só depois de já ir o sol bem alto, +pegou no somno, sentada na cama e encostada a umas almofadas e +travesseiros. + +A Marianna, a despeito de não ter dormido um instante, saíu devagarinho +e foi á cata de uma senhora, que lhe promettera mandar vir das Furnas +os remedios applicados áquella doença pelo famoso curandeiro. + +As hervas e o mais tinham chegado na vespera, á noite. Se o curandeiro +ia envergonhar os cirurgiões!... E com estes e com a botica, as duas +irmãs tinham gasto mais do que podiam. A boa senhora ensinou á Marianna +uma oração, que vinha escripta n’um papel, para ser dicta emquanto se +queimassem as hervas. A pobre pagou os remedios com o ultimo dinheiro +que levava, e tornou para casa. + +Á porta do açougue viu uma bella peça de carne. Suspirou, pensando +que nem um caldo poderia dar n’aquelle dia á irmã. E queria-lhe +tanto!...--Quando a mãe lhes faltara, o pae andava mettido com a +cunhada, a Lauriana, e nem pensava nas filhas. Só a irmã mais velha +cuidara na outra, que pouco mais tinha de oito mezes. Era a sua segunda +mãe. + +O homem do açougue viu-a e adivinhando o motivo d’aquelle suspiro, +d’aquella tristeza, offereceu-lhe um coração e um pedaço de figado, que +pendiam de um gancho, a escorrerem sangue. + +A Marianna quiz recusar, mas por fim acceitou a esmola com +reconhecimento. + +Entrou em casa de mansinho. Assim mesmo a doente acordou. + +--Aqui veem novos remedios, disse-lhe ella, em quanto accendia o lume. +Estes agora, sim! Curam a toda a gente. Primeiro vou defumar a casa com +as hervas: alecrim, rosmaninho e outras que não conheço. O remedio da +garrafa é para se tomar á noite. + +A doente abanou a cabeça, com melancholia. + +--No dia de Anno Bom, se Deus quizer, já havemos de ir ambas á missa! +continuou a Marianna muito alegre, e encostou a porta da cosinha, por +ter passado a fumaceira da lenha. Foi ajudar a irmã a sentar-se á borda +do leito e voltou para a chaminé. Logo que a lenha formou brazas, +deitou-as para um fogareiro pequeno, e sobre ellas acamou as hervas do +curandeiro. + +Levantou se um fumo espesso e escuro, que invadiu toda a casa. + +A Marianna levou o fogareiro para junto da irmã, dizendo ao mesmo tempo: + +«A minha casa venho defumar em louvor do Santissimo Sacramento do +altar, com as tres missas do Natal, com as tres hostias consagradas, +com os tres padres vestidos e revestidos...» + +A porta escancarou-se violentamente, e o Francisco Raposo, levantando o +machado da lenha com ambas as mãos, cresceu para a Marianna, a gritar: + +--Vae-te para as profundas do inferno, bruxa de mil diabos! + +O corpo caíu pesadamente no chão, fendido ao meio o craneo pelo golpe +do machado. + +A doente abriu muito os olhos, e antes que podesse gritar, resvalou +para cima do corpo da irmã. + +Assim deixaram de viver as duas _feiticeiras_. + +--Morto o bicho, morta a peçonha! murmurou o Francisco, e foi +entregar-se á prisão. + +[Ilustração] + +Acabou em Rilhafolles, tres annos depois. + + + + +[Ilustração] + + + + + Mary + + +EM quanto nos despedimos, esteve nervosa, commovida. + +A familia, como todo o bom inglez, lunchava na sala de jantar +situada ao rez do chão da casa, a curta distancia do taboleiro do +_croquet_, onde jogavamos, eu e a Mary. + +O que não diria o bom Thomas, o pae d’ella, se nos visse jogar +d’aquelle modo,--elle que era um taco de primeira ordem, e que nos +considerava a ambos como os seus discipulos predilectos!... + +Ah! Mas é que nem eu, nem ella pensavamos no _croquet_, e embora +fingissemos dar uma grande attenção ao caminho que percorriam as bolas +por entre os arcos de ferro, os nossos pensamentos concentravam-se +todos, todos, n’aquella separação eminente, que nos impellira, na +vespera, a declararmos o amor, que havia mezes transbordava dos nossos +corações de dezeseis annos. + +Pobre Mary! Com os seus grandes olhos azues velados ligeiramente +de lagrimas, fitava-me com melancholia, continuando talvez a fazer +mentalmente a pergunta, que me dirigira no dia anterior, quando, +afastados um pouco da familia durante o passeio á quinta do Gordon, +tinhamos falado longamente do futuro. + +--Porque havia eu de partir? _Why?_ + +Adivinhava-lhe o pensamento e fugia de encaral-a, porque sentia o peito +a estalar de magua, e dizia de mim para mim, que melhor fôra que em +vez de me mandarem para Lisboa estudar, me deixassem ficar na Madeira, +segundo o conselho da Mary, e assaltava-me o desejo de declaral-o a +toda a gente, de recusar-me terminantemente a embarcar no _Maria +Pia_, que era esperado no dia immediato. + +Continuámos a jogar. + +Mary, baixando se, como para fazer melhor a pontaria, disse-me com a +voz afogada pelos soluços: + +--_Dear! It is for the last time!..._ + +Sim, era a ultima vez que poderiamos trocar uma palavra em segredo! + +Não tardaria que terminasse o _lunch_, a que ella se tinha +subtrahido, pretextando um incommodo de estomago. + +Era a ultima vez em que poderiamos combinar os nossos projectos de +futuro esboçados na vespera, e que a nossa ingenuidade considerava +infalliveis. + +Então, reanimei-me! + +Quiz mostrar a Mary que, apesar dos meus dezeseis annos, não era uma +creança incapaz de uma grande resolução. + +Quem me déra poder repetir o que então lhe disse! O que haverá de +mais puro, de mais elevado, do que as palavras que exprimem um +primeiro amor, e que desabrocham da bocca do adolescente, com toda a +sinceridade, candura e enthusiasmo de que é susceptivel uma alma? + +Nos intervallos deixados pelo jogo, que seguiamos machinalmente, +mostrei-lhe que eram impossiveis os devaneios formados na vespera; que +era um puro sonho de creança o pensar que ella, herdeira rica, poderia +ser para mim, que nada possuia; mas que forcejaria por merecel-a, +estudando, trabalhando até vencer! + +E phantasiava um futuro de triumphos. Antevia o meu regresso á Madeira. +Vinha coberto de gloria, subia a calçada do Monte, e ia depôr com +ufania todos os louros colhidos, aos pés de Mary, que seria então para +mim. + +Creancices! + +Ella escutava-me, abanando a cabecinha loura, não se deixando convencer +e murmurando sempre: + +--_No! Never more!_ + +Então exaltei-me, duvidei do amor de Mary, accusei-a de querer que eu +representasse um papel pouco airoso, que désse azo a accusarem-me de +especulador... + +Convenci-a. + +Estendeu-me a sua mão branca, onde ligeiros traços azulados marcavam as +ramificações das veias, e disse-me pausadamente, em portuguez: + +--Pois então jure-me que voltará, que não se esquecerá de mim, que +serei sempre a sua querida, a sua adorada! + +Oh! Como eu jurei tudo, tudo, mesmo junto ao arco da campainha! + +Ajustámos então manter correspondencia activa. + +A Clarinha Correia se encarregaria de receber as nossas cartas. + +--Nunca mais me esquece? perguntou ella ainda uma vez, fitando de novo +em mim os seus olhos azues, profundos, scismadores. + +--_Never more!_ respondi, e estando muito perto d’ella, prestes a +acabar o jogo do _croquet_, quiz beijar-lhe de leve, fugitivamente +o braço alvo e rosado, que saía da manga larga do vestido. + +Mary arredou-se com vivacidade e lançou-me um olhar de censura, em que +vinha implicito um _shoking_. + +N’aquella occasião levantaram-se da meza, e o taboleiro do +_croquet_ foi logo invadido pelos que tinham estado fazendo honra +ao _pale ale_ e ás _sandwiches_, e vinham para os canapés de +vime gosar a sombra dos grandes castanheiros, que entrelaçavam lá muito +em cima as frondosas ramarias, formando um impenetravel docel. + +No dia seguinte chegou o vapor da carreira e d’ahi a dois dias parti +para Lisboa. + +Não consegui trocar mais uma palavra com Mary. + +Apenas a Clarinha me disse que poderia escrever-lhe. + +Boa Clarinha! Os seus quarenta annos de solteirona nunca se tinham +negado a prestar similhantes favores! + + * * * * * + +Que tempo durou a nossa correspondencia? + +Não posso dizel-o ao certo. + +O coração esquece tão facilmente! + +Lembro-me de que as nossas cartas respiravam paixão e enthusiasmo, +desde a primeira até á ultima linha. Eu ás vezes, ao percorrer enlevado +as regras perfeitamente parallelas, que deixara no papel lusidio e +espesso a letra firme, esguia e commercial de Mary, perguntava a mim +mesmo se era crivel que uma loura _miss_ podesse sentir amor tão +vehemente e, o que valia mais ainda, ter a coragem de manifestal-o. + +Mas certo dia a duvida desappareceu. Li o espantoso idyllio de +_Romeu e Julieta_, chorei lagrimas de punho com o soffrimento dos +desditosos amantes de Verona, e conclui afinal que se um poeta de além +da Mancha tivera espirito e coração para imaginar e sentir aquelle +incomparavel poema de amor, não era muito que uma ingleza, em toda +a plenitude da mocidade, e habitando de mais a mais um clima quasi +tropical, escrevesse cartas como aquellas. + +E eu amava-a, oh! se a amava!... Quantas e quantas vezes me não +aconteceu no meio de uma lição de mathematica ou de physica, na +Polytechnica, caír em profunda abstracção e vel-a, sim! vel-a tal como +era--pequenina, loura, rosada, um tanto diaphana, mas em todo o caso um +typo adoravel de Gretchen mais candida ainda que a do _Fausto_! +Via-a, sem me escaparem sequer uns pequeninos nadas, que a tornavam +mais seductora a meus olhos. Mary não transigia, por exemplo, com as +modas das suas patricias; não transigia completamente, é claro. Apenas +os primeiros assomos da garridice tinham surgido n’ella, com os quinze +annos, Mary abandonára o hediondo calçado que tira a certas inglezas +toda a similhança com Cendrillon. + +O seu pésinho--creiam que não é do meu amor o diminuitivo--o seu +pésinho mostrava-se, abaixo da fimbria do elegante vestido, calçando +sempre uma airosa botinha, obra do mais habil «shoemaker» funchalense. + +Mary constituia um mixto adoravel da candura ingleza, com a animação e +a elegancia meridional. + +Sabe Deus quantas curvas de segundo grau e quantos instrumentos de +optica e de acustica eu deixei de estudar, para scismar unicamente +n’aquella creaturinha fascinante! + +Eu queria trabalhar muito, queria colher á farta as taes coroas de +louro antes sonhadas; mas vinha sempre a saudade sentar-se ao meu lado, +diante da meza do estudo, e a nostalgia velar de crepes tudo quanto me +cercava. + +Fui entristecendo. + +Emprehendeu curar-me, um amigo meu que é hoje deputado, não sei bem se +progressista, se regenerador.--É tão difficil distinguil-os!... + +Obedeci-lhe machinalmente. + +--Deixarás de ser nostalgico, apenas eu faça de ti um bohemio. + +E levava-me a... + +Eu sei lá aonde me levava! + +No regresso, tarde da noite, assaltavam-me grandes furias; +descompunha-o, protestava nunca mais acompanhal-o, fechar-lhe até a +porta da casa de hospedes onde eu morava: mas esquecia tudo, apenas +elle no dia seguinte, na escola, me dava um abraço apertado e soltava +uma das boas gargalhadas, que ainda não deu em S. Bento, apesar da +comedia em que o vejo mettido. Agora, basta que riam d’elle! É que anda +expiando cruelmente a cumplicidade, que teve na queda d’este anjo. + +D’alli a pouco tempo eu estava perdido, na accepção dos paes de +familia, mas tinha-me consolado. + +Não se julgue, comtudo, que esquecia Mary. + +Pelo contrario! + +Pensava sempre n’ella e por amor d’ella estudava, quando a bohemia me +não levava até ás ruas da Baixa... + +Tanto Mary me não saía do pensamento, que eu estava de continuo a achar +reminiscencias do seu rosto, umas vezes, outras da sua fina cintura, +da sua mão, do seu pé, nas conquistas faceis que fazia ao lado do meu +amigo, actual deputado, e de Luiz de Almeida, aquelle talentoso poeta e +bohemio engraçadissimo, que a morte aniquilou tão cedo, mas que ficou +memorado no espirito de quantos o conheceram. + + * * * * * + +Uma noite, na rua do Ouro, ia eu com os meus dois companheiros de +extravagancias, quando encontrei, de cara a cara, Henry, um irmão de +Mary de que eu era amigo, e que estava estudando em Londres havia dois +annos. Pelos modos o pae viera ao conhecimento de que Henry se escapava +a miudo do collegio, e fazia frequentes excursões por Piccadily-Circus +e Leicester-Square... + +O bom Thomas chamava-o para a Madeira, a fim de regeneral-o. + +Feitas as devidas apresentações, os meus companheiros declararam á +queima roupa ao inglez, que sympathisavam immenso com elle, e logo o +convidaram para nos acompanhar n’aquella noite. + +Quiz pôr obstaculos, inventei difficuldades, mas tudo foi inutil. O +proprio Henry se insurgiu contra mim e acceitou a offerta com prazer. +Queria despedir-se alegremente de Lisboa. E despediu-se, em companhia +da seductora Lolita, que os meus amigos lhe apresentaram com todas as +formalidades... que foram nenhumas. + +Quando no dia seguinte nos separámos a bordo do vapor, eu estive quasi +a pedir-lhe para guardar segredo da aventura; não o fiz todavia, +suppondo que Henry, por conveniencia propria, fosse discreto, e tambem +para não lhe despertar suspeitas ácerca do meu amor pela irmã. + +Ai! Porque não o fiz?... + +No paquete immediato deixei de receber carta de Mary. Escrevi-lhe +afflicto, perguntando-lhe o motivo d’aquelle silencio. + +Não tive resposta. + +Mandei cartas, sobre cartas. + +Um dia a Clarinha Correia compadeceu-se de mim e enviou-me este +desengano: + +«A Mary soube, pelo irmão, coisas terriveis a seu respeito. Esqueça-a, +porque ella já o esqueceu.» + +Repelli o conselho, e mandei á Clarinha uma carta, que ella deveria ler +a Mary, e que seria capaz de commover não só os tigres da Hircania, tão +celebrados de poetas e poetastros, mas até um agiota. + +A inglezinha resistiu! + +Dois annos depois casou. + +Como eu estava longe, padeci muito menos que o heroe de _Sous les +tilleuls_, e não fiz nenhuma das incriveis tolices, a que elle se +abalançou no seu exagerado romantismo. + + * * * * * + +Dez annos depois. + +N’um dia de sol, galgava eu, em companhia de um amigo, o carreiro +ingreme e fatigante, que vae das Féteiras para as Sete Cidades, na ilha +de S. Miguel. + +Apesar de nos terem antes descripto com as côres mais vivas e +fascinantes a belleza do afamado valle, já nos sentiamos invadir pelo +aborrecimento, em consequencia da posição incommoda em que iamos +sobre os burros alugados nas Féteiras, e tambem porque o sol estava +ardentissimo. + +Ao nosso lado um rapazelho, descalço, jaqueta de picotilho ao hombro e +cajado ferrado na mão, trepava o carreiro aos pulos, soltando por vezes +o caracteristico «Passa cá i’asno!» e dando com a lingua no ceo da +boca estalos frequentes, para animar os jumentos na trabalhosa ascensão. + +Adiante de nós, a uma centena de passos, caminhavam na mesma direcção +dois viandantes, um homem e uma senhora. Elle, com as grandes pernas +pendentes entre as quatro do burrinho e os compridos pés quasi de +rastos pelo chão, balanceava muito os braços e levantava-os com +frequencia, fazendo gestos de enthusiasmo, quando volvia os olhos para +o vasto panorama, que já começava a desenrolar-se por traz de nós, do +lado da beira-mar. + +Sobre a cabeça campeava-lhe um capacete branco, envolto em alguns +metros de cassa da mesma côr. + +Por detraz e descendo para a gola do casaco amarello claro, havia +melenas louras arruivadas, semelhantes a barbas de milho. + +Mas, naturalmente, o que mais nos attrahiu a attenção, foi a +companheira do homem ruivo. Sentada de lado, sobre o albardão do burro, +envolvia-se desde a garganta até aos pés n’um comprido guarda-pó de +hollanda: ao de cima emergia a cabeça, occulta por um chapeu de palha +preta, e embrulhada n’um espesso veo de gaze de seda azul; abaixo +da roda do guarda-pó viam-se pendentes dois objectos escuros, muito +compridos, de fórma estranha, que não raro se agitavam, na ancia de +percutirem as ilhargas do jumento. + +Mais de perto conseguimos apurar, que os objectos negros eram dois pés. + +E levámos ainda mais longe a observação. Quasi perfurando o linho do +guarda pó, adivinhavam-se umas saliencias osseas, correspondentes aos +hombros, aos cotovellos, e até aos joelhos, não obstante as saias. + +--Quanto phosphato de cal daria aquella ingleza? perguntou o meu +companheiro. + +Eu ia responder com um gracejo de não melhor gosto, quando attingimos a +cumiada que limita em roda o extenso valle. + +--Eh! Senhores, disse-nos o rapaz dos burros--um cerrado michaelense +dos campos--avistam-se d’aqui a _pêuco_ as lagoas. + +Apeámo-nos, e, seguindo o conselho que nos tinham dado na cidade, +fomos andando para diante, mas olhando sómente para a nossa esquerda, +a fim de que o valle das Sete Cidades nos apparecesse de subito, e não +gradualmente, á medida que fossemos deixando para traz de nós um morro, +que se erguia á nossa direita. + +--Virem-se os senhores agora, disse-nos momentos depois o rapaz. Lá +estão as lagoas em baixo! + +Olhámos para a nossa direita... Um deslumbramento!--No ceo pairavam +duas ou tres nuvens, muito brancas, que recortavam cruamente o sinuoso +perfil sobre o azul carregado da atmosphera. Abaixo, uma cadeia +continua de montanhas fechava n’uma enorme cinta de forma elliptica +o valle, em cujo fundo se espelhavam as duas lagoas--azul a maior e +mais distante, de reflectir o firmamento; verde a outra, das algas +que n’ella mergulham e da vegetação, que se debruça pelas encostas +sobranceiras. Na margem da primeira e á nossa esquerda, como que +banhando-se n’aquellas aguas frescas e tranquillas, branqueavam as +casas de um logarejo, em meio de viçosas plantações. + +Entre a povoação e as montanhas que limitam por aquelle lado a immensa +cavidade, surgia um monte, de constituição vulcanica e de ilhargas +cortadas por sulcos profundos, segundo as linhas de maior declive. + +No cimo abria-se a cratera, de que em epochas longinquas golfaram sem +duvida ondas e ondas de lava incandescente. + +Largo tempo permanecemos a contemplar, extaticos, boquiabertos, o +quadro maravilhoso. A magestade imponente do panorama infundia-nos +o sentimento de respeito e de humildade, que fatalmente nos subjuga +perante os grandiosos espectaculos da natureza. + +Fizeram-nos, de repente, saír d’aquelle extase, uns gritos soltados +alli perto. + +Eram os dois inglezes. + +Ella, de costas voltadas para nós, e já sem o veo a cercar-lhe +inteiramente a cabeça, dizia por entre paroxismos de admiração: + +--_Ooh!... Splendid!... Magnificent, indeed!..._ + +Quando me parecia reconhecer aquella voz, a ingleza voltou-se e... + +Era Mary! + +Era sim, mas tão differente, tão mudada, que cheguei a abençoar +n’aquelle momento a revelação indiscreta de Henry. + +Tinha-se tornado ingleza a valer, sob a influencia do deslavado marido. + +Estavamos muito perto um do outro. Ella olhou para mim casualmente, +e, sem mostrar a minima commoção, de novo fixou a vista no lindissimo +panorama. + +[Ilustração] + +Eu então vinguei-me, vinguei-me cruelmente! + +Esperei uma occasião em que ella me visse, e olhei-lhe para os pés. + + * * * * * + +Ah! Mas agora noto uma coisa! Tenho escripto tudo isto, como se +estivesse narrando um capitulo da minha biographia. + +O heroe do conto não sou eu, affianço-lhes, mas sim o Fernando, pae da +Lili de que já lhes narrei uma aventura. + +Antes me julguem indiscreto, do que me acoimem de ingrato! + + + + + NOTAS DE RODAPÉ: + + +[1] New-Bedford. É corruptela vulgar nos Açores occidentaes. + +[2] Assim chama a Boston o povo dos Açores occidentaes. + +[3] A devoção do Espirito Santo espalhada, ao que parece, +no velho Portugal continental pela Rainha Santa, e levada pelos +primeiros colonos para as ilhas, ainda aqui permanece tão profundamente +arreigada, que as festas do Parácleto preenchem grandemente a vida +açoriana desde o domingo de Paschoa até ao da Trindade. Todos os +que a sorte indigitou para festeiros acceitam o encargo com o maior +prazer, e desempenham-o com bizarria muitas vezes incompativel com as +suas posses. Emigra o açoriano, vae lidar para Boston, New-Bedford, +S. Francisco ou para outro ponto da União em que se concentra a +colonisação portugueza; consegue juntar alguns centos de _dollars_ +e volta á patria só com o fito de _coroar_ em cumprimento da +promessa, e gasta em dois dias o producto de muitos mezes de trabalho. +Depois embarca novamente para a America, a proseguir na faina, mas nem +de leve arrependido pela sua devota prodigalidade. + +[4] Textual. + +[5] Aurora. + +[6] Cabana. + +[7] O actor Ribeiro, que tão notavel desempenho deu ao _Avarento_ de +Molière e a muitas outras peças, esteve em Ponta Delgada no começo da +sua carreira, e fez no theatro Michaelense o papel do santo portuguez +com tamanho exito, que os retratos que tirou vestido e caracterisado +como entrava no applaudido drama sacro, espalharam-se por toda a ilha, +e passaram das collecções artisticas dos seus admiradores, para os +oratorios do povo, e ainda alli são reverenciados--dizem-me--como se +representassem o verdadeiro Antonio de Bulhões. Quem sabe lá se este se +pareceria physicamente com o artista dramatico? + + + + + INDICE + + + Pag. + + O casamento do veterano 1 + + Os filhos do frade 61 + + O primeiro desengano 69 + + A Alegria do Mar 75 + + A lampreia 89 + + Mau homem 97 + + A licença do domingo 107 + + O contrabando 121 + + Piloto 129 + + Na vindima 137 + + O jantar do general 141 + + O aprendiz de barbeiro 151 + + A allemã 161 + + O marraxo 171 + + O pae do Jacintho 177 + + A folga 185 + + O paiol 209 + + As feiticeiras 217 + + Mary 235 + + + + + =NOTAS DE TRANSCRIÇÃO.= + +Os erros tipográficos evidentes foram corrigidos. + +A pontuação, a hifenização e a ortografia foram tornadas consistentes +quando uma preferência predominante foi encontrada no texto original; +caso contrário, não foram alterados. + +Nesta versão, o carácter “caret” (acento circumflexo) foi utilizado com +ou sem chaves para representar letras sobrescritas. + + + +*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK 75220 *** diff --git a/75220-h/75220-h.htm b/75220-h/75220-h.htm new file mode 100644 index 0000000..3d57461 --- /dev/null +++ b/75220-h/75220-h.htm @@ -0,0 +1,7849 @@ +<!DOCTYPE html> +<html lang="pt"> +<head> + <meta charset="UTF-8"> + <title> + Historias Das Ilhas | Project Gutenberg + </title> + <link rel="icon" href="images/cover.jpg" type="image/x-cover"> + <style> + +body { + margin-left: 10%; + margin-right: 10%; +} + +/* General headers */ + +h1 { + text-align: center; + clear: both; +} + +h2, h3 { + text-align: center; + font-weight: bold; + margin-top: 1em; + margin-bottom: 1em; + } + +p { + margin-top: .51em; + text-align: justify; + margin-bottom: .49em; + text-indent: 1.5em; +} + +.nind {text-indent:0;} + +.nindc {text-align:center; text-indent:0;} + +.large {font-size: 125%;} + +.space-above2 { margin-top: 2em; } +.space-below2 { margin-bottom: 2em; } +.space-below3 { margin-bottom: 3em; } + +.spa1 { + margin-top: 1em + } + +.tb { + text-align: center; + padding-top: .76em; + padding-bottom: .24em; + letter-spacing: 1.5em; + margin-right: -1.5em; +} + +hr { + width: 33%; + margin-top: 2em; + margin-bottom: 2em; + margin-left: 33.5%; + margin-right: 33.5%; + clear: both; +} + +hr.tb {width: 45%; margin-left: 27.5%; margin-right: 27.5%;} +hr.chap {width: 65%; margin-left: 17.5%; margin-right: 17.5%;} +@media print { hr.chap {display: none; visibility: hidden;} } + +div.chapter {page-break-before: always;} +h2.nobreak {page-break-before: avoid;} + +table { + margin-left: auto; 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no ama.</div> + <div class="verse indent20"><span class="allsmcap">CAMPOAMOR.</span></div> + </div> +</div> +</div> + + +<h3>I</h3> + + +<p>No dia em que o Jorge casou com a filha da Isabel houve grande reboliço +no Castello de S. João Baptista. Depois da missa regimental, o padre +capellão de caçadores 10 recebeu os noivos, com prévia dispensa do +prelado da diocese, na grande capella da fortaleza. Era numerosa a +assembléa, formada especialmente pelos curiosos.</p> + +<p>Officiaes e soldados, logo que o batalhão destroçou, correram para o +templo, onde já encontraram muitas mulheres, algumas de <i>manto</i>, +aguardando anciosas a chegada do cortejo nupcial, e fazendo em voz +baixa e com enorme dispendio de gestos, abundantes commentarios, +qual d’elles mais frisante, á resolução tomada pelo cabo de +veteranos.—Escolher para mulher uma raparigota, que podia á vontade +ser sua neta!—</p> + +<p>—Eu cá por mim, exclamava a Luiza Braga, escancarando a boccaça meio +<span class="pagenum" id="Page_2">[Pg 2]</span> +desdentada, ía jurar que lhe deram <i>coisa para querer bem</i>. Aqui +onde me vêm, <i>destrinço</i> o Jorge desde rapaz pequeno, e nunca lhe +descobri tenções de casar. Não era então aos cincoenta e oito annos, +que estando com o juizo todo, havia de... Nada! Nada! Elle bem sabe que +«albarda nova em burro velho é matadura certa».</p> + +<p>—E a quem o Jorge foi buscar?... Á Rosa!... acudiu a Josepha Julia, +cunhada do sargento Migueis, piscando muito o olho esquerdo, unico de +que era possuidora.</p> + +<p>—Eu não digo que a rapariga seja <i>somenas</i>, mas sempre é filha da +Isabel, e ninguem desmente o seu sangue. D’arredio, d’arredio, é que eu +gosto de vel-as a ambas!</p> + +<p>—Deixe a tia Luiza estar que a Rosa tambem não é nenhuma santinha, +replicou a Josepha. Não lhe quero pôr <i>pitafe</i>, mas se foi verdade +aquella historia com o sargento Luiz...</p> + +<p>—Não seria, menina. Olhe que a Isabel é rata sabia e não a deixava ir +á noite, sósinha, para o baluarte de S. Pedro. O 33 da artilheria é que +disse, que tinha lá visto os dois, mas como todos lhe conhecem a má +lingua... Pois não foi elle que andou por ahi a espalhar que a menina +Josepha olhava para o alferes da segunda, um homem casado e pae de +filhos?!</p> + +<p>A Josepha, ao ouvir estas palavras, que lhe foram quasi segredadas, +poz-se vermelha que nem malagueta, e redarguiu promptamente:</p> + +<p>—Tão damnada é a lingua d’elle, como as que repetem o que o marau +vomita. <i>Ubei!</i></p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_3">[Pg 3]</span></p> + +<p>—Ó menina, olhe que eu não tenho falas com o 33!</p> + +<p>—Nem deve ter, que a tia Luiza, por ter essa edade, não escapa a +similhante navalha. Sempre que o tio Braga passa ao pé d’elle, apanha a +sua risadinha e é apontado com o dedo...</p> + +<p>A velha despediu-lhe um olhar terrivel, enguliu em secco, e atalhou:</p> + +<p>—Bem, bem, não se fala agora nas patifarias do 33. Em todo o caso o +Jorge devia saber que a Rosa não era para a sua bocca.</p> + +<p>—E que pode empanzinar com o petisco, accrescentou a outra, já de +perfeito accordo.</p> + +<p>N’esta occasião sentiu-se o ruido dos passos de muita gente que vinha +atravessando a parada, e os noivos d’ahi a instantes entravam na +capella, acompanhados pelos padrinhos, pelos convidados e pelas pessoas +que, impellidas pela curiosidade, tinham ido esperal-os á porta da +casa terrea, onde a viuva do sargento José de Medeiros vivia desde ha +muito, por mercê dos governadores do castello. O Jorge, aprumado dentro +da sua farda de gola alta, botões muito lusidios e divisas alvas de +neve, mal deitava os olhos para a gente que o rodeava, e, com a cara a +escaldar, seguiu machinalmente pela capella adeante, ao lado da noiva, +que vestida de cassa branca semeada de raminhos vermelhos, e toucada de +grinalda e veo, dava mostras de vergonha, mal deixando ver os grandes +olhos pretos por baixo das longas pestanas assetinadas e bastas. No +rosto oval, branco e pequenino, esbatia-se um rubor intenso.</p> + +<p>Nunca tinha imaginado poder tornar-se o alvo da attenção de tanta +<span class="pagenum" id="Page_4">[Pg 4]</span> +gente, e, se não fosse uma vergonha, fugiria d’alli, a bom correr.</p> + +<p>Agora é que deveras se arrependia de ter acceitado a grinalda e o veo á +menina Elvira, filha do capitão da segunda companhia de caçadores 10, +que estava casada, desde o mez anterior, com o tenente Aurelio Joaquim, +ajudante da praça. Se tivesse trazido como tencionava, o seu lenço +de seda de barras azues, não daria tanto nas vistas. Era tambem esta +a vontade do Jorge, porém a Isabel insistira pelo veo, proclamando-o +«coisa muito mais fina».</p> + +<p>O cortejo rompeu atravez da multidão, direito ao altar, onde havia de +effectuar-se a ceremonia.</p> + +<p>Notaram alguns dos presentes, e antes de todos a Luiza Braga, que a +Rosa tinha córado mais ainda, e estremecido levemente, ao dar com os +olhos no sargento Luiz, que, muito apertado na fardeta côr de pinhão, +se bamboleava, com ar de escarneo, na primeira fila dos curiosos.</p> + +<p>—Nem aqui mesmo a deixa! Já é pouca vergonha! murmurou a Luiza ao +ouvido da Josepha Julia.</p> + +<p>—Elles lá se entendem, regougou esta ultima, e concluiu, suspirando: +«Tal desgraça!»</p> + +<p>Entretanto o padre capellão ia tartamudeando as palavras sacramentaes, +e o sargento Luiz muito satisfeito de si cofiava o farto bigode louro.</p> + +<p>—Olhem! Lá está o sr. governador! murmurou a Luiza Braga para as +mulheres que a rodeavam.</p> + +<p>O coronel Jeronymo Cardoso acabava effectivamente de surgir a uma +porta lateral da capella e deitava olhares perscrutadores para os +noivos, sem comtudo esquecer as dores cruciantes, que lhe impunham os +<span class="pagenum" id="Page_5">[Pg 5]</span> +terriveis joanetes.</p> + +<p>A Isabel tinha querido que o Jorge o convidasse para padrinho, e +chegara até a sondar <i>sua incellencia</i> com exito razoavel, mas o +veterano puzéra os pés á parede, e a despeito de uma formal reprimenda +da futura sogra, insistiu em escolher o José Maria, seu camarada desde +o cerco do Porto, que lá estava na egreja á ilharga do amigo, tentando +aprumar quanto possivel o corpo já muito derreado pelos janeiros.</p> + +<p>O jantar do casamento foi em casa do Jorge.</p> + +<p>Tudo correu bem e só houve de notavel o pregar a Isabel, já um tanto +avinhada, uma furiosa descompostura na Luiza Braga, porque a viu á +porta da rua, espreitando.</p> + +<p>Os convivas apaziguaram a questão e d’alli a pouco despediram-se, indo +o José Maria, um quasi nada alegrote, acompanhar a Isabel, até casa.</p> + +<p>—Parecemos tambem dois noivos, disse o velho, batendo-lhe, com a +mão aberta, no meio das costas, e foi-se embora a trocar as pernas, +em quanto a viuva lhe gritava do limiar da porta que «para um marido +<i>tanto</i> fino só a rainha que estava em Lisboa!»</p> + +<p>N’aquella noite, mercê das copiosas libações, dormiram mais +profundamente alguns dos habitantes do burgo militar, que pousado +no isthmo que liga a peninsula do Monte Brazil ao resto da ilha +Terceira, olha sobranceiramente para Angra atravez das suas numerosas +canhoneiras.</p> + + + + +<h3>II</h3> +<p><span class="pagenum" id="Page_6">[Pg 6]</span></p> + + +<p>O Jorge tinha perto de cincoenta e oito annos.</p> + +<p>Alto, espadaudo, bem conservado, era, sob o ponto de vista militar, +um exemplo vivo do que tinha sido o exercito portuguez, em quanto +o governou a disciplina implantada pelo marquez de Campo Maior, e +conservada pelos officiaes que tinham servido com o famoso organisador +inglez. Era um gosto vel-o perfilar-se deante de um superior e +fazer-lhe a continencia com todos os tempos e prescripções da ordenança!</p> + +<p>Aos domingos, para ir á missa regimental, punha ao peito o habito da +Torre Espada, que tinha ganho no cerco do Porto, por estar umas poucas +de horas a disparar sósinho um obuz, contra umas alturas, cujo accesso +convinha a todo o custo impedir ás tropas de D. Miguel. As demais +praças que primeiro guarneciam a bocca de fogo e outras que vieram +substituil-as, tinham ido cahindo, a pouco e pouco, ás balas de um +regimento transmontano, espalhado em atiradores na frente da bateria.</p> + +<p>—Maior Africa tu fizeste, dizia-lhe n’essa tarde o primeiro tenente +José Victorino Damasio, em ficares com ambos os braços, do que em +escapar ás ameixas d’aquella sucia! Tu és doido! Servir sósinho um +obuz!...</p> + +<p>—Ó meu tenente, redarguiu o artilheiro ilheu com cara muito seria, +pois elle <i>havera</i> de estar calado, tendo uma bocca tanto grande e +sempre escancarada?! Até parecia mal!</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_7">[Pg 7]</span></p> + +<p>—Em todo o caso foi doidice, continuou o tenente a rir.</p> + +<p>—Saiba V. S.<sup>a</sup> que muitos senhores officiaes tambem dão cá á gente +d’esses maus exemplos. V. S.<sup>a</sup> desculpe, mas parecia mesmo doidinho, +quando n’aquelle dia em que lhe atravessaram o corpo com uma bala, +queria á fina força, mal lhe fizeram o primeiro curativo, continuar a +commandar a sua peça. Eu bem me lembro! Só á má cara é que o arrancámos +de lá. Por isso, accrescentou o Jorge, indicando a insignia da Torre +Espada que ornava o peito de José Victorino, fez muito bem o nosso +Imperador dando a V. S.<sup>a</sup> essa fitinha azul ferrete.</p> + +<p>—Pois tambem tu a mereces e has de tel-a, affirmou o official.</p> + +<p>E teve effectivamente uma das quatro destinadas a artilheiros, na ordem +do dia relativa ao combate.</p> + +<p>Todas as testemunhas lhe foram favoraveis no inquerito, em que se +baseou a concessão.</p> + +<p>Ainda assim o Jorge, embora no seu intimo estivesse a babar-se de +gosto, não se fartou de desculpar-se para com os camaradas, dizendo +que tudo aquillo era obra do tenente José Victorino, e que, verdade, +verdade! o que elle tinha feito, fazia-o qualquer galucho.</p> + +<p>Depois da convenção de Evora Monte, mandaram-o para a sua terra, para a +ilha Terceira, e d’alli a annos arranjaram-lhe passagem a veteranos e o +emprego de fiel do material de guerra.</p> + +<p>Tinha á sua conta o armazem fronteiro á porta dos carros do castello de +S. João Baptista.</p> + +<p>Alli, ou n’uma courella do Monte Brazil, que os governadores lhe davam +<span class="pagenum" id="Page_8">[Pg 8]</span> +para cultivar, gastou elle durante muitos annos as longas horas do dia, +que sempre lhe pareciam curtas.</p> + +<p>Era um gosto visitar o armazem, n’aquelle tempo.</p> + +<p>Pelo pateo, rodeado de um muro baixo, espalhavam-se com symetria as +pilhas de balas cuidadosamente pintadas de preto, e descançavam, em +dormentes de madeira, os antigos canhões de ferro e de bronze, tão bem +conservados, como se na vespera tivessem vindo da fabrica. Alegrando o +quadro, floresciam em volta do recinto hortensias e gyrasoes.</p> + +<p>Lá dentro, no casarão apenas allumiado pela claridade coada atravez das +frestas envergadas e pela que vinha da porta, alongavam-se em cabides, +dos dois lados, soquetes de massa negra e cabo vermelho, emparelhados +com as lanadas e os sacatrapos. Os espeques, encostados ás paredes, +nos cantos, continuavam a uniformidade do tom vermelho, quebrado tão +sómente pela côr de chumbo das pernas da cabrilha, postas ao centro, em +cabide mais forte, que sustentava tambem, inferiormente, o molinete, o +cadernal e o moitão d’aquelle apparelho destinado ás manobras de força +da artilheria.</p> + +<p>Toda esta ordem e aceio eram devidos ao Jorge. Raro pedia fachinas +para o coadjuvarem. Só quando havia que remover algum peso de muitas +arrobas, e assim mesmo!...</p> + +<p>Descançava emquanto engulia o boccado.</p> + +<p>O jantar fazia-lh’o a Isabel, por um ajuste, que havia entre ambos. +Farto de rancho andava elle até aos olhos, e por isso queria «comida +feita por mão de mulher». Demais, a viuva bem precisava que a +<span class="pagenum" id="Page_9">[Pg 9]</span> +ajudassem, coitada! e não lhe exigia nenhum disparate.</p> + +<p>Ás vezes, em logar d’ella, ia a filha levar-lhe o comer. Quando o +contracto principiou, a Rosa já era crescidota, mas ainda assim, uns +dias por outros entornava-lhe o jantar, porque ia de corrida, para +se despachar mais depressa. Apesar d’isto o veterano nunca chegou a +zangar-se, porque ao encaral-a, perdia o animo, vendo-lhe aquelles +olhos tão pretos e tão bonitos!... E nunca disse nada á Isabel...</p> + +<p>Quando o caso succedeu a primeira vez, a Rosa ficou muito contente, e, +voltando no dia seguinte, poz a cestinha no chão mal viu o Jorge, e +deu-lhe, em agradecimento, um abraço e um beijo.</p> + +<p>Ao sentir a carne fresca e macia da rapariguinha tocar-lhe no rosto, o +velho ficou exquisito, e d’alli em deante não estava bem ao pé da Rosa. +O beijo voltava-lhe á memoria, e com elle a noção vaga de alguma coisa +que tinha perdido, e que todos os mais gosavam...</p> + +<p>—Nada! Nada! pensava por fim. Eu com isto dou em maluco. O melhor é +dizer á Isabel que fica roto o nosso ajuste, que não me arranje mais a +comida.</p> + +<p>Mas que motivo lhe havia de dar? E custava-lhe tanto vel-a menos vezes, +a Rosinha!</p> + +<p>Passou-se tempo, a pequena tornou-se mulher, e um dia o Jorge tomou a +Isabel de parte e falou-lhe em casar com a filha, de quem era «muito, +muito amigo!»</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_10">[Pg 10]</span></p> + +<p>A viuva do sargento Medeiros ficou banzada.</p> + +<p>Podia lá entrar-lhe na cabeça que o veterano quizesse aquella gaiata, +que não tinha onde cahir morta e que, de mais a mais, no respeitante +a juizo... Quantos amargos de bocca já tinha tido em razão d’este +particular!... Se havia de ter outros peiores ou de vel-a perdida, +mais valia aproveitar aquelle amparo, que lhe cahia do ceu aos +trambulhões... É verdade que o noivo podia ser avô da Rosa, mas era +homem decidido, e saberia conserval-a no bom caminho.</p> + +<p>Ainda assim, por descargo de consciencia, mostrou á filha as coisas +como eram: que o Jorge tinha muita edade e que não seria portanto o +marido que mais lhe conviesse. Lembrou-lhe, porém, que elle avezava bem +bons vintens, que só querendo-lhe deveras é que se teria resolvido a +pedil-a em casamento, e que não se parecia em nada com os bandalhos, +que andam por esse mundo a desinquietar as raparigas.</p> + +<p>—E a final que proveito é o d’ellas, as mais das vezes? perguntava com +acrimonia a viuva, fincando as mãos nos quadris, bem especada ao meio +da casa. Arranjarem filhos, sem ter apanhado marido!</p> + +<p>A Rosa não se decidiu logo. Custava-lhe a tomar o pedido a serio.—Seu +marido, o tio Jorge!...</p> + +<p>Bem sabia que o Luiz tinha olhado para ella por brincadeira, sem tenção +de casar; mas quiz fallar-lhe, para ver que effeito lhe produziria +a noticia. O sargento ouviu a participação, achou que o pedido do +veterano se justificava com a belleza da Rosa. Elle proprio desejaria +fazer o mesmo ... mas não podia, porque o pae o tinha obrigado a +<span class="pagenum" id="Page_11">[Pg 11]</span> +prometter casamento a uma prima, em Lisboa, e seria matal-o de desgosto +o escolher outra. O que faria com certeza, era ficar solteiro.</p> + +<p>A Rosa não o acreditou, mas ficou-lhe agradecida por aquella +explicação. Esperava até que o sargento a tratasse mal, quando soubesse +dos projectos de casamento. Ainda assim jurou comsigo mesma, que havia +de se vingar acceitando o primeiro que a quizesse para mulher, uma vez +que podesse gostar d’elle. Mas o Jorge, não! Era tão velho!</p> + +<p>Um dia a Isabel entrou fula, pela porta dentro.</p> + +<p>A Luiza Braga, a quem ella contara o pedido do Jorge, tinha-lhe dado +uma gargalhada nas bochechas, dizendo-lhe que o veterano estava de +certo a caçoar com ellas, e que tirassem d’alli a sua ideia.</p> + +<p>—Elle é isso? bradou a Rosa, tambem furiosa. Pois negra seja eu, se +não estiver casada antes de um mez!</p> + +<p>Tinha cumprido a promessa.</p> + + +<h3>III</h3> + + +<p>Tres semanas depois do casamento houve tourada de corda em S. João de +Deus.</p> + +<p>O Jorge, logo que a Isabel falou em irem todos ao divertimento, +condescendeu, dizendo que não queria a rapariga para freira nem para +bicho do buraco, e d’alli a boccado saíam do castello pela porta dos +<span class="pagenum" id="Page_12">[Pg 12]</span> +carros, os noivos na frente, a Isabel e o José Maria um pouco mais +atraz.</p> + +<p>Os caçadores da guarda piscaram os olhos uns para os outros +cubiçosamente ao verem a Rosa, e um de S. Miguel, mais descarado, +commentou, a meia voz, que nenhum d’elles apezar de moços, se benzeria +com um «peixão de estoiro» como aquelle que o velho tinha apanhado.</p> + +<p>O José Maria, que ainda ouviu a graçola, cuspiu-lhes a phrase: +«Galuchada atrevida!» mirando de soslaio o chocarreiro.</p> + +<p>Depois de descerem até Angra e de atravessarem parte da cidade, +cujas ruas, de ordinario pouco concorridas aos dias santos, mais se +despovoavam n’aquelle domingo por causa da tourada, os quatro subiram +até ao arrabalde de S. João de Deus, onde já enxameava uma grande +multidão.</p> + +<p>Dos mirantes, pouco mais altos que uma pessoa, debruçavam-se muitas +damas, a quem os donos das casas sempre reservam os melhores logares, +e por traz d’ellas ou dos lados apinhavam-se as mulheres do povo, +merecendo geralmente umas e outras os olhares de quem buscasse apenas +caras bonitas, sendo porém as segundas mais dignas da attenção do +pintor de costumes, em razão da variedade dos trajos, que ostentavam +quasi sempre com extremada garridice.</p> + +<p>Algumas, as mais estimadas, tinham vindo com o <i>manto</i> +caracteristico, muito encaloradas dentro d’aquelle envolucro de alpaca +preta, egual á da saia, que, franzido em volta da cintura, lhes cobria +o tronco, os braços e a cabeça, formando por cima um tecto á laia de +<span class="pagenum" id="Page_13">[Pg 13]</span> +telha, duro graças ao forro de papellão que o reveste pelo interior. +Quantos rostos não parecem mais encantadores no fundo d’aquelle nicho, +quando entrevistos na semi-obscuridade do <i>manto</i>, que mão +pequenina, ás vezes bem calçada, sorrateiramente descerra á altura +do pescoço, para logo o fechar unindo-lhe as bordas deanteiras, de +modo a ficar apenas um orificio, atravez do qual os olhos dardejam +curiosos!... E o effeito não falha, porque o pomo vedado é o mais +appetecido.</p> + +<p>A par do <i>manto</i>, que em muitas se via descahido para traz por +causa do calor, figuravam os capotes de longo cabeção e pesado capello +terminado posteriormente em forma de travesseiro. Este abrigo, que +constitue abobada por cima da cabeça e resguarda as faces com as abas +verticaes, acabadas em bico á altura dos hombros, tinham-o tambem +deitado para as costas algumas das donas, não menos encaloradas que +as dos <i>mantos</i>, ao passo que outras, mais cautelosas, os haviam +guardado dobradinhos a preceito, dentro da casa e em sitio escolhido. +Nada! Que o capote para muitas é a bem dizer um dote.</p> + +<p>Do matiz formado pelos chales e lenços de seda ou de chita, que +adornavam as restantes mulheres do povo, destacava-se um ou outro +capote e lenço, para ser ainda maior a diversidade dos trajos.</p> + +<p>Quando o Jorge e os companheiros chegaram ao logar da festa, já +remoinhavam pelas ruas, aos bandos, os rapazes do povo, trajando bellas +roupas de <i>panno fino</i>, chapeus de feltro e alvas camisas, com os +<span class="pagenum" id="Page_14">[Pg 14]</span> +collarinhos unidos por dois grandes botões de ouro, lavrados em relevo +imitante a filigrana e encadeados pelo pé. Só os velhos e a maioria dos +<i>senhores da cidade</i> buscavam refugio nos mirantes e janellas.</p> + +<p>Por entre os passeiantes esgueiravam-se, a espaços, as retardatarias. +Estas—duas lindas moçoilas do campo—faziam resoar na calçada as solas +de pau das <i>galochas</i> pregadas, em volta, de tachinhas amarellas, +e enfeitadas no peito do pé com bordados escarlates a sobresahirem +do fundo azul da carneira. E como ambas corriam ligeiras com aquelle +calçado tão difficil de suster nos pés! Ora! Se até iriam dançar, a +menos que o tirassem, para bailar em palmilhas de meias!</p> + +<p>Quem primeiro veiu fallar ao Jorge foi o João Matheus, um leiteiro +que tinha a freguezia de muitos moradores do Castello. O veterano +quasi não o conheceu, tão differente o achou, de quando elle ia por +lá ao seu negocio, de manhãsinha, mettido n’uma grande camisa de +linho e coberto com o classico barretinho de malha, parente muito +proximo do solideo ecclesiastico. O leite, levava-o em duas grandes +cabaças escuras, amarradas aos extremos de um bordão ligeiramente +curvo, que lhe assentava pelo meio no hombro esquerdo. Agora estava +outro inteiramente, salvo no varapau, e no <i>pé fresco</i>, moda tão +predilecta do povo açoriano: o fato cifrava-se no dos outros populares, +e a cobertura da cabeça, ou, mais rigorosamente, do cocoruto era +a famosa carapuça de panno azul, orlada na peripheria com um vivo +encarnado e rematada dos lados por duas orelhinhas da mesma côr, +<span class="pagenum" id="Page_15">[Pg 15]</span> +reviradas para cima. Para seguir ainda mais á risca a moda popular +terceirense, tinha pendente ao meio da testa, saindo por baixo da +carapuça, um caracol de cabello feito a primor.