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@@ -0,0 +1,7018 @@
+
+*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK 75220 ***
+
+
+ HISTORIAS DAS ILHAS
+
+
+
+
+ _MAXIMILIANO DE AZEVEDO_
+
+
+ HISTORIAS
+
+ DAS
+
+ ILHAS
+
+ (Reminiscencias dos Açores e da Madeira)
+
+
+ DESENHOS DE CELSO HERMINIO
+
+
+
+
+ LISBOA
+ PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA
+ LIVRARIA EDITORA
+ _50, 52--Rua Augusta--52, 54_
+ 1899
+
+ LISBOA
+ TYPOGRAPHIA E STEREOTYPIA MODERNA
+ Becco dos Apostolos, 11
+
+
+
+
+[Ilustração]
+ O Casamento do Veterano
+
+
+ ¿Su esposo la perdona aunque lo infama?
+ ¿Ama y perdona?--Es imposible; no ama.
+ CAMPOAMOR.
+
+
+ I
+
+
+No dia em que o Jorge casou com a filha da Isabel houve grande reboliço
+no Castello de S. João Baptista. Depois da missa regimental, o padre
+capellão de caçadores 10 recebeu os noivos, com prévia dispensa do
+prelado da diocese, na grande capella da fortaleza. Era numerosa a
+assembléa, formada especialmente pelos curiosos.
+
+Officiaes e soldados, logo que o batalhão destroçou, correram para o
+templo, onde já encontraram muitas mulheres, algumas de _manto_,
+aguardando anciosas a chegada do cortejo nupcial, e fazendo em voz
+baixa e com enorme dispendio de gestos, abundantes commentarios,
+qual d’elles mais frisante, á resolução tomada pelo cabo de
+veteranos.--Escolher para mulher uma raparigota, que podia á vontade
+ser sua neta!--
+
+--Eu cá por mim, exclamava a Luiza Braga, escancarando a boccaça meio
+desdentada, ía jurar que lhe deram _coisa para querer bem_. Aqui
+onde me vêm, _destrinço_ o Jorge desde rapaz pequeno, e nunca lhe
+descobri tenções de casar. Não era então aos cincoenta e oito annos,
+que estando com o juizo todo, havia de... Nada! Nada! Elle bem sabe que
+«albarda nova em burro velho é matadura certa».
+
+--E a quem o Jorge foi buscar?... Á Rosa!... acudiu a Josepha Julia,
+cunhada do sargento Migueis, piscando muito o olho esquerdo, unico de
+que era possuidora.
+
+--Eu não digo que a rapariga seja _somenas_, mas sempre é filha da
+Isabel, e ninguem desmente o seu sangue. D’arredio, d’arredio, é que eu
+gosto de vel-as a ambas!
+
+--Deixe a tia Luiza estar que a Rosa tambem não é nenhuma santinha,
+replicou a Josepha. Não lhe quero pôr _pitafe_, mas se foi verdade
+aquella historia com o sargento Luiz...
+
+--Não seria, menina. Olhe que a Isabel é rata sabia e não a deixava ir
+á noite, sósinha, para o baluarte de S. Pedro. O 33 da artilheria é que
+disse, que tinha lá visto os dois, mas como todos lhe conhecem a má
+lingua... Pois não foi elle que andou por ahi a espalhar que a menina
+Josepha olhava para o alferes da segunda, um homem casado e pae de
+filhos?!
+
+A Josepha, ao ouvir estas palavras, que lhe foram quasi segredadas,
+poz-se vermelha que nem malagueta, e redarguiu promptamente:
+
+--Tão damnada é a lingua d’elle, como as que repetem o que o marau
+vomita. _Ubei!_
+
+--Ó menina, olhe que eu não tenho falas com o 33!
+
+--Nem deve ter, que a tia Luiza, por ter essa edade, não escapa a
+similhante navalha. Sempre que o tio Braga passa ao pé d’elle, apanha a
+sua risadinha e é apontado com o dedo...
+
+A velha despediu-lhe um olhar terrivel, enguliu em secco, e atalhou:
+
+--Bem, bem, não se fala agora nas patifarias do 33. Em todo o caso o
+Jorge devia saber que a Rosa não era para a sua bocca.
+
+--E que pode empanzinar com o petisco, accrescentou a outra, já de
+perfeito accordo.
+
+N’esta occasião sentiu-se o ruido dos passos de muita gente que vinha
+atravessando a parada, e os noivos d’ahi a instantes entravam na
+capella, acompanhados pelos padrinhos, pelos convidados e pelas pessoas
+que, impellidas pela curiosidade, tinham ido esperal-os á porta da
+casa terrea, onde a viuva do sargento José de Medeiros vivia desde ha
+muito, por mercê dos governadores do castello. O Jorge, aprumado dentro
+da sua farda de gola alta, botões muito lusidios e divisas alvas de
+neve, mal deitava os olhos para a gente que o rodeava, e, com a cara a
+escaldar, seguiu machinalmente pela capella adeante, ao lado da noiva,
+que vestida de cassa branca semeada de raminhos vermelhos, e toucada de
+grinalda e veo, dava mostras de vergonha, mal deixando ver os grandes
+olhos pretos por baixo das longas pestanas assetinadas e bastas. No
+rosto oval, branco e pequenino, esbatia-se um rubor intenso.
+
+Nunca tinha imaginado poder tornar-se o alvo da attenção de tanta
+gente, e, se não fosse uma vergonha, fugiria d’alli, a bom correr.
+
+Agora é que deveras se arrependia de ter acceitado a grinalda e o veo á
+menina Elvira, filha do capitão da segunda companhia de caçadores 10,
+que estava casada, desde o mez anterior, com o tenente Aurelio Joaquim,
+ajudante da praça. Se tivesse trazido como tencionava, o seu lenço
+de seda de barras azues, não daria tanto nas vistas. Era tambem esta
+a vontade do Jorge, porém a Isabel insistira pelo veo, proclamando-o
+«coisa muito mais fina».
+
+O cortejo rompeu atravez da multidão, direito ao altar, onde havia de
+effectuar-se a ceremonia.
+
+Notaram alguns dos presentes, e antes de todos a Luiza Braga, que a
+Rosa tinha córado mais ainda, e estremecido levemente, ao dar com os
+olhos no sargento Luiz, que, muito apertado na fardeta côr de pinhão,
+se bamboleava, com ar de escarneo, na primeira fila dos curiosos.
+
+--Nem aqui mesmo a deixa! Já é pouca vergonha! murmurou a Luiza ao
+ouvido da Josepha Julia.
+
+--Elles lá se entendem, regougou esta ultima, e concluiu, suspirando:
+«Tal desgraça!»
+
+Entretanto o padre capellão ia tartamudeando as palavras sacramentaes,
+e o sargento Luiz muito satisfeito de si cofiava o farto bigode louro.
+
+--Olhem! Lá está o sr. governador! murmurou a Luiza Braga para as
+mulheres que a rodeavam.
+
+O coronel Jeronymo Cardoso acabava effectivamente de surgir a uma
+porta lateral da capella e deitava olhares perscrutadores para os
+noivos, sem comtudo esquecer as dores cruciantes, que lhe impunham os
+terriveis joanetes.
+
+A Isabel tinha querido que o Jorge o convidasse para padrinho, e
+chegara até a sondar _sua incellencia_ com exito razoavel, mas o
+veterano puzéra os pés á parede, e a despeito de uma formal reprimenda
+da futura sogra, insistiu em escolher o José Maria, seu camarada desde
+o cerco do Porto, que lá estava na egreja á ilharga do amigo, tentando
+aprumar quanto possivel o corpo já muito derreado pelos janeiros.
+
+O jantar do casamento foi em casa do Jorge.
+
+Tudo correu bem e só houve de notavel o pregar a Isabel, já um tanto
+avinhada, uma furiosa descompostura na Luiza Braga, porque a viu á
+porta da rua, espreitando.
+
+Os convivas apaziguaram a questão e d’alli a pouco despediram-se, indo
+o José Maria, um quasi nada alegrote, acompanhar a Isabel, até casa.
+
+--Parecemos tambem dois noivos, disse o velho, batendo-lhe, com a
+mão aberta, no meio das costas, e foi-se embora a trocar as pernas,
+em quanto a viuva lhe gritava do limiar da porta que «para um marido
+_tanto_ fino só a rainha que estava em Lisboa!»
+
+N’aquella noite, mercê das copiosas libações, dormiram mais
+profundamente alguns dos habitantes do burgo militar, que pousado
+no isthmo que liga a peninsula do Monte Brazil ao resto da ilha
+Terceira, olha sobranceiramente para Angra atravez das suas numerosas
+canhoneiras.
+
+
+ II
+
+
+O Jorge tinha perto de cincoenta e oito annos.
+
+Alto, espadaudo, bem conservado, era, sob o ponto de vista militar,
+um exemplo vivo do que tinha sido o exercito portuguez, em quanto
+o governou a disciplina implantada pelo marquez de Campo Maior, e
+conservada pelos officiaes que tinham servido com o famoso organisador
+inglez. Era um gosto vel-o perfilar-se deante de um superior e
+fazer-lhe a continencia com todos os tempos e prescripções da ordenança!
+
+Aos domingos, para ir á missa regimental, punha ao peito o habito da
+Torre Espada, que tinha ganho no cerco do Porto, por estar umas poucas
+de horas a disparar sósinho um obuz, contra umas alturas, cujo accesso
+convinha a todo o custo impedir ás tropas de D. Miguel. As demais
+praças que primeiro guarneciam a bocca de fogo e outras que vieram
+substituil-as, tinham ido cahindo, a pouco e pouco, ás balas de um
+regimento transmontano, espalhado em atiradores na frente da bateria.
+
+--Maior Africa tu fizeste, dizia-lhe n’essa tarde o primeiro tenente
+José Victorino Damasio, em ficares com ambos os braços, do que em
+escapar ás ameixas d’aquella sucia! Tu és doido! Servir sósinho um
+obuz!...
+
+--Ó meu tenente, redarguiu o artilheiro ilheu com cara muito seria,
+pois elle _havera_ de estar calado, tendo uma bocca tanto grande e
+sempre escancarada?! Até parecia mal!
+
+--Em todo o caso foi doidice, continuou o tenente a rir.
+
+--Saiba V. S.^a que muitos senhores officiaes tambem dão cá á gente
+d’esses maus exemplos. V. S.^a desculpe, mas parecia mesmo doidinho,
+quando n’aquelle dia em que lhe atravessaram o corpo com uma bala,
+queria á fina força, mal lhe fizeram o primeiro curativo, continuar a
+commandar a sua peça. Eu bem me lembro! Só á má cara é que o arrancámos
+de lá. Por isso, accrescentou o Jorge, indicando a insignia da Torre
+Espada que ornava o peito de José Victorino, fez muito bem o nosso
+Imperador dando a V. S.^a essa fitinha azul ferrete.
+
+--Pois tambem tu a mereces e has de tel-a, affirmou o official.
+
+E teve effectivamente uma das quatro destinadas a artilheiros, na ordem
+do dia relativa ao combate.
+
+Todas as testemunhas lhe foram favoraveis no inquerito, em que se
+baseou a concessão.
+
+Ainda assim o Jorge, embora no seu intimo estivesse a babar-se de
+gosto, não se fartou de desculpar-se para com os camaradas, dizendo
+que tudo aquillo era obra do tenente José Victorino, e que, verdade,
+verdade! o que elle tinha feito, fazia-o qualquer galucho.
+
+Depois da convenção de Evora Monte, mandaram-o para a sua terra, para a
+ilha Terceira, e d’alli a annos arranjaram-lhe passagem a veteranos e o
+emprego de fiel do material de guerra.
+
+Tinha á sua conta o armazem fronteiro á porta dos carros do castello de
+S. João Baptista.
+
+Alli, ou n’uma courella do Monte Brazil, que os governadores lhe davam
+para cultivar, gastou elle durante muitos annos as longas horas do dia,
+que sempre lhe pareciam curtas.
+
+Era um gosto visitar o armazem, n’aquelle tempo.
+
+Pelo pateo, rodeado de um muro baixo, espalhavam-se com symetria as
+pilhas de balas cuidadosamente pintadas de preto, e descançavam, em
+dormentes de madeira, os antigos canhões de ferro e de bronze, tão bem
+conservados, como se na vespera tivessem vindo da fabrica. Alegrando o
+quadro, floresciam em volta do recinto hortensias e gyrasoes.
+
+Lá dentro, no casarão apenas allumiado pela claridade coada atravez das
+frestas envergadas e pela que vinha da porta, alongavam-se em cabides,
+dos dois lados, soquetes de massa negra e cabo vermelho, emparelhados
+com as lanadas e os sacatrapos. Os espeques, encostados ás paredes,
+nos cantos, continuavam a uniformidade do tom vermelho, quebrado tão
+sómente pela côr de chumbo das pernas da cabrilha, postas ao centro, em
+cabide mais forte, que sustentava tambem, inferiormente, o molinete, o
+cadernal e o moitão d’aquelle apparelho destinado ás manobras de força
+da artilheria.
+
+Toda esta ordem e aceio eram devidos ao Jorge. Raro pedia fachinas
+para o coadjuvarem. Só quando havia que remover algum peso de muitas
+arrobas, e assim mesmo!...
+
+Descançava emquanto engulia o boccado.
+
+O jantar fazia-lh’o a Isabel, por um ajuste, que havia entre ambos.
+Farto de rancho andava elle até aos olhos, e por isso queria «comida
+feita por mão de mulher». Demais, a viuva bem precisava que a
+ajudassem, coitada! e não lhe exigia nenhum disparate.
+
+Ás vezes, em logar d’ella, ia a filha levar-lhe o comer. Quando o
+contracto principiou, a Rosa já era crescidota, mas ainda assim, uns
+dias por outros entornava-lhe o jantar, porque ia de corrida, para
+se despachar mais depressa. Apesar d’isto o veterano nunca chegou a
+zangar-se, porque ao encaral-a, perdia o animo, vendo-lhe aquelles
+olhos tão pretos e tão bonitos!... E nunca disse nada á Isabel...
+
+Quando o caso succedeu a primeira vez, a Rosa ficou muito contente, e,
+voltando no dia seguinte, poz a cestinha no chão mal viu o Jorge, e
+deu-lhe, em agradecimento, um abraço e um beijo.
+
+Ao sentir a carne fresca e macia da rapariguinha tocar-lhe no rosto, o
+velho ficou exquisito, e d’alli em deante não estava bem ao pé da Rosa.
+O beijo voltava-lhe á memoria, e com elle a noção vaga de alguma coisa
+que tinha perdido, e que todos os mais gosavam...
+
+--Nada! Nada! pensava por fim. Eu com isto dou em maluco. O melhor é
+dizer á Isabel que fica roto o nosso ajuste, que não me arranje mais a
+comida.
+
+Mas que motivo lhe havia de dar? E custava-lhe tanto vel-a menos vezes,
+a Rosinha!
+
+Passou-se tempo, a pequena tornou-se mulher, e um dia o Jorge tomou a
+Isabel de parte e falou-lhe em casar com a filha, de quem era «muito,
+muito amigo!»
+
+A viuva do sargento Medeiros ficou banzada.
+
+Podia lá entrar-lhe na cabeça que o veterano quizesse aquella gaiata,
+que não tinha onde cahir morta e que, de mais a mais, no respeitante
+a juizo... Quantos amargos de bocca já tinha tido em razão d’este
+particular!... Se havia de ter outros peiores ou de vel-a perdida,
+mais valia aproveitar aquelle amparo, que lhe cahia do ceu aos
+trambulhões... É verdade que o noivo podia ser avô da Rosa, mas era
+homem decidido, e saberia conserval-a no bom caminho.
+
+Ainda assim, por descargo de consciencia, mostrou á filha as coisas
+como eram: que o Jorge tinha muita edade e que não seria portanto o
+marido que mais lhe conviesse. Lembrou-lhe, porém, que elle avezava bem
+bons vintens, que só querendo-lhe deveras é que se teria resolvido a
+pedil-a em casamento, e que não se parecia em nada com os bandalhos,
+que andam por esse mundo a desinquietar as raparigas.
+
+--E a final que proveito é o d’ellas, as mais das vezes? perguntava com
+acrimonia a viuva, fincando as mãos nos quadris, bem especada ao meio
+da casa. Arranjarem filhos, sem ter apanhado marido!
+
+A Rosa não se decidiu logo. Custava-lhe a tomar o pedido a serio.--Seu
+marido, o tio Jorge!...
+
+Bem sabia que o Luiz tinha olhado para ella por brincadeira, sem tenção
+de casar; mas quiz fallar-lhe, para ver que effeito lhe produziria
+a noticia. O sargento ouviu a participação, achou que o pedido do
+veterano se justificava com a belleza da Rosa. Elle proprio desejaria
+fazer o mesmo ... mas não podia, porque o pae o tinha obrigado a
+prometter casamento a uma prima, em Lisboa, e seria matal-o de desgosto
+o escolher outra. O que faria com certeza, era ficar solteiro.
+
+A Rosa não o acreditou, mas ficou-lhe agradecida por aquella
+explicação. Esperava até que o sargento a tratasse mal, quando soubesse
+dos projectos de casamento. Ainda assim jurou comsigo mesma, que havia
+de se vingar acceitando o primeiro que a quizesse para mulher, uma vez
+que podesse gostar d’elle. Mas o Jorge, não! Era tão velho!
+
+Um dia a Isabel entrou fula, pela porta dentro.
+
+A Luiza Braga, a quem ella contara o pedido do Jorge, tinha-lhe dado
+uma gargalhada nas bochechas, dizendo-lhe que o veterano estava de
+certo a caçoar com ellas, e que tirassem d’alli a sua ideia.
+
+--Elle é isso? bradou a Rosa, tambem furiosa. Pois negra seja eu, se
+não estiver casada antes de um mez!
+
+Tinha cumprido a promessa.
+
+
+ III
+
+
+Tres semanas depois do casamento houve tourada de corda em S. João de
+Deus.
+
+O Jorge, logo que a Isabel falou em irem todos ao divertimento,
+condescendeu, dizendo que não queria a rapariga para freira nem para
+bicho do buraco, e d’alli a boccado saíam do castello pela porta dos
+carros, os noivos na frente, a Isabel e o José Maria um pouco mais
+atraz.
+
+Os caçadores da guarda piscaram os olhos uns para os outros
+cubiçosamente ao verem a Rosa, e um de S. Miguel, mais descarado,
+commentou, a meia voz, que nenhum d’elles apezar de moços, se benzeria
+com um «peixão de estoiro» como aquelle que o velho tinha apanhado.
+
+O José Maria, que ainda ouviu a graçola, cuspiu-lhes a phrase:
+«Galuchada atrevida!» mirando de soslaio o chocarreiro.
+
+Depois de descerem até Angra e de atravessarem parte da cidade,
+cujas ruas, de ordinario pouco concorridas aos dias santos, mais se
+despovoavam n’aquelle domingo por causa da tourada, os quatro subiram
+até ao arrabalde de S. João de Deus, onde já enxameava uma grande
+multidão.
+
+Dos mirantes, pouco mais altos que uma pessoa, debruçavam-se muitas
+damas, a quem os donos das casas sempre reservam os melhores logares,
+e por traz d’ellas ou dos lados apinhavam-se as mulheres do povo,
+merecendo geralmente umas e outras os olhares de quem buscasse apenas
+caras bonitas, sendo porém as segundas mais dignas da attenção do
+pintor de costumes, em razão da variedade dos trajos, que ostentavam
+quasi sempre com extremada garridice.
+
+Algumas, as mais estimadas, tinham vindo com o _manto_ caracteristico,
+muito encaloradas dentro d’aquelle envolucro de alpaca preta, egual
+á da saia, que, franzido em volta da cintura, lhes cobria o tronco,
+os braços e a cabeça, formando por cima um tecto á laia de telha,
+duro graças ao forro de papellão que o reveste pelo interior. Quantos
+rostos não parecem mais encantadores no fundo d’aquelle nicho, quando
+entrevistos na semi-obscuridade do _manto_, que mão pequenina, ás vezes
+bem calçada, sorrateiramente descerra á altura do pescoço, para logo
+o fechar unindo-lhe as bordas deanteiras, de modo a ficar apenas um
+orificio, atravez do qual os olhos dardejam curiosos!... E o effeito
+não falha, porque o pomo vedado é o mais appetecido.
+
+A par do _manto_, que em muitas se via descahido para traz por
+causa do calor, figuravam os capotes de longo cabeção e pesado capello
+terminado posteriormente em forma de travesseiro. Este abrigo, que
+constitue abobada por cima da cabeça e resguarda as faces com as abas
+verticaes, acabadas em bico á altura dos hombros, tinham-o tambem
+deitado para as costas algumas das donas, não menos encaloradas que
+as dos _mantos_, ao passo que outras, mais cautelosas, os haviam
+guardado dobradinhos a preceito, dentro da casa e em sitio escolhido.
+Nada! Que o capote para muitas é a bem dizer um dote.
+
+Do matiz formado pelos chales e lenços de seda ou de chita, que
+adornavam as restantes mulheres do povo, destacava-se um ou outro
+capote e lenço, para ser ainda maior a diversidade dos trajos.
+
+Quando o Jorge e os companheiros chegaram ao logar da festa, já
+remoinhavam pelas ruas, aos bandos, os rapazes do povo, trajando bellas
+roupas de _panno fino_, chapeus de feltro e alvas camisas, com os
+collarinhos unidos por dois grandes botões de ouro, lavrados em relevo
+imitante a filigrana e encadeados pelo pé. Só os velhos e a maioria dos
+_senhores da cidade_ buscavam refugio nos mirantes e janellas.
+
+Por entre os passeiantes esgueiravam-se, a espaços, as retardatarias.
+Estas--duas lindas moçoilas do campo--faziam resoar na calçada as solas
+de pau das _galochas_ pregadas, em volta, de tachinhas amarellas,
+e enfeitadas no peito do pé com bordados escarlates a sobresahirem
+do fundo azul da carneira. E como ambas corriam ligeiras com aquelle
+calçado tão difficil de suster nos pés! Ora! Se até iriam dançar, a
+menos que o tirassem, para bailar em palmilhas de meias!
+
+Quem primeiro veiu fallar ao Jorge foi o João Matheus, um leiteiro
+que tinha a freguezia de muitos moradores do Castello. O veterano
+quasi não o conheceu, tão differente o achou, de quando elle ia por
+lá ao seu negocio, de manhãsinha, mettido n’uma grande camisa de
+linho e coberto com o classico barretinho de malha, parente muito
+proximo do solideo ecclesiastico. O leite, levava-o em duas grandes
+cabaças escuras, amarradas aos extremos de um bordão ligeiramente
+curvo, que lhe assentava pelo meio no hombro esquerdo. Agora estava
+outro inteiramente, salvo no varapau, e no _pé fresco_, moda tão
+predilecta do povo açoriano: o fato cifrava-se no dos outros populares,
+e a cobertura da cabeça, ou, mais rigorosamente, do cocoruto era
+a famosa carapuça de panno azul, orlada na peripheria com um vivo
+encarnado e rematada dos lados por duas orelhinhas da mesma côr,
+reviradas para cima. Para seguir ainda mais á risca a moda popular
+terceirense, tinha pendente ao meio da testa, saindo por baixo da
+carapuça, um caracol de cabello feito a primor.
+
+O veterano levou os companheiros para casa do José de Mello, que já
+o tinha convidado muitas vezes, e que mal accommodou em bom logar do
+mirante a Isabel e a Rosa, carregou com os dois velhos para dentro
+de casa, ancioso por dar-lhes a provar uma pinga de vinho novo da
+Graciosa, que as duas mulheres não acceitaram, mas que os tres homens
+foram escorropichando por tigelas de barro não vidrado, acompanhando-o
+de milho cosido com funcho, tremoços, favas e milho torrado, e outros
+_hors d’œuvres_, patentes na meza e destinados ás visitas.
+
+A mulher do José de Mello, sentada a par da Isabel, disse-lhe que
+tomasse cuidado á passagem do bicho, porque eram já seis os touros que
+lhe tinham saltado para o mirante.
+
+Mas o conselho não foi ouvido, porque o estalar de um foguete provocou
+immediatamente um enorme borborinho. Do touril, estabelecido n’um
+quintal proximo, acabava de sair o boi. Correram-lhe ao encontro os
+_aficionados_, pulando e gritando com desespero.
+
+Appareceu finalmente um touro de pequeno corpo e de côr escura, preso,
+pelas hastes emboladas, a um comprido cabo, que quatro homens seguravam
+pela extremidade opposta, e largavam ou colhiam para dar fuga ao animal
+ou obrigal-o a parar.
+
+Traziam os quatro, á laia de uniforme, calças brancas, alvas camisas
+avivadas de encarnado, e bonnets de copa baixa, apenas differentes dos
+que usam vulgarmente os cosinheiros por terem tambem vivos d’aquella
+côr.
+
+A _viseira_ que lhes occultava a metade superior do rosto, é que
+originou a denominação de _mascarados de corda_, com que o povo da
+ilha então os designava.
+
+Todos quatro coxeavam mais ou menos, visto que em obediencia ao seu
+tradicional plano de uniformes, traziam os pés, tão deshabituados
+de constrangimento, n’aquelle dia apertados em sapatos de bezerro,
+legitimos representantes, para o caso, dos celebrados borzeguins da
+tortura inquisitorial.
+
+O touro passou de corrida pela frente do mirante do José de Mello. Um
+enxame de homens e rapazes seguiu-o de tropel. Tanta diligencia faziam
+por uma ou duas marradas, que ás vezes viam coroadas as suas aspirações.
+
+N’isto, um d’elles, mais atrevido, tropeçou e cahiu, e d’aqui resultou
+que outros dois tambem se estatelassem na calçada.
+
+O touro estava perto, e, ou porque os mascarados não podessem a tempo
+segural-o ou porque desejassem «animar o divertimento», conseguiu
+chegar aos tres, e depois de uma focinhada prévia dispunha-se já para
+mimoseal-os com festa mais valente, quando o cabo, esticado com força,
+lhe deu a _pancada_, obrigando-o a retroceder e arrancando-lhe um
+mugido doloroso.
+
+Decididamente a tourada promettia ser boa.
+
+Os tres levantaram-se no meio de risadas estrepitosas, e um d’elles,
+com a cabeça partida, foi curar-se á botica proxima, sem que mais
+ninguem désse importancia a similhante bagatella.
+
+Apezar de ser fanatica pelo divertimento, a Rosa tornou-se pallida mal
+viu o sangue, e descórou mais ainda, porque ao afastar os olhos deparou
+no mirante contiguo o sargento Luiz, a fital-a persistentemente, com um
+ar muito triste, como de quem sentisse grande pena de estar a vel-a,
+mas que não podesse desviar d’alli a vista, nem o pensamento. Afinal
+cobrou animo e, com simulada indiferença, mostrou concentrar a attenção
+no touro, que já ia a distancia, rodeado por uma caterva menos densa.
+Alguns dos perseguidores, vendo as barbas do visinho a arder, tinham-se
+refugiado nos vãos das portas, ou dependurado das grades de algumas
+janellas mais baixas.
+
+--Não havia de olhar para elle!... Se até lhe tinha raiva!... Quando
+o Luiz a namorava, jurava-lhe um amor por ahi além, e afinal deixou-a
+casar com outro... Bem fraco amor!... Nem já se lembrava de que ella
+existia. Tinha-a encarado, por um simples acaso. Iria apostar que
+olhava já para outro sitio... Nem já alli estaria talvez...
+
+E, para certificar-se, olhou novamente e viu outra vez o Luiz, sempre a
+miral-a com a mesma persistencia.
+
+Revoltou-se e sentiu uma grande vergonha, por adivinhar que n’aquella
+teimosia estava a prova de que elle não a julgava mulher de bem, e a
+suppunha capaz, depois de casada, de olhar para outro homem, que não
+fosse o marido.
+
+Ia dizer-lhe pela expressão do semblante a indignação que o atrevimento
+lhe causava, mas não poude, porque ao encarar com o Luiz conheceu que
+o seu olhar não era petulante, mas de supplica, e ainda mais terno do
+que no dia em que elle lhe tinha dicto que a _Rosinha era a flôr do
+Castello_, e que _morria de amores_ por ella.
+
+O que estava certamente era ralado de pena, porque, em obediencia ao
+pae, a tinha perdido!... Podia lá querer tornal-a má mulher, embora
+fosse unicamente nas boccas do mundo!... Até merecia dó o infeliz...
+Pois não o havia desprezado, para casar com o Jorge?... Coitado!...
+
+No emtanto proseguia o divertimento na sua monotonia habitual.
+Percorridas as ruas do transito, o boi já vinha quasi a passar pela
+segunda vez em frente da casa do Mello, continuamente excitado pelos
+bordões, guardasoes, lenços, e até pelos casacos despidos pelos
+capinhas improvisados, que assim toureavam em mangas de camisa.
+
+Perplexo, estonteado, o boi estacou ao meio da rua, olhando em derredor
+e escarvando o chão com as patas deanteiras. Afinal, escolhido o ponto
+de ataque, partiu como seta em direcção a uns cinco homens, mais
+impertinentes em atiçal-o, mas que desappareceram por encanto, mal
+suspeitaram a arremettida. Sumido o alvo, o touro não parou na corrida
+e foi galgar de um salto o mirante do João de Mello, antes que os
+_mascarados_ lhe dessem a pancada.
+
+Um reboliço, uma gritaria infernal.
+
+Estes refugiavam-se esbaforidos no interior da casa, aquelles saltavam
+para a rua, e dois ou tres, paralysados pelo medo, deixavam-se ficar
+no mesmo sitio, de olhos fechados, mãos nos ouvidos, entregues ao seu
+destino.
+
+Mas subiu da rua uma gargalhada estrondosa, seguida de palmas e apupos.
+Era a Isabel, que ao pular do mirante não tinha podido evitar que as
+saias se levantassem, e dava com isto um espectaculo, se não agradavel,
+pelo menos original.
+
+A Rosa, colhida improvisamente no meio da sua abstracção, viu o touro
+cahir-lhe ao pé e desmaiou de susto: mas o sargento Luiz, n’um abrir e
+fechar de olhos, saltou do mirante onde estava, tomou-a nos braços e
+afastou-a do animal, a que os _mascarados de corda_ esticavam no
+entretanto o cabo e obrigavam a descer para a rua.
+
+Quando acordou do seu passageiro desmaio, a mulher do Jorge sentiu que
+a beijavam e ao abrir os olhos viu-se nos braços do Luiz.
+
+Os dois veteranos conseguiram afinal romper atravez dos que tinham
+fugido para dentro da casa, e assomavam á porta, sem que nenhum d’elles
+soubesse ainda ao certo o que era passado. O José Maria como que viu o
+beijo, mas não teve bem a certeza, pois que todas as vezes que bebia
+uma gota a mais, ficava tonto e via coisas perfeitamente imaginarias.
+Convenceu-se de que fôra uma historia armada pelo vinho, quando lhe
+explicaram o succedido.
+
+Para fugir aos agradecimentos, que o Jorge lhe dava sem a minima
+desconfiança, retirou-se logo o sargento, envolvido pela Rosa n’um
+olhar de reconhecimento e admiração.
+
+A Isabel veiu furiosa da rua e quiz por força que se retirassem logo.
+Temia que o rapazio continuasse a dirigir-lhe chufas.
+
+Não disse palavra a Rosa na volta para o Castello. Se por acaso
+dava com os olhos no marido, voltava a cara para outro lado, com um
+movimento brusco. Ao meio da rampa que vae dar á ponte levadiça, parou
+para descançar, e olhou para traz, sem saber porque.
+
+O Luiz tinha-a seguido, de longe.
+
+Não deram por isto os dois velhos, nem a Isabel. Notou-o comtudo a
+Luiza Braga, que vinha logo após o sargento, em companhia da Josepha
+Julia.
+
+--Com cedo principiam! cochichou ella ao ouvido da amiga.
+
+--Principiam? acudiu a outra ennojada. Continuam!
+
+
+ IV
+
+
+Nos dias seguintes a Rosa pensou, pensou muito, medindo o alcance da
+loucura que tinha feito em casar com o Jorge.
+
+Só depois do beijo, que lhe escaldava ainda a bocca, percebeu que havia
+alguma coisa na ligação do homem com a mulher, que o marido com toda a
+sua amizade não lhe tinha feito conhecer.
+
+Por aquelle beijo o sargento apossara se d’ella com um predominio,
+que o Jorge nunca lhe tinha imposto, em tantos dias de intimidade.
+Sentia-se fraca, indefesa perante um ascendente ineluctavel, e pela
+primeira vez sabia como o homem chega a avassallar a mulher, a fazel-a
+coisa sua.
+
+Tudo isto passava tumultuariamente no espirito da rapariga, como
+vaga percepção, sem que ella, intelligente mas ignorante, tivesse
+bem a consciencia do mundo novo de sensações e ideias que acabava de
+revelar-se-lhe.
+
+O que de mais comprehendia, era que apenas o Luiz quizesse, não
+poderia resistir-lhe, e que sabendo aliás que se tornaria uma creatura
+desprezivel, seria d’elle, d’elle inteiramente.
+
+--Ai! E podiamos estar casados um com o outro! scismou.
+
+Uma semana depois o sargento, certo de que o veterano estava longe,
+passou-lhe pela porta. A Isabel, tinha-a elle avistado da muralha do
+castello, a descer a ladeira contigua ao Relvão.
+
+Quando o viu prestes a entrar, a Rosa ficou toda a tremer, e quiz
+refugiar-se no interior da casa, porém o Luiz disse-lhe que só desejava
+dar-lhe duas palavras, e que depois a deixaria em paz para todo o
+sempre; mas que se ella o não escutasse, tinha deixado no quarto a
+espingarda já carregada, para acabar de vez com o seu tormento.
+
+A Rosa ainda balbuciou que elle queria desgraçal-a; que se sumisse
+d’alli, ou que se veria obrigada a chamar por alguem. Podiam tel-o
+visto. Supplicou-lhe de mãos postas que a deixasse, que se fosse embora.
+
+Certo de que não o tinham visto, o Luiz fechou a porta rapidamente,
+tomou nos braços a linda rapariga e tapou-lhe com beijos a bocca, para
+que ella não gritasse.
+
+ * * * * *
+
+Só quando o sargento lhe disse adeus, e lhe pediu muito que para
+o futuro fosse vel-o ao quarto d’elle, pois alli seria perigoso
+continuarem a encontrar-se, é que a Rosa viu bem o que tinha feito.
+
+Jurou que nunca mais tornaria, mas sentiu logo que havia de tornar,
+indefesa contra a seducção, que ainda lhe fazia vibrar todo o corpo em
+frémitos de goso.
+
+A segunda entrevista foi no quarto do amante.
+
+Ninguem a reconheceria, vendo-a passar na rua. Ia de manto, e para
+maior segurança, pedira á mãe emprestadas as botas, sob o pretexto de
+que as suas lhe _pisavam_ e que precisava ir á cidade. Estando
+quasi a chegar ao quarto do Luiz, apanhou um susto enorme: encontrou-se
+com o marido, que devia passar a manhã no monte Brazil.
+
+O Jorge não andava a espial-a. Cumpria simplesmente uma ordem do
+inspector do material de guerra, que o tinha mandado chamar ao
+Castello, para lhe dar certas explicações relativas ao embarque de umas
+peças velhas de bronze, que deviam recolher á Fundição de Canhões.
+
+Os dois amantes, muito conchegados um ao outro, estiveram tempos sem
+fim de ouvido á escuta por traz da porta, que ella tinha fechado
+subtilmente. Não sentiram nada. Apenas as pulsações desordenadas do
+coração de Rosa.
+
+--És uma tola, disse-lhe por fim o sargento, dando-lhe um beijo. Podia
+lá conhecer-te, com esse disfarce! De mais a mais como é velho, deve
+ter a vista cançada.
+
+--Elle, a vista cançada? Estás a ler. Vê perfeitamente. E para longe,
+ainda melhor do que eu.
+
+Quando tornou para casa, ainda ia receiosa.
+
+O marido appareceu d’alli a uma hora. Não fazia differença.
+
+As entrevistas continuaram.
+
+N’uma d’ellas a Rosa, ao sair do quarto do Luiz, topou a Josepha Julia,
+que a mirou dos pés á cabeça e fez um gesto de escarneo.
+
+--Se me conheceu!... pensou a mulher do veterano, abalada pelo medo.
+Era o mesmo que sabel-o toda a gente!
+
+Mas logo encolheu os hombros, e disse comsigo resolutamente:
+
+--Ora adeus! O que está feito, está feito!
+
+ * * * * *
+
+D’alli a poucas horas já effectivamente andavam de bocca em bocca as
+infelicidades conjugaes do cabo de veteranos. Para não levantar falsos
+testemunhos, a Josepha, muito encolhida debaixo do lenço, cosida
+com as paredes e a passinhos ligeiros, tinha seguido a _mulher do
+manto_. Mal teve a certeza de quem ella era, correu a casa da Luiza
+Braga. A velha prometteu guardar segredo, mas, tendo ficado só e vendo
+entrar-lhe pela porta dentro o 33 da artilheria, a pedir-lhe linha
+preta para coser um botão do casaco do uniforme, não teve mão em si e
+poz tudo em pratos limpos, sem dizer, já se vê, quem lh’o tinha contado.
+
+A Josepha já estava em casa, costurando ao pé da janella do rez do
+chão. Tinha feito solemne protesto de não trocar falas com o maldizente
+do artilheiro, mas ouviu-lhe a «grande novidade», condimentada com
+varios pormenores inventados pelo narrador.
+
+Benzeu-se, exclamou que podia ser tudo uma refinada mentira, que a Rosa
+era levantadinha de cabeça, mas que chegasse a tanto, lá isso não lhe
+parecia.
+
+--Pois diga-_le_ que não. Quem viu, é pessoa incapaz de mentir.
+
+--E quem é que viu? perguntou a torta em sobresalto.
+
+--Nun xe xabe! como dizia o gallego.
+
+--Então pode não ser verdade. Bem sei que o marido é velho...
+
+--Vê?... Já acreditou!
+
+--Não acreditei nada. Vá-se d’aqui, _seu_ grande má lingua!
+
+Fechou a janella, com um accrescimo de indignação. No fundo estava
+radiante. Para o libello famoso, já tinha editor responsavel.
+
+ * * * * *
+
+A Isabel foi aos ares no dia seguinte, quando soube pelo tio Braga o
+que a voz publica attribuia á Rosa, e até pregou uma valente bofetada
+no alviçareiro. Se lhe fez doer, não lhe causou o minimo espanto, de
+habituado que elle andava a tomar o peso ás mãos da cara metade.
+
+Podia lá entrar-lhe na cabeça que a filha, casada tanto de fresco, já
+enganasse o marido!... Ainda se estivessem recebidos ha mais tempo!...
+Ella tinha-se prendido por sua livre vontade, e nem sequer podia dar
+como desculpa o Jorge ser velho e pouco proprio para encantar uma
+rapariga. Tudo isto a mãe lhe fizera ver um cento de vezes, antes do
+casamento.
+
+Não levou um credo para chegar a casa da filha e como a apanhou
+sósinha, disparou-lhe tudo á queima roupa. Uma de duas: ou conseguia
+atrapalhal-a e apanhar-lhe a confissão da culpa, ou, se fosse tudo
+mentira, a indignação havia de patentear bem clara a innocencia.
+
+A mulher do veterano encarou com a mãe, e disse pausadamente estas
+palavras, cujo effeito foi observando:
+
+--Sim, senhora, é verdade o que lhe disseram. Fiz isso, porque não
+posso aturar meu marido, e porque só do Luiz é que eu gosto e hei de
+gostar sempre.
+
+A Isabel cahiu sentada para cima de uma arca, e rompeu n’um grande
+choro, arrepellando-se, dizendo mal á sua vida.
+
+--Cuidado, minha mãe! Olhe que se meu marido entrasse agora por ahi
+dentro, a desgraça ainda havia de ser maior.
+
+--Lá isso era, porque descobria toda a verdade, e ... Deus te
+livrasse!...
+
+--É o que pode fazer com esses alaridos.
+
+--_Ubei!_ Permitta Deus que elle nunca desconfie!... Ora a minha
+desgraça!... Mas o que eu não quero,--fica sabendo!--é que me tornes a
+olhar para aquelle _bonecro_ de engonços! Ha de ser isto assim, ou
+sou eu mesma que prego a ambos uma boa lição, com estas mãos que Deus
+Nosso Senhor me deu!
+
+--Mau! Já vejo que não temos nada feito, disse a Rosa, afastando-se da
+mãe. Se as suas tenções são essas, o melhor é ir já, já ter com o Jorge
+e declarar-lhe tudo. Ande! Vá! Assim ao menos deixo de penar por uma
+vez!
+
+--O’ rapariga, o que estás tu a dizer?
+
+--Que hei de gostar sempre do Luiz, ou eu não me chame Rosa. Sim,
+senhora! Resolvi-me a tudo. Dizem mal de mim? E eu que me ralo! Ellas
+falam, porque se mordem de inveja!
+
+--Ai que está variada! exclamou a Isabel, levantando-se e erguendo os
+braços para o ceo. Deram-lhe volta ao miolo, olá se deram. Oh! Mas isto
+não pode ser, e tendo-se voltado para a filha, continuou, voz em grita:
+Se me não tomas juizo, eu racho-te ... racho-te de meio a meio! Cuidas
+que por estares assim espigada, me não provas os cinco mandamentos?
+
+--A minha mãe não me entendeu. Olhe! Se fizer isso, se quizer
+apartar-me do Luiz, queimada seja eu pelo fogo do inferno, se na
+primeira occasião em que me pilhar a sós com meu marido, não lhe conto
+a coisa toda como ella é, tim-tim por tim-tim. E reforçou o juramento
+levantando tambem para o ceo o braço direito, com a mão bem espalmada.
+
+A Isabel, que se tinha benzido ao ouvir fallar no inferno, descahiu
+outra vez para cima da arca, aos soluços.
+
+--Está doida! Doida varrida!
+
+A rapariga aproveitou este ensejo e approximou-se da mãe, pé ante pé:
+fallou-lhe ao ouvido, carinhosamente; demonstrou-lhe que só havia uma
+coisa que fazer--evitar que o Jorge descobrisse, O mal já estava feito,
+e nem Deus teria poder para destruil-o. Mas se a Isabel quizesse, as
+coisas continuariam assim, e nunca o velho saberia o que diziam, pois
+ninguem se atreveria a ir contar-lh’o. Mais dia menos dia, como já era
+bastante edoso, podia apanhar uma macacôa que o levasse para a terra
+da verdade, e já ella ficaria livre para casar com o escolhido do seu
+coração.
+
+--O sargento casar comtigo?... Espera por essa! Tanto como da primeira
+vez, murmurou a Isabel em tom lamentoso. O que elle quiz foi ... o que
+se está vendo; mas se julgar novamente o caso mal parado, fica certa
+de que nunca mais lhe pões a vista em cima. Os homens são assim! E
+concluiu, ainda mais lamuriante: Ai! A minha triste vida! Para o que eu
+estava guardada!
+
+--Isso era bom, se o Luiz não gostasse tambem de mim; mas gosta muito,
+acredite, gosta muito, affirmou a Rosa, fallando ao mesmo tempo que a
+mãe. E está tão arrependido de me ter deixado casar, tão arrependido!...
+
+--Historias da vida! Mas, ó mulher, foram esses os exemplos que eu te
+dei? Pois não tens vergonha!... Emquanto fui casada, respeitei sempre
+as barbas de teu pae, e depois de viuva...
+
+Ia proseguir mas calou-se a um olhar meio serio, meio de escarneo, que
+a Rosa lhe dardejou sem levantar a cabeça ligeiramente inclinada para
+o chão, mas arregaçando de subito as palpebras, a fim de trazer bem a
+lume os olhos negros e expressivos.
+
+Por fim recuperou ousadia e perguntou com voz ainda titubeante:
+
+--Porque olhas para mim d’essa maneira? Porque dás ouvidos ao que dizem
+certas linguas?... Ainda que tivesse sido verdade, não me podiam dizer
+nada, porque uma viuva não deve a cabeça a ninguem.
+
+--Nem me dava com isso maus exemplos? interrogou a filha, com apparente
+serenidade.
+
+--Está visto que não... Quero dizer ... não dava, se não houvesse
+escandalo, se não soubesses ... de nada.
+
+--E se eu soubesse de tudo? perguntou Rosa, certa já de conquistar
+o auxilio da mãe. Olhe! Sempre lhe quero contar... Eu teria talvez
+uns seis annos ... ou nem tanto... Uma tarde, a mãe tinha ido para
+dentro de casa, e estava a conversar com aquelle cabo de artilheria
+muito alto e louro--um rapaz bem bonito, por signal--a quem gommava a
+roupa... Lembra-se? Eu andava a brincar na rua. Passou a Luiza Braga e
+perguntou-me quem estava lá dentro com a minha mãe. Respondi-lhe que
+era a sua irmã de Agualva ... a tia Marianna. A velha acreditou-me,
+e foi-se embora. Se não fizesse o que fiz, ella tinha ido por esse
+Castello infamar a minha mãe, e ficavam todos certos do que alguns
+diziam e muito poucos acreditavam. Mas sabe o que valeu?... Foi não
+passar pela cabeça á Luiza que, n’aquella edade, eu já soubesse mentir.
+Sabia, porque a mãe, de outra vez, me tinha ensinado a mesma resposta,
+para quando alguem me perguntasse o que ella me perguntou.
+
+--Eu não me lembro de nada d’isso, murmurou a Isabel, com a voz a
+tremer.
+
+--Lembro-me eu, e ainda bem que menti! Deus não me castigará, por eu
+ter livrado a minha mãe de tantas afflicções.
+
+Em voz baixa, n’uma supplica repassada de ternura, accrescentou:
+
+--E tambem não a castiga, se a minha rica mãe quizer ajudar-me a sair
+d’esta consumição.
+
+--Foi praga que me rogaram! Foi praga!...
+
+A Isabel não poude levar por deante o epiphonema, porque a filha,
+cingindo-lhe as costas com o braço direito e achegando-a a si
+brandamente, segredou:
+
+--Bom! Bom! Deixe estar que não se arrepende... e ha de me dar razão
+algum dia, vendo-me feliz.
+
+--Deus te ouvisse, filha, Deus te ouvisse! Mas o que tu me obrigas a
+fazer!... Olha! O melhor era deixares aquelle ... não sei que diga!
+
+--Outra vez!... Escolha: ou a mãe consente em ajudar-me, ou eu digo
+hoje mesmo tudo a meu marido!
+
+--Não, mulher, não lhe digas nada!
+
+E com os olhos em alvo, as mãos erguidas, os dedos enclavinhados, a
+viuva exclamou:
+
+--Seja tudo pelo amor de Deus!
+
+
+ IV
+
+
+O José Maria andou uns poucos de dias a parafusar, antes que se
+resolvesse a dizer ao Jorge umas coisas, que lhe tinham contado muito
+em segredo a respeito da Rosa, e que elle acreditou, porque eram o
+complemento e a confirmação da scena entrevista em S. João de Deus.
+
+Esteve quasi decidido a calar-se, porque dava razão ao dictado «Entre
+marido e mulher não mettas a colher», e tambem porque lhe custava muito
+ir destruir para sempre a alegria ao seu antigo camarada.
+
+Quando andava n’estas indecisões, e já principiava a desculpar a
+Rosa, pensando que talvez a coisa não tivesse ido a mais, e que ella
+sempre havia de ter algum respeito pelos cabellos brancos do marido,
+adregou-lhe passar á porta da Luiza Braga.
+
+--Pst! Pst! fez-lhe esta, lá de dentro.
+
+--Isso é commigo?
+
+--Entra, ó José Maria, que te quero perguntar uma coisa.
+
+--Tu! Ha de ser fresca!...
+
+Entrou e foi sentar-se n’um moxo.
+
+--O que eu te quero perguntar, disse a velha, que estava a engommar
+um collarinho, é se o teu amigo já sabe o que rosna por ahi a canalha
+brava.
+
+--Qual meu amigo?
+
+--O Jorge! Mas tambem elle só deve queixar-se de si mesmo. Não se
+mettesse com a Isabel, nem com gente da sua geração.
+
+--Cala-te, mulher, que já não te vejo bem! replicou o veterano,
+levantando-se n’um impeto.
+
+--Eh senhor! Tu endoideceste! Por eu não querer que o Jorge ande
+enxovalhado por essas boccas ruins, é que tu!... Ainda em cima?...
+Sempre sou bem tola!
+
+O velho conheceu que se tinha excedido, e ancioso por saber o que mais
+propalavam os maldizentes, moderou-se e murmurou:
+
+--Dize lá o que querias dizer.
+
+--Queria mas já não quero... Julgas talvez que não sou tambem amiga
+do Jorge? Pois ainda ha migalha estive quasi _garreando_ com a
+... cala-te bocca!... com uma certa pessoa, por não lhe poder ouvir
+que se elle não vae ás do cabo com a Rosa, é porque uma casa sempre se
+governa melhor, quando são dois, em logar de um só, a carregarem com as
+despezas.
+
+--Dois?
+
+--_Bei_, Senhor! Pelos modos o sargento Luiz recebeu, pelo ultimo
+paquete, uma _mancheia_ de patacas, que lhe deixou um tio lá de
+Lisboa...
+
+--Fecha-me essa bocca suja, grande excommungada!
+
+Juntando á palavra o gesto, o José Maria bateu-lhe com a palma da mão
+em cheio nos beiços, e, antes que a Luiza se recobrasse do susto, sahiu
+pela porta fóra, de escantilhão.
+
+--Hei de contar tudo ao Jorge! resmungava elle, pela rua adeante. Não
+quero que ande vendido. Hei de contar-lhe tudo, e vae ser hoje mesmo!
+Que grande pouca vergonha!...
+
+Com mais temor que resentimento, a Luiza foi á porta, para seguil-o com
+a vista. Não poude furtar-se a dizer com os seus botões que, tirante o
+Braga, todos os soldados do cerco do Porto eram homens de uma canna só.
+
+
+ V
+
+
+Foi na courella cultivada pelo Jorge no monte Brazil, que o José Maria
+encontrou d’alli a pouco o seu antigo companheiro de armas.
+
+Primeiro que entrasse no assumpto, falou de mil ninharias: das lagostas
+que na vespera tinha pescado na bahia do Fundão; na queda que o
+corneteiro-mór reformado ia dando na Quebrada, quando andava a apanhar
+cracas.--Ainda que se não esmigalhasse na rocha empinada e de temerosa
+altura, e fosse cahir no mar, não escaparia de certo ao mergulho, pois
+elle a nadar era mesmo um prego!
+
+Foi tagarelando, tagarelando, mas sem alludir á Rosa. Todas as vezes
+que a rapariga lhe acudia á lembrança, parecia que se lhe punha um nó
+na garganta.
+
+Afinal o Jorge deu por isto, e foi o proprio que perguntou:
+
+--O’ José Maria, tu estás, a modos, exquisito? Parece que tens uma
+coisa para me dizer e que não te _astreves_...
+
+O outro ainda lhe retorquiu com um «Olha lá!...» e quiz fingir ar de
+riso. Mas não poude levar por deante a dissimulação e disse por fim,
+deixando-se cahir sentado n’uma pedra:
+
+--Pois tenho, tenho muito que te dizer.
+
+--Se é da Rosa, não me digas nada! respondeu-lhe o amigo com
+arrebatamento. Sei que ella não vae á tua bola, e pódes ter ouvido
+por ahi qualquer coisa contra a rapariga, e vir então buzinar-me os
+ouvidos... Se adivinhei, não tenhas esse trabalho!
+
+--Ó Jorge, pois tu fazes de mim similhante ideia?! perguntou o José
+Maria todo sentido e levantando-se de esfuziote. Metteu-se-te na cabeça
+que eu fosse capaz de dizer coisas, de que não tivesse a certeza? Bem!
+Bem! Como te deram volta ao juizo, já aqui não está quem falou ... isto
+é, quem ia falar!
+
+--Sim, cala-te, que é o melhor! Só faltava que tambem tu me viesses
+ralar o interior, que já anda bem consumido. Só Deos é que sabe!...
+
+E tendo lançado para longe o sacho com que andava cavando, levou ambos
+os punhos aos olhos, e desatou a soluçar. Coisa que não fazia desde
+creança, chorou--chorou lagrimas abundantes, que lhe escorriam pelo
+rosto e pelas mãos.
+
+Certificou-se o José Maria de que mais ninguem podia ver o amigo,
+chegou-se a elle e passou-lhe um braço em volta do pescoço.
+
+--Então! Que diabo! Isso não vale a pena! disse-lhe com meiguice. Pois
+ha mulher que mereça a vida de um homem? Não te lembras da minha serva
+de Deus? Bem amigo d’ella que eu era: vi-a morrer e ainda por cá estou.
+Com essas coisas dás cabo de ti.
+
+--Tu, tu é que dás. Para que vieste bulir commigo? Deixasses-me quieto!
+E dizendo-lhe isto de mau modo, o Jorge arredou-se do camarada e ficou
+de costas para elle, sem comprehender que fosse dictada pela amizade
+aquella confidencia.
+
+Pois não lhe trazia a certeza de que elle já receiava? Receiava, sim,
+mas não queria acreditar, desejoso de que o tempo viesse a embotar
+aquella duvida, e esperançado em que por fim se conhecesse que a
+rapariga estava innocente, como lh’o dizia o seu espirito cheio de
+rectidão. E ainda no peior dos casos, se em verdade a Rosa fosse má
+mulher, para que haviam de lh’o dizer, se mais dia menos dia elle mesmo
+descobriria tudo, com certeza?
+
+Por isso nem queria encarar com o seu antigo camarada. Qualquer outro
+já teria pago bem caro o atrevimento!
+
+O José Maria entendeu que se devia ir embora, o que era aliás seu
+desejo desde que alli estava.
+
+--Haja saude, Jorge, e não me fiques querendo mal.
+
+O outro encolheu os hombros desabridamente, sem mudar de posição.
+
+--Não te ponhas com maus modos, homem! Aprender até morrer, bem diz o
+dictado.
+
+E chegando-se mais, concluiu:
+
+--Por me dares esse _pago_, não cuides que ouvindo algum marau
+dizer poucas vergonhas de ti, deixe de saltar-lhe para cima com vento
+fresco, apesar de velho e estropiado. Haja saude!
+
+Ia a afastar-se, quando foi agarrado violentamente por um braço.
+
+--Poucas vergonhas! Que poucas vergonhas dizem de mim? perguntava o
+Jorge, meio suffocado. Anda, põe já tudo em pratos limpos, se não
+queres fazer-me acreditar que te saiste com essa, para te vingares da
+minha resposta. Não! Não!...
+
+E emendou, supplicante:
+
+--Se não queres ver-me estalar de paixão, conta-me o que sabes, José
+Maria, conta-me o que sabes! Pelo amor de Deus!
+
+Foi então que o outro lhe referiu por miudo não só o que tinha visto,
+mas o que andava nas boccas do mundo. Quando o ouviu falar na suspeita
+de que fosse connivente na sua infamia, o Jorge teve um ataque de raiva
+e quiz saber por força quem tinha contado aquillo, para lhe apertar as
+goelas, até lhe fazer deitar cá para fora toda a lingua malvada.
+
+Apesar do que a revelação lhe fazia soffrer, reaccendendo lhe
+desconfianças, que a pouco e pouco se tinham ido aplacando, o seu
+primeiro impulso foi justificar a mulher, mostrar ao amigo que o tinham
+enganado, que a Rosa continuava pura como a neve. Se em S. João de
+Deus ella estava ao pé do sargento Luiz, era porque o medo do touro
+lhe fizera perder a cabeça. Pois o José Maria não a tinha tambem visto
+amarella como cera, quando os dois a foram encontrar? Demais, a Isabel,
+que tambem não podia ver o tal _bonecro_, explicou depois que não
+havia nada que se lhe dizer, e que até devia agradecer-se ao pobre
+rapaz o ter acudido á Rosa, quando todos fugiam assustados.
+
+--Cantigas da viuva! objectou o José Maria. O que ella quiz foi
+desculpar a filha. Olha! Pergunta-lhe se tambem deves agradecer ao
+bandalho, o beijo que elle pregou em tua mulher!
+
+--Um beijo? Quando?
+
+--N’essa mesma occasião. Como se julgava a sós com a rapariga, visto
+os mais terem debandado, tomou esse atrevimento ... mas eu que vinha
+adiante de ti pude ainda vel-o.
+
+--Viste-o? Tens a certeza?...
+
+--Pareceu-me que sim. Bem sabes que eu, bebendo uma pinga a mais...
+
+--Pareceu-te! Eu pergunto se tens a certeza!...
+
+--Antes de passar a porta que dá para o quintal onde elles estavam,
+ouvi a modos a bulha de um beijo, e como fui dar com o sargento ainda a
+amparal-a, acredito que elle a beijasse, como dizem por ahi.
+
+--Se não viste, para que repetes o que pode ser mentira? E olha que
+nos dias que se seguiram, lembro-me muito bem, ella não fez differença
+nenhuma. Nunca se tirava de ao pé de mim. E sempre alegre!... Se
+tivesse feito o que dizem, não sabia sustentar aquelle disfarce.
+
+--Isso é o que tu julgas. As mulheres, quando pendem para a banda do
+arrocho...
+
+--Ainda que quizesse pôr pé em ramo verde, não podia, respondeu o Jorge
+com impaciencia. Em quanto eu estou fóra de casa, a Isabel não perde
+a filha de vista. Já te disse! Não ha uma hora do dia em que a Rosa
+esteja desacompanhada.
+
+--E de noite?... perguntou o José Maria, que inconscientemente tomava
+calor perante as objecções do camarada, e, excitado pela controversia,
+dizia coisas, que não lhe sairiam da bocca n’outra occasião.
+
+--De noite está ella deitada commigo!
+
+Mas calou-se de repente, não se atrevendo a continuar na defeza, por se
+lembrar de que tinha o somno pesado, e que, vinte vezes que a mulher se
+levantasse, elle de certo não acordaria.
+
+--Pois a Rosa seria capaz?...
+
+A afflicção de novo o estrangulou. Descria de todos, de tudo.
+Arrepanhou-se-lhe o interior do peito, ao de cima do estomago, e todo
+esfriou lá por dentro, como se lhe tivessem amputado subitamente essa
+parte do corpo, substituindo-a por uma grande pedra de gelo.
+
+É que lhe tornava o ciume ainda com maior furia, perdida a esperança
+que pouco antes o animava, quando elle, na ancia de desculpar a mulher,
+em vez de persuadir o amigo, a si proprio se convencia.
+
+Mas o outro comprehendia, afinal, a grande asneira que tinha feito.
+
+Fosse a Rosa effectivamente má mulher, e nem mesmo assim elle devia dar
+aquelle passo.
+
+Obedecendo a um momento de zanga, acabava de perder um amigo, para
+quem se tornara mensageiro do maior de quantos desgostos se lhe podiam
+annunciar, e fazia-o para sempre desgraçado.
+
+Quiz ainda emendar a mão, desmanchar ou pelo menos attenuar o mal que
+acabava de causar, mas o Jorge percebeu-lhe as intenções, e atalhou,
+despedindo-o com um gesto a que o José Maria obedeceu:
+
+--Pois sim, será o que tu dizes... Mas certas coisas, mais vale um
+homem cosel-as comsigo mesmo. Adeus!
+
+
+ VI
+
+
+Quando julgou o camarada já bastante longe, de modo que lhe podesse
+furtar as voltas para não ser visto por elle no regresso a casa, o
+Jorge saiu da courela de terra e tomou o caminho do Castello, quasi a
+correr, ancioso por se encontrar com a Rosa.
+
+Mas foi abrandando o passo.
+
+O que ia dizer-lhe?
+
+Podia lá contar-lhe o que os maraus!... Se o fizesse, é porque a
+julgava capaz d’isso, e então escusava de perder palavras, quando o que
+devia fazer unicamente era...
+
+Teve uma hallucinação. Pareceu-lhe que via diante dos olhos a cara
+d’aquelle soldado miguelista, a quem matara no cerco do Porto,
+enterrando-lhe no peito a espada de um alferes de caçadores 5, que o
+outro acabava de tornar cadaver, abrindo-lhe a cabeça com a coronha
+da espingarda. Viu outra vez n’aquelle rosto a expressão medonha da
+anciedade, da afflicção e desespero do infeliz, que assim perdia a
+vida em plena mocidade. Os olhos, os olhos muito abertos, a saltarem
+das orbitas, o iris completamente emmoldurado pela alva, diziam tão
+energicamente o immenso odio contra o matador, que o Jorge recuou
+apavorado... No fim do combate passou, por acaso, ao pé do morto. Os
+olhos já estavam embaciados, mas ainda lhe expressavam o mesmo odio.
+
+Entrou-lhe pela primeira vez bem clara no espirito a noção de quanto
+é horrivel dar a morte a um nosso similhante, e pediu a Deus que nunca
+mais o puzesse n’aquella dura extremidade. Assim lhe aconteceu. Até ao
+fim da guerra não tornou a matar ninguem, pelo menos que visse, que
+soubesse, pois que as balas, granadas e bombas lançadas pelas boccas de
+fogo que elle apontava não errariam de certo o alvo... Mas como não via
+essas mortes, era como se as não fizesse.
+
+--Havia então de matar a Rosa!... A Rosa de quem, apesar de tudo,
+gostava tanto!...
+
+Mas se ella effectivamente o tivesse enganado?
+
+Subiu-lhe outra vez á garganta uma onda. Viu tudo côr de sangue...
+N’esse caso, esmigalhava-a, estraçoava-a, para que nenhum outro homem
+lhe gosasse o que era seu, muito seu!
+
+Chegou ao pé de casa.
+
+Lá dentro tudo em socego.
+
+A Rosa, embainhando uma saia de chita, cantarolava a meia voz e em tom
+sentimental a modinha da _Saudade_, em quanto a Isabel, que havia
+tempos estava quasi sempre em casa d’elles, o que era muito do gosto
+do Jorge, espertava o lume para se coser a ceia. A sopa de couves com
+feijão fervia n’um suave romrom dentro da panella de ferro e espalhava
+por toda a casa um aroma capaz de fazer crescer agua na bocca ao menos
+famelico.
+
+Sentiu-se menos resoluto, perante aquella tranquilidade.
+
+--Porque todos a accusavam, havia ella de ser culpada?... E se
+estivesse innocente?
+
+Enterneceu-se, invadido por uma grande commiseração.
+
+Em consciencia, quasi lhe achava desculpa, mesmo no caso de ser verdade
+o que diziam. Para que a tinha escolhido assim tão nova? Deus é que
+não lhe devia ter posto no coração, aquelle immenso amor! Bem sabia
+que estava adiantado em annos, que tinha o rosto cavado de rugas e
+o cabello quasi todo branco, mas desde que se apaixonára pela Rosa,
+sentia dentro de si o viço, o frescor, a alegria dos mais formosos dias
+da mocidade; respirava desafogadamente e com delicia, achando o mundo
+mais bello do que nunca, e antevendo um futuro longo, feliz. Ás duas
+por tres, nas vesperas do casamento, dava por si a rir, a cantar. Era
+moço outra vez.
+
+A Rosa, certamente, é que não o via do mesmo modo.
+
+Tudo isto lhe passou de tropel no pensamento, ao entrar em casa.
+
+Mas tinha que desabafar por força, se não rebentava.
+
+Deu as boas tardes ás duas mulheres, lavou as mãos, sacudiu a terra do
+fato e foi sentar-se n’um canto, sem saber como havia de começar.
+
+A sogra forneceu o pretexto, perguntando-lhe se queria que tirasse a
+ceia do lume.
+
+--É que eu mesmo tenho vontade! resmungou o veterano.
+
+--Hein? inquiriu a Rosa, sem largar a costura, mas fitando os olhos no
+marido.
+
+--Quem anda com o interior ralado, não tem vontade de comer!
+
+A rapariga encolheu os hombros, e continuando a coser disse por entre
+dentes:
+
+--Nunca tive geito para adivinhações.
+
+--Ah! Tu não adivinhas o que eu tenho?... Pergunta-o por esse Castello,
+e verás como toda a gente sabe dar-te a explicação. Ah! Que se fosse
+verdade!...
+
+E o velho levantou-se, fazendo um gesto de ameaça.
+
+A rapariga empallideceu levemente, mas recobrou animo, por ver o marido
+ainda duvidoso. Levantou-se tambem, arrumou a costura rapidamente, e
+perguntou com grande ousadia, fingindo-se embespinhada:
+
+--Se fosse verdade o que? Não tenho geito para adivinhações, já disse!
+
+A Isabel, que, pelo sim pelo não, tinha tirado a panella do lume, veiu
+postar-se ao lado da filha, para lhe accudir em caso de necessidade.
+
+O Jorge falou, falou, a principio com desabrimento e violencia, depois
+com menos força, como se o desabafo a pouco e pouco lhe minorasse a
+acuidade do tormento. Disse tudo o que o amigo lhe tinha contado, sem
+nomear, já se vê, o José Maria.
+
+Ouviu-o a Rosa com um sorriso desdenhoso, como se désse pouca
+importancia a tudo aquillo. Depois, cruzou os braços, deixou cahir
+o corpo sobre a perna esquerda, e ficou a miral-o atravez dos olhos
+semi-cerrados, meneando a cabeça e batendo febrilmente no chão com a
+ponta do pé direito. Dir-se-hia que mal continha a impaciencia. Tinha
+tido muito medo ao perigo quando o sentia longe, mas agora que o via
+diante de si, affrontava-o ousadamente, chegava quasi a pensar que o
+havia exagerado.
+
+Pela sua parte a Isabel acompanhou a objurgatoria com uma gesticulação
+larga, em que a indignação e o espanto se traduziam alternadamente, e
+tanto que o genro se remetteu ao silencio, bradou com toda a energia:
+
+--E ha quem metta a sua alma no inferno com esses falsos testemunhos!
+
+--Ha, sim, minha mãe! acudiu a Rosa, com voz aspera e vibrante. E
+tambem ha quem não se envergonhe de os acreditar e repetir!
+
+--Credo, credo! Tal desgraça! murmurou a Isabel não atinando com outra
+phrase.
+
+--Eu não digo que seja tudo verdade, acudiu o velho entibiado pela
+ousadia da mulher, mas alguma coisa ha de haver! O dictado não mente:
+voz do povo, voz de Deus.
+
+--Voz do diabo! atalhou a Rosa de prompto, e com o pescoço estendido e
+a cara bem defrontada com a d’elle perguntou: Mas se acredita o que lhe
+disseram, para que veiu ter commigo? Se fiz tudo isso, se não presto,
+devia arredar-se de mim por uma vez!
+
+--Não! Lá isso não! Se tivesses feito aquellas poucas vergonhas...
+
+A voz estrangulou-se-lhe na garganta, que apenas emittiu um som cavo.
+Ao mesmo tempo o Jorge, como se tivesse um lampejo momentaneo da
+verdade, cresceu para a rapariga, os braços hirtos, crispadas as mãos,
+em acção de agarral-a pelas guelas.
+
+--O’ Jorge! gritou a Isabel, abraçada ao genro. Olha que está
+innocente! Juro-te por tudo o que quizeres!
+
+--Pela alma do José de Medeiros?...
+
+--De meu marido? titubeou a viuva. Oh! Homem, não se deve bulir em quem
+está descançado ha tantos annos.
+
+--Pela alma de José de Medeiros?... insistiu o veterano, em voz surda.
+
+--Sim, sim, juro! Assim elle esteja em gloria! Juro!
+
+--Jurou! disse elle quasi comsigo mesmo, e accrescentou em voz ainda
+mais fraca: Mas então para que anda a corja a vomitar aquellas
+patifarias?
+
+--Porque tem inveja da gente! retorquiu a Isabel com energia mas em
+tom lamentoso. Pois não sabes o que é a costumada pouca vergonha
+n’este maldito Castello? Está uma alma christã muito socegada da sua
+vida, trabalhando dentro da sua casa e nem por isso escapa áquellas
+navalhas!... Se nem o proprio _sôr_ governador se livra!... É
+ouvir o que dizem d’elle... Que anda vestido como um pelintrão ... que
+não faz bem á pobreza ... que é bruto ... que é malcreado... Vale-lhe
+ser solteiro, quando não...
+
+Nem o Jorge nem a Rosa lhe escutavam a tagarellice. Alheiada de tudo,
+a rapariga tinha ido sentar-se, muito carrancuda, ao pé da janella
+e olhava para o exterior. O velho, alçado no meio da casa, a cabeça
+apertada entre as mãos, não sabia o que havia de crer, com a duvida,
+a envolvel-o, a cingil-o, a devoral-o, como serpente, que se lhe
+houvesse enroscado no corpo e lhe estivesse esmagando o peito e
+fincando os dentes fundo, muito fundo, no coração.
+
+Por fim, ainda impressionado pelas revelações do José Maria:
+
+--Mas o que elle me contou?... Coisas tão bem explicadas ... parecendo
+tão certas!... Quem podia inventar tudo aquillo?
+
+--O proprio marau que t’o foi metter no bico!
+
+--Cale-se! Não é capaz d’isso!
+
+A viuva ía responder, mas a Rosa, que adivinhou quem a tinha
+denunciado, gritou-lhe do seu logar, batendo nos joelhos com as mãos
+abertas.
+
+--Não se cance, minha mãe. Por mais que diga, creia que perde o seu
+tempo. Fia-se menos na gente, do que nos seus amigos velhos. Não admira!
+
+--Tens razão! Sim! Foi o José Maria! exclamou a viuva. Não podia ser
+outro. Ah! Que a primeira vez que o apanhar!...
+
+--Não foi elle! Cale a bocca! intimou o Jorge. Deus a livre de lhe ir
+dizer uma palavra de tudo isto!
+
+--Mas ó homem!...
+
+--Nem palavra! Entendeu?...
+
+--Bem! Bem! Haja saude! Não lhe digo nada. Mas não admira que o José
+Maria... Se nunca poude levar á paciencia o teu casamento!... E tinha
+razão. Se eu não tivesse consentido, estavamos livres d’esta freima.
+Valha-me Nossa Senhora!
+
+E afogou o resto da phrase n’um grande choro de carpideira,
+entrecortado de soluços e arrancos.
+
+--Cale-se, senhora, cale-se para ahi! ordenou-lhe o velho, aturdido e
+impacientado.
+
+--Não, senhor, não me calo! Até os proprios animaes defendem os seus
+filhos.
+
+N’uma explosão de ternura, correu para Rosa, beijou-a e murmurou,
+chegando-a a si:
+
+--Ainda que todos te criminem, eu sempre direi que estás innocente!
+
+E como a rapariga, desafeita ainda a hypocrisias, a afastasse um pouco,
+sentindo apesar de tudo instinctiva repugnancia pelo que a mãe estava
+fazendo, continuou queixosamente:
+
+--Elle é isso? Já me não queres ao pé de ti?... Tomas raiva a toda a
+gente, vendo-te accusada por quem só te devia defender?... Coitadinha!
+
+Enxugou uma lagrima hypothetica, e com a mão no hombro do genro
+exprobrou-lhe que elle fizesse côro com a malta dos invejosos. Sim! O
+que os Cains não podiam levar á paciencia é que elle fosse feliz com
+a Rosa, não obstante aquella differença das idades, havendo tantos
+maridos tão novos como as mulheres, e até mais novos, que andavam
+apontados a dedo, pelo castello e pela cidade.
+
+--Anda! Faze a vontade a essa corja! continuou a viuva. Sabes que mais?
+Antes de vocês casarem, vieram dizer-me que o que tu querias era uma
+enfermeira para te tratar, porque d’aqui a pouco havias de tornar-te, a
+bem dizer, um poço de doenças, e que eu não devia, por ser uma dôr de
+alma, condemnar a pobre pequena a uma vida de negra! Eu sei lá o que me
+vieram buzinar aos ouvidos! Pois eu deixei-os falar, e, como ella era
+muito tua amiga consenti no casamento... É que eu não sou como tu, não
+faço a vontade aos maraus!
+
+--Já a mandaram calar, minha mãe! É o melhor que pode fazer! disse-lhe
+a filha, com os nervos irritados pela discussão.
+
+--Bonito! Agora és tu!... Pois não me calo, em quanto não vir as coisas
+no seu logar!--E com a mão posta outra vez no hombro do veterano: O’
+Jorge, deveras não estás ainda arrependido? Vê aquelle botãosinho de
+rosa! Anda! Pede-lhe perdão!...
+
+Como elle resistisse, chegou-se á filha e tentou impellil-a para o
+marido.
+
+A rapariga então é que não quiz e foi para o lado opposto do quarto, a
+chorar de raiva.
+
+--Vês! Vês como a fazes penar! murmurou a Isabel ao ouvido do Jorge.
+
+Approximou-se da filha, aconselhando-lhe, em voz alta, que não se
+apoquentasse, que não chorasse d’aquella maneira, e comminando-lhe em
+voz baixa, lavar d’ali as suas mãos, se ella continuasse a fazer-se
+fina.
+
+Ao cabo lá conseguiu que os dois se abraçassem, e exclamou satisfeita:
+
+--Ora até que tiveram juizinho! Bom! Vamos a isto, que a ceia já não
+deve estar muito quente.
+
+E foi deitando o feijão com hervas para a terrina, onde já tinha migado
+o pão de milho.
+
+Sentaram-se á meza.
+
+O Jorge bebeu uns goles de agua, para ver se tragava as lagrimas,
+que ainda lhe entumesciam as palpebras e quasi lhe espirravam dos
+olhos.--Apezar do seu desejo furioso de acreditar na innocencia da
+mulher, conhecia que a felicidade lhe tinha fugido para sempre.
+
+A Rosa sentia no fundo do coração um certo dó por aquelle pobre velho,
+que lhe queria tanto; mas não lhe perdoava os sobresaltos por que
+acabava de passar, e, ainda menos, o ser obrigada, por causa d’elle,
+a não ver o homem que a tinha enlouquecido. E quando horas depois o
+Jorge, vencido por tanta lucta, dormia profundamente, ella, muito
+arredada para o outro lado da cama, as lagrimas a escorrerem-lhe a
+quatro e quatro para o travesseiro, perguntava a Deus se vida assim não
+seria mil vezes peior do que a morte.
+
+
+ VII
+
+
+Passou-se um mez.
+
+O Luiz, sabedor do que tinha havido em casa do Jorge, andava retrahido,
+pois «não queria levar as coisas para o tragico» dizia elle, e «embora
+a rapariga fosse tentadora a valer, não merecia que por sua causa
+se fizessem asneiras de marca maior». Esta restricção, diga-se de
+passagem, estabelecia-a tambem a respeito de todas as outras mulheres.
+
+Demais a Genoveva acabava de voltar da Graciosa. Era uma matronaça
+ainda bem disposta, com quem o sargento, segundo rezava a chronica
+escandalosa da cidade, já tinha tido os seus dares e tomares.
+Encontraram-se por acaso no caminho de S. Pedro e reataram relações.
+Aquella, sim, que não podia accarretar-lhe semsaborias. Se já era
+livre durante a vida do seu antigo patrão, mais o estava agora, que
+tinha ficado remediada com a herança deixada pelo conego Ricardo á sua
+ama e enfermeira de tantos annos. E sabia fazer-se estimar. Como tinha
+ainda fresco o dinheiro produzido pela venda de um predio na Graciosa,
+dava amiudados presentes ao amante, que recusou a principio, cheio de
+nobre desinteresse, mas que depois, não querendo fazer desfeita, os
+acceitou cheio tambem de gratidão.
+
+A Isabel soube d’isto e para acabar de todo com os «malditos amores»,
+origem para ella de tantos phrenesis, foi dizer tudo á filha.
+
+Pareceu-lhe bom o resultado.
+
+Se até alli a Rosa andava exquisita, tomou-se desde então ainda mais
+taciturna. Nunca saía de casa, e levava sentada o dia inteiro, sem
+dizer palavra, com a vista parada, como se estivesse a olhar para
+dentro de si mesma, interrogando-se.
+
+--Já está arrependida, julgava a Isabel.
+
+A Rosa não acreditou que tudo aquillo fosse verdade, se bem que o
+retrahimento do amante lhe tivesse causado uma desillusão profunda. O
+Luiz não a atraiçoava com a Genoveva, lá isso não!--Achava até ridicula
+semelhante rivalidade; não a tomava a serio.--Mas em todo o caso, não
+era homem para arrojos, nem sacrificios. Cego pelo amor, atrevera-se a
+muito; agora, estava com medo das consequencias, incapaz de imital-a,
+a ella, que se tinha arriscado a tudo, e que não hesitaria, se elle a
+quizesse levar comsigo, em deixar o marido, receiosa tão somente por
+acabar de perder-se na opinião de todos, e d’este modo não ser digna de
+gosar, algum dia, a felicidade para que se julgava destinada. Pois o
+Luiz não conheceria que só o amor a tinha arrastado áquellas loucuras,
+e que se estivesse casada com elle, mulher nenhuma seria mais honrada?
+Sim, o amante ainda havia de recompensal-a de tudo o que lhe fazia
+padecer.
+
+Era a sua esperança, a sua crença.
+
+Mas o procedimento do Luiz desorientava-a, quasi lhe fazia perder a
+coragem. Chegava a querer-lhe mal, mas iria padecendo até esse dia
+feliz.
+
+Ao marido já tinha raiva.
+
+--Pois não era elle a causa de todas aquellas desgraças? O unico
+obstaculo, que não a deixava ser feliz?
+
+O Jorge, pela sua parte, andava como atordoado. Parecia viver n’um
+sonho. Ainda o assaltavam desesperos subitaneos, quando julgava a
+denuncia verdadeira, e então sentia impetos de matal-a e matar-se; mas
+em breve acalmava, porque lhe acudiam á memoria as explicações dadas
+pelas duas mulheres.--A mãe não podia estar combinada com a filha!
+
+Via a Rosa melancholica e taciturna, mas via-a! Tinha-a sempre alli,
+como coisa legitimamente sua. Possuia-a sem medo de ninguem. Não
+trocava a sua sorte pela de outro, ainda que fosse verdade o que...
+Não! Era uma falsidade, uma perfeita mentira!
+
+--Não me perdoou ainda eu julgal-a tão mal e tem razão, pensava o
+Jorge, por vel-a n’aquella attitude. E até se arrependia de não ter
+forçado o amigo a declarar-lhe o nome do mentiroso, para se vingar, e
+vingar a sua pobre mulher, que estava innocente.
+
+Lembrava-se de pedir-lhe perdão, de propor-lhe sairem da Terceira
+para S. Miguel ou para outro logar ainda mais distante, onde ninguem
+os conhecesse, onde não chegasse a calumnia. Mas ao encontral-a tão
+reservada, calava se, perdia o animo, e a duvida logo recomeçava no seu
+trabalho surdo e implacavel.
+
+--Pois senhores, dizia comsigo a Isabel fiada n’este apparente socego,
+pelos modos não chega a haver trabuzana. Tenho de levar um cyrio á
+Senhora do Livramento.
+
+--Muito cuidadinho, recommendava ella, quando alguma vez ficava a sós
+com a filha. O Jorge está aqui, está certo de que tudo foi mentira.
+Mas ai de ti, se lhe fizesses voltar as desconfianças. Era capaz de
+matar-te!
+
+--Entre mortos e feridos sempre ha de escapar alguem, objectava a
+rapariga. E espero em Deus mandal-o adeante.
+
+
+ VIII
+
+
+No dia de S. Pedro á tarde a Isabel aconselhou á filha e ao genro que
+fossem dar um passeio, e como suppunha que não lhes agradassem os
+sitios mais concorridos, lembrou o monte Brazil. Mettidos entre quatro
+paredes, sem nunca se distrahirem, pensava ella, estariam sempre de mau
+humor, e difficilmente acabariam de congraçar-se.
+
+Não os acompanhou, porque a sós poderiam entender-se melhor. De mais a
+mais, já tinha feito bem o seu dever.
+
+Os dois acceitaram o conselho, e foram pelo caminho, que a meia encosta
+ladeia o monte, passando á ilharga das ruinas da antiga casa de
+recreio dos governadores da praça, e vae ter a uma plataforma de rocha
+sobranceira ao mar.
+
+Pelas aguas tranquillas da angra, que deu o nome á cidade, deslisavam
+alguns barcos, onde familias da burguezia e do povo andavam a
+recrear-se em honra do santo pescador.
+
+Chegados ao extremo do caminho, o velho sentou-se n’um comorosinho
+coberto de relva já amarellecida pela soalheira, e a Rosa, para estar
+bem longe d’elle, foi para a beira da plataforma, e descahiu os olhos
+para o mar. Avistou-o em baixo, ao deante da rampa, que desce em
+vertiginoso declive e termina em empinada muralha banhada na base pelas
+aguas, alli escuras e profundas.
+
+Um barco ia rodeando o monte, de volta para a cidade. A Rosa conheceu
+logo os passageiros. Eram o dr. Brum, um rapaz moreno e cheio de vida,
+e a mulher, uma loura de afamada belleza. Tinham casado por grande
+paixão, uns quatro mezes antes. Ella reclinava a cabeça no hombro do
+marido. Pareciam ainda na lua de mel.
+
+--Como eram felizes!
+
+N’esta occasião o veterano, ainda no mesmo logar, suspirou, entregue
+aos seus tristes pensamentos.
+
+--Que suspirasse! Que padecesse! Que tinha ella com isso? O que lhe
+importava, era o impecilho do velho tel-a ido buscar, para reduzil-a
+áquella desgraça. Maldito!
+
+Desejosa de ver mais tempo o barco, já quasi a occultar-se por traz
+da bateria de Santo Antonio dos artilheiros, desceu dois passos pelo
+ingreme talude.
+
+Em direcção contraria, e como o primeiro a curta distancia da costa,
+vogava outro bote. Á ré tambem um homem e uma mulher.
+
+Provavelmente mais um casal feliz.
+
+Elle era um militar, um sargento. Já se lhe distinguiam as tres divisas
+verdes.
+
+Tão alegres aquelles dois, que vinham tocando e cantando. A voz
+abarytonada, que entoava o fado, conhecia-a ella.
+
+--Não! Não era possivel!
+
+Debruçou-se mais, correndo quasi o risco de precipitar-se.
+
+--Sim! Eram o Luiz e a Genoveva.
+
+Com os olhos a saltarem das orbitas e os punhos fechados para o barco,
+trovejou phrenéticamente:
+
+--Ah! Grandes maraus! Grandes maraus!
+
+O Jorge pareceu acordar de um sonho, levantou-se, olhou para o bote e
+apesar da distancia reconheceu o sargento.
+
+--Até que te apanhei! gritou elle, travando rudemente do pulso da
+rapariga.
+
+--Hein! O que é?... Largue-me! Largue-me!
+
+E voltou os olhos para o barco.
+
+--Não olhes para lá, olha para mim, para mim, que sou teu marido! Anda!
+Nega ainda historia com o sargento... Nega!
+
+--Não nego, e arrependida estou eu de ter negado a primeira vez. Mas
+largue-me! Arre!...
+
+Com um esforço violento escapou-se-lhe da mão e como sentisse o pulso a
+doer, bradou fula de raiva:
+
+--_Pisar-me_ assim! Pedaço de bruto!
+
+--Olha que eu desfaço-te, grande diabo! E não te cae a cara de
+vergonha, por veres que sei tudo! Sempre era muito estupido!... Foi
+preciso que me mettesses a verdade pelos olhos dentro, ao avistares o
+sargento com outra mulher! Eu bem o reconheci, accrescentou o velho e
+apontou para o rival, que mal suspeitava o que alli estava acontecendo
+por sua causa. Ah! Padeces o mesmo que me tens feito padecer? Ainda
+bem! Ainda bem!
+
+Ella ia responder com uma insolencia, mas calou-se, porque a vóz do
+sargento, subindo pela encosta, trouxe-lhe ao ouvido fragmentos de uma
+quadra do fado, de envolta com os arpejos da guitarra.
+
+Sabia-a de cór, de a ter ouvido ao amante.
+
+--Perdes o tempo a escutar, que não é para ti que elle está cantando!
+disse-lhe o Jorge, com sarcasmo.
+
+Voltou-se enraivecida para o marido, mas, querendo feril-o mais
+cruelmente, descambou para a troça.
+
+--Então não querem ver o _fedôr_ do velho! ejaculou, com o dedo
+apontado para elle e atravez de uma gargalhada. Julga talvez que se o
+Luiz me não quizesse mais, ganhava com isso alguma coisa? Nicles, meu
+menino! Não é o mel para a bocca do asno.
+
+E cuspiu-lhe outra risada.
+
+O Jorge ouvia-a estupefacto, sem acreditar.
+
+Para se vingar em alguem, a Rosa continuava nos improperios, como se
+a desesperação, que dias e dias tinha represado dentro em si, achando
+finalmente sahida, golfasse n’um vomito asqueroso.
+
+--Julgou o mostrengo que era só appetecer uma raparigota, que ainda
+mal chegava a mulher, e chamar-lhe sua! Tal desgraça! Juntar a morte á
+vida!... Que peccado! O avô casado com a neta! Ah! Ah! Ah!
+
+Meio suffocado pelo desespero e pelo asco, mas curioso de saber até
+onde chegaria aquella abjecção, o velho quiz ouvil-a. Não poude
+esquivar-se todavia a dizer-lhe com desprezo:
+
+--Grande porca!
+
+--Porco é você! Um porco, que me sujou casando commigo! Porcos os
+seus beijos! Desde o dia em que me levou á egreja, tenho nojo de mim!
+Veja-se n’um espelho, seu velho tinhoso, e diga-me depois se eu era
+para a sua bocca!
+
+O veterano cresceu para ella, chamando-lhe:
+
+--_Valhaca!_ Surrão!
+
+Quiz agarral-a, porém a rapariga furtou-lhe as voltas, e continuou a
+provocal-o:
+
+--Muito lhe tenho eu aturado! Nenhuma outra soffria tanto. O que eu lhe
+fiz, não é nem a metade do que você merece!
+
+--Eu mato-te, diabo, eu mato-te! Nem já sequer te vejo!
+
+--Nunca me tivesse visto! Oxalá! Fique sabendo que não gosto de você,
+nem gostei nunca, nunca! D’elle! D’elle, unicamente!...
+
+E apontou na direcção do bote, que os dois, afastados um pouco da
+rampa, não podiam agora ver.
+
+Ouvia-a e cuidava já não ser d’este mundo, ou que tudo se anniquilara
+em volta de si. Ainda os espreitava o sol por traz do monte, e elle
+julgava-se envolto nas trevas da noite.
+
+--Pois aquella creança, que havia pouco se lhe afigurava tão
+innocente e pura, como nas tardes em que ella ia levar-lhe o jantar,
+muito rosada, de vestidinhos curtos, saltitante e alegre que nem um
+passarinho--aquella creança podia ser a malvada que para alli estava a
+falar?! Mais nojenta e descarada do que essas mulheres, que á noite,
+quando lhe succedia voltar para o castello mais tarde, o perseguiam
+pelas ruas da cidade, com as galochas de pau soando estridulamente nas
+pedras da calçada, e que se lhe offereciam desbragadas, em tróca de
+pouco dinheiro! Pois aquillo era a sua mulher, a sua querida mulher?!
+
+No emtanto a Rosa tinha-se abeirado outra vez da escarpa, e com os
+olhos a brilharem seguia o barco, que se ia afastando de terra.
+
+--Era aquillo, era! Peior ainda que as mulheres de má vida, podia dar
+lições a todas ellas!
+
+E para que não existisse um monstro assim, o Jorge correu para a
+mulher, agarrou-a pela cintura e atirou-a com força pela rocha abaixo,
+dizendo:
+
+--Anda! Vae ter com elle!
+
+O corpo cahiu aos resaltos pela vertente e foi pondo salpicos de sangue
+nas arestas que o esfarrapavam, em quanto a voz do sargento Luiz
+garganteava ao longe, toda cheia de requebros:
+
+ Mal os meus olhos te viram
+ O meu coração te adorou,
+ Na cadeia dos teus braços
+ Minha alma presa ficou.
+
+
+ IX
+
+
+O Jorge não poude seguir a mulher no caminho da morte.
+
+Quando ia para despenhar-se, deitaram-lhe a mão o corneteiro-mór
+reformado e outro homem.
+
+Preso para conselho de guerra, foi julgado tres mezes depois e
+confessou o crime, sem todavia declarar, por mais instancias que lhe
+fizessem, os motivos a que tinha obedecido. Os insultos e provocações
+com que a Rosa o allucinara, contaram-os ao conselho aquellas duas
+testemunhas. Estavam perto, mas não tinham sabido intervir a tempo de
+evitar a catastrophe.
+
+Em quanto duraram estes depoimentos, o Jorge, envergonhado não por si
+mas por ella, tapava o rosto e cravava na testa os dedos contrahidos.
+
+Impressionou vivamente ao auditorio o discurso do defensor. Quem
+apresentava aquella honrosa biographia militar, allegou o moço
+official, não era de certo um assassino. Tinha feito uma morte,
+praticando aliás um acto de verdadeira justiça social, mas não
+commettera um crime, pois estava inteiramente privado da intelligencia
+do mal que fazia, o que era previsto pelo codigo.
+
+No fim, o presidente perguntou ao accusado se tinha mais alguma coisa
+que allegar em sua defeza.
+
+--A minha pena toda é que V. S.^{as} não possam mandar-me varar por
+quatro balas, respondeu o velho, e não pronunciou mais palavra.
+
+Foi absolvido por unanimidade.
+
+O José Maria acompanhou-o a casa, e no intuito de consolal-o disse-lhe
+que a Rosa só tinha tido o que merecia.
+
+--Cala-te, homem, cala-te! vociferou o Jorge, e atirou-se para cima da
+cama, onde ficou deitado, com a cara voltada para a parede, os olhos
+abertos e inexpressivos.
+
+N’isto chegou-lhe á porta a Isabel e não se fartou de injurial-o.
+
+--Peiores que o matador de sua filha, só os malvados do conselho de
+guerra, que o tinham absolvido! Tudo uma cafila!
+
+O José Maria dispunha-se a correr com ella, quando a Josepha Julia e a
+Luiza Braga, que vinham á descoberta, a levaram d’alli.
+
+--Deixa-o lá, dizia-lhe a Luiza, com o braço mettido no da viuva. Bem
+castigado ficou elle, perdendo a sua Rosa. Tens razão para lhe querer
+mal, mas, diga-se a verdade, o que a tua filha fez ao Jorge...
+
+--E tu e as mais o que fazem? berrou a Isabel. Mas logo, cahindo no tom
+lastimoso, ajuntou: O corpo da pobresinha lá está no fundo do mar ...
+ou talvez fosse comido por algum peixe!
+
+Seguiram caladas pela rua adeante.
+
+--Se todos os maridos, que teem razão de queixa das mulheres,
+seguissem a receita do Jorge--meditava a Josepha Julia, com azedume de
+solteirona--os peixes, de gordos, chegariam a não poder nadar!
+
+Depois, lembrou-se de uma novidade capaz de alegrar a Isabel:
+
+--Não sabeis o que se conta da mulher do sargento Luiz?
+
+--Da antiga ama do conego Ricardo? perguntou, immediatamente a Luiza.
+
+--Isso! Que já a prega na menina do olho ao marido, com um estudante do
+seminario!
+
+--E elle que se ha de affligir! acudiu a Isabel com rancor. Não lhe
+tirem os moios de renda deixados pelo conego, pois quanto ao mais...
+
+ * * * * *
+
+Sempre cabisbaixo, andando á pressa e murmurando uma vez por outra
+palavras que ninguem percebia, o Jorge só era visto d’alli em deante
+nas ruas do castello, quando ia de manhã para o armazem do material de
+guerra ou para a terra do monte Brazil, e á tardinha, quando recolhia.
+
+Quem de noite lhe passasse á porta, mesmo fóra de horas, via pelas
+frinchas a claridade da candeia, e sentia lá dentro, com frequencia, os
+passos do velho, medindo em todos os sentidos a casa terrea, e ouvia de
+quando em quando um suspiro mal reprimido. Quando lhe perguntavam se
+queria alguma cousa não respondia e ficava á escuta, para continuar na
+mesma, apenas ia longe o importuno.
+
+Uma noite o José Maria, embora soubesse que o Jorge, como sempre, o
+receberia mal, entrou-lhe á força em casa e fez-lhe ver que elle estava
+dando cabo de si, o que era um grande peccado.
+
+--A vida, é Nosso Senhor quem a dá, só elle a póde tirar, retorquiu
+o Jorge. Cuidas que se não acreditasse n’isto, já não tinha ha que
+seculos?...
+
+E sem rematar a phrase, continuou a passeiar pela casa, alheio a quanto
+o rodeava.
+
+ * * * * *
+
+Em algumas tardes ia sentar-se na rocha, no mesmo sitio d’onde tinha
+despenhado a mulher, e deixava-se alli ficar horas esquecidas, olhando
+para o mar, talvez a pedir-lhe que lhe restituisse a sua Rosa, de quem
+elle, apezar de tudo, ainda gostava tanto!
+
+
+[Ilustração]
+
+
+
+
+[Ilustração]
+
+
+
+
+ Os Filhos Do Frade
+
+
+FREI Antonio entrou na cella do guardião, tremulo, sem forças. O
+religioso que o chamou, dissera-lhe apenas:
+
+--Cuido que é para ires a casa do morgado da Fajã.
+
+O guardião, gordo, pausado, pachorrento, disse a uma e uma estas
+palavras, que iam fazendo estalar de angustia o coração do franciscano:
+
+--Frei Antonio, o morgado da Fajã manda-me pedir um irmão, que vá
+acompanhar esta noite, junto do caixão, a menina Beatriz, que morreu
+ainda agora, de repente. Escolhi a Vossa Reverendissima. Vá buscar o
+seu breviario e ponha-se a caminho, que d’aqui até lá acima ao monte,
+ainda é boa a distancia.
+
+O frade saiu d’alli cambaleando, estonteado. Por milagre chegou á sua
+cella, sem cahir ao comprido, sobre as lages do corredor.
+
+Mal fechou a porta, atirou-se de bruços para cima do catre, e mordeu a
+coberta de lã grosseira, n’um paroxismo louco, abafando os gritos que
+lhe irrompiam do peito em catadupa.
+
+Depois, foi a pouco e pouco serenando, as lagrimas correram-lhe dos
+olhos em fio, e o franciscano esteve tempo infinito, de joelhos no
+chão, com os olhos erguidos para o alto, mal fitando atravez do caudal
+do choro a imagem de um Christo, que estendia lamentoso os braços sobre
+o madeiro da Cruz, n’uma attitude de immensa angustia resignada.
+
+E assaltou-lhe a memoria a recordação de uma dôr egual, a da perda da
+sua mãe, que morrera assim, de repente, estando a falar com elle. Dôr
+egual, não! que maior que todas é a de perder-se a mulher amada.
+
+E elle idolatrava-a com tão immaculado culto, que nem a vista da
+donzella profanára aquelle amor. Só agora, declarada a medonha
+catastrophe, só depois que o guardião dissera que Beatriz tinha
+morrido, frei Antonio percebeu o que eram aquelles extasis, aquelles
+arroubamentos ineffaveis, de quando via, ao longo dos caminhos ou na
+egreja, a figura gentil e fascinante da morgadinha. Ás vezes, quando
+surprehendia no peito o intenso tumultuar da paixão, illudia-se,
+rebuscava na memoria passagens dos livros santos e acreditava que
+ascetas teriam tido como elle, e mais do que elle ainda, o indizivel
+goso de antever em vida apparições como essa, mensageiros de Deus
+destinados a fazer-nos crêr nos archanjos e seraphins.
+
+Mas este mysticismo acabava perante a nova fatal. Não! O anjo era-o,
+mas da terra! Morto, desfolhado aquelle lyrio de fragrancia extrema:
+impossivel, impossivel!...
+
+Saiu da portaria do convento quasi a correr, e como lá fóra, pelo campo
+matisado de flores, o sol esparzia ondas de luz, e nas carvalheiras os
+melros trinavam alegremente, soltou-se-lhe do peito um longo suspiro
+de satisfação e o rosto coloriu-se-lhe de prazer. Se Beatriz houvesse
+morrido, o sol ter-se-hia apagado e os passaros nunca mais soltariam os
+seus gorgeios.
+
+ * * * * *
+
+Quando chegou a casa do morgado, as trevas encheram-lhe de novo a
+alma. Ao fundo do pateo, n’um quarto baixo, avistou, apenas acabava de
+empurrar a porta da rua, que estava entreaberta, um grupo de mulheres
+erguendo as mãos ao ceo, e soluçando muito.
+
+Subiu a escada de pedra, passou o alpendre, e logo na grande sala da
+habitação fidalga encontrou o pobre pae e viu no rosto afogueado do
+velho a verdade inteira.
+
+Tinha morrido Beatriz.
+
+Lá dentro, no seu quarto virginal, transformado em capella mortuaria,
+estava a donzella estendida sobre a cama, em quanto não chegava o
+caixão, que devia contel-a para sempre, e onde se passaria o drama
+horrivel da podridão, quando aquelles labios, ha pouco avermelhados
+pelo sangue dos quinze annos, e aquella carne, mais branca e macia do
+que as petalas das açucenas, fossem devorados lentamente, cruelmente,
+pelos vermes repugnantes.
+
+O frade olhou-a e descreu outra vez da morte. Bem a viu immovel, côr
+de cera, esmaecidas as rosas das faces; não acreditou. E quanto mais a
+via, mais a duvida o animava, mais o espirito se lhe erguia para Deus,
+interrogando, mas não pedindo. Seria excusado implorar-lhe um milagre
+para resuscitar Beatriz, porque Beatriz não podia estar morta!
+
+Ainda assim os labios de frei Antonio murmuravam rezas, e quando a
+noite já ia adeantada, e todos em casa se tinham recolhido, ainda no
+quarto funebre se ouviam as orações do religioso, quebrando aquelle
+silencio de coisas mortas, e echoando flebilmente até aos pannos
+negros, que forravam as paredes, e de que se destacavam, a um lado, as
+chammas compridas, pallidas e immoveis dos quatro cyrios do altar.
+
+Sempre com a mesma crença, quando ficou só e sentiu o ultimo alento
+de vida extinguir-se no resto da casa, levantou-se do logar aonde
+ajoelhara e chegou-se para o caixão.
+
+Abertas para os lados as duas meias tampas forradas de setim branco,
+mostravam atravez de um véu de tule a donzella. O frade viu-a e recuou
+inconsciente, como se houvera profanado uma alcova virginal. Coisa
+alguma d’aquelle espectaculo lhe trazia ao pensamento a ideia da morte.
+
+Todos, sem duvida, se enganavam. Era horrivel deixar que a levassem
+para debaixo das lages da egreja, para o frio jazigo da familia, quando
+ella não estava morta, quando a mocidade nunca se expandira tão
+exuberante no rosto de Beatriz!
+
+Chegou-se mais. Ergueu o veu, quiz encostar o ouvido ao peito da
+donzella, e perscrutar-lhe as palpitações do coração. Não poude. As
+tampas do caixão não lh’o permittiam. Pousou a mão tremula regelada na
+testa da morgadinha, e pareceu-lhe receber uma impressão de calor.
+
+[Ilustração]
+
+--Então estava viva!
+
+Quiz chamar alguem, correu para a porta, mas lembrou-se dos tristes
+sorrisos de desconsolo, que tinham respondido ás suas duvidas, algumas
+horas mais cedo.
+
+Tornou para junto d’ella.
+
+--Ah! Se podesse sentir-lhe pulsar o coração!... Porque havia de
+hesitar?
+
+Levantou o corpo um quasi nada, e em seguida um pouco mais,
+introduzindo as mãos tremulas por baixo dos hombros da donzella. Sem
+saber como tirou-a para fóra do caixão, e amparando-a nos braços, e
+achegando-a a si, qual mãe que aperta ao seio um filho estremecido,
+dirigiu-se cambaleando, quasi louco, para a cadeira de espalda onde
+estivera velando o morgado.
+
+Fitou-a, e julgou vel-a sorrir. Chegou-lhe ao coração o ouvido e sentiu
+palpitações.
+
+Então na sua alma operou-se uma transformação sobrehumana. Aquella
+quadra já não foi para elle camara mortuaria, mas alcova nupcial, e o
+frade, perdida a razão, esqueceu tudo, e julgou realidade o que mais de
+uma vez se atrevera a phantasiar, e viu-se esposo de Beatriz, sentindo
+nos seus braços o corpo da donzella, rendido, indefeso, e gosou toda a
+suprema volupia de um primeiro beijo de amor.
+
+ * * * * *
+
+De repente ouviu-se um gemido doloroso, quasi um grito!
+
+O frade ergueu-se do chão, de golpe.
+
+Beatriz, prostrada por terra, tinha effectivamente voltado á vida, e
+acabava de sair do estado cataleptico, que todos tinham julgado morte.
+
+Aterrado, espavorido, fugiu do palacio, soltando brados.
+
+A familia do morgado acudiu e poude adivinhar, horrorisada, o que se
+tinha passado.
+
+ * * * * *
+
+Sessenta annos mais tarde, ha pouco tempo ainda, contava-se esta
+historia em Santa Cruz, na Madeira, para explicar o motivo por que dois
+velhinhos, muito parecidos e da mesma altura, e que andavam sempre
+juntos, eram chamados os _filhos do frade_.
+
+Havia quem dissesse que eram gemeos, mas a opinião encontrava alguns
+incredulos.
+
+Consta-me até que um investigador consciencioso estabeleceu, com
+documentos irrefragaveis, que um dos irmãos era onze mezes mais velho
+do que o outro, porque Beatriz e Frei Antonio...
+
+Silencio! Não é bom revolver o pó das sepulturas.
+
+
+[Ilustração]
+
+
+
+
+[Ilustração]
+
+
+ O Primeiro Desengano
+
+
+Vestiu pela primeira vez fatos de senhora, no dia em que fez quatorze
+annos.
+
+Ainda estou a vel-a entrar pela sala dentro muito envergonhada,
+tropeçando na fimbria do vestido comprido, não sabendo se devia rir ou
+zangar-se com os gracejos que lhe choviam de todos os lados.
+
+Afinal foi sentar-se ao pé de uma meza, e tirou da floreira uma
+rosa, que tratou de desfolhar e de triturar, persuadida talvez de
+que escapava assim á attenção geral. Tivesse mais dois ou tres annos
+e desejaria prolongar o sentimento de admiração excitado pela sua
+formosura juvenil, em que transparecia a candura e singeleza da
+creança, da _baby_ da vespera, alliadas á fascinação da mulher
+que despontava.
+
+Do meu canto, observava aquella esplendida adolescencia, que assim
+desabrochava de subito, e quasi não podia acreditar que os poucos
+mezes, que a Georgina tinha estado longe da Madeira, assim houvessem
+transformado a minha antiga companheira de brinquedos.
+
+E ao vel-a tão differente, sentia em mim o que quer que fosse novo
+e estranho, e, desejando aliás approximar-me d’ella e contemplal-a
+muito tempo, tinha a dubia percepção de que alguma coisa nos separava
+agora, tornando completo impossivel o falarmo-nos como d’antes, quando,
+n’aquellas manhãs de julho tépidas e luminosas, iamos com um rancho
+enorme para o banho do mar, e a Georgina, alegre e buliçosa como um
+passarinho, pulava na frente do bando, com as suas perninhas brancas e
+rosadas, que appareciam abaixo do vestido de cambraya.
+
+Em quanto ella e as senhoras entravam para as barracas enfileiradas a
+curta distancia da babugem da maré, nós, os homens--eu já me incluia
+no rol--enfiavamos cá fóra os horriveis fatos de banho, quasi sempre á
+direita das barracas, para nos livrarmos do sol, que surgia por traz do
+cabo Garajao e começava a faiscar nas vidraças do Funchal.
+
+Que bons aquelles banhos!
+
+Era um alvoroço enorme, uma exuberante alegria, quando entravamos
+de corrida pelo mar dentro, e, passada a primeira sensação de frio,
+gosavamos a deliciosa frescura, fluctuando ao impulso da onda, de mãos
+dadas, divisando atravez da limpidez da agua, as pedrinhas brancas
+semeadas entre os calhaus do fundo ... e as formas tremulas, fugitivas
+das banhistas. Sobre o mar, levemente encrespado pela brisa, formava-se
+para o lado do nascente uma esteira luminosa, coruscante. De quando em
+quando um de nós fazia repuxar a agua em myriades de gotas, que cahiam
+como chuva de fogo, até irem perder-se na espuma branca de neve.
+
+Uma vez a Georgina apanhou um grande susto. Presumindo excessivamente
+das suas aptidões de nadadora principiante, quiz afastar-se da
+terra, mas lembrou-se de repente de que já não teria pé, de que ia
+afogar-se, imaginou-se até levada por uma resaca, e poz-se a bracejar
+desordenadamente, gritando, bebendo agua, como se lhe tivessem dado
+uma _enterra_. Soffreria provavelmente a morte da Virginia de
+Bernardin de Saint-Piérre, sem o acompanhamento grandioso e bulhento
+do temporal, se eu não a tivesse agarrado a tempo e conduzido á praia,
+Deus sabe com que difficuldade.
+
+Imagine-se a ufania que me causava a recordação da façanha, no momento
+em que a Georgina me apparecia sob aquelle aspecto novissimo!
+
+--Ah! Se podesse tornar a salval-a, trazendo-a apertada nos braços!...
+Formulava mentalmente este desejo, que parecia de certo uma enormidade
+ao meu pudor dos quinze annos, quando notei que a Georgina olhava
+fixamente para o meu lado.
+
+Desviou a vista, quando a encarei, mas d’alli a pouco estava a olhar
+outra vez.
+
+Senti então um dos maiores prazeres da minha vida. Comprehendi o
+motivo por que a julgava outra, adivinhei o que era o sentimento novo
+que me dominava.
+
+Valeu-me para a descoberta o andar a ler o _Visconde de Bragelonne_, no
+ponto em que se descreve a seducção de La Vallière. Lembrei-me até de
+que o maroto do Alexandre Dumas torna quasi cumplices na queda da pobre
+Luiza uns passarinhos, que havia na sala e que no momento em que Luiz
+XIV cae aos pés da namorada, chilream dentro das douradas gaiolas uma
+toada de indizivel concupiscencia, o que ainda mais entontece a futura
+carmelita. Ora emquanto eu olhava para a Georgina, tambem cantava um
+passaro, um melro, empoleirado n’uma magnolia do jardim. Achei de bom
+agouro a coincidencia.
+
+É claro que não emparelhava a Georgina com a La Vallière--via-a como
+aquella a quem havia de ser unido para sempre, visto que o amor assim
+nos destinara um para o outro.
+
+Com uns restos de duvida, olhei em roda de mim.
+
+No lado da sala onde eu estava, não havia mais nenhum homem, a não ser
+o escrivão de fazenda, sujeito de grande bigodeira e voz soturna, que
+recitava pelas salas o _Noivado do sepulchro_ e a _Doida de
+Albano_.
+
+Era solteiro, mas tinha mais de tres vezes a edade de Georgina. Fiquei
+radiante. Era para mim com certeza, que estava olhando. D’alli a pouco
+fomos jantar.
+
+Não comi nada, porque ella, apesar de ter ficado ao pé de mim, não me
+deu a minima attenção.
+
+Como já tambem conhecia a existencia das _coquettes_, perguntei a
+mim mesmo se a Georgina seria uma d’ellas, e resolvi provocar o mais
+cedo possivel uma explicação decisiva.
+
+Deparou-se-me o ensejo n’aquella mesma tarde.
+
+Achavamo-nos os dois no extremo do mirante sobre o Caminho do Monte,
+vendo os romeiros que voltavam de festejar a Senhora de agosto.
+
+Os mais não podiam ouvir-nos, entretidos como estavam por um dos
+espectaculos mais pittorescos dos costumes populares madeirenses. O
+som dos machetinhos de Braga, machetes de rajão e violas francezas,
+e o sussurro dos descantes e falatorio dos romeiros abafariam alguma
+palavra que me escapasse em voz mais alta.
+
+Depois de lhe disparar uma declaração, fiz-lhe não sei quantas
+recriminações, pelo que me tinha feito soffrer durante o jantar.
+
+A Georgina escutou-me cheia de pasmo, desviou-se um pouco, e medindo-me
+dos bicos dos pés até á cabeça, disse-me com um supremo desdem:
+
+--O menino endoideceu! Não sabe que é ainda um fedelho e que eu já sou
+uma senhora! Isso ha de ser somno, por força. O que o Luizinho deve
+fazer, é pedir á sua mamã que o metta mais cedo na cama!
+
+Fulo de raiva, ia dizer-lhe uma insolencia, quando se approximaram de
+nós a mãe d’ella e a minha.
+
+ * * * * *
+
+D’alli a dois mezes casava a Georgina com o escrivão de fazenda, e
+d’alli a dois annos ... estava eu vingado.
+
+
+[Ilustração]
+
+
+
+
+ A Alegria do Mar
+
+
+O Manuel João abalou dos Cedros aos primeiros arreboes da madrugada, e,
+apezar de já ter os seus sessenta bem puxados, não afrouxou na extensa
+caminhada até á Horta, a _villa_, como o povo do Fayal teima em
+chamar á sua pequena cidade.
+
+Quando chegou ao alto da Lomba, deu um suspiro de satisfação. _A
+Alegria do Mar_ ainda não estava no ancoradouro. Só viu fundeado um
+patacho e um hiate, e, navegando do Pico para S. Jorge, o paquete da
+carreira, que tinha chegado, na vespera, das Flores, com a noticia de
+já lá estar a barca, onde o filho voltava dos Estados Unidos.
+
+Ha que annos o rapaz estava ausente, e quasi sempre sem escrever! Mas
+o pae não estranhava a falta de noticias. Quando o José se despediu
+d’elle e da mãe, a Andreza, pediu-lhe que escrevesse muitas vezes, o
+que o Manuel João contrariou, dizendo bruscamente:
+
+--Deixa falar tua mãe, e só gastes o tempo a trabalhar! Cartas são
+papeis, não servem de nada. Se poderes mandar alguma coisa, manda
+dinheiro. É com elle que a gente se governa!
+
+O rapaz quasi nada lhes mandou, porque não obstante a grande lida em
+que andava constantemente, poucas economias conseguiu coalhar. Só nos
+ultimos tempos havia tido uma aragem de sorte, de maneira que voltava
+remediado. O Francisco Madruga, um visinho chegado dois mezes antes,
+contou aos dois velhos que o José tinha um collete de pelles todo
+acolchoado de bellas aguias--aquellas moedas de ouro tamanhas e tão
+luzidias, que, mal comparadas, fazem lembrar o sol abençoado, e que são
+como elle fonte de vida e de alegria!
+
+Tendo descido a ladeira da Conceição, o velho atravessou a disforme
+e corcovada ponte, e entrou na cidade, indo parar no caes proximo do
+castello de Santa Cruz.
+
+Estava a informar-se, quando o facho do monte da Guia começou a fazer
+signaes.
+
+--Talvez aquellas bandeirinhas lhe estejam a responder, lembrou um
+barqueiro, apontando para o alto da collina.
+
+Effectivamente era o annuncio de que já se avistava a barca.
+
+--Com este vento, a _Alegria do Mar_ não dá fundo antes d’essas
+quatro horas, opinou o mesmo barqueiro.
+
+--Ou das cinco, resmungou outro.
+
+Como lhe sobrava tempo, o Manuel João foi comer alguma coisa a casa de
+um primo, que tinha _botequim_ defronte do mercado.
+
+ * * * * *
+
+A barca deitou ferro á tardinha.
+
+Acossadas pelo vento sueste, pelo _carpinteiro_, as vagas batiam
+com força recrescente na muralha da cidade e espadanavam com violencia,
+ou formavam grandes rolos na areia. Saltando a cada instante para
+o caes, a agua varria-o, de lado a lado, para logo se despenhar em
+abundante cascata. Ás vezes, do meio do tapete espumoso apenas emergia,
+como ilha exotica, o guindaste de ferro, muito luzidio com os banhos
+consecutivos.
+
+Á cautela, os barcos varados no caes tinham sido puxados para a rampa
+superior.
+
+Tanto que a _Alegria do mar_ fundeou, appareceu, do lado do
+castello, o capitão do porto, seguido do patrão-mór, ambos embrulhados
+em gabões impermeaveis. Só ao chegarem á porta da barraca da alfandega,
+é que viram ser impossivel a execução do serviço.
+
+--A minha pena, disse o official de marinha, é não ter mandado vir para
+terra as tripulações dos navios, que já cá estavam. O barometro desceu
+tanto!...
+
+--É que a brincadeira vae ser um boccado seria, alvitrou o patrão-mór,
+designando o céo com um gesto circular.
+
+O Manuel João, que tinha acabado de voltar e que os ouviu, perdeu o
+acanhamento e perguntou afflicto:
+
+--Ha perigo, sr. capitão? Valha-me Nossa Senhora! Ha perigo de a barca
+vir a terra?! Ai! O meu filho, o meu rico filho!...
+
+Compadeceu-se o official de marinha e para socegal-o disse-lhe que
+o navio tinha boas amarras, que o temporal havia de amainar, e que
+ficasse elle certo de que na manhã seguinte veria o filho ao pé de si,
+são e escorreito.
+
+--Deus Nosso Senhor o ouça! Mas que noite eu vou passar!...
+
+E como do alto do caes não via a barca, foi em busca de um sitio d’onde
+ao menos podesse enxergar o navio, em que estava o José. Ah! Em casa
+do primo havia uma _falsa_ fronteira ao ancoradouro!... D’alli
+a pedaço lá estava o Manuel João, olhando para o mar por um oculo
+americano que o primo lhe emprestou, e que em tempo claro punha a
+Magdalena mesmo ao pé da gente, apezar das cinco milhas que ella dista
+do Fayal.
+
+Ainda bruxuleavam os ultimos clarões da tarde. Depois de muitas
+tentativas, o velho lá conseguiu descobrir o tombadilho da barca
+... e tres homens... Se algum d’elles seria o filho?... Pareceu-lhe
+que sim!... O mais alto!... Bastava-lhe poder vel-o bem um instante
+sequer... Em vão!... Quanto primeiro lobrigara, desvaneceu-se de todo
+com as trevas que augmentavam.
+
+Os olhos, a arderem como se os picassem alfinetes, deixaram de ver.
+Não! Viram logo depois uma luzinha, a do pharol de bordo, passar e
+repassar no vidro immovel do oculo, a compasso com os balanços do
+navio, n’um movimento de vaevem, como a dizer-lhe que não! que não!
+que elle não veria o filho! Atordoado, fechou a janella, a que já era
+difficil estar, pela violencia da ventania.
+
+Em baixo, no botequim, o primo deu-lhe animo, e, repetindo a prophecia
+do capitão do porto, affirmou-lhe que o José, d’alli a meia duzia de
+horas, lhe metteria os tampos dentro com um abraço.
+
+--Sabes que mais? Vae dormir, que é a maneira de não sentires passar o
+tempo.
+
+Como achou boa a lembrança, o velho deitou-se para cima de um monte de
+saccos de milho, e adormeceu pouco depois, a rezar um padre nosso pelo
+José e por todos os que andavam sobre as aguas do mar.
+
+ * * * * *
+
+Por volta da meia noite, acordou estremunhado.
+
+--Está aqui, está na areia! dizia uma voz, que elle não conheceu. Ande,
+ó tiosinho, dê-me um copo de aguardente da terra, para me consolar o
+interior! Bem vê que estou como um pinto.
+
+Assomou á porta e perguntou ao barqueiro, que assim falava:
+
+--A _Alegria do Mar_ é que está em perigo?
+
+--Bem visto que sim! Aquella já fez a sua ultima viagem. Está aqui,
+está feita em estilhas.
+
+O Manuel João desatou a correr pela porta fóra, como um doido, e pela
+primeira travessa que topou á mão direita, arremetteu para o lado do
+mar.
+
+No sitio aonde foi ter, as vagas não batiam na muralha, porque lhes
+quebrava a furia um cómoro de areia.
+
+Ninguem! Nenhum som de voz humana, atravez dos bramidos do temporal!
+Não viriam accudir áquelles desgraçados?... Sim! Ao pé da alfandega,
+lampejou um clarão avermelhado. Archotes, que marcavam ao navio em
+perigo o sitio melhor para encalhar.
+
+--Mas a _Alegria do Mar_ obedeceria ainda ao governo?...
+
+N’isto surgiram ao pé do velho uns vultos, que nem deram por elle, tão
+entretidos estavam em observar o ancoradouro.
+
+--Aqui é que ella vem dar!
+
+--_Eh, home!_ Como o sabes?
+
+--Verás! Mas queira Deus que d’esta vez não seja, como quando se perdeu
+a baleeira americana. Afogou-se teu irmão e não apanhámos quasi nada.
+
+--Nanja agora. Vem muita familia com dinheiro.
+
+--Ah, _seus_ maraus! _Seus_ grandes ladrões! bradou furioso o Manuel
+João crescendo para os _tarraços_, que fugiram desconcertados e foram
+ajustar para outra parte os seus planos de rapinagem, infalliveis em
+occasião de naufragio.
+
+A sombra escura do navio estava já a curta distancia, pelo garrar
+constante da amarração. Sobre o céu acinzentado, que o luar velado de
+nuvens allumiava debilmente, os mastros desenhavam linhas negras mal
+definidas, e no de traquete brilhava ainda o pharol, fazendo lembrar
+pupilla de moribundo a espreitar o golpe de misericordia.
+
+Mas nem se podia olhar para o navio, que a areia levantada da praia
+pela ventania, chicoteava como ponta de azorrague, e cegava a quantos
+assistiam á catastrophe.
+
+[Ilustração]
+
+Entretanto a barca vinha caminhando lugubremente para a costa, onde
+havia de espedaçar-se. Por entre os lamentos da tempestade, mais
+horriveis que os uivos de uma alcateia de lobos famintos, já se ouvia
+o gemer da mastreação. Despidos das vergas pelo vendaval, os mastros
+ainda se conservavam em toda a sua altura, inteiriçados, erectos como
+braços chamando por soccorro afflictivamente.
+
+O velho, agachado por traz do parapeito da rua do Mar, foi caminhando
+para o Castello Novo, ao perceber que o navio derivava para o nascente.
+
+N’isto sentiu-se uma pancada surda, outra e outra: a _Alegria do
+Mar_ tinha dado no fundo. Em volta do velho já remoinhavam muitos
+homens, attonitos, anhelantes, por verem que não podiam valer áquelles
+desgraçados, que estavam alli tão perto, ao alcance da voz, e que
+dentro em pouco seriam victimas da morte cruel, que havia umas pouca de
+horas os estava chamando, attrahindo, hypnotisando.
+
+--Só Deus lhes póde acudir! disse alguem ao pé d’elle.
+
+--Quem ha de valer-lhe é o Senhor Santo Christo da Praia! pensou
+o Manoel João, cheio de esperança. Pois se aquelle Senhor é tão
+milagroso, que, levado em procissão ha cem annos, quando a terra tremeu
+uma semana a fio, logo que chegou ao pé da costa fez parar a corrente
+de fogo, que rebentara no Pico e vinha atravessando o canal, melhor
+podia agora com certeza... Até lhe custava menos!
+
+E, de joelhos, prometteu-lhe uma festa luzida, como aquella que lhe faz
+todos os annos a camara da _villa_. Elle por si não aguentava com
+os gastos, mas lá estava o collete do seu rapaz... Umas quatro ou cinco
+aguias chegariam para a funcção.
+
+ * * * * *
+
+O temporal estava no seu auge. A bahia, coberta litteralmente de
+espuma, tinha o aspecto de um immenso lençol--livida e sinistra
+mortalha.
+
+Tombado sobre estibordo, o navio debruçava a mastreação para o lado da
+terra, e, ainda mal cravado na areia, estremecia convulsivamente ás
+furiosas investidas do oceano.
+
+As ondas, batendo em cheio no costado, repuxavam a enorme altura, e
+despenhavam-se em catadupa sobre o convez. Bastaram poucas arremettidas
+para quebrar os mastros, sem todavia os separar completamente do casco.
+
+N’este comenos viram-se distinctamente, sobre o fundo cinzento do
+céu, tres vultos humanos agarrados á amurada do lado da pôpa. Ainda
+escabujavam na lucta suprema da morte.
+
+--Fiquem a bordo! gritou-lhes de terra um homem, alongando as syllabas
+e fazendo porta-voz com ambas as mãos.
+
+--A bordo! Podem lá resistir áquelles mares! objectou o patrão-mór,
+embora calculasse que seria irremessivelmente envolvido e tragado pela
+resaca, o temerario que pretendesse ganhar a costa, nadando.
+
+--Ahi veem elles! Ahi veem elles! bradou subitamente uma voz e
+repetiram logo muitas outras.
+
+--Aproveitaram-se dos mastros! Salvam-se com certeza!
+
+Então os espectadores da tragedia olvidaram o perigo e, atravez de
+uma aberta da muralha, correram para o areal. Tres ou quatro mais
+affoutos entraram pela agua dentro a buscar os naufragos, que vinham
+engatinhando ao longo dos mastros, arriscados, uns e outros, a que os
+esmagassem aquelles madeiros, já meio partidos e desconjuntados, mas
+que ainda se erguiam e baixavam pesadamente ao embate dos vagalhões.
+
+Afinal conseguiram salvar-se tres naufragos, e foram levados em braços
+para uma loja perto d’alli.
+
+O velho furou por entre os curiosos, que se apinhavam á porta, e
+achou-se no interior da casa.
+
+Mas era difficil ver qualquer coisa, á luz dubia espalhada lá dentro
+por uma candeia. Por fim conheceu que dois d’elles eram já de bastante
+edade e que sómente o terceiro... Estava deitado sobre uma enxerga, com
+os olhos fechados, o parecer quasi cadaverico, os cabellos collados
+á testa. Mas a estatura era a mesma do José... E as feições, a côr,
+tudo!... Era elle, por força!... Só se Deus Nosso Senhor não fosse de
+bondade e misericordia, deixaria que o pobre rapaz...
+
+Examinou melhor o infeliz, que já ia recuperando os sentidos.
+
+--Ah! Se elle abrisse os olhos!...
+
+Faltavam poucos instantes.
+
+Mas quasi teve medo de que a certeza viesse já tão proxima.
+
+--Quem sabia lá se?...
+
+N’esta occasião o naufrago disse umas palavras, que elle não entendeu.
+
+--É americano, notou alguem, ouvindo a phrase dita em inglez, mas com a
+pronuncia nasal caracteristica dos cidadãos dos Estados-Unidos.
+
+O Manoel João ficou perplexo.
+
+Sim, o seu José tambem devia saber falar americano... Mas em tal
+occasião falaria outra lingua, que não fosse aquella em que a mãe o
+tinha ensinado a rezar? Só se não estava bom da cabeça!
+
+N’isto abriu os olhos o naufrago.
+
+--Não era o José!
+
+O velho sahiu d’ali para fóra cambaleando, e parou no sitio onde devia
+ter estado sempre, onde podia salvar o filho. Outros certamente o
+haviam salvo, em logar d’elle.
+
+--Não! Ninguem mais tinha escapado.
+
+A barca, durante aquelle tempo, acabara de esmigalhar-se. No
+principio tinha abalos convulsivos, erguia-se para tornar a cahir
+desamparadamente, luctava, estrebuchava, como se o instincto de
+conservação lhe déra forças contra o gigante. E o mar tambem parecia
+exasperado por aquella resistencia. Sacudia a pobre _Alegria do
+Mar_ com os impetuosos estremeções da féra, que abócca a presa e a
+abana e estracinha, para reduzil-a por uma vez á immobilidade da morte.
+
+Ao cabo a tempestade foi amainando, e na praia ficavam dois ilhotes
+cravados na areia, a curta distancia um do outro--a proa e a pôpa do
+navio, com o tombadilho empinado, quasi a prumo. No da proa ainda
+existia um pedaço da borda, a que tinham estado aferrados os ultimos
+naufragos, e d’onde os levara a um e um o pavoroso remoinhar das vagas.
+
+Aquelles dois fragmentos informes eram quanto restava da _Alegria
+do Mar_, que poucas horas mais cedo, as vélas cheias de vento,
+cortava ligeira as aguas do Atlantico; os tres naufragos, os unicos
+sobreviventes dos quarenta que alli vinham, todos valentes campeões da
+lucta pela vida, alguns a procurarem, com a vista no horisonte, a terra
+da patria e antegosando as sonhadas alegrias do regresso.
+
+ * * * * *
+
+O Manuel João, perdida a ultima esperança, voltou para os Cedros no
+outro dia á tarde, mais arrastando-se do que andando por aquella
+estrada, que lhe pareceu dez vezes mais comprida.
+
+Logo que a Andreza o avistou, saiu-lhe ao encontro. Já sabia do
+naufragio, mas cuidava que o filho tivesse escapado.
+
+Dissera-lh’o por dó um visinho, que acabava de voltar da cidade.
+
+--Onde está o nosso filho, Manoel João? Onde está o nosso filho?
+
+--Ai, mulher, a gente já não tem filho! redarguiu o marido, cahindo
+sentado no poial da porta.
+
+--Tu estás doido, homem! gritou a Andreza, aos soluços.
+
+--Quem o deu tambem o podia tirar, obtemperou elle, apontando para o
+ceo.
+
+--Dizes isso porque não és mãe! bradou a velha, e fez um gesto de
+ameaça para o ente sobrehumano, que o marido acabava de invocar.
+
+--Então, mulher não mettas a alma no inferno! aconselhou o Manoel João,
+levantando-se e cingindo-a com os braços. Depois lembrou-se de coisa
+muito importante, relanceou a vista em redor, para certificar-se de que
+ninguem mais ficaria sabendo aquella nova desgraça, e disse a meia voz:
+
+--Sabes? Como não se encontrou o corpo do nosso José, lá se foi tambem
+o collete das aguias!
+
+--O collete das aguias! Seja tudo pelo amor de Deus!
+
+E choraram outra vez, com mais força ainda.
+
+
+[Ilustração]
+
+
+
+
+[Ilustração]
+
+
+ A Lampreia
+
+
+O jardim, que cingia a casa de Lili, era dividido em grandes
+quadrilateros, por alamedas de camelias arborescentes. Na primavera,
+as plantas dos canteiros cobriam-se d’um luxuoso manto diversamente
+matisado, e nas comas das roseiras do Japão os canarios e toutinegras
+davam, desde a madrugada até ao entardecer, concertos infernaes.
+
+Foi n’uma das alamedas que vi a pequenina pela primeira vez. Sentada
+n’um banco, parecia indifferente aos esplendores que a cercavam, e
+só tratava de segurar de encontro ao peito um grande gato branco,
+enlançando-o com os braços por baixo das pernas deanteiras. O animal
+supportava pachorrentamente aquella posição, incommoda na apparencia,
+e tinha o resto do corpo no collo da creança, com o grande ventre,
+forrado de pello macio, pendente n’uma dobra flacida, e os olhos
+piscos, ante o brilho intenso de um raio de sol, que, perfurando a
+folhagem, vinha pôr uma nodoa clara no peito de Lili.
+
+Esta, quando o pae, o meu amigo Fernando lhe disse quem eu era, apenas
+me concedeu um breve olhar obliquo, e estendeu com pouca vontade a face
+ao beijo que lhe dei. De improviso o gato, ou porque sentisse mais
+forte o abraço, ou porque se assustasse com a presença de um estranho,
+escapou-se-lhe das mãos por um movimento rapido, e, depois de longo
+espreguiçamento, foi enroscar-se voluptuosamente sobre um monte de
+folhas seccas, em que o sol batia de chapa.
+
+A pequenina rompeu n’um grande choro, e mostrou ao pae um dedinho
+rosado, onde começavam a gotejar alguns rubis de sangue.
+
+--Um ache, papá; o Moleque fez-me um ache!
+
+Fernando ia applicar ao gato um severo correctivo com uma varinha
+que tinha na mão, porém Lili, adivinhando-lhe as intenções, chupou
+rapidamente o sangue, e disse muito alegre:
+
+--Olhe, papá, não foi nada. Já passou!
+
+Assim é que ella gostava do gato branco.
+
+N’um domingo, Fernando convidou-me para jantar. Festejava-se a chegada,
+a S. Miguel, de um nosso amigo commum. Andavamos os tres a passeiar
+pelo jardim e praticando uma soffrivel devastação nas camelias, eis que
+ao passarmos em frente da sala de jantar, situada no rez do chão, fomos
+detidos pelo dono da casa, que nos fez signal para que olhassemos lá
+para dentro, atravez da porta de vidraça.
+
+Ainda pude ver a Lili, descendo sorrateiramente de uma cadeira
+encostada ao aparador. Talvez nos presentisse.
+
+--Tem dois defeitos aquella pequena, disse-nos o pae. É gulosa e ...
+nem sempre fala verdade.
+
+Continuámos no passeio, tomando eu a defesa da accusada, com o calor
+que as causas más inspiram quasi sempre aos advogados.
+
+D’alli a pouco a campainha tocava para o jantar.
+
+Fiquei defronte da Lili. Reparei-lhe na physionomia e notei uma certa
+inquietação: os olhos seguiam, a curtos intervallos, a direcção do
+aparador, onde luzia a baixella de prata.
+
+--O que tanto lhe attrae a attenção, pensava eu, o que a fascina, são
+de certo as gulodices, que resguardadas sob aquelles guardanapos de
+linho finissimo, encherão os pratos collocados sobre a pedra do movel.
+
+Chega-se ao _dessert_.
+
+--Sabem que vou ter o gosto de apresentar-lhes um antigo conhecimento?
+disse o Fernando.
+
+--Nosso? perguntei.
+
+--Sim, meu Luiz. Já estás nos Açores ha dois annos; ha dois annos,
+portanto, que não vês um dos maiores attractivos da capital, isto é,
+das montras dos confeiteiros lisboetas--uma lampreia de ovos! Fel-a
+a minha cosinheira, que é alfacinha. Francisco, descobre esse prato e
+traze-o para a mesa.
+
+O criado fez o que lhe mandaram, e ainda mais, pois que, ao ver o
+prato, abriu muito os olhos e a bocca. Não era preciso ter lido a
+_Expressão das emoções_ de Darwin, para se conhecer que o homem
+estava no auge do espanto.
+
+E não era para menos.
+
+A lampreia lá se achava, muito enroscada, mas faltava-lhe, vimol-o
+todos, faltava-lhe a cabeça! Quem lh’a decepára, tinha deixado
+vestigios do attentado á borda do prato, n’uns fios de ovos e tiras
+de geleia de fructa, que tomavam, ante a gravidade da situação, a
+apparencia de um rasto de sangue. Horrivel permenor: um dos olhos da
+victima--uma ginja em doce--jazia a um lado, viuvo da orbita!
+
+Lili empallideceu, e deixou cahir da mão a colher que empunhava,
+prompta para a lucta da sobremeza, mas ia pegar-lhe outra vez, quando o
+pae, deveras zangado, lhe perguntou quem tinha feito aquillo á lampreia.
+
+--Eu não sei, papae.
+
+--Sabes, sim, foste tu mesma!
+
+Lili voltou os olhos para a mãe, e não achou piedade.
+
+--A menina não foi, não senhor, murmurou quasi choramigando. Olhe,
+papae, quando eu vim ás tres horas á casa de jantar, andava em cima do
+aparador o gato... o Moleque... Foi elle!
+
+O pae reprimiu um sorriso.
+
+--Ah! Foi o Moleque? Pois o Moleque pagará as custas, quando nos
+levantarmos da mesa.
+
+A Lili nem sequer provou dos doces e pudins.
+
+Como não estaria aquelle pequenino coração!
+
+Depois do café, servido na sala contigua, Fernando mandou ao creado que
+fosse buscar o Moleque, e disse-lhe por fim algumas palavras em voz
+baixa.
+
+Decididamente a situação tomava uma gravidade excepcional. Lili
+chegou-se á mãe com receio, e ficou a olhar para todos, cheia de
+desconfiança.
+
+--Meus senhores, disse-nos o dono da casa, fitando muito a filha. Vamos
+ser juizes n’um processo importante. Luiza accusa o Moleque de um
+roubo, que é ao mesmo tempo um abuso de confiança... Ah...! Ahi chega o
+criminoso.
+
+O gato acabava effectivamente de apparecer ao collo do creado. Se a
+Lili se mostrava desconfiada, o Moleque apparentava a maior placidez.
+Após o creado, vinha a cosinheira, uma rapariga alta, robusta e mal
+encarada; trazia a mão direita escondida atraz das costas.
+
+--Temos, portanto, continuou Fernando, que o Moleque não só praticou um
+roubo com abuso de confiança, mas, o que é peior, decepou a cabeça da
+lampreia. Vamos julgal-o. Queiram sentar-se.
+
+Emquanto iamos tomando logares, disse-nos elle algumas palavras em
+francez. Puzemo-nos ainda mais carrancudos.
+
+A creança via tudo isto com olhares attonitos.
+
+--Dize-me outra vez, ordenou-lhe o pae, que não foste tu que roubaste
+a lampreia! Não?... Então foi o Moleque?
+
+--Foi ... balbuciou a pequenina.
+
+--A cara é de reu, continuou Fernando, apontando para o gato, que
+Francisco segurava pelas quatro patas. Os dignos jurados entendem que o
+Moleque deve soffrer a pena de talião?
+
+--Sim, respondemos com voz soturna.
+
+--Condemno, pois, o Moleque a perder a vida por degolação, sentenceou
+Fernando.
+
+--O quê, papae? perguntou a Lili afflicta e sem perceber bem.
+
+--Ó Maria, traz o que o Francisco lhe recommendou?
+
+--Está aqui, disse a cosinheira, passando para a frente a mão direita e
+apresentando uma grande faca de cosinha, afiada e luzidia.
+
+--Pois então, corte o pescoço ao gato!
+
+Ainda não esqueci o grito da creança. N’um choro fortissimo correu para
+o creado, e arrancou-lhe das mãos o gato, que fugiu espavorido. Depois,
+approximando-se do pae, disse-lhe:
+
+--Fui eu, papae, fui eu que comi a lampreia. Mande cortar a cabeça da
+menina!
+
+Nós, que já estavamos a rir, sentimos os olhos marejados de lagrimas.»
+
+ * * * * *
+
+Isto foi ha tres annos.
+
+Lili, que está hoje uma senhorinha, chegou com os paes, no mez passado,
+a Lisboa.
+
+O amigo de Fernando, que me contou a historia, foi logo visital-os.
+
+Fernando, ao apresentar a filha, perguntou-lhe sorrindo:
+
+--Lembras-te do caso da lampreia? Desde então, a Lili só mentiu uma vez
+... para salvar o Moleque de um castigo merecido.
+
+
+[Ilustração]
+
+
+
+
+[Ilustração]
+
+
+ Mau Homem
+
+
+Quando o Casimiro passava nas ruas, bamboleando-se nas pernas compridas
+e em fórma de parenthesis, as mulheres da villa lançavam-lhe das
+portas olhadelas de soslaio, e mais de uma, tendo cuspido para o lado,
+resmungava phrases indignadas.
+
+E apenas elle se afastava o bastante para não poder ouvil-as, as
+senhoras visinhas, tomando o para seu thema, davam largas á loquacidade.
+
+--Então! Já se viu um marau egual?
+
+--Tal desgraça! Parece mesmo que tem coisa ruim comsigo. Mau homem, por
+força!
+
+Era até impossivel que não tivesse alguma morte ás costas. Quem sabia
+lá?... Talvez tivesse. A Rosa Moniz chegou uma vez a lembrar que
+podia muito bem ser elle, e não o Antonio Garcia, quem tinha morto
+o velho, que appareceu com a cabeça partida ao pé do forte de Santa
+Catharina. Ninguem vira o Antonio fazer mal ao velho, e lá por se
+lhe encontrar em casa uma camisa suja de sangue, não se devia jurar
+que fosse elle o criminoso. Coitado! Se estaria a pagar as culpas de
+outro?... Chamassem o Casimiro á justiça e veriam quantas testemunhas
+appareceriam a accusal-o. Mas apezar d’isto--ou talvez por isto mesmo,
+diziam alguns--a fortuna favorecia-o constantemente. É que nunca se
+tinha visto ninguem mais feliz em negocio. Não obstante a má fama do
+dono, não era só a casa de comida posta pelo Casimiro ao pé da praça,
+que estava sempre cheia de freguezes; acontecia o mesmo á lojinha de
+fazendas, da ilharga. Admirava que houvesse na villa tanto dinheiro
+para se gastar. Verdade é que gente de fóra, de Agualva e da villa de
+S. Sebastião, antes queria alli comprar, do que ir á cidade, ás lojas,
+da rua da Sé, porque o Casimiro vendia tão barato como o Evangelista ou
+o Bento Fartura. E tinha então um geito para aviar os freguezes! Quem
+lhe entrasse na loja, sempre havia de comprar alguma coisa, o ponto era
+ter dinheiro na algibeira. Ninguem melhor do que elle sabia entender-se
+com qualquer comprador. Ora, por uma coincidencia que excitava pasmo
+geral, aquella prosperidade tinha começado exactamente desde que a
+Luiza viera de S. Miguel juntar-se com o marido e levar aquella vida de
+negra.
+
+--Vejam lá o que é a justiça de Deus, em que fala tanto a padralhada!
+commentava um dia o escrivão Salles, socialista e livre pensador.
+
+ * * * * *
+
+A opinião das mulheres, valha a verdade, não encontrava echo na maioria
+dos homens. Só um tinha tal raiva ao Casimiro, que se o visse a
+afogar-se e lhe bastasse extender a mão para o salvar, ficaria quedo.
+Podera! Se depois de o Casimiro pôr a loja, o José Antonio já não
+vendia quasi nada, apezar de ter baixado os preços de tudo! Uma noite,
+por volta das dez horas, passando elle pela porta do seu inimigo, ouviu
+a Luiza a chorar. Pôz-se á escuta. A mulher começou a accusar o marido
+de não se importar com ella, de estar com a Margarida, tanto que muitas
+vezes depois de fecharem o estabelecimento, elle saía de casa e só
+voltava tarde, á noite, a horas mortas.
+
+O Casimiro não respondia nada.
+
+O José Antonio espreitou por uma fisga da porta e viu-o a arrumar as
+fazendas n’uma prateleira.
+
+A Luiza continuou:
+
+--Ah! Tu não respondes! É que não tens que responder! Pois eu um dia
+pego em mim, e vou a casa d’aquella ganhoa...
+
+O Casimiro atirou ao chão com força uma peça de chita, que tinha na
+mão, e voltando-se para a mulher, gritou-lhe:
+
+--Isso é que é falar! Olha que eu!...
+
+--Tu o quê! Não me mettes medo com essa cara de calhau. Talvez queiras
+mandar nas minhas falas?
+
+A ranger os dentes, deu dois passos para a mulher.
+
+--Tu estás suffocando commigo, mas eu...
+
+--Embatucaste outra vez, porque és um albardeiro, um corsario!
+
+--Ah! Mulher, não me botes a longe, que eu perco-me por via de ti.
+
+--Não me deites esses olhos, que eu não me faço amarella. Amarella ha
+de ficar a Margarida, quando eu...
+
+O Casimiro não se conteve mais tempo e agarrou a mulher por um braço.
+
+--Anda, anda lá! Olha que eu pego a gritar aqui d’el-rei! ameaçou ella.
+
+Ainda não tinha acabado estas palavras, quando a mão do marido,
+batendo-lhe no alto das costas, a atirou de bruços, para o chão.
+
+--Aqui d’el-rei! Aqui d’el-rei! Quem m’acode!
+
+O José Antonio não quiz ouvir mais nada e foi de corrida buscar o
+administrador do concelho, que estava alli perto, na Assembléa, a jogar
+a sua costumada partida de voltarete.
+
+Apenas conheceu a voz da auctoridade, o Casimiro abriu a porta e deu-se
+á prisão sem resistir.
+
+ * * * * *
+
+No dia seguinte, ás dez horas, foi a perguntas, á casa da audiencia.
+
+O juiz, velho de cabello completamente branco e falar pausado, depois
+de ouvil-o, censurou-lhe, com azedume mas sem desabrimento, a baixeza
+por elle praticada, em abusar da força para bater n’uma mulher, que se
+lhe entregara esperando generosidade e protecção, e não violencia e
+tyrannia.
+
+O preso escutou silenciosamente as palavras do juiz. A principio
+conservou as sobrancelhas cerradas, e o olhar fixo n’um ponto do
+sobrado, como se nenhuma attenção prestasse ao que lhe estavam dizendo.
+Afinal, porém, as feições distenderam-se-lhe, um tremor convulsivo
+começou de agital-o, e ao mesmo tempo que do peito lhe irrompiam os
+soluços, foram-lhe as lagrimas rolando pela cara.
+
+--Bem! Bem! disse o juiz. Não se afflija. Pelo que vejo está
+arrependido do que fez...
+
+Interrompendo-o com um gesto, e suffocando dentro em si o ultimo
+soluço, o Casimiro começou a falar, com voz pouco perceptivel emquanto
+o não arrastou o calor da narração. Se o juiz o tratasse mal, não lhe
+diria nada, ou seria até capaz de uma violencia. Todavia a maneira
+por que o magistrado se lhe dirigira, os conselhos que lhe dera mais
+pezaroso que severo, tudo o fôra vencendo gradualmente. Pareceu-lhe que
+se o tio João Furtado--o pae do Casimiro, em vez de estar enterrado no
+cemiterio de Villa Franca ha muitos annos, lhe apparecesse n’aquella
+occasião, usaria das mesmas falas, mas não tão bem feitas como as do
+sr. juiz. Para este não queria portanto o marido da Luiza parecer um
+mau homem.
+
+ * * * * *
+
+Contou-lhe a sua vida toda, e o juiz quando elle acabou de falar,
+apertou-lhe a mão commovido, e mandou-o embora, recommendando-lhe
+prudencia.
+
+As mulheres da villa quando souberam que o Casimiro estava solto e que
+não passaria trabalhos, vociferaram que tão bom era o juiz como elle.
+Talvez dissessem isto, porque não ouviram o Casimiro.
+
+ * * * * *
+
+Contou ao magistrado a sua vida: como tinha casado com a Luiza, que
+n’esse tempo era a bem dizer uma pequenota, mas que, talvez sem saber,
+o puzera como doido. Nem obra de feitiçaria! Estava ainda a vêl-a, no
+dia em que o tio João a foi pedir em companhia do filho, responder
+muito envergonhada e como se tivesse medo:
+
+--Pois elle vae, senhor! Se a minha mãe leva isto em gosto, eu tambem
+levo. Não digo menos de isso.
+
+Os primeiros tempos de casados, viveram-os como se não fossem d’este
+mundo. A bem dizer, aquillo era até felicidade de mais. Elle trabalhava
+sem descanço o dia inteiro, fazia o seu negocio e á tarde, quando
+chegava a casa, lá o estava esperando a Luiza com a ceia prompta, e
+extendia ao marido os braços com tanto carinho!
+
+A desgraça foi elle ter de ir ás Furnas por causa de um negocio, que
+por signal não lhe rendeu nada.
+
+Como é que a Luiza se perdeu? Como se deixou ir pelas falas do menino
+Diogo, filho d’aquelle sujeito que tem uma quinta muito bonita, mesmo á
+entrada da villa de Lagoa, á mão direita de quem vae do lado da cidade?
+
+O marido só muito depois veiu a saber tudo.
+
+Uma visinha, a Maria do Jacintho, é que a tinha desinquietado, e uma
+noite em que a Luiza foi ceiar com ella, deram-lhe uma gota de vinho a
+mais...
+
+--Ah! Que se eu tivesse sabido, matava logo aquella corsaria. Se queria
+perder alguem, perdesse as filhas... Mas lá essas não precisaram de que
+a mãe as ajudasse!
+
+E o Casimiro, depois d’esta phrase, começou a falar outra vez
+vagarosamente, quasi a custo.
+
+Nem sabia dizer ao certo como chegou a descobrir tudo.
+
+Ah! Tinham-lh’o dito. Quando entrou em casa, perguntou-o de repente á
+mulher. A Luiza, colhida improvisamente, poz-se a gaguejar, mais branca
+do que a cal da parede.
+
+O marido deitou-lhe as mãos ao pescoço e matava-a, matava-a com
+certeza, se as visinhas, que acudiram á bulha, não lh’a arrancassem das
+mãos.
+
+A pobrinha parecia morta. Chegou-se a pensar que elle a tinha afogado.
+Depois foi voltando a si, olhou para todos com os olhos muito abertos e
+começou a rir, a rir de tal modo, que uma das visinhas fugiu espavorida
+pela porta fóra e as mais sentiram arrepios de frio por todo o corpo.
+
+A Luiza não estava boa de cabeça e poz-se a dizer que tinha morrido,
+que o seu anjo da guarda a levava pelo ceo dentro, mas que os outros
+anjos fugiam d’ella e não queriam vel-a sequer, porque ... porque... E
+desatava a rir e a chorar ao mesmo tempo, rasgando-se, atirando-se ao
+chão, quando a não seguravam com força, com muita força.
+
+Esteve assim tres dias. O Casimiro não comeu nem dormiu durante
+esse tempo. Ao quarto dia mandou-a para o hospital. Na vespera, de
+madrugada, quando a Luiza socegava, elle esteve, vae não vae, a
+matal-a, sem força para resistir á tentação. Se a tivesse mais tempo ao
+pé de si, era capaz de fazer essa loucura.
+
+Desmanchou a casa e no primeiro vapor foi para a Terceira.
+
+Em Angra não fez nada. Quiz tentar fortuna na Villa da Praia e não se
+arrependeu da lembrança. O juiz bem sabia como elle tinha começado o
+seu negocio.
+
+ * * * * *
+
+Quando um dia o Casimiro estava só na loja, entrou-lhe pela porta
+dentro uma mulher embrulhada n’uma capa e atirou-se-lhe aos pés,
+chorando muito e dizendo:
+
+--Perdoa-me, meu rico marido, perdoa-me!
+
+O primeiro impeto do Casimiro foi agarrar n’ella e atiral-a para a rua,
+como um animal ruim. Mas quando, ao crescer para a Luiza, a encarou,
+pareceu-lhe que estava a sonhar.
+
+Não era a mesma. Quer dizer, era a mesma, mas tão differente!... O
+cabello tinham-lh’o cortado no hospital, para lhe pôrem neve na cabeça.
+Os olhos sumiam-se no fundo d’umas covas negras como carvão. As faces,
+d’antes tão córadas, e o corpo tão cheio antigamente, estavam só com a
+pelle e o osso.
+
+Como aquella desgraçada não tinha padecido!
+
+Sem se levantar do chão, agarrada ás pernas do Casimiro, dizia-lhe no
+meio de gritos entrecortados:
+
+--Meu rico marido, não me deites d’aqui para fóra. Por alma de teu pae!
+
+Elle fitou-a muito tempo, poz-lhe a mão sobre a cabeça e disse-lhe:
+
+--A benção de Deus te cubra. Bem! Fica p’ra ahi.
+
+No começo a Luiza servia o marido como uma escrava. Nem a Mimosa, a
+perdigueira, era mais humilde. Mas ao fim de tempo, quiz recuperar o
+seu antigo logar, e desconfiada de que o Casimiro fazia pouco d’ella
+por ter alguma outra mulher, queixava-se, accusava-o.
+
+Muitas vezes elle não lhe dava resposta, mas outras desesperava-se, e
+como tinha genio, levantava a mão e...
+
+--Que quer V. S.^a, sr. juiz? concluiu o desgraçado. Eu bem lh’o tenho
+dito, mas a Luiza ainda não me entendeu: o vidro que se partiu uma vez,
+por muita massa que lhe ponham, nunca mais torna a ser o que era.
+
+
+[Ilustração]
+
+
+
+
+[Ilustração]
+
+
+
+
+ A Licença Do Domingo
+
+
+HAVIA já tres quartos de hora que se distribuira o rancho da tarde, no
+quartel de S. João em Ponta Delgada.
+
+Os piquetes, que tinham ído levar a comida ás guardas exteriores,
+vinham já de volta e encontravam-se de vez em quando com os soldados
+que desciam a rua, aos grupos de dois e tres, alguns de mãos dadas
+pelos dedos minimos, lançando para as raparigas, que estavam pelas
+portas e janellas, uns olhares provocadores. Se estes galanteios
+destoavam grandemente da apparencia pouco seductora dos D. Juans de
+fardeta, nem sempre se perdiam.
+
+Dentro do quartel, nas casernas pequenas e abafadiças, tinham ficado
+apenas as praças de serviço.
+
+Na da segunda companhia, em redor de uma cama onde está sentado o cabo
+José, ha ainda assim grande ajuntamento, e estrugem a espaços enormes
+gargalhadas, que interrompem momentaneamente a cantiga, origem da
+hilaridade, e chegam até a cobrir os sons da viola que o cabo, um heroe
+dos _charambas_, dedilha com uma pericia incomparavel.
+
+Mas que terá o Roque, o 72, que, sem attender aos descantes, anda a
+passeiar de um para outro lado, muito pensativo?
+
+É por força cousa séria.
+
+Oh! Mas o rapaz tomou certamente uma resolução, porque abriu a
+caixa da roupa, tirou para fóra a fardeta, e vestiu-a, abotoando-se
+cuidadosamente. Depois ageitou o bonnet na cabeça e caminhou para a
+porta.
+
+--Vaes passeiar, ó Roque? perguntou-lhe o plantão?
+
+--Tu sabes se o _nosso primeiro_ está no seu quarto?
+
+--Saiu ha migalhinha. Foi com o nosso sargento José Luiz passeiar á
+doca.
+
+O 72 ficou de má catadura, e pareceu hesitar, mas, resolvendo-se, saiu
+da caserna.
+
+--Eh! _Home_, levas uma _cara de calhau_, disse-lhe ainda o
+plantão.
+
+No corredor que rodeia o claustro do antigo convento, o 72 encontrou o
+impedido do capitão da segunda companhia.
+
+--Ó Francisco, o teu patrão onde está?
+
+--Alli.--E mostrou com o gesto o quarto da extremidade do
+corredor.--Acabou ha um instantinho de jantar... Vão aqui dentro os
+pratos vazios, disse o rapaz, enfiando o braço na aza de uma cesta que
+trazia na mão.--Haja saude, ó Roque!
+
+O outro foi caminhando para o logar que o impedido lhe indicara, mas
+insensivelmente diminuiu o passo, e poz-se a coçar a cabeça, n’uma
+grande irresolução.
+
+A porta do quarto estava fechada. O 72 pegou com medo na aldrava e
+deixou-a cair.
+
+Passaram-se alguns segundos.
+
+--Talvez já cá não esteja, ia o soldado dizer comsigo mesmo, visto não
+obter resposta, quando ouviu tossir da parte de dentro.
+
+Pegou outra vez na aldrava e bateu muito de leve.
+
+--Que temos? perguntou uma voz encatarroada.
+
+--V. S.^a dá licença, meu capitão?
+
+--Entre quem é.
+
+--Sou eu, meu capitão ... disse o 72, entrando e tirando o
+_bonnet_ com um movimento rapido e desgeitoso, mal viu o official
+de cabeça descoberta.
+
+No quarto de inspecção, pequeno e acanhado, havia um forte cheiro a
+comida e a fumo de tabaco.
+
+O capitão, sentado n’uma cadeira de palhinha, tosca e despolida, tinha
+os cotovellos encostados á mesa e lia um jornal de Ponta Delgada,
+o _Echo Michaelense_, tomando a espaços longas fumaças de um
+cachimbo de escuma, muito queimado.
+
+Com os calcanhares unidos, os olhos um pouco esgazeados, os beiços n’um
+ligeiro tremor, o soldado não se atrevia a falar.
+
+--Que demonio queres tu? perguntou-lhe o capitão Saraiva, ao cabo de
+algum tempo e sem interromper a leitura.
+
+--Eu, meu capitão? Saiba V. S.^a que me custa muito vir incommodar a V.
+S.^a...
+
+--Mau! Despacha-te! Nunca vocês sabem dizer as cousas por claro. Que
+diabo de gente, estes ilheus! E batendo com a mão sobre o jornal,
+voltou a cabeça para o soldado, medindo-o com o olhar.
+
+--Elle é verdade meu capitão, mas é que ás vezes _assuccede_ a um
+_home_ cada uma...
+
+--Ou te explicas, ou marchas n’um prompto para a caserna! disse o
+capitão, com voz irritada. Levantou-se, poz o bonnet na cabeça, puxou o
+collete para a cintura, mettendo para baixo do cóz das calças a dobra
+da camisa que estava saliente, e abotoou o raglan, inferiormente ao
+qual appareciam as borlas da banda, distinctivo usado no batalhão pelos
+officiaes de serviço.
+
+--Saiba V. S.^a, meu capitão--começou o 72, dando com as mãos muitas
+voltas ao bonnet,--que esta tarde, antes do rancho, eu tinha ido alli
+abaixo, ao largo da Matriz...
+
+--Que tenho eu com isso?
+
+--E vae d’ahi, topei com a Rosa, uma rapariga da minha freguezia, e ...
+o que me ha de ella dizer? Que hontem á noitinha, quando meu pae ia
+recolhendo ás Féteiras...
+
+--Tu és das Féteiras? Aquelle logar que fica no caminho para as Sete
+Cidades?
+
+--Saiba V. S.^a que sim... Ao descer uma canadinha, escorregou dos
+pés e foi-se abaixo, batendo com o corpo nos calhaus. O pobre do
+_hóme_ é velho e d’ahi a quéda deu-lhe uma volta ao interior.
+Parece que está mesmo a decidir.
+
+Estas ultimas palavras foram acompanhadas por um choro meio suffocado.
+
+--Bem! E que queres tu então? perguntou o official, com menos rispidez.
+
+--Se V. S.^a me desse licença, eu pegava em mim e ia vêl-o.
+
+--Ás Féteiras? Tira o cavallo da chuva! Porque não pediste a licença
+antes do toque da ordem? Não sabes que o batalhão tem pouca força, e
+que é preciso fazer escolha nas praças que pedem para ir no domingo á
+terra?
+
+--Saiba V. S.^a que sei, mas áquella hora ainda não me _haveram_
+dito nada, e como faz hoje oito dias que eu tive licença...
+
+--Sabias que não a apanhávas.
+
+--Mas agora, se V. S.^a me fizesse essa esmola... O pobre do velho
+está, vae não vae, a ir para Nosso Senhor, e eu sem lhe poder valer!...
+A voz do soldado, entrecortada novamente pelos soluços, pronunciou mais
+algumas palavras inintelligiveis.
+
+O capitão, meio zangado, meio condoido, passeiava pelo quarto, com o
+cachimbo a um canto da bocca, e as mãos mettidas nos amplos bolsos das
+calças de cutim. O 72, cabisbaixo, seguia-lhe os movimentos com um
+olhar obliquo e prescrutador.
+
+--Dar-se-ha o caso de que tu estejas a embaçar-me, grande maroto?
+perguntou de subito o official, fitando muito o soldado.
+
+--Eu! disse este, cheio de susto. Se minto, mais negro seja que o
+carvão!
+
+--Eu sei lá! Vocês todos são frescos. Quem me déra para cá os meus
+trinta e cinco annos de serviço, para me livrar da maldita massada de
+atural-os! Mentiste ou não mentiste?
+
+--Isto é que se chama! Pergunte o meu capitão á Rosa.
+
+--Teu pae, então, está a morrer?
+
+--A modos que sim, senhor. A dôr de dentro não o larga. Se não foi isto
+o que a Rosa me disse, abram-me a cabeça com um calhau!
+
+O soldado continuava a praguejar, em quanto o capitão, sem interromper
+o passeio, se recordava do que lhe tinha acontecido, havia já um bom
+par de annos, estando elle no Porto, em sargento do 18. Chegou-lhe de
+Braga uma carta, participando-lhe que a mãe se achava em perigo de
+vida. Pediu licença immediatamente, mas como a ordem tardasse em vir do
+quartel general, quando chegou a casa, já a sua _velhinha_ estava
+enterrada.
+
+--Pode acontecer o mesmo a este pobre diabo, pensava o capitão. Por
+fim, decidindo-se, parou, tirou o cachimbo da bocca e disse com muita
+intimativa ao soldado:
+
+--Pois muito bem! Vocemecê vae hoje para a sua terra... É verdade! Não
+entras de serviço amanhã?
+
+--Entro de fachina, mas o 12, que é meu camarada e _está de nada_,
+fica por mim, se V. S.^a der licença.
+
+--N’esse caso vae e volta ámanhã á noite, antes do toque.
+
+A cara do 72 alegrou-se, sem comtudo se desannuviar completamente.
+
+--Se V. S.^a me deixasse, eu voltava na segunda feira.
+
+--É isto! Querem logo tudo! Bom! Voltas depois de amanhã, antes do
+rancho. Serve-te?
+
+[Ilustração]
+
+--Seja pela sua saude, meu capitão! Nosso Senhor é que lhe ha de pagar
+uma coisa d’estas.
+
+--Vocês ainda me compromettem com o nosso commandante. Anda, põe-te ao
+fresco!
+
+O soldado rodou sobre os calcanhares, depois de fazer a continencia e
+dirigiu-se para a porta. Ia já a sair, quando o capitão o chamou.
+
+--Olha lá!
+
+--Prompto, meu capitão!
+
+--Tu... O official hesitou no que ia dizer, depois, lembrando-se de
+outra cousa: Pediste licença ao primeiro sargento para vir falar-me!
+
+--Saiba V. S.^a que elle saiu a passeio.
+
+--Mau!... É verdade! Tu sabes se os ovos na tua terra estão baratos?
+
+--Tiram-se a seis por um pataco.
+
+--Pois traze-me umas tres duzias; cá na cidade só pesados a ouro...
+Depois te dou o dinheiro.
+
+--Não faz _moléste_, meu capitão.
+
+--Bom, vae-te embora e dize ao sargento que tens licença.
+
+--Sim, senhor, meu capitão.
+
+E saiu.
+
+O rosto brilhava-lhe de alegria. N’um abrir e fechar de olhos, foi
+á caserna, despiu a fardeta, vestiu um casaco á paizana, que já
+tinha antes de sentar praça e descalçou-se. D’ahi a pouco estava
+fóra do quartel, e descia apressadamente a rua de S. João, receioso
+de que ainda lhe tirassem a licença. Acompanhava-o a competente
+_vardasquinha_, isto é, um valente bordão capaz de matar um homem.
+Dez minutos mais tarde saía de Ponta Delgada, pelo lado occidental.
+
+Quando deixou de encontrar gente, e viu diante de si a estrada quasi
+deserta, bordejada por paredes caiadas de branco, algumas encimadas
+pelas comas do arvoredo, parou por instantes, e poz-se a rir
+maliciosamente:
+
+--Tinha embaçado o capitão!
+
+O pae estava tão doente, como elle. Pelo menos, ainda no ultimo domingo
+o tinha deixado na freguezia, são e escorreito.
+
+--Fiou-se no que eu lhe disse! pensou. Queira Deus não venha a
+descobrir! O que me vale é não haver lá na companhia mais rapazes das
+Féteiras.
+
+Foi andando.
+
+--Por fim de contas não era _coisa ruim_ o que tinha feito. No dia
+seguinte festejava-se o Espirito Santo, na freguezia. Havia imperio e
+bôdo. Faltar, era até um peccado! Se falasse verdade, não lhe davam
+licença. Por ter dito que o pae adoecera, não o fazia ir para a cama. O
+velho estava ainda esperto e rijo. Podia caír á vontade, que não morria
+ás primeiras. Tinha hombros largos, pescoço curto, e a cara, embora um
+pouco enrugada, estava sempre vermelha, que se podia ver. Mettia no
+canto a muitos rapazes, o _ti Jaquim_.
+
+O Roque avançava que era uma maravilha!
+
+A estrada ia mudando de aspecto. Á direita extendiam-se largas campinas
+escuras, subindo gradualmente até acabarem nas collinas, que limitam o
+horisonte; á esquerda começa a ribanceira, cujo sopé vae terminar na
+costa meridional de S. Miguel em declives abruptos. De cá de cima, em
+alguns pontos, avistam-se grandes extensões da praia, que offerece ao
+mar uma larga concavidade, onde se desenrola um vasto lençol de espuma.
+
+Para o lado da cidade vinha um cantoneiro.
+
+--Haja saude, tio João de _Mideiros_.
+
+--Haja saude, Roque. Vaes a casa?
+
+--Vou. Esteve lá em baixo hoje?
+
+--Não. Quem para lá voltou agora, foi o sr. dr. Luiz, que já vinha a
+caminho da cidade.
+
+--Voltou? Para quê?
+
+--Para acudir a um homem, que teve _uma coisa_ esta tarde. Veiu um
+rapaz, o José, chamal-o de _galão_ ... montado, por signal, n’um
+burro.
+
+--E a quem deu o mal?
+
+--Não sei. Não tive tempo de perguntar ao José, porque elle voltou
+logo, mais o sr. doutor. Aquillo é que é a bondade em pessoa, o sr.
+doutor! Fosse outro, que bem se importava!...
+
+--Talvez o doente seja homem rico...
+
+--Pode que seja. O que te sei dizer é que o sr. dr. Luiz pegou em si e
+voltou para traz. Eu, como não era ouvido nem chamado no caso...
+
+--Quem será?
+
+--Haja saude, Roque.
+
+--Haja saude, tio João de _Mideiros_.
+
+Estugou o passo.
+
+--Quem seria o individuo? Talvez algum velho. Certamente o sr. padre
+Francisco!... Já no verão passado tinha tido um ar de _poplexia_.
+Antes seja outro--pensava o Roque--senão como se ha de fazer amanhã a
+festa do Senhor Espirito Santo?...
+
+Ao lusco fusco chegava ás primeiras casas do logar, situadas no alto da
+encosta, que vae descendo até á egreja. Olhou lá para baixo e sentiu a
+mesma impressão, que tivera ao voltar á freguezia, depois de passar no
+batalhão os primeiros quinze dias.
+
+Durante aquellas duas semanas andou no quartel a chorar pelos cantos,
+ralado de saudades. Saía para espairecer as magoas, corria as ruas da
+cidade, parava espantado em frente das lojas, como de antes fazia,
+quando vinha da freguezia comprar algum fato, ou por amor da festa do
+senhor Santo Christo. Mas voltava para o quartel, ia para a caserna, e
+amarrava-se a um canto, sem ao menos ouvir as cantigas tão engraçadas
+do cabo José. A sua consolação, uma vez por outra, era tirar do bahu a
+_charamela_, que tocava nas Féteiras, e repetir as modinhas que
+lhe tinham ensinado por lá. Parecia-lhe então que a caserna, os cabides
+de que pendiam os uniformes e as mochilas, os armeiros, e tudo o mais
+ia desapparecendo, desapparecendo, e que via na sua frente a egreja da
+freguezia, com a casa do _imperio_ do outro lado da estrada; quasi
+que até ouvia o sino a tocar para a missa!... Uma vez, esteve quasi a
+dar um grito, porque se lhe afigurou que a Maria do tio Thomaz passava
+ao pé d’elle, por signal com um vestido de chita clara e um lenço de
+seda muito bonito!...
+
+Os outros soldados diziam que o rapaz dava em maluco.
+
+Mas o que o fez pasmar, foi que na primeira vez em que esteve de
+licença na terra, não sentiu a alegria que esperava.
+
+De longe, tudo lhe parecia melhor.
+
+Até a casa, tão pequena e pobresinha, que elle julgava preferivel á
+caserna, afinal de contas era muito peior.
+
+Um completo desengano.
+
+Mas agora não se demorou a pensar n’isto, e foi descendo a passos
+largos em direcção á casa do pae, que ficava mesmo á ilharga da egreja.
+
+Quando passou pela venda, teve tentações de perguntar quem tinha
+adoecido, mas não quiz demorar-se e foi andando para diante.
+
+--Se estava _deserto_ por chegar!
+
+A curta distancia de casa passou por elle o carro do doutor, produzindo
+estalidos seccos no macadam da estrada.
+
+Vinha do lado da egreja, do sitio onde morava o padre Francisco.
+
+--Não é outro o doente, pensou o 72.
+
+N’isto achou-se ao pé de casa.
+
+Uma coisa lhe fez admiração.
+
+--Que claridade era aquella que saía atravez da porta mal fechada? Não
+podia ser da candeia, que a mãe accendia todas as noites.
+
+E pareceu-lhe ouvir chorar!...
+
+--Enganava-se por força.
+
+Empurrou a porta, e logo estacou, boquiaberto, com um arrepio por todo
+o corpo, os cabellos em pé.
+
+No fundo, deitado sobre a cama e um pouco voltado para a porta, estava
+um homem, já velho, o olhar envidraçado, a cara amarellenta e a bocca
+repuxada para uma banda. Era o corpo de um defuncto!
+
+Sentadas sobre uma caixa, tres mulheres soltavam ais, assoando-se a
+miude, e dizendo por entre soluços:
+
+--Louvado seja Nosso Senhor!...
+
+Uma d’ellas, a mais velha, quando deu com os olhos no 72, levantou-se e
+foi para elle a gritar:
+
+--Ai! Meu rico filho, que já não tens pae!
+
+O Roque bem tinha reconhecido o cadaver, mas attonito, estupido, não
+queria acreditar nos seus olhos.
+
+Quando ouviu a mãe, desenganou-se; começou n’um berrar destemperado, e
+atirou-se para o chão, onde estrebuchou muito tempo, arrepellando-se e
+gemendo sempre:
+
+--Matei o meu pae! Matei o meu pae!
+
+A mãe voltou para junto das companheiras. Uma d’estas segredou á outra:
+
+--O rapaz está variado!
+
+Levantou-se, e com o queixo a bater e todo o corpo n’um tremor
+convulsivo, foi sentar-se para um canto.
+
+Só á terceira vez é que poude encarar com o defuncto.
+
+Mettia pavor, á luz amarella dos cyrios.
+
+Sem fazer bulha, o Roque fugiu de casa e foi sentar-se á porta da
+egreja. Lá esteve toda a noite a soluçar:
+
+--Matei o meu pae! É castigo de Nosso Senhor!
+
+
+[Ilustração]
+
+
+[Ilustração]
+
+
+
+
+ O Contrabando
+
+
+TARDE de inverno.
+
+As vagas frisam-se de espuma, e correm umas após outras de encontro
+á costa. Da banda do oceano, grandes massas de nuvens pardacentas
+orladas de branco, sobrepujam o horisonte,--quaes legiões que alli
+estivessem de reserva, promptas para arremetter á voz da tempestade.
+As aves aquaticas, aos pios e grasnidos, approximam-se de terra, e
+emquanto umas traçam na atmosphera largas curvas, outras, embaladas
+pela onda, descançam na agua, d’onde ás vezes se levantam desprendendo
+as azas, em que parece librarem-se a custo, para irem saltitar pelas
+cristas espumosas, de pescoço estendido á cata de peixe. O vento humido
+e carregado de emanações salinas, investe com a riba alcantilada,
+percorre-a velozmente, curvando os enfézados arbustos e erguendo
+nuvens de poeira, que remoinham até se dispersarem na campina superior.
+
+Em frente da casa dos guardas de alfandega, alçada no sopé dos
+rochedos, um homem trigueiro, alto, de apparencia militar, alonga a
+vista ao de cima das aguas, e olha com persistencia para o perfil
+escuro de um morro, que ao longe, muito para a direita, fecha o
+horisonte terrestre, com grande crueza de tons. A ventania sacode-lhe
+incessantemente o capote e obriga-o a fechar os olhos de instante a
+instante.
+
+No mar divisa-se muito ao largo uma vela, uma só: mas o guarda antevê
+perigo imminente, e mal comprehende que o deixassem alli com um unico
+companheiro, armados ambos de espingardas detestaveis, quando os
+contrabandistas pódem ser muitos, e hão de trazer por certo bellas
+carabinas, que nunca erram fogo e que dão tres ou quatro tiros, em
+quanto as armas antigas a custo disparam um só.
+
+ * * * * *
+
+A lancha, mal a noite acabou de fechar, largou de bordo carregada de
+tabaco, e navegou para terra cautelosamente. Os remos cahiam na agua
+ao mesmo tempo e rasgavam sem bulha o flanco das ondas. Dois outros
+maritimos, de sueste enterrado na cabeça, acompanhavam os remadores e
+tinham perto de si, á cautela, duas carabinas americanas. Partira da
+barca uma segunda lancha, que devia correr perigos eguaes, até se haver
+passado todo o contrabando--umas duzentas caixas de tabaco.
+
+ * * * * *
+
+O João Luiz, o guarda, hesitava em recolher-se na casa de abrigo,
+apezar do frio. A denuncia tinha sido clara. Perto d’alli, na pequena
+enseada onde o mar é quasi sempre socegado, deviam desembarcar as
+caixas de tabaco. Lá estavam doze guardas. Como, porém, junto da casa
+tambem se saltava sem difficuldade, o chefe fiscal tinha mandado
+guardar o posto pelo João Luiz e pelo Vicente. Não havia ninguem fóra
+de serviço.
+
+De repente o João Luiz pensou no Estacio e estremeceu.
+
+Elle bem tinha dito muita vez ao irmão que se desgraçava continuando a
+ser contrabandista, e que um homem casado e pae de dois filhos não deve
+arriscar a sua vida por um boccado de dinheiro. Palavras perdidas.
+
+O Estacio era teimoso e não largava já o modo de vida, a que se
+dedicara. Parecia, a bem dizer, uma tentação. Que lhe importava o ser
+mal visto pela gente da alfandega, se em poucas horas ganhava o que
+muitos outros não faziam com mezes e mezes de trabalho ao sol e á
+chuva? E o caso é que o Estacio andava bem vestido, trazia a mulher e
+os filhos que se podiam ver, e ainda ultimamente tinha comprado uma
+mobilia americana, e um relogio de parede com uma caixa mais luzidia
+que a prata.
+
+O proprio perigo offerecia-lhe attractivos singulares. Ás vezes,
+durante as noites de trabalho, elle bem pensava que podia levar, quando
+mal se precatasse, com uma bala e não tornar a ver a mulher nem os
+filhos, principalmente o mais mocinho, o Manuel, de quatro annos, tão
+louro e tão rosado, que parecia tal qual um menino Jesus. Mas as ideias
+sombrias passavam rapidas, e o Estacio scismava logo depois que poderia
+vir a ter um predio, muitos predios, como alguns senhores enriquecidos
+d’aquelle modo, que nem por isso eram menos estimados por toda a gente.
+Pelo contrabando ganhava o pão da sua familia e ganhava-o com risco de
+vida, o que já não era tão pouco!
+
+Um dia esteve quasi a brigar com o João Luiz, por este lhe dizer que
+o contrabandista é um ladrão como qualquer outro, visto que rouba
+o Estado e vae contra as leis; mas por fim soltou uma gargalhada e
+respondeu-lhe que lá a roubar o Estado ninguem levava as lampas aos
+empregados publicos, uns mandriões que passam vida regalada e que
+recebem no fim de cada mez uma mão-cheia de dinheiro. Ladrões esses!
+
+ * * * * *
+
+Noite fechada, principiou a soprar um vento mais frio. O João Luiz
+ageitou-se melhor no capote e encolheu-se a um canto da rocha, de onde
+se avistava bem o mar, até á costa. Passara-se uma hora ou mais talvez,
+quando elle, que á força de estar attento via já tudo indistincto e
+como que a apagar-se, julgou sentir bulha do lado da agua. Ia para
+erguer-se, mas logo mudou de tenção; foi de rojo até á porta da casa
+e chamou em voz baixa o Vicente. Tornado ao mesmo sitio, conheceu
+claramente que andava perto um bote.
+
+--Serão contrabandistas ou pescadores? murmurou ao ouvido do outro
+guarda, que tinha vindo postar-se ao lado d’elle, tambem com a
+espingarda engatilhada, para o que desse e viesse.
+
+Mas não podiam fazer assim fogo, á falsa fé, detraz de um rochedo, como
+o ladrão que espera um homem e o mata para roubar. Teve este pensamento
+e sem importar-se com as ordens recebidas bradou:
+
+--Quem anda ahi?
+
+Não teve resposta. Repetiu a pergunta. O mesmo resultado. Ainda
+duvidoso, e para certificar-se ou intimidar os tripulantes do bote,
+disse com voz mais forte:
+
+--Vocês são mudos?! Talvez uma bala os obrigue a falar.
+
+Do bote partiram dois clarões repentinos.
+
+Uma das balas tirou uma lasca de pedra, ao pé do Vicente.
+
+--Ah! Grandes ladrões, esperem lá! gritou o João Luiz e ambos os
+guardas, com as armas descançadas na rocha, desfecharam ao mesmo tempo,
+quasi instinctivamente.
+
+Do lado do mar pareceu-lhes que viera um gemido, mas, passada a
+obcecação momentanea produzida pelos clarões, já não enxergaram a
+embarcação.
+
+O silencio da noite era quebrado tão sómente pelo arfar do oceano junto
+á rocha.
+
+O estampido fez com que chegassem, em acto continuo, o chefe fiscal e
+os doze guardas.
+
+A denuncia tinham-a dado provavelmente os mesmos contrabandistas,
+marcando para outro sitio o desembarque, a fim de desnortearem a gente
+da alfandega.
+
+O chefe zangou-se muito, por deixar de se fazer a tomadia, mas a
+final cahiu em si e absolveu o guarda, pela consideração de que
+contrabandistas de tanta audacia não se venceriam ás primeiras. Demais,
+o perigo tinha-lhe merecido sempre um especial desagrado.--Duas horas
+depois dormia em casa a somno solto.
+
+O João Luiz esteve de serviço toda a noite.
+
+ * * * * *
+
+Rompeu formosa a manhã immediata.
+
+Quando o guarda se recolhia a casa, o sol já ia alto e lançava myriades
+de setas de oiro atravez da atmosphera, lavada pela chuva dos dias
+anteriores. O mar, á direita, encrespava-se em ondas curtas, e alongava
+na praia linguas de espuma.
+
+Quasi ao entrar na Horta o João Luiz avistou no areal, á borda da
+agua, um grupo de homens a rodear curiosamente o que quer que fosse.
+Chegaram-lhe simultaneamente aos ouvidos, uns gritos de mulher.
+
+Approximou-se e viu um cadaver extendido na areia.
+
+Reconheceu o Estacio.
+
+No peito, que a camisa aberta e ainda molhada deixava a nu, havia um
+buraco pequeno, redondo, negro, de onde gotejava um tenue filete de
+sangue.
+
+A mulher do contrabandista, de joelhos ao pé do marido, soltava
+gritos penetrantes, arrepellava o cabello e cahia de vez em quando
+desamparada sobre o cadaver, em cujo rosto se desenhava constantemente,
+persistentemente, a grande ancia que precedera a morte e que a morte
+não pudera apagar.
+
+A infeliz cahiu finalmente n’uma atonia profunda, e sentou-se na areia,
+sem despegar os olhos de cima do morto, e murmurando no meio de um
+tremor:
+
+--Ai! O meu rico marido! O meu rico marido!
+
+Ao pé da mãe o _Manilinho_ chorou em quanto a viu chorar. Depois,
+quando ella socegou, approximou-se do pae, poz-lhe as mãosinhas na
+cara, e disse a medo, muito admirado:
+
+--Como o pae está frio! E sempre a dormir!
+
+O guarda, horrorisado de si mesmo, pois fôra talvez a bala da sua
+espingarda que tinha morto o irmão, olhava para o pequenino, e ao vel-o
+tão innocente e tão divinal, levantou os olhos para o ceo, e perguntou
+porque seria que Deus, mandando á terra anjos como aquelle, os não
+deixava fazer milagres.
+
+
+[Ilustração]
+
+
+
+
+[Ilustração]
+
+
+ Piloto
+
+
+JÁ vinha anoitecendo, quando o Sergio, de pé descalço e com a trouxa da
+roupa enfiada n’um cajado e pendente do hombro, saltou da estrada para
+a rocha.
+
+Sobre o horisonte occidental as nuvens, em longas fitas franjadas,
+perderam a claridade vivissima de um quarto de hora mais cedo, e tomam
+uma côr plumbea esbranquiçada: pelo resto do ceo alastra-se um azul
+uniforme, que a diminuição de luz vae tomando mais opaco.
+
+Convencido de que ninguem o vigiava, foi descendo a escarpa de rocha
+em direitura ao mar, onde se avistava, muito ao longe, um navio, com as
+velas pandas de vento.
+
+--Se alguem me viu é que está o diabo, pensou o rapaz, e novamente
+lançou a vista pela ribanceira acima, e pela enfiada dos pincaros,
+que recortavam lá muito no alto, sobre o azul, o seu perfil dentado e
+sombrio.
+
+Áquella hora, a estrada é pouco frequentada. Só de vez em quando lá
+passam tres ou quatro trabalhadores, que foram dar o dia á Horta, e que
+voltam para casa, a bom andar, antegostando a ceia, só de avistarem uma
+ou outra chaminé lançando pachorrentamente, para a limpidez do ar, uma
+espiral de fumo.
+
+O Sergio, depois de olhar por muito tempo, a ponto de os objectos
+fixados se lhe tornarem quasi indistinctos, poisou no chão a trouxa,
+onde vinha toda a sua roupa e um bôlo torrado rescendendo a milhã
+cheirosa, e sentou-se com os pés muito perto da agua, que chapinhava
+brandamente no interior da pequena angra formada, n’aquelle sitio,
+pelos rochedos da costa sueste do Fayal.
+
+E tempos sem fim, com os olhos fitos em o navio, que bordejava a boa
+distancia de terra, ficou absorto no meio d’aquelle grande silencio,
+esperando pela canoa, que havia de leval-o a occultas para bordo da
+baleeira, conforme tinha tratado com um _senhor da villa_.
+
+Sem saber como, foi perdendo a grande resolução que trazia de
+embarcar, para fugir ao recrutamento e não ir para a Terceira, para o
+_Castello_.
+
+Obedecia tambem a outra razão: na baleeira ia ter á America, á
+_Calafóna_, onde tinha enriquecido o Luiz Garcia, e aquelle senhor
+já velho, dono de uma casa de sete janellas ao pé da egreja da Féteira,
+e tantos outros!
+
+Nada! O Sergio estava bem decidido, tanto que viera para alli, depois
+de dar um abraço na mãe e outro no irmão, mais novo do que elle dois
+annos.
+
+Por isso mesmo não era capaz de saber o motivo por que sentia uma ancia
+no peito, um aperto na garganta, e tanta vontade de chorar.
+
+Talvez fosse porque a mãe o não tinha acompanhado até ali, para
+despedir-se.
+
+--Ora! Se foi justamente para a coisa não dar tanto nas vistas! Um
+visinho não lhe queria bem e podia ir participar á _villa_. Ha
+gente tão má!...
+
+Mas, fosse o que fosse, o rapaz sentia-se a modos exquisito, e estava
+já a pedir que apparecesse quanto antes a canôa.
+
+O que havia de lembrar-lhe agora!...
+
+Todas as historias que lhe tinham contado das baleeiras: a de um
+capitão que moía a tripulação a pontapés e chicotadas. Um dia o
+cosinheiro respondeu-lhe com uma bofetada, que o estirou no convez.
+Foi logo mandado pôr a ferros, e nunca mais ninguem o viu. Contavam
+depois os de bordo, que tinha sido cosido a facadas pelo commandante, e
+atirado pela borda fóra.
+
+--Mentiras, disse por entre dentes o Sergio, e poz-se a olhar para o
+mar, a ver se lobrigava a canôa.
+
+Não viu nada.
+
+--Dando se mal na baleeira, desembarcava em _Béteféte_[1], e havia
+de ir parar á _Calafóna_, onde o ouro é tanto, que até se cava com
+o sacho!
+
+Mas n’esta occasião lembrou-se de uma coisa, que o Luiz Garcia lhe
+dizia ás vezes--que por cada um que voltava vivo, ficavam por lá
+muitos, mortos sem se saber de que, se de fome, se de cansaço...
+
+--Pois sim! Apesar d’isso vão de todas essas ilhas navios carregadinhos
+de gente para a America. Mal feito fôra não ir eu tambem, concluiu o
+Sergio.
+
+Ouviu-se a curta distancia um latido, e logo depois um cão pequeno, de
+pello curto, corria para junto do Sergio, muito festeiro, muito alegre.