</p> + +<p>O veterano levou os companheiros para casa do José de Mello, que já +o tinha convidado muitas vezes, e que mal accommodou em bom logar do +mirante a Isabel e a Rosa, carregou com os dois velhos para dentro +de casa, ancioso por dar-lhes a provar uma pinga de vinho novo da +Graciosa, que as duas mulheres não acceitaram, mas que os tres homens +foram escorropichando por tigelas de barro não vidrado, acompanhando-o +de milho cosido com funcho, tremoços, favas e milho torrado, e outros +<i>hors d’œuvres</i>, patentes na meza e destinados ás visitas.</p> + +<p>A mulher do José de Mello, sentada a par da Isabel, disse-lhe que +tomasse cuidado á passagem do bicho, porque eram já seis os touros que +lhe tinham saltado para o mirante.</p> + +<p>Mas o conselho não foi ouvido, porque o estalar de um foguete provocou +immediatamente um enorme borborinho. Do touril, estabelecido n’um +quintal proximo, acabava de sair o boi. Correram-lhe ao encontro os +<i>aficionados</i>, pulando e gritando com desespero.</p> + +<p>Appareceu finalmente um touro de pequeno corpo e de côr escura, preso, +pelas hastes emboladas, a um comprido cabo, que quatro homens seguravam +pela extremidade opposta, e largavam ou colhiam para dar fuga ao animal +ou obrigal-o a parar.</p> + +<p>Traziam os quatro, á laia de uniforme, calças brancas, alvas camisas +<span class="pagenum" id="Page_16">[Pg 16]</span> +avivadas de encarnado, e bonnets de copa baixa, apenas differentes dos +que usam vulgarmente os cosinheiros por terem tambem vivos d’aquella +côr.</p> + +<p>A <i>viseira</i> que lhes occultava a metade superior do rosto, é que +originou a denominação de <i>mascarados de corda</i>, com que o povo da +ilha então os designava.</p> + +<p>Todos quatro coxeavam mais ou menos, visto que em obediencia ao seu +tradicional plano de uniformes, traziam os pés, tão deshabituados +de constrangimento, n’aquelle dia apertados em sapatos de bezerro, +legitimos representantes, para o caso, dos celebrados borzeguins da +tortura inquisitorial.</p> + +<p>O touro passou de corrida pela frente do mirante do José de Mello. Um +enxame de homens e rapazes seguiu-o de tropel. Tanta diligencia faziam +por uma ou duas marradas, que ás vezes viam coroadas as suas aspirações.</p> + +<p>N’isto, um d’elles, mais atrevido, tropeçou e cahiu, e d’aqui resultou +que outros dois tambem se estatelassem na calçada.</p> + +<p>O touro estava perto, e, ou porque os mascarados não podessem a tempo +segural-o ou porque desejassem «animar o divertimento», conseguiu +chegar aos tres, e depois de uma focinhada prévia dispunha-se já para +mimoseal-os com festa mais valente, quando o cabo, esticado com força, +lhe deu a <i>pancada</i>, obrigando-o a retroceder e arrancando-lhe um +mugido doloroso.</p> + +<p>Decididamente a tourada promettia ser boa.</p> + +<p>Os tres levantaram-se no meio de risadas estrepitosas, e um d’elles, +<span class="pagenum" id="Page_17">[Pg 17]</span> +com a cabeça partida, foi curar-se á botica proxima, sem que mais +ninguem désse importancia a similhante bagatella.</p> + +<p>Apezar de ser fanatica pelo divertimento, a Rosa tornou-se pallida mal +viu o sangue, e descórou mais ainda, porque ao afastar os olhos deparou +no mirante contiguo o sargento Luiz, a fital-a persistentemente, com um +ar muito triste, como de quem sentisse grande pena de estar a vel-a, +mas que não podesse desviar d’alli a vista, nem o pensamento. Afinal +cobrou animo e, com simulada indiferença, mostrou concentrar a attenção +no touro, que já ia a distancia, rodeado por uma caterva menos densa. +Alguns dos perseguidores, vendo as barbas do visinho a arder, tinham-se +refugiado nos vãos das portas, ou dependurado das grades de algumas +janellas mais baixas.</p> + +<p>—Não havia de olhar para elle!... Se até lhe tinha raiva!... Quando +o Luiz a namorava, jurava-lhe um amor por ahi além, e afinal deixou-a +casar com outro... Bem fraco amor!... Nem já se lembrava de que ella +existia. Tinha-a encarado, por um simples acaso. Iria apostar que +olhava já para outro sitio... Nem já alli estaria talvez...</p> + +<p>E, para certificar-se, olhou novamente e viu outra vez o Luiz, sempre a +miral-a com a mesma persistencia.</p> + +<p>Revoltou-se e sentiu uma grande vergonha, por adivinhar que n’aquella +teimosia estava a prova de que elle não a julgava mulher de bem, e a +suppunha capaz, depois de casada, de olhar para outro homem, que não +fosse o marido.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_18">[Pg 18]</span></p> + +<p>Ia dizer-lhe pela expressão do semblante a indignação que o atrevimento +lhe causava, mas não poude, porque ao encarar com o Luiz conheceu que +o seu olhar não era petulante, mas de supplica, e ainda mais terno do +que no dia em que elle lhe tinha dicto que a <i>Rosinha era a flôr do +Castello</i>, e que <i>morria de amores</i> por ella.</p> + +<p>O que estava certamente era ralado de pena, porque, em obediencia ao +pae, a tinha perdido!... Podia lá querer tornal-a má mulher, embora +fosse unicamente nas boccas do mundo!... Até merecia dó o infeliz... +Pois não o havia desprezado, para casar com o Jorge?... Coitado!...</p> + +<p>No emtanto proseguia o divertimento na sua monotonia habitual. +Percorridas as ruas do transito, o boi já vinha quasi a passar pela +segunda vez em frente da casa do Mello, continuamente excitado pelos +bordões, guardasoes, lenços, e até pelos casacos despidos pelos +capinhas improvisados, que assim toureavam em mangas de camisa.</p> + +<p>Perplexo, estonteado, o boi estacou ao meio da rua, olhando em derredor +e escarvando o chão com as patas deanteiras. Afinal, escolhido o ponto +de ataque, partiu como seta em direcção a uns cinco homens, mais +impertinentes em atiçal-o, mas que desappareceram por encanto, mal +suspeitaram a arremettida. Sumido o alvo, o touro não parou na corrida +e foi galgar de um salto o mirante do João de Mello, antes que os +<i>mascarados</i> lhe dessem a pancada.</p> + +<p>Um reboliço, uma gritaria infernal.</p> + +<p>Estes refugiavam-se esbaforidos no interior da casa, aquelles saltavam +<span class="pagenum" id="Page_19">[Pg 19]</span> +para a rua, e dois ou tres, paralysados pelo medo, deixavam-se ficar +no mesmo sitio, de olhos fechados, mãos nos ouvidos, entregues ao seu +destino.</p> + +<p>Mas subiu da rua uma gargalhada estrondosa, seguida de palmas e apupos. +Era a Isabel, que ao pular do mirante não tinha podido evitar que as +saias se levantassem, e dava com isto um espectaculo, se não agradavel, +pelo menos original.</p> + +<p>A Rosa, colhida improvisamente no meio da sua abstracção, viu o touro +cahir-lhe ao pé e desmaiou de susto: mas o sargento Luiz, n’um abrir e +fechar de olhos, saltou do mirante onde estava, tomou-a nos braços e +afastou-a do animal, a que os <i>mascarados de corda</i> esticavam no +entretanto o cabo e obrigavam a descer para a rua.</p> + +<p>Quando acordou do seu passageiro desmaio, a mulher do Jorge sentiu que +a beijavam e ao abrir os olhos viu-se nos braços do Luiz.</p> + +<p>Os dois veteranos conseguiram afinal romper atravez dos que tinham +fugido para dentro da casa, e assomavam á porta, sem que nenhum d’elles +soubesse ainda ao certo o que era passado. O José Maria como que viu o +beijo, mas não teve bem a certeza, pois que todas as vezes que bebia +uma gota a mais, ficava tonto e via coisas perfeitamente imaginarias. +Convenceu-se de que fôra uma historia armada pelo vinho, quando lhe +explicaram o succedido.</p> + +<p>Para fugir aos agradecimentos, que o Jorge lhe dava sem a minima +desconfiança, retirou-se logo o sargento, envolvido pela Rosa n’um +olhar de reconhecimento e admiração.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_20">[Pg 20]</span></p> + +<p>A Isabel veiu furiosa da rua e quiz por força que se retirassem logo. +Temia que o rapazio continuasse a dirigir-lhe chufas.</p> + +<p>Não disse palavra a Rosa na volta para o Castello. Se por acaso +dava com os olhos no marido, voltava a cara para outro lado, com um +movimento brusco. Ao meio da rampa que vae dar á ponte levadiça, parou +para descançar, e olhou para traz, sem saber porque.</p> + +<p>O Luiz tinha-a seguido, de longe.</p> + +<p>Não deram por isto os dois velhos, nem a Isabel. Notou-o comtudo a +Luiza Braga, que vinha logo após o sargento, em companhia da Josepha +Julia.</p> + +<p>—Com cedo principiam! cochichou ella ao ouvido da amiga.</p> + +<p>—Principiam? acudiu a outra ennojada. Continuam!</p> + + +<p>IV</p> + + +<p>Nos dias seguintes a Rosa pensou, pensou muito, medindo o alcance da +loucura que tinha feito em casar com o Jorge.</p> + +<p>Só depois do beijo, que lhe escaldava ainda a bocca, percebeu que havia +alguma coisa na ligação do homem com a mulher, que o marido com toda a +sua amizade não lhe tinha feito conhecer.</p> + +<p>Por aquelle beijo o sargento apossara se d’ella com um predominio, +que o Jorge nunca lhe tinha imposto, em tantos dias de intimidade. +Sentia-se fraca, indefesa perante um ascendente ineluctavel, e pela +<span class="pagenum" id="Page_21">[Pg 21]</span> +primeira vez sabia como o homem chega a avassallar a mulher, a fazel-a +coisa sua.</p> + +<p>Tudo isto passava tumultuariamente no espirito da rapariga, como +vaga percepção, sem que ella, intelligente mas ignorante, tivesse +bem a consciencia do mundo novo de sensações e ideias que acabava de +revelar-se-lhe.</p> + +<p>O que de mais comprehendia, era que apenas o Luiz quizesse, não +poderia resistir-lhe, e que sabendo aliás que se tornaria uma creatura +desprezivel, seria d’elle, d’elle inteiramente.</p> + +<p>—Ai! E podiamos estar casados um com o outro! scismou.</p> + +<p>Uma semana depois o sargento, certo de que o veterano estava longe, +passou-lhe pela porta. A Isabel, tinha-a elle avistado da muralha do +castello, a descer a ladeira contigua ao Relvão.</p> + +<p>Quando o viu prestes a entrar, a Rosa ficou toda a tremer, e quiz +refugiar-se no interior da casa, porém o Luiz disse-lhe que só desejava +dar-lhe duas palavras, e que depois a deixaria em paz para todo o +sempre; mas que se ella o não escutasse, tinha deixado no quarto a +espingarda já carregada, para acabar de vez com o seu tormento.</p> + +<p>A Rosa ainda balbuciou que elle queria desgraçal-a; que se sumisse +d’alli, ou que se veria obrigada a chamar por alguem. Podiam tel-o +visto. Supplicou-lhe de mãos postas que a deixasse, que se fosse embora.</p> + +<p>Certo de que não o tinham visto, o Luiz fechou a porta rapidamente, +tomou nos braços a linda rapariga e tapou-lhe com beijos a bocca, para +<span class="pagenum" id="Page_22">[Pg 22]</span> +que ella não gritasse.</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>Só quando o sargento lhe disse adeus, e lhe pediu muito que para +o futuro fosse vel-o ao quarto d’elle, pois alli seria perigoso +continuarem a encontrar-se, é que a Rosa viu bem o que tinha feito.</p> + +<p>Jurou que nunca mais tornaria, mas sentiu logo que havia de tornar, +indefesa contra a seducção, que ainda lhe fazia vibrar todo o corpo em +frémitos de goso.</p> + +<p>A segunda entrevista foi no quarto do amante.</p> + +<p>Ninguem a reconheceria, vendo-a passar na rua. Ia de manto, e para +maior segurança, pedira á mãe emprestadas as botas, sob o pretexto de +que as suas lhe <i>pisavam</i> e que precisava ir á cidade. Estando +quasi a chegar ao quarto do Luiz, apanhou um susto enorme: encontrou-se +com o marido, que devia passar a manhã no monte Brazil.</p> + +<p>O Jorge não andava a espial-a. Cumpria simplesmente uma ordem do +inspector do material de guerra, que o tinha mandado chamar ao +Castello, para lhe dar certas explicações relativas ao embarque de umas +peças velhas de bronze, que deviam recolher á Fundição de Canhões.</p> + +<p>Os dois amantes, muito conchegados um ao outro, estiveram tempos sem +fim de ouvido á escuta por traz da porta, que ella tinha fechado +subtilmente. Não sentiram nada. Apenas as pulsações desordenadas do +coração de Rosa.</p> + +<p>—És uma tola, disse-lhe por fim o sargento, dando-lhe um beijo. Podia +lá conhecer-te, com esse disfarce! De mais a mais como é velho, deve +<span class="pagenum" id="Page_23">[Pg 23]</span> +ter a vista cançada.</p> + +<p>—Elle, a vista cançada? Estás a ler. Vê perfeitamente. E para longe, +ainda melhor do que eu.</p> + +<p>Quando tornou para casa, ainda ia receiosa.</p> + +<p>O marido appareceu d’alli a uma hora. Não fazia differença.</p> + +<p>As entrevistas continuaram.</p> + +<p>N’uma d’ellas a Rosa, ao sair do quarto do Luiz, topou a Josepha Julia, +que a mirou dos pés á cabeça e fez um gesto de escarneo.</p> + +<p>—Se me conheceu!... pensou a mulher do veterano, abalada pelo medo. +Era o mesmo que sabel-o toda a gente!</p> + +<p>Mas logo encolheu os hombros, e disse comsigo resolutamente:</p> + +<p>—Ora adeus! O que está feito, está feito!</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>D’alli a poucas horas já effectivamente andavam de bocca em bocca as +infelicidades conjugaes do cabo de veteranos. Para não levantar falsos +testemunhos, a Josepha, muito encolhida debaixo do lenço, cosida +com as paredes e a passinhos ligeiros, tinha seguido a <i>mulher do +manto</i>. Mal teve a certeza de quem ella era, correu a casa da Luiza +Braga. A velha prometteu guardar segredo, mas, tendo ficado só e vendo +entrar-lhe pela porta dentro o 33 da artilheria, a pedir-lhe linha +preta para coser um botão do casaco do uniforme, não teve mão em si e +<span class="pagenum" id="Page_24">[Pg 24]</span> +poz tudo em pratos limpos, sem dizer, já se vê, quem lh’o tinha contado.</p> + +<p>A Josepha já estava em casa, costurando ao pé da janella do rez do +chão. Tinha feito solemne protesto de não trocar falas com o maldizente +do artilheiro, mas ouviu-lhe a «grande novidade», condimentada com +varios pormenores inventados pelo narrador.</p> + +<p>Benzeu-se, exclamou que podia ser tudo uma refinada mentira, que a Rosa +era levantadinha de cabeça, mas que chegasse a tanto, lá isso não lhe +parecia.</p> + +<p>—Pois diga-<i>le</i> que não. Quem viu, é pessoa incapaz de mentir.</p> + +<p>—E quem é que viu? perguntou a torta em sobresalto.</p> + +<p>—Nun xe xabe! como dizia o gallego.</p> + +<p>—Então pode não ser verdade. Bem sei que o marido é velho...</p> + +<p>—Vê?... Já acreditou!</p> + +<p>—Não acreditei nada. Vá-se d’aqui, <i>seu</i> grande má lingua!</p> + +<p>Fechou a janella, com um accrescimo de indignação. No fundo estava +radiante. Para o libello famoso, já tinha editor responsavel.</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>A Isabel foi aos ares no dia seguinte, quando soube pelo tio Braga o +que a voz publica attribuia á Rosa, e até pregou uma valente bofetada +no alviçareiro. Se lhe fez doer, não lhe causou o minimo espanto, de +habituado que elle andava a tomar o peso ás mãos da cara metade.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_25">[Pg 25]</span></p> + +<p>Podia lá entrar-lhe na cabeça que a filha, casada tanto de fresco, já +enganasse o marido!... Ainda se estivessem recebidos ha mais tempo!... +Ella tinha-se prendido por sua livre vontade, e nem sequer podia dar +como desculpa o Jorge ser velho e pouco proprio para encantar uma +rapariga. Tudo isto a mãe lhe fizera ver um cento de vezes, antes do +casamento.</p> + +<p>Não levou um credo para chegar a casa da filha e como a apanhou +sósinha, disparou-lhe tudo á queima roupa. Uma de duas: ou conseguia +atrapalhal-a e apanhar-lhe a confissão da culpa, ou, se fosse tudo +mentira, a indignação havia de patentear bem clara a innocencia.</p> + +<p>A mulher do veterano encarou com a mãe, e disse pausadamente estas +palavras, cujo effeito foi observando:</p> + +<p>—Sim, senhora, é verdade o que lhe disseram. Fiz isso, porque não +posso aturar meu marido, e porque só do Luiz é que eu gosto e hei de +gostar sempre.</p> + +<p>A Isabel cahiu sentada para cima de uma arca, e rompeu n’um grande +choro, arrepellando-se, dizendo mal á sua vida.</p> + +<p>—Cuidado, minha mãe! Olhe que se meu marido entrasse agora por ahi +dentro, a desgraça ainda havia de ser maior.</p> + +<p>—Lá isso era, porque descobria toda a verdade, e ... Deus te +livrasse!...</p> + +<p>—É o que pode fazer com esses alaridos.</p> + +<p>—<i>Ubei!</i> Permitta Deus que elle nunca desconfie!... Ora a minha +desgraça!... Mas o que eu não quero,—fica sabendo!—é que me tornes a +<span class="pagenum" id="Page_26">[Pg 26]</span> +olhar para aquelle <i>bonecro</i> de engonços! Ha de ser isto assim, ou +sou eu mesma que prego a ambos uma boa lição, com estas mãos que Deus +Nosso Senhor me deu!</p> + +<p>—Mau! Já vejo que não temos nada feito, disse a Rosa, afastando-se da +mãe. Se as suas tenções são essas, o melhor é ir já, já ter com o Jorge +e declarar-lhe tudo. Ande! Vá! Assim ao menos deixo de penar por uma +vez!</p> + +<p>—O’ rapariga, o que estás tu a dizer?</p> + +<p>—Que hei de gostar sempre do Luiz, ou eu não me chame Rosa. Sim, +senhora! Resolvi-me a tudo. Dizem mal de mim? E eu que me ralo! Ellas +falam, porque se mordem de inveja!</p> + +<p>—Ai que está variada! exclamou a Isabel, levantando-se e erguendo os +braços para o ceo. Deram-lhe volta ao miolo, olá se deram. Oh! Mas isto +não pode ser, e tendo-se voltado para a filha, continuou, voz em grita: +Se me não tomas juizo, eu racho-te ... racho-te de meio a meio! Cuidas +que por estares assim espigada, me não provas os cinco mandamentos?</p> + +<p>—A minha mãe não me entendeu. Olhe! Se fizer isso, se quizer +apartar-me do Luiz, queimada seja eu pelo fogo do inferno, se na +primeira occasião em que me pilhar a sós com meu marido, não lhe conto +a coisa toda como ella é, tim-tim por tim-tim. E reforçou o juramento +levantando tambem para o ceo o braço direito, com a mão bem espalmada.</p> + +<p>A Isabel, que se tinha benzido ao ouvir fallar no inferno, descahiu +<span class="pagenum" id="Page_27">[Pg 27]</span> +outra vez para cima da arca, aos soluços.</p> + +<p>—Está doida! Doida varrida!</p> + +<p>A rapariga aproveitou este ensejo e approximou-se da mãe, pé ante pé: +fallou-lhe ao ouvido, carinhosamente; demonstrou-lhe que só havia uma +coisa que fazer—evitar que o Jorge descobrisse, O mal já estava feito, +e nem Deus teria poder para destruil-o. Mas se a Isabel quizesse, as +coisas continuariam assim, e nunca o velho saberia o que diziam, pois +ninguem se atreveria a ir contar-lh’o. Mais dia menos dia, como já era +bastante edoso, podia apanhar uma macacôa que o levasse para a terra +da verdade, e já ella ficaria livre para casar com o escolhido do seu +coração.</p> + +<p>—O sargento casar comtigo?... Espera por essa! Tanto como da primeira +vez, murmurou a Isabel em tom lamentoso. O que elle quiz foi ... o que +se está vendo; mas se julgar novamente o caso mal parado, fica certa +de que nunca mais lhe pões a vista em cima. Os homens são assim! E +concluiu, ainda mais lamuriante: Ai! A minha triste vida! Para o que eu +estava guardada!</p> + +<p>—Isso era bom, se o Luiz não gostasse tambem de mim; mas gosta muito, +acredite, gosta muito, affirmou a Rosa, fallando ao mesmo tempo que a +mãe. E está tão arrependido de me ter deixado casar, tão arrependido!...</p> + +<p>—Historias da vida! Mas, ó mulher, foram esses os exemplos que eu te +dei? Pois não tens vergonha!... Emquanto fui casada, respeitei sempre +as barbas de teu pae, e depois de viuva...</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_28">[Pg 28]</span></p> + +<p>Ia proseguir mas calou-se a um olhar meio serio, meio de escarneo, que +a Rosa lhe dardejou sem levantar a cabeça ligeiramente inclinada para +o chão, mas arregaçando de subito as palpebras, a fim de trazer bem a +lume os olhos negros e expressivos.</p> + +<p>Por fim recuperou ousadia e perguntou com voz ainda titubeante:</p> + +<p>—Porque olhas para mim d’essa maneira? Porque dás ouvidos ao que dizem +certas linguas?... Ainda que tivesse sido verdade, não me podiam dizer +nada, porque uma viuva não deve a cabeça a ninguem.</p> + +<p>—Nem me dava com isso maus exemplos? interrogou a filha, com apparente +serenidade.</p> + +<p>—Está visto que não... Quero dizer ... não dava, se não houvesse +escandalo, se não soubesses ... de nada.</p> + +<p>—E se eu soubesse de tudo? perguntou Rosa, certa já de conquistar +o auxilio da mãe. Olhe! Sempre lhe quero contar... Eu teria talvez +uns seis annos ... ou nem tanto... Uma tarde, a mãe tinha ido para +dentro de casa, e estava a conversar com aquelle cabo de artilheria +muito alto e louro—um rapaz bem bonito, por signal—a quem gommava a +roupa... Lembra-se? Eu andava a brincar na rua. Passou a Luiza Braga e +perguntou-me quem estava lá dentro com a minha mãe. Respondi-lhe que +era a sua irmã de Agualva ... a tia Marianna. A velha acreditou-me, +e foi-se embora. Se não fizesse o que fiz, ella tinha ido por esse +Castello infamar a minha mãe, e ficavam todos certos do que alguns +diziam e muito poucos acreditavam. Mas sabe o que valeu?... Foi não +<span class="pagenum" id="Page_29">[Pg 29]</span> +passar pela cabeça á Luiza que, n’aquella edade, eu já soubesse mentir. +Sabia, porque a mãe, de outra vez, me tinha ensinado a mesma resposta, +para quando alguem me perguntasse o que ella me perguntou.</p> + +<p>—Eu não me lembro de nada d’isso, murmurou a Isabel, com a voz a +tremer.</p> + +<p>—Lembro-me eu, e ainda bem que menti! Deus não me castigará, por eu +ter livrado a minha mãe de tantas afflicções.</p> + +<p>Em voz baixa, n’uma supplica repassada de ternura, accrescentou:</p> + +<p>—E tambem não a castiga, se a minha rica mãe quizer ajudar-me a sair +d’esta consumição.</p> + +<p>—Foi praga que me rogaram! Foi praga!...</p> + +<p>A Isabel não poude levar por deante o epiphonema, porque a filha, +cingindo-lhe as costas com o braço direito e achegando-a a si +brandamente, segredou:</p> + +<p>—Bom! Bom! Deixe estar que não se arrepende... e ha de me dar razão +algum dia, vendo-me feliz.</p> + +<p>—Deus te ouvisse, filha, Deus te ouvisse! Mas o que tu me obrigas a +fazer!... Olha! O melhor era deixares aquelle ... não sei que diga!</p> + +<p>—Outra vez!... Escolha: ou a mãe consente em ajudar-me, ou eu digo +hoje mesmo tudo a meu marido!</p> + +<p>—Não, mulher, não lhe digas nada!</p> + +<p>E com os olhos em alvo, as mãos erguidas, os dedos enclavinhados, a +viuva exclamou:</p> + +<p>—Seja tudo pelo amor de Deus!</p> + + +<h3>IV</h3> +<p><span class="pagenum" id="Page_30">[Pg 30]</span></p> + + +<p>O José Maria andou uns poucos de dias a parafusar, antes que se +resolvesse a dizer ao Jorge umas coisas, que lhe tinham contado muito +em segredo a respeito da Rosa, e que elle acreditou, porque eram o +complemento e a confirmação da scena entrevista em S. João de Deus.</p> + +<p>Esteve quasi decidido a calar-se, porque dava razão ao dictado «Entre +marido e mulher não mettas a colher», e tambem porque lhe custava muito +ir destruir para sempre a alegria ao seu antigo camarada.</p> + +<p>Quando andava n’estas indecisões, e já principiava a desculpar a +Rosa, pensando que talvez a coisa não tivesse ido a mais, e que ella +sempre havia de ter algum respeito pelos cabellos brancos do marido, +adregou-lhe passar á porta da Luiza Braga.</p> + +<p>—Pst! Pst! fez-lhe esta, lá de dentro.</p> + +<p>—Isso é commigo?</p> + +<p>—Entra, ó José Maria, que te quero perguntar uma coisa.</p> + +<p>—Tu! Ha de ser fresca!...</p> + +<p>Entrou e foi sentar-se n’um moxo.</p> + +<p>—O que eu te quero perguntar, disse a velha, que estava a engommar +um collarinho, é se o teu amigo já sabe o que rosna por ahi a canalha +brava.</p> + +<p>—Qual meu amigo?</p> + +<p>—O Jorge! Mas tambem elle só deve queixar-se de si mesmo. Não se +mettesse com a Isabel, nem com gente da sua geração.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_31">[Pg 31]</span></p> + +<p>—Cala-te, mulher, que já não te vejo bem! replicou o veterano, +levantando-se n’um impeto.</p> + +<p>—Eh senhor! Tu endoideceste! Por eu não querer que o Jorge ande +enxovalhado por essas boccas ruins, é que tu!... Ainda em cima?... +Sempre sou bem tola!</p> + +<p>O velho conheceu que se tinha excedido, e ancioso por saber o que mais +propalavam os maldizentes, moderou-se e murmurou:</p> + +<p>—Dize lá o que querias dizer.</p> + +<p>—Queria mas já não quero... Julgas talvez que não sou tambem amiga +do Jorge? Pois ainda ha migalha estive quasi <i>garreando</i> com a +... cala-te bocca!... com uma certa pessoa, por não lhe poder ouvir +que se elle não vae ás do cabo com a Rosa, é porque uma casa sempre se +governa melhor, quando são dois, em logar de um só, a carregarem com as +despezas.</p> + +<p>—Dois?</p> + +<p>—<i>Bei</i>, Senhor! Pelos modos o sargento Luiz recebeu, pelo ultimo +paquete, uma <i>mancheia</i> de patacas, que lhe deixou um tio lá de +Lisboa...</p> + +<p>—Fecha-me essa bocca suja, grande excommungada!</p> + +<p>Juntando á palavra o gesto, o José Maria bateu-lhe com a palma da mão +em cheio nos beiços, e, antes que a Luiza se recobrasse do susto, sahiu +pela porta fóra, de escantilhão.</p> + +<p>—Hei de contar tudo ao Jorge! resmungava elle, pela rua adeante. Não +quero que ande vendido. Hei de contar-lhe tudo, e vae ser hoje mesmo! +Que grande pouca vergonha!...</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_32">[Pg 32]</span></p> + +<p>Com mais temor que resentimento, a Luiza foi á porta, para seguil-o com +a vista. Não poude furtar-se a dizer com os seus botões que, tirante o +Braga, todos os soldados do cerco do Porto eram homens de uma canna só.</p> + + +<h3>V</h3> + + +<p>Foi na courella cultivada pelo Jorge no monte Brazil, que o José Maria +encontrou d’alli a pouco o seu antigo companheiro de armas.</p> + +<p>Primeiro que entrasse no assumpto, falou de mil ninharias: das lagostas +que na vespera tinha pescado na bahia do Fundão; na queda que o +corneteiro-mór reformado ia dando na Quebrada, quando andava a apanhar +cracas.—Ainda que se não esmigalhasse na rocha empinada e de temerosa +altura, e fosse cahir no mar, não escaparia de certo ao mergulho, pois +elle a nadar era mesmo um prego!</p> + +<p>Foi tagarelando, tagarelando, mas sem alludir á Rosa. Todas as vezes +que a rapariga lhe acudia á lembrança, parecia que se lhe punha um nó +na garganta.</p> + +<p>Afinal o Jorge deu por isto, e foi o proprio que perguntou:</p> + +<p>—O’ José Maria, tu estás, a modos, exquisito? Parece que tens uma +coisa para me dizer e que não te <i>astreves</i>...</p> + +<p>O outro ainda lhe retorquiu com um «Olha lá!...» e quiz fingir ar de +riso. Mas não poude levar por deante a dissimulação e disse por fim, +deixando-se cahir sentado n’uma pedra:</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_33">[Pg 33]</span></p> + +<p>—Pois tenho, tenho muito que te dizer.</p> + +<p>—Se é da Rosa, não me digas nada! respondeu-lhe o amigo com +arrebatamento. Sei que ella não vae á tua bola, e pódes ter ouvido +por ahi qualquer coisa contra a rapariga, e vir então buzinar-me os +ouvidos... Se adivinhei, não tenhas esse trabalho!</p> + +<p>—Ó Jorge, pois tu fazes de mim similhante ideia?! perguntou o José +Maria todo sentido e levantando-se de esfuziote. Metteu-se-te na cabeça +que eu fosse capaz de dizer coisas, de que não tivesse a certeza? Bem! +Bem! Como te deram volta ao juizo, já aqui não está quem falou ... isto +é, quem ia falar!</p> + +<p>—Sim, cala-te, que é o melhor! Só faltava que tambem tu me viesses +ralar o interior, que já anda bem consumido. Só Deos é que sabe!...</p> + +<p>E tendo lançado para longe o sacho com que andava cavando, levou ambos +os punhos aos olhos, e desatou a soluçar. Coisa que não fazia desde +creança, chorou—chorou lagrimas abundantes, que lhe escorriam pelo +rosto e pelas mãos.</p> + +<p>Certificou-se o José Maria de que mais ninguem podia ver o amigo, +chegou-se a elle e passou-lhe um braço em volta do pescoço.</p> + +<p>—Então! Que diabo! Isso não vale a pena! disse-lhe com meiguice. Pois +ha mulher que mereça a vida de um homem? Não te lembras da minha serva +de Deus? Bem amigo d’ella que eu era: vi-a morrer e ainda por cá estou. +Com essas coisas dás cabo de ti.</p> + +<p>—Tu, tu é que dás. Para que vieste bulir commigo? Deixasses-me quieto! +E dizendo-lhe isto de mau modo, o Jorge arredou-se do camarada e ficou +<span class="pagenum" id="Page_34">[Pg 34]</span> +de costas para elle, sem comprehender que fosse dictada pela amizade +aquella confidencia.</p> + +<p>Pois não lhe trazia a certeza de que elle já receiava? Receiava, sim, +mas não queria acreditar, desejoso de que o tempo viesse a embotar +aquella duvida, e esperançado em que por fim se conhecesse que a +rapariga estava innocente, como lh’o dizia o seu espirito cheio de +rectidão. E ainda no peior dos casos, se em verdade a Rosa fosse má +mulher, para que haviam de lh’o dizer, se mais dia menos dia elle mesmo +descobriria tudo, com certeza?</p> + +<p>Por isso nem queria encarar com o seu antigo camarada. Qualquer outro +já teria pago bem caro o atrevimento!</p> + +<p>O José Maria entendeu que se devia ir embora, o que era aliás seu +desejo desde que alli estava.</p> + +<p>—Haja saude, Jorge, e não me fiques querendo mal.</p> + +<p>O outro encolheu os hombros desabridamente, sem mudar de posição.</p> + +<p>—Não te ponhas com maus modos, homem! Aprender até morrer, bem diz o +dictado.</p> + +<p>E chegando-se mais, concluiu:</p> + +<p>—Por me dares esse <i>pago</i>, não cuides que ouvindo algum marau +dizer poucas vergonhas de ti, deixe de saltar-lhe para cima com vento +fresco, apesar de velho e estropiado. Haja saude!</p> + +<p>Ia a afastar-se, quando foi agarrado violentamente por um braço.</p> + +<p>—Poucas vergonhas! Que poucas vergonhas dizem de mim? perguntava o +Jorge, meio suffocado. Anda, põe já tudo em pratos limpos, se não +<span class="pagenum" id="Page_35">[Pg 35]</span> +queres fazer-me acreditar que te saiste com essa, para te vingares da +minha resposta. Não! Não!...</p> + +<p>E emendou, supplicante:</p> + +<p>—Se não queres ver-me estalar de paixão, conta-me o que sabes, José +Maria, conta-me o que sabes! Pelo amor de Deus!</p> + +<p>Foi então que o outro lhe referiu por miudo não só o que tinha visto, +mas o que andava nas boccas do mundo. Quando o ouviu falar na suspeita +de que fosse connivente na sua infamia, o Jorge teve um ataque de raiva +e quiz saber por força quem tinha contado aquillo, para lhe apertar as +goelas, até lhe fazer deitar cá para fora toda a lingua malvada.</p> + +<p>Apesar do que a revelação lhe fazia soffrer, reaccendendo lhe +desconfianças, que a pouco e pouco se tinham ido aplacando, o seu +primeiro impulso foi justificar a mulher, mostrar ao amigo que o tinham +enganado, que a Rosa continuava pura como a neve. Se em S. João de +Deus ella estava ao pé do sargento Luiz, era porque o medo do touro +lhe fizera perder a cabeça. Pois o José Maria não a tinha tambem visto +amarella como cera, quando os dois a foram encontrar? Demais, a Isabel, +que tambem não podia ver o tal <i>bonecro</i>, explicou depois que não +havia nada que se lhe dizer, e que até devia agradecer-se ao pobre +rapaz o ter acudido á Rosa, quando todos fugiam assustados.</p> + +<p>—Cantigas da viuva! objectou o José Maria. O que ella quiz foi +desculpar a filha. Olha! Pergunta-lhe se tambem deves agradecer ao +bandalho, o beijo que elle pregou em tua mulher!</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_36">[Pg 36]</span></p> + +<p>—Um beijo? Quando?</p> + +<p>—N’essa mesma occasião. Como se julgava a sós com a rapariga, visto +os mais terem debandado, tomou esse atrevimento ... mas eu que vinha +adiante de ti pude ainda vel-o.</p> + +<p>—Viste-o? Tens a certeza?...</p> + +<p>—Pareceu-me que sim. Bem sabes que eu, bebendo uma pinga a mais...</p> + +<p>—Pareceu-te! Eu pergunto se tens a certeza!...</p> + +<p>—Antes de passar a porta que dá para o quintal onde elles estavam, +ouvi a modos a bulha de um beijo, e como fui dar com o sargento ainda a +amparal-a, acredito que elle a beijasse, como dizem por ahi.</p> + +<p>—Se não viste, para que repetes o que pode ser mentira? E olha que +nos dias que se seguiram, lembro-me muito bem, ella não fez differença +nenhuma. Nunca se tirava de ao pé de mim. E sempre alegre!... Se +tivesse feito o que dizem, não sabia sustentar aquelle disfarce.</p> + +<p>—Isso é o que tu julgas. As mulheres, quando pendem para a banda do +arrocho...</p> + +<p>—Ainda que quizesse pôr pé em ramo verde, não podia, respondeu o Jorge +com impaciencia. Em quanto eu estou fóra de casa, a Isabel não perde +a filha de vista. Já te disse! Não ha uma hora do dia em que a Rosa +esteja desacompanhada.</p> + +<p>—E de noite?... perguntou o José Maria, que inconscientemente tomava +calor perante as objecções do camarada, e, excitado pela controversia, +dizia coisas, que não lhe sairiam da bocca n’outra occasião.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_37">[Pg 37]</span></p> + +<p>—De noite está ella deitada commigo!</p> + +<p>Mas calou-se de repente, não se atrevendo a continuar na defeza, por se +lembrar de que tinha o somno pesado, e que, vinte vezes que a mulher se +levantasse, elle de certo não acordaria.</p> + +<p>—Pois a Rosa seria capaz?...</p> + +<p>A afflicção de novo o estrangulou. Descria de todos, de tudo. +Arrepanhou-se-lhe o interior do peito, ao de cima do estomago, e todo +esfriou lá por dentro, como se lhe tivessem amputado subitamente essa +parte do corpo, substituindo-a por uma grande pedra de gelo.</p> + +<p>É que lhe tornava o ciume ainda com maior furia, perdida a esperança +que pouco antes o animava, quando elle, na ancia de desculpar a mulher, +em vez de persuadir o amigo, a si proprio se convencia.</p> + +<p>Mas o outro comprehendia, afinal, a grande asneira que tinha feito.</p> + +<p>Fosse a Rosa effectivamente má mulher, e nem mesmo assim elle devia dar +aquelle passo.</p> + +<p>Obedecendo a um momento de zanga, acabava de perder um amigo, para +quem se tornara mensageiro do maior de quantos desgostos se lhe podiam +annunciar, e fazia-o para sempre desgraçado.</p> + +<p>Quiz ainda emendar a mão, desmanchar ou pelo menos attenuar o mal que +acabava de causar, mas o Jorge percebeu-lhe as intenções, e atalhou, +despedindo-o com um gesto a que o José Maria obedeceu:</p> + +<p>—Pois sim, será o que tu dizes... Mas certas coisas, mais vale um +homem cosel-as comsigo mesmo. Adeus!</p> + + +<h3>VI</h3> +<p><span class="pagenum" id="Page_38">[Pg 38]</span></p> + + +<p>Quando julgou o camarada já bastante longe, de modo que lhe podesse +furtar as voltas para não ser visto por elle no regresso a casa, o +Jorge saiu da courela de terra e tomou o caminho do Castello, quasi a +correr, ancioso por se encontrar com a Rosa.</p> + +<p>Mas foi abrandando o passo.</p> + +<p>O que ia dizer-lhe?</p> + +<p>Podia lá contar-lhe o que os maraus!... Se o fizesse, é porque a +julgava capaz d’isso, e então escusava de perder palavras, quando o que +devia fazer unicamente era...</p> + +<p>Teve uma hallucinação. Pareceu-lhe que via diante dos olhos a cara +d’aquelle soldado miguelista, a quem matara no cerco do Porto, +enterrando-lhe no peito a espada de um alferes de caçadores 5, que o +outro acabava de tornar cadaver, abrindo-lhe a cabeça com a coronha +da espingarda. Viu outra vez n’aquelle rosto a expressão medonha da +anciedade, da afflicção e desespero do infeliz, que assim perdia a +vida em plena mocidade. Os olhos, os olhos muito abertos, a saltarem +das orbitas, o iris completamente emmoldurado pela alva, diziam tão +energicamente o immenso odio contra o matador, que o Jorge recuou +apavorado... No fim do combate passou, por acaso, ao pé do morto. Os +olhos já estavam embaciados, mas ainda lhe expressavam o mesmo odio.</p> + +<p>Entrou-lhe pela primeira vez bem clara no espirito a noção de quanto +<span class="pagenum" id="Page_39">[Pg 39]</span> +é horrivel dar a morte a um nosso similhante, e pediu a Deus que nunca +mais o puzesse n’aquella dura extremidade. Assim lhe aconteceu. Até ao +fim da guerra não tornou a matar ninguem, pelo menos que visse, que +soubesse, pois que as balas, granadas e bombas lançadas pelas boccas de +fogo que elle apontava não errariam de certo o alvo... Mas como não via +essas mortes, era como se as não fizesse.</p> + +<p>—Havia então de matar a Rosa!... A Rosa de quem, apesar de tudo, +gostava tanto!...</p> + +<p>Mas se ella effectivamente o tivesse enganado?</p> + +<p>Subiu-lhe outra vez á garganta uma onda. Viu tudo côr de sangue... +N’esse caso, esmigalhava-a, estraçoava-a, para que nenhum outro homem +lhe gosasse o que era seu, muito seu!</p> + +<p>Chegou ao pé de casa.</p> + +<p>Lá dentro tudo em socego.</p> + +<p>A Rosa, embainhando uma saia de chita, cantarolava a meia voz e em tom +sentimental a modinha da <i>Saudade</i>, em quanto a Isabel, que havia +tempos estava quasi sempre em casa d’elles, o que era muito do gosto +do Jorge, espertava o lume para se coser a ceia. A sopa de couves com +feijão fervia n’um suave romrom dentro da panella de ferro e espalhava +por toda a casa um aroma capaz de fazer crescer agua na bocca ao menos +famelico.</p> + +<p>Sentiu-se menos resoluto, perante aquella tranquilidade.</p> + +<p>—Porque todos a accusavam, havia ella de ser culpada?... E se +estivesse innocente?</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_40">[Pg 40]</span></p> + +<p>Enterneceu-se, invadido por uma grande commiseração.</p> + +<p>Em consciencia, quasi lhe achava desculpa, mesmo no caso de ser verdade +o que diziam. Para que a tinha escolhido assim tão nova? Deus é que +não lhe devia ter posto no coração, aquelle immenso amor! Bem sabia +que estava adiantado em annos, que tinha o rosto cavado de rugas e +o cabello quasi todo branco, mas desde que se apaixonára pela Rosa, +sentia dentro de si o viço, o frescor, a alegria dos mais formosos dias +da mocidade; respirava desafogadamente e com delicia, achando o mundo +mais bello do que nunca, e antevendo um futuro longo, feliz. Ás duas +por tres, nas vesperas do casamento, dava por si a rir, a cantar. Era +moço outra vez.</p> + +<p>A Rosa, certamente, é que não o via do mesmo modo.</p> + +<p>Tudo isto lhe passou de tropel no pensamento, ao entrar em casa.</p> + +<p>Mas tinha que desabafar por força, se não rebentava.</p> + +<p>Deu as boas tardes ás duas mulheres, lavou as mãos, sacudiu a terra do +fato e foi sentar-se n’um canto, sem saber como havia de começar.</p> + +<p>A sogra forneceu o pretexto, perguntando-lhe se queria que tirasse a +ceia do lume.</p> + +<p>—É que eu mesmo tenho vontade! resmungou o veterano.</p> + +<p>—Hein? inquiriu a Rosa, sem largar a costura, mas fitando os olhos no +marido.</p> + +<p>—Quem anda com o interior ralado, não tem vontade de comer!</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_41">[Pg 41]</span></p> + +<p>A rapariga encolheu os hombros, e continuando a coser disse por entre +dentes:</p> + +<p>—Nunca tive geito para adivinhações.</p> + +<p>—Ah! Tu não adivinhas o que eu tenho?... Pergunta-o por esse Castello, +e verás como toda a gente sabe dar-te a explicação. Ah! Que se fosse +verdade!...</p> + +<p>E o velho levantou-se, fazendo um gesto de ameaça.</p> + +<p>A rapariga empallideceu levemente, mas recobrou animo, por ver o marido +ainda duvidoso. Levantou-se tambem, arrumou a costura rapidamente, e +perguntou com grande ousadia, fingindo-se embespinhada:</p> + +<p>—Se fosse verdade o que? Não tenho geito para adivinhações, já disse!</p> + +<p>A Isabel, que, pelo sim pelo não, tinha tirado a panella do lume, veiu +postar-se ao lado da filha, para lhe accudir em caso de necessidade.</p> + +<p>O Jorge falou, falou, a principio com desabrimento e violencia, depois +com menos força, como se o desabafo a pouco e pouco lhe minorasse a +acuidade do tormento. Disse tudo o que o amigo lhe tinha contado, sem +nomear, já se vê, o José Maria.</p> + +<p>Ouviu-o a Rosa com um sorriso desdenhoso, como se désse pouca +importancia a tudo aquillo. Depois, cruzou os braços, deixou cahir +o corpo sobre a perna esquerda, e ficou a miral-o atravez dos olhos +semi-cerrados, meneando a cabeça e batendo febrilmente no chão com a +ponta do pé direito. Dir-se-hia que mal continha a impaciencia. Tinha +<span class="pagenum" id="Page_42">[Pg 42]</span> +tido muito medo ao perigo quando o sentia longe, mas agora que o via +diante de si, affrontava-o ousadamente, chegava quasi a pensar que o +havia exagerado.</p> + +<p>Pela sua parte a Isabel acompanhou a objurgatoria com uma gesticulação +larga, em que a indignação e o espanto se traduziam alternadamente, e +tanto que o genro se remetteu ao silencio, bradou com toda a energia:</p> + +<p>—E ha quem metta a sua alma no inferno com esses falsos testemunhos!</p> + +<p>—Ha, sim, minha mãe! acudiu a Rosa, com voz aspera e vibrante. E +tambem ha quem não se envergonhe de os acreditar e repetir!</p> + +<p>—Credo, credo! Tal desgraça! murmurou a Isabel não atinando com outra +phrase.</p> + +<p>—Eu não digo que seja tudo verdade, acudiu o velho entibiado pela +ousadia da mulher, mas alguma coisa ha de haver! O dictado não mente: +voz do povo, voz de Deus.</p> + +<p>—Voz do diabo! atalhou a Rosa de prompto, e com o pescoço estendido e +a cara bem defrontada com a d’elle perguntou: Mas se acredita o que lhe +disseram, para que veiu ter commigo? Se fiz tudo isso, se não presto, +devia arredar-se de mim por uma vez!</p> + +<p>—Não! Lá isso não! Se tivesses feito aquellas poucas vergonhas...</p> + +<p>A voz estrangulou-se-lhe na garganta, que apenas emittiu um som cavo. +Ao mesmo tempo o Jorge, como se tivesse um lampejo momentaneo da +verdade, cresceu para a rapariga, os braços hirtos, crispadas as mãos, +<span class="pagenum" id="Page_43">[Pg 43]</span> +em acção de agarral-a pelas guelas.</p> + +<p>—O’ Jorge! gritou a Isabel, abraçada ao genro. Olha que está +innocente! Juro-te por tudo o que quizeres!</p> + +<p>—Pela alma do José de Medeiros?...</p> + +<p>—De meu marido? titubeou a viuva. Oh! Homem, não se deve bulir em quem +está descançado ha tantos annos.</p> + +<p>—Pela alma de José de Medeiros?... insistiu o veterano, em voz surda.</p> + +<p>—Sim, sim, juro! Assim elle esteja em gloria! Juro!</p> + +<p>—Jurou! disse elle quasi comsigo mesmo, e accrescentou em voz ainda +mais fraca: Mas então para que anda a corja a vomitar aquellas +patifarias?</p> + +<p>—Porque tem inveja da gente! retorquiu a Isabel com energia mas em +tom lamentoso. Pois não sabes o que é a costumada pouca vergonha +n’este maldito Castello? Está uma alma christã muito socegada da sua +vida, trabalhando dentro da sua casa e nem por isso escapa áquellas +navalhas!... Se nem o proprio <i>sôr</i> governador se livra!... É +ouvir o que dizem d’elle... Que anda vestido como um pelintrão ... que +não faz bem á pobreza ... que é bruto ... que é malcreado... Vale-lhe +ser solteiro, quando não...</p> + +<p>Nem o Jorge nem a Rosa lhe escutavam a tagarellice. Alheiada de tudo, +a rapariga tinha ido sentar-se, muito carrancuda, ao pé da janella +e olhava para o exterior. O velho, alçado no meio da casa, a cabeça +apertada entre as mãos, não sabia o que havia de crer, com a duvida, +a envolvel-o, a cingil-o, a devoral-o, como serpente, que se lhe +<span class="pagenum" id="Page_44">[Pg 44]</span> +houvesse enroscado no corpo e lhe estivesse esmagando o peito e +fincando os dentes fundo, muito fundo, no coração.</p> + +<p>Por fim, ainda impressionado pelas revelações do José Maria:</p> + +<p>—Mas o que elle me contou?... Coisas tão bem explicadas ... parecendo +tão certas!... Quem podia inventar tudo aquillo?</p> + +<p>—O proprio marau que t’o foi metter no bico!</p> + +<p>—Cale-se! Não é capaz d’isso!</p> + +<p>A viuva ía responder, mas a Rosa, que adivinhou quem a tinha +denunciado, gritou-lhe do seu logar, batendo nos joelhos com as mãos +abertas.</p> + +<p>—Não se cance, minha mãe. Por mais que diga, creia que perde o seu +tempo. Fia-se menos na gente, do que nos seus amigos velhos. Não admira!</p> + +<p>—Tens razão! Sim! Foi o José Maria! exclamou a viuva. Não podia ser +outro. Ah! Que a primeira vez que o apanhar!...</p> + +<p>—Não foi elle! Cale a bocca! intimou o Jorge. Deus a livre de lhe ir +dizer uma palavra de tudo isto!</p> + +<p>—Mas ó homem!...</p> + +<p>—Nem palavra! Entendeu?...</p> + +<p>—Bem! Bem! Haja saude! Não lhe digo nada. Mas não admira que o José +Maria... Se nunca poude levar á paciencia o teu casamento!... E tinha +razão. Se eu não tivesse consentido, estavamos livres d’esta freima. +Valha-me Nossa Senhora!</p> + +<p>E afogou o resto da phrase n’um grande choro de carpideira, +entrecortado de soluços e arrancos.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_45">[Pg 45]</span></p> + +<p>—Cale-se, senhora, cale-se para ahi! ordenou-lhe o velho, aturdido e +impacientado.</p> + +<p>—Não, senhor, não me calo! Até os proprios animaes defendem os seus +filhos.</p> + +<p>N’uma explosão de ternura, correu para Rosa, beijou-a e murmurou, +chegando-a a si:</p> + +<p>—Ainda que todos te criminem, eu sempre direi que estás innocente!</p> + +<p>E como a rapariga, desafeita ainda a hypocrisias, a afastasse um pouco, +sentindo apesar de tudo instinctiva repugnancia pelo que a mãe estava +fazendo, continuou queixosamente:</p> + +<p>—Elle é isso? Já me não queres ao pé de ti?... Tomas raiva a toda a +gente, vendo-te accusada por quem só te devia defender?... Coitadinha!</p> + +<p>Enxugou uma lagrima hypothetica, e com a mão no hombro do genro +exprobrou-lhe que elle fizesse côro com a malta dos invejosos. Sim! O +que os Cains não podiam levar á paciencia é que elle fosse feliz com +a Rosa, não obstante aquella differença das idades, havendo tantos +maridos tão novos como as mulheres, e até mais novos, que andavam +apontados a dedo, pelo castello e pela cidade.</p> + +<p>—Anda! Faze a vontade a essa corja! continuou a viuva. Sabes que mais? +Antes de vocês casarem, vieram dizer-me que o que tu querias era uma +enfermeira para te tratar, porque d’aqui a pouco havias de tornar-te, a +bem dizer, um poço de doenças, e que eu não devia, por ser uma dôr de +alma, condemnar a pobre pequena a uma vida de negra! Eu sei lá o que me +vieram buzinar aos ouvidos! Pois eu deixei-os falar, e, como ella era +muito tua amiga consenti no casamento... É que eu não sou como tu, não +<span class="pagenum" id="Page_46">[Pg 46]</span> +faço a vontade aos maraus!</p> + +<p>—Já a mandaram calar, minha mãe! É o melhor que pode fazer! disse-lhe +a filha, com os nervos irritados pela discussão.</p> + +<p>—Bonito! Agora és tu!... Pois não me calo, em quanto não vir as coisas +no seu logar!—E com a mão posta outra vez no hombro do veterano: O’ +Jorge, deveras não estás ainda arrependido? Vê aquelle botãosinho de +rosa! Anda! Pede-lhe perdão!...</p> + +<p>Como elle resistisse, chegou-se á filha e tentou impellil-a para o +marido.</p> + +<p>A rapariga então é que não quiz e foi para o lado opposto do quarto, a +chorar de raiva.</p> + +<p>—Vês! Vês como a fazes penar! murmurou a Isabel ao ouvido do Jorge.</p> + +<p>Approximou-se da filha, aconselhando-lhe, em voz alta, que não se +apoquentasse, que não chorasse d’aquella maneira, e comminando-lhe em +voz baixa, lavar d’ali as suas mãos, se ella continuasse a fazer-se +fina.</p> + +<p>Ao cabo lá conseguiu que os dois se abraçassem, e exclamou satisfeita:</p> + +<p>—Ora até que tiveram juizinho! Bom! Vamos a isto, que a ceia já não +deve estar muito quente.</p> + +<p>E foi deitando o feijão com hervas para a terrina, onde já tinha migado +o pão de milho.</p> + +<p>Sentaram-se á meza.</p> + +<p>O Jorge bebeu uns goles de agua, para ver se tragava as lagrimas, +que ainda lhe entumesciam as palpebras e quasi lhe espirravam dos +olhos.—Apezar do seu desejo furioso de acreditar na innocencia da +<span class="pagenum" id="Page_47">[Pg 47]</span> +mulher, conhecia que a felicidade lhe tinha fugido para sempre.</p> + +<p>A Rosa sentia no fundo do coração um certo dó por aquelle pobre velho, +que lhe queria tanto; mas não lhe perdoava os sobresaltos por que +acabava de passar, e, ainda menos, o ser obrigada, por causa d’elle, +a não ver o homem que a tinha enlouquecido. E quando horas depois o +Jorge, vencido por tanta lucta, dormia profundamente, ella, muito +arredada para o outro lado da cama, as lagrimas a escorrerem-lhe a +quatro e quatro para o travesseiro, perguntava a Deus se vida assim não +seria mil vezes peior do que a morte.</p> + + +<h3>VII</h3> + + +<p>Passou-se um mez.</p> + +<p>O Luiz, sabedor do que tinha havido em casa do Jorge, andava retrahido, +pois «não queria levar as coisas para o tragico» dizia elle, e «embora +a rapariga fosse tentadora a valer, não merecia que por sua causa +se fizessem asneiras de marca maior». Esta restricção, diga-se de +passagem, estabelecia-a tambem a respeito de todas as outras mulheres.</p> + +<p>Demais a Genoveva acabava de voltar da Graciosa. Era uma matronaça +ainda bem disposta, com quem o sargento, segundo rezava a chronica +escandalosa da cidade, já tinha tido os seus dares e tomares. +Encontraram-se por acaso no caminho de S. Pedro e reataram relações. +Aquella, sim, que não podia accarretar-lhe semsaborias. Se já era +<span class="pagenum" id="Page_48">[Pg 48]</span> +livre durante a vida do seu antigo patrão, mais o estava agora, que +tinha ficado remediada com a herança deixada pelo conego Ricardo á sua +ama e enfermeira de tantos annos. E sabia fazer-se estimar. Como tinha +ainda fresco o dinheiro produzido pela venda de um predio na Graciosa, +dava amiudados presentes ao amante, que recusou a principio, cheio de +nobre desinteresse, mas que depois, não querendo fazer desfeita, os +acceitou cheio tambem de gratidão.</p> + +<p>A Isabel soube d’isto e para acabar de todo com os «malditos amores», +origem para ella de tantos phrenesis, foi dizer tudo á filha.</p> + +<p>Pareceu-lhe bom o resultado.</p> + +<p>Se até alli a Rosa andava exquisita, tomou-se desde então ainda mais +taciturna. Nunca saía de casa, e levava sentada o dia inteiro, sem +dizer palavra, com a vista parada, como se estivesse a olhar para +dentro de si mesma, interrogando-se.</p> + +<p>—Já está arrependida, julgava a Isabel.</p> + +<p>A Rosa não acreditou que tudo aquillo fosse verdade, se bem que o +retrahimento do amante lhe tivesse causado uma desillusão profunda. O +Luiz não a atraiçoava com a Genoveva, lá isso não!—Achava até ridicula +semelhante rivalidade; não a tomava a serio.—Mas em todo o caso, não +era homem para arrojos, nem sacrificios. Cego pelo amor, atrevera-se a +muito; agora, estava com medo das consequencias, incapaz de imital-a, +a ella, que se tinha arriscado a tudo, e que não hesitaria, se elle a +quizesse levar comsigo, em deixar o marido, receiosa tão somente por +<span class="pagenum" id="Page_49">[Pg 49]</span> +acabar de perder-se na opinião de todos, e d’este modo não ser digna de +gosar, algum dia, a felicidade para que se julgava destinada. Pois o +Luiz não conheceria que só o amor a tinha arrastado áquellas loucuras, +e que se estivesse casada com elle, mulher nenhuma seria mais honrada? +Sim, o amante ainda havia de recompensal-a de tudo o que lhe fazia +padecer.</p> + +<p>Era a sua esperança, a sua crença.</p> + +<p>Mas o procedimento do Luiz desorientava-a, quasi lhe fazia perder a +coragem. Chegava a querer-lhe mal, mas iria padecendo até esse dia +feliz.</p> + +<p>Ao marido já tinha raiva.</p> + +<p>—Pois não era elle a causa de todas aquellas desgraças? O unico +obstaculo, que não a deixava ser feliz?</p> + +<p>O Jorge, pela sua parte, andava como atordoado. Parecia viver n’um +sonho. Ainda o assaltavam desesperos subitaneos, quando julgava a +denuncia verdadeira, e então sentia impetos de matal-a e matar-se; mas +em breve acalmava, porque lhe acudiam á memoria as explicações dadas +pelas duas mulheres.—A mãe não podia estar combinada com a filha!</p> + +<p>Via a Rosa melancholica e taciturna, mas via-a! Tinha-a sempre alli, +como coisa legitimamente sua. Possuia-a sem medo de ninguem. Não +trocava a sua sorte pela de outro, ainda que fosse verdade o que... +Não! Era uma falsidade, uma perfeita mentira!</p> + +<p>—Não me perdoou ainda eu julgal-a tão mal e tem razão, pensava o +Jorge, por vel-a n’aquella attitude. E até se arrependia de não ter +forçado o amigo a declarar-lhe o nome do mentiroso, para se vingar, e +<span class="pagenum" id="Page_50">[Pg 50]</span> +vingar a sua pobre mulher, que estava innocente.</p> + +<p>Lembrava-se de pedir-lhe perdão, de propor-lhe sairem da Terceira +para S. Miguel ou para outro logar ainda mais distante, onde ninguem +os conhecesse, onde não chegasse a calumnia. Mas ao encontral-a tão +reservada, calava se, perdia o animo, e a duvida logo recomeçava no seu +trabalho surdo e implacavel.</p> + +<p>—Pois senhores, dizia comsigo a Isabel fiada n’este apparente socego, +pelos modos não chega a haver trabuzana. Tenho de levar um cyrio á +Senhora do Livramento.</p> + +<p>—Muito cuidadinho, recommendava ella, quando alguma vez ficava a sós +com a filha. O Jorge está aqui, está certo de que tudo foi mentira. +Mas ai de ti, se lhe fizesses voltar as desconfianças. Era capaz de +matar-te!</p> + +<p>—Entre mortos e feridos sempre ha de escapar alguem, objectava a +rapariga. E espero em Deus mandal-o adeante.</p> + + +<h3>VIII</h3> + + +<p>No dia de S. Pedro á tarde a Isabel aconselhou á filha e ao genro que +fossem dar um passeio, e como suppunha que não lhes agradassem os +sitios mais concorridos, lembrou o monte Brazil. Mettidos entre quatro +paredes, sem nunca se distrahirem, pensava ella, estariam sempre de mau +humor, e difficilmente acabariam de congraçar-se.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_51">[Pg 51]</span></p> + +<p>Não os acompanhou, porque a sós poderiam entender-se melhor. De mais a +mais, já tinha feito bem o seu dever.</p> + +<p>Os dois acceitaram o conselho, e foram pelo caminho, que a meia encosta +ladeia o monte, passando á ilharga das ruinas da antiga casa de +recreio dos governadores da praça, e vae ter a uma plataforma de rocha +sobranceira ao mar.</p> + +<p>Pelas aguas tranquillas da angra, que deu o nome á cidade, deslisavam +alguns barcos, onde familias da burguezia e do povo andavam a +recrear-se em honra do santo pescador.</p> + +<p>Chegados ao extremo do caminho, o velho sentou-se n’um comorosinho +coberto de relva já amarellecida pela soalheira, e a Rosa, para estar +bem longe d’elle, foi para a beira da plataforma, e descahiu os olhos +para o mar. Avistou-o em baixo, ao deante da rampa, que desce em +vertiginoso declive e termina em empinada muralha banhada na base pelas +aguas, alli escuras e profundas.</p> + +<p>Um barco ia rodeando o monte, de volta para a cidade. A Rosa conheceu +logo os passageiros. Eram o dr. Brum, um rapaz moreno e cheio de vida, +e a mulher, uma loura de afamada belleza. Tinham casado por grande +paixão, uns quatro mezes antes. Ella reclinava a cabeça no hombro do +marido. Pareciam ainda na lua de mel.</p> + +<p>—Como eram felizes!</p> + +<p>N’esta occasião o veterano, ainda no mesmo logar, suspirou, entregue +aos seus tristes pensamentos.</p> + +<p>—Que suspirasse! Que padecesse! Que tinha ella com isso? O que lhe +importava, era o impecilho do velho tel-a ido buscar, para reduzil-a +<span class="pagenum" id="Page_52">[Pg 52]</span> +áquella desgraça. Maldito!</p> + +<p>Desejosa de ver mais tempo o barco, já quasi a occultar-se por traz +da bateria de Santo Antonio dos artilheiros, desceu dois passos pelo +ingreme talude.</p> + +<p>Em direcção contraria, e como o primeiro a curta distancia da costa, +vogava outro bote. Á ré tambem um homem e uma mulher.</p> + +<p>Provavelmente mais um casal feliz.</p> + +<p>Elle era um militar, um sargento. Já se lhe distinguiam as tres divisas +verdes.</p> + +<p>Tão alegres aquelles dois, que vinham tocando e cantando. A voz +abarytonada, que entoava o fado, conhecia-a ella.</p> + +<p>—Não! Não era possivel!</p> + +<p>Debruçou-se mais, correndo quasi o risco de precipitar-se.</p> + +<p>—Sim! Eram o Luiz e a Genoveva.</p> + +<p>Com os olhos a saltarem das orbitas e os punhos fechados para o barco, +trovejou phrenéticamente:</p> + +<p>—Ah! Grandes maraus! Grandes maraus!</p> + +<p>O Jorge pareceu acordar de um sonho, levantou-se, olhou para o bote e +apesar da distancia reconheceu o sargento.</p> + +<p>—Até que te apanhei! gritou elle, travando rudemente do pulso da +rapariga.</p> + +<p>—Hein! O que é?... Largue-me! Largue-me!</p> + +<p>E voltou os olhos para o barco.</p> + +<p>—Não olhes para lá, olha para mim, para mim, que sou teu marido! Anda! +Nega ainda historia com o sargento... Nega!</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_53">[Pg 53]</span></p> + +<p>—Não nego, e arrependida estou eu de ter negado a primeira vez. Mas +largue-me! Arre!...</p> + +<p>Com um esforço violento escapou-se-lhe da mão e como sentisse o pulso a +doer, bradou fula de raiva:</p> + +<p>—<i>Pisar-me</i> assim! Pedaço de bruto!</p> + +<p>—Olha que eu desfaço-te, grande diabo! E não te cae a cara de +vergonha, por veres que sei tudo! Sempre era muito estupido!... Foi +preciso que me mettesses a verdade pelos olhos dentro, ao avistares o +sargento com outra mulher! Eu bem o reconheci, accrescentou o velho e +apontou para o rival, que mal suspeitava o que alli estava acontecendo +por sua causa. Ah! Padeces o mesmo que me tens feito padecer? Ainda +bem! Ainda bem!</p> + +<p>Ella ia responder com uma insolencia, mas calou-se, porque a vóz do +sargento, subindo pela encosta, trouxe-lhe ao ouvido fragmentos de uma +quadra do fado, de envolta com os arpejos da guitarra.</p> + +<p>Sabia-a de cór, de a ter ouvido ao amante.</p> + +<p>—Perdes o tempo a escutar, que não é para ti que elle está cantando! +disse-lhe o Jorge, com sarcasmo.</p> + +<p>Voltou-se enraivecida para o marido, mas, querendo feril-o mais +cruelmente, descambou para a troça.</p> + +<p>—Então não querem ver o <i>fedôr</i> do velho! ejaculou, com o dedo +apontado para elle e atravez de uma gargalhada. Julga talvez que se o +Luiz me não quizesse mais, ganhava com isso alguma coisa? Nicles, meu +menino! Não é o mel para a bocca do asno.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_54">[Pg 54]</span></p> + +<p>E cuspiu-lhe outra risada.</p> + +<p>O Jorge ouvia-a estupefacto, sem acreditar.</p> + +<p>Para se vingar em alguem, a Rosa continuava nos improperios, como se +a desesperação, que dias e dias tinha represado dentro em si, achando +finalmente sahida, golfasse n’um vomito asqueroso.</p> + +<p>—Julgou o mostrengo que era só appetecer uma raparigota, que ainda +mal chegava a mulher, e chamar-lhe sua! Tal desgraça! Juntar a morte á +vida!... Que peccado! O avô casado com a neta! Ah! Ah! Ah!</p> + +<p>Meio suffocado pelo desespero e pelo asco, mas curioso de saber até +onde chegaria aquella abjecção, o velho quiz ouvil-a. Não poude +esquivar-se todavia a dizer-lhe com desprezo:</p> + +<p>—Grande porca!</p> + +<p>—Porco é você! Um porco, que me sujou casando commigo! Porcos os +seus beijos! Desde o dia em que me levou á egreja, tenho nojo de mim! +Veja-se n’um espelho, seu velho tinhoso, e diga-me depois se eu era +para a sua bocca!</p> + +<p>O veterano cresceu para ella, chamando-lhe:</p> + +<p>—<i>Valhaca!</i> Surrão!</p> + +<p>Quiz agarral-a, porém a rapariga furtou-lhe as voltas, e continuou a +provocal-o:</p> + +<p>—Muito lhe tenho eu aturado! Nenhuma outra soffria tanto. O que eu lhe +fiz, não é nem a metade do que você merece!</p> + +<p>—Eu mato-te, diabo, eu mato-te! Nem já sequer te vejo!</p> + +<p>—Nunca me tivesse visto! Oxalá! Fique sabendo que não gosto de você, +<span class="pagenum" id="Page_55">[Pg 55]</span> +nem gostei nunca, nunca! D’elle! D’elle, unicamente!...</p> + +<p>E apontou na direcção do bote, que os dois, afastados um pouco da +rampa, não podiam agora ver.</p> + +<p>Ouvia-a e cuidava já não ser d’este mundo, ou que tudo se anniquilara +em volta de si. Ainda os espreitava o sol por traz do monte, e elle +julgava-se envolto nas trevas da noite.</p> + +<p>—Pois aquella creança, que havia pouco se lhe afigurava tão +innocente e pura, como nas tardes em que ella ia levar-lhe o jantar, +muito rosada, de vestidinhos curtos, saltitante e alegre que nem um +passarinho—aquella creança podia ser a malvada que para alli estava a +falar?! Mais nojenta e descarada do que essas mulheres, que á noite, +quando lhe succedia voltar para o castello mais tarde, o perseguiam +pelas ruas da cidade, com as galochas de pau soando estridulamente nas +pedras da calçada, e que se lhe offereciam desbragadas, em tróca de +pouco dinheiro! Pois aquillo era a sua mulher, a sua querida mulher?!</p> + +<p>No emtanto a Rosa tinha-se abeirado outra vez da escarpa, e com os +olhos a brilharem seguia o barco, que se ia afastando de terra.</p> + +<p>—Era aquillo, era! Peior ainda que as mulheres de má vida, podia dar +lições a todas ellas!</p> + +<p>E para que não existisse um monstro assim, o Jorge correu para a +mulher, agarrou-a pela cintura e atirou-a com força pela rocha abaixo, +dizendo:</p> + +<p>—Anda! Vae ter com elle!</p> + +<p>O corpo cahiu aos resaltos pela vertente e foi pondo salpicos de sangue +nas arestas que o esfarrapavam, em quanto a voz do sargento Luiz +<span class="pagenum" id="Page_56">[Pg 56]</span> +garganteava ao longe, toda cheia de requebros:</p> + +<div class="poetry-container"> +<div class="poetry"> + <div class="stanza"> + <div class="verse indent0">Mal os meus olhos te viram</div> + <div class="verse indent0">O meu coração te adorou,</div> + <div class="verse indent0">Na cadeia dos teus braços</div> + <div class="verse indent0">Minha alma presa ficou.</div> + </div> +</div> +</div> + + +<h3>IX</h3> + + +<p>O Jorge não poude seguir a mulher no caminho da morte.</p> + +<p>Quando ia para despenhar-se, deitaram-lhe a mão o corneteiro-mór +reformado e outro homem.</p> + +<p>Preso para conselho de guerra, foi julgado tres mezes depois e +confessou o crime, sem todavia declarar, por mais instancias que lhe +fizessem, os motivos a que tinha obedecido. Os insultos e provocações +com que a Rosa o allucinara, contaram-os ao conselho aquellas duas +testemunhas. Estavam perto, mas não tinham sabido intervir a tempo de +evitar a catastrophe.</p> + +<p>Em quanto duraram estes depoimentos, o Jorge, envergonhado não por si +mas por ella, tapava o rosto e cravava na testa os dedos contrahidos.</p> + +<p>Impressionou vivamente ao auditorio o discurso do defensor. Quem +apresentava aquella honrosa biographia militar, allegou o moço +official, não era de certo um assassino. Tinha feito uma morte, +praticando aliás um acto de verdadeira justiça social, mas não +commettera um crime, pois estava inteiramente privado da intelligencia +<span class="pagenum" id="Page_57">[Pg 57]</span> +do mal que fazia, o que era previsto pelo codigo.</p> + +<p>No fim, o presidente perguntou ao accusado se tinha mais alguma coisa +que allegar em sua defeza.</p> + +<p>—A minha pena toda é que V. S.<sup>as</sup> não possam mandar-me varar por +quatro balas, respondeu o velho, e não pronunciou mais palavra.</p> + +<p>Foi absolvido por unanimidade.</p> + +<p>O José Maria acompanhou-o a casa, e no intuito de consolal-o disse-lhe +que a Rosa só tinha tido o que merecia.</p> + +<p>—Cala-te, homem, cala-te! vociferou o Jorge, e atirou-se para cima da +cama, onde ficou deitado, com a cara voltada para a parede, os olhos +abertos e inexpressivos.</p> + +<p>N’isto chegou-lhe á porta a Isabel e não se fartou de injurial-o.</p> + +<p>—Peiores que o matador de sua filha, só os malvados do conselho de +guerra, que o tinham absolvido! Tudo uma cafila!</p> + +<p>O José Maria dispunha-se a correr com ella, quando a Josepha Julia e a +Luiza Braga, que vinham á descoberta, a levaram d’alli.</p> + +<p>—Deixa-o lá, dizia-lhe a Luiza, com o braço mettido no da viuva. Bem +castigado ficou elle, perdendo a sua Rosa. Tens razão para lhe querer +mal, mas, diga-se a verdade, o que a tua filha fez ao Jorge...</p> + +<p>—E tu e as mais o que fazem? berrou a Isabel. Mas logo, cahindo no tom +lastimoso, ajuntou: O corpo da pobresinha lá está no fundo do mar ... +ou talvez fosse comido por algum peixe!</p> + +<p>Seguiram caladas pela rua adeante.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_58">[Pg 58]</span></p> + +<p>—Se todos os maridos, que teem razão de queixa das mulheres, +seguissem a receita do Jorge—meditava a Josepha Julia, com azedume de +solteirona—os peixes, de gordos, chegariam a não poder nadar!</p> + +<p>Depois, lembrou-se de uma novidade capaz de alegrar a Isabel:</p> + +<p>—Não sabeis o que se conta da mulher do sargento Luiz?</p> + +<p>—Da antiga ama do conego Ricardo? perguntou, immediatamente a Luiza.</p> + +<p>—Isso! Que já a prega na menina do olho ao marido, com um estudante do +seminario!</p> + +<p>—E elle que se ha de affligir! acudiu a Isabel com rancor. Não lhe +tirem os moios de renda deixados pelo conego, pois quanto ao mais...</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>Sempre cabisbaixo, andando á pressa e murmurando uma vez por outra +palavras que ninguem percebia, o Jorge só era visto d’alli em deante +nas ruas do castello, quando ia de manhã para o armazem do material de +guerra ou para a terra do monte Brazil, e á tardinha, quando recolhia.</p> + +<p>Quem de noite lhe passasse á porta, mesmo fóra de horas, via pelas +frinchas a claridade da candeia, e sentia lá dentro, com frequencia, os +passos do velho, medindo em todos os sentidos a casa terrea, e ouvia de +quando em quando um suspiro mal reprimido. Quando lhe perguntavam se +queria alguma cousa não respondia e ficava á escuta, para continuar na +<span class="pagenum" id="Page_59">[Pg 59]</span> +mesma, apenas ia longe o importuno.</p> + +<p>Uma noite o José Maria, embora soubesse que o Jorge, como sempre, o +receberia mal, entrou-lhe á força em casa e fez-lhe ver que elle estava +dando cabo de si, o que era um grande peccado.</p> + +<p>—A vida, é Nosso Senhor quem a dá, só elle a póde tirar, retorquiu +o Jorge. Cuidas que se não acreditasse n’isto, já não tinha ha que +seculos?...</p> + +<p>E sem rematar a phrase, continuou a passeiar pela casa, alheio a quanto +o rodeava.</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>Em algumas tardes ia sentar-se na rocha, no mesmo sitio d’onde tinha +despenhado a mulher, e deixava-se alli ficar horas esquecidas, olhando +para o mar, talvez a pedir-lhe que lhe restituisse a sua Rosa, de quem +elle, apezar de tudo, ainda gostava tanto!</p> + +<figure class="figcenter" id="i002" style="width: 200px;"> + <img src="images/i002.jpg" width="200" height="61" alt="decorative"> +</figure> +</div> + + +<hr class="chap x-ebookmaker-drop"> + +<div class="chapter"> +<figure class="figcenter" id="i003" style="width: 400px;"> +<img src="images/i003.jpg" width="400" height="83" alt="decorative"> +</figure> + +<p><span class="pagenum" id="Page_61">[Pg 61]</span></p> +<h2 class="nobreak" id="Os_Filhos_Do_Frade">Os Filhos Do Frade</h2> +</div> + +<img alt="F" class="drop-cap" height="388" src="images/drop-f.jpg" width="200"> +<p class="nind"><span class="upper-case">FREI</span> +Antonio entrou na cella do guardião, tremulo, sem forças. O +religioso que o chamou, dissera-lhe apenas:</p> + +<p>—Cuido que é para ires a casa do morgado da Fajã.</p> + +<p>O guardião, gordo, pausado, pachorrento, disse a uma e uma estas +palavras, que iam fazendo estalar de angustia o coração do franciscano:</p> + +<p>—Frei Antonio, o morgado da Fajã manda-me pedir um irmão, que vá +acompanhar esta noite, junto do caixão, a menina Beatriz, que morreu +ainda agora, de repente. Escolhi a Vossa Reverendissima. Vá buscar o +seu breviario e ponha-se a caminho, que d’aqui até lá acima ao monte, +ainda é boa a distancia.</p> + +<p>O frade saiu d’alli cambaleando, estonteado. Por milagre chegou á sua +cella, sem cahir ao comprido, sobre as lages do corredor.</p> + +<p>Mal fechou a porta, atirou-se de bruços para cima do catre, e mordeu a +coberta de lã grosseira, n’um paroxismo louco, abafando os gritos que +<span class="pagenum" id="Page_62">[Pg 62]</span> +lhe irrompiam do peito em catadupa.</p> + +<p>Depois, foi a pouco e pouco serenando, as lagrimas correram-lhe dos +olhos em fio, e o franciscano esteve tempo infinito, de joelhos no +chão, com os olhos erguidos para o alto, mal fitando atravez do caudal +do choro a imagem de um Christo, que estendia lamentoso os braços sobre +o madeiro da Cruz, n’uma attitude de immensa angustia resignada.</p> + +<p>E assaltou-lhe a memoria a recordação de uma dôr egual, a da perda da +sua mãe, que morrera assim, de repente, estando a falar com elle. Dôr +egual, não! que maior que todas é a de perder-se a mulher amada.</p> + +<p>E elle idolatrava-a com tão immaculado culto, que nem a vista da +donzella profanára aquelle amor. Só agora, declarada a medonha +catastrophe, só depois que o guardião dissera que Beatriz tinha +morrido, frei Antonio percebeu o que eram aquelles extasis, aquelles +arroubamentos ineffaveis, de quando via, ao longo dos caminhos ou na +egreja, a figura gentil e fascinante da morgadinha. Ás vezes, quando +surprehendia no peito o intenso tumultuar da paixão, illudia-se, +rebuscava na memoria passagens dos livros santos e acreditava que +ascetas teriam tido como elle, e mais do que elle ainda, o indizivel +goso de antever em vida apparições como essa, mensageiros de Deus +destinados a fazer-nos crêr nos archanjos e seraphins.</p> + +<p>Mas este mysticismo acabava perante a nova fatal. Não! O anjo era-o, +mas da terra! Morto, desfolhado aquelle lyrio de fragrancia extrema: +<span class="pagenum" id="Page_63">[Pg 63]</span> +impossivel, impossivel!...</p> + +<p>Saiu da portaria do convento quasi a correr, e como lá fóra, pelo campo +matisado de flores, o sol esparzia ondas de luz, e nas carvalheiras os +melros trinavam alegremente, soltou-se-lhe do peito um longo suspiro +de satisfação e o rosto coloriu-se-lhe de prazer. Se Beatriz houvesse +morrido, o sol ter-se-hia apagado e os passaros nunca mais soltariam os +seus gorgeios.</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>Quando chegou a casa do morgado, as trevas encheram-lhe de novo a +alma. Ao fundo do pateo, n’um quarto baixo, avistou, apenas acabava de +empurrar a porta da rua, que estava entreaberta, um grupo de mulheres +erguendo as mãos ao ceo, e soluçando muito.</p> + +<p>Subiu a escada de pedra, passou o alpendre, e logo na grande sala da +habitação fidalga encontrou o pobre pae e viu no rosto afogueado do +velho a verdade inteira.</p> + +<p>Tinha morrido Beatriz.</p> + +<p>Lá dentro, no seu quarto virginal, transformado em capella mortuaria, +estava a donzella estendida sobre a cama, em quanto não chegava o +caixão, que devia contel-a para sempre, e onde se passaria o drama +horrivel da podridão, quando aquelles labios, ha pouco avermelhados +pelo sangue dos quinze annos, e aquella carne, mais branca e macia do +<span class="pagenum" id="Page_64">[Pg 64]</span> +que as petalas das açucenas, fossem devorados lentamente, cruelmente, +pelos vermes repugnantes.</p> + +<p>O frade olhou-a e descreu outra vez da morte. Bem a viu immovel, côr +de cera, esmaecidas as rosas das faces; não acreditou. E quanto mais a +via, mais a duvida o animava, mais o espirito se lhe erguia para Deus, +interrogando, mas não pedindo. Seria excusado implorar-lhe um milagre +para resuscitar Beatriz, porque Beatriz não podia estar morta!</p> + +<p>Ainda assim os labios de frei Antonio murmuravam rezas, e quando a +noite já ia adeantada, e todos em casa se tinham recolhido, ainda no +quarto funebre se ouviam as orações do religioso, quebrando aquelle +silencio de coisas mortas, e echoando flebilmente até aos pannos +negros, que forravam as paredes, e de que se destacavam, a um lado, as +chammas compridas, pallidas e immoveis dos quatro cyrios do altar.</p> + +<p>Sempre com a mesma crença, quando ficou só e sentiu o ultimo alento +de vida extinguir-se no resto da casa, levantou-se do logar aonde +ajoelhara e chegou-se para o caixão.</p> + +<p>Abertas para os lados as duas meias tampas forradas de setim branco, +mostravam atravez de um véu de tule a donzella. O frade viu-a e recuou +inconsciente, como se houvera profanado uma alcova virginal. Coisa +alguma d’aquelle espectaculo lhe trazia ao pensamento a ideia da morte.</p> + +<p>Todos, sem duvida, se enganavam. Era horrivel deixar que a levassem +para debaixo das lages da egreja, para o frio jazigo da familia, quando +ella não estava morta, quando a mocidade nunca se expandira tão +<span class="pagenum" id="Page_65">[Pg 65]</span> +exuberante no rosto de Beatriz!</p> + +<figure class="figcenter" id="i004" style="width: 700px;"> + <img src="images/i004.jpg" width="700" height="713" alt="Monge encapuzado ajoelhado ao lado de uma mulher deitada de costas, com a cabeça inclinada para trás, olhos fechados e braços ao longo do corpo."> +</figure> + +<p>Chegou-se mais. Ergueu o veu, quiz encostar o ouvido ao peito da +donzella, e perscrutar-lhe as palpitações do coração. Não poude. As +tampas do caixão não lh’o permittiam. Pousou a mão tremula regelada na +testa da morgadinha, e pareceu-lhe receber uma impressão de calor.</p> + +<p>—Então estava viva!</p> + +<p>Quiz chamar alguem, correu para a porta, mas lembrou-se dos tristes +<span class="pagenum" id="Page_66">[Pg 66]</span> +sorrisos de desconsolo, que tinham respondido ás suas duvidas, algumas +horas mais cedo.</p> + +<p>Tornou para junto d’ella.</p> + +<p>—Ah! Se podesse sentir-lhe pulsar o coração!... Porque havia de +hesitar?</p> + +<p>Levantou o corpo um quasi nada, e em seguida um pouco mais, +introduzindo as mãos tremulas por baixo dos hombros da donzella. Sem +saber como tirou-a para fóra do caixão, e amparando-a nos braços, e +achegando-a a si, qual mãe que aperta ao seio um filho estremecido, +dirigiu-se cambaleando, quasi louco, para a cadeira de espalda onde +estivera velando o morgado.</p> + +<p>Fitou-a, e julgou vel-a sorrir. Chegou-lhe ao coração o ouvido e sentiu +palpitações.</p> + +<p>Então na sua alma operou-se uma transformação sobrehumana. Aquella +quadra já não foi para elle camara mortuaria, mas alcova nupcial, e o +frade, perdida a razão, esqueceu tudo, e julgou realidade o que mais de +uma vez se atrevera a phantasiar, e viu-se esposo de Beatriz, sentindo +nos seus braços o corpo da donzella, rendido, indefeso, e gosou toda a +suprema volupia de um primeiro beijo de amor.</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>De repente ouviu-se um gemido doloroso, quasi um grito!</p> + +<p>O frade ergueu-se do chão, de golpe.</p> + +<p>Beatriz, prostrada por terra, tinha effectivamente voltado á vida, e +acabava de sair do estado cataleptico, que todos tinham julgado morte.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_67">[Pg 67]</span></p> + +<p>Aterrado, espavorido, fugiu do palacio, soltando brados.</p> + +<p>A familia do morgado acudiu e poude adivinhar, horrorisada, o que se +tinha passado.</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>Sessenta annos mais tarde, ha pouco tempo ainda, contava-se esta +historia em Santa Cruz, na Madeira, para explicar o motivo por que dois +velhinhos, muito parecidos e da mesma altura, e que andavam sempre +juntos, eram chamados os <i>filhos do frade</i>.</p> + +<p>Havia quem dissesse que eram gemeos, mas a opinião encontrava alguns +incredulos.</p> + +<p>Consta-me até que um investigador consciencioso estabeleceu, com +documentos irrefragaveis, que um dos irmãos era onze mezes mais velho +do que o outro, porque Beatriz e Frei Antonio...</p> + +<p>Silencio! Não é bom revolver o pó das sepulturas.</p> + +<figure class="figcenter" id="i005" style="width: 200px;"> +<img src="images/i005.jpg" width="200" height="51" alt="decorative"> +</figure> + + +<hr class="chap x-ebookmaker-drop"> +<div class="chapter"> + +<figure class="figleft" id="i006" style="width: 400px;"> +<img src="images/i006.jpg" width="400" height="478" alt="Duas figuras, uma mulher com expressão melancólica e vestes antigas, e na parte inferior, um homem com bigode, trajando roupas formais, ambos intercalados por desenhos de corações. Ao fundo, há uma paisagem costeira, com barcos e figuras humanas."> +</figure> +</div> + +<p><span class="pagenum" id="Page_69">[Pg 69]</span></p> +<h2 class="nobreak" id="O_Primeiro_Desengano">O Primeiro Desengano</h2> + + +<p>Vestiu pela primeira vez fatos de senhora, no dia em que fez quatorze +annos.</p> + +<p>Ainda estou a vel-a entrar pela sala dentro muito envergonhada, +tropeçando na fimbria do vestido comprido, não sabendo se devia rir ou +zangar-se com os gracejos que lhe choviam de todos os lados.</p> + +<p>Afinal foi sentar-se ao pé de uma meza, e tirou da floreira uma +rosa, que tratou de desfolhar e de triturar, persuadida talvez de +que escapava assim á attenção geral. Tivesse mais dois ou tres annos +e desejaria prolongar o sentimento de admiração excitado pela sua +formosura juvenil, em que transparecia a candura e singeleza da +creança, da <i>baby</i> da vespera, alliadas á fascinação da mulher +<span class="pagenum" id="Page_70">[Pg 70]</span> +que despontava.</p> + +<p>Do meu canto, observava aquella esplendida adolescencia, que assim +desabrochava de subito, e quasi não podia acreditar que os poucos +mezes, que a Georgina tinha estado longe da Madeira, assim houvessem +transformado a minha antiga companheira de brinquedos.</p> + +<p>E ao vel-a tão differente, sentia em mim o que quer que fosse novo +e estranho, e, desejando aliás approximar-me d’ella e contemplal-a +muito tempo, tinha a dubia percepção de que alguma coisa nos separava +agora, tornando completo impossivel o falarmo-nos como d’antes, quando, +n’aquellas manhãs de julho tépidas e luminosas, iamos com um rancho +enorme para o banho do mar, e a Georgina, alegre e buliçosa como um +passarinho, pulava na frente do bando, com as suas perninhas brancas e +rosadas, que appareciam abaixo do vestido de cambraya.</p> + +<p>Em quanto ella e as senhoras entravam para as barracas enfileiradas a +curta distancia da babugem da maré, nós, os homens—eu já me incluia +no rol—enfiavamos cá fóra os horriveis fatos de banho, quasi sempre á +direita das barracas, para nos livrarmos do sol, que surgia por traz do +cabo Garajao e começava a faiscar nas vidraças do Funchal.</p> + +<p>Que bons aquelles banhos!</p> + +<p>Era um alvoroço enorme, uma exuberante alegria, quando entravamos +de corrida pelo mar dentro, e, passada a primeira sensação de frio, +gosavamos a deliciosa frescura, fluctuando ao impulso da onda, de mãos +<span class="pagenum" id="Page_71">[Pg 71]</span> +dadas, divisando atravez da limpidez da agua, as pedrinhas brancas +semeadas entre os calhaus do fundo ... e as formas tremulas, fugitivas +das banhistas. Sobre o mar, levemente encrespado pela brisa, formava-se +para o lado do nascente uma esteira luminosa, coruscante. De quando em +quando um de nós fazia repuxar a agua em myriades de gotas, que cahiam +como chuva de fogo, até irem perder-se na espuma branca de neve.</p> + +<p>Uma vez a Georgina apanhou um grande susto. Presumindo excessivamente +das suas aptidões de nadadora principiante, quiz afastar-se da +terra, mas lembrou-se de repente de que já não teria pé, de que ia +afogar-se, imaginou-se até levada por uma resaca, e poz-se a bracejar +desordenadamente, gritando, bebendo agua, como se lhe tivessem dado +uma <i>enterra</i>. Soffreria provavelmente a morte da Virginia de +Bernardin de Saint-Piérre, sem o acompanhamento grandioso e bulhento +do temporal, se eu não a tivesse agarrado a tempo e conduzido á praia, +Deus sabe com que difficuldade.</p> + +<p>Imagine-se a ufania que me causava a recordação da façanha, no momento +em que a Georgina me apparecia sob aquelle aspecto novissimo!</p> + +<p>—Ah! Se podesse tornar a salval-a, trazendo-a apertada nos braços!... +Formulava mentalmente este desejo, que parecia de certo uma enormidade +ao meu pudor dos quinze annos, quando notei que a Georgina olhava +fixamente para o meu lado.</p> + +<p>Desviou a vista, quando a encarei, mas d’alli a pouco estava a olhar +outra vez.</p> + +<p>Senti então um dos maiores prazeres da minha vida. Comprehendi o +<span class="pagenum" id="Page_72">[Pg 72]</span> +motivo por que a julgava outra, adivinhei o que era o sentimento novo +que me dominava.</p> + +<p>Valeu-me para a descoberta o andar a ler o <i>Visconde de +Bragelonne</i>, no ponto em que se descreve a seducção de La Vallière. +Lembrei-me até de que o maroto do Alexandre Dumas torna quasi cumplices +na queda da pobre Luiza uns passarinhos, que havia na sala e que no +momento em que Luiz XIV cae aos pés da namorada, chilream dentro +das douradas gaiolas uma toada de indizivel concupiscencia, o que +ainda mais entontece a futura carmelita. Ora emquanto eu olhava para +a Georgina, tambem cantava um passaro, um melro, empoleirado n’uma +magnolia do jardim. Achei de bom agouro a coincidencia.</p> + +<p>É claro que não emparelhava a Georgina com a La Vallière—via-a como +aquella a quem havia de ser unido para sempre, visto que o amor assim +nos destinara um para o outro.</p> + +<p>Com uns restos de duvida, olhei em roda de mim.</p> + +<p>No lado da sala onde eu estava, não havia mais nenhum homem, a não ser +o escrivão de fazenda, sujeito de grande bigodeira e voz soturna, que +recitava pelas salas o <i>Noivado do sepulchro</i> e a <i>Doida de +Albano</i>.</p> + +<p>Era solteiro, mas tinha mais de tres vezes a edade de Georgina. Fiquei +radiante. Era para mim com certeza, que estava olhando. D’alli a pouco +fomos jantar.</p> + +<p>Não comi nada, porque ella, apesar de ter ficado ao pé de mim, não me +<span class="pagenum" id="Page_73">[Pg 73]</span> +deu a minima attenção.</p> + +<p>Como já tambem conhecia a existencia das <i>coquettes</i>, perguntei a +mim mesmo se a Georgina seria uma d’ellas, e resolvi provocar o mais +cedo possivel uma explicação decisiva.</p> + +<p>Deparou-se-me o ensejo n’aquella mesma tarde.</p> + +<p>Achavamo-nos os dois no extremo do mirante sobre o Caminho do Monte, +vendo os romeiros que voltavam de festejar a Senhora de agosto.</p> + +<p>Os mais não podiam ouvir-nos, entretidos como estavam por um dos +espectaculos mais pittorescos dos costumes populares madeirenses. O +som dos machetinhos de Braga, machetes de rajão e violas francezas, +e o sussurro dos descantes e falatorio dos romeiros abafariam alguma +palavra que me escapasse em voz mais alta.</p> + +<p>Depois de lhe disparar uma declaração, fiz-lhe não sei quantas +recriminações, pelo que me tinha feito soffrer durante o jantar.</p> + +<p>A Georgina escutou-me cheia de pasmo, desviou-se um pouco, e medindo-me +dos bicos dos pés até á cabeça, disse-me com um supremo desdem:</p> + +<p>—O menino endoideceu! Não sabe que é ainda um fedelho e que eu já sou +uma senhora! Isso ha de ser somno, por força. O que o Luizinho deve +fazer, é pedir á sua mamã que o metta mais cedo na cama!</p> + +<p>Fulo de raiva, ia dizer-lhe uma insolencia, quando se approximaram de +nós a mãe d’ella e a minha.</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>D’alli a dois mezes casava a Georgina com o escrivão de fazenda, e +d’alli a dois annos ... estava eu vingado.</p> + + +<hr class="chap x-ebookmaker-drop"> + +<div class="chapter"> +<figure class="figcenter" id="i007" style="width: 200px;"> + <img src="images/i007.jpg" width="200" height="46" alt="decorative"> +</figure> +</div> + +<p><span class="pagenum" id="Page_75">[Pg 75]</span></p> +<h2 class="nobreak" id="A_Alegria_do_Mar">A Alegria do Mar</h2> + + +<img alt="O" class="drop-cap" height="431" src="images/drop-o.jpg" width="200"> +<p class="nind"><span class="upper-case">O</span> +Manuel João abalou dos Cedros aos primeiros arreboes da madrugada, e, +apezar de já ter os seus sessenta bem puxados, não afrouxou na extensa +caminhada até á Horta, a <i>villa</i>, como o povo do Fayal teima em +chamar á sua pequena cidade.</p> + +<p>Quando chegou ao alto da Lomba, deu um suspiro de satisfação. <i>A +Alegria do Mar</i> ainda não estava no ancoradouro. Só viu fundeado um +patacho e um hiate, e, navegando do Pico para S. Jorge, o paquete da +carreira, que tinha chegado, na vespera, das Flores, com a noticia de +já lá estar a barca, onde o filho voltava dos Estados Unidos.</p> + +<p>Ha que annos o rapaz estava ausente, e quasi sempre sem escrever! Mas +o pae não estranhava a falta de noticias. Quando o José se despediu +d’elle e da mãe, a Andreza, pediu-lhe que escrevesse muitas vezes, o +que o Manuel João contrariou, dizendo bruscamente:</p> + +<p>—Deixa falar tua mãe, e só gastes o tempo a trabalhar! Cartas são +<span class="pagenum" id="Page_76">[Pg 76]</span> +papeis, não servem de nada. Se poderes mandar alguma coisa, manda +dinheiro. É com elle que a gente se governa!</p> + +<p>O rapaz quasi nada lhes mandou, porque não obstante a grande lida em +que andava constantemente, poucas economias conseguiu coalhar. Só nos +ultimos tempos havia tido uma aragem de sorte, de maneira que voltava +remediado. O Francisco Madruga, um visinho chegado dois mezes antes, +contou aos dois velhos que o José tinha um collete de pelles todo +acolchoado de bellas aguias—aquellas moedas de ouro tamanhas e tão +luzidias, que, mal comparadas, fazem lembrar o sol abençoado, e que são +como elle fonte de vida e de alegria!</p> + +<p>Tendo descido a ladeira da Conceição, o velho atravessou a disforme +e corcovada ponte, e entrou na cidade, indo parar no caes proximo do +castello de Santa Cruz.</p> + +<p>Estava a informar-se, quando o facho do monte da Guia começou a fazer +signaes.</p> + +<p>—Talvez aquellas bandeirinhas lhe estejam a responder, lembrou um +barqueiro, apontando para o alto da collina.</p> + +<p>Effectivamente era o annuncio de que já se avistava a barca.</p> + +<p>—Com este vento, a <i>Alegria do Mar</i> não dá fundo antes d’essas +quatro horas, opinou o mesmo barqueiro.</p> + +<p>—Ou das cinco, resmungou outro.</p> + +<p>Como lhe sobrava tempo, o Manuel João foi comer alguma coisa a casa de +um primo, que tinha <i>botequim</i> defronte do mercado.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_77">[Pg 77]</span></p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>A barca deitou ferro á tardinha.</p> + +<p>Acossadas pelo vento sueste, pelo <i>carpinteiro</i>, as vagas batiam +com força recrescente na muralha da cidade e espadanavam com violencia, +ou formavam grandes rolos na areia. Saltando a cada instante para +o caes, a agua varria-o, de lado a lado, para logo se despenhar em +abundante cascata. Ás vezes, do meio do tapete espumoso apenas emergia, +como ilha exotica, o guindaste de ferro, muito luzidio com os banhos +consecutivos.</p> + +<p>Á cautela, os barcos varados no caes tinham sido puxados para a rampa +superior.</p> + +<p>Tanto que a <i>Alegria do mar</i> fundeou, appareceu, do lado do +castello, o capitão do porto, seguido do patrão-mór, ambos embrulhados +em gabões impermeaveis. Só ao chegarem á porta da barraca da alfandega, +é que viram ser impossivel a execução do serviço.</p> + +<p>—A minha pena, disse o official de marinha, é não ter mandado vir para +terra as tripulações dos navios, que já cá estavam. O barometro desceu +tanto!...</p> + +<p>—É que a brincadeira vae ser um boccado seria, alvitrou o patrão-mór, +designando o céo com um gesto circular.</p> + +<p>O Manuel João, que tinha acabado de voltar e que os ouviu, perdeu o +acanhamento e perguntou afflicto:</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_78">[Pg 78]</span></p> + +<p>—Ha perigo, sr. capitão? Valha-me Nossa Senhora! Ha perigo de a barca +vir a terra?! Ai! O meu filho, o meu rico filho!...</p> + +<p>Compadeceu-se o official de marinha e para socegal-o disse-lhe que +o navio tinha boas amarras, que o temporal havia de amainar, e que +ficasse elle certo de que na manhã seguinte veria o filho ao pé de si, +são e escorreito.</p> + +<p>—Deus Nosso Senhor o ouça! Mas que noite eu vou passar!...</p> + +<p>E como do alto do caes não via a barca, foi em busca de um sitio d’onde +ao menos podesse enxergar o navio, em que estava o José. Ah! Em casa +do primo havia uma <i>falsa</i> fronteira ao ancoradouro!... D’alli +a pedaço lá estava o Manuel João, olhando para o mar por um oculo +americano que o primo lhe emprestou, e que em tempo claro punha a +Magdalena mesmo ao pé da gente, apezar das cinco milhas que ella dista +do Fayal.</p> + +<p>Ainda bruxuleavam os ultimos clarões da tarde. Depois de muitas +tentativas, o velho lá conseguiu descobrir o tombadilho da barca ... e +tres homens... Se algum d’elles seria o filho?... Pareceu-lhe +que sim!... O mais alto!... Bastava-lhe poder vel-o bem um instante +sequer... Em vão!... Quanto primeiro lobrigara, desvaneceu-se de todo +com as trevas que augmentavam.</p> + +<p>Os olhos, a arderem como se os picassem alfinetes, deixaram de ver. +Não! Viram logo depois uma luzinha, a do pharol de bordo, passar e +repassar no vidro immovel do oculo, a compasso com os balanços do +navio, n’um movimento de vaevem, como a dizer-lhe que não! que não! +<span class="pagenum" id="Page_79">[Pg 79]</span> +que elle não veria o filho! Atordoado, fechou a janella, a que já era +difficil estar, pela violencia da ventania.</p> + +<p>Em baixo, no botequim, o primo deu-lhe animo, e, repetindo a prophecia +do capitão do porto, affirmou-lhe que o José, d’alli a meia duzia de +horas, lhe metteria os tampos dentro com um abraço.</p> + +<p>—Sabes que mais? Vae dormir, que é a maneira de não sentires passar o +tempo.</p> + +<p>Como achou boa a lembrança, o velho deitou-se para cima de um monte de +saccos de milho, e adormeceu pouco depois, a rezar um padre nosso pelo +José e por todos os que andavam sobre as aguas do mar.</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>Por volta da meia noite, acordou estremunhado.