+
+--Olha o Piloto! Vae-te d’aqui, diabo!
+
+E deu-lhe um pontapé, que o animal evitou fugindo-lhe com o corpo. Mas
+d’alli a um instante já voltava, caracolando-se.
+
+--Txeta, _Caim_! exclamou o Sergio mais zangado ainda, e atirou
+uma pedra ao cão, acertando-lhe n’um vasio.
+
+O Piloto, ganindo e de cabeça baixa, subiu a rocha, deitou-se no cimo
+e poz-se a espreitar o dono, com o focinho extendido sobre as patas, e
+os olhos fulvos brilhando na meia obscuridade, como dois carvões mal
+apagados.
+
+--Admira que viesse dar commigo! pensava o Sergio, sentando-se de novo.
+Se o tinha fechado no palheiro!...
+
+Insensivelmente foi voltando ás idéas de momentos antes.
+
+Mas com essas vinham outras...
+
+Sim! Quando o cão fosse d’alli para casa, havia de empurrar a porta com
+o focinho, e se não a podesse abrir, ficaria a raspar com as unhas até
+que apparecesse alguem, como tinha feito ainda na vespera, ao tornar
+com o dono da _folga_ do José Pedro.
+
+--Mas esta noite volta sósinho!
+
+E a este pensamento o Sergio sentiu a garganta apertar-se-lhe ainda
+mais, porque se lembrava de que a pobre mãe teria a mesma idéa e havia
+de chorar pelo filho, que já andaria a essa hora sobre as aguas do mar.
+
+Para esquecer-se, começou a recordar-se da _folga_, onde tinha
+bailado com a Anna cinco _chamaritas_ a fio, a ponto de o José
+Pedro, já de mau modo, dizer o costumado «Caras novas ao terreiro!»
+
+Era boa rapariga a Anna. Quando o vigario da Féteira os via juntos a
+conversarem, dizia-lhes por graça: «A modo que vocês ainda me hão de
+dar que fazer lá na egreja.»
+
+Um e outro ficavam encarnados como uns pimentões, mas não queriam mal
+ao sr. padre por _entícar_ com elles. Se andava sempre com o
+_canîcînho_ na agua!...
+
+Lembrou-se depois de que a Anna, apesar do que lhe tinha promettido,
+podia cansar-se de esperal-o e casar com outro, por julgar que elle,
+colhendo-se á solta, faria como os passaros, e não voltaria ao laço. A
+mesma peça tinha pregado a Aurelia ao João Furtado.
+
+Só com esta desconfiança, o rapaz sentiu uma afflicção enorme, que lhe
+subia ao peito e o afogava: fincou os cotovellos nos joelhos, apertou a
+cabeça entre as mãos e poz-se a chorar desapoderadamente.
+
+Só tinha chorado assim no dia da morte do pae. Uns homens mal encarados
+vieram metter o defuncto na tumba. A creança poz-se nos bicos dos pés e
+deitou a cabeça por cima de um dos lados d’aquella caixa preta: quando
+viu o pae lá dentro, muito amarello, imaginou que aquelles homens é que
+lhe haviam feito mal, que o tinham _pisado_ muito e desatou n’uns
+taes gritos, que ninguem o pôde calar.
+
+D’ahi por deante nunca mais chorara. Por isso os olhos lhe tinham
+tantas lagrimas e o peito tantos soluços.
+
+O Piloto veiu no entretanto chegando-se para o dono, manso e manso;
+pousou-lhe as patas deanteiras sobre a perna e começou a lamber-lhe
+as mãos e a cara com uma grande meiguice, como se quizesse consolal-o
+n’aquella dôr.
+
+O rapaz não teve alma de enxotal-o. Afigurou-se-lhe que não era o cão,
+mas a familia, a casa, todos os sitios por onde o Piloto o seguia, que
+estavam a chamal-o carinhosamente; que a mãe e a Anna lhe diziam ao
+ouvido, baixinho: «Não te vás. Podes ser feliz na tua terra, com a tua
+mãe, com a tua mulher!»
+
+Levantou-se de chofre, poz a trouxa ao hombro, e galgou a rocha.
+Chegado ao cimo, estacou duvidoso:
+
+--Mas então ia parar ao _Castello_!...
+
+Um senhor da villa promettera-lhe uma vez, que se fosse com elle no
+tempo dos votos, o livraria de ir para soldado.
+
+--Não lhe custava a deitar um papel na egreja, affirmava o rapaz.
+
+Na pequena angra entrava n’este momento a canôa. Uma voz dizia
+asperamente:
+
+--Onde estará metido aquelle diabo?
+
+O Sergio, já de longe, ouviu isto, e agachou-se um pouco, receioso de
+que o vissem apesar do escuro que fazia.
+
+O Piloto, diante d’elle, com as orelhas fitas, olhava ameaçador para o
+lado do mar.
+
+--Ó sior, não está ninguem, dizia uma voz com accento africano. O moço
+arependeu-se.
+
+--Marau! Tinha jurado!...
+
+E chamou outra vez:
+
+--Eh! rapaz do diabo!... Nada!
+
+Os remos bateram na agua.
+
+ * * * * *
+
+Quando um quarto de hora depois o Piloto entrou no quintal da casa,
+estava tão fóra de si, que até ladrou ao gato. Este não fugiu, mas,
+resentido pela singularidade do ataque, levantou a mão severamente para
+esbofetear o companheiro. E assoprou.
+
+O Piloto tinha desculpa: não voltava sósinho.
+
+
+[Ilustração]
+
+
+
+
+[Ilustração]
+
+
+ Na Vindima
+
+
+ESTÁ prestes a findar a rude labutação.
+
+Os cachos túmidos, e alourados pelo sol estivo, já quasi desappareceram
+das videiras, e o môsto, o sangue da vinha, corre a flux, denso e
+espumante, pela bica do lagar, espremidas as uvas sob os pés dos
+homens, que aturam tempos sem fim n’aquelle trabalho, como se os
+vapores saídos do engaço lhes augmentassem as forças com a excitação da
+meia embriaguez.
+
+A mesma animação nos demais trabalhadores, que, ajoujados ao peso dos
+cestos vindimos, levam os cachos para o lagar escuro e fresco. Qual
+d’elles, para expandir a alegria ou sentir menos a faina, entôa a
+meia voz um dos cantos populares da ilha do Pico, dando á melodia mais
+triste uma expressão festival.
+
+Alguns, para mourejar na freguezia de S. Roque, vieram de longe, de
+muito longe, e estão alli ha perto de um mez, separados das familias,
+anciosos por lhes ganharem um pedaço de pão.
+
+Um d’estes era o João Ignacio.
+
+Tinha abalado da outra banda da ilha, dos cabeços perdidos nos matos
+sobranceiros á villa das Lages, deixando a mulher, as filhas--duas
+moçoilas frescas e desempenadas, e o filho, um rapazote que dentro em
+pouco já poderia ajudal-o.
+
+A mulher, coitadinha! estava muito acabada, não pela idade, mas pela
+doença.
+
+Pois o João Ignacio ia ter uma grande satisfação.
+
+Mandado pela mãe, o pequeno tinha feito a enorme caminhada e já andava
+alli perto, deitando inculcas, para saber onde encontral-o. Trazia-lhe
+noticias frescas de todos os de casa: da doente, das irmãs, e até do
+Calçado, muito rosnador com a velhice, e da porca, que estava gorda,
+gorda--uma perfeição de animal!
+
+O João Ignacio topou o filho á porta do lagar, onde tinha despejado
+mais um cesto.
+
+Deitou-lhe a benção, arredou-o de si um quasi nada para miral-o de
+alto a baixo, e tendo-o visto são e escorreito, deu-lhe uma palmada no
+hombro.
+
+--Basta que sim! Estaes rijo como...
+
+E sem enunciar o termo da comparação, perguntou pressuroso:
+
+--Como vae a porca?
+
+--_Álhora!_... O pae então pergunta-me pela porca, e não quer
+saber da minha mãe?
+
+--Eh! rapaz! A porca custou dinheiro e vossa mãe não me custou nada!
+
+
+[Ilustração]
+
+
+
+
+[Ilustração]
+
+
+
+
+ O Jantar Do General
+
+
+NÃO sei com certeza se o general tinha desembarcado nas praias do
+Mindello.
+
+O Garcez, coronel de caçadores 12 e cultor eximio da _arte de dizer
+mal dos seus superiores_, affirmava que não; o Dionysio, soldado
+de veteranos, dizia que sim, e jurava o até, se alguem se mostrava
+duvidoso.
+
+Ora o veterano tinha razão para estar bem informado, porque fôra
+impedido do general, durante trinta e oito dos quarenta annos de
+serviço attestados pelas quatro divisas brancas, que se lhe estiravam
+pela manga da fardeta. Verdade é que ás vezes o Dionysio tinha
+singulares confusões--patetices de seiscentos diabos, qualificava o
+patrão.
+
+Uma, principalmente foi originalissima. Uma?... Uma serie d’ellas.
+
+O general commandava n’aquelle tempo a nôna divisão militar, hoje
+defuncta.
+
+Na Madeira a vida corria-lhe em maré de rosas.
+
+Tendo-se recordado do inglez aprendido em Bragança com o major do
+seu regimento,--um official britannico que acompanhára D. Pedro IV a
+Portugal e fizera toda a campanha,--o general tornou-se frequentador
+assiduo das sociedades funchalenses onde predominava o elemento
+estrangeiro.
+
+Pelo seu espirito de velho solteirão impenitente, chegaram até a
+perpassar planos casamenteiros, confusos e indeterminados no principio,
+claros e definidos logo que appareceu no Funchal miss Lorely, a filha
+de um lord, viva e _espiègle_ como uma parisiense, e exuberante da
+formosura peculiar das inglezas.
+
+Então o antigo cadete de cavallaria 10, ou não sei quantos, formou
+planos estrategicos com uma pericia, que talvez o não acompanhasse
+até ao campo de batalha. Pôz ao serviço d’aquelle tardio amor todos
+os recursos do seu espirito, que eram poucos, e todas as vantagens da
+sua posição official, que eram muitas. Passeios militares, exercicios,
+tudo foi largamente aproveitado. E de tarde, no atrio do palacete das
+Angustias, onde morava a seductora _miss_, tocava sempre a banda
+regimental, cujos effeitos maravilhosos Eduardo Pailleron preconisou,
+muito depois e com infinito espirito, no segundo acto da _Edade
+ingrata_.
+
+Mas tambem o que elle soffria!...
+
+A prima dos Norfolk e dos Buckingam tinha sabido ou adivinhado que o
+senil Lovelace professava, com o maior fervor, o culto do dinheiro.
+Jurou logo aos seus deuses, fazer do seu apaixonado um perdulario; e
+tão bem se saiu da empresa, que o general offereceu d’alli a pouco um
+_lunch_, a ella e á officialidade do batalhão, n’um dia de passeio
+militar a Camara de Lobos--o general que, de tanto jantar fóra de casa,
+«tinha avenca na chaminé», segundo a phrase malevola do Garcez.
+
+Ora foi justamente por esta occasião, que o Dionysio cahiu na tal
+serie de enganos. O patrão--Dionysio depois de reformado continuava a
+servil-o--estava a arranjar-se para ir jantar a casa de _miss_
+Lorely. A agua circassiana terminara o seu papel, e entrava em scena
+o espartilho, quando surgiu um tormento, que fez perder á victima o
+desejo de ir ver a beldade. O general acabava de sentir no joelho
+esquerdo as presas aguçadas da gotta, a morderem-o cruelmente. A dor
+foi tal que lhe arrancou um grito. Ataque para durar tres dias pelo
+menos.
+
+--Mas então era preciso mandar uma desculpa.
+
+Pegou numa penna e dispoz-se a escrever no bilhete de visita algumas
+palavras em inglez.
+
+Por fatalidade o major só lhe tinha ensinado a falar a lingua de Pope;
+quanto a escrevel-a, não se lembrou d’isso. Nem tudo póde lembrar.
+
+--Ó Dionysio?
+
+--Prompto, meu general!
+
+--Tu sabes onde mora aquella senhora ingleza, a quem eu costumo
+visitar!...
+
+--E a quem faz o seu pé d’alferes?
+
+--Mau, Dionysio! Sabes onde ella mora?
+
+--Não saberei eu outra coisa!
+
+--Pois então leva-lhe este bilhete de visita, e dize á creada que mando
+muitos cumprimentos á senhora, e que lhe peço desculpa de não ir hoje
+lá jantar, mas que estou doente.
+
+--Isso não é nada. Ande, vá, olhe que em casa não se lhe arranjou
+comida.
+
+--Cala a bocca, pateta! Dize-lhe tambem que estou de cama e que por
+isso não posso escrever-lhe.
+
+--Éna que patranha!...
+
+--Meia volta á direita, maroto, e não te esqueças de nada! Estás cada
+vez mais urso.
+
+--Somos dois, meu general! respondeu o velho, rodando sobre os
+calcanhares e caminhando para a porta, em quanto o patrão lhe atirava,
+por entre dentes, os epithetos de «burro, camello e animal». Ao mesmo
+tempo agarrava o joelho esquerdo com ambas as mãos, e soltava uns
+gemidos surdos, que tinham o que quer que fosse de grunhidos.
+
+De repente gritou:
+
+--Olha lá!
+
+O soldado appareceu á porta, e olhou desconfiado para o general.
+
+--Traze-me jantar da hospedaria do costume. Não te esqueças!
+
+--Sim senhor, fique descançado.
+
+E saíu.
+
+ * * * * *
+
+Á porta da casa das Angustias, situada no meio de um esplendido jardim,
+o Dionysio foi recebido pela Luiza, creadinha madeirense, que á força
+de lidar com inglezes se fazia entender por elles, e assim arranjava,
+em todos os invernos, excellentes casas para servir.
+
+O veterano, depois de lhe deitar uma olhadela brejeira, apresentou o
+bilhete.
+
+--O meu general manda isto á senhora, porque não póde vir cá hoje. Está
+com o seu rheumatico.
+
+--_Saim?_ perguntou a creada.
+
+--_Saim, menaina_, disse o Dionysio, que nunca perdia occasião de
+imitar a pronuncia madeirense.
+
+--A _mecê_ a modo que está _tirando precipicio_ commigo!
+replicou, meio formalisada, a creadita.
+
+--_Precepeicio!_... A minha _mecê_ não quer tirar-lhe nada.
+Agora se eu fosse mais novo uns trinta ou quarenta annos...
+
+--Se fosse mais novo? perguntou a rapariguinha já a sorrir.
+
+--Mau! Mau! Basta de conversas, que o patrão mandou-me levar-lhe o
+jantar.
+
+--De cá?
+
+--Pois se fôr de cá, melhor ainda, por certos motivos... Cá é que elle
+vinha comer o jantarinho, e por conseguinte tambem de cá lh’o pódem
+mandar. Pois não acha?
+
+A Luiza transmittiu fielmente o recado a sua ama. O pedido final
+produziu o effeito hylariante de uma boa caricatura do _Punch_.
+
+Morta de riso, mas duvidosa ainda, não obstante a fama de Harpagão
+do seu apaixonado sexagenario, miss Lorely mandou a Luiza interrogar
+novamente o veterano.
+
+--Ó mulher de ... não sei que diga, já lhe expliquei que elle queria o
+jantar.
+
+D’alli a pouco um creado, de casaca e gravata branca, entregava ao
+soldado um grande açafate, donde se exhalava um perfume capaz de fazer
+crescer agua na bocca ao menos glotão.
+
+ * * * * *
+
+O general quando viu o Dionysio ir tirando do açafate, que lhe derreara
+os braços, uns após outros, muitos pratos de porcelana finissima com
+excellentes iguarias, ia tendo uma syncope.
+
+--Quanto lhe não custaria aquelle jantar? pensou, e gritou logo para o
+veterano:
+
+--Ó patife, não me dirás onde foste buscar tudo isso? Talvez a
+essa hospedaria da Entrada da Cidade onde pagam uma libra por dia
+os hospedes permanentes! Um jantar assim ... que sei eu?... é um
+dinheirão!...
+
+--Cale-se para ahi, resmungou o Dionysio. É um jantar de principe e não
+lhe custa um vintém!
+
+--Não custa!
+
+Dionysio explicou tudo.
+
+O general caíu prostrado n’uma cadeira, com a perna ainda mais
+espicaçada pela gotta. Depois, tomando uma resolução heroica, tirou
+tres libras da bolsa.
+
+--As ordenanças ainda ahi estão?
+
+--Não foi o meu general o proprio que as mandou para o quartel?
+
+--Bem! Pois então irás tu novamente, mas vê lá não me faças outra
+asneira!...
+
+--Outra! Qual foi a primeira, diga!
+
+[Ilustração]
+
+--Toma lá este dinheiro, vae á loja de bebidas da Carreira, onde eu
+te mandei no outro dia, e pede ao caixeiro que te dê seis garrafas de
+vinho da Madeira do melhor.
+
+--Gasta-se tudo isto?
+
+--Pois de certo.--E o general apertou de novo o joelho.--Elle que te
+empreste um cesto, e vae levar o vinho, n’um rufo, a casa da ingleza,
+com mais este bilhete de visita... Dize á senhora que te enganaste e
+que eu amanhã lhe explicarei tudo.
+
+ * * * * *
+
+Em quanto o general, pelo sim pelo não, ia comendo o jantar, Dionysio
+desempenhava conscienciosamente a commissão, até chegar á porta de
+_miss_ Lorely, e tambem depois de entregar o vinho á creada.
+
+D’alli a pouco voltou a Luiza com meia libra em oiro, e deu-a ao velho.
+
+--A senhora manda muitos cumprimentos...
+
+Dionysio interrompeu-a:
+
+--Isto é para pagar o vinho?...
+
+A creada desatou a rir.
+
+--Ah! Você ri-se? Pois se a senhora quer pagar o vinho, então ha de pôr
+para aqui mais alguma coisa. Diga-lhe que não é uma, que são seis meias
+librinhas--tres libras!
+
+A Luiza, rindo a bandeiras despregadas, foi levar o recado á ama, que
+riu muito mais ainda.
+
+D’alli a pouco recebia o Dionysio tres libras.
+
+--Aqui levo dinheiro de sobra, disse elle, e ia entregar honradamente a
+meia libra do principio.
+
+--Essa é para a _mecê_, fez-lhe notar a creada.
+
+--Acceito para não fazer desfeita. Adeusinho, minha flor, e obrigado!
+
+ * * * * *
+
+Quando o general acabava de jantar, chegou o Dionysio com as tres
+libras.
+
+A explicação foi longa e calorosa.
+
+Tanto gritou o amo como o creado.
+
+--Ora ainda em cima! Por eu lhe zelar o que é seu! respondia o
+Dionysio, indignado. Se vocemecê gastasse as tres libras, dava-lhe p’ra
+ahi alguma coisa, e nunca mais prestava para nada.
+
+O caso é que o general parecia ter-se restabelecido instantaneamente
+da gotta. Vestiu-se á pressa, e foi ás Angustias, pedir desculpa a
+_miss_ Lorely.
+
+A ingleza perdoou tudo, e confessou ao seu apaixonado que nunca se
+tinha divertido tanto. Partícipou-lhe ao mesmo tempo que, em voltando
+a Inglaterra, casaria com um primo, de quem era noiva desde os quinze
+annos.
+
+Nem por isso o general deixou d’alli em diante de jantar nas Angustias,
+nem a musica de tocar no atrio do palacete.
+
+Se perdia a noiva, não queria perder tambem os jantares.
+
+Quanto ao Dionysio...
+
+Continuou trapalhão como sempre.
+
+E por isso eu, não me fiando no que elle dizia e sem paciencia para
+tirar a limpo este ponto historico, termino como principiei:
+
+Não sei com certeza se o general tinha desembarcado nas praias do
+Mindello.
+
+
+[Ilustração]
+
+
+[Ilustração]
+
+
+
+
+ O Aprendiz De Barbeiro
+
+
+A Maria José saiu da Candelária de noite escura, e por isso quando
+chegou á Magdalena não estava ainda um unico freguez a fazer a barba na
+loja de João Cardoso.
+
+O pequeno d’ella, o Antonio, apenas a viu, largou uma navalha que
+estava afiando no assentador e correu para a porta.
+
+A mãe puxou-o para fóra, porque não queria que o mestre ouvisse o que
+ella tinha que dizer ao filho.
+
+Vergonhas não se querem assoalhadas.
+
+Olhou para o rapaz, e a voz prendeu-se-lhe na garganta. Tinha pejo, mas
+por fim decidiu-se. Ella bem queria lidar como as outras mulheres, que
+a bem dizer fazem por toda a ilha o dobro do trabalho dos homens, mas
+não podia, por causa d’aquella mão aleijada.
+
+Já não sabia com que cara apparecesse ás visinhas. Tinham todas muita
+pena d’ella, é verdade, ajudavam-a a viver, mas ás vezes, por muita
+vontade que tivessem, tambem não podiam. Só Deus sabe das faltas, que
+cada um padece!
+
+Pedir aos ricos, nem pensar n’isso... Quem nunca soube o que é não ter,
+menos acode aos que precisam.
+
+E vae d’ahi lembrou-se, custando-lhe muito, de vir pedir alguma
+coisinha ao filho.
+
+O Antonio bem queria fazer-lhe a vontade, mas como? A féria d’aquella
+semana já estava gasta n’um fato, que tinha ajustado dias antes, e por
+signal bem barato. O mestre João não queria ver em casa maltrapilhos,
+não tanto por si, mas por ’môr dos freguezes. Á sua loja iam os
+senhores mais ricos da villa.
+
+--Não pódes então dar-me nada? perguntou a Maria José, com os olhos
+rasos de lagrimas.
+
+--Posso, sim senhora, mas é tão pouco... A minha mãe bem sabe que se
+muito tivesse... Porque estou eu aqui? Para mais a míudo lhe poder
+fazer bem, e para ir vel-a de vez em quando. Mas um dia pego em mim e
+abalo n’uma d’essas baleeiras!
+
+--Lá isso não, filho, só se queres matar-me! Bom de lei és tu. Excusas
+de m’o dizer! Saes todo a teu pae. Ah! Que se aquelle Caim do Gaspar
+Dutra não m’o tivesse matado!... Coitadinho! Ainda estou a vel-o a
+arquejar, com a cara toda suja de sangue--parecia um bicho!--os olhos
+já envidraçados a fincarem-se em mim ... como a querer falar, mas sem
+poder! Era para me dizer quem o tinha atirado do alto da rocha.
+
+Mas a esse respeito não restavam duvidas á Maria José.
+
+É verdade que na audiencia em que o Gaspar Dutra foi responder ao Caes
+do Pico, porque o suspeitaram do crime, visto andar ha muito de rixa
+com o Manoel Luiz, o absolveram por falta de provas, e não appareceu
+uma só testemunha de vista.
+
+Mas d’ahi a dias, depois de o malvado embarcar para a America, por ter
+ficado muito arrastado com os gastos da justiça, appareceu em casa da
+viuva, já perto da noite, a tia Quiteria que tinha uma fazendinha na
+rocha, mesmo ao pé da outra por que o Gaspar Dutra e o Manoel Luiz
+andavam desavindos.
+
+A velha tomou de parte a Maria José e depois de obrigal-a a jurar que
+não diria nada a ninguem, em quanto ella fosse viva, contou-lhe toda a
+historia do crime. Estava perto do sitio, mas nem um nem outro a tinham
+visto.
+
+--O Gaspar Dutra é que começou a _abregoir_. O Manoel Luiz
+desesperou-se e disse-lhe uma má palavra.--Os santos estão no altar!--O
+outro poz-se fulo, correu para o Manoel e colhendo-o á falsa fé,
+tal geito lhe deu que o _prantou_ pela rocha abaixo. O corpo a
+principio não levava muita força, mas depois caíu tão depressa, que
+nem uma bala de espingarda. Quando deu no chão da rocha, onde ficou
+estatelado e de braços abertos, vinha já de uma altura de tres ou
+quatro casas de sobrado. Rebentou-lhe de certo alguma coisa lá por
+dentro, tanto que o pobre do homem não disse mais palavra na meia hora
+que ainda viveu.
+
+A Quiteria desculpou-se de se ter calado áquelle respeito, dizendo que
+o Gaspar Dutra e o irmão não eram _boas folhas_. Se o matador, por
+causa d’ella, fosse parar á costa d’Africa, o outro era muito capaz
+de lhe fazer alguma, que désse que falar. Era o Gaspar tão ruim, que
+andando embarcado tinha querido matar o cosinheiro de bordo, e levara
+n’essa occasião duas navalhadas, de que lhe resultou o signal em cruz,
+que tinha na barba, do lado esquerdo.
+
+O Antonio ouvira dezenas de vezes a mãe contar a historia, mas nunca
+tinha sentido tamanha amargura, um desejo tão furioso de vingança.
+
+Estivesse o pae ainda vivo e a mãe não precisaria de pedir esmola, e já
+elle teria ido para a America enriquecer, e não estaria alli a ganhar
+tão pouco.
+
+E lembrou-se do pae--das festas que elle lhe fazia quando vinha á noite
+para casa, seguido pela _Boníta_, a cadella de gado. Ceiavam, e o
+pequenito para adormecer queria sempre que o pae o deitasse no collo.
+O Manoel Luiz fazia-lhe a vontade, e mal o Antonio estava pegado no
+somno, despia-o todo, deitava-o na cama, com um cuidado, um carinho, de
+que nem a propria mãe seria capaz.
+
+Quando o pae morreu, o pequeno tinha oito annos. Mostrou pena, como se
+já fosse uma pessoa grande.
+
+N’aquella manhã renascia a dôr.
+
+A mãe com tanta precisão de dinheiro para matar a fome, e o filho tendo
+só um pataco que lhe dar!
+
+O mestre João era muito agarrado ao dinheiro e não lhe emprestaria
+nada.
+
+Metteu a mão na algibeira, levou-a muito fechada até á mão direita da
+Maria José, e deixou-lhe a moeda entre os dedos, escondida. Beijou a
+mão da mãe e poz-se a chorar.
+
+N’isto a voz de João Cardoso, chamou de dentro imperiosamente:
+
+--Antonio! Ó Antonio!
+
+O rapaz entrou na loja, de corrida.
+
+Já lá estavam dois freguezes.
+
+ * * * * *
+
+A concorrencia foi grande n’aquelle domingo.
+
+Todos queriam apresentar-se na missa conventual com a cara bem
+escanhoada, para que nada deslustrasse o fato de ver a Deus.
+
+João Cardoso, sem perder a presença de espirito, ia desbravando os
+matagaes incipientes que, por ausencia da navalha, tinham brotado
+n’aquella semana.
+
+Animou-se gradualmente a conversa. De um assumpto politico--a escolha
+do futuro regedor--saltou para o phylloxera, que tinha apparecido pouco
+antes n’uma vinha do Fayal.
+
+--Aquillo--opinava o Estacio Manuel--é pelos modos um bicho que come a
+raiz da cepa, como o caruncho roe a madeira, e o gusano o costado dos
+navios.
+
+--Bicho me pareces tu--atalhou o Amaro, do seu canto.--Se fosse bicho
+podia-se lá dizer que tinha apparecido uma nódoa d’elle!...
+
+--Nódoa?
+
+--É o que ainda agora li no _Fayalense_. Nódoa de bicho, não
+entendo.
+
+O Estacio não se deu por vencido:
+
+--É que as terras aonde elle chega ficam pretas como esses
+_mysterios_, que ahi temos por toda a ilha.
+
+O mestre barbeiro ensaboava, n’esta occasião, a cara do terceiro
+freguez; suspendeu a operação e voltando-se para o auditorio, exclamou
+sentenciosamente:
+
+--Sabem o que lhes digo? que se essa praga de nome tão arrevezado salta
+do Fayal para cá, adeus vinhas do Pico! É cada qual entrouxar a roupa e
+ala para _Bastão_![2]
+
+Não tinham acabado ainda os applausos provocados pelo dito, quando
+entrou na loja um homem trigueiro, muito alto, largo de hombros e um
+tanto desmanchado no andar. Na orelha direita d’este colosso luzia
+uma arrecada lisa e pequena, e nos pulsos e nas costas das mãos
+alastravam-se, em prodiga tatuagem, ancoras e estrellas.
+
+O sino da egreja proxima tocou passados instantes, chamando para a
+missa. Era a terceira vez.
+
+Ficaram só dois freguezes na loja. Um, que o mestre começou a barbear,
+tinha ouvido a missa das almas. O outro, o da arrecada, coube ao
+Antonio, e não mostrou dar grande attenção ao chamar pressuroso do sino.
+
+No entretanto pelo largo batido de sol passavam azafamadas e alegres
+as raparigas do povo, com os lenços de chita, de pontas desamarradas,
+presos á cabeça somente pelos chapeus de palha de abas largas e copa
+baixa, cingida por um cordão de lã encarnada. Para ellas a missa
+não é só uma devoção, é o repouso, o esquecimento momentaneo de uma
+existencia monotona e trabalhosa.
+
+O Antonio não podia mais. Ainda bem que era aquelle o ultimo freguez!
+Depois da missa não viria mais nenhum. Não sabia como se tinha
+aguentado tanto tempo. O seu desejo era fugir d’alli, e, quando ninguem
+o visse, desatar a chorar desconsoladamente, para ver se lhe passava
+aquella ancia, que o affligia. Só por grande milagre não enchera de
+lanhos as caras dos freguezes. Felizmente aquella barba depressa se
+fazia. Não tinha menos de quinze dias, pouco resistia á navalha.
+
+O rapaz teve de repente um deslumbramento. Na face esquerda do homem
+que estava alli, nas mãos d’elle, havia um signal, que a principio se
+não podera ver, porque a barba o escondia, e que era exactamente egual
+ao do Gaspar Dutra: duas cicatrizes em cruz!
+
+Perguntou, com a voz algum tanto suffocada:
+
+--O senhor é cá do Pico?
+
+--Eu? Sou. E porque?...
+
+--É da Candelária?
+
+--Quem t’o disse?
+
+--Quiz-me parecer. E chama-se?...
+
+--Gaspar Dutra. Tens alguma herança para me entregar? Ha-de ter morrido
+muita gente minha, n’estes oito annos que estive na America.
+
+Não havia duvida.
+
+O rapaz sentiu nos ouvidos um zumbido ensurdecedor, faltou-lhe a vista,
+passou-lhe um calafrio por todo o corpo. Devia ser assim a approximação
+da morte!
+
+Tornou a encarar toda a sua desgraça. Exerceu, porém, um esforço
+violento sobre si mesmo, e serenou apparentemente.
+
+O Gaspar não suspeitou de nada. Via-o de costas, afiando a navalha. Por
+fim disse-lhe de repellão:
+
+--Anda! Acaba com isto!
+
+--Sim, senhor...
+
+--Tu estás parvo! bradou-lhe o mestre, do outro lado da loja, sem
+largar a cara, que já tinha meio rapada.
+
+O aprendiz poz machinalmente mais sabão na barba do freguez.
+
+--És da Candelária? continuou este. Conheces lá muita gente?
+
+--Conheço... Conheço a Maria José, viuva do Manoel Luiz... O senhor
+conhece-a?
+
+E os olhos, que se fitavam no fio da navalha virado para a garganta do
+Gaspar, levantaram-se n’uma interrogação anciosa.
+
+--Olá se conheço! E tambem conheci o marido... Um grande marau!
+
+O Antonio teve um espasmo. Os nervos contrahiram-se-lhe medonhamente,
+e o gume do aço cortou bem fundo no pescoço bronzeado do assassino,
+abrindo uma ferida alongada, de onde o sangue espadanou com violencia.
+
+O Gaspar ainda ergueu os braços, soltou um arranco, estrebuxou e caíu
+de lado, no chão. Na toalha, presa por baixo da barba, o sangue formava
+uma larga mancha vermelha, que se foi extendendo a mais e mais.
+
+João Cardoso e o outro homem, extaticos, boquiabertos, transidos de
+pavor, não ousavam approximar-se. Por fim, em quanto o freguez corria
+para a porta a gritar «Aqui d’el-rei!», o mestre, vendo a navalha caída
+no chão, chegou-se ao pequeno, que estava de parte, todo a tremer, e a
+olhar com espanto para aquella massa enorme agitada pelas convulsões da
+agonia.
+
+Agarrou-o por um braço e perguntou-lhe:
+
+--Que foi isto, _grandessissimo_ diabo?
+
+E o Antonio, a gaguejar, como um bebedo:
+
+--Foi ... foi elle ... que matou meu pae!
+
+
+[Ilustração]
+
+
+[Ilustração]
+
+
+
+
+ A Allemã
+
+
+FOI ha bastantes annos que a vi pela primeira vez.
+
+Loução e garrido, balouçava-se brandamente na enseada do Funchal o
+_Maria Pia_, vapor da carreira de Lisboa, e rodeado ainda por um
+enxame de botes, que tinham levado para bordo passageiros e bagagens,
+apromptava-se para deixar, depois de uma visita de tres dias, a
+denominada _Flôr do Oceano_.
+
+Eu, debruçado na amurada, e já amargurado pela saudade, seguia
+tristemente com a vista um barco que, aproado á terra, ia tornando cada
+vez maior a distancia que começava a separar-me dos unicos entes a quem
+prezava no mundo.
+
+Estava, havia não sei quanto tempo, n’esta contemplação, quando
+attentei n’outro bote, que, fazendo força de remos, demandava
+rapidamente o vapor, apesar de o tiro da partida ter já de ha muito
+resoado pelas fragas que bordam a Madeira.
+
+[Ilustração]
+
+Não tardou que atracasse ao navio, e momentos depois entrava para o
+convez uma senhora com o rosto tapado por um veu cinzento, e amparada
+por dois sadios filhos da ilha, em quem reconheci dois _homens
+de rede_, os quaes tamanho serviço alli prestam aos tisicos,
+transportando-os n’aquelle commodo descanso, tão predilecto dos
+creoulos e de todos os que habitam as regiões tropicaes.
+
+Conduziram-a para uma cadeira de vimes, que já estava disposta com
+segurança no meio da tolda, do lado da camara de primeira classe, e ahi
+a depuzeram com delicadeza á primeira vista pouco consentanea com o
+exterior um tanto rude d’aquella pobre gente.
+
+Feitos os ultimos preparativos para a partida, poz-se o vapor em
+movimento, aproado a leste, e cortando veloz as mansas aguas da enseada.
+
+Tres horas, talvez, estive a fitar, primeiro as encostas accidentadas
+e verdejantes da ilha, que fugiam rapidas para o lado do occidente, e
+depois os pincaros abruptos, que coroam aquella enorme massa vulcanica,
+e que cada vez se iam tornando menos distinctos, já assumindo uma côr
+entre parda e azulada, já assimilhando-se a nuvem que mal sobrepujava a
+superficie do oceano, até que finalmente se occultaram de todo.
+
+E eu, ancioso de rasgar com a vista o horisonte para ver uma vez ainda
+os que deixára, e enviando-lhes um ultimo adeus na vaga que passava
+fugaz ao lado do navio, voltei-me para dentro, triste e desanimado,
+como quem de repente se encontra só na vida.
+
+Foi então que a pude ver.
+
+Imagine-se, por um momento, uma d’aquellas divindades esquivas e
+vaporosas, de que a phantasia dos bardos do norte povoa os lagos e as
+florestas: a mulher que eu tinha deante de mim era mais ligeira, mais
+diaphana do que essas creações imaginarias. Á ultima claridade da tarde
+observei-a detidamente.
+
+O rosto era de um esplendor lacteo, de uma transparencia de
+alabastro; se bem que emmagrecido pela doença, ainda ostentava o typo
+septentrional, em toda a sua formosura e pureza.
+
+Contrastando com a pallidez morbida, desenhavam-se-lhe nas faces as
+rosas purpurinas e terriveis da tisica.
+
+Nos olhos, do azul mais puro, tristes e resignados, havia uma vaga
+aspiração para as espheras brilhantes e luminosas, uns reflexos de além
+do tumulo.
+
+Recostada languidamente nas almofadas que estofavam a cadeira, e com a
+cabeça, aureolada de finissimos cabellos louros, descahida para traz,
+olhava para o mar, com a indifferença e melancholia de quem perdeu de
+todo a esperança.
+
+De quando em quando, uma tosse pertinaz fazia arfar-lhe o peito, e por
+momentos, se bem que rapidos, transmudava-lhe a expressão do semblante,
+de serena em dolorosa.
+
+N’outra qualquer occasião ter-me-hia despertado interesse, mas então
+impressionou-me mais vivamente do que nunca, aquella mulher, moça,
+bella, e, na apparencia, tão gravemente enferma, que não tinha a seu
+lado um parente, um amigo, um enfermeiro sequer.
+
+Os passageiros, que o enjôo não obrigára a recolher aos beliches,
+passavam perto d’ella com indifferença, e sómente o capitão se lhe
+acercou uma vez, a perguntar-lhe se não julgava melhor descer para a
+camara.
+
+--Melhor! respondeu ella em francez e com sorriso entre amargo e
+benevolente. Aqui ao menos tenho este ar tão puro. Prefiro ficar.
+Obrigada!
+
+E deixando caír novamente a cabeça na almofada, voltou á primitiva
+immobilidade.
+
+Quando desci á camara, á hora da ceia, não pude esquivar-me a perguntar
+ao capitão informações a respeito da desconhecida.
+
+Eis o que elle sabia:
+
+Viera no anno antecedente da Allemanha, sua patria, em companhia
+de um irmão, buscar ao clima benefico da Madeira allivio para os
+soffrimentos, que os medicos do seu paiz não tinham sabido debellar e a
+que prophetisavam até um proximo e fatal desenlace.
+
+As sinistras previsões scientíficas realisaram-se, porém com uma
+differença: a victima não foi ella, mas o irmão, que ferido de
+morte subita, a deixou só n’uma terra de estranhos, e apavorada
+com o pensamento de ver-se, na derradeira hora, cercada apenas de
+indifferentes e mercenarios.
+
+Estar alli nem mais um momento!
+
+Partia pois, esperançada em ter ainda vida bastante, mercê de Deus,
+para voltar ao que por tanto tempo aprendera a amar: ia morrer nos
+braços da mãe.
+
+Ás dez horas voltei para o convez.
+
+Era uma noite de agosto, limpida e sem lua; mal soprava uma leve
+aragem, que ia a pouco e pouco dispersando os rolos do fumo que o vapor
+deixava após si.
+
+As estrellas reverberando nas ondas inquietas, afiguravam-se, á vista
+illudida, de outros tantos luzeiros fluctuantes na massa fluida.
+
+O silencio imponente da solidão era perturbado apenas pelas pancadas
+cadenciadas do helice, e pelo rumorejar surdo da agua em torno do navio.
+
+E em redor tudo immenso: a amplidão etherea e a vastidão dos mares,
+o infinito e o seu espelho, como disse madame de Staël. E devassando
+os arcanos da natureza, e affrontando-lhe a soberania, o homem, só e
+illuminado pelo seu genio, deixando escripta na esteira do navio a
+divisa do progresso.
+
+Logo que os olhos se me habituaram á meia obscuridade que reinava no
+convez, descobri-a de novo no logar onde a tinha deixado.
+
+Nem eu sei dizer a tristeza que se apossou de mim.
+
+Tornava para os seus, porém elles, em vez da alegria que traz sempre a
+volta d’um parente querido, teriam a expectação fatal d’uma desgraça
+eminente.
+
+A mãe, ao apertar ao seio a filha, ao cobrir-lhe o rosto de beijos,
+sentiria na ardencia da febre que lhe devorava a vida da sua vida, os
+amplexos antecipados da mortalha.
+
+E aos vinte annos!... Era bem cedo para morrer, como, da meiga virgem
+de Procida, diz o poeta das _Meditações_.
+
+Ao menos, triste consolação! uma vez arrebatada á vida, mão amiga e
+carinhosa iria depôr-lhe sobre a campa as coroas votivas da saudade, e
+a mesma brisa, que lhe brincara com os cabellos de creança, perpassando
+por entre os cyprestes, levar-lhe-hia, nas azas perfumadas, os suspiros
+dos que a choravam.
+
+Dois dias depois chegámos a Lisboa.
+
+Perdi-a de vista ao desembarcar, mas nem por isso a esqueci; e mais
+tarde, nas horas de melancholia, não poucas vezes aquella mulher, antes
+visão que realidade, vinha, circumdada de uma aureola de triste poesia,
+pousar-me docemente na imaginação.
+
+ * * * * *
+
+São passados sete annos e com elles quantas illusões!...
+
+Entremos por momentos na alfandega de Lisboa.
+
+Na casa das bagagens vae um borborinho indescriptivel: os passageiros,
+chegados ha pouco da Madeira, no _Maria Pia_, e do Brazil, não
+sei em que paquete, reclamam com instancia a propriedade; os fiscaes
+impacientam-se; as malas e os bahus fecham-se ruidosamente, depois de
+examinados pelas vistas prescrutadoras dos aduaneiros; os carros de mão
+giram velozes sobre o asphalto; os sinetes, molhados em tinta azul,
+percutem sem cessar os disticos de cada lote...
+
+Eu, á busca d’um amigo a quem esperava, ia correndo os grupos, já meio
+desorientado pela confusão, quando sons ainda mais discordantes me
+vieram ferir os ouvidos.
+
+Junto de mim, discursava-se com animação, n’aquella lingua que, segundo
+já alguem disse, qualquer póde falar mettendo um fio de retroz na
+garganta, e que o auctor do _Fausto_, com o melhor fundamento,
+poz na bocca do diabo.
+
+Volto-me, para ver quem vinha juntar o seu allemão áquelle motim
+destemperado, e vejo...
+
+Quem ha ahi que não conheça as milagrosas propriedades nutritivas
+attribuidas ao medicamento, que tem o nome de uma famigerada cortezã
+franceza, e que tão apregoado foi pelos jornaes das cinco partes do
+mundo?
+
+Pois era _ella_, a allemã ... depois de ter tomado a revalescière
+Dubarry.
+
+A principio descri dos sentidos.
+
+Admittia-se porventura que o ente ideal e vaporoso qual ondina do
+nevoeiro, que eu entrevira n’outro tempo, se houvesse transformado no
+que eu tinha deante de mim!
+
+Mas não havia que duvidar.
+
+O rosto era o mesmo, embora á transparencia alabastrina e ás rosas
+da tisica tivesse succedido ... como hei de dizel-o?... o adipe
+abundante e as côres sádias da robustez. A cabeça, em vez de
+reclinada morbidamente, conservava-se levantada e vivaz. A fraqueza
+de valetudinaria transformara-se em fortaleza, que faria inveja ás
+nossas matronas de Diu, de que fala Jacintho Freire, ou a um soldado do
+imperador Guilherme.
+
+Eu estava indignado!
+
+Scismara sete annos n’aquella mulher, enterrara-a, recitara-lhe nénias
+sobre a sepultura, para um dia,--oh! prosa da vida!--ousar apparecer-me
+sã, robusta, a vender saude.
+
+Era quasi uma abominação, um crime de leso-ideal; quanto melhor não
+fôra que tivesse morrido!
+
+Mas ainda eu não disse tudo.
+
+Dava o braço a um allemão (era-o, com certeza!) de barba loura, e
+seguiam-a duas creanças louras, uma ao collo, outra pela mão d’uma
+creada tambem loura.
+
+Tudo louro!
+
+Não quiz ver mais nada, e saí precipitadamente da alfandega,
+amaldiçoando o sentimentalismo, as allemãs e o cabello louro.
+
+
+[Ilustração]
+
+
+
+
+[Ilustração]
+
+
+ _O Marraxo_
+
+
+Um calor de rachar pedras, quanto os quatro rapazes descansaram do
+trabalho. Já na vespera á tarde se tinha annunciado a léstia pelos tons
+vermelhos do horisonte para as bandas do nascente.
+
+Os ricos e remediados podiam fugir-lhe, mettendo-se em casa, com as
+portas e as janellas bem fechadas; mas elles, coitados!...
+
+Cá fóra chegavam a toda a parte as breves lufadas do vento abrasado
+do Sahara, que parecia não ter perdido um atomo da sua ardencia com o
+atravessar centenas de leguas do Atlantico, desde a costa de Africa até
+á pequena ilha do Porto Santo. N’aquelle ambiente de forno, as plantas
+mirravam-se de tal sorte, que se alguem apertasse entre os dedos as
+folhas mais tenues, facilmente as reduziria a pó.
+
+Mas o mar ficava a dois passos do logar do trabalho.
+
+--Que rico banho, graças a Deus! pensavam os quatro.
+
+Atravessaram de corrida o areal a escaldar, e foram-se despir á sombra
+de uma saliencia de rocha, junto ao Penedo do Somno.
+
+Na extensa praia que borda o sul da ilha, o ar, como ao de cima de uma
+fogueira, trepidava rarefeito. Augmentava-se ainda mais a impressão
+do calor, com os offuscantes clarões d’aquella areia amarella e
+fina. Ninguem podia respirar, nem que fosse até lá acima, ao pico do
+Castello, que muito no alto, ao noroeste, desenhava no ceo baço e
+pardacento o perfil regular da sua pyramide.
+
+O mar estava alli ao pé. Todo frescura, espreguiçava-se na praia,
+encrespado pelo sopro da léstia: ao largo, porém, com o sol
+dardejando-lhe a pino, lembrava um extenso e irrequieto lençol de metal
+fundente.
+
+--Sabem vocês uma coisa? disse um dos quatro. A modos que o mar tambem
+está encalmado!
+
+E a rir do proprio dicto, o José desceu até ao mar, molhou a mão
+direita e benzeu-se devotamente.
+
+Os outros fizeram o mesmo, e investiram para a agua todos a um tempo,
+no meio de cachões de espuma, e soltando guinchos com a repentina
+impressão do frio.
+
+O Francisco seguido por mais dois nadou para fóra, mas o José, que no
+mar nunca tinha sido afoito, deixou-se ficar no sitio onde quebravam as
+ondas. A agua nem lhe dava pela cintura.
+
+--Larga-te d’ahi, calaceiro! berrou o Antonio, ao vel-o na occasião em
+que virava rapidamente a cabeça, para sacudir da testa os cabellos
+gotejando agua.
+
+--Vá quem quizer, que eu cá tenho pouco folego.
+
+--Ah! Tu não vens? Eu já te vou escarmentar.
+
+Mergulhou, e reappareceu ao cabo de poucos segundos: trazia na mão uma
+pedra de cal e atirou-a para o José.
+
+--Ah! Vocês querem fazer-me _reinar_? disse este ultimo, deveras
+amuado, e correu para o logar onde estava a roupa. Tirou a agua da
+cabeça passando-lhe a mão com força, enfiou a camisa e veiu enxugar á
+torreira do sol, empoleirado no rochedo que avançava pelo mar dentro.
+
+A umas cem braças de terra, os outros voltaram para traz. Não eram
+da mesma força a nadar e por isso vinha mais fóra o Francisco, logo
+adiante o Antonio e na frente de todos o Luiz.
+
+Com a mão direita estendida sobre os olhos, á guisa de pala, e
+segurando com a outra a fralda da camisa, que o leste sacudia, o José
+seguia os movimentos dos amigos com olhares invejosos.
+
+Mas o que viu elle subitamente?...
+
+Atraz do Francisco, a umas quatro ou cinco braças a agua mexia-se, e
+divisava-se como que uma sombra escura seguindo os banhistas.
+
+--O que seria aquillo?
+
+Mal tinha formulado mentalmente a pergunta, deu um grito fortissimo.
+
+Ao de cima da agua avistava-se distinctamente uma galha escura e
+delgada.
+
+--É um marraxo!
+
+Tremulo de medo, bracejando muito, desatou a chamar os outros, com
+gritos entrecortados.
+
+O Luiz, que se tinha deitado de costas para descansar, ouviu-o e olhou
+na direcção que os gestos indicavam. Como descobriu a galha do tubarão,
+bradou logo:
+
+--Nada com ancia, Francisco, nada com ancia, e não pares!... E tu
+tambem, Antonio!... Olhem o que vem lá atraz!
+
+O Francisco voltou a cabeça e passou-lhe pelo corpo um arrepio, como se
+a agua tivesse gelado de repente.
+
+Em quanto elle nadasse--estava farto de o saber--o marraxo não atacava,
+porque não pode morder sem parar primeiro e virar-se, a fim de voltar
+para cima a bocca immensa, armada com sete ordens de dentes cortantes
+como aço!
+
+E acudiu-lhe á memoria o triste fim d’aquelle rapaz, que um marraxo
+rolara pelo meio, ao pé do ilheo da Cal.
+
+Mais rapidos que as ideias que lhe estuavam no cerebro, só os
+movimentos que fazia nadando, e que, desordenados, o iam extenuando a
+mais a mais.
+
+Um dos companheiros havia no entretanto chegado a terra.
+
+Como é que o terrivel animal o não tinha já alcançado?... Devia estar
+quasi a tocar-lhe nos pés!... Não tardava a rilhar-lhe os ossos!...
+
+Perguntassem-lhe se preferia que um raio o fulminasse, a continuar
+n’aquella agonia tremenda, e pediria que no ceo limpido, testemunha
+impassivel da tragedia, se formasse de prompto uma nuvem de
+tempestade, para lançar-lhe a fita de fogo, que o matasse
+instantaneamente.
+
+Já não podia mais. O coração batia-lhe no peito, como se quizesse
+arrombar-lh’o.
+
+Tambem já tinha chegado á praia o João.
+
+--Só para elle estava guardada aquella morte horrenda!...
+
+O José lembrou-se de que no sitio onde se despiram tinham visto um
+madeiro roliço, que parecia resto de um mastro. Correu a buscal-o.
+Despiu a camisa e amarrou-lh’a bem, pelas mangas. Sobre o penedo e com
+o corpo inclinado para o mar, não perdia de vista o perseguido nem o
+perseguidor.
+
+O Francisco já podia tomar pé, mas fazia bem continuando a nadar,
+pois o maior perigo estava exactamente no instante em que parasse, e
+assentasse os pés no fundo, para desatar a fugir.
+
+Ia o Luiz atirar uma pedra ao tubarão, mas o José prohibiu-lh’o com um
+gesto imperioso, e bradou:
+
+--Nada sempre, ó Francisco, e não tenhas medo!
+
+Um pouco debruçado do penedo, acompanhava com os olhos esgazeados os
+movimentos do peixe, tal qual o trancador de baleias no momento de
+arpoar. Mas o banhista chegou á babugem da maré e logo o madeiro caíu
+entre elle e o marraxo.
+
+--Foge, Francisco! bradaram-lhe os tres, como se fosse preciso o
+conselho.
+
+Vendo caír-lhe diante e estacionar ao lume da agua aquella massa
+branca, o marraxo voltou-se e fincou-lhe os dentes com ancia.
+
+--Ahi podes tu morder, cachorro! gritou-lhe o João. Surriada!
+
+E contentissimos, os tres atiravam-lhe pedras, em quanto o Francisco se
+deixou caír na praia, extenuado e offegante.
+
+Sem dar pela aggressão, o enorme esqualo queria desforrar-se do logro
+estracinhando a madeira, mas como a areia já lhe penetrava nas guelras,
+mudou de rumo e dirigiu-se para o largo, a galha escura surgindo sempre
+ao lume de agua.
+
+Desde aquelle dia o Francisco, por mais calor que fizesse, nunca mais
+se metteu no mar.
+
+
+[Ilustração]
+
+
+
+
+[Ilustração]
+
+
+ O Pae Do Jacintho
+
+
+EU estava debruçado no mainel da ponte, por onde se entra na quinta do
+Jardim da Serra.
+
+Pelo ambiente volitavam effluvios perfumados, vivificantes. O sol, em
+jorros de luz, animava todo o valle, onde se repercutia sem cessar
+o chilro atroador dos passaros empoleirados pelos castanheiros e
+carvalhos, e o murmurio do ribeiro, que formava cascata junto á quinta,
+para continuar depois serpeando mansamente por entre a penedia musgosa.
+
+O tilintar dos chocalhos do gado, que pastava na encosta visinha, ou as
+vozes das lenhadoras cantando pelo caminho do Curral, misturavam por
+vezes áquelles sons, uma nota melancholica e destacada.
+
+De fitar a agua fugitiva ia-me penetrando da suave frescura, que
+emanava das profundezas do leito escuro da corrente, e ao mesmo tempo
+alentava-me a perenne vida, que palpitava em toda a natureza aos beijos
+do sol deslumbrante.
+
+Senti uns passos ligeiros, como que medrosos, perto de mim, na ponte.
+
+Era o Jacintho. Vinha com elle um velho--o pae.
+
+Na vespera, quando saí do Funchal tinha visto o cabo surgir ao meu
+lado, vestido á paisana e disposto a acompanhar a pé o cavallo que eu
+montava.
+
+--Vaes de licença?
+
+--Saberá V. S.^a que sim, por um mez. Eu sou de ao pé da quinta para
+onde V. S.^a vae passar estes dias, e já agora sigo aqui ao lado de V.
+S.^a, se V. S.^a me dér licença.
+
+E o cabo, sem parar no dispendio das senhorias, não deu parte de fraco
+durante o passeio de tres leguas, não ficando nem um instante para
+traz do picarso, por mim alugado na rua da Queimada para a encantadora
+digressão.
+
+Cicerone consciencioso, não omittiu o nome de nenhum dos
+_demeraristas_, que tinham comprado terras á beira da estrada.
+Via-se que a Guyana ingleza fôra para elles um verdadeiro Brazil, ao
+contemplar as casas brancas, quasi todas com _venezianas_, de que
+estavam povoados os terrenos adquiridos.
+
+Antes de me dizer adeus, pediu-me licença para, no dia seguinte, me
+apresentar o pae.
+
+Coitado! Via em mim, pobre capitão de caçadores, um potentado, o que
+quer que fosse de superior e intangivel, principalmente estando eu alli
+perto da casa d’elle, e entendia honrar sobremodo o auctor dos seus
+dias dando-lhe conhecimento commigo.
+
+Por isso me appareciam ambos n’aquella esplendida manhã de julho.
+
+ * * * * *
+
+Ainda rijo, o velho. Encostado a um bordão, com a camisa alva de neve a
+saír por baixo do collete, botas e calças brancas, a carapuça na mão,
+fitava em mim uns olhinhos curiosos e sorria parvamente, á espera de
+que o filho m’o apresentasse.
+
+--Saiba V. S.^a que aqui está o meu pae, disse o cabo.
+
+O velho então ganhou desembaraço e pouco tardou em contar-me toda a
+sua vida. Em certos pontos interrompia a narração para mirar o filho,
+extatico, embevecido, como se mal acreditasse que o pequenito doente e
+franzino de quinze annos antes, se tivesse feito aquelle rapagão cheio
+de robustez e capaz de vender saude.
+
+--O que me tem dado muitas _freimas_, sr. capitão, é elle estar
+longe de mim. Nunca sei o que lhe terá acontecido ou póde vir a
+acontecer. Demais, aqui, ao _meu pé_, sempre me ajudava... Se
+por força tinha de saír da minha companhia, então que embarcasse para
+Demerara. Lá ao menos podia enriquecer.
+
+--Ou já teria morrido, objectei.
+
+E tratei de fazer-lhe comprehender o que ha de nobre no serviço
+militar, e quanto é culpado quem pretende fugir-lhe; mas o velho
+abanou a cabeça, e teimou em não se deixar convencer, a despeito da
+approvação, que os gestos do filho estiveram a dar-me constantemente.
+
+Lembrei-lhe que o Jacintho, que saíra cabo alguns dias atraz e já
+mandava em praças mais antigas, era muito estimado pelos superiores, e
+disse-lhe até que d’aquella massa é que se faziam os officiaes como eu.
+
+Não resistiu. Iam-se-lhe os olhos no seu rapaz.
+
+Por cima d’aquellas faces, que os frios e as soalheiras tinham crestado
+e a velhice cortava de rugas, mas onde brilhavam ainda as rosas da
+saude, correram duas lagrimas de satisfação.
+
+--O filho do Manoel de Jesus ainda está em soldado? perguntou elle ao
+Jacintho.
+
+--Está e estará, respondeu este, com ufania. Se não sabe ler!...
+
+--Deveras! Então sempre serviu d’alguma coisa o que fiz por via de ti.
+Lembras-te?
+
+A instancias minhas, referiu-me a commovente historia do seu amor de
+pae--como tinha conseguido que o filho aprendesse a ler e a escrever.
+
+A escola era muito longe, e elle, receioso de que o pequenito, que
+devia andar pelos seus seis annos, cansasse pelo caminho, acompanhava-o
+sempre, antes de ir para o trabalho, pelas manhãs asperas e geladas,
+quando o vento norte soprava rijamente, mais cortante do que navalhas.
+O Jacintho, em muitas occasiões, desatava a choramigar, dizendo que não
+sentia os pés e que já não podia dar passada. Então elle pegava-lhe ao
+collo, descalçava-o, desabotoava o peitilho da camisa, e aconchegava
+ao calor do corpo os pésinhos inteiriçados com o frio. Quantas vezes
+sentiu cãibras no estomago, dôres muito finas, depois d’aquelle
+contacto regelador!... Mas nem por isso arredava a creancinha, que ia
+inclinando vagarosamente a cabeça para o hombro do pae, até que por fim
+adormecia. Ao cabo de dois annos de escola, o Jacintho, «como tinha boa
+_mimoira_», já sabia ler por cima.
+
+--E não _havera_ de ser enganado, como eu tenho sido e hei de
+continuar a ser! rematou o velho, sentenciosamente.
+
+Encareci-lhe com enthusiasmo o seu admiravel procedimento, porém elle
+recusou ingenuamente o elogio:
+
+--Não faz mingua o senhor dizer tantas coisas. Se isto é o meu
+sangue!...
+
+E pronunciava estas palavras, envolvendo o filho n’um olhar de ternura
+infinita, como as aves envolvem em macio frouxel os seus pequeninos
+implumes, na meiga concavidade dos ninhos.
+
+ * * * * *
+
+Foi isto pouco mais ou menos--áparte a fórma--o que me contou o
+Silveira. Até aqui, tinha tido na voz uma suavidade, que sobremaneira
+contrastava com o aspecto marcial e severo da sua physionomia.
+
+Remexeu-se na cadeira, saccudiu a cinza do charuto, puxou o bonnet
+para a testa e acabou assim a narração do caso:
+
+Quatro annos depois, ainda eu pertencia a caçadores 12. O Jacintho, já
+na reserva, tinha casado e morava á ilharga da praça do peixe, que como
+sabes fica sobre o Calhau.
+
+Com um dinheiro ganho pela mulher nas casas onde tinha servido,
+puzeram um botequim. A freguezia começou logo a acudir numerosa, pois
+que o rosto alegre e bonito da dona do estabelecimento era magnifico
+chamariz. De mais a mais a Rita arranhava o inglez, e d’este modo
+conseguia que a loja fosse preferida pelos marinheiros britannicos,
+excellentes consumidores de «bebidas de guerra».
+
+O velho assistiu ao casamento do filho e voltou para o Estreito de
+Camara de Lobos. Com os seus sessenta e cinco annos bem puxados, ainda
+mourejava de sol a sol. Um dia, em que andava trabalhando perto de uma
+pedreira, ouviu o grito de: «Lá vae fogo!» annunciando a explosão da
+_broca_. Como devia haver mais duas advertencias eguaes áquella,
+não se apressou muito. Quando pousou o picão em terra, ouviu a segunda.
+Correu para fugir a algum pedaço de rocha, que a polvora explodindo
+arremessase a distancia, mas contou demasiado com a ligeireza das
+pernas e caíu. A _broca_ rebentou, depois do terceiro aviso
+do bota-fogo, e um grande penedo veiu apanhar o pae do Jacintho, e
+partiu-lhe uma perna e um braço.
+
+Levado n’uma rêde para a cidade, o pobre entrou no hospital da
+Misericordia e alli esteve tres mezes e meio.
+
+A principio o filho, umas vezes só, outras com a mulher, ia vel-o
+quasi todos os dias, e carpir a desgraça do pae. Mas as visitas foram
+rareando.
+
+--Se elle tem a vida tão apensionada! desculpava entre si o doente.
+
+Nos ultimos tempos nenhum dos dois appareceu por lá.
+
+Quando lhe deram alta, o velho estava aleijado.
+
+A uns enfermeiros que o lamentavam, de o verem sair do hospital
+coxeando e arrimado ao bordão, respondeu cheio de confiança:
+
+--Isso era bom, se eu não tivesse o meu filho!
+
+Appareceu-lhe em casa inopinadamente. Não o receberam mal, e até lhe
+mostraram agrado, em quanto elle não se explicou.
+
+Depois do jantar, abriu-se com o Jacintho e a nora. Assim aleijado, não
+poderia fazer nenhum trabalho: por consequencia voltar para o Estreito
+e morrer de fome, vinha tudo a dar na mesma. O Jacintho olhou a medo
+para a mulher, que se tinha tornado muito vermelha, e fincava os olhos
+no tecto.
+
+Por isto não deu o velho, mas notou que o filho, ao offerecer-lhe a
+casa logo depois, gaguejava e parecia quasi não saber o que estava
+dizendo. Assaltou-o uma suspeita:
+
+--Seria pesado ao Jacintho?
+
+A resposta indecisa dada por este e o silencio pertinaz da nora,
+explicaram-lhe tudo.
+
+--Está bom rapaz! Que queres? Julguei que vivias mais desembaraçado.
+Volto para a nossa freguezia. Sempre lá me hei-de arranjar. Fica-te com
+Deus, filho, fica-te com Deus!
+
+Agarrou-se a elle, beijou-o muito e saiu pela porta fóra, arrastando
+ainda mais da perna aleijada.
+
+ * * * * *
+
+Tempos depois, vi-o no asylo de mendicidade.
+
+Como sabia isto, disse-lhe do filho tudo quanto merecia aquella infamia.
+
+O velho escutou-me sorrindo tristemente e respondeu por fim, a encolher
+os hombros:
+
+--Será verdade o que o senhor me diz, mas que lhe hei-de eu fazer? Se
+elle é do meu sangue!...
+
+
+[Ilustração]
+
+
+[Ilustração]
+
+
+
+
+ A Folga
+
+
+ (Notas de folklore fayalense)
+
+
+Tudo prompto em casa do João Furtado, para se receber a coroa do
+«Senhor Espirito Santo».
+
+E não é nada cedo. A procissão já saíu da casa do _imperador_, que
+foi o ultimo a _coroar_ no anno antecedente, e vem a caminho.
+
+Os visinhos andam tão alvoroçados, que se não fosse o José, sobrinho do
+João Furtado, teriam invadido a casa, para verem de mais perto o altar,
+armado no quarto de fóra.
+
+Mas não se atrevem, que o rapaz, de sentinella á porta, prega um não
+redondo na cara do mais pintado. Além d’isso, todos sabem que elle não
+é para brincadeiras, e que poderia ir ás do cabo, temendo que lhe
+escangalhassem o que lhe tinha custado tanta lida.
+
+Como elle se revia no altar! Sobre a meza coberta com uma toalha
+de renda, nada menos de quatro jarras de flores e de outros tantos
+castiçaes com os cyrios ainda por accender. Dão-lhe tanta graça o docel
+de cassa branca e as cortinas de barra vermelha, que pendem de cada
+lado!
+
+E como está bem clara toda a casa! Nem a egreja, na noite de Natal!
+Contando-se bem, são dez os candeeiros de petroleo, uns em cima das
+mezas, outros pendurados nas paredes.
+
+Entrassem os visinhos e tambem quereriam ver o quarto seguinte, onde
+teem dormido os donos da casa desde o dia em que se casaram, por signal
+n’aquella cama coberta com colcha de ramagem. O que porém lhes chamaria
+a attenção n’este quarto, haviam de ser as duas mezas que lá estão
+unidas pelas cabeceiras, á espera da ceia dos _foliões_.
+
+O João Furtado bem podia ficar satisfeito com o sobrinho, visto que
+todas as suas ordens se cumpriram á risca.
+
+O rapaz é que não tinha sombras de satisfação, nem de alegria: triste
+como a noite!
+
+Bastava-lhe estar longe da Maria, que vinha de _imperatriz_ no
+acompanhamento da corôa.
+
+Verdade seja que triste andava elle sempre, desde que lhe tinha faltado
+o pae, e que o tio, vendo-o em riscos de ir para soldado, resolvera
+demorar, sem dizer até quando, o casamento ha muito ajustado entre os
+dois primos.
+
+Primeiramente o José, por soberba, quiz tirar d’alli a sua ideia,
+cuidando que o tio só desejava livrar-se d’elle e arranjar para a
+filha um noivo mais rico; não poude! Cada vez gostava mais da Maria,
+principalmente a partir da hora em que tinha julgado descobrir n’ella
+um certo desapego. Talvez a prima tambem olhasse ao pouco que elle
+agora tinha, depois de paga a divida do pae ao Joãosinho Terra, que na
+_villa_ emprestava dinheiro a juro. Em quanto o velho não fechou o
+olho, todos o faziam com mundos e fundos, e sabidas as contas...
+
+Porém o José curtia de si para si os amargos de bocca, e calava a
+paixão, receioso de que, falando, o despedissem por uma vez. Só poderia
+adivinhar-lhe o segredo, quem attentasse nos olhos, que elle ás vezes
+deitava á Maria, e em que havia tanto amor, tanta cubiça!... Mas isto
+mesmo, só o fazia quando tinha a certeza de não ser observado.
+
+Outra coisa, além da ausencia da prima, o estava agora consumindo: o
+pensar que nas danças da _folga_ ella ia andar nos braços de um
+e de outro. Que se livrasse de dançar com o menino Ricardo, filho do
+Joãosinho Terra!
+
+--D’aquella familia, só lhe vinham desgraças!
+
+Um mez antes, na ribeira dos Flamengos, apanhára os dois conversando
+muito á mão. É verdade que a prima tinha lá ido lavar uma trouxa de
+roupa de freguezes seus, mas tanto não estava fazendo coisa boa, que
+apenas o viu, ficou mais vermelha que uma romã.
+
+A corôa approxima-se, que bem se ouvia já a marcha tocada pela
+philarmonica e o rufar monotono do tambor dos foliões, como que
+marcando o rythmo da musica. Estalavam de instante a instante as
+_respostas_, e serpeavam no ar os foguetes a dizerem o logar
+exacto em que vinha o cortejo.
+
+Embora consumido, o José não se esqueceu do que lhe competia, e foi
+accendendo os cyrios do altar, ao tempo que a tia, com algumas visinhas
+e tres senhoras vindas da Horta mediante convite especial, entravam
+azafamadas. Tinham estado no terreiro á espera, e foram a uma meza
+buscar vellas de stearina, e tambem as accenderam, nos cyrios. Nenhuma
+se esqueceu de resguardar-se de algum pingo, pondo o lenço de assoar
+á laia de bobeche. Todas, de mão deante da chamma, correram para o
+terreiro, a allumiar a corôa.
+
+Um ultimo relance de olhos tranquilisou o José: tudo estava em termos.
+Podia entrar a suspirada visita.[3]
+
+Vencido pelo habito e pela geral suggestão o rapaz correu para
+a porta, a admirar o acompanhamento, que avançava com a ordem e
+solemnidade costumada, impondo respeito e chegando a encantar os menos
+propensos á devoção.
+
+Tinha-se calado a musica, mas rufava sempre o tambor dos foliões,
+estrugiam os pandeiros e estalavam as bombas.
+
+Mais longe, no couce da procissão, o _Magnificat_ entoado pelos
+cantores da egreja matriz do Fayal, dava á solemnidade a nota da uncção
+religiosa.
+
+Na frente do cortejo tres homens a par: o do meio deitava os foguetes,
+o da esquerda transportava as munições, já muito diminuidas pelo
+consumo, e o da direita mantinha accesa uma acha de lenha, soprando-lhe
+muito, a fim de trocal-a pela que incendiava os foguetes, quando esta
+fosse a apagar-se.
+
+Em seguida os quatro _foliões_. Sobre o fato usual, grandes opas
+encarnadas de gola verde recortada aos bicos, e de mangas tambem
+encarnadas e canhão verde. Nas cabeças, lenços de chita vermelha
+amarrados sobre a nuca, as pontas caídas para as costas.
+
+Um traz a bandeira de panno encarnado com toscas applicações de panno
+branco, representando as do centro uma corôa e uma pomba, symbolos do
+Espirito Santo, e flores as dos quatro angulos.
+
+Dos restantes _foliões_ um toca tambor, e pandeiros os outros.
+
+Seguem-se dois renques de irmãos, todos com varas brancas e precedidos
+pelo _estandarte_ de seda branca, em que ha adornos semelhantes
+áquelles, porém executados com mais alguma arte.
+
+Dois artistas da mesma força deviam ser com certeza os esculptores das
+pombas, que encimam tanto a haste da bandeira como a do estandarte. Eu
+chamei pombas aos animaes alli figurados, mas creio que o mais notavel
+dos zoologos se daria a perros, tendo de classifical-os.
+
+Agora a parte mais interessante do cortejo--para mim, pelo
+menos--constituida pelo beijinho das raparigas bonitas do logar, umas
+com vellas accesas, outras espargindo flores, e quatro formando com
+varas brancas um quadrado, dentro do qual ia a imperatriz, com a corôa
+nas mãos, e de cada lado sua moçoila, uma com o sceptro e a outra com a
+salva de prata.
+
+Depois da imperatriz, o imperador. O João Terra _coroava_ pelo
+João Furtado, e certo de que augmentava com isto o brilho á festa,
+avançava a passos tão regrados e magestosos, como ... o seu collega
+Carlos Magno entrando na cathedral de Aix-la-Chapelle. Para ser
+completamente feliz só lhe faltava uma coisa: que a casaca lhe não
+apertasse nos sovacos, e a bota de lustro no peito do pé.
+
+Fechavam o acompanhamento os cantores da matriz, a philarmonica e um
+magote de povo.
+
+Em quanto o cortejo ia enchendo a casa do João Furtado, recrudescia a
+foguetada e as bombas rebentavam continuamente.
+
+Chega a imperatriz em frente do altar, desfaz-se o quadrado, cujas
+varas, juntamente com a dos irmãos, são guardadas n’uma comprida caixa
+para isso destinada.
+
+Desde que entrou, a corôa servia de alvo a confeitos dourados e de
+varias côres e a raminhos, cujas flores eram tambem confeitos montados
+em arames.
+
+A Maria colloca-a no centro do altar, e logo os foliões, que estavam em
+frente alinhados n’uma fileira, entoam a conhecida copla:
+
+ Ó Senhor Esp’rito Santo
+ A vossa casa cheira,
+ Cheira a cravo, cheira a rosa,
+ Cheira a flôr de larangeira.
+
+Um dos que tocam pandeiro levanta mais a voz e prolonga a nota final;
+segue-se o outro, descendo uma oitava e vae assim por diante a
+cantoria, com trinados á mistura, acompanhada pelo tambor, em que o
+folião respectivo dá, segundo o preceito, duas pancadas successivas com
+a baqueta, depois outras duas e afinal tres. A estes sons juntam-se por
+vezes o dos pandeiros, e estrepitosos vivas ao «Senhor Esp’rito Santo»,
+que já se tinham ouvido em toda a passagem do cortejo.
+
+Durante a cantilena dos foliões, as _senhoras da villa_ e
+duas _mulheres do monte_ vão compôr o vestido e o penteado á
+imperatriz, cuidado aliás inutil a bem dizer, pois se ha «moça bem
+pregadinha» é a Maria do João Furtado. Como ella, nenhuma tão esmerada
+na sua pessoa e no seu fato.
+
+O José, a quem não passaram despercebidas estas attenções, revia-se na
+linda flôr do campo, esquecido de tudo, até do ciume.
+
+Andava n’este comenos o João Terra desempenhando um dos deveres do
+imperador: tendo recebido de uma das companheiras da imperatriz o
+sceptro, deitara-o nas mãos, sobre um lenço, e percorria toda a sala,
+offerecendo aos beijos dos circumstantes a pombinha de prata, que o
+adorna.
+
+O ultimo beijo, e de certo o mais fervoroso, foi dado pelo dono da
+casa, quando o sceptro já estava no altar. E nem sequer lhe passou pela
+ideia o que lhe custava a festa. Custasse o dobro, e elle quereria
+assim mesmo gosar aquelle direito.
+
+Já todos tomaram logares. Nos melhores ficam as senhoras da Horta, e á
+ilharga d’ellas, depois de lh’os ter amavelmente offerecido, senta-se
+muito ancha a mulher do João Furtado.
+
+Lá entra o José, ajoujado com um pratalhaz de arroz doce, e precedido
+pelo tio, que se pôz em mangas de camisa para mais á vontade servir
+aos convidados a aguardente de pecego, que passará do frasco de
+vidro escuro onde está agora, para a bocca dos que hão bebel-a, por
+intermedio do mesmo calix. Os pechosos não terão que dizer, porque o
+escanção, isto é, o João Furtado, depois de servir cada um dos seus
+convidados, limpará a borda do copo á manga da camisa.
+
+Isto de mais a mais é costume tradicional, como tambem é costume
+comerem todos o arroz doce pela mesma colher. Á entrada do José, lá
+vinha uma espetada verticalmente ao centro do manjar, e com ella vão
+todos mettendo para a bocca a competente colherada, e até repetindo a
+dose, com grave despeito do dono da casa e não obstante o arroz ter
+certo gostinho a fumo, que nem á força de canella desapparecera de
+todo.
+
+O José não fugiu com o prato á abusiva repetição, porque estava com
+o sentido n’outra coisa. Se não encontrava a prima, por mais que a
+procurasse com os olhos!...
+
+Vae porem socegar: a Maria apparece no quarto immediato e ajudada por
+outras raparigas põe na meza a ceia dos _foliões_.
+
+Os quatro abancam immediatamente e principiam a devorar com o seu
+proverbial appetite.
+
+O rufador, para que o vinho lhe ajudasse a deglutição, disse a graça
+costumada--que a pelle do tambor ia estalar de tanto se lhe ter batido,
+e que o unico remedio era botar-se-lhe em cima uma pinga. E apenas
+apanhou á mão o frasco, deitou uma gota no tambor e entornou para os
+gorgomillos tanta vinhaça, que os companheiros romperam em murmurios,
+julgando-se lesados.
+
+O segundo folião, antes de beber, faz o brinde habitual:
+
+--Lá vae á saude do imperador de hoje a oito dias!
+
+Ao passo que outro, com a bocca cheia, dispara um «Viva o Senhor do
+Esp’rito Santo!»
+
+A ceia desapparecia rapidamente dos pratos. Tinha-a feito a Vicencia,
+irmã do João Furtado, afamada em trabalhos culinarios. Áquella mesma
+hora temperava ella na cosinha a sopa destinada aos presentes do dia
+seguinte, muito saborosa com a grande quantidade de carne de vacca e
+_linguiça_, e cada pão dividido em quatro partes apenas, para que
+uma unica sopa chegasse para um presente.
+
+Na sala da folga entram muito galhofeiros, com a sobranceria de quem
+se julga n’um meio que não o merece, o Ricardinho Terra, o Luiz de
+Carvalho e mais dois rapazes da Horta, isto é quatro _estudantes_,
+como os appellidam por despreso os moços do campo, que em troca recebem
+o qualificativo de _diamantes_, não menos desdenhoso na intenção
+do seu ignorado inventor.
+
+Se a presença dos recemchegados desagradou a todos os rapazes do sitio,
+que se apinhavam á porta e no terreiro, e que nos bicos dos pés olhavam
+a custo para o interior da casa, ao José encheu de verdadeira furia.
+
+D’aqui por diante não mais perdeu de vista o menino Ricardo.
+
+Mas ninguem pensava n’elle, que iam principiar as danças e já se ouvia
+o _mestre da viola_, o Joaquim Machado, na cosinha, onde tinha
+acabado de ceiar, afinando o instrumento demoradamente, a preceito, sem
+dar importancia ás impaciencias dos que anceavam por bailar.
+
+No seculo tinha posição humilde--era sapateiro--mas n’uma _folga_
+hombreava em valimento com o proprio imperador. É que sem elle não se
+_brincava_.
+
+Apesar d’isto, o João Furtado, fazendo-se interprete dos desejos
+geraes, disse-lhe da porta da sala, em voz muito alta.
+
+--O’ Joaquim Machado, pega-me n’essa viola e salta cá para fóra!
+
+--Já se vae! Já se vae! retorquiu o outro, sem se apressar. É preciso
+pol-a nos pontos!
+
+D’ahi a pouco appareceu á porta, e conscio da importancia inherente ao
+seu cargo, foi sentar-se junto ao altar.
+
+Tiravam-se pares.
+
+O João Terra escolheu a Maria, ao tempo que um _diamante_
+perguntava a esta: «A menina quer brincar commigo?». Desvanecida porque
+ia dançar com um _senhor da villa_, a quem de mais a mais lavava a
+roupa, a filha do João Furtado nem sequer deu resposta ao pretendente
+plebeu.
+
+Outros pares se iam formando, levadas as raparigas com espalhafato para
+o meio da casa, mas ficando cada _cavalheiro_ a respeito da sua
+_dama_ como se fossem vis-à-vis de contradança franceza, e assim
+formando-se de cada lado uma fileira, em que os homens se alternavam
+com as mulheres. Dois pares consecutivos constituem uma chama-rita e só
+com elles se pode já executar a dança.
+
+O dono da casa excitava os renitentes, batendo as palmas e bradando:
+
+--Chega a pares! Chega a pares! Ao terreiro!
+
+Como não principiava a musica, o Ricardinho, que ia dançar com uma das
+senhoras mas que não cessava de olhar para a Maria, disse com o entono
+de quem quer ser promptamente obedecido:
+
+--Então essa viola não fica afinada por uma vez?
+
+O Joaquim Machado sem se desconcertar, mirou-o altivamente e mastigou
+como por de mais:
+
+--Está-se tratando sobre esse mesmo objecto.[4]
+
+Quando o tocador muito bem quiz, rompeu a musica e com ella a
+chama-rita. Os dançantes, ao mesmo tempo que acompanhavam a viola
+dando estalos com os dedos, bamboleavam-se, saracoteavam-se para a
+direita e para a esquerda, e faziam passinhos de dança n’um e n’outro
+sentido, avançando e recuando um pouco, para tornarem sempre ao mesmo
+sitio.
+
+Um camponio ou _homem do monte_, que era par da dona da casa,
+cantou:
+
+ Ao romper da bella _airola_[5]
+ Sae o pastor da _gaivana_[6]
+ Gritando em altas _vózeas_
+ Muito padece quem ama.
+
+ Chama Rita, chama Rosa,
+ Chama Rita tão formosa!
+
+Quando o cantador principiava a repetir estes dois ultimos versos
+á laia de estribilho, cada homem, estalando sempre com os dedos e
+bamboleando-se, recuou seguido pela sua dama, que voltada para elle e
+com os mesmos ademanes, parecia attrahida pelo chamamento.--D’isto,
+naturalmente, é que a dança tirou o nome.--Chegadas as duas mulheres
+de uma mesma chama-rita a altura em que podiam, costas com costas,
+trocar a posição, effectuaram a mudança, recuando seguidas agora pelos
+seus pares, até que todos entraram no alinhamento primitivo, mas em
+ordem inversa. N’esta occasião cada homem fez em relação á dama do
+outro par da sua chama-rita, um movimento analogo ao que o sr. Justino
+Soares--valha-me o abalisado choreographo!--chamaria «_balancé au
+côté_», se desejasse indical-o aos seus discipulos da arte de
+Terpsychore.
+
+Succederam-se os versos engendrados pela musa popular. O mestre da
+viola, com um vozeirão de baixo profundo, garganteou:
+
+ Coração acima, acima,
+ Se não podes correr anda.
+ Tudo é pouco, bem n’o sabes
+ Para ver a sua dama.
+
+ Chama Rita, chama Rosa,
+ Ella que venha cá fora,
+ Venha ver o seu amor
+ Que lhe quer falar agora!
+
+Quando acabava esta ultima quadra, que pelo numero de versos equivale
+ao estribilho com a sua repetição, e que por isto não foi bisada pelo
+cantador, o Ricardinho Terra, para saír da monotonia da chama-rita,
+valeu-se de uma das marcas dos bailes de roda, com que costuma
+variar-se aquella dança, e disse em tom de marcador de quadrilha:
+
+--Roda cheia!
+
+E logo todos cruzaram os braços e deram as mãos trocadas, formando
+roda, que depois desfizeram para cada um dos bailadores, enlaçado ao
+respectivo par, fazer o que nas contradanças francezas se designa pela
+phrase--valha-nos outra vez o nosso Vestris!--_galop au tour_, com
+a differença de que o passo é o da chama-rita, ou muito semelhante ao
+da polka.
+
+A _folga_ animava-se.
+
+Para excitar ainda mais o enthusiasmo, cruzavam-se os:
+
+--Pega fogo!
+
+--Anda!
+
+--Aquece, rapaz!
+
+O Ricardinho, fitando muito a Maria, cantou-lhe:
+
+ Aqui tens meu coração,
+ Se o queres matar, bem podes,
+ Olha que estás dentro d’elle
+ E se o matas tambem morres.
+
+O José ia disparatando, mas conteve-se porque o Luiz Carvalho, depois
+de repetir o ultimo verso da quadra, arreliou o amigo com est’outra,
+sempre usada para taes casos, viciando-a como os cantadores populares:
+
+ Assubi ao altar mór
+ P’ra accender vellas ao throno,
+ Bem tolo é quem se mata
+ Por coisas que já teem dono.
+
+O Ricardinho gritou: «Mãosinhas!», o que se executou dando os pares
+as mãos, e virando-se cada um dos dançadores alternadamente para os
+que lhe ficavam contiguos, ao mesmo tempo que iam todos caminhando
+lateralmente como no _grand rond au tour_.
+
+A provocação do Luiz de Carvalho teve esta resposta, do Ricardinho:
+
+ Não ha nada tão perfeito
+ Como o amor de um estudante:
+ Ainda que seja pobre,
+ Sempre tem o amar galante.
+
+Mas um rapaz do sitio corrigiu-lhe de prompto a coarctada, com outra
+preparada egualmente para casos identicos:
+
+ Não viera um vento norte
+ Que levara os estudantes,
+ Para livrar esta terra
+ Dos _homes_ extravagantes.
+
+A furia do José de novo acalmou.
+
+Ainda assim difficilmente deixaria de haver um dos barulhos inherentes
+a estes passatempos, alguma _poeirada_, se não apparecesse á porta
+o padre vigario, na occasião em que, indicada pelo Ricardinho, se
+executava a marca «Salta e rema!», na qual cada homem deve, passando
+por traz do seu par e tomando-lhe a direita, ir fazer _balancé_
+com a pessoa que lhe fica d’este lado, mas sem se darem as mãos, e
+repetir o mesmo com a da esquerda. Continuam durante isto o _grand
+rond au tour_, e a estalada com os dedos visto que as mãos se acham
+livres.
+
+O João Furtado, mal viu o padre, disse em voz muito alta:
+
+--Triloré!
+
+A dança parou logo e todos foram cumprimentar o recemchegado, que vinha
+honrar a festa com a sua presença.
+
+--A benção de Deus seja n’esta casa! disse o vigario e depois de fazer
+uma venia á coroa, foi sentar-se na cadeira de balouço, que o João
+Furtado fizera promptamente desoccupar em obsequio a sua reverendissima.
+
+Mas o desejo do bom do padre, era que as danças continuassem.
+
+Antes de ir para o seminario de Angra, e até quando vinha de lá passar
+as ferias com a familia, elle não perdia uma unica folga.
+
+Estes divertimentos attrahiam-o ainda, como tudo o que nos traz para
+diante dos olhos já queimados pelas lagrimas da desillusão, os dias
+luminosos da mocidade.
+
+Ia recomeçar a chama-rita.
+
+Á pergunta do estylo, que os antigos pares lhes faziam sobre o nome
+do escolhido para a nova dança, as raparigas em geral responderam,
+tambem segundo o estylo vulgar «O senhor mesmo!», com grave escandalo
+dos outros rapazes, que assim continuavam a ser na festa uns meros
+espectadores, e que se desforraram com o conhecido protesto:
+
+--Caras novas ao terreiro!
+
+A Maria não imitou o maior numero. Como ouvisse o João Terra dizer que
+já não tinha pernas para folias, e não desejando fazer-lhe desfeita,
+escolheu o filho d’elle--o Ricardinho. O José ficou embaçado, sem poder
+mexer-se, e calado como se lhe tivessem amarrado uma mordaça.
+
+Só o tio deu por isto, e para evitar alguma asneira, travou-lhe do
+braço e disse-lhe em voz baixa, terminantemente:
+
+--Anda commigo, diabo!--E como sentisse alguma resistencia,
+accrescentou com maior intimativa:--Se não vieres, dou-te na cara, aqui
+mesmo, deante de todo este povo!
+
+Lá passar por similhante vergonha, isso é que nunca! E devia ao tio
+tantos favores, apesar de tudo...
+
+Acompanhou-o, mas fez logo uma tenção bem firme. Nem Jesus Christo, que
+viesse a este mundo, seria capaz de arrancar-lh’a.
+
+O ar da estrada refrescou-lhe a cabeça, sem lhe esfriar a resolução.
+
+Mas as danças continuavam e só a isto é que todos attendiam.--Todos,
+menos elle.
+
+A Maria cantava com a sua voz estridula e argentina, bem afamada na
+ribeira dos Flamengos:
+
+ Ó Pico, rocha tão alta,
+ Retiro dos passarinhos!
+ Mais retirada que eu ando,
+ Meu amôr, dos teus carinhos!
+
+O José que a ouviu lá fora, resmungou entre si:
+
+--Isso! Isso mesmo! Como se a fogueira inda precisasse de mais lenha!...
+
+E chegou-se para a porta da casa, apparentando indifferença.
+
+A dança animou-se mais, com o crescente enthusiasmo em que estava o
+Ricardinho. Mal este gritou: «Cadeia!», as mulheres levaram o braço
+esquerdo atraz das costas, á altura da cintura, e os homens deram-lhes
+as mãos, indo as direitas de cada par enlaçadas na frente, como no
+galope, e as esquerdas n’aquella posição. Será bom dizer que mais de
+uma rapariga se tinha prevenido para o caso, resguardando as costas do
+vestido no sitio provavel do contacto, por meio de um lenço pregado com
+alfinetes. Os pares, assim unidos, avançaram para o centro e recuaram,
+passando cada homem á dama que lhe ficava logo á direita, para com ella
+executar isto mesmo, e assim successivamente, até encontrar-se de novo
+com a que lhe pertencia.
+
+Umas das senhoras da cidade, a Annina Mesquita, bem conhecida pelo seu
+romantismo piegas, cantou com uma voz, que, em homenagem á verdade,
+deveria chamar-se de canna rachada:
+
+ Encostei-me ao pecegueiro,
+ Cobri-me toda de flôr,
+ Ai de mim tão pequenina
+ Tão perseguida de amôr!
+
+Mas por um pouco não deixava a quadra incompleta, porque estrondearam
+perto, contendendo-lhe com os nervos, duas bombas, deitadas da
+janella pelo João Furtado, para solemnisar o acabamento da ceia dos
+_foliões_. Estes saíram á formiga, deixando a bandeira, o tambor e
+os pandeiros, e levando comsigo, embrulhadas n’um lenço, as opas e os
+sapatos. Dois tinham de ir para longe, e com similhantes trambolhos nos
+pés, arriscavam-se a ficar pelo caminho.
+
+Á «cadeia» seguiu-se a marca «Foge!» equivalente á _grande-chaine_,
+mas principiada com a mão direita, e fazendo os homens um movimento
+analogo ao _balancé_.
+
+--Quer n’uma, quer n’outra--disse o José comsigo mesmo--o Ricardinho
+apertou a mão de Maria!
+
+Não tinha duvida.
+
+Da chama-rita, passou-se aos bailes-de-roda, e a outras danças.
+
+No _sapateia de cadeia_ bailou tambem o Joaquim Machado, tomando
+logar no extremo d’uma das fileiras, viola ao peito, os restantes pares
+dispostos como na chama-rita.
+
+O José ia estourando de raiva, ao ver a Maria dançar mais uma vez com
+o Ricardinho, mas conteve-se e foi tirar a Luiza, filha do regedor da
+freguezia. Andou tão alegre, que até cantou esta quadra popular, com
+que o João Furtado se escangalhava sempre com riso:
+
+ Uma jaqueta de abob’ra,
+ Forrada de melancia,
+ As casas de vento norte,
+ Os botões de calmaria.
+
+Durante ella, as duas linhas de dançadores avançaram uma para a outra e
+recuaram até ao ponto de partida.
+
+E logo o Joaquim Machado atacou, muito emphatico:
+
+ Foge, anda tu, ó meu bem,
+ Foge, amor, que eu tambem fujo,
+ Fujamos ambos p’ra o matto,
+ Para á sombra do tamujo!
+
+O primeiro d’estes versos foi o signal para se executar o «Foge» da
+chama-rita, ao qual succedeu a «Cadeia» do mesmo baile. Chegados todos
+aos seus logares, o Ricardinho cantou:
+
+ Oh! Sapateia, meu bem.
+ Sapateia de cadeia,
+ Deixa-me ir banhar no mar,
+ No mar que dorme na areia!
+
+O mestre da viola, tocando sempre, retorquiu, com guelas de estentor:
+
+ Oh! Sapateia, meu bem!
+ Oh! Sapateia, faz arco!
+ Diga o mundo o que disser,
+ Já d’aqui me não aparto!
+
+Ao primeiro verso, a fileira do lado do Joaquim Machado voltou-se para
+a direita e a opposta para a esquerda, e cada dançante, com excepção
+d’aquelle, deu a mão ao seu par e levantou o braço, formando-se assim
+uma especie de abobada. O tocador e a dama respectiva passaram então
+sob o arco formado pelo par mais proximo, contornaram o par seguinte,
+mas pelo lado exterior, e foram passar por baixo do arco do terceiro
+par, e assim successivamente. O segundo par executou eguaes movimentos,
+logo que deu passagem ao mestre da viola, e todos os mais foram fazendo
+o mesmo, com uma regularidade tamanha, que o proprio vigario applaudiu
+enthusiasmado.