</p> + +<p>—Está aqui, está na areia! dizia uma voz, que elle não conheceu. Ande, +ó tiosinho, dê-me um copo de aguardente da terra, para me consolar o +interior! Bem vê que estou como um pinto.</p> + +<p>Assomou á porta e perguntou ao barqueiro, que assim falava:</p> + +<p>—A <i>Alegria do Mar</i> é que está em perigo?</p> + +<p>—Bem visto que sim! Aquella já fez a sua ultima viagem. Está aqui, +está feita em estilhas.</p> + +<p>O Manuel João desatou a correr pela porta fóra, como um doido, e pela +primeira travessa que topou á mão direita, arremetteu para o lado do +mar.</p> + +<p>No sitio aonde foi ter, as vagas não batiam na muralha, porque lhes +<span class="pagenum" id="Page_80">[Pg 80]</span> +quebrava a furia um cómoro de areia.</p> + +<p>Ninguem! Nenhum som de voz humana, atravez dos bramidos do temporal! +Não viriam accudir áquelles desgraçados?... Sim! Ao pé da alfandega, +lampejou um clarão avermelhado. Archotes, que marcavam ao navio em +perigo o sitio melhor para encalhar.</p> + +<p>—Mas a <i>Alegria do Mar</i> obedeceria ainda ao governo?...</p> + +<p>N’isto surgiram ao pé do velho uns vultos, que nem deram por elle, tão +entretidos estavam em observar o ancoradouro.</p> + +<p>—Aqui é que ella vem dar!</p> + +<p>—<i>Eh, home!</i> Como o sabes?</p> + +<p>—Verás! Mas queira Deus que d’esta vez não seja, como quando se perdeu +a baleeira americana. Afogou-se teu irmão e não apanhámos quasi nada.</p> + +<p>—Nanja agora. Vem muita familia com dinheiro.</p> + +<p>—Ah, <i>seus</i> maraus! <i>Seus</i> grandes ladrões! bradou +furioso o Manuel João crescendo para os <i>tarraços</i>, que fugiram +desconcertados e foram ajustar para outra parte os seus planos de +rapinagem, infalliveis em occasião de naufragio.</p> + +<p>A sombra escura do navio estava já a curta distancia, pelo garrar +constante da amarração. Sobre o céu acinzentado, que o luar velado de +nuvens allumiava debilmente, os mastros desenhavam linhas negras mal +definidas, e no de traquete brilhava ainda o pharol, fazendo lembrar +pupilla de moribundo a espreitar o golpe de misericordia.</p> + +<p>Mas nem se podia olhar para o navio, que a areia levantada da praia +<span class="pagenum" id="Page_81">[Pg 81]</span> +pela ventania, chicoteava como ponta de azorrague, e cegava a quantos +assistiam á catastrophe.</p> + +<figure class="figcenter" id="i008" style="width: 800px;"> +<img src="images/i008.jpg" width="800" height="708" alt="No centro da imagem há homem angustiado que observa algo na direção do mar, com as mãos na cabeça. Ao fundo, há um navio em meio a ondas turbulentas, indicando uma tempestade."> +</figure> + +<p>Entretanto a barca vinha caminhando lugubremente para a costa, onde +havia de espedaçar-se. Por entre os lamentos da tempestade, mais +horriveis que os uivos de uma alcateia de lobos famintos, já se ouvia +o gemer da mastreação. Despidos das vergas pelo vendaval, os mastros +ainda se conservavam em toda a sua altura, inteiriçados, erectos como +braços chamando por soccorro afflictivamente.</p> + +<p>O velho, agachado por traz do parapeito da rua do Mar, foi caminhando +para o Castello Novo, ao perceber que o navio derivava para o nascente.</p> +<p><span class="pagenum" id="Page_82">[Pg 82]</span></p> + +<p>N’isto sentiu-se uma pancada surda, outra e outra: a <i>Alegria do +Mar</i> tinha dado no fundo. Em volta do velho já remoinhavam muitos +homens, attonitos, anhelantes, por verem que não podiam valer áquelles +desgraçados, que estavam alli tão perto, ao alcance da voz, e que +dentro em pouco seriam victimas da morte cruel, que havia umas pouca de +horas os estava chamando, attrahindo, hypnotisando.</p> + +<p>—Só Deus lhes póde acudir! disse alguem ao pé d’elle.</p> + +<p>—Quem ha de valer-lhe é o Senhor Santo Christo da Praia! pensou +o Manoel João, cheio de esperança. Pois se aquelle Senhor é tão +milagroso, que, levado em procissão ha cem annos, quando a terra tremeu +uma semana a fio, logo que chegou ao pé da costa fez parar a corrente +de fogo, que rebentara no Pico e vinha atravessando o canal, melhor +podia agora com certeza... Até lhe custava menos!</p> + +<p>E, de joelhos, prometteu-lhe uma festa luzida, como aquella que lhe faz +todos os annos a camara da <i>villa</i>. Elle por si não aguentava com +os gastos, mas lá estava o collete do seu rapaz... Umas quatro ou cinco +aguias chegariam para a funcção.</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>O temporal estava no seu auge. A bahia, coberta litteralmente de +espuma, tinha o aspecto de um immenso lençol—livida e sinistra +mortalha.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_83">[Pg 83]</span></p> + +<p>Tombado sobre estibordo, o navio debruçava a mastreação para o lado da +terra, e, ainda mal cravado na areia, estremecia convulsivamente ás +furiosas investidas do oceano.</p> + +<p>As ondas, batendo em cheio no costado, repuxavam a enorme altura, e +despenhavam-se em catadupa sobre o convez. Bastaram poucas arremettidas +para quebrar os mastros, sem todavia os separar completamente do casco.</p> + +<p>N’este comenos viram-se distinctamente, sobre o fundo cinzento do +céu, tres vultos humanos agarrados á amurada do lado da pôpa. Ainda +escabujavam na lucta suprema da morte.</p> + +<p>—Fiquem a bordo! gritou-lhes de terra um homem, alongando as syllabas +e fazendo porta-voz com ambas as mãos.</p> + +<p>—A bordo! Podem lá resistir áquelles mares! objectou o patrão-mór, +embora calculasse que seria irremessivelmente envolvido e tragado pela +resaca, o temerario que pretendesse ganhar a costa, nadando.</p> + +<p>—Ahi veem elles! Ahi veem elles! bradou subitamente uma voz e +repetiram logo muitas outras.</p> + +<p>—Aproveitaram-se dos mastros! Salvam-se com certeza!</p> + +<p>Então os espectadores da tragedia olvidaram o perigo e, atravez de +uma aberta da muralha, correram para o areal. Tres ou quatro mais +affoutos entraram pela agua dentro a buscar os naufragos, que vinham +engatinhando ao longo dos mastros, arriscados, uns e outros, a que os +esmagassem aquelles madeiros, já meio partidos e desconjuntados, mas +<span class="pagenum" id="Page_84">[Pg 84]</span> +que ainda se erguiam e baixavam pesadamente ao embate dos vagalhões.</p> + +<p>Afinal conseguiram salvar-se tres naufragos, e foram levados em braços +para uma loja perto d’alli.</p> + +<p>O velho furou por entre os curiosos, que se apinhavam á porta, e +achou-se no interior da casa.</p> + +<p>Mas era difficil ver qualquer coisa, á luz dubia espalhada lá dentro +por uma candeia. Por fim conheceu que dois d’elles eram já de bastante +edade e que sómente o terceiro... Estava deitado sobre uma enxerga, com +os olhos fechados, o parecer quasi cadaverico, os cabellos collados +á testa. Mas a estatura era a mesma do José... E as feições, a côr, +tudo!... Era elle, por força!... Só se Deus Nosso Senhor não fosse de +bondade e misericordia, deixaria que o pobre rapaz...</p> + +<p>Examinou melhor o infeliz, que já ia recuperando os sentidos.</p> + +<p>—Ah! Se elle abrisse os olhos!...</p> + +<p>Faltavam poucos instantes.</p> + +<p>Mas quasi teve medo de que a certeza viesse já tão proxima.</p> + +<p>—Quem sabia lá se?...</p> + +<p>N’esta occasião o naufrago disse umas palavras, que elle não entendeu.</p> + +<p>—É americano, notou alguem, ouvindo a phrase dita em inglez, mas com a +pronuncia nasal caracteristica dos cidadãos dos Estados-Unidos.</p> + +<p>O Manoel João ficou perplexo.</p> + +<p>Sim, o seu José tambem devia saber falar americano... Mas em tal +occasião falaria outra lingua, que não fosse aquella em que a mãe o +tinha ensinado a rezar? Só se não estava bom da cabeça!</p> +<p><span class="pagenum" id="Page_85">[Pg 85]</span></p> + +<p>N’isto abriu os olhos o naufrago.</p> + +<p>—Não era o José!</p> + +<p>O velho sahiu d’ali para fóra cambaleando, e parou no sitio onde devia +ter estado sempre, onde podia salvar o filho. Outros certamente o +haviam salvo, em logar d’elle.</p> + +<p>—Não! Ninguem mais tinha escapado.</p> + +<p>A barca, durante aquelle tempo, acabara de esmigalhar-se. No +principio tinha abalos convulsivos, erguia-se para tornar a cahir +desamparadamente, luctava, estrebuchava, como se o instincto de +conservação lhe déra forças contra o gigante. E o mar tambem parecia +exasperado por aquella resistencia. Sacudia a pobre <i>Alegria do +Mar</i> com os impetuosos estremeções da féra, que abócca a presa e a +abana e estracinha, para reduzil-a por uma vez á immobilidade da morte.</p> + +<p>Ao cabo a tempestade foi amainando, e na praia ficavam dois ilhotes +cravados na areia, a curta distancia um do outro—a proa e a pôpa do +navio, com o tombadilho empinado, quasi a prumo. No da proa ainda +existia um pedaço da borda, a que tinham estado aferrados os ultimos +naufragos, e d’onde os levara a um e um o pavoroso remoinhar das vagas.</p> + +<p>Aquelles dois fragmentos informes eram quanto restava da <i>Alegria +do Mar</i>, que poucas horas mais cedo, as vélas cheias de vento, +cortava ligeira as aguas do Atlantico; os tres naufragos, os unicos +sobreviventes dos quarenta que alli vinham, todos valentes campeões da +<span class="pagenum" id="Page_86">[Pg 86]</span> +lucta pela vida, alguns a procurarem, com a vista no horisonte, a terra +da patria e antegosando as sonhadas alegrias do regresso.</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>O Manuel João, perdida a ultima esperança, voltou para os Cedros no +outro dia á tarde, mais arrastando-se do que andando por aquella +estrada, que lhe pareceu dez vezes mais comprida.</p> + +<p>Logo que a Andreza o avistou, saiu-lhe ao encontro. Já sabia do +naufragio, mas cuidava que o filho tivesse escapado.</p> + +<p>Dissera-lh’o por dó um visinho, que acabava de voltar da cidade.</p> + +<p>—Onde está o nosso filho, Manoel João? Onde está o nosso filho?</p> + +<p>—Ai, mulher, a gente já não tem filho! redarguiu o marido, cahindo +sentado no poial da porta.</p> + +<p>—Tu estás doido, homem! gritou a Andreza, aos soluços.</p> + +<p>—Quem o deu tambem o podia tirar, obtemperou elle, apontando para o +ceo.</p> + +<p>—Dizes isso porque não és mãe! bradou a velha, e fez um gesto de +ameaça para o ente sobrehumano, que o marido acabava de invocar.</p> + +<p>—Então, mulher não mettas a alma no inferno! aconselhou o Manoel João, +levantando-se e cingindo-a com os braços. Depois lembrou-se de coisa +<span class="pagenum" id="Page_87">[Pg 87]</span> +muito importante, relanceou a vista em redor, para certificar-se de que +ninguem mais ficaria sabendo aquella nova desgraça, e disse a meia voz:</p> + +<p>—Sabes? Como não se encontrou o corpo do nosso José, lá se foi tambem +o collete das aguias!</p> + +<p>—O collete das aguias! Seja tudo pelo amor de Deus!</p> + +<p>E choraram outra vez, com mais força ainda.</p> + +<figure class="figcenter" id="i009" style="width: 200px;"> +<img src="images/i009.jpg" width="200" height="61" alt="decorative"> +</figure> + + +<hr class="chap x-ebookmaker-drop"> + +<div class="chapter"> + +<figure class="figleft" id="i010" style="width: 400px;"> +<img src="images/i010.jpg" width="400" height="405" alt="No topo da imagem aparece a imagem sinuosa de uma lampreia. Abaixo, uma jovem está retratada segurando um gato em seus braços, envolta com plantas e uma flor grande visíveis ao lado esquerdo."> +</figure> +</div> + +<p><span class="pagenum" id="Page_89">[Pg 89]</span></p> +<h2 class="nobreak" id="A_Lampreia">A Lampreia</h2> + + +<p>O jardim, que cingia a casa de Lili, era dividido em grandes +quadrilateros, por alamedas de camelias arborescentes. Na primavera, +as plantas dos canteiros cobriam-se d’um luxuoso manto diversamente +matisado, e nas comas das roseiras do Japão os canarios e toutinegras +davam, desde a madrugada até ao entardecer, concertos infernaes.</p> + +<p>Foi n’uma das alamedas que vi a pequenina pela primeira vez. Sentada +n’um banco, parecia indifferente aos esplendores que a cercavam, e +só tratava de segurar de encontro ao peito um grande gato branco, +enlançando-o com os braços por baixo das pernas deanteiras. O animal +supportava pachorrentamente aquella posição, incommoda na apparencia, +e tinha o resto do corpo no collo da creança, com o grande ventre, +forrado de pello macio, pendente n’uma dobra flacida, e os olhos +<span class="pagenum" id="Page_90">[Pg 90]</span> +piscos, ante o brilho intenso de um raio de sol, que, perfurando a +folhagem, vinha pôr uma nodoa clara no peito de Lili.</p> + +<p>Esta, quando o pae, o meu amigo Fernando lhe disse quem eu era, apenas +me concedeu um breve olhar obliquo, e estendeu com pouca vontade a face +ao beijo que lhe dei. De improviso o gato, ou porque sentisse mais +forte o abraço, ou porque se assustasse com a presença de um estranho, +escapou-se-lhe das mãos por um movimento rapido, e, depois de longo +espreguiçamento, foi enroscar-se voluptuosamente sobre um monte de +folhas seccas, em que o sol batia de chapa.</p> + +<p>A pequenina rompeu n’um grande choro, e mostrou ao pae um dedinho +rosado, onde começavam a gotejar alguns rubis de sangue.</p> + +<p>—Um ache, papá; o Moleque fez-me um ache!</p> + +<p>Fernando ia applicar ao gato um severo correctivo com uma varinha +que tinha na mão, porém Lili, adivinhando-lhe as intenções, chupou +rapidamente o sangue, e disse muito alegre:</p> + +<p>—Olhe, papá, não foi nada. Já passou!</p> + +<p>Assim é que ella gostava do gato branco.</p> + +<p>N’um domingo, Fernando convidou-me para jantar. Festejava-se a chegada, +a S. Miguel, de um nosso amigo commum. Andavamos os tres a passeiar +<span class="pagenum" id="Page_91">[Pg 91]</span> +pelo jardim e praticando uma soffrivel devastação nas camelias, eis que +ao passarmos em frente da sala de jantar, situada no rez do chão, fomos +detidos pelo dono da casa, que nos fez signal para que olhassemos lá +para dentro, atravez da porta de vidraça.</p> + +<p>Ainda pude ver a Lili, descendo sorrateiramente de uma cadeira +encostada ao aparador. Talvez nos presentisse.</p> + +<p>—Tem dois defeitos aquella pequena, disse-nos o pae. É gulosa e ... +nem sempre fala verdade.</p> + +<p>Continuámos no passeio, tomando eu a defesa da accusada, com o calor +que as causas más inspiram quasi sempre aos advogados.</p> + +<p>D’alli a pouco a campainha tocava para o jantar.</p> + +<p>Fiquei defronte da Lili. Reparei-lhe na physionomia e notei uma certa +inquietação: os olhos seguiam, a curtos intervallos, a direcção do +aparador, onde luzia a baixella de prata.</p> + +<p>—O que tanto lhe attrae a attenção, pensava eu, o que a fascina, são +de certo as gulodices, que resguardadas sob aquelles guardanapos de +linho finissimo, encherão os pratos collocados sobre a pedra do movel.</p> + +<p>Chega-se ao <i>dessert</i>.</p> + +<p>—Sabem que vou ter o gosto de apresentar-lhes um antigo conhecimento? +disse o Fernando.</p> + +<p>—Nosso? perguntei.</p> + +<p>—Sim, meu Luiz. Já estás nos Açores ha dois annos; ha dois annos, +portanto, que não vês um dos maiores attractivos da capital, isto é, +das montras dos confeiteiros lisboetas—uma lampreia de ovos! Fel-a +<span class="pagenum" id="Page_92">[Pg 92]</span> +a minha cosinheira, que é alfacinha. Francisco, descobre esse prato e +traze-o para a mesa.</p> + +<p>O criado fez o que lhe mandaram, e ainda mais, pois que, ao ver o +prato, abriu muito os olhos e a bocca. Não era preciso ter lido a +<i>Expressão das emoções</i> de Darwin, para se conhecer que o homem +estava no auge do espanto.</p> + +<p>E não era para menos.</p> + +<p>A lampreia lá se achava, muito enroscada, mas faltava-lhe, vimol-o +todos, faltava-lhe a cabeça! Quem lh’a decepára, tinha deixado +vestigios do attentado á borda do prato, n’uns fios de ovos e tiras +de geleia de fructa, que tomavam, ante a gravidade da situação, a +apparencia de um rasto de sangue. Horrivel permenor: um dos olhos da +victima—uma ginja em doce—jazia a um lado, viuvo da orbita!</p> + +<p>Lili empallideceu, e deixou cahir da mão a colher que empunhava, +prompta para a lucta da sobremeza, mas ia pegar-lhe outra vez, quando o +pae, deveras zangado, lhe perguntou quem tinha feito aquillo á lampreia.</p> + +<p>—Eu não sei, papae.</p> + +<p>—Sabes, sim, foste tu mesma!</p> + +<p>Lili voltou os olhos para a mãe, e não achou piedade.</p> + +<p>—A menina não foi, não senhor, murmurou quasi choramigando. Olhe, +papae, quando eu vim ás tres horas á casa de jantar, andava em cima do +aparador o gato... o Moleque... Foi elle!</p> + +<p>O pae reprimiu um sorriso.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_93">[Pg 93]</span></p> + +<p>—Ah! Foi o Moleque? Pois o Moleque pagará as custas, quando nos +levantarmos da mesa.</p> + +<p>A Lili nem sequer provou dos doces e pudins.</p> + +<p>Como não estaria aquelle pequenino coração!</p> + +<p>Depois do café, servido na sala contigua, Fernando mandou ao creado que +fosse buscar o Moleque, e disse-lhe por fim algumas palavras em voz +baixa.</p> + +<p>Decididamente a situação tomava uma gravidade excepcional. Lili +chegou-se á mãe com receio, e ficou a olhar para todos, cheia de +desconfiança.</p> + +<p>—Meus senhores, disse-nos o dono da casa, fitando muito a filha. Vamos +ser juizes n’um processo importante. Luiza accusa o Moleque de um +roubo, que é ao mesmo tempo um abuso de confiança... Ah...! Ahi chega o +criminoso.</p> + +<p>O gato acabava effectivamente de apparecer ao collo do creado. Se a +Lili se mostrava desconfiada, o Moleque apparentava a maior placidez. +Após o creado, vinha a cosinheira, uma rapariga alta, robusta e mal +encarada; trazia a mão direita escondida atraz das costas.</p> + +<p>—Temos, portanto, continuou Fernando, que o Moleque não só praticou um +roubo com abuso de confiança, mas, o que é peior, decepou a cabeça da +lampreia. Vamos julgal-o. Queiram sentar-se.</p> + +<p>Emquanto iamos tomando logares, disse-nos elle algumas palavras em +francez. Puzemo-nos ainda mais carrancudos.</p> + +<p>A creança via tudo isto com olhares attonitos.</p> + +<p>—Dize-me outra vez, ordenou-lhe o pae, que não foste tu que roubaste +<span class="pagenum" id="Page_94">[Pg 94]</span> +a lampreia! Não?... Então foi o Moleque?</p> + +<p>—Foi ... balbuciou a pequenina.</p> + +<p>—A cara é de reu, continuou Fernando, apontando para o gato, que +Francisco segurava pelas quatro patas. Os dignos jurados entendem que o +Moleque deve soffrer a pena de talião?</p> + +<p>—Sim, respondemos com voz soturna.</p> + +<p>—Condemno, pois, o Moleque a perder a vida por degolação, sentenceou +Fernando.</p> + +<p>—O quê, papae? perguntou a Lili afflicta e sem perceber bem.</p> + +<p>—Ó Maria, traz o que o Francisco lhe recommendou?</p> + +<p>—Está aqui, disse a cosinheira, passando para a frente a mão direita e +apresentando uma grande faca de cosinha, afiada e luzidia.</p> + +<p>—Pois então, corte o pescoço ao gato!</p> + +<p>Ainda não esqueci o grito da creança. N’um choro fortissimo correu para +o creado, e arrancou-lhe das mãos o gato, que fugiu espavorido. Depois, +approximando-se do pae, disse-lhe:</p> + +<p>—Fui eu, papae, fui eu que comi a lampreia. Mande cortar a cabeça da +menina!</p> + +<p>Nós, que já estavamos a rir, sentimos os olhos marejados de lagrimas.»</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>Isto foi ha tres annos.</p> + +<p>Lili, que está hoje uma senhorinha, chegou com os paes, no mez passado, +a Lisboa.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_95">[Pg 95]</span></p> + +<p>O amigo de Fernando, que me contou a historia, foi logo visital-os.</p> + +<p>Fernando, ao apresentar a filha, perguntou-lhe sorrindo:</p> + +<p>—Lembras-te do caso da lampreia? Desde então, a Lili só mentiu uma +vez ... para salvar o Moleque de um castigo merecido.</p> + +<figure class="figcenter" id="i011" style="width: 200px;"> + <img src="images/i011.jpg" width="200" height="64" alt="decorative"> +</figure> + + +<hr class="chap x-ebookmaker-drop"> + +<div class="chapter"> + +<figure class="figleft" id="i012" style="width: 400px;"> +<img src="images/i012.jpg" width="400" height="378" alt="Um homem de chapéu e paletó caminha com as mãos no bolso, olhando para baixo. Atrás dele, há três mulheres vestindo roupas longas, duas delas conversando e uma terceira parada à porta."> +</figure> +</div> + +<p><span class="pagenum" id="Page_97">[Pg 97]</span></p> +<h2 class="nobreak" id="Mau_Homem">Mau Homem</h2> + + +<p>Quando o Casimiro passava nas ruas, bamboleando-se nas pernas compridas +e em fórma de parenthesis, as mulheres da villa lançavam-lhe das +portas olhadelas de soslaio, e mais de uma, tendo cuspido para o lado, +resmungava phrases indignadas.</p> + +<p>E apenas elle se afastava o bastante para não poder ouvil-as, as +senhoras visinhas, tomando o para seu thema, davam largas á loquacidade.</p> + +<p>—Então! Já se viu um marau egual?</p> + +<p>—Tal desgraça! Parece mesmo que tem coisa ruim comsigo. Mau homem, por +força!</p> + +<p>Era até impossivel que não tivesse alguma morte ás costas. Quem sabia +lá?... Talvez tivesse. A Rosa Moniz chegou uma vez a lembrar que +podia muito bem ser elle, e não o Antonio Garcia, quem tinha morto +<span class="pagenum" id="Page_98">[Pg 98]</span> +o velho, que appareceu com a cabeça partida ao pé do forte de Santa +Catharina. Ninguem vira o Antonio fazer mal ao velho, e lá por se +lhe encontrar em casa uma camisa suja de sangue, não se devia jurar +que fosse elle o criminoso. Coitado! Se estaria a pagar as culpas de +outro?... Chamassem o Casimiro á justiça e veriam quantas testemunhas +appareceriam a accusal-o. Mas apezar d’isto—ou talvez por isto mesmo, +diziam alguns—a fortuna favorecia-o constantemente. É que nunca se +tinha visto ninguem mais feliz em negocio. Não obstante a má fama do +dono, não era só a casa de comida posta pelo Casimiro ao pé da praça, +que estava sempre cheia de freguezes; acontecia o mesmo á lojinha de +fazendas, da ilharga. Admirava que houvesse na villa tanto dinheiro +para se gastar. Verdade é que gente de fóra, de Agualva e da villa de +S. Sebastião, antes queria alli comprar, do que ir á cidade, ás lojas, +da rua da Sé, porque o Casimiro vendia tão barato como o Evangelista ou +o Bento Fartura. E tinha então um geito para aviar os freguezes! Quem +lhe entrasse na loja, sempre havia de comprar alguma coisa, o ponto era +ter dinheiro na algibeira. Ninguem melhor do que elle sabia entender-se +com qualquer comprador. Ora, por uma coincidencia que excitava pasmo +geral, aquella prosperidade tinha começado exactamente desde que a +Luiza viera de S. Miguel juntar-se com o marido e levar aquella vida de +negra.</p> + +<p>—Vejam lá o que é a justiça de Deus, em que fala tanto a padralhada! +commentava um dia o escrivão Salles, socialista e livre pensador.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_99">[Pg 99]</span></p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>A opinião das mulheres, valha a verdade, não encontrava echo na maioria +dos homens. Só um tinha tal raiva ao Casimiro, que se o visse a +afogar-se e lhe bastasse extender a mão para o salvar, ficaria quedo. +Podera! Se depois de o Casimiro pôr a loja, o José Antonio já não +vendia quasi nada, apezar de ter baixado os preços de tudo! Uma noite, +por volta das dez horas, passando elle pela porta do seu inimigo, ouviu +a Luiza a chorar. Pôz-se á escuta. A mulher começou a accusar o marido +de não se importar com ella, de estar com a Margarida, tanto que muitas +vezes depois de fecharem o estabelecimento, elle saía de casa e só +voltava tarde, á noite, a horas mortas.</p> + +<p>O Casimiro não respondia nada.</p> + +<p>O José Antonio espreitou por uma fisga da porta e viu-o a arrumar as +fazendas n’uma prateleira.</p> + +<p>A Luiza continuou:</p> + +<p>—Ah! Tu não respondes! É que não tens que responder! Pois eu um dia +pego em mim, e vou a casa d’aquella ganhoa...</p> + +<p>O Casimiro atirou ao chão com força uma peça de chita, que tinha na +mão, e voltando-se para a mulher, gritou-lhe:</p> + +<p>—Isso é que é falar! Olha que eu!...</p> + +<p>—Tu o quê! Não me mettes medo com essa cara de calhau. Talvez queiras +mandar nas minhas falas?</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_100">[Pg 100]</span></p> + +<p>A ranger os dentes, deu dois passos para a mulher.</p> + +<p>—Tu estás suffocando commigo, mas eu...</p> + +<p>—Embatucaste outra vez, porque és um albardeiro, um corsario!</p> + +<p>—Ah! Mulher, não me botes a longe, que eu perco-me por via de ti.</p> + +<p>—Não me deites esses olhos, que eu não me faço amarella. Amarella ha +de ficar a Margarida, quando eu...</p> + +<p>O Casimiro não se conteve mais tempo e agarrou a mulher por um braço.</p> + +<p>—Anda, anda lá! Olha que eu pego a gritar aqui d’el-rei! ameaçou ella.</p> + +<p>Ainda não tinha acabado estas palavras, quando a mão do marido, +batendo-lhe no alto das costas, a atirou de bruços, para o chão.</p> + +<p>—Aqui d’el-rei! Aqui d’el-rei! Quem m’acode!</p> + +<p>O José Antonio não quiz ouvir mais nada e foi de corrida buscar o +administrador do concelho, que estava alli perto, na Assembléa, a jogar +a sua costumada partida de voltarete.</p> + +<p>Apenas conheceu a voz da auctoridade, o Casimiro abriu a porta e deu-se +á prisão sem resistir.</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>No dia seguinte, ás dez horas, foi a perguntas, á casa da audiencia.</p> + +<p>O juiz, velho de cabello completamente branco e falar pausado, depois +<span class="pagenum" id="Page_101">[Pg 101]</span> +de ouvil-o, censurou-lhe, com azedume mas sem desabrimento, a baixeza +por elle praticada, em abusar da força para bater n’uma mulher, que se +lhe entregara esperando generosidade e protecção, e não violencia e +tyrannia.</p> + +<p>O preso escutou silenciosamente as palavras do juiz. A principio +conservou as sobrancelhas cerradas, e o olhar fixo n’um ponto do +sobrado, como se nenhuma attenção prestasse ao que lhe estavam dizendo. +Afinal, porém, as feições distenderam-se-lhe, um tremor convulsivo +começou de agital-o, e ao mesmo tempo que do peito lhe irrompiam os +soluços, foram-lhe as lagrimas rolando pela cara.</p> + +<p>—Bem! Bem! disse o juiz. Não se afflija. Pelo que vejo está +arrependido do que fez...</p> + +<p>Interrompendo-o com um gesto, e suffocando dentro em si o ultimo +soluço, o Casimiro começou a falar, com voz pouco perceptivel emquanto +o não arrastou o calor da narração. Se o juiz o tratasse mal, não lhe +diria nada, ou seria até capaz de uma violencia. Todavia a maneira +por que o magistrado se lhe dirigira, os conselhos que lhe dera mais +pezaroso que severo, tudo o fôra vencendo gradualmente. Pareceu-lhe que +se o tio João Furtado—o pae do Casimiro, em vez de estar enterrado no +cemiterio de Villa Franca ha muitos annos, lhe apparecesse n’aquella +occasião, usaria das mesmas falas, mas não tão bem feitas como as do +sr. juiz. Para este não queria portanto o marido da Luiza parecer um +mau homem.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_102">[Pg 102]</span></p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>Contou-lhe a sua vida toda, e o juiz quando elle acabou de falar, +apertou-lhe a mão commovido, e mandou-o embora, recommendando-lhe +prudencia.</p> + +<p>As mulheres da villa quando souberam que o Casimiro estava solto e que +não passaria trabalhos, vociferaram que tão bom era o juiz como elle. +Talvez dissessem isto, porque não ouviram o Casimiro.</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>Contou ao magistrado a sua vida: como tinha casado com a Luiza, que +n’esse tempo era a bem dizer uma pequenota, mas que, talvez sem saber, +o puzera como doido. Nem obra de feitiçaria! Estava ainda a vêl-a, no +dia em que o tio João a foi pedir em companhia do filho, responder +muito envergonhada e como se tivesse medo:</p> + +<p>—Pois elle vae, senhor! Se a minha mãe leva isto em gosto, eu tambem +levo. Não digo menos de isso.</p> + +<p>Os primeiros tempos de casados, viveram-os como se não fossem d’este +mundo. A bem dizer, aquillo era até felicidade de mais. Elle trabalhava +sem descanço o dia inteiro, fazia o seu negocio e á tarde, quando +chegava a casa, lá o estava esperando a Luiza com a ceia prompta, e +extendia ao marido os braços com tanto carinho!</p> + +<p>A desgraça foi elle ter de ir ás Furnas por causa de um negocio, que +por signal não lhe rendeu nada.</p> + +<p>Como é que a Luiza se perdeu? Como se deixou ir pelas falas do menino +<span class="pagenum" id="Page_103">[Pg 103]</span> +Diogo, filho d’aquelle sujeito que tem uma quinta muito bonita, mesmo á +entrada da villa de Lagoa, á mão direita de quem vae do lado da cidade?</p> + +<p>O marido só muito depois veiu a saber tudo.</p> + +<p>Uma visinha, a Maria do Jacintho, é que a tinha desinquietado, e uma +noite em que a Luiza foi ceiar com ella, deram-lhe uma gota de vinho a +mais...</p> + +<p>—Ah! Que se eu tivesse sabido, matava logo aquella corsaria. Se queria +perder alguem, perdesse as filhas... Mas lá essas não precisaram de que +a mãe as ajudasse!</p> + +<p>E o Casimiro, depois d’esta phrase, começou a falar outra vez +vagarosamente, quasi a custo.</p> + +<p>Nem sabia dizer ao certo como chegou a descobrir tudo.</p> + +<p>Ah! Tinham-lh’o dito. Quando entrou em casa, perguntou-o de repente á +mulher. A Luiza, colhida improvisamente, poz-se a gaguejar, mais branca +do que a cal da parede.</p> + +<p>O marido deitou-lhe as mãos ao pescoço e matava-a, matava-a com +certeza, se as visinhas, que acudiram á bulha, não lh’a arrancassem das +mãos.</p> + +<p>A pobrinha parecia morta. Chegou-se a pensar que elle a tinha afogado. +Depois foi voltando a si, olhou para todos com os olhos muito abertos e +começou a rir, a rir de tal modo, que uma das visinhas fugiu espavorida +pela porta fóra e as mais sentiram arrepios de frio por todo o corpo.</p> + +<p>A Luiza não estava boa de cabeça e poz-se a dizer que tinha morrido, +que o seu anjo da guarda a levava pelo ceo dentro, mas que os outros +anjos fugiam d’ella e não queriam vel-a sequer, porque ... porque... E +<span class="pagenum" id="Page_104">[Pg 104]</span> +desatava a rir e a chorar ao mesmo tempo, rasgando-se, atirando-se ao +chão, quando a não seguravam com força, com muita força.</p> + +<p>Esteve assim tres dias. O Casimiro não comeu nem dormiu durante +esse tempo. Ao quarto dia mandou-a para o hospital. Na vespera, de +madrugada, quando a Luiza socegava, elle esteve, vae não vae, a +matal-a, sem força para resistir á tentação. Se a tivesse mais tempo ao +pé de si, era capaz de fazer essa loucura.</p> + +<p>Desmanchou a casa e no primeiro vapor foi para a Terceira.</p> + +<p>Em Angra não fez nada. Quiz tentar fortuna na Villa da Praia e não se +arrependeu da lembrança. O juiz bem sabia como elle tinha começado o +seu negocio.</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>Quando um dia o Casimiro estava só na loja, entrou-lhe pela porta +dentro uma mulher embrulhada n’uma capa e atirou-se-lhe aos pés, +chorando muito e dizendo:</p> + +<p>—Perdoa-me, meu rico marido, perdoa-me!</p> + +<p>O primeiro impeto do Casimiro foi agarrar n’ella e atiral-a para a rua, +como um animal ruim. Mas quando, ao crescer para a Luiza, a encarou, +pareceu-lhe que estava a sonhar.</p> + +<p>Não era a mesma. Quer dizer, era a mesma, mas tão differente!... O +cabello tinham-lh’o cortado no hospital, para lhe pôrem neve na cabeça. +Os olhos sumiam-se no fundo d’umas covas negras como carvão. As faces, +d’antes tão córadas, e o corpo tão cheio antigamente, estavam só com a +<span class="pagenum" id="Page_105">[Pg 105]</span> +pelle e o osso.</p> + +<p>Como aquella desgraçada não tinha padecido!</p> + +<p>Sem se levantar do chão, agarrada ás pernas do Casimiro, dizia-lhe no +meio de gritos entrecortados:</p> + +<p>—Meu rico marido, não me deites d’aqui para fóra. Por alma de teu pae!</p> + +<p>Elle fitou-a muito tempo, poz-lhe a mão sobre a cabeça e disse-lhe:</p> + +<p>—A benção de Deus te cubra. Bem! Fica p’ra ahi.</p> + +<p>No começo a Luiza servia o marido como uma escrava. Nem a Mimosa, a +perdigueira, era mais humilde. Mas ao fim de tempo, quiz recuperar o +seu antigo logar, e desconfiada de que o Casimiro fazia pouco d’ella +por ter alguma outra mulher, queixava-se, accusava-o.</p> + +<p>Muitas vezes elle não lhe dava resposta, mas outras desesperava-se, e +como tinha genio, levantava a mão e...</p> + +<p>—Que quer V. S.<sup>a</sup>, sr. juiz? concluiu o desgraçado. Eu bem lh’o tenho +dito, mas a Luiza ainda não me entendeu: o vidro que se partiu uma vez, +por muita massa que lhe ponham, nunca mais torna a ser o que era.</p> + +<figure class="figcenter" id="i013" style="width: 200px;"> + <img src="images/i013.jpg" width="200" height="79" alt="decorative"> +</figure> + + +<hr class="chap x-ebookmaker-drop"> + +<div class="chapter"> +<figure class="figcenter" id="i014" style="width: 200px;"> +<img src="images/i014.jpg" width="200" height="41" alt="decorative"> +</figure> +</div> + +<p><span class="pagenum" id="Page_107">[Pg 107]</span></p> +<h2 class="nobreak" id="A_Licenca_Do_Domingo">A Licença Do Domingo</h2> + + +<img alt="H" class="drop-cap" height="418" src="images/drop-h.jpg" width="200"> +<p class="nind"><span class="upper-case">HAVIA</span> +já tres quartos de hora que se distribuira o rancho da tarde, no +quartel de S. João em Ponta Delgada.</p> + +<p>Os piquetes, que tinham ído levar a comida ás guardas exteriores, +vinham já de volta e encontravam-se de vez em quando com os soldados +que desciam a rua, aos grupos de dois e tres, alguns de mãos dadas +pelos dedos minimos, lançando para as raparigas, que estavam pelas +portas e janellas, uns olhares provocadores. Se estes galanteios +destoavam grandemente da apparencia pouco seductora dos D. Juans de +fardeta, nem sempre se perdiam.</p> + +<p>Dentro do quartel, nas casernas pequenas e abafadiças, tinham ficado +apenas as praças de serviço.</p> + +<p>Na da segunda companhia, em redor de uma cama onde está sentado o cabo +José, ha ainda assim grande ajuntamento, e estrugem a espaços enormes +<span class="pagenum" id="Page_108">[Pg 108]</span> +gargalhadas, que interrompem momentaneamente a cantiga, origem da +hilaridade, e chegam até a cobrir os sons da viola que o cabo, um heroe +dos <i>charambas</i>, dedilha com uma pericia incomparavel.</p> + +<p>Mas que terá o Roque, o 72, que, sem attender aos descantes, anda a +passeiar de um para outro lado, muito pensativo?</p> + +<p>É por força cousa séria.</p> + +<p>Oh! Mas o rapaz tomou certamente uma resolução, porque abriu a +caixa da roupa, tirou para fóra a fardeta, e vestiu-a, abotoando-se +cuidadosamente. Depois ageitou o bonnet na cabeça e caminhou para a +porta.</p> + +<p>—Vaes passeiar, ó Roque? perguntou-lhe o plantão?</p> + +<p>—Tu sabes se o <i>nosso primeiro</i> está no seu quarto?</p> + +<p>—Saiu ha migalhinha. Foi com o nosso sargento José Luiz passeiar á +doca.</p> + +<p>O 72 ficou de má catadura, e pareceu hesitar, mas, resolvendo-se, saiu +da caserna.</p> + +<p>—Eh! <i>Home</i>, levas uma <i>cara de calhau</i>, disse-lhe ainda o +plantão.</p> + +<p>No corredor que rodeia o claustro do antigo convento, o 72 encontrou o +impedido do capitão da segunda companhia.</p> + +<p>—Ó Francisco, o teu patrão onde está?</p> + +<p>—Alli.—E mostrou com o gesto o quarto da extremidade do +corredor.—Acabou ha um instantinho de jantar... Vão aqui dentro os +pratos vazios, disse o rapaz, enfiando o braço na aza de uma cesta que +<span class="pagenum" id="Page_109">[Pg 109]</span> +trazia na mão.—Haja saude, ó Roque!</p> + +<p>O outro foi caminhando para o logar que o impedido lhe indicara, mas +insensivelmente diminuiu o passo, e poz-se a coçar a cabeça, n’uma +grande irresolução.</p> + +<p>A porta do quarto estava fechada. O 72 pegou com medo na aldrava e +deixou-a cair.</p> + +<p>Passaram-se alguns segundos.</p> + +<p>—Talvez já cá não esteja, ia o soldado dizer comsigo mesmo, visto não +obter resposta, quando ouviu tossir da parte de dentro.</p> + +<p>Pegou outra vez na aldrava e bateu muito de leve.</p> + +<p>—Que temos? perguntou uma voz encatarroada.</p> + +<p>—V. S.<sup>a</sup> dá licença, meu capitão?</p> + +<p>—Entre quem é.</p> + +<p>—Sou eu, meu capitão ... disse o 72, entrando e tirando o +<i>bonnet</i> com um movimento rapido e desgeitoso, mal viu o official +de cabeça descoberta.</p> + +<p>No quarto de inspecção, pequeno e acanhado, havia um forte cheiro a +comida e a fumo de tabaco.</p> + +<p>O capitão, sentado n’uma cadeira de palhinha, tosca e despolida, tinha +os cotovellos encostados á mesa e lia um jornal de Ponta Delgada, +o <i>Echo Michaelense</i>, tomando a espaços longas fumaças de um +cachimbo de escuma, muito queimado.</p> + +<p>Com os calcanhares unidos, os olhos um pouco esgazeados, os beiços n’um +ligeiro tremor, o soldado não se atrevia a falar.</p> + +<p>—Que demonio queres tu? perguntou-lhe o capitão Saraiva, ao cabo de +<span class="pagenum" id="Page_110">[Pg 110]</span> +algum tempo e sem interromper a leitura.</p> + +<p>—Eu, meu capitão? Saiba V. S.<sup>a</sup> que me custa muito vir incommodar a V. +S.<sup>a</sup>...</p> + +<p>—Mau! Despacha-te! Nunca vocês sabem dizer as cousas por claro. Que +diabo de gente, estes ilheus! E batendo com a mão sobre o jornal, +voltou a cabeça para o soldado, medindo-o com o olhar.</p> + +<p>—Elle é verdade meu capitão, mas é que ás vezes <i>assuccede</i> a um +<i>home</i> cada uma...</p> + +<p>—Ou te explicas, ou marchas n’um prompto para a caserna! disse o +capitão, com voz irritada. Levantou-se, poz o bonnet na cabeça, puxou o +collete para a cintura, mettendo para baixo do cóz das calças a dobra +da camisa que estava saliente, e abotoou o raglan, inferiormente ao +qual appareciam as borlas da banda, distinctivo usado no batalhão pelos +officiaes de serviço.</p> + +<p>—Saiba V. S.<sup>a</sup>, meu capitão—começou o 72, dando com as mãos muitas +voltas ao bonnet,—que esta tarde, antes do rancho, eu tinha ido alli +abaixo, ao largo da Matriz...</p> + +<p>—Que tenho eu com isso?</p> + +<p>—E vae d’ahi, topei com a Rosa, uma rapariga da minha freguezia, e ... +o que me ha de ella dizer? Que hontem á noitinha, quando meu pae ia +recolhendo ás Féteiras...</p> + +<p>—Tu és das Féteiras? Aquelle logar que fica no caminho para as Sete +Cidades?</p> + +<p>—Saiba V. S.<sup>a</sup> que sim... Ao descer uma canadinha, escorregou dos +pés e foi-se abaixo, batendo com o corpo nos calhaus. O pobre do +<i>hóme</i> é velho e d’ahi a quéda deu-lhe uma volta ao interior. +<span class="pagenum" id="Page_111">[Pg 111]</span> +Parece que está mesmo a decidir.</p> + +<p>Estas ultimas palavras foram acompanhadas por um choro meio suffocado.</p> + +<p>—Bem! E que queres tu então? perguntou o official, com menos rispidez.</p> + +<p>—Se V. S.<sup>a</sup> me desse licença, eu pegava em mim e ia vêl-o.</p> + +<p>—Ás Féteiras? Tira o cavallo da chuva! Porque não pediste a licença +antes do toque da ordem? Não sabes que o batalhão tem pouca força, e +que é preciso fazer escolha nas praças que pedem para ir no domingo á +terra?</p> + +<p>—Saiba V. S.<sup>a</sup> que sei, mas áquella hora ainda não me <i>haveram</i> +dito nada, e como faz hoje oito dias que eu tive licença...</p> + +<p>—Sabias que não a apanhávas.</p> + +<p>—Mas agora, se V. S.<sup>a</sup> me fizesse essa esmola... O pobre do velho +está, vae não vae, a ir para Nosso Senhor, e eu sem lhe poder valer!... +A voz do soldado, entrecortada novamente pelos soluços, pronunciou mais +algumas palavras inintelligiveis.</p> + +<p>O capitão, meio zangado, meio condoido, passeiava pelo quarto, com o +cachimbo a um canto da bocca, e as mãos mettidas nos amplos bolsos das +calças de cutim. O 72, cabisbaixo, seguia-lhe os movimentos com um +olhar obliquo e prescrutador.</p> + +<p>—Dar-se-ha o caso de que tu estejas a embaçar-me, grande maroto? +perguntou de subito o official, fitando muito o soldado.</p> + +<p>—Eu! disse este, cheio de susto. Se minto, mais negro seja que o +carvão!</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_112">[Pg 112]</span></p> + +<p>—Eu sei lá! Vocês todos são frescos. Quem me déra para cá os meus +trinta e cinco annos de serviço, para me livrar da maldita massada de +atural-os! Mentiste ou não mentiste?</p> + +<p>—Isto é que se chama! Pergunte o meu capitão á Rosa.</p> + +<p>—Teu pae, então, está a morrer?</p> + +<p>—A modos que sim, senhor. A dôr de dentro não o larga. Se não foi isto +o que a Rosa me disse, abram-me a cabeça com um calhau!</p> + +<p>O soldado continuava a praguejar, em quanto o capitão, sem interromper +o passeio, se recordava do que lhe tinha acontecido, havia já um bom +par de annos, estando elle no Porto, em sargento do 18. Chegou-lhe de +Braga uma carta, participando-lhe que a mãe se achava em perigo de +vida. Pediu licença immediatamente, mas como a ordem tardasse em vir do +quartel general, quando chegou a casa, já a sua <i>velhinha</i> estava +enterrada.</p> + +<p>—Pode acontecer o mesmo a este pobre diabo, pensava o capitão. Por +fim, decidindo-se, parou, tirou o cachimbo da bocca e disse com muita +intimativa ao soldado:</p> + +<p>—Pois muito bem! Vocemecê vae hoje para a sua terra... É verdade! Não +entras de serviço amanhã?</p> + +<p>—Entro de fachina, mas o 12, que é meu camarada e <i>está de nada</i>, +fica por mim, se V. S.<sup>a</sup> der licença.</p> + +<p>—N’esse caso vae e volta ámanhã á noite, antes do toque.</p> + +<p>A cara do 72 alegrou-se, sem comtudo se desannuviar completamente.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_113">[Pg 113]</span></p> + +<p>—Se V. S.<sup>a</sup> me deixasse, eu voltava na segunda feira.</p> + +<p>—É isto! Querem logo tudo! Bom! Voltas depois de amanhã, antes do +rancho. Serve-te?</p> + +<figure class="figcenter" id="i015" style="width: 700px;"> + <img src="images/i015.jpg" width="700" height="821" alt="Dois homens estão conversando no interior de um edifício. O homem à esquerda, veste um uniforme militar e tem um chapéu na mão. O homem à direita usa um chapéu miliar e tem as mãos nos bolsos."> +</figure> + +<p>—Seja pela sua saude, meu capitão! Nosso Senhor é que lhe ha de pagar +uma coisa d’estas.</p> + +<p>—Vocês ainda me compromettem com o nosso commandante. Anda, põe-te ao +fresco!</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_114">[Pg 114]</span></p> + +<p>O soldado rodou sobre os calcanhares, depois de fazer a continencia e +dirigiu-se para a porta. Ia já a sair, quando o capitão o chamou.</p> + +<p>—Olha lá!</p> + +<p>—Prompto, meu capitão!</p> + +<p>—Tu... O official hesitou no que ia dizer, depois, lembrando-se de +outra cousa: Pediste licença ao primeiro sargento para vir falar-me!</p> + +<p>—Saiba V. S.<sup>a</sup> que elle saiu a passeio.</p> + +<p>—Mau!... É verdade! Tu sabes se os ovos na tua terra estão baratos?</p> + +<p>—Tiram-se a seis por um pataco.</p> + +<p>—Pois traze-me umas tres duzias; cá na cidade só pesados a ouro... +Depois te dou o dinheiro.</p> + +<p>—Não faz <i>moléste</i>, meu capitão.</p> + +<p>—Bom, vae-te embora e dize ao sargento que tens licença.</p> + +<p>—Sim, senhor, meu capitão.</p> + +<p>E saiu.</p> + +<p>O rosto brilhava-lhe de alegria. N’um abrir e fechar de olhos, foi +á caserna, despiu a fardeta, vestiu um casaco á paizana, que já +tinha antes de sentar praça e descalçou-se. D’ahi a pouco estava +fóra do quartel, e descia apressadamente a rua de S. João, receioso +de que ainda lhe tirassem a licença. Acompanhava-o a competente +<i>vardasquinha</i>, isto é, um valente bordão capaz de matar um homem. +Dez minutos mais tarde saía de Ponta Delgada, pelo lado occidental.</p> + +<p>Quando deixou de encontrar gente, e viu diante de si a estrada quasi +deserta, bordejada por paredes caiadas de branco, algumas encimadas +pelas comas do arvoredo, parou por instantes, e poz-se a rir +<span class="pagenum" id="Page_115">[Pg 115]</span> +maliciosamente:</p> + +<p>—Tinha embaçado o capitão!</p> + +<p>O pae estava tão doente, como elle. Pelo menos, ainda no ultimo domingo +o tinha deixado na freguezia, são e escorreito.</p> + +<p>—Fiou-se no que eu lhe disse! pensou. Queira Deus não venha a +descobrir! O que me vale é não haver lá na companhia mais rapazes das +Féteiras.</p> + +<p>Foi andando.</p> + +<p>—Por fim de contas não era <i>coisa ruim</i> o que tinha feito. No dia +seguinte festejava-se o Espirito Santo, na freguezia. Havia imperio e +bôdo. Faltar, era até um peccado! Se falasse verdade, não lhe davam +licença. Por ter dito que o pae adoecera, não o fazia ir para a cama. O +velho estava ainda esperto e rijo. Podia caír á vontade, que não morria +ás primeiras. Tinha hombros largos, pescoço curto, e a cara, embora um +pouco enrugada, estava sempre vermelha, que se podia ver. Mettia no +canto a muitos rapazes, o <i>ti Jaquim</i>.</p> + +<p>O Roque avançava que era uma maravilha!</p> + +<p>A estrada ia mudando de aspecto. Á direita extendiam-se largas campinas +escuras, subindo gradualmente até acabarem nas collinas, que limitam o +horisonte; á esquerda começa a ribanceira, cujo sopé vae terminar na +costa meridional de S. Miguel em declives abruptos. De cá de cima, em +alguns pontos, avistam-se grandes extensões da praia, que offerece ao +mar uma larga concavidade, onde se desenrola um vasto lençol de espuma.</p> + +<p>Para o lado da cidade vinha um cantoneiro.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_116">[Pg 116]</span></p> + +<p>—Haja saude, tio João de <i>Mideiros</i>.</p> + +<p>—Haja saude, Roque. Vaes a casa?</p> + +<p>—Vou. Esteve lá em baixo hoje?</p> + +<p>—Não. Quem para lá voltou agora, foi o sr. dr. Luiz, que já vinha a +caminho da cidade.</p> + +<p>—Voltou? Para quê?</p> + +<p>—Para acudir a um homem, que teve <i>uma coisa</i> esta tarde. Veiu um +rapaz, o José, chamal-o de <i>galão</i> ... montado, por signal, n’um +burro.</p> + +<p>—E a quem deu o mal?</p> + +<p>—Não sei. Não tive tempo de perguntar ao José, porque elle voltou +logo, mais o sr. doutor. Aquillo é que é a bondade em pessoa, o sr. +doutor! Fosse outro, que bem se importava!...</p> + +<p>—Talvez o doente seja homem rico...</p> + +<p>—Pode que seja. O que te sei dizer é que o sr. dr. Luiz pegou em si e +voltou para traz. Eu, como não era ouvido nem chamado no caso...</p> + +<p>—Quem será?</p> + +<p>—Haja saude, Roque.</p> + +<p>—Haja saude, tio João de <i>Mideiros</i>.</p> + +<p>Estugou o passo.</p> + +<p>—Quem seria o individuo? Talvez algum velho. Certamente o sr. padre +Francisco!... Já no verão passado tinha tido um ar de <i>poplexia</i>. +Antes seja outro—pensava o Roque—senão como se ha de fazer amanhã a +festa do Senhor Espirito Santo?...</p> + +<p>Ao lusco fusco chegava ás primeiras casas do logar, situadas no alto da +encosta, que vae descendo até á egreja. Olhou lá para baixo e sentiu a +mesma impressão, que tivera ao voltar á freguezia, depois de passar no +batalhão os primeiros quinze dias.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_117">[Pg 117]</span></p> + +<p>Durante aquellas duas semanas andou no quartel a chorar pelos cantos, +ralado de saudades. Saía para espairecer as magoas, corria as ruas da +cidade, parava espantado em frente das lojas, como de antes fazia, +quando vinha da freguezia comprar algum fato, ou por amor da festa do +senhor Santo Christo. Mas voltava para o quartel, ia para a caserna, e +amarrava-se a um canto, sem ao menos ouvir as cantigas tão engraçadas +do cabo José. A sua consolação, uma vez por outra, era tirar do bahu a +<i>charamela</i>, que tocava nas Féteiras, e repetir as modinhas que +lhe tinham ensinado por lá. Parecia-lhe então que a caserna, os cabides +de que pendiam os uniformes e as mochilas, os armeiros, e tudo o mais +ia desapparecendo, desapparecendo, e que via na sua frente a egreja da +freguezia, com a casa do <i>imperio</i> do outro lado da estrada; quasi +que até ouvia o sino a tocar para a missa!... Uma vez, esteve quasi a +dar um grito, porque se lhe afigurou que a Maria do tio Thomaz passava +ao pé d’elle, por signal com um vestido de chita clara e um lenço de +seda muito bonito!...</p> + +<p>Os outros soldados diziam que o rapaz dava em maluco.</p> + +<p>Mas o que o fez pasmar, foi que na primeira vez em que esteve de +licença na terra, não sentiu a alegria que esperava.</p> + +<p>De longe, tudo lhe parecia melhor.</p> + +<p>Até a casa, tão pequena e pobresinha, que elle julgava preferivel á +caserna, afinal de contas era muito peior.</p> + +<p>Um completo desengano.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_118">[Pg 118]</span></p> + +<p>Mas agora não se demorou a pensar n’isto, e foi descendo a passos +largos em direcção á casa do pae, que ficava mesmo á ilharga da egreja.</p> + +<p>Quando passou pela venda, teve tentações de perguntar quem tinha +adoecido, mas não quiz demorar-se e foi andando para diante.</p> + +<p>—Se estava <i>deserto</i> por chegar!</p> + +<p>A curta distancia de casa passou por elle o carro do doutor, produzindo +estalidos seccos no macadam da estrada.</p> + +<p>Vinha do lado da egreja, do sitio onde morava o padre Francisco.</p> + +<p>—Não é outro o doente, pensou o 72.</p> + +<p>N’isto achou-se ao pé de casa.</p> + +<p>Uma coisa lhe fez admiração.</p> + +<p>—Que claridade era aquella que saía atravez da porta mal fechada? Não +podia ser da candeia, que a mãe accendia todas as noites.</p> + +<p>E pareceu-lhe ouvir chorar!...</p> + +<p>—Enganava-se por força.</p> + +<p>Empurrou a porta, e logo estacou, boquiaberto, com um arrepio por todo +o corpo, os cabellos em pé.</p> + +<p>No fundo, deitado sobre a cama e um pouco voltado para a porta, estava +um homem, já velho, o olhar envidraçado, a cara amarellenta e a bocca +repuxada para uma banda. Era o corpo de um defuncto!</p> + +<p>Sentadas sobre uma caixa, tres mulheres soltavam ais, assoando-se a +miude, e dizendo por entre soluços:</p> + +<p>—Louvado seja Nosso Senhor!...</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_119">[Pg 119]</span></p> + +<p>Uma d’ellas, a mais velha, quando deu com os olhos no 72, levantou-se e +foi para elle a gritar:</p> + +<p>—Ai! Meu rico filho, que já não tens pae!</p> + +<p>O Roque bem tinha reconhecido o cadaver, mas attonito, estupido, não +queria acreditar nos seus olhos.</p> + +<p>Quando ouviu a mãe, desenganou-se; começou n’um berrar destemperado, e +atirou-se para o chão, onde estrebuchou muito tempo, arrepellando-se e +gemendo sempre:</p> + +<p>—Matei o meu pae! Matei o meu pae!</p> + +<p>A mãe voltou para junto das companheiras. Uma d’estas segredou á outra:</p> + +<p>—O rapaz está variado!</p> + +<p>Levantou-se, e com o queixo a bater e todo o corpo n’um tremor +convulsivo, foi sentar-se para um canto.</p> + +<p>Só á terceira vez é que poude encarar com o defuncto.</p> + +<p>Mettia pavor, á luz amarella dos cyrios.</p> + +<p>Sem fazer bulha, o Roque fugiu de casa e foi sentar-se á porta da +egreja. Lá esteve toda a noite a soluçar:</p> + +<p>—Matei o meu pae! É castigo de Nosso Senhor!</p> + +<figure class="figcenter" id="i016" style="width: 200px;"> +<img src="images/i016.jpg" width="200" height="79" alt="decorative"> +</figure> + + + + +<hr class="chap x-ebookmaker-drop"> + +<div class="chapter"> +<figure class="figcenter" id="i017" style="width: 1200px;"> +<img src="images/i017.jpg" width="1200" height="661" alt="Dois homens armados com rifles estão posicionados à esquerda, escondidos atrás de uma formação rochosa, mirando e disparando contra um grupo de pessoas em um rio. Neste rio, há pequenas embarcações transportando mercadorias e pessoas."> +</figure> +</div> + +<p><span class="pagenum" id="Page_121">[Pg 121]</span></p> +<h2 class="nobreak" id="O_Contrabando">O Contrabando</h2> + + +<img alt="T" class="drop-cap" height="389" src="images/drop-t.jpg" width="200"> +<p class="nind"><span class="upper-case">TARDE</span> de inverno.</p> + +<p>As vagas frisam-se de espuma, e correm umas após outras de encontro +á costa. Da banda do oceano, grandes massas de nuvens pardacentas +orladas de branco, sobrepujam o horisonte,—quaes legiões que alli +estivessem de reserva, promptas para arremetter á voz da tempestade. +As aves aquaticas, aos pios e grasnidos, approximam-se de terra, e +emquanto umas traçam na atmosphera largas curvas, outras, embaladas +pela onda, descançam na agua, d’onde ás vezes se levantam desprendendo +as azas, em que parece librarem-se a custo, para irem saltitar pelas +cristas espumosas, de pescoço estendido á cata de peixe. O vento humido +e carregado de emanações salinas, investe com a riba alcantilada, +percorre-a velozmente, curvando os enfézados arbustos e erguendo +<span class="pagenum" id="Page_122">[Pg 122]</span> +nuvens de poeira, que remoinham até se dispersarem na campina superior.</p> + +<p>Em frente da casa dos guardas de alfandega, alçada no sopé dos +rochedos, um homem trigueiro, alto, de apparencia militar, alonga a +vista ao de cima das aguas, e olha com persistencia para o perfil +escuro de um morro, que ao longe, muito para a direita, fecha o +horisonte terrestre, com grande crueza de tons. A ventania sacode-lhe +incessantemente o capote e obriga-o a fechar os olhos de instante a +instante.</p> + +<p>No mar divisa-se muito ao largo uma vela, uma só: mas o guarda antevê +perigo imminente, e mal comprehende que o deixassem alli com um unico +companheiro, armados ambos de espingardas detestaveis, quando os +contrabandistas pódem ser muitos, e hão de trazer por certo bellas +carabinas, que nunca erram fogo e que dão tres ou quatro tiros, em +quanto as armas antigas a custo disparam um só.</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>A lancha, mal a noite acabou de fechar, largou de bordo carregada de +tabaco, e navegou para terra cautelosamente. Os remos cahiam na agua +ao mesmo tempo e rasgavam sem bulha o flanco das ondas. Dois outros +maritimos, de sueste enterrado na cabeça, acompanhavam os remadores e +tinham perto de si, á cautela, duas carabinas americanas. Partira da +barca uma segunda lancha, que devia correr perigos eguaes, até se haver +passado todo o contrabando—umas duzentas caixas de tabaco.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_123">[Pg 123]</span></p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>O João Luiz, o guarda, hesitava em recolher-se na casa de abrigo, +apezar do frio. A denuncia tinha sido clara. Perto d’alli, na pequena +enseada onde o mar é quasi sempre socegado, deviam desembarcar as +caixas de tabaco. Lá estavam doze guardas. Como, porém, junto da casa +tambem se saltava sem difficuldade, o chefe fiscal tinha mandado +guardar o posto pelo João Luiz e pelo Vicente. Não havia ninguem fóra +de serviço.</p> + +<p>De repente o João Luiz pensou no Estacio e estremeceu.</p> + +<p>Elle bem tinha dito muita vez ao irmão que se desgraçava continuando a +ser contrabandista, e que um homem casado e pae de dois filhos não deve +arriscar a sua vida por um boccado de dinheiro. Palavras perdidas.</p> + +<p>O Estacio era teimoso e não largava já o modo de vida, a que se +dedicara. Parecia, a bem dizer, uma tentação. Que lhe importava o ser +mal visto pela gente da alfandega, se em poucas horas ganhava o que +muitos outros não faziam com mezes e mezes de trabalho ao sol e á +chuva? E o caso é que o Estacio andava bem vestido, trazia a mulher e +os filhos que se podiam ver, e ainda ultimamente tinha comprado uma +mobilia americana, e um relogio de parede com uma caixa mais luzidia +que a prata.</p> + +<p>O proprio perigo offerecia-lhe attractivos singulares. Ás vezes, +<span class="pagenum" id="Page_124">[Pg 124]</span> +durante as noites de trabalho, elle bem pensava que podia levar, quando +mal se precatasse, com uma bala e não tornar a ver a mulher nem os +filhos, principalmente o mais mocinho, o Manuel, de quatro annos, tão +louro e tão rosado, que parecia tal qual um menino Jesus. Mas as ideias +sombrias passavam rapidas, e o Estacio scismava logo depois que poderia +vir a ter um predio, muitos predios, como alguns senhores enriquecidos +d’aquelle modo, que nem por isso eram menos estimados por toda a gente. +Pelo contrabando ganhava o pão da sua familia e ganhava-o com risco de +vida, o que já não era tão pouco!</p> + +<p>Um dia esteve quasi a brigar com o João Luiz, por este lhe dizer que +o contrabandista é um ladrão como qualquer outro, visto que rouba +o Estado e vae contra as leis; mas por fim soltou uma gargalhada e +respondeu-lhe que lá a roubar o Estado ninguem levava as lampas aos +empregados publicos, uns mandriões que passam vida regalada e que +recebem no fim de cada mez uma mão-cheia de dinheiro. Ladrões esses!</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>Noite fechada, principiou a soprar um vento mais frio. O João Luiz +ageitou-se melhor no capote e encolheu-se a um canto da rocha, de onde +se avistava bem o mar, até á costa. Passara-se uma hora ou mais talvez, +quando elle, que á força de estar attento via já tudo indistincto e +como que a apagar-se, julgou sentir bulha do lado da agua. Ia para +<span class="pagenum" id="Page_125">[Pg 125]</span> +erguer-se, mas logo mudou de tenção; foi de rojo até á porta da casa +e chamou em voz baixa o Vicente. Tornado ao mesmo sitio, conheceu +claramente que andava perto um bote.</p> + +<p>—Serão contrabandistas ou pescadores? murmurou ao ouvido do outro +guarda, que tinha vindo postar-se ao lado d’elle, tambem com a +espingarda engatilhada, para o que desse e viesse.</p> + +<p>Mas não podiam fazer assim fogo, á falsa fé, detraz de um rochedo, como +o ladrão que espera um homem e o mata para roubar. Teve este pensamento +e sem importar-se com as ordens recebidas bradou:</p> + +<p>—Quem anda ahi?</p> + +<p>Não teve resposta. Repetiu a pergunta. O mesmo resultado. Ainda +duvidoso, e para certificar-se ou intimidar os tripulantes do bote, +disse com voz mais forte:</p> + +<p>—Vocês são mudos?! Talvez uma bala os obrigue a falar.</p> + +<p>Do bote partiram dois clarões repentinos.</p> + +<p>Uma das balas tirou uma lasca de pedra, ao pé do Vicente.</p> + +<p>—Ah! Grandes ladrões, esperem lá! gritou o João Luiz e ambos os +guardas, com as armas descançadas na rocha, desfecharam ao mesmo tempo, +quasi instinctivamente.</p> + +<p>Do lado do mar pareceu-lhes que viera um gemido, mas, passada a +obcecação momentanea produzida pelos clarões, já não enxergaram a +embarcação.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_126">[Pg 126]</span></p> + +<p>O silencio da noite era quebrado tão sómente pelo arfar do oceano junto +á rocha.</p> + +<p>O estampido fez com que chegassem, em acto continuo, o chefe fiscal e +os doze guardas.</p> + +<p>A denuncia tinham-a dado provavelmente os mesmos contrabandistas, +marcando para outro sitio o desembarque, a fim de desnortearem a gente +da alfandega.</p> + +<p>O chefe zangou-se muito, por deixar de se fazer a tomadia, mas a +final cahiu em si e absolveu o guarda, pela consideração de que +contrabandistas de tanta audacia não se venceriam ás primeiras. Demais, +o perigo tinha-lhe merecido sempre um especial desagrado.—Duas horas +depois dormia em casa a somno solto.</p> + +<p>O João Luiz esteve de serviço toda a noite.</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>Rompeu formosa a manhã immediata.</p> + +<p>Quando o guarda se recolhia a casa, o sol já ia alto e lançava myriades +de setas de oiro atravez da atmosphera, lavada pela chuva dos dias +anteriores. O mar, á direita, encrespava-se em ondas curtas, e alongava +na praia linguas de espuma.</p> + +<p>Quasi ao entrar na Horta o João Luiz avistou no areal, á borda da +agua, um grupo de homens a rodear curiosamente o que quer que fosse. +Chegaram-lhe simultaneamente aos ouvidos, uns gritos de mulher.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_127">[Pg 127]</span></p> + +<p>Approximou-se e viu um cadaver extendido na areia.</p> + +<p>Reconheceu o Estacio.</p> + +<p>No peito, que a camisa aberta e ainda molhada deixava a nu, havia um +buraco pequeno, redondo, negro, de onde gotejava um tenue filete de +sangue.</p> + +<p>A mulher do contrabandista, de joelhos ao pé do marido, soltava +gritos penetrantes, arrepellava o cabello e cahia de vez em quando +desamparada sobre o cadaver, em cujo rosto se desenhava constantemente, +persistentemente, a grande ancia que precedera a morte e que a morte +não pudera apagar.</p> + +<p>A infeliz cahiu finalmente n’uma atonia profunda, e sentou-se na areia, +sem despegar os olhos de cima do morto, e murmurando no meio de um +tremor:</p> + +<p>—Ai! O meu rico marido! O meu rico marido!</p> + +<p>Ao pé da mãe o <i>Manilinho</i> chorou em quanto a viu chorar. Depois, +quando ella socegou, approximou-se do pae, poz-lhe as mãosinhas na +cara, e disse a medo, muito admirado:</p> + +<p>—Como o pae está frio! E sempre a dormir!</p> + +<p>O guarda, horrorisado de si mesmo, pois fôra talvez a bala da sua +espingarda que tinha morto o irmão, olhava para o pequenino, e ao vel-o +tão innocente e tão divinal, levantou os olhos para o ceo, e perguntou +porque seria que Deus, mandando á terra anjos como aquelle, os não +deixava fazer milagres.</p> + +<figure class="figcenter" id="i018" style="width: 200px;"> + <img src="images/i018.jpg" width="200" height="56" alt="decorative"> +</figure> + + +<hr class="chap x-ebookmaker-drop"> + +<div class="chapter"> +<figure class="figcenter" id="i019" style="width: 1000px;"> +<img src="images/i019.jpg" width="1000" height="806" alt="No centro, um homem está sentado, curvado, com o rosto apoiado nas mãos. Um cachorro está ao seu lado, de pé, olhando para ele. À esquerda estão dois viajantes, com trouxas e cajados. A cena mostra uma paisagem rochosa e montanhosa ao fundo."> +</figure> +</div> + +<p><span class="pagenum" id="Page_129">[Pg 129]</span></p> +<h2 class="nobreak" id="Piloto">Piloto</h2> + + +<img alt="J" class="drop-cap" height="430" src="images/drop-j.jpg" width="200"> +<p class="nind"><span class="upper-case">JÁ</span> +vinha anoitecendo, quando o Sergio, de pé descalço e com a trouxa da +roupa enfiada n’um cajado e pendente do hombro, saltou da estrada para +a rocha.</p> + +<p>Sobre o horisonte occidental as nuvens, em longas fitas franjadas, +perderam a claridade vivissima de um quarto de hora mais cedo, e tomam +uma côr plumbea esbranquiçada: pelo resto do ceo alastra-se um azul +uniforme, que a diminuição de luz vae tomando mais opaco.</p> + +<p>Convencido de que ninguem o vigiava, foi descendo a escarpa de rocha +<span class="pagenum" id="Page_130">[Pg 130]</span> +em direitura ao mar, onde se avistava, muito ao longe, um navio, com as +velas pandas de vento.</p> + +<p>—Se alguem me viu é que está o diabo, pensou o rapaz, e novamente +lançou a vista pela ribanceira acima, e pela enfiada dos pincaros, +que recortavam lá muito no alto, sobre o azul, o seu perfil dentado e +sombrio.</p> + +<p>Áquella hora, a estrada é pouco frequentada. Só de vez em quando lá +passam tres ou quatro trabalhadores, que foram dar o dia á Horta, e que +voltam para casa, a bom andar, antegostando a ceia, só de avistarem uma +ou outra chaminé lançando pachorrentamente, para a limpidez do ar, uma +espiral de fumo.</p> + +<p>O Sergio, depois de olhar por muito tempo, a ponto de os objectos +fixados se lhe tornarem quasi indistinctos, poisou no chão a trouxa, +onde vinha toda a sua roupa e um bôlo torrado rescendendo a milhã +cheirosa, e sentou-se com os pés muito perto da agua, que chapinhava +brandamente no interior da pequena angra formada, n’aquelle sitio, +pelos rochedos da costa sueste do Fayal.</p> + +<p>E tempos sem fim, com os olhos fitos em o navio, que bordejava a boa +distancia de terra, ficou absorto no meio d’aquelle grande silencio, +esperando pela canoa, que havia de leval-o a occultas para bordo da +baleeira, conforme tinha tratado com um <i>senhor da villa</i>.</p> + +<p>Sem saber como, foi perdendo a grande resolução que trazia de +embarcar, para fugir ao recrutamento e não ir para a Terceira, para o +<i>Castello</i>.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_131">[Pg 131]</span></p> + +<p>Obedecia tambem a outra razão: na baleeira ia ter á America, á +<i>Calafóna</i>, onde tinha enriquecido o Luiz Garcia, e aquelle senhor +já velho, dono de uma casa de sete janellas ao pé da egreja da Féteira, +e tantos outros!</p> + +<p>Nada! O Sergio estava bem decidido, tanto que viera para alli, depois +de dar um abraço na mãe e outro no irmão, mais novo do que elle dois +annos.</p> + +<p>Por isso mesmo não era capaz de saber o motivo por que sentia uma ancia +no peito, um aperto na garganta, e tanta vontade de chorar.</p> + +<p>Talvez fosse porque a mãe o não tinha acompanhado até ali, para +despedir-se.</p> + +<p>—Ora! Se foi justamente para a coisa não dar tanto nas vistas! Um +visinho não lhe queria bem e podia ir participar á <i>villa</i>. Ha +gente tão má!...</p> + +<p>Mas, fosse o que fosse, o rapaz sentia-se a modos exquisito, e estava +já a pedir que apparecesse quanto antes a canôa.</p> + +<p>O que havia de lembrar-lhe agora!...</p> + +<p>Todas as historias que lhe tinham contado das baleeiras: a de um +capitão que moía a tripulação a pontapés e chicotadas. Um dia o +cosinheiro respondeu-lhe com uma bofetada, que o estirou no convez. +Foi logo mandado pôr a ferros, e nunca mais ninguem o viu. Contavam +depois os de bordo, que tinha sido cosido a facadas pelo commandante, e +atirado pela borda fóra.</p> + +<p>—Mentiras, disse por entre dentes o Sergio, e poz-se a olhar para o +mar, a ver se lobrigava a canôa.</p> + +<p>Não viu nada.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_132">[Pg 132]</span></p> + +<p>—Dando se mal na baleeira, desembarcava em <i>Béteféte</i><a id="FNanchor_1" href="#Footnote_1" class="fnanchor">[1]</a>, e havia +de ir parar á <i>Calafóna</i>, onde o ouro é tanto, que até se cava com +o sacho!</p> + +<p>Mas n’esta occasião lembrou-se de uma coisa, que o Luiz Garcia lhe +dizia ás vezes—que por cada um que voltava vivo, ficavam por lá +muitos, mortos sem se saber de que, se de fome, se de cansaço...</p> + +<p>—Pois sim! Apesar d’isso vão de todas essas ilhas navios carregadinhos +de gente para a America. Mal feito fôra não ir eu tambem, concluiu o +Sergio.</p> + +<p>Ouviu-se a curta distancia um latido, e logo depois um cão pequeno, de +pello curto, corria para junto do Sergio, muito festeiro, muito alegre.</p> + +<p>—Olha o Piloto! Vae-te d’aqui, diabo!</p> + +<p>E deu-lhe um pontapé, que o animal evitou fugindo-lhe com o corpo. Mas +d’alli a um instante já voltava, caracolando-se.</p> + +<p>—Txeta, <i>Caim</i>! exclamou o Sergio mais zangado ainda, e atirou +uma pedra ao cão, acertando-lhe n’um vasio.</p> + +<p>O Piloto, ganindo e de cabeça baixa, subiu a rocha, deitou-se no cimo +e poz-se a espreitar o dono, com o focinho extendido sobre as patas, e +os olhos fulvos brilhando na meia obscuridade, como dois carvões mal +apagados.</p> + +<p>—Admira que viesse dar commigo! pensava o Sergio, sentando-se de novo. +Se o tinha fechado no palheiro!...</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_133">[Pg 133]</span></p> + +<p>Insensivelmente foi voltando ás idéas de momentos antes.</p> + +<p>Mas com essas vinham outras...</p> + +<p>Sim! Quando o cão fosse d’alli para casa, havia de empurrar a porta com +o focinho, e se não a podesse abrir, ficaria a raspar com as unhas até +que apparecesse alguem, como tinha feito ainda na vespera, ao tornar +com o dono da <i>folga</i> do José Pedro.</p> + +<p>—Mas esta noite volta sósinho!</p> + +<p>E a este pensamento o Sergio sentiu a garganta apertar-se-lhe ainda +mais, porque se lembrava de que a pobre mãe teria a mesma idéa e havia +de chorar pelo filho, que já andaria a essa hora sobre as aguas do mar.</p> + +<p>Para esquecer-se, começou a recordar-se da <i>folga</i>, onde tinha +bailado com a Anna cinco <i>chamaritas</i> a fio, a ponto de o José +Pedro, já de mau modo, dizer o costumado «Caras novas ao terreiro!»</p> + +<p>Era boa rapariga a Anna. Quando o vigario da Féteira os via juntos a +conversarem, dizia-lhes por graça: «A modo que vocês ainda me hão de +dar que fazer lá na egreja.»</p> + +<p>Um e outro ficavam encarnados como uns pimentões, mas não queriam mal +ao sr. padre por <i>entícar</i> com elles. Se andava sempre com o +<i>canîcînho</i> na agua!...</p> + +<p>Lembrou-se depois de que a Anna, apesar do que lhe tinha promettido, +podia cansar-se de esperal-o e casar com outro, por julgar que elle, +colhendo-se á solta, faria como os passaros, e não voltaria ao laço. A +mesma peça tinha pregado a Aurelia ao João Furtado.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_134">[Pg 134]</span></p> + +<p>Só com esta desconfiança, o rapaz sentiu uma afflicção enorme, que lhe +subia ao peito e o afogava: fincou os cotovellos nos joelhos, apertou a +cabeça entre as mãos e poz-se a chorar desapoderadamente.</p> + +<p>Só tinha chorado assim no dia da morte do pae. Uns homens mal encarados +vieram metter o defuncto na tumba. A creança poz-se nos bicos dos pés e +deitou a cabeça por cima de um dos lados d’aquella caixa preta: quando +viu o pae lá dentro, muito amarello, imaginou que aquelles homens é que +lhe haviam feito mal, que o tinham <i>pisado</i> muito e desatou n’uns +taes gritos, que ninguem o pôde calar.</p> + +<p>D’ahi por deante nunca mais chorara. Por isso os olhos lhe tinham +tantas lagrimas e o peito tantos soluços.</p> + +<p>O Piloto veiu no entretanto chegando-se para o dono, manso e manso; +pousou-lhe as patas deanteiras sobre a perna e começou a lamber-lhe +as mãos e a cara com uma grande meiguice, como se quizesse consolal-o +n’aquella dôr.</p> + +<p>O rapaz não teve alma de enxotal-o. Afigurou-se-lhe que não era o cão, +mas a familia, a casa, todos os sitios por onde o Piloto o seguia, que +estavam a chamal-o carinhosamente; que a mãe e a Anna lhe diziam ao +ouvido, baixinho: «Não te vás. Podes ser feliz na tua terra, com a tua +mãe, com a tua mulher!»</p> + +<p>Levantou-se de chofre, poz a trouxa ao hombro, e galgou a rocha. +Chegado ao cimo, estacou duvidoso:</p> + +<p>—Mas então ia parar ao <i>Castello</i>!...</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_135">[Pg 135]</span></p> + +<p>Um senhor da villa promettera-lhe uma vez, que se fosse com elle no +tempo dos votos, o livraria de ir para soldado.</p> + +<p>—Não lhe custava a deitar um papel na egreja, affirmava o rapaz.</p> + +<p>Na pequena angra entrava n’este momento a canôa. Uma voz dizia +asperamente:</p> + +<p>—Onde estará metido aquelle diabo?</p> + +<p>O Sergio, já de longe, ouviu isto, e agachou-se um pouco, receioso de +que o vissem apesar do escuro que fazia.</p> + +<p>O Piloto, diante d’elle, com as orelhas fitas, olhava ameaçador para o +lado do mar.</p> + +<p>—Ó sior, não está ninguem, dizia uma voz com accento africano. O moço +arependeu-se.</p> + +<p>—Marau! Tinha jurado!...</p> + +<p>E chamou outra vez:</p> + +<p>—Eh! rapaz do diabo!... Nada!</p> + +<p>Os remos bateram na agua.</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>Quando um quarto de hora depois o Piloto entrou no quintal da casa, +estava tão fóra de si, que até ladrou ao gato. Este não fugiu, mas, +resentido pela singularidade do ataque, levantou a mão severamente para +esbofetear o companheiro. E assoprou.</p> + +<p>O Piloto tinha desculpa: não voltava sósinho.</p> + +<figure class="figcenter" id="i020" style="width: 200px;"> + <img src="images/i020.jpg" width="200" height="86" alt="decorative"> +</figure> + + +<hr class="chap x-ebookmaker-drop"> + +<div class="chapter"> +<figure class="figcenter" id="i021" style="width: 1000px;"> +<img src="images/i021.jpg" width="1000" height="749" alt="À direita, um homem mais velho, com um chapéu de palha e roupas simples, gesticula enquanto parece falar ou dar instruções ao jovem à sua frente. O jovem, à esquerda, segura uma vara e parece escutar atentamente ao ancião."> +</figure> +</div> + +<p><span class="pagenum" id="Page_137">[Pg 137]</span></p> +<h2 class="nobreak" id="Na_Vindima">Na Vindima</h2> + + +<img alt="E" class="drop-cap" height="319" src="images/drop-e.jpg" width="200"> +<p class="nind"><span class="upper-case">ESTÁ</span> +prestes a findar a rude labutação.</p> + +<p>Os cachos túmidos, e alourados pelo sol estivo, já quasi desappareceram +das videiras, e o môsto, o sangue da vinha, corre a flux, denso e +espumante, pela bica do lagar, espremidas as uvas sob os pés dos +homens, que aturam tempos sem fim n’aquelle trabalho, como se os +vapores saídos do engaço lhes augmentassem as forças com a excitação da +meia embriaguez.</p> + +<p>A mesma animação nos demais trabalhadores, que, ajoujados ao peso dos +cestos vindimos, levam os cachos para o lagar escuro e fresco. Qual +d’elles, para expandir a alegria ou sentir menos a faina, entôa a +<span class="pagenum" id="Page_138">[Pg 138]</span> +meia voz um dos cantos populares da ilha do Pico, dando á melodia mais +triste uma expressão festival.</p> + +<p>Alguns, para mourejar na freguezia de S. Roque, vieram de longe, de +muito longe, e estão alli ha perto de um mez, separados das familias, +anciosos por lhes ganharem um pedaço de pão.</p> + +<p>Um d’estes era o João Ignacio.</p> + +<p>Tinha abalado da outra banda da ilha, dos cabeços perdidos nos matos +sobranceiros á villa das Lages, deixando a mulher, as filhas—duas +moçoilas frescas e desempenadas, e o filho, um rapazote que dentro em +pouco já poderia ajudal-o.</p> + +<p>A mulher, coitadinha! estava muito acabada, não pela idade, mas pela +doença.</p> + +<p>Pois o João Ignacio ia ter uma grande satisfação.</p> + +<p>Mandado pela mãe, o pequeno tinha feito a enorme caminhada e já andava +alli perto, deitando inculcas, para saber onde encontral-o. Trazia-lhe +noticias frescas de todos os de casa: da doente, das irmãs, e até do +Calçado, muito rosnador com a velhice, e da porca, que estava gorda, +gorda—uma perfeição de animal!</p> + +<p>O João Ignacio topou o filho á porta do lagar, onde tinha despejado +mais um cesto.</p> + +<p>Deitou-lhe a benção, arredou-o de si um quasi nada para miral-o de +alto a baixo, e tendo-o visto são e escorreito, deu-lhe uma palmada no +hombro.</p> + +<p>—Basta que sim! Estaes rijo como...</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_139">[Pg 139]</span></p> + +<p>E sem enunciar o termo da comparação, perguntou pressuroso:</p> + +<p>—Como vae a porca?</p> + +<p>—<i>Álhora!</i>... O pae então pergunta-me pela porca, e não quer +saber da minha mãe?</p> + +<p>—Eh! rapaz! A porca custou dinheiro e vossa mãe não me custou nada!</p> + +<figure class="figcenter" id="i022" style="width: 200px;"> + <img src="images/i022.jpg" width="200" height="70" alt="decorative"> +</figure> + + +<hr class="chap x-ebookmaker-drop"> + +<div class="chapter"> +<figure class="figcenter" id="i023" style="width: 200px;"> +<img src="images/i023.jpg" width="200" height="36" alt="decorative"> +</figure> +</div> + +<p><span class="pagenum" id="Page_141">[Pg 141]</span></p> +<h2 class="nobreak" id="O_Jantar_Do_General">O Jantar Do General</h2> + + +<img alt="N" class="drop-cap" height="342" src="images/drop-n.jpg" width="200"> +<p class="nind"><span class="upper-case">NÃO</span> +sei com certeza se o general tinha desembarcado nas praias do +Mindello.</p> + +<p>O Garcez, coronel de caçadores 12 e cultor eximio da <i>arte de dizer +mal dos seus superiores</i>, affirmava que não; o Dionysio, soldado +de veteranos, dizia que sim, e jurava o até, se alguem se mostrava +duvidoso.</p> + +<p>Ora o veterano tinha razão para estar bem informado, porque fôra +impedido do general, durante trinta e oito dos quarenta annos de +serviço attestados pelas quatro divisas brancas, que se lhe estiravam +pela manga da fardeta. Verdade é que ás vezes o Dionysio tinha +singulares confusões—patetices de seiscentos diabos, qualificava o +patrão.</p> + +<p>Uma, principalmente foi originalissima. Uma?... Uma serie d’ellas.</p> + +<p>O general commandava n’aquelle tempo a nôna divisão militar, hoje +defuncta.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_142">[Pg 142]</span></p> + +<p>Na Madeira a vida corria-lhe em maré de rosas.</p> + +<p>Tendo-se recordado do inglez aprendido em Bragança com o major do +seu regimento,—um official britannico que acompanhára D. Pedro IV a +Portugal e fizera toda a campanha,—o general tornou-se frequentador +assiduo das sociedades funchalenses onde predominava o elemento +estrangeiro.</p> + +<p>Pelo seu espirito de velho solteirão impenitente, chegaram até a +perpassar planos casamenteiros, confusos e indeterminados no principio, +claros e definidos logo que appareceu no Funchal miss Lorely, a filha +de um lord, viva e <i>espiègle</i> como uma parisiense, e exuberante da +formosura peculiar das inglezas.</p> + +<p>Então o antigo cadete de cavallaria 10, ou não sei quantos, formou +planos estrategicos com uma pericia, que talvez o não acompanhasse +até ao campo de batalha. Pôz ao serviço d’aquelle tardio amor todos +os recursos do seu espirito, que eram poucos, e todas as vantagens da +sua posição official, que eram muitas. Passeios militares, exercicios, +tudo foi largamente aproveitado. E de tarde, no atrio do palacete das +Angustias, onde morava a seductora <i>miss</i>, tocava sempre a banda +regimental, cujos effeitos maravilhosos Eduardo Pailleron preconisou, +muito depois e com infinito espirito, no segundo acto da <i>Edade +ingrata</i>.</p> + +<p>Mas tambem o que elle soffria!...</p> + +<p>A prima dos Norfolk e dos Buckingam tinha sabido ou adivinhado que o +senil Lovelace professava, com o maior fervor, o culto do dinheiro. +Jurou logo aos seus deuses, fazer do seu apaixonado um perdulario; e +<span class="pagenum" id="Page_143">[Pg 143]</span> +tão bem se saiu da empresa, que o general offereceu d’alli a pouco um +<i>lunch</i>, a ella e á officialidade do batalhão, n’um dia de passeio +militar a Camara de Lobos—o general que, de tanto jantar fóra de casa, +«tinha avenca na chaminé», segundo a phrase malevola do Garcez.</p> + +<p>Ora foi justamente por esta occasião, que o Dionysio cahiu na tal +serie de enganos. O patrão—Dionysio depois de reformado continuava a +servil-o—estava a arranjar-se para ir jantar a casa de <i>miss</i> +Lorely. A agua circassiana terminara o seu papel, e entrava em scena +o espartilho, quando surgiu um tormento, que fez perder á victima o +desejo de ir ver a beldade. O general acabava de sentir no joelho +esquerdo as presas aguçadas da gotta, a morderem-o cruelmente. A dor +foi tal que lhe arrancou um grito. Ataque para durar tres dias pelo +menos.</p> + +<p>—Mas então era preciso mandar uma desculpa.</p> + +<p>Pegou numa penna e dispoz-se a escrever no bilhete de visita algumas +palavras em inglez.</p> + +<p>Por fatalidade o major só lhe tinha ensinado a falar a lingua de Pope; +quanto a escrevel-a, não se lembrou d’isso. Nem tudo póde lembrar.</p> + +<p>—Ó Dionysio?</p> + +<p>—Prompto, meu general!</p> + +<p>—Tu sabes onde mora aquella senhora ingleza, a quem eu costumo +visitar!...</p> + +<p>—E a quem faz o seu pé d’alferes?</p> + +<p>—Mau, Dionysio! Sabes onde ella mora?</p> + +<p>—Não saberei eu outra coisa!</p> + +<p>—Pois então leva-lhe este bilhete de visita, e dize á creada que mando +muitos cumprimentos á senhora, e que lhe peço desculpa de não ir hoje +<span class="pagenum" id="Page_144">[Pg 144]</span> +lá jantar, mas que estou doente.</p> + +<p>—Isso não é nada. Ande, vá, olhe que em casa não se lhe arranjou +comida.</p> + +<p>—Cala a bocca, pateta! Dize-lhe tambem que estou de cama e que por +isso não posso escrever-lhe.</p> + +<p>—Éna que patranha!...</p> + +<p>—Meia volta á direita, maroto, e não te esqueças de nada! Estás cada +vez mais urso.</p> + +<p>—Somos dois, meu general! respondeu o velho, rodando sobre os +calcanhares e caminhando para a porta, em quanto o patrão lhe atirava, +por entre dentes, os epithetos de «burro, camello e animal». Ao mesmo +tempo agarrava o joelho esquerdo com ambas as mãos, e soltava uns +gemidos surdos, que tinham o que quer que fosse de grunhidos.</p> + +<p>De repente gritou:</p> + +<p>—Olha lá!</p> + +<p>O soldado appareceu á porta, e olhou desconfiado para o general.</p> + +<p>—Traze-me jantar da hospedaria do costume. Não te esqueças!</p> + +<p>—Sim senhor, fique descançado.</p> + +<p>E saíu.</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>Á porta da casa das Angustias, situada no meio de um esplendido jardim, +o Dionysio foi recebido pela Luiza, creadinha madeirense, que á força +de lidar com inglezes se fazia entender por elles, e assim arranjava, +<span class="pagenum" id="Page_145">[Pg 145]</span> +em todos os invernos, excellentes casas para servir.</p> + +<p>O veterano, depois de lhe deitar uma olhadela brejeira, apresentou o +bilhete.</p> + +<p>—O meu general manda isto á senhora, porque não póde vir cá hoje. Está +com o seu rheumatico.</p> + +<p>—<i>Saim?</i> perguntou a creada.</p> + +<p>—<i>Saim, menaina</i>, disse o Dionysio, que nunca perdia occasião de +imitar a pronuncia madeirense.</p> + +<p>—A <i>mecê</i> a modo que está <i>tirando precipicio</i> commigo! +replicou, meio formalisada, a creadita.</p> + +<p>—<i>Precepeicio!</i>... A minha <i>mecê</i> não quer tirar-lhe nada. +Agora se eu fosse mais novo uns trinta ou quarenta annos...</p> + +<p>—Se fosse mais novo? perguntou a rapariguinha já a sorrir.</p> + +<p>—Mau! Mau! Basta de conversas, que o patrão mandou-me levar-lhe o +jantar.</p> + +<p>—De cá?</p> + +<p>—Pois se fôr de cá, melhor ainda, por certos motivos... Cá é que elle +vinha comer o jantarinho, e por conseguinte tambem de cá lh’o pódem +mandar. Pois não acha?</p> + +<p>A Luiza transmittiu fielmente o recado a sua ama. O pedido final +produziu o effeito hylariante de uma boa caricatura do <i>Punch</i>.</p> + +<p>Morta de riso, mas duvidosa ainda, não obstante a fama de Harpagão +do seu apaixonado sexagenario, miss Lorely mandou a Luiza interrogar +novamente o veterano.</p> + +<p>—Ó mulher de ... não sei que diga, já lhe expliquei que elle queria o +jantar.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_146">[Pg 146]</span></p> + +<p>D’alli a pouco um creado, de casaca e gravata branca, entregava ao +soldado um grande açafate, donde se exhalava um perfume capaz de fazer +crescer agua na bocca ao menos glotão.</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>O general quando viu o Dionysio ir tirando do açafate, que lhe derreara +os braços, uns após outros, muitos pratos de porcelana finissima com +excellentes iguarias, ia tendo uma syncope.</p> + +<p>—Quanto lhe não custaria aquelle jantar? pensou, e gritou logo para o +veterano:</p> + +<p>—Ó patife, não me dirás onde foste buscar tudo isso? Talvez a +essa hospedaria da Entrada da Cidade onde pagam uma libra por dia +os hospedes permanentes! Um jantar assim ... que sei eu?... é um +dinheirão!...</p> + +<p>—Cale-se para ahi, resmungou o Dionysio. É um jantar de principe e não +lhe custa um vintém!</p> + +<p>—Não custa!</p> + +<p>Dionysio explicou tudo.</p> + +<p>O general caíu prostrado n’uma cadeira, com a perna ainda mais +espicaçada pela gotta. Depois, tomando uma resolução heroica, tirou +tres libras da bolsa.</p> + +<p>—As ordenanças ainda ahi estão?</p> + +<p>—Não foi o meu general o proprio que as mandou para o quartel?</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_147">[Pg 147]</span></p> + +<p>—Bem! Pois então irás tu novamente, mas vê lá não me faças outra +asneira!...</p> + +<p>—Outra! Qual foi a primeira, diga!</p> + +<figure class="figcenter" id="i024" style="width: 900px;"> + <img src="images/i024.jpg" width="900" height="669" alt="À esquerda, um homem idoso de bigode está segurando uma grande travessa cheia de alimentos. À direita, um homem sentado em uma cadeira reage assustado com as mãos levantadas e a boca aberta surpreso com o que está sendo servido."> +</figure> + +<p>—Toma lá este dinheiro, vae á loja de bebidas da Carreira, onde eu +te mandei no outro dia, e pede ao caixeiro que te dê seis garrafas de +vinho da Madeira do melhor.</p> + +<p>—Gasta-se tudo isto?</p> + +<p>—Pois de certo.—E o general apertou de novo o joelho.—Elle que te +empreste um cesto, e vae levar o vinho, n’um rufo, a casa da ingleza, +com mais este bilhete de visita... Dize á senhora que te enganaste e +que eu amanhã lhe explicarei tudo.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_148">[Pg 148]</span></p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>Em quanto o general, pelo sim pelo não, ia comendo o jantar, Dionysio +desempenhava conscienciosamente a commissão, até chegar á porta de +<i>miss</i> Lorely, e tambem depois de entregar o vinho á creada.</p> + +<p>D’alli a pouco voltou a Luiza com meia libra em oiro, e deu-a ao velho.</p> + +<p>—A senhora manda muitos cumprimentos...</p> + +<p>Dionysio interrompeu-a:</p> + +<p>—Isto é para pagar o vinho?...</p> + +<p>A creada desatou a rir.</p> + +<p>—Ah! Você ri-se? Pois se a senhora quer pagar o vinho, então ha de pôr +para aqui mais alguma coisa. Diga-lhe que não é uma, que são seis meias +librinhas—tres libras!</p> + +<p>A Luiza, rindo a bandeiras despregadas, foi levar o recado á ama, que +riu muito mais ainda.</p> + +<p>D’alli a pouco recebia o Dionysio tres libras.</p> + +<p>—Aqui levo dinheiro de sobra, disse elle, e ia entregar honradamente a +meia libra do principio.</p> + +<p>—Essa é para a <i>mecê</i>, fez-lhe notar a creada.</p> + +<p>—Acceito para não fazer desfeita. Adeusinho, minha flor, e obrigado!</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>Quando o general acabava de jantar, chegou o Dionysio com as tres +libras.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_149">[Pg 149]</span></p> + +<p>A explicação foi longa e calorosa.</p> + +<p>Tanto gritou o amo como o creado.</p> + +<p>—Ora ainda em cima! Por eu lhe zelar o que é seu! respondia o +Dionysio, indignado. Se vocemecê gastasse as tres libras, dava-lhe p’ra +ahi alguma coisa, e nunca mais prestava para nada.</p> + +<p>O caso é que o general parecia ter-se restabelecido instantaneamente +da gotta. Vestiu-se á pressa, e foi ás Angustias, pedir desculpa a +<i>miss</i> Lorely.</p> + +<p>A ingleza perdoou tudo, e confessou ao seu apaixonado que nunca se +tinha divertido tanto. Partícipou-lhe ao mesmo tempo que, em voltando +a Inglaterra, casaria com um primo, de quem era noiva desde os quinze +annos.</p> + +<p>Nem por isso o general deixou d’alli em diante de jantar nas Angustias, +nem a musica de tocar no atrio do palacete.</p> + +<p>Se perdia a noiva, não queria perder tambem os jantares.</p> + +<p>Quanto ao Dionysio...</p> + +<p>Continuou trapalhão como sempre.</p> + +<p>E por isso eu, não me fiando no que elle dizia e sem paciencia para +tirar a limpo este ponto historico, termino como principiei:</p> + +<p>Não sei com certeza se o general tinha desembarcado nas praias do +Mindello.</p> + +<figure class="figcenter" id="i024a" style="width: 161px;"> +<img src="images/i024a.jpg" width="161" height="71" alt="decorative"> +</figure> + + +<hr class="chap x-ebookmaker-drop"> + +<div class="chapter"> +<figure class="figleft" id="i025" style="width: 400px;"> +<img src="images/i025.jpg" width="400" height="310" alt="Um homem sentado em uma cadeira com um lençol envolvendo seu corpo está bastante assustado ao fazer a barba por um barbeiro. Na sua frente há uma mesa com os apetrechos de uma barbearia."> +</figure> +</div> + +<p><span class="pagenum" id="Page_151">[Pg 151]</span></p> +<h2 class="nobreak" id="O_Aprendiz_De_Barbeiro">O Aprendiz De Barbeiro</h2> + + +<p>A Maria José saiu da Candelária de noite escura, e por isso quando +chegou á Magdalena não estava ainda um unico freguez a fazer a barba na +loja de João Cardoso.</p> + +<p>O pequeno d’ella, o Antonio, apenas a viu, largou uma navalha que +estava afiando no assentador e correu para a porta.</p> + +<p>A mãe puxou-o para fóra, porque não queria que o mestre ouvisse o que +ella tinha que dizer ao filho.</p> + +<p>Vergonhas não se querem assoalhadas.</p> + +<p>Olhou para o rapaz, e a voz prendeu-se-lhe na garganta. Tinha pejo, mas +por fim decidiu-se. Ella bem queria lidar como as outras mulheres, que +a bem dizer fazem por toda a ilha o dobro do trabalho dos homens, mas +não podia, por causa d’aquella mão aleijada.</p> + +<p>Já não sabia com que cara apparecesse ás visinhas. Tinham todas muita +<span class="pagenum" id="Page_152">[Pg 152]</span> +pena d’ella, é verdade, ajudavam-a a viver, mas ás vezes, por muita +vontade que tivessem, tambem não podiam. Só Deus sabe das faltas, que +cada um padece!</p> + +<p>Pedir aos ricos, nem pensar n’isso... Quem nunca soube o que é não ter, +menos acode aos que precisam.</p> + +<p>E vae d’ahi lembrou-se, custando-lhe muito, de vir pedir alguma +coisinha ao filho.</p> + +<p>O Antonio bem queria fazer-lhe a vontade, mas como? A féria d’aquella +semana já estava gasta n’um fato, que tinha ajustado dias antes, e por +signal bem barato. O mestre João não queria ver em casa maltrapilhos, +não tanto por si, mas por ’môr dos freguezes. Á sua loja iam os +senhores mais ricos da villa.</p> + +<p>—Não pódes então dar-me nada? perguntou a Maria José, com os olhos +rasos de lagrimas.</p> + +<p>—Posso, sim senhora, mas é tão pouco... A minha mãe bem sabe que se +muito tivesse... Porque estou eu aqui? Para mais a míudo lhe poder +fazer bem, e para ir vel-a de vez em quando. Mas um dia pego em mim e +abalo n’uma d’essas baleeiras!</p> + +<p>—Lá isso não, filho, só se queres matar-me! Bom de lei és tu. Excusas +de m’o dizer! Saes todo a teu pae. Ah! Que se aquelle Caim do Gaspar +Dutra não m’o tivesse matado!... Coitadinho! Ainda estou a vel-o a +arquejar, com a cara toda suja de sangue—parecia um bicho!—os olhos +já envidraçados a fincarem-se em mim ... como a querer falar, mas sem +poder! Era para me dizer quem o tinha atirado do alto da rocha.