+
+As danças succederam ás danças, e os pares succederam aos pares, não
+porque alguem desse parte de fraco, mas porque era preciso contentar a
+todos os que tambem queriam _brincar_ o seu boccadinho.
+
+ * * * * *
+
+Era noite velha e ainda a folga não tinha acabado.
+
+As tres senhoras voltaram para a cidade n’uma carruagem, alugada para
+as levar e trazer; João Terra veiu no seu burrinho, e os quatro rapazes
+a pé, visto não ser grande a distancia dos Flamengos á Horta, e a noite
+estar fresca.
+
+Não havia luar, mas as estrellas palpitavam com vivo clarão no fundo
+negro do ceo, tão limpo de humidade que nem lembrava ceo dos Açores.
+
+O Ricardinho na frente com o Luiz Carvalho, aturava-lhe os remoques,
+visto que o outro, não tendo podido n’aquella noite justificar a sua
+fama de conquistador, se desforrava com o amigo.
+
+Mettido no vão de uma porta, para onde correra logo que os viu partir,
+o José ouviu-lhes a conversa, sem que nenhum dos quatro o presentisse:
+
+--Grande brejeiro, dizia o Carvalho. Quizeste ser imperador sem ter
+coroado!
+
+--Fala claro, que não te entendo, voltou-lhe o Ricardinho.
+
+--Talvez não arrastasses a aza á imperatriz? Parabens, que a pequena é
+de estalo! Mas o mais certo é não fazeres vaza. A Maria é muito capaz
+de judiar comtigo uns poucos de mezes, e deixar-te no fim a chuchar no
+dedo.
+
+--O futuro a Deus pertence.
+
+--Pois ella é que nunca te ha de pertencer!
+
+O Ricardo Terra estacou, mesmo á ilharga da porta onde estava o José, e
+disse com a prosapia inconsciente dos seus vinte annos:
+
+--Queres tu apostar em como antes de um mez a tenho no meu rol?
+
+O sobrinho do João Furtado sentiu uma vertigem, um desejo phrenetico de
+partir, de espedaçar alguma coisa, mas não fez o menor movimento.
+
+Atravez das candeias amarellas que lhe bailavam deante dos olhos,
+distinguiu que o fato do Ricardo era claro, e escuros os dos mais.
+
+Quando os viu longe, correu para o mesmo lado e entrou n’uma terra, que
+acompanha a estrada durante uma grande extensão, e que é resguardada
+por um muro baixo.
+
+Tendo-lhes ganho consideravel deanteira, agarrou n’um pedregulho e
+acocorou-se por traz do muro.
+
+Pouco teve que esperar. Deitou a cabeça de fóra cautelosamente.
+
+O Ricardinho vinha á direita. Era o mais proximo.
+
+Apenas o teve a dois passos, ergueu-se de chofre, levantou a pedra com
+ambas as mãos, bem acima da cabeça, e atirou-lh’a com quanta força
+tinha.
+
+Um grito e o baque de um corpo.
+
+Afastou-se do muro rastejando, e desatou a correr como um coelho em
+campo aberto. Ainda foi dançar quatro chama-ritas á _folga_ do
+tio, que só acabou quando já era sol nado.
+
+ * * * * *
+
+Nunca se descobriu quem fôra o assassino do Ricardinho Terra.
+
+Como o pae e o filho se tinham envolvido n’uma tramoia eleitoral,
+falaram os jornaes da opposição em vinganças politicas.
+
+O João Furtado é que de alguma coisa desconfiou, e por causa das
+duvidas arranjou d’alli a mezes e muito ás occultas, passagem para o
+José a bordo de uma baleeira.
+
+O rapaz foi ter aos Estados-Unidos. Um anno depois mandou pedir a prima
+em casamento, aconselhando ao tio que fosse mais ella para S. Francisco
+da California, pois se haviam de arranjar muito bem.
+
+O João Furtado, como averiguou que o sobrinho estava a caminho da
+riqueza, seguiu-lhe o conselho.
+
+A Maria é hoje muito feliz com o marido; mas o sogro, á cautela, não
+vive em casa do genro.
+
+
+[Ilustração]
+
+
+[Ilustração]
+
+
+
+
+ O Paiol
+
+
+ERA temivel o sargento Bernardo quando principiava a contar historias,
+mas como rastejava pelos setenta annos e tinha sido um valente,
+todos o escutavam com pachorra. Um dia na Malaca, pequena bateria do
+castello de S. João Baptista, na Terceira, ouviram-lhe o seguinte caso.
+Affiançaram-me depois que a narrativa não era destituida de fundamento.
+
+Demos a palavra ao sargento Bernardo:
+
+«Não sei bem quando isto foi. Lembro-me de que tinha vindo de Lisboa
+para S. Miguel em cabo, e que estava lá destacado havia bastante tempo.
+O commandante do material era um capitãosinho de má cara, d’aquelles
+com quem a gente não engraça, nem á quinta facada.
+
+Por isso o meu commandante, o nosso tenente, nunca era com elle visto,
+nem achado.
+
+Um dia começou a fallazar-se do homem. Sabem que mais? Pelos modos
+fazia o mesmo que o mestre do cazão de caçadores, que foi n’outro dia
+responder a conselho ... cortava-se, mas não era com tiras de panno!
+O que elle bifava, era muita e muita arroba da polvora do paiol. Mas
+lá na que dava para as salvas não roubava nada, essa lhes juro eu! As
+peças davam sempre o mesmo berro.
+
+A coisa tinha-se divulgado, e já se dizia pela cidade que o paiol
+estava cheio d’areia, porque a polvora tinha-a queimado o capitão ...
+puxando o rabo á sota.
+
+Que jogava era tambem certo. Excommungado!... Deus me perdôe! Não havia
+noite nenhuma em que eu estivesse de guarda ao quartel, no castello
+de S. Braz, que não me tivesse de levantar por causa do melro. E
+quasi sempre duas e tres vezes! Vinha buscar dinheiro, para voltar
+para a jogatina. E com que cara de peccado mortal elle andava! Se o
+visse á meia noite, em logar escuso, era capaz de pôr-me a crer nas
+feitiçarias, em que toda a galuchada de S. Miguel acredita como no
+Divino Espirito Santo.
+
+Andavam os taes dictos, quando chegou navio de Lisboa. D’alli a pedaço
+disparam esta novidade no castello; o capitão do material vae ser
+rendido e já desembarcou o tenente, que vem para o logar d’elle. Fiquei
+banzado!
+
+No dia seguinte vi o official novo. Era um perfeito moço, lá isso era!
+Alto como uma torre, grosso que nem isto...--O Bernardo abriu muito
+os braços, formando circulo.--E então a falar?... Tinha o diabo em si!
+Devia ser do Algarve.
+
+Segundo parece, contou logo que no commando geral da artilheria já
+se sabia da marosca do capitão, e que elle, tenente, recebera ordem
+para ver tudo, coisa por coisa. Se até disse que trazia uma balança de
+botica, para pesar as onças e meias onças de polvora!... Era chalaça,
+está visto.»
+
+--E o outro, ó tio Bernardo? perguntou um dos que ouviam o veterano.
+
+«O capitão? Se julgam que mudou de cara, enganam-se redondamente. Qual
+historia! Até o achei de melhor parecer, quasi a sorrir!
+
+Passados tres dias, começou a entrega. Foram primeiro ás peças,
+palamenta, lanternetas...»
+
+--Sim, tudo o que atulhava os armazens do material de guerra,
+interrompeu um dos ouvintes. E depois?
+
+--Ah! Vocemecês teem pressa? atalhou o Bernardo. Pois então haja saude!
+E ia retirar-se.
+
+Só depois de muito instado, se resolveu a continuar a historia, mas
+d’esta vez com certo mau humor.
+
+«No dia em que se devia entregar a polvora fui nomeado para ir com
+as fachinas ao paiol, acompanhar os dois senhores officiaes. Eu não
+acredito em bruxedos, já lhes disse, mas não sei o que me passou pela
+cabeça, quando me deram parte da nomeação. Parece-me que tremi de medo,
+o que me não tinha acontecido, podem crer, nas Antas nem no convento da
+Serra do Pilar. Ao menos nas linhas do Porto, sabia eu haver-me com os
+demos dos Corcundas, mas alli... O coração adivinhava-me alguma coisa.
+Á tarde fomos todos para o paiol. Sabem onde elle fica! Saíndo a gente
+da cidade para os Arrifes e andando menos de um quarto de hora, topa-o
+á sua mão esquerda.
+
+Iamos eu, as quatro fachinas, o capitão da jogatina e o tenente novo.
+Os dois senhores officiaes, por signal, tinham jantado bem, muito bem
+até! Logo se conhecia...
+
+Chegou-se ao paiol, abriu-se a porta do guarda-fogo e a do
+armazem,--tudo sem novidade. Quando eu estava a olhar para os barris
+e cunhetes, que já começava a lobrigar alinhados em duas fileiras, o
+capitão voltou-se para mim e disse-me:
+
+--O’ cabo Bernardo, você já esteve em minha casa, lá no castello de S.
+Braz?
+
+--Saberá V. S.^a que sim, senhor.
+
+--Pois então vá buscar o mappa da carga, que deixei lá por
+esquecimento. Peça-o ao fiel, ao 36.
+
+Fiz meia volta e já ia para marchar, quando ouvi:
+
+--Olhe!
+
+Volvi logo á rectaguarda.
+
+--Onde está a balança que lhe deu o fiel?
+
+--Saberá V. S.^a que o fiel não me deu balança nenhuma.
+
+--Cabeça de burro! Pois então volte você ao castello, e peça-lh’a! Como
+quereria o 36 que pesassemos a polvora? Tolice fiz eu em dispensal-o.
+Estava doente... É verdade! Leve as fachinas para trazerem a balança.
+
+--Bastam duas para a balança e uma para os pesos.
+
+O capitão olhou para mim d’um modo exquisito e disse afinal, como se
+lhe custasse:
+
+--Pois sim, deixe ficar um homem.
+
+Quando ia atravessando o guarda-fogo, deitei os olhos para o tenente,
+que, sem se importar com o caso, estava alegre a não poder mais. Eu já
+disse que elles tinham jantado bem.»
+
+--Ó tio Bernardo, você está dizendo mal dos seus superiores! notou um
+dos ouvintes, a rir.
+
+--Leva rumor! acudiu outro. Queremos o resto da historia.
+
+«Elle ahi vae, disse o velho, que estando para acabar um conto, não
+era capaz de parar nem á mão de Deus Padre. Quando eu ia pela estrada
+abaixo, para o lado da cidade, mais os tres galuchos... tres não,
+dois!... tambem lá estava um soldado velho, o 27, que tinha andado
+commigo nas sarrafuscas da Patuléa... Ah! mas quando eu ia na estrada,
+sentia-me alliviado de um peso de seiscentas arrobas... Não ficava mais
+satisfeito deitando ao chão a mochila, depois de uma marcha de oito
+leguas. Teria a gente dado uns duzentos passos, e eu ia conversando a
+este respeito com o 27, eis senão quando a terra nos treme debaixo dos
+pés, e por um pouco não vamos todos de ventas ao chão. Ao mesmo tempo
+sentiu-se um estrondo, como se tivessem disparado alli ao pé uma duzia
+de peças de quarenta e oito! Que demonio seria aquillo?»
+
+--O que era, tio Bernardo? perguntaram todos com interesse.
+
+«Tremor de terra não seria, trovoada menos ainda.--O paiol! foi o
+grito que me saíu da bocca. Voltei para traz, a correr como um doido.
+
+[Ilustração]
+
+D’alli a um instante vi que não me tinha enganado. A parede do
+guarda-fogo, do lado da estrada, estava tão esborralhada que não ficara
+pedra sobre pedra. O paiol tinha ido pelos ares. Só restavam umas
+ruinas fumegantes.
+
+Quando andavamos a revolver o enthulho, para ver se encontravamos o
+corpo d’algum d’aquelles pobres de Christo, appareceu-nos o cabo da
+guarda, que tinha escapado por estar longe do seu posto... a falar com
+uma rapariga. Maroto! Livrou-se da morte, mas precisava meia duzia de
+guardas de castigo.»
+
+--E mais ninguem escapou?
+
+--Escapou tambem a sentinella. Apanhou com pedras no corpo e perdeu
+dois dedos de uma das mãos, sendo por isso passado a veteranos. Veiu cá
+morrer ao castello d’Angra.
+
+--E o que tinha succedido no paiol?
+
+«Ao certo só Deus o pode dizer. O que se averiguou, foi que o maldito
+do capitão veiu fora do guarda-fogo, accender um charuto. A sentinella
+ainda lhe fez reparo. Estivesse eu lá que sabendo as coisas como
+corriam, atirava-me a elle e já não o largava. Boas ganas sentiria o
+capitão ao tenente chegado de Lisboa! De mais a mais, queria esconder
+a ladroeira. Pouco depois a sentinella apanhou com as pedras e não deu
+tino de mais nada.»
+
+--Não se acharam os corpos?
+
+«Achou-se o do tenente, á distancia de uns quinhentos passos.
+Reconheceram-o bem. Pelos modos o pobresinho ainda quiz fugir, porque o
+_cadavre_ estava menos queimado que os restos dos outros corpos.
+
+Gente que viu de longe aquella desgraça, contava que tinha subido para
+o ar um grande esguicho de fogo, tal qual, julgo eu, quando os montes
+da ilha vomitavam lume, em tempos que já lá vão muito longe.»
+
+--Sabe o que me parece exquisito, tio Bernardo? notou alguem. O tenente
+não desconfiar da marosca do capitão!
+
+--Essa cá me fica! Não disse eu que elle estava transtornado com a
+bebida? Coitado! Tive pena d’elle. Era um rapagão como as casas!
+
+--Do capitão é que o tio Bernardo não pode dizer mal. Se elle o não
+mandasse embora...
+
+--Tinha eu dado um salto de mil diabos, olá se tinha! Apesar d’isso,
+não lhe perdôo. Porque não morreu elle sósinho? Se queria acabar com
+estrondo, se não lhe bastavam os tiros da escolta á porta do cemiterio,
+que demonio! mettesse-se n’um bote mais um cunhete de polvora, remasse
+para o largo, e mecha no caso!... D’aquella maneira pagaram justos por
+peccadores. Não lhe perdôo!»
+
+
+[Ilustração]
+
+
+
+
+[Ilustração]
+
+
+
+
+ As feiticeiras
+
+
+OLÁ se elle acreditava em bruxarias!
+
+Com essas historias o tinham embalado.--A avó, mulher _de remate_,
+fartara-se de contar-lhe o caso do homem, que estando no Brazil foi uma
+noite visitado pela mulher, que vivia em S. Miguel, n’aquella mesma
+villa da Lagôa. Havia bem quatro mezes que a triste não recebia cartas
+do ausente, e como pelas que um visinho mandava á familia soubesse que
+elle estava de saude, desconfiou de que outra lh’o tivesse roubado.
+Para se tirar das duvidas, foi ter com uma bruxa, levando comsigo um
+collete velho, que o marido antes de saír da ilha tinha suado muita vez
+no trabalho, e que por conseguinte poderia servir para o bruxedo. «Ai!
+Quem me déra ver meu marido!» disse ella á feiticeira, quando acabou de
+explicar-lhe o que padecia. «E eras capaz de ir commigo?» perguntou-lhe
+a velha.--«Pois não!»--«Sem te admirares do que visses?»--«De
+nada!»--«Pois então vamos vel-o esta mesma noite. Quando me ouvires
+dizer: Vamos com os diabos!, repetes isto mesmo, e verás como te faço
+a vontade.» Ao bater das doze badaladas, estava á porta da bruxa.
+Perto cantou um gallo, de tal maneira que mettia medo. A feiticeira
+appareceu: trazia um lençol, para com elle fazer um barco, segundo o
+costume d’essas malditas, quando teem de ir para o mar; mudou, porém,
+de tenção e voltou a casa. Tinha-se lembrado de coisa melhor. Passados
+instantes, partiram. O pau de vassoura em que iam as duas, corria por
+ares e ventos mais do que essas estrellas, que passam no ceo deixando
+atraz de si um risco de lume. Muito em baixo, avistava-se como que um
+lençol escuro, azulado e muito grande, sem fim--devia ser o mar.--A
+porta do quarto do marido abriu-se de pancada, mas sem bulha... Se era
+por artes magicas!--O traidor lá estava deitado com outra mulher.--Se a
+bruxa consentisse, ella matava-os a ambos; mas só lhe deixou arrancar
+uma das mangas ao vestido, que a outra, quando se metteu na cama, tinha
+deitado para cima de uma cadeira. Assim, levava uma prova contra o
+marido, e podia certificar-se em qualquer tempo de que tudo aquillo não
+fôra obra de sonho nem de loucura.--Voltaram como tinham ido--o dicto
+cabe aqui perfeitamente--em quanto o diabo esfrega um olho, e fizeram
+um novo bruxedo, para que o marido tornasse quanto antes.--Ao cabo de
+mez e mez e meio, chegava a S. Miguel.--«Estás como um cravo! disse
+elle á mulher, quando entrou em casa, e quiz abraçal-a. Repelliu-o e
+perguntou-lhe o que tinha feito n’aquella noite, de que marcou a data
+precisamente. «Isto é que se chama! Quem se póde lembrar, depois de
+tanto tempo?...»--«Lembro-me eu!» E atirou-lhe á cara com a traição,
+que o homem negou a pés juntos. Ella então correu á commoda, tirou para
+fora a manga, e pondo-a bem á vista do marido, gritou-lhe: «Nega ainda,
+se és capaz, nega! Fui lá, vi-te deitado com a brazileira, e arranquei
+esta manga ao vestido da _ganhôa_!»--«Mas tu tens estado sempre
+na ilha...» redarguiu elle, branco, enfiado. «Sempre, menos n’aquella
+noite!»--«Ai! Que esta mulher é feiticeira!» exclamou o homem, fugindo
+espavorido. No primeiro navio embarcou para o Rio de Janeiro, e lá
+morreu pouco depois: da febre, disseram os cirurgiões; dos novos
+feitiços que a mulher e a bruxa lhe fizeram, para que mais nenhuma o
+lograsse, affirmava muito convencida a boa da velhinha.
+
+Mas ainda que a avó não lhe tivesse contado esta e outras historias
+similhantes, o Francisco Raposo não deixaria de crer em feiticeiras, á
+vista de dois casos succedidos com elle.
+
+O primeiro ainda poderia deixar-lhe duvidas. Era pequeno e vinha para
+casa, com um molho de lenha miuda. Já era noite fechada. Estava com
+somno. De repente, zumba, lenha ao chão! Levantou-a sem mais reparos,
+e foi andando. Logo adeante, repetiu-se o mesmo. Sentiu a pelle a
+arripiar-se, mas tornou a apanhar o molho. Deu mais cincoenta passos,
+e a lenha caiu-lhe pela terceira vez. Sem querer saber dos gravetos,
+desatou a correr como um perdigueiro atraz da caça, e só parou em
+casa, esbaforido, suando em bica. O pae riu-se e disse-lhe que não
+deitasse as culpas ás feiticeiras mas ao João Pestana. «Da primeira
+queda, sim senhor, respondeu elle, mas lá das outras...»
+
+O segundo caso é que não admittia a menor duvida. Já era um homem. Pela
+noite velha ia subindo aquelle caminho, que passa por cima da Ribeira
+Quente e d’onde se avista um grande pedaço da costa. Levava ao hombro,
+por tal signal, uns pés de batata doce, que o tio Joaquim lhe tinha
+encommendado. Por acaso virou-se para traz, e o que viu?... O mar todo
+em fogo ... um fogo muito branco, como se a lua se tivesse delido na
+agua. E ainda mais transido ficou, avistando uns vultos esbranquiçados
+a caírem da rocha para o mar, deixando faiscas por onde passavam, em
+quanto alli perto n’um chão imitante uma eira, dançavam outros de mãos
+dadas, aos pinchos, soltando umas gargalhadas e uns gritos muito finos,
+eguaes aos que dão certamente no inferno os condemnados, sempre que
+vêem chegar mais uma alma, para soffrer as penas eternas.
+
+Tendo-lhe ouvido a historia, um senhor de Villa Franca disse-lhe que a
+claridade do mar era do phosphoro de certos mariscos, e que o mais fôra
+inventado pelo medo.
+
+A primeira explicação, não a entendeu o Francisco; e em quanto ao
+medo, não fôra elle tamanho que lhe fizesse perder os pés de batata
+doce. E tanto eram bruxas, que o caso lhe tinha acontecido no dia
+d’ellas--n’uma terça feira.
+
+ * * * * *
+
+Não admira, pois, que tendo-lhe começado os negocios a correr mal e a
+fortuna a desandar, elle attribuisse tudo isto a obra de feitiçaria.
+Duas vezes seguidas se lhe estragou a sementeira do milho, em quanto as
+dos visinhos estavam que se podiam ver. Apodreceu-lhe tambem o batatal,
+não escapando sequer a batata já colhida, que toda _azougou_.
+Seria natural tudo isto?
+
+Para mais desgraça, tinha-lhe adoecido a melhor das duas vaccas, e o
+ferrador, não se entendendo com a doença, disse-lhe afinal, porque
+era homem de bem, e não quiz ganhar-lhe mais dinheiro: «Haja saude,
+Francisco e não voltes cá. Fica-te com esta: o que a vacca tem é mau
+olhado, e com esse não me sei haver. Vê se falas ao curandeiro das
+Furnas, mas antes de lá ir, trata de saber quem daria quebranto á pobre
+da alimaria.
+
+Foi isto o que de todo o convenceu.--Mas quem poderia desejar-lhe tanto
+mal, quem?--Tinha vivido sempre bem com toda a gente; a nenhum visinho
+dera nunca razão de queixa...
+
+Zangas sérias só as tinha tido com o primo João da Arruda, por causa
+da herança da tia Gertrudes, mas esse já não era capaz de fazer-lhe
+damno, que estava ha mais de seis mezes na terra da verdade. Morrera
+talvez pelo desgosto de ficar mal na demanda, em que um e outro tinham
+gasto rios de dinheiro. Tivera-lhe muita raiva, mas sem nunca poder
+satisfazel-a, graças a Deus!... Mostrava-lh’a bem n’aquelles olhares
+atravessados, que lhe deitava todas as vezes que passavam um pelo outro.
+
+Sim! D’esse estava livre!
+
+Da familia do primo só restavam duas irmãs, ou para melhor dizer uma
+só, visto que a mais velha já não se levantava da cama e era como se
+não existisse. E mesmo a outra, a Marianna, estava quasi sempre em
+casa, parece que a tratar da doente.
+
+Lembrou se de que ia atraz da vacca, da ultima vez em que a encontrara.
+E sem querer estremeceu.
+
+--Seria a corsaria que lhe andava a dar quebranto?...
+
+A avó sempre lhe dizia: Deus nos livre do poder da má mulher.
+
+Recordou-se melhor d’aquelle encontro.
+
+A prima passou por elle sem trocarem, está bem de vêr, o Deus te
+salve, e já deviam ir longe um do outro, quando o Francisco, sem saber
+porque, se voltou para traz. Pareceu-lhe que o tinham obrigado áquelle
+movimento. E viu os olhos da irmã do João da Arruda pregados n’elle,
+como os do irmão, e talvez a mostrarem-lhe ainda maior zanga. Teve
+ganas de moel-a com pancadas, mas deixou-a ir em paz, visto que ella
+seguiu o seu caminho apenas o encarou.
+
+Dois dias depois--agora é que ligava estas coisas--adoecia-lhe a vacca.
+
+Tratou de saber se mais alguma pessoa lhe poderia querer mal, e não
+descobriu nenhuma, nenhuma.
+
+Tirou inculcas e veiu ao conhecimento de que a Marianna já pouco ia á
+missa. Da ultima vez que lá foi, chegou quando o sr. padre já estava no
+altar e saíu antes de se ter dicto a ultima palavra do santo sacrificio.
+
+--Não quer deixar por muito tempo a irmã sósinha em casa, explicou
+alguem.
+
+--Não será por outra razão? perguntou o Francisco, muito assomado. Não
+pode estar bem na egreja, quem anda mettido com o demonio!
+
+--Ui! Isso é que é falar! respondeu o outro, mal convencido.
+
+Quem lhe dava todos os amens, era uma irmã do pae, a tia Lauriana,
+que morava sósinha e que para algumas pessoas tinha fama de bruxa e
+de saber _lêr a dita_. As coisas que ella contou ao sobrinho,
+deixaram-o estupefacto, sem pinga de sangue. Entre outras, disse-lhe
+que ha gente que para atormentar um inimigo compra um coração de
+boi preto--boi de outra côr não serve--, pendura-o na chaminé, e
+todos os dias o vae espicaçando--quanto mais funda a picada, maior o
+tormento--com uma tesoura aberta em cruz, e dizendo ao mesmo tempo
+uma oração de resultados tão certos como os da reza da peneira,
+que serve para adivinhar o futuro. Á medida que o coração se torna
+escuro e mirrado, tambem o inimigo emmagrece, e perde saude, alegria,
+felicidade. Egualmente proclamou os effeitos da terra de cemiterio,
+colhida n’uma sexta feira á meia noite.
+
+--Ui, homem, não te lembras da minha prima Luiza?... Não! Não te podes
+lembrar, disse-lhe a tia Lauriana. Pois a Luiza casou com um rapaz,
+que tinha tido amores com uma bruxa. E vae esta pegou em si e botou-lhe
+feitiços. E o pobre de Christo andava depois a gritar pela casa, a
+_oviar_ como um cão e a esconder-se debaixo das mezas e cadeiras.
+Ás duas por tres a Luiza estava na mesma. Só muito depois melhoraram...
+Arranjei-lhe eu ... quero dizer, arranjou-lhe alguem o remedi o... e
+poz-se a benzer a cabeça de ambos ... e elles então lançaram de si uma
+coisa com alfinetes ... mas viveram pouco mais tempo.
+
+O Francisco perguntou á tia o que pensava da Marianna e da irmã.
+
+--Tu gostas d’ellas? Assim eu gosto, respondeu a velha. Ainda bem que
+fizeste o irmão gastar com a justiça quasi tudo o que tinha. Nem elle
+nem as irmãs se lembraram nunca de me dar nada.
+
+--E serão feiticeiras as duas? Serão ellas que me fazem mal, mesmo
+encafuadas na toca?
+
+--Não digo menos d’isso, redarguiu a tia Lauriana, e aconselhou-o a
+vigial-as, a ir ás escondidas ao pé da casa das primas. Se sentisse
+cheiro a hervas queimadas ou algum parecido com esse, podia ficar na
+certeza de que todo o seu mal vinha d’alli.
+
+--As feiticeiras defumam sempre as casas, fingindo louvar o Santissimo
+Sacramento, quando por fim de contas dizia a velha com entono, o que
+ellas teem é pacto com o diabo, a quem rezam como a gente reza a Deus
+Nosso Senhor.
+
+O Francisco não queria ainda lançar todas as culpas á Marianna.
+
+Quem sabe se o bruxedo seria feito por algum inimigo, de que elle não
+desconfiasse?
+
+ * * * * *
+
+Em todo o caso tratou de precaver-se contra a influencia malefica, e
+tambem para isto lhe foi a Lauriana uma abalisada conselheira.
+
+Por traz da porta pendurou uma faca, de gume voltado para a rua e
+um chavelho de boi, a que todas as manhãs queimava a ponta, o que
+tambem fazia a um chifre de carneiro, que lhe era companhia constante.
+Ao mesmo tempo defumava a casa, _rezando os quartos em cruz_
+e deixando o fumo atraz de si. D’esta maneira, se as bruxas lhe
+entrassem, como costumam, pelo buraco da fechadura, tornariam logo a
+sair.
+
+Ainda receioso de que estes meios não fossem bastantes, preparou-se
+para dar uma lição á feiticeira que conseguisse invadir-lhe o
+domicilio. Comprou uma navalha com cabo de ponta de veado, amarrou-lhe
+um rosario bento e pôl-a aberta, junto á cabeceira da cama. Mal visse
+uma bruxa, atiraria a navalha, de modo que se espetasse no chão. E
+tanto aquella como as outras que viessem tental-o, ficariam alli
+presas, remoinhando estonteadas em volta do rosario, como em torno de
+uma luz esvoaçam os mosquitos. Elle então levantar-se-hia da cama,
+armado com a competente verdasca, e moeria á bordoada as infernaes
+visitantes. Mas esperou-as debalde noites e noites, ás escuras, de
+olhos muito abertos, ouvido á escuta.
+
+--Alguem de certo as avisou, explicou-lhe a tia.
+
+O triste foi emmagrecendo; tornou-se amarello, escaveirado.
+
+Os visinhos já lhe sabiam das crendices. Dois d’elles, uns doidivanas
+que ás proprias familias se não cansavam de pregar peças, tomaram o
+Francisco á sua conta. Moravam á ilharga, e uma noite, emquanto um lhe
+distraia as attenções, o outro conseguiu entrar-lhe em casa e amarrar a
+uma das pontas da colcha um cordel, que extendeu pelo chão até á rua.
+Meia hora depois o Francisco estava deitado, e já ia pegando no somno,
+tão estremunhado elle andava pelas continuas vigilias, quando sentiu a
+roupa a fugir.--D’esta vez é que eram ellas!-- E atirou-lhes a navalha,
+mas, pela precipitação, a ponta não se cravou no solho.--Ainda lhe
+escapavam as malditas!--Só por vergonha não gritou por soccorro.
+
+Ainda que lhe revelassem a verdade, não acreditaria. Da brincadeira
+tinha desapparecido qualquer vestigio, porque um puxão mais forte
+fizera o cordel escapulir da colcha.
+
+Como não vissem o resultado da primeira facecia, os esturdios, tarde
+da noite, espalharam á porta do visinho uma porção de sal e de cinza.
+Quando o Francisco saía de manhã, para ir tratar das vaccas, sentiu
+uma coisa a estalar-lhe debaixo dos pés e ia tendo uma vertigem. Uma
+_salgadeira_ á porta!... E de mais a mais tinha-a pisado!
+
+Correu a chamar a tia.
+
+A velha observou de longe e a medo, benzeu-se e murmurou:
+
+--Eh! Senhor! Muito mal te querem, filho. E o que as bruxas te deitaram
+á porta!... Sal, azeite, _incensio_, terra de cemiterio ... pois
+aquella terra é de cemiterio com certeza! Credo! E tambem pennas, não
+vês? accrescentou ella, indicando duas pennas de ave, que alli estavam
+por acaso. Manda já varrer tudo isto ... para o lado de fóra, toma
+sentido!... E vae queimar as botas com que pisaste o sal. Cruzes!
+Cruzes!
+
+Assim se fez. As botas eram novas da vespera.
+
+Por traz das persianas, os dois sustinham o riso a muito custo, e
+apenas viram o visinho entrar em casa e a velha ir-se embora, fecharam
+a vidraça, e começaram aos pulos, ás gargalhadas, planeando nova
+brincadeira.
+
+Arrepender-se-hiam talvez, se podessem ver o Francisco de joelhos
+deante do oratorio, erguendo uma supplica ardente para os santos, que
+conservava de ha muito constantemente allumiados.
+
+Antes de entrar, tinha hesitado e estivera quasi a obedecer á
+tentação...
+
+Sentia ainda uma esperança. É que a vacca parecia melhorar.
+
+Aquelles santinhos, especialmente o representado n’um retrato egual aos
+que se tiram hoje em dia ás pessoas[7], quantos milagres não tinham
+feito em vida e depois da morte? Porque não haviam de fazer mais um,
+a favor de quem lhe rezava com devoção tamanha, o coração opprimido, o
+rosto banhado de lagrimas?
+
+E por largo tempo invocou o auxilio milagroso de Santo Antonio.
+
+ * * * * *
+
+No dia de Natal a vacca amanheceu muito peior. Soltava a cada instante
+um mugido tão triste e doloroso, que nem uma alma christã metteria mais
+compaixão, dizia depois, na cadeia, o Francisco Raposo.
+
+--Só a Marianna não terá dó do pobre do bicho, pensou elle, quasi a
+chorar.
+
+A vacca fitou o dono com uns olhos muito afflictos, como a pedir que
+lhe acudisse, que não a deixasse morrer.
+
+Depois teve um tremor por todo o corpo, descaíu a cabeça para o chão,
+extendeu muito as pernas, deitou pela bocca uma baba muito grossa, e os
+olhos embaciaram-se-lhe.--Estava morta.
+
+--Quarenta patacas perdidas! gemeu o Francisco, e arrimou-se á
+humbreira da porta, arrancando os cabellos, praguejando, e batendo
+alli tão fortemente com a cabeça, que era um pasmo não a partir.
+
+Ouviu tocar á missa.
+
+Encaminhou-se para a egreja. Escutar a voz do sr. padre vigario, que
+sabia dar tão bons conselhos, vêr a hostia consagrada, tudo havia de
+socegal-o, e afastar-lhe os pensamentos ruins.
+
+A missa ainda não tinha começado.
+
+--Se a Marianna lá estaria?--Alli é que ella havia de ir, por ser a
+egreja mais proxima.
+
+Não estava.
+
+--Hereje! Nem sequer no dia do Natal!...
+
+Mas o sr. vigario dissera já outras duas missas n’essa manhã, e talvez
+a prima tivesse ouvido alguma d’ellas.
+
+Viu a tia logo adeante, e foi falar-lhe. D’ahi a momentos, já sabia que
+a Marianna não tinha estado na egreja.
+
+--Vi-a hoje, mas não foi na casa de Deus Nosso Senhor. Foi no foral,
+que vae dar ao sitio onde ella _véve_. Levava até, pendurada na
+mão, uma fressura de boi.
+
+--Eh, senhora! Porque levava ella isso?
+
+--Eu sei lá, Chico! Talvez por ser o que se tira mais barato no
+açougue, quasi de graça... Ou quem sabe se?...
+
+A velha calou-se.
+
+--Levava tambem o coração? perguntou-lhe o Francisco anciosamente.
+
+--Pois não, filho! Mas cala-te, que o sr. padre vigario não tarda.
+
+O que mais lhe importava era a missa, depois do que acabava de
+saber!--A Marianna ainda não estava satisfeita com o mal que lhe
+causara! Sem se valer da bruxaria do coração espicaçado com a tesoura,
+já o tinha posto de rastos; o que faria agora, que ia usar d’este meio?
+Bem podia elle preparar-se para ficar sem nada: sem a outra vacca, sem
+as terras, sem a casa... Se o fogo não lh’a queimasse, deitava-lh’a
+abaixo algum tremor de terra. Na ilha ha tantos!... E o demonio
+arranjaria de certo mais um, se as bruxas lh’o pedissem.
+
+Ia tão fóra de si, que ainda estava de cabeça descoberta.
+
+Chegou em frente da casa térrea onde moravam as primas.
+
+Da chaminé saía fumo--um fumo negro, signal certo de maldade.
+
+Entrou no quintal, e rodeou a casa, para ir ver o que estavam a fazer
+na cosinha.
+
+Tudo parecia abandonado, como se tivesse passado por alli a morte. Uns
+pés de couve meio seccos ... uma parreira comida pela doença...
+
+Deante da porta, junto ao cepo de partir a lenha, amarellejava um
+machado coberto de ferrugem.
+
+Escutou.
+
+ * * * * *
+
+Bem triste aquella manhã em casa da Marianna.
+
+Com as faltas de ar que lhe causava a lesão cardiaca, tinha a doente
+passado a noite em afflicções, e só depois de já ir o sol bem alto,
+pegou no somno, sentada na cama e encostada a umas almofadas e
+travesseiros.
+
+A Marianna, a despeito de não ter dormido um instante, saíu devagarinho
+e foi á cata de uma senhora, que lhe promettera mandar vir das Furnas
+os remedios applicados áquella doença pelo famoso curandeiro.
+
+As hervas e o mais tinham chegado na vespera, á noite. Se o curandeiro
+ia envergonhar os cirurgiões!... E com estes e com a botica, as duas
+irmãs tinham gasto mais do que podiam. A boa senhora ensinou á Marianna
+uma oração, que vinha escripta n’um papel, para ser dicta emquanto se
+queimassem as hervas. A pobre pagou os remedios com o ultimo dinheiro
+que levava, e tornou para casa.
+
+Á porta do açougue viu uma bella peça de carne. Suspirou, pensando
+que nem um caldo poderia dar n’aquelle dia á irmã. E queria-lhe
+tanto!...--Quando a mãe lhes faltara, o pae andava mettido com a
+cunhada, a Lauriana, e nem pensava nas filhas. Só a irmã mais velha
+cuidara na outra, que pouco mais tinha de oito mezes. Era a sua segunda
+mãe.
+
+O homem do açougue viu-a e adivinhando o motivo d’aquelle suspiro,
+d’aquella tristeza, offereceu-lhe um coração e um pedaço de figado, que
+pendiam de um gancho, a escorrerem sangue.
+
+A Marianna quiz recusar, mas por fim acceitou a esmola com
+reconhecimento.
+
+Entrou em casa de mansinho. Assim mesmo a doente acordou.
+
+--Aqui veem novos remedios, disse-lhe ella, em quanto accendia o lume.
+Estes agora, sim! Curam a toda a gente. Primeiro vou defumar a casa com
+as hervas: alecrim, rosmaninho e outras que não conheço. O remedio da
+garrafa é para se tomar á noite.
+
+A doente abanou a cabeça, com melancholia.
+
+--No dia de Anno Bom, se Deus quizer, já havemos de ir ambas á missa!
+continuou a Marianna muito alegre, e encostou a porta da cosinha, por
+ter passado a fumaceira da lenha. Foi ajudar a irmã a sentar-se á borda
+do leito e voltou para a chaminé. Logo que a lenha formou brazas,
+deitou-as para um fogareiro pequeno, e sobre ellas acamou as hervas do
+curandeiro.
+
+Levantou se um fumo espesso e escuro, que invadiu toda a casa.
+
+A Marianna levou o fogareiro para junto da irmã, dizendo ao mesmo tempo:
+
+«A minha casa venho defumar em louvor do Santissimo Sacramento do
+altar, com as tres missas do Natal, com as tres hostias consagradas,
+com os tres padres vestidos e revestidos...»
+
+A porta escancarou-se violentamente, e o Francisco Raposo, levantando o
+machado da lenha com ambas as mãos, cresceu para a Marianna, a gritar:
+
+--Vae-te para as profundas do inferno, bruxa de mil diabos!
+
+O corpo caíu pesadamente no chão, fendido ao meio o craneo pelo golpe
+do machado.
+
+A doente abriu muito os olhos, e antes que podesse gritar, resvalou
+para cima do corpo da irmã.
+
+Assim deixaram de viver as duas _feiticeiras_.
+
+--Morto o bicho, morta a peçonha! murmurou o Francisco, e foi
+entregar-se á prisão.
+
+[Ilustração]
+
+Acabou em Rilhafolles, tres annos depois.
+
+
+
+
+[Ilustração]
+
+
+
+
+ Mary
+
+
+EM quanto nos despedimos, esteve nervosa, commovida.
+
+A familia, como todo o bom inglez, lunchava na sala de jantar
+situada ao rez do chão da casa, a curta distancia do taboleiro do
+_croquet_, onde jogavamos, eu e a Mary.
+
+O que não diria o bom Thomas, o pae d’ella, se nos visse jogar
+d’aquelle modo,--elle que era um taco de primeira ordem, e que nos
+considerava a ambos como os seus discipulos predilectos!...
+
+Ah! Mas é que nem eu, nem ella pensavamos no _croquet_, e embora
+fingissemos dar uma grande attenção ao caminho que percorriam as bolas
+por entre os arcos de ferro, os nossos pensamentos concentravam-se
+todos, todos, n’aquella separação eminente, que nos impellira, na
+vespera, a declararmos o amor, que havia mezes transbordava dos nossos
+corações de dezeseis annos.
+
+Pobre Mary! Com os seus grandes olhos azues velados ligeiramente
+de lagrimas, fitava-me com melancholia, continuando talvez a fazer
+mentalmente a pergunta, que me dirigira no dia anterior, quando,
+afastados um pouco da familia durante o passeio á quinta do Gordon,
+tinhamos falado longamente do futuro.
+
+--Porque havia eu de partir? _Why?_
+
+Adivinhava-lhe o pensamento e fugia de encaral-a, porque sentia o peito
+a estalar de magua, e dizia de mim para mim, que melhor fôra que em
+vez de me mandarem para Lisboa estudar, me deixassem ficar na Madeira,
+segundo o conselho da Mary, e assaltava-me o desejo de declaral-o a
+toda a gente, de recusar-me terminantemente a embarcar no _Maria
+Pia_, que era esperado no dia immediato.
+
+Continuámos a jogar.
+
+Mary, baixando se, como para fazer melhor a pontaria, disse-me com a
+voz afogada pelos soluços:
+
+--_Dear! It is for the last time!..._
+
+Sim, era a ultima vez que poderiamos trocar uma palavra em segredo!
+
+Não tardaria que terminasse o _lunch_, a que ella se tinha
+subtrahido, pretextando um incommodo de estomago.
+
+Era a ultima vez em que poderiamos combinar os nossos projectos de
+futuro esboçados na vespera, e que a nossa ingenuidade considerava
+infalliveis.
+
+Então, reanimei-me!
+
+Quiz mostrar a Mary que, apesar dos meus dezeseis annos, não era uma
+creança incapaz de uma grande resolução.
+
+Quem me déra poder repetir o que então lhe disse! O que haverá de
+mais puro, de mais elevado, do que as palavras que exprimem um
+primeiro amor, e que desabrocham da bocca do adolescente, com toda a
+sinceridade, candura e enthusiasmo de que é susceptivel uma alma?
+
+Nos intervallos deixados pelo jogo, que seguiamos machinalmente,
+mostrei-lhe que eram impossiveis os devaneios formados na vespera; que
+era um puro sonho de creança o pensar que ella, herdeira rica, poderia
+ser para mim, que nada possuia; mas que forcejaria por merecel-a,
+estudando, trabalhando até vencer!
+
+E phantasiava um futuro de triumphos. Antevia o meu regresso á Madeira.
+Vinha coberto de gloria, subia a calçada do Monte, e ia depôr com
+ufania todos os louros colhidos, aos pés de Mary, que seria então para
+mim.
+
+Creancices!
+
+Ella escutava-me, abanando a cabecinha loura, não se deixando convencer
+e murmurando sempre:
+
+--_No! Never more!_
+
+Então exaltei-me, duvidei do amor de Mary, accusei-a de querer que eu
+representasse um papel pouco airoso, que désse azo a accusarem-me de
+especulador...
+
+Convenci-a.
+
+Estendeu-me a sua mão branca, onde ligeiros traços azulados marcavam as
+ramificações das veias, e disse-me pausadamente, em portuguez:
+
+--Pois então jure-me que voltará, que não se esquecerá de mim, que
+serei sempre a sua querida, a sua adorada!
+
+Oh! Como eu jurei tudo, tudo, mesmo junto ao arco da campainha!
+
+Ajustámos então manter correspondencia activa.
+
+A Clarinha Correia se encarregaria de receber as nossas cartas.
+
+--Nunca mais me esquece? perguntou ella ainda uma vez, fitando de novo
+em mim os seus olhos azues, profundos, scismadores.
+
+--_Never more!_ respondi, e estando muito perto d’ella, prestes a
+acabar o jogo do _croquet_, quiz beijar-lhe de leve, fugitivamente
+o braço alvo e rosado, que saía da manga larga do vestido.
+
+Mary arredou-se com vivacidade e lançou-me um olhar de censura, em que
+vinha implicito um _shoking_.
+
+N’aquella occasião levantaram-se da meza, e o taboleiro do
+_croquet_ foi logo invadido pelos que tinham estado fazendo honra
+ao _pale ale_ e ás _sandwiches_, e vinham para os canapés de
+vime gosar a sombra dos grandes castanheiros, que entrelaçavam lá muito
+em cima as frondosas ramarias, formando um impenetravel docel.
+
+No dia seguinte chegou o vapor da carreira e d’ahi a dois dias parti
+para Lisboa.
+
+Não consegui trocar mais uma palavra com Mary.
+
+Apenas a Clarinha me disse que poderia escrever-lhe.
+
+Boa Clarinha! Os seus quarenta annos de solteirona nunca se tinham
+negado a prestar similhantes favores!
+
+ * * * * *
+
+Que tempo durou a nossa correspondencia?
+
+Não posso dizel-o ao certo.
+
+O coração esquece tão facilmente!
+
+Lembro-me de que as nossas cartas respiravam paixão e enthusiasmo,
+desde a primeira até á ultima linha. Eu ás vezes, ao percorrer enlevado
+as regras perfeitamente parallelas, que deixara no papel lusidio e
+espesso a letra firme, esguia e commercial de Mary, perguntava a mim
+mesmo se era crivel que uma loura _miss_ podesse sentir amor tão
+vehemente e, o que valia mais ainda, ter a coragem de manifestal-o.
+
+Mas certo dia a duvida desappareceu. Li o espantoso idyllio de
+_Romeu e Julieta_, chorei lagrimas de punho com o soffrimento dos
+desditosos amantes de Verona, e conclui afinal que se um poeta de além
+da Mancha tivera espirito e coração para imaginar e sentir aquelle
+incomparavel poema de amor, não era muito que uma ingleza, em toda
+a plenitude da mocidade, e habitando de mais a mais um clima quasi
+tropical, escrevesse cartas como aquellas.
+
+E eu amava-a, oh! se a amava!... Quantas e quantas vezes me não
+aconteceu no meio de uma lição de mathematica ou de physica, na
+Polytechnica, caír em profunda abstracção e vel-a, sim! vel-a tal como
+era--pequenina, loura, rosada, um tanto diaphana, mas em todo o caso um
+typo adoravel de Gretchen mais candida ainda que a do _Fausto_!
+Via-a, sem me escaparem sequer uns pequeninos nadas, que a tornavam
+mais seductora a meus olhos. Mary não transigia, por exemplo, com as
+modas das suas patricias; não transigia completamente, é claro. Apenas
+os primeiros assomos da garridice tinham surgido n’ella, com os quinze
+annos, Mary abandonára o hediondo calçado que tira a certas inglezas
+toda a similhança com Cendrillon.
+
+O seu pésinho--creiam que não é do meu amor o diminuitivo--o seu
+pésinho mostrava-se, abaixo da fimbria do elegante vestido, calçando
+sempre uma airosa botinha, obra do mais habil «shoemaker» funchalense.
+
+Mary constituia um mixto adoravel da candura ingleza, com a animação e
+a elegancia meridional.
+
+Sabe Deus quantas curvas de segundo grau e quantos instrumentos de
+optica e de acustica eu deixei de estudar, para scismar unicamente
+n’aquella creaturinha fascinante!
+
+Eu queria trabalhar muito, queria colher á farta as taes coroas de
+louro antes sonhadas; mas vinha sempre a saudade sentar-se ao meu lado,
+diante da meza do estudo, e a nostalgia velar de crepes tudo quanto me
+cercava.
+
+Fui entristecendo.
+
+Emprehendeu curar-me, um amigo meu que é hoje deputado, não sei bem se
+progressista, se regenerador.--É tão difficil distinguil-os!...
+
+Obedeci-lhe machinalmente.
+
+--Deixarás de ser nostalgico, apenas eu faça de ti um bohemio.
+
+E levava-me a...
+
+Eu sei lá aonde me levava!
+
+No regresso, tarde da noite, assaltavam-me grandes furias;
+descompunha-o, protestava nunca mais acompanhal-o, fechar-lhe até a
+porta da casa de hospedes onde eu morava: mas esquecia tudo, apenas
+elle no dia seguinte, na escola, me dava um abraço apertado e soltava
+uma das boas gargalhadas, que ainda não deu em S. Bento, apesar da
+comedia em que o vejo mettido. Agora, basta que riam d’elle! É que anda
+expiando cruelmente a cumplicidade, que teve na queda d’este anjo.
+
+D’alli a pouco tempo eu estava perdido, na accepção dos paes de
+familia, mas tinha-me consolado.
+
+Não se julgue, comtudo, que esquecia Mary.
+
+Pelo contrario!
+
+Pensava sempre n’ella e por amor d’ella estudava, quando a bohemia me
+não levava até ás ruas da Baixa...
+
+Tanto Mary me não saía do pensamento, que eu estava de continuo a achar
+reminiscencias do seu rosto, umas vezes, outras da sua fina cintura,
+da sua mão, do seu pé, nas conquistas faceis que fazia ao lado do meu
+amigo, actual deputado, e de Luiz de Almeida, aquelle talentoso poeta e
+bohemio engraçadissimo, que a morte aniquilou tão cedo, mas que ficou
+memorado no espirito de quantos o conheceram.
+
+ * * * * *
+
+Uma noite, na rua do Ouro, ia eu com os meus dois companheiros de
+extravagancias, quando encontrei, de cara a cara, Henry, um irmão de
+Mary de que eu era amigo, e que estava estudando em Londres havia dois
+annos. Pelos modos o pae viera ao conhecimento de que Henry se escapava
+a miudo do collegio, e fazia frequentes excursões por Piccadily-Circus
+e Leicester-Square...
+
+O bom Thomas chamava-o para a Madeira, a fim de regeneral-o.
+
+Feitas as devidas apresentações, os meus companheiros declararam á
+queima roupa ao inglez, que sympathisavam immenso com elle, e logo o
+convidaram para nos acompanhar n’aquella noite.
+
+Quiz pôr obstaculos, inventei difficuldades, mas tudo foi inutil. O
+proprio Henry se insurgiu contra mim e acceitou a offerta com prazer.
+Queria despedir-se alegremente de Lisboa. E despediu-se, em companhia
+da seductora Lolita, que os meus amigos lhe apresentaram com todas as
+formalidades... que foram nenhumas.
+
+Quando no dia seguinte nos separámos a bordo do vapor, eu estive quasi
+a pedir-lhe para guardar segredo da aventura; não o fiz todavia,
+suppondo que Henry, por conveniencia propria, fosse discreto, e tambem
+para não lhe despertar suspeitas ácerca do meu amor pela irmã.
+
+Ai! Porque não o fiz?...
+
+No paquete immediato deixei de receber carta de Mary. Escrevi-lhe
+afflicto, perguntando-lhe o motivo d’aquelle silencio.
+
+Não tive resposta.
+
+Mandei cartas, sobre cartas.
+
+Um dia a Clarinha Correia compadeceu-se de mim e enviou-me este
+desengano:
+
+«A Mary soube, pelo irmão, coisas terriveis a seu respeito. Esqueça-a,
+porque ella já o esqueceu.»
+
+Repelli o conselho, e mandei á Clarinha uma carta, que ella deveria ler
+a Mary, e que seria capaz de commover não só os tigres da Hircania, tão
+celebrados de poetas e poetastros, mas até um agiota.
+
+A inglezinha resistiu!
+
+Dois annos depois casou.
+
+Como eu estava longe, padeci muito menos que o heroe de _Sous les
+tilleuls_, e não fiz nenhuma das incriveis tolices, a que elle se
+abalançou no seu exagerado romantismo.
+
+ * * * * *
+
+Dez annos depois.
+
+N’um dia de sol, galgava eu, em companhia de um amigo, o carreiro
+ingreme e fatigante, que vae das Féteiras para as Sete Cidades, na ilha
+de S. Miguel.
+
+Apesar de nos terem antes descripto com as côres mais vivas e
+fascinantes a belleza do afamado valle, já nos sentiamos invadir pelo
+aborrecimento, em consequencia da posição incommoda em que iamos
+sobre os burros alugados nas Féteiras, e tambem porque o sol estava
+ardentissimo.
+
+Ao nosso lado um rapazelho, descalço, jaqueta de picotilho ao hombro e
+cajado ferrado na mão, trepava o carreiro aos pulos, soltando por vezes
+o caracteristico «Passa cá i’asno!» e dando com a lingua no ceo da
+boca estalos frequentes, para animar os jumentos na trabalhosa ascensão.
+
+Adiante de nós, a uma centena de passos, caminhavam na mesma direcção
+dois viandantes, um homem e uma senhora. Elle, com as grandes pernas
+pendentes entre as quatro do burrinho e os compridos pés quasi de
+rastos pelo chão, balanceava muito os braços e levantava-os com
+frequencia, fazendo gestos de enthusiasmo, quando volvia os olhos para
+o vasto panorama, que já começava a desenrolar-se por traz de nós, do
+lado da beira-mar.
+
+Sobre a cabeça campeava-lhe um capacete branco, envolto em alguns
+metros de cassa da mesma côr.
+
+Por detraz e descendo para a gola do casaco amarello claro, havia
+melenas louras arruivadas, semelhantes a barbas de milho.
+
+Mas, naturalmente, o que mais nos attrahiu a attenção, foi a
+companheira do homem ruivo. Sentada de lado, sobre o albardão do burro,
+envolvia-se desde a garganta até aos pés n’um comprido guarda-pó de
+hollanda: ao de cima emergia a cabeça, occulta por um chapeu de palha
+preta, e embrulhada n’um espesso veo de gaze de seda azul; abaixo
+da roda do guarda-pó viam-se pendentes dois objectos escuros, muito
+compridos, de fórma estranha, que não raro se agitavam, na ancia de
+percutirem as ilhargas do jumento.
+
+Mais de perto conseguimos apurar, que os objectos negros eram dois pés.
+
+E levámos ainda mais longe a observação. Quasi perfurando o linho do
+guarda pó, adivinhavam-se umas saliencias osseas, correspondentes aos
+hombros, aos cotovellos, e até aos joelhos, não obstante as saias.
+
+--Quanto phosphato de cal daria aquella ingleza? perguntou o meu
+companheiro.
+
+Eu ia responder com um gracejo de não melhor gosto, quando attingimos a
+cumiada que limita em roda o extenso valle.
+
+--Eh! Senhores, disse-nos o rapaz dos burros--um cerrado michaelense
+dos campos--avistam-se d’aqui a _pêuco_ as lagoas.
+
+Apeámo-nos, e, seguindo o conselho que nos tinham dado na cidade,
+fomos andando para diante, mas olhando sómente para a nossa esquerda,
+a fim de que o valle das Sete Cidades nos apparecesse de subito, e não
+gradualmente, á medida que fossemos deixando para traz de nós um morro,
+que se erguia á nossa direita.
+
+--Virem-se os senhores agora, disse-nos momentos depois o rapaz. Lá
+estão as lagoas em baixo!
+
+Olhámos para a nossa direita... Um deslumbramento!--No ceo pairavam
+duas ou tres nuvens, muito brancas, que recortavam cruamente o sinuoso
+perfil sobre o azul carregado da atmosphera. Abaixo, uma cadeia
+continua de montanhas fechava n’uma enorme cinta de forma elliptica
+o valle, em cujo fundo se espelhavam as duas lagoas--azul a maior e
+mais distante, de reflectir o firmamento; verde a outra, das algas
+que n’ella mergulham e da vegetação, que se debruça pelas encostas
+sobranceiras. Na margem da primeira e á nossa esquerda, como que
+banhando-se n’aquellas aguas frescas e tranquillas, branqueavam as
+casas de um logarejo, em meio de viçosas plantações.
+
+Entre a povoação e as montanhas que limitam por aquelle lado a immensa
+cavidade, surgia um monte, de constituição vulcanica e de ilhargas
+cortadas por sulcos profundos, segundo as linhas de maior declive.
+
+No cimo abria-se a cratera, de que em epochas longinquas golfaram sem
+duvida ondas e ondas de lava incandescente.
+
+Largo tempo permanecemos a contemplar, extaticos, boquiabertos, o
+quadro maravilhoso. A magestade imponente do panorama infundia-nos
+o sentimento de respeito e de humildade, que fatalmente nos subjuga
+perante os grandiosos espectaculos da natureza.
+
+Fizeram-nos, de repente, saír d’aquelle extase, uns gritos soltados
+alli perto.
+
+Eram os dois inglezes.
+
+Ella, de costas voltadas para nós, e já sem o veo a cercar-lhe
+inteiramente a cabeça, dizia por entre paroxismos de admiração:
+
+--_Ooh!... Splendid!... Magnificent, indeed!..._
+
+Quando me parecia reconhecer aquella voz, a ingleza voltou-se e...
+
+Era Mary!
+
+Era sim, mas tão differente, tão mudada, que cheguei a abençoar
+n’aquelle momento a revelação indiscreta de Henry.
+
+Tinha-se tornado ingleza a valer, sob a influencia do deslavado marido.
+
+Estavamos muito perto um do outro. Ella olhou para mim casualmente,
+e, sem mostrar a minima commoção, de novo fixou a vista no lindissimo
+panorama.
+
+[Ilustração]
+
+Eu então vinguei-me, vinguei-me cruelmente!
+
+Esperei uma occasião em que ella me visse, e olhei-lhe para os pés.
+
+ * * * * *
+
+Ah! Mas agora noto uma coisa! Tenho escripto tudo isto, como se
+estivesse narrando um capitulo da minha biographia.
+
+O heroe do conto não sou eu, affianço-lhes, mas sim o Fernando, pae da
+Lili de que já lhes narrei uma aventura.
+
+Antes me julguem indiscreto, do que me acoimem de ingrato!
+
+
+
+
+ NOTAS DE RODAPÉ:
+
+
+[1] New-Bedford. É corruptela vulgar nos Açores occidentaes.
+
+[2] Assim chama a Boston o povo dos Açores occidentaes.
+
+[3] A devoção do Espirito Santo espalhada, ao que parece,
+no velho Portugal continental pela Rainha Santa, e levada pelos
+primeiros colonos para as ilhas, ainda aqui permanece tão profundamente
+arreigada, que as festas do Parácleto preenchem grandemente a vida
+açoriana desde o domingo de Paschoa até ao da Trindade. Todos os
+que a sorte indigitou para festeiros acceitam o encargo com o maior
+prazer, e desempenham-o com bizarria muitas vezes incompativel com as
+suas posses. Emigra o açoriano, vae lidar para Boston, New-Bedford,
+S. Francisco ou para outro ponto da União em que se concentra a
+colonisação portugueza; consegue juntar alguns centos de _dollars_
+e volta á patria só com o fito de _coroar_ em cumprimento da
+promessa, e gasta em dois dias o producto de muitos mezes de trabalho.
+Depois embarca novamente para a America, a proseguir na faina, mas nem
+de leve arrependido pela sua devota prodigalidade.
+
+[4] Textual.
+
+[5] Aurora.
+
+[6] Cabana.
+
+[7] O actor Ribeiro, que tão notavel desempenho deu ao _Avarento_ de
+Molière e a muitas outras peças, esteve em Ponta Delgada no começo da
+sua carreira, e fez no theatro Michaelense o papel do santo portuguez
+com tamanho exito, que os retratos que tirou vestido e caracterisado
+como entrava no applaudido drama sacro, espalharam-se por toda a ilha,
+e passaram das collecções artisticas dos seus admiradores, para os
+oratorios do povo, e ainda alli são reverenciados--dizem-me--como se
+representassem o verdadeiro Antonio de Bulhões. Quem sabe lá se este se
+pareceria physicamente com o artista dramatico?
+
+
+
+
+ INDICE
+
+
+ Pag.
+
+ O casamento do veterano 1
+
+ Os filhos do frade 61
+
+ O primeiro desengano 69
+
+ A Alegria do Mar 75
+
+ A lampreia 89
+
+ Mau homem 97
+
+ A licença do domingo 107
+
+ O contrabando 121
+
+ Piloto 129
+
+ Na vindima 137
+
+ O jantar do general 141
+
+ O aprendiz de barbeiro 151
+
+ A allemã 161
+
+ O marraxo 171
+
+ O pae do Jacintho 177
+
+ A folga 185
+
+ O paiol 209
+
+ As feiticeiras 217
+
+ Mary 235
+
+
+
+
+ =NOTAS DE TRANSCRIÇÃO.=
+
+Os erros tipográficos evidentes foram corrigidos.
+
+A pontuação, a hifenização e a ortografia foram tornadas consistentes
+quando uma preferência predominante foi encontrada no texto original;
+caso contrário, não foram alterados.
+
+Nesta versão, o carácter “caret” (acento circumflexo) foi utilizado com
+ou sem chaves para representar letras sobrescritas.
+
+
+
+*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK 75220 ***
diff --git a/75220-h/75220-h.htm b/75220-h/75220-h.htm
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+++ b/75220-h/75220-h.htm
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+ <title>
+ Historias Das Ilhas | Project Gutenberg
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+
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+ margin-right: 10%;
+}
+
+/* General headers */
+
+h1 {
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+ clear: both;
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+
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+/* Footnotes */
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+/* Poetry */
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+/* Transcriber's notes */
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+/* Poetry indents */
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+<div style='text-align:center'>*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK 75220 ***</div>
+
+<figure class="figcenter" id="cover" style="width: 1600px;">
+<img src="images/cover.jpg" width="1600" height="2729" alt="Coletânea de contos retratando estórias dos arquipélagos da Madeira e dos Açores.">
+</figure>
+
+<hr class="chap x-ebookmaker-drop">
+
+<div class="chapter">
+
+<p class="nindc"><span class="large">HISTORIAS DAS ILHAS</span></p>
+</div>
+
+<hr class="chap x-ebookmaker-drop">
+
+<div class="chapter">
+
+<p class="nindc"><span class="large"><i>MAXIMILIANO DE AZEVEDO</i></span></p>
+
+
+<h1>HISTORIAS<br>
+<span class="smcap">DAS</span><br>
+ILHAS</h1>
+
+<p class="nindc">(Reminiscencias dos Açores e da Madeira)</p>
+
+
+<p class="nindc space-above2 space-below2">
+<span class="smcap">Desenhos de</span> CELSO HERMINIO</p>
+
+
+<figure class="figcenter" id="logo" style="width: 80px;">
+ <img src="images/logo.jpg" width="80" height="76" alt="decorative">
+</figure>
+
+
+<p class="nindc space-above2">LISBOA<br>
+<span class="allsmcap">PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA</span><br>
+<span class="allsmcap">LIVRARIA EDITORA</span><br>
+<i>50, 52—Rua Augusta—52, 54</i>
+1899
+</p>
+
+<p><a href="#INDICE">INDICE</a></p>
+
+</div>
+
+<hr class="chap x-ebookmaker-drop">
+
+<div class="chapter">
+<p class="nindc">
+LISBOA<br>
+TYPOGRAPHIA E STEREOTYPIA MODERNA<br>
+Becco dos Apostolos, 11<br>
+</p>
+</div>
+
+<hr class="chap x-ebookmaker-drop">
+
+<div class="chapter">
+
+
+<figure class="figleft" id="i001" style="width: 400px;">
+<img src="images/i001.jpg" width="400" height="397" alt="Cenas de um casamento em que a noiva está vestida com um vestido longo e véu na cabeça, de braço dado ao seu noivo e outro soldado atrás do casal.">
+</figure>
+
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_1">[Pg 1]</span></p>
+<h2 class="nobreak" id="O_Casamento_do_Veterano">O Casamento do Veterano</h2>
+
+
+<div class="poetry-container">
+<div class="poetry">
+ <div class="stanza">
+ <div class="verse indent10">¿Su esposo la perdona aunque lo infama?</div>
+ <div class="verse indent10">¿Ama y perdona?—Es imposible; no ama.</div>
+ <div class="verse indent20"><span class="allsmcap">CAMPOAMOR.</span></div>
+ </div>
+</div>
+</div>
+
+
+<h3>I</h3>
+
+
+<p>No dia em que o Jorge casou com a filha da Isabel houve grande reboliço
+no Castello de S. João Baptista. Depois da missa regimental, o padre
+capellão de caçadores 10 recebeu os noivos, com prévia dispensa do
+prelado da diocese, na grande capella da fortaleza. Era numerosa a
+assembléa, formada especialmente pelos curiosos.</p>
+
+<p>Officiaes e soldados, logo que o batalhão destroçou, correram para o
+templo, onde já encontraram muitas mulheres, algumas de <i>manto</i>,
+aguardando anciosas a chegada do cortejo nupcial, e fazendo em voz
+baixa e com enorme dispendio de gestos, abundantes commentarios,
+qual d’elles mais frisante, á resolução tomada pelo cabo de
+veteranos.—Escolher para mulher uma raparigota, que podia á vontade
+ser sua neta!—</p>
+
+<p>—Eu cá por mim, exclamava a Luiza Braga, escancarando a boccaça meio
+<span class="pagenum" id="Page_2">[Pg 2]</span>
+desdentada, ía jurar que lhe deram <i>coisa para querer bem</i>. Aqui
+onde me vêm, <i>destrinço</i> o Jorge desde rapaz pequeno, e nunca lhe
+descobri tenções de casar. Não era então aos cincoenta e oito annos,
+que estando com o juizo todo, havia de... Nada! Nada! Elle bem sabe que
+«albarda nova em burro velho é matadura certa».</p>
+
+<p>—E a quem o Jorge foi buscar?... Á Rosa!... acudiu a Josepha Julia,
+cunhada do sargento Migueis, piscando muito o olho esquerdo, unico de
+que era possuidora.</p>
+
+<p>—Eu não digo que a rapariga seja <i>somenas</i>, mas sempre é filha da
+Isabel, e ninguem desmente o seu sangue. D’arredio, d’arredio, é que eu
+gosto de vel-as a ambas!</p>
+
+<p>—Deixe a tia Luiza estar que a Rosa tambem não é nenhuma santinha,
+replicou a Josepha. Não lhe quero pôr <i>pitafe</i>, mas se foi verdade
+aquella historia com o sargento Luiz...</p>
+
+<p>—Não seria, menina. Olhe que a Isabel é rata sabia e não a deixava ir
+á noite, sósinha, para o baluarte de S. Pedro. O 33 da artilheria é que
+disse, que tinha lá visto os dois, mas como todos lhe conhecem a má
+lingua... Pois não foi elle que andou por ahi a espalhar que a menina
+Josepha olhava para o alferes da segunda, um homem casado e pae de
+filhos?!</p>
+
+<p>A Josepha, ao ouvir estas palavras, que lhe foram quasi segredadas,
+poz-se vermelha que nem malagueta, e redarguiu promptamente:</p>
+
+<p>—Tão damnada é a lingua d’elle, como as que repetem o que o marau
+vomita. <i>Ubei!</i></p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_3">[Pg 3]</span></p>
+
+<p>—Ó menina, olhe que eu não tenho falas com o 33!</p>
+
+<p>—Nem deve ter, que a tia Luiza, por ter essa edade, não escapa a
+similhante navalha. Sempre que o tio Braga passa ao pé d’elle, apanha a
+sua risadinha e é apontado com o dedo...</p>
+
+<p>A velha despediu-lhe um olhar terrivel, enguliu em secco, e atalhou:</p>
+
+<p>—Bem, bem, não se fala agora nas patifarias do 33. Em todo o caso o
+Jorge devia saber que a Rosa não era para a sua bocca.</p>
+
+<p>—E que pode empanzinar com o petisco, accrescentou a outra, já de
+perfeito accordo.</p>
+
+<p>N’esta occasião sentiu-se o ruido dos passos de muita gente que vinha
+atravessando a parada, e os noivos d’ahi a instantes entravam na
+capella, acompanhados pelos padrinhos, pelos convidados e pelas pessoas
+que, impellidas pela curiosidade, tinham ido esperal-os á porta da
+casa terrea, onde a viuva do sargento José de Medeiros vivia desde ha
+muito, por mercê dos governadores do castello. O Jorge, aprumado dentro
+da sua farda de gola alta, botões muito lusidios e divisas alvas de
+neve, mal deitava os olhos para a gente que o rodeava, e, com a cara a
+escaldar, seguiu machinalmente pela capella adeante, ao lado da noiva,
+que vestida de cassa branca semeada de raminhos vermelhos, e toucada de
+grinalda e veo, dava mostras de vergonha, mal deixando ver os grandes
+olhos pretos por baixo das longas pestanas assetinadas e bastas. No
+rosto oval, branco e pequenino, esbatia-se um rubor intenso.</p>
+
+<p>Nunca tinha imaginado poder tornar-se o alvo da attenção de tanta
+<span class="pagenum" id="Page_4">[Pg 4]</span>
+gente, e, se não fosse uma vergonha, fugiria d’alli, a bom correr.</p>
+
+<p>Agora é que deveras se arrependia de ter acceitado a grinalda e o veo á
+menina Elvira, filha do capitão da segunda companhia de caçadores 10,
+que estava casada, desde o mez anterior, com o tenente Aurelio Joaquim,
+ajudante da praça. Se tivesse trazido como tencionava, o seu lenço
+de seda de barras azues, não daria tanto nas vistas. Era tambem esta
+a vontade do Jorge, porém a Isabel insistira pelo veo, proclamando-o
+«coisa muito mais fina».</p>
+
+<p>O cortejo rompeu atravez da multidão, direito ao altar, onde havia de
+effectuar-se a ceremonia.</p>
+
+<p>Notaram alguns dos presentes, e antes de todos a Luiza Braga, que a
+Rosa tinha córado mais ainda, e estremecido levemente, ao dar com os
+olhos no sargento Luiz, que, muito apertado na fardeta côr de pinhão,
+se bamboleava, com ar de escarneo, na primeira fila dos curiosos.</p>
+
+<p>—Nem aqui mesmo a deixa! Já é pouca vergonha! murmurou a Luiza ao
+ouvido da Josepha Julia.</p>
+
+<p>—Elles lá se entendem, regougou esta ultima, e concluiu, suspirando:
+«Tal desgraça!»</p>
+
+<p>Entretanto o padre capellão ia tartamudeando as palavras sacramentaes,
+e o sargento Luiz muito satisfeito de si cofiava o farto bigode louro.</p>
+
+<p>—Olhem! Lá está o sr. governador! murmurou a Luiza Braga para as
+mulheres que a rodeavam.</p>
+
+<p>O coronel Jeronymo Cardoso acabava effectivamente de surgir a uma
+porta lateral da capella e deitava olhares perscrutadores para os
+noivos, sem comtudo esquecer as dores cruciantes, que lhe impunham os
+<span class="pagenum" id="Page_5">[Pg 5]</span>
+terriveis joanetes.</p>
+
+<p>A Isabel tinha querido que o Jorge o convidasse para padrinho, e
+chegara até a sondar <i>sua incellencia</i> com exito razoavel, mas o
+veterano puzéra os pés á parede, e a despeito de uma formal reprimenda
+da futura sogra, insistiu em escolher o José Maria, seu camarada desde
+o cerco do Porto, que lá estava na egreja á ilharga do amigo, tentando
+aprumar quanto possivel o corpo já muito derreado pelos janeiros.</p>
+
+<p>O jantar do casamento foi em casa do Jorge.</p>
+
+<p>Tudo correu bem e só houve de notavel o pregar a Isabel, já um tanto
+avinhada, uma furiosa descompostura na Luiza Braga, porque a viu á
+porta da rua, espreitando.</p>
+
+<p>Os convivas apaziguaram a questão e d’alli a pouco despediram-se, indo
+o José Maria, um quasi nada alegrote, acompanhar a Isabel, até casa.</p>
+
+<p>—Parecemos tambem dois noivos, disse o velho, batendo-lhe, com a
+mão aberta, no meio das costas, e foi-se embora a trocar as pernas,
+em quanto a viuva lhe gritava do limiar da porta que «para um marido
+<i>tanto</i> fino só a rainha que estava em Lisboa!»</p>
+
+<p>N’aquella noite, mercê das copiosas libações, dormiram mais
+profundamente alguns dos habitantes do burgo militar, que pousado
+no isthmo que liga a peninsula do Monte Brazil ao resto da ilha
+Terceira, olha sobranceiramente para Angra atravez das suas numerosas
+canhoneiras.</p>
+
+
+
+
+<h3>II</h3>
+<p><span class="pagenum" id="Page_6">[Pg 6]</span></p>
+
+
+<p>O Jorge tinha perto de cincoenta e oito annos.</p>
+
+<p>Alto, espadaudo, bem conservado, era, sob o ponto de vista militar,
+um exemplo vivo do que tinha sido o exercito portuguez, em quanto
+o governou a disciplina implantada pelo marquez de Campo Maior, e
+conservada pelos officiaes que tinham servido com o famoso organisador
+inglez. Era um gosto vel-o perfilar-se deante de um superior e
+fazer-lhe a continencia com todos os tempos e prescripções da ordenança!</p>
+
+<p>Aos domingos, para ir á missa regimental, punha ao peito o habito da
+Torre Espada, que tinha ganho no cerco do Porto, por estar umas poucas
+de horas a disparar sósinho um obuz, contra umas alturas, cujo accesso
+convinha a todo o custo impedir ás tropas de D. Miguel. As demais
+praças que primeiro guarneciam a bocca de fogo e outras que vieram
+substituil-as, tinham ido cahindo, a pouco e pouco, ás balas de um
+regimento transmontano, espalhado em atiradores na frente da bateria.</p>
+
+<p>—Maior Africa tu fizeste, dizia-lhe n’essa tarde o primeiro tenente
+José Victorino Damasio, em ficares com ambos os braços, do que em
+escapar ás ameixas d’aquella sucia! Tu és doido! Servir sósinho um
+obuz!...</p>
+
+<p>—Ó meu tenente, redarguiu o artilheiro ilheu com cara muito seria,
+pois elle <i>havera</i> de estar calado, tendo uma bocca tanto grande e
+sempre escancarada?! Até parecia mal!</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_7">[Pg 7]</span></p>
+
+<p>—Em todo o caso foi doidice, continuou o tenente a rir.</p>
+
+<p>—Saiba V. S.<sup>a</sup> que muitos senhores officiaes tambem dão cá á gente
+d’esses maus exemplos. V. S.<sup>a</sup> desculpe, mas parecia mesmo doidinho,
+quando n’aquelle dia em que lhe atravessaram o corpo com uma bala,
+queria á fina força, mal lhe fizeram o primeiro curativo, continuar a
+commandar a sua peça. Eu bem me lembro! Só á má cara é que o arrancámos
+de lá. Por isso, accrescentou o Jorge, indicando a insignia da Torre
+Espada que ornava o peito de José Victorino, fez muito bem o nosso
+Imperador dando a V. S.<sup>a</sup> essa fitinha azul ferrete.</p>
+
+<p>—Pois tambem tu a mereces e has de tel-a, affirmou o official.</p>
+
+<p>E teve effectivamente uma das quatro destinadas a artilheiros, na ordem
+do dia relativa ao combate.</p>
+
+<p>Todas as testemunhas lhe foram favoraveis no inquerito, em que se
+baseou a concessão.</p>
+
+<p>Ainda assim o Jorge, embora no seu intimo estivesse a babar-se de
+gosto, não se fartou de desculpar-se para com os camaradas, dizendo
+que tudo aquillo era obra do tenente José Victorino, e que, verdade,
+verdade! o que elle tinha feito, fazia-o qualquer galucho.</p>
+
+<p>Depois da convenção de Evora Monte, mandaram-o para a sua terra, para a
+ilha Terceira, e d’alli a annos arranjaram-lhe passagem a veteranos e o
+emprego de fiel do material de guerra.</p>
+
+<p>Tinha á sua conta o armazem fronteiro á porta dos carros do castello de
+S. João Baptista.</p>
+
+<p>Alli, ou n’uma courella do Monte Brazil, que os governadores lhe davam
+<span class="pagenum" id="Page_8">[Pg 8]</span>
+para cultivar, gastou elle durante muitos annos as longas horas do dia,
+que sempre lhe pareciam curtas.</p>
+
+<p>Era um gosto visitar o armazem, n’aquelle tempo.</p>
+
+<p>Pelo pateo, rodeado de um muro baixo, espalhavam-se com symetria as
+pilhas de balas cuidadosamente pintadas de preto, e descançavam, em
+dormentes de madeira, os antigos canhões de ferro e de bronze, tão bem
+conservados, como se na vespera tivessem vindo da fabrica. Alegrando o
+quadro, floresciam em volta do recinto hortensias e gyrasoes.</p>
+
+<p>Lá dentro, no casarão apenas allumiado pela claridade coada atravez das
+frestas envergadas e pela que vinha da porta, alongavam-se em cabides,
+dos dois lados, soquetes de massa negra e cabo vermelho, emparelhados
+com as lanadas e os sacatrapos. Os espeques, encostados ás paredes,
+nos cantos, continuavam a uniformidade do tom vermelho, quebrado tão
+sómente pela côr de chumbo das pernas da cabrilha, postas ao centro, em
+cabide mais forte, que sustentava tambem, inferiormente, o molinete, o
+cadernal e o moitão d’aquelle apparelho destinado ás manobras de força
+da artilheria.</p>
+
+<p>Toda esta ordem e aceio eram devidos ao Jorge. Raro pedia fachinas
+para o coadjuvarem. Só quando havia que remover algum peso de muitas
+arrobas, e assim mesmo!...</p>
+
+<p>Descançava emquanto engulia o boccado.</p>
+
+<p>O jantar fazia-lh’o a Isabel, por um ajuste, que havia entre ambos.
+Farto de rancho andava elle até aos olhos, e por isso queria «comida
+feita por mão de mulher». Demais, a viuva bem precisava que a
+<span class="pagenum" id="Page_9">[Pg 9]</span>
+ajudassem, coitada! e não lhe exigia nenhum disparate.</p>
+
+<p>Ás vezes, em logar d’ella, ia a filha levar-lhe o comer. Quando o
+contracto principiou, a Rosa já era crescidota, mas ainda assim, uns
+dias por outros entornava-lhe o jantar, porque ia de corrida, para
+se despachar mais depressa. Apesar d’isto o veterano nunca chegou a
+zangar-se, porque ao encaral-a, perdia o animo, vendo-lhe aquelles
+olhos tão pretos e tão bonitos!... E nunca disse nada á Isabel...</p>
+
+<p>Quando o caso succedeu a primeira vez, a Rosa ficou muito contente, e,
+voltando no dia seguinte, poz a cestinha no chão mal viu o Jorge, e
+deu-lhe, em agradecimento, um abraço e um beijo.</p>
+
+<p>Ao sentir a carne fresca e macia da rapariguinha tocar-lhe no rosto, o
+velho ficou exquisito, e d’alli em deante não estava bem ao pé da Rosa.
+O beijo voltava-lhe á memoria, e com elle a noção vaga de alguma coisa
+que tinha perdido, e que todos os mais gosavam...</p>
+
+<p>—Nada! Nada! pensava por fim. Eu com isto dou em maluco. O melhor é
+dizer á Isabel que fica roto o nosso ajuste, que não me arranje mais a
+comida.</p>
+
+<p>Mas que motivo lhe havia de dar? E custava-lhe tanto vel-a menos vezes,
+a Rosinha!</p>
+
+<p>Passou-se tempo, a pequena tornou-se mulher, e um dia o Jorge tomou a
+Isabel de parte e falou-lhe em casar com a filha, de quem era «muito,
+muito amigo!»</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_10">[Pg 10]</span></p>
+
+<p>A viuva do sargento Medeiros ficou banzada.</p>
+
+<p>Podia lá entrar-lhe na cabeça que o veterano quizesse aquella gaiata,
+que não tinha onde cahir morta e que, de mais a mais, no respeitante
+a juizo... Quantos amargos de bocca já tinha tido em razão d’este
+particular!... Se havia de ter outros peiores ou de vel-a perdida,
+mais valia aproveitar aquelle amparo, que lhe cahia do ceu aos
+trambulhões... É verdade que o noivo podia ser avô da Rosa, mas era
+homem decidido, e saberia conserval-a no bom caminho.</p>
+
+<p>Ainda assim, por descargo de consciencia, mostrou á filha as coisas
+como eram: que o Jorge tinha muita edade e que não seria portanto o
+marido que mais lhe conviesse. Lembrou-lhe, porém, que elle avezava bem
+bons vintens, que só querendo-lhe deveras é que se teria resolvido a
+pedil-a em casamento, e que não se parecia em nada com os bandalhos,
+que andam por esse mundo a desinquietar as raparigas.</p>
+
+<p>—E a final que proveito é o d’ellas, as mais das vezes? perguntava com
+acrimonia a viuva, fincando as mãos nos quadris, bem especada ao meio
+da casa. Arranjarem filhos, sem ter apanhado marido!</p>
+
+<p>A Rosa não se decidiu logo. Custava-lhe a tomar o pedido a serio.—Seu
+marido, o tio Jorge!...</p>
+
+<p>Bem sabia que o Luiz tinha olhado para ella por brincadeira, sem tenção
+de casar; mas quiz fallar-lhe, para ver que effeito lhe produziria
+a noticia. O sargento ouviu a participação, achou que o pedido do
+veterano se justificava com a belleza da Rosa. Elle proprio desejaria
+fazer o mesmo ... mas não podia, porque o pae o tinha obrigado a
+<span class="pagenum" id="Page_11">[Pg 11]</span>
+prometter casamento a uma prima, em Lisboa, e seria matal-o de desgosto
+o escolher outra. O que faria com certeza, era ficar solteiro.</p>
+
+<p>A Rosa não o acreditou, mas ficou-lhe agradecida por aquella
+explicação. Esperava até que o sargento a tratasse mal, quando soubesse
+dos projectos de casamento. Ainda assim jurou comsigo mesma, que havia
+de se vingar acceitando o primeiro que a quizesse para mulher, uma vez
+que podesse gostar d’elle. Mas o Jorge, não! Era tão velho!</p>
+
+<p>Um dia a Isabel entrou fula, pela porta dentro.</p>
+
+<p>A Luiza Braga, a quem ella contara o pedido do Jorge, tinha-lhe dado
+uma gargalhada nas bochechas, dizendo-lhe que o veterano estava de
+certo a caçoar com ellas, e que tirassem d’alli a sua ideia.</p>
+
+<p>—Elle é isso? bradou a Rosa, tambem furiosa. Pois negra seja eu, se
+não estiver casada antes de um mez!</p>
+
+<p>Tinha cumprido a promessa.</p>
+
+
+<h3>III</h3>
+
+
+<p>Tres semanas depois do casamento houve tourada de corda em S. João de
+Deus.</p>
+
+<p>O Jorge, logo que a Isabel falou em irem todos ao divertimento,
+condescendeu, dizendo que não queria a rapariga para freira nem para
+bicho do buraco, e d’alli a boccado saíam do castello pela porta dos
+<span class="pagenum" id="Page_12">[Pg 12]</span>
+carros, os noivos na frente, a Isabel e o José Maria um pouco mais
+atraz.</p>
+
+<p>Os caçadores da guarda piscaram os olhos uns para os outros
+cubiçosamente ao verem a Rosa, e um de S. Miguel, mais descarado,
+commentou, a meia voz, que nenhum d’elles apezar de moços, se benzeria
+com um «peixão de estoiro» como aquelle que o velho tinha apanhado.</p>
+
+<p>O José Maria, que ainda ouviu a graçola, cuspiu-lhes a phrase:
+«Galuchada atrevida!» mirando de soslaio o chocarreiro.</p>
+
+<p>Depois de descerem até Angra e de atravessarem parte da cidade,
+cujas ruas, de ordinario pouco concorridas aos dias santos, mais se
+despovoavam n’aquelle domingo por causa da tourada, os quatro subiram
+até ao arrabalde de S. João de Deus, onde já enxameava uma grande
+multidão.</p>
+
+<p>Dos mirantes, pouco mais altos que uma pessoa, debruçavam-se muitas
+damas, a quem os donos das casas sempre reservam os melhores logares,
+e por traz d’ellas ou dos lados apinhavam-se as mulheres do povo,
+merecendo geralmente umas e outras os olhares de quem buscasse apenas
+caras bonitas, sendo porém as segundas mais dignas da attenção do
+pintor de costumes, em razão da variedade dos trajos, que ostentavam
+quasi sempre com extremada garridice.</p>
+
+<p>Algumas, as mais estimadas, tinham vindo com o <i>manto</i>
+caracteristico, muito encaloradas dentro d’aquelle envolucro de alpaca
+preta, egual á da saia, que, franzido em volta da cintura, lhes cobria
+o tronco, os braços e a cabeça, formando por cima um tecto á laia de
+<span class="pagenum" id="Page_13">[Pg 13]</span>
+telha, duro graças ao forro de papellão que o reveste pelo interior.
+Quantos rostos não parecem mais encantadores no fundo d’aquelle nicho,
+quando entrevistos na semi-obscuridade do <i>manto</i>, que mão
+pequenina, ás vezes bem calçada, sorrateiramente descerra á altura
+do pescoço, para logo o fechar unindo-lhe as bordas deanteiras, de
+modo a ficar apenas um orificio, atravez do qual os olhos dardejam
+curiosos!... E o effeito não falha, porque o pomo vedado é o mais
+appetecido.</p>
+
+<p>A par do <i>manto</i>, que em muitas se via descahido para traz por
+causa do calor, figuravam os capotes de longo cabeção e pesado capello
+terminado posteriormente em forma de travesseiro. Este abrigo, que
+constitue abobada por cima da cabeça e resguarda as faces com as abas
+verticaes, acabadas em bico á altura dos hombros, tinham-o tambem
+deitado para as costas algumas das donas, não menos encaloradas que
+as dos <i>mantos</i>, ao passo que outras, mais cautelosas, os haviam
+guardado dobradinhos a preceito, dentro da casa e em sitio escolhido.
+Nada! Que o capote para muitas é a bem dizer um dote.</p>
+
+<p>Do matiz formado pelos chales e lenços de seda ou de chita, que
+adornavam as restantes mulheres do povo, destacava-se um ou outro
+capote e lenço, para ser ainda maior a diversidade dos trajos.</p>
+
+<p>Quando o Jorge e os companheiros chegaram ao logar da festa, já
+remoinhavam pelas ruas, aos bandos, os rapazes do povo, trajando bellas
+roupas de <i>panno fino</i>, chapeus de feltro e alvas camisas, com os
+<span class="pagenum" id="Page_14">[Pg 14]</span>
+collarinhos unidos por dois grandes botões de ouro, lavrados em relevo
+imitante a filigrana e encadeados pelo pé. Só os velhos e a maioria dos
+<i>senhores da cidade</i> buscavam refugio nos mirantes e janellas.</p>
+
+<p>Por entre os passeiantes esgueiravam-se, a espaços, as retardatarias.
+Estas—duas lindas moçoilas do campo—faziam resoar na calçada as solas
+de pau das <i>galochas</i> pregadas, em volta, de tachinhas amarellas,
+e enfeitadas no peito do pé com bordados escarlates a sobresahirem
+do fundo azul da carneira. E como ambas corriam ligeiras com aquelle
+calçado tão difficil de suster nos pés! Ora! Se até iriam dançar, a
+menos que o tirassem, para bailar em palmilhas de meias!</p>
+
+<p>Quem primeiro veiu fallar ao Jorge foi o João Matheus, um leiteiro
+que tinha a freguezia de muitos moradores do Castello. O veterano
+quasi não o conheceu, tão differente o achou, de quando elle ia por
+lá ao seu negocio, de manhãsinha, mettido n’uma grande camisa de
+linho e coberto com o classico barretinho de malha, parente muito
+proximo do solideo ecclesiastico. O leite, levava-o em duas grandes
+cabaças escuras, amarradas aos extremos de um bordão ligeiramente
+curvo, que lhe assentava pelo meio no hombro esquerdo. Agora estava
+outro inteiramente, salvo no varapau, e no <i>pé fresco</i>, moda tão
+predilecta do povo açoriano: o fato cifrava-se no dos outros populares,
+e a cobertura da cabeça, ou, mais rigorosamente, do cocoruto era
+a famosa carapuça de panno azul, orlada na peripheria com um vivo
+encarnado e rematada dos lados por duas orelhinhas da mesma côr,
+<span class="pagenum" id="Page_15">[Pg 15]</span>
+reviradas para cima. Para seguir ainda mais á risca a moda popular
+terceirense, tinha pendente ao meio da testa, saindo por baixo da
+carapuça, um caracol de cabello feito a primor.</p>
+
+<p>O veterano levou os companheiros para casa do José de Mello, que já
+o tinha convidado muitas vezes, e que mal accommodou em bom logar do
+mirante a Isabel e a Rosa, carregou com os dois velhos para dentro
+de casa, ancioso por dar-lhes a provar uma pinga de vinho novo da
+Graciosa, que as duas mulheres não acceitaram, mas que os tres homens
+foram escorropichando por tigelas de barro não vidrado, acompanhando-o
+de milho cosido com funcho, tremoços, favas e milho torrado, e outros
+<i>hors d’œuvres</i>, patentes na meza e destinados ás visitas.</p>
+
+<p>A mulher do José de Mello, sentada a par da Isabel, disse-lhe que
+tomasse cuidado á passagem do bicho, porque eram já seis os touros que
+lhe tinham saltado para o mirante.</p>
+
+<p>Mas o conselho não foi ouvido, porque o estalar de um foguete provocou
+immediatamente um enorme borborinho. Do touril, estabelecido n’um
+quintal proximo, acabava de sair o boi. Correram-lhe ao encontro os
+<i>aficionados</i>, pulando e gritando com desespero.</p>
+
+<p>Appareceu finalmente um touro de pequeno corpo e de côr escura, preso,
+pelas hastes emboladas, a um comprido cabo, que quatro homens seguravam
+pela extremidade opposta, e largavam ou colhiam para dar fuga ao animal
+ou obrigal-o a parar.</p>
+
+<p>Traziam os quatro, á laia de uniforme, calças brancas, alvas camisas
+<span class="pagenum" id="Page_16">[Pg 16]</span>
+avivadas de encarnado, e bonnets de copa baixa, apenas differentes dos
+que usam vulgarmente os cosinheiros por terem tambem vivos d’aquella
+côr.</p>
+
+<p>A <i>viseira</i> que lhes occultava a metade superior do rosto, é que
+originou a denominação de <i>mascarados de corda</i>, com que o povo da
+ilha então os designava.</p>
+
+<p>Todos quatro coxeavam mais ou menos, visto que em obediencia ao seu
+tradicional plano de uniformes, traziam os pés, tão deshabituados
+de constrangimento, n’aquelle dia apertados em sapatos de bezerro,
+legitimos representantes, para o caso, dos celebrados borzeguins da
+tortura inquisitorial.</p>
+
+<p>O touro passou de corrida pela frente do mirante do José de Mello. Um
+enxame de homens e rapazes seguiu-o de tropel. Tanta diligencia faziam
+por uma ou duas marradas, que ás vezes viam coroadas as suas aspirações.</p>
+
+<p>N’isto, um d’elles, mais atrevido, tropeçou e cahiu, e d’aqui resultou
+que outros dois tambem se estatelassem na calçada.</p>
+
+<p>O touro estava perto, e, ou porque os mascarados não podessem a tempo
+segural-o ou porque desejassem «animar o divertimento», conseguiu
+chegar aos tres, e depois de uma focinhada prévia dispunha-se já para
+mimoseal-os com festa mais valente, quando o cabo, esticado com força,
+lhe deu a <i>pancada</i>, obrigando-o a retroceder e arrancando-lhe um
+mugido doloroso.</p>
+
+<p>Decididamente a tourada promettia ser boa.</p>
+
+<p>Os tres levantaram-se no meio de risadas estrepitosas, e um d’elles,
+<span class="pagenum" id="Page_17">[Pg 17]</span>
+com a cabeça partida, foi curar-se á botica proxima, sem que mais
+ninguem désse importancia a similhante bagatella.</p>
+
+<p>Apezar de ser fanatica pelo divertimento, a Rosa tornou-se pallida mal
+viu o sangue, e descórou mais ainda, porque ao afastar os olhos deparou
+no mirante contiguo o sargento Luiz, a fital-a persistentemente, com um
+ar muito triste, como de quem sentisse grande pena de estar a vel-a,
+mas que não podesse desviar d’alli a vista, nem o pensamento. Afinal
+cobrou animo e, com simulada indiferença, mostrou concentrar a attenção
+no touro, que já ia a distancia, rodeado por uma caterva menos densa.