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_153">[Pg 153]</span></p> + +<p>Mas a esse respeito não restavam duvidas á Maria José.</p> + +<p>É verdade que na audiencia em que o Gaspar Dutra foi responder ao Caes +do Pico, porque o suspeitaram do crime, visto andar ha muito de rixa +com o Manoel Luiz, o absolveram por falta de provas, e não appareceu +uma só testemunha de vista.</p> + +<p>Mas d’ahi a dias, depois de o malvado embarcar para a America, por ter +ficado muito arrastado com os gastos da justiça, appareceu em casa da +viuva, já perto da noite, a tia Quiteria que tinha uma fazendinha na +rocha, mesmo ao pé da outra por que o Gaspar Dutra e o Manoel Luiz +andavam desavindos.</p> + +<p>A velha tomou de parte a Maria José e depois de obrigal-a a jurar que +não diria nada a ninguem, em quanto ella fosse viva, contou-lhe toda a +historia do crime. Estava perto do sitio, mas nem um nem outro a tinham +visto.</p> + +<p>—O Gaspar Dutra é que começou a <i>abregoir</i>. O Manoel Luiz +desesperou-se e disse-lhe uma má palavra.—Os santos estão no altar!—O +outro poz-se fulo, correu para o Manoel e colhendo-o á falsa fé, +tal geito lhe deu que o <i>prantou</i> pela rocha abaixo. O corpo a +principio não levava muita força, mas depois caíu tão depressa, que +nem uma bala de espingarda. Quando deu no chão da rocha, onde ficou +estatelado e de braços abertos, vinha já de uma altura de tres ou +quatro casas de sobrado. Rebentou-lhe de certo alguma coisa lá por +dentro, tanto que o pobre do homem não disse mais palavra na meia hora +que ainda viveu.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_154">[Pg 154]</span></p> + +<p>A Quiteria desculpou-se de se ter calado áquelle respeito, dizendo que +o Gaspar Dutra e o irmão não eram <i>boas folhas</i>. Se o matador, por +causa d’ella, fosse parar á costa d’Africa, o outro era muito capaz +de lhe fazer alguma, que désse que falar. Era o Gaspar tão ruim, que +andando embarcado tinha querido matar o cosinheiro de bordo, e levara +n’essa occasião duas navalhadas, de que lhe resultou o signal em cruz, +que tinha na barba, do lado esquerdo.</p> + +<p>O Antonio ouvira dezenas de vezes a mãe contar a historia, mas nunca +tinha sentido tamanha amargura, um desejo tão furioso de vingança.</p> + +<p>Estivesse o pae ainda vivo e a mãe não precisaria de pedir esmola, e já +elle teria ido para a America enriquecer, e não estaria alli a ganhar +tão pouco.</p> + +<p>E lembrou-se do pae—das festas que elle lhe fazia quando vinha á noite +para casa, seguido pela <i>Boníta</i>, a cadella de gado. Ceiavam, e o +pequenito para adormecer queria sempre que o pae o deitasse no collo. +O Manoel Luiz fazia-lhe a vontade, e mal o Antonio estava pegado no +somno, despia-o todo, deitava-o na cama, com um cuidado, um carinho, de +que nem a propria mãe seria capaz.</p> + +<p>Quando o pae morreu, o pequeno tinha oito annos. Mostrou pena, como se +já fosse uma pessoa grande.</p> + +<p>N’aquella manhã renascia a dôr.</p> + +<p>A mãe com tanta precisão de dinheiro para matar a fome, e o filho tendo +só um pataco que lhe dar!</p> + +<p>O mestre João era muito agarrado ao dinheiro e não lhe emprestaria +nada.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_155">[Pg 155]</span></p> + +<p>Metteu a mão na algibeira, levou-a muito fechada até á mão direita da +Maria José, e deixou-lhe a moeda entre os dedos, escondida. Beijou a +mão da mãe e poz-se a chorar.</p> + +<p>N’isto a voz de João Cardoso, chamou de dentro imperiosamente:</p> + +<p>—Antonio! Ó Antonio!</p> + +<p>O rapaz entrou na loja, de corrida.</p> + +<p>Já lá estavam dois freguezes.</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>A concorrencia foi grande n’aquelle domingo.</p> + +<p>Todos queriam apresentar-se na missa conventual com a cara bem +escanhoada, para que nada deslustrasse o fato de ver a Deus.</p> + +<p>João Cardoso, sem perder a presença de espirito, ia desbravando os +matagaes incipientes que, por ausencia da navalha, tinham brotado +n’aquella semana.</p> + +<p>Animou-se gradualmente a conversa. De um assumpto politico—a escolha +do futuro regedor—saltou para o phylloxera, que tinha apparecido pouco +antes n’uma vinha do Fayal.</p> + +<p>—Aquillo—opinava o Estacio Manuel—é pelos modos um bicho que come a +raiz da cepa, como o caruncho roe a madeira, e o gusano o costado dos +navios.</p> + +<p>—Bicho me pareces tu—atalhou o Amaro, do seu canto.—Se fosse bicho +podia-se lá dizer que tinha apparecido uma nódoa d’elle!...</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_156">[Pg 156]</span></p> + +<p>—Nódoa?</p> + +<p>—É o que ainda agora li no <i>Fayalense</i>. Nódoa de bicho, não +entendo.</p> + +<p>O Estacio não se deu por vencido:</p> + +<p>—É que as terras aonde elle chega ficam pretas como esses +<i>mysterios</i>, que ahi temos por toda a ilha.</p> + +<p>O mestre barbeiro ensaboava, n’esta occasião, a cara do terceiro +freguez; suspendeu a operação e voltando-se para o auditorio, exclamou +sentenciosamente:</p> + +<p>—Sabem o que lhes digo? que se essa praga de nome tão arrevezado salta +do Fayal para cá, adeus vinhas do Pico! É cada qual entrouxar a roupa e +ala para <i>Bastão</i>!<a id="FNanchor_2" href="#Footnote_2" class="fnanchor">[2]</a></p> + +<p>Não tinham acabado ainda os applausos provocados pelo dito, quando +entrou na loja um homem trigueiro, muito alto, largo de hombros e um +tanto desmanchado no andar. Na orelha direita d’este colosso luzia +uma arrecada lisa e pequena, e nos pulsos e nas costas das mãos +alastravam-se, em prodiga tatuagem, ancoras e estrellas.</p> + +<p>O sino da egreja proxima tocou passados instantes, chamando para a +missa. Era a terceira vez.</p> + +<p>Ficaram só dois freguezes na loja. Um, que o mestre começou a barbear, +tinha ouvido a missa das almas. O outro, o da arrecada, coube ao +Antonio, e não mostrou dar grande attenção ao chamar pressuroso do sino.</p> + +<p>No entretanto pelo largo batido de sol passavam azafamadas e alegres +as raparigas do povo, com os lenços de chita, de pontas desamarradas, +<span class="pagenum" id="Page_157">[Pg 157]</span> +presos á cabeça somente pelos chapeus de palha de abas largas e copa +baixa, cingida por um cordão de lã encarnada. Para ellas a missa +não é só uma devoção, é o repouso, o esquecimento momentaneo de uma +existencia monotona e trabalhosa.</p> + +<p>O Antonio não podia mais. Ainda bem que era aquelle o ultimo freguez! +Depois da missa não viria mais nenhum. Não sabia como se tinha +aguentado tanto tempo. O seu desejo era fugir d’alli, e, quando ninguem +o visse, desatar a chorar desconsoladamente, para ver se lhe passava +aquella ancia, que o affligia. Só por grande milagre não enchera de +lanhos as caras dos freguezes. Felizmente aquella barba depressa se +fazia. Não tinha menos de quinze dias, pouco resistia á navalha.</p> + +<p>O rapaz teve de repente um deslumbramento. Na face esquerda do homem +que estava alli, nas mãos d’elle, havia um signal, que a principio se +não podera ver, porque a barba o escondia, e que era exactamente egual +ao do Gaspar Dutra: duas cicatrizes em cruz!</p> + +<p>Perguntou, com a voz algum tanto suffocada:</p> + +<p>—O senhor é cá do Pico?</p> + +<p>—Eu? Sou. E porque?...</p> + +<p>—É da Candelária?</p> + +<p>—Quem t’o disse?</p> + +<p>—Quiz-me parecer. E chama-se?...</p> + +<p>—Gaspar Dutra. Tens alguma herança para me entregar? Ha-de ter morrido +muita gente minha, n’estes oito annos que estive na America.</p> + +<p>Não havia duvida.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_158">[Pg 158]</span></p> + +<p>O rapaz sentiu nos ouvidos um zumbido ensurdecedor, faltou-lhe a vista, +passou-lhe um calafrio por todo o corpo. Devia ser assim a approximação +da morte!</p> + +<p>Tornou a encarar toda a sua desgraça. Exerceu, porém, um esforço +violento sobre si mesmo, e serenou apparentemente.</p> + +<p>O Gaspar não suspeitou de nada. Via-o de costas, afiando a navalha. Por +fim disse-lhe de repellão:</p> + +<p>—Anda! Acaba com isto!</p> + +<p>—Sim, senhor...</p> + +<p>—Tu estás parvo! bradou-lhe o mestre, do outro lado da loja, sem +largar a cara, que já tinha meio rapada.</p> + +<p>O aprendiz poz machinalmente mais sabão na barba do freguez.</p> + +<p>—És da Candelária? continuou este. Conheces lá muita gente?</p> + +<p>—Conheço... Conheço a Maria José, viuva do Manoel Luiz... O senhor +conhece-a?</p> + +<p>E os olhos, que se fitavam no fio da navalha virado para a garganta do +Gaspar, levantaram-se n’uma interrogação anciosa.</p> + +<p>—Olá se conheço! E tambem conheci o marido... Um grande marau!</p> + +<p>O Antonio teve um espasmo. Os nervos contrahiram-se-lhe medonhamente, +e o gume do aço cortou bem fundo no pescoço bronzeado do assassino, +abrindo uma ferida alongada, de onde o sangue espadanou com violencia.</p> + +<p>O Gaspar ainda ergueu os braços, soltou um arranco, estrebuxou e caíu +<span class="pagenum" id="Page_159">[Pg 159]</span> +de lado, no chão. Na toalha, presa por baixo da barba, o sangue formava +uma larga mancha vermelha, que se foi extendendo a mais e mais.</p> + +<p>João Cardoso e o outro homem, extaticos, boquiabertos, transidos de +pavor, não ousavam approximar-se. Por fim, em quanto o freguez corria +para a porta a gritar «Aqui d’el-rei!», o mestre, vendo a navalha caída +no chão, chegou-se ao pequeno, que estava de parte, todo a tremer, e a +olhar com espanto para aquella massa enorme agitada pelas convulsões da +agonia.</p> + +<p>Agarrou-o por um braço e perguntou-lhe:</p> + +<p>—Que foi isto, <i>grandessissimo</i> diabo?</p> + +<p>E o Antonio, a gaguejar, como um bebedo:</p> + +<p>—Foi ... foi elle ... que matou meu pae!</p> + +<figure class="figcenter" id="i026" style="width: 200px;"> + <img src="images/i026.jpg" width="200" height="65" alt="decorative"> +</figure> + + +<hr class="chap x-ebookmaker-drop"> + +<div class="chapter"> +<figure class="figcenter" id="i027" style="width: 200px;"> +<img src="images/i027.jpg" width="200" height="49" alt="decorative"> +</figure> +</div> + +<p><span class="pagenum" id="Page_161">[Pg 161]</span></p> +<h2 class="nobreak" id="A_Allema">A Allemã</h2> + + +<img alt="F" class="drop-cap" height="388" src="images/drop-f.jpg" width="200"> +<p class="nind"><span class="upper-case">FOI</span> +ha bastantes annos que a vi pela primeira vez.</p> + +<p>Loução e garrido, balouçava-se brandamente na enseada do Funchal o +<i>Maria Pia</i>, vapor da carreira de Lisboa, e rodeado ainda por um +enxame de botes, que tinham levado para bordo passageiros e bagagens, +apromptava-se para deixar, depois de uma visita de tres dias, a +denominada <i>Flôr do Oceano</i>.</p> + +<p>Eu, debruçado na amurada, e já amargurado pela saudade, seguia +tristemente com a vista um barco que, aproado á terra, ia tornando cada +vez maior a distancia que começava a separar-me dos unicos entes a quem +prezava no mundo.</p> + +<p>Estava, havia não sei quanto tempo, n’esta contemplação, quando +attentei n’outro bote, que, fazendo força de remos, demandava +rapidamente o vapor, apesar de o tiro da partida ter já de ha muito +<span class="pagenum" id="Page_162">[Pg 162]</span> +resoado pelas fragas que bordam a Madeira.</p> + +<figure class="figcenter" id="i028" style="width: 700px;"> +<img src="images/i028.jpg" width="700" height="708" alt="Uma mulher com um vestido longo, um chapéu adornado e com um véu cobrindo parte do seu rosto, está sentada em uma poltrona, com o olhar voltado para a esquerda e para baixo. O cenário mostra que ela está em um navio, onde se vislumbra uma fortaleza no mar."> +</figure> + +<p>Não tardou que atracasse ao navio, e momentos depois entrava para o +convez uma senhora com o rosto tapado por um veu cinzento, e amparada +por dois sadios filhos da ilha, em quem reconheci dois <i>homens +de rede</i>, os quaes tamanho serviço alli prestam aos tisicos, +transportando-os n’aquelle commodo descanso, tão predilecto dos +creoulos e de todos os que habitam as regiões tropicaes.</p> + +<p>Conduziram-a para uma cadeira de vimes, que já estava disposta com +<span class="pagenum" id="Page_163">[Pg 163]</span> +segurança no meio da tolda, do lado da camara de primeira classe, e ahi +a depuzeram com delicadeza á primeira vista pouco consentanea com o +exterior um tanto rude d’aquella pobre gente.</p> + +<p>Feitos os ultimos preparativos para a partida, poz-se o vapor em +movimento, aproado a leste, e cortando veloz as mansas aguas da enseada.</p> + +<p>Tres horas, talvez, estive a fitar, primeiro as encostas accidentadas +e verdejantes da ilha, que fugiam rapidas para o lado do occidente, e +depois os pincaros abruptos, que coroam aquella enorme massa vulcanica, +e que cada vez se iam tornando menos distinctos, já assumindo uma côr +entre parda e azulada, já assimilhando-se a nuvem que mal sobrepujava a +superficie do oceano, até que finalmente se occultaram de todo.</p> + +<p>E eu, ancioso de rasgar com a vista o horisonte para ver uma vez ainda +os que deixára, e enviando-lhes um ultimo adeus na vaga que passava +fugaz ao lado do navio, voltei-me para dentro, triste e desanimado, +como quem de repente se encontra só na vida.</p> + +<p>Foi então que a pude ver.</p> + +<p>Imagine-se, por um momento, uma d’aquellas divindades esquivas e +vaporosas, de que a phantasia dos bardos do norte povoa os lagos e as +florestas: a mulher que eu tinha deante de mim era mais ligeira, mais +diaphana do que essas creações imaginarias. Á ultima claridade da tarde +observei-a detidamente.</p> + +<p>O rosto era de um esplendor lacteo, de uma transparencia de +<span class="pagenum" id="Page_164">[Pg 164]</span> +alabastro; se bem que emmagrecido pela doença, ainda ostentava o typo +septentrional, em toda a sua formosura e pureza.</p> + +<p>Contrastando com a pallidez morbida, desenhavam-se-lhe nas faces as +rosas purpurinas e terriveis da tisica.</p> + +<p>Nos olhos, do azul mais puro, tristes e resignados, havia uma vaga +aspiração para as espheras brilhantes e luminosas, uns reflexos de além +do tumulo.</p> + +<p>Recostada languidamente nas almofadas que estofavam a cadeira, e com a +cabeça, aureolada de finissimos cabellos louros, descahida para traz, +olhava para o mar, com a indifferença e melancholia de quem perdeu de +todo a esperança.</p> + +<p>De quando em quando, uma tosse pertinaz fazia arfar-lhe o peito, e por +momentos, se bem que rapidos, transmudava-lhe a expressão do semblante, +de serena em dolorosa.</p> + +<p>N’outra qualquer occasião ter-me-hia despertado interesse, mas então +impressionou-me mais vivamente do que nunca, aquella mulher, moça, +bella, e, na apparencia, tão gravemente enferma, que não tinha a seu +lado um parente, um amigo, um enfermeiro sequer.</p> + +<p>Os passageiros, que o enjôo não obrigára a recolher aos beliches, +passavam perto d’ella com indifferença, e sómente o capitão se lhe +acercou uma vez, a perguntar-lhe se não julgava melhor descer para a +camara.</p> + +<p>—Melhor! respondeu ella em francez e com sorriso entre amargo e +benevolente. Aqui ao menos tenho este ar tão puro. Prefiro ficar. +<span class="pagenum" id="Page_165">[Pg 165]</span> +Obrigada!</p> + +<p>E deixando caír novamente a cabeça na almofada, voltou á primitiva +immobilidade.</p> + +<p>Quando desci á camara, á hora da ceia, não pude esquivar-me a perguntar +ao capitão informações a respeito da desconhecida.</p> + +<p>Eis o que elle sabia:</p> + +<p>Viera no anno antecedente da Allemanha, sua patria, em companhia +de um irmão, buscar ao clima benefico da Madeira allivio para os +soffrimentos, que os medicos do seu paiz não tinham sabido debellar e a +que prophetisavam até um proximo e fatal desenlace.</p> + +<p>As sinistras previsões scientíficas realisaram-se, porém com uma +differença: a victima não foi ella, mas o irmão, que ferido de +morte subita, a deixou só n’uma terra de estranhos, e apavorada +com o pensamento de ver-se, na derradeira hora, cercada apenas de +indifferentes e mercenarios.</p> + +<p>Estar alli nem mais um momento!</p> + +<p>Partia pois, esperançada em ter ainda vida bastante, mercê de Deus, +para voltar ao que por tanto tempo aprendera a amar: ia morrer nos +braços da mãe.</p> + +<p>Ás dez horas voltei para o convez.</p> + +<p>Era uma noite de agosto, limpida e sem lua; mal soprava uma leve +aragem, que ia a pouco e pouco dispersando os rolos do fumo que o vapor +deixava após si.</p> + +<p>As estrellas reverberando nas ondas inquietas, afiguravam-se, á vista +illudida, de outros tantos luzeiros fluctuantes na massa fluida.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_166">[Pg 166]</span></p> + +<p>O silencio imponente da solidão era perturbado apenas pelas pancadas +cadenciadas do helice, e pelo rumorejar surdo da agua em torno do navio.</p> + +<p>E em redor tudo immenso: a amplidão etherea e a vastidão dos mares, +o infinito e o seu espelho, como disse madame de Staël. E devassando +os arcanos da natureza, e affrontando-lhe a soberania, o homem, só e +illuminado pelo seu genio, deixando escripta na esteira do navio a +divisa do progresso.</p> + +<p>Logo que os olhos se me habituaram á meia obscuridade que reinava no +convez, descobri-a de novo no logar onde a tinha deixado.</p> + +<p>Nem eu sei dizer a tristeza que se apossou de mim.</p> + +<p>Tornava para os seus, porém elles, em vez da alegria que traz sempre a +volta d’um parente querido, teriam a expectação fatal d’uma desgraça +eminente.</p> + +<p>A mãe, ao apertar ao seio a filha, ao cobrir-lhe o rosto de beijos, +sentiria na ardencia da febre que lhe devorava a vida da sua vida, os +amplexos antecipados da mortalha.</p> + +<p>E aos vinte annos!... Era bem cedo para morrer, como, da meiga virgem +de Procida, diz o poeta das <i>Meditações</i>.</p> + +<p>Ao menos, triste consolação! uma vez arrebatada á vida, mão amiga e +carinhosa iria depôr-lhe sobre a campa as coroas votivas da saudade, e +a mesma brisa, que lhe brincara com os cabellos de creança, perpassando +por entre os cyprestes, levar-lhe-hia, nas azas perfumadas, os suspiros +dos que a choravam.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_167">[Pg 167]</span></p> + +<p>Dois dias depois chegámos a Lisboa.</p> + +<p>Perdi-a de vista ao desembarcar, mas nem por isso a esqueci; e mais +tarde, nas horas de melancholia, não poucas vezes aquella mulher, antes +visão que realidade, vinha, circumdada de uma aureola de triste poesia, +pousar-me docemente na imaginação.</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>São passados sete annos e com elles quantas illusões!...</p> + +<p>Entremos por momentos na alfandega de Lisboa.</p> + +<p>Na casa das bagagens vae um borborinho indescriptivel: os passageiros, +chegados ha pouco da Madeira, no <i>Maria Pia</i>, e do Brazil, não +sei em que paquete, reclamam com instancia a propriedade; os fiscaes +impacientam-se; as malas e os bahus fecham-se ruidosamente, depois de +examinados pelas vistas prescrutadoras dos aduaneiros; os carros de mão +giram velozes sobre o asphalto; os sinetes, molhados em tinta azul, +percutem sem cessar os disticos de cada lote...</p> + +<p>Eu, á busca d’um amigo a quem esperava, ia correndo os grupos, já meio +desorientado pela confusão, quando sons ainda mais discordantes me +vieram ferir os ouvidos.</p> + +<p>Junto de mim, discursava-se com animação, n’aquella lingua que, segundo +já alguem disse, qualquer póde falar mettendo um fio de retroz na +garganta, e que o auctor do <i>Fausto</i>, com o melhor fundamento, +<span class="pagenum" id="Page_168">[Pg 168]</span> +poz na bocca do diabo.</p> + +<p>Volto-me, para ver quem vinha juntar o seu allemão áquelle motim +destemperado, e vejo...</p> + +<p>Quem ha ahi que não conheça as milagrosas propriedades nutritivas +attribuidas ao medicamento, que tem o nome de uma famigerada cortezã +franceza, e que tão apregoado foi pelos jornaes das cinco partes do +mundo?</p> + +<p>Pois era <i>ella</i>, a allemã ... depois de ter tomado a revalescière +Dubarry.</p> + +<p>A principio descri dos sentidos.</p> + +<p>Admittia-se porventura que o ente ideal e vaporoso qual ondina do +nevoeiro, que eu entrevira n’outro tempo, se houvesse transformado no +que eu tinha deante de mim!</p> + +<p>Mas não havia que duvidar.</p> + +<p>O rosto era o mesmo, embora á transparencia alabastrina e ás rosas +da tisica tivesse succedido ... como hei de dizel-o?... o adipe +abundante e as côres sádias da robustez. A cabeça, em vez de +reclinada morbidamente, conservava-se levantada e vivaz. A fraqueza +de valetudinaria transformara-se em fortaleza, que faria inveja ás +nossas matronas de Diu, de que fala Jacintho Freire, ou a um soldado do +imperador Guilherme.</p> + +<p>Eu estava indignado!</p> + +<p>Scismara sete annos n’aquella mulher, enterrara-a, recitara-lhe nénias +sobre a sepultura, para um dia,—oh! prosa da vida!—ousar apparecer-me +sã, robusta, a vender saude.</p> + +<p>Era quasi uma abominação, um crime de leso-ideal; quanto melhor não +<span class="pagenum" id="Page_169">[Pg 169]</span> +fôra que tivesse morrido!</p> + +<p>Mas ainda eu não disse tudo.</p> + +<p>Dava o braço a um allemão (era-o, com certeza!) de barba loura, e +seguiam-a duas creanças louras, uma ao collo, outra pela mão d’uma +creada tambem loura.</p> + +<p>Tudo louro!</p> + +<p>Não quiz ver mais nada, e saí precipitadamente da alfandega, +amaldiçoando o sentimentalismo, as allemãs e o cabello louro.</p> + +<figure class="figcenter" id="i029" style="width: 70px;"> +<img src="images/i029.jpg" width="200" height="70" alt="decorative"> +</figure> + + +<hr class="chap x-ebookmaker-drop"> + +<div class="chapter"> +<figure class="figleft" id="i030" style="width: 400px;"> +<img src="images/i030.jpg" width="400" height="305" alt="Um homem está na areia de uma praia com o braço esquerdo erguido quando vislumbra um outro homem ao mar aparentemente sendo atacado por um animal marinho."> +</figure> +</div> + +<p><span class="pagenum" id="Page_171">[Pg 171]</span></p> +<h2 class="nobreak" id="O_Marraxo"><i>O Marraxo</i></h2> + + +<p>Um calor de rachar pedras, quanto os quatro rapazes descansaram do +trabalho. Já na vespera á tarde se tinha annunciado a léstia pelos tons +vermelhos do horisonte para as bandas do nascente.</p> + +<p>Os ricos e remediados podiam fugir-lhe, mettendo-se em casa, com as +portas e as janellas bem fechadas; mas elles, coitados!...</p> + +<p>Cá fóra chegavam a toda a parte as breves lufadas do vento abrasado +do Sahara, que parecia não ter perdido um atomo da sua ardencia com o +atravessar centenas de leguas do Atlantico, desde a costa de Africa até +á pequena ilha do Porto Santo. N’aquelle ambiente de forno, as plantas +mirravam-se de tal sorte, que se alguem apertasse entre os dedos as +folhas mais tenues, facilmente as reduziria a pó.</p> + +<p>Mas o mar ficava a dois passos do logar do trabalho.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_172">[Pg 172]</span></p> + +<p>—Que rico banho, graças a Deus! pensavam os quatro.</p> + +<p>Atravessaram de corrida o areal a escaldar, e foram-se despir á sombra +de uma saliencia de rocha, junto ao Penedo do Somno.</p> + +<p>Na extensa praia que borda o sul da ilha, o ar, como ao de cima de uma +fogueira, trepidava rarefeito. Augmentava-se ainda mais a impressão +do calor, com os offuscantes clarões d’aquella areia amarella e +fina. Ninguem podia respirar, nem que fosse até lá acima, ao pico do +Castello, que muito no alto, ao noroeste, desenhava no ceo baço e +pardacento o perfil regular da sua pyramide.</p> + +<p>O mar estava alli ao pé. Todo frescura, espreguiçava-se na praia, +encrespado pelo sopro da léstia: ao largo, porém, com o sol +dardejando-lhe a pino, lembrava um extenso e irrequieto lençol de metal +fundente.</p> + +<p>—Sabem vocês uma coisa? disse um dos quatro. A modos que o mar tambem +está encalmado!</p> + +<p>E a rir do proprio dicto, o José desceu até ao mar, molhou a mão +direita e benzeu-se devotamente.</p> + +<p>Os outros fizeram o mesmo, e investiram para a agua todos a um tempo, +no meio de cachões de espuma, e soltando guinchos com a repentina +impressão do frio.</p> + +<p>O Francisco seguido por mais dois nadou para fóra, mas o José, que no +mar nunca tinha sido afoito, deixou-se ficar no sitio onde quebravam as +ondas. A agua nem lhe dava pela cintura.</p> + +<p>—Larga-te d’ahi, calaceiro! berrou o Antonio, ao vel-o na occasião em +que virava rapidamente a cabeça, para sacudir da testa os cabellos +<span class="pagenum" id="Page_173">[Pg 173]</span> +gotejando agua.</p> + +<p>—Vá quem quizer, que eu cá tenho pouco folego.</p> + +<p>—Ah! Tu não vens? Eu já te vou escarmentar.</p> + +<p>Mergulhou, e reappareceu ao cabo de poucos segundos: trazia na mão uma +pedra de cal e atirou-a para o José.</p> + +<p>—Ah! Vocês querem fazer-me <i>reinar</i>? disse este ultimo, deveras +amuado, e correu para o logar onde estava a roupa. Tirou a agua da +cabeça passando-lhe a mão com força, enfiou a camisa e veiu enxugar á +torreira do sol, empoleirado no rochedo que avançava pelo mar dentro.</p> + +<p>A umas cem braças de terra, os outros voltaram para traz. Não eram +da mesma força a nadar e por isso vinha mais fóra o Francisco, logo +adiante o Antonio e na frente de todos o Luiz.</p> + +<p>Com a mão direita estendida sobre os olhos, á guisa de pala, e +segurando com a outra a fralda da camisa, que o leste sacudia, o José +seguia os movimentos dos amigos com olhares invejosos.</p> + +<p>Mas o que viu elle subitamente?...</p> + +<p>Atraz do Francisco, a umas quatro ou cinco braças a agua mexia-se, e +divisava-se como que uma sombra escura seguindo os banhistas.</p> + +<p>—O que seria aquillo?</p> + +<p>Mal tinha formulado mentalmente a pergunta, deu um grito fortissimo.</p> + +<p>Ao de cima da agua avistava-se distinctamente uma galha escura e +delgada.</p> + +<p>—É um marraxo!</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_174">[Pg 174]</span></p> + +<p>Tremulo de medo, bracejando muito, desatou a chamar os outros, com +gritos entrecortados.</p> + +<p>O Luiz, que se tinha deitado de costas para descansar, ouviu-o e olhou +na direcção que os gestos indicavam. Como descobriu a galha do tubarão, +bradou logo:</p> + +<p>—Nada com ancia, Francisco, nada com ancia, e não pares!... E tu +tambem, Antonio!... Olhem o que vem lá atraz!</p> + +<p>O Francisco voltou a cabeça e passou-lhe pelo corpo um arrepio, como se +a agua tivesse gelado de repente.</p> + +<p>Em quanto elle nadasse—estava farto de o saber—o marraxo não atacava, +porque não pode morder sem parar primeiro e virar-se, a fim de voltar +para cima a bocca immensa, armada com sete ordens de dentes cortantes +como aço!</p> + +<p>E acudiu-lhe á memoria o triste fim d’aquelle rapaz, que um marraxo +rolara pelo meio, ao pé do ilheo da Cal.</p> + +<p>Mais rapidos que as ideias que lhe estuavam no cerebro, só os +movimentos que fazia nadando, e que, desordenados, o iam extenuando a +mais a mais.</p> + +<p>Um dos companheiros havia no entretanto chegado a terra.</p> + +<p>Como é que o terrivel animal o não tinha já alcançado?... Devia estar +quasi a tocar-lhe nos pés!... Não tardava a rilhar-lhe os ossos!...</p> + +<p>Perguntassem-lhe se preferia que um raio o fulminasse, a continuar +n’aquella agonia tremenda, e pediria que no ceo limpido, testemunha +impassivel da tragedia, se formasse de prompto uma nuvem de +<span class="pagenum" id="Page_175">[Pg 175]</span> +tempestade, para lançar-lhe a fita de fogo, que o matasse +instantaneamente.</p> + +<p>Já não podia mais. O coração batia-lhe no peito, como se quizesse +arrombar-lh’o.</p> + +<p>Tambem já tinha chegado á praia o João.</p> + +<p>—Só para elle estava guardada aquella morte horrenda!...</p> + +<p>O José lembrou-se de que no sitio onde se despiram tinham visto um +madeiro roliço, que parecia resto de um mastro. Correu a buscal-o. +Despiu a camisa e amarrou-lh’a bem, pelas mangas. Sobre o penedo e com +o corpo inclinado para o mar, não perdia de vista o perseguido nem o +perseguidor.</p> + +<p>O Francisco já podia tomar pé, mas fazia bem continuando a nadar, +pois o maior perigo estava exactamente no instante em que parasse, e +assentasse os pés no fundo, para desatar a fugir.</p> + +<p>Ia o Luiz atirar uma pedra ao tubarão, mas o José prohibiu-lh’o com um +gesto imperioso, e bradou:</p> + +<p>—Nada sempre, ó Francisco, e não tenhas medo!</p> + +<p>Um pouco debruçado do penedo, acompanhava com os olhos esgazeados os +movimentos do peixe, tal qual o trancador de baleias no momento de +arpoar. Mas o banhista chegou á babugem da maré e logo o madeiro caíu +entre elle e o marraxo.</p> + +<p>—Foge, Francisco! bradaram-lhe os tres, como se fosse preciso o +conselho.</p> + +<p>Vendo caír-lhe diante e estacionar ao lume da agua aquella massa +branca, o marraxo voltou-se e fincou-lhe os dentes com ancia.</p> + +<p>—Ahi podes tu morder, cachorro! gritou-lhe o João. Surriada!</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_176">[Pg 176]</span></p> + +<p>E contentissimos, os tres atiravam-lhe pedras, em quanto o Francisco se +deixou caír na praia, extenuado e offegante.</p> + +<p>Sem dar pela aggressão, o enorme esqualo queria desforrar-se do logro +estracinhando a madeira, mas como a areia já lhe penetrava nas guelras, +mudou de rumo e dirigiu-se para o largo, a galha escura surgindo sempre +ao lume de agua.</p> + +<p>Desde aquelle dia o Francisco, por mais calor que fizesse, nunca mais +se metteu no mar.</p> + +<figure class="figcenter" id="i031" style="width: 200px;"> + <img src="images/i031.jpg" width="200" height="86" alt="decorative"> +</figure> + + +<hr class="chap x-ebookmaker-drop"> + +<div class="chapter"> +<figure class="figcenter" id="i032" style="width: 1200px;"> +<img src="images/i032.jpg" width="1200" height="723" alt="Um homem deitado no chão, com o braço direito erguido na direção do rosto e com o chapéu a cair, exclama de dor ao ser atingido por uma avalanche de pedras, uma das quais já atingiu a sua perna direita."> +</figure> +</div> + +<p><span class="pagenum" id="Page_177">[Pg 177]</span></p> +<h2 class="nobreak" id="O_Pae_Do_Jacintho">O Pae Do Jacintho</h2> + + +<img alt="E" class="drop-cap" height="319" src="images/drop-e.jpg" width="200"> +<p class="nind"><span class="upper-case">EU</span> +estava debruçado no mainel da ponte, por onde se entra na quinta do +Jardim da Serra.</p> + +<p>Pelo ambiente volitavam effluvios perfumados, vivificantes. O sol, em +jorros de luz, animava todo o valle, onde se repercutia sem cessar +o chilro atroador dos passaros empoleirados pelos castanheiros e +carvalhos, e o murmurio do ribeiro, que formava cascata junto á quinta, +para continuar depois serpeando mansamente por entre a penedia musgosa.</p> + +<p>O tilintar dos chocalhos do gado, que pastava na encosta visinha, ou as +vozes das lenhadoras cantando pelo caminho do Curral, misturavam por +vezes áquelles sons, uma nota melancholica e destacada.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_178">[Pg 178]</span></p> + +<p>De fitar a agua fugitiva ia-me penetrando da suave frescura, que +emanava das profundezas do leito escuro da corrente, e ao mesmo tempo +alentava-me a perenne vida, que palpitava em toda a natureza aos beijos +do sol deslumbrante.</p> + +<p>Senti uns passos ligeiros, como que medrosos, perto de mim, na ponte.</p> + +<p>Era o Jacintho. Vinha com elle um velho—o pae.</p> + +<p>Na vespera, quando saí do Funchal tinha visto o cabo surgir ao meu +lado, vestido á paisana e disposto a acompanhar a pé o cavallo que eu +montava.</p> + +<p>—Vaes de licença?</p> + +<p>—Saberá V. S.<sup>a</sup> que sim, por um mez. Eu sou de ao pé da quinta para +onde V. S.<sup>a</sup> vae passar estes dias, e já agora sigo aqui ao lado de V. +S.<sup>a</sup>, se V. S.<sup>a</sup> me dér licença.</p> + +<p>E o cabo, sem parar no dispendio das senhorias, não deu parte de fraco +durante o passeio de tres leguas, não ficando nem um instante para +traz do picarso, por mim alugado na rua da Queimada para a encantadora +digressão.</p> + +<p>Cicerone consciencioso, não omittiu o nome de nenhum dos +<i>demeraristas</i>, que tinham comprado terras á beira da estrada. +Via-se que a Guyana ingleza fôra para elles um verdadeiro Brazil, ao +contemplar as casas brancas, quasi todas com <i>venezianas</i>, de que +estavam povoados os terrenos adquiridos.</p> + +<p>Antes de me dizer adeus, pediu-me licença para, no dia seguinte, me +apresentar o pae.</p> + +<p>Coitado! Via em mim, pobre capitão de caçadores, um potentado, o que +<span class="pagenum" id="Page_179">[Pg 179]</span> +quer que fosse de superior e intangivel, principalmente estando eu alli +perto da casa d’elle, e entendia honrar sobremodo o auctor dos seus +dias dando-lhe conhecimento commigo.</p> + +<p>Por isso me appareciam ambos n’aquella esplendida manhã de julho.</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>Ainda rijo, o velho. Encostado a um bordão, com a camisa alva de neve a +saír por baixo do collete, botas e calças brancas, a carapuça na mão, +fitava em mim uns olhinhos curiosos e sorria parvamente, á espera de +que o filho m’o apresentasse.</p> + +<p>—Saiba V. S.<sup>a</sup> que aqui está o meu pae, disse o cabo.</p> + +<p>O velho então ganhou desembaraço e pouco tardou em contar-me toda a +sua vida. Em certos pontos interrompia a narração para mirar o filho, +extatico, embevecido, como se mal acreditasse que o pequenito doente e +franzino de quinze annos antes, se tivesse feito aquelle rapagão cheio +de robustez e capaz de vender saude.</p> + +<p>—O que me tem dado muitas <i>freimas</i>, sr. capitão, é elle estar +longe de mim. Nunca sei o que lhe terá acontecido ou póde vir a +acontecer. Demais, aqui, ao <i>meu pé</i>, sempre me ajudava... Se +por força tinha de saír da minha companhia, então que embarcasse para +Demerara. Lá ao menos podia enriquecer.</p> + +<p>—Ou já teria morrido, objectei.</p> + +<p>E tratei de fazer-lhe comprehender o que ha de nobre no serviço +militar, e quanto é culpado quem pretende fugir-lhe; mas o velho +<span class="pagenum" id="Page_180">[Pg 180]</span> +abanou a cabeça, e teimou em não se deixar convencer, a despeito da +approvação, que os gestos do filho estiveram a dar-me constantemente.</p> + +<p>Lembrei-lhe que o Jacintho, que saíra cabo alguns dias atraz e já +mandava em praças mais antigas, era muito estimado pelos superiores, e +disse-lhe até que d’aquella massa é que se faziam os officiaes como eu.</p> + +<p>Não resistiu. Iam-se-lhe os olhos no seu rapaz.</p> + +<p>Por cima d’aquellas faces, que os frios e as soalheiras tinham crestado +e a velhice cortava de rugas, mas onde brilhavam ainda as rosas da +saude, correram duas lagrimas de satisfação.</p> + +<p>—O filho do Manoel de Jesus ainda está em soldado? perguntou elle ao +Jacintho.</p> + +<p>—Está e estará, respondeu este, com ufania. Se não sabe ler!...</p> + +<p>—Deveras! Então sempre serviu d’alguma coisa o que fiz por via de ti. +Lembras-te?</p> + +<p>A instancias minhas, referiu-me a commovente historia do seu amor de +pae—como tinha conseguido que o filho aprendesse a ler e a escrever.</p> + +<p>A escola era muito longe, e elle, receioso de que o pequenito, que +devia andar pelos seus seis annos, cansasse pelo caminho, acompanhava-o +sempre, antes de ir para o trabalho, pelas manhãs asperas e geladas, +quando o vento norte soprava rijamente, mais cortante do que navalhas. +O Jacintho, em muitas occasiões, desatava a choramigar, dizendo que não +sentia os pés e que já não podia dar passada. Então elle pegava-lhe ao +collo, descalçava-o, desabotoava o peitilho da camisa, e aconchegava +<span class="pagenum" id="Page_181">[Pg 181]</span> +ao calor do corpo os pésinhos inteiriçados com o frio. Quantas vezes +sentiu cãibras no estomago, dôres muito finas, depois d’aquelle +contacto regelador!... Mas nem por isso arredava a creancinha, que ia +inclinando vagarosamente a cabeça para o hombro do pae, até que por fim +adormecia. Ao cabo de dois annos de escola, o Jacintho, «como tinha boa +<i>mimoira</i>», já sabia ler por cima.</p> + +<p>—E não <i>havera</i> de ser enganado, como eu tenho sido e hei de +continuar a ser! rematou o velho, sentenciosamente.</p> + +<p>Encareci-lhe com enthusiasmo o seu admiravel procedimento, porém elle +recusou ingenuamente o elogio:</p> + +<p>—Não faz mingua o senhor dizer tantas coisas. Se isto é o meu +sangue!...</p> + +<p>E pronunciava estas palavras, envolvendo o filho n’um olhar de ternura +infinita, como as aves envolvem em macio frouxel os seus pequeninos +implumes, na meiga concavidade dos ninhos.</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>Foi isto pouco mais ou menos—áparte a fórma—o que me contou o +Silveira. Até aqui, tinha tido na voz uma suavidade, que sobremaneira +contrastava com o aspecto marcial e severo da sua physionomia.</p> + +<p>Remexeu-se na cadeira, saccudiu a cinza do charuto, puxou o bonnet +<span class="pagenum" id="Page_182">[Pg 182]</span> +para a testa e acabou assim a narração do caso:</p> + +<p>Quatro annos depois, ainda eu pertencia a caçadores 12. O Jacintho, já +na reserva, tinha casado e morava á ilharga da praça do peixe, que como +sabes fica sobre o Calhau.</p> + +<p>Com um dinheiro ganho pela mulher nas casas onde tinha servido, +puzeram um botequim. A freguezia começou logo a acudir numerosa, pois +que o rosto alegre e bonito da dona do estabelecimento era magnifico +chamariz. De mais a mais a Rita arranhava o inglez, e d’este modo +conseguia que a loja fosse preferida pelos marinheiros britannicos, +excellentes consumidores de «bebidas de guerra».</p> + +<p>O velho assistiu ao casamento do filho e voltou para o Estreito de +Camara de Lobos. Com os seus sessenta e cinco annos bem puxados, ainda +mourejava de sol a sol. Um dia, em que andava trabalhando perto de uma +pedreira, ouviu o grito de: «Lá vae fogo!» annunciando a explosão da +<i>broca</i>. Como devia haver mais duas advertencias eguaes áquella, +não se apressou muito. Quando pousou o picão em terra, ouviu a segunda. +Correu para fugir a algum pedaço de rocha, que a polvora explodindo +arremessase a distancia, mas contou demasiado com a ligeireza das +pernas e caíu. A <i>broca</i> rebentou, depois do terceiro aviso +do bota-fogo, e um grande penedo veiu apanhar o pae do Jacintho, e +partiu-lhe uma perna e um braço.</p> + +<p>Levado n’uma rêde para a cidade, o pobre entrou no hospital da +Misericordia e alli esteve tres mezes e meio.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_183">[Pg 183]</span></p> + +<p>A principio o filho, umas vezes só, outras com a mulher, ia vel-o +quasi todos os dias, e carpir a desgraça do pae. Mas as visitas foram +rareando.</p> + +<p>—Se elle tem a vida tão apensionada! desculpava entre si o doente.</p> + +<p>Nos ultimos tempos nenhum dos dois appareceu por lá.</p> + +<p>Quando lhe deram alta, o velho estava aleijado.</p> + +<p>A uns enfermeiros que o lamentavam, de o verem sair do hospital +coxeando e arrimado ao bordão, respondeu cheio de confiança:</p> + +<p>—Isso era bom, se eu não tivesse o meu filho!</p> + +<p>Appareceu-lhe em casa inopinadamente. Não o receberam mal, e até lhe +mostraram agrado, em quanto elle não se explicou.</p> + +<p>Depois do jantar, abriu-se com o Jacintho e a nora. Assim aleijado, não +poderia fazer nenhum trabalho: por consequencia voltar para o Estreito +e morrer de fome, vinha tudo a dar na mesma. O Jacintho olhou a medo +para a mulher, que se tinha tornado muito vermelha, e fincava os olhos +no tecto.</p> + +<p>Por isto não deu o velho, mas notou que o filho, ao offerecer-lhe a +casa logo depois, gaguejava e parecia quasi não saber o que estava +dizendo. Assaltou-o uma suspeita:</p> + +<p>—Seria pesado ao Jacintho?</p> + +<p>A resposta indecisa dada por este e o silencio pertinaz da nora, +explicaram-lhe tudo.</p> + +<p>—Está bom rapaz! Que queres? Julguei que vivias mais desembaraçado. +Volto para a nossa freguezia. Sempre lá me hei-de arranjar. Fica-te com +Deus, filho, fica-te com Deus!</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_184">[Pg 184]</span></p> + +<p>Agarrou-se a elle, beijou-o muito e saiu pela porta fóra, arrastando +ainda mais da perna aleijada.</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>Tempos depois, vi-o no asylo de mendicidade.</p> + +<p>Como sabia isto, disse-lhe do filho tudo quanto merecia aquella infamia.</p> + +<p>O velho escutou-me sorrindo tristemente e respondeu por fim, a encolher +os hombros:</p> + +<p>—Será verdade o que o senhor me diz, mas que lhe hei-de eu fazer? Se +elle é do meu sangue!...</p> + +<figure class="figcenter" id="i033" style="width: 200px;"> + <img src="images/i033.jpg" width="200" height="57" alt="decorative"> +</figure> + + +<hr class="chap x-ebookmaker-drop"> + +<div class="chapter"> +<figure class="figright" id="i034" style="width: 400px;"> +<img src="images/i034.jpg" width="400" height="480" alt="Uma procissão religiosa sendo precedida por duas jovens e seguida por dois homens atrás portando estandarte e vara. O padre segue logo a seguir. Um grupo de três homens observam a procissão e um outro homem por detrás de um muro, tenta jogar uma pedra sobre eles."> +</figure> +</div> + +<p><span class="pagenum" id="Page_185">[Pg 185]</span></p> +<h2 class="nobreak" id="A_Folga">A Folga</h2> + + +<p class="nindc">(Notas de folklore fayalense)</p> + + +<p>Tudo prompto em casa do João Furtado, para se receber a coroa do +«Senhor Espirito Santo».</p> + +<p>E não é nada cedo. A procissão já saíu da casa do <i>imperador</i>, que +foi o ultimo a <i>coroar</i> no anno antecedente, e vem a caminho.</p> + +<p>Os visinhos andam tão alvoroçados, que se não fosse o José, sobrinho do +João Furtado, teriam invadido a casa, para verem de mais perto o altar, +armado no quarto de fóra.</p> + +<p>Mas não se atrevem, que o rapaz, de sentinella á porta, prega um não +redondo na cara do mais pintado. Além d’isso, todos sabem que elle não +é para brincadeiras, e que poderia ir ás do cabo, temendo que lhe +<span class="pagenum" id="Page_186">[Pg 186]</span> +escangalhassem o que lhe tinha custado tanta lida.</p> + +<p>Como elle se revia no altar! Sobre a meza coberta com uma toalha +de renda, nada menos de quatro jarras de flores e de outros tantos +castiçaes com os cyrios ainda por accender. Dão-lhe tanta graça o docel +de cassa branca e as cortinas de barra vermelha, que pendem de cada +lado!</p> + +<p>E como está bem clara toda a casa! Nem a egreja, na noite de Natal! +Contando-se bem, são dez os candeeiros de petroleo, uns em cima das +mezas, outros pendurados nas paredes.</p> + +<p>Entrassem os visinhos e tambem quereriam ver o quarto seguinte, onde +teem dormido os donos da casa desde o dia em que se casaram, por signal +n’aquella cama coberta com colcha de ramagem. O que porém lhes chamaria +a attenção n’este quarto, haviam de ser as duas mezas que lá estão +unidas pelas cabeceiras, á espera da ceia dos <i>foliões</i>.</p> + +<p>O João Furtado bem podia ficar satisfeito com o sobrinho, visto que +todas as suas ordens se cumpriram á risca.</p> + +<p>O rapaz é que não tinha sombras de satisfação, nem de alegria: triste +como a noite!</p> + +<p>Bastava-lhe estar longe da Maria, que vinha de <i>imperatriz</i> no +acompanhamento da corôa.</p> + +<p>Verdade seja que triste andava elle sempre, desde que lhe tinha faltado +o pae, e que o tio, vendo-o em riscos de ir para soldado, resolvera +demorar, sem dizer até quando, o casamento ha muito ajustado entre os +dois primos.</p> + +<p>Primeiramente o José, por soberba, quiz tirar d’alli a sua ideia, +<span class="pagenum" id="Page_187">[Pg 187]</span> +cuidando que o tio só desejava livrar-se d’elle e arranjar para a +filha um noivo mais rico; não poude! Cada vez gostava mais da Maria, +principalmente a partir da hora em que tinha julgado descobrir n’ella +um certo desapego. Talvez a prima tambem olhasse ao pouco que elle +agora tinha, depois de paga a divida do pae ao Joãosinho Terra, que na +<i>villa</i> emprestava dinheiro a juro. Em quanto o velho não fechou o +olho, todos o faziam com mundos e fundos, e sabidas as contas...</p> + +<p>Porém o José curtia de si para si os amargos de bocca, e calava a +paixão, receioso de que, falando, o despedissem por uma vez. Só poderia +adivinhar-lhe o segredo, quem attentasse nos olhos, que elle ás vezes +deitava á Maria, e em que havia tanto amor, tanta cubiça!... Mas isto +mesmo, só o fazia quando tinha a certeza de não ser observado.</p> + +<p>Outra coisa, além da ausencia da prima, o estava agora consumindo: o +pensar que nas danças da <i>folga</i> ella ia andar nos braços de um +e de outro. Que se livrasse de dançar com o menino Ricardo, filho do +Joãosinho Terra!</p> + +<p>—D’aquella familia, só lhe vinham desgraças!</p> + +<p>Um mez antes, na ribeira dos Flamengos, apanhára os dois conversando +muito á mão. É verdade que a prima tinha lá ido lavar uma trouxa de +roupa de freguezes seus, mas tanto não estava fazendo coisa boa, que +apenas o viu, ficou mais vermelha que uma romã.