+Alguns dos perseguidores, vendo as barbas do visinho a arder, tinham-se
+refugiado nos vãos das portas, ou dependurado das grades de algumas
+janellas mais baixas.</p>
+
+<p>—Não havia de olhar para elle!... Se até lhe tinha raiva!... Quando
+o Luiz a namorava, jurava-lhe um amor por ahi além, e afinal deixou-a
+casar com outro... Bem fraco amor!... Nem já se lembrava de que ella
+existia. Tinha-a encarado, por um simples acaso. Iria apostar que
+olhava já para outro sitio... Nem já alli estaria talvez...</p>
+
+<p>E, para certificar-se, olhou novamente e viu outra vez o Luiz, sempre a
+miral-a com a mesma persistencia.</p>
+
+<p>Revoltou-se e sentiu uma grande vergonha, por adivinhar que n’aquella
+teimosia estava a prova de que elle não a julgava mulher de bem, e a
+suppunha capaz, depois de casada, de olhar para outro homem, que não
+fosse o marido.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_18">[Pg 18]</span></p>
+
+<p>Ia dizer-lhe pela expressão do semblante a indignação que o atrevimento
+lhe causava, mas não poude, porque ao encarar com o Luiz conheceu que
+o seu olhar não era petulante, mas de supplica, e ainda mais terno do
+que no dia em que elle lhe tinha dicto que a <i>Rosinha era a flôr do
+Castello</i>, e que <i>morria de amores</i> por ella.</p>
+
+<p>O que estava certamente era ralado de pena, porque, em obediencia ao
+pae, a tinha perdido!... Podia lá querer tornal-a má mulher, embora
+fosse unicamente nas boccas do mundo!... Até merecia dó o infeliz...
+Pois não o havia desprezado, para casar com o Jorge?... Coitado!...</p>
+
+<p>No emtanto proseguia o divertimento na sua monotonia habitual.
+Percorridas as ruas do transito, o boi já vinha quasi a passar pela
+segunda vez em frente da casa do Mello, continuamente excitado pelos
+bordões, guardasoes, lenços, e até pelos casacos despidos pelos
+capinhas improvisados, que assim toureavam em mangas de camisa.</p>
+
+<p>Perplexo, estonteado, o boi estacou ao meio da rua, olhando em derredor
+e escarvando o chão com as patas deanteiras. Afinal, escolhido o ponto
+de ataque, partiu como seta em direcção a uns cinco homens, mais
+impertinentes em atiçal-o, mas que desappareceram por encanto, mal
+suspeitaram a arremettida. Sumido o alvo, o touro não parou na corrida
+e foi galgar de um salto o mirante do João de Mello, antes que os
+<i>mascarados</i> lhe dessem a pancada.</p>
+
+<p>Um reboliço, uma gritaria infernal.</p>
+
+<p>Estes refugiavam-se esbaforidos no interior da casa, aquelles saltavam
+<span class="pagenum" id="Page_19">[Pg 19]</span>
+para a rua, e dois ou tres, paralysados pelo medo, deixavam-se ficar
+no mesmo sitio, de olhos fechados, mãos nos ouvidos, entregues ao seu
+destino.</p>
+
+<p>Mas subiu da rua uma gargalhada estrondosa, seguida de palmas e apupos.
+Era a Isabel, que ao pular do mirante não tinha podido evitar que as
+saias se levantassem, e dava com isto um espectaculo, se não agradavel,
+pelo menos original.</p>
+
+<p>A Rosa, colhida improvisamente no meio da sua abstracção, viu o touro
+cahir-lhe ao pé e desmaiou de susto: mas o sargento Luiz, n’um abrir e
+fechar de olhos, saltou do mirante onde estava, tomou-a nos braços e
+afastou-a do animal, a que os <i>mascarados de corda</i> esticavam no
+entretanto o cabo e obrigavam a descer para a rua.</p>
+
+<p>Quando acordou do seu passageiro desmaio, a mulher do Jorge sentiu que
+a beijavam e ao abrir os olhos viu-se nos braços do Luiz.</p>
+
+<p>Os dois veteranos conseguiram afinal romper atravez dos que tinham
+fugido para dentro da casa, e assomavam á porta, sem que nenhum d’elles
+soubesse ainda ao certo o que era passado. O José Maria como que viu o
+beijo, mas não teve bem a certeza, pois que todas as vezes que bebia
+uma gota a mais, ficava tonto e via coisas perfeitamente imaginarias.
+Convenceu-se de que fôra uma historia armada pelo vinho, quando lhe
+explicaram o succedido.</p>
+
+<p>Para fugir aos agradecimentos, que o Jorge lhe dava sem a minima
+desconfiança, retirou-se logo o sargento, envolvido pela Rosa n’um
+olhar de reconhecimento e admiração.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_20">[Pg 20]</span></p>
+
+<p>A Isabel veiu furiosa da rua e quiz por força que se retirassem logo.
+Temia que o rapazio continuasse a dirigir-lhe chufas.</p>
+
+<p>Não disse palavra a Rosa na volta para o Castello. Se por acaso
+dava com os olhos no marido, voltava a cara para outro lado, com um
+movimento brusco. Ao meio da rampa que vae dar á ponte levadiça, parou
+para descançar, e olhou para traz, sem saber porque.</p>
+
+<p>O Luiz tinha-a seguido, de longe.</p>
+
+<p>Não deram por isto os dois velhos, nem a Isabel. Notou-o comtudo a
+Luiza Braga, que vinha logo após o sargento, em companhia da Josepha
+Julia.</p>
+
+<p>—Com cedo principiam! cochichou ella ao ouvido da amiga.</p>
+
+<p>—Principiam? acudiu a outra ennojada. Continuam!</p>
+
+
+<p>IV</p>
+
+
+<p>Nos dias seguintes a Rosa pensou, pensou muito, medindo o alcance da
+loucura que tinha feito em casar com o Jorge.</p>
+
+<p>Só depois do beijo, que lhe escaldava ainda a bocca, percebeu que havia
+alguma coisa na ligação do homem com a mulher, que o marido com toda a
+sua amizade não lhe tinha feito conhecer.</p>
+
+<p>Por aquelle beijo o sargento apossara se d’ella com um predominio,
+que o Jorge nunca lhe tinha imposto, em tantos dias de intimidade.
+Sentia-se fraca, indefesa perante um ascendente ineluctavel, e pela
+<span class="pagenum" id="Page_21">[Pg 21]</span>
+primeira vez sabia como o homem chega a avassallar a mulher, a fazel-a
+coisa sua.</p>
+
+<p>Tudo isto passava tumultuariamente no espirito da rapariga, como
+vaga percepção, sem que ella, intelligente mas ignorante, tivesse
+bem a consciencia do mundo novo de sensações e ideias que acabava de
+revelar-se-lhe.</p>
+
+<p>O que de mais comprehendia, era que apenas o Luiz quizesse, não
+poderia resistir-lhe, e que sabendo aliás que se tornaria uma creatura
+desprezivel, seria d’elle, d’elle inteiramente.</p>
+
+<p>—Ai! E podiamos estar casados um com o outro! scismou.</p>
+
+<p>Uma semana depois o sargento, certo de que o veterano estava longe,
+passou-lhe pela porta. A Isabel, tinha-a elle avistado da muralha do
+castello, a descer a ladeira contigua ao Relvão.</p>
+
+<p>Quando o viu prestes a entrar, a Rosa ficou toda a tremer, e quiz
+refugiar-se no interior da casa, porém o Luiz disse-lhe que só desejava
+dar-lhe duas palavras, e que depois a deixaria em paz para todo o
+sempre; mas que se ella o não escutasse, tinha deixado no quarto a
+espingarda já carregada, para acabar de vez com o seu tormento.</p>
+
+<p>A Rosa ainda balbuciou que elle queria desgraçal-a; que se sumisse
+d’alli, ou que se veria obrigada a chamar por alguem. Podiam tel-o
+visto. Supplicou-lhe de mãos postas que a deixasse, que se fosse embora.</p>
+
+<p>Certo de que não o tinham visto, o Luiz fechou a porta rapidamente,
+tomou nos braços a linda rapariga e tapou-lhe com beijos a bocca, para
+<span class="pagenum" id="Page_22">[Pg 22]</span>
+que ella não gritasse.</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>Só quando o sargento lhe disse adeus, e lhe pediu muito que para
+o futuro fosse vel-o ao quarto d’elle, pois alli seria perigoso
+continuarem a encontrar-se, é que a Rosa viu bem o que tinha feito.</p>
+
+<p>Jurou que nunca mais tornaria, mas sentiu logo que havia de tornar,
+indefesa contra a seducção, que ainda lhe fazia vibrar todo o corpo em
+frémitos de goso.</p>
+
+<p>A segunda entrevista foi no quarto do amante.</p>
+
+<p>Ninguem a reconheceria, vendo-a passar na rua. Ia de manto, e para
+maior segurança, pedira á mãe emprestadas as botas, sob o pretexto de
+que as suas lhe <i>pisavam</i> e que precisava ir á cidade. Estando
+quasi a chegar ao quarto do Luiz, apanhou um susto enorme: encontrou-se
+com o marido, que devia passar a manhã no monte Brazil.</p>
+
+<p>O Jorge não andava a espial-a. Cumpria simplesmente uma ordem do
+inspector do material de guerra, que o tinha mandado chamar ao
+Castello, para lhe dar certas explicações relativas ao embarque de umas
+peças velhas de bronze, que deviam recolher á Fundição de Canhões.</p>
+
+<p>Os dois amantes, muito conchegados um ao outro, estiveram tempos sem
+fim de ouvido á escuta por traz da porta, que ella tinha fechado
+subtilmente. Não sentiram nada. Apenas as pulsações desordenadas do
+coração de Rosa.</p>
+
+<p>—És uma tola, disse-lhe por fim o sargento, dando-lhe um beijo. Podia
+lá conhecer-te, com esse disfarce! De mais a mais como é velho, deve
+<span class="pagenum" id="Page_23">[Pg 23]</span>
+ter a vista cançada.</p>
+
+<p>—Elle, a vista cançada? Estás a ler. Vê perfeitamente. E para longe,
+ainda melhor do que eu.</p>
+
+<p>Quando tornou para casa, ainda ia receiosa.</p>
+
+<p>O marido appareceu d’alli a uma hora. Não fazia differença.</p>
+
+<p>As entrevistas continuaram.</p>
+
+<p>N’uma d’ellas a Rosa, ao sair do quarto do Luiz, topou a Josepha Julia,
+que a mirou dos pés á cabeça e fez um gesto de escarneo.</p>
+
+<p>—Se me conheceu!... pensou a mulher do veterano, abalada pelo medo.
+Era o mesmo que sabel-o toda a gente!</p>
+
+<p>Mas logo encolheu os hombros, e disse comsigo resolutamente:</p>
+
+<p>—Ora adeus! O que está feito, está feito!</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>D’alli a poucas horas já effectivamente andavam de bocca em bocca as
+infelicidades conjugaes do cabo de veteranos. Para não levantar falsos
+testemunhos, a Josepha, muito encolhida debaixo do lenço, cosida
+com as paredes e a passinhos ligeiros, tinha seguido a <i>mulher do
+manto</i>. Mal teve a certeza de quem ella era, correu a casa da Luiza
+Braga. A velha prometteu guardar segredo, mas, tendo ficado só e vendo
+entrar-lhe pela porta dentro o 33 da artilheria, a pedir-lhe linha
+preta para coser um botão do casaco do uniforme, não teve mão em si e
+<span class="pagenum" id="Page_24">[Pg 24]</span>
+poz tudo em pratos limpos, sem dizer, já se vê, quem lh’o tinha contado.</p>
+
+<p>A Josepha já estava em casa, costurando ao pé da janella do rez do
+chão. Tinha feito solemne protesto de não trocar falas com o maldizente
+do artilheiro, mas ouviu-lhe a «grande novidade», condimentada com
+varios pormenores inventados pelo narrador.</p>
+
+<p>Benzeu-se, exclamou que podia ser tudo uma refinada mentira, que a Rosa
+era levantadinha de cabeça, mas que chegasse a tanto, lá isso não lhe
+parecia.</p>
+
+<p>—Pois diga-<i>le</i> que não. Quem viu, é pessoa incapaz de mentir.</p>
+
+<p>—E quem é que viu? perguntou a torta em sobresalto.</p>
+
+<p>—Nun xe xabe! como dizia o gallego.</p>
+
+<p>—Então pode não ser verdade. Bem sei que o marido é velho...</p>
+
+<p>—Vê?... Já acreditou!</p>
+
+<p>—Não acreditei nada. Vá-se d’aqui, <i>seu</i> grande má lingua!</p>
+
+<p>Fechou a janella, com um accrescimo de indignação. No fundo estava
+radiante. Para o libello famoso, já tinha editor responsavel.</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>A Isabel foi aos ares no dia seguinte, quando soube pelo tio Braga o
+que a voz publica attribuia á Rosa, e até pregou uma valente bofetada
+no alviçareiro. Se lhe fez doer, não lhe causou o minimo espanto, de
+habituado que elle andava a tomar o peso ás mãos da cara metade.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_25">[Pg 25]</span></p>
+
+<p>Podia lá entrar-lhe na cabeça que a filha, casada tanto de fresco, já
+enganasse o marido!... Ainda se estivessem recebidos ha mais tempo!...
+Ella tinha-se prendido por sua livre vontade, e nem sequer podia dar
+como desculpa o Jorge ser velho e pouco proprio para encantar uma
+rapariga. Tudo isto a mãe lhe fizera ver um cento de vezes, antes do
+casamento.</p>
+
+<p>Não levou um credo para chegar a casa da filha e como a apanhou
+sósinha, disparou-lhe tudo á queima roupa. Uma de duas: ou conseguia
+atrapalhal-a e apanhar-lhe a confissão da culpa, ou, se fosse tudo
+mentira, a indignação havia de patentear bem clara a innocencia.</p>
+
+<p>A mulher do veterano encarou com a mãe, e disse pausadamente estas
+palavras, cujo effeito foi observando:</p>
+
+<p>—Sim, senhora, é verdade o que lhe disseram. Fiz isso, porque não
+posso aturar meu marido, e porque só do Luiz é que eu gosto e hei de
+gostar sempre.</p>
+
+<p>A Isabel cahiu sentada para cima de uma arca, e rompeu n’um grande
+choro, arrepellando-se, dizendo mal á sua vida.</p>
+
+<p>—Cuidado, minha mãe! Olhe que se meu marido entrasse agora por ahi
+dentro, a desgraça ainda havia de ser maior.</p>
+
+<p>—Lá isso era, porque descobria toda a verdade, e ... Deus te
+livrasse!...</p>
+
+<p>—É o que pode fazer com esses alaridos.</p>
+
+<p>—<i>Ubei!</i> Permitta Deus que elle nunca desconfie!... Ora a minha
+desgraça!... Mas o que eu não quero,—fica sabendo!—é que me tornes a
+<span class="pagenum" id="Page_26">[Pg 26]</span>
+olhar para aquelle <i>bonecro</i> de engonços! Ha de ser isto assim, ou
+sou eu mesma que prego a ambos uma boa lição, com estas mãos que Deus
+Nosso Senhor me deu!</p>
+
+<p>—Mau! Já vejo que não temos nada feito, disse a Rosa, afastando-se da
+mãe. Se as suas tenções são essas, o melhor é ir já, já ter com o Jorge
+e declarar-lhe tudo. Ande! Vá! Assim ao menos deixo de penar por uma
+vez!</p>
+
+<p>—O’ rapariga, o que estás tu a dizer?</p>
+
+<p>—Que hei de gostar sempre do Luiz, ou eu não me chame Rosa. Sim,
+senhora! Resolvi-me a tudo. Dizem mal de mim? E eu que me ralo! Ellas
+falam, porque se mordem de inveja!</p>
+
+<p>—Ai que está variada! exclamou a Isabel, levantando-se e erguendo os
+braços para o ceo. Deram-lhe volta ao miolo, olá se deram. Oh! Mas isto
+não pode ser, e tendo-se voltado para a filha, continuou, voz em grita:
+Se me não tomas juizo, eu racho-te ... racho-te de meio a meio! Cuidas
+que por estares assim espigada, me não provas os cinco mandamentos?</p>
+
+<p>—A minha mãe não me entendeu. Olhe! Se fizer isso, se quizer
+apartar-me do Luiz, queimada seja eu pelo fogo do inferno, se na
+primeira occasião em que me pilhar a sós com meu marido, não lhe conto
+a coisa toda como ella é, tim-tim por tim-tim. E reforçou o juramento
+levantando tambem para o ceo o braço direito, com a mão bem espalmada.</p>
+
+<p>A Isabel, que se tinha benzido ao ouvir fallar no inferno, descahiu
+<span class="pagenum" id="Page_27">[Pg 27]</span>
+outra vez para cima da arca, aos soluços.</p>
+
+<p>—Está doida! Doida varrida!</p>
+
+<p>A rapariga aproveitou este ensejo e approximou-se da mãe, pé ante pé:
+fallou-lhe ao ouvido, carinhosamente; demonstrou-lhe que só havia uma
+coisa que fazer—evitar que o Jorge descobrisse, O mal já estava feito,
+e nem Deus teria poder para destruil-o. Mas se a Isabel quizesse, as
+coisas continuariam assim, e nunca o velho saberia o que diziam, pois
+ninguem se atreveria a ir contar-lh’o. Mais dia menos dia, como já era
+bastante edoso, podia apanhar uma macacôa que o levasse para a terra
+da verdade, e já ella ficaria livre para casar com o escolhido do seu
+coração.</p>
+
+<p>—O sargento casar comtigo?... Espera por essa! Tanto como da primeira
+vez, murmurou a Isabel em tom lamentoso. O que elle quiz foi ... o que
+se está vendo; mas se julgar novamente o caso mal parado, fica certa
+de que nunca mais lhe pões a vista em cima. Os homens são assim! E
+concluiu, ainda mais lamuriante: Ai! A minha triste vida! Para o que eu
+estava guardada!</p>
+
+<p>—Isso era bom, se o Luiz não gostasse tambem de mim; mas gosta muito,
+acredite, gosta muito, affirmou a Rosa, fallando ao mesmo tempo que a
+mãe. E está tão arrependido de me ter deixado casar, tão arrependido!...</p>
+
+<p>—Historias da vida! Mas, ó mulher, foram esses os exemplos que eu te
+dei? Pois não tens vergonha!... Emquanto fui casada, respeitei sempre
+as barbas de teu pae, e depois de viuva...</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_28">[Pg 28]</span></p>
+
+<p>Ia proseguir mas calou-se a um olhar meio serio, meio de escarneo, que
+a Rosa lhe dardejou sem levantar a cabeça ligeiramente inclinada para
+o chão, mas arregaçando de subito as palpebras, a fim de trazer bem a
+lume os olhos negros e expressivos.</p>
+
+<p>Por fim recuperou ousadia e perguntou com voz ainda titubeante:</p>
+
+<p>—Porque olhas para mim d’essa maneira? Porque dás ouvidos ao que dizem
+certas linguas?... Ainda que tivesse sido verdade, não me podiam dizer
+nada, porque uma viuva não deve a cabeça a ninguem.</p>
+
+<p>—Nem me dava com isso maus exemplos? interrogou a filha, com apparente
+serenidade.</p>
+
+<p>—Está visto que não... Quero dizer ... não dava, se não houvesse
+escandalo, se não soubesses ... de nada.</p>
+
+<p>—E se eu soubesse de tudo? perguntou Rosa, certa já de conquistar
+o auxilio da mãe. Olhe! Sempre lhe quero contar... Eu teria talvez
+uns seis annos ... ou nem tanto... Uma tarde, a mãe tinha ido para
+dentro de casa, e estava a conversar com aquelle cabo de artilheria
+muito alto e louro—um rapaz bem bonito, por signal—a quem gommava a
+roupa... Lembra-se? Eu andava a brincar na rua. Passou a Luiza Braga e
+perguntou-me quem estava lá dentro com a minha mãe. Respondi-lhe que
+era a sua irmã de Agualva ... a tia Marianna. A velha acreditou-me,
+e foi-se embora. Se não fizesse o que fiz, ella tinha ido por esse
+Castello infamar a minha mãe, e ficavam todos certos do que alguns
+diziam e muito poucos acreditavam. Mas sabe o que valeu?... Foi não
+<span class="pagenum" id="Page_29">[Pg 29]</span>
+passar pela cabeça á Luiza que, n’aquella edade, eu já soubesse mentir.
+Sabia, porque a mãe, de outra vez, me tinha ensinado a mesma resposta,
+para quando alguem me perguntasse o que ella me perguntou.</p>
+
+<p>—Eu não me lembro de nada d’isso, murmurou a Isabel, com a voz a
+tremer.</p>
+
+<p>—Lembro-me eu, e ainda bem que menti! Deus não me castigará, por eu
+ter livrado a minha mãe de tantas afflicções.</p>
+
+<p>Em voz baixa, n’uma supplica repassada de ternura, accrescentou:</p>
+
+<p>—E tambem não a castiga, se a minha rica mãe quizer ajudar-me a sair
+d’esta consumição.</p>
+
+<p>—Foi praga que me rogaram! Foi praga!...</p>
+
+<p>A Isabel não poude levar por deante o epiphonema, porque a filha,
+cingindo-lhe as costas com o braço direito e achegando-a a si
+brandamente, segredou:</p>
+
+<p>—Bom! Bom! Deixe estar que não se arrepende... e ha de me dar razão
+algum dia, vendo-me feliz.</p>
+
+<p>—Deus te ouvisse, filha, Deus te ouvisse! Mas o que tu me obrigas a
+fazer!... Olha! O melhor era deixares aquelle ... não sei que diga!</p>
+
+<p>—Outra vez!... Escolha: ou a mãe consente em ajudar-me, ou eu digo
+hoje mesmo tudo a meu marido!</p>
+
+<p>—Não, mulher, não lhe digas nada!</p>
+
+<p>E com os olhos em alvo, as mãos erguidas, os dedos enclavinhados, a
+viuva exclamou:</p>
+
+<p>—Seja tudo pelo amor de Deus!</p>
+
+
+<h3>IV</h3>
+<p><span class="pagenum" id="Page_30">[Pg 30]</span></p>
+
+
+<p>O José Maria andou uns poucos de dias a parafusar, antes que se
+resolvesse a dizer ao Jorge umas coisas, que lhe tinham contado muito
+em segredo a respeito da Rosa, e que elle acreditou, porque eram o
+complemento e a confirmação da scena entrevista em S. João de Deus.</p>
+
+<p>Esteve quasi decidido a calar-se, porque dava razão ao dictado «Entre
+marido e mulher não mettas a colher», e tambem porque lhe custava muito
+ir destruir para sempre a alegria ao seu antigo camarada.</p>
+
+<p>Quando andava n’estas indecisões, e já principiava a desculpar a
+Rosa, pensando que talvez a coisa não tivesse ido a mais, e que ella
+sempre havia de ter algum respeito pelos cabellos brancos do marido,
+adregou-lhe passar á porta da Luiza Braga.</p>
+
+<p>—Pst! Pst! fez-lhe esta, lá de dentro.</p>
+
+<p>—Isso é commigo?</p>
+
+<p>—Entra, ó José Maria, que te quero perguntar uma coisa.</p>
+
+<p>—Tu! Ha de ser fresca!...</p>
+
+<p>Entrou e foi sentar-se n’um moxo.</p>
+
+<p>—O que eu te quero perguntar, disse a velha, que estava a engommar
+um collarinho, é se o teu amigo já sabe o que rosna por ahi a canalha
+brava.</p>
+
+<p>—Qual meu amigo?</p>
+
+<p>—O Jorge! Mas tambem elle só deve queixar-se de si mesmo. Não se
+mettesse com a Isabel, nem com gente da sua geração.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_31">[Pg 31]</span></p>
+
+<p>—Cala-te, mulher, que já não te vejo bem! replicou o veterano,
+levantando-se n’um impeto.</p>
+
+<p>—Eh senhor! Tu endoideceste! Por eu não querer que o Jorge ande
+enxovalhado por essas boccas ruins, é que tu!... Ainda em cima?...
+Sempre sou bem tola!</p>
+
+<p>O velho conheceu que se tinha excedido, e ancioso por saber o que mais
+propalavam os maldizentes, moderou-se e murmurou:</p>
+
+<p>—Dize lá o que querias dizer.</p>
+
+<p>—Queria mas já não quero... Julgas talvez que não sou tambem amiga
+do Jorge? Pois ainda ha migalha estive quasi <i>garreando</i> com a
+... cala-te bocca!... com uma certa pessoa, por não lhe poder ouvir
+que se elle não vae ás do cabo com a Rosa, é porque uma casa sempre se
+governa melhor, quando são dois, em logar de um só, a carregarem com as
+despezas.</p>
+
+<p>—Dois?</p>
+
+<p>—<i>Bei</i>, Senhor! Pelos modos o sargento Luiz recebeu, pelo ultimo
+paquete, uma <i>mancheia</i> de patacas, que lhe deixou um tio lá de
+Lisboa...</p>
+
+<p>—Fecha-me essa bocca suja, grande excommungada!</p>
+
+<p>Juntando á palavra o gesto, o José Maria bateu-lhe com a palma da mão
+em cheio nos beiços, e, antes que a Luiza se recobrasse do susto, sahiu
+pela porta fóra, de escantilhão.</p>
+
+<p>—Hei de contar tudo ao Jorge! resmungava elle, pela rua adeante. Não
+quero que ande vendido. Hei de contar-lhe tudo, e vae ser hoje mesmo!
+Que grande pouca vergonha!...</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_32">[Pg 32]</span></p>
+
+<p>Com mais temor que resentimento, a Luiza foi á porta, para seguil-o com
+a vista. Não poude furtar-se a dizer com os seus botões que, tirante o
+Braga, todos os soldados do cerco do Porto eram homens de uma canna só.</p>
+
+
+<h3>V</h3>
+
+
+<p>Foi na courella cultivada pelo Jorge no monte Brazil, que o José Maria
+encontrou d’alli a pouco o seu antigo companheiro de armas.</p>
+
+<p>Primeiro que entrasse no assumpto, falou de mil ninharias: das lagostas
+que na vespera tinha pescado na bahia do Fundão; na queda que o
+corneteiro-mór reformado ia dando na Quebrada, quando andava a apanhar
+cracas.—Ainda que se não esmigalhasse na rocha empinada e de temerosa
+altura, e fosse cahir no mar, não escaparia de certo ao mergulho, pois
+elle a nadar era mesmo um prego!</p>
+
+<p>Foi tagarelando, tagarelando, mas sem alludir á Rosa. Todas as vezes
+que a rapariga lhe acudia á lembrança, parecia que se lhe punha um nó
+na garganta.</p>
+
+<p>Afinal o Jorge deu por isto, e foi o proprio que perguntou:</p>
+
+<p>—O’ José Maria, tu estás, a modos, exquisito? Parece que tens uma
+coisa para me dizer e que não te <i>astreves</i>...</p>
+
+<p>O outro ainda lhe retorquiu com um «Olha lá!...» e quiz fingir ar de
+riso. Mas não poude levar por deante a dissimulação e disse por fim,
+deixando-se cahir sentado n’uma pedra:</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_33">[Pg 33]</span></p>
+
+<p>—Pois tenho, tenho muito que te dizer.</p>
+
+<p>—Se é da Rosa, não me digas nada! respondeu-lhe o amigo com
+arrebatamento. Sei que ella não vae á tua bola, e pódes ter ouvido
+por ahi qualquer coisa contra a rapariga, e vir então buzinar-me os
+ouvidos... Se adivinhei, não tenhas esse trabalho!</p>
+
+<p>—Ó Jorge, pois tu fazes de mim similhante ideia?! perguntou o José
+Maria todo sentido e levantando-se de esfuziote. Metteu-se-te na cabeça
+que eu fosse capaz de dizer coisas, de que não tivesse a certeza? Bem!
+Bem! Como te deram volta ao juizo, já aqui não está quem falou ... isto
+é, quem ia falar!</p>
+
+<p>—Sim, cala-te, que é o melhor! Só faltava que tambem tu me viesses
+ralar o interior, que já anda bem consumido. Só Deos é que sabe!...</p>
+
+<p>E tendo lançado para longe o sacho com que andava cavando, levou ambos
+os punhos aos olhos, e desatou a soluçar. Coisa que não fazia desde
+creança, chorou—chorou lagrimas abundantes, que lhe escorriam pelo
+rosto e pelas mãos.</p>
+
+<p>Certificou-se o José Maria de que mais ninguem podia ver o amigo,
+chegou-se a elle e passou-lhe um braço em volta do pescoço.</p>
+
+<p>—Então! Que diabo! Isso não vale a pena! disse-lhe com meiguice. Pois
+ha mulher que mereça a vida de um homem? Não te lembras da minha serva
+de Deus? Bem amigo d’ella que eu era: vi-a morrer e ainda por cá estou.
+Com essas coisas dás cabo de ti.</p>
+
+<p>—Tu, tu é que dás. Para que vieste bulir commigo? Deixasses-me quieto!
+E dizendo-lhe isto de mau modo, o Jorge arredou-se do camarada e ficou
+<span class="pagenum" id="Page_34">[Pg 34]</span>
+de costas para elle, sem comprehender que fosse dictada pela amizade
+aquella confidencia.</p>
+
+<p>Pois não lhe trazia a certeza de que elle já receiava? Receiava, sim,
+mas não queria acreditar, desejoso de que o tempo viesse a embotar
+aquella duvida, e esperançado em que por fim se conhecesse que a
+rapariga estava innocente, como lh’o dizia o seu espirito cheio de
+rectidão. E ainda no peior dos casos, se em verdade a Rosa fosse má
+mulher, para que haviam de lh’o dizer, se mais dia menos dia elle mesmo
+descobriria tudo, com certeza?</p>
+
+<p>Por isso nem queria encarar com o seu antigo camarada. Qualquer outro
+já teria pago bem caro o atrevimento!</p>
+
+<p>O José Maria entendeu que se devia ir embora, o que era aliás seu
+desejo desde que alli estava.</p>
+
+<p>—Haja saude, Jorge, e não me fiques querendo mal.</p>
+
+<p>O outro encolheu os hombros desabridamente, sem mudar de posição.</p>
+
+<p>—Não te ponhas com maus modos, homem! Aprender até morrer, bem diz o
+dictado.</p>
+
+<p>E chegando-se mais, concluiu:</p>
+
+<p>—Por me dares esse <i>pago</i>, não cuides que ouvindo algum marau
+dizer poucas vergonhas de ti, deixe de saltar-lhe para cima com vento
+fresco, apesar de velho e estropiado. Haja saude!</p>
+
+<p>Ia a afastar-se, quando foi agarrado violentamente por um braço.</p>
+
+<p>—Poucas vergonhas! Que poucas vergonhas dizem de mim? perguntava o
+Jorge, meio suffocado. Anda, põe já tudo em pratos limpos, se não
+<span class="pagenum" id="Page_35">[Pg 35]</span>
+queres fazer-me acreditar que te saiste com essa, para te vingares da
+minha resposta. Não! Não!...</p>
+
+<p>E emendou, supplicante:</p>
+
+<p>—Se não queres ver-me estalar de paixão, conta-me o que sabes, José
+Maria, conta-me o que sabes! Pelo amor de Deus!</p>
+
+<p>Foi então que o outro lhe referiu por miudo não só o que tinha visto,
+mas o que andava nas boccas do mundo. Quando o ouviu falar na suspeita
+de que fosse connivente na sua infamia, o Jorge teve um ataque de raiva
+e quiz saber por força quem tinha contado aquillo, para lhe apertar as
+goelas, até lhe fazer deitar cá para fora toda a lingua malvada.</p>
+
+<p>Apesar do que a revelação lhe fazia soffrer, reaccendendo lhe
+desconfianças, que a pouco e pouco se tinham ido aplacando, o seu
+primeiro impulso foi justificar a mulher, mostrar ao amigo que o tinham
+enganado, que a Rosa continuava pura como a neve. Se em S. João de
+Deus ella estava ao pé do sargento Luiz, era porque o medo do touro
+lhe fizera perder a cabeça. Pois o José Maria não a tinha tambem visto
+amarella como cera, quando os dois a foram encontrar? Demais, a Isabel,
+que tambem não podia ver o tal <i>bonecro</i>, explicou depois que não
+havia nada que se lhe dizer, e que até devia agradecer-se ao pobre
+rapaz o ter acudido á Rosa, quando todos fugiam assustados.</p>
+
+<p>—Cantigas da viuva! objectou o José Maria. O que ella quiz foi
+desculpar a filha. Olha! Pergunta-lhe se tambem deves agradecer ao
+bandalho, o beijo que elle pregou em tua mulher!</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_36">[Pg 36]</span></p>
+
+<p>—Um beijo? Quando?</p>
+
+<p>—N’essa mesma occasião. Como se julgava a sós com a rapariga, visto
+os mais terem debandado, tomou esse atrevimento ... mas eu que vinha
+adiante de ti pude ainda vel-o.</p>
+
+<p>—Viste-o? Tens a certeza?...</p>
+
+<p>—Pareceu-me que sim. Bem sabes que eu, bebendo uma pinga a mais...</p>
+
+<p>—Pareceu-te! Eu pergunto se tens a certeza!...</p>
+
+<p>—Antes de passar a porta que dá para o quintal onde elles estavam,
+ouvi a modos a bulha de um beijo, e como fui dar com o sargento ainda a
+amparal-a, acredito que elle a beijasse, como dizem por ahi.</p>
+
+<p>—Se não viste, para que repetes o que pode ser mentira? E olha que
+nos dias que se seguiram, lembro-me muito bem, ella não fez differença
+nenhuma. Nunca se tirava de ao pé de mim. E sempre alegre!... Se
+tivesse feito o que dizem, não sabia sustentar aquelle disfarce.</p>
+
+<p>—Isso é o que tu julgas. As mulheres, quando pendem para a banda do
+arrocho...</p>
+
+<p>—Ainda que quizesse pôr pé em ramo verde, não podia, respondeu o Jorge
+com impaciencia. Em quanto eu estou fóra de casa, a Isabel não perde
+a filha de vista. Já te disse! Não ha uma hora do dia em que a Rosa
+esteja desacompanhada.</p>
+
+<p>—E de noite?... perguntou o José Maria, que inconscientemente tomava
+calor perante as objecções do camarada, e, excitado pela controversia,
+dizia coisas, que não lhe sairiam da bocca n’outra occasião.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_37">[Pg 37]</span></p>
+
+<p>—De noite está ella deitada commigo!</p>
+
+<p>Mas calou-se de repente, não se atrevendo a continuar na defeza, por se
+lembrar de que tinha o somno pesado, e que, vinte vezes que a mulher se
+levantasse, elle de certo não acordaria.</p>
+
+<p>—Pois a Rosa seria capaz?...</p>
+
+<p>A afflicção de novo o estrangulou. Descria de todos, de tudo.
+Arrepanhou-se-lhe o interior do peito, ao de cima do estomago, e todo
+esfriou lá por dentro, como se lhe tivessem amputado subitamente essa
+parte do corpo, substituindo-a por uma grande pedra de gelo.</p>
+
+<p>É que lhe tornava o ciume ainda com maior furia, perdida a esperança
+que pouco antes o animava, quando elle, na ancia de desculpar a mulher,
+em vez de persuadir o amigo, a si proprio se convencia.</p>
+
+<p>Mas o outro comprehendia, afinal, a grande asneira que tinha feito.</p>
+
+<p>Fosse a Rosa effectivamente má mulher, e nem mesmo assim elle devia dar
+aquelle passo.</p>
+
+<p>Obedecendo a um momento de zanga, acabava de perder um amigo, para
+quem se tornara mensageiro do maior de quantos desgostos se lhe podiam
+annunciar, e fazia-o para sempre desgraçado.</p>
+
+<p>Quiz ainda emendar a mão, desmanchar ou pelo menos attenuar o mal que
+acabava de causar, mas o Jorge percebeu-lhe as intenções, e atalhou,
+despedindo-o com um gesto a que o José Maria obedeceu:</p>
+
+<p>—Pois sim, será o que tu dizes... Mas certas coisas, mais vale um
+homem cosel-as comsigo mesmo. Adeus!</p>
+
+
+<h3>VI</h3>
+<p><span class="pagenum" id="Page_38">[Pg 38]</span></p>
+
+
+<p>Quando julgou o camarada já bastante longe, de modo que lhe podesse
+furtar as voltas para não ser visto por elle no regresso a casa, o
+Jorge saiu da courela de terra e tomou o caminho do Castello, quasi a
+correr, ancioso por se encontrar com a Rosa.</p>
+
+<p>Mas foi abrandando o passo.</p>
+
+<p>O que ia dizer-lhe?</p>
+
+<p>Podia lá contar-lhe o que os maraus!... Se o fizesse, é porque a
+julgava capaz d’isso, e então escusava de perder palavras, quando o que
+devia fazer unicamente era...</p>
+
+<p>Teve uma hallucinação. Pareceu-lhe que via diante dos olhos a cara
+d’aquelle soldado miguelista, a quem matara no cerco do Porto,
+enterrando-lhe no peito a espada de um alferes de caçadores 5, que o
+outro acabava de tornar cadaver, abrindo-lhe a cabeça com a coronha
+da espingarda. Viu outra vez n’aquelle rosto a expressão medonha da
+anciedade, da afflicção e desespero do infeliz, que assim perdia a
+vida em plena mocidade. Os olhos, os olhos muito abertos, a saltarem
+das orbitas, o iris completamente emmoldurado pela alva, diziam tão
+energicamente o immenso odio contra o matador, que o Jorge recuou
+apavorado... No fim do combate passou, por acaso, ao pé do morto. Os
+olhos já estavam embaciados, mas ainda lhe expressavam o mesmo odio.</p>
+
+<p>Entrou-lhe pela primeira vez bem clara no espirito a noção de quanto
+<span class="pagenum" id="Page_39">[Pg 39]</span>
+é horrivel dar a morte a um nosso similhante, e pediu a Deus que nunca
+mais o puzesse n’aquella dura extremidade. Assim lhe aconteceu. Até ao
+fim da guerra não tornou a matar ninguem, pelo menos que visse, que
+soubesse, pois que as balas, granadas e bombas lançadas pelas boccas de
+fogo que elle apontava não errariam de certo o alvo... Mas como não via
+essas mortes, era como se as não fizesse.</p>
+
+<p>—Havia então de matar a Rosa!... A Rosa de quem, apesar de tudo,
+gostava tanto!...</p>
+
+<p>Mas se ella effectivamente o tivesse enganado?</p>
+
+<p>Subiu-lhe outra vez á garganta uma onda. Viu tudo côr de sangue...
+N’esse caso, esmigalhava-a, estraçoava-a, para que nenhum outro homem
+lhe gosasse o que era seu, muito seu!</p>
+
+<p>Chegou ao pé de casa.</p>
+
+<p>Lá dentro tudo em socego.</p>
+
+<p>A Rosa, embainhando uma saia de chita, cantarolava a meia voz e em tom
+sentimental a modinha da <i>Saudade</i>, em quanto a Isabel, que havia
+tempos estava quasi sempre em casa d’elles, o que era muito do gosto
+do Jorge, espertava o lume para se coser a ceia. A sopa de couves com
+feijão fervia n’um suave romrom dentro da panella de ferro e espalhava
+por toda a casa um aroma capaz de fazer crescer agua na bocca ao menos
+famelico.</p>
+
+<p>Sentiu-se menos resoluto, perante aquella tranquilidade.</p>
+
+<p>—Porque todos a accusavam, havia ella de ser culpada?... E se
+estivesse innocente?</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_40">[Pg 40]</span></p>
+
+<p>Enterneceu-se, invadido por uma grande commiseração.</p>
+
+<p>Em consciencia, quasi lhe achava desculpa, mesmo no caso de ser verdade
+o que diziam. Para que a tinha escolhido assim tão nova? Deus é que
+não lhe devia ter posto no coração, aquelle immenso amor! Bem sabia
+que estava adiantado em annos, que tinha o rosto cavado de rugas e
+o cabello quasi todo branco, mas desde que se apaixonára pela Rosa,
+sentia dentro de si o viço, o frescor, a alegria dos mais formosos dias
+da mocidade; respirava desafogadamente e com delicia, achando o mundo
+mais bello do que nunca, e antevendo um futuro longo, feliz. Ás duas
+por tres, nas vesperas do casamento, dava por si a rir, a cantar. Era
+moço outra vez.</p>
+
+<p>A Rosa, certamente, é que não o via do mesmo modo.</p>
+
+<p>Tudo isto lhe passou de tropel no pensamento, ao entrar em casa.</p>
+
+<p>Mas tinha que desabafar por força, se não rebentava.</p>
+
+<p>Deu as boas tardes ás duas mulheres, lavou as mãos, sacudiu a terra do
+fato e foi sentar-se n’um canto, sem saber como havia de começar.</p>
+
+<p>A sogra forneceu o pretexto, perguntando-lhe se queria que tirasse a
+ceia do lume.</p>
+
+<p>—É que eu mesmo tenho vontade! resmungou o veterano.</p>
+
+<p>—Hein? inquiriu a Rosa, sem largar a costura, mas fitando os olhos no
+marido.</p>
+
+<p>—Quem anda com o interior ralado, não tem vontade de comer!</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_41">[Pg 41]</span></p>
+
+<p>A rapariga encolheu os hombros, e continuando a coser disse por entre
+dentes:</p>
+
+<p>—Nunca tive geito para adivinhações.</p>
+
+<p>—Ah! Tu não adivinhas o que eu tenho?... Pergunta-o por esse Castello,
+e verás como toda a gente sabe dar-te a explicação. Ah! Que se fosse
+verdade!...</p>
+
+<p>E o velho levantou-se, fazendo um gesto de ameaça.</p>
+
+<p>A rapariga empallideceu levemente, mas recobrou animo, por ver o marido
+ainda duvidoso. Levantou-se tambem, arrumou a costura rapidamente, e
+perguntou com grande ousadia, fingindo-se embespinhada:</p>
+
+<p>—Se fosse verdade o que? Não tenho geito para adivinhações, já disse!</p>
+
+<p>A Isabel, que, pelo sim pelo não, tinha tirado a panella do lume, veiu
+postar-se ao lado da filha, para lhe accudir em caso de necessidade.</p>
+
+<p>O Jorge falou, falou, a principio com desabrimento e violencia, depois
+com menos força, como se o desabafo a pouco e pouco lhe minorasse a
+acuidade do tormento. Disse tudo o que o amigo lhe tinha contado, sem
+nomear, já se vê, o José Maria.</p>
+
+<p>Ouviu-o a Rosa com um sorriso desdenhoso, como se désse pouca
+importancia a tudo aquillo. Depois, cruzou os braços, deixou cahir
+o corpo sobre a perna esquerda, e ficou a miral-o atravez dos olhos
+semi-cerrados, meneando a cabeça e batendo febrilmente no chão com a
+ponta do pé direito. Dir-se-hia que mal continha a impaciencia. Tinha
+<span class="pagenum" id="Page_42">[Pg 42]</span>
+tido muito medo ao perigo quando o sentia longe, mas agora que o via
+diante de si, affrontava-o ousadamente, chegava quasi a pensar que o
+havia exagerado.</p>
+
+<p>Pela sua parte a Isabel acompanhou a objurgatoria com uma gesticulação
+larga, em que a indignação e o espanto se traduziam alternadamente, e
+tanto que o genro se remetteu ao silencio, bradou com toda a energia:</p>
+
+<p>—E ha quem metta a sua alma no inferno com esses falsos testemunhos!</p>
+
+<p>—Ha, sim, minha mãe! acudiu a Rosa, com voz aspera e vibrante. E
+tambem ha quem não se envergonhe de os acreditar e repetir!</p>
+
+<p>—Credo, credo! Tal desgraça! murmurou a Isabel não atinando com outra
+phrase.</p>
+
+<p>—Eu não digo que seja tudo verdade, acudiu o velho entibiado pela
+ousadia da mulher, mas alguma coisa ha de haver! O dictado não mente:
+voz do povo, voz de Deus.</p>
+
+<p>—Voz do diabo! atalhou a Rosa de prompto, e com o pescoço estendido e
+a cara bem defrontada com a d’elle perguntou: Mas se acredita o que lhe
+disseram, para que veiu ter commigo? Se fiz tudo isso, se não presto,
+devia arredar-se de mim por uma vez!</p>
+
+<p>—Não! Lá isso não! Se tivesses feito aquellas poucas vergonhas...</p>
+
+<p>A voz estrangulou-se-lhe na garganta, que apenas emittiu um som cavo.
+Ao mesmo tempo o Jorge, como se tivesse um lampejo momentaneo da
+verdade, cresceu para a rapariga, os braços hirtos, crispadas as mãos,
+<span class="pagenum" id="Page_43">[Pg 43]</span>
+em acção de agarral-a pelas guelas.</p>
+
+<p>—O’ Jorge! gritou a Isabel, abraçada ao genro. Olha que está
+innocente! Juro-te por tudo o que quizeres!</p>
+
+<p>—Pela alma do José de Medeiros?...</p>
+
+<p>—De meu marido? titubeou a viuva. Oh! Homem, não se deve bulir em quem
+está descançado ha tantos annos.</p>
+
+<p>—Pela alma de José de Medeiros?... insistiu o veterano, em voz surda.</p>
+
+<p>—Sim, sim, juro! Assim elle esteja em gloria! Juro!</p>
+
+<p>—Jurou! disse elle quasi comsigo mesmo, e accrescentou em voz ainda
+mais fraca: Mas então para que anda a corja a vomitar aquellas
+patifarias?</p>
+
+<p>—Porque tem inveja da gente! retorquiu a Isabel com energia mas em
+tom lamentoso. Pois não sabes o que é a costumada pouca vergonha
+n’este maldito Castello? Está uma alma christã muito socegada da sua
+vida, trabalhando dentro da sua casa e nem por isso escapa áquellas
+navalhas!... Se nem o proprio <i>sôr</i> governador se livra!... É
+ouvir o que dizem d’elle... Que anda vestido como um pelintrão ... que
+não faz bem á pobreza ... que é bruto ... que é malcreado... Vale-lhe
+ser solteiro, quando não...</p>
+
+<p>Nem o Jorge nem a Rosa lhe escutavam a tagarellice. Alheiada de tudo,
+a rapariga tinha ido sentar-se, muito carrancuda, ao pé da janella
+e olhava para o exterior. O velho, alçado no meio da casa, a cabeça
+apertada entre as mãos, não sabia o que havia de crer, com a duvida,
+a envolvel-o, a cingil-o, a devoral-o, como serpente, que se lhe
+<span class="pagenum" id="Page_44">[Pg 44]</span>
+houvesse enroscado no corpo e lhe estivesse esmagando o peito e
+fincando os dentes fundo, muito fundo, no coração.</p>
+
+<p>Por fim, ainda impressionado pelas revelações do José Maria:</p>
+
+<p>—Mas o que elle me contou?... Coisas tão bem explicadas ... parecendo
+tão certas!... Quem podia inventar tudo aquillo?</p>
+
+<p>—O proprio marau que t’o foi metter no bico!</p>
+
+<p>—Cale-se! Não é capaz d’isso!</p>
+
+<p>A viuva ía responder, mas a Rosa, que adivinhou quem a tinha
+denunciado, gritou-lhe do seu logar, batendo nos joelhos com as mãos
+abertas.</p>
+
+<p>—Não se cance, minha mãe. Por mais que diga, creia que perde o seu
+tempo. Fia-se menos na gente, do que nos seus amigos velhos. Não admira!</p>
+
+<p>—Tens razão! Sim! Foi o José Maria! exclamou a viuva. Não podia ser
+outro. Ah! Que a primeira vez que o apanhar!...</p>
+
+<p>—Não foi elle! Cale a bocca! intimou o Jorge. Deus a livre de lhe ir
+dizer uma palavra de tudo isto!</p>
+
+<p>—Mas ó homem!...</p>
+
+<p>—Nem palavra! Entendeu?...</p>
+
+<p>—Bem! Bem! Haja saude! Não lhe digo nada. Mas não admira que o José
+Maria... Se nunca poude levar á paciencia o teu casamento!... E tinha
+razão. Se eu não tivesse consentido, estavamos livres d’esta freima.
+Valha-me Nossa Senhora!</p>
+
+<p>E afogou o resto da phrase n’um grande choro de carpideira,
+entrecortado de soluços e arrancos.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_45">[Pg 45]</span></p>
+
+<p>—Cale-se, senhora, cale-se para ahi! ordenou-lhe o velho, aturdido e
+impacientado.</p>
+
+<p>—Não, senhor, não me calo! Até os proprios animaes defendem os seus
+filhos.</p>
+
+<p>N’uma explosão de ternura, correu para Rosa, beijou-a e murmurou,
+chegando-a a si:</p>
+
+<p>—Ainda que todos te criminem, eu sempre direi que estás innocente!</p>
+
+<p>E como a rapariga, desafeita ainda a hypocrisias, a afastasse um pouco,
+sentindo apesar de tudo instinctiva repugnancia pelo que a mãe estava
+fazendo, continuou queixosamente:</p>
+
+<p>—Elle é isso? Já me não queres ao pé de ti?... Tomas raiva a toda a
+gente, vendo-te accusada por quem só te devia defender?... Coitadinha!</p>
+
+<p>Enxugou uma lagrima hypothetica, e com a mão no hombro do genro
+exprobrou-lhe que elle fizesse côro com a malta dos invejosos. Sim! O
+que os Cains não podiam levar á paciencia é que elle fosse feliz com
+a Rosa, não obstante aquella differença das idades, havendo tantos
+maridos tão novos como as mulheres, e até mais novos, que andavam
+apontados a dedo, pelo castello e pela cidade.</p>
+
+<p>—Anda! Faze a vontade a essa corja! continuou a viuva. Sabes que mais?
+Antes de vocês casarem, vieram dizer-me que o que tu querias era uma
+enfermeira para te tratar, porque d’aqui a pouco havias de tornar-te, a
+bem dizer, um poço de doenças, e que eu não devia, por ser uma dôr de
+alma, condemnar a pobre pequena a uma vida de negra! Eu sei lá o que me
+vieram buzinar aos ouvidos! Pois eu deixei-os falar, e, como ella era
+muito tua amiga consenti no casamento... É que eu não sou como tu, não
+<span class="pagenum" id="Page_46">[Pg 46]</span>
+faço a vontade aos maraus!</p>
+
+<p>—Já a mandaram calar, minha mãe! É o melhor que pode fazer! disse-lhe
+a filha, com os nervos irritados pela discussão.</p>
+
+<p>—Bonito! Agora és tu!... Pois não me calo, em quanto não vir as coisas
+no seu logar!—E com a mão posta outra vez no hombro do veterano: O’
+Jorge, deveras não estás ainda arrependido? Vê aquelle botãosinho de
+rosa! Anda! Pede-lhe perdão!...</p>
+
+<p>Como elle resistisse, chegou-se á filha e tentou impellil-a para o
+marido.</p>
+
+<p>A rapariga então é que não quiz e foi para o lado opposto do quarto, a
+chorar de raiva.</p>
+
+<p>—Vês! Vês como a fazes penar! murmurou a Isabel ao ouvido do Jorge.</p>
+
+<p>Approximou-se da filha, aconselhando-lhe, em voz alta, que não se
+apoquentasse, que não chorasse d’aquella maneira, e comminando-lhe em
+voz baixa, lavar d’ali as suas mãos, se ella continuasse a fazer-se
+fina.</p>
+
+<p>Ao cabo lá conseguiu que os dois se abraçassem, e exclamou satisfeita:</p>
+
+<p>—Ora até que tiveram juizinho! Bom! Vamos a isto, que a ceia já não
+deve estar muito quente.</p>
+
+<p>E foi deitando o feijão com hervas para a terrina, onde já tinha migado
+o pão de milho.</p>
+
+<p>Sentaram-se á meza.</p>
+
+<p>O Jorge bebeu uns goles de agua, para ver se tragava as lagrimas,
+que ainda lhe entumesciam as palpebras e quasi lhe espirravam dos
+olhos.—Apezar do seu desejo furioso de acreditar na innocencia da
+<span class="pagenum" id="Page_47">[Pg 47]</span>
+mulher, conhecia que a felicidade lhe tinha fugido para sempre.</p>
+
+<p>A Rosa sentia no fundo do coração um certo dó por aquelle pobre velho,
+que lhe queria tanto; mas não lhe perdoava os sobresaltos por que
+acabava de passar, e, ainda menos, o ser obrigada, por causa d’elle,
+a não ver o homem que a tinha enlouquecido. E quando horas depois o
+Jorge, vencido por tanta lucta, dormia profundamente, ella, muito
+arredada para o outro lado da cama, as lagrimas a escorrerem-lhe a
+quatro e quatro para o travesseiro, perguntava a Deus se vida assim não
+seria mil vezes peior do que a morte.</p>
+
+
+<h3>VII</h3>
+
+
+<p>Passou-se um mez.</p>
+
+<p>O Luiz, sabedor do que tinha havido em casa do Jorge, andava retrahido,
+pois «não queria levar as coisas para o tragico» dizia elle, e «embora
+a rapariga fosse tentadora a valer, não merecia que por sua causa
+se fizessem asneiras de marca maior». Esta restricção, diga-se de
+passagem, estabelecia-a tambem a respeito de todas as outras mulheres.</p>
+
+<p>Demais a Genoveva acabava de voltar da Graciosa. Era uma matronaça
+ainda bem disposta, com quem o sargento, segundo rezava a chronica
+escandalosa da cidade, já tinha tido os seus dares e tomares.
+Encontraram-se por acaso no caminho de S. Pedro e reataram relações.
+Aquella, sim, que não podia accarretar-lhe semsaborias. Se já era
+<span class="pagenum" id="Page_48">[Pg 48]</span>
+livre durante a vida do seu antigo patrão, mais o estava agora, que
+tinha ficado remediada com a herança deixada pelo conego Ricardo á sua
+ama e enfermeira de tantos annos. E sabia fazer-se estimar. Como tinha
+ainda fresco o dinheiro produzido pela venda de um predio na Graciosa,
+dava amiudados presentes ao amante, que recusou a principio, cheio de
+nobre desinteresse, mas que depois, não querendo fazer desfeita, os
+acceitou cheio tambem de gratidão.</p>
+
+<p>A Isabel soube d’isto e para acabar de todo com os «malditos amores»,
+origem para ella de tantos phrenesis, foi dizer tudo á filha.</p>
+
+<p>Pareceu-lhe bom o resultado.</p>
+
+<p>Se até alli a Rosa andava exquisita, tomou-se desde então ainda mais
+taciturna. Nunca saía de casa, e levava sentada o dia inteiro, sem
+dizer palavra, com a vista parada, como se estivesse a olhar para
+dentro de si mesma, interrogando-se.</p>
+
+<p>—Já está arrependida, julgava a Isabel.</p>
+
+<p>A Rosa não acreditou que tudo aquillo fosse verdade, se bem que o
+retrahimento do amante lhe tivesse causado uma desillusão profunda. O
+Luiz não a atraiçoava com a Genoveva, lá isso não!—Achava até ridicula
+semelhante rivalidade; não a tomava a serio.—Mas em todo o caso, não
+era homem para arrojos, nem sacrificios. Cego pelo amor, atrevera-se a
+muito; agora, estava com medo das consequencias, incapaz de imital-a,
+a ella, que se tinha arriscado a tudo, e que não hesitaria, se elle a
+quizesse levar comsigo, em deixar o marido, receiosa tão somente por
+<span class="pagenum" id="Page_49">[Pg 49]</span>
+acabar de perder-se na opinião de todos, e d’este modo não ser digna de
+gosar, algum dia, a felicidade para que se julgava destinada. Pois o
+Luiz não conheceria que só o amor a tinha arrastado áquellas loucuras,
+e que se estivesse casada com elle, mulher nenhuma seria mais honrada?
+Sim, o amante ainda havia de recompensal-a de tudo o que lhe fazia
+padecer.</p>
+
+<p>Era a sua esperança, a sua crença.</p>
+
+<p>Mas o procedimento do Luiz desorientava-a, quasi lhe fazia perder a
+coragem. Chegava a querer-lhe mal, mas iria padecendo até esse dia
+feliz.</p>
+
+<p>Ao marido já tinha raiva.</p>
+
+<p>—Pois não era elle a causa de todas aquellas desgraças? O unico
+obstaculo, que não a deixava ser feliz?</p>
+
+<p>O Jorge, pela sua parte, andava como atordoado. Parecia viver n’um
+sonho. Ainda o assaltavam desesperos subitaneos, quando julgava a
+denuncia verdadeira, e então sentia impetos de matal-a e matar-se; mas
+em breve acalmava, porque lhe acudiam á memoria as explicações dadas
+pelas duas mulheres.—A mãe não podia estar combinada com a filha!</p>
+
+<p>Via a Rosa melancholica e taciturna, mas via-a! Tinha-a sempre alli,
+como coisa legitimamente sua. Possuia-a sem medo de ninguem. Não
+trocava a sua sorte pela de outro, ainda que fosse verdade o que...
+Não! Era uma falsidade, uma perfeita mentira!</p>
+
+<p>—Não me perdoou ainda eu julgal-a tão mal e tem razão, pensava o
+Jorge, por vel-a n’aquella attitude. E até se arrependia de não ter
+forçado o amigo a declarar-lhe o nome do mentiroso, para se vingar, e
+<span class="pagenum" id="Page_50">[Pg 50]</span>
+vingar a sua pobre mulher, que estava innocente.</p>
+
+<p>Lembrava-se de pedir-lhe perdão, de propor-lhe sairem da Terceira
+para S. Miguel ou para outro logar ainda mais distante, onde ninguem
+os conhecesse, onde não chegasse a calumnia. Mas ao encontral-a tão
+reservada, calava se, perdia o animo, e a duvida logo recomeçava no seu
+trabalho surdo e implacavel.</p>
+
+<p>—Pois senhores, dizia comsigo a Isabel fiada n’este apparente socego,
+pelos modos não chega a haver trabuzana. Tenho de levar um cyrio á
+Senhora do Livramento.</p>
+
+<p>—Muito cuidadinho, recommendava ella, quando alguma vez ficava a sós
+com a filha. O Jorge está aqui, está certo de que tudo foi mentira.
+Mas ai de ti, se lhe fizesses voltar as desconfianças. Era capaz de
+matar-te!</p>
+
+<p>—Entre mortos e feridos sempre ha de escapar alguem, objectava a
+rapariga. E espero em Deus mandal-o adeante.</p>
+
+
+<h3>VIII</h3>
+
+
+<p>No dia de S. Pedro á tarde a Isabel aconselhou á filha e ao genro que
+fossem dar um passeio, e como suppunha que não lhes agradassem os
+sitios mais concorridos, lembrou o monte Brazil. Mettidos entre quatro
+paredes, sem nunca se distrahirem, pensava ella, estariam sempre de mau
+humor, e difficilmente acabariam de congraçar-se.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_51">[Pg 51]</span></p>
+
+<p>Não os acompanhou, porque a sós poderiam entender-se melhor. De mais a
+mais, já tinha feito bem o seu dever.</p>
+
+<p>Os dois acceitaram o conselho, e foram pelo caminho, que a meia encosta
+ladeia o monte, passando á ilharga das ruinas da antiga casa de
+recreio dos governadores da praça, e vae ter a uma plataforma de rocha
+sobranceira ao mar.</p>
+
+<p>Pelas aguas tranquillas da angra, que deu o nome á cidade, deslisavam
+alguns barcos, onde familias da burguezia e do povo andavam a
+recrear-se em honra do santo pescador.</p>
+
+<p>Chegados ao extremo do caminho, o velho sentou-se n’um comorosinho
+coberto de relva já amarellecida pela soalheira, e a Rosa, para estar
+bem longe d’elle, foi para a beira da plataforma, e descahiu os olhos
+para o mar. Avistou-o em baixo, ao deante da rampa, que desce em
+vertiginoso declive e termina em empinada muralha banhada na base pelas
+aguas, alli escuras e profundas.</p>
+
+<p>Um barco ia rodeando o monte, de volta para a cidade. A Rosa conheceu
+logo os passageiros. Eram o dr. Brum, um rapaz moreno e cheio de vida,
+e a mulher, uma loura de afamada belleza. Tinham casado por grande
+paixão, uns quatro mezes antes. Ella reclinava a cabeça no hombro do
+marido. Pareciam ainda na lua de mel.</p>
+
+<p>—Como eram felizes!</p>
+
+<p>N’esta occasião o veterano, ainda no mesmo logar, suspirou, entregue
+aos seus tristes pensamentos.</p>
+
+<p>—Que suspirasse! Que padecesse! Que tinha ella com isso? O que lhe
+importava, era o impecilho do velho tel-a ido buscar, para reduzil-a
+<span class="pagenum" id="Page_52">[Pg 52]</span>
+áquella desgraça. Maldito!</p>
+
+<p>Desejosa de ver mais tempo o barco, já quasi a occultar-se por traz
+da bateria de Santo Antonio dos artilheiros, desceu dois passos pelo
+ingreme talude.</p>
+
+<p>Em direcção contraria, e como o primeiro a curta distancia da costa,
+vogava outro bote. Á ré tambem um homem e uma mulher.</p>
+
+<p>Provavelmente mais um casal feliz.</p>
+
+<p>Elle era um militar, um sargento. Já se lhe distinguiam as tres divisas
+verdes.</p>
+
+<p>Tão alegres aquelles dois, que vinham tocando e cantando. A voz
+abarytonada, que entoava o fado, conhecia-a ella.</p>
+
+<p>—Não! Não era possivel!</p>
+
+<p>Debruçou-se mais, correndo quasi o risco de precipitar-se.</p>
+
+<p>—Sim! Eram o Luiz e a Genoveva.</p>
+
+<p>Com os olhos a saltarem das orbitas e os punhos fechados para o barco,
+trovejou phrenéticamente:</p>
+
+<p>—Ah! Grandes maraus! Grandes maraus!</p>
+
+<p>O Jorge pareceu acordar de um sonho, levantou-se, olhou para o bote e
+apesar da distancia reconheceu o sargento.</p>
+
+<p>—Até que te apanhei! gritou elle, travando rudemente do pulso da
+rapariga.</p>
+
+<p>—Hein! O que é?... Largue-me! Largue-me!</p>
+
+<p>E voltou os olhos para o barco.</p>
+
+<p>—Não olhes para lá, olha para mim, para mim, que sou teu marido! Anda!
+Nega ainda historia com o sargento... Nega!</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_53">[Pg 53]</span></p>
+
+<p>—Não nego, e arrependida estou eu de ter negado a primeira vez. Mas
+largue-me! Arre!...</p>
+
+<p>Com um esforço violento escapou-se-lhe da mão e como sentisse o pulso a
+doer, bradou fula de raiva:</p>
+
+<p>—<i>Pisar-me</i> assim! Pedaço de bruto!</p>
+
+<p>—Olha que eu desfaço-te, grande diabo! E não te cae a cara de
+vergonha, por veres que sei tudo! Sempre era muito estupido!... Foi
+preciso que me mettesses a verdade pelos olhos dentro, ao avistares o
+sargento com outra mulher! Eu bem o reconheci, accrescentou o velho e
+apontou para o rival, que mal suspeitava o que alli estava acontecendo
+por sua causa. Ah! Padeces o mesmo que me tens feito padecer? Ainda
+bem! Ainda bem!</p>
+
+<p>Ella ia responder com uma insolencia, mas calou-se, porque a vóz do
+sargento, subindo pela encosta, trouxe-lhe ao ouvido fragmentos de uma
+quadra do fado, de envolta com os arpejos da guitarra.</p>
+
+<p>Sabia-a de cór, de a ter ouvido ao amante.</p>
+
+<p>—Perdes o tempo a escutar, que não é para ti que elle está cantando!
+disse-lhe o Jorge, com sarcasmo.</p>
+
+<p>Voltou-se enraivecida para o marido, mas, querendo feril-o mais
+cruelmente, descambou para a troça.</p>
+
+<p>—Então não querem ver o <i>fedôr</i> do velho! ejaculou, com o dedo
+apontado para elle e atravez de uma gargalhada. Julga talvez que se o
+Luiz me não quizesse mais, ganhava com isso alguma coisa? Nicles, meu
+menino! Não é o mel para a bocca do asno.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_54">[Pg 54]</span></p>
+
+<p>E cuspiu-lhe outra risada.</p>
+
+<p>O Jorge ouvia-a estupefacto, sem acreditar.</p>
+
+<p>Para se vingar em alguem, a Rosa continuava nos improperios, como se
+a desesperação, que dias e dias tinha represado dentro em si, achando
+finalmente sahida, golfasse n’um vomito asqueroso.</p>
+
+<p>—Julgou o mostrengo que era só appetecer uma raparigota, que ainda
+mal chegava a mulher, e chamar-lhe sua! Tal desgraça! Juntar a morte á
+vida!... Que peccado! O avô casado com a neta! Ah! Ah! Ah!</p>
+
+<p>Meio suffocado pelo desespero e pelo asco, mas curioso de saber até
+onde chegaria aquella abjecção, o velho quiz ouvil-a. Não poude
+esquivar-se todavia a dizer-lhe com desprezo:</p>
+
+<p>—Grande porca!</p>
+
+<p>—Porco é você! Um porco, que me sujou casando commigo! Porcos os
+seus beijos! Desde o dia em que me levou á egreja, tenho nojo de mim!
+Veja-se n’um espelho, seu velho tinhoso, e diga-me depois se eu era
+para a sua bocca!</p>
+
+<p>O veterano cresceu para ella, chamando-lhe:</p>
+
+<p>—<i>Valhaca!</i> Surrão!</p>
+
+<p>Quiz agarral-a, porém a rapariga furtou-lhe as voltas, e continuou a
+provocal-o:</p>
+
+<p>—Muito lhe tenho eu aturado! Nenhuma outra soffria tanto. O que eu lhe
+fiz, não é nem a metade do que você merece!</p>
+
+<p>—Eu mato-te, diabo, eu mato-te! Nem já sequer te vejo!</p>
+
+<p>—Nunca me tivesse visto! Oxalá! Fique sabendo que não gosto de você,
+<span class="pagenum" id="Page_55">[Pg 55]</span>
+nem gostei nunca, nunca! D’elle! D’elle, unicamente!...</p>
+
+<p>E apontou na direcção do bote, que os dois, afastados um pouco da
+rampa, não podiam agora ver.</p>
+
+<p>Ouvia-a e cuidava já não ser d’este mundo, ou que tudo se anniquilara
+em volta de si. Ainda os espreitava o sol por traz do monte, e elle
+julgava-se envolto nas trevas da noite.</p>
+
+<p>—Pois aquella creança, que havia pouco se lhe afigurava tão
+innocente e pura, como nas tardes em que ella ia levar-lhe o jantar,
+muito rosada, de vestidinhos curtos, saltitante e alegre que nem um
+passarinho—aquella creança podia ser a malvada que para alli estava a
+falar?! Mais nojenta e descarada do que essas mulheres, que á noite,
+quando lhe succedia voltar para o castello mais tarde, o perseguiam
+pelas ruas da cidade, com as galochas de pau soando estridulamente nas
+pedras da calçada, e que se lhe offereciam desbragadas, em tróca de
+pouco dinheiro! Pois aquillo era a sua mulher, a sua querida mulher?!</p>
+
+<p>No emtanto a Rosa tinha-se abeirado outra vez da escarpa, e com os
+olhos a brilharem seguia o barco, que se ia afastando de terra.</p>
+
+<p>—Era aquillo, era! Peior ainda que as mulheres de má vida, podia dar
+lições a todas ellas!</p>
+
+<p>E para que não existisse um monstro assim, o Jorge correu para a
+mulher, agarrou-a pela cintura e atirou-a com força pela rocha abaixo,
+dizendo:</p>
+
+<p>—Anda! Vae ter com elle!</p>
+
+<p>O corpo cahiu aos resaltos pela vertente e foi pondo salpicos de sangue
+nas arestas que o esfarrapavam, em quanto a voz do sargento Luiz
+<span class="pagenum" id="Page_56">[Pg 56]</span>
+garganteava ao longe, toda cheia de requebros:</p>
+
+<div class="poetry-container">
+<div class="poetry">
+ <div class="stanza">
+ <div class="verse indent0">Mal os meus olhos te viram</div>
+ <div class="verse indent0">O meu coração te adorou,</div>
+ <div class="verse indent0">Na cadeia dos teus braços</div>
+ <div class="verse indent0">Minha alma presa ficou.</div>
+ </div>
+</div>
+</div>
+
+
+<h3>IX</h3>
+
+
+<p>O Jorge não poude seguir a mulher no caminho da morte.</p>
+
+<p>Quando ia para despenhar-se, deitaram-lhe a mão o corneteiro-mór
+reformado e outro homem.</p>
+
+<p>Preso para conselho de guerra, foi julgado tres mezes depois e
+confessou o crime, sem todavia declarar, por mais instancias que lhe
+fizessem, os motivos a que tinha obedecido. Os insultos e provocações
+com que a Rosa o allucinara, contaram-os ao conselho aquellas duas
+testemunhas. Estavam perto, mas não tinham sabido intervir a tempo de
+evitar a catastrophe.</p>
+
+<p>Em quanto duraram estes depoimentos, o Jorge, envergonhado não por si
+mas por ella, tapava o rosto e cravava na testa os dedos contrahidos.</p>
+
+<p>Impressionou vivamente ao auditorio o discurso do defensor. Quem
+apresentava aquella honrosa biographia militar, allegou o moço
+official, não era de certo um assassino. Tinha feito uma morte,
+praticando aliás um acto de verdadeira justiça social, mas não
+commettera um crime, pois estava inteiramente privado da intelligencia
+<span class="pagenum" id="Page_57">[Pg 57]</span>
+do mal que fazia, o que era previsto pelo codigo.</p>
+
+<p>No fim, o presidente perguntou ao accusado se tinha mais alguma coisa
+que allegar em sua defeza.</p>
+
+<p>—A minha pena toda é que V. S.<sup>as</sup> não possam mandar-me varar por
+quatro balas, respondeu o velho, e não pronunciou mais palavra.</p>
+
+<p>Foi absolvido por unanimidade.</p>
+
+<p>O José Maria acompanhou-o a casa, e no intuito de consolal-o disse-lhe
+que a Rosa só tinha tido o que merecia.</p>
+
+<p>—Cala-te, homem, cala-te! vociferou o Jorge, e atirou-se para cima da
+cama, onde ficou deitado, com a cara voltada para a parede, os olhos
+abertos e inexpressivos.</p>
+
+<p>N’isto chegou-lhe á porta a Isabel e não se fartou de injurial-o.</p>
+
+<p>—Peiores que o matador de sua filha, só os malvados do conselho de
+guerra, que o tinham absolvido! Tudo uma cafila!</p>
+
+<p>O José Maria dispunha-se a correr com ella, quando a Josepha Julia e a
+Luiza Braga, que vinham á descoberta, a levaram d’alli.</p>
+
+<p>—Deixa-o lá, dizia-lhe a Luiza, com o braço mettido no da viuva. Bem
+castigado ficou elle, perdendo a sua Rosa. Tens razão para lhe querer
+mal, mas, diga-se a verdade, o que a tua filha fez ao Jorge...</p>
+
+<p>—E tu e as mais o que fazem? berrou a Isabel. Mas logo, cahindo no tom
+lastimoso, ajuntou: O corpo da pobresinha lá está no fundo do mar ...
+ou talvez fosse comido por algum peixe!</p>
+
+<p>Seguiram caladas pela rua adeante.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_58">[Pg 58]</span></p>
+
+<p>—Se todos os maridos, que teem razão de queixa das mulheres,
+seguissem a receita do Jorge—meditava a Josepha Julia, com azedume de
+solteirona—os peixes, de gordos, chegariam a não poder nadar!</p>
+
+<p>Depois, lembrou-se de uma novidade capaz de alegrar a Isabel:</p>
+
+<p>—Não sabeis o que se conta da mulher do sargento Luiz?</p>
+
+<p>—Da antiga ama do conego Ricardo? perguntou, immediatamente a Luiza.</p>
+
+<p>—Isso! Que já a prega na menina do olho ao marido, com um estudante do
+seminario!</p>
+
+<p>—E elle que se ha de affligir! acudiu a Isabel com rancor. Não lhe
+tirem os moios de renda deixados pelo conego, pois quanto ao mais...</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>Sempre cabisbaixo, andando á pressa e murmurando uma vez por outra
+palavras que ninguem percebia, o Jorge só era visto d’alli em deante
+nas ruas do castello, quando ia de manhã para o armazem do material de
+guerra ou para a terra do monte Brazil, e á tardinha, quando recolhia.</p>
+
+<p>Quem de noite lhe passasse á porta, mesmo fóra de horas, via pelas
+frinchas a claridade da candeia, e sentia lá dentro, com frequencia, os
+passos do velho, medindo em todos os sentidos a casa terrea, e ouvia de
+quando em quando um suspiro mal reprimido. Quando lhe perguntavam se
+queria alguma cousa não respondia e ficava á escuta, para continuar na
+<span class="pagenum" id="Page_59">[Pg 59]</span>
+mesma, apenas ia longe o importuno.</p>
+
+<p>Uma noite o José Maria, embora soubesse que o Jorge, como sempre, o
+receberia mal, entrou-lhe á força em casa e fez-lhe ver que elle estava
+dando cabo de si, o que era um grande peccado.</p>
+
+<p>—A vida, é Nosso Senhor quem a dá, só elle a póde tirar, retorquiu
+o Jorge. Cuidas que se não acreditasse n’isto, já não tinha ha que
+seculos?...</p>
+
+<p>E sem rematar a phrase, continuou a passeiar pela casa, alheio a quanto
+o rodeava.</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>Em algumas tardes ia sentar-se na rocha, no mesmo sitio d’onde tinha
+despenhado a mulher, e deixava-se alli ficar horas esquecidas, olhando
+para o mar, talvez a pedir-lhe que lhe restituisse a sua Rosa, de quem
+elle, apezar de tudo, ainda gostava tanto!</p>
+
+<figure class="figcenter" id="i002" style="width: 200px;">
+ <img src="images/i002.jpg" width="200" height="61" alt="decorative">
+</figure>
+</div>
+
+
+<hr class="chap x-ebookmaker-drop">
+
+<div class="chapter">
+<figure class="figcenter" id="i003" style="width: 400px;">
+<img src="images/i003.jpg" width="400" height="83" alt="decorative">
+</figure>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_61">[Pg 61]</span></p>
+<h2 class="nobreak" id="Os_Filhos_Do_Frade">Os Filhos Do Frade</h2>
+</div>
+
+<img alt="F" class="drop-cap" height="388" src="images/drop-f.jpg" width="200">
+<p class="nind"><span class="upper-case">FREI</span>
+Antonio entrou na cella do guardião, tremulo, sem forças. O
+religioso que o chamou, dissera-lhe apenas:</p>
+
+<p>—Cuido que é para ires a casa do morgado da Fajã.</p>
+
+<p>O guardião, gordo, pausado, pachorrento, disse a uma e uma estas
+palavras, que iam fazendo estalar de angustia o coração do franciscano:</p>
+
+<p>—Frei Antonio, o morgado da Fajã manda-me pedir um irmão, que vá
+acompanhar esta noite, junto do caixão, a menina Beatriz, que morreu
+ainda agora, de repente. Escolhi a Vossa Reverendissima. Vá buscar o
+seu breviario e ponha-se a caminho, que d’aqui até lá acima ao monte,
+ainda é boa a distancia.</p>
+
+<p>O frade saiu d’alli cambaleando, estonteado. Por milagre chegou á sua
+cella, sem cahir ao comprido, sobre as lages do corredor.</p>
+
+<p>Mal fechou a porta, atirou-se de bruços para cima do catre, e mordeu a
+coberta de lã grosseira, n’um paroxismo louco, abafando os gritos que
+<span class="pagenum" id="Page_62">[Pg 62]</span>
+lhe irrompiam do peito em catadupa.</p>
+
+<p>Depois, foi a pouco e pouco serenando, as lagrimas correram-lhe dos
+olhos em fio, e o franciscano esteve tempo infinito, de joelhos no
+chão, com os olhos erguidos para o alto, mal fitando atravez do caudal
+do choro a imagem de um Christo, que estendia lamentoso os braços sobre
+o madeiro da Cruz, n’uma attitude de immensa angustia resignada.</p>
+
+<p>E assaltou-lhe a memoria a recordação de uma dôr egual, a da perda da
+sua mãe, que morrera assim, de repente, estando a falar com elle. Dôr
+egual, não! que maior que todas é a de perder-se a mulher amada.</p>
+
+<p>E elle idolatrava-a com tão immaculado culto, que nem a vista da
+donzella profanára aquelle amor. Só agora, declarada a medonha
+catastrophe, só depois que o guardião dissera que Beatriz tinha
+morrido, frei Antonio percebeu o que eram aquelles extasis, aquelles
+arroubamentos ineffaveis, de quando via, ao longo dos caminhos ou na
+egreja, a figura gentil e fascinante da morgadinha. Ás vezes, quando
+surprehendia no peito o intenso tumultuar da paixão, illudia-se,
+rebuscava na memoria passagens dos livros santos e acreditava que
+ascetas teriam tido como elle, e mais do que elle ainda, o indizivel
+goso de antever em vida apparições como essa, mensageiros de Deus
+destinados a fazer-nos crêr nos archanjos e seraphins.</p>
+
+<p>Mas este mysticismo acabava perante a nova fatal. Não! O anjo era-o,
+mas da terra! Morto, desfolhado aquelle lyrio de fragrancia extrema:
+<span class="pagenum" id="Page_63">[Pg 63]</span>
+impossivel, impossivel!...</p>
+
+<p>Saiu da portaria do convento quasi a correr, e como lá fóra, pelo campo
+matisado de flores, o sol esparzia ondas de luz, e nas carvalheiras os
+melros trinavam alegremente, soltou-se-lhe do peito um longo suspiro
+de satisfação e o rosto coloriu-se-lhe de prazer. Se Beatriz houvesse
+morrido, o sol ter-se-hia apagado e os passaros nunca mais soltariam os
+seus gorgeios.</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>Quando chegou a casa do morgado, as trevas encheram-lhe de novo a
+alma. Ao fundo do pateo, n’um quarto baixo, avistou, apenas acabava de
+empurrar a porta da rua, que estava entreaberta, um grupo de mulheres
+erguendo as mãos ao ceo, e soluçando muito.</p>
+
+<p>Subiu a escada de pedra, passou o alpendre, e logo na grande sala da
+habitação fidalga encontrou o pobre pae e viu no rosto afogueado do
+velho a verdade inteira.</p>
+
+<p>Tinha morrido Beatriz.</p>
+
+<p>Lá dentro, no seu quarto virginal, transformado em capella mortuaria,
+estava a donzella estendida sobre a cama, em quanto não chegava o
+caixão, que devia contel-a para sempre, e onde se passaria o drama
+horrivel da podridão, quando aquelles labios, ha pouco avermelhados
+pelo sangue dos quinze annos, e aquella carne, mais branca e macia do
+<span class="pagenum" id="Page_64">[Pg 64]</span>
+que as petalas das açucenas, fossem devorados lentamente, cruelmente,
+pelos vermes repugnantes.</p>
+
+<p>O frade olhou-a e descreu outra vez da morte. Bem a viu immovel, côr
+de cera, esmaecidas as rosas das faces; não acreditou. E quanto mais a
+via, mais a duvida o animava, mais o espirito se lhe erguia para Deus,
+interrogando, mas não pedindo. Seria excusado implorar-lhe um milagre
+para resuscitar Beatriz, porque Beatriz não podia estar morta!</p>
+
+<p>Ainda assim os labios de frei Antonio murmuravam rezas, e quando a
+noite já ia adeantada, e todos em casa se tinham recolhido, ainda no
+quarto funebre se ouviam as orações do religioso, quebrando aquelle
+silencio de coisas mortas, e echoando flebilmente até aos pannos
+negros, que forravam as paredes, e de que se destacavam, a um lado, as
+chammas compridas, pallidas e immoveis dos quatro cyrios do altar.</p>
+
+<p>Sempre com a mesma crença, quando ficou só e sentiu o ultimo alento
+de vida extinguir-se no resto da casa, levantou-se do logar aonde
+ajoelhara e chegou-se para o caixão.</p>
+
+<p>Abertas para os lados as duas meias tampas forradas de setim branco,
+mostravam atravez de um véu de tule a donzella. O frade viu-a e recuou
+inconsciente, como se houvera profanado uma alcova virginal. Coisa
+alguma d’aquelle espectaculo lhe trazia ao pensamento a ideia da morte.</p>
+
+<p>Todos, sem duvida, se enganavam. Era horrivel deixar que a levassem
+para debaixo das lages da egreja, para o frio jazigo da familia, quando
+ella não estava morta, quando a mocidade nunca se expandira tão
+<span class="pagenum" id="Page_65">[Pg 65]</span>
+exuberante no rosto de Beatriz!</p>
+
+<figure class="figcenter" id="i004" style="width: 700px;">
+ <img src="images/i004.jpg" width="700" height="713" alt="Monge encapuzado ajoelhado ao lado de uma mulher deitada de costas, com a cabeça inclinada para trás, olhos fechados e braços ao longo do corpo.">
+</figure>
+
+<p>Chegou-se mais. Ergueu o veu, quiz encostar o ouvido ao peito da
+donzella, e perscrutar-lhe as palpitações do coração. Não poude. As
+tampas do caixão não lh’o permittiam. Pousou a mão tremula regelada na
+testa da morgadinha, e pareceu-lhe receber uma impressão de calor.</p>
+
+<p>—Então estava viva!</p>
+
+<p>Quiz chamar alguem, correu para a porta, mas lembrou-se dos tristes
+<span class="pagenum" id="Page_66">[Pg 66]</span>
+sorrisos de desconsolo, que tinham respondido ás suas duvidas, algumas
+horas mais cedo.</p>
+
+<p>Tornou para junto d’ella.</p>
+
+<p>—Ah! Se podesse sentir-lhe pulsar o coração!... Porque havia de
+hesitar?</p>
+
+<p>Levantou o corpo um quasi nada, e em seguida um pouco mais,
+introduzindo as mãos tremulas por baixo dos hombros da donzella. Sem
+saber como tirou-a para fóra do caixão, e amparando-a nos braços, e
+achegando-a a si, qual mãe que aperta ao seio um filho estremecido,
+dirigiu-se cambaleando, quasi louco, para a cadeira de espalda onde
+estivera velando o morgado.</p>
+
+<p>Fitou-a, e julgou vel-a sorrir. Chegou-lhe ao coração o ouvido e sentiu
+palpitações.</p>
+
+<p>Então na sua alma operou-se uma transformação sobrehumana. Aquella
+quadra já não foi para elle camara mortuaria, mas alcova nupcial, e o
+frade, perdida a razão, esqueceu tudo, e julgou realidade o que mais de
+uma vez se atrevera a phantasiar, e viu-se esposo de Beatriz, sentindo
+nos seus braços o corpo da donzella, rendido, indefeso, e gosou toda a
+suprema volupia de um primeiro beijo de amor.</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>De repente ouviu-se um gemido doloroso, quasi um grito!</p>
+
+<p>O frade ergueu-se do chão, de golpe.</p>
+
+<p>Beatriz, prostrada por terra, tinha effectivamente voltado á vida, e
+acabava de sair do estado cataleptico, que todos tinham julgado morte.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_67">[Pg 67]</span></p>
+
+<p>Aterrado, espavorido, fugiu do palacio, soltando brados.</p>
+
+<p>A familia do morgado acudiu e poude adivinhar, horrorisada, o que se
+tinha passado.</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>Sessenta annos mais tarde, ha pouco tempo ainda, contava-se esta
+historia em Santa Cruz, na Madeira, para explicar o motivo por que dois
+velhinhos, muito parecidos e da mesma altura, e que andavam sempre
+juntos, eram chamados os <i>filhos do frade</i>.</p>
+
+<p>Havia quem dissesse que eram gemeos, mas a opinião encontrava alguns
+incredulos.</p>
+
+<p>Consta-me até que um investigador consciencioso estabeleceu, com
+documentos irrefragaveis, que um dos irmãos era onze mezes mais velho
+do que o outro, porque Beatriz e Frei Antonio...</p>
+
+<p>Silencio! Não é bom revolver o pó das sepulturas.</p>
+
+<figure class="figcenter" id="i005" style="width: 200px;">
+<img src="images/i005.jpg" width="200" height="51" alt="decorative">
+</figure>
+
+
+<hr class="chap x-ebookmaker-drop">
+<div class="chapter">
+
+<figure class="figleft" id="i006" style="width: 400px;">
+<img src="images/i006.jpg" width="400" height="478" alt="Duas figuras, uma mulher com expressão melancólica e vestes antigas, e na parte inferior, um homem com bigode, trajando roupas formais, ambos intercalados por desenhos de corações. Ao fundo, há uma paisagem costeira, com barcos e figuras humanas.">
+</figure>
+</div>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_69">[Pg 69]</span></p>
+<h2 class="nobreak" id="O_Primeiro_Desengano">O Primeiro Desengano</h2>
+
+
+<p>Vestiu pela primeira vez fatos de senhora, no dia em que fez quatorze
+annos.</p>
+
+<p>Ainda estou a vel-a entrar pela sala dentro muito envergonhada,
+tropeçando na fimbria do vestido comprido, não sabendo se devia rir ou
+zangar-se com os gracejos que lhe choviam de todos os lados.</p>
+
+<p>Afinal foi sentar-se ao pé de uma meza, e tirou da floreira uma
+rosa, que tratou de desfolhar e de triturar, persuadida talvez de
+que escapava assim á attenção geral. Tivesse mais dois ou tres annos
+e desejaria prolongar o sentimento de admiração excitado pela sua
+formosura juvenil, em que transparecia a candura e singeleza da
+creança, da <i>baby</i> da vespera, alliadas á fascinação da mulher
+<span class="pagenum" id="Page_70">[Pg 70]</span>
+que despontava.</p>
+
+<p>Do meu canto, observava aquella esplendida adolescencia, que assim
+desabrochava de subito, e quasi não podia acreditar que os poucos
+mezes, que a Georgina tinha estado longe da Madeira, assim houvessem
+transformado a minha antiga companheira de brinquedos.</p>
+
+<p>E ao vel-a tão differente, sentia em mim o que quer que fosse novo
+e estranho, e, desejando aliás approximar-me d’ella e contemplal-a
+muito tempo, tinha a dubia percepção de que alguma coisa nos separava
+agora, tornando completo impossivel o falarmo-nos como d’antes, quando,
+n’aquellas manhãs de julho tépidas e luminosas, iamos com um rancho
+enorme para o banho do mar, e a Georgina, alegre e buliçosa como um
+passarinho, pulava na frente do bando, com as suas perninhas brancas e
+rosadas, que appareciam abaixo do vestido de cambraya.</p>
+
+<p>Em quanto ella e as senhoras entravam para as barracas enfileiradas a
+curta distancia da babugem da maré, nós, os homens—eu já me incluia
+no rol—enfiavamos cá fóra os horriveis fatos de banho, quasi sempre á
+direita das barracas, para nos livrarmos do sol, que surgia por traz do
+cabo Garajao e começava a faiscar nas vidraças do Funchal.</p>
+
+<p>Que bons aquelles banhos!</p>
+
+<p>Era um alvoroço enorme, uma exuberante alegria, quando entravamos
+de corrida pelo mar dentro, e, passada a primeira sensação de frio,
+gosavamos a deliciosa frescura, fluctuando ao impulso da onda, de mãos
+<span class="pagenum" id="Page_71">[Pg 71]</span>
+dadas, divisando atravez da limpidez da agua, as pedrinhas brancas
+semeadas entre os calhaus do fundo ... e as formas tremulas, fugitivas
+das banhistas. Sobre o mar, levemente encrespado pela brisa, formava-se
+para o lado do nascente uma esteira luminosa, coruscante. De quando em
+quando um de nós fazia repuxar a agua em myriades de gotas, que cahiam
+como chuva de fogo, até irem perder-se na espuma branca de neve.</p>
+
+<p>Uma vez a Georgina apanhou um grande susto. Presumindo excessivamente
+das suas aptidões de nadadora principiante, quiz afastar-se da
+terra, mas lembrou-se de repente de que já não teria pé, de que ia
+afogar-se, imaginou-se até levada por uma resaca, e poz-se a bracejar
+desordenadamente, gritando, bebendo agua, como se lhe tivessem dado
+uma <i>enterra</i>. Soffreria provavelmente a morte da Virginia de
+Bernardin de Saint-Piérre, sem o acompanhamento grandioso e bulhento
+do temporal, se eu não a tivesse agarrado a tempo e conduzido á praia,
+Deus sabe com que difficuldade.</p>
+
+<p>Imagine-se a ufania que me causava a recordação da façanha, no momento
+em que a Georgina me apparecia sob aquelle aspecto novissimo!</p>
+
+<p>—Ah! Se podesse tornar a salval-a, trazendo-a apertada nos braços!...