</p> + +<p>A corôa approxima-se, que bem se ouvia já a marcha tocada pela +philarmonica e o rufar monotono do tambor dos foliões, como que +marcando o rythmo da musica. Estalavam de instante a instante as +<span class="pagenum" id="Page_188">[Pg 188]</span> +<i>respostas</i>, e serpeavam no ar os foguetes a dizerem o logar +exacto em que vinha o cortejo.</p> + +<p>Embora consumido, o José não se esqueceu do que lhe competia, e foi +accendendo os cyrios do altar, ao tempo que a tia, com algumas visinhas +e tres senhoras vindas da Horta mediante convite especial, entravam +azafamadas. Tinham estado no terreiro á espera, e foram a uma meza +buscar vellas de stearina, e tambem as accenderam, nos cyrios. Nenhuma +se esqueceu de resguardar-se de algum pingo, pondo o lenço de assoar +á laia de bobeche. Todas, de mão deante da chamma, correram para o +terreiro, a allumiar a corôa.</p> + +<p>Um ultimo relance de olhos tranquilisou o José: tudo estava em termos. +Podia entrar a suspirada visita.<a id="FNanchor_3" href="#Footnote_3" class="fnanchor">[3]</a></p> + +<p>Vencido pelo habito e pela geral suggestão o rapaz correu para +<span class="pagenum" id="Page_189">[Pg 189]</span> +a porta, a admirar o acompanhamento, que avançava com a ordem e +solemnidade costumada, impondo respeito e chegando a encantar os menos +propensos á devoção.</p> + +<p>Tinha-se calado a musica, mas rufava sempre o tambor dos foliões, +estrugiam os pandeiros e estalavam as bombas.</p> + +<p>Mais longe, no couce da procissão, o <i>Magnificat</i> entoado pelos +cantores da egreja matriz do Fayal, dava á solemnidade a nota da uncção +religiosa.</p> + +<p>Na frente do cortejo tres homens a par: o do meio deitava os foguetes, +o da esquerda transportava as munições, já muito diminuidas pelo +consumo, e o da direita mantinha accesa uma acha de lenha, soprando-lhe +muito, a fim de trocal-a pela que incendiava os foguetes, quando esta +fosse a apagar-se.</p> + +<p>Em seguida os quatro <i>foliões</i>. Sobre o fato usual, grandes opas +encarnadas de gola verde recortada aos bicos, e de mangas tambem +encarnadas e canhão verde. Nas cabeças, lenços de chita vermelha +amarrados sobre a nuca, as pontas caídas para as costas.</p> + +<p>Um traz a bandeira de panno encarnado com toscas applicações de panno +branco, representando as do centro uma corôa e uma pomba, symbolos do +Espirito Santo, e flores as dos quatro angulos.</p> + +<p>Dos restantes <i>foliões</i> um toca tambor, e pandeiros os outros.</p> + +<p>Seguem-se dois renques de irmãos, todos com varas brancas e precedidos +pelo <i>estandarte</i> de seda branca, em que ha adornos semelhantes +áquelles, porém executados com mais alguma arte.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_190">[Pg 190]</span></p> + +<p>Dois artistas da mesma força deviam ser com certeza os esculptores das +pombas, que encimam tanto a haste da bandeira como a do estandarte. Eu +chamei pombas aos animaes alli figurados, mas creio que o mais notavel +dos zoologos se daria a perros, tendo de classifical-os.</p> + +<p>Agora a parte mais interessante do cortejo—para mim, pelo +menos—constituida pelo beijinho das raparigas bonitas do logar, umas +com vellas accesas, outras espargindo flores, e quatro formando com +varas brancas um quadrado, dentro do qual ia a imperatriz, com a corôa +nas mãos, e de cada lado sua moçoila, uma com o sceptro e a outra com a +salva de prata.</p> + +<p>Depois da imperatriz, o imperador. O João Terra <i>coroava</i> pelo +João Furtado, e certo de que augmentava com isto o brilho á festa, +avançava a passos tão regrados e magestosos, como ... o seu collega +Carlos Magno entrando na cathedral de Aix-la-Chapelle. Para ser +completamente feliz só lhe faltava uma coisa: que a casaca lhe não +apertasse nos sovacos, e a bota de lustro no peito do pé.</p> + +<p>Fechavam o acompanhamento os cantores da matriz, a philarmonica e um +magote de povo.</p> + +<p>Em quanto o cortejo ia enchendo a casa do João Furtado, recrudescia a +foguetada e as bombas rebentavam continuamente.</p> + +<p>Chega a imperatriz em frente do altar, desfaz-se o quadrado, cujas +varas, juntamente com a dos irmãos, são guardadas n’uma comprida caixa +para isso destinada.</p> + +<p>Desde que entrou, a corôa servia de alvo a confeitos dourados e de +<span class="pagenum" id="Page_191">[Pg 191]</span> +varias côres e a raminhos, cujas flores eram tambem confeitos montados +em arames.</p> + +<p>A Maria colloca-a no centro do altar, e logo os foliões, que estavam em +frente alinhados n’uma fileira, entoam a conhecida copla:</p> + +<div class="poetry-container"> +<div class="poetry"> + <div class="stanza"> + <div class="verse indent0">Ó Senhor Esp’rito Santo</div> + <div class="verse indent0">A vossa casa cheira,</div> + <div class="verse indent0">Cheira a cravo, cheira a rosa,</div> + <div class="verse indent0">Cheira a flôr de larangeira.</div> + </div> +</div> +</div> + +<p>Um dos que tocam pandeiro levanta mais a voz e prolonga a nota final; +segue-se o outro, descendo uma oitava e vae assim por diante a +cantoria, com trinados á mistura, acompanhada pelo tambor, em que o +folião respectivo dá, segundo o preceito, duas pancadas successivas com +a baqueta, depois outras duas e afinal tres. A estes sons juntam-se por +vezes o dos pandeiros, e estrepitosos vivas ao «Senhor Esp’rito Santo», +que já se tinham ouvido em toda a passagem do cortejo.</p> + +<p>Durante a cantilena dos foliões, as <i>senhoras da villa</i> e +duas <i>mulheres do monte</i> vão compôr o vestido e o penteado á +imperatriz, cuidado aliás inutil a bem dizer, pois se ha «moça bem +pregadinha» é a Maria do João Furtado. Como ella, nenhuma tão esmerada +na sua pessoa e no seu fato.</p> + +<p>O José, a quem não passaram despercebidas estas attenções, revia-se na +linda flôr do campo, esquecido de tudo, até do ciume.</p> + +<p>Andava n’este comenos o João Terra desempenhando um dos deveres do +imperador: tendo recebido de uma das companheiras da imperatriz o +<span class="pagenum" id="Page_192">[Pg 192]</span> +sceptro, deitara-o nas mãos, sobre um lenço, e percorria toda a sala, +offerecendo aos beijos dos circumstantes a pombinha de prata, que o +adorna.</p> + +<p>O ultimo beijo, e de certo o mais fervoroso, foi dado pelo dono da +casa, quando o sceptro já estava no altar. E nem sequer lhe passou pela +ideia o que lhe custava a festa. Custasse o dobro, e elle quereria +assim mesmo gosar aquelle direito.</p> + +<p>Já todos tomaram logares. Nos melhores ficam as senhoras da Horta, e á +ilharga d’ellas, depois de lh’os ter amavelmente offerecido, senta-se +muito ancha a mulher do João Furtado.</p> + +<p>Lá entra o José, ajoujado com um pratalhaz de arroz doce, e precedido +pelo tio, que se pôz em mangas de camisa para mais á vontade servir +aos convidados a aguardente de pecego, que passará do frasco de +vidro escuro onde está agora, para a bocca dos que hão bebel-a, por +intermedio do mesmo calix. Os pechosos não terão que dizer, porque o +escanção, isto é, o João Furtado, depois de servir cada um dos seus +convidados, limpará a borda do copo á manga da camisa.</p> + +<p>Isto de mais a mais é costume tradicional, como tambem é costume +comerem todos o arroz doce pela mesma colher. Á entrada do José, lá +vinha uma espetada verticalmente ao centro do manjar, e com ella vão +todos mettendo para a bocca a competente colherada, e até repetindo a +dose, com grave despeito do dono da casa e não obstante o arroz ter +certo gostinho a fumo, que nem á força de canella desapparecera de +todo.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_193">[Pg 193]</span></p> + +<p>O José não fugiu com o prato á abusiva repetição, porque estava com +o sentido n’outra coisa. Se não encontrava a prima, por mais que a +procurasse com os olhos!...</p> + +<p>Vae porem socegar: a Maria apparece no quarto immediato e ajudada por +outras raparigas põe na meza a ceia dos <i>foliões</i>.</p> + +<p>Os quatro abancam immediatamente e principiam a devorar com o seu +proverbial appetite.</p> + +<p>O rufador, para que o vinho lhe ajudasse a deglutição, disse a graça +costumada—que a pelle do tambor ia estalar de tanto se lhe ter batido, +e que o unico remedio era botar-se-lhe em cima uma pinga. E apenas +apanhou á mão o frasco, deitou uma gota no tambor e entornou para os +gorgomillos tanta vinhaça, que os companheiros romperam em murmurios, +julgando-se lesados.</p> + +<p>O segundo folião, antes de beber, faz o brinde habitual:</p> + +<p>—Lá vae á saude do imperador de hoje a oito dias!</p> + +<p>Ao passo que outro, com a bocca cheia, dispara um «Viva o Senhor do +Esp’rito Santo!»</p> + +<p>A ceia desapparecia rapidamente dos pratos. Tinha-a feito a Vicencia, +irmã do João Furtado, afamada em trabalhos culinarios. Áquella mesma +hora temperava ella na cosinha a sopa destinada aos presentes do dia +seguinte, muito saborosa com a grande quantidade de carne de vacca e +<i>linguiça</i>, e cada pão dividido em quatro partes apenas, para que +uma unica sopa chegasse para um presente.</p> + +<p>Na sala da folga entram muito galhofeiros, com a sobranceria de quem +<span class="pagenum" id="Page_194">[Pg 194]</span> +se julga n’um meio que não o merece, o Ricardinho Terra, o Luiz de +Carvalho e mais dois rapazes da Horta, isto é quatro <i>estudantes</i>, +como os appellidam por despreso os moços do campo, que em troca recebem +o qualificativo de <i>diamantes</i>, não menos desdenhoso na intenção +do seu ignorado inventor.</p> + +<p>Se a presença dos recemchegados desagradou a todos os rapazes do sitio, +que se apinhavam á porta e no terreiro, e que nos bicos dos pés olhavam +a custo para o interior da casa, ao José encheu de verdadeira furia.</p> + +<p>D’aqui por diante não mais perdeu de vista o menino Ricardo.</p> + +<p>Mas ninguem pensava n’elle, que iam principiar as danças e já se ouvia +o <i>mestre da viola</i>, o Joaquim Machado, na cosinha, onde tinha +acabado de ceiar, afinando o instrumento demoradamente, a preceito, sem +dar importancia ás impaciencias dos que anceavam por bailar.</p> + +<p>No seculo tinha posição humilde—era sapateiro—mas n’uma <i>folga</i> +hombreava em valimento com o proprio imperador. É que sem elle não se +<i>brincava</i>.</p> + +<p>Apesar d’isto, o João Furtado, fazendo-se interprete dos desejos +geraes, disse-lhe da porta da sala, em voz muito alta.</p> + +<p>—O’ Joaquim Machado, pega-me n’essa viola e salta cá para fóra!</p> + +<p>—Já se vae! Já se vae! retorquiu o outro, sem se apressar. É preciso +pol-a nos pontos!</p> + +<p>D’ahi a pouco appareceu á porta, e conscio da importancia inherente ao +<span class="pagenum" id="Page_195">[Pg 195]</span> +seu cargo, foi sentar-se junto ao altar.</p> + +<p>Tiravam-se pares.</p> + +<p>O João Terra escolheu a Maria, ao tempo que um <i>diamante</i> +perguntava a esta: «A menina quer brincar commigo?». Desvanecida porque +ia dançar com um <i>senhor da villa</i>, a quem de mais a mais lavava a +roupa, a filha do João Furtado nem sequer deu resposta ao pretendente +plebeu.</p> + +<p>Outros pares se iam formando, levadas as raparigas com espalhafato para +o meio da casa, mas ficando cada <i>cavalheiro</i> a respeito da sua +<i>dama</i> como se fossem vis-à-vis de contradança franceza, e assim +formando-se de cada lado uma fileira, em que os homens se alternavam +com as mulheres. Dois pares consecutivos constituem uma chama-rita e só +com elles se pode já executar a dança.</p> + +<p>O dono da casa excitava os renitentes, batendo as palmas e bradando:</p> + +<p>—Chega a pares! Chega a pares! Ao terreiro!</p> + +<p>Como não principiava a musica, o Ricardinho, que ia dançar com uma das +senhoras mas que não cessava de olhar para a Maria, disse com o entono +de quem quer ser promptamente obedecido:</p> + +<p>—Então essa viola não fica afinada por uma vez?</p> + +<p>O Joaquim Machado sem se desconcertar, mirou-o altivamente e mastigou +como por de mais:</p> + +<p>—Está-se tratando sobre esse mesmo objecto.<a id="FNanchor_4" href="#Footnote_4" class="fnanchor">[4]</a></p> + +<p>Quando o tocador muito bem quiz, rompeu a musica e com ella a +chama-rita. Os dançantes, ao mesmo tempo que acompanhavam a viola +<span class="pagenum" id="Page_196">[Pg 196]</span> +dando estalos com os dedos, bamboleavam-se, saracoteavam-se para a +direita e para a esquerda, e faziam passinhos de dança n’um e n’outro +sentido, avançando e recuando um pouco, para tornarem sempre ao mesmo +sitio.</p> + +<p>Um camponio ou <i>homem do monte</i>, que era par da dona da casa, +cantou:</p> + +<div class="poetry-container"> +<div class="poetry"> + <div class="stanza"> + <div class="verse indent0">Ao romper da bella <i>airola</i><a id="FNanchor_5" href="#Footnote_5" class="fnanchor">[5]</a></div> + <div class="verse indent0">Sae o pastor da <i>gaivana</i><a id="FNanchor_6" href="#Footnote_6" class="fnanchor">[6]</a></div> + <div class="verse indent0">Gritando em altas <i>vózeas</i></div> + <div class="verse indent0">Muito padece quem ama.</div> + </div> + <div class="stanza"> + <div class="verse indent0">Chama Rita, chama Rosa,</div> + <div class="verse indent0">Chama Rita tão formosa!</div> + </div> +</div> +</div> + +<p>Quando o cantador principiava a repetir estes dois ultimos versos +á laia de estribilho, cada homem, estalando sempre com os dedos e +bamboleando-se, recuou seguido pela sua dama, que voltada para elle e +com os mesmos ademanes, parecia attrahida pelo chamamento.—D’isto, +naturalmente, é que a dança tirou o nome.—Chegadas as duas mulheres +de uma mesma chama-rita a altura em que podiam, costas com costas, +trocar a posição, effectuaram a mudança, recuando seguidas agora pelos +seus pares, até que todos entraram no alinhamento primitivo, mas em +ordem inversa. N’esta occasião cada homem fez em relação á dama do +outro par da sua chama-rita, um movimento analogo ao que o sr. Justino +<span class="pagenum" id="Page_197">[Pg 197]</span> +Soares—valha-me o abalisado choreographo!—chamaria «<i>balancé au +côté</i>», se desejasse indical-o aos seus discipulos da arte de +Terpsychore.</p> + +<p>Succederam-se os versos engendrados pela musa popular. O mestre da +viola, com um vozeirão de baixo profundo, garganteou:</p> + +<div class="poetry-container"> +<div class="poetry"> + <div class="stanza"> + <div class="verse indent0">Coração acima, acima,</div> + <div class="verse indent0">Se não podes correr anda.</div> + <div class="verse indent0">Tudo é pouco, bem n’o sabes</div> + <div class="verse indent0">Para ver a sua dama.</div> + </div> + <div class="stanza"> + <div class="verse indent0">Chama Rita, chama Rosa,</div> + <div class="verse indent0">Ella que venha cá fora,</div> + <div class="verse indent0">Venha ver o seu amor</div> + <div class="verse indent0">Que lhe quer falar agora!</div> + </div> +</div> +</div> + +<p>Quando acabava esta ultima quadra, que pelo numero de versos equivale +ao estribilho com a sua repetição, e que por isto não foi bisada pelo +cantador, o Ricardinho Terra, para saír da monotonia da chama-rita, +valeu-se de uma das marcas dos bailes de roda, com que costuma +variar-se aquella dança, e disse em tom de marcador de quadrilha:</p> + +<p>—Roda cheia!</p> + +<p>E logo todos cruzaram os braços e deram as mãos trocadas, formando +roda, que depois desfizeram para cada um dos bailadores, enlaçado ao +respectivo par, fazer o que nas contradanças francezas se designa pela +phrase—valha-nos outra vez o nosso Vestris!—<i>galop au tour</i>, com +a differença de que o passo é o da chama-rita, ou muito semelhante ao +<span class="pagenum" id="Page_198">[Pg 198]</span> +da polka.</p> + +<p>A <i>folga</i> animava-se.</p> + +<p>Para excitar ainda mais o enthusiasmo, cruzavam-se os:</p> + +<p>—Pega fogo!</p> + +<p>—Anda!</p> + +<p>—Aquece, rapaz!</p> + +<p>O Ricardinho, fitando muito a Maria, cantou-lhe:</p> + +<div class="poetry-container"> +<div class="poetry"> + <div class="stanza"> + <div class="verse indent0">Aqui tens meu coração,</div> + <div class="verse indent0">Se o queres matar, bem podes,</div> + <div class="verse indent0">Olha que estás dentro d’elle</div> + <div class="verse indent0">E se o matas tambem morres.</div> + </div> +</div> +</div> + +<p>O José ia disparatando, mas conteve-se porque o Luiz Carvalho, depois +de repetir o ultimo verso da quadra, arreliou o amigo com est’outra, +sempre usada para taes casos, viciando-a como os cantadores populares:</p> + +<div class="poetry-container"> +<div class="poetry"> + <div class="stanza"> + <div class="verse indent0">Assubi ao altar mór</div> + <div class="verse indent0">P’ra accender vellas ao throno,</div> + <div class="verse indent0">Bem tolo é quem se mata</div> + <div class="verse indent0">Por coisas que já teem dono.</div> + </div> +</div> +</div> + +<p>O Ricardinho gritou: «Mãosinhas!», o que se executou dando os pares +as mãos, e virando-se cada um dos dançadores alternadamente para os +que lhe ficavam contiguos, ao mesmo tempo que iam todos caminhando +lateralmente como no <i>grand rond au tour</i>.</p> + +<p>A provocação do Luiz de Carvalho teve esta resposta, do Ricardinho:</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_199">[Pg 199]</span></p> + +<div class="poetry-container"> +<div class="poetry"> + <div class="stanza"> + <div class="verse indent0">Não ha nada tão perfeito</div> + <div class="verse indent0">Como o amor de um estudante:</div> + <div class="verse indent0">Ainda que seja pobre,</div> + <div class="verse indent0">Sempre tem o amar galante.</div> + </div> +</div> +</div> + +<p>Mas um rapaz do sitio corrigiu-lhe de prompto a coarctada, com outra +preparada egualmente para casos identicos:</p> + +<div class="poetry-container"> +<div class="poetry"> + <div class="stanza"> + <div class="verse indent0">Não viera um vento norte</div> + <div class="verse indent0">Que levara os estudantes,</div> + <div class="verse indent0">Para livrar esta terra</div> + <div class="verse indent0">Dos <i>homes</i> extravagantes.</div> + </div> +</div> +</div> + +<p>A furia do José de novo acalmou.</p> + +<p>Ainda assim difficilmente deixaria de haver um dos barulhos inherentes +a estes passatempos, alguma <i>poeirada</i>, se não apparecesse á porta +o padre vigario, na occasião em que, indicada pelo Ricardinho, se +executava a marca «Salta e rema!», na qual cada homem deve, passando +por traz do seu par e tomando-lhe a direita, ir fazer <i>balancé</i> +com a pessoa que lhe fica d’este lado, mas sem se darem as mãos, e +repetir o mesmo com a da esquerda. Continuam durante isto o <i>grand +rond au tour</i>, e a estalada com os dedos visto que as mãos se acham +livres.</p> + +<p>O João Furtado, mal viu o padre, disse em voz muito alta:</p> + +<p>—Triloré!</p> + +<p>A dança parou logo e todos foram cumprimentar o recemchegado, que vinha +honrar a festa com a sua presença.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_200">[Pg 200]</span></p> + +<p>—A benção de Deus seja n’esta casa! disse o vigario e depois de fazer +uma venia á coroa, foi sentar-se na cadeira de balouço, que o João +Furtado fizera promptamente desoccupar em obsequio a sua reverendissima.</p> + +<p>Mas o desejo do bom do padre, era que as danças continuassem.</p> + +<p>Antes de ir para o seminario de Angra, e até quando vinha de lá passar +as ferias com a familia, elle não perdia uma unica folga.</p> + +<p>Estes divertimentos attrahiam-o ainda, como tudo o que nos traz para +diante dos olhos já queimados pelas lagrimas da desillusão, os dias +luminosos da mocidade.</p> + +<p>Ia recomeçar a chama-rita.</p> + +<p>Á pergunta do estylo, que os antigos pares lhes faziam sobre o nome +do escolhido para a nova dança, as raparigas em geral responderam, +tambem segundo o estylo vulgar «O senhor mesmo!», com grave escandalo +dos outros rapazes, que assim continuavam a ser na festa uns meros +espectadores, e que se desforraram com o conhecido protesto:</p> + +<p>—Caras novas ao terreiro!</p> + +<p>A Maria não imitou o maior numero. Como ouvisse o João Terra dizer que +já não tinha pernas para folias, e não desejando fazer-lhe desfeita, +escolheu o filho d’elle—o Ricardinho. O José ficou embaçado, sem poder +mexer-se, e calado como se lhe tivessem amarrado uma mordaça.</p> + +<p>Só o tio deu por isto, e para evitar alguma asneira, travou-lhe do +braço e disse-lhe em voz baixa, terminantemente:</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_201">[Pg 201]</span></p> + +<p>—Anda commigo, diabo!—E como sentisse alguma resistencia, +accrescentou com maior intimativa:—Se não vieres, dou-te na cara, aqui +mesmo, deante de todo este povo!</p> + +<p>Lá passar por similhante vergonha, isso é que nunca! E devia ao tio +tantos favores, apesar de tudo...</p> + +<p>Acompanhou-o, mas fez logo uma tenção bem firme. Nem Jesus Christo, que +viesse a este mundo, seria capaz de arrancar-lh’a.</p> + +<p>O ar da estrada refrescou-lhe a cabeça, sem lhe esfriar a resolução.</p> + +<p>Mas as danças continuavam e só a isto é que todos attendiam.—Todos, +menos elle.</p> + +<p>A Maria cantava com a sua voz estridula e argentina, bem afamada na +ribeira dos Flamengos:</p> + +<div class="poetry-container"> +<div class="poetry"> + <div class="stanza"> + <div class="verse indent0">Ó Pico, rocha tão alta,</div> + <div class="verse indent0">Retiro dos passarinhos!</div> + <div class="verse indent0">Mais retirada que eu ando,</div> + <div class="verse indent0">Meu amôr, dos teus carinhos!</div> + </div> +</div> +</div> + +<p>O José que a ouviu lá fora, resmungou entre si:</p> + +<p>—Isso! Isso mesmo! Como se a fogueira inda precisasse de mais lenha!...</p> + +<p>E chegou-se para a porta da casa, apparentando indifferença.</p> + +<p>A dança animou-se mais, com o crescente enthusiasmo em que estava o +Ricardinho. Mal este gritou: «Cadeia!», as mulheres levaram o braço +esquerdo atraz das costas, á altura da cintura, e os homens deram-lhes +as mãos, indo as direitas de cada par enlaçadas na frente, como no +<span class="pagenum" id="Page_202">[Pg 202]</span> +galope, e as esquerdas n’aquella posição. Será bom dizer que mais de +uma rapariga se tinha prevenido para o caso, resguardando as costas do +vestido no sitio provavel do contacto, por meio de um lenço pregado com +alfinetes. Os pares, assim unidos, avançaram para o centro e recuaram, +passando cada homem á dama que lhe ficava logo á direita, para com ella +executar isto mesmo, e assim successivamente, até encontrar-se de novo +com a que lhe pertencia.</p> + +<p>Umas das senhoras da cidade, a Annina Mesquita, bem conhecida pelo seu +romantismo piegas, cantou com uma voz, que, em homenagem á verdade, +deveria chamar-se de canna rachada:</p> + +<div class="poetry-container"> +<div class="poetry"> + <div class="stanza"> + <div class="verse indent0">Encostei-me ao pecegueiro,</div> + <div class="verse indent0">Cobri-me toda de flôr,</div> + <div class="verse indent0">Ai de mim tão pequenina</div> + <div class="verse indent0">Tão perseguida de amôr!</div> + </div> +</div> +</div> + +<p>Mas por um pouco não deixava a quadra incompleta, porque estrondearam +perto, contendendo-lhe com os nervos, duas bombas, deitadas da +janella pelo João Furtado, para solemnisar o acabamento da ceia dos +<i>foliões</i>. Estes saíram á formiga, deixando a bandeira, o tambor e +os pandeiros, e levando comsigo, embrulhadas n’um lenço, as opas e os +sapatos. Dois tinham de ir para longe, e com similhantes trambolhos nos +pés, arriscavam-se a ficar pelo caminho.</p> + +<p>Á «cadeia» seguiu-se a marca «Foge!» equivalente á +<i>grande-chaine</i>, mas principiada com a mão direita, e fazendo os +<span class="pagenum" id="Page_203">[Pg 203]</span> +homens um movimento analogo ao <i>balancé</i>.</p> + +<p>—Quer n’uma, quer n’outra—disse o José comsigo mesmo—o Ricardinho +apertou a mão de Maria!</p> + +<p>Não tinha duvida.</p> + +<p>Da chama-rita, passou-se aos bailes-de-roda, e a outras danças.</p> + +<p>No <i>sapateia de cadeia</i> bailou tambem o Joaquim Machado, tomando +logar no extremo d’uma das fileiras, viola ao peito, os restantes pares +dispostos como na chama-rita.</p> + +<p>O José ia estourando de raiva, ao ver a Maria dançar mais uma vez com +o Ricardinho, mas conteve-se e foi tirar a Luiza, filha do regedor da +freguezia. Andou tão alegre, que até cantou esta quadra popular, com +que o João Furtado se escangalhava sempre com riso:</p> + +<div class="poetry-container"> +<div class="poetry"> + <div class="stanza"> + <div class="verse indent0">Uma jaqueta de abob’ra,</div> + <div class="verse indent0">Forrada de melancia,</div> + <div class="verse indent0">As casas de vento norte,</div> + <div class="verse indent0">Os botões de calmaria.</div> + </div> +</div> +</div> + +<p>Durante ella, as duas linhas de dançadores avançaram uma para a outra e +recuaram até ao ponto de partida.</p> + +<p>E logo o Joaquim Machado atacou, muito emphatico:</p> + +<div class="poetry-container"> +<div class="poetry"> + <div class="stanza"> + <div class="verse indent0">Foge, anda tu, ó meu bem,</div> + <div class="verse indent0">Foge, amor, que eu tambem fujo,</div> + <div class="verse indent0">Fujamos ambos p’ra o matto,</div> + <div class="verse indent0">Para á sombra do tamujo!</div> + </div> +</div> +</div> +<p><span class="pagenum" id="Page_204">[Pg 204]</span></p> +<p>O primeiro d’estes versos foi o signal para se executar o «Foge» da +chama-rita, ao qual succedeu a «Cadeia» do mesmo baile. Chegados todos +aos seus logares, o Ricardinho cantou:</p> + +<div class="poetry-container"> +<div class="poetry"> + <div class="stanza"> + <div class="verse indent0">Oh! Sapateia, meu bem.</div> + <div class="verse indent0">Sapateia de cadeia,</div> + <div class="verse indent0">Deixa-me ir banhar no mar,</div> + <div class="verse indent0">No mar que dorme na areia!</div> + </div> +</div> +</div> + +<p>O mestre da viola, tocando sempre, retorquiu, com guelas de estentor:</p> + +<div class="poetry-container"> +<div class="poetry"> + <div class="stanza"> + <div class="verse indent0">Oh! Sapateia, meu bem!</div> + <div class="verse indent0">Oh! Sapateia, faz arco!</div> + <div class="verse indent0">Diga o mundo o que disser,</div> + <div class="verse indent0">Já d’aqui me não aparto!</div> + </div> +</div> +</div> + +<p>Ao primeiro verso, a fileira do lado do Joaquim Machado voltou-se para +a direita e a opposta para a esquerda, e cada dançante, com excepção +d’aquelle, deu a mão ao seu par e levantou o braço, formando-se assim +uma especie de abobada. O tocador e a dama respectiva passaram então +sob o arco formado pelo par mais proximo, contornaram o par seguinte, +mas pelo lado exterior, e foram passar por baixo do arco do terceiro +par, e assim successivamente. O segundo par executou eguaes movimentos, +logo que deu passagem ao mestre da viola, e todos os mais foram fazendo +o mesmo, com uma regularidade tamanha, que o proprio vigario applaudiu +enthusiasmado.</p> + +<p>As danças succederam ás danças, e os pares succederam aos pares, não +<span class="pagenum" id="Page_205">[Pg 205]</span> +porque alguem desse parte de fraco, mas porque era preciso contentar a +todos os que tambem queriam <i>brincar</i> o seu boccadinho.</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>Era noite velha e ainda a folga não tinha acabado.</p> + +<p>As tres senhoras voltaram para a cidade n’uma carruagem, alugada para +as levar e trazer; João Terra veiu no seu burrinho, e os quatro rapazes +a pé, visto não ser grande a distancia dos Flamengos á Horta, e a noite +estar fresca.</p> + +<p>Não havia luar, mas as estrellas palpitavam com vivo clarão no fundo +negro do ceo, tão limpo de humidade que nem lembrava ceo dos Açores.</p> + +<p>O Ricardinho na frente com o Luiz Carvalho, aturava-lhe os remoques, +visto que o outro, não tendo podido n’aquella noite justificar a sua +fama de conquistador, se desforrava com o amigo.</p> + +<p>Mettido no vão de uma porta, para onde correra logo que os viu partir, +o José ouviu-lhes a conversa, sem que nenhum dos quatro o presentisse:</p> + +<p>—Grande brejeiro, dizia o Carvalho. Quizeste ser imperador sem ter +coroado!</p> + +<p>—Fala claro, que não te entendo, voltou-lhe o Ricardinho.</p> + +<p>—Talvez não arrastasses a aza á imperatriz? Parabens, que a pequena é +de estalo! Mas o mais certo é não fazeres vaza. A Maria é muito capaz +de judiar comtigo uns poucos de mezes, e deixar-te no fim a chuchar no +dedo.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_206">[Pg 206]</span></p> + +<p>—O futuro a Deus pertence.</p> + +<p>—Pois ella é que nunca te ha de pertencer!</p> + +<p>O Ricardo Terra estacou, mesmo á ilharga da porta onde estava o José, e +disse com a prosapia inconsciente dos seus vinte annos:</p> + +<p>—Queres tu apostar em como antes de um mez a tenho no meu rol?</p> + +<p>O sobrinho do João Furtado sentiu uma vertigem, um desejo phrenetico de +partir, de espedaçar alguma coisa, mas não fez o menor movimento.</p> + +<p>Atravez das candeias amarellas que lhe bailavam deante dos olhos, +distinguiu que o fato do Ricardo era claro, e escuros os dos mais.</p> + +<p>Quando os viu longe, correu para o mesmo lado e entrou n’uma terra, que +acompanha a estrada durante uma grande extensão, e que é resguardada +por um muro baixo.</p> + +<p>Tendo-lhes ganho consideravel deanteira, agarrou n’um pedregulho e +acocorou-se por traz do muro.</p> + +<p>Pouco teve que esperar. Deitou a cabeça de fóra cautelosamente.</p> + +<p>O Ricardinho vinha á direita. Era o mais proximo.</p> + +<p>Apenas o teve a dois passos, ergueu-se de chofre, levantou a pedra com +ambas as mãos, bem acima da cabeça, e atirou-lh’a com quanta força +tinha.</p> + +<p>Um grito e o baque de um corpo.</p> + +<p>Afastou-se do muro rastejando, e desatou a correr como um coelho em +campo aberto. Ainda foi dançar quatro chama-ritas á <i>folga</i> do +tio, que só acabou quando já era sol nado.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_207">[Pg 207]</span></p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>Nunca se descobriu quem fôra o assassino do Ricardinho Terra.</p> + +<p>Como o pae e o filho se tinham envolvido n’uma tramoia eleitoral, +falaram os jornaes da opposição em vinganças politicas.</p> + +<p>O João Furtado é que de alguma coisa desconfiou, e por causa das +duvidas arranjou d’alli a mezes e muito ás occultas, passagem para o +José a bordo de uma baleeira.</p> + +<p>O rapaz foi ter aos Estados-Unidos. Um anno depois mandou pedir a prima +em casamento, aconselhando ao tio que fosse mais ella para S. Francisco +da California, pois se haviam de arranjar muito bem.</p> + +<p>O João Furtado, como averiguou que o sobrinho estava a caminho da +riqueza, seguiu-lhe o conselho.</p> + +<p>A Maria é hoje muito feliz com o marido; mas o sogro, á cautela, não +vive em casa do genro.</p> + +<figure class="figcenter" id="i035" style="width: 200px;"> + <img src="images/i035.jpg" width="200" height="113" alt="decorative"> +</figure> + + +<hr class="chap x-ebookmaker-drop"> + +<div class="chapter"> +<figure class="figcenter" id="i036" style="width: 200px;"> +<img src="images/i036.jpg" width="200" height="37" alt="decorative"> +</figure> +</div> + +<p><span class="pagenum" id="Page_209">[Pg 209]</span></p> +<h2 class="nobreak" id="O_Paiol">O Paiol</h2> + + +<img alt="E" class="drop-cap" height="319" src="images/drop-e.jpg" width="200"> +<p class="nind"><span class="upper-case">ERA</span> +temivel o sargento Bernardo quando principiava a contar historias, +mas como rastejava pelos setenta annos e tinha sido um valente, +todos o escutavam com pachorra. Um dia na Malaca, pequena bateria do +castello de S. João Baptista, na Terceira, ouviram-lhe o seguinte caso. +Affiançaram-me depois que a narrativa não era destituida de fundamento.</p> + +<p>Demos a palavra ao sargento Bernardo:</p> + +<p>«Não sei bem quando isto foi. Lembro-me de que tinha vindo de Lisboa +para S. Miguel em cabo, e que estava lá destacado havia bastante tempo. +O commandante do material era um capitãosinho de má cara, d’aquelles +com quem a gente não engraça, nem á quinta facada.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_210">[Pg 210]</span></p> + +<p>Por isso o meu commandante, o nosso tenente, nunca era com elle visto, +nem achado.</p> + +<p>Um dia começou a fallazar-se do homem. Sabem que mais? Pelos modos +fazia o mesmo que o mestre do cazão de caçadores, que foi n’outro dia +responder a conselho ... cortava-se, mas não era com tiras de panno! +O que elle bifava, era muita e muita arroba da polvora do paiol. Mas +lá na que dava para as salvas não roubava nada, essa lhes juro eu! As +peças davam sempre o mesmo berro.</p> + +<p>A coisa tinha-se divulgado, e já se dizia pela cidade que o paiol +estava cheio d’areia, porque a polvora tinha-a queimado o capitão ... +puxando o rabo á sota.</p> + +<p>Que jogava era tambem certo. Excommungado!... Deus me perdôe! Não havia +noite nenhuma em que eu estivesse de guarda ao quartel, no castello +de S. Braz, que não me tivesse de levantar por causa do melro. E +quasi sempre duas e tres vezes! Vinha buscar dinheiro, para voltar +para a jogatina. E com que cara de peccado mortal elle andava! Se o +visse á meia noite, em logar escuso, era capaz de pôr-me a crer nas +feitiçarias, em que toda a galuchada de S. Miguel acredita como no +Divino Espirito Santo.</p> + +<p>Andavam os taes dictos, quando chegou navio de Lisboa. D’alli a pedaço +disparam esta novidade no castello; o capitão do material vae ser +rendido e já desembarcou o tenente, que vem para o logar d’elle. Fiquei +banzado!</p> + +<p>No dia seguinte vi o official novo. Era um perfeito moço, lá isso era! +Alto como uma torre, grosso que nem isto...—O Bernardo abriu muito +<span class="pagenum" id="Page_211">[Pg 211]</span> +os braços, formando circulo.—E então a falar?... Tinha o diabo em si! +Devia ser do Algarve.</p> + +<p>Segundo parece, contou logo que no commando geral da artilheria já +se sabia da marosca do capitão, e que elle, tenente, recebera ordem +para ver tudo, coisa por coisa. Se até disse que trazia uma balança de +botica, para pesar as onças e meias onças de polvora!... Era chalaça, +está visto.»</p> + +<p>—E o outro, ó tio Bernardo? perguntou um dos que ouviam o veterano.</p> + +<p>«O capitão? Se julgam que mudou de cara, enganam-se redondamente. Qual +historia! Até o achei de melhor parecer, quasi a sorrir!</p> + +<p>Passados tres dias, começou a entrega. Foram primeiro ás peças, +palamenta, lanternetas...»</p> + +<p>—Sim, tudo o que atulhava os armazens do material de guerra, +interrompeu um dos ouvintes. E depois?</p> + +<p>—Ah! Vocemecês teem pressa? atalhou o Bernardo. Pois então haja saude! +E ia retirar-se.</p> + +<p>Só depois de muito instado, se resolveu a continuar a historia, mas +d’esta vez com certo mau humor.</p> + +<p>«No dia em que se devia entregar a polvora fui nomeado para ir com +as fachinas ao paiol, acompanhar os dois senhores officiaes. Eu não +acredito em bruxedos, já lhes disse, mas não sei o que me passou pela +cabeça, quando me deram parte da nomeação. Parece-me que tremi de medo, +o que me não tinha acontecido, podem crer, nas Antas nem no convento da +Serra do Pilar. Ao menos nas linhas do Porto, sabia eu haver-me com os +demos dos Corcundas, mas alli... O coração adivinhava-me alguma coisa. +<span class="pagenum" id="Page_212">[Pg 212]</span> +Á tarde fomos todos para o paiol. Sabem onde elle fica! Saíndo a gente +da cidade para os Arrifes e andando menos de um quarto de hora, topa-o +á sua mão esquerda.</p> + +<p>Iamos eu, as quatro fachinas, o capitão da jogatina e o tenente novo. +Os dois senhores officiaes, por signal, tinham jantado bem, muito bem +até! Logo se conhecia...</p> + +<p>Chegou-se ao paiol, abriu-se a porta do guarda-fogo e a do +armazem,—tudo sem novidade. Quando eu estava a olhar para os barris +e cunhetes, que já começava a lobrigar alinhados em duas fileiras, o +capitão voltou-se para mim e disse-me:</p> + +<p>—O’ cabo Bernardo, você já esteve em minha casa, lá no castello de S. +Braz?</p> + +<p>—Saberá V. S.<sup>a</sup> que sim, senhor.</p> + +<p>—Pois então vá buscar o mappa da carga, que deixei lá por +esquecimento. Peça-o ao fiel, ao 36.</p> + +<p>Fiz meia volta e já ia para marchar, quando ouvi:</p> + +<p>—Olhe!</p> + +<p>Volvi logo á rectaguarda.</p> + +<p>—Onde está a balança que lhe deu o fiel?</p> + +<p>—Saberá V. S.<sup>a</sup> que o fiel não me deu balança nenhuma.</p> + +<p>—Cabeça de burro! Pois então volte você ao castello, e peça-lh’a! Como +quereria o 36 que pesassemos a polvora? Tolice fiz eu em dispensal-o. +Estava doente... É verdade! Leve as fachinas para trazerem a balança.</p> + +<p>—Bastam duas para a balança e uma para os pesos.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_213">[Pg 213]</span></p> + +<p>O capitão olhou para mim d’um modo exquisito e disse afinal, como se +lhe custasse:</p> + +<p>—Pois sim, deixe ficar um homem.</p> + +<p>Quando ia atravessando o guarda-fogo, deitei os olhos para o tenente, +que, sem se importar com o caso, estava alegre a não poder mais. Eu já +disse que elles tinham jantado bem.»</p> + +<p>—Ó tio Bernardo, você está dizendo mal dos seus superiores! notou um +dos ouvintes, a rir.</p> + +<p>—Leva rumor! acudiu outro. Queremos o resto da historia.</p> + +<p>«Elle ahi vae, disse o velho, que estando para acabar um conto, não +era capaz de parar nem á mão de Deus Padre. Quando eu ia pela estrada +abaixo, para o lado da cidade, mais os tres galuchos... tres não, +dois!... tambem lá estava um soldado velho, o 27, que tinha andado +commigo nas sarrafuscas da Patuléa... Ah! mas quando eu ia na estrada, +sentia-me alliviado de um peso de seiscentas arrobas... Não ficava mais +satisfeito deitando ao chão a mochila, depois de uma marcha de oito +leguas. Teria a gente dado uns duzentos passos, e eu ia conversando a +este respeito com o 27, eis senão quando a terra nos treme debaixo dos +pés, e por um pouco não vamos todos de ventas ao chão. Ao mesmo tempo +sentiu-se um estrondo, como se tivessem disparado alli ao pé uma duzia +de peças de quarenta e oito! Que demonio seria aquillo?»</p> + +<p>—O que era, tio Bernardo? perguntaram todos com interesse.</p> + +<p>«Tremor de terra não seria, trovoada menos ainda.—O paiol! foi o +<span class="pagenum" id="Page_214">[Pg 214]</span> +grito que me saíu da bocca. Voltei para traz, a correr como um doido.</p> + +<figure class="figcenter" id="i037" style="width: 700px;"> +<img src="images/i037.jpg" width="700" height="1059" alt="Dois soldados estão junto a um portão, sendo que o militar mais graduado fuma um charuto. Seu soldado lhe presta continência com a mão direita enquanto segura uma lamparina com a sua mão esquerda."> +</figure> + +<p>D’alli a um instante vi que não me tinha enganado. A parede do +guarda-fogo, do lado da estrada, estava tão esborralhada que não ficara +pedra sobre pedra. O paiol tinha ido pelos ares. Só restavam umas +<span class="pagenum" id="Page_215">[Pg 215]</span> +ruinas fumegantes.</p> + +<p>Quando andavamos a revolver o enthulho, para ver se encontravamos o +corpo d’algum d’aquelles pobres de Christo, appareceu-nos o cabo da +guarda, que tinha escapado por estar longe do seu posto... a falar com +uma rapariga. Maroto! Livrou-se da morte, mas precisava meia duzia de +guardas de castigo.»</p> + +<p>—E mais ninguem escapou?</p> + +<p>—Escapou tambem a sentinella. Apanhou com pedras no corpo e perdeu +dois dedos de uma das mãos, sendo por isso passado a veteranos. Veiu cá +morrer ao castello d’Angra.</p> + +<p>—E o que tinha succedido no paiol?</p> + +<p>«Ao certo só Deus o pode dizer. O que se averiguou, foi que o maldito +do capitão veiu fora do guarda-fogo, accender um charuto. A sentinella +ainda lhe fez reparo. Estivesse eu lá que sabendo as coisas como +corriam, atirava-me a elle e já não o largava. Boas ganas sentiria o +capitão ao tenente chegado de Lisboa! De mais a mais, queria esconder +a ladroeira. Pouco depois a sentinella apanhou com as pedras e não deu +tino de mais nada.»</p> + +<p>—Não se acharam os corpos?</p> + +<p>«Achou-se o do tenente, á distancia de uns quinhentos passos. +Reconheceram-o bem. Pelos modos o pobresinho ainda quiz fugir, porque o +<i>cadavre</i> estava menos queimado que os restos dos outros corpos.</p> + +<p>Gente que viu de longe aquella desgraça, contava que tinha subido para +o ar um grande esguicho de fogo, tal qual, julgo eu, quando os montes +da ilha vomitavam lume, em tempos que já lá vão muito longe.»</p> +<p><span class="pagenum" id="Page_216">[Pg 216]</span></p> + +<p>—Sabe o que me parece exquisito, tio Bernardo? notou alguem. O tenente +não desconfiar da marosca do capitão!</p> + +<p>—Essa cá me fica! Não disse eu que elle estava transtornado com a +bebida? Coitado! Tive pena d’elle. Era um rapagão como as casas!</p> + +<p>—Do capitão é que o tio Bernardo não pode dizer mal. Se elle o não +mandasse embora...</p> + +<p>—Tinha eu dado um salto de mil diabos, olá se tinha! Apesar d’isso, +não lhe perdôo. Porque não morreu elle sósinho? Se queria acabar com +estrondo, se não lhe bastavam os tiros da escolta á porta do cemiterio, +que demonio! mettesse-se n’um bote mais um cunhete de polvora, remasse +para o largo, e mecha no caso!... D’aquella maneira pagaram justos por +peccadores. Não lhe perdôo!»</p> + +<figure class="figcenter" id="i038" style="width: 200px;"> +<img src="images/i038.jpg" width="200" height="75" alt="decorative"> +</figure> + + +<hr class="chap x-ebookmaker-drop"> + +<div class="chapter"> +<figure class="figcenter" id="i039" style="width: 200px;"> +<img src="images/i039.jpg" width="200" height="41" alt="decorative"> +</figure> +</div> + +<p><span class="pagenum" id="Page_217">[Pg 217]</span></p> +<h2 class="nobreak" id="As_feiticeiras">As feiticeiras</h2> + + +<img alt="O" class="drop-cap" height="431" src="images/drop-o.jpg" width="200"> +<p class="nind"><span class="upper-case">OLÁ</span> +se elle acreditava em bruxarias!</p> + +<p>Com essas historias o tinham embalado.—A avó, mulher <i>de remate</i>, +fartara-se de contar-lhe o caso do homem, que estando no Brazil foi uma +noite visitado pela mulher, que vivia em S. Miguel, n’aquella mesma +villa da Lagôa. Havia bem quatro mezes que a triste não recebia cartas +do ausente, e como pelas que um visinho mandava á familia soubesse que +elle estava de saude, desconfiou de que outra lh’o tivesse roubado. +Para se tirar das duvidas, foi ter com uma bruxa, levando comsigo um +collete velho, que o marido antes de saír da ilha tinha suado muita vez +no trabalho, e que por conseguinte poderia servir para o bruxedo. «Ai! +Quem me déra ver meu marido!» disse ella á feiticeira, quando acabou de +explicar-lhe o que padecia. «E eras capaz de ir commigo?» perguntou-lhe +a velha.—«Pois não!»—«Sem te admirares do que visses?»—«De +<span class="pagenum" id="Page_218">[Pg 218]</span> +nada!»—«Pois então vamos vel-o esta mesma noite. Quando me ouvires +dizer: Vamos com os diabos!, repetes isto mesmo, e verás como te faço +a vontade.» Ao bater das doze badaladas, estava á porta da bruxa. +Perto cantou um gallo, de tal maneira que mettia medo. A feiticeira +appareceu: trazia um lençol, para com elle fazer um barco, segundo o +costume d’essas malditas, quando teem de ir para o mar; mudou, porém, +de tenção e voltou a casa. Tinha-se lembrado de coisa melhor. Passados +instantes, partiram. O pau de vassoura em que iam as duas, corria por +ares e ventos mais do que essas estrellas, que passam no ceo deixando +atraz de si um risco de lume. Muito em baixo, avistava-se como que um +lençol escuro, azulado e muito grande, sem fim—devia ser o mar.—A +porta do quarto do marido abriu-se de pancada, mas sem bulha... Se era +por artes magicas!—O traidor lá estava deitado com outra mulher.—Se a +bruxa consentisse, ella matava-os a ambos; mas só lhe deixou arrancar +uma das mangas ao vestido, que a outra, quando se metteu na cama, tinha +deitado para cima de uma cadeira. Assim, levava uma prova contra o +marido, e podia certificar-se em qualquer tempo de que tudo aquillo não +fôra obra de sonho nem de loucura.—Voltaram como tinham ido—o dicto +cabe aqui perfeitamente—em quanto o diabo esfrega um olho, e fizeram +um novo bruxedo, para que o marido tornasse quanto antes.—Ao cabo de +mez e mez e meio, chegava a S. Miguel.—«Estás como um cravo! disse +elle á mulher, quando entrou em casa, e quiz abraçal-a. Repelliu-o e +<span class="pagenum" id="Page_219">[Pg 219]</span> +perguntou-lhe o que tinha feito n’aquella noite, de que marcou a data +precisamente. «Isto é que se chama! Quem se póde lembrar, depois de +tanto tempo?...»