+Formulava mentalmente este desejo, que parecia de certo uma enormidade
+ao meu pudor dos quinze annos, quando notei que a Georgina olhava
+fixamente para o meu lado.</p>
+
+<p>Desviou a vista, quando a encarei, mas d’alli a pouco estava a olhar
+outra vez.</p>
+
+<p>Senti então um dos maiores prazeres da minha vida. Comprehendi o
+<span class="pagenum" id="Page_72">[Pg 72]</span>
+motivo por que a julgava outra, adivinhei o que era o sentimento novo
+que me dominava.</p>
+
+<p>Valeu-me para a descoberta o andar a ler o <i>Visconde de
+Bragelonne</i>, no ponto em que se descreve a seducção de La Vallière.
+Lembrei-me até de que o maroto do Alexandre Dumas torna quasi cumplices
+na queda da pobre Luiza uns passarinhos, que havia na sala e que no
+momento em que Luiz XIV cae aos pés da namorada, chilream dentro
+das douradas gaiolas uma toada de indizivel concupiscencia, o que
+ainda mais entontece a futura carmelita. Ora emquanto eu olhava para
+a Georgina, tambem cantava um passaro, um melro, empoleirado n’uma
+magnolia do jardim. Achei de bom agouro a coincidencia.</p>
+
+<p>É claro que não emparelhava a Georgina com a La Vallière—via-a como
+aquella a quem havia de ser unido para sempre, visto que o amor assim
+nos destinara um para o outro.</p>
+
+<p>Com uns restos de duvida, olhei em roda de mim.</p>
+
+<p>No lado da sala onde eu estava, não havia mais nenhum homem, a não ser
+o escrivão de fazenda, sujeito de grande bigodeira e voz soturna, que
+recitava pelas salas o <i>Noivado do sepulchro</i> e a <i>Doida de
+Albano</i>.</p>
+
+<p>Era solteiro, mas tinha mais de tres vezes a edade de Georgina. Fiquei
+radiante. Era para mim com certeza, que estava olhando. D’alli a pouco
+fomos jantar.</p>
+
+<p>Não comi nada, porque ella, apesar de ter ficado ao pé de mim, não me
+<span class="pagenum" id="Page_73">[Pg 73]</span>
+deu a minima attenção.</p>
+
+<p>Como já tambem conhecia a existencia das <i>coquettes</i>, perguntei a
+mim mesmo se a Georgina seria uma d’ellas, e resolvi provocar o mais
+cedo possivel uma explicação decisiva.</p>
+
+<p>Deparou-se-me o ensejo n’aquella mesma tarde.</p>
+
+<p>Achavamo-nos os dois no extremo do mirante sobre o Caminho do Monte,
+vendo os romeiros que voltavam de festejar a Senhora de agosto.</p>
+
+<p>Os mais não podiam ouvir-nos, entretidos como estavam por um dos
+espectaculos mais pittorescos dos costumes populares madeirenses. O
+som dos machetinhos de Braga, machetes de rajão e violas francezas,
+e o sussurro dos descantes e falatorio dos romeiros abafariam alguma
+palavra que me escapasse em voz mais alta.</p>
+
+<p>Depois de lhe disparar uma declaração, fiz-lhe não sei quantas
+recriminações, pelo que me tinha feito soffrer durante o jantar.</p>
+
+<p>A Georgina escutou-me cheia de pasmo, desviou-se um pouco, e medindo-me
+dos bicos dos pés até á cabeça, disse-me com um supremo desdem:</p>
+
+<p>—O menino endoideceu! Não sabe que é ainda um fedelho e que eu já sou
+uma senhora! Isso ha de ser somno, por força. O que o Luizinho deve
+fazer, é pedir á sua mamã que o metta mais cedo na cama!</p>
+
+<p>Fulo de raiva, ia dizer-lhe uma insolencia, quando se approximaram de
+nós a mãe d’ella e a minha.</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>D’alli a dois mezes casava a Georgina com o escrivão de fazenda, e
+d’alli a dois annos ... estava eu vingado.</p>
+
+
+<hr class="chap x-ebookmaker-drop">
+
+<div class="chapter">
+<figure class="figcenter" id="i007" style="width: 200px;">
+ <img src="images/i007.jpg" width="200" height="46" alt="decorative">
+</figure>
+</div>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_75">[Pg 75]</span></p>
+<h2 class="nobreak" id="A_Alegria_do_Mar">A Alegria do Mar</h2>
+
+
+<img alt="O" class="drop-cap" height="431" src="images/drop-o.jpg" width="200">
+<p class="nind"><span class="upper-case">O</span>
+Manuel João abalou dos Cedros aos primeiros arreboes da madrugada, e,
+apezar de já ter os seus sessenta bem puxados, não afrouxou na extensa
+caminhada até á Horta, a <i>villa</i>, como o povo do Fayal teima em
+chamar á sua pequena cidade.</p>
+
+<p>Quando chegou ao alto da Lomba, deu um suspiro de satisfação. <i>A
+Alegria do Mar</i> ainda não estava no ancoradouro. Só viu fundeado um
+patacho e um hiate, e, navegando do Pico para S. Jorge, o paquete da
+carreira, que tinha chegado, na vespera, das Flores, com a noticia de
+já lá estar a barca, onde o filho voltava dos Estados Unidos.</p>
+
+<p>Ha que annos o rapaz estava ausente, e quasi sempre sem escrever! Mas
+o pae não estranhava a falta de noticias. Quando o José se despediu
+d’elle e da mãe, a Andreza, pediu-lhe que escrevesse muitas vezes, o
+que o Manuel João contrariou, dizendo bruscamente:</p>
+
+<p>—Deixa falar tua mãe, e só gastes o tempo a trabalhar! Cartas são
+<span class="pagenum" id="Page_76">[Pg 76]</span>
+papeis, não servem de nada. Se poderes mandar alguma coisa, manda
+dinheiro. É com elle que a gente se governa!</p>
+
+<p>O rapaz quasi nada lhes mandou, porque não obstante a grande lida em
+que andava constantemente, poucas economias conseguiu coalhar. Só nos
+ultimos tempos havia tido uma aragem de sorte, de maneira que voltava
+remediado. O Francisco Madruga, um visinho chegado dois mezes antes,
+contou aos dois velhos que o José tinha um collete de pelles todo
+acolchoado de bellas aguias—aquellas moedas de ouro tamanhas e tão
+luzidias, que, mal comparadas, fazem lembrar o sol abençoado, e que são
+como elle fonte de vida e de alegria!</p>
+
+<p>Tendo descido a ladeira da Conceição, o velho atravessou a disforme
+e corcovada ponte, e entrou na cidade, indo parar no caes proximo do
+castello de Santa Cruz.</p>
+
+<p>Estava a informar-se, quando o facho do monte da Guia começou a fazer
+signaes.</p>
+
+<p>—Talvez aquellas bandeirinhas lhe estejam a responder, lembrou um
+barqueiro, apontando para o alto da collina.</p>
+
+<p>Effectivamente era o annuncio de que já se avistava a barca.</p>
+
+<p>—Com este vento, a <i>Alegria do Mar</i> não dá fundo antes d’essas
+quatro horas, opinou o mesmo barqueiro.</p>
+
+<p>—Ou das cinco, resmungou outro.</p>
+
+<p>Como lhe sobrava tempo, o Manuel João foi comer alguma coisa a casa de
+um primo, que tinha <i>botequim</i> defronte do mercado.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_77">[Pg 77]</span></p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>A barca deitou ferro á tardinha.</p>
+
+<p>Acossadas pelo vento sueste, pelo <i>carpinteiro</i>, as vagas batiam
+com força recrescente na muralha da cidade e espadanavam com violencia,
+ou formavam grandes rolos na areia. Saltando a cada instante para
+o caes, a agua varria-o, de lado a lado, para logo se despenhar em
+abundante cascata. Ás vezes, do meio do tapete espumoso apenas emergia,
+como ilha exotica, o guindaste de ferro, muito luzidio com os banhos
+consecutivos.</p>
+
+<p>Á cautela, os barcos varados no caes tinham sido puxados para a rampa
+superior.</p>
+
+<p>Tanto que a <i>Alegria do mar</i> fundeou, appareceu, do lado do
+castello, o capitão do porto, seguido do patrão-mór, ambos embrulhados
+em gabões impermeaveis. Só ao chegarem á porta da barraca da alfandega,
+é que viram ser impossivel a execução do serviço.</p>
+
+<p>—A minha pena, disse o official de marinha, é não ter mandado vir para
+terra as tripulações dos navios, que já cá estavam. O barometro desceu
+tanto!...</p>
+
+<p>—É que a brincadeira vae ser um boccado seria, alvitrou o patrão-mór,
+designando o céo com um gesto circular.</p>
+
+<p>O Manuel João, que tinha acabado de voltar e que os ouviu, perdeu o
+acanhamento e perguntou afflicto:</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_78">[Pg 78]</span></p>
+
+<p>—Ha perigo, sr. capitão? Valha-me Nossa Senhora! Ha perigo de a barca
+vir a terra?! Ai! O meu filho, o meu rico filho!...</p>
+
+<p>Compadeceu-se o official de marinha e para socegal-o disse-lhe que
+o navio tinha boas amarras, que o temporal havia de amainar, e que
+ficasse elle certo de que na manhã seguinte veria o filho ao pé de si,
+são e escorreito.</p>
+
+<p>—Deus Nosso Senhor o ouça! Mas que noite eu vou passar!...</p>
+
+<p>E como do alto do caes não via a barca, foi em busca de um sitio d’onde
+ao menos podesse enxergar o navio, em que estava o José. Ah! Em casa
+do primo havia uma <i>falsa</i> fronteira ao ancoradouro!... D’alli
+a pedaço lá estava o Manuel João, olhando para o mar por um oculo
+americano que o primo lhe emprestou, e que em tempo claro punha a
+Magdalena mesmo ao pé da gente, apezar das cinco milhas que ella dista
+do Fayal.</p>
+
+<p>Ainda bruxuleavam os ultimos clarões da tarde. Depois de muitas
+tentativas, o velho lá conseguiu descobrir o tombadilho da barca ... e
+tres homens... Se algum d’elles seria o filho?... Pareceu-lhe
+que sim!... O mais alto!... Bastava-lhe poder vel-o bem um instante
+sequer... Em vão!... Quanto primeiro lobrigara, desvaneceu-se de todo
+com as trevas que augmentavam.</p>
+
+<p>Os olhos, a arderem como se os picassem alfinetes, deixaram de ver.
+Não! Viram logo depois uma luzinha, a do pharol de bordo, passar e
+repassar no vidro immovel do oculo, a compasso com os balanços do
+navio, n’um movimento de vaevem, como a dizer-lhe que não! que não!
+<span class="pagenum" id="Page_79">[Pg 79]</span>
+que elle não veria o filho! Atordoado, fechou a janella, a que já era
+difficil estar, pela violencia da ventania.</p>
+
+<p>Em baixo, no botequim, o primo deu-lhe animo, e, repetindo a prophecia
+do capitão do porto, affirmou-lhe que o José, d’alli a meia duzia de
+horas, lhe metteria os tampos dentro com um abraço.</p>
+
+<p>—Sabes que mais? Vae dormir, que é a maneira de não sentires passar o
+tempo.</p>
+
+<p>Como achou boa a lembrança, o velho deitou-se para cima de um monte de
+saccos de milho, e adormeceu pouco depois, a rezar um padre nosso pelo
+José e por todos os que andavam sobre as aguas do mar.</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>Por volta da meia noite, acordou estremunhado.</p>
+
+<p>—Está aqui, está na areia! dizia uma voz, que elle não conheceu. Ande,
+ó tiosinho, dê-me um copo de aguardente da terra, para me consolar o
+interior! Bem vê que estou como um pinto.</p>
+
+<p>Assomou á porta e perguntou ao barqueiro, que assim falava:</p>
+
+<p>—A <i>Alegria do Mar</i> é que está em perigo?</p>
+
+<p>—Bem visto que sim! Aquella já fez a sua ultima viagem. Está aqui,
+está feita em estilhas.</p>
+
+<p>O Manuel João desatou a correr pela porta fóra, como um doido, e pela
+primeira travessa que topou á mão direita, arremetteu para o lado do
+mar.</p>
+
+<p>No sitio aonde foi ter, as vagas não batiam na muralha, porque lhes
+<span class="pagenum" id="Page_80">[Pg 80]</span>
+quebrava a furia um cómoro de areia.</p>
+
+<p>Ninguem! Nenhum som de voz humana, atravez dos bramidos do temporal!
+Não viriam accudir áquelles desgraçados?... Sim! Ao pé da alfandega,
+lampejou um clarão avermelhado. Archotes, que marcavam ao navio em
+perigo o sitio melhor para encalhar.</p>
+
+<p>—Mas a <i>Alegria do Mar</i> obedeceria ainda ao governo?...</p>
+
+<p>N’isto surgiram ao pé do velho uns vultos, que nem deram por elle, tão
+entretidos estavam em observar o ancoradouro.</p>
+
+<p>—Aqui é que ella vem dar!</p>
+
+<p>—<i>Eh, home!</i> Como o sabes?</p>
+
+<p>—Verás! Mas queira Deus que d’esta vez não seja, como quando se perdeu
+a baleeira americana. Afogou-se teu irmão e não apanhámos quasi nada.</p>
+
+<p>—Nanja agora. Vem muita familia com dinheiro.</p>
+
+<p>—Ah, <i>seus</i> maraus! <i>Seus</i> grandes ladrões! bradou
+furioso o Manuel João crescendo para os <i>tarraços</i>, que fugiram
+desconcertados e foram ajustar para outra parte os seus planos de
+rapinagem, infalliveis em occasião de naufragio.</p>
+
+<p>A sombra escura do navio estava já a curta distancia, pelo garrar
+constante da amarração. Sobre o céu acinzentado, que o luar velado de
+nuvens allumiava debilmente, os mastros desenhavam linhas negras mal
+definidas, e no de traquete brilhava ainda o pharol, fazendo lembrar
+pupilla de moribundo a espreitar o golpe de misericordia.</p>
+
+<p>Mas nem se podia olhar para o navio, que a areia levantada da praia
+<span class="pagenum" id="Page_81">[Pg 81]</span>
+pela ventania, chicoteava como ponta de azorrague, e cegava a quantos
+assistiam á catastrophe.</p>
+
+<figure class="figcenter" id="i008" style="width: 800px;">
+<img src="images/i008.jpg" width="800" height="708" alt="No centro da imagem há homem angustiado que observa algo na direção do mar, com as mãos na cabeça. Ao fundo, há um navio em meio a ondas turbulentas, indicando uma tempestade.">
+</figure>
+
+<p>Entretanto a barca vinha caminhando lugubremente para a costa, onde
+havia de espedaçar-se. Por entre os lamentos da tempestade, mais
+horriveis que os uivos de uma alcateia de lobos famintos, já se ouvia
+o gemer da mastreação. Despidos das vergas pelo vendaval, os mastros
+ainda se conservavam em toda a sua altura, inteiriçados, erectos como
+braços chamando por soccorro afflictivamente.</p>
+
+<p>O velho, agachado por traz do parapeito da rua do Mar, foi caminhando
+para o Castello Novo, ao perceber que o navio derivava para o nascente.</p>
+<p><span class="pagenum" id="Page_82">[Pg 82]</span></p>
+
+<p>N’isto sentiu-se uma pancada surda, outra e outra: a <i>Alegria do
+Mar</i> tinha dado no fundo. Em volta do velho já remoinhavam muitos
+homens, attonitos, anhelantes, por verem que não podiam valer áquelles
+desgraçados, que estavam alli tão perto, ao alcance da voz, e que
+dentro em pouco seriam victimas da morte cruel, que havia umas pouca de
+horas os estava chamando, attrahindo, hypnotisando.</p>
+
+<p>—Só Deus lhes póde acudir! disse alguem ao pé d’elle.</p>
+
+<p>—Quem ha de valer-lhe é o Senhor Santo Christo da Praia! pensou
+o Manoel João, cheio de esperança. Pois se aquelle Senhor é tão
+milagroso, que, levado em procissão ha cem annos, quando a terra tremeu
+uma semana a fio, logo que chegou ao pé da costa fez parar a corrente
+de fogo, que rebentara no Pico e vinha atravessando o canal, melhor
+podia agora com certeza... Até lhe custava menos!</p>
+
+<p>E, de joelhos, prometteu-lhe uma festa luzida, como aquella que lhe faz
+todos os annos a camara da <i>villa</i>. Elle por si não aguentava com
+os gastos, mas lá estava o collete do seu rapaz... Umas quatro ou cinco
+aguias chegariam para a funcção.</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>O temporal estava no seu auge. A bahia, coberta litteralmente de
+espuma, tinha o aspecto de um immenso lençol—livida e sinistra
+mortalha.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_83">[Pg 83]</span></p>
+
+<p>Tombado sobre estibordo, o navio debruçava a mastreação para o lado da
+terra, e, ainda mal cravado na areia, estremecia convulsivamente ás
+furiosas investidas do oceano.</p>
+
+<p>As ondas, batendo em cheio no costado, repuxavam a enorme altura, e
+despenhavam-se em catadupa sobre o convez. Bastaram poucas arremettidas
+para quebrar os mastros, sem todavia os separar completamente do casco.</p>
+
+<p>N’este comenos viram-se distinctamente, sobre o fundo cinzento do
+céu, tres vultos humanos agarrados á amurada do lado da pôpa. Ainda
+escabujavam na lucta suprema da morte.</p>
+
+<p>—Fiquem a bordo! gritou-lhes de terra um homem, alongando as syllabas
+e fazendo porta-voz com ambas as mãos.</p>
+
+<p>—A bordo! Podem lá resistir áquelles mares! objectou o patrão-mór,
+embora calculasse que seria irremessivelmente envolvido e tragado pela
+resaca, o temerario que pretendesse ganhar a costa, nadando.</p>
+
+<p>—Ahi veem elles! Ahi veem elles! bradou subitamente uma voz e
+repetiram logo muitas outras.</p>
+
+<p>—Aproveitaram-se dos mastros! Salvam-se com certeza!</p>
+
+<p>Então os espectadores da tragedia olvidaram o perigo e, atravez de
+uma aberta da muralha, correram para o areal. Tres ou quatro mais
+affoutos entraram pela agua dentro a buscar os naufragos, que vinham
+engatinhando ao longo dos mastros, arriscados, uns e outros, a que os
+esmagassem aquelles madeiros, já meio partidos e desconjuntados, mas
+<span class="pagenum" id="Page_84">[Pg 84]</span>
+que ainda se erguiam e baixavam pesadamente ao embate dos vagalhões.</p>
+
+<p>Afinal conseguiram salvar-se tres naufragos, e foram levados em braços
+para uma loja perto d’alli.</p>
+
+<p>O velho furou por entre os curiosos, que se apinhavam á porta, e
+achou-se no interior da casa.</p>
+
+<p>Mas era difficil ver qualquer coisa, á luz dubia espalhada lá dentro
+por uma candeia. Por fim conheceu que dois d’elles eram já de bastante
+edade e que sómente o terceiro... Estava deitado sobre uma enxerga, com
+os olhos fechados, o parecer quasi cadaverico, os cabellos collados
+á testa. Mas a estatura era a mesma do José... E as feições, a côr,
+tudo!... Era elle, por força!... Só se Deus Nosso Senhor não fosse de
+bondade e misericordia, deixaria que o pobre rapaz...</p>
+
+<p>Examinou melhor o infeliz, que já ia recuperando os sentidos.</p>
+
+<p>—Ah! Se elle abrisse os olhos!...</p>
+
+<p>Faltavam poucos instantes.</p>
+
+<p>Mas quasi teve medo de que a certeza viesse já tão proxima.</p>
+
+<p>—Quem sabia lá se?...</p>
+
+<p>N’esta occasião o naufrago disse umas palavras, que elle não entendeu.</p>
+
+<p>—É americano, notou alguem, ouvindo a phrase dita em inglez, mas com a
+pronuncia nasal caracteristica dos cidadãos dos Estados-Unidos.</p>
+
+<p>O Manoel João ficou perplexo.</p>
+
+<p>Sim, o seu José tambem devia saber falar americano... Mas em tal
+occasião falaria outra lingua, que não fosse aquella em que a mãe o
+tinha ensinado a rezar? Só se não estava bom da cabeça!</p>
+<p><span class="pagenum" id="Page_85">[Pg 85]</span></p>
+
+<p>N’isto abriu os olhos o naufrago.</p>
+
+<p>—Não era o José!</p>
+
+<p>O velho sahiu d’ali para fóra cambaleando, e parou no sitio onde devia
+ter estado sempre, onde podia salvar o filho. Outros certamente o
+haviam salvo, em logar d’elle.</p>
+
+<p>—Não! Ninguem mais tinha escapado.</p>
+
+<p>A barca, durante aquelle tempo, acabara de esmigalhar-se. No
+principio tinha abalos convulsivos, erguia-se para tornar a cahir
+desamparadamente, luctava, estrebuchava, como se o instincto de
+conservação lhe déra forças contra o gigante. E o mar tambem parecia
+exasperado por aquella resistencia. Sacudia a pobre <i>Alegria do
+Mar</i> com os impetuosos estremeções da féra, que abócca a presa e a
+abana e estracinha, para reduzil-a por uma vez á immobilidade da morte.</p>
+
+<p>Ao cabo a tempestade foi amainando, e na praia ficavam dois ilhotes
+cravados na areia, a curta distancia um do outro—a proa e a pôpa do
+navio, com o tombadilho empinado, quasi a prumo. No da proa ainda
+existia um pedaço da borda, a que tinham estado aferrados os ultimos
+naufragos, e d’onde os levara a um e um o pavoroso remoinhar das vagas.</p>
+
+<p>Aquelles dois fragmentos informes eram quanto restava da <i>Alegria
+do Mar</i>, que poucas horas mais cedo, as vélas cheias de vento,
+cortava ligeira as aguas do Atlantico; os tres naufragos, os unicos
+sobreviventes dos quarenta que alli vinham, todos valentes campeões da
+<span class="pagenum" id="Page_86">[Pg 86]</span>
+lucta pela vida, alguns a procurarem, com a vista no horisonte, a terra
+da patria e antegosando as sonhadas alegrias do regresso.</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>O Manuel João, perdida a ultima esperança, voltou para os Cedros no
+outro dia á tarde, mais arrastando-se do que andando por aquella
+estrada, que lhe pareceu dez vezes mais comprida.</p>
+
+<p>Logo que a Andreza o avistou, saiu-lhe ao encontro. Já sabia do
+naufragio, mas cuidava que o filho tivesse escapado.</p>
+
+<p>Dissera-lh’o por dó um visinho, que acabava de voltar da cidade.</p>
+
+<p>—Onde está o nosso filho, Manoel João? Onde está o nosso filho?</p>
+
+<p>—Ai, mulher, a gente já não tem filho! redarguiu o marido, cahindo
+sentado no poial da porta.</p>
+
+<p>—Tu estás doido, homem! gritou a Andreza, aos soluços.</p>
+
+<p>—Quem o deu tambem o podia tirar, obtemperou elle, apontando para o
+ceo.</p>
+
+<p>—Dizes isso porque não és mãe! bradou a velha, e fez um gesto de
+ameaça para o ente sobrehumano, que o marido acabava de invocar.</p>
+
+<p>—Então, mulher não mettas a alma no inferno! aconselhou o Manoel João,
+levantando-se e cingindo-a com os braços. Depois lembrou-se de coisa
+<span class="pagenum" id="Page_87">[Pg 87]</span>
+muito importante, relanceou a vista em redor, para certificar-se de que
+ninguem mais ficaria sabendo aquella nova desgraça, e disse a meia voz:</p>
+
+<p>—Sabes? Como não se encontrou o corpo do nosso José, lá se foi tambem
+o collete das aguias!</p>
+
+<p>—O collete das aguias! Seja tudo pelo amor de Deus!</p>
+
+<p>E choraram outra vez, com mais força ainda.</p>
+
+<figure class="figcenter" id="i009" style="width: 200px;">
+<img src="images/i009.jpg" width="200" height="61" alt="decorative">
+</figure>
+
+
+<hr class="chap x-ebookmaker-drop">
+
+<div class="chapter">
+
+<figure class="figleft" id="i010" style="width: 400px;">
+<img src="images/i010.jpg" width="400" height="405" alt="No topo da imagem aparece a imagem sinuosa de uma lampreia. Abaixo, uma jovem está retratada segurando um gato em seus braços, envolta com plantas e uma flor grande visíveis ao lado esquerdo.">
+</figure>
+</div>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_89">[Pg 89]</span></p>
+<h2 class="nobreak" id="A_Lampreia">A Lampreia</h2>
+
+
+<p>O jardim, que cingia a casa de Lili, era dividido em grandes
+quadrilateros, por alamedas de camelias arborescentes. Na primavera,
+as plantas dos canteiros cobriam-se d’um luxuoso manto diversamente
+matisado, e nas comas das roseiras do Japão os canarios e toutinegras
+davam, desde a madrugada até ao entardecer, concertos infernaes.</p>
+
+<p>Foi n’uma das alamedas que vi a pequenina pela primeira vez. Sentada
+n’um banco, parecia indifferente aos esplendores que a cercavam, e
+só tratava de segurar de encontro ao peito um grande gato branco,
+enlançando-o com os braços por baixo das pernas deanteiras. O animal
+supportava pachorrentamente aquella posição, incommoda na apparencia,
+e tinha o resto do corpo no collo da creança, com o grande ventre,
+forrado de pello macio, pendente n’uma dobra flacida, e os olhos
+<span class="pagenum" id="Page_90">[Pg 90]</span>
+piscos, ante o brilho intenso de um raio de sol, que, perfurando a
+folhagem, vinha pôr uma nodoa clara no peito de Lili.</p>
+
+<p>Esta, quando o pae, o meu amigo Fernando lhe disse quem eu era, apenas
+me concedeu um breve olhar obliquo, e estendeu com pouca vontade a face
+ao beijo que lhe dei. De improviso o gato, ou porque sentisse mais
+forte o abraço, ou porque se assustasse com a presença de um estranho,
+escapou-se-lhe das mãos por um movimento rapido, e, depois de longo
+espreguiçamento, foi enroscar-se voluptuosamente sobre um monte de
+folhas seccas, em que o sol batia de chapa.</p>
+
+<p>A pequenina rompeu n’um grande choro, e mostrou ao pae um dedinho
+rosado, onde começavam a gotejar alguns rubis de sangue.</p>
+
+<p>—Um ache, papá; o Moleque fez-me um ache!</p>
+
+<p>Fernando ia applicar ao gato um severo correctivo com uma varinha
+que tinha na mão, porém Lili, adivinhando-lhe as intenções, chupou
+rapidamente o sangue, e disse muito alegre:</p>
+
+<p>—Olhe, papá, não foi nada. Já passou!</p>
+
+<p>Assim é que ella gostava do gato branco.</p>
+
+<p>N’um domingo, Fernando convidou-me para jantar. Festejava-se a chegada,
+a S. Miguel, de um nosso amigo commum. Andavamos os tres a passeiar
+<span class="pagenum" id="Page_91">[Pg 91]</span>
+pelo jardim e praticando uma soffrivel devastação nas camelias, eis que
+ao passarmos em frente da sala de jantar, situada no rez do chão, fomos
+detidos pelo dono da casa, que nos fez signal para que olhassemos lá
+para dentro, atravez da porta de vidraça.</p>
+
+<p>Ainda pude ver a Lili, descendo sorrateiramente de uma cadeira
+encostada ao aparador. Talvez nos presentisse.</p>
+
+<p>—Tem dois defeitos aquella pequena, disse-nos o pae. É gulosa e ...
+nem sempre fala verdade.</p>
+
+<p>Continuámos no passeio, tomando eu a defesa da accusada, com o calor
+que as causas más inspiram quasi sempre aos advogados.</p>
+
+<p>D’alli a pouco a campainha tocava para o jantar.</p>
+
+<p>Fiquei defronte da Lili. Reparei-lhe na physionomia e notei uma certa
+inquietação: os olhos seguiam, a curtos intervallos, a direcção do
+aparador, onde luzia a baixella de prata.</p>
+
+<p>—O que tanto lhe attrae a attenção, pensava eu, o que a fascina, são
+de certo as gulodices, que resguardadas sob aquelles guardanapos de
+linho finissimo, encherão os pratos collocados sobre a pedra do movel.</p>
+
+<p>Chega-se ao <i>dessert</i>.</p>
+
+<p>—Sabem que vou ter o gosto de apresentar-lhes um antigo conhecimento?
+disse o Fernando.</p>
+
+<p>—Nosso? perguntei.</p>
+
+<p>—Sim, meu Luiz. Já estás nos Açores ha dois annos; ha dois annos,
+portanto, que não vês um dos maiores attractivos da capital, isto é,
+das montras dos confeiteiros lisboetas—uma lampreia de ovos! Fel-a
+<span class="pagenum" id="Page_92">[Pg 92]</span>
+a minha cosinheira, que é alfacinha. Francisco, descobre esse prato e
+traze-o para a mesa.</p>
+
+<p>O criado fez o que lhe mandaram, e ainda mais, pois que, ao ver o
+prato, abriu muito os olhos e a bocca. Não era preciso ter lido a
+<i>Expressão das emoções</i> de Darwin, para se conhecer que o homem
+estava no auge do espanto.</p>
+
+<p>E não era para menos.</p>
+
+<p>A lampreia lá se achava, muito enroscada, mas faltava-lhe, vimol-o
+todos, faltava-lhe a cabeça! Quem lh’a decepára, tinha deixado
+vestigios do attentado á borda do prato, n’uns fios de ovos e tiras
+de geleia de fructa, que tomavam, ante a gravidade da situação, a
+apparencia de um rasto de sangue. Horrivel permenor: um dos olhos da
+victima—uma ginja em doce—jazia a um lado, viuvo da orbita!</p>
+
+<p>Lili empallideceu, e deixou cahir da mão a colher que empunhava,
+prompta para a lucta da sobremeza, mas ia pegar-lhe outra vez, quando o
+pae, deveras zangado, lhe perguntou quem tinha feito aquillo á lampreia.</p>
+
+<p>—Eu não sei, papae.</p>
+
+<p>—Sabes, sim, foste tu mesma!</p>
+
+<p>Lili voltou os olhos para a mãe, e não achou piedade.</p>
+
+<p>—A menina não foi, não senhor, murmurou quasi choramigando. Olhe,
+papae, quando eu vim ás tres horas á casa de jantar, andava em cima do
+aparador o gato... o Moleque... Foi elle!</p>
+
+<p>O pae reprimiu um sorriso.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_93">[Pg 93]</span></p>
+
+<p>—Ah! Foi o Moleque? Pois o Moleque pagará as custas, quando nos
+levantarmos da mesa.</p>
+
+<p>A Lili nem sequer provou dos doces e pudins.</p>
+
+<p>Como não estaria aquelle pequenino coração!</p>
+
+<p>Depois do café, servido na sala contigua, Fernando mandou ao creado que
+fosse buscar o Moleque, e disse-lhe por fim algumas palavras em voz
+baixa.</p>
+
+<p>Decididamente a situação tomava uma gravidade excepcional. Lili
+chegou-se á mãe com receio, e ficou a olhar para todos, cheia de
+desconfiança.</p>
+
+<p>—Meus senhores, disse-nos o dono da casa, fitando muito a filha. Vamos
+ser juizes n’um processo importante. Luiza accusa o Moleque de um
+roubo, que é ao mesmo tempo um abuso de confiança... Ah...! Ahi chega o
+criminoso.</p>
+
+<p>O gato acabava effectivamente de apparecer ao collo do creado. Se a
+Lili se mostrava desconfiada, o Moleque apparentava a maior placidez.
+Após o creado, vinha a cosinheira, uma rapariga alta, robusta e mal
+encarada; trazia a mão direita escondida atraz das costas.</p>
+
+<p>—Temos, portanto, continuou Fernando, que o Moleque não só praticou um
+roubo com abuso de confiança, mas, o que é peior, decepou a cabeça da
+lampreia. Vamos julgal-o. Queiram sentar-se.</p>
+
+<p>Emquanto iamos tomando logares, disse-nos elle algumas palavras em
+francez. Puzemo-nos ainda mais carrancudos.</p>
+
+<p>A creança via tudo isto com olhares attonitos.</p>
+
+<p>—Dize-me outra vez, ordenou-lhe o pae, que não foste tu que roubaste
+<span class="pagenum" id="Page_94">[Pg 94]</span>
+a lampreia! Não?... Então foi o Moleque?</p>
+
+<p>—Foi ... balbuciou a pequenina.</p>
+
+<p>—A cara é de reu, continuou Fernando, apontando para o gato, que
+Francisco segurava pelas quatro patas. Os dignos jurados entendem que o
+Moleque deve soffrer a pena de talião?</p>
+
+<p>—Sim, respondemos com voz soturna.</p>
+
+<p>—Condemno, pois, o Moleque a perder a vida por degolação, sentenceou
+Fernando.</p>
+
+<p>—O quê, papae? perguntou a Lili afflicta e sem perceber bem.</p>
+
+<p>—Ó Maria, traz o que o Francisco lhe recommendou?</p>
+
+<p>—Está aqui, disse a cosinheira, passando para a frente a mão direita e
+apresentando uma grande faca de cosinha, afiada e luzidia.</p>
+
+<p>—Pois então, corte o pescoço ao gato!</p>
+
+<p>Ainda não esqueci o grito da creança. N’um choro fortissimo correu para
+o creado, e arrancou-lhe das mãos o gato, que fugiu espavorido. Depois,
+approximando-se do pae, disse-lhe:</p>
+
+<p>—Fui eu, papae, fui eu que comi a lampreia. Mande cortar a cabeça da
+menina!</p>
+
+<p>Nós, que já estavamos a rir, sentimos os olhos marejados de lagrimas.»</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>Isto foi ha tres annos.</p>
+
+<p>Lili, que está hoje uma senhorinha, chegou com os paes, no mez passado,
+a Lisboa.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_95">[Pg 95]</span></p>
+
+<p>O amigo de Fernando, que me contou a historia, foi logo visital-os.</p>
+
+<p>Fernando, ao apresentar a filha, perguntou-lhe sorrindo:</p>
+
+<p>—Lembras-te do caso da lampreia? Desde então, a Lili só mentiu uma
+vez ... para salvar o Moleque de um castigo merecido.</p>
+
+<figure class="figcenter" id="i011" style="width: 200px;">
+ <img src="images/i011.jpg" width="200" height="64" alt="decorative">
+</figure>
+
+
+<hr class="chap x-ebookmaker-drop">
+
+<div class="chapter">
+
+<figure class="figleft" id="i012" style="width: 400px;">
+<img src="images/i012.jpg" width="400" height="378" alt="Um homem de chapéu e paletó caminha com as mãos no bolso, olhando para baixo. Atrás dele, há três mulheres vestindo roupas longas, duas delas conversando e uma terceira parada à porta.">
+</figure>
+</div>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_97">[Pg 97]</span></p>
+<h2 class="nobreak" id="Mau_Homem">Mau Homem</h2>
+
+
+<p>Quando o Casimiro passava nas ruas, bamboleando-se nas pernas compridas
+e em fórma de parenthesis, as mulheres da villa lançavam-lhe das
+portas olhadelas de soslaio, e mais de uma, tendo cuspido para o lado,
+resmungava phrases indignadas.</p>
+
+<p>E apenas elle se afastava o bastante para não poder ouvil-as, as
+senhoras visinhas, tomando o para seu thema, davam largas á loquacidade.</p>
+
+<p>—Então! Já se viu um marau egual?</p>
+
+<p>—Tal desgraça! Parece mesmo que tem coisa ruim comsigo. Mau homem, por
+força!</p>
+
+<p>Era até impossivel que não tivesse alguma morte ás costas. Quem sabia
+lá?... Talvez tivesse. A Rosa Moniz chegou uma vez a lembrar que
+podia muito bem ser elle, e não o Antonio Garcia, quem tinha morto
+<span class="pagenum" id="Page_98">[Pg 98]</span>
+o velho, que appareceu com a cabeça partida ao pé do forte de Santa
+Catharina. Ninguem vira o Antonio fazer mal ao velho, e lá por se
+lhe encontrar em casa uma camisa suja de sangue, não se devia jurar
+que fosse elle o criminoso. Coitado! Se estaria a pagar as culpas de
+outro?... Chamassem o Casimiro á justiça e veriam quantas testemunhas
+appareceriam a accusal-o. Mas apezar d’isto—ou talvez por isto mesmo,
+diziam alguns—a fortuna favorecia-o constantemente. É que nunca se
+tinha visto ninguem mais feliz em negocio. Não obstante a má fama do
+dono, não era só a casa de comida posta pelo Casimiro ao pé da praça,
+que estava sempre cheia de freguezes; acontecia o mesmo á lojinha de
+fazendas, da ilharga. Admirava que houvesse na villa tanto dinheiro
+para se gastar. Verdade é que gente de fóra, de Agualva e da villa de
+S. Sebastião, antes queria alli comprar, do que ir á cidade, ás lojas,
+da rua da Sé, porque o Casimiro vendia tão barato como o Evangelista ou
+o Bento Fartura. E tinha então um geito para aviar os freguezes! Quem
+lhe entrasse na loja, sempre havia de comprar alguma coisa, o ponto era
+ter dinheiro na algibeira. Ninguem melhor do que elle sabia entender-se
+com qualquer comprador. Ora, por uma coincidencia que excitava pasmo
+geral, aquella prosperidade tinha começado exactamente desde que a
+Luiza viera de S. Miguel juntar-se com o marido e levar aquella vida de
+negra.</p>
+
+<p>—Vejam lá o que é a justiça de Deus, em que fala tanto a padralhada!
+commentava um dia o escrivão Salles, socialista e livre pensador.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_99">[Pg 99]</span></p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>A opinião das mulheres, valha a verdade, não encontrava echo na maioria
+dos homens. Só um tinha tal raiva ao Casimiro, que se o visse a
+afogar-se e lhe bastasse extender a mão para o salvar, ficaria quedo.
+Podera! Se depois de o Casimiro pôr a loja, o José Antonio já não
+vendia quasi nada, apezar de ter baixado os preços de tudo! Uma noite,
+por volta das dez horas, passando elle pela porta do seu inimigo, ouviu
+a Luiza a chorar. Pôz-se á escuta. A mulher começou a accusar o marido
+de não se importar com ella, de estar com a Margarida, tanto que muitas
+vezes depois de fecharem o estabelecimento, elle saía de casa e só
+voltava tarde, á noite, a horas mortas.</p>
+
+<p>O Casimiro não respondia nada.</p>
+
+<p>O José Antonio espreitou por uma fisga da porta e viu-o a arrumar as
+fazendas n’uma prateleira.</p>
+
+<p>A Luiza continuou:</p>
+
+<p>—Ah! Tu não respondes! É que não tens que responder! Pois eu um dia
+pego em mim, e vou a casa d’aquella ganhoa...</p>
+
+<p>O Casimiro atirou ao chão com força uma peça de chita, que tinha na
+mão, e voltando-se para a mulher, gritou-lhe:</p>
+
+<p>—Isso é que é falar! Olha que eu!...</p>
+
+<p>—Tu o quê! Não me mettes medo com essa cara de calhau. Talvez queiras
+mandar nas minhas falas?</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_100">[Pg 100]</span></p>
+
+<p>A ranger os dentes, deu dois passos para a mulher.</p>
+
+<p>—Tu estás suffocando commigo, mas eu...</p>
+
+<p>—Embatucaste outra vez, porque és um albardeiro, um corsario!</p>
+
+<p>—Ah! Mulher, não me botes a longe, que eu perco-me por via de ti.</p>
+
+<p>—Não me deites esses olhos, que eu não me faço amarella. Amarella ha
+de ficar a Margarida, quando eu...</p>
+
+<p>O Casimiro não se conteve mais tempo e agarrou a mulher por um braço.</p>
+
+<p>—Anda, anda lá! Olha que eu pego a gritar aqui d’el-rei! ameaçou ella.</p>
+
+<p>Ainda não tinha acabado estas palavras, quando a mão do marido,
+batendo-lhe no alto das costas, a atirou de bruços, para o chão.</p>
+
+<p>—Aqui d’el-rei! Aqui d’el-rei! Quem m’acode!</p>
+
+<p>O José Antonio não quiz ouvir mais nada e foi de corrida buscar o
+administrador do concelho, que estava alli perto, na Assembléa, a jogar
+a sua costumada partida de voltarete.</p>
+
+<p>Apenas conheceu a voz da auctoridade, o Casimiro abriu a porta e deu-se
+á prisão sem resistir.</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>No dia seguinte, ás dez horas, foi a perguntas, á casa da audiencia.</p>
+
+<p>O juiz, velho de cabello completamente branco e falar pausado, depois
+<span class="pagenum" id="Page_101">[Pg 101]</span>
+de ouvil-o, censurou-lhe, com azedume mas sem desabrimento, a baixeza
+por elle praticada, em abusar da força para bater n’uma mulher, que se
+lhe entregara esperando generosidade e protecção, e não violencia e
+tyrannia.</p>
+
+<p>O preso escutou silenciosamente as palavras do juiz. A principio
+conservou as sobrancelhas cerradas, e o olhar fixo n’um ponto do
+sobrado, como se nenhuma attenção prestasse ao que lhe estavam dizendo.
+Afinal, porém, as feições distenderam-se-lhe, um tremor convulsivo
+começou de agital-o, e ao mesmo tempo que do peito lhe irrompiam os
+soluços, foram-lhe as lagrimas rolando pela cara.</p>
+
+<p>—Bem! Bem! disse o juiz. Não se afflija. Pelo que vejo está
+arrependido do que fez...</p>
+
+<p>Interrompendo-o com um gesto, e suffocando dentro em si o ultimo
+soluço, o Casimiro começou a falar, com voz pouco perceptivel emquanto
+o não arrastou o calor da narração. Se o juiz o tratasse mal, não lhe
+diria nada, ou seria até capaz de uma violencia. Todavia a maneira
+por que o magistrado se lhe dirigira, os conselhos que lhe dera mais
+pezaroso que severo, tudo o fôra vencendo gradualmente. Pareceu-lhe que
+se o tio João Furtado—o pae do Casimiro, em vez de estar enterrado no
+cemiterio de Villa Franca ha muitos annos, lhe apparecesse n’aquella
+occasião, usaria das mesmas falas, mas não tão bem feitas como as do
+sr. juiz. Para este não queria portanto o marido da Luiza parecer um
+mau homem.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_102">[Pg 102]</span></p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>Contou-lhe a sua vida toda, e o juiz quando elle acabou de falar,
+apertou-lhe a mão commovido, e mandou-o embora, recommendando-lhe
+prudencia.</p>
+
+<p>As mulheres da villa quando souberam que o Casimiro estava solto e que
+não passaria trabalhos, vociferaram que tão bom era o juiz como elle.
+Talvez dissessem isto, porque não ouviram o Casimiro.</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>Contou ao magistrado a sua vida: como tinha casado com a Luiza, que
+n’esse tempo era a bem dizer uma pequenota, mas que, talvez sem saber,
+o puzera como doido. Nem obra de feitiçaria! Estava ainda a vêl-a, no
+dia em que o tio João a foi pedir em companhia do filho, responder
+muito envergonhada e como se tivesse medo:</p>
+
+<p>—Pois elle vae, senhor! Se a minha mãe leva isto em gosto, eu tambem
+levo. Não digo menos de isso.</p>
+
+<p>Os primeiros tempos de casados, viveram-os como se não fossem d’este
+mundo. A bem dizer, aquillo era até felicidade de mais. Elle trabalhava
+sem descanço o dia inteiro, fazia o seu negocio e á tarde, quando
+chegava a casa, lá o estava esperando a Luiza com a ceia prompta, e
+extendia ao marido os braços com tanto carinho!</p>
+
+<p>A desgraça foi elle ter de ir ás Furnas por causa de um negocio, que
+por signal não lhe rendeu nada.</p>
+
+<p>Como é que a Luiza se perdeu? Como se deixou ir pelas falas do menino
+<span class="pagenum" id="Page_103">[Pg 103]</span>
+Diogo, filho d’aquelle sujeito que tem uma quinta muito bonita, mesmo á
+entrada da villa de Lagoa, á mão direita de quem vae do lado da cidade?</p>
+
+<p>O marido só muito depois veiu a saber tudo.</p>
+
+<p>Uma visinha, a Maria do Jacintho, é que a tinha desinquietado, e uma
+noite em que a Luiza foi ceiar com ella, deram-lhe uma gota de vinho a
+mais...</p>
+
+<p>—Ah! Que se eu tivesse sabido, matava logo aquella corsaria. Se queria
+perder alguem, perdesse as filhas... Mas lá essas não precisaram de que
+a mãe as ajudasse!</p>
+
+<p>E o Casimiro, depois d’esta phrase, começou a falar outra vez
+vagarosamente, quasi a custo.</p>
+
+<p>Nem sabia dizer ao certo como chegou a descobrir tudo.</p>
+
+<p>Ah! Tinham-lh’o dito. Quando entrou em casa, perguntou-o de repente á
+mulher. A Luiza, colhida improvisamente, poz-se a gaguejar, mais branca
+do que a cal da parede.</p>
+
+<p>O marido deitou-lhe as mãos ao pescoço e matava-a, matava-a com
+certeza, se as visinhas, que acudiram á bulha, não lh’a arrancassem das
+mãos.</p>
+
+<p>A pobrinha parecia morta. Chegou-se a pensar que elle a tinha afogado.
+Depois foi voltando a si, olhou para todos com os olhos muito abertos e
+começou a rir, a rir de tal modo, que uma das visinhas fugiu espavorida
+pela porta fóra e as mais sentiram arrepios de frio por todo o corpo.</p>
+
+<p>A Luiza não estava boa de cabeça e poz-se a dizer que tinha morrido,
+que o seu anjo da guarda a levava pelo ceo dentro, mas que os outros
+anjos fugiam d’ella e não queriam vel-a sequer, porque ... porque... E
+<span class="pagenum" id="Page_104">[Pg 104]</span>
+desatava a rir e a chorar ao mesmo tempo, rasgando-se, atirando-se ao
+chão, quando a não seguravam com força, com muita força.</p>
+
+<p>Esteve assim tres dias. O Casimiro não comeu nem dormiu durante
+esse tempo. Ao quarto dia mandou-a para o hospital. Na vespera, de
+madrugada, quando a Luiza socegava, elle esteve, vae não vae, a
+matal-a, sem força para resistir á tentação. Se a tivesse mais tempo ao
+pé de si, era capaz de fazer essa loucura.</p>
+
+<p>Desmanchou a casa e no primeiro vapor foi para a Terceira.</p>
+
+<p>Em Angra não fez nada. Quiz tentar fortuna na Villa da Praia e não se
+arrependeu da lembrança. O juiz bem sabia como elle tinha começado o
+seu negocio.</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>Quando um dia o Casimiro estava só na loja, entrou-lhe pela porta
+dentro uma mulher embrulhada n’uma capa e atirou-se-lhe aos pés,
+chorando muito e dizendo:</p>
+
+<p>—Perdoa-me, meu rico marido, perdoa-me!</p>
+
+<p>O primeiro impeto do Casimiro foi agarrar n’ella e atiral-a para a rua,
+como um animal ruim. Mas quando, ao crescer para a Luiza, a encarou,
+pareceu-lhe que estava a sonhar.</p>
+
+<p>Não era a mesma. Quer dizer, era a mesma, mas tão differente!... O
+cabello tinham-lh’o cortado no hospital, para lhe pôrem neve na cabeça.
+Os olhos sumiam-se no fundo d’umas covas negras como carvão. As faces,
+d’antes tão córadas, e o corpo tão cheio antigamente, estavam só com a
+<span class="pagenum" id="Page_105">[Pg 105]</span>
+pelle e o osso.</p>
+
+<p>Como aquella desgraçada não tinha padecido!</p>
+
+<p>Sem se levantar do chão, agarrada ás pernas do Casimiro, dizia-lhe no
+meio de gritos entrecortados:</p>
+
+<p>—Meu rico marido, não me deites d’aqui para fóra. Por alma de teu pae!</p>
+
+<p>Elle fitou-a muito tempo, poz-lhe a mão sobre a cabeça e disse-lhe:</p>
+
+<p>—A benção de Deus te cubra. Bem! Fica p’ra ahi.</p>
+
+<p>No começo a Luiza servia o marido como uma escrava. Nem a Mimosa, a
+perdigueira, era mais humilde. Mas ao fim de tempo, quiz recuperar o
+seu antigo logar, e desconfiada de que o Casimiro fazia pouco d’ella
+por ter alguma outra mulher, queixava-se, accusava-o.</p>
+
+<p>Muitas vezes elle não lhe dava resposta, mas outras desesperava-se, e
+como tinha genio, levantava a mão e...</p>
+
+<p>—Que quer V. S.<sup>a</sup>, sr. juiz? concluiu o desgraçado. Eu bem lh’o tenho
+dito, mas a Luiza ainda não me entendeu: o vidro que se partiu uma vez,
+por muita massa que lhe ponham, nunca mais torna a ser o que era.</p>
+
+<figure class="figcenter" id="i013" style="width: 200px;">
+ <img src="images/i013.jpg" width="200" height="79" alt="decorative">
+</figure>
+
+
+<hr class="chap x-ebookmaker-drop">
+
+<div class="chapter">
+<figure class="figcenter" id="i014" style="width: 200px;">
+<img src="images/i014.jpg" width="200" height="41" alt="decorative">
+</figure>
+</div>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_107">[Pg 107]</span></p>
+<h2 class="nobreak" id="A_Licenca_Do_Domingo">A Licença Do Domingo</h2>
+
+
+<img alt="H" class="drop-cap" height="418" src="images/drop-h.jpg" width="200">
+<p class="nind"><span class="upper-case">HAVIA</span>
+já tres quartos de hora que se distribuira o rancho da tarde, no
+quartel de S. João em Ponta Delgada.</p>
+
+<p>Os piquetes, que tinham ído levar a comida ás guardas exteriores,
+vinham já de volta e encontravam-se de vez em quando com os soldados
+que desciam a rua, aos grupos de dois e tres, alguns de mãos dadas
+pelos dedos minimos, lançando para as raparigas, que estavam pelas
+portas e janellas, uns olhares provocadores. Se estes galanteios
+destoavam grandemente da apparencia pouco seductora dos D. Juans de
+fardeta, nem sempre se perdiam.</p>
+
+<p>Dentro do quartel, nas casernas pequenas e abafadiças, tinham ficado
+apenas as praças de serviço.</p>
+
+<p>Na da segunda companhia, em redor de uma cama onde está sentado o cabo
+José, ha ainda assim grande ajuntamento, e estrugem a espaços enormes
+<span class="pagenum" id="Page_108">[Pg 108]</span>
+gargalhadas, que interrompem momentaneamente a cantiga, origem da
+hilaridade, e chegam até a cobrir os sons da viola que o cabo, um heroe
+dos <i>charambas</i>, dedilha com uma pericia incomparavel.</p>
+
+<p>Mas que terá o Roque, o 72, que, sem attender aos descantes, anda a
+passeiar de um para outro lado, muito pensativo?</p>
+
+<p>É por força cousa séria.</p>
+
+<p>Oh! Mas o rapaz tomou certamente uma resolução, porque abriu a
+caixa da roupa, tirou para fóra a fardeta, e vestiu-a, abotoando-se
+cuidadosamente. Depois ageitou o bonnet na cabeça e caminhou para a
+porta.</p>
+
+<p>—Vaes passeiar, ó Roque? perguntou-lhe o plantão?</p>
+
+<p>—Tu sabes se o <i>nosso primeiro</i> está no seu quarto?</p>
+
+<p>—Saiu ha migalhinha. Foi com o nosso sargento José Luiz passeiar á
+doca.</p>
+
+<p>O 72 ficou de má catadura, e pareceu hesitar, mas, resolvendo-se, saiu
+da caserna.</p>
+
+<p>—Eh! <i>Home</i>, levas uma <i>cara de calhau</i>, disse-lhe ainda o
+plantão.</p>
+
+<p>No corredor que rodeia o claustro do antigo convento, o 72 encontrou o
+impedido do capitão da segunda companhia.</p>
+
+<p>—Ó Francisco, o teu patrão onde está?</p>
+
+<p>—Alli.—E mostrou com o gesto o quarto da extremidade do
+corredor.—Acabou ha um instantinho de jantar... Vão aqui dentro os
+pratos vazios, disse o rapaz, enfiando o braço na aza de uma cesta que
+<span class="pagenum" id="Page_109">[Pg 109]</span>
+trazia na mão.—Haja saude, ó Roque!</p>
+
+<p>O outro foi caminhando para o logar que o impedido lhe indicara, mas
+insensivelmente diminuiu o passo, e poz-se a coçar a cabeça, n’uma
+grande irresolução.</p>
+
+<p>A porta do quarto estava fechada. O 72 pegou com medo na aldrava e
+deixou-a cair.</p>
+
+<p>Passaram-se alguns segundos.</p>
+
+<p>—Talvez já cá não esteja, ia o soldado dizer comsigo mesmo, visto não
+obter resposta, quando ouviu tossir da parte de dentro.</p>
+
+<p>Pegou outra vez na aldrava e bateu muito de leve.</p>
+
+<p>—Que temos? perguntou uma voz encatarroada.</p>
+
+<p>—V. S.<sup>a</sup> dá licença, meu capitão?</p>
+
+<p>—Entre quem é.</p>
+
+<p>—Sou eu, meu capitão ... disse o 72, entrando e tirando o
+<i>bonnet</i> com um movimento rapido e desgeitoso, mal viu o official
+de cabeça descoberta.</p>
+
+<p>No quarto de inspecção, pequeno e acanhado, havia um forte cheiro a
+comida e a fumo de tabaco.</p>
+
+<p>O capitão, sentado n’uma cadeira de palhinha, tosca e despolida, tinha
+os cotovellos encostados á mesa e lia um jornal de Ponta Delgada,
+o <i>Echo Michaelense</i>, tomando a espaços longas fumaças de um
+cachimbo de escuma, muito queimado.</p>
+
+<p>Com os calcanhares unidos, os olhos um pouco esgazeados, os beiços n’um
+ligeiro tremor, o soldado não se atrevia a falar.</p>
+
+<p>—Que demonio queres tu? perguntou-lhe o capitão Saraiva, ao cabo de
+<span class="pagenum" id="Page_110">[Pg 110]</span>
+algum tempo e sem interromper a leitura.</p>
+
+<p>—Eu, meu capitão? Saiba V. S.<sup>a</sup> que me custa muito vir incommodar a V.
+S.<sup>a</sup>...</p>
+
+<p>—Mau! Despacha-te! Nunca vocês sabem dizer as cousas por claro. Que
+diabo de gente, estes ilheus! E batendo com a mão sobre o jornal,
+voltou a cabeça para o soldado, medindo-o com o olhar.</p>
+
+<p>—Elle é verdade meu capitão, mas é que ás vezes <i>assuccede</i> a um
+<i>home</i> cada uma...</p>
+
+<p>—Ou te explicas, ou marchas n’um prompto para a caserna! disse o
+capitão, com voz irritada. Levantou-se, poz o bonnet na cabeça, puxou o
+collete para a cintura, mettendo para baixo do cóz das calças a dobra
+da camisa que estava saliente, e abotoou o raglan, inferiormente ao
+qual appareciam as borlas da banda, distinctivo usado no batalhão pelos
+officiaes de serviço.</p>
+
+<p>—Saiba V. S.<sup>a</sup>, meu capitão—começou o 72, dando com as mãos muitas
+voltas ao bonnet,—que esta tarde, antes do rancho, eu tinha ido alli
+abaixo, ao largo da Matriz...</p>
+
+<p>—Que tenho eu com isso?</p>
+
+<p>—E vae d’ahi, topei com a Rosa, uma rapariga da minha freguezia, e ...
+o que me ha de ella dizer? Que hontem á noitinha, quando meu pae ia
+recolhendo ás Féteiras...</p>
+
+<p>—Tu és das Féteiras? Aquelle logar que fica no caminho para as Sete
+Cidades?</p>
+
+<p>—Saiba V. S.<sup>a</sup> que sim... Ao descer uma canadinha, escorregou dos
+pés e foi-se abaixo, batendo com o corpo nos calhaus. O pobre do
+<i>hóme</i> é velho e d’ahi a quéda deu-lhe uma volta ao interior.
+<span class="pagenum" id="Page_111">[Pg 111]</span>
+Parece que está mesmo a decidir.</p>
+
+<p>Estas ultimas palavras foram acompanhadas por um choro meio suffocado.</p>
+
+<p>—Bem! E que queres tu então? perguntou o official, com menos rispidez.</p>
+
+<p>—Se V. S.<sup>a</sup> me desse licença, eu pegava em mim e ia vêl-o.</p>
+
+<p>—Ás Féteiras? Tira o cavallo da chuva! Porque não pediste a licença
+antes do toque da ordem? Não sabes que o batalhão tem pouca força, e
+que é preciso fazer escolha nas praças que pedem para ir no domingo á
+terra?</p>
+
+<p>—Saiba V. S.<sup>a</sup> que sei, mas áquella hora ainda não me <i>haveram</i>
+dito nada, e como faz hoje oito dias que eu tive licença...</p>
+
+<p>—Sabias que não a apanhávas.</p>
+
+<p>—Mas agora, se V. S.<sup>a</sup> me fizesse essa esmola... O pobre do velho
+está, vae não vae, a ir para Nosso Senhor, e eu sem lhe poder valer!...
+A voz do soldado, entrecortada novamente pelos soluços, pronunciou mais
+algumas palavras inintelligiveis.</p>
+
+<p>O capitão, meio zangado, meio condoido, passeiava pelo quarto, com o
+cachimbo a um canto da bocca, e as mãos mettidas nos amplos bolsos das
+calças de cutim. O 72, cabisbaixo, seguia-lhe os movimentos com um
+olhar obliquo e prescrutador.</p>
+
+<p>—Dar-se-ha o caso de que tu estejas a embaçar-me, grande maroto?
+perguntou de subito o official, fitando muito o soldado.</p>
+
+<p>—Eu! disse este, cheio de susto. Se minto, mais negro seja que o
+carvão!</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_112">[Pg 112]</span></p>
+
+<p>—Eu sei lá! Vocês todos são frescos. Quem me déra para cá os meus
+trinta e cinco annos de serviço, para me livrar da maldita massada de
+atural-os! Mentiste ou não mentiste?</p>
+
+<p>—Isto é que se chama! Pergunte o meu capitão á Rosa.</p>
+
+<p>—Teu pae, então, está a morrer?</p>
+
+<p>—A modos que sim, senhor. A dôr de dentro não o larga. Se não foi isto
+o que a Rosa me disse, abram-me a cabeça com um calhau!</p>
+
+<p>O soldado continuava a praguejar, em quanto o capitão, sem interromper
+o passeio, se recordava do que lhe tinha acontecido, havia já um bom
+par de annos, estando elle no Porto, em sargento do 18. Chegou-lhe de
+Braga uma carta, participando-lhe que a mãe se achava em perigo de
+vida. Pediu licença immediatamente, mas como a ordem tardasse em vir do
+quartel general, quando chegou a casa, já a sua <i>velhinha</i> estava
+enterrada.</p>
+
+<p>—Pode acontecer o mesmo a este pobre diabo, pensava o capitão. Por
+fim, decidindo-se, parou, tirou o cachimbo da bocca e disse com muita
+intimativa ao soldado:</p>
+
+<p>—Pois muito bem! Vocemecê vae hoje para a sua terra... É verdade! Não
+entras de serviço amanhã?</p>
+
+<p>—Entro de fachina, mas o 12, que é meu camarada e <i>está de nada</i>,
+fica por mim, se V. S.<sup>a</sup> der licença.</p>
+
+<p>—N’esse caso vae e volta ámanhã á noite, antes do toque.</p>
+
+<p>A cara do 72 alegrou-se, sem comtudo se desannuviar completamente.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_113">[Pg 113]</span></p>
+
+<p>—Se V. S.<sup>a</sup> me deixasse, eu voltava na segunda feira.</p>
+
+<p>—É isto! Querem logo tudo! Bom! Voltas depois de amanhã, antes do
+rancho. Serve-te?</p>
+
+<figure class="figcenter" id="i015" style="width: 700px;">
+ <img src="images/i015.jpg" width="700" height="821" alt="Dois homens estão conversando no interior de um edifício. O homem à esquerda, veste um uniforme militar e tem um chapéu na mão. O homem à direita usa um chapéu miliar e tem as mãos nos bolsos.">
+</figure>
+
+<p>—Seja pela sua saude, meu capitão! Nosso Senhor é que lhe ha de pagar
+uma coisa d’estas.</p>
+
+<p>—Vocês ainda me compromettem com o nosso commandante. Anda, põe-te ao
+fresco!</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_114">[Pg 114]</span></p>
+
+<p>O soldado rodou sobre os calcanhares, depois de fazer a continencia e
+dirigiu-se para a porta. Ia já a sair, quando o capitão o chamou.</p>
+
+<p>—Olha lá!</p>
+
+<p>—Prompto, meu capitão!</p>
+
+<p>—Tu... O official hesitou no que ia dizer, depois, lembrando-se de
+outra cousa: Pediste licença ao primeiro sargento para vir falar-me!</p>
+
+<p>—Saiba V. S.<sup>a</sup> que elle saiu a passeio.</p>
+
+<p>—Mau!... É verdade! Tu sabes se os ovos na tua terra estão baratos?</p>
+
+<p>—Tiram-se a seis por um pataco.</p>
+
+<p>—Pois traze-me umas tres duzias; cá na cidade só pesados a ouro...
+Depois te dou o dinheiro.</p>
+
+<p>—Não faz <i>moléste</i>, meu capitão.</p>
+
+<p>—Bom, vae-te embora e dize ao sargento que tens licença.</p>
+
+<p>—Sim, senhor, meu capitão.</p>
+
+<p>E saiu.</p>
+
+<p>O rosto brilhava-lhe de alegria. N’um abrir e fechar de olhos, foi
+á caserna, despiu a fardeta, vestiu um casaco á paizana, que já
+tinha antes de sentar praça e descalçou-se. D’ahi a pouco estava
+fóra do quartel, e descia apressadamente a rua de S. João, receioso
+de que ainda lhe tirassem a licença. Acompanhava-o a competente
+<i>vardasquinha</i>, isto é, um valente bordão capaz de matar um homem.
+Dez minutos mais tarde saía de Ponta Delgada, pelo lado occidental.</p>
+
+<p>Quando deixou de encontrar gente, e viu diante de si a estrada quasi
+deserta, bordejada por paredes caiadas de branco, algumas encimadas
+pelas comas do arvoredo, parou por instantes, e poz-se a rir
+<span class="pagenum" id="Page_115">[Pg 115]</span>
+maliciosamente:</p>
+
+<p>—Tinha embaçado o capitão!</p>
+
+<p>O pae estava tão doente, como elle. Pelo menos, ainda no ultimo domingo
+o tinha deixado na freguezia, são e escorreito.</p>
+
+<p>—Fiou-se no que eu lhe disse! pensou. Queira Deus não venha a
+descobrir! O que me vale é não haver lá na companhia mais rapazes das
+Féteiras.</p>
+
+<p>Foi andando.</p>
+
+<p>—Por fim de contas não era <i>coisa ruim</i> o que tinha feito. No dia
+seguinte festejava-se o Espirito Santo, na freguezia. Havia imperio e
+bôdo. Faltar, era até um peccado! Se falasse verdade, não lhe davam
+licença. Por ter dito que o pae adoecera, não o fazia ir para a cama. O
+velho estava ainda esperto e rijo. Podia caír á vontade, que não morria
+ás primeiras. Tinha hombros largos, pescoço curto, e a cara, embora um
+pouco enrugada, estava sempre vermelha, que se podia ver. Mettia no
+canto a muitos rapazes, o <i>ti Jaquim</i>.</p>
+
+<p>O Roque avançava que era uma maravilha!</p>
+
+<p>A estrada ia mudando de aspecto. Á direita extendiam-se largas campinas
+escuras, subindo gradualmente até acabarem nas collinas, que limitam o
+horisonte; á esquerda começa a ribanceira, cujo sopé vae terminar na
+costa meridional de S. Miguel em declives abruptos. De cá de cima, em
+alguns pontos, avistam-se grandes extensões da praia, que offerece ao
+mar uma larga concavidade, onde se desenrola um vasto lençol de espuma.</p>
+
+<p>Para o lado da cidade vinha um cantoneiro.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_116">[Pg 116]</span></p>
+
+<p>—Haja saude, tio João de <i>Mideiros</i>.</p>
+
+<p>—Haja saude, Roque. Vaes a casa?</p>
+
+<p>—Vou. Esteve lá em baixo hoje?</p>
+
+<p>—Não. Quem para lá voltou agora, foi o sr. dr. Luiz, que já vinha a
+caminho da cidade.</p>
+
+<p>—Voltou? Para quê?</p>
+
+<p>—Para acudir a um homem, que teve <i>uma coisa</i> esta tarde. Veiu um
+rapaz, o José, chamal-o de <i>galão</i> ... montado, por signal, n’um
+burro.</p>
+
+<p>—E a quem deu o mal?</p>
+
+<p>—Não sei. Não tive tempo de perguntar ao José, porque elle voltou
+logo, mais o sr. doutor. Aquillo é que é a bondade em pessoa, o sr.
+doutor! Fosse outro, que bem se importava!...</p>
+
+<p>—Talvez o doente seja homem rico...</p>
+
+<p>—Pode que seja. O que te sei dizer é que o sr. dr. Luiz pegou em si e
+voltou para traz. Eu, como não era ouvido nem chamado no caso...</p>
+
+<p>—Quem será?</p>
+
+<p>—Haja saude, Roque.</p>
+
+<p>—Haja saude, tio João de <i>Mideiros</i>.</p>
+
+<p>Estugou o passo.</p>
+
+<p>—Quem seria o individuo? Talvez algum velho. Certamente o sr. padre
+Francisco!... Já no verão passado tinha tido um ar de <i>poplexia</i>.
+Antes seja outro—pensava o Roque—senão como se ha de fazer amanhã a
+festa do Senhor Espirito Santo?...</p>
+
+<p>Ao lusco fusco chegava ás primeiras casas do logar, situadas no alto da
+encosta, que vae descendo até á egreja. Olhou lá para baixo e sentiu a
+mesma impressão, que tivera ao voltar á freguezia, depois de passar no
+batalhão os primeiros quinze dias.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_117">[Pg 117]</span></p>
+
+<p>Durante aquellas duas semanas andou no quartel a chorar pelos cantos,
+ralado de saudades. Saía para espairecer as magoas, corria as ruas da
+cidade, parava espantado em frente das lojas, como de antes fazia,
+quando vinha da freguezia comprar algum fato, ou por amor da festa do
+senhor Santo Christo. Mas voltava para o quartel, ia para a caserna, e
+amarrava-se a um canto, sem ao menos ouvir as cantigas tão engraçadas
+do cabo José. A sua consolação, uma vez por outra, era tirar do bahu a
+<i>charamela</i>, que tocava nas Féteiras, e repetir as modinhas que
+lhe tinham ensinado por lá. Parecia-lhe então que a caserna, os cabides
+de que pendiam os uniformes e as mochilas, os armeiros, e tudo o mais
+ia desapparecendo, desapparecendo, e que via na sua frente a egreja da
+freguezia, com a casa do <i>imperio</i> do outro lado da estrada; quasi
+que até ouvia o sino a tocar para a missa!... Uma vez, esteve quasi a
+dar um grito, porque se lhe afigurou que a Maria do tio Thomaz passava
+ao pé d’elle, por signal com um vestido de chita clara e um lenço de
+seda muito bonito!...</p>
+
+<p>Os outros soldados diziam que o rapaz dava em maluco.</p>
+
+<p>Mas o que o fez pasmar, foi que na primeira vez em que esteve de
+licença na terra, não sentiu a alegria que esperava.</p>
+
+<p>De longe, tudo lhe parecia melhor.</p>
+
+<p>Até a casa, tão pequena e pobresinha, que elle julgava preferivel á
+caserna, afinal de contas era muito peior.</p>
+
+<p>Um completo desengano.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_118">[Pg 118]</span></p>
+
+<p>Mas agora não se demorou a pensar n’isto, e foi descendo a passos
+largos em direcção á casa do pae, que ficava mesmo á ilharga da egreja.</p>
+
+<p>Quando passou pela venda, teve tentações de perguntar quem tinha
+adoecido, mas não quiz demorar-se e foi andando para diante.</p>
+
+<p>—Se estava <i>deserto</i> por chegar!</p>
+
+<p>A curta distancia de casa passou por elle o carro do doutor, produzindo
+estalidos seccos no macadam da estrada.</p>
+
+<p>Vinha do lado da egreja, do sitio onde morava o padre Francisco.</p>
+
+<p>—Não é outro o doente, pensou o 72.</p>
+
+<p>N’isto achou-se ao pé de casa.</p>
+
+<p>Uma coisa lhe fez admiração.</p>
+
+<p>—Que claridade era aquella que saía atravez da porta mal fechada? Não
+podia ser da candeia, que a mãe accendia todas as noites.</p>
+
+<p>E pareceu-lhe ouvir chorar!...</p>
+
+<p>—Enganava-se por força.</p>
+
+<p>Empurrou a porta, e logo estacou, boquiaberto, com um arrepio por todo
+o corpo, os cabellos em pé.</p>
+
+<p>No fundo, deitado sobre a cama e um pouco voltado para a porta, estava
+um homem, já velho, o olhar envidraçado, a cara amarellenta e a bocca
+repuxada para uma banda. Era o corpo de um defuncto!</p>
+
+<p>Sentadas sobre uma caixa, tres mulheres soltavam ais, assoando-se a
+miude, e dizendo por entre soluços:</p>
+
+<p>—Louvado seja Nosso Senhor!...</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_119">[Pg 119]</span></p>
+
+<p>Uma d’ellas, a mais velha, quando deu com os olhos no 72, levantou-se e
+foi para elle a gritar:</p>
+
+<p>—Ai! Meu rico filho, que já não tens pae!</p>
+
+<p>O Roque bem tinha reconhecido o cadaver, mas attonito, estupido, não
+queria acreditar nos seus olhos.</p>
+
+<p>Quando ouviu a mãe, desenganou-se; começou n’um berrar destemperado, e
+atirou-se para o chão, onde estrebuchou muito tempo, arrepellando-se e
+gemendo sempre:</p>
+
+<p>—Matei o meu pae! Matei o meu pae!</p>
+
+<p>A mãe voltou para junto das companheiras. Uma d’estas segredou á outra:</p>
+
+<p>—O rapaz está variado!</p>
+
+<p>Levantou-se, e com o queixo a bater e todo o corpo n’um tremor
+convulsivo, foi sentar-se para um canto.</p>
+
+<p>Só á terceira vez é que poude encarar com o defuncto.</p>
+
+<p>Mettia pavor, á luz amarella dos cyrios.</p>
+
+<p>Sem fazer bulha, o Roque fugiu de casa e foi sentar-se á porta da
+egreja. Lá esteve toda a noite a soluçar:</p>
+
+<p>—Matei o meu pae! É castigo de Nosso Senhor!</p>
+
+<figure class="figcenter" id="i016" style="width: 200px;">
+<img src="images/i016.jpg" width="200" height="79" alt="decorative">
+</figure>
+
+
+
+
+<hr class="chap x-ebookmaker-drop">
+
+<div class="chapter">
+<figure class="figcenter" id="i017" style="width: 1200px;">
+<img src="images/i017.jpg" width="1200" height="661" alt="Dois homens armados com rifles estão posicionados à esquerda, escondidos atrás de uma formação rochosa, mirando e disparando contra um grupo de pessoas em um rio. Neste rio, há pequenas embarcações transportando mercadorias e pessoas.">
+</figure>
+</div>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_121">[Pg 121]</span></p>
+<h2 class="nobreak" id="O_Contrabando">O Contrabando</h2>
+
+
+<img alt="T" class="drop-cap" height="389" src="images/drop-t.jpg" width="200">
+<p class="nind"><span class="upper-case">TARDE</span> de inverno.</p>
+
+<p>As vagas frisam-se de espuma, e correm umas após outras de encontro
+á costa. Da banda do oceano, grandes massas de nuvens pardacentas
+orladas de branco, sobrepujam o horisonte,—quaes legiões que alli
+estivessem de reserva, promptas para arremetter á voz da tempestade.
+As aves aquaticas, aos pios e grasnidos, approximam-se de terra, e
+emquanto umas traçam na atmosphera largas curvas, outras, embaladas
+pela onda, descançam na agua, d’onde ás vezes se levantam desprendendo
+as azas, em que parece librarem-se a custo, para irem saltitar pelas
+cristas espumosas, de pescoço estendido á cata de peixe. O vento humido
+e carregado de emanações salinas, investe com a riba alcantilada,
+percorre-a velozmente, curvando os enfézados arbustos e erguendo
+<span class="pagenum" id="Page_122">[Pg 122]</span>
+nuvens de poeira, que remoinham até se dispersarem na campina superior.</p>
+
+<p>Em frente da casa dos guardas de alfandega, alçada no sopé dos
+rochedos, um homem trigueiro, alto, de apparencia militar, alonga a
+vista ao de cima das aguas, e olha com persistencia para o perfil
+escuro de um morro, que ao longe, muito para a direita, fecha o
+horisonte terrestre, com grande crueza de tons. A ventania sacode-lhe
+incessantemente o capote e obriga-o a fechar os olhos de instante a
+instante.</p>
+
+<p>No mar divisa-se muito ao largo uma vela, uma só: mas o guarda antevê
+perigo imminente, e mal comprehende que o deixassem alli com um unico
+companheiro, armados ambos de espingardas detestaveis, quando os
+contrabandistas pódem ser muitos, e hão de trazer por certo bellas
+carabinas, que nunca erram fogo e que dão tres ou quatro tiros, em
+quanto as armas antigas a custo disparam um só.</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>A lancha, mal a noite acabou de fechar, largou de bordo carregada de
+tabaco, e navegou para terra cautelosamente. Os remos cahiam na agua
+ao mesmo tempo e rasgavam sem bulha o flanco das ondas. Dois outros
+maritimos, de sueste enterrado na cabeça, acompanhavam os remadores e
+tinham perto de si, á cautela, duas carabinas americanas. Partira da
+barca uma segunda lancha, que devia correr perigos eguaes, até se haver
+passado todo o contrabando—umas duzentas caixas de tabaco.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_123">[Pg 123]</span></p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>O João Luiz, o guarda, hesitava em recolher-se na casa de abrigo,
+apezar do frio. A denuncia tinha sido clara. Perto d’alli, na pequena
+enseada onde o mar é quasi sempre socegado, deviam desembarcar as
+caixas de tabaco. Lá estavam doze guardas. Como, porém, junto da casa
+tambem se saltava sem difficuldade, o chefe fiscal tinha mandado
+guardar o posto pelo João Luiz e pelo Vicente. Não havia ninguem fóra
+de serviço.</p>
+
+<p>De repente o João Luiz pensou no Estacio e estremeceu.</p>
+
+<p>Elle bem tinha dito muita vez ao irmão que se desgraçava continuando a
+ser contrabandista, e que um homem casado e pae de dois filhos não deve
+arriscar a sua vida por um boccado de dinheiro. Palavras perdidas.</p>
+
+<p>O Estacio era teimoso e não largava já o modo de vida, a que se
+dedicara. Parecia, a bem dizer, uma tentação. Que lhe importava o ser
+mal visto pela gente da alfandega, se em poucas horas ganhava o que
+muitos outros não faziam com mezes e mezes de trabalho ao sol e á
+chuva? E o caso é que o Estacio andava bem vestido, trazia a mulher e
+os filhos que se podiam ver, e ainda ultimamente tinha comprado uma
+mobilia americana, e um relogio de parede com uma caixa mais luzidia
+que a prata.</p>
+
+<p>O proprio perigo offerecia-lhe attractivos singulares. Ás vezes,
+<span class="pagenum" id="Page_124">[Pg 124]</span>
+durante as noites de trabalho, elle bem pensava que podia levar, quando
+mal se precatasse, com uma bala e não tornar a ver a mulher nem os
+filhos, principalmente o mais mocinho, o Manuel, de quatro annos, tão
+louro e tão rosado, que parecia tal qual um menino Jesus. Mas as ideias
+sombrias passavam rapidas, e o Estacio scismava logo depois que poderia
+vir a ter um predio, muitos predios, como alguns senhores enriquecidos
+d’aquelle modo, que nem por isso eram menos estimados por toda a gente.
+Pelo contrabando ganhava o pão da sua familia e ganhava-o com risco de
+vida, o que já não era tão pouco!</p>
+
+<p>Um dia esteve quasi a brigar com o João Luiz, por este lhe dizer que
+o contrabandista é um ladrão como qualquer outro, visto que rouba
+o Estado e vae contra as leis; mas por fim soltou uma gargalhada e
+respondeu-lhe que lá a roubar o Estado ninguem levava as lampas aos
+empregados publicos, uns mandriões que passam vida regalada e que
+recebem no fim de cada mez uma mão-cheia de dinheiro. Ladrões esses!</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>Noite fechada, principiou a soprar um vento mais frio. O João Luiz
+ageitou-se melhor no capote e encolheu-se a um canto da rocha, de onde
+se avistava bem o mar, até á costa. Passara-se uma hora ou mais talvez,
+quando elle, que á força de estar attento via já tudo indistincto e
+como que a apagar-se, julgou sentir bulha do lado da agua. Ia para
+<span class="pagenum" id="Page_125">[Pg 125]</span>
+erguer-se, mas logo mudou de tenção; foi de rojo até á porta da casa
+e chamou em voz baixa o Vicente. Tornado ao mesmo sitio, conheceu
+claramente que andava perto um bote.</p>
+
+<p>—Serão contrabandistas ou pescadores? murmurou ao ouvido do outro
+guarda, que tinha vindo postar-se ao lado d’elle, tambem com a
+espingarda engatilhada, para o que desse e viesse.</p>
+
+<p>Mas não podiam fazer assim fogo, á falsa fé, detraz de um rochedo, como
+o ladrão que espera um homem e o mata para roubar. Teve este pensamento
+e sem importar-se com as ordens recebidas bradou:</p>
+
+<p>—Quem anda ahi?</p>
+
+<p>Não teve resposta. Repetiu a pergunta. O mesmo resultado. Ainda
+duvidoso, e para certificar-se ou intimidar os tripulantes do bote,
+disse com voz mais forte:</p>
+
+<p>—Vocês são mudos?! Talvez uma bala os obrigue a falar.</p>
+
+<p>Do bote partiram dois clarões repentinos.</p>
+
+<p>Uma das balas tirou uma lasca de pedra, ao pé do Vicente.</p>
+
+<p>—Ah! Grandes ladrões, esperem lá! gritou o João Luiz e ambos os
+guardas, com as armas descançadas na rocha, desfecharam ao mesmo tempo,
+quasi instinctivamente.</p>
+
+<p>Do lado do mar pareceu-lhes que viera um gemido, mas, passada a
+obcecação momentanea produzida pelos clarões, já não enxergaram a
+embarcação.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_126">[Pg 126]</span></p>
+
+<p>O silencio da noite era quebrado tão sómente pelo arfar do oceano junto
+á rocha.</p>
+
+<p>O estampido fez com que chegassem, em acto continuo, o chefe fiscal e
+os doze guardas.</p>
+
+<p>A denuncia tinham-a dado provavelmente os mesmos contrabandistas,
+marcando para outro sitio o desembarque, a fim de desnortearem a gente
+da alfandega.</p>
+
+<p>O chefe zangou-se muito, por deixar de se fazer a tomadia, mas a
+final cahiu em si e absolveu o guarda, pela consideração de que
+contrabandistas de tanta audacia não se venceriam ás primeiras. Demais,
+o perigo tinha-lhe merecido sempre um especial desagrado.—Duas horas
+depois dormia em casa a somno solto.</p>
+
+<p>O João Luiz esteve de serviço toda a noite.</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>Rompeu formosa a manhã immediata.</p>
+
+<p>Quando o guarda se recolhia a casa, o sol já ia alto e lançava myriades
+de setas de oiro atravez da atmosphera, lavada pela chuva dos dias
+anteriores. O mar, á direita, encrespava-se em ondas curtas, e alongava
+na praia linguas de espuma.</p>
+
+<p>Quasi ao entrar na Horta o João Luiz avistou no areal, á borda da
+agua, um grupo de homens a rodear curiosamente o que quer que fosse.
+Chegaram-lhe simultaneamente aos ouvidos, uns gritos de mulher.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_127">[Pg 127]</span></p>
+
+<p>Approximou-se e viu um cadaver extendido na areia.</p>
+
+<p>Reconheceu o Estacio.</p>
+
+<p>No peito, que a camisa aberta e ainda molhada deixava a nu, havia um
+buraco pequeno, redondo, negro, de onde gotejava um tenue filete de
+sangue.</p>
+
+<p>A mulher do contrabandista, de joelhos ao pé do marido, soltava
+gritos penetrantes, arrepellava o cabello e cahia de vez em quando
+desamparada sobre o cadaver, em cujo rosto se desenhava constantemente,
+persistentemente, a grande ancia que precedera a morte e que a morte
+não pudera apagar.</p>
+
+<p>A infeliz cahiu finalmente n’uma atonia profunda, e sentou-se na areia,
+sem despegar os olhos de cima do morto, e murmurando no meio de um
+tremor:</p>
+
+<p>—Ai! O meu rico marido! O meu rico marido!</p>
+
+<p>Ao pé da mãe o <i>Manilinho</i> chorou em quanto a viu chorar. Depois,
+quando ella socegou, approximou-se do pae, poz-lhe as mãosinhas na
+cara, e disse a medo, muito admirado:</p>
+
+<p>—Como o pae está frio! E sempre a dormir!</p>
+
+<p>O guarda, horrorisado de si mesmo, pois fôra talvez a bala da sua
+espingarda que tinha morto o irmão, olhava para o pequenino, e ao vel-o
+tão innocente e tão divinal, levantou os olhos para o ceo, e perguntou
+porque seria que Deus, mandando á terra anjos como aquelle, os não
+deixava fazer milagres.</p>
+
+<figure class="figcenter" id="i018" style="width: 200px;">
+ <img src="images/i018.jpg" width="200" height="56" alt="decorative">
+</figure>
+
+
+<hr class="chap x-ebookmaker-drop">
+
+<div class="chapter">
+<figure class="figcenter" id="i019" style="width: 1000px;">
+<img src="images/i019.jpg" width="1000" height="806" alt="No centro, um homem está sentado, curvado, com o rosto apoiado nas mãos. Um cachorro está ao seu lado, de pé, olhando para ele. À esquerda estão dois viajantes, com trouxas e cajados. A cena mostra uma paisagem rochosa e montanhosa ao fundo.">
+</figure>
+</div>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_129">[Pg 129]</span></p>
+<h2 class="nobreak" id="Piloto">Piloto</h2>
+
+
+<img alt="J" class="drop-cap" height="430" src="images/drop-j.jpg" width="200">
+<p class="nind"><span class="upper-case">JÁ</span>
+vinha anoitecendo, quando o Sergio, de pé descalço e com a trouxa da
+roupa enfiada n’um cajado e pendente do hombro, saltou da estrada para
+a rocha.</p>
+
+<p>Sobre o horisonte occidental as nuvens, em longas fitas franjadas,
+perderam a claridade vivissima de um quarto de hora mais cedo, e tomam
+uma côr plumbea esbranquiçada: pelo resto do ceo alastra-se um azul
+uniforme, que a diminuição de luz vae tomando mais opaco.</p>
+
+<p>Convencido de que ninguem o vigiava, foi descendo a escarpa de rocha
+<span class="pagenum" id="Page_130">[Pg 130]</span>
+em direitura ao mar, onde se avistava, muito ao longe, um navio, com as
+velas pandas de vento.</p>
+
+<p>—Se alguem me viu é que está o diabo, pensou o rapaz, e novamente
+lançou a vista pela ribanceira acima, e pela enfiada dos pincaros,
+que recortavam lá muito no alto, sobre o azul, o seu perfil dentado e
+sombrio.</p>
+
+<p>Áquella hora, a estrada é pouco frequentada. Só de vez em quando lá
+passam tres ou quatro trabalhadores, que foram dar o dia á Horta, e que
+voltam para casa, a bom andar, antegostando a ceia, só de avistarem uma
+ou outra chaminé lançando pachorrentamente, para a limpidez do ar, uma
+espiral de fumo.</p>
+
+<p>O Sergio, depois de olhar por muito tempo, a ponto de os objectos
+fixados se lhe tornarem quasi indistinctos, poisou no chão a trouxa,
+onde vinha toda a sua roupa e um bôlo torrado rescendendo a milhã
+cheirosa, e sentou-se com os pés muito perto da agua, que chapinhava
+brandamente no interior da pequena angra formada, n’aquelle sitio,
+pelos rochedos da costa sueste do Fayal.</p>
+
+<p>E tempos sem fim, com os olhos fitos em o navio, que bordejava a boa
+distancia de terra, ficou absorto no meio d’aquelle grande silencio,
+esperando pela canoa, que havia de leval-o a occultas para bordo da
+baleeira, conforme tinha tratado com um <i>senhor da villa</i>.</p>
+
+<p>Sem saber como, foi perdendo a grande resolução que trazia de
+embarcar, para fugir ao recrutamento e não ir para a Terceira, para o
+<i>Castello</i>.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_131">[Pg 131]</span></p>
+
+<p>Obedecia tambem a outra razão: na baleeira ia ter á America, á
+<i>Calafóna</i>, onde tinha enriquecido o Luiz Garcia, e aquelle senhor
+já velho, dono de uma casa de sete janellas ao pé da egreja da Féteira,
+e tantos outros!</p>
+
+<p>Nada! O Sergio estava bem decidido, tanto que viera para alli, depois
+de dar um abraço na mãe e outro no irmão, mais novo do que elle dois
+annos.</p>
+
+<p>Por isso mesmo não era capaz de saber o motivo por que sentia uma ancia
+no peito, um aperto na garganta, e tanta vontade de chorar.</p>
+
+<p>Talvez fosse porque a mãe o não tinha acompanhado até ali, para
+despedir-se.</p>
+
+<p>—Ora! Se foi justamente para a coisa não dar tanto nas vistas! Um
+visinho não lhe queria bem e podia ir participar á <i>villa</i>. Ha
+gente tão má!...</p>
+
+<p>Mas, fosse o que fosse, o rapaz sentia-se a modos exquisito, e estava
+já a pedir que apparecesse quanto antes a canôa.</p>
+
+<p>O que havia de lembrar-lhe agora!...</p>
+
+<p>Todas as historias que lhe tinham contado das baleeiras: a de um
+capitão que moía a tripulação a pontapés e chicotadas. Um dia o
+cosinheiro respondeu-lhe com uma bofetada, que o estirou no convez.
+Foi logo mandado pôr a ferros, e nunca mais ninguem o viu. Contavam
+depois os de bordo, que tinha sido cosido a facadas pelo commandante, e
+atirado pela borda fóra.</p>
+
+<p>—Mentiras, disse por entre dentes o Sergio, e poz-se a olhar para o
+mar, a ver se lobrigava a canôa.</p>
+
+<p>Não viu nada.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_132">[Pg 132]</span></p>
+
+<p>—Dando se mal na baleeira, desembarcava em <i>Béteféte</i><a id="FNanchor_1" href="#Footnote_1" class="fnanchor">[1]</a>, e havia
+de ir parar á <i>Calafóna</i>, onde o ouro é tanto, que até se cava com
+o sacho!</p>
+
+<p>Mas n’esta occasião lembrou-se de uma coisa, que o Luiz Garcia lhe
+dizia ás vezes—que por cada um que voltava vivo, ficavam por lá
+muitos, mortos sem se saber de que, se de fome, se de cansaço...</p>
+
+<p>—Pois sim! Apesar d’isso vão de todas essas ilhas navios carregadinhos
+de gente para a America. Mal feito fôra não ir eu tambem, concluiu o
+Sergio.</p>
+
+<p>Ouviu-se a curta distancia um latido, e logo depois um cão pequeno, de
+pello curto, corria para junto do Sergio, muito festeiro, muito alegre.</p>
+
+<p>—Olha o Piloto! Vae-te d’aqui, diabo!</p>
+
+<p>E deu-lhe um pontapé, que o animal evitou fugindo-lhe com o corpo. Mas
+d’alli a um instante já voltava, caracolando-se.</p>
+
+<p>—Txeta, <i>Caim</i>! exclamou o Sergio mais zangado ainda, e atirou
+uma pedra ao cão, acertando-lhe n’um vasio.</p>
+
+<p>O Piloto, ganindo e de cabeça baixa, subiu a rocha, deitou-se no cimo
+e poz-se a espreitar o dono, com o focinho extendido sobre as patas, e
+os olhos fulvos brilhando na meia obscuridade, como dois carvões mal
+apagados.</p>
+
+<p>—Admira que viesse dar commigo! pensava o Sergio, sentando-se de novo.