—«Lembro-me eu!» E atirou-lhe á cara com a traição, +que o homem negou a pés juntos. Ella então correu á commoda, tirou para +fora a manga, e pondo-a bem á vista do marido, gritou-lhe: «Nega ainda, +se és capaz, nega! Fui lá, vi-te deitado com a brazileira, e arranquei +esta manga ao vestido da <i>ganhôa</i>!»—«Mas tu tens estado sempre +na ilha...» redarguiu elle, branco, enfiado. «Sempre, menos n’aquella +noite!»—«Ai! Que esta mulher é feiticeira!» exclamou o homem, fugindo +espavorido. No primeiro navio embarcou para o Rio de Janeiro, e lá +morreu pouco depois: da febre, disseram os cirurgiões; dos novos +feitiços que a mulher e a bruxa lhe fizeram, para que mais nenhuma o +lograsse, affirmava muito convencida a boa da velhinha.</p> + +<p>Mas ainda que a avó não lhe tivesse contado esta e outras historias +similhantes, o Francisco Raposo não deixaria de crer em feiticeiras, á +vista de dois casos succedidos com elle.</p> + +<p>O primeiro ainda poderia deixar-lhe duvidas. Era pequeno e vinha para +casa, com um molho de lenha miuda. Já era noite fechada. Estava com +somno. De repente, zumba, lenha ao chão! Levantou-a sem mais reparos, +e foi andando. Logo adeante, repetiu-se o mesmo. Sentiu a pelle a +arripiar-se, mas tornou a apanhar o molho. Deu mais cincoenta passos, +e a lenha caiu-lhe pela terceira vez. Sem querer saber dos gravetos, +desatou a correr como um perdigueiro atraz da caça, e só parou em +<span class="pagenum" id="Page_220">[Pg 220]</span> +casa, esbaforido, suando em bica. O pae riu-se e disse-lhe que não +deitasse as culpas ás feiticeiras mas ao João Pestana. «Da primeira +queda, sim senhor, respondeu elle, mas lá das outras...»</p> + +<p>O segundo caso é que não admittia a menor duvida. Já era um homem. Pela +noite velha ia subindo aquelle caminho, que passa por cima da Ribeira +Quente e d’onde se avista um grande pedaço da costa. Levava ao hombro, +por tal signal, uns pés de batata doce, que o tio Joaquim lhe tinha +encommendado. Por acaso virou-se para traz, e o que viu?... O mar todo +em fogo ... um fogo muito branco, como se a lua se tivesse delido na +agua. E ainda mais transido ficou, avistando uns vultos esbranquiçados +a caírem da rocha para o mar, deixando faiscas por onde passavam, em +quanto alli perto n’um chão imitante uma eira, dançavam outros de mãos +dadas, aos pinchos, soltando umas gargalhadas e uns gritos muito finos, +eguaes aos que dão certamente no inferno os condemnados, sempre que +vêem chegar mais uma alma, para soffrer as penas eternas.</p> + +<p>Tendo-lhe ouvido a historia, um senhor de Villa Franca disse-lhe que a +claridade do mar era do phosphoro de certos mariscos, e que o mais fôra +inventado pelo medo.</p> + +<p>A primeira explicação, não a entendeu o Francisco; e em quanto ao +medo, não fôra elle tamanho que lhe fizesse perder os pés de batata +doce. E tanto eram bruxas, que o caso lhe tinha acontecido no dia +d’ellas—n’uma terça feira.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_221">[Pg 221]</span></p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>Não admira, pois, que tendo-lhe começado os negocios a correr mal e a +fortuna a desandar, elle attribuisse tudo isto a obra de feitiçaria. +Duas vezes seguidas se lhe estragou a sementeira do milho, em quanto as +dos visinhos estavam que se podiam ver. Apodreceu-lhe tambem o batatal, +não escapando sequer a batata já colhida, que toda <i>azougou</i>. +Seria natural tudo isto?</p> + +<p>Para mais desgraça, tinha-lhe adoecido a melhor das duas vaccas, e o +ferrador, não se entendendo com a doença, disse-lhe afinal, porque +era homem de bem, e não quiz ganhar-lhe mais dinheiro: «Haja saude, +Francisco e não voltes cá. Fica-te com esta: o que a vacca tem é mau +olhado, e com esse não me sei haver. Vê se falas ao curandeiro das +Furnas, mas antes de lá ir, trata de saber quem daria quebranto á pobre +da alimaria.</p> + +<p>Foi isto o que de todo o convenceu.—Mas quem poderia desejar-lhe tanto +mal, quem?—Tinha vivido sempre bem com toda a gente; a nenhum visinho +dera nunca razão de queixa...</p> + +<p>Zangas sérias só as tinha tido com o primo João da Arruda, por causa +da herança da tia Gertrudes, mas esse já não era capaz de fazer-lhe +damno, que estava ha mais de seis mezes na terra da verdade. Morrera +talvez pelo desgosto de ficar mal na demanda, em que um e outro tinham +gasto rios de dinheiro. Tivera-lhe muita raiva, mas sem nunca poder +<span class="pagenum" id="Page_222">[Pg 222]</span> +satisfazel-a, graças a Deus!... Mostrava-lh’a bem n’aquelles olhares +atravessados, que lhe deitava todas as vezes que passavam um pelo outro.</p> + +<p>Sim! D’esse estava livre!</p> + +<p>Da familia do primo só restavam duas irmãs, ou para melhor dizer uma +só, visto que a mais velha já não se levantava da cama e era como se +não existisse. E mesmo a outra, a Marianna, estava quasi sempre em +casa, parece que a tratar da doente.</p> + +<p>Lembrou se de que ia atraz da vacca, da ultima vez em que a encontrara. +E sem querer estremeceu.</p> + +<p>—Seria a corsaria que lhe andava a dar quebranto?...</p> + +<p>A avó sempre lhe dizia: Deus nos livre do poder da má mulher.</p> + +<p>Recordou-se melhor d’aquelle encontro.</p> + +<p>A prima passou por elle sem trocarem, está bem de vêr, o Deus te +salve, e já deviam ir longe um do outro, quando o Francisco, sem saber +porque, se voltou para traz. Pareceu-lhe que o tinham obrigado áquelle +movimento. E viu os olhos da irmã do João da Arruda pregados n’elle, +como os do irmão, e talvez a mostrarem-lhe ainda maior zanga. Teve +ganas de moel-a com pancadas, mas deixou-a ir em paz, visto que ella +seguiu o seu caminho apenas o encarou.</p> + +<p>Dois dias depois—agora é que ligava estas coisas—adoecia-lhe a vacca.</p> + +<p>Tratou de saber se mais alguma pessoa lhe poderia querer mal, e não +descobriu nenhuma, nenhuma.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_223">[Pg 223]</span></p> + +<p>Tirou inculcas e veiu ao conhecimento de que a Marianna já pouco ia á +missa. Da ultima vez que lá foi, chegou quando o sr. padre já estava no +altar e saíu antes de se ter dicto a ultima palavra do santo sacrificio.</p> + +<p>—Não quer deixar por muito tempo a irmã sósinha em casa, explicou +alguem.</p> + +<p>—Não será por outra razão? perguntou o Francisco, muito assomado. Não +pode estar bem na egreja, quem anda mettido com o demonio!</p> + +<p>—Ui! Isso é que é falar! respondeu o outro, mal convencido.</p> + +<p>Quem lhe dava todos os amens, era uma irmã do pae, a tia Lauriana, +que morava sósinha e que para algumas pessoas tinha fama de bruxa e +de saber <i>lêr a dita</i>. As coisas que ella contou ao sobrinho, +deixaram-o estupefacto, sem pinga de sangue. Entre outras, disse-lhe +que ha gente que para atormentar um inimigo compra um coração de +boi preto—boi de outra côr não serve—, pendura-o na chaminé, e +todos os dias o vae espicaçando—quanto mais funda a picada, maior o +tormento—com uma tesoura aberta em cruz, e dizendo ao mesmo tempo +uma oração de resultados tão certos como os da reza da peneira, +que serve para adivinhar o futuro. Á medida que o coração se torna +escuro e mirrado, tambem o inimigo emmagrece, e perde saude, alegria, +felicidade. Egualmente proclamou os effeitos da terra de cemiterio, +colhida n’uma sexta feira á meia noite.</p> + +<p>—Ui, homem, não te lembras da minha prima Luiza?... Não! Não te podes +lembrar, disse-lhe a tia Lauriana. Pois a Luiza casou com um rapaz, +<span class="pagenum" id="Page_224">[Pg 224]</span> +que tinha tido amores com uma bruxa. E vae esta pegou em si e botou-lhe +feitiços. E o pobre de Christo andava depois a gritar pela casa, a +<i>oviar</i> como um cão e a esconder-se debaixo das mezas e cadeiras. +Ás duas por tres a Luiza estava na mesma. Só muito depois melhoraram... +Arranjei-lhe eu ... quero dizer, arranjou-lhe alguem o remedi o... e +poz-se a benzer a cabeça de ambos ... e elles então lançaram de si uma +coisa com alfinetes ... mas viveram pouco mais tempo.</p> + +<p>O Francisco perguntou á tia o que pensava da Marianna e da irmã.</p> + +<p>—Tu gostas d’ellas? Assim eu gosto, respondeu a velha. Ainda bem que +fizeste o irmão gastar com a justiça quasi tudo o que tinha. Nem elle +nem as irmãs se lembraram nunca de me dar nada.</p> + +<p>—E serão feiticeiras as duas? Serão ellas que me fazem mal, mesmo +encafuadas na toca?</p> + +<p>—Não digo menos d’isso, redarguiu a tia Lauriana, e aconselhou-o a +vigial-as, a ir ás escondidas ao pé da casa das primas. Se sentisse +cheiro a hervas queimadas ou algum parecido com esse, podia ficar na +certeza de que todo o seu mal vinha d’alli.</p> + +<p>—As feiticeiras defumam sempre as casas, fingindo louvar o Santissimo +Sacramento, quando por fim de contas dizia a velha com entono, o que +ellas teem é pacto com o diabo, a quem rezam como a gente reza a Deus +Nosso Senhor.</p> + +<p>O Francisco não queria ainda lançar todas as culpas á Marianna.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_225">[Pg 225]</span></p> + +<p>Quem sabe se o bruxedo seria feito por algum inimigo, de que elle não +desconfiasse?</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>Em todo o caso tratou de precaver-se contra a influencia malefica, e +tambem para isto lhe foi a Lauriana uma abalisada conselheira.</p> + +<p>Por traz da porta pendurou uma faca, de gume voltado para a rua e +um chavelho de boi, a que todas as manhãs queimava a ponta, o que +tambem fazia a um chifre de carneiro, que lhe era companhia constante. +Ao mesmo tempo defumava a casa, <i>rezando os quartos em cruz</i> +e deixando o fumo atraz de si. D’esta maneira, se as bruxas lhe +entrassem, como costumam, pelo buraco da fechadura, tornariam logo a +sair.</p> + +<p>Ainda receioso de que estes meios não fossem bastantes, preparou-se +para dar uma lição á feiticeira que conseguisse invadir-lhe o +domicilio. Comprou uma navalha com cabo de ponta de veado, amarrou-lhe +um rosario bento e pôl-a aberta, junto á cabeceira da cama. Mal visse +uma bruxa, atiraria a navalha, de modo que se espetasse no chão. E +tanto aquella como as outras que viessem tental-o, ficariam alli +presas, remoinhando estonteadas em volta do rosario, como em torno de +uma luz esvoaçam os mosquitos. Elle então levantar-se-hia da cama, +armado com a competente verdasca, e moeria á bordoada as infernaes +visitantes. Mas esperou-as debalde noites e noites, ás escuras, de +<span class="pagenum" id="Page_226">[Pg 226]</span> +olhos muito abertos, ouvido á escuta.</p> + +<p>—Alguem de certo as avisou, explicou-lhe a tia.</p> + +<p>O triste foi emmagrecendo; tornou-se amarello, escaveirado.</p> + +<p>Os visinhos já lhe sabiam das crendices. Dois d’elles, uns doidivanas +que ás proprias familias se não cansavam de pregar peças, tomaram o +Francisco á sua conta. Moravam á ilharga, e uma noite, emquanto um lhe +distraia as attenções, o outro conseguiu entrar-lhe em casa e amarrar a +uma das pontas da colcha um cordel, que extendeu pelo chão até á rua. +Meia hora depois o Francisco estava deitado, e já ia pegando no somno, +tão estremunhado elle andava pelas continuas vigilias, quando sentiu a +roupa a fugir.—D’esta vez é que eram ellas!— E atirou-lhes a navalha, +mas, pela precipitação, a ponta não se cravou no solho.—Ainda lhe +escapavam as malditas!—Só por vergonha não gritou por soccorro.</p> + +<p>Ainda que lhe revelassem a verdade, não acreditaria. Da brincadeira +tinha desapparecido qualquer vestigio, porque um puxão mais forte +fizera o cordel escapulir da colcha.</p> + +<p>Como não vissem o resultado da primeira facecia, os esturdios, tarde +da noite, espalharam á porta do visinho uma porção de sal e de cinza. +Quando o Francisco saía de manhã, para ir tratar das vaccas, sentiu +uma coisa a estalar-lhe debaixo dos pés e ia tendo uma vertigem. Uma +<i>salgadeira</i> á porta!... E de mais a mais tinha-a pisado!</p> + +<p>Correu a chamar a tia.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_227">[Pg 227]</span></p> + +<p>A velha observou de longe e a medo, benzeu-se e murmurou:</p> + +<p>—Eh! Senhor! Muito mal te querem, filho. E o que as bruxas te deitaram +á porta!... Sal, azeite, <i>incensio</i>, terra de cemiterio ... pois +aquella terra é de cemiterio com certeza! Credo! E tambem pennas, não +vês? accrescentou ella, indicando duas pennas de ave, que alli estavam +por acaso. Manda já varrer tudo isto ... para o lado de fóra, toma +sentido!... E vae queimar as botas com que pisaste o sal. Cruzes! +Cruzes!</p> + +<p>Assim se fez. As botas eram novas da vespera.</p> + +<p>Por traz das persianas, os dois sustinham o riso a muito custo, e +apenas viram o visinho entrar em casa e a velha ir-se embora, fecharam +a vidraça, e começaram aos pulos, ás gargalhadas, planeando nova +brincadeira.</p> + +<p>Arrepender-se-hiam talvez, se podessem ver o Francisco de joelhos +deante do oratorio, erguendo uma supplica ardente para os santos, que +conservava de ha muito constantemente allumiados.</p> + +<p>Antes de entrar, tinha hesitado e estivera quasi a obedecer á +tentação...</p> + +<p>Sentia ainda uma esperança. É que a vacca parecia melhorar.</p> + +<p>Aquelles santinhos, especialmente o representado n’um retrato egual aos +que se tiram hoje em dia ás pessoas<a id="FNanchor_7" href="#Footnote_7" class="fnanchor">[7]</a>, quantos milagres não tinham +feito em vida e depois da morte? Porque não haviam de fazer mais um, +<span class="pagenum" id="Page_228">[Pg 228]</span> +a favor de quem lhe rezava com devoção tamanha, o coração opprimido, o +rosto banhado de lagrimas?</p> + +<p>E por largo tempo invocou o auxilio milagroso de Santo Antonio.</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>No dia de Natal a vacca amanheceu muito peior. Soltava a cada instante +um mugido tão triste e doloroso, que nem uma alma christã metteria mais +compaixão, dizia depois, na cadeia, o Francisco Raposo.</p> + +<p>—Só a Marianna não terá dó do pobre do bicho, pensou elle, quasi a +chorar.</p> + +<p>A vacca fitou o dono com uns olhos muito afflictos, como a pedir que +lhe acudisse, que não a deixasse morrer.</p> + +<p>Depois teve um tremor por todo o corpo, descaíu a cabeça para o chão, +extendeu muito as pernas, deitou pela bocca uma baba muito grossa, e os +olhos embaciaram-se-lhe.—Estava morta.</p> + +<p>—Quarenta patacas perdidas! gemeu o Francisco, e arrimou-se á +humbreira da porta, arrancando os cabellos, praguejando, e batendo +<span class="pagenum" id="Page_229">[Pg 229]</span> +alli tão fortemente com a cabeça, que era um pasmo não a partir.</p> + +<p>Ouviu tocar á missa.</p> + +<p>Encaminhou-se para a egreja. Escutar a voz do sr. padre vigario, que +sabia dar tão bons conselhos, vêr a hostia consagrada, tudo havia de +socegal-o, e afastar-lhe os pensamentos ruins.</p> + +<p>A missa ainda não tinha começado.</p> + +<p>—Se a Marianna lá estaria?—Alli é que ella havia de ir, por ser a +egreja mais proxima.</p> + +<p>Não estava.</p> + +<p>—Hereje! Nem sequer no dia do Natal!...</p> + +<p>Mas o sr. vigario dissera já outras duas missas n’essa manhã, e talvez +a prima tivesse ouvido alguma d’ellas.</p> + +<p>Viu a tia logo adeante, e foi falar-lhe. D’ahi a momentos, já sabia que +a Marianna não tinha estado na egreja.</p> + +<p>—Vi-a hoje, mas não foi na casa de Deus Nosso Senhor. Foi no foral, +que vae dar ao sitio onde ella <i>véve</i>. Levava até, pendurada na +mão, uma fressura de boi.</p> + +<p>—Eh, senhora! Porque levava ella isso?</p> + +<p>—Eu sei lá, Chico! Talvez por ser o que se tira mais barato no +açougue, quasi de graça... Ou quem sabe se?...</p> + +<p>A velha calou-se.</p> + +<p>—Levava tambem o coração? perguntou-lhe o Francisco anciosamente.</p> + +<p>—Pois não, filho! Mas cala-te, que o sr. padre vigario não tarda.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_230">[Pg 230]</span></p> + +<p>O que mais lhe importava era a missa, depois do que acabava de +saber!—A Marianna ainda não estava satisfeita com o mal que lhe +causara! Sem se valer da bruxaria do coração espicaçado com a tesoura, +já o tinha posto de rastos; o que faria agora, que ia usar d’este meio? +Bem podia elle preparar-se para ficar sem nada: sem a outra vacca, sem +as terras, sem a casa... Se o fogo não lh’a queimasse, deitava-lh’a +abaixo algum tremor de terra. Na ilha ha tantos!... E o demonio +arranjaria de certo mais um, se as bruxas lh’o pedissem.</p> + +<p>Ia tão fóra de si, que ainda estava de cabeça descoberta.</p> + +<p>Chegou em frente da casa térrea onde moravam as primas.</p> + +<p>Da chaminé saía fumo—um fumo negro, signal certo de maldade.</p> + +<p>Entrou no quintal, e rodeou a casa, para ir ver o que estavam a fazer +na cosinha.</p> + +<p>Tudo parecia abandonado, como se tivesse passado por alli a morte. Uns +pés de couve meio seccos ... uma parreira comida pela doença...</p> + +<p>Deante da porta, junto ao cepo de partir a lenha, amarellejava um +machado coberto de ferrugem.</p> + +<p>Escutou.</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>Bem triste aquella manhã em casa da Marianna.</p> + +<p>Com as faltas de ar que lhe causava a lesão cardiaca, tinha a doente +passado a noite em afflicções, e só depois de já ir o sol bem alto, +<span class="pagenum" id="Page_231">[Pg 231]</span> +pegou no somno, sentada na cama e encostada a umas almofadas e +travesseiros.</p> + +<p>A Marianna, a despeito de não ter dormido um instante, saíu devagarinho +e foi á cata de uma senhora, que lhe promettera mandar vir das Furnas +os remedios applicados áquella doença pelo famoso curandeiro.</p> + +<p>As hervas e o mais tinham chegado na vespera, á noite. Se o curandeiro +ia envergonhar os cirurgiões!... E com estes e com a botica, as duas +irmãs tinham gasto mais do que podiam. A boa senhora ensinou á Marianna +uma oração, que vinha escripta n’um papel, para ser dicta emquanto se +queimassem as hervas. A pobre pagou os remedios com o ultimo dinheiro +que levava, e tornou para casa.</p> + +<p>Á porta do açougue viu uma bella peça de carne. Suspirou, pensando +que nem um caldo poderia dar n’aquelle dia á irmã. E queria-lhe +tanto!...—Quando a mãe lhes faltara, o pae andava mettido com a +cunhada, a Lauriana, e nem pensava nas filhas. Só a irmã mais velha +cuidara na outra, que pouco mais tinha de oito mezes. Era a sua segunda +mãe.</p> + +<p>O homem do açougue viu-a e adivinhando o motivo d’aquelle suspiro, +d’aquella tristeza, offereceu-lhe um coração e um pedaço de figado, que +pendiam de um gancho, a escorrerem sangue.</p> + +<p>A Marianna quiz recusar, mas por fim acceitou a esmola com +reconhecimento.</p> + +<p>Entrou em casa de mansinho. Assim mesmo a doente acordou.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_232">[Pg 232]</span></p> + +<p>—Aqui veem novos remedios, disse-lhe ella, em quanto accendia o lume. +Estes agora, sim! Curam a toda a gente. Primeiro vou defumar a casa com +as hervas: alecrim, rosmaninho e outras que não conheço. O remedio da +garrafa é para se tomar á noite.</p> + +<p>A doente abanou a cabeça, com melancholia.</p> + +<p>—No dia de Anno Bom, se Deus quizer, já havemos de ir ambas á missa! +continuou a Marianna muito alegre, e encostou a porta da cosinha, por +ter passado a fumaceira da lenha. Foi ajudar a irmã a sentar-se á borda +do leito e voltou para a chaminé. Logo que a lenha formou brazas, +deitou-as para um fogareiro pequeno, e sobre ellas acamou as hervas do +curandeiro.</p> + +<p>Levantou se um fumo espesso e escuro, que invadiu toda a casa.</p> + +<p>A Marianna levou o fogareiro para junto da irmã, dizendo ao mesmo tempo:</p> + +<p>«A minha casa venho defumar em louvor do Santissimo Sacramento do +altar, com as tres missas do Natal, com as tres hostias consagradas, +com os tres padres vestidos e revestidos...»</p> + +<p>A porta escancarou-se violentamente, e o Francisco Raposo, levantando o +machado da lenha com ambas as mãos, cresceu para a Marianna, a gritar:</p> + +<p>—Vae-te para as profundas do inferno, bruxa de mil diabos!</p> + +<p>O corpo caíu pesadamente no chão, fendido ao meio o craneo pelo golpe +do machado.</p> + +<p>A doente abriu muito os olhos, e antes que podesse gritar, resvalou +<span class="pagenum" id="Page_233">[Pg 233]</span> +para cima do corpo da irmã.</p> + +<p>Assim deixaram de viver as duas <i>feiticeiras</i>.</p> + +<p>—Morto o bicho, morta a peçonha! murmurou o Francisco, e foi +entregar-se á prisão.</p> + +<figure class="figcenter" id="i040" style="width: 800px;"> + <img src="images/i040.jpg" width="800" height="941" alt="Uma mulher deitada em seu leito, acorda assustada ao vislumbrar uma cena de um casal se desatendendo enquanto olham para cima e vêm sua filha fugindo, montada em uma vassoura dirigida por uma bruxa velha nariguda."> +</figure> + +<p>Acabou em Rilhafolles, tres annos depois.</p> + + +<hr class="chap x-ebookmaker-drop"> + +<div class="chapter"> +<figure class="figcenter" id="i041" style="width: 200px;"> +<img src="images/i041.jpg" width="200" height="45" alt="decorative"> +</figure> +</div> + +<p><span class="pagenum" id="Page_235">[Pg 235]</span></p> +<h2 class="nobreak" id="Mary">Mary</h2> + + +<img alt="E" class="drop-cap" height="319" src="images/drop-e.jpg" width="200"> +<p class="nind"><span class="upper-case">EM</span> +quanto nos despedimos, esteve nervosa, commovida.</p> + +<p>A familia, como todo o bom inglez, lunchava na sala de jantar +situada ao rez do chão da casa, a curta distancia do taboleiro do +<i>croquet</i>, onde jogavamos, eu e a Mary.</p> + +<p>O que não diria o bom Thomas, o pae d’ella, se nos visse jogar +d’aquelle modo,—elle que era um taco de primeira ordem, e que nos +considerava a ambos como os seus discipulos predilectos!...</p> + +<p>Ah! Mas é que nem eu, nem ella pensavamos no <i>croquet</i>, e embora +fingissemos dar uma grande attenção ao caminho que percorriam as bolas +por entre os arcos de ferro, os nossos pensamentos concentravam-se +todos, todos, n’aquella separação eminente, que nos impellira, na +vespera, a declararmos o amor, que havia mezes transbordava dos nossos +corações de dezeseis annos.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_236">[Pg 236]</span></p> + +<p>Pobre Mary! Com os seus grandes olhos azues velados ligeiramente +de lagrimas, fitava-me com melancholia, continuando talvez a fazer +mentalmente a pergunta, que me dirigira no dia anterior, quando, +afastados um pouco da familia durante o passeio á quinta do Gordon, +tinhamos falado longamente do futuro.</p> + +<p>—Porque havia eu de partir? <i>Why?</i></p> + +<p>Adivinhava-lhe o pensamento e fugia de encaral-a, porque sentia o peito +a estalar de magua, e dizia de mim para mim, que melhor fôra que em +vez de me mandarem para Lisboa estudar, me deixassem ficar na Madeira, +segundo o conselho da Mary, e assaltava-me o desejo de declaral-o a +toda a gente, de recusar-me terminantemente a embarcar no <i>Maria +Pia</i>, que era esperado no dia immediato.</p> + +<p>Continuámos a jogar.</p> + +<p>Mary, baixando se, como para fazer melhor a pontaria, disse-me com a +voz afogada pelos soluços:</p> + +<p>—<i>Dear! It is for the last time!...</i></p> + +<p>Sim, era a ultima vez que poderiamos trocar uma palavra em segredo!</p> + +<p>Não tardaria que terminasse o <i>lunch</i>, a que ella se tinha +subtrahido, pretextando um incommodo de estomago.</p> + +<p>Era a ultima vez em que poderiamos combinar os nossos projectos de +futuro esboçados na vespera, e que a nossa ingenuidade considerava +infalliveis.</p> + +<p>Então, reanimei-me!</p> + +<p>Quiz mostrar a Mary que, apesar dos meus dezeseis annos, não era uma +creança incapaz de uma grande resolução.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_237">[Pg 237]</span></p> + +<p>Quem me déra poder repetir o que então lhe disse! O que haverá de +mais puro, de mais elevado, do que as palavras que exprimem um +primeiro amor, e que desabrocham da bocca do adolescente, com toda a +sinceridade, candura e enthusiasmo de que é susceptivel uma alma?</p> + +<p>Nos intervallos deixados pelo jogo, que seguiamos machinalmente, +mostrei-lhe que eram impossiveis os devaneios formados na vespera; que +era um puro sonho de creança o pensar que ella, herdeira rica, poderia +ser para mim, que nada possuia; mas que forcejaria por merecel-a, +estudando, trabalhando até vencer!</p> + +<p>E phantasiava um futuro de triumphos. Antevia o meu regresso á Madeira. +Vinha coberto de gloria, subia a calçada do Monte, e ia depôr com +ufania todos os louros colhidos, aos pés de Mary, que seria então para +mim.</p> + +<p>Creancices!</p> + +<p>Ella escutava-me, abanando a cabecinha loura, não se deixando convencer +e murmurando sempre:</p> + +<p>—<i>No! Never more!</i></p> + +<p>Então exaltei-me, duvidei do amor de Mary, accusei-a de querer que eu +representasse um papel pouco airoso, que désse azo a accusarem-me de +especulador...</p> + +<p>Convenci-a.</p> + +<p>Estendeu-me a sua mão branca, onde ligeiros traços azulados marcavam as +ramificações das veias, e disse-me pausadamente, em portuguez:</p> + +<p>—Pois então jure-me que voltará, que não se esquecerá de mim, que +<span class="pagenum" id="Page_238">[Pg 238]</span> +serei sempre a sua querida, a sua adorada!</p> + +<p>Oh! Como eu jurei tudo, tudo, mesmo junto ao arco da campainha!</p> + +<p>Ajustámos então manter correspondencia activa.</p> + +<p>A Clarinha Correia se encarregaria de receber as nossas cartas.</p> + +<p>—Nunca mais me esquece? perguntou ella ainda uma vez, fitando de novo +em mim os seus olhos azues, profundos, scismadores.</p> + +<p>—<i>Never more!</i> respondi, e estando muito perto d’ella, prestes a +acabar o jogo do <i>croquet</i>, quiz beijar-lhe de leve, fugitivamente +o braço alvo e rosado, que saía da manga larga do vestido.</p> + +<p>Mary arredou-se com vivacidade e lançou-me um olhar de censura, em que +vinha implicito um <i>shoking</i>.</p> + +<p>N’aquella occasião levantaram-se da meza, e o taboleiro do +<i>croquet</i> foi logo invadido pelos que tinham estado fazendo honra +ao <i>pale ale</i> e ás <i>sandwiches</i>, e vinham para os canapés de +vime gosar a sombra dos grandes castanheiros, que entrelaçavam lá muito +em cima as frondosas ramarias, formando um impenetravel docel.</p> + +<p>No dia seguinte chegou o vapor da carreira e d’ahi a dois dias parti +para Lisboa.</p> + +<p>Não consegui trocar mais uma palavra com Mary.</p> + +<p>Apenas a Clarinha me disse que poderia escrever-lhe.</p> + +<p>Boa Clarinha! Os seus quarenta annos de solteirona nunca se tinham +negado a prestar similhantes favores!</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_239">[Pg 239]</span></p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>Que tempo durou a nossa correspondencia?</p> + +<p>Não posso dizel-o ao certo.</p> + +<p>O coração esquece tão facilmente!</p> + +<p>Lembro-me de que as nossas cartas respiravam paixão e enthusiasmo, +desde a primeira até á ultima linha. Eu ás vezes, ao percorrer enlevado +as regras perfeitamente parallelas, que deixara no papel lusidio e +espesso a letra firme, esguia e commercial de Mary, perguntava a mim +mesmo se era crivel que uma loura <i>miss</i> podesse sentir amor tão +vehemente e, o que valia mais ainda, ter a coragem de manifestal-o.</p> + +<p>Mas certo dia a duvida desappareceu. Li o espantoso idyllio de +<i>Romeu e Julieta</i>, chorei lagrimas de punho com o soffrimento dos +desditosos amantes de Verona, e conclui afinal que se um poeta de além +da Mancha tivera espirito e coração para imaginar e sentir aquelle +incomparavel poema de amor, não era muito que uma ingleza, em toda +a plenitude da mocidade, e habitando de mais a mais um clima quasi +tropical, escrevesse cartas como aquellas.</p> + +<p>E eu amava-a, oh! se a amava!... Quantas e quantas vezes me não +aconteceu no meio de uma lição de mathematica ou de physica, na +Polytechnica, caír em profunda abstracção e vel-a, sim! vel-a tal como +era—pequenina, loura, rosada, um tanto diaphana, mas em todo o caso um +typo adoravel de Gretchen mais candida ainda que a do <i>Fausto</i>! +<span class="pagenum" id="Page_240">[Pg 240]</span> +Via-a, sem me escaparem sequer uns pequeninos nadas, que a tornavam +mais seductora a meus olhos. Mary não transigia, por exemplo, com as +modas das suas patricias; não transigia completamente, é claro. Apenas +os primeiros assomos da garridice tinham surgido n’ella, com os quinze +annos, Mary abandonára o hediondo calçado que tira a certas inglezas +toda a similhança com Cendrillon.</p> + +<p>O seu pésinho—creiam que não é do meu amor o diminuitivo—o seu +pésinho mostrava-se, abaixo da fimbria do elegante vestido, calçando +sempre uma airosa botinha, obra do mais habil «shoemaker» funchalense.</p> + +<p>Mary constituia um mixto adoravel da candura ingleza, com a animação e +a elegancia meridional.</p> + +<p>Sabe Deus quantas curvas de segundo grau e quantos instrumentos de +optica e de acustica eu deixei de estudar, para scismar unicamente +n’aquella creaturinha fascinante!</p> + +<p>Eu queria trabalhar muito, queria colher á farta as taes coroas de +louro antes sonhadas; mas vinha sempre a saudade sentar-se ao meu lado, +diante da meza do estudo, e a nostalgia velar de crepes tudo quanto me +cercava.</p> + +<p>Fui entristecendo.</p> + +<p>Emprehendeu curar-me, um amigo meu que é hoje deputado, não sei bem se +progressista, se regenerador.—É tão difficil distinguil-os!...</p> + +<p>Obedeci-lhe machinalmente.</p> + +<p>—Deixarás de ser nostalgico, apenas eu faça de ti um bohemio.</p> + +<p>E levava-me a...</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_241">[Pg 241]</span></p> + +<p>Eu sei lá aonde me levava!</p> + +<p>No regresso, tarde da noite, assaltavam-me grandes furias; +descompunha-o, protestava nunca mais acompanhal-o, fechar-lhe até a +porta da casa de hospedes onde eu morava: mas esquecia tudo, apenas +elle no dia seguinte, na escola, me dava um abraço apertado e soltava +uma das boas gargalhadas, que ainda não deu em S. Bento, apesar da +comedia em que o vejo mettido. Agora, basta que riam d’elle! É que anda +expiando cruelmente a cumplicidade, que teve na queda d’este anjo.</p> + +<p>D’alli a pouco tempo eu estava perdido, na accepção dos paes de +familia, mas tinha-me consolado.</p> + +<p>Não se julgue, comtudo, que esquecia Mary.</p> + +<p>Pelo contrario!</p> + +<p>Pensava sempre n’ella e por amor d’ella estudava, quando a bohemia me +não levava até ás ruas da Baixa...</p> + +<p>Tanto Mary me não saía do pensamento, que eu estava de continuo a achar +reminiscencias do seu rosto, umas vezes, outras da sua fina cintura, +da sua mão, do seu pé, nas conquistas faceis que fazia ao lado do meu +amigo, actual deputado, e de Luiz de Almeida, aquelle talentoso poeta e +bohemio engraçadissimo, que a morte aniquilou tão cedo, mas que ficou +memorado no espirito de quantos o conheceram.</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>Uma noite, na rua do Ouro, ia eu com os meus dois companheiros de +<span class="pagenum" id="Page_242">[Pg 242]</span> +extravagancias, quando encontrei, de cara a cara, Henry, um irmão de +Mary de que eu era amigo, e que estava estudando em Londres havia dois +annos. Pelos modos o pae viera ao conhecimento de que Henry se escapava +a miudo do collegio, e fazia frequentes excursões por Piccadily-Circus +e Leicester-Square...</p> + +<p>O bom Thomas chamava-o para a Madeira, a fim de regeneral-o.</p> + +<p>Feitas as devidas apresentações, os meus companheiros declararam á +queima roupa ao inglez, que sympathisavam immenso com elle, e logo o +convidaram para nos acompanhar n’aquella noite.</p> + +<p>Quiz pôr obstaculos, inventei difficuldades, mas tudo foi inutil. O +proprio Henry se insurgiu contra mim e acceitou a offerta com prazer. +Queria despedir-se alegremente de Lisboa. E despediu-se, em companhia +da seductora Lolita, que os meus amigos lhe apresentaram com todas as +formalidades... que foram nenhumas.</p> + +<p>Quando no dia seguinte nos separámos a bordo do vapor, eu estive quasi +a pedir-lhe para guardar segredo da aventura; não o fiz todavia, +suppondo que Henry, por conveniencia propria, fosse discreto, e tambem +para não lhe despertar suspeitas ácerca do meu amor pela irmã.</p> + +<p>Ai! Porque não o fiz?...</p> + +<p>No paquete immediato deixei de receber carta de Mary. Escrevi-lhe +afflicto, perguntando-lhe o motivo d’aquelle silencio.</p> + +<p>Não tive resposta.</p> + +<p>Mandei cartas, sobre cartas.</p> + +<p><span class="pagenum" id="Page_243">[Pg 243]</span></p> + +<p>Um dia a Clarinha Correia compadeceu-se de mim e enviou-me este +desengano:</p> + +<p>«A Mary soube, pelo irmão, coisas terriveis a seu respeito. Esqueça-a, +porque ella já o esqueceu.»</p> + +<p>Repelli o conselho, e mandei á Clarinha uma carta, que ella deveria ler +a Mary, e que seria capaz de commover não só os tigres da Hircania, tão +celebrados de poetas e poetastros, mas até um agiota.</p> + +<p>A inglezinha resistiu!</p> + +<p>Dois annos depois casou.</p> + +<p>Como eu estava longe, padeci muito menos que o heroe de <i>Sous les +tilleuls</i>, e não fiz nenhuma das incriveis tolices, a que elle se +abalançou no seu exagerado romantismo.</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>Dez annos depois.</p> + +<p>N’um dia de sol, galgava eu, em companhia de um amigo, o carreiro +ingreme e fatigante, que vae das Féteiras para as Sete Cidades, na ilha +de S. Miguel.</p> + +<p>Apesar de nos terem antes descripto com as côres mais vivas e +fascinantes a belleza do afamado valle, já nos sentiamos invadir pelo +aborrecimento, em consequencia da posição incommoda em que iamos +sobre os burros alugados nas Féteiras, e tambem porque o sol estava +ardentissimo.</p> + +<p>Ao nosso lado um rapazelho, descalço, jaqueta de picotilho ao hombro e +cajado ferrado na mão, trepava o carreiro aos pulos, soltando por vezes +o caracteristico «Passa cá i’asno!» e dando com a lingua no ceo da +<span class="pagenum" id="Page_244">[Pg 244]</span> +boca estalos frequentes, para animar os jumentos na trabalhosa ascensão.</p> + +<p>Adiante de nós, a uma centena de passos, caminhavam na mesma direcção +dois viandantes, um homem e uma senhora. Elle, com as grandes pernas +pendentes entre as quatro do burrinho e os compridos pés quasi de +rastos pelo chão, balanceava muito os braços e levantava-os com +frequencia, fazendo gestos de enthusiasmo, quando volvia os olhos para +o vasto panorama, que já começava a desenrolar-se por traz de nós, do +lado da beira-mar.</p> + +<p>Sobre a cabeça campeava-lhe um capacete branco, envolto em alguns +metros de cassa da mesma côr.</p> + +<p>Por detraz e descendo para a gola do casaco amarello claro, havia +melenas louras arruivadas, semelhantes a barbas de milho.</p> + +<p>Mas, naturalmente, o que mais nos attrahiu a attenção, foi a +companheira do homem ruivo. Sentada de lado, sobre o albardão do burro, +envolvia-se desde a garganta até aos pés n’um comprido guarda-pó de +hollanda: ao de cima emergia a cabeça, occulta por um chapeu de palha +preta, e embrulhada n’um espesso veo de gaze de seda azul; abaixo +da roda do guarda-pó viam-se pendentes dois objectos escuros, muito +compridos, de fórma estranha, que não raro se agitavam, na ancia de +percutirem as ilhargas do jumento.</p> + +<p>Mais de perto conseguimos apurar, que os objectos negros eram dois pés.</p> + +<p>E levámos ainda mais longe a observação. Quasi perfurando o linho do +guarda pó, adivinhavam-se umas saliencias osseas, correspondentes aos +<span class="pagenum" id="Page_245">[Pg 245]</span> +hombros, aos cotovellos, e até aos joelhos, não obstante as saias.</p> + +<p>—Quanto phosphato de cal daria aquella ingleza? perguntou o meu +companheiro.</p> + +<p>Eu ia responder com um gracejo de não melhor gosto, quando attingimos a +cumiada que limita em roda o extenso valle.</p> + +<p>—Eh! Senhores, disse-nos o rapaz dos burros—um cerrado michaelense +dos campos—avistam-se d’aqui a <i>pêuco</i> as lagoas.</p> + +<p>Apeámo-nos, e, seguindo o conselho que nos tinham dado na cidade, +fomos andando para diante, mas olhando sómente para a nossa esquerda, +a fim de que o valle das Sete Cidades nos apparecesse de subito, e não +gradualmente, á medida que fossemos deixando para traz de nós um morro, +que se erguia á nossa direita.</p> + +<p>—Virem-se os senhores agora, disse-nos momentos depois o rapaz. Lá +estão as lagoas em baixo!</p> + +<p>Olhámos para a nossa direita... Um deslumbramento!—No ceo pairavam +duas ou tres nuvens, muito brancas, que recortavam cruamente o sinuoso +perfil sobre o azul carregado da atmosphera. Abaixo, uma cadeia +continua de montanhas fechava n’uma enorme cinta de forma elliptica +o valle, em cujo fundo se espelhavam as duas lagoas—azul a maior e +mais distante, de reflectir o firmamento; verde a outra, das algas +que n’ella mergulham e da vegetação, que se debruça pelas encostas +sobranceiras. Na margem da primeira e á nossa esquerda, como que +banhando-se n’aquellas aguas frescas e tranquillas, branqueavam as +<span class="pagenum" id="Page_246">[Pg 246]</span> +casas de um logarejo, em meio de viçosas plantações.</p> + +<p>Entre a povoação e as montanhas que limitam por aquelle lado a immensa +cavidade, surgia um monte, de constituição vulcanica e de ilhargas +cortadas por sulcos profundos, segundo as linhas de maior declive.</p> + +<p>No cimo abria-se a cratera, de que em epochas longinquas golfaram sem +duvida ondas e ondas de lava incandescente.</p> + +<p>Largo tempo permanecemos a contemplar, extaticos, boquiabertos, o +quadro maravilhoso. A magestade imponente do panorama infundia-nos +o sentimento de respeito e de humildade, que fatalmente nos subjuga +perante os grandiosos espectaculos da natureza.</p> + +<p>Fizeram-nos, de repente, saír d’aquelle extase, uns gritos soltados +alli perto.</p> + +<p>Eram os dois inglezes.</p> + +<p>Ella, de costas voltadas para nós, e já sem o veo a cercar-lhe +inteiramente a cabeça, dizia por entre paroxismos de admiração:</p> + +<p>—<i>Ooh!... Splendid!... Magnificent, indeed!...</i></p> + +<p>Quando me parecia reconhecer aquella voz, a ingleza voltou-se e...</p> + +<p>Era Mary!</p> + +<p>Era sim, mas tão differente, tão mudada, que cheguei a abençoar +n’aquelle momento a revelação indiscreta de Henry.</p> + +<p>Tinha-se tornado ingleza a valer, sob a influencia do deslavado marido.</p> + +<p>Estavamos muito perto um do outro. Ella olhou para mim casualmente, +<span class="pagenum" id="Page_247">[Pg 247]</span> +e, sem mostrar a minima commoção, de novo fixou a vista no lindissimo +panorama.</p> + +<figure class="figright" id="i042" style="width: 117px;"> + <img src="images/i042.jpg" width="117" height="200" alt="Uma jovem elegantemente vestida com os braços para trás segurando uma raquete, olha atentamente para uma senhora as seus pés que está com um chapéu e uma sombrinha de sol."> +</figure> + +<p>Eu então vinguei-me, vinguei-me cruelmente!</p> + +<p>Esperei uma occasião em que ella me visse, e olhei-lhe para os pés.</p> + +<div class="tb">* * * * * </div> + +<p>Ah! Mas agora noto uma coisa! Tenho escripto tudo isto, como se +estivesse narrando um capitulo da minha biographia.</p> + +<p>O heroe do conto não sou eu, affianço-lhes, mas sim o Fernando, pae da +Lili de que já lhes narrei uma aventura.</p> + +<p class="space-below3"> +Antes me julguem indiscreto, do que me acoimem de ingrato!</p> + + + + +<div class="footnotes"><h3>NOTAS DE RODAPÉ:</h3> + + +<div class="footnote"> + +<p class="nind"> +<a id="Footnote_1" href="#FNanchor_1" class="label">[1]</a> +New-Bedford. É corruptela vulgar nos Açores occidentaes.</p> + +</div> + +<div class="footnote"> + +<p class="nind"> +<a id="Footnote_2" href="#FNanchor_2" class="label">[2]</a> +Assim chama a Boston o povo dos Açores occidentaes.</p> + +</div> + +<div class="footnote"> + +<p class="nind"> +<a id="Footnote_3" href="#FNanchor_3" class="label">[3]</a> +A devoção do Espirito Santo espalhada, ao que parece, no velho Portugal +continental pela Rainha Santa, e levada pelos primeiros colonos para +as ilhas, ainda aqui permanece tão profundamente arreigada, que as +festas do Parácleto preenchem grandemente a vida açoriana desde o +domingo de Paschoa até ao da Trindade. Todos os que a sorte indigitou +para festeiros acceitam o encargo com o maior prazer, e desempenham-o +com bizarria muitas vezes incompativel com as suas posses. Emigra o +açoriano, vae lidar para Boston, New-Bedford, S. Francisco ou para +outro ponto da União em que se concentra a colonisação portugueza; +consegue juntar alguns centos de <i>dollars</i> e volta á patria só com +o fito de <i>coroar</i> em cumprimento da promessa, e gasta em dois +dias o producto de muitos mezes de trabalho. Depois embarca novamente +para a America, a proseguir na faina, mas nem de leve arrependido pela +sua devota prodigalidade.</p> + +</div> + +<div class="footnote"> + +<p class="nind"> +<a id="Footnote_4" href="#FNanchor_4" class="label">[4]</a> +Textual.</p> + +</div> + +<div class="footnote"> + +<p class="nind"> +<a id="Footnote_5" href="#FNanchor_5" class="label">[5]</a> +Aurora.</p> + +</div> + +<div class="footnote"> + +<p class="nind"> +<a id="Footnote_6" href="#FNanchor_6" class="label">[6]</a> +Cabana.</p> + +</div> + +<div class="footnote"> + +<p class="nind"> +<a id="Footnote_7" href="#FNanchor_7" class="label">[7]</a> +O actor Ribeiro, que tão notavel desempenho deu ao <i>Avarento</i> de +Molière e a muitas outras peças, esteve em Ponta Delgada no começo da +sua carreira, e fez no theatro Michaelense o papel do santo portuguez +com tamanho exito, que os retratos que tirou vestido e caracterisado +como entrava no applaudido drama sacro, espalharam-se por toda a ilha, +e passaram das collecções artisticas dos seus admiradores, para os +oratorios do povo, e ainda alli são reverenciados—dizem-me—como se +representassem o verdadeiro Antonio de Bulhões. Quem sabe lá se este se +pareceria physicamente com o artista dramatico?</p> + +</div> +</div> + + +<hr class="chap x-ebookmaker-drop"> + +<div class="chapter"> +<h2 class="nobreak" id="INDICE">INDICE</h2> +</div> + + +<table class="autotable" > +<tbody><tr> +<td class="tdl"></td> +<td class="tdr"><span class="allsmcap"> Pag.</span></td> +</tr><tr> +<td class="tdl">O casamento do veterano</td> +<td class="tdr"><a href="#Page_1">1</a></td> +</tr><tr> +<td class="tdl">Os filhos do frade</td> +<td class="tdr"><a href="#Page_61">61</a></td> +</tr><tr> +<td class="tdl">O primeiro desengano</td> +<td class="tdr"><a href="#Page_69">69</a></td> +</tr><tr> +<td class="tdl">A Alegria do Mar</td> +<td class="tdr"><a href="#Page_75">75</a></td> +</tr><tr> +<td class="tdl">A lampreia</td> +<td class="tdr"><a href="#Page_89">89</a></td> +</tr><tr> +<td class="tdl">Mau homem</td> +<td class="tdr"><a href="#Page_97">97</a></td> +</tr><tr> +<td class="tdl">A licença do domingo</td> +<td class="tdr"><a href="#Page_107">107</a></td> +</tr><tr> +<td class="tdl">O contrabando</td> +<td class="tdr"><a href="#Page_121">121</a></td> +</tr><tr> +<td class="tdl">Piloto</td> +<td class="tdr"><a href="#Page_129">129</a></td> +</tr><tr> +<td class="tdl">Na vindima</td> +<td class="tdr"><a href="#Page_137">137</a></td> +</tr><tr> +<td class="tdl">O jantar do general</td> +<td class="tdr"><a href="#Page_141">141</a></td> +</tr><tr> +<td class="tdl">O aprendiz de barbeiro</td> +<td class="tdr"><a href="#Page_151">151</a></td> +</tr><tr> +<td class="tdl">A allemã</td> +<td class="tdr"><a href="#Page_161">161</a></td> +</tr><tr> +<td class="tdl">O marraxo</td> +<td class="tdr"><a href="#Page_171">171</a></td> +</tr><tr> +<td class="tdl">O pae do Jacintho</td> +<td class="tdr"><a href="#Page_177">177</a></td> +</tr><tr> +<td class="tdl">A folga</td> +<td class="tdr"><a href="#Page_185">185</a></td> +</tr><tr> +<td class="tdl">O paiol</td> +<td class="tdr"><a href="#Page_209">209</a></td> +</tr><tr> +<td class="tdl">As feiticeiras</td> +<td class="tdr"><a href="#Page_217">217</a></td> +</tr><tr> +<td class="tdl">Mary</td> +<td class="tdr"><a href="#Page_235">235</a></td> +</tr> +</tbody> +</table> + + + + +<div class="chapter"> +<div class="transnote spa1"> +<p class="nindc"><b>NOTAS DE TRANSCRIÇÃO.</b></p> + +<p>Os erros tipográficos evidentes foram corrigidos.</p> + +<p>A pontuação, a hifenização e a ortografia foram tornadas consistentes +quando uma preferência predominante foi encontrada no texto original; +caso contrário, não foram alterados.</p> + +<p>Nesta versão, o carácter "caret" (acento circumflexo) foi utilizado com +ou sem chaves para representar letras sobrescritas.</p> +</div> +</div> + + +<div style='text-align:center'>*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK 75220 ***</div> +</body> +</html> + diff --git a/75220-h/images/cover.jpg b/75220-h/images/cover.jpg Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..81ee5db --- /dev/null +++ b/75220-h/images/cover.jpg 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