+Se o tinha fechado no palheiro!...</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_133">[Pg 133]</span></p>
+
+<p>Insensivelmente foi voltando ás idéas de momentos antes.</p>
+
+<p>Mas com essas vinham outras...</p>
+
+<p>Sim! Quando o cão fosse d’alli para casa, havia de empurrar a porta com
+o focinho, e se não a podesse abrir, ficaria a raspar com as unhas até
+que apparecesse alguem, como tinha feito ainda na vespera, ao tornar
+com o dono da <i>folga</i> do José Pedro.</p>
+
+<p>—Mas esta noite volta sósinho!</p>
+
+<p>E a este pensamento o Sergio sentiu a garganta apertar-se-lhe ainda
+mais, porque se lembrava de que a pobre mãe teria a mesma idéa e havia
+de chorar pelo filho, que já andaria a essa hora sobre as aguas do mar.</p>
+
+<p>Para esquecer-se, começou a recordar-se da <i>folga</i>, onde tinha
+bailado com a Anna cinco <i>chamaritas</i> a fio, a ponto de o José
+Pedro, já de mau modo, dizer o costumado «Caras novas ao terreiro!»</p>
+
+<p>Era boa rapariga a Anna. Quando o vigario da Féteira os via juntos a
+conversarem, dizia-lhes por graça: «A modo que vocês ainda me hão de
+dar que fazer lá na egreja.»</p>
+
+<p>Um e outro ficavam encarnados como uns pimentões, mas não queriam mal
+ao sr. padre por <i>entícar</i> com elles. Se andava sempre com o
+<i>canîcînho</i> na agua!...</p>
+
+<p>Lembrou-se depois de que a Anna, apesar do que lhe tinha promettido,
+podia cansar-se de esperal-o e casar com outro, por julgar que elle,
+colhendo-se á solta, faria como os passaros, e não voltaria ao laço. A
+mesma peça tinha pregado a Aurelia ao João Furtado.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_134">[Pg 134]</span></p>
+
+<p>Só com esta desconfiança, o rapaz sentiu uma afflicção enorme, que lhe
+subia ao peito e o afogava: fincou os cotovellos nos joelhos, apertou a
+cabeça entre as mãos e poz-se a chorar desapoderadamente.</p>
+
+<p>Só tinha chorado assim no dia da morte do pae. Uns homens mal encarados
+vieram metter o defuncto na tumba. A creança poz-se nos bicos dos pés e
+deitou a cabeça por cima de um dos lados d’aquella caixa preta: quando
+viu o pae lá dentro, muito amarello, imaginou que aquelles homens é que
+lhe haviam feito mal, que o tinham <i>pisado</i> muito e desatou n’uns
+taes gritos, que ninguem o pôde calar.</p>
+
+<p>D’ahi por deante nunca mais chorara. Por isso os olhos lhe tinham
+tantas lagrimas e o peito tantos soluços.</p>
+
+<p>O Piloto veiu no entretanto chegando-se para o dono, manso e manso;
+pousou-lhe as patas deanteiras sobre a perna e começou a lamber-lhe
+as mãos e a cara com uma grande meiguice, como se quizesse consolal-o
+n’aquella dôr.</p>
+
+<p>O rapaz não teve alma de enxotal-o. Afigurou-se-lhe que não era o cão,
+mas a familia, a casa, todos os sitios por onde o Piloto o seguia, que
+estavam a chamal-o carinhosamente; que a mãe e a Anna lhe diziam ao
+ouvido, baixinho: «Não te vás. Podes ser feliz na tua terra, com a tua
+mãe, com a tua mulher!»</p>
+
+<p>Levantou-se de chofre, poz a trouxa ao hombro, e galgou a rocha.
+Chegado ao cimo, estacou duvidoso:</p>
+
+<p>—Mas então ia parar ao <i>Castello</i>!...</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_135">[Pg 135]</span></p>
+
+<p>Um senhor da villa promettera-lhe uma vez, que se fosse com elle no
+tempo dos votos, o livraria de ir para soldado.</p>
+
+<p>—Não lhe custava a deitar um papel na egreja, affirmava o rapaz.</p>
+
+<p>Na pequena angra entrava n’este momento a canôa. Uma voz dizia
+asperamente:</p>
+
+<p>—Onde estará metido aquelle diabo?</p>
+
+<p>O Sergio, já de longe, ouviu isto, e agachou-se um pouco, receioso de
+que o vissem apesar do escuro que fazia.</p>
+
+<p>O Piloto, diante d’elle, com as orelhas fitas, olhava ameaçador para o
+lado do mar.</p>
+
+<p>—Ó sior, não está ninguem, dizia uma voz com accento africano. O moço
+arependeu-se.</p>
+
+<p>—Marau! Tinha jurado!...</p>
+
+<p>E chamou outra vez:</p>
+
+<p>—Eh! rapaz do diabo!... Nada!</p>
+
+<p>Os remos bateram na agua.</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>Quando um quarto de hora depois o Piloto entrou no quintal da casa,
+estava tão fóra de si, que até ladrou ao gato. Este não fugiu, mas,
+resentido pela singularidade do ataque, levantou a mão severamente para
+esbofetear o companheiro. E assoprou.</p>
+
+<p>O Piloto tinha desculpa: não voltava sósinho.</p>
+
+<figure class="figcenter" id="i020" style="width: 200px;">
+ <img src="images/i020.jpg" width="200" height="86" alt="decorative">
+</figure>
+
+
+<hr class="chap x-ebookmaker-drop">
+
+<div class="chapter">
+<figure class="figcenter" id="i021" style="width: 1000px;">
+<img src="images/i021.jpg" width="1000" height="749" alt="À direita, um homem mais velho, com um chapéu de palha e roupas simples, gesticula enquanto parece falar ou dar instruções ao jovem à sua frente. O jovem, à esquerda, segura uma vara e parece escutar atentamente ao ancião.">
+</figure>
+</div>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_137">[Pg 137]</span></p>
+<h2 class="nobreak" id="Na_Vindima">Na Vindima</h2>
+
+
+<img alt="E" class="drop-cap" height="319" src="images/drop-e.jpg" width="200">
+<p class="nind"><span class="upper-case">ESTÁ</span>
+prestes a findar a rude labutação.</p>
+
+<p>Os cachos túmidos, e alourados pelo sol estivo, já quasi desappareceram
+das videiras, e o môsto, o sangue da vinha, corre a flux, denso e
+espumante, pela bica do lagar, espremidas as uvas sob os pés dos
+homens, que aturam tempos sem fim n’aquelle trabalho, como se os
+vapores saídos do engaço lhes augmentassem as forças com a excitação da
+meia embriaguez.</p>
+
+<p>A mesma animação nos demais trabalhadores, que, ajoujados ao peso dos
+cestos vindimos, levam os cachos para o lagar escuro e fresco. Qual
+d’elles, para expandir a alegria ou sentir menos a faina, entôa a
+<span class="pagenum" id="Page_138">[Pg 138]</span>
+meia voz um dos cantos populares da ilha do Pico, dando á melodia mais
+triste uma expressão festival.</p>
+
+<p>Alguns, para mourejar na freguezia de S. Roque, vieram de longe, de
+muito longe, e estão alli ha perto de um mez, separados das familias,
+anciosos por lhes ganharem um pedaço de pão.</p>
+
+<p>Um d’estes era o João Ignacio.</p>
+
+<p>Tinha abalado da outra banda da ilha, dos cabeços perdidos nos matos
+sobranceiros á villa das Lages, deixando a mulher, as filhas—duas
+moçoilas frescas e desempenadas, e o filho, um rapazote que dentro em
+pouco já poderia ajudal-o.</p>
+
+<p>A mulher, coitadinha! estava muito acabada, não pela idade, mas pela
+doença.</p>
+
+<p>Pois o João Ignacio ia ter uma grande satisfação.</p>
+
+<p>Mandado pela mãe, o pequeno tinha feito a enorme caminhada e já andava
+alli perto, deitando inculcas, para saber onde encontral-o. Trazia-lhe
+noticias frescas de todos os de casa: da doente, das irmãs, e até do
+Calçado, muito rosnador com a velhice, e da porca, que estava gorda,
+gorda—uma perfeição de animal!</p>
+
+<p>O João Ignacio topou o filho á porta do lagar, onde tinha despejado
+mais um cesto.</p>
+
+<p>Deitou-lhe a benção, arredou-o de si um quasi nada para miral-o de
+alto a baixo, e tendo-o visto são e escorreito, deu-lhe uma palmada no
+hombro.</p>
+
+<p>—Basta que sim! Estaes rijo como...</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_139">[Pg 139]</span></p>
+
+<p>E sem enunciar o termo da comparação, perguntou pressuroso:</p>
+
+<p>—Como vae a porca?</p>
+
+<p>—<i>Álhora!</i>... O pae então pergunta-me pela porca, e não quer
+saber da minha mãe?</p>
+
+<p>—Eh! rapaz! A porca custou dinheiro e vossa mãe não me custou nada!</p>
+
+<figure class="figcenter" id="i022" style="width: 200px;">
+ <img src="images/i022.jpg" width="200" height="70" alt="decorative">
+</figure>
+
+
+<hr class="chap x-ebookmaker-drop">
+
+<div class="chapter">
+<figure class="figcenter" id="i023" style="width: 200px;">
+<img src="images/i023.jpg" width="200" height="36" alt="decorative">
+</figure>
+</div>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_141">[Pg 141]</span></p>
+<h2 class="nobreak" id="O_Jantar_Do_General">O Jantar Do General</h2>
+
+
+<img alt="N" class="drop-cap" height="342" src="images/drop-n.jpg" width="200">
+<p class="nind"><span class="upper-case">NÃO</span>
+sei com certeza se o general tinha desembarcado nas praias do
+Mindello.</p>
+
+<p>O Garcez, coronel de caçadores 12 e cultor eximio da <i>arte de dizer
+mal dos seus superiores</i>, affirmava que não; o Dionysio, soldado
+de veteranos, dizia que sim, e jurava o até, se alguem se mostrava
+duvidoso.</p>
+
+<p>Ora o veterano tinha razão para estar bem informado, porque fôra
+impedido do general, durante trinta e oito dos quarenta annos de
+serviço attestados pelas quatro divisas brancas, que se lhe estiravam
+pela manga da fardeta. Verdade é que ás vezes o Dionysio tinha
+singulares confusões—patetices de seiscentos diabos, qualificava o
+patrão.</p>
+
+<p>Uma, principalmente foi originalissima. Uma?... Uma serie d’ellas.</p>
+
+<p>O general commandava n’aquelle tempo a nôna divisão militar, hoje
+defuncta.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_142">[Pg 142]</span></p>
+
+<p>Na Madeira a vida corria-lhe em maré de rosas.</p>
+
+<p>Tendo-se recordado do inglez aprendido em Bragança com o major do
+seu regimento,—um official britannico que acompanhára D. Pedro IV a
+Portugal e fizera toda a campanha,—o general tornou-se frequentador
+assiduo das sociedades funchalenses onde predominava o elemento
+estrangeiro.</p>
+
+<p>Pelo seu espirito de velho solteirão impenitente, chegaram até a
+perpassar planos casamenteiros, confusos e indeterminados no principio,
+claros e definidos logo que appareceu no Funchal miss Lorely, a filha
+de um lord, viva e <i>espiègle</i> como uma parisiense, e exuberante da
+formosura peculiar das inglezas.</p>
+
+<p>Então o antigo cadete de cavallaria 10, ou não sei quantos, formou
+planos estrategicos com uma pericia, que talvez o não acompanhasse
+até ao campo de batalha. Pôz ao serviço d’aquelle tardio amor todos
+os recursos do seu espirito, que eram poucos, e todas as vantagens da
+sua posição official, que eram muitas. Passeios militares, exercicios,
+tudo foi largamente aproveitado. E de tarde, no atrio do palacete das
+Angustias, onde morava a seductora <i>miss</i>, tocava sempre a banda
+regimental, cujos effeitos maravilhosos Eduardo Pailleron preconisou,
+muito depois e com infinito espirito, no segundo acto da <i>Edade
+ingrata</i>.</p>
+
+<p>Mas tambem o que elle soffria!...</p>
+
+<p>A prima dos Norfolk e dos Buckingam tinha sabido ou adivinhado que o
+senil Lovelace professava, com o maior fervor, o culto do dinheiro.
+Jurou logo aos seus deuses, fazer do seu apaixonado um perdulario; e
+<span class="pagenum" id="Page_143">[Pg 143]</span>
+tão bem se saiu da empresa, que o general offereceu d’alli a pouco um
+<i>lunch</i>, a ella e á officialidade do batalhão, n’um dia de passeio
+militar a Camara de Lobos—o general que, de tanto jantar fóra de casa,
+«tinha avenca na chaminé», segundo a phrase malevola do Garcez.</p>
+
+<p>Ora foi justamente por esta occasião, que o Dionysio cahiu na tal
+serie de enganos. O patrão—Dionysio depois de reformado continuava a
+servil-o—estava a arranjar-se para ir jantar a casa de <i>miss</i>
+Lorely. A agua circassiana terminara o seu papel, e entrava em scena
+o espartilho, quando surgiu um tormento, que fez perder á victima o
+desejo de ir ver a beldade. O general acabava de sentir no joelho
+esquerdo as presas aguçadas da gotta, a morderem-o cruelmente. A dor
+foi tal que lhe arrancou um grito. Ataque para durar tres dias pelo
+menos.</p>
+
+<p>—Mas então era preciso mandar uma desculpa.</p>
+
+<p>Pegou numa penna e dispoz-se a escrever no bilhete de visita algumas
+palavras em inglez.</p>
+
+<p>Por fatalidade o major só lhe tinha ensinado a falar a lingua de Pope;
+quanto a escrevel-a, não se lembrou d’isso. Nem tudo póde lembrar.</p>
+
+<p>—Ó Dionysio?</p>
+
+<p>—Prompto, meu general!</p>
+
+<p>—Tu sabes onde mora aquella senhora ingleza, a quem eu costumo
+visitar!...</p>
+
+<p>—E a quem faz o seu pé d’alferes?</p>
+
+<p>—Mau, Dionysio! Sabes onde ella mora?</p>
+
+<p>—Não saberei eu outra coisa!</p>
+
+<p>—Pois então leva-lhe este bilhete de visita, e dize á creada que mando
+muitos cumprimentos á senhora, e que lhe peço desculpa de não ir hoje
+<span class="pagenum" id="Page_144">[Pg 144]</span>
+lá jantar, mas que estou doente.</p>
+
+<p>—Isso não é nada. Ande, vá, olhe que em casa não se lhe arranjou
+comida.</p>
+
+<p>—Cala a bocca, pateta! Dize-lhe tambem que estou de cama e que por
+isso não posso escrever-lhe.</p>
+
+<p>—Éna que patranha!...</p>
+
+<p>—Meia volta á direita, maroto, e não te esqueças de nada! Estás cada
+vez mais urso.</p>
+
+<p>—Somos dois, meu general! respondeu o velho, rodando sobre os
+calcanhares e caminhando para a porta, em quanto o patrão lhe atirava,
+por entre dentes, os epithetos de «burro, camello e animal». Ao mesmo
+tempo agarrava o joelho esquerdo com ambas as mãos, e soltava uns
+gemidos surdos, que tinham o que quer que fosse de grunhidos.</p>
+
+<p>De repente gritou:</p>
+
+<p>—Olha lá!</p>
+
+<p>O soldado appareceu á porta, e olhou desconfiado para o general.</p>
+
+<p>—Traze-me jantar da hospedaria do costume. Não te esqueças!</p>
+
+<p>—Sim senhor, fique descançado.</p>
+
+<p>E saíu.</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>Á porta da casa das Angustias, situada no meio de um esplendido jardim,
+o Dionysio foi recebido pela Luiza, creadinha madeirense, que á força
+de lidar com inglezes se fazia entender por elles, e assim arranjava,
+<span class="pagenum" id="Page_145">[Pg 145]</span>
+em todos os invernos, excellentes casas para servir.</p>
+
+<p>O veterano, depois de lhe deitar uma olhadela brejeira, apresentou o
+bilhete.</p>
+
+<p>—O meu general manda isto á senhora, porque não póde vir cá hoje. Está
+com o seu rheumatico.</p>
+
+<p>—<i>Saim?</i> perguntou a creada.</p>
+
+<p>—<i>Saim, menaina</i>, disse o Dionysio, que nunca perdia occasião de
+imitar a pronuncia madeirense.</p>
+
+<p>—A <i>mecê</i> a modo que está <i>tirando precipicio</i> commigo!
+replicou, meio formalisada, a creadita.</p>
+
+<p>—<i>Precepeicio!</i>... A minha <i>mecê</i> não quer tirar-lhe nada.
+Agora se eu fosse mais novo uns trinta ou quarenta annos...</p>
+
+<p>—Se fosse mais novo? perguntou a rapariguinha já a sorrir.</p>
+
+<p>—Mau! Mau! Basta de conversas, que o patrão mandou-me levar-lhe o
+jantar.</p>
+
+<p>—De cá?</p>
+
+<p>—Pois se fôr de cá, melhor ainda, por certos motivos... Cá é que elle
+vinha comer o jantarinho, e por conseguinte tambem de cá lh’o pódem
+mandar. Pois não acha?</p>
+
+<p>A Luiza transmittiu fielmente o recado a sua ama. O pedido final
+produziu o effeito hylariante de uma boa caricatura do <i>Punch</i>.</p>
+
+<p>Morta de riso, mas duvidosa ainda, não obstante a fama de Harpagão
+do seu apaixonado sexagenario, miss Lorely mandou a Luiza interrogar
+novamente o veterano.</p>
+
+<p>—Ó mulher de ... não sei que diga, já lhe expliquei que elle queria o
+jantar.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_146">[Pg 146]</span></p>
+
+<p>D’alli a pouco um creado, de casaca e gravata branca, entregava ao
+soldado um grande açafate, donde se exhalava um perfume capaz de fazer
+crescer agua na bocca ao menos glotão.</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>O general quando viu o Dionysio ir tirando do açafate, que lhe derreara
+os braços, uns após outros, muitos pratos de porcelana finissima com
+excellentes iguarias, ia tendo uma syncope.</p>
+
+<p>—Quanto lhe não custaria aquelle jantar? pensou, e gritou logo para o
+veterano:</p>
+
+<p>—Ó patife, não me dirás onde foste buscar tudo isso? Talvez a
+essa hospedaria da Entrada da Cidade onde pagam uma libra por dia
+os hospedes permanentes! Um jantar assim ... que sei eu?... é um
+dinheirão!...</p>
+
+<p>—Cale-se para ahi, resmungou o Dionysio. É um jantar de principe e não
+lhe custa um vintém!</p>
+
+<p>—Não custa!</p>
+
+<p>Dionysio explicou tudo.</p>
+
+<p>O general caíu prostrado n’uma cadeira, com a perna ainda mais
+espicaçada pela gotta. Depois, tomando uma resolução heroica, tirou
+tres libras da bolsa.</p>
+
+<p>—As ordenanças ainda ahi estão?</p>
+
+<p>—Não foi o meu general o proprio que as mandou para o quartel?</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_147">[Pg 147]</span></p>
+
+<p>—Bem! Pois então irás tu novamente, mas vê lá não me faças outra
+asneira!...</p>
+
+<p>—Outra! Qual foi a primeira, diga!</p>
+
+<figure class="figcenter" id="i024" style="width: 900px;">
+ <img src="images/i024.jpg" width="900" height="669" alt="À esquerda, um homem idoso de bigode está segurando uma grande travessa cheia de alimentos. À direita, um homem sentado em uma cadeira reage assustado com as mãos levantadas e a boca aberta surpreso com o que está sendo servido.">
+</figure>
+
+<p>—Toma lá este dinheiro, vae á loja de bebidas da Carreira, onde eu
+te mandei no outro dia, e pede ao caixeiro que te dê seis garrafas de
+vinho da Madeira do melhor.</p>
+
+<p>—Gasta-se tudo isto?</p>
+
+<p>—Pois de certo.—E o general apertou de novo o joelho.—Elle que te
+empreste um cesto, e vae levar o vinho, n’um rufo, a casa da ingleza,
+com mais este bilhete de visita... Dize á senhora que te enganaste e
+que eu amanhã lhe explicarei tudo.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_148">[Pg 148]</span></p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>Em quanto o general, pelo sim pelo não, ia comendo o jantar, Dionysio
+desempenhava conscienciosamente a commissão, até chegar á porta de
+<i>miss</i> Lorely, e tambem depois de entregar o vinho á creada.</p>
+
+<p>D’alli a pouco voltou a Luiza com meia libra em oiro, e deu-a ao velho.</p>
+
+<p>—A senhora manda muitos cumprimentos...</p>
+
+<p>Dionysio interrompeu-a:</p>
+
+<p>—Isto é para pagar o vinho?...</p>
+
+<p>A creada desatou a rir.</p>
+
+<p>—Ah! Você ri-se? Pois se a senhora quer pagar o vinho, então ha de pôr
+para aqui mais alguma coisa. Diga-lhe que não é uma, que são seis meias
+librinhas—tres libras!</p>
+
+<p>A Luiza, rindo a bandeiras despregadas, foi levar o recado á ama, que
+riu muito mais ainda.</p>
+
+<p>D’alli a pouco recebia o Dionysio tres libras.</p>
+
+<p>—Aqui levo dinheiro de sobra, disse elle, e ia entregar honradamente a
+meia libra do principio.</p>
+
+<p>—Essa é para a <i>mecê</i>, fez-lhe notar a creada.</p>
+
+<p>—Acceito para não fazer desfeita. Adeusinho, minha flor, e obrigado!</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>Quando o general acabava de jantar, chegou o Dionysio com as tres
+libras.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_149">[Pg 149]</span></p>
+
+<p>A explicação foi longa e calorosa.</p>
+
+<p>Tanto gritou o amo como o creado.</p>
+
+<p>—Ora ainda em cima! Por eu lhe zelar o que é seu! respondia o
+Dionysio, indignado. Se vocemecê gastasse as tres libras, dava-lhe p’ra
+ahi alguma coisa, e nunca mais prestava para nada.</p>
+
+<p>O caso é que o general parecia ter-se restabelecido instantaneamente
+da gotta. Vestiu-se á pressa, e foi ás Angustias, pedir desculpa a
+<i>miss</i> Lorely.</p>
+
+<p>A ingleza perdoou tudo, e confessou ao seu apaixonado que nunca se
+tinha divertido tanto. Partícipou-lhe ao mesmo tempo que, em voltando
+a Inglaterra, casaria com um primo, de quem era noiva desde os quinze
+annos.</p>
+
+<p>Nem por isso o general deixou d’alli em diante de jantar nas Angustias,
+nem a musica de tocar no atrio do palacete.</p>
+
+<p>Se perdia a noiva, não queria perder tambem os jantares.</p>
+
+<p>Quanto ao Dionysio...</p>
+
+<p>Continuou trapalhão como sempre.</p>
+
+<p>E por isso eu, não me fiando no que elle dizia e sem paciencia para
+tirar a limpo este ponto historico, termino como principiei:</p>
+
+<p>Não sei com certeza se o general tinha desembarcado nas praias do
+Mindello.</p>
+
+<figure class="figcenter" id="i024a" style="width: 161px;">
+<img src="images/i024a.jpg" width="161" height="71" alt="decorative">
+</figure>
+
+
+<hr class="chap x-ebookmaker-drop">
+
+<div class="chapter">
+<figure class="figleft" id="i025" style="width: 400px;">
+<img src="images/i025.jpg" width="400" height="310" alt="Um homem sentado em uma cadeira com um lençol envolvendo seu corpo está bastante assustado ao fazer a barba por um barbeiro. Na sua frente há uma mesa com os apetrechos de uma barbearia.">
+</figure>
+</div>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_151">[Pg 151]</span></p>
+<h2 class="nobreak" id="O_Aprendiz_De_Barbeiro">O Aprendiz De Barbeiro</h2>
+
+
+<p>A Maria José saiu da Candelária de noite escura, e por isso quando
+chegou á Magdalena não estava ainda um unico freguez a fazer a barba na
+loja de João Cardoso.</p>
+
+<p>O pequeno d’ella, o Antonio, apenas a viu, largou uma navalha que
+estava afiando no assentador e correu para a porta.</p>
+
+<p>A mãe puxou-o para fóra, porque não queria que o mestre ouvisse o que
+ella tinha que dizer ao filho.</p>
+
+<p>Vergonhas não se querem assoalhadas.</p>
+
+<p>Olhou para o rapaz, e a voz prendeu-se-lhe na garganta. Tinha pejo, mas
+por fim decidiu-se. Ella bem queria lidar como as outras mulheres, que
+a bem dizer fazem por toda a ilha o dobro do trabalho dos homens, mas
+não podia, por causa d’aquella mão aleijada.</p>
+
+<p>Já não sabia com que cara apparecesse ás visinhas. Tinham todas muita
+<span class="pagenum" id="Page_152">[Pg 152]</span>
+pena d’ella, é verdade, ajudavam-a a viver, mas ás vezes, por muita
+vontade que tivessem, tambem não podiam. Só Deus sabe das faltas, que
+cada um padece!</p>
+
+<p>Pedir aos ricos, nem pensar n’isso... Quem nunca soube o que é não ter,
+menos acode aos que precisam.</p>
+
+<p>E vae d’ahi lembrou-se, custando-lhe muito, de vir pedir alguma
+coisinha ao filho.</p>
+
+<p>O Antonio bem queria fazer-lhe a vontade, mas como? A féria d’aquella
+semana já estava gasta n’um fato, que tinha ajustado dias antes, e por
+signal bem barato. O mestre João não queria ver em casa maltrapilhos,
+não tanto por si, mas por ’môr dos freguezes. Á sua loja iam os
+senhores mais ricos da villa.</p>
+
+<p>—Não pódes então dar-me nada? perguntou a Maria José, com os olhos
+rasos de lagrimas.</p>
+
+<p>—Posso, sim senhora, mas é tão pouco... A minha mãe bem sabe que se
+muito tivesse... Porque estou eu aqui? Para mais a míudo lhe poder
+fazer bem, e para ir vel-a de vez em quando. Mas um dia pego em mim e
+abalo n’uma d’essas baleeiras!</p>
+
+<p>—Lá isso não, filho, só se queres matar-me! Bom de lei és tu. Excusas
+de m’o dizer! Saes todo a teu pae. Ah! Que se aquelle Caim do Gaspar
+Dutra não m’o tivesse matado!... Coitadinho! Ainda estou a vel-o a
+arquejar, com a cara toda suja de sangue—parecia um bicho!—os olhos
+já envidraçados a fincarem-se em mim ... como a querer falar, mas sem
+poder! Era para me dizer quem o tinha atirado do alto da rocha.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_153">[Pg 153]</span></p>
+
+<p>Mas a esse respeito não restavam duvidas á Maria José.</p>
+
+<p>É verdade que na audiencia em que o Gaspar Dutra foi responder ao Caes
+do Pico, porque o suspeitaram do crime, visto andar ha muito de rixa
+com o Manoel Luiz, o absolveram por falta de provas, e não appareceu
+uma só testemunha de vista.</p>
+
+<p>Mas d’ahi a dias, depois de o malvado embarcar para a America, por ter
+ficado muito arrastado com os gastos da justiça, appareceu em casa da
+viuva, já perto da noite, a tia Quiteria que tinha uma fazendinha na
+rocha, mesmo ao pé da outra por que o Gaspar Dutra e o Manoel Luiz
+andavam desavindos.</p>
+
+<p>A velha tomou de parte a Maria José e depois de obrigal-a a jurar que
+não diria nada a ninguem, em quanto ella fosse viva, contou-lhe toda a
+historia do crime. Estava perto do sitio, mas nem um nem outro a tinham
+visto.</p>
+
+<p>—O Gaspar Dutra é que começou a <i>abregoir</i>. O Manoel Luiz
+desesperou-se e disse-lhe uma má palavra.—Os santos estão no altar!—O
+outro poz-se fulo, correu para o Manoel e colhendo-o á falsa fé,
+tal geito lhe deu que o <i>prantou</i> pela rocha abaixo. O corpo a
+principio não levava muita força, mas depois caíu tão depressa, que
+nem uma bala de espingarda. Quando deu no chão da rocha, onde ficou
+estatelado e de braços abertos, vinha já de uma altura de tres ou
+quatro casas de sobrado. Rebentou-lhe de certo alguma coisa lá por
+dentro, tanto que o pobre do homem não disse mais palavra na meia hora
+que ainda viveu.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_154">[Pg 154]</span></p>
+
+<p>A Quiteria desculpou-se de se ter calado áquelle respeito, dizendo que
+o Gaspar Dutra e o irmão não eram <i>boas folhas</i>. Se o matador, por
+causa d’ella, fosse parar á costa d’Africa, o outro era muito capaz
+de lhe fazer alguma, que désse que falar. Era o Gaspar tão ruim, que
+andando embarcado tinha querido matar o cosinheiro de bordo, e levara
+n’essa occasião duas navalhadas, de que lhe resultou o signal em cruz,
+que tinha na barba, do lado esquerdo.</p>
+
+<p>O Antonio ouvira dezenas de vezes a mãe contar a historia, mas nunca
+tinha sentido tamanha amargura, um desejo tão furioso de vingança.</p>
+
+<p>Estivesse o pae ainda vivo e a mãe não precisaria de pedir esmola, e já
+elle teria ido para a America enriquecer, e não estaria alli a ganhar
+tão pouco.</p>
+
+<p>E lembrou-se do pae—das festas que elle lhe fazia quando vinha á noite
+para casa, seguido pela <i>Boníta</i>, a cadella de gado. Ceiavam, e o
+pequenito para adormecer queria sempre que o pae o deitasse no collo.
+O Manoel Luiz fazia-lhe a vontade, e mal o Antonio estava pegado no
+somno, despia-o todo, deitava-o na cama, com um cuidado, um carinho, de
+que nem a propria mãe seria capaz.</p>
+
+<p>Quando o pae morreu, o pequeno tinha oito annos. Mostrou pena, como se
+já fosse uma pessoa grande.</p>
+
+<p>N’aquella manhã renascia a dôr.</p>
+
+<p>A mãe com tanta precisão de dinheiro para matar a fome, e o filho tendo
+só um pataco que lhe dar!</p>
+
+<p>O mestre João era muito agarrado ao dinheiro e não lhe emprestaria
+nada.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_155">[Pg 155]</span></p>
+
+<p>Metteu a mão na algibeira, levou-a muito fechada até á mão direita da
+Maria José, e deixou-lhe a moeda entre os dedos, escondida. Beijou a
+mão da mãe e poz-se a chorar.</p>
+
+<p>N’isto a voz de João Cardoso, chamou de dentro imperiosamente:</p>
+
+<p>—Antonio! Ó Antonio!</p>
+
+<p>O rapaz entrou na loja, de corrida.</p>
+
+<p>Já lá estavam dois freguezes.</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>A concorrencia foi grande n’aquelle domingo.</p>
+
+<p>Todos queriam apresentar-se na missa conventual com a cara bem
+escanhoada, para que nada deslustrasse o fato de ver a Deus.</p>
+
+<p>João Cardoso, sem perder a presença de espirito, ia desbravando os
+matagaes incipientes que, por ausencia da navalha, tinham brotado
+n’aquella semana.</p>
+
+<p>Animou-se gradualmente a conversa. De um assumpto politico—a escolha
+do futuro regedor—saltou para o phylloxera, que tinha apparecido pouco
+antes n’uma vinha do Fayal.</p>
+
+<p>—Aquillo—opinava o Estacio Manuel—é pelos modos um bicho que come a
+raiz da cepa, como o caruncho roe a madeira, e o gusano o costado dos
+navios.</p>
+
+<p>—Bicho me pareces tu—atalhou o Amaro, do seu canto.—Se fosse bicho
+podia-se lá dizer que tinha apparecido uma nódoa d’elle!...</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_156">[Pg 156]</span></p>
+
+<p>—Nódoa?</p>
+
+<p>—É o que ainda agora li no <i>Fayalense</i>. Nódoa de bicho, não
+entendo.</p>
+
+<p>O Estacio não se deu por vencido:</p>
+
+<p>—É que as terras aonde elle chega ficam pretas como esses
+<i>mysterios</i>, que ahi temos por toda a ilha.</p>
+
+<p>O mestre barbeiro ensaboava, n’esta occasião, a cara do terceiro
+freguez; suspendeu a operação e voltando-se para o auditorio, exclamou
+sentenciosamente:</p>
+
+<p>—Sabem o que lhes digo? que se essa praga de nome tão arrevezado salta
+do Fayal para cá, adeus vinhas do Pico! É cada qual entrouxar a roupa e
+ala para <i>Bastão</i>!<a id="FNanchor_2" href="#Footnote_2" class="fnanchor">[2]</a></p>
+
+<p>Não tinham acabado ainda os applausos provocados pelo dito, quando
+entrou na loja um homem trigueiro, muito alto, largo de hombros e um
+tanto desmanchado no andar. Na orelha direita d’este colosso luzia
+uma arrecada lisa e pequena, e nos pulsos e nas costas das mãos
+alastravam-se, em prodiga tatuagem, ancoras e estrellas.</p>
+
+<p>O sino da egreja proxima tocou passados instantes, chamando para a
+missa. Era a terceira vez.</p>
+
+<p>Ficaram só dois freguezes na loja. Um, que o mestre começou a barbear,
+tinha ouvido a missa das almas. O outro, o da arrecada, coube ao
+Antonio, e não mostrou dar grande attenção ao chamar pressuroso do sino.</p>
+
+<p>No entretanto pelo largo batido de sol passavam azafamadas e alegres
+as raparigas do povo, com os lenços de chita, de pontas desamarradas,
+<span class="pagenum" id="Page_157">[Pg 157]</span>
+presos á cabeça somente pelos chapeus de palha de abas largas e copa
+baixa, cingida por um cordão de lã encarnada. Para ellas a missa
+não é só uma devoção, é o repouso, o esquecimento momentaneo de uma
+existencia monotona e trabalhosa.</p>
+
+<p>O Antonio não podia mais. Ainda bem que era aquelle o ultimo freguez!
+Depois da missa não viria mais nenhum. Não sabia como se tinha
+aguentado tanto tempo. O seu desejo era fugir d’alli, e, quando ninguem
+o visse, desatar a chorar desconsoladamente, para ver se lhe passava
+aquella ancia, que o affligia. Só por grande milagre não enchera de
+lanhos as caras dos freguezes. Felizmente aquella barba depressa se
+fazia. Não tinha menos de quinze dias, pouco resistia á navalha.</p>
+
+<p>O rapaz teve de repente um deslumbramento. Na face esquerda do homem
+que estava alli, nas mãos d’elle, havia um signal, que a principio se
+não podera ver, porque a barba o escondia, e que era exactamente egual
+ao do Gaspar Dutra: duas cicatrizes em cruz!</p>
+
+<p>Perguntou, com a voz algum tanto suffocada:</p>
+
+<p>—O senhor é cá do Pico?</p>
+
+<p>—Eu? Sou. E porque?...</p>
+
+<p>—É da Candelária?</p>
+
+<p>—Quem t’o disse?</p>
+
+<p>—Quiz-me parecer. E chama-se?...</p>
+
+<p>—Gaspar Dutra. Tens alguma herança para me entregar? Ha-de ter morrido
+muita gente minha, n’estes oito annos que estive na America.</p>
+
+<p>Não havia duvida.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_158">[Pg 158]</span></p>
+
+<p>O rapaz sentiu nos ouvidos um zumbido ensurdecedor, faltou-lhe a vista,
+passou-lhe um calafrio por todo o corpo. Devia ser assim a approximação
+da morte!</p>
+
+<p>Tornou a encarar toda a sua desgraça. Exerceu, porém, um esforço
+violento sobre si mesmo, e serenou apparentemente.</p>
+
+<p>O Gaspar não suspeitou de nada. Via-o de costas, afiando a navalha. Por
+fim disse-lhe de repellão:</p>
+
+<p>—Anda! Acaba com isto!</p>
+
+<p>—Sim, senhor...</p>
+
+<p>—Tu estás parvo! bradou-lhe o mestre, do outro lado da loja, sem
+largar a cara, que já tinha meio rapada.</p>
+
+<p>O aprendiz poz machinalmente mais sabão na barba do freguez.</p>
+
+<p>—És da Candelária? continuou este. Conheces lá muita gente?</p>
+
+<p>—Conheço... Conheço a Maria José, viuva do Manoel Luiz... O senhor
+conhece-a?</p>
+
+<p>E os olhos, que se fitavam no fio da navalha virado para a garganta do
+Gaspar, levantaram-se n’uma interrogação anciosa.</p>
+
+<p>—Olá se conheço! E tambem conheci o marido... Um grande marau!</p>
+
+<p>O Antonio teve um espasmo. Os nervos contrahiram-se-lhe medonhamente,
+e o gume do aço cortou bem fundo no pescoço bronzeado do assassino,
+abrindo uma ferida alongada, de onde o sangue espadanou com violencia.</p>
+
+<p>O Gaspar ainda ergueu os braços, soltou um arranco, estrebuxou e caíu
+<span class="pagenum" id="Page_159">[Pg 159]</span>
+de lado, no chão. Na toalha, presa por baixo da barba, o sangue formava
+uma larga mancha vermelha, que se foi extendendo a mais e mais.</p>
+
+<p>João Cardoso e o outro homem, extaticos, boquiabertos, transidos de
+pavor, não ousavam approximar-se. Por fim, em quanto o freguez corria
+para a porta a gritar «Aqui d’el-rei!», o mestre, vendo a navalha caída
+no chão, chegou-se ao pequeno, que estava de parte, todo a tremer, e a
+olhar com espanto para aquella massa enorme agitada pelas convulsões da
+agonia.</p>
+
+<p>Agarrou-o por um braço e perguntou-lhe:</p>
+
+<p>—Que foi isto, <i>grandessissimo</i> diabo?</p>
+
+<p>E o Antonio, a gaguejar, como um bebedo:</p>
+
+<p>—Foi ... foi elle ... que matou meu pae!</p>
+
+<figure class="figcenter" id="i026" style="width: 200px;">
+ <img src="images/i026.jpg" width="200" height="65" alt="decorative">
+</figure>
+
+
+<hr class="chap x-ebookmaker-drop">
+
+<div class="chapter">
+<figure class="figcenter" id="i027" style="width: 200px;">
+<img src="images/i027.jpg" width="200" height="49" alt="decorative">
+</figure>
+</div>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_161">[Pg 161]</span></p>
+<h2 class="nobreak" id="A_Allema">A Allemã</h2>
+
+
+<img alt="F" class="drop-cap" height="388" src="images/drop-f.jpg" width="200">
+<p class="nind"><span class="upper-case">FOI</span>
+ha bastantes annos que a vi pela primeira vez.</p>
+
+<p>Loução e garrido, balouçava-se brandamente na enseada do Funchal o
+<i>Maria Pia</i>, vapor da carreira de Lisboa, e rodeado ainda por um
+enxame de botes, que tinham levado para bordo passageiros e bagagens,
+apromptava-se para deixar, depois de uma visita de tres dias, a
+denominada <i>Flôr do Oceano</i>.</p>
+
+<p>Eu, debruçado na amurada, e já amargurado pela saudade, seguia
+tristemente com a vista um barco que, aproado á terra, ia tornando cada
+vez maior a distancia que começava a separar-me dos unicos entes a quem
+prezava no mundo.</p>
+
+<p>Estava, havia não sei quanto tempo, n’esta contemplação, quando
+attentei n’outro bote, que, fazendo força de remos, demandava
+rapidamente o vapor, apesar de o tiro da partida ter já de ha muito
+<span class="pagenum" id="Page_162">[Pg 162]</span>
+resoado pelas fragas que bordam a Madeira.</p>
+
+<figure class="figcenter" id="i028" style="width: 700px;">
+<img src="images/i028.jpg" width="700" height="708" alt="Uma mulher com um vestido longo, um chapéu adornado e com um véu cobrindo parte do seu rosto, está sentada em uma poltrona, com o olhar voltado para a esquerda e para baixo. O cenário mostra que ela está em um navio, onde se vislumbra uma fortaleza no mar.">
+</figure>
+
+<p>Não tardou que atracasse ao navio, e momentos depois entrava para o
+convez uma senhora com o rosto tapado por um veu cinzento, e amparada
+por dois sadios filhos da ilha, em quem reconheci dois <i>homens
+de rede</i>, os quaes tamanho serviço alli prestam aos tisicos,
+transportando-os n’aquelle commodo descanso, tão predilecto dos
+creoulos e de todos os que habitam as regiões tropicaes.</p>
+
+<p>Conduziram-a para uma cadeira de vimes, que já estava disposta com
+<span class="pagenum" id="Page_163">[Pg 163]</span>
+segurança no meio da tolda, do lado da camara de primeira classe, e ahi
+a depuzeram com delicadeza á primeira vista pouco consentanea com o
+exterior um tanto rude d’aquella pobre gente.</p>
+
+<p>Feitos os ultimos preparativos para a partida, poz-se o vapor em
+movimento, aproado a leste, e cortando veloz as mansas aguas da enseada.</p>
+
+<p>Tres horas, talvez, estive a fitar, primeiro as encostas accidentadas
+e verdejantes da ilha, que fugiam rapidas para o lado do occidente, e
+depois os pincaros abruptos, que coroam aquella enorme massa vulcanica,
+e que cada vez se iam tornando menos distinctos, já assumindo uma côr
+entre parda e azulada, já assimilhando-se a nuvem que mal sobrepujava a
+superficie do oceano, até que finalmente se occultaram de todo.</p>
+
+<p>E eu, ancioso de rasgar com a vista o horisonte para ver uma vez ainda
+os que deixára, e enviando-lhes um ultimo adeus na vaga que passava
+fugaz ao lado do navio, voltei-me para dentro, triste e desanimado,
+como quem de repente se encontra só na vida.</p>
+
+<p>Foi então que a pude ver.</p>
+
+<p>Imagine-se, por um momento, uma d’aquellas divindades esquivas e
+vaporosas, de que a phantasia dos bardos do norte povoa os lagos e as
+florestas: a mulher que eu tinha deante de mim era mais ligeira, mais
+diaphana do que essas creações imaginarias. Á ultima claridade da tarde
+observei-a detidamente.</p>
+
+<p>O rosto era de um esplendor lacteo, de uma transparencia de
+<span class="pagenum" id="Page_164">[Pg 164]</span>
+alabastro; se bem que emmagrecido pela doença, ainda ostentava o typo
+septentrional, em toda a sua formosura e pureza.</p>
+
+<p>Contrastando com a pallidez morbida, desenhavam-se-lhe nas faces as
+rosas purpurinas e terriveis da tisica.</p>
+
+<p>Nos olhos, do azul mais puro, tristes e resignados, havia uma vaga
+aspiração para as espheras brilhantes e luminosas, uns reflexos de além
+do tumulo.</p>
+
+<p>Recostada languidamente nas almofadas que estofavam a cadeira, e com a
+cabeça, aureolada de finissimos cabellos louros, descahida para traz,
+olhava para o mar, com a indifferença e melancholia de quem perdeu de
+todo a esperança.</p>
+
+<p>De quando em quando, uma tosse pertinaz fazia arfar-lhe o peito, e por
+momentos, se bem que rapidos, transmudava-lhe a expressão do semblante,
+de serena em dolorosa.</p>
+
+<p>N’outra qualquer occasião ter-me-hia despertado interesse, mas então
+impressionou-me mais vivamente do que nunca, aquella mulher, moça,
+bella, e, na apparencia, tão gravemente enferma, que não tinha a seu
+lado um parente, um amigo, um enfermeiro sequer.</p>
+
+<p>Os passageiros, que o enjôo não obrigára a recolher aos beliches,
+passavam perto d’ella com indifferença, e sómente o capitão se lhe
+acercou uma vez, a perguntar-lhe se não julgava melhor descer para a
+camara.</p>
+
+<p>—Melhor! respondeu ella em francez e com sorriso entre amargo e
+benevolente. Aqui ao menos tenho este ar tão puro. Prefiro ficar.
+<span class="pagenum" id="Page_165">[Pg 165]</span>
+Obrigada!</p>
+
+<p>E deixando caír novamente a cabeça na almofada, voltou á primitiva
+immobilidade.</p>
+
+<p>Quando desci á camara, á hora da ceia, não pude esquivar-me a perguntar
+ao capitão informações a respeito da desconhecida.</p>
+
+<p>Eis o que elle sabia:</p>
+
+<p>Viera no anno antecedente da Allemanha, sua patria, em companhia
+de um irmão, buscar ao clima benefico da Madeira allivio para os
+soffrimentos, que os medicos do seu paiz não tinham sabido debellar e a
+que prophetisavam até um proximo e fatal desenlace.</p>
+
+<p>As sinistras previsões scientíficas realisaram-se, porém com uma
+differença: a victima não foi ella, mas o irmão, que ferido de
+morte subita, a deixou só n’uma terra de estranhos, e apavorada
+com o pensamento de ver-se, na derradeira hora, cercada apenas de
+indifferentes e mercenarios.</p>
+
+<p>Estar alli nem mais um momento!</p>
+
+<p>Partia pois, esperançada em ter ainda vida bastante, mercê de Deus,
+para voltar ao que por tanto tempo aprendera a amar: ia morrer nos
+braços da mãe.</p>
+
+<p>Ás dez horas voltei para o convez.</p>
+
+<p>Era uma noite de agosto, limpida e sem lua; mal soprava uma leve
+aragem, que ia a pouco e pouco dispersando os rolos do fumo que o vapor
+deixava após si.</p>
+
+<p>As estrellas reverberando nas ondas inquietas, afiguravam-se, á vista
+illudida, de outros tantos luzeiros fluctuantes na massa fluida.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_166">[Pg 166]</span></p>
+
+<p>O silencio imponente da solidão era perturbado apenas pelas pancadas
+cadenciadas do helice, e pelo rumorejar surdo da agua em torno do navio.</p>
+
+<p>E em redor tudo immenso: a amplidão etherea e a vastidão dos mares,
+o infinito e o seu espelho, como disse madame de Staël. E devassando
+os arcanos da natureza, e affrontando-lhe a soberania, o homem, só e
+illuminado pelo seu genio, deixando escripta na esteira do navio a
+divisa do progresso.</p>
+
+<p>Logo que os olhos se me habituaram á meia obscuridade que reinava no
+convez, descobri-a de novo no logar onde a tinha deixado.</p>
+
+<p>Nem eu sei dizer a tristeza que se apossou de mim.</p>
+
+<p>Tornava para os seus, porém elles, em vez da alegria que traz sempre a
+volta d’um parente querido, teriam a expectação fatal d’uma desgraça
+eminente.</p>
+
+<p>A mãe, ao apertar ao seio a filha, ao cobrir-lhe o rosto de beijos,
+sentiria na ardencia da febre que lhe devorava a vida da sua vida, os
+amplexos antecipados da mortalha.</p>
+
+<p>E aos vinte annos!... Era bem cedo para morrer, como, da meiga virgem
+de Procida, diz o poeta das <i>Meditações</i>.</p>
+
+<p>Ao menos, triste consolação! uma vez arrebatada á vida, mão amiga e
+carinhosa iria depôr-lhe sobre a campa as coroas votivas da saudade, e
+a mesma brisa, que lhe brincara com os cabellos de creança, perpassando
+por entre os cyprestes, levar-lhe-hia, nas azas perfumadas, os suspiros
+dos que a choravam.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_167">[Pg 167]</span></p>
+
+<p>Dois dias depois chegámos a Lisboa.</p>
+
+<p>Perdi-a de vista ao desembarcar, mas nem por isso a esqueci; e mais
+tarde, nas horas de melancholia, não poucas vezes aquella mulher, antes
+visão que realidade, vinha, circumdada de uma aureola de triste poesia,
+pousar-me docemente na imaginação.</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>São passados sete annos e com elles quantas illusões!...</p>
+
+<p>Entremos por momentos na alfandega de Lisboa.</p>
+
+<p>Na casa das bagagens vae um borborinho indescriptivel: os passageiros,
+chegados ha pouco da Madeira, no <i>Maria Pia</i>, e do Brazil, não
+sei em que paquete, reclamam com instancia a propriedade; os fiscaes
+impacientam-se; as malas e os bahus fecham-se ruidosamente, depois de
+examinados pelas vistas prescrutadoras dos aduaneiros; os carros de mão
+giram velozes sobre o asphalto; os sinetes, molhados em tinta azul,
+percutem sem cessar os disticos de cada lote...</p>
+
+<p>Eu, á busca d’um amigo a quem esperava, ia correndo os grupos, já meio
+desorientado pela confusão, quando sons ainda mais discordantes me
+vieram ferir os ouvidos.</p>
+
+<p>Junto de mim, discursava-se com animação, n’aquella lingua que, segundo
+já alguem disse, qualquer póde falar mettendo um fio de retroz na
+garganta, e que o auctor do <i>Fausto</i>, com o melhor fundamento,
+<span class="pagenum" id="Page_168">[Pg 168]</span>
+poz na bocca do diabo.</p>
+
+<p>Volto-me, para ver quem vinha juntar o seu allemão áquelle motim
+destemperado, e vejo...</p>
+
+<p>Quem ha ahi que não conheça as milagrosas propriedades nutritivas
+attribuidas ao medicamento, que tem o nome de uma famigerada cortezã
+franceza, e que tão apregoado foi pelos jornaes das cinco partes do
+mundo?</p>
+
+<p>Pois era <i>ella</i>, a allemã ... depois de ter tomado a revalescière
+Dubarry.</p>
+
+<p>A principio descri dos sentidos.</p>
+
+<p>Admittia-se porventura que o ente ideal e vaporoso qual ondina do
+nevoeiro, que eu entrevira n’outro tempo, se houvesse transformado no
+que eu tinha deante de mim!</p>
+
+<p>Mas não havia que duvidar.</p>
+
+<p>O rosto era o mesmo, embora á transparencia alabastrina e ás rosas
+da tisica tivesse succedido ... como hei de dizel-o?... o adipe
+abundante e as côres sádias da robustez. A cabeça, em vez de
+reclinada morbidamente, conservava-se levantada e vivaz. A fraqueza
+de valetudinaria transformara-se em fortaleza, que faria inveja ás
+nossas matronas de Diu, de que fala Jacintho Freire, ou a um soldado do
+imperador Guilherme.</p>
+
+<p>Eu estava indignado!</p>
+
+<p>Scismara sete annos n’aquella mulher, enterrara-a, recitara-lhe nénias
+sobre a sepultura, para um dia,—oh! prosa da vida!—ousar apparecer-me
+sã, robusta, a vender saude.</p>
+
+<p>Era quasi uma abominação, um crime de leso-ideal; quanto melhor não
+<span class="pagenum" id="Page_169">[Pg 169]</span>
+fôra que tivesse morrido!</p>
+
+<p>Mas ainda eu não disse tudo.</p>
+
+<p>Dava o braço a um allemão (era-o, com certeza!) de barba loura, e
+seguiam-a duas creanças louras, uma ao collo, outra pela mão d’uma
+creada tambem loura.</p>
+
+<p>Tudo louro!</p>
+
+<p>Não quiz ver mais nada, e saí precipitadamente da alfandega,
+amaldiçoando o sentimentalismo, as allemãs e o cabello louro.</p>
+
+<figure class="figcenter" id="i029" style="width: 70px;">
+<img src="images/i029.jpg" width="200" height="70" alt="decorative">
+</figure>
+
+
+<hr class="chap x-ebookmaker-drop">
+
+<div class="chapter">
+<figure class="figleft" id="i030" style="width: 400px;">
+<img src="images/i030.jpg" width="400" height="305" alt="Um homem está na areia de uma praia com o braço esquerdo erguido quando vislumbra um outro homem ao mar aparentemente sendo atacado por um animal marinho.">
+</figure>
+</div>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_171">[Pg 171]</span></p>
+<h2 class="nobreak" id="O_Marraxo"><i>O Marraxo</i></h2>
+
+
+<p>Um calor de rachar pedras, quanto os quatro rapazes descansaram do
+trabalho. Já na vespera á tarde se tinha annunciado a léstia pelos tons
+vermelhos do horisonte para as bandas do nascente.</p>
+
+<p>Os ricos e remediados podiam fugir-lhe, mettendo-se em casa, com as
+portas e as janellas bem fechadas; mas elles, coitados!...</p>
+
+<p>Cá fóra chegavam a toda a parte as breves lufadas do vento abrasado
+do Sahara, que parecia não ter perdido um atomo da sua ardencia com o
+atravessar centenas de leguas do Atlantico, desde a costa de Africa até
+á pequena ilha do Porto Santo. N’aquelle ambiente de forno, as plantas
+mirravam-se de tal sorte, que se alguem apertasse entre os dedos as
+folhas mais tenues, facilmente as reduziria a pó.</p>
+
+<p>Mas o mar ficava a dois passos do logar do trabalho.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_172">[Pg 172]</span></p>
+
+<p>—Que rico banho, graças a Deus! pensavam os quatro.</p>
+
+<p>Atravessaram de corrida o areal a escaldar, e foram-se despir á sombra
+de uma saliencia de rocha, junto ao Penedo do Somno.</p>
+
+<p>Na extensa praia que borda o sul da ilha, o ar, como ao de cima de uma
+fogueira, trepidava rarefeito. Augmentava-se ainda mais a impressão
+do calor, com os offuscantes clarões d’aquella areia amarella e
+fina. Ninguem podia respirar, nem que fosse até lá acima, ao pico do
+Castello, que muito no alto, ao noroeste, desenhava no ceo baço e
+pardacento o perfil regular da sua pyramide.</p>
+
+<p>O mar estava alli ao pé. Todo frescura, espreguiçava-se na praia,
+encrespado pelo sopro da léstia: ao largo, porém, com o sol
+dardejando-lhe a pino, lembrava um extenso e irrequieto lençol de metal
+fundente.</p>
+
+<p>—Sabem vocês uma coisa? disse um dos quatro. A modos que o mar tambem
+está encalmado!</p>
+
+<p>E a rir do proprio dicto, o José desceu até ao mar, molhou a mão
+direita e benzeu-se devotamente.</p>
+
+<p>Os outros fizeram o mesmo, e investiram para a agua todos a um tempo,
+no meio de cachões de espuma, e soltando guinchos com a repentina
+impressão do frio.</p>
+
+<p>O Francisco seguido por mais dois nadou para fóra, mas o José, que no
+mar nunca tinha sido afoito, deixou-se ficar no sitio onde quebravam as
+ondas. A agua nem lhe dava pela cintura.</p>
+
+<p>—Larga-te d’ahi, calaceiro! berrou o Antonio, ao vel-o na occasião em
+que virava rapidamente a cabeça, para sacudir da testa os cabellos
+<span class="pagenum" id="Page_173">[Pg 173]</span>
+gotejando agua.</p>
+
+<p>—Vá quem quizer, que eu cá tenho pouco folego.</p>
+
+<p>—Ah! Tu não vens? Eu já te vou escarmentar.</p>
+
+<p>Mergulhou, e reappareceu ao cabo de poucos segundos: trazia na mão uma
+pedra de cal e atirou-a para o José.</p>
+
+<p>—Ah! Vocês querem fazer-me <i>reinar</i>? disse este ultimo, deveras
+amuado, e correu para o logar onde estava a roupa. Tirou a agua da
+cabeça passando-lhe a mão com força, enfiou a camisa e veiu enxugar á
+torreira do sol, empoleirado no rochedo que avançava pelo mar dentro.</p>
+
+<p>A umas cem braças de terra, os outros voltaram para traz. Não eram
+da mesma força a nadar e por isso vinha mais fóra o Francisco, logo
+adiante o Antonio e na frente de todos o Luiz.</p>
+
+<p>Com a mão direita estendida sobre os olhos, á guisa de pala, e
+segurando com a outra a fralda da camisa, que o leste sacudia, o José
+seguia os movimentos dos amigos com olhares invejosos.</p>
+
+<p>Mas o que viu elle subitamente?...</p>
+
+<p>Atraz do Francisco, a umas quatro ou cinco braças a agua mexia-se, e
+divisava-se como que uma sombra escura seguindo os banhistas.</p>
+
+<p>—O que seria aquillo?</p>
+
+<p>Mal tinha formulado mentalmente a pergunta, deu um grito fortissimo.</p>
+
+<p>Ao de cima da agua avistava-se distinctamente uma galha escura e
+delgada.</p>
+
+<p>—É um marraxo!</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_174">[Pg 174]</span></p>
+
+<p>Tremulo de medo, bracejando muito, desatou a chamar os outros, com
+gritos entrecortados.</p>
+
+<p>O Luiz, que se tinha deitado de costas para descansar, ouviu-o e olhou
+na direcção que os gestos indicavam. Como descobriu a galha do tubarão,
+bradou logo:</p>
+
+<p>—Nada com ancia, Francisco, nada com ancia, e não pares!... E tu
+tambem, Antonio!... Olhem o que vem lá atraz!</p>
+
+<p>O Francisco voltou a cabeça e passou-lhe pelo corpo um arrepio, como se
+a agua tivesse gelado de repente.</p>
+
+<p>Em quanto elle nadasse—estava farto de o saber—o marraxo não atacava,
+porque não pode morder sem parar primeiro e virar-se, a fim de voltar
+para cima a bocca immensa, armada com sete ordens de dentes cortantes
+como aço!</p>
+
+<p>E acudiu-lhe á memoria o triste fim d’aquelle rapaz, que um marraxo
+rolara pelo meio, ao pé do ilheo da Cal.</p>
+
+<p>Mais rapidos que as ideias que lhe estuavam no cerebro, só os
+movimentos que fazia nadando, e que, desordenados, o iam extenuando a
+mais a mais.</p>
+
+<p>Um dos companheiros havia no entretanto chegado a terra.</p>
+
+<p>Como é que o terrivel animal o não tinha já alcançado?... Devia estar
+quasi a tocar-lhe nos pés!... Não tardava a rilhar-lhe os ossos!...</p>
+
+<p>Perguntassem-lhe se preferia que um raio o fulminasse, a continuar
+n’aquella agonia tremenda, e pediria que no ceo limpido, testemunha
+impassivel da tragedia, se formasse de prompto uma nuvem de
+<span class="pagenum" id="Page_175">[Pg 175]</span>
+tempestade, para lançar-lhe a fita de fogo, que o matasse
+instantaneamente.</p>
+
+<p>Já não podia mais. O coração batia-lhe no peito, como se quizesse
+arrombar-lh’o.</p>
+
+<p>Tambem já tinha chegado á praia o João.</p>
+
+<p>—Só para elle estava guardada aquella morte horrenda!...</p>
+
+<p>O José lembrou-se de que no sitio onde se despiram tinham visto um
+madeiro roliço, que parecia resto de um mastro. Correu a buscal-o.
+Despiu a camisa e amarrou-lh’a bem, pelas mangas. Sobre o penedo e com
+o corpo inclinado para o mar, não perdia de vista o perseguido nem o
+perseguidor.</p>
+
+<p>O Francisco já podia tomar pé, mas fazia bem continuando a nadar,
+pois o maior perigo estava exactamente no instante em que parasse, e
+assentasse os pés no fundo, para desatar a fugir.</p>
+
+<p>Ia o Luiz atirar uma pedra ao tubarão, mas o José prohibiu-lh’o com um
+gesto imperioso, e bradou:</p>
+
+<p>—Nada sempre, ó Francisco, e não tenhas medo!</p>
+
+<p>Um pouco debruçado do penedo, acompanhava com os olhos esgazeados os
+movimentos do peixe, tal qual o trancador de baleias no momento de
+arpoar. Mas o banhista chegou á babugem da maré e logo o madeiro caíu
+entre elle e o marraxo.</p>
+
+<p>—Foge, Francisco! bradaram-lhe os tres, como se fosse preciso o
+conselho.</p>
+
+<p>Vendo caír-lhe diante e estacionar ao lume da agua aquella massa
+branca, o marraxo voltou-se e fincou-lhe os dentes com ancia.</p>
+
+<p>—Ahi podes tu morder, cachorro! gritou-lhe o João. Surriada!</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_176">[Pg 176]</span></p>
+
+<p>E contentissimos, os tres atiravam-lhe pedras, em quanto o Francisco se
+deixou caír na praia, extenuado e offegante.</p>
+
+<p>Sem dar pela aggressão, o enorme esqualo queria desforrar-se do logro
+estracinhando a madeira, mas como a areia já lhe penetrava nas guelras,
+mudou de rumo e dirigiu-se para o largo, a galha escura surgindo sempre
+ao lume de agua.</p>
+
+<p>Desde aquelle dia o Francisco, por mais calor que fizesse, nunca mais
+se metteu no mar.</p>
+
+<figure class="figcenter" id="i031" style="width: 200px;">
+ <img src="images/i031.jpg" width="200" height="86" alt="decorative">
+</figure>
+
+
+<hr class="chap x-ebookmaker-drop">
+
+<div class="chapter">
+<figure class="figcenter" id="i032" style="width: 1200px;">
+<img src="images/i032.jpg" width="1200" height="723" alt="Um homem deitado no chão, com o braço direito erguido na direção do rosto e com o chapéu a cair, exclama de dor ao ser atingido por uma avalanche de pedras, uma das quais já atingiu a sua perna direita.">
+</figure>
+</div>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_177">[Pg 177]</span></p>
+<h2 class="nobreak" id="O_Pae_Do_Jacintho">O Pae Do Jacintho</h2>
+
+
+<img alt="E" class="drop-cap" height="319" src="images/drop-e.jpg" width="200">
+<p class="nind"><span class="upper-case">EU</span>
+estava debruçado no mainel da ponte, por onde se entra na quinta do
+Jardim da Serra.</p>
+
+<p>Pelo ambiente volitavam effluvios perfumados, vivificantes. O sol, em
+jorros de luz, animava todo o valle, onde se repercutia sem cessar
+o chilro atroador dos passaros empoleirados pelos castanheiros e
+carvalhos, e o murmurio do ribeiro, que formava cascata junto á quinta,
+para continuar depois serpeando mansamente por entre a penedia musgosa.</p>
+
+<p>O tilintar dos chocalhos do gado, que pastava na encosta visinha, ou as
+vozes das lenhadoras cantando pelo caminho do Curral, misturavam por
+vezes áquelles sons, uma nota melancholica e destacada.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_178">[Pg 178]</span></p>
+
+<p>De fitar a agua fugitiva ia-me penetrando da suave frescura, que
+emanava das profundezas do leito escuro da corrente, e ao mesmo tempo
+alentava-me a perenne vida, que palpitava em toda a natureza aos beijos
+do sol deslumbrante.</p>
+
+<p>Senti uns passos ligeiros, como que medrosos, perto de mim, na ponte.</p>
+
+<p>Era o Jacintho. Vinha com elle um velho—o pae.</p>
+
+<p>Na vespera, quando saí do Funchal tinha visto o cabo surgir ao meu
+lado, vestido á paisana e disposto a acompanhar a pé o cavallo que eu
+montava.</p>
+
+<p>—Vaes de licença?</p>
+
+<p>—Saberá V. S.<sup>a</sup> que sim, por um mez. Eu sou de ao pé da quinta para
+onde V. S.<sup>a</sup> vae passar estes dias, e já agora sigo aqui ao lado de V.
+S.<sup>a</sup>, se V. S.<sup>a</sup> me dér licença.</p>
+
+<p>E o cabo, sem parar no dispendio das senhorias, não deu parte de fraco
+durante o passeio de tres leguas, não ficando nem um instante para
+traz do picarso, por mim alugado na rua da Queimada para a encantadora
+digressão.</p>
+
+<p>Cicerone consciencioso, não omittiu o nome de nenhum dos
+<i>demeraristas</i>, que tinham comprado terras á beira da estrada.
+Via-se que a Guyana ingleza fôra para elles um verdadeiro Brazil, ao
+contemplar as casas brancas, quasi todas com <i>venezianas</i>, de que
+estavam povoados os terrenos adquiridos.</p>
+
+<p>Antes de me dizer adeus, pediu-me licença para, no dia seguinte, me
+apresentar o pae.</p>
+
+<p>Coitado! Via em mim, pobre capitão de caçadores, um potentado, o que
+<span class="pagenum" id="Page_179">[Pg 179]</span>
+quer que fosse de superior e intangivel, principalmente estando eu alli
+perto da casa d’elle, e entendia honrar sobremodo o auctor dos seus
+dias dando-lhe conhecimento commigo.</p>
+
+<p>Por isso me appareciam ambos n’aquella esplendida manhã de julho.</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>Ainda rijo, o velho. Encostado a um bordão, com a camisa alva de neve a
+saír por baixo do collete, botas e calças brancas, a carapuça na mão,
+fitava em mim uns olhinhos curiosos e sorria parvamente, á espera de
+que o filho m’o apresentasse.</p>
+
+<p>—Saiba V. S.<sup>a</sup> que aqui está o meu pae, disse o cabo.</p>
+
+<p>O velho então ganhou desembaraço e pouco tardou em contar-me toda a
+sua vida. Em certos pontos interrompia a narração para mirar o filho,
+extatico, embevecido, como se mal acreditasse que o pequenito doente e
+franzino de quinze annos antes, se tivesse feito aquelle rapagão cheio
+de robustez e capaz de vender saude.</p>
+
+<p>—O que me tem dado muitas <i>freimas</i>, sr. capitão, é elle estar
+longe de mim. Nunca sei o que lhe terá acontecido ou póde vir a
+acontecer. Demais, aqui, ao <i>meu pé</i>, sempre me ajudava... Se
+por força tinha de saír da minha companhia, então que embarcasse para
+Demerara. Lá ao menos podia enriquecer.</p>
+
+<p>—Ou já teria morrido, objectei.</p>
+
+<p>E tratei de fazer-lhe comprehender o que ha de nobre no serviço
+militar, e quanto é culpado quem pretende fugir-lhe; mas o velho
+<span class="pagenum" id="Page_180">[Pg 180]</span>
+abanou a cabeça, e teimou em não se deixar convencer, a despeito da
+approvação, que os gestos do filho estiveram a dar-me constantemente.</p>
+
+<p>Lembrei-lhe que o Jacintho, que saíra cabo alguns dias atraz e já
+mandava em praças mais antigas, era muito estimado pelos superiores, e
+disse-lhe até que d’aquella massa é que se faziam os officiaes como eu.</p>
+
+<p>Não resistiu. Iam-se-lhe os olhos no seu rapaz.</p>
+
+<p>Por cima d’aquellas faces, que os frios e as soalheiras tinham crestado
+e a velhice cortava de rugas, mas onde brilhavam ainda as rosas da
+saude, correram duas lagrimas de satisfação.</p>
+
+<p>—O filho do Manoel de Jesus ainda está em soldado? perguntou elle ao
+Jacintho.</p>
+
+<p>—Está e estará, respondeu este, com ufania. Se não sabe ler!...</p>
+
+<p>—Deveras! Então sempre serviu d’alguma coisa o que fiz por via de ti.
+Lembras-te?</p>
+
+<p>A instancias minhas, referiu-me a commovente historia do seu amor de
+pae—como tinha conseguido que o filho aprendesse a ler e a escrever.</p>
+
+<p>A escola era muito longe, e elle, receioso de que o pequenito, que
+devia andar pelos seus seis annos, cansasse pelo caminho, acompanhava-o
+sempre, antes de ir para o trabalho, pelas manhãs asperas e geladas,
+quando o vento norte soprava rijamente, mais cortante do que navalhas.
+O Jacintho, em muitas occasiões, desatava a choramigar, dizendo que não
+sentia os pés e que já não podia dar passada. Então elle pegava-lhe ao
+collo, descalçava-o, desabotoava o peitilho da camisa, e aconchegava
+<span class="pagenum" id="Page_181">[Pg 181]</span>
+ao calor do corpo os pésinhos inteiriçados com o frio. Quantas vezes
+sentiu cãibras no estomago, dôres muito finas, depois d’aquelle
+contacto regelador!... Mas nem por isso arredava a creancinha, que ia
+inclinando vagarosamente a cabeça para o hombro do pae, até que por fim
+adormecia. Ao cabo de dois annos de escola, o Jacintho, «como tinha boa
+<i>mimoira</i>», já sabia ler por cima.</p>
+
+<p>—E não <i>havera</i> de ser enganado, como eu tenho sido e hei de
+continuar a ser! rematou o velho, sentenciosamente.</p>
+
+<p>Encareci-lhe com enthusiasmo o seu admiravel procedimento, porém elle
+recusou ingenuamente o elogio:</p>
+
+<p>—Não faz mingua o senhor dizer tantas coisas. Se isto é o meu
+sangue!...</p>
+
+<p>E pronunciava estas palavras, envolvendo o filho n’um olhar de ternura
+infinita, como as aves envolvem em macio frouxel os seus pequeninos
+implumes, na meiga concavidade dos ninhos.</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>Foi isto pouco mais ou menos—áparte a fórma—o que me contou o
+Silveira. Até aqui, tinha tido na voz uma suavidade, que sobremaneira
+contrastava com o aspecto marcial e severo da sua physionomia.</p>
+
+<p>Remexeu-se na cadeira, saccudiu a cinza do charuto, puxou o bonnet
+<span class="pagenum" id="Page_182">[Pg 182]</span>
+para a testa e acabou assim a narração do caso:</p>
+
+<p>Quatro annos depois, ainda eu pertencia a caçadores 12. O Jacintho, já
+na reserva, tinha casado e morava á ilharga da praça do peixe, que como
+sabes fica sobre o Calhau.</p>
+
+<p>Com um dinheiro ganho pela mulher nas casas onde tinha servido,
+puzeram um botequim. A freguezia começou logo a acudir numerosa, pois
+que o rosto alegre e bonito da dona do estabelecimento era magnifico
+chamariz. De mais a mais a Rita arranhava o inglez, e d’este modo
+conseguia que a loja fosse preferida pelos marinheiros britannicos,
+excellentes consumidores de «bebidas de guerra».</p>
+
+<p>O velho assistiu ao casamento do filho e voltou para o Estreito de
+Camara de Lobos. Com os seus sessenta e cinco annos bem puxados, ainda
+mourejava de sol a sol. Um dia, em que andava trabalhando perto de uma
+pedreira, ouviu o grito de: «Lá vae fogo!» annunciando a explosão da
+<i>broca</i>. Como devia haver mais duas advertencias eguaes áquella,
+não se apressou muito. Quando pousou o picão em terra, ouviu a segunda.
+Correu para fugir a algum pedaço de rocha, que a polvora explodindo
+arremessase a distancia, mas contou demasiado com a ligeireza das
+pernas e caíu. A <i>broca</i> rebentou, depois do terceiro aviso
+do bota-fogo, e um grande penedo veiu apanhar o pae do Jacintho, e
+partiu-lhe uma perna e um braço.</p>
+
+<p>Levado n’uma rêde para a cidade, o pobre entrou no hospital da
+Misericordia e alli esteve tres mezes e meio.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_183">[Pg 183]</span></p>
+
+<p>A principio o filho, umas vezes só, outras com a mulher, ia vel-o
+quasi todos os dias, e carpir a desgraça do pae. Mas as visitas foram
+rareando.</p>
+
+<p>—Se elle tem a vida tão apensionada! desculpava entre si o doente.</p>
+
+<p>Nos ultimos tempos nenhum dos dois appareceu por lá.</p>
+
+<p>Quando lhe deram alta, o velho estava aleijado.</p>
+
+<p>A uns enfermeiros que o lamentavam, de o verem sair do hospital
+coxeando e arrimado ao bordão, respondeu cheio de confiança:</p>
+
+<p>—Isso era bom, se eu não tivesse o meu filho!</p>
+
+<p>Appareceu-lhe em casa inopinadamente. Não o receberam mal, e até lhe
+mostraram agrado, em quanto elle não se explicou.</p>
+
+<p>Depois do jantar, abriu-se com o Jacintho e a nora. Assim aleijado, não
+poderia fazer nenhum trabalho: por consequencia voltar para o Estreito
+e morrer de fome, vinha tudo a dar na mesma. O Jacintho olhou a medo
+para a mulher, que se tinha tornado muito vermelha, e fincava os olhos
+no tecto.</p>
+
+<p>Por isto não deu o velho, mas notou que o filho, ao offerecer-lhe a
+casa logo depois, gaguejava e parecia quasi não saber o que estava
+dizendo. Assaltou-o uma suspeita:</p>
+
+<p>—Seria pesado ao Jacintho?</p>
+
+<p>A resposta indecisa dada por este e o silencio pertinaz da nora,
+explicaram-lhe tudo.</p>
+
+<p>—Está bom rapaz! Que queres? Julguei que vivias mais desembaraçado.
+Volto para a nossa freguezia. Sempre lá me hei-de arranjar. Fica-te com
+Deus, filho, fica-te com Deus!</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_184">[Pg 184]</span></p>
+
+<p>Agarrou-se a elle, beijou-o muito e saiu pela porta fóra, arrastando
+ainda mais da perna aleijada.</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>Tempos depois, vi-o no asylo de mendicidade.</p>
+
+<p>Como sabia isto, disse-lhe do filho tudo quanto merecia aquella infamia.</p>
+
+<p>O velho escutou-me sorrindo tristemente e respondeu por fim, a encolher
+os hombros:</p>
+
+<p>—Será verdade o que o senhor me diz, mas que lhe hei-de eu fazer? Se
+elle é do meu sangue!...</p>
+
+<figure class="figcenter" id="i033" style="width: 200px;">
+ <img src="images/i033.jpg" width="200" height="57" alt="decorative">
+</figure>
+
+
+<hr class="chap x-ebookmaker-drop">
+
+<div class="chapter">
+<figure class="figright" id="i034" style="width: 400px;">
+<img src="images/i034.jpg" width="400" height="480" alt="Uma procissão religiosa sendo precedida por duas jovens e seguida por dois homens atrás portando estandarte e vara. O padre segue logo a seguir. Um grupo de três homens observam a procissão e um outro homem por detrás de um muro, tenta jogar uma pedra sobre eles.">
+</figure>
+</div>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_185">[Pg 185]</span></p>
+<h2 class="nobreak" id="A_Folga">A Folga</h2>
+
+
+<p class="nindc">(Notas de folklore fayalense)</p>
+
+
+<p>Tudo prompto em casa do João Furtado, para se receber a coroa do
+«Senhor Espirito Santo».</p>
+
+<p>E não é nada cedo. A procissão já saíu da casa do <i>imperador</i>, que
+foi o ultimo a <i>coroar</i> no anno antecedente, e vem a caminho.</p>
+
+<p>Os visinhos andam tão alvoroçados, que se não fosse o José, sobrinho do
+João Furtado, teriam invadido a casa, para verem de mais perto o altar,
+armado no quarto de fóra.</p>
+
+<p>Mas não se atrevem, que o rapaz, de sentinella á porta, prega um não
+redondo na cara do mais pintado. Além d’isso, todos sabem que elle não
+é para brincadeiras, e que poderia ir ás do cabo, temendo que lhe
+<span class="pagenum" id="Page_186">[Pg 186]</span>
+escangalhassem o que lhe tinha custado tanta lida.</p>
+
+<p>Como elle se revia no altar! Sobre a meza coberta com uma toalha
+de renda, nada menos de quatro jarras de flores e de outros tantos
+castiçaes com os cyrios ainda por accender. Dão-lhe tanta graça o docel
+de cassa branca e as cortinas de barra vermelha, que pendem de cada
+lado!</p>
+
+<p>E como está bem clara toda a casa! Nem a egreja, na noite de Natal!
+Contando-se bem, são dez os candeeiros de petroleo, uns em cima das
+mezas, outros pendurados nas paredes.</p>
+
+<p>Entrassem os visinhos e tambem quereriam ver o quarto seguinte, onde
+teem dormido os donos da casa desde o dia em que se casaram, por signal
+n’aquella cama coberta com colcha de ramagem. O que porém lhes chamaria
+a attenção n’este quarto, haviam de ser as duas mezas que lá estão
+unidas pelas cabeceiras, á espera da ceia dos <i>foliões</i>.</p>
+
+<p>O João Furtado bem podia ficar satisfeito com o sobrinho, visto que
+todas as suas ordens se cumpriram á risca.</p>
+
+<p>O rapaz é que não tinha sombras de satisfação, nem de alegria: triste
+como a noite!</p>
+
+<p>Bastava-lhe estar longe da Maria, que vinha de <i>imperatriz</i> no
+acompanhamento da corôa.</p>
+
+<p>Verdade seja que triste andava elle sempre, desde que lhe tinha faltado
+o pae, e que o tio, vendo-o em riscos de ir para soldado, resolvera
+demorar, sem dizer até quando, o casamento ha muito ajustado entre os
+dois primos.</p>
+
+<p>Primeiramente o José, por soberba, quiz tirar d’alli a sua ideia,
+<span class="pagenum" id="Page_187">[Pg 187]</span>
+cuidando que o tio só desejava livrar-se d’elle e arranjar para a
+filha um noivo mais rico; não poude! Cada vez gostava mais da Maria,
+principalmente a partir da hora em que tinha julgado descobrir n’ella
+um certo desapego. Talvez a prima tambem olhasse ao pouco que elle
+agora tinha, depois de paga a divida do pae ao Joãosinho Terra, que na
+<i>villa</i> emprestava dinheiro a juro. Em quanto o velho não fechou o
+olho, todos o faziam com mundos e fundos, e sabidas as contas...</p>
+
+<p>Porém o José curtia de si para si os amargos de bocca, e calava a
+paixão, receioso de que, falando, o despedissem por uma vez. Só poderia
+adivinhar-lhe o segredo, quem attentasse nos olhos, que elle ás vezes
+deitava á Maria, e em que havia tanto amor, tanta cubiça!... Mas isto
+mesmo, só o fazia quando tinha a certeza de não ser observado.</p>
+
+<p>Outra coisa, além da ausencia da prima, o estava agora consumindo: o
+pensar que nas danças da <i>folga</i> ella ia andar nos braços de um
+e de outro. Que se livrasse de dançar com o menino Ricardo, filho do
+Joãosinho Terra!</p>
+
+<p>—D’aquella familia, só lhe vinham desgraças!</p>
+
+<p>Um mez antes, na ribeira dos Flamengos, apanhára os dois conversando
+muito á mão. É verdade que a prima tinha lá ido lavar uma trouxa de
+roupa de freguezes seus, mas tanto não estava fazendo coisa boa, que
+apenas o viu, ficou mais vermelha que uma romã.</p>
+
+<p>A corôa approxima-se, que bem se ouvia já a marcha tocada pela
+philarmonica e o rufar monotono do tambor dos foliões, como que
+marcando o rythmo da musica. Estalavam de instante a instante as
+<span class="pagenum" id="Page_188">[Pg 188]</span>
+<i>respostas</i>, e serpeavam no ar os foguetes a dizerem o logar
+exacto em que vinha o cortejo.</p>
+
+<p>Embora consumido, o José não se esqueceu do que lhe competia, e foi
+accendendo os cyrios do altar, ao tempo que a tia, com algumas visinhas
+e tres senhoras vindas da Horta mediante convite especial, entravam
+azafamadas. Tinham estado no terreiro á espera, e foram a uma meza
+buscar vellas de stearina, e tambem as accenderam, nos cyrios. Nenhuma
+se esqueceu de resguardar-se de algum pingo, pondo o lenço de assoar
+á laia de bobeche. Todas, de mão deante da chamma, correram para o
+terreiro, a allumiar a corôa.</p>
+
+<p>Um ultimo relance de olhos tranquilisou o José: tudo estava em termos.
+Podia entrar a suspirada visita.<a id="FNanchor_3" href="#Footnote_3" class="fnanchor">[3]</a></p>
+
+<p>Vencido pelo habito e pela geral suggestão o rapaz correu para
+<span class="pagenum" id="Page_189">[Pg 189]</span>
+a porta, a admirar o acompanhamento, que avançava com a ordem e
+solemnidade costumada, impondo respeito e chegando a encantar os menos
+propensos á devoção.</p>
+
+<p>Tinha-se calado a musica, mas rufava sempre o tambor dos foliões,
+estrugiam os pandeiros e estalavam as bombas.</p>
+
+<p>Mais longe, no couce da procissão, o <i>Magnificat</i> entoado pelos
+cantores da egreja matriz do Fayal, dava á solemnidade a nota da uncção
+religiosa.</p>
+
+<p>Na frente do cortejo tres homens a par: o do meio deitava os foguetes,
+o da esquerda transportava as munições, já muito diminuidas pelo
+consumo, e o da direita mantinha accesa uma acha de lenha, soprando-lhe
+muito, a fim de trocal-a pela que incendiava os foguetes, quando esta
+fosse a apagar-se.</p>
+
+<p>Em seguida os quatro <i>foliões</i>. Sobre o fato usual, grandes opas
+encarnadas de gola verde recortada aos bicos, e de mangas tambem
+encarnadas e canhão verde. Nas cabeças, lenços de chita vermelha
+amarrados sobre a nuca, as pontas caídas para as costas.</p>
+
+<p>Um traz a bandeira de panno encarnado com toscas applicações de panno
+branco, representando as do centro uma corôa e uma pomba, symbolos do
+Espirito Santo, e flores as dos quatro angulos.</p>
+
+<p>Dos restantes <i>foliões</i> um toca tambor, e pandeiros os outros.</p>
+
+<p>Seguem-se dois renques de irmãos, todos com varas brancas e precedidos
+pelo <i>estandarte</i> de seda branca, em que ha adornos semelhantes
+áquelles, porém executados com mais alguma arte.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_190">[Pg 190]</span></p>
+
+<p>Dois artistas da mesma força deviam ser com certeza os esculptores das
+pombas, que encimam tanto a haste da bandeira como a do estandarte. Eu
+chamei pombas aos animaes alli figurados, mas creio que o mais notavel
+dos zoologos se daria a perros, tendo de classifical-os.</p>
+
+<p>Agora a parte mais interessante do cortejo—para mim, pelo
+menos—constituida pelo beijinho das raparigas bonitas do logar, umas
+com vellas accesas, outras espargindo flores, e quatro formando com
+varas brancas um quadrado, dentro do qual ia a imperatriz, com a corôa
+nas mãos, e de cada lado sua moçoila, uma com o sceptro e a outra com a
+salva de prata.</p>
+
+<p>Depois da imperatriz, o imperador. O João Terra <i>coroava</i> pelo
+João Furtado, e certo de que augmentava com isto o brilho á festa,
+avançava a passos tão regrados e magestosos, como ... o seu collega
+Carlos Magno entrando na cathedral de Aix-la-Chapelle. Para ser
+completamente feliz só lhe faltava uma coisa: que a casaca lhe não
+apertasse nos sovacos, e a bota de lustro no peito do pé.</p>
+
+<p>Fechavam o acompanhamento os cantores da matriz, a philarmonica e um
+magote de povo.</p>
+
+<p>Em quanto o cortejo ia enchendo a casa do João Furtado, recrudescia a
+foguetada e as bombas rebentavam continuamente.</p>
+
+<p>Chega a imperatriz em frente do altar, desfaz-se o quadrado, cujas
+varas, juntamente com a dos irmãos, são guardadas n’uma comprida caixa
+para isso destinada.</p>
+
+<p>Desde que entrou, a corôa servia de alvo a confeitos dourados e de
+<span class="pagenum" id="Page_191">[Pg 191]</span>
+varias côres e a raminhos, cujas flores eram tambem confeitos montados
+em arames.</p>
+
+<p>A Maria colloca-a no centro do altar, e logo os foliões, que estavam em
+frente alinhados n’uma fileira, entoam a conhecida copla:</p>
+
+<div class="poetry-container">
+<div class="poetry">
+ <div class="stanza">
+ <div class="verse indent0">Ó Senhor Esp’rito Santo</div>
+ <div class="verse indent0">A vossa casa cheira,</div>
+ <div class="verse indent0">Cheira a cravo, cheira a rosa,</div>
+ <div class="verse indent0">Cheira a flôr de larangeira.</div>
+ </div>
+</div>
+</div>
+
+<p>Um dos que tocam pandeiro levanta mais a voz e prolonga a nota final;
+segue-se o outro, descendo uma oitava e vae assim por diante a
+cantoria, com trinados á mistura, acompanhada pelo tambor, em que o
+folião respectivo dá, segundo o preceito, duas pancadas successivas com
+a baqueta, depois outras duas e afinal tres. A estes sons juntam-se por
+vezes o dos pandeiros, e estrepitosos vivas ao «Senhor Esp’rito Santo»,
+que já se tinham ouvido em toda a passagem do cortejo.</p>
+
+<p>Durante a cantilena dos foliões, as <i>senhoras da villa</i> e
+duas <i>mulheres do monte</i> vão compôr o vestido e o penteado á
+imperatriz, cuidado aliás inutil a bem dizer, pois se ha «moça bem
+pregadinha» é a Maria do João Furtado. Como ella, nenhuma tão esmerada
+na sua pessoa e no seu fato.</p>
+
+<p>O José, a quem não passaram despercebidas estas attenções, revia-se na
+linda flôr do campo, esquecido de tudo, até do ciume.</p>
+
+<p>Andava n’este comenos o João Terra desempenhando um dos deveres do
+imperador: tendo recebido de uma das companheiras da imperatriz o
+<span class="pagenum" id="Page_192">[Pg 192]</span>
+sceptro, deitara-o nas mãos, sobre um lenço, e percorria toda a sala,
+offerecendo aos beijos dos circumstantes a pombinha de prata, que o
+adorna.</p>
+
+<p>O ultimo beijo, e de certo o mais fervoroso, foi dado pelo dono da
+casa, quando o sceptro já estava no altar. E nem sequer lhe passou pela
+ideia o que lhe custava a festa. Custasse o dobro, e elle quereria
+assim mesmo gosar aquelle direito.</p>
+
+<p>Já todos tomaram logares. Nos melhores ficam as senhoras da Horta, e á
+ilharga d’ellas, depois de lh’os ter amavelmente offerecido, senta-se
+muito ancha a mulher do João Furtado.</p>
+
+<p>Lá entra o José, ajoujado com um pratalhaz de arroz doce, e precedido
+pelo tio, que se pôz em mangas de camisa para mais á vontade servir
+aos convidados a aguardente de pecego, que passará do frasco de
+vidro escuro onde está agora, para a bocca dos que hão bebel-a, por
+intermedio do mesmo calix. Os pechosos não terão que dizer, porque o
+escanção, isto é, o João Furtado, depois de servir cada um dos seus
+convidados, limpará a borda do copo á manga da camisa.</p>
+
+<p>Isto de mais a mais é costume tradicional, como tambem é costume
+comerem todos o arroz doce pela mesma colher. Á entrada do José, lá
+vinha uma espetada verticalmente ao centro do manjar, e com ella vão
+todos mettendo para a bocca a competente colherada, e até repetindo a
+dose, com grave despeito do dono da casa e não obstante o arroz ter
+certo gostinho a fumo, que nem á força de canella desapparecera de
+todo.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_193">[Pg 193]</span></p>
+
+<p>O José não fugiu com o prato á abusiva repetição, porque estava com
+o sentido n’outra coisa. Se não encontrava a prima, por mais que a
+procurasse com os olhos!...</p>
+
+<p>Vae porem socegar: a Maria apparece no quarto immediato e ajudada por
+outras raparigas põe na meza a ceia dos <i>foliões</i>.</p>
+
+<p>Os quatro abancam immediatamente e principiam a devorar com o seu
+proverbial appetite.</p>
+
+<p>O rufador, para que o vinho lhe ajudasse a deglutição, disse a graça
+costumada—que a pelle do tambor ia estalar de tanto se lhe ter batido,
+e que o unico remedio era botar-se-lhe em cima uma pinga. E apenas
+apanhou á mão o frasco, deitou uma gota no tambor e entornou para os
+gorgomillos tanta vinhaça, que os companheiros romperam em murmurios,
+julgando-se lesados.</p>
+
+<p>O segundo folião, antes de beber, faz o brinde habitual:</p>
+
+<p>—Lá vae á saude do imperador de hoje a oito dias!</p>
+
+<p>Ao passo que outro, com a bocca cheia, dispara um «Viva o Senhor do
+Esp’rito Santo!»</p>
+
+<p>A ceia desapparecia rapidamente dos pratos. Tinha-a feito a Vicencia,
+irmã do João Furtado, afamada em trabalhos culinarios. Áquella mesma
+hora temperava ella na cosinha a sopa destinada aos presentes do dia
+seguinte, muito saborosa com a grande quantidade de carne de vacca e
+<i>linguiça</i>, e cada pão dividido em quatro partes apenas, para que
+uma unica sopa chegasse para um presente.</p>
+
+<p>Na sala da folga entram muito galhofeiros, com a sobranceria de quem
+<span class="pagenum" id="Page_194">[Pg 194]</span>
+se julga n’um meio que não o merece, o Ricardinho Terra, o Luiz de
+Carvalho e mais dois rapazes da Horta, isto é quatro <i>estudantes</i>,
+como os appellidam por despreso os moços do campo, que em troca recebem
+o qualificativo de <i>diamantes</i>, não menos desdenhoso na intenção
+do seu ignorado inventor.</p>
+
+<p>Se a presença dos recemchegados desagradou a todos os rapazes do sitio,
+que se apinhavam á porta e no terreiro, e que nos bicos dos pés olhavam
+a custo para o interior da casa, ao José encheu de verdadeira furia.</p>
+
+<p>D’aqui por diante não mais perdeu de vista o menino Ricardo.</p>
+
+<p>Mas ninguem pensava n’elle, que iam principiar as danças e já se ouvia
+o <i>mestre da viola</i>, o Joaquim Machado, na cosinha, onde tinha
+acabado de ceiar, afinando o instrumento demoradamente, a preceito, sem
+dar importancia ás impaciencias dos que anceavam por bailar.</p>
+
+<p>No seculo tinha posição humilde—era sapateiro—mas n’uma <i>folga</i>
+hombreava em valimento com o proprio imperador. É que sem elle não se
+<i>brincava</i>.</p>
+
+<p>Apesar d’isto, o João Furtado, fazendo-se interprete dos desejos
+geraes, disse-lhe da porta da sala, em voz muito alta.</p>
+
+<p>—O’ Joaquim Machado, pega-me n’essa viola e salta cá para fóra!</p>
+
+<p>—Já se vae! Já se vae! retorquiu o outro, sem se apressar. É preciso
+pol-a nos pontos!</p>
+
+<p>D’ahi a pouco appareceu á porta, e conscio da importancia inherente ao
+<span class="pagenum" id="Page_195">[Pg 195]</span>
+seu cargo, foi sentar-se junto ao altar.</p>
+
+<p>Tiravam-se pares.</p>
+
+<p>O João Terra escolheu a Maria, ao tempo que um <i>diamante</i>
+perguntava a esta: «A menina quer brincar commigo?». Desvanecida porque
+ia dançar com um <i>senhor da villa</i>, a quem de mais a mais lavava a
+roupa, a filha do João Furtado nem sequer deu resposta ao pretendente
+plebeu.</p>
+
+<p>Outros pares se iam formando, levadas as raparigas com espalhafato para
+o meio da casa, mas ficando cada <i>cavalheiro</i> a respeito da sua
+<i>dama</i> como se fossem vis-à-vis de contradança franceza, e assim
+formando-se de cada lado uma fileira, em que os homens se alternavam
+com as mulheres. Dois pares consecutivos constituem uma chama-rita e só
+com elles se pode já executar a dança.</p>
+
+<p>O dono da casa excitava os renitentes, batendo as palmas e bradando:</p>
+
+<p>—Chega a pares! Chega a pares! Ao terreiro!</p>
+
+<p>Como não principiava a musica, o Ricardinho, que ia dançar com uma das
+senhoras mas que não cessava de olhar para a Maria, disse com o entono
+de quem quer ser promptamente obedecido:</p>
+
+<p>—Então essa viola não fica afinada por uma vez?</p>
+
+<p>O Joaquim Machado sem se desconcertar, mirou-o altivamente e mastigou
+como por de mais:</p>
+
+<p>—Está-se tratando sobre esse mesmo objecto.<a id="FNanchor_4" href="#Footnote_4" class="fnanchor">[4]</a></p>
+
+<p>Quando o tocador muito bem quiz, rompeu a musica e com ella a
+chama-rita. Os dançantes, ao mesmo tempo que acompanhavam a viola
+<span class="pagenum" id="Page_196">[Pg 196]</span>
+dando estalos com os dedos, bamboleavam-se, saracoteavam-se para a
+direita e para a esquerda, e faziam passinhos de dança n’um e n’outro
+sentido, avançando e recuando um pouco, para tornarem sempre ao mesmo
+sitio.</p>
+
+<p>Um camponio ou <i>homem do monte</i>, que era par da dona da casa,
+cantou:</p>
+
+<div class="poetry-container">
+<div class="poetry">
+ <div class="stanza">
+ <div class="verse indent0">Ao romper da bella <i>airola</i><a id="FNanchor_5" href="#Footnote_5" class="fnanchor">[5]</a></div>
+ <div class="verse indent0">Sae o pastor da <i>gaivana</i><a id="FNanchor_6" href="#Footnote_6" class="fnanchor">[6]</a></div>
+ <div class="verse indent0">Gritando em altas <i>vózeas</i></div>
+ <div class="verse indent0">Muito padece quem ama.</div>
+ </div>
+ <div class="stanza">
+ <div class="verse indent0">Chama Rita, chama Rosa,</div>
+ <div class="verse indent0">Chama Rita tão formosa!</div>
+ </div>
+</div>
+</div>
+
+<p>Quando o cantador principiava a repetir estes dois ultimos versos
+á laia de estribilho, cada homem, estalando sempre com os dedos e
+bamboleando-se, recuou seguido pela sua dama, que voltada para elle e
+com os mesmos ademanes, parecia attrahida pelo chamamento.—D’isto,
+naturalmente, é que a dança tirou o nome.—Chegadas as duas mulheres
+de uma mesma chama-rita a altura em que podiam, costas com costas,
+trocar a posição, effectuaram a mudança, recuando seguidas agora pelos
+seus pares, até que todos entraram no alinhamento primitivo, mas em
+ordem inversa. N’esta occasião cada homem fez em relação á dama do
+outro par da sua chama-rita, um movimento analogo ao que o sr. Justino
+<span class="pagenum" id="Page_197">[Pg 197]</span>
+Soares—valha-me o abalisado choreographo!—chamaria «<i>balancé au
+côté</i>», se desejasse indical-o aos seus discipulos da arte de
+Terpsychore.</p>
+
+<p>Succederam-se os versos engendrados pela musa popular. O mestre da
+viola, com um vozeirão de baixo profundo, garganteou:</p>
+
+<div class="poetry-container">
+<div class="poetry">
+ <div class="stanza">
+ <div class="verse indent0">Coração acima, acima,</div>
+ <div class="verse indent0">Se não podes correr anda.</div>
+ <div class="verse indent0">Tudo é pouco, bem n’o sabes</div>
+ <div class="verse indent0">Para ver a sua dama.</div>
+ </div>
+ <div class="stanza">
+ <div class="verse indent0">Chama Rita, chama Rosa,</div>
+ <div class="verse indent0">Ella que venha cá fora,</div>
+ <div class="verse indent0">Venha ver o seu amor</div>
+ <div class="verse indent0">Que lhe quer falar agora!</div>
+ </div>
+</div>
+</div>
+
+<p>Quando acabava esta ultima quadra, que pelo numero de versos equivale
+ao estribilho com a sua repetição, e que por isto não foi bisada pelo
+cantador, o Ricardinho Terra, para saír da monotonia da chama-rita,
+valeu-se de uma das marcas dos bailes de roda, com que costuma
+variar-se aquella dança, e disse em tom de marcador de quadrilha:</p>
+
+<p>—Roda cheia!</p>
+
+<p>E logo todos cruzaram os braços e deram as mãos trocadas, formando
+roda, que depois desfizeram para cada um dos bailadores, enlaçado ao
+respectivo par, fazer o que nas contradanças francezas se designa pela
+phrase—valha-nos outra vez o nosso Vestris!—<i>galop au tour</i>, com
+a differença de que o passo é o da chama-rita, ou muito semelhante ao
+<span class="pagenum" id="Page_198">[Pg 198]</span>
+da polka.</p>
+
+<p>A <i>folga</i> animava-se.</p>
+
+<p>Para excitar ainda mais o enthusiasmo, cruzavam-se os:</p>
+
+<p>—Pega fogo!</p>
+
+<p>—Anda!</p>
+
+<p>—Aquece, rapaz!</p>
+
+<p>O Ricardinho, fitando muito a Maria, cantou-lhe:</p>
+
+<div class="poetry-container">
+<div class="poetry">
+ <div class="stanza">
+ <div class="verse indent0">Aqui tens meu coração,</div>
+ <div class="verse indent0">Se o queres matar, bem podes,</div>
+ <div class="verse indent0">Olha que estás dentro d’elle</div>
+ <div class="verse indent0">E se o matas tambem morres.</div>
+ </div>
+</div>
+</div>
+
+<p>O José ia disparatando, mas conteve-se porque o Luiz Carvalho, depois
+de repetir o ultimo verso da quadra, arreliou o amigo com est’outra,
+sempre usada para taes casos, viciando-a como os cantadores populares:</p>
+
+<div class="poetry-container">
+<div class="poetry">
+ <div class="stanza">
+ <div class="verse indent0">Assubi ao altar mór</div>
+ <div class="verse indent0">P’ra accender vellas ao throno,</div>
+ <div class="verse indent0">Bem tolo é quem se mata</div>
+ <div class="verse indent0">Por coisas que já teem dono.</div>
+ </div>
+</div>
+</div>
+
+<p>O Ricardinho gritou: «Mãosinhas!», o que se executou dando os pares
+as mãos, e virando-se cada um dos dançadores alternadamente para os
+que lhe ficavam contiguos, ao mesmo tempo que iam todos caminhando
+lateralmente como no <i>grand rond au tour</i>.</p>
+
+<p>A provocação do Luiz de Carvalho teve esta resposta, do Ricardinho:</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_199">[Pg 199]</span></p>
+
+<div class="poetry-container">
+<div class="poetry">
+ <div class="stanza">
+ <div class="verse indent0">Não ha nada tão perfeito</div>
+ <div class="verse indent0">Como o amor de um estudante:</div>
+ <div class="verse indent0">Ainda que seja pobre,</div>
+ <div class="verse indent0">Sempre tem o amar galante.</div>
+ </div>
+</div>
+</div>
+
+<p>Mas um rapaz do sitio corrigiu-lhe de prompto a coarctada, com outra
+preparada egualmente para casos identicos:</p>
+
+<div class="poetry-container">
+<div class="poetry">
+ <div class="stanza">
+ <div class="verse indent0">Não viera um vento norte</div>
+ <div class="verse indent0">Que levara os estudantes,</div>
+ <div class="verse indent0">Para livrar esta terra</div>
+ <div class="verse indent0">Dos <i>homes</i> extravagantes.</div>
+ </div>
+</div>
+</div>
+
+<p>A furia do José de novo acalmou.</p>
+
+<p>Ainda assim difficilmente deixaria de haver um dos barulhos inherentes
+a estes passatempos, alguma <i>poeirada</i>, se não apparecesse á porta
+o padre vigario, na occasião em que, indicada pelo Ricardinho, se
+executava a marca «Salta e rema!», na qual cada homem deve, passando
+por traz do seu par e tomando-lhe a direita, ir fazer <i>balancé</i>
+com a pessoa que lhe fica d’este lado, mas sem se darem as mãos, e
+repetir o mesmo com a da esquerda. Continuam durante isto o <i>grand
+rond au tour</i>, e a estalada com os dedos visto que as mãos se acham
+livres.</p>
+
+<p>O João Furtado, mal viu o padre, disse em voz muito alta:</p>
+
+<p>—Triloré!</p>
+
+<p>A dança parou logo e todos foram cumprimentar o recemchegado, que vinha
+honrar a festa com a sua presença.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_200">[Pg 200]</span></p>
+
+<p>—A benção de Deus seja n’esta casa! disse o vigario e depois de fazer
+uma venia á coroa, foi sentar-se na cadeira de balouço, que o João
+Furtado fizera promptamente desoccupar em obsequio a sua reverendissima.</p>
+
+<p>Mas o desejo do bom do padre, era que as danças continuassem.</p>
+
+<p>Antes de ir para o seminario de Angra, e até quando vinha de lá passar
+as ferias com a familia, elle não perdia uma unica folga.</p>
+
+<p>Estes divertimentos attrahiam-o ainda, como tudo o que nos traz para
+diante dos olhos já queimados pelas lagrimas da desillusão, os dias
+luminosos da mocidade.</p>
+
+<p>Ia recomeçar a chama-rita.</p>
+
+<p>Á pergunta do estylo, que os antigos pares lhes faziam sobre o nome
+do escolhido para a nova dança, as raparigas em geral responderam,
+tambem segundo o estylo vulgar «O senhor mesmo!», com grave escandalo
+dos outros rapazes, que assim continuavam a ser na festa uns meros
+espectadores, e que se desforraram com o conhecido protesto:</p>
+
+<p>—Caras novas ao terreiro!</p>
+
+<p>A Maria não imitou o maior numero. Como ouvisse o João Terra dizer que
+já não tinha pernas para folias, e não desejando fazer-lhe desfeita,
+escolheu o filho d’elle—o Ricardinho. O José ficou embaçado, sem poder
+mexer-se, e calado como se lhe tivessem amarrado uma mordaça.</p>
+
+<p>Só o tio deu por isto, e para evitar alguma asneira, travou-lhe do
+braço e disse-lhe em voz baixa, terminantemente:</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_201">[Pg 201]</span></p>
+
+<p>—Anda commigo, diabo!—E como sentisse alguma resistencia,
+accrescentou com maior intimativa:—Se não vieres, dou-te na cara, aqui
+mesmo, deante de todo este povo!</p>
+
+<p>Lá passar por similhante vergonha, isso é que nunca! E devia ao tio
+tantos favores, apesar de tudo...</p>
+
+<p>Acompanhou-o, mas fez logo uma tenção bem firme. Nem Jesus Christo, que
+viesse a este mundo, seria capaz de arrancar-lh’a.</p>
+
+<p>O ar da estrada refrescou-lhe a cabeça, sem lhe esfriar a resolução.</p>
+
+<p>Mas as danças continuavam e só a isto é que todos attendiam.—Todos,
+menos elle.</p>
+
+<p>A Maria cantava com a sua voz estridula e argentina, bem afamada na
+ribeira dos Flamengos:</p>
+
+<div class="poetry-container">
+<div class="poetry">
+ <div class="stanza">
+ <div class="verse indent0">Ó Pico, rocha tão alta,</div>
+ <div class="verse indent0">Retiro dos passarinhos!</div>
+ <div class="verse indent0">Mais retirada que eu ando,</div>
+ <div class="verse indent0">Meu amôr, dos teus carinhos!</div>
+ </div>
+</div>
+</div>
+
+<p>O José que a ouviu lá fora, resmungou entre si:</p>
+
+<p>—Isso! Isso mesmo! Como se a fogueira inda precisasse de mais lenha!...</p>
+
+<p>E chegou-se para a porta da casa, apparentando indifferença.</p>
+
+<p>A dança animou-se mais, com o crescente enthusiasmo em que estava o
+Ricardinho. Mal este gritou: «Cadeia!», as mulheres levaram o braço
+esquerdo atraz das costas, á altura da cintura, e os homens deram-lhes
+as mãos, indo as direitas de cada par enlaçadas na frente, como no
+<span class="pagenum" id="Page_202">[Pg 202]</span>
+galope, e as esquerdas n’aquella posição. Será bom dizer que mais de
+uma rapariga se tinha prevenido para o caso, resguardando as costas do
+vestido no sitio provavel do contacto, por meio de um lenço pregado com
+alfinetes. Os pares, assim unidos, avançaram para o centro e recuaram,
+passando cada homem á dama que lhe ficava logo á direita, para com ella
+executar isto mesmo, e assim successivamente, até encontrar-se de novo
+com a que lhe pertencia.</p>
+
+<p>Umas das senhoras da cidade, a Annina Mesquita, bem conhecida pelo seu
+romantismo piegas, cantou com uma voz, que, em homenagem á verdade,
+deveria chamar-se de canna rachada:</p>
+
+<div class="poetry-container">
+<div class="poetry">
+ <div class="stanza">
+ <div class="verse indent0">Encostei-me ao pecegueiro,</div>
+ <div class="verse indent0">Cobri-me toda de flôr,</div>
+ <div class="verse indent0">Ai de mim tão pequenina</div>
+ <div class="verse indent0">Tão perseguida de amôr!</div>
+ </div>
+</div>
+</div>
+
+<p>Mas por um pouco não deixava a quadra incompleta, porque estrondearam
+perto, contendendo-lhe com os nervos, duas bombas, deitadas da
+janella pelo João Furtado, para solemnisar o acabamento da ceia dos
+<i>foliões</i>. Estes saíram á formiga, deixando a bandeira, o tambor e
+os pandeiros, e levando comsigo, embrulhadas n’um lenço, as opas e os
+sapatos. Dois tinham de ir para longe, e com similhantes trambolhos nos
+pés, arriscavam-se a ficar pelo caminho.</p>
+
+<p>Á «cadeia» seguiu-se a marca «Foge!» equivalente á
+<i>grande-chaine</i>, mas principiada com a mão direita, e fazendo os
+<span class="pagenum" id="Page_203">[Pg 203]</span>
+homens um movimento analogo ao <i>balancé</i>.</p>
+
+<p>—Quer n’uma, quer n’outra—disse o José comsigo mesmo—o Ricardinho
+apertou a mão de Maria!</p>
+
+<p>Não tinha duvida.</p>
+
+<p>Da chama-rita, passou-se aos bailes-de-roda, e a outras danças.</p>
+
+<p>No <i>sapateia de cadeia</i> bailou tambem o Joaquim Machado, tomando
+logar no extremo d’uma das fileiras, viola ao peito, os restantes pares
+dispostos como na chama-rita.</p>
+
+<p>O José ia estourando de raiva, ao ver a Maria dançar mais uma vez com
+o Ricardinho, mas conteve-se e foi tirar a Luiza, filha do regedor da
+freguezia. Andou tão alegre, que até cantou esta quadra popular, com
+que o João Furtado se escangalhava sempre com riso:</p>
+
+<div class="poetry-container">
+<div class="poetry">
+ <div class="stanza">
+ <div class="verse indent0">Uma jaqueta de abob’ra,</div>
+ <div class="verse indent0">Forrada de melancia,</div>
+ <div class="verse indent0">As casas de vento norte,</div>
+ <div class="verse indent0">Os botões de calmaria.</div>
+ </div>
+</div>
+</div>
+
+<p>Durante ella, as duas linhas de dançadores avançaram uma para a outra e
+recuaram até ao ponto de partida.</p>
+
+<p>E logo o Joaquim Machado atacou, muito emphatico:</p>
+
+<div class="poetry-container">
+<div class="poetry">
+ <div class="stanza">
+ <div class="verse indent0">Foge, anda tu, ó meu bem,</div>
+ <div class="verse indent0">Foge, amor, que eu tambem fujo,</div>
+ <div class="verse indent0">Fujamos ambos p’ra o matto,</div>
+ <div class="verse indent0">Para á sombra do tamujo!</div>
+ </div>
+</div>
+</div>
+<p><span class="pagenum" id="Page_204">[Pg 204]</span></p>
+<p>O primeiro d’estes versos foi o signal para se executar o «Foge» da
+chama-rita, ao qual succedeu a «Cadeia» do mesmo baile. Chegados todos
+aos seus logares, o Ricardinho cantou:</p>
+
+<div class="poetry-container">
+<div class="poetry">
+ <div class="stanza">
+ <div class="verse indent0">Oh! Sapateia, meu bem.</div>
+ <div class="verse indent0">Sapateia de cadeia,</div>
+ <div class="verse indent0">Deixa-me ir banhar no mar,</div>
+ <div class="verse indent0">No mar que dorme na areia!</div>
+ </div>
+</div>
+</div>
+
+<p>O mestre da viola, tocando sempre, retorquiu, com guelas de estentor:</p>
+
+<div class="poetry-container">
+<div class="poetry">
+ <div class="stanza">
+ <div class="verse indent0">Oh! Sapateia, meu bem!</div>
+ <div class="verse indent0">Oh! Sapateia, faz arco!</div>
+ <div class="verse indent0">Diga o mundo o que disser,</div>
+ <div class="verse indent0">Já d’aqui me não aparto!</div>
+ </div>
+</div>
+</div>
+
+<p>Ao primeiro verso, a fileira do lado do Joaquim Machado voltou-se para
+a direita e a opposta para a esquerda, e cada dançante, com excepção
+d’aquelle, deu a mão ao seu par e levantou o braço, formando-se assim
+uma especie de abobada. O tocador e a dama respectiva passaram então
+sob o arco formado pelo par mais proximo, contornaram o par seguinte,
+mas pelo lado exterior, e foram passar por baixo do arco do terceiro
+par, e assim successivamente. O segundo par executou eguaes movimentos,
+logo que deu passagem ao mestre da viola, e todos os mais foram fazendo
+o mesmo, com uma regularidade tamanha, que o proprio vigario applaudiu
+enthusiasmado.</p>
+
+<p>As danças succederam ás danças, e os pares succederam aos pares, não
+<span class="pagenum" id="Page_205">[Pg 205]</span>
+porque alguem desse parte de fraco, mas porque era preciso contentar a
+todos os que tambem queriam <i>brincar</i> o seu boccadinho.</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>Era noite velha e ainda a folga não tinha acabado.</p>
+
+<p>As tres senhoras voltaram para a cidade n’uma carruagem, alugada para
+as levar e trazer; João Terra veiu no seu burrinho, e os quatro rapazes
+a pé, visto não ser grande a distancia dos Flamengos á Horta, e a noite
+estar fresca.</p>
+
+<p>Não havia luar, mas as estrellas palpitavam com vivo clarão no fundo
+negro do ceo, tão limpo de humidade que nem lembrava ceo dos Açores.</p>
+
+<p>O Ricardinho na frente com o Luiz Carvalho, aturava-lhe os remoques,
+visto que o outro, não tendo podido n’aquella noite justificar a sua
+fama de conquistador, se desforrava com o amigo.</p>
+
+<p>Mettido no vão de uma porta, para onde correra logo que os viu partir,
+o José ouviu-lhes a conversa, sem que nenhum dos quatro o presentisse:</p>
+
+<p>—Grande brejeiro, dizia o Carvalho. Quizeste ser imperador sem ter
+coroado!</p>
+
+<p>—Fala claro, que não te entendo, voltou-lhe o Ricardinho.</p>
+
+<p>—Talvez não arrastasses a aza á imperatriz? Parabens, que a pequena é
+de estalo! Mas o mais certo é não fazeres vaza. A Maria é muito capaz
+de judiar comtigo uns poucos de mezes, e deixar-te no fim a chuchar no
+dedo.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_206">[Pg 206]</span></p>
+
+<p>—O futuro a Deus pertence.</p>
+
+<p>—Pois ella é que nunca te ha de pertencer!</p>
+
+<p>O Ricardo Terra estacou, mesmo á ilharga da porta onde estava o José, e
+disse com a prosapia inconsciente dos seus vinte annos:</p>
+
+<p>—Queres tu apostar em como antes de um mez a tenho no meu rol?</p>
+
+<p>O sobrinho do João Furtado sentiu uma vertigem, um desejo phrenetico de
+partir, de espedaçar alguma coisa, mas não fez o menor movimento.</p>
+
+<p>Atravez das candeias amarellas que lhe bailavam deante dos olhos,
+distinguiu que o fato do Ricardo era claro, e escuros os dos mais.</p>
+
+<p>Quando os viu longe, correu para o mesmo lado e entrou n’uma terra, que
+acompanha a estrada durante uma grande extensão, e que é resguardada
+por um muro baixo.</p>
+
+<p>Tendo-lhes ganho consideravel deanteira, agarrou n’um pedregulho e
+acocorou-se por traz do muro.</p>
+
+<p>Pouco teve que esperar. Deitou a cabeça de fóra cautelosamente.</p>
+
+<p>O Ricardinho vinha á direita. Era o mais proximo.</p>
+
+<p>Apenas o teve a dois passos, ergueu-se de chofre, levantou a pedra com
+ambas as mãos, bem acima da cabeça, e atirou-lh’a com quanta força
+tinha.</p>
+
+<p>Um grito e o baque de um corpo.</p>
+
+<p>Afastou-se do muro rastejando, e desatou a correr como um coelho em
+campo aberto. Ainda foi dançar quatro chama-ritas á <i>folga</i> do
+tio, que só acabou quando já era sol nado.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_207">[Pg 207]</span></p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>Nunca se descobriu quem fôra o assassino do Ricardinho Terra.</p>
+
+<p>Como o pae e o filho se tinham envolvido n’uma tramoia eleitoral,
+falaram os jornaes da opposição em vinganças politicas.</p>
+
+<p>O João Furtado é que de alguma coisa desconfiou, e por causa das
+duvidas arranjou d’alli a mezes e muito ás occultas, passagem para o
+José a bordo de uma baleeira.</p>
+
+<p>O rapaz foi ter aos Estados-Unidos. Um anno depois mandou pedir a prima
+em casamento, aconselhando ao tio que fosse mais ella para S. Francisco
+da California, pois se haviam de arranjar muito bem.</p>
+
+<p>O João Furtado, como averiguou que o sobrinho estava a caminho da
+riqueza, seguiu-lhe o conselho.</p>
+
+<p>A Maria é hoje muito feliz com o marido; mas o sogro, á cautela, não
+vive em casa do genro.</p>
+
+<figure class="figcenter" id="i035" style="width: 200px;">
+ <img src="images/i035.jpg" width="200" height="113" alt="decorative">
+</figure>
+
+
+<hr class="chap x-ebookmaker-drop">
+
+<div class="chapter">
+<figure class="figcenter" id="i036" style="width: 200px;">
+<img src="images/i036.jpg" width="200" height="37" alt="decorative">
+</figure>
+</div>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_209">[Pg 209]</span></p>
+<h2 class="nobreak" id="O_Paiol">O Paiol</h2>
+
+
+<img alt="E" class="drop-cap" height="319" src="images/drop-e.jpg" width="200">
+<p class="nind"><span class="upper-case">ERA</span>
+temivel o sargento Bernardo quando principiava a contar historias,
+mas como rastejava pelos setenta annos e tinha sido um valente,
+todos o escutavam com pachorra. Um dia na Malaca, pequena bateria do
+castello de S. João Baptista, na Terceira, ouviram-lhe o seguinte caso.
+Affiançaram-me depois que a narrativa não era destituida de fundamento.</p>
+
+<p>Demos a palavra ao sargento Bernardo:</p>
+
+<p>«Não sei bem quando isto foi. Lembro-me de que tinha vindo de Lisboa
+para S. Miguel em cabo, e que estava lá destacado havia bastante tempo.
+O commandante do material era um capitãosinho de má cara, d’aquelles
+com quem a gente não engraça, nem á quinta facada.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_210">[Pg 210]</span></p>
+
+<p>Por isso o meu commandante, o nosso tenente, nunca era com elle visto,
+nem achado.</p>
+
+<p>Um dia começou a fallazar-se do homem. Sabem que mais? Pelos modos
+fazia o mesmo que o mestre do cazão de caçadores, que foi n’outro dia
+responder a conselho ... cortava-se, mas não era com tiras de panno!
+O que elle bifava, era muita e muita arroba da polvora do paiol. Mas
+lá na que dava para as salvas não roubava nada, essa lhes juro eu! As
+peças davam sempre o mesmo berro.</p>
+
+<p>A coisa tinha-se divulgado, e já se dizia pela cidade que o paiol
+estava cheio d’areia, porque a polvora tinha-a queimado o capitão ...
+puxando o rabo á sota.</p>
+
+<p>Que jogava era tambem certo. Excommungado!... Deus me perdôe! Não havia
+noite nenhuma em que eu estivesse de guarda ao quartel, no castello
+de S. Braz, que não me tivesse de levantar por causa do melro. E
+quasi sempre duas e tres vezes! Vinha buscar dinheiro, para voltar
+para a jogatina. E com que cara de peccado mortal elle andava! Se o
+visse á meia noite, em logar escuso, era capaz de pôr-me a crer nas
+feitiçarias, em que toda a galuchada de S. Miguel acredita como no
+Divino Espirito Santo.</p>
+
+<p>Andavam os taes dictos, quando chegou navio de Lisboa. D’alli a pedaço
+disparam esta novidade no castello; o capitão do material vae ser
+rendido e já desembarcou o tenente, que vem para o logar d’elle. Fiquei
+banzado!</p>
+
+<p>No dia seguinte vi o official novo. Era um perfeito moço, lá isso era!
+Alto como uma torre, grosso que nem isto...—O Bernardo abriu muito
+<span class="pagenum" id="Page_211">[Pg 211]</span>
+os braços, formando circulo.—E então a falar?... Tinha o diabo em si!
+Devia ser do Algarve.</p>
+
+<p>Segundo parece, contou logo que no commando geral da artilheria já
+se sabia da marosca do capitão, e que elle, tenente, recebera ordem
+para ver tudo, coisa por coisa. Se até disse que trazia uma balança de
+botica, para pesar as onças e meias onças de polvora!... Era chalaça,
+está visto.»</p>
+
+<p>—E o outro, ó tio Bernardo? perguntou um dos que ouviam o veterano.</p>
+
+<p>«O capitão? Se julgam que mudou de cara, enganam-se redondamente. Qual
+historia! Até o achei de melhor parecer, quasi a sorrir!</p>
+
+<p>Passados tres dias, começou a entrega. Foram primeiro ás peças,
+palamenta, lanternetas...»</p>
+
+<p>—Sim, tudo o que atulhava os armazens do material de guerra,
+interrompeu um dos ouvintes. E depois?</p>
+
+<p>—Ah! Vocemecês teem pressa? atalhou o Bernardo. Pois então haja saude!
+E ia retirar-se.</p>
+
+<p>Só depois de muito instado, se resolveu a continuar a historia, mas
+d’esta vez com certo mau humor.</p>
+
+<p>«No dia em que se devia entregar a polvora fui nomeado para ir com
+as fachinas ao paiol, acompanhar os dois senhores officiaes. Eu não
+acredito em bruxedos, já lhes disse, mas não sei o que me passou pela
+cabeça, quando me deram parte da nomeação. Parece-me que tremi de medo,
+o que me não tinha acontecido, podem crer, nas Antas nem no convento da
+Serra do Pilar. Ao menos nas linhas do Porto, sabia eu haver-me com os
+demos dos Corcundas, mas alli... O coração adivinhava-me alguma coisa.
+<span class="pagenum" id="Page_212">[Pg 212]</span>
+Á tarde fomos todos para o paiol. Sabem onde elle fica! Saíndo a gente
+da cidade para os Arrifes e andando menos de um quarto de hora, topa-o
+á sua mão esquerda.</p>
+
+<p>Iamos eu, as quatro fachinas, o capitão da jogatina e o tenente novo.
+Os dois senhores officiaes, por signal, tinham jantado bem, muito bem
+até! Logo se conhecia...</p>
+
+<p>Chegou-se ao paiol, abriu-se a porta do guarda-fogo e a do
+armazem,—tudo sem novidade. Quando eu estava a olhar para os barris
+e cunhetes, que já começava a lobrigar alinhados em duas fileiras, o
+capitão voltou-se para mim e disse-me:</p>
+
+<p>—O’ cabo Bernardo, você já esteve em minha casa, lá no castello de S.
+Braz?</p>
+
+<p>—Saberá V. S.<sup>a</sup> que sim, senhor.</p>
+
+<p>—Pois então vá buscar o mappa da carga, que deixei lá por
+esquecimento. Peça-o ao fiel, ao 36.</p>
+
+<p>Fiz meia volta e já ia para marchar, quando ouvi:</p>
+
+<p>—Olhe!</p>
+
+<p>Volvi logo á rectaguarda.</p>
+
+<p>—Onde está a balança que lhe deu o fiel?</p>
+
+<p>—Saberá V. S.<sup>a</sup> que o fiel não me deu balança nenhuma.</p>
+
+<p>—Cabeça de burro! Pois então volte você ao castello, e peça-lh’a! Como
+quereria o 36 que pesassemos a polvora? Tolice fiz eu em dispensal-o.
+Estava doente... É verdade! Leve as fachinas para trazerem a balança.</p>
+
+<p>—Bastam duas para a balança e uma para os pesos.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_213">[Pg 213]</span></p>
+
+<p>O capitão olhou para mim d’um modo exquisito e disse afinal, como se
+lhe custasse:</p>
+
+<p>—Pois sim, deixe ficar um homem.</p>
+
+<p>Quando ia atravessando o guarda-fogo, deitei os olhos para o tenente,
+que, sem se importar com o caso, estava alegre a não poder mais. Eu já
+disse que elles tinham jantado bem.»</p>
+
+<p>—Ó tio Bernardo, você está dizendo mal dos seus superiores! notou um
+dos ouvintes, a rir.</p>
+
+<p>—Leva rumor! acudiu outro. Queremos o resto da historia.</p>
+
+<p>«Elle ahi vae, disse o velho, que estando para acabar um conto, não
+era capaz de parar nem á mão de Deus Padre. Quando eu ia pela estrada
+abaixo, para o lado da cidade, mais os tres galuchos... tres não,
+dois!... tambem lá estava um soldado velho, o 27, que tinha andado
+commigo nas sarrafuscas da Patuléa... Ah! mas quando eu ia na estrada,
+sentia-me alliviado de um peso de seiscentas arrobas... Não ficava mais
+satisfeito deitando ao chão a mochila, depois de uma marcha de oito
+leguas. Teria a gente dado uns duzentos passos, e eu ia conversando a
+este respeito com o 27, eis senão quando a terra nos treme debaixo dos
+pés, e por um pouco não vamos todos de ventas ao chão. Ao mesmo tempo
+sentiu-se um estrondo, como se tivessem disparado alli ao pé uma duzia
+de peças de quarenta e oito! Que demonio seria aquillo?»</p>
+
+<p>—O que era, tio Bernardo? perguntaram todos com interesse.</p>
+
+<p>«Tremor de terra não seria, trovoada menos ainda.—O paiol! foi o
+<span class="pagenum" id="Page_214">[Pg 214]</span>
+grito que me saíu da bocca. Voltei para traz, a correr como um doido.</p>
+
+<figure class="figcenter" id="i037" style="width: 700px;">
+<img src="images/i037.jpg" width="700" height="1059" alt="Dois soldados estão junto a um portão, sendo que o militar mais graduado fuma um charuto. Seu soldado lhe presta continência com a mão direita enquanto segura uma lamparina com a sua mão esquerda.">
+</figure>
+
+<p>D’alli a um instante vi que não me tinha enganado. A parede do
+guarda-fogo, do lado da estrada, estava tão esborralhada que não ficara
+pedra sobre pedra. O paiol tinha ido pelos ares. Só restavam umas
+<span class="pagenum" id="Page_215">[Pg 215]</span>
+ruinas fumegantes.</p>
+
+<p>Quando andavamos a revolver o enthulho, para ver se encontravamos o
+corpo d’algum d’aquelles pobres de Christo, appareceu-nos o cabo da
+guarda, que tinha escapado por estar longe do seu posto... a falar com
+uma rapariga. Maroto! Livrou-se da morte, mas precisava meia duzia de
+guardas de castigo.»</p>
+
+<p>—E mais ninguem escapou?</p>
+
+<p>—Escapou tambem a sentinella. Apanhou com pedras no corpo e perdeu
+dois dedos de uma das mãos, sendo por isso passado a veteranos. Veiu cá
+morrer ao castello d’Angra.</p>
+
+<p>—E o que tinha succedido no paiol?</p>
+
+<p>«Ao certo só Deus o pode dizer. O que se averiguou, foi que o maldito
+do capitão veiu fora do guarda-fogo, accender um charuto. A sentinella
+ainda lhe fez reparo. Estivesse eu lá que sabendo as coisas como
+corriam, atirava-me a elle e já não o largava. Boas ganas sentiria o
+capitão ao tenente chegado de Lisboa! De mais a mais, queria esconder
+a ladroeira. Pouco depois a sentinella apanhou com as pedras e não deu
+tino de mais nada.»</p>
+
+<p>—Não se acharam os corpos?</p>
+
+<p>«Achou-se o do tenente, á distancia de uns quinhentos passos.
+Reconheceram-o bem. Pelos modos o pobresinho ainda quiz fugir, porque o
+<i>cadavre</i> estava menos queimado que os restos dos outros corpos.</p>
+
+<p>Gente que viu de longe aquella desgraça, contava que tinha subido para
+o ar um grande esguicho de fogo, tal qual, julgo eu, quando os montes
+da ilha vomitavam lume, em tempos que já lá vão muito longe.»</p>
+<p><span class="pagenum" id="Page_216">[Pg 216]</span></p>
+
+<p>—Sabe o que me parece exquisito, tio Bernardo? notou alguem. O tenente
+não desconfiar da marosca do capitão!</p>
+
+<p>—Essa cá me fica! Não disse eu que elle estava transtornado com a
+bebida? Coitado! Tive pena d’elle. Era um rapagão como as casas!</p>
+
+<p>—Do capitão é que o tio Bernardo não pode dizer mal. Se elle o não
+mandasse embora...</p>
+
+<p>—Tinha eu dado um salto de mil diabos, olá se tinha! Apesar d’isso,
+não lhe perdôo. Porque não morreu elle sósinho? Se queria acabar com
+estrondo, se não lhe bastavam os tiros da escolta á porta do cemiterio,
+que demonio! mettesse-se n’um bote mais um cunhete de polvora, remasse
+para o largo, e mecha no caso!... D’aquella maneira pagaram justos por
+peccadores. Não lhe perdôo!»</p>
+
+<figure class="figcenter" id="i038" style="width: 200px;">
+<img src="images/i038.jpg" width="200" height="75" alt="decorative">
+</figure>
+
+
+<hr class="chap x-ebookmaker-drop">
+
+<div class="chapter">
+<figure class="figcenter" id="i039" style="width: 200px;">
+<img src="images/i039.jpg" width="200" height="41" alt="decorative">
+</figure>
+</div>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_217">[Pg 217]</span></p>
+<h2 class="nobreak" id="As_feiticeiras">As feiticeiras</h2>
+
+
+<img alt="O" class="drop-cap" height="431" src="images/drop-o.jpg" width="200">
+<p class="nind"><span class="upper-case">OLÁ</span>
+se elle acreditava em bruxarias!</p>
+
+<p>Com essas historias o tinham embalado.—A avó, mulher <i>de remate</i>,
+fartara-se de contar-lhe o caso do homem, que estando no Brazil foi uma
+noite visitado pela mulher, que vivia em S. Miguel, n’aquella mesma
+villa da Lagôa. Havia bem quatro mezes que a triste não recebia cartas
+do ausente, e como pelas que um visinho mandava á familia soubesse que
+elle estava de saude, desconfiou de que outra lh’o tivesse roubado.
+Para se tirar das duvidas, foi ter com uma bruxa, levando comsigo um
+collete velho, que o marido antes de saír da ilha tinha suado muita vez
+no trabalho, e que por conseguinte poderia servir para o bruxedo. «Ai!
+Quem me déra ver meu marido!» disse ella á feiticeira, quando acabou de
+explicar-lhe o que padecia. «E eras capaz de ir commigo?» perguntou-lhe
+a velha.—«Pois não!»—«Sem te admirares do que visses?»—«De
+<span class="pagenum" id="Page_218">[Pg 218]</span>
+nada!»—«Pois então vamos vel-o esta mesma noite. Quando me ouvires
+dizer: Vamos com os diabos!, repetes isto mesmo, e verás como te faço
+a vontade.» Ao bater das doze badaladas, estava á porta da bruxa.
+Perto cantou um gallo, de tal maneira que mettia medo. A feiticeira
+appareceu: trazia um lençol, para com elle fazer um barco, segundo o
+costume d’essas malditas, quando teem de ir para o mar; mudou, porém,
+de tenção e voltou a casa. Tinha-se lembrado de coisa melhor. Passados
+instantes, partiram. O pau de vassoura em que iam as duas, corria por
+ares e ventos mais do que essas estrellas, que passam no ceo deixando
+atraz de si um risco de lume. Muito em baixo, avistava-se como que um
+lençol escuro, azulado e muito grande, sem fim—devia ser o mar.—A
+porta do quarto do marido abriu-se de pancada, mas sem bulha... Se era
+por artes magicas!—O traidor lá estava deitado com outra mulher.—Se a
+bruxa consentisse, ella matava-os a ambos; mas só lhe deixou arrancar
+uma das mangas ao vestido, que a outra, quando se metteu na cama, tinha
+deitado para cima de uma cadeira. Assim, levava uma prova contra o
+marido, e podia certificar-se em qualquer tempo de que tudo aquillo não
+fôra obra de sonho nem de loucura.—Voltaram como tinham ido—o dicto
+cabe aqui perfeitamente—em quanto o diabo esfrega um olho, e fizeram
+um novo bruxedo, para que o marido tornasse quanto antes.—Ao cabo de
+mez e mez e meio, chegava a S. Miguel.—«Estás como um cravo! disse
+elle á mulher, quando entrou em casa, e quiz abraçal-a. Repelliu-o e
+<span class="pagenum" id="Page_219">[Pg 219]</span>
+perguntou-lhe o que tinha feito n’aquella noite, de que marcou a data
+precisamente. «Isto é que se chama! Quem se póde lembrar, depois de
+tanto tempo?...»—«Lembro-me eu!» E atirou-lhe á cara com a traição,
+que o homem negou a pés juntos. Ella então correu á commoda, tirou para
+fora a manga, e pondo-a bem á vista do marido, gritou-lhe: «Nega ainda,
+se és capaz, nega! Fui lá, vi-te deitado com a brazileira, e arranquei
+esta manga ao vestido da <i>ganhôa</i>!»—«Mas tu tens estado sempre
+na ilha...» redarguiu elle, branco, enfiado. «Sempre, menos n’aquella
+noite!»—«Ai! Que esta mulher é feiticeira!» exclamou o homem, fugindo
+espavorido. No primeiro navio embarcou para o Rio de Janeiro, e lá
+morreu pouco depois: da febre, disseram os cirurgiões; dos novos
+feitiços que a mulher e a bruxa lhe fizeram, para que mais nenhuma o
+lograsse, affirmava muito convencida a boa da velhinha.</p>
+
+<p>Mas ainda que a avó não lhe tivesse contado esta e outras historias
+similhantes, o Francisco Raposo não deixaria de crer em feiticeiras, á
+vista de dois casos succedidos com elle.</p>
+
+<p>O primeiro ainda poderia deixar-lhe duvidas. Era pequeno e vinha para
+casa, com um molho de lenha miuda. Já era noite fechada. Estava com
+somno. De repente, zumba, lenha ao chão! Levantou-a sem mais reparos,
+e foi andando. Logo adeante, repetiu-se o mesmo. Sentiu a pelle a
+arripiar-se, mas tornou a apanhar o molho. Deu mais cincoenta passos,
+e a lenha caiu-lhe pela terceira vez. Sem querer saber dos gravetos,
+desatou a correr como um perdigueiro atraz da caça, e só parou em
+<span class="pagenum" id="Page_220">[Pg 220]</span>
+casa, esbaforido, suando em bica. O pae riu-se e disse-lhe que não
+deitasse as culpas ás feiticeiras mas ao João Pestana. «Da primeira
+queda, sim senhor, respondeu elle, mas lá das outras...»</p>
+
+<p>O segundo caso é que não admittia a menor duvida. Já era um homem. Pela
+noite velha ia subindo aquelle caminho, que passa por cima da Ribeira
+Quente e d’onde se avista um grande pedaço da costa. Levava ao hombro,
+por tal signal, uns pés de batata doce, que o tio Joaquim lhe tinha
+encommendado. Por acaso virou-se para traz, e o que viu?... O mar todo
+em fogo ... um fogo muito branco, como se a lua se tivesse delido na
+agua. E ainda mais transido ficou, avistando uns vultos esbranquiçados
+a caírem da rocha para o mar, deixando faiscas por onde passavam, em
+quanto alli perto n’um chão imitante uma eira, dançavam outros de mãos
+dadas, aos pinchos, soltando umas gargalhadas e uns gritos muito finos,
+eguaes aos que dão certamente no inferno os condemnados, sempre que
+vêem chegar mais uma alma, para soffrer as penas eternas.</p>
+
+<p>Tendo-lhe ouvido a historia, um senhor de Villa Franca disse-lhe que a
+claridade do mar era do phosphoro de certos mariscos, e que o mais fôra
+inventado pelo medo.</p>
+
+<p>A primeira explicação, não a entendeu o Francisco; e em quanto ao
+medo, não fôra elle tamanho que lhe fizesse perder os pés de batata
+doce. E tanto eram bruxas, que o caso lhe tinha acontecido no dia
+d’ellas—n’uma terça feira.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_221">[Pg 221]</span></p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>Não admira, pois, que tendo-lhe começado os negocios a correr mal e a
+fortuna a desandar, elle attribuisse tudo isto a obra de feitiçaria.
+Duas vezes seguidas se lhe estragou a sementeira do milho, em quanto as
+dos visinhos estavam que se podiam ver. Apodreceu-lhe tambem o batatal,
+não escapando sequer a batata já colhida, que toda <i>azougou</i>.
+Seria natural tudo isto?</p>
+
+<p>Para mais desgraça, tinha-lhe adoecido a melhor das duas vaccas, e o
+ferrador, não se entendendo com a doença, disse-lhe afinal, porque
+era homem de bem, e não quiz ganhar-lhe mais dinheiro: «Haja saude,
+Francisco e não voltes cá. Fica-te com esta: o que a vacca tem é mau
+olhado, e com esse não me sei haver. Vê se falas ao curandeiro das
+Furnas, mas antes de lá ir, trata de saber quem daria quebranto á pobre
+da alimaria.</p>
+
+<p>Foi isto o que de todo o convenceu.—Mas quem poderia desejar-lhe tanto
+mal, quem?—Tinha vivido sempre bem com toda a gente; a nenhum visinho
+dera nunca razão de queixa...</p>
+
+<p>Zangas sérias só as tinha tido com o primo João da Arruda, por causa
+da herança da tia Gertrudes, mas esse já não era capaz de fazer-lhe
+damno, que estava ha mais de seis mezes na terra da verdade. Morrera
+talvez pelo desgosto de ficar mal na demanda, em que um e outro tinham
+gasto rios de dinheiro. Tivera-lhe muita raiva, mas sem nunca poder
+<span class="pagenum" id="Page_222">[Pg 222]</span>
+satisfazel-a, graças a Deus!... Mostrava-lh’a bem n’aquelles olhares
+atravessados, que lhe deitava todas as vezes que passavam um pelo outro.</p>
+
+<p>Sim! D’esse estava livre!</p>
+
+<p>Da familia do primo só restavam duas irmãs, ou para melhor dizer uma
+só, visto que a mais velha já não se levantava da cama e era como se
+não existisse. E mesmo a outra, a Marianna, estava quasi sempre em
+casa, parece que a tratar da doente.</p>
+
+<p>Lembrou se de que ia atraz da vacca, da ultima vez em que a encontrara.
+E sem querer estremeceu.</p>
+
+<p>—Seria a corsaria que lhe andava a dar quebranto?...</p>
+
+<p>A avó sempre lhe dizia: Deus nos livre do poder da má mulher.</p>
+
+<p>Recordou-se melhor d’aquelle encontro.</p>
+
+<p>A prima passou por elle sem trocarem, está bem de vêr, o Deus te
+salve, e já deviam ir longe um do outro, quando o Francisco, sem saber
+porque, se voltou para traz. Pareceu-lhe que o tinham obrigado áquelle
+movimento. E viu os olhos da irmã do João da Arruda pregados n’elle,
+como os do irmão, e talvez a mostrarem-lhe ainda maior zanga. Teve
+ganas de moel-a com pancadas, mas deixou-a ir em paz, visto que ella
+seguiu o seu caminho apenas o encarou.</p>
+
+<p>Dois dias depois—agora é que ligava estas coisas—adoecia-lhe a vacca.</p>
+
+<p>Tratou de saber se mais alguma pessoa lhe poderia querer mal, e não
+descobriu nenhuma, nenhuma.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_223">[Pg 223]</span></p>
+
+<p>Tirou inculcas e veiu ao conhecimento de que a Marianna já pouco ia á
+missa. Da ultima vez que lá foi, chegou quando o sr. padre já estava no
+altar e saíu antes de se ter dicto a ultima palavra do santo sacrificio.</p>
+
+<p>—Não quer deixar por muito tempo a irmã sósinha em casa, explicou
+alguem.</p>
+
+<p>—Não será por outra razão? perguntou o Francisco, muito assomado. Não
+pode estar bem na egreja, quem anda mettido com o demonio!</p>
+
+<p>—Ui! Isso é que é falar! respondeu o outro, mal convencido.</p>
+
+<p>Quem lhe dava todos os amens, era uma irmã do pae, a tia Lauriana,
+que morava sósinha e que para algumas pessoas tinha fama de bruxa e
+de saber <i>lêr a dita</i>. As coisas que ella contou ao sobrinho,
+deixaram-o estupefacto, sem pinga de sangue. Entre outras, disse-lhe
+que ha gente que para atormentar um inimigo compra um coração de
+boi preto—boi de outra côr não serve—, pendura-o na chaminé, e
+todos os dias o vae espicaçando—quanto mais funda a picada, maior o
+tormento—com uma tesoura aberta em cruz, e dizendo ao mesmo tempo
+uma oração de resultados tão certos como os da reza da peneira,
+que serve para adivinhar o futuro. Á medida que o coração se torna
+escuro e mirrado, tambem o inimigo emmagrece, e perde saude, alegria,
+felicidade. Egualmente proclamou os effeitos da terra de cemiterio,
+colhida n’uma sexta feira á meia noite.</p>
+
+<p>—Ui, homem, não te lembras da minha prima Luiza?... Não! Não te podes
+lembrar, disse-lhe a tia Lauriana. Pois a Luiza casou com um rapaz,
+<span class="pagenum" id="Page_224">[Pg 224]</span>
+que tinha tido amores com uma bruxa. E vae esta pegou em si e botou-lhe
+feitiços. E o pobre de Christo andava depois a gritar pela casa, a
+<i>oviar</i> como um cão e a esconder-se debaixo das mezas e cadeiras.
+Ás duas por tres a Luiza estava na mesma. Só muito depois melhoraram...
+Arranjei-lhe eu ... quero dizer, arranjou-lhe alguem o remedi o... e
+poz-se a benzer a cabeça de ambos ... e elles então lançaram de si uma
+coisa com alfinetes ... mas viveram pouco mais tempo.</p>
+
+<p>O Francisco perguntou á tia o que pensava da Marianna e da irmã.</p>
+
+<p>—Tu gostas d’ellas? Assim eu gosto, respondeu a velha. Ainda bem que
+fizeste o irmão gastar com a justiça quasi tudo o que tinha. Nem elle
+nem as irmãs se lembraram nunca de me dar nada.</p>
+
+<p>—E serão feiticeiras as duas? Serão ellas que me fazem mal, mesmo
+encafuadas na toca?</p>
+
+<p>—Não digo menos d’isso, redarguiu a tia Lauriana, e aconselhou-o a
+vigial-as, a ir ás escondidas ao pé da casa das primas. Se sentisse
+cheiro a hervas queimadas ou algum parecido com esse, podia ficar na
+certeza de que todo o seu mal vinha d’alli.</p>
+
+<p>—As feiticeiras defumam sempre as casas, fingindo louvar o Santissimo
+Sacramento, quando por fim de contas dizia a velha com entono, o que
+ellas teem é pacto com o diabo, a quem rezam como a gente reza a Deus
+Nosso Senhor.</p>
+
+<p>O Francisco não queria ainda lançar todas as culpas á Marianna.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_225">[Pg 225]</span></p>
+
+<p>Quem sabe se o bruxedo seria feito por algum inimigo, de que elle não
+desconfiasse?</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>Em todo o caso tratou de precaver-se contra a influencia malefica, e
+tambem para isto lhe foi a Lauriana uma abalisada conselheira.</p>
+
+<p>Por traz da porta pendurou uma faca, de gume voltado para a rua e
+um chavelho de boi, a que todas as manhãs queimava a ponta, o que
+tambem fazia a um chifre de carneiro, que lhe era companhia constante.
+Ao mesmo tempo defumava a casa, <i>rezando os quartos em cruz</i>
+e deixando o fumo atraz de si. D’esta maneira, se as bruxas lhe
+entrassem, como costumam, pelo buraco da fechadura, tornariam logo a
+sair.</p>
+
+<p>Ainda receioso de que estes meios não fossem bastantes, preparou-se
+para dar uma lição á feiticeira que conseguisse invadir-lhe o
+domicilio. Comprou uma navalha com cabo de ponta de veado, amarrou-lhe
+um rosario bento e pôl-a aberta, junto á cabeceira da cama. Mal visse
+uma bruxa, atiraria a navalha, de modo que se espetasse no chão. E
+tanto aquella como as outras que viessem tental-o, ficariam alli
+presas, remoinhando estonteadas em volta do rosario, como em torno de
+uma luz esvoaçam os mosquitos. Elle então levantar-se-hia da cama,
+armado com a competente verdasca, e moeria á bordoada as infernaes
+visitantes. Mas esperou-as debalde noites e noites, ás escuras, de
+<span class="pagenum" id="Page_226">[Pg 226]</span>
+olhos muito abertos, ouvido á escuta.</p>
+
+<p>—Alguem de certo as avisou, explicou-lhe a tia.</p>
+
+<p>O triste foi emmagrecendo; tornou-se amarello, escaveirado.</p>
+
+<p>Os visinhos já lhe sabiam das crendices. Dois d’elles, uns doidivanas
+que ás proprias familias se não cansavam de pregar peças, tomaram o
+Francisco á sua conta. Moravam á ilharga, e uma noite, emquanto um lhe
+distraia as attenções, o outro conseguiu entrar-lhe em casa e amarrar a
+uma das pontas da colcha um cordel, que extendeu pelo chão até á rua.
+Meia hora depois o Francisco estava deitado, e já ia pegando no somno,
+tão estremunhado elle andava pelas continuas vigilias, quando sentiu a
+roupa a fugir.—D’esta vez é que eram ellas!— E atirou-lhes a navalha,
+mas, pela precipitação, a ponta não se cravou no solho.—Ainda lhe
+escapavam as malditas!—Só por vergonha não gritou por soccorro.</p>
+
+<p>Ainda que lhe revelassem a verdade, não acreditaria. Da brincadeira
+tinha desapparecido qualquer vestigio, porque um puxão mais forte
+fizera o cordel escapulir da colcha.</p>
+
+<p>Como não vissem o resultado da primeira facecia, os esturdios, tarde
+da noite, espalharam á porta do visinho uma porção de sal e de cinza.
+Quando o Francisco saía de manhã, para ir tratar das vaccas, sentiu
+uma coisa a estalar-lhe debaixo dos pés e ia tendo uma vertigem. Uma
+<i>salgadeira</i> á porta!... E de mais a mais tinha-a pisado!</p>
+
+<p>Correu a chamar a tia.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_227">[Pg 227]</span></p>
+
+<p>A velha observou de longe e a medo, benzeu-se e murmurou:</p>
+
+<p>—Eh! Senhor! Muito mal te querem, filho. E o que as bruxas te deitaram
+á porta!... Sal, azeite, <i>incensio</i>, terra de cemiterio ... pois
+aquella terra é de cemiterio com certeza! Credo! E tambem pennas, não
+vês? accrescentou ella, indicando duas pennas de ave, que alli estavam
+por acaso. Manda já varrer tudo isto ... para o lado de fóra, toma
+sentido!... E vae queimar as botas com que pisaste o sal. Cruzes!
+Cruzes!</p>
+
+<p>Assim se fez. As botas eram novas da vespera.</p>
+
+<p>Por traz das persianas, os dois sustinham o riso a muito custo, e
+apenas viram o visinho entrar em casa e a velha ir-se embora, fecharam
+a vidraça, e começaram aos pulos, ás gargalhadas, planeando nova
+brincadeira.</p>
+
+<p>Arrepender-se-hiam talvez, se podessem ver o Francisco de joelhos
+deante do oratorio, erguendo uma supplica ardente para os santos, que
+conservava de ha muito constantemente allumiados.</p>
+
+<p>Antes de entrar, tinha hesitado e estivera quasi a obedecer á
+tentação...</p>
+
+<p>Sentia ainda uma esperança. É que a vacca parecia melhorar.</p>
+
+<p>Aquelles santinhos, especialmente o representado n’um retrato egual aos
+que se tiram hoje em dia ás pessoas<a id="FNanchor_7" href="#Footnote_7" class="fnanchor">[7]</a>, quantos milagres não tinham
+feito em vida e depois da morte? Porque não haviam de fazer mais um,
+<span class="pagenum" id="Page_228">[Pg 228]</span>
+a favor de quem lhe rezava com devoção tamanha, o coração opprimido, o
+rosto banhado de lagrimas?</p>
+
+<p>E por largo tempo invocou o auxilio milagroso de Santo Antonio.</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>No dia de Natal a vacca amanheceu muito peior. Soltava a cada instante
+um mugido tão triste e doloroso, que nem uma alma christã metteria mais
+compaixão, dizia depois, na cadeia, o Francisco Raposo.</p>
+
+<p>—Só a Marianna não terá dó do pobre do bicho, pensou elle, quasi a
+chorar.</p>
+
+<p>A vacca fitou o dono com uns olhos muito afflictos, como a pedir que
+lhe acudisse, que não a deixasse morrer.</p>
+
+<p>Depois teve um tremor por todo o corpo, descaíu a cabeça para o chão,
+extendeu muito as pernas, deitou pela bocca uma baba muito grossa, e os
+olhos embaciaram-se-lhe.—Estava morta.</p>
+
+<p>—Quarenta patacas perdidas! gemeu o Francisco, e arrimou-se á
+humbreira da porta, arrancando os cabellos, praguejando, e batendo
+<span class="pagenum" id="Page_229">[Pg 229]</span>
+alli tão fortemente com a cabeça, que era um pasmo não a partir.</p>
+
+<p>Ouviu tocar á missa.</p>
+
+<p>Encaminhou-se para a egreja. Escutar a voz do sr. padre vigario, que
+sabia dar tão bons conselhos, vêr a hostia consagrada, tudo havia de
+socegal-o, e afastar-lhe os pensamentos ruins.</p>
+
+<p>A missa ainda não tinha começado.</p>
+
+<p>—Se a Marianna lá estaria?—Alli é que ella havia de ir, por ser a
+egreja mais proxima.</p>
+
+<p>Não estava.</p>
+
+<p>—Hereje! Nem sequer no dia do Natal!...</p>
+
+<p>Mas o sr. vigario dissera já outras duas missas n’essa manhã, e talvez
+a prima tivesse ouvido alguma d’ellas.</p>
+
+<p>Viu a tia logo adeante, e foi falar-lhe. D’ahi a momentos, já sabia que
+a Marianna não tinha estado na egreja.</p>
+
+<p>—Vi-a hoje, mas não foi na casa de Deus Nosso Senhor. Foi no foral,
+que vae dar ao sitio onde ella <i>véve</i>. Levava até, pendurada na
+mão, uma fressura de boi.</p>
+
+<p>—Eh, senhora! Porque levava ella isso?</p>
+
+<p>—Eu sei lá, Chico! Talvez por ser o que se tira mais barato no
+açougue, quasi de graça... Ou quem sabe se?...</p>
+
+<p>A velha calou-se.</p>
+
+<p>—Levava tambem o coração? perguntou-lhe o Francisco anciosamente.</p>
+
+<p>—Pois não, filho! Mas cala-te, que o sr. padre vigario não tarda.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_230">[Pg 230]</span></p>
+
+<p>O que mais lhe importava era a missa, depois do que acabava de
+saber!—A Marianna ainda não estava satisfeita com o mal que lhe
+causara! Sem se valer da bruxaria do coração espicaçado com a tesoura,
+já o tinha posto de rastos; o que faria agora, que ia usar d’este meio?
+Bem podia elle preparar-se para ficar sem nada: sem a outra vacca, sem
+as terras, sem a casa... Se o fogo não lh’a queimasse, deitava-lh’a
+abaixo algum tremor de terra. Na ilha ha tantos!... E o demonio
+arranjaria de certo mais um, se as bruxas lh’o pedissem.</p>
+
+<p>Ia tão fóra de si, que ainda estava de cabeça descoberta.</p>
+
+<p>Chegou em frente da casa térrea onde moravam as primas.</p>
+
+<p>Da chaminé saía fumo—um fumo negro, signal certo de maldade.</p>
+
+<p>Entrou no quintal, e rodeou a casa, para ir ver o que estavam a fazer
+na cosinha.</p>
+
+<p>Tudo parecia abandonado, como se tivesse passado por alli a morte. Uns
+pés de couve meio seccos ... uma parreira comida pela doença...</p>
+
+<p>Deante da porta, junto ao cepo de partir a lenha, amarellejava um
+machado coberto de ferrugem.</p>
+
+<p>Escutou.</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>Bem triste aquella manhã em casa da Marianna.</p>
+
+<p>Com as faltas de ar que lhe causava a lesão cardiaca, tinha a doente
+passado a noite em afflicções, e só depois de já ir o sol bem alto,
+<span class="pagenum" id="Page_231">[Pg 231]</span>
+pegou no somno, sentada na cama e encostada a umas almofadas e
+travesseiros.</p>
+
+<p>A Marianna, a despeito de não ter dormido um instante, saíu devagarinho
+e foi á cata de uma senhora, que lhe promettera mandar vir das Furnas
+os remedios applicados áquella doença pelo famoso curandeiro.</p>
+
+<p>As hervas e o mais tinham chegado na vespera, á noite. Se o curandeiro
+ia envergonhar os cirurgiões!... E com estes e com a botica, as duas
+irmãs tinham gasto mais do que podiam. A boa senhora ensinou á Marianna
+uma oração, que vinha escripta n’um papel, para ser dicta emquanto se
+queimassem as hervas. A pobre pagou os remedios com o ultimo dinheiro
+que levava, e tornou para casa.</p>
+
+<p>Á porta do açougue viu uma bella peça de carne. Suspirou, pensando
+que nem um caldo poderia dar n’aquelle dia á irmã. E queria-lhe
+tanto!...—Quando a mãe lhes faltara, o pae andava mettido com a
+cunhada, a Lauriana, e nem pensava nas filhas. Só a irmã mais velha
+cuidara na outra, que pouco mais tinha de oito mezes. Era a sua segunda
+mãe.</p>
+
+<p>O homem do açougue viu-a e adivinhando o motivo d’aquelle suspiro,
+d’aquella tristeza, offereceu-lhe um coração e um pedaço de figado, que
+pendiam de um gancho, a escorrerem sangue.</p>
+
+<p>A Marianna quiz recusar, mas por fim acceitou a esmola com
+reconhecimento.</p>
+
+<p>Entrou em casa de mansinho. Assim mesmo a doente acordou.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_232">[Pg 232]</span></p>
+
+<p>—Aqui veem novos remedios, disse-lhe ella, em quanto accendia o lume.
+Estes agora, sim! Curam a toda a gente. Primeiro vou defumar a casa com
+as hervas: alecrim, rosmaninho e outras que não conheço. O remedio da
+garrafa é para se tomar á noite.</p>
+
+<p>A doente abanou a cabeça, com melancholia.</p>
+
+<p>—No dia de Anno Bom, se Deus quizer, já havemos de ir ambas á missa!
+continuou a Marianna muito alegre, e encostou a porta da cosinha, por
+ter passado a fumaceira da lenha. Foi ajudar a irmã a sentar-se á borda
+do leito e voltou para a chaminé. Logo que a lenha formou brazas,
+deitou-as para um fogareiro pequeno, e sobre ellas acamou as hervas do
+curandeiro.</p>
+
+<p>Levantou se um fumo espesso e escuro, que invadiu toda a casa.</p>
+
+<p>A Marianna levou o fogareiro para junto da irmã, dizendo ao mesmo tempo:</p>
+
+<p>«A minha casa venho defumar em louvor do Santissimo Sacramento do
+altar, com as tres missas do Natal, com as tres hostias consagradas,
+com os tres padres vestidos e revestidos...»</p>
+
+<p>A porta escancarou-se violentamente, e o Francisco Raposo, levantando o
+machado da lenha com ambas as mãos, cresceu para a Marianna, a gritar:</p>
+
+<p>—Vae-te para as profundas do inferno, bruxa de mil diabos!</p>
+
+<p>O corpo caíu pesadamente no chão, fendido ao meio o craneo pelo golpe
+do machado.</p>
+
+<p>A doente abriu muito os olhos, e antes que podesse gritar, resvalou
+<span class="pagenum" id="Page_233">[Pg 233]</span>
+para cima do corpo da irmã.</p>
+
+<p>Assim deixaram de viver as duas <i>feiticeiras</i>.</p>
+
+<p>—Morto o bicho, morta a peçonha! murmurou o Francisco, e foi
+entregar-se á prisão.</p>
+
+<figure class="figcenter" id="i040" style="width: 800px;">
+ <img src="images/i040.jpg" width="800" height="941" alt="Uma mulher deitada em seu leito, acorda assustada ao vislumbrar uma cena de um casal se desatendendo enquanto olham para cima e vêm sua filha fugindo, montada em uma vassoura dirigida por uma bruxa velha nariguda.">
+</figure>
+
+<p>Acabou em Rilhafolles, tres annos depois.</p>
+
+
+<hr class="chap x-ebookmaker-drop">
+
+<div class="chapter">
+<figure class="figcenter" id="i041" style="width: 200px;">
+<img src="images/i041.jpg" width="200" height="45" alt="decorative">
+</figure>
+</div>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_235">[Pg 235]</span></p>
+<h2 class="nobreak" id="Mary">Mary</h2>
+
+
+<img alt="E" class="drop-cap" height="319" src="images/drop-e.jpg" width="200">
+<p class="nind"><span class="upper-case">EM</span>
+quanto nos despedimos, esteve nervosa, commovida.</p>
+
+<p>A familia, como todo o bom inglez, lunchava na sala de jantar
+situada ao rez do chão da casa, a curta distancia do taboleiro do
+<i>croquet</i>, onde jogavamos, eu e a Mary.</p>
+
+<p>O que não diria o bom Thomas, o pae d’ella, se nos visse jogar
+d’aquelle modo,—elle que era um taco de primeira ordem, e que nos
+considerava a ambos como os seus discipulos predilectos!...</p>
+
+<p>Ah! Mas é que nem eu, nem ella pensavamos no <i>croquet</i>, e embora
+fingissemos dar uma grande attenção ao caminho que percorriam as bolas
+por entre os arcos de ferro, os nossos pensamentos concentravam-se
+todos, todos, n’aquella separação eminente, que nos impellira, na
+vespera, a declararmos o amor, que havia mezes transbordava dos nossos
+corações de dezeseis annos.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_236">[Pg 236]</span></p>
+
+<p>Pobre Mary! Com os seus grandes olhos azues velados ligeiramente
+de lagrimas, fitava-me com melancholia, continuando talvez a fazer
+mentalmente a pergunta, que me dirigira no dia anterior, quando,
+afastados um pouco da familia durante o passeio á quinta do Gordon,
+tinhamos falado longamente do futuro.</p>
+
+<p>—Porque havia eu de partir? <i>Why?</i></p>
+
+<p>Adivinhava-lhe o pensamento e fugia de encaral-a, porque sentia o peito
+a estalar de magua, e dizia de mim para mim, que melhor fôra que em
+vez de me mandarem para Lisboa estudar, me deixassem ficar na Madeira,
+segundo o conselho da Mary, e assaltava-me o desejo de declaral-o a
+toda a gente, de recusar-me terminantemente a embarcar no <i>Maria
+Pia</i>, que era esperado no dia immediato.</p>
+
+<p>Continuámos a jogar.</p>
+
+<p>Mary, baixando se, como para fazer melhor a pontaria, disse-me com a
+voz afogada pelos soluços:</p>
+
+<p>—<i>Dear! It is for the last time!...</i></p>
+
+<p>Sim, era a ultima vez que poderiamos trocar uma palavra em segredo!</p>
+
+<p>Não tardaria que terminasse o <i>lunch</i>, a que ella se tinha
+subtrahido, pretextando um incommodo de estomago.</p>
+
+<p>Era a ultima vez em que poderiamos combinar os nossos projectos de
+futuro esboçados na vespera, e que a nossa ingenuidade considerava
+infalliveis.</p>
+
+<p>Então, reanimei-me!</p>
+
+<p>Quiz mostrar a Mary que, apesar dos meus dezeseis annos, não era uma
+creança incapaz de uma grande resolução.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_237">[Pg 237]</span></p>
+
+<p>Quem me déra poder repetir o que então lhe disse! O que haverá de
+mais puro, de mais elevado, do que as palavras que exprimem um
+primeiro amor, e que desabrocham da bocca do adolescente, com toda a
+sinceridade, candura e enthusiasmo de que é susceptivel uma alma?</p>
+
+<p>Nos intervallos deixados pelo jogo, que seguiamos machinalmente,
+mostrei-lhe que eram impossiveis os devaneios formados na vespera; que
+era um puro sonho de creança o pensar que ella, herdeira rica, poderia
+ser para mim, que nada possuia; mas que forcejaria por merecel-a,
+estudando, trabalhando até vencer!</p>
+
+<p>E phantasiava um futuro de triumphos. Antevia o meu regresso á Madeira.
+Vinha coberto de gloria, subia a calçada do Monte, e ia depôr com
+ufania todos os louros colhidos, aos pés de Mary, que seria então para
+mim.</p>
+
+<p>Creancices!</p>
+
+<p>Ella escutava-me, abanando a cabecinha loura, não se deixando convencer
+e murmurando sempre:</p>
+
+<p>—<i>No! Never more!</i></p>
+
+<p>Então exaltei-me, duvidei do amor de Mary, accusei-a de querer que eu
+representasse um papel pouco airoso, que désse azo a accusarem-me de
+especulador...</p>
+
+<p>Convenci-a.</p>
+
+<p>Estendeu-me a sua mão branca, onde ligeiros traços azulados marcavam as
+ramificações das veias, e disse-me pausadamente, em portuguez:</p>
+
+<p>—Pois então jure-me que voltará, que não se esquecerá de mim, que
+<span class="pagenum" id="Page_238">[Pg 238]</span>
+serei sempre a sua querida, a sua adorada!</p>
+
+<p>Oh! Como eu jurei tudo, tudo, mesmo junto ao arco da campainha!</p>
+
+<p>Ajustámos então manter correspondencia activa.</p>
+
+<p>A Clarinha Correia se encarregaria de receber as nossas cartas.</p>
+
+<p>—Nunca mais me esquece? perguntou ella ainda uma vez, fitando de novo
+em mim os seus olhos azues, profundos, scismadores.</p>
+
+<p>—<i>Never more!</i> respondi, e estando muito perto d’ella, prestes a
+acabar o jogo do <i>croquet</i>, quiz beijar-lhe de leve, fugitivamente
+o braço alvo e rosado, que saía da manga larga do vestido.</p>
+
+<p>Mary arredou-se com vivacidade e lançou-me um olhar de censura, em que
+vinha implicito um <i>shoking</i>.</p>
+
+<p>N’aquella occasião levantaram-se da meza, e o taboleiro do
+<i>croquet</i> foi logo invadido pelos que tinham estado fazendo honra
+ao <i>pale ale</i> e ás <i>sandwiches</i>, e vinham para os canapés de
+vime gosar a sombra dos grandes castanheiros, que entrelaçavam lá muito
+em cima as frondosas ramarias, formando um impenetravel docel.</p>
+
+<p>No dia seguinte chegou o vapor da carreira e d’ahi a dois dias parti
+para Lisboa.</p>
+
+<p>Não consegui trocar mais uma palavra com Mary.</p>
+
+<p>Apenas a Clarinha me disse que poderia escrever-lhe.</p>
+
+<p>Boa Clarinha! Os seus quarenta annos de solteirona nunca se tinham
+negado a prestar similhantes favores!</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_239">[Pg 239]</span></p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>Que tempo durou a nossa correspondencia?</p>
+
+<p>Não posso dizel-o ao certo.</p>
+
+<p>O coração esquece tão facilmente!</p>
+
+<p>Lembro-me de que as nossas cartas respiravam paixão e enthusiasmo,
+desde a primeira até á ultima linha. Eu ás vezes, ao percorrer enlevado
+as regras perfeitamente parallelas, que deixara no papel lusidio e
+espesso a letra firme, esguia e commercial de Mary, perguntava a mim
+mesmo se era crivel que uma loura <i>miss</i> podesse sentir amor tão
+vehemente e, o que valia mais ainda, ter a coragem de manifestal-o.</p>
+
+<p>Mas certo dia a duvida desappareceu. Li o espantoso idyllio de
+<i>Romeu e Julieta</i>, chorei lagrimas de punho com o soffrimento dos
+desditosos amantes de Verona, e conclui afinal que se um poeta de além
+da Mancha tivera espirito e coração para imaginar e sentir aquelle
+incomparavel poema de amor, não era muito que uma ingleza, em toda
+a plenitude da mocidade, e habitando de mais a mais um clima quasi
+tropical, escrevesse cartas como aquellas.</p>
+
+<p>E eu amava-a, oh! se a amava!... Quantas e quantas vezes me não
+aconteceu no meio de uma lição de mathematica ou de physica, na
+Polytechnica, caír em profunda abstracção e vel-a, sim! vel-a tal como
+era—pequenina, loura, rosada, um tanto diaphana, mas em todo o caso um
+typo adoravel de Gretchen mais candida ainda que a do <i>Fausto</i>!
+<span class="pagenum" id="Page_240">[Pg 240]</span>
+Via-a, sem me escaparem sequer uns pequeninos nadas, que a tornavam
+mais seductora a meus olhos. Mary não transigia, por exemplo, com as
+modas das suas patricias; não transigia completamente, é claro. Apenas
+os primeiros assomos da garridice tinham surgido n’ella, com os quinze
+annos, Mary abandonára o hediondo calçado que tira a certas inglezas
+toda a similhança com Cendrillon.</p>
+
+<p>O seu pésinho—creiam que não é do meu amor o diminuitivo—o seu
+pésinho mostrava-se, abaixo da fimbria do elegante vestido, calçando
+sempre uma airosa botinha, obra do mais habil «shoemaker» funchalense.</p>
+
+<p>Mary constituia um mixto adoravel da candura ingleza, com a animação e
+a elegancia meridional.</p>
+
+<p>Sabe Deus quantas curvas de segundo grau e quantos instrumentos de
+optica e de acustica eu deixei de estudar, para scismar unicamente
+n’aquella creaturinha fascinante!</p>
+
+<p>Eu queria trabalhar muito, queria colher á farta as taes coroas de
+louro antes sonhadas; mas vinha sempre a saudade sentar-se ao meu lado,
+diante da meza do estudo, e a nostalgia velar de crepes tudo quanto me
+cercava.</p>
+
+<p>Fui entristecendo.</p>
+
+<p>Emprehendeu curar-me, um amigo meu que é hoje deputado, não sei bem se
+progressista, se regenerador.—É tão difficil distinguil-os!...</p>
+
+<p>Obedeci-lhe machinalmente.</p>
+
+<p>—Deixarás de ser nostalgico, apenas eu faça de ti um bohemio.</p>
+
+<p>E levava-me a...</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_241">[Pg 241]</span></p>
+
+<p>Eu sei lá aonde me levava!</p>
+
+<p>No regresso, tarde da noite, assaltavam-me grandes furias;
+descompunha-o, protestava nunca mais acompanhal-o, fechar-lhe até a
+porta da casa de hospedes onde eu morava: mas esquecia tudo, apenas
+elle no dia seguinte, na escola, me dava um abraço apertado e soltava
+uma das boas gargalhadas, que ainda não deu em S. Bento, apesar da
+comedia em que o vejo mettido. Agora, basta que riam d’elle! É que anda
+expiando cruelmente a cumplicidade, que teve na queda d’este anjo.</p>
+
+<p>D’alli a pouco tempo eu estava perdido, na accepção dos paes de
+familia, mas tinha-me consolado.</p>
+
+<p>Não se julgue, comtudo, que esquecia Mary.</p>
+
+<p>Pelo contrario!</p>
+
+<p>Pensava sempre n’ella e por amor d’ella estudava, quando a bohemia me
+não levava até ás ruas da Baixa...</p>
+
+<p>Tanto Mary me não saía do pensamento, que eu estava de continuo a achar
+reminiscencias do seu rosto, umas vezes, outras da sua fina cintura,
+da sua mão, do seu pé, nas conquistas faceis que fazia ao lado do meu
+amigo, actual deputado, e de Luiz de Almeida, aquelle talentoso poeta e
+bohemio engraçadissimo, que a morte aniquilou tão cedo, mas que ficou
+memorado no espirito de quantos o conheceram.</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>Uma noite, na rua do Ouro, ia eu com os meus dois companheiros de
+<span class="pagenum" id="Page_242">[Pg 242]</span>
+extravagancias, quando encontrei, de cara a cara, Henry, um irmão de
+Mary de que eu era amigo, e que estava estudando em Londres havia dois
+annos. Pelos modos o pae viera ao conhecimento de que Henry se escapava
+a miudo do collegio, e fazia frequentes excursões por Piccadily-Circus
+e Leicester-Square...</p>
+
+<p>O bom Thomas chamava-o para a Madeira, a fim de regeneral-o.</p>
+
+<p>Feitas as devidas apresentações, os meus companheiros declararam á
+queima roupa ao inglez, que sympathisavam immenso com elle, e logo o
+convidaram para nos acompanhar n’aquella noite.</p>
+
+<p>Quiz pôr obstaculos, inventei difficuldades, mas tudo foi inutil. O
+proprio Henry se insurgiu contra mim e acceitou a offerta com prazer.
+Queria despedir-se alegremente de Lisboa. E despediu-se, em companhia
+da seductora Lolita, que os meus amigos lhe apresentaram com todas as
+formalidades... que foram nenhumas.</p>
+
+<p>Quando no dia seguinte nos separámos a bordo do vapor, eu estive quasi
+a pedir-lhe para guardar segredo da aventura; não o fiz todavia,
+suppondo que Henry, por conveniencia propria, fosse discreto, e tambem
+para não lhe despertar suspeitas ácerca do meu amor pela irmã.</p>
+
+<p>Ai! Porque não o fiz?...</p>
+
+<p>No paquete immediato deixei de receber carta de Mary. Escrevi-lhe
+afflicto, perguntando-lhe o motivo d’aquelle silencio.</p>
+
+<p>Não tive resposta.</p>
+
+<p>Mandei cartas, sobre cartas.</p>
+
+<p><span class="pagenum" id="Page_243">[Pg 243]</span></p>
+
+<p>Um dia a Clarinha Correia compadeceu-se de mim e enviou-me este
+desengano:</p>
+
+<p>«A Mary soube, pelo irmão, coisas terriveis a seu respeito. Esqueça-a,
+porque ella já o esqueceu.»</p>
+
+<p>Repelli o conselho, e mandei á Clarinha uma carta, que ella deveria ler
+a Mary, e que seria capaz de commover não só os tigres da Hircania, tão
+celebrados de poetas e poetastros, mas até um agiota.</p>
+
+<p>A inglezinha resistiu!</p>
+
+<p>Dois annos depois casou.</p>
+
+<p>Como eu estava longe, padeci muito menos que o heroe de <i>Sous les
+tilleuls</i>, e não fiz nenhuma das incriveis tolices, a que elle se
+abalançou no seu exagerado romantismo.</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>Dez annos depois.</p>
+
+<p>N’um dia de sol, galgava eu, em companhia de um amigo, o carreiro
+ingreme e fatigante, que vae das Féteiras para as Sete Cidades, na ilha
+de S. Miguel.</p>
+
+<p>Apesar de nos terem antes descripto com as côres mais vivas e
+fascinantes a belleza do afamado valle, já nos sentiamos invadir pelo
+aborrecimento, em consequencia da posição incommoda em que iamos
+sobre os burros alugados nas Féteiras, e tambem porque o sol estava
+ardentissimo.</p>
+
+<p>Ao nosso lado um rapazelho, descalço, jaqueta de picotilho ao hombro e
+cajado ferrado na mão, trepava o carreiro aos pulos, soltando por vezes
+o caracteristico «Passa cá i’asno!» e dando com a lingua no ceo da
+<span class="pagenum" id="Page_244">[Pg 244]</span>
+boca estalos frequentes, para animar os jumentos na trabalhosa ascensão.</p>
+
+<p>Adiante de nós, a uma centena de passos, caminhavam na mesma direcção
+dois viandantes, um homem e uma senhora. Elle, com as grandes pernas
+pendentes entre as quatro do burrinho e os compridos pés quasi de
+rastos pelo chão, balanceava muito os braços e levantava-os com
+frequencia, fazendo gestos de enthusiasmo, quando volvia os olhos para
+o vasto panorama, que já começava a desenrolar-se por traz de nós, do
+lado da beira-mar.</p>
+
+<p>Sobre a cabeça campeava-lhe um capacete branco, envolto em alguns
+metros de cassa da mesma côr.</p>
+
+<p>Por detraz e descendo para a gola do casaco amarello claro, havia
+melenas louras arruivadas, semelhantes a barbas de milho.</p>
+
+<p>Mas, naturalmente, o que mais nos attrahiu a attenção, foi a
+companheira do homem ruivo. Sentada de lado, sobre o albardão do burro,
+envolvia-se desde a garganta até aos pés n’um comprido guarda-pó de
+hollanda: ao de cima emergia a cabeça, occulta por um chapeu de palha
+preta, e embrulhada n’um espesso veo de gaze de seda azul; abaixo
+da roda do guarda-pó viam-se pendentes dois objectos escuros, muito
+compridos, de fórma estranha, que não raro se agitavam, na ancia de
+percutirem as ilhargas do jumento.</p>
+
+<p>Mais de perto conseguimos apurar, que os objectos negros eram dois pés.</p>
+
+<p>E levámos ainda mais longe a observação. Quasi perfurando o linho do
+guarda pó, adivinhavam-se umas saliencias osseas, correspondentes aos
+<span class="pagenum" id="Page_245">[Pg 245]</span>
+hombros, aos cotovellos, e até aos joelhos, não obstante as saias.</p>
+
+<p>—Quanto phosphato de cal daria aquella ingleza? perguntou o meu
+companheiro.</p>
+
+<p>Eu ia responder com um gracejo de não melhor gosto, quando attingimos a
+cumiada que limita em roda o extenso valle.</p>
+
+<p>—Eh! Senhores, disse-nos o rapaz dos burros—um cerrado michaelense
+dos campos—avistam-se d’aqui a <i>pêuco</i> as lagoas.</p>
+
+<p>Apeámo-nos, e, seguindo o conselho que nos tinham dado na cidade,
+fomos andando para diante, mas olhando sómente para a nossa esquerda,
+a fim de que o valle das Sete Cidades nos apparecesse de subito, e não
+gradualmente, á medida que fossemos deixando para traz de nós um morro,
+que se erguia á nossa direita.</p>
+
+<p>—Virem-se os senhores agora, disse-nos momentos depois o rapaz. Lá
+estão as lagoas em baixo!</p>
+
+<p>Olhámos para a nossa direita... Um deslumbramento!—No ceo pairavam
+duas ou tres nuvens, muito brancas, que recortavam cruamente o sinuoso
+perfil sobre o azul carregado da atmosphera. Abaixo, uma cadeia
+continua de montanhas fechava n’uma enorme cinta de forma elliptica
+o valle, em cujo fundo se espelhavam as duas lagoas—azul a maior e
+mais distante, de reflectir o firmamento; verde a outra, das algas
+que n’ella mergulham e da vegetação, que se debruça pelas encostas
+sobranceiras. Na margem da primeira e á nossa esquerda, como que
+banhando-se n’aquellas aguas frescas e tranquillas, branqueavam as
+<span class="pagenum" id="Page_246">[Pg 246]</span>
+casas de um logarejo, em meio de viçosas plantações.</p>
+
+<p>Entre a povoação e as montanhas que limitam por aquelle lado a immensa
+cavidade, surgia um monte, de constituição vulcanica e de ilhargas
+cortadas por sulcos profundos, segundo as linhas de maior declive.</p>
+
+<p>No cimo abria-se a cratera, de que em epochas longinquas golfaram sem
+duvida ondas e ondas de lava incandescente.</p>
+
+<p>Largo tempo permanecemos a contemplar, extaticos, boquiabertos, o
+quadro maravilhoso. A magestade imponente do panorama infundia-nos
+o sentimento de respeito e de humildade, que fatalmente nos subjuga
+perante os grandiosos espectaculos da natureza.</p>
+
+<p>Fizeram-nos, de repente, saír d’aquelle extase, uns gritos soltados
+alli perto.</p>
+
+<p>Eram os dois inglezes.</p>
+
+<p>Ella, de costas voltadas para nós, e já sem o veo a cercar-lhe
+inteiramente a cabeça, dizia por entre paroxismos de admiração:</p>
+
+<p>—<i>Ooh!... Splendid!... Magnificent, indeed!...</i></p>
+
+<p>Quando me parecia reconhecer aquella voz, a ingleza voltou-se e...</p>
+
+<p>Era Mary!</p>
+
+<p>Era sim, mas tão differente, tão mudada, que cheguei a abençoar
+n’aquelle momento a revelação indiscreta de Henry.</p>
+
+<p>Tinha-se tornado ingleza a valer, sob a influencia do deslavado marido.</p>
+
+<p>Estavamos muito perto um do outro. Ella olhou para mim casualmente,
+<span class="pagenum" id="Page_247">[Pg 247]</span>
+e, sem mostrar a minima commoção, de novo fixou a vista no lindissimo
+panorama.</p>
+
+<figure class="figright" id="i042" style="width: 117px;">
+ <img src="images/i042.jpg" width="117" height="200" alt="Uma jovem elegantemente vestida com os braços para trás segurando uma raquete, olha atentamente para uma senhora as seus pés que está com um chapéu e uma sombrinha de sol.">
+</figure>
+
+<p>Eu então vinguei-me, vinguei-me cruelmente!</p>
+
+<p>Esperei uma occasião em que ella me visse, e olhei-lhe para os pés.</p>
+
+<div class="tb">* * * * * </div>
+
+<p>Ah! Mas agora noto uma coisa! Tenho escripto tudo isto, como se
+estivesse narrando um capitulo da minha biographia.</p>
+
+<p>O heroe do conto não sou eu, affianço-lhes, mas sim o Fernando, pae da
+Lili de que já lhes narrei uma aventura.</p>
+
+<p class="space-below3">
+Antes me julguem indiscreto, do que me acoimem de ingrato!</p>
+
+
+
+
+<div class="footnotes"><h3>NOTAS DE RODAPÉ:</h3>
+
+
+<div class="footnote">
+
+<p class="nind">
+<a id="Footnote_1" href="#FNanchor_1" class="label">[1]</a>
+New-Bedford. É corruptela vulgar nos Açores occidentaes.</p>
+
+</div>
+
+<div class="footnote">
+
+<p class="nind">
+<a id="Footnote_2" href="#FNanchor_2" class="label">[2]</a>
+Assim chama a Boston o povo dos Açores occidentaes.</p>
+
+</div>
+
+<div class="footnote">
+
+<p class="nind">
+<a id="Footnote_3" href="#FNanchor_3" class="label">[3]</a>
+A devoção do Espirito Santo espalhada, ao que parece, no velho Portugal
+continental pela Rainha Santa, e levada pelos primeiros colonos para
+as ilhas, ainda aqui permanece tão profundamente arreigada, que as
+festas do Parácleto preenchem grandemente a vida açoriana desde o
+domingo de Paschoa até ao da Trindade. Todos os que a sorte indigitou
+para festeiros acceitam o encargo com o maior prazer, e desempenham-o
+com bizarria muitas vezes incompativel com as suas posses. Emigra o
+açoriano, vae lidar para Boston, New-Bedford, S. Francisco ou para
+outro ponto da União em que se concentra a colonisação portugueza;
+consegue juntar alguns centos de <i>dollars</i> e volta á patria só com
+o fito de <i>coroar</i> em cumprimento da promessa, e gasta em dois
+dias o producto de muitos mezes de trabalho. Depois embarca novamente
+para a America, a proseguir na faina, mas nem de leve arrependido pela
+sua devota prodigalidade.</p>
+
+</div>
+
+<div class="footnote">
+
+<p class="nind">
+<a id="Footnote_4" href="#FNanchor_4" class="label">[4]</a>
+Textual.</p>
+
+</div>
+
+<div class="footnote">
+
+<p class="nind">
+<a id="Footnote_5" href="#FNanchor_5" class="label">[5]</a>
+Aurora.</p>
+
+</div>
+
+<div class="footnote">
+
+<p class="nind">
+<a id="Footnote_6" href="#FNanchor_6" class="label">[6]</a>
+Cabana.</p>
+
+</div>
+
+<div class="footnote">
+
+<p class="nind">
+<a id="Footnote_7" href="#FNanchor_7" class="label">[7]</a>
+O actor Ribeiro, que tão notavel desempenho deu ao <i>Avarento</i> de
+Molière e a muitas outras peças, esteve em Ponta Delgada no começo da
+sua carreira, e fez no theatro Michaelense o papel do santo portuguez
+com tamanho exito, que os retratos que tirou vestido e caracterisado
+como entrava no applaudido drama sacro, espalharam-se por toda a ilha,
+e passaram das collecções artisticas dos seus admiradores, para os
+oratorios do povo, e ainda alli são reverenciados—dizem-me—como se
+representassem o verdadeiro Antonio de Bulhões. Quem sabe lá se este se
+pareceria physicamente com o artista dramatico?</p>
+
+</div>
+</div>
+
+
+<hr class="chap x-ebookmaker-drop">
+
+<div class="chapter">
+<h2 class="nobreak" id="INDICE">INDICE</h2>
+</div>
+
+
+<table class="autotable" >
+<tbody><tr>
+<td class="tdl"></td>
+<td class="tdr"><span class="allsmcap">&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;Pag.</span></td>
+</tr><tr>
+<td class="tdl">O casamento do veterano</td>
+<td class="tdr"><a href="#Page_1">1</a></td>
+</tr><tr>
+<td class="tdl">Os filhos do frade</td>
+<td class="tdr"><a href="#Page_61">61</a></td>
+</tr><tr>
+<td class="tdl">O primeiro desengano</td>
+<td class="tdr"><a href="#Page_69">69</a></td>
+</tr><tr>
+<td class="tdl">A Alegria do Mar</td>
+<td class="tdr"><a href="#Page_75">75</a></td>
+</tr><tr>
+<td class="tdl">A lampreia</td>
+<td class="tdr"><a href="#Page_89">89</a></td>
+</tr><tr>
+<td class="tdl">Mau homem</td>
+<td class="tdr"><a href="#Page_97">97</a></td>
+</tr><tr>
+<td class="tdl">A licença do domingo</td>
+<td class="tdr"><a href="#Page_107">107</a></td>
+</tr><tr>
+<td class="tdl">O contrabando</td>
+<td class="tdr"><a href="#Page_121">121</a></td>
+</tr><tr>
+<td class="tdl">Piloto</td>
+<td class="tdr"><a href="#Page_129">129</a></td>
+</tr><tr>
+<td class="tdl">Na vindima</td>
+<td class="tdr"><a href="#Page_137">137</a></td>
+</tr><tr>
+<td class="tdl">O jantar do general</td>
+<td class="tdr"><a href="#Page_141">141</a></td>
+</tr><tr>
+<td class="tdl">O aprendiz de barbeiro</td>
+<td class="tdr"><a href="#Page_151">151</a></td>
+</tr><tr>
+<td class="tdl">A allemã</td>
+<td class="tdr"><a href="#Page_161">161</a></td>
+</tr><tr>
+<td class="tdl">O marraxo</td>
+<td class="tdr"><a href="#Page_171">171</a></td>
+</tr><tr>
+<td class="tdl">O pae do Jacintho</td>
+<td class="tdr"><a href="#Page_177">177</a></td>
+</tr><tr>
+<td class="tdl">A folga</td>
+<td class="tdr"><a href="#Page_185">185</a></td>
+</tr><tr>
+<td class="tdl">O paiol</td>
+<td class="tdr"><a href="#Page_209">209</a></td>
+</tr><tr>
+<td class="tdl">As feiticeiras</td>
+<td class="tdr"><a href="#Page_217">217</a></td>
+</tr><tr>
+<td class="tdl">Mary</td>
+<td class="tdr"><a href="#Page_235">235</a></td>
+</tr>
+</tbody>
+</table>
+
+
+
+
+<div class="chapter">
+<div class="transnote spa1">
+<p class="nindc"><b>NOTAS DE TRANSCRIÇÃO.</b></p>
+
+<p>Os erros tipográficos evidentes foram corrigidos.</p>
+
+<p>A pontuação, a hifenização e a ortografia foram tornadas consistentes
+quando uma preferência predominante foi encontrada no texto original;
+caso contrário, não foram alterados.</p>
+
+<p>Nesta versão, o carácter "caret" (acento circumflexo) foi utilizado com
+ou sem chaves para representar letras sobrescritas.</p>
+</div>
+</div>
+
+
+<div style='text-align:center'>*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK 75220 ***</div>
+</body>
+</html